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CRÍTICA DA RAZÃO
TÜPINIQÜIM

Roberto Gomes

lOt EDIÇÃO

ili
FTD
 

Copyright ( c ) Roberto Gomes, 1990


Todos os direitos de edição reservados à

EDITORA FTD S.A.


MATRIZ Rua Rui Barbosa 156 (Bela Vista) São Paulo
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Gomes, Roberto, 1944-


Crítica da razão tupiniquim / Roberto Gomes. —  11. ed.
— São Paulo : FTD, 1994. — (Coleção prazer em conhe
cer)

ISBN 85-322-0333-7

1.   Filosofia - Brasil 2. Filosofia brasileira I. Título.  II.


Série.

94-0590 CDD-199.81

índices  para catálogo sistemático:


1.  Brasil : Filosofia 199.81
2.   Filosofia brasileira 199.81

Editor:   Jorge  Cláudio  Ribeiro


Coor denador   de r evi são:   Adolfo  José  Facchini
Editor   de ar te:   Cláudio  Cuellar
Capa:   Criação -  Robert o Soeiro
Execução -  Chromo Digital, Design  Gráfico
I lustr ador :   L u i z Carneiro
Pr odução e D i ag r amação:   Reginae Cr em a
E ditor ação eletr ônica:   Paulo Lop es  da  Silva
 

índice
Capitulo 1 - Um título  4
Capitulo 2- A sério: a seriedade
Capitulo 3-  Uma Razão que se expressa 17
Capitulo 4-  Filosofia e negação 26
Capitulo5 - O mito da imparcialidade: o ecletismo 32
Capitulo 6- Omito da concórdia:  o jeito 4
Capitulo7-  Originalidade e jeito 48
Capitulo8- A Filosofia entre-nós  55
Capitulo 9- A Razão Ornamental 69
Capitulo10- A Razão Afirmativa 82
Capitulo 11 -  Razão Dependente e negação 95
Sugestões de atividades didáticas  111
O autor 117
Bibliografia 117
 

Ca
 
pu

ío
l1
Um título
 

Um  título 5

POESIA COM LAMENTAÇÃO


DO LOCAL DE NASCIMENTO

Tudo o que eu digo, acreditem,


teria mais solidez
se em vez de carioquinha
eu fosse um velho chinês.

MUXÔR   FERNANDES
(Papáverum 

que pode significar isso: Razão Tupiniquim? Tratando-

O
se de título  de um livro, supõe-se que denuncie um te
ma. Ocorre que este tema jamais foi explicitado, não
existindo. Fácil constatar que entre nós esta Razão esta
rá adormecida ou pulverizada em mil manifestações que
seria problemático  reunir num único  nó com a virtude da  síntes
Talvez seja impossível  o tema deste livro, embora seu  títul
possa ser até sugestivo. Não é  fácil escrever sobre algo que só exis
tirá caso seja inventado. Uma Razão Brasileira, não existindo atual
mente, precisaria antes do mais ser providenciada, vindo à tona.
Então, das duas uma: ou este livro não pode ser escrito ou  será
uma tentativa de "inventar" esta Razão, seguindo  vestígios  espar
sos no romance, na poesia, na  música  popular e até - pois é ca
paz de que mesmo aí  transpareça  - nalguns livros de Filosofia.
 

6 Um títul 

Mas estas alternativas devem ser rejeitadas. Primeiro, me é


impossível não escrever este livro. Segundo, é absurda a pretensã
de "inventar", aqui, seu tema. Outra  será  sua pretensão.
Partamos de algo pacífico:  mal sabemos o que seja uma Ra
zão Tupiniquim. Uma piada, talvez.  Hipótese que nos causaria gran
de prazer. Gostamos muito de piadas. Há todo um espírito  brasi
leiro que se delicia com a  própria  agilidade mental, esta capacida
de de ver o avesso das coisas revelado numa palavra, frase, fato.
Somos, os brasileiros, muito bem-humorados. Conseguimos rir de
tudo.  Do governo que cai e do governo que sobe. Das instituições
que deveriam estar a nosso  serviço,  dos dirigentes que deveria
representar nossos interesses. E não é só. Chegamos a fazer pia
das sobre nossa capacidade de fazer piadas. Nada mais ilustrativo
do que a série  de piadas onde representantes de outros  países sã
ridicularizados pelo desconcertante "jeitinho" de um brasileiro.
Neste plano, seja dito, nos movemos com facilidade gritante.
Desta atitude seria  útil  extrair o avesso. Embora tenhamos
uma imensa mitologia construída  em cima de nosso jeito piadísti
co,  no momento de pensar não admitimos piada. Queremos a coi
sa  séria. Frases na ordem inversa, palavras raras, citações latin
e é impossível  qualquer piada em latim, creio. Isto criou situaçõe
constrangedoras, como as  fúteis críticas  sériasa Oswald de A
de,  acusado de mero piadista. Estranha gente, esta. Gaba seu ini
mitável jeito piadístico,  mas na hora das coisas "culturais" mergu
lha num escafandro greco-romano.
j Creio que a existência de uma piada tipicamente brasileira
deveria ser objeto de estudo mais aprofundado. Possuirá  caracte
rísticas  específicas? Que atitudes  básicas  revela? Uma  saudáv
maneira de suportar um existir humilhado? Um modo de estar aci
ma daquilo que amesquinha nosso dia a dia? Talvez sim. Certa
mente sim. Uns reagem com dramaticidade, tragédia  e muito san
gue - ocorreu-nos reagir com o riso.
Talvez uma posição existencial muito nossa. O riso - um cer
to tipo de riso, o nosso - nos salva, tiraniza o tirano, amesquinha
quem nos tortura, exorciza nossas  angústias.  Não creio, aqui de
 

Um  título 7

meu ponto de vista brasileiro - e que outro ponto de vista poderia


me importar? - que  pudéssemos  ter feito melhor.
Há um perigo, porém.  Sempre há um perigo. A mesma pia
da que salva pode mascarar-se em alienação. Como qualquer cria
ção humana, também  a piada deve ser essencialmente   crítica, já
que é de sua pretensão ser  isso: uma forma de conhecimento. Ora,
quando o riso se perde em pura facilidade, em distração, morre a
atitude crítica.  E o "jeito piadístico" estará  a serviço de nossa in
tenticidade. Há  indícios,  entre nós, de tal coisa: deixar como  est
pra ver como é que fica; não esquentar a  cabeça;  analisa não; dá
se um jeito.
O conformismo brasileiro encontra aí seu terreno de eleição.
Justificar, por exemplo, sua  própria  condição - dependência, insol
vência política, jogos de privilégios -  através de um simples "o br
sileiro é assim mesmo", eis o que impede seja criada entre nós
uma atitude tipicamente brasileira ao nível da reflexão crítica,  pro
posta e assumida como nossa. Desconhecendo-se, mal sabendo
de uma Razão Tupiniquim, o brasileiro aliena-se de dois modos:
rindo de sua sem-importância  ou delirando em torno do  "país  d
futuro", em variados "anauês". Na verdade, conformismo e ausên
cia de poder crítico,  pois nos dois casos há um abandono - "dei
xa como está  para ver como é que fica" - e uma  esperança má
ca -  "dá-se um jeito".

Mergulhado num escafandro greco-romano - embora não se


ja nem grego nem romano -, o brasileiro foge de sua identidade.
Tem sido na Filosofia que o  espírito  humano tem buscado sua au-
to-revelação. Porém,  autocomplacente e conformista, sujeito  sé 
o brasileiro ainda não produziu Filosofia. Assim, é  necessário  ad
vertir que um pensamento brasileiro jamais esteve lá onde tem si
do procurado: teses universitárias,  cursos de graduação e  pós-gra
duação, revistas especializadas - e logo se verá  por quê. No bolor
de nosso "pensamento oficial" não se encontra qualquer sinal de
uma atitude que assuma o Brasil e pretenda   pensá-lo  em nossos
termos. Além do palavrório  aridamente técnico e estéril,  das id
 

8 Um títul 

gerais, das teses que antecipadamente sabemos como vão concluir,


das idéias  bem pensantes, nada encontramos que possa denuncia
a  presença  de um pensamento brasileiro entre nossos  "filósofo
oficiais", vítimas  de um discurso que não pensa, delira.
Este livro inviável começa,  pois, com uma série  de advertê
cias.  A questão de um pensamento brasileiro   deverá  brotar d
uma realidade brasileira - não do "pensamento" e da "realidade"
oficiais. Deve inventar seus temas, ritmo, linguagem. E inventar
seus pontos de vista. Obras como as de  Mário  de Andrade, Os
wald de Andrade, Machado de Assis, Lima Barreto,  Sérgio  Buar
que de Holanda, Noel, Chico Buarque,  além  daquilo que se te
feito no campo das ciências humanas nos  últimos  anos, têm mai
a nos dizer do que as  maçantes teses universitárias nas quais a Fil
sofia se mascara no Brasil. O mesmo se diga do torcedor de fute
bol, da porta-estandarte e do homem da rua em geral
Mas não  será  apenas isso que irá tornar viável este livro.
Uma Razão não se faz com um livro. Provisoriamente,  permaneça
mos em nossos limites. Não se trata de "inventar" uma Razão Tu-
piniquim, mas de propor um projeto, um certo tipo de pretensão
certamente quixotesca e evidentemente absurda: pensar o que se
é, como se é.
 

Capítulo 2

sério:aserie
 

10  A séno: a seried 

Aliás muito difícil nesta prosa saber onde termin


a blague onde principia a seriedade.
Nem eu sei.

MÁRIO DE ANDRAD
(Prefácio Interessa

o capítulo  anterior levantou-se um tema para um  títul

N
É necessário  não desperdiçar título  tão sugestivo. Ca
agora perguntar: trata-se de tema  "sério"?
Pelo que ficou dito, propõe-se ser  sério,  não uma
piada. Quero que me entendam: não uma piada em seu
sentido alienante. É tema que deverá  ser "seriamente" considera
do.  Mas: conseguiremos pensar "a   sério"?  Razão Tupiniquim
Não é coisa no que se pense - e sobretudo nestes termos. Só po
de ser brincadeira, jamais um tema  "sério".  Quer dizer: não cons
ta de nenhuma tese defendida na Sorbonne ou em Freiberg.
Prestando atenção, vemos que há   vários  empregos possívei
para a palavra "sério"  e, conseqüentemente, vários  sentidos pa
a "seriedade". Creio que isso fique claro se considerarmos estas
duas ocorrências: "Fulano de Tal é um homem   sério"    e "Fu
de Tal leva a sério  seu trabalho".
Entre os dois empregos não há apenas o acréscimo  de um
letra, mas uma mudança  de perspectiva e de acentuação. Mudo
o  caráter  da seriedade em questão. No primeiro caso queremos
dizer que Fulano de Tal é um homem que zela pela seriedade das
 japarências. É respeitador das normas e convenções sociais. Seria
incapaz de "sair da linha". Dele não se esperam coisas que fujam
 

 A séno:  a seriedade 11

ao normal estatístico.  Isto vale dizer: Fulano de Tal é um home


respeitador e respeitável.
Na segunda ocorrência, a seriedade em questão remete-se a
outra gama de significações. Levar a   sério, seja um trabalho,
lugar ou um amor, não consiste no zelo pela vigência de normas
sociais. Ao contrário.  O acento faz com que toda carga significati
va recaia sobre o aspecto interno e virtualmente negador do social
mente admitido. Se levo a  sério, isto é algo que sai de mim em
reção ao objeto da seriedade. Se sou  sério,  me coisifico como obje
to de seriedade. Aí   está  a diferença entre o que é  dinâmico  - ete
namente em questão -, encontrado no a   sério, e o caráter de
sa acabada e  estéril  da seriedade do sujeito objetificado. A sé 
revigoro o mundo com uma quantidade imensa de significações.
Sério, reduzo-me a objeto morto, caricato, de existir centrado
externo.
Ao levar a sério, estou profundamente interessado em a
ma coisa, a ponto de voltar todas as minhas energias no sentido
de sua realização - outro não sendo o princípio  de erotização d
agir. Mesmo quando isso exige "sair da linha". Só aqui poderemos
encontrar o germe revolucionário indispensável  à criatividade.
Fixemos, por exemplo, o caso do artista. O  protótipo do artis
ta,  se quiserem. E óbvio  que aí encontramos uma figura muito dis
tante daquilo que se considera   sério. Valores não convencion
palavras e frases talvez extravagantes, um modo de vida que tor
ce o nariz aos bem pensantes. O artista - e o  filósofo,  quando fiel
à sua vocação igualmente marginal - tem recebido ao longo da
história  o  rótulo  de louco. E sua "loucura" consiste nisto: não
um homem  sério.
Por oposição, nada parece ser levado tão a  sérioquanto o
balho artístico.  Atividade desinteressada - não no sentido de alie
nação das questões de sua época,  mas em oposição à   seriedad 
daquilo que é vigente. Não é sem motivo que hoje se busca no ar
tista um modelo de ação não repressiva e de reerotização do agir.
O critério  segundo o qual se orienta não é o lucro ou a dominaçã
do outro, sendo flagrante que o artista realiza um conjunto de  valo
res que se chocam frontalmente com aqueles que são vigentes.
 

12  A séno:  a seried 

No homem  sério, ao contrário,  encontramos a perfeita e


nação do "interessado" - palavra agora utilizada em sua conota
ção menor: eu como objeto da seriedade. É ambicioso, calculista,
visa lucro, poder, organiza suas relações em termos de futuro pro
veito etc. Curioso notar que nada poderia estar tão distante dos
valores idealmente apregoados pela tradição do pensamento oci
dental do que o homem  sério. No entanto, é o artista que, ao
cretizar estes valores, acaba recebendo toda a carga de agressão
sob o rótulo  de "louco".
O artista, este marginal, é objeto de tabu, suportando a mes
ma agressiva ambivalência por parte do homem   sério: amor e 
Aliás,  duas são as coisas que o homem  sério faz  ao chegar ao
der: instaura a censura e  constrói  suntuosos museus e teatros.
distribui prêmios literários. Isso só  parecerá contraditório se deixa
mos de considerar que existem duas maneiras de aniquilar com o
artista: censurando-o ou promovendo-o a uma  espécie de ornamen
to social. E é assim que o homem  sério  exorciza aquilo que teme.
I Algumas conclusões são  possíveis.  Antes de mais nada, é ób
vio que o  sérioestá  a serviço  de uma máscara  social - é um
isona que assumo. Ou: que me assume. Casca normativa que nos
vem do exterior e que nos dita o que  convém,  esta a essência d
tal seriedade. A partir disso, pouco ou nada importam as intuições
que procedam do interior, ficando nossa expressão mais pessoal e
crítica  eliminada. Eis como existem coisas que um professor faz
e outras que não faz. Usar  óculos,  ser carrancudo e empertigado
Afogar-se e suar desesperadamente num terno e gravata. Falar
num jargão convencional e altamente "erudito" - coisas que cabem,
que convêm. Outras, nem tanto.
O mesmo se dá com aqueles que praticam a Filosofia entre
nós, a imensa maioria composta por professores. Existem coisas
sérias, consagradas pelo uso acadêmico, de bom tom e alta ilu
ção.  São coisas que vêm sendo discutidas na Sorbonne, em Oxford,
publicadas em Paris ou Berlim, apresentadas em congressos. Cons
tituiu a Filosofia, desta forma, seus  próprios  temas e maneiras de
tratá-los  - aqueles que convêm. Quer dizer, seus sufocantes ternos
e gravatas. E o triunfo do homem   sérioé atingido quando se c
 

A sério:  a seriedade 13

ga à completa ritualização. Quando já não importa o  dito,  mas a


maneira de dizer dentro de padrões previamente consagrados. As
sim, uma comunicação a um congresso pode ser absolutamente
vazia e soberbamente tola - mas, cumprido o ritual, o aspecto "sa
crossanto" da cultura é preservado. Eis aí coisas convenientes, per
feitamente  sérias.
Quero com isto dizer - não principalmente e não só - que
o tema providenciado para este  título  exigiria sair do   sério. P
ce evidente que Filosofia brasileira só   existirá  a partir do momen
to que vier a ser, como a piada, uma investigação do avesso da  se
riedade vigente. Obras  sériassão feitas com arquivos, notas a
da página  e num jargão que me aborrece. É esta   máscara  s
que vem sufocando o pensamento brasileiro, onde ela mais profun
damente aderiu ao rosto. A ritualização, triunfo do   sério, cons
exatamente nisto: fala-se agora sobre temas adequados, pouco im
portando se importam. Vale dizer: mesmo que se trate de especu
lações sem qualquer raiz na realidade que nos circunda. Assim,
perdeu-se a ligação e a referência  crítica  à realidade, que sempre
foi a pretensão básica  da Filosofia quando soube ser fiel à sua mis
são marginal.

Faz algum tempo. l i uma entrevista de Nelson Rodrigues -


exemplo de típica  inteligência brasileira cujos descaminhos só nos
resta lamentar - em que dizia que o mais grave defeito dos perso
nagens de romance brasileiro é serem incapazes de cobrar um es
canteio. Por detrás  do efeito de espírito,  uma intuição radical: en
tre-nós  perdeu-se o contato com a realidade em torno.

Isso tudo vem a ser ainda mais espantoso se observarmos


que nossa atitude corriqueira - a do brasileiro, vale dizer - é de
profunda aversão ao formal. Temos horror à pompa. Um  traço
básico   do humor brasileiro, e, portanto, da sabedoria do brasilei
ro,  é desestruturar qualquer pomposidade, desarmando as tentati-
 

14  A sério-,  a serie

vas de empostação. Já as expressões da língua  revelam isto. U


francês qualquer pode dizer: "Je vous en prie" ou "Je suis enchan-
té de faire votre connaissance". Isto, ao pé da letra, é ridículo  em
português. Um escritor alemão pode, por exemplo, semear genero
sos pontos de exclamação ao longo do que escreve. Em termos
brasileiros, nada mais chocante do que uma exclamação. Não con
fere com nosso natural ceticismo, nossa  oblíqua  maneira de olhar.
Em nós é espontânea a tendência a ver o avesso das coisas. Se di
que qualquer personalidade mundial, com dois dias de Brasil, já
não seria mais levada a   sério.
Entretanto, é no Brasil onde o falar, o escrever e o pensar
vieram a ser as coisas mais formalizadas e  rígidas  que se conhece.
Todo sujeito que sobe numa tribuna julga essencial, antes do mais,
colocar-se na ponta dos pés e no alto de seus tamancos. Essencial
trocar todas as palavras usuais por palavras que estranham nosso
modo.  Construir frases numa ordem que jamais usaria para pedir
um cafezinho. E falar sobre coisas para as quais nos custa encon
trar referência na realidade em volta. No intelectual brasileiro que
discursa, triunfa o sério- expressão de uma classe privilegiada di
te da multidão analfabeta. No homem   sério, triunfa a Razão Or
mental.
O melhor exemplo disto talvez seja o terno e gravata. Este
uso revela  entre-nós  muito mais do que se poderia supor.   Alé
da natural aversão ao formalismo, as razões de clima: este é um
país  onde, na maior extensão, o calor é brutal. Apesar disto, sem
pre que se trata de realizar uma atividade "cultural" - apresentar
uma aula, discursar, escrever um livro ou pensar -, o brasileiro  sé
rio mergulha num terno e gravata.
Este triunfo do externo não significa apenas a submissão ao
vigente. Significa mais. A bem dizer, determina que o discurso,
em terno e gravata, fuja da realidade brasileira. E  óbvio  que nin
guém saberá  cobrar um escanteio nestes trajes. Pelo mesmo moti
vo,   nada poderá  dizer de importante, que importe. A roupa deter
mina, no caso, um ato de seletividade que procede do vigente: a
partir do momento em que a assumo, uma  série  de coisas deixam
de ser urgentes. Não as vejo. Não são suficientemente   sérias.
 

A séno.-  a seriedade 15

tão,  a fuga para um universo adequado ao traje: a fria Europa.


Assim, o filósofo  brasileiro, capaz de vôos  tão mirabolantes
no tempo e no espaço, capaz de pensar o século XIII ou as cosmo
visões européias,  não é capaz, pela armadura na qual se encontra,
de enxergar um palmo diante do nariz. Este mesmo "pensador"
não é capaz de cobrar um escanteio ou  dançar  um samba. O que
levanta a questão fundamental sobre as condições de possibilida
de de um juízo filosófico brasileiro: a Filosofia, de terno e gravata,
pensa?
Eis o que desejaria mostrar: nossa aversão à pompa acaba
convertendo-se em seu oposto - o triunfo da cultura formalistica.
E,  pois, urgente que assumamos a capacidade  a  sénodo hum
como forma de conhecimento. Só no momento em que, abandona
da a tirania do  sério,  percebermos que nossa atitude mais profun
da encontra-se em ver o avesso das coisas é que poderemos reti
rar de nossas costas o peso de  séculos  de academismo. E só então
pensar por conta própria.  Se deslocarmos a acentuação do exter
no para o interno, encontraremos condições de pensar o que  está
diante de nosso nariz. E o que é Filosofia? É a tentativa, penso,
de enxergar um palmo diante do nariz - o que não é tão  fácil nem
tão inútil  quanto muitos pensam. Afinal, o peixe é quem menos
sabe da água.
 

16
 A séno:  a  seriedad 

Creio ser isto suficiente para denunciar nossa inautenticida-


de intelectual. Quando, com um mínimo  de consciência crítica,  i
vestimos contra nossos deuses e fantasmas, nossos sagrados precon
ceitos? Sempre damos um jeito? E o que quer dizer isto? Uma vir
tude, uma maleabilidade maior? Este é o  país  das "revoluções se
sangue"? De fato e historicamente? E o que significa isto? Um
humanismo superior? Falta de caráter?  Um deixar como está  pa
ra ver como é que fica? Mito da conciliação? Fuga do  a  sério
Vejamos bem: se este é o  país  do futebol, por que nossos
personagens de romance não sabem cobrar um escanteio? Ou se
rá o país  do eterno carnaval, da praia, do cafezinho, do papo des
contraído,  do funcionário público,  do  herói  sem nenhum carát
do chope gelado, ou, antes e acima de tudo, o  país do jogo do bi
cho e da loteria esportiva, revivência dos mitos do bandeirante?
Mas qual a Razão - se há -  implícita  nisto? Qual o pensar que
daí decorre? Qual o projeto existencial que a tudo isso informa?
Em suma: o que significa isto?
Não sabemos. Estes temas ainda não adquiriram o  status  de
assunto  sério, pois o intelectual brasileiro só leva  a sérioo
sério, óbvia  inversão. Onde o hábito  faz o monge.
 

Capítub 3
Uma Razão
quese expressa
 

18 Uma Sazão que  se  expressa

For muitos anos procurei-me a


mim mesmo. Achei.
Agora nâo me digam que ando à
procura da originalidade, por
que já descobri onde estava,
pertence-me, é minha.

MARIO DE ANDRADE
(Prefácio Interessa

empre que uma Razão se expressa, inventa Filosofia.

S
O que chamamos de Filosofia grega nada mais é do que
o síreap-íease  cultural que a Razão grega realizou de si
mesma. É deste ato - mais simples do que gostariam
de supor os pensadores tupiniquins -, no qual uma Ra
zão se descobre em sua originalidade e conhece seus mais  íntimos
projetos, que emerge a possibilidade de Filosofia.
Mas no que consiste descobrir-se em sua originalidade? Te
mos aqui duas questões: sobre o que seja descobrir-se e sobre a
natureza da originalidade. E algo anterior: as condições desta des
coberta.
Se parto do suposto que descobrir-se é, de algum modo, des
cobrir alguma coisa, desde logo me coloco em oposição a isto que
deverei descobrir. No momento em que encontrasse tal objeto, te
ria concluído  minha tarefa. Mas não existe de fato nada  com
que,  ou com quem,  eu deva me encontrar para descobrir-me. Os
encontros com são externos e superficiais.
 

Uma Sazão  que se expressa 19

De fato, descobrir-se é encontrar-se  em,  pelo simples fato


de não haver um "outro" que eu deva descobrir - desde o  início
sou eu quem está  em questão. A descoberta é, pois,  fenômeno pr
mário:  um re-conhecimento.
Se nos despimos de todas as artificialidades que providencia
mos para nossa instalação no real, verificamos que a questão so
bre o esíar permanece além de todas. Assim, desde o início a que
tão a respeito do que eu sou remete-se à pergunta: "Onde es
tou?"  E onde estou? Num tempo, num lugar, entre coisas qu<
me rodeiam, pessoas com quem falo. A consciência é primariamen
te este contato com a proximidade, com os contornos que imedia
tamente me chocam, exigem e perturbam. Estou em determina
do lugar e, a partir dele, principio a ser. Antes estou, depois sou.
A Filosofia, onde uma Razão se expressa, sempre se revelou
pela fidelidade a este dado.  Súbito,  uma Razão descobre-se  e
Em Mileto, por exemplo. Por mais abstrato que possa parecer
um pensamento, sempre traz em si a marca de seu tempo e lugar.
Ao inverso do comumente suposto, não é a desvinculação
do lugar e do tempo que confere profundidade a um pensamento,
como, por exemplo, o de Platão. Seu grande mérito é ser a expres
são realizada do espírito  grego num dado momento - pois este ho
mem foi, sem dúvida,  um grego. Compreendemos mal o que dis
se se quisermos conservar de sua obra aquilo que não se "mistu
ra" impuramente com as atribulações de sua  época.  A consciênci
aguda, altamente diferenciada da Razão grega naquele momento,
eis a raiz de sua profundidade e a natureza de sua lição. Seu pen
samento torna-se incompreensível se não levarmos em conta a  ínti
ma conexão que aí existe entre  Política  e Filosofia, sendo esta es
clarecida por aquela, na medida em que reflete a seu respeito. O
fracasso político  na Sicília,  as condições políticas  perturbadoras,
morte de Sócrates o levaram ao postulado fundamental de seu idea
lismo: o mundo material deve ser modificado - quer dizer: nega
do - a partir das verdades obtidas na intuição das idéias.  Assim,
ao postular a reforma da cidade, o "mundo das  idéias"  mostra-se
como o não-ser negador do vigente, a  síntese  de sua crítica  a se
tempo. E só assim, visto em sua essência inegavelmente  política,
 

20 Uma Sazão que se expressa

faz pleno sentido. Fora disso,  parecerá  construção vazia e "plat


nica" - o que de fato nunca foi.
Quanto a Tomás  de Aquino - um dos autores,   aliás, pel
qual devemos ter o  máximo  de piedade, pois foi vítima  do pi
dos preconceitos, o preconceito   a favor -,  devemos notar que, "his
toricamente, o tomismo não surgiu como o sistema intemporal e
'sabe-tudo' que nos apresentam (...) era a resposta patente a um
problema inadiável  do momento". 1  Encontrava-se em dada posi
ção e dela buscava a resposta àquilo que era urgente questionar.
Assim, tentar eternizá-lo,  colocando-o acima do tempo, é desservi
lo - donde se conclui que, em matéria  de desserviços,  os tomist
conseguiram mais do que os mais severos   críticos  de  Tomás 
Aquino. "Isolada do contexto histórico  que a viu nascer, a  síntes
tomista aparece como  anacrônica."2
Os exemplos poderiam continuar e toda uma  história da Filo
sofia poderia ser escrita a partir daí. Fiquemos apenas com o es
sencial. Como entender Hegel sem a Revolução Francesa, sem re
ferência à necessidade de reorganização do Estado e da socieda
de em bases racionais? "Os  esforços históricos  concretos para
estabelecimento de um tipo de sociedade racional haviam sido
transpostos, na Alemanha, para o plano  filosófico  e transpareciam
nos esforços  para elaborar o conceito de Razão. Tal conceito es
tá no cerne da Filosofia de Hegel. Este sustenta que o pensamen
to filosófico  nada pressupõe  além  da Razão, que a  história  trat
da Razão, e somente da Razão, e que o Estado é a realização da
Razão. Estas afirmações não são  compreensíveis, porém,  se a R 
zão for tomada como um puro conceito   metafísico,  pois a  idéi
que Hegel fazia da Razão preservava, ainda que sob forma  idealís-
tica, os esforços  materiais no sentido de uma vida livre e racional
(...) A não ser que se apreenda com clareza o sentido de tais con
ceitos, e sua intrínseca  correlação, o sistema de Hegel  aparecer

1. SCHOOYANS, Michel. Tarefas e vocação da filosofia no BrasiL Revista Brasü


de FúosoBa,  São Paulo, 21(41):61-69, jan./fev./mar., 1961, p. 65.

2 Idem, ibidem.
 

Uma Sazio que se expressa 21

como a obscura metafísica  que de fato nunca foi."3


Fora, portanto, das urgências de seu tempo, os pensadores
não chegam a fazer pleno sentido. Mas não basta ressaltar que to
do pensamento traz a marca de seu lugar e tempo - isto, de um
modo ou de outro, muitos aceitam. O vital é reconhecermos que
um pensamento é original  não por superar sua posição - o que é
impossível  -, mas precisamente por dar forma e consistência a es
te tempo e apresentar uma revisão  crítica das questões de sua épo
ca,  aí tendo origem.  O pensamento é superior não a despeito de
ser situado, mas justamente por situar-se.

Desta forma, embora entre as pretensões da Filosofia - e tam


bém da ciência, no caso - encontremos a de querer ultrapassar o
espaço  e o tempo, esta mesma possibilidade de superação radica
se no ato de assumir sua posição  específica.  Isto equivale a dizer
que é justo esta pretensão que se encontra em jogo.   Entre-nós,
por exemplo, encontramos o apego extremo ao pensamento de
outros por julgarmos que só os outros poderão nos dar qualquer
chave do saber. Assim, queremos nos descobrir num encontro  com
um pensamento qualquer, seja medieval ou grego, de hoje ou de
ontem. Aguardamos uma solução estrangeta sem nos darmos con
ta de que, sendo estrangeta, será  precisamente isto: estranha. 
o pensamento, antes da pretensão de ser atemporal, deve ter a
pretensão primária de não ser jamais estranho,  o saber de um outro.
Se exigirmos da Filosofia não ser apenas algo  entre-nós,  mas
Filosofia brasileira, é claro que estamos supondo uma originalida
de,  a nossa. Um erro seria, portanto, apegar-se a uma resposta es
tranha, que aqui não tenha nascido. Outro, confundir originalida
de com novidade. O novo é apenas um acidente do original. Que
ro dizer: dele decorre em alguns casos. Uma formulação qualquer
é original não pelo fato acidental de ser nova ou  inédita,  mas pe
lo fato de esíar  vinculada a determinadas origens.  Produto de um

3.  MARCUSE, Herbert  Razão  e  Revolução.  Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,


1969, p: 17.
 

22 Uma Razão que se expressa

ato do espírito que se enraíza em.  Criar um automóvel sem moto


direção e lugares e - suprema novidade - que não transporte, se
ria algo absolutamente novo, rigorosamente   inédito.  Creio, no en
tanto, que sem nenhuma originalidade. O delírio  novidadeiro e for-
malístico  na arte, por exemplo, tem produzido resultados deste ti
po - uma arte que se recusa a qualquer compromisso para bastar-
se num auto-envolvimento aos limites do narcisismo. De fato isto
revela tão-somente o vazio existencial, a ausência de qualquer pro
jeto criador. Surge, de resto, num momento em que a arte perdeu
a noção de qualquer papel  histórico.
O original, em suma, é o avesso do estranho e do novo: tem
raízes  aqui e de longa data.

Coisas simples decorrem daí. Se não assumo minha posição,


carecerei de um ponto de vista e,  conseqüentemente,  nada verei.
E condição de visão estar em dada posição e dela vislumbrar os
objetos. Ver é, ou envolve, um ato de seletividade. E só vejo de
minha posição. Qualquer verdade é minha verdade - e só o  será
se vier a ser minha. Não pretendo, como uma acusação ligeira e
superficial poderia supor, qualquer inexistência da verdade. Viso
insistir em que é preciso ver, ou estar-vendo, da   única  maneira
possível: historicamente. O suposto da verdade, de resto, é postula
do intencionalmente na  própria  natureza do ato de pensar. Ocor
re que a verdade não se encontra onde muitos julgam que esteja.
Se quisermos ser fiéis  à verdade, devemos supor que resida não
em nossos juízos  (históricos,  situados,  mutáveis,  refutáveis), m
no limite projetivo destes  juízos.  A verdade, sendo criação  históri
ca, encontra-se no limite da direção para o qual apontam os  juízos.
Daí a refutabilidade indefinida do conhecimento, seja  científico,
seja filosófico.  Daí a ilusão de esgotá-lo  no juízo, uma vez que, hi
toricamente - quer dizer: de fato e efetivamente -, a verdade não
reside no juízo,  mas em sua projeção.
A originalidade da Filosofia consiste em descobrir-se  em de
terminada posição, assumindo-a reflexivamente.  Além disso: se sua
pretensão básica  é a verdade, vale lembrar que esta só faz senti-
 

Vaia Sazão que se expressa 23

do quando é minha. Mesmo a verdade de um outro só   poderá  se


verdade para mim se dela me apropriar, antropofagicamente. E
não se poderia objetar, do ponto de vista de um pensamento rudi
mentar, que a verdade  em si já se encontrava lá. Por um motivo
simples: verdade em si  não faz sentido algum.

Eis por que uma Filosofia brasileira só   terá  condições de ori


ginalidade e existência quando se descobrir  no Brasil. Estar no Bra
sil para poder ser brasileira. E isto não tem ocorrido. Desde sem
pre nosso pensar tem sido estranho, providenciado no estrangeiro.
É imprescindível, portanto, a clara consciência de que um pro
blema para um alemão do século  XX ou um grego do  século 
a.C. pode, perfeitamente, não ser um problema para mim. Ou:
só o será  se eu o fizer meu. E só poderei legitimamente fazê-l
meu se corresponder às  importâncias  e urgências diante das quai
me encontro. Esta, a condição de possibilidade anterior a toda e
qualquer Filosofia. Não há aqui um elenco de coisas anteriormen
te fixadas - "estranhamente" - que eu possa utilizar como um ro
teiro ou espécie  de índice,  de tal maneira que, ao tratar de cad
um destes assuntos, eu esteja inevitavelmente fazendo Filosofia.
Fazer Filosofia é fazer a Filosofia. O que envolve: seus temas e
seu modo de abordagem. Jamais posso  dá-la  como pressuposta,
como se bastasse manuseá-la  à maneira de um arquivo.
Urge, pois, com relação aos temas e instrumentos "estranha
mente" providenciados, que eu verifique se  me-importam.  Só en
tão terei condições de aproximar-me deles  a  sério, fazendo
que sejam efetivamente  meus.  Condição para que meu conheci
mento seja um estar-vendo de minha posição - e não um abstra
to ver fora do tempo e do  espaço.
Motivo pelo qual uma Razão só se expressa ao providenciar
seus temas, sua linguagem, decorrência de encontrar-se  em sua
posição. A grande dificuldade, no sentido de fazer explodir toda
uma construção  sériada Filosofia que entre-nós  se instalou, é
lizar a consciência de que o pensamento e seus objetos são pura
 

24 Uma Sazão que se  expressa

invenção.  Com efeito, não havia um "problema" para a Filosofia


grega antes que os gregos o inventassem, assim como a IX? Sinfo
nia não estava em parte alguma antes que Beethoven a criasse.
Não havia um "problema hegeliano" esperando por Hegel anterior
mente a Hegel. Assim, não há um "problema" para a Razão Bra
sileira que nos esteja esperando. Urge, isto sim,  inventá-lo  no pr
prio ato de inventar um Filosofia brasileira. Nosso  streap-tease cultural.
Invenção, porém,  que não se dá no vazio. Hegel, Tales o
Marcuse não injetaram um problema na consciência de seu tem
po,  assim como um médico  implanta - "estranhamente" - um ó
gão ou tecido no corpo do paciente. Ao  contrário, de Tales a Mar
cuse a Filosofia fez vir à consciência reflexiva da  época  coisas qu
urgiam ser providenciadas. Não que, ao modo do  em si acima refe
rido, tais elementos lá estivessem em estado latente à espera de
uma espécie  de sucção reflexiva. Insista-se que os  filósofos, ao in
ventarem Filosofia, inventaram igualmente o que  importava e des
tacaram o que era  urgente,  o que se veio a perceber  depois  de ter
sido inventado. Daí a intuição original que gerou dado conjunto
de idéias.  A noção de que o pensamento é uma  espécie  de ápi
reflexivo da consciência de seu tempo pode ser excessivamente ro
mântica  - mas é inevitável.  E uma história  da Filosofia que se r
cuse a ser um amontoado de dados  terá por tarefa recuperar aque
las intuições que, ao longo da  história,  geraram pensamento.
Assim, Filosofia é uma Razão que se expressa -   fórmula  on
de a palavra Razão comparece carregada de historicidade. E uma
Filosofia brasileira precisaria ser o desnudamento desta Razão que
viemos a ser. Seja por excesso de pudor, por medo, o fato é que
até hoje não nos despimos. Talvez temendo nada encontrar por
debaixo de nossos trajes europeus, nosso infatigável  terno e grava
ta.  Ou talvez fosse para nós excessivamente doloroso descobrir-se
em,  enfrentando a radical solidão da nudez.  Tiraríamos  as roupa
para descobrir, absurdamente, que estamos nus. Sem  máscaras
de aplausos ou punições, sem nossa imagem de homens   sér 
cheios de certezas. O que, afinal, fazer de uma nudez que não acei
tamos como nossa?
 

Uma Sazão que  se expressa 25

A questão se reduz a algo simples: não existe uma "problemá-


tica"brasileira à nossa espera. Urge ser inventada. Inventada e pos
ta em questão - este, o esforço  da Filosofia, desde sempre. Cabe
perguntar se entre-nós  encontramos sinais de tal  esforço.  Em res
mo e didaticamente: há uma Filosofia brasileira?
 

Capítulo 4

Filosofia e negação
 

 Filosofia e negação 27

O passado é lição para se medi


tar, não para reproduzir.

MARIO DE ANDRADE
(Prefácio Interessa

Filosofia goza de um destino certamente  trágico:  dev

A
 justificar-se. Não no sentido em que as ciências devem
 justificar-se. Quanto à ciência, urge saber de sua valida
de,  das condições de construção de seus objetos e deter
minar, no conjunto da cultura, o lugar do conhecimen
to que propõe. Não é o que ocorre com a Filosofia.
A ciência e seu saber procedem de um movimento do espíri
to em direção ao real que nos circunda, real suposto independen
te de mim. Em nossos dias isto assumiu um caráter pragmátic
seu valor é o de seus resultados em termos de  técnica. Antes mes
mo de determinado o lugar e a validade da ciência, já damos por
suposta sua  importância. A ciência nos importa, sendo 
seus resultados. Antes mesmo de questionarmos a respeito de seus
supostos e conseqüências, damos por admitido que os resultados
do saber científico  são desejáveis,  gerando progresso. É claro qu
mal sabemos o que seja progresso, mas  não importa: o cientista é,
do ponto de vista do vigente, dispensado de defender a cidadania
da ciência. Ela já a tem, admitida.
As coisas mudam quando tratamos da Filosofia. Torna-se ago
ra urgente justificar e assumir a Filosofia.  Justificá-la  não é ainda
a defesa de sua cidadania, mas algo anterior. Antes do mais, impli-
 

28  Filosofia e negação

ca certa atitude geral diante do Universo - atitude muito diversa


daquela adotada pela ciência. Nesta lidamos com determinados
objetos munidos de determinados instrumentos, sendo que antes
convencionamos os limites e o valor de sua utilização. Na Filosofia,
deparamos com um modo de colocar a existência em questão. Sen
do que este modo gera seus  próprios  objetos. Não há, já foi visto
objetos que aí estejam - "filosoficamente" - à espera de um trata
mento adequado. Tais objetos são criados pelo  espírito, isolados
num ato de intuição. Não ocorre a simples seleção de um objeto,
mas sua invenção. Por Sm, sua projeção existencial no plano de
nossas importâncias  e urgências.
Estes momentos - atitude, invenção, projeção e determina
ção das urgências - descrevem um   único  processo. No entanto
não é tudo. Ocorre um momento paralelo: urge assumir a Filoso
fia. Talvez isto signifique algo simples: pergunta-se aqui se a Filoso
fia é, para nós, importante.   Será  que,  além  do bolor acadêmic
do qual se reveste e da busca de sucesso intelectual, a Filosofia re
almente nos importa? Responder a tal questão implica determinar
a distância  que vai da justificação da atitude  filosófica (crítica)  a
uso da Filosofia para justificar atitudes (ideologia).
Não basta estabelecermos os  vícios  de nossa costumeira posi
ção intelectual, ainda que isso seja decisivo. E preciso perguntar
além, na origem. Ou seja: precisamos  mesmo de Filosofia? Propor
esta questão não é um mero perguntar-se acadêmico - e "brilhan
te",  num jogo de palavras. É levar o questionamento a seu limite:
o limite de sua importância.
É verdade que qualquer executivo esbarra ao longo da vida
com questões que constam entre aquelas problematizadas pelos
filósofos.  Mas só isto não concede importância  a tais ques
preciso que eu esteja envolvido num processo no qual tais ques
tões emerjam como decisivas, vindo a ser urgentes, quando as le
vo a  sério.
Descobrimos para lá da importância  da Filosofia dada pelo
homem  sério -  erudição, brilho, status,  justificação ideológica 
vigente - a importância  da Filosofia quando levada a   sério
emergência da consciência negadora.
 

 Filosofia  e negação 29

As questões decorrentes são as seguintes. Onde,   entre-nós,


esta  importância a  sériodo filosofar? Onde, o objeto
preocupações referido ao que nos rodeia e inventado por ato de
uma consciência crítica  brasileira? Onde, a autenticidade e a cida
dania de uma Filosofia nossa?
Estas, as questões que entre-nós  foram extraviadas. Isto por
que a grande tentação da Filosofia - algo que compartilha com a
arte - é apresentar-se como  "respeitável", quer dizer, com preten
sões  sérias.
O conceito de responsabilidade é, assim visto, essencialmen
te  acrítico;  e já sabemos que o homem  respeitável  é o homem s
rio. Tal homem está definitivamente comprometido com dado siste
ma, molde e fim de seus atos. A partir do momento em que a Filo
sofia adquire respeitabilidade, pode conseguir tudo - verbas, diplo
mas,  honrarias, imortalidades acadêmicas -, menos o essencial: es
pírito crítico.
Em livro de introdução à Filosofia, por exemplo, é comum
encontrarmos a insistência com relação à "utilidade" da Filosofia
- versão  sériada  importância. É apresentada como co
to desinteressado (o que, de resto, ou é  equívoco  ou não existe
sendo todo conhecimento interessado, já que é assumido como ur
gente), embora fosse melhor dizer inofensivo. E assim busca-se
mostrar os benefícios  informativos e formativos - "espirituais" -
da Filosofia. Esta atitude dos manuais equivale a pedir um lugar
ao sol para um pobre mendigo, o  filósofo.  Jura que é inofensivo,
sério,  e que cuida apenas das coisas do  espírito  - e pede um pou
co de sol. Desconfio que tal sujeito mendiga errado, já que não sa
be do que precisa.
Ao se ressaltar a utilidade da Filosofia - e é uma importância
sériaque lhe será  dada - estaremos de imediato liquidando
esta Filosofia. Poderá  a partir de então reproduzir ideologicamen
te o que é vigente, só. "Pense" o que quiser,  será sempre ideológic
Tal Filosofia  ficará  impossibilitada de, antes de mais nada,
criar um mundo - o que equivale a  dizer: destruir um mundo, aque
le que impede o próximo. Visará  manter o mundo dado com to
da a sua seriedade.  Assim, as duas características  anteriormente
 

30
Filosofia e  negação

exigidas, autenticidade e cidadania, ficam prejudicadas. E a Filoso


fia  permanecerá  entre-nós  como aquele agregado de Machad
de Assis, o José   Dias, que aplaude e concede para sobreviver.
A Filosofia não pode prescindir de sua missão primeira: des
truir um mundo. Efetivamente, o que é Filosofia? A mim parece
ser isto: dizer o  
contrário.
Esta, a lição primária  que uma história  do pensamento deve
ria sempre ressaltar. Os grandes momentos do pensamento surge
no auge de uma curva, dando consistência e definição a um mo
mento do processo histórico.  E condensam isto numa intuição po
tencialmente criadora. Imediatamente  após  o período  de criaçã
surge a cristalização e a esterilidade - e aí encontramos os preten
sos seguidores. É quando aquela intuição  originária se perde nalgu
ma escolástica.  Só mais tarde surgirá o verdadeiro sucessor: aquel
que disser o contrário, respondendo à intuição envelhecida em con
ceito com uma nova intuição. E o processo segue.
Antes de mais nada, Sócrates  diz não a tudo que o precede,
como Tales havia dito não às cosmogonias e como Platão  dirá não
a Sócrates  - encontrando em Aristóteles  aquele que lhe diz o co
trário.  Os verdadeiros seguidores de Platão não são os  neoplatôni
cos,  pois estes festejam um  cadáver.  Poderíamos  construir tod
uma história  da Filosofia, que se recusasse a ser mero arsenal ilus
trativo de dados históricos, mostrando que qualquer momento cria
dor foi, na origem, uma negação. Isto não envolve, advirto, a  idéia
de uma necessária  sucessão linear que conduzisse a um "progres
so" contínuo  para algo melhor - apenas envolve momentos  legíti
mos de um processo que, embora produto humano, nos escapa
em seu sentido globaL
Oswald de Andrade, que  entre-nós  representou um momen
to de devastadora destruição e, portanto, de  máxima  criação, fez
bem em notar com relação à arte: "Essa necessidade de moderni
zar é de todos os tempos (...) Giorgio Vasari, o grande  crítico  do
Renascimento, fala sempre e insistindo em exaltar, na 'maneira
moderna' de Leonardo da Vinci, de Rafaelo Sanzio de Urbino,
esses que são hoje os clarins supremos do classicismo. E o são jus
tamente porque foram 'modernistas'. Se não o fossem, aguavam
 

 Filosofia e negação 31

repetindo Giotto e Cimabue, em vez de produzir a  Língua  nov


da Renascença."4
Qualquer conhecimento inicia sendo negação, ou seja, como
essencialmente  crítico.  O que não é,  está  visto, exclusividade d
Filosofia. Das artes  plásticas  à ciência, assistimos à sucessão de in
tuições criadoras degradando-se em  estereótipos até serem recupe
rados por nova intuição.
Há, no entanto, uma condição para este não. A  crítica  é al
go a ser assumido, é uma posição do  espírito.  E não a assumo d
ponto de vista da eternidade. Por um motivo simples: não estou
na eternidade. Estou no tempo, num lugar. Ao assumir a postura
crítica  a partir deste tempo e lugar, deixa de haver  distância entr
o que digo e o que sou - inexistindo qualquer  diferença  entre es
tar e ser. Digo o que  sou. Isto é Filosofia. Meu  streap-tease cultural.
Entre-nós, porém,  encontramos atitude oposta, que chamar
de "mito da imparcialidade". Queremos estar acima das oposições.
Não no sentido de assumi-las e então resolvê-las. Mas no sentido
de evitá-las  e então dissolvê-las. Aguando, como diria Oswald d
Andrade.
E fato constante nossa tendência a evitar o choque de  idéia
e as tomadas de posição. Encontramos sempre um meio-termo en
tre,  digamos, idealismo e realismo, subjetivismo e objetivismo, e
houve mesmo quem entre-nós  encontrasse um meio-termo entr
positivismo e marxismo, disparate que me intriga. Tudo isto pode
ria consistir em empresa  louvável,  mas não do modo como a con
duzimos: dissolvendo oposições. Cabe, a  propósito,  alertar que n
meio não está  a virtude, como muitos pensam. No meio  está 
medíocre.
Eis por que, não assumindo uma posição nossa, um pensar
brasileiro torna-se impossível  - impossibilitado de criar por nã
aceitar destruir o passado que nos impuseram -, recusando assu
mir sua condição básica:  que seja nosso,  negador do alheio.

4.  ANDRADE, Oswald de. Ponta de  Lança.  3? ed., Rio de Janeiro, Civilização Bras
ra, 1972, p. 12.
 

CapüubS
O mito da impar-
cialidade: o ecletism
 

O mito da imparcialidade: o ecletismo

Trazendo em seu espírito  o re


flexo das faces mercantil e
feudal do domínio,  ceve a  intel-
Ugentsia  nacional que conci
liar também  o liberalismo eco
nômico  e o instituto da escra
vatura, procurando ajustá-lo à
realidade do país. Ademais, tudo
a levava a uma ideologia da me
diação.

PAULO MERCADANTE
(A Consciência Conservadora no Brasil)

Brasil aconteceu ser o  paraíso  de algumas outras coisas


além do futebol e do jogo do bicho. Entre elas, o ecletis
mo e o jeito.
"A corrente  eclética  representa o primeiro movi
mento filosófico  plenamente estruturado no Brasil (...).
No meio século  transcorrido entre as  décadas  de 30 e 70 insere
se a formação, o apogeu e o  declínio  do ecletismo no BrasiL A
sementes lançadas  sob o manto da autoridade de Cousin,  filósof 
oficial na França  de Luís  Filipe (1831/1848), encontraram terren
fértil  Se não chega a estruturar-se numa autêntica corrente  filosó
fica, a doutrina configura plenamente o  espírito  da elite dirigente
constituída durante este período. Sinônimo de simples justaposiç
de idéias,  perde, no Brasü,  toda e qualquer conotação negativa
é adotado, quase universalmente, com a denominação de esclare
cido,  qualificativo que visa sem dúvida  enobrecê-lo. Mais que isto,
a própria vitória da conciliação no plano  político, durante o Segu
do Reinado, é  atribuída  ao estado de espírito  que se identificav
com o ecletismo." 5

5. PAIM, Antônio. História  das Idéias Filosóficas  no Brasil   1? ed., São P


1967, pp. 75 e 104.
 

34 O mito da imparcialidade: o ecletismo

As idéias  deste filósofo menor, Cousin, espécie  de hegeliani


mo dissolvido aos limites da inconsistência, vieram a ser não ape
nas aquilo em que o espírito das elites dominantes se viram retrata
das,  mas, sobretudo, as frouxas bases sobre as quais se fundou
uma autêntica ideologia da conciliação. Seus  traços  mais marcan
tes seriam: 1? - a desconfiança  com os "sistemas", que seriam ca
misas-de-força do espírito;  2? - a crença de que a "verdade" pod
ria ser o resultado de um mosaico montado a partir de  inúmeros
pensadores, o que,  além  de livrar-nos dos perigos dos sistemas,
permitiria um enriquecimento indefinido, aproveitando-se de ca
da sistema o "melhor" - daí a qualificação de "esclarecido"; dizia
Cousin: "O que recomendo é um ecletismo ilustrado que, julgan
do com eqüidade  e inclusive com benevolência todas as escolas,
peça-lhes  por empréstimo  o que têm de verdadeiro e elimine
que têm de falso"; 3? - finalmente, a  crença  tipicamente narcisis
ta e imatura de que, assim agindo,  estaríamos  dando mostras de
"espírito  aberto", "esclarecido", não-dogmático - mito que seria
notável  relacionar com aquele da natural "bondade" do brasileiro,
ou com os mitos da "cordialidade", da "democracia racial", das "re
voluções sem sangue".
Não é minha pretensão desenvolver aqui as  peripécias históri
cas descritas pelo ecletismo  entre-nós.6  Quero outra coisa. Me pa
rece que o ecletismo não foi  entre-nós  apenas um movimento, o
primeiro a se estruturar, ou o simples reflexo de uma determina
da situação política e social. Produto direto da indiferenciação inte
lectual brasileira, que por sua vez é produto da dependência cultu
ral que até hoje perdura, creio que no ecletismo tenhamos revela
do muito mais do que normalmente se supõe. É manifestação de
alguns traços básicos  de nosso caráter intelectual e de nossa con
ção política,  e continua vivo, ainda  encontradiço,  prezado e vigen
te entre-nós.  Saber como se manifesta, porque optamos por ele,

6. Sobre o tema, além  da obra de Antônio  Paim acima referida, o livro de José Hon


rio Rodrigues:  Conciliação  e  Reforma no Brasil,  um desafio  histórico-cultural.  Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1965, onde se faz uma análise  de nossa característica  "politica
de conciliação" e a obra  A Consciência Conservadora no Brasil,  de Paulo Mercadante, Rio
de Janeiro, Civilização Brasileira, 2? ed., 1972
 

O mito da imparcialidade: o ecletismo 35

onde se encontra, eis algumas coisas que urgiriam ser respondidas.


Compõe o que chamo de um mito brasileiro: o  espírito  da impar
cialidade.
Fica claro neste mito que, se ainda não criamos qualquer po
sição filosófica  nossa, demos variadas mostras de imaturidade inte
lectual, e, no ecletismo, retratamos nossa hesitação em assumir
um ponto de vista que nos permitisse uma  síntese  original De res
to, reflexo da dependência cultural que desde sempre nos acompanha.

Gostaria de começar  por uma afirmação  óbvia  e altament


"ingênua": a de que o Brasil é um  "país  jovem". Esta expressão
que circulou com sucesso durante anos, ressalta nossa  pujança vir
tual e grandeza ainda não realizada. Com a transformação  históri
ca operada pela consciência da dependência, caiu em desuso. E
a noção de "país  subdesenvolvido" ganhou cidadania. 7
Mas peço licença para usar a expressão num sentido mais si
ples e elementar, prescindindo por ora das implicações da depen
dência para a devida compreensão da despersonalização em que
nos encontramos. Viso ressaltar tão-somente que este  país foi des
coberto em 1500 - há 476 anos - mas que apenas em 1808, vin
do a Corte para o Brasil, ganhou alguns favores  mínimos,  sem o
quais um país  não pode (sequer) pretender existir. E só em 182
tornamo-nos formalmente independentes. Estes dados poderiam
ser complicados para ganhar em consistência, mas pretendo me li
mitar a isto: de.país  colonizado passamos a fazer parte dos  satéli
tes dos impérios  que emergiam e, de fato e materialmente, nossa
dependência prolongou-se, assumindo diferentes formas, às vezes
tão sutis que chegamos a pensar, sem brincadeiras, que  éramos  li
vres.  Resta, portanto, a constatação de que este  país  tem uns cen
to e poucos anos, num critério  fraco e condescendente - e que te
ria ainda menos, caso o critério  viesse a ser mais severo.

7. CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. Reviste Argumento, São Pau


lo,  1:6-24,  out, 1973.
 

36
O mito da imparcialidade: o ecletismo

O jovem leva uma vantagem: ainda não se cristalizou em po


sições rígidase  defensivas. Há, no jovem, a disponibilidade indis
pensável  ao trabalho criador: o gosto pelo novo, o risco do incer
to.  Em oposição, o passar do tempo se acumula sob forma de rigi
dez e fracasso na criação. Mas cuidemos da conclusão apressada:
a de que o jovem seja por si mais criador do que o idoso. E cuide
mos da facilidade oposta: a de que só o homem "experiente" se
 ja capaz de criar.  Não. O tempo não é experiência. Pode ser esclerose.
Numa visão ligeira, envelhecer seria um caminhar no senti
do do futuro - o que não corresponde à verdade. Caminhar em
direção ao futuro é a  característica do jovem, ocorrendo envelheci
mento quando se inicia o processo inverso: a volta ao passado, sua
preservação, dele se fazendo sempre mais dependente. No que en
velhece, o risco é o  hábito  - a infindável repetição daquilo que f 
antes uma resposta criadora. O perigo é a tensão, inerente ao pas
sado, de buscar perpetuar-se, oferecendo as mesmas respostas a
questões que agora são outras.
Esta, a ameaça  do passado. Mas há outro ângulo.  O pass
do não se acumula somente sob a forma de hábito,  mas, virtual
mente, introduz a possibilidade da memória. E se o hábito faz co
que se repitam mecanicamente respostas caducas, a memória  é
potencial criador sempre  disponível com o qual a história pode contar
O jovem está, num certo limite, livre de um passado que ame
ace escravizá-lo - simplesmente por não existir ou por não ter atin
gido a intensidade necessária.  Na aparência - como se isso nã
dependesse de uma posição do  espírito  -, sendo o Brasil um pa
 jovem,  estaríamos  menos próximos  dos perigos da esclerose. M
com o que podemos contar? Já foi dito, de resto, ser o Brasil um
país  sem memória.  Nosso ceticismo destruiria esta consideração
no sentido de levar em conta - com relação ao passado. Parece
que estamos condenados a sempre partir do zero.
Desta forma, um país  jovem pode ser apenas infantil. Se nã
corre o risco da esclerose, não conta com o potencial criador da
memória.
É neste contexto  contraditório  - na verdade apenas vital -
que se dá (ou não) o ato de assumir-se uma personalidade defini-
 

O mito da imparcialidade: o ecletismo 37

da, propondo uma Filosofia. Foi concretizando esta personalida


de assumida que ao longo da história  o espírito  criou a si mesm
Por isso, a questão de uma Filosofia brasileira encontra-se com a
urgência de ter que assumir uma Razão Brasileira.
Para que isso ocorra, precisamos atinar que o passado, o pre
sente e o futuro não são coisas dadas, mas  criadas  - primeira con
dição de pensamento original. O passado, na aparência, é dado -
do ponto de vista em que nos encontramos. Mas ele mesmo é
uma questão em aberto: foi feito e  poderá ser recriado em inúm
ros sentidos se encarado como  memória.  Só na medida em qu
assumirmos a essencial temporalidade e contingência inerente ao
processo de criação de um  espírito  brasileiro, assumindo ao mes
mo tempo nossas contradições e alienações, tomaremos posse de
uma das condições do pensar brasileiro: nossa posição.

Algumas constatações de fato. Não há, em Filosofia, algo que


seja uma posição brasileira. Há uma ilusão: a de que possamos, im
parcialmente, usufruir benefícios das mais diversas reflexões estran
geiras, delas retirando o "melhor". Desde sempre visamos extrair
do pensado por outros aquilo que poderá nos ser útil  - e isto con
titui o mito da imparcialidade.  Entre-nós,  é atitude freqüente bu
car dissolver oposições, justapondo subjetivismo e objetivismo, ma
terialismo e idealismo, racionalismo e empirismo - como se tal ati
tude pudesse, impunemente, ser adotada. Sem nos cobrar o pre
ço daquilo que poderíamos  ser. Assim, nos falseamos, nada sendo
E nada assimilamos. A condição  mínima de assimilação é a existên
cia prévia  de uma estrutura que assimile. Não existe assimilaçã
neutra, na qual só a objetividade bruta do conhecido importe. Exi
ge-se a presença  do fator originante do conhecimento: a posiçã
do sujeito.
E pretensão ingênua querer tudo assimilar, dissolvendo oposi
ções,  extraindo de cada um o "melhor". Para extrair o "melhor",
é necessário  seletividade - e esta envolve um  critério.  Logo, u
 

38 O mito da imparcialidade: o ecletismo

posição. O vazio nada assimila. E o que determinaria o "melhor"?


Fator originante do conhecimento, a posição do sujeito é
quem organiza a seletividade. A distinção entre um conhecimento
crítico  e um conhecimento ingênuo como o praticado no Brasil
esta: a consciência clara dos  critérios  adotados. Só a partir da cons
ciência de um critério  é que deixo de me encontrar diante de u
universo neutro, fazendo surgir um universo  cognoscíveL  Só assi
haverá  assimilação, não havendo apenas coisas a serem assimila
das,  mas uma atividade criadora do sujeito que assimila.
Se no ecletismo se fizer presente algum  critério,  deixa de se
ecletismo, passando a ser uma posição caracterizada pelo  critéri
existente. Além  de ingênuo, o ecletismo é impossível.  Como se
pre haverá,  por mais obscuro, algum  critério,  o ecletismo determ
na um tipo de Filosofia enlouquecida, que não sabe de si. Pois fa
zer Filosofia é colocar em questão os  critérios, os pressupostos co
os quais trabalho. Uma Filosofia não filosofada, eis a estranha coi
sa - numa estranha expressão - que se tem praticado no Brasil.
Nosso sono dogmático  consiste em assumirmos uma posição qu
é, ao mesmo tempo, ingênua e contraditória.
Ausência de critérios críticos, além  de absurda e caótica,  n
pode ser confundida com abertura intelectual e menos ainda com
"esclarecimento". E despersonalização intelectual e produz o mais
baixo dos produtos culturais: o ecletismo e seu pragmatismo cego.
Essa indiferenciação intelectual gerou um monstrengo em termos
de atitude filosófica:  evitar oposições e dissolvê-las, ao  invés  de e
frentá-las  e resolvê-las. Sérgio  Buarque de Holanda deu expressã
a este fenômeno:  "E freqüente,  entre os brasileiros que se pres
mem intelectuais, a facilidade com que se alimentam, ao mesmo
tempo, de doutrinas dos mais variados matizes e com que susten
tam, simultaneamente, as convicções mais  díspares.  Basta que tai
doutrinas e convicções se possam impor à imaginação por uma rou
pagem vistosa: palavras bonitas ou argumentos sedutores. A con
tradição que porventura possa existir entre elas parece-lhes tão
pouco chocante, que alguns se alarmariam e se revoltariam sincera
mente quando não achássemos legítima  sua capacidade de aceit
las com o mesmo entusiasmo. Não há, talvez, nenhum exagero
 

O mito da imparcialidade: o ecletismo 39

em dizer-se que quase todos os nossos homens de grande talento


são um pouco dessa espécie".8
O que não quer dizer, sendo  impossível,  que não tenhamo
critérios  seletivos. Mas são da pior  espécie,  sem consciência de s
sem reflexão ao nível crítico.  Não usamos nossos critérios,  som
suas vítimas.  São formados por algo  próximo  do meio-termo (o
de, já foi visto, não  está  a virtude, mas o medíocre),  qualquer co
sa que gostamos de chamar de bom senso, ponderação, sensatez,
e que eu prefiro chamar de "senso impensado".

Um país sem memória não pode ficar esperando que um pa


sado caia do céu: precisa  construí-lo,  pois mesmo um passado s
constrói - quando o faço para mim. E o paradoxo se dissolve: cons
tniímos  um passado voltando-nos para o futuro, escolhendo u
projeto, um ponto de vista. Nossa posição.
Este gesto nos faltou: apostar. Lembremos que assumir uma
posição não é fechar-se ao real, mas condição de realidade. Assu
mir uma posição não significa embotamento. É, ao  contrário,  con
dição de existência, o momento em que passamos a conviver com
a dúvida.  O contrário  é a despersonalização na qual nos encontr
mos,  atados a nosso dogma peculiar: a ingênua imparcialidade.
Todo pensamento é parciaL A partir do momento em que
se põe. É delírio  pretender um conhecimento absoluto,  imutáve
E aqui emerge outra de nossas contradições: de  célicos, nos revela
mos dogmáticos. Nosso ecletismo surgiu por não admitirmos limita
ções - querendo de tudo o "melhor", o saber completo - , pelo fa
to de sonharmos com a ilimitação. Ora, Platão é o ponto de vista
de Platão - nem poderia ser de modo diverso. Esta, a tragédia  e
a força  de todo pensamento criador.
O dilema não é assumirmos ou não uma posição, mas àssu-
mi-la com espírito crítico.  O  espírito  da dúvida,  que sempre
quando a Filosofia soube ser fiel a si mesma, a essência do pensa-

8. BUARQUE DE HOLANDA,   Sérgio. Raízes  do BrasíL  7? ed., Rio de Jane


Olympio, 1973, p. 113.
 

40 O mito da imparcialidade: o ecletismo

mento. Daí o "mito da imparcialidade" revelar, por  detrás da má


cara de isenção e objetividade, uma fraqueza  primária:  a ausênci
de risco. A incapacidade de ver no conhecimento um empreendi
mento a mais, uma invenção a ser levada a termo. A tentativa de
dissolver oposições. Dar um jeito. Não radicalizar.
Isso revela um dos elementos de nosso ceticismo: a  autocríti
ca impiedosa e castradora de um personagem que ainda não se li
bertou do  imprímatur  europeu. Nosso folclore cultural  está 
na música  e no romance, no esporte e no teatro, de momento
em que, aplaudidos na Europa, nos sentimos altamente satisfeitos,
pois a Europa novamente se curva diante do Brasil Na verdade
isso não revela, na cifração do inconsciente - ou da má-fé,  se qui
serem -, a submissão da Europa ao Brasil, mas nossa imatura ale
gria por termos sido reconhecidos e aceitos pela Grande Mãe.
No fundo, medo de assumir nossa posição. Medo de desligar-se
da cultura européia,  dela suplicando reconhecimento.

Entre-nós,  portanto, a pobreza  filosófica  de um país  não ap


nas jovem, mas sobretudo imaturo. Que ainda não conseguiu levar-
se a sério, preso a modelos de seriedade providenciados estran
mente. No "mito da imparcialidade", recusamos estar no Brasil.
E só deste estar poderíamos  extrair um critério  seletivo nosso, re
vindicando nosso ser.
Se nada fizermos, corremos o risco de continuar sendo ape
nas um país  jovem que não sabe a que veio, nem o que tem a di
zer. Por medo, omissão, covardia. E jamais inventaremos nossa
posição, nada vindo a ser. Sem termos providenciado nossa exclu
siva problematicidade.
E Filosofia, entre-nós,  não será  feita.
 

Capítulo 6
O mito da 
conc
o jeito
 

42 O mito da concórdia:  o

A gente dá um jeito.
(Do povo)

ufanismo brasileiro privilegia um objeto: o jeito. É voz

0
corrente que damos um jeito em tudo, do existencial
ao político,  do físico  ao metafísico.  E não paramos
ficamos muito satisfeitos em ser, pelo que nos parece,
o único  povo capaz de tão  saudável  atitude.
Creio que o elemento constitutivo do jeito seja a não-radicali-
zação Um distanciamento das posições a serem tomadas, o que
combina com nosso modo oblíquo de olhar as coisas e nosso pecu
liar ceticismo. Um homem que se exalta perde a capacidade de
"dar um jeito". Um  país  que entra num processo  revolucionári
não soube descobrir o "jeito" de evitar coisa tão  desagradável  É
saber ver: para o brasileiro - futebol posto de lado - , o  máximo
ridículo  é ser apanhado "crendo". Seja em  política,  Filosofia
ligião.  Nunca nos sentimos mais estúpidos  do que no momento
em que alguém  aponta a nossa radicalização, nosso empenho num
projeto. Envolver-se determina a perda daquilo que confundimos
com  espírito crítico:  a imparcialidade da Razão Tupiniquim. Nu
ma atitude dissolvente que sempre nos acompanha, ao modo de
manter um pé atrás, nos afastamos das posições a assumir. Daí, o jeito.
Nasce o  espírito  conciliador. Afinal, as coisas da existência,
seja pessoal ou social, não estão aí para serem levadas tão a   sér 
Conciliador e obediente, cordial, o brasileiro jamais conduz as ten
sões àquele nível  em que geram um limite sem retorno.
 

O mito da concórdia.'  o  jeito 45

O que fazer diante de uma condição, a existência, que conti


nuamente se apresenta como urgente,  exigindo que se assuma
uma posição? Existir é radicalizar. Radicalização que  será posterior
mente negada, num processo indefinido. Posição é estar e preten
der. Necessariamente uma escolha e uma radicalização. Não pos
so ver a vida como espetáculo,  como não a posso ver do "ponto
de vista da eternidade".
Resta saber: a gente dá um jeito?

Justificamos nosso abandono ao ecletismo como antídoto  ao


fanatismo, já que abominamos soluções radicais. Louvável intenção,
se supusermos que soluções possam ser não-radicais. Jeitosamen
te buscamos a conciliação, esquecendo e dissolvendo oposições.
Um exemplo: a burocracia. Esta lamentável coisa, exigida pe
la máquina  que hoje nos utiliza, exerce uma tirania quase comple
ta.  O princípio da burocracia, no entanto, não é apenas a mecani
zação - fator inerente a seu processo -, mas algo ainda anterior:
a desconfiança.  Ou: a falência do humano diante do  mecânico.  O
fator alienado na burocracia é minha veracidade, mesmo a mais
primitiva, quando digo: eu sou eu. Burocraticamente, só sou este
"eu"  que afirmo se o nego através  de uma identidade. O reconhe
cimento da burocracia recai sobre o eu que não  sou. Aquele 3 por 4.
 

44 O mito da concórdia:  o

Diante disso, o jeito. O extremo formalismo, que encontra


mos no social, recebe como resposta o jeito. O ascensorista dá
um jeito e não vê o cigarro que acendi O guarda  rodoviário dá
um jeito se meu exame de vista  está vencido. Faço matrículas co
dicionais, a própria institucionalização burocrática do jeito.
Nosso ceticismo guarda a noção essencial de que por  detrá
das formalidades se encontram valores mais  respeitáveis  do qu
um "eu" 3 por 4. O jeito é, portanto, uma maneira marota de des
respeitar a extrema formalidade em respeito a valores maiores.
Associado, porém,  ao muito nosso "deixa como  está para ve
como é que fica", o jeito nos tem conduzido a um vazio existen
cial dos mais estéreis.  À custa de sempre dissolvermos oposições
acabamos sem qualquer posição,  vítimas disto que já identificamos
o senso impensado. Esta indiferenciação existencial na qual nos
encontramos talvez explique o tipo de  vítimas dóceis que nos hab
tuamos a ser dos colonizadores, dos senhores de engenho, dos co
ronéis,  das potências estrangeiras, dos politiqueiros e dos regime
ditatoriais.

A indiferenciação do senso impensado é tanto intelectual quan


to política.  Afinal, coisas indissociáveis. Sérgio  Buarque de Hola
da mostrou, citando Holanda Cavalcânti - "Nada há mais pareci
do com um saquarema do que um luzia no poder" - , que nada
distinguia realmente os dois grandes partidos do tempo da Monar
quia, salvo rótulos.  "Na tão malsinada primazia das conveniências
particulares sobre os interesses de ordem coletiva revela-se nitida
mente o predomínio  do elemento emotivo sobre o racional" 9
Embora a observação seja precisa, não me parece suficien
te.  Embora a constatação esteja correta, o fundamento desta  críti
ca parece fraco. Analisar a partir do pressuposto de que "somos
um povo pouco especulativo" é coisa perigosa e, de resto, falsa.
Representa, em última análise, introjetar a dependência. Todos sa

9.  BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio.  Op. ciL, p. 137.


 

O mito da concórdia:  o jeito 45

bemos que não é o povo o encarregado da direção  política,  assim


como não é o povo que, por consenso, escreve obras de Filosofia.
São elites. As elites políticas.e  intelectuais. O que precisaria ser
ressaltado é o estado de alienação destas mesmas elites - do que,
seja dito, Sérgio  Buarque de Holanda não esquece. O desapeg
da realidade em volta, a falta de identidade com o povo e a preo
cupação incestuosa com uma distinta e idealizada Europa fizeram
com que as elites  políticas, através  de seus representantes intele
tuais e cuidando de seus interesses, ficassem inteiramente alheias
a uma realidade brasileira. Pois a elite brasileira sempre teve hor
ror ao que a circundava. Preferiram esquecer isso, que era feio e
chocante, e voltaram-se para as  questiúnculas metafísicas, refugian
do-se "nó mundo ideal de onde lhes acenavam os doutrinadores
do tempo. Criaram asas para não ver o  espetáculo detestável qu
o país  lhes oferecia".10
O resultado concreto foi a importação, pelas elites dominan
tes,  de modelos políticos, econômicos  e educacionais inteirament
estranhos às nossas condições e àquilo que somos e viemos a ser.
Não tão estranhos, porém,  aos interesses destas elites.
Envolvidas em lutar por interesses internos e/ou externos, as
elites mostram uma desvinculação tão mais  sensível  quanto maior
a teorização "ornamental" utilizada para justificar sua ação e po
der. Daí a enxurrada  verbalística  que sempre envolveu,  entre-nó
a discussão política  e de idéias.  O discurso brasileiro não aprese
tou nunca aquela  característica de buscar um desvelamento de
nossas urgências e importâncias,  antes pelo contrário.
Se um saquarema é idêntico a um luzia, a indiferenciação de
nuncia a inconsistência de nosso ecletismo, produto de senso im
pensado. Os partidos políticos  têm apresentado entre-nós  a opos
ção mais estranha: nenhuma. Somemos a isso a "jeitosidade", a
hábil  conciliação de uma teoria  grandiloqüente  com uma realida
de simplesmente esquecida. Nesta alienação, as origens da Razão
Ornamental, da teorização barroca e sem compromisso com o
real - exceto quando se trata de legitimar o vigente.

10.  Idem, p. 140.


 

46 O mito da concórdia:  o

Obra de uma elite desvinculada das urgências   históricas  d


pais,  os partidos políticos  em nada se diferenciam, exceto pelos in
teresses dos grupos que representam. "No  Império  de D. Pedro I
foi o ecletismo recebido com aplausos gerais,  graças  à inércia po
tica daquela sociedade escravocrata e semipatriarcal, onde a luta
pelo poder não passava de intrigas palacianas, onde os partidos
não representavam nada de substancial, sendo manejados displicen
temente por um monarca bocejante e onde, finalmente, por essa
época,  o Marquês do Paraná  formava o mais heterogêneo e amo
fo dos governos, a que a  história  batizou precisamente com o pre
dicado próprio da Filosofia eclética,  como o Gabinete da Concilia
ção."11

Inconsistente e indiferenciada, nossa posição  política  geraria


um novo fanatismo: o da  concórdia.  Não comportando em si o
choque de idéias, buscando antes dissolvê-lo, as divergências devem
ser excluídas.  Oliveira Viana acerta ao dizer que  entre-nós  "o a
versário político  é considerado pelo vencedor um verdadeiro ou
tlaw". Não estando prevista a oposição real - posto que o ecletis
mo suprime a noção de oposição -, os que se atrevem a radicali
zar passam a ser olhados com hostilidade. Se por um lado o brasi
leiro atura de tudo - chegando, no carnaval, a aturar o  próprio
avesso da realidade  séria-, por outro lado hostiliza, de modo
mário, aquilo que questiona seus comodismos de  instalação.  E nós,
pretensamente tolerantes e esclarecidos, os   ecléticos  de espírito
aberto, mostramos nossa verdadeira face: a intolerância. Uma into
lerância  séria. Aquela que constitui, por indiferenciação intelect
as igrejinhas de políticos,  artistas, filósofos  de academia, grupos ri
vais,  com suas trocas de favores, elogios, influências e  idéias  inevi
tavelmente vazias.  Isso casa perfeitamente com a intolerância polí 
tica. As igrejinhas de intelectuais são os PSDs  lítero-musicais.
Esta, a expressão  máxima  de nosso pretenso espírito eclét
co e conciliador: o fanatismo do mesmo. Os grupos são lugares
de privilégio  das elites na partilha do poder. Nesta prisão  primári

11. VITA, Luís Washington. Escorço de Filosofia no Brasil   Coimbra, Atlântida, 1964, p. 5


 

O mito da concórdia:  o jeito 47

que é o grupo fanatizado, a visão mágica  emerge. Divergir é cri


me.  Discordar é subversão. Perguntar já é um ato de desobediên
cia. Isso no país  do jeitinho, do homem cordial, do carnaval eter
no.  Com efeito, o real não apresenta a linearidade das distinções
lógicas.  Nele, o indiferenciado, o inconsciente, é o que mais atua
e sob a forma mais arcaica.
Urgente, pois, que se faça  a leitura além  das aparências do
mitos com os quais gostamos de nos revestir de modo narcisista.
Além  da cordialidade, do espírito  aberto e conciliador; são mito
e apresentam algo comum aos mitos: estruturam uma visão de
mundo e pretendem ser  inquestionáveis.  Gerados pela ausência
de uma posição crítica,  são produto da indiferenciação intelectual
Eis por que, ausente a  crítica,  seu contrário  emerge sob a form
de intolerância,  sectarismo, partidarismo estéril,  repressão, censu
ra - um campo fértil para a atuação da autoridade irracional e pa
ra os regimes que dela façam  uso.

Quanto à Filosofia, é grave que  entre-nós  tenha se recusado


a cumprir a missão que lhe seria  própria: ser o centro da consciên
cia crítica,  da negação de nossas falsificações existenciais. A inex-
pressividade da Filosofia no Brasil se deve ao fato de ocorrer, sem
revolta, ao nível  de repressão difusa no todo social. E esta desper
sonalização, ainda não pensada  entre-nós, que destrói a possibilida
de de um pensamento nosso. Se esse pensamento quiser existir,
deverá traçar  para si um caminho marginal, ousar, sair do   sé 
coisas que vão contra predisposições assumidas ao longo de tan
to tempo que,  hábito  arraigado, nos aprisionam. Assim, não um
país  jovem, mas apenas infantil - e isso não se refere ao povo,
mas àqueles que dizem falar em seu nome. E  país ameaçado  d
envelhecimento precoce, já que  vítima  de uma história  dependen
te,  devedor do passado.
Se quiser sair do bolor universitário  e acadêmico, a Filosofia
precisa realizar entre-nós  a conquista de cidadania  crítica, radicali
zando nossa posição.
Quanto a isso, não há como dar jeito.
 

Captiub 7

Originalidade e jeito
 

Originalidade e jeito 49

Sempre enfezei ser eu mesmo. Mau mas eu.


OSWALD DE ANDRADE
(Ponta de lança

e nos limitarmos à superfície,  o jeito é promotor de uma

S
atitude de  tolerância  e de abertura intelectual Como
expressão da Razão Conciliadora, um dos produtos mais
lamentáveis,  de potencial despótico  e conservador.
Há um retrato possível,  cruel mas verdadeiro, do
praticante de Filosofia no Brasil - a imensa maioria composta de
professores, tipos entre os quais predomina, a despeito das alegóri
cas pretensões reformistas (idealizadas, de resto), o  espírito  mais
retrógrado  e legitimador do vigente. Neste retrato vemos  algué
sempre disposto a encontrar analogias - as quais pretende brilhan
tes - entre as teorias mais opostas e irreconciliáveis,  fazendo sua
tradicional salada filosofante, onde, em proporções idênticas ou
não,  entra algo de tomismo e de Comte, de Comte e de Marx,
de Marx e de estruturalismo, de estruturalismo e Marcuse.
Ocorre, porém, uma coisa estranha: o mesmo homem que rea
liza a mais dissolvente conciliação, urra de  ódio  contra os oposito
res.  A maldosa crítica  fora de propósito,  dirigida contra pessoas
não contra idéias, passa a ser então a arma de que se vale este cu
rioso arrivista, o intelectual tupiniquim. Somos incapazes de convi
ver e dialogar com  alguém  que discorde de nosso modo de ver -
embora sejamos capazes de conviver com autores e obras mutua-
 

50 Originalidade e jeito

mente excludentes, adotando a todas com igual entusiasmo. No


que se percebe pouca razão.
Há razão, porém.  Mesmo o irracional tem uma Razão atra
vés da qual podemos dele nos dar conta. A atitude conciliadora é
ausente de critérios,  de intuições geradoras de pensamento. Pen
sar é unificar. O esforço  secular da Filosofia tem sido a tentativa,
continuamente renovada, de apreender o real num  único  ato d
saber. Comumente - e isto é ostensivo  entre-nós  - confundimo
o filósofo  com aquele sujeito que sabe muitas coisas e que discur
sa sobre tudo. Em suma: o  filósofo  é tido como o homem de mui
tas idéias. Equívoco  total. O filósofo  é o homem de uma idéia 
Idéia  que, por sua virtualidade criadora, é capaz de desenvolver
no espírito  uma visão unificada do mundo.

A razão desse nosso despotismo intelectual tavez seja esta:


se um objeto qualquer é submetido à Razão Conciliadora apresen
tando contradições, a única  coisa a fazer é suprimir a oposição.
Explica-se: se a Razão Conciliadora não dispõe de  critérios explíci
j tos para pôr em questão situações que lhe escapam, se não sabe
dar razões de suas alternativas, só lhe resta se dirigir ao portador
da idéia  e não à idéia  ela mesma. Impossível enfrentá-la.
Daí a ocorrência de variados modismos  entre-nós.  Indiferen-
I ciada e personalista, nossa "Razão" saltita de galho em galho, re-
 

Originalidade e jeito 51

produzindo posições que, como na recente moda estruturalista,


nada têm a ver com qualquer urgência brasileira. Há muitos anos
calada, a "inteligência" brasileira voltou-se para um formalismo
delirante, novidadeiro e  pernóstico,  e "esqueceu" o que a fazia ca
lar. Esquecimento que ocorre diretamente ligado ao fato de que,
não dispondo de critérios  assumidos criticamente, a problemátic
filosófica  no Brasil não se gera por uma problematização interna
e vinculada às urgências do país,  tese já defendida por Sylvio Ro
mero em 1878. "Na  história  do desenvolvimento espiritual no Bra
sil há uma lacuna a considerar: a falta de seriação nas  idéias,  a au
sência de uma genética.  Por outros termos: entre nós um autor
não procede de outro; um sistema não é uma conseqüência de al
gum que o precedeu. (...) A leitura de um escritor estrangeiro, a
predileção por um livro de fora vem decidir a natureza das opi
niões de um autor entre nós. As  idéias  dos filósofos, que vou estu
dando, não descendem umas das outras pela força lógica dos acon
tecimentos. (...) É que a fonte onde nutriam suas  idéias  é extrana-
cionaL"12
É bem verdade que, desastradamente,  após fazer esta consta
tação de grande valia, Sylvio Romero acrescenta: "Não é um  prejuí
zo; antes equivale a uma vantagem". 13  E passa a fantasiar em tor
no de um "cosmopolitismo" que o impediu de determinar, já em
1878,  a origem real da constatação que fizera. Mas seria pedir de
mais,  talvez.
Estas observações - conciliação ou supressão do pensamen
to alheio - nos conduzem à seguinte  característica da Razão Orna
mental: a vigência entre-nós  de coisas que, em dados momentos,
são de bom tom ler, comentar ou pensar. Tendo se furtado a res
ponder a urgências históricas  nossas, a grande crise do intelectual
tupiniquim é viver mendigando consideração e reconhecimento.
Mas busca este reconhecimento numa  possível  identificação com
pensadores de nações "mais cultas",  equívoco através do qual bu

12.  ROMERO, Sylvio. A Filosofia no Brasil: ensaio  crítico.  In: Obra  Filosófica.  R 
Janeiro, José  Otympio, 1969, p. 32
13.  Idem, ibidem.
 

52 Originalidade e jeito

ca aceitação. Quer ser aceito sem perceber que ser aceito é mor
rer para a Razão.  Querendo ser  sério- para então ser levad
sério -,  policia-se: o que pensar, o que ler, o que escrever. Seu
quecimento consiste nisto: esqueceu-se de que pretende ser reco
nhecido pelo que não-é. Seu pensamento, portanto,  será  puro or
namento.

Duas são as possibilidades de defesa desta Razão alienada:


ou conciliar   ou suprimir.  Expressões de seu abandono do real, a
conciliação e a supressão não se realizam com relação às coisas
circundantes, mas com as teorias que versam sobre o real. A Ra
zão Conciliadora lida com razões anteriormente dadas do real -
não com o real enquanto taL O pólo  que centraliza nossa Razão
são teorias enquanto verbalizações, posto que o real sobre o qual
versam é o estrangeiro.
Esta, a razão pela qual, em  matéria  de Filosofia, viríamos 
ser fazedores de misturas ideológicas.  Por exemplo: "A tarefa de
conciliar Marx e Comte seria daquelas a que  Leônidas  de Rezen
de se entregaria de modo permanente e persistente". 14  Despreza
da a desagradável  realidade que nos circunda, restou ao intelec
tual brasileiro fazer Filosofia como quem, monta um quebra-cabe
ça: buscando o melhor ajuste (conciliação)   possível  e rejeitando
(supressão) as peças  mais rebeldes. Dando um jeito. Consideran
do tão-somente os "verbos" e suas  possíveis  ajeitações. Tomadas
em lugar da realidade, as  idéias filosóficas  no Brasil passaram a
viver, dentro da pirotecnia carnavalesca daquilo que chamo de
Razão Ornamental, como seres em si. Ou, como teria dito  José
Maria Alkmim -  aliás,  concretização quase perfeita da Razão Or
namental - "importam as versões, não os fatos".
Havendo conclusão, esta é simples. Se não assumo com clare
za posições vinculadas à situação em que me encontro, só me res
ta reagir primitivamente diante do que escapa à minha possibilida-

14.  PAIM, Antônio.  Op. cit, p. 22R


 

Originalidade e jeito 53

de de conciliação: suprimindo. Só levando isso em conta podere


mos utilizar a oposição entre o "emocional" e o "racional" para
compreendermos o caráter  brasileiro. A supressão é carregada de
emoção na medida em que representa o retorno de um conflito
que foi esquecido pela Razão Ornamental.
Reconheço  que seja irritante aceitar o jeito - objeto de
nosso deslumbrado ufanismo - como retrato de uma alienação in
telectual e política. Mas, para além de qualquer envolvimento emo
cional, devemos reconhecer que o jeito, se pode dar origem a um
tipo de humanismo tipicamente brasileiro - ainda não precisado,
de resto -, é também responsável  pela rudimentaridade de nossa
posições. O que se revela em nossa busca de  semelhanças,  na ten
tativa de ver em tudo o "mesmo", quando é da essência do  espíri
to apreender em tudo as oposições no interior de um processo.
Ou seja: o diverso. Nesta paixão pela "mesmidade", a falta de con
sistência do pensar entre-nós.  Eis por que qualquer Razão, para
vir a ser expressão brasileira, precisará  dar-se conta desta ingenui
dade: ver em tudo o "mesmo". Deixada no esquecimento, esta ati
tude nos impede de chegar ao irredutível  das coisas. Aquilo que
elas têm delas próprias.
Por aí se percebe que não será  com o acúmulo  de dados, te
ses,  argumentos que se chegará  à Filosofia. Urge buscarmos suas
raízes  noutra parte. De fato, chegamos à Filosofia  através  de alg
mais simples e primitivo, uma originalidade anterior a qualquer  eru
dição: a tragédia.  É  através  da tragédia  que chegamos às urgê
cias de nossa posição.
Se as origens da Filosofia se encontram na tragédia,  é fácil
perceber por que tantas pessoas fogem dela. Fuga que procede
pela supressão. Existindo duas formas de supressão, uma delas pe
la simples afirmação. Me explico. Ou abandono a Filosofia como
algo metafísico  e me dispenso de fazê-la, ou a afirmo sem mais,
como se seu existir fosse óbvio,  o que também  me dispensa de fa
zê-la, pois já a encontro feita. Estas duas posições têm isto em co
mum: ambas exigem da Filosofia uma   importância em si.
Ora, filosofar é dar-se conta da Filosofia. Dando razões de
sua existência e assumindo os riscos seguintes. Ela não tem qual-
 

54 Originalidade e jeito

quer  importânciaque possa se impor a mim antes do m


em que eu me importe.  Ao darmos a existência da Filosofia co
mo óbvia,  ela se vê transformada em sistema acabado, ao mod
de um arquivo de primeiros socorros existenciais. Se dou sua im
portância  por suposta, a tarefa do pensamento se empobrece, re-
duzindo-se à busca de um bom ajuste entre  fórmulas  e modelos,
estruturas e conceitos, mais ou menos como me comporto diante
da necessidade de cumprir à risca uma receita de bolo. Irei julgar
que ao menos virtualmente - como o bolo da receita - ela já se
encontra lá, acabada. Mas não se esgota aí a falência desta atitu
de.  Se a pressuponho feita, jamais a faço minha. E seria justamen
te nisso que consistiria dar-lhe existência.
A supressão da questão a respeito da Filosofia ou a supres
são da própria  Filosofia, como, por exemplo, encontramos no to-
mismo e no neopositivismo, explicariam por que, conciliando, ja
mais tenhamos chegado à originalidade.
Conciliação é sempre do   prévio, jamais do original - não
vendo sentido na aplicação da palavra conciliação no  último  caso.
Conciliar exige admitir algo como pressuposto; por exemplo: uma
importância em si, que existirá ou não. Daí   a incompatibili
tal entre uma originação da Filosofia brasileira e a atitude de con
ciliação. Tida como prévia, jamais será  original.
Uma Filosofia condenada a não ser original  está  condenada
a não ir às origens, pois é isso que a palavra originalidade signifi
ca. Não o novo, mas aquilo que lida com as origens. Nada, portan
to,  poderá  ser dado como  prévio.  Tudo deve estar em questão
Esta, a tragédia.
E inteiramente estranha à Filosofia uma atitude de concilia
ção que tome idéias como coisas dadas em si mesmas. Sem a  críti
ca desta questão, qualquer esforço  de pensamento estará,  entre
nós, a serviço  da Razão Ornamental. Mais simplesmente: enquan
to a Filosofia no Brasil não encontrar suas condições de originalida
de,  não poderá, está visto, ter origem.
 

Caputilo8
AFilosofia 
entr 
 

56  A FUosoãa entre-nos

 Babei  'Filosofia latinoamericana' en el momento y en la


medida en que el pensar  laánoamerícano  logre articular su
propio discurso de lo universal situado, encontrar d lenguaje
inhérente a su propia situation  histórica.

MARIO CASALLA
(Razón  y  liberati

reio que possamos admitir pacificamente a existência

C
de Filosofia no Brasil, clarificado o sentido deste termo.
Há Filosofia no Brasil porque ela aqui se encontra entre
nós, manifestando sua presença.  Talvez um corpo estra
nho,  mas presente. Não só contamos com documentos
a respeito, documentos com data marcada, como encontramos re
vistas e livros que versam sobre seus temas. Aqui realizam-se con
gressos, encontros, debates, e nos currículos universitários a Filoso
fia consta obviamente - cada vez menos, mas consta. Tudo isso in
dica que a Filosofia  está entre-nós.  Como um parente distante
uma tia talvez, que chega e vai ficando -mas, seja como for, entre-nós.
Esta presença  e seu caráter  se evidenciam se procurarmo
extrair o negativo das seguintes palavras de Luís  Washington Vita:
"De fato, cumprindo seu destino e sua vocação, o pensamento bra
sileiro, mais do que criativo,  é assimilativo das idéias  alheias, e,
ao invés  de abrir rumos novos, limita-se a assimilar e a incorporar
o que vem de fora. Daí a história  da Filosofia no Brasil ser, em
geral, uma história da penetração do pensamento alheio nos reces
sos de nossa vida especulativa, ser, em suma, a narrativa do grau
 

A Filosofia entre-nós 57

de compreensão, da nossa capacidade de assimilação nas diferen


tes épocas  e do nosso quociente de sensibilidade espiritual". 15
Em termos de retrato, perfeito. Mas creio que  Luís Washing
ton Vita não conseguiu extrair do negativo que tinha nas mãos a
revelação verdadeiramente significativa. Afirma que "cumprindo
seu destino e sua vocação" - o que equivale a dizer que existe ins
crito em algum céu transcendental algo que seja o "destino" e a
"vocação" do pensamento brasileiro. Ao  contrário, vejo aí a confir
mação de que, manifestação de um  país  dependente, nossos inte
lectuais assumiram ao limite o papel que lhes reservou a condição
de colonizados: serem assimflativos. Introjetou-se aqui a função
do dependente: compreender as  idéias alheias e, curiosamente, re
duzir a história  da Filosofia no Brasil à narrativa de nossa "capaci
dade de assimilação" e de nosso "quociente de sensibilidade espiri
tual", quando, numa adequada compreensão  histórica,  caberia, is
to sim, extrair desta constatação o significado mais profundo: os
modos de falsificação dos quais temos sido  vítimas e co-autores. "O
simples fato da questão (como ser original) - nota Antonio Candi
do - nunca ter sido proposta revela que, nas camadas profundas
da criação (as que envolvem a escolha dos instrumentos expressi
vos) sempre reconhecemos como natural a nossa  inevitável depen
dência."16
Com a naturalidade com que esquecemos de ser originais,
deixamos de observar que um pensamento alheio se  enraíza  e tem
em mira uma situação  histórica diversa daquela na qual nos encon
tramos. O que se envidencia pela preocupação de  Luís  W. Vita
com nosso "grau de compreensão" do pensamento alheio. Esque
cemos igualmente que idéias vitais para um europeu ou norte-ame
ricano poderão ser aqui meros ornamentos intelectuais, desfibra
dos e mambembes.
Seja como for, há Filosofia  entre-nós.  Lembro, no entanto,
que isso não esgota a problemática  a respeito de uma Filosofia
brasileira, propondo, no mais das vezes, seu avesso: os sinais de

15.  VITA, Luís Washington. Op. à t , p. 9.

16.  CANDIDO, Antonio. Op. cit, p. 8.


 

58  A Filosofia entren

seu esquecimento. Carentes de melhor distinção entre estas duas


questões -  Filosofìa  entre-nós e Filosofìa nossa - , encont
em nossos historiadores de idéias  uma marca constante: a quase
totalidade do que se escreveu sobre o tema baseia-se num  equívo
co primário. Este: confundir o valor ou existência de livros de Filo
sofia escritos por brasileiros com o valor ou existência de uma Filo
sofia brasileira. Eis o que permitiu a Lufe W. Vita a estarrecedo-
ra afirmação: "Há Filosofia num pafe quando existem nele  filóso
fos".17  O autor obscurece e embaralha a questão, confundindo os
dois problemas. Assim, chega a concluir que "por isso podemos
afirmar que há Filosofìa brasileira" 16 
  sem o menor sobressalto.
Este, o equívoco básico  sobre o qual elaborou toda  espéc
de ufanismo embandeirado ou pessimismo diluidor - conforme se
julgue estarem as obras entre-nós  produzidas à altura ou não das
estrangeiras. Pretendeu-se que a constatação de uma Filosofia en
tre-nós fosse critério  suficiente para a inferência de que existe um
Filosofia brasileira. Que existam autores de obras  filosóficas entre
nós não pode ser objeto de dúvida.  Basta consultar alguns  catálo
gos. Que tais autores sejam, em alguns casos, do melhor  nível, tam
bém não pode ser contestado. Ocorre que isso não diz respeito à
essência da questão aqui levantada. Na verdade nunca se pergun
tou,  a sério, quais as condições de uma Filosofia brasileira, limitan
do-se a sondar, de modo vicioso, o valor de autores que aqui escre
vem ou escreveram.

Elaborando em cima de equívocos  desta ordem, ocorreu nas


páginas  da Revista Brasileira de Filosofìa19  um curioso debate en
tre Vilém  Flusser e Nelson Nogueira Saldanha que tem o valor

17.  VITA, Lufe Washington. Op. cit, p. 14.

18.  Idem, ibidem.


19. FLUSSER, Vilém.  Há filosofia no Brasil? Demonstração em três pensadores expres
sivos. Revista Brasileira de Filosofia,  São Paulo, í7(65):5-9, jan./fev./mar., 1967 e Há Filoso
fia no Brasil? Diálogo  de Nelson Nogueira Saldanha e Vilém  Flusser.  Revista Brasileira de
FÉosofia,  São Paulo, 27(67):3004, juL/ago./set, 1967.
 

59
 A Filosofia  entre-nos

de sintoma. É significativo do plano em que se costuma colocar a


questão de um pensamento brasileiro.  Vilém  Flusser publicou u
artigo intitulado "Há Filosofia no Brasil? - Demonstração em três
pensadores expressivos". Começa emitindo conceitos que, no  mín
mo,  exigiriam longas justificativas - "é absurdo falar na Filosofia
de um país",  por exemplo - e chega ao disparate total: "é isto qu
distingue a Filosofia da maioria das outras disciplinas: essencial
mente, ela não possui geografia nem história".  Absurdo, é claro
Mas deixemos passar. Me importam coisas mais  próximas.
O sr. Flusser levanta em seguida alguns  traços  que poderia
caracterizar o esforço filosófico entre-nós.  Diz ser a Filosofia um
rebelião "independente do tempo e do  espaço".  O que complic
as coisas: se independente do tempo e do  espaço,  rebelar-se con
tra o quê? Bom. Há Filosofia  entre-nós, voltando ao autor, porque
sendo seres humanos, filosofamos. E haveria  entre-nós  a presen
ça de um duvidar    e um distanciar-se "indisciplinados", o que seria
"uma herança  de Portugal e é, talvez, um caráter latino em geral
Isso teria conduzido nossos trabalhos num sentido "desordenada
mente eclético".
Mas,  ao invés  de tentar a revelação do negativo que tinh
em  mãos, já de si impreciso, preferiu apresentar o que seriam "três
pensadores expressivos". E nos sumaria a obra de Vicente Ferrei
ra da Silva, Leônidas  Hegenberg e Miguel Reale. Sequer preten
do me ocupar em saber se estes são ou deixam de ser pensadores
brasileiros. Nem me importa o valor do que escreveram. Por um
motivo simples: colocada nestes termos, a questão   está  viciada.
Nada do que possa ser caracterizado como brasileiro foi precisa
do pelo autor, o que não permite a conclusão de que estejamos
diante de representantes, respectivamente, da  estética,  da teori
do conhecimento e da  ética  brasileira. De resto, juntar um  poss
vel existencialista com um neopositivista e um culturalista, como
representantes de uma mesma coisa, me parece bastante proble
mático.  Se na obra de Vicente Ferreira da Silva podemos encon
trar uns lampejos de preocupação brasileira, um  mínimo  de esfor
ço de memória  nos mostra que pelo menos um destes autores,
sr. Leônidas Hegenberg, houvesse escrito em inglês,  ninguém not
 

60
 A Filosoãa  entre-nos

ria diferença.  Ficaria até mais adequado.


Na resposta de Flusser, o sr. Nelson Nogueira Saldanha mos
tra-se desastrosamente provinciano. Julga uma ofensa não constar
do rol dos "expressivos" nenhum representante de outros Estados,
onde, segundo diz, "há  também  grandes pensadores; o  país  te
outros metafísicos. A estética brasileira tem outros lados, sr. profes
sor!" É o equívoco  no auge do delírio.
O que salva - no que é possível  - é Vilém  Flusser pergunta
em sua réplica:  "Bastam  filósofos  exemplares para que se poss
responder afirmativamente à pergunta? Ou não seria  necessário,
para tanto, um determinado clima  filosófico  que nos falta?
Eis uma observação que importava levar adiante. No entan
to,  no atropelo geral, o sr. Flusser acaba jogando tudo por terra -
no fundo numa atitude de conciliação - ao afirmar: "Não nos preo
cupemos demais com a brasilidade desse pensamento. Preocupe-
mo-nos com o pensamento". Quer dizer: continuemos assimilado-
res e ornamentais, acima do tempo e do  espaço,  no sétimo  cé
metafísico.
E o desastre se consuma no desfecho, quando percebemos
que, indiferenciada, a questão não poderia conduzir senão a um
brilhareco palavroso: "Portanto: há Filosofia no Brasil? Há, e have
rá, se quisermos e se pudermos".
Mas precisamente sobre isso esperávamos  que houvesse es
crito,  sendo estas as questões que urgiam ser esclarecidas: onde
há Filosofia? por que haverá  Filosofia entre-nós? será  que quer
mos,  sendo a Filosofia importante para  nós?  sob quais condiçõe
poderemos fazer Filosofia?
Extraviadas as questões que. eram urgentes, estes senhores
conseguiram apenas nos dar uma amostra de que não há Filosofia
brasileira, em cinco pensadores expressivos.

Desta questão fogem nossos filósofos oficiais: saber se a Filo


sofia é para nós importante. Fogem igualmente das questões seguin
tes:  quais os objetos, a metodologia, a linguagem de uma Filosofia
nossa?;  quais as condições desta Filosofia e as condições de nosso
querer? Englobadas, formam o elenco a ser respondido se quiser-
 

 A Filosofia entre-nos 61

mos realizar não apenas uma Filosofia   entre-nós.  Só saberemo


questionar uma Filosofia brasileira se formos capazes de saber co
mo,  por que, de que modo tal coisa nos importa. O que só se tor
nará possível a partir de uma posição de dentro da qual, ou a par
tir da qual, isto se ponha para nós. E vem o drama: fugimos de
uma personalidade que seja nossa. Mal sabemos dela.
Precisamos remontar a algo mais primitivo e elementar que
os sinais de uma presença  da Filosofia  entre-nós.  Só a partir d
uma reflexão crítica  a respeito de nosso modo de existir, de nossa
linguagem, de nossas falsificações existenciais e   históricas  é que
poderemos chegar aos limites de uma Filosofia nossa. Para tanto,
colocar em questão nosso particular modo de estar e ser, os valo
res que constituem nosso horizonte intelectual. E  traçar as peripé
cias do trajeto histórico  que nos levou a ser o que somos. Em su
ma: descobrir nossa alienação  específica.
Diante dessas exigências, o ufanismo isolacionista ou a  mórbi
da dependência com relação ao passado se mostram mais  cômo
dos.  Nos permitem dissolver oposições e realizar a  concórdia.  Ne
ga-se, por exemplo, qualquer significado e  importância  ao passa
do europeu e delira-se num verde-amarelismo de bananeiras e ja
cas.  Como um feto, nos apegamos à Mãe-Europa - o que nos li
vra de nossas angústias,  servindo-nos um prato feito, os talheres
postos, as regras do jogo previamente determinadas. A vantagem
dessas atitudes que temos preferido ao longo da  história  são ób
vias:  dispensam-nos de pensar. Pensar é incômodo.  Chato. Desco
brir nossas alienações dói e mutila. E a tragédia. Súbito,  somos fi
lhos abandonados, obrigados a vencer por conta  própria.  Uma sig
nificação que venha do exterior para conferir dignidade a nossas
tarefas é como uma receita - impede-nos todos os riscos e nos
concede a paz reconfortante de uma mãe onipresente. Ou, noutro
extremo, somos bugres. Pelados e verde-amarelos a correr pelo
mato.  "Tupi or not tupi", já notou Oswald de Andrade.
O que poderiam parecer duas opções são dois modos de alie
nação. Tanto é infantil o filho que necessita da asa protetora da
mãe quanto aquele que a hostiliza - possuem em comum a patolo
gia de um mesmo traço:  a dependência.
 

62  A Filosofia  entre-nos

Além  do ufanismo e da submissão, há um outro  equívoc


que cabe analisar. Me refiro à afirmação de que não é  próprio
ao espírito  brasileiro o filosofar. Esta questão pode ser desdobra
da em duas outras. A primeira nega ao brasileiro  espírito  capaz
de Filosofia. A segunda afirma não ser a  língua  portuguesa capaz
de adequada expressão filosófica. Careceríamos,  no primeiro caso
de melhor aptidão intelectual, talvez comum aos latinos, e, no se
gundo, de uma língua adequada, herança especificamente portugues
A primeira destas atitudes creio encontrar, se bem que vela
da, em Álvaro Lins.20 Julga esse autor que "nunca se  explicará co
suficiente exatidão o que determina a ausência de um verdadeiro
filósofo  no Brasil".21  Isso já é discutível.  No mínimo,  um tema. N
entanto, ao invés  de se propor esse tema, Álvaro  Lins prefere su
por a impossibilidade de uma explicação. Me parece que assim
procedendo perde a chance de ressaltar o  único  que interessava
investigar: o sentido de nossa fuga à Filosofia.
Faz, em seguida, uma afirmação ainda mais grave: "Talvez
que se possa encontrar assim, na herança  portuguesa, a causa da
ausência de um filósofo  no Brasil. As faculdades especulativas e
críticas,  a capacidade de tratar os problemas abstratos, o dom do
estudo paciente, desinteressado e introspectivo - não parecem
muito habituais nos homens luso-brasileiros". 22
Creio ser coisa errônea  supor o conhecimento filosófico co
mo "desinteressado". Todo conhecer é interessado, versando sobre
o que importa. Caberia apenas distinguir, como já foi feito aqui,
entre um interesse  sérioe um interesse a  sério. Por outro la
introspectivo não me parece ser condição para a reflexão -  Aristó
teles e Marx, por exemplo, são extrovertidos quase em estado pu
ro.  Quanto ao que seja um estudo paciente, o mesmo: o que é pa
ciência, ordem, para mim, pode ser um aborrecimento para um
alemão - e vice-versa.

20.  LINS, Álvaro.  Os Mortos de Sobrecasaca.  Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,


1963,  [Cap. 25].
21 .  Idem, ibidem, p. 355.

22.  Idem, ibidem.


 

 A Filosofia  entre-nos 63

De fato, a "herança filosófica"  que nos deixou Portugal nã


foi das mais ricas. Acontece que  "herança filosófica"  é coisa qu
não existe. Não se herda uma Filosofia, cumpre apropriar-se dela,
fazendo-a nossa. O pensamento alemão , por exemplo, não "her
dou" passado algum; apropriou-se de um passado  filosófico. Assim,
ou muito me engano, ou  Álvaro  Lins é vítima  aqui de uma aná
se abstrata, meramente conceituai e idealista, desconhecendo a
verdadeira dinâmica  da história.  É problemático  "reduzir" a his
ria. Nem sempre se encontra, mesmo porque nem sempre existe,
aquele elemento externo, alheio, que possa explicar as criações
de um povo. Ainda mais se notarmos que a criação não é jamais
do "prévio", mas do original - aquilo que cada um tem de si. Sabe
mos das dificuldades de se encontrar, anteriormente ao advento
da Filosofia na  Grécia,  algo que pudesse explicar por que aí se
deu tal acontecimento. Nada parece poder explicar retroativamen
te esta "invenção" do espírito  grego. Creio que o simples reconhe
cimento de tal fato nos livraria de uma multidão de  equívocos  e
falsos problemas que vimos acumulando. Trata-se de reconhecer,
para além  de qualquer recurso ao que é prévio,  que na Grécia 
Filosofia é um fenômeno  original, pois aí encontra suas origens.
Pretender sempre encontrar no passado a razão de atos do
presente me parece mau modelo: esquecemos o que há de ato cria
dor em cada nova situação  histórica.  Não se trata de propor um
esquecimento do passado, mas de evitar um abandono no passa
do. A história é o fenômeno da originalidade e a ciência correspon
dente deverá  lhe ser fiel. Isso quer dizer que não podemos, meca
nicamente, justificar a ausência de Filosofia no Brasil pelo fato de
não termos contado com uma boa influência de Portugal. Antes
do mais, porque esta influência deve ser entendida em termos de
relação de dependência. Dependência que foi menos de Portugal
do que de outros países  europeus, os centros efetivos do projeto
expansionista dos impérios ibéricos  - e, desses centros, influência
exemplos, modelos, foi o que não faltou. Fosse a  história  coisa me
cânica,  fora de relações determinadas, tais influências teriam con
duzido a uma Filosofia brasileira - mas isso não se deu. Por quê?
Porque nos foi negada, nas relações de dependência, a originalida-
 

64  A Filosofia entre-nos

de:  fazer desse passado uma diferença  nossa. Não chegamos a nos


apropriar desse passado - e as condições, externas e internas, que
nos impediram a realização dessa apropriação, eis o tema esqueci
do da Filosofia brasileira.
A mais pobre das argumentações é esquecer-se num fatalismo
qualquer: o brasileiro não possuiria pendor para a Filosofia, por exem
plo.23 Como se isso fosse uma pesada e gorducha "coisa em si". Co
mo se isso não fosse algo a ser inventado, a ser feito historicamente.
Investigar o que nos levou às comodidades de tal esquecimento, eis
o que talvez possa responder à questão que  Álvaro Lins crê irrespon
dível: o que determina a ausência de um verdadeiro  filósofo no Brasil
É inevitável que o autor - que aqui tomo aleatoriamente, sem
pretender que sua escolha signifique mais do que outra - venha
a se contradizer continuamente. Diz mais adiante que Filosofia e
poesia são afins, e que no caso da poesia contamos com grandes
representantes e dom de originalidade. À vista disso, creio proble
mática'a  afirmação de que carecemos de  espírito  especulativo, d
investigação do sentido do mundo, se poesia e Filosofia têm  raízes
comuns. Aconteceu não nos apropriarmos de uma "forma" de es
peculação, a filosófica.  Por quê? Que fique sugerido: talvez por
que a poesia sempre guardou seu potencial de rebeldia, seu  cará
ter marginal, enquanto a Filosofia concedeu em servir de apoio
ideológico  ao estabelecido. O que fez com que  entre-nós  a Razã
Dependente e a Ornamental se tenham transformado em Razão
Afirmativa do vigente.   Ideólogos  na  colônia, nossos pensadores
não puderam ir  além "das chinelas", como diria Machado de
Assis.

23.  Encontramos esta forma equívoca  de colocar a questão em autores de orientações


as mais diversas: João Ribeiro, Tobias Barreto, Luís  W. Vita. O dito de Tobias Barreto tem
sido repetido à exaustão. "O Brasil não tem cabeça filosófica". A Lufe W. Vita já fizemos
referência no início  deste capítulo.  João Ribeiro (A Filosofia no Brasil  Revista Brasileira
de Filosofia, ed. Instituto Brasileiro de Filosofia, São Paulo 4(3):413-6), numa crítica  arrasa
dora a Farias Brito e Tobias Barreto, chega aos limites da convulsão emocional ao escre
ver. "Não está  no temperamento nem nas virtudes de nossa raça  o culto da filosofia (...)
Seja curteza de vista ou repugnância  natural, não há  raça  mais retrataria à metafísica que
a nossa." (p. 413) A análise  de todos fracassa na medida em que, não dispondo de instru
mentos para a compreensão do que viam, coisificavam para além  do espaço  e do tempo o
que deveria ser analisado no ceme de um processo histórico.
 

 A Filosofia entre-nos 65

E diria mais: "Decida o leitor entre o militar e o  cónego;  e


volto ao emplasto".

A questão da língua.  O português que praticamos seria u


entrave a nos afastar dos temas "elevados" que são objeto da refle
xão.  Haveria uma debilidade inerente ao português -   língua  ade
quada no máximo  às piadas de botequim - que explicaria por qu
não chegamos ainda (e talvez não cheguemos jamais) à Filosofia.
Tal argumento, cristalização perfeita do esquecimento em que nos
encontramos, é mais uma das manifestações de nosso tipo particu
lar de alienação.
Me explico. O grande drama de nossos professores de Filoso
fia - e nisso Álvaro Lins acerta: contamos com professores de Filo
sofia e não com filósofos  - é conseguir traduzir para o português
expressões alemãs, francesas ou latinas. Daí a avalanche de cita
ções e de notas ao pé da  página que dão a certos livros aquele cli
ma de hermeticidade imbecil O esquecido por nossos  filósofos pro
fissionais é que as expressões alemãs ou latinas são justamente is
to:  originais. Nasceram lá, lá foram criadas, e trazem a marca de
um momento, suas importâncias  e urgências. De fato jamais serã
traduzidas - cumpriria transplantar situações de lugar e tempo,
coisa impossível.
• Diante disso, nossa atitude é lamentar a insuficiência da  lín
gua. Como o português não traduz uma expressão de Hegel, Kant
ou Aristóteles  - mais recentemente, ao  delírio,  Heidegger - o por
tuguês seria  língua  inferior quanto às possibilidades de filosofar.
Ocorre aí um imenso equívoco:  o de que o único filosofar possí 
consista em ser "assimilativo" e ter "sensibilidade espiritual" para
com os problemas dos outros. Esquecemos que a situação dos ou
tros é  isto: deles. Se nossa língua  não é capaz de exprimir o alheio,
isso em nada a desmerece, uma vez que uma  língua  tem por fun
ção exprimir o  próprio,  não o alheio. Se as inteligências que lidam
com a Filosofia entre-nós  pudessem se alçar  a este modesto gra
de flexibilidade, encontrariam uma multidão de coisas que, ditas
 

66  A Filosoãa entre-nos

em português, não poderão ser traduzidas para  inúmeras língua


O que, de resto, não as desmerece.
Trata-se de questão mal colocada.   Mário  de Andrade já a
respondeu de modo definitivo: ao invés  de imaginarmos que nã
temos pensamento por falta de linguagem, por que não supomos
que não temos linguagem por falta de pensamento?
É alienada a busca obsessiva de termos que pudessem tradu
zir coisas estrangeiras. Seria como transplantar o termo sem trans
plantar a intuição - e na intuição está a realidade, sua importânci
e urgência. Precisamos entender que os termos alemães, por exem
plo,  designam realidades que passaram a existir para os alemães
em determinado momento, sendo para eles importantes numa po
sição.  Cabe a nós descobrir o que nos importa. Descoberto isso,
teremos a palavra adequada. Adequada ao que é nosso. Dita à
nossa maneira, com nossa preocupação  específica.  E percebere
mos,  então, que serão coisas talvez  intraduzíveis  para o alemão,
grego,  o francês. O que, novamente, não debilita tais  línguas  e a
importâncias   e urgências de seus falantes. Apenas mostra que o
problemas dos usuários  dessas línguas  são outros. São outras
coisas que importam.
O problema de uma linguagem   filosófica  nossa não se dá
em abstrato nem se reduz a uma simples questão de  técnica de tra
dução. Na palavra isolamos, concretizando, um conceito. A totali
dade dos conceitos possíveis,  bem como a totalidade das coisas
não são indiferentemente iguais para mim. Há conceitos que me
importam mais que outros e há os que são absolutamente urgen
tes,  ou seja: aqueles que urge isolar e concretizar numa palavra
para que me permita o  domínio  do reaL O ato de pensar é est
movimento em direção à ordenação dos conceitos e das coisas, or
denação exigida pela posição em que estou.
Me explico. Ao existir, preciso providenciar esta existência o
que envolve: dar conta de acontecimentos  inúmeros,  mais ou me
nos significativos. O que vier a ser para mim de alta significação
é algo importante. O que me exigir, devido à sua alta  importân
cia, uma prontidão imediata é urgente. Para tais situações se vol
tam nossos atos de intelecção. Busco apreender o importante e,
 

 A Filosofia entre-nós 67

mais imediatamente, o urgente.


Eis como a questão da linguagem  filosófica entre-nós  envol
ve uma revisão crítica de nossas importâncias e urgências. As pal
vras não estão aí desde sempre a "significar" - e nenhuma  língua
possui desde sempre uma estrutura  "filosófica", coisa que não exis
te.  É historicamente que as palavras adquirem significados e uma
língua  reflete em sua organização a atitude existencial de seus fa
lantes. A cada língua pertencerá  um determinado tipo de orden
ção que lhe vem da visão de mundo para a qual foi historicamen
te providenciada. Assim, na  língua, ocorre a materialização das im
portâncias  e urgências de seus portadores.
Podemos agora precisar como não deveria ser colocada a
questão da linguagem filosófica.  Não se trata de opor, confrontan
do,  o que existe agora em português e o que existe em qualquer
outra língua.  Por motivos simples: 1? - o  critério  seria externo
2? - em nada acrescentaria o saber próprio  de nossa língua.  Sen
do externo o critério,  o metro estará errado. Se meço  o portugu
pelo inglês, estou fazendo algo como operar com centímetros  re
correndo a polegadas. Já estarei dando como suposto o valor da
quilo que é usado como metro. Pode ser importante para uma tri
bo qualquer distinguir  "árvore  grossa" de "árvore fina", sem qu
isso seja igualmente importante para nós, não representando qual
quer deficiência. Apenas mostra que aquilo que ali se encontra
em questão não nos importa.
Uma coisa talvez seja certa: poderemos enriquecer nosso ins
trumental lingüístico  desde que partamos de nossas  importância
e urgências para as palavras e a língua  - e não o  contrário.  S
questiono da urgência de se dar existência a um conceito, isolan-
do-o numa palavra, estou transformando o sistema de dentro pa
ra fora, fazendo-o criador. Se me limito a transplantar palavras,
nada acrescento, nada crio. Veja-se, por exemplo, a que conduzi
ram as infindáveis  citações: a infindáveis itálicos.
É necessário  levar em conta que cada língua  realiza um m
do de existência, uma determinada criação do humano. Supor que
uma seja superior à outra é supor um  critério  que paire acima de
las e que as julgue - o que parece absurdo.
 

68
 A Filosofia entre-

Toda investigação neste sentido deveria ser interna, de dentro


para fora, das importâncias e urgências para as palavras e a língu
Caso contrário,  condena-se à esterilidade, à erudição dos  itálico
bem pensantes, mas que não nos pensam - e   através  dos quai
não podemos pensar. E a tarefa  mínima  da Filosofia é pensar
que somos, como somos. Consiste na descoberta a ser realizada
daquilo que temos a dizer, que só nós poderemos dizer e que, se
não o dissermos, ninguém  o dirá. Teríamos  então a condição b
ca da apropriação de uma forma, a filosófica:  nossa originalidade.
Aí se encontra o esquecimento do pensar brasileiro. Não ter
mos percebido que estamos sempre partindo de teorias alheias,
palavras alheias, problemas alheios, buscando aprisionar nossa ex
pressão dentro desses moldes. Com efeito, parecemos ter pavor
do que nos circunda, pois não se ajusta aos moldes europeus que
transplantamos. É urgente, ao   contrário,  partir de importâncias
que evidenciarmos e de nosso particular esquecimento. E a pala
vra adequada surgirá irredutível.

Esse, em suma, o apanhado de alguns problemas gerados pe


la falsa perspectiva em que nos colocamos quanto a uma Filosofia
brasileira. Confundir autores  entre-nós  com Filosofia nossa; busca
dissolver a oposição entre o isolamento e o alheamento; negar que
tenhamos capacidade de pensar por conta  própria;  projetar nossa
falta de pensamento numa  possível  insuficiência da  língua  portu
guesa. Nada disso diz respeito à essência  possível  de um pensar
brasileiro: são, ao contrário,  tantos outros sinais de nosso esqueci
mento. Destruir esses equívocos é a condição indispensável da po
sibilidade de um juízo filosófico brasileiro.
 

Caputilo9
A Razão Ornamenta
 

70  A  Razão Ornamenta/

Para bem corresponder ao papel que, mesmo sem o saber,


lhe conferimos, inteligência há de ser ornamento e prenda,
não instrumento de ação e conhecimento.

SÉRGIO  BUARQUE" DE HOLAND
(Raízes do B

á algo de que gostamos: do homem brilhante. Ser algum


dia chamado de brilhante é a  glória  à qual aspira o inte
lectual tupiniquim. Não nos causa admiração  alguém
que seja organizado no trabalho intelectual, constante,
dedicado. Costumamos empregar, nestas ocasiões, frases
assim: "Fulano não é muito inteligente, mas é  esforçado".  Quer
dizer: falta-lhe o brilho, a rapidez mental, o dito charmoso e des
concertante, o jogo de palavras - mas é esforçado.  O esforçado é
entre-nós,  uma das figuras mais depreciadas; por mais que produ
za,  por melhores que sejam suas contribuições, se não chega ao
brilho, não  merecerá  mais do que uma morna aceitação. Com
se permitíssemos  que continuasse existindo, embora, coitado, sej
apenas um esforçado.
O tipo de inteligência que nos agrada é aquele que sabe bri
lhar através  das palavras. Nunca ter feito uma frase de efeito, ei
a falta que intelectual brasileiro jamais  cometerá.  Agrada-nos, so
bretudo, a rapidez mental e o uso desenvolto da linguagem. Quem
de nós suporta um orador que se plante com não sei quantas lau
das à nossa frente? Se é pra ler, leio em casa. Do orador quere-
 

 A Sazão Ornamental 71

mos algo distinto da importânica  ou da consistência do que tem a


dizer. Queremos o improviso. Esta fascinação pelo cidadão bem
falante conduziu à desgraça  (e à graça) algumas carreiras de  polít
cos e professores - e gerou o triunfo do bacharel. Ah, as  delícias
da Razão Ornamental! Jamais em parte alguma o bacharel contou
com uma platéia  tão entusiasticamente dominada.
Mas o brilhantismo da Razão Ornamental não envolve ape
nas aquelas ocorrências em que  alguém é capaz de manipular pala
vras com especial esmero. Na verdade, mais nos deliciamos quan
do esta capacidade é dosada com pitadas de  sábia  malandragem.
O herói  brasileiro é o esperto. E o esperto ludibria de maneira es
pecial. Quase leva o ludibriado a agradecer ter sido  vítima.  E na
da faz que choque moralmente. Ao  contrário,  sustenta uma açã
inocente. Um brinquedo. O dito bem bolado, a artimanha esper
ta,  a frase marota, eis o que nos fascina - e que a tudo pode per
doar. Alguém que reunisse todas estas qualidades seria estrondosa
mente eleito presidente desta República  - e, sei não, chego a pen
sar que isso já aconteceu.
Poderíamos  ilustrar estas observações com dois mortos ilus
tres: José  Maria Alkmim e Eurico Gaspar Dutra. Do segundo s
diz que não sabia falar e corre a anedota segundo a qual se elegeu
porque jamais abriu a boca. Do primeiro ficou uma  magnífica cole
ção de frases que apresentam, na  máxima  realização, os ideais d
homem brilhante. O fenômeno  analisado sob o nome de populis
mo mereceria  entre-nós  uma abordagem a partir deste  ângulo
um povo fascinado pela Razão Ornamental e em busca de seus
mais prezados arquétipos.
Outra nota da Razão Ornamental é a adesão aos "ismos".
Intelectual brasileiro que se preze adere a um "ismo" qualquer, o
que lhe concede cidadania no universo do pensamento, sobretu
do se for o último  "ismo" aparecido. Tanto é assim que  vários  a
tores,  da maneira mais disparatada, passam em certos momentos
a conferir status entre-nós. Num passado recente, tivemos a seguin
te sucessão de modas: Sartre, Mounier, Teilhard de Chardin, Le
vi Strauss, Marcuse, McLuhan, Althusser, entre outros menos votados.
Isso revela uma de nossas alienações  básicas:  o deslumbris
 

72 A Bazão Ornamental

mo dos colonizados. Enquanto não se  alcança  uma linguagem her


mética,  acessível  só a iniciados, algo cifrado e misterioso, não
acredita ter atingido um  nível  de pensamento  aceitável.  Trata-s
de uma radical imaturidade. A adesão  frenética  a uma corrente,
a um rótulo  ou chavão constitui a morte do pensamento. Na ori
gem, todo pensamento é crítica  e negação, e o limite de sua vitali
dade encontra-se identificado com o limite de sua sistematização
e vigência. Eis no que é preciso cuidar: um pensamento deve ter
validade,  não necessariamente vigência,  pois esta costuma lhe ser
conferida a partir do momento em que  começa  a morrer.
Confundimos, por outro lado, pensamento original com pensa
mento novidadeiro. E preciso insistir: ser novo é um acidente do
original. Original é o que lida com as origens, não o  último no tem
po.  Eis por que o rótulo  de "ultrapassado" é puro equívoco.  Fa
tando-nos originalidade verdadeira, agarramo-nos à novidade na
ilusão de que nela se encontre a verdade. Mas não é nada disso.
O que constrói  uma verdade é sua perspectiva. O dito por  últim
pode ser perfeitamente repetitivo. Este  equívoco assume entre-n
um caráter  particularmente grave. A uma estrutura mental e so
cial fechada e conservadora, superpomos uma ornamentalidade
de novidadeiros, como se a verdade fosse, num leilão, algo a ser
arrebatado por quem desse o  último  lance.

Álvaro  Lins fez um diagnóstico  exato desta condição do int


lectual brasileiro num capítulo chamado "Ah, logrados indígenas!".
Que cito e vou comentando.
Inicia dizendo ser espantoso que "tantas pessoas ainda prati
quem a literatura neste  país  como se fôssemos  um subúrbio Lite
rio da  França,  da Inglaterra e dos Estados Unidos da  Améric
Desejamos ser cultos, sobretudo em cultura estrangeira; somos eli
tes lidas e corridas, em literatura francesa, inglesa, norte-america
na... Apurando bem, no entanto, eis o resultado: não somos real-

24.  LINS, Álvaro.  Op. ciL, pp. 431 e segs.


 

73
A Razão  Ornamental

mente cultos em nossa literatura porque a desdenhamos, estudan-


do-a aos pedaços, em restos de tempo; e não somos cultos em lite
raturas estrangeiras, porque um francês, ou um inglês, ou um nor
te-americano, de  média  cultura na respectiva  língua,  sabe muit
mais do que nós destas literaturas, para as quais, entretanto, vive
mos tão ansiosamente, tão parvamente voltados. E às vezes para
elas voltados por intermédio  de escritores e livros que são apenas
produtos de exportação, sem valor e significado na opinião  literá
ria dos seus próprios países,  sem nada que corresponda ao trata
mento de autores incomuns ou singulares que recebem nos  países
de tolo colonialismo, vivendo de 'transplantes  literários'  e 'enxer
tias culturais'... Com efeito, não há autorzinho estrangeiro de se
gunda ordem com algum sucesso, não há movimentozinho de Saint-
Germain-des-Prés  ou do Boulevard Saint-Michel, não há peque
no ensaio de crítico  inglês ou insignificante exercício  para estudan
tes de qualquer crítico universitário norte-americano - , não há na
da, de tudo isso, que deixe de receber aqui amplo noticiário,  em
nossas revistas e jornais, enquanto tantos trabalhos de autores na
cionais, às vezes de valor equivalente ou mesmo de melhor catego
ria, ficam na sombra, sem publicidade e sem repercussão".
Comentando. Primeiro: a posição de colonizado não se esgo
ta em mera dependência econômica,  generalizando-se para todas
as áreas;  e o brasileiro é o colonizado por excelência, aquele que
vive fazendo o europeu como o personagem de Machado fazia o
Alferes.
Segundo: ser culto, no Brasil, é avolumar erudição sobre um
outro,  o não-brasileiro. Julgamos apenas  exótico,  ou até de mau
gosto, quem se dedique a coisas nossas - mas julgamos de alta eru
dição saber alemão ou latim. Temos uma visão tipicamente arrivis
ta da cultura: é chegar aonde outros estão. As  delícias  de citar
Proust ou Goethe! "Ah - diz Álvaro  Lins - a fascinação desses
brasileiros letrados pelas últimas  'novidades' estrangeiras!"
Terceiro: a Razão Ornamental pressupõe uma supressão. E
preciso esquecer o que  está  à nossa volta, voltando-nos para "a"
cultura: aquilo que ocorre em Paris, Berlim ou Nova Iorque. Assim,
não somos conhecedores de nós mesmos e nem dos outros, pois
 

74 A Razão Ornamental

é certo que os outros levam sobre nós uma vantagem decisiva: são
eles próprios.
Quarto: Álvaro  Lins refere-se à prática  da literatura. Mas
panorama quanto à prática  da Filosofia é, de longe, muito mais
alienado. Basta que se procure ler - que seja o  índice  - de algu
ma revista brasileira dedicada à Filosofia.
A Razão Ornamental nos leva a abandonar tudo, esquecer
aqui e fora daqui obras que importam, para correr  atrás  das  últi
mas novidades. Nos conduz a querer aplicar aqui "escolas" estran
geiras - portanto estranhas - como se isso fosse  possível  sem nos
cobrar um preço:  o esquecimento do que somos.
"Por outro lado - voltando a  Álvaro Lins - afigura-se um fe
nômeno  diferente ou oposto, mas, de fato, é tão-só a segunda fa
ce do mesmo 'complexo' de inferioridade, colonialismo e provincia
nismo - isto que se pode observar a olho nu: a revolta, a mágoa,
a lamentação por não sermos bastante lidos, conhecidos, traduzi
dos no estrangeiro. Um estado de alma,  aliás, freqüentemente  ex
presso em livro, artigos, entrevistas, em toda sorte de pronuncia
mento de autores brasileiros."
Desejamos ser reconhecidos pela Mãe-Europa, em nossa edi-
piana e mórbida dependência afetiva e intelectual. Com isso perde
mos a oportunidade de ser alguma coisa qualquer, não necessaria
mente melhor ou pior do que a Europa, mas apenas isto: nossa.
Em conseqüência, o intelectual tupiniquim vive num estado de dis
sociação: voltado para fora e de fora esperando reconhecimento.
Fechando os olhos à realidade que o circunda. Descentrados, ja
mais encontraremos o  núcleo em torno do qual possamos dar coe
rência a nós mesmos, condição de originalidade. Evidente que o
pensamento brasileiro não poderia apresentar senão duas marcas
das mais pobres: o ecletismo - que não é,   entre-nós,  um simples
movimento do passado, mas um clima geral que a tudo envolve,
conseqüência de nossa incapacidade de romper o cordão umbili
cal e "ser  gaúchena vida"; e o positivismo, o pensamento afir
vo,  legitimador do vigente, que vai do tomismo ao estruturalismo,
passando pelo neopositivismo.
"E natural que desejemos ser projetados e valorizados para
 

 A Razão Ornamental 75

além  das nossas fronteiras; não obstante, essa  ânsia  pelo brilh
no estrangeiro, tamanha lamentação por não nos conhecerem e
admirarem bastante pelo mundo afora - isto significa, afinal, algo
pueril; e revela carência de  segurança  e estabilidade, ausência d
confiança  em si mesmo, deficiência de  amor-próprio."
"Bem, devemos ser o que somos, devemos procurar fazer as
nossas obras o melhor possível,  e o resto (...) já não é problema
nosso.  Atingiremos a universalidade quando chegar, ou se chegar,
o momento próprio,  isto é: quando estivermos para isto maduros
e acabados, não tanto em qualidades formais ou habilidades  técni
cas,  mas em força  interior, genuína  e dominadora."
A primeira tarefa na existência é chegarmos a ser o que so
mos,  fazendo de si o que se visa ser, partindo de nossa posição.
Depois, seremos reconhecidos - se formos reconhecidos. Sem is
so,  a interiorização necessária ao surgir da Filosofia jamais ocorre
rá entre-nós  e a Filosofia continuará  sendo apenas aquela tia di
tante que veio e foi ficando. E a  possível Filosofia brasileira perma
necerá vítima  da Razão Ornamental.

É dito e repetido que à Filosofia importa a verdade.  Aliás,  a


Verdade. Aí a Filosofia já  começa  a ser problemática,  pois seri
necessário  antes do mais determinar o que se entende por verda
de - o que não é imediatamente claro ou evidente. A solução  pré
via desta questão envolve a possibilidade de seu desenvolvimento
posterior. No entanto, por mais importante que possa ser essa ques
tão,  ela aqui não se encontra em jogo; aqui não é urgente. Num
questionamento da Razão Tupiniquim como aqui se realiza, impor
ta saber se, entre as pretensões de uma Razão Ornamental, encon
tramos a preocupação  prioritária com a verdade, condição de Filosofia.
Me explico. A Razão Brasileira já foi aqui caracterizada com
algumas notas: o ecletismo, o jeito, o deslumbrismo dos coloniza
dos,  a fascinação pelo brilho. A essência da Razão Ornamental
consiste numa espécie  de véu superposto ao real. O discurso inte
lectual brasileiro se dá num  nível  de manifestação clara: o de uma
 

76 A Vazio Ornamental

Razão comprometida. Não com a verdade. Com efeito, quem a


exerce? O pretendido intelectual  Entre-nós, porém,  encontramo
alguns fenômenos  que devem ser levados em conta. Se o brasilei
ro comum apresenta uma certa "saudade" e um pavor/temor totê-
mico com relação à Europa, o intelectual brasileiro leva tal condi
ção a seu extremo. Atemorizado com a realidade em volta, o teci
do de sonoridade palavrosa que nosso intelectual cria envolve a
Razão Nacional - seja na literatura, na critica  literária,  na crític
de arte, na Filosofia, na política,  no direito e na economia - com
um véu suposto em si mesmo significativo. Em outros termos, po
deríamos dizer que a Razão Ornamental se caracteriza pela supres
são da intencionalidade. Os objetos aos quais se refere estão enco
bertos e esquecidos, não mais se encontrando em questão, deixan
do de importar. Sabemos que uma das pretensões da Filosofia,
quando interessada na verdade, é erguer o véu que encobre o re
al - e concluímos que entre a Razão Ornamental e a Filosofia nã
há possibilidade de conciliação.

Penso que a raiz da alienação da Razão Brasileira numa Ra


zão Ornamental se encontra na recusa, desde sempre manifesta
da pelo intelectual brasileiro, em assumir sua  própria  identidade.
E claro que isso envolve uma longa história,  a do mazombo qu
em nós habita. Mazombo infeliz, o brasileiro colonizado jamais se
libertou de sua fascinação pela "estranja". "Flutuavam (os intelec
tuais brasileiros) - diz Antonio Candido - com ou sem consciência
de culpa, acima da incultura e do atraso, certos de que estes não
os poderiam contaminar nem afetar a qualidade do que faziam.
Como o ambiente não os podia acolher intelectualmente, senão
em proporções reduzidas, e como seus valores radicavam na Euro
pa, para lá se projetavam, tomando-a inconscientemente como
ponto de referência a escala de valores, considerando-se equivalen
tes ao que havia lá de melhor. (...) A  penúria cultural fazia o escri
tor voltar-se necessariamente para os padrões metropolitanos e
europeus em geral, formando um agrupamento de certo modo aris-
 

 A Razão Ornamental 77

tocrático  em relação ao homem inculto. Com efeito, na medida


em que não existia público  local suficiente, ele escrevia como s
na Europa estivesse o seu  público  ideal, e assim se dissociava mui
tas vezes de sua terra. Isto dava nascimento a obras que os auto
res e leitores consideravam requintadas, porque assimilavam as for
mas e valores da moda européia.  Mas, pela falta de pontos locais
de referência, podiam não passar de exercícios  de mera alienaçã
cultural."25
Essa dependência conduziu ao aparecimento, ao nível  da re
flexão, de uma atrofia escandalosa. Passou-se a discursar sobre
uma realidade querida, a européia, sobre problemas europeus, uti
lizando termos e linguagem adequados àqueles problemas que es
tranham inteiramente nossa circunstância.  A realidade querida
coisa diversa daquela na qual nos encontramos. Coisas  problemáti
cas para um europeu podem ser, para nós, falsos problemas que
somente à custa de verdadeira violência mental e grande alienação
conseguimos revestir de "importância".  Se outra é a realidade, ou
tros são os problemas virtualmente existentes, outros devendo ser
os termos e métodos.  No entanto, nada disso foi providenciado.
Nossa realidade desde sempre foi suprimida. O intelectual brasilei
ro refugia-se numa constelação de conceitos esvaziados e de sono
ras palavras que visam exorcizar isto de que tem tanto pavor e
que julga de tão pouca classe: nossa brasilidade.
Eis como, consagrados métodos  e termos europeus, muito
equívocos  se tornam possíveis.  Entre eles, o que desabou sobr
Oswald de Andrade. Não há filosofante brasileiro que não se colo
que superiormente diante de Oswald. Por quê?  Fácil:  não passaria
de um fazedor de piadas, sujeito pouco   séno. Que brincava c
coisas sérias.  O próprio  Oswald, que não era de deixar bobage
sem respostas, escrevia em 1943: "Segundo o sr. Antonio Candi
do eu seria o inventor do sarcasmo pelo sarcasmo. Meio  século
de sarcasmo! Contra quê? (Olavo  Büac  e Coelho Neto no aug
da glória; Graça  Aranha; o verbalismo de Rui Barbosa, a 'italiani
tà' de Carlos Gomes; o apogeu do verdismo e o sr.  Plínio  Salga-

25.  CANDIDO, Antonio. Op. ciL, pp. 13 e 14.


 

78  A Razão  Ornamenta/

do.) Tudo isso não passou de sarcasmo e  pilhéria! Porque a vigilan


te construção de minha  crítica  revisora nunca usou a maquilage
da sisudez nem o guarda-roupa da profundidade. O sr. Antonio
Candido e com ele muita gente simples confunde  'sério' com 'cace
te'.  Basta propedeuticamente chatear, alinhar coisas que  ningué
suporta, utilizar uma terminologia de 'in-folio' para nesta terra, on
de o bacharel de Cananéia  é um símbolo fecundo, abrir-se em to
no do novo Sumé  a bocarra primitiva do homem da caverna e
caminho florido das posições". 26
A questão vem a ser esta: e se Oswald estivesse tentando  inau
gurar outra Razão, como é  fácil  confirmar pela leitura de  A cris
da filosofia messiânica?Necessariamente diversa da  euro
vez que, propondo outra posição, exigiria outros termos e novos
critérios. Esta nova Razão - não-linear, não-silogística, não-séria
seria talvez uma tentativa de construir um discurso adequado ao
que somos.
Embora estivesse apontando alguma realidade brasileira, Os
wald o fazia de forma "desrespeitosa" do ponto de vista da Razão
Ornamental, contra os  clássicos  padrões acadêmicos - as coisas  s
rias. Em função disso, a piada de Oswald foi "esquecida" e se trans
formou uma inteligência claramente brasileira em mera fazedora
de anedotas. Ninguém  se perguntou: um filósofo  que fosse verda
deira e visceralmente brasileiro - não sugiro que Oswald tenha si
do;  tinha o estofo e a intuição, apenas isso - poderia deixar de
ser, ao mesmo tempo, um humorista? E mais: por que, ao chamar
de humorista, pretendemos sempre diminuir  alguém?  Onde est
dito que o filósofo é "superior" ou "mais profundo" do que o hu
morista? Não representaria o humor, ao  contrário, a visão do aves
so das coisas, aquela consciência desperta,  crítica,  que o filósofo
com freqüência teme assumir, esquecendo-se nalguma ideologia?
E desde quando o humor é antagônico ao filosofar? Não  será, con
trariamente, a mais alta expressão do  espírito crítico?
No homem  sérioverificamos o triunfo da certeza - do vig
te,  da ordem, dos sistemas. Em termos brasileiros, é no humor que

26.   ANDRADE, Oswald de. Op. cit, p. 43.


 

 A Bazão Ornamental 79

temos encontrado a forma mais  genuína  de assumirmos nossas in


certezas, fonte de qualquer pensamento a  
sérioe criador.

A Razão Ornamental não só cria uma realidade à parte e


que lhe convém  como enaltece ao  delírio  seu universo palavros
Daí a freqüência de ressentimento nos intelectuais. Julgam-se infe
lizes,  adorando posar, numa anacrônica mística romântica,  de s
res etéreos e destinados, não a uma morte prematura, que os anti
bióticos  fizeram cair de moda, mas ao sofrimento de não sere
compreendidos. O que lhes permite assumir ares de superiorida
de face à massa inculta. Num  país  onde o analfabetismo sempr
ganhou de goleada, não me parece grande vantagem.
Esta pose de vítima  não significa mais do que um lamentos
pedido de aceitação ao sistema vigente. Ao  invés de crítico,  o int
lectual brasileiro é apenas um cidadão  sensível a seus próprios calo
- embandeira-se em rebeldia até onde ela pode ser um instrumen
to de afirmação. A  crítica que move ao sistema atua apenas enquan
to este o rejeita, não lhe parecendo estranho que o sistema exclua
de seus beneficiários  um imenso contingente de brasileiros que se
encontram a  quilômetros  da "intelectualidade". O intelectual é
entre-nós,  um individualista - a versão palavrosa de Pedro Mala
sarte. Do ponto de vista de uma Razão Ornamental, dada a im
portância do "caminho florido das posições", tudo pode ser coloca
do em questão, menos o principal e o que importaria: o vigente,
os comodismos de nossa instalação. A não-criticidade da Razão
Ornamental não é, portanto, algo que uma dada  circunstância  lh
tenha acrescentado, mas algo que lhe é inerente.
"O trabalho mental - diz Sérgio  Buarque de Holanda - qu
não suja as mãos e não fatiga o corpo, pode constituir, com efei
to,  ocupação em todos os sentidos digna de antigos senhores de
escravos e dos seus herdeiros. Não significa   forçosamente, neste
caso,  amor ao pensamento especulativo - a verdade é que, embo
ra presumindo o contrário,  dedicamos, de modo geral, pouca esti
ma às especulações intelectuais - , mas amor à frase sonora, ao
 

80  A Sazão Ornamentai

verbo espontâneo  e abundante, à erudição ostentosa, à expressã


rara. É que para bem corresponder ao papel que, mesmo sem o
saber, lhe conferimos, inteligência há de ser ornamento e prenda,
não instrumento de conhecimento e de ação." 27
I Na medida de sua positividade, o pensamento produzido pe
la Razão Ornamental é essencialmente servil Curioso que isso ocor
ra precisamente num pais que tem no humor  satírico  uma de sua
maiores manifestações - o que, de resto, evidencia a alienação
da elite intelectual. Transformada em instrumento de afirmação
social - como, em outros momentos, um título  de nobreza, a pos
se das terras, um diploma  universitário  -, era preciso que toda a
ênfase fosse transportada para o brilho, a erudição balofa, os  esté
reis malabarismos estilísticos.  Sem o que dizer, só restava brilhar.
Ser conciliador, cordial, jeitoso, servil, tudo isso não passa de
reflexo de uma doença maior, o esquecimento da Razão  entre-nó
O que Sérgio  Buarque de Holanda diz dos  políticos  cabe perfeit
mente para descrever o clima em que se viu envolvido o pensa
mento brasileiro: "Preferiram esquecer a realidade, feia e descon
certante, para se refugiarem num mundo ideal de onde lhes acena
vam os doutrinadores do tempo. Criaram asas para não ver o espe
táculo detestável que o país  lhes oferecia".28
Cumprindo seu processo ao limite, só poderia acontecer o
acontecido: o ecletismo como jeitosidade geral a contaminar uma
autêntica posição intelectual; a  predominância do positivismo e de
rivados; o apego obsessivo ao tomismo - três das mais flagrantes
derrotas da Filosofia, pois ausentes de criticidade. "A persistência
do positivismo e a hegemonia neotomista sobre o ensino da disci
plina constituem a nota dominante de nosso acanhado universo fi
losófico."29  Paralelamente à constituição da mitologia brasileira: o
jeito,  a conciliação, a concórdia,  o homem cordial, as revoluções
sem sangue.

27.  BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio.  Op. cit, pp. 50 e   51.


28.  Idem, p. 140.
29.  PAIM, Antônio.  Op. cit, p. 253.
 

 A Razão Ornamental 81

Incapaz de pensar, exigindo brilhar, a Razão Ornamental con


duz à fuga nos modismos, no último grito cultural, o leilão de  idéia
Compreende-se assim o recente suicídio  que foi representado pe
la moda estruturalista, refúgio  de uma intelectualidade que busca
um lugar qualquer no mundo da tecnoburocracia. E compreende
mos também  o sucesso absurdo e fora de propósito  do neoposit
vismo e de seus cursos obtusos de estudos de  lógica  e teoria do
conhecimento a contaminarem as universidades brasileiras - dian
te dos quais, de resto, todos se deslumbram. Ah, logrados  indígenas!
Além  de cômodas  - afinal, estas colocações simplistas e fo
malizantes nos oferecem um arsenal de certezas - , tais atitudes
são perfeitamente inofensivas e servis. A  ninguém  incomodam.
Representam o aspecto  sérioe útilda Filosofia - e ê imenso
sucesso. Seria impossível,  portanto, compreender o sentido destas
modas se as isolássemos  do contexto político  onde ocorrem. De
ta forma, ou a Filosofia se reduziu a um arquivo de respostas fei
tas, pronto-socorro para qualquer dúvida, ou se fez estudo prelimi
nar, suntuosa propedêutica à ciência - onde, de resto, somos igual
mente dependentes.
Atado à camisa-de-força  que vem a ser o  espírito  afirmativo
o pensamento pode exercer-se entre-nós desde que se comprome
ta a nada dizer, a não negar. Que seja apenas afirmativo. Ou seja:
o pensamento pode existir  entre-nós  sob a condição de não pen
sar. Ou: de não existir.
 

Capítulo 10

A RazãoAfirmativa
 

 A Bazio Afirmativa

Nem por isto compra a briga


olha bem para mim.
Vence na vida quem diz  sim.
Vence na vida quem diz  sim.

CHICO BUARQUE/ RUY GUERRA.
(Calabar)

a aparência, o ecletismo é o oposto do positivismo. Em

N
bora superficialmente tal oposição possa ser justificada,
a verdade é que o aparecimento - e o triunfo - do po
sitivismo nada mais fez do que desdobrar um componen
te já  implícito  no ecletismo anterior: a Razão Afirmati
va. A Razão que diz sim.
Indiferenciada e dependente, precisando legitimar   idéias e
modelos providenciados estranhamente, a Razão Afirmativa encon
trou em nosso ambiente intelectual um campo de  fácil penetração.
"Nas condições peculiares do pais - ausência de tradição   filos
ca, fragmentação e dispersão do  único  grupo, a Escola de Recife,
que reivindicava a metafísica  ao mesmo tempo em que recusava
a volta à antiga Filosofia já superada etc. - , a ação  antífilosófica
dos positivistas estava fadada a  alcançar  resultados desproporcio
nais não só à sua força  efetiva como à consistência mesma da dou
trina." 30 Com efeito, olhando criticamente e face às urgências  histó
ricas que se apresentavam ao Brasil, o positivismo só poderia ter
sido aceito em função dos interesses vigentes e da reprodução da
hegemonia das classes dominantes.

30. Idem, p. 195.
 

84 A Razão Afirmativa

Aliás,  a resenha das idéias filosóficas  no Brasil marcaria a i


fluência de duas correntes - o ecletismo e o positivismo - que po
deríamos tranqüilamente  considerar como o que de pior se produ
ziu em termos de alternativa  filosófica no Ocidente. Apesar dessa
debilidade intrínseca,  sua influência foi tão decisiva - envolvendo
condições de dependência sócio-econômica  - que formaram não
apenas correntes mas visões de mundo. Plasmaram modos de ver.
De sorte que outras manifestações de pensamento que aqui chega
ram foram, mais cedo ou mais tarde, absorvidas e deturpadas por
esse clima. Ninguém  poderia negar, em aparentes extremos, a afir
matividade dos neotomistas e neopositivistas, o quê chegou a en
volver mesmo o marxismo caboclo. Sempre com a marca do orto
doxo,  do modelo estrangeiro a seguir, constituindo-se em modos
de retenção  histórica.  De resto, esse clima afirmativo casa bem
com o caráter tirânico e impositivo do ecletismo - que, na ausên
cia de critérios  ou posições criticamente assumidas, deve optar pe
la simples afirmação.   Está  igualmente ligado ao vício  conciliado
da Razão Eclética:  ao invés  de gerar um confronto criador, gero
entre-nós  o pensar anestésico.  Dissolvendo oposições, antagonis
mos ou choques. Reconciliando ao  nível verbal as mais desencon
tradas alternativas, gerou o pensamento esterilizado, muito  útil
porque não contamina  ninguém.
Acerta Antônio Paim ao dizer que esta "forma mentis", o po
sitivismo - que aqui, ampliando seu significado e extensão, cha
mo de Razão Afirmativa - , "acabou impondo-se  entre-nós  mais
em função do vazio cultural aqui havido do que por qualquer virtu
de específica  desta atitude. Quem fosse uma organização, conse
qüente  e forte, acabaria fatalmente por atuar neste meio sem con
sistência, nem resistência. Foi o que sucedeu ao positivismo aqui". 31
Talvez a melhor explicação do sucesso do positivismo entre
nós, em função de sua consciência política,  ainda pertença a Sylvi
Romero. Pelo simples fato de não dissociar, em momento algum,
o pensamento positivista do contexto  político  no qual ocorre. Es
ta Filosofia dos pobres  ou este neojesuitismo,  como Sylvio Rome-

31 .  Idem, p. 196.
 

A Razão Afirmativa 85

ro se refere ao positivismo, jamais teria condições de continuida


de e vigência se não viesse, no processo   histórico  nacional, a se
unir a grupos que passaram a exercer o poder a partir da  década
de noventa do século  passado. Na verdade, o papel desempenha
do pelo positivismo no estabelecimento da  República tem sido exal
tado em demasia e talvez deva ser considerado mais modesto.
Quando se tramava o 15 de novembro, diz Sylvio Romero, os che
fes do Centro Positivista, segundo informações correntes na  épo
ca, foram avisados e, no entanto, se recusaram a participar do pla
no de derrubada da Monarquia por meio de revolta. Tão logo po
rém o movimento saiu vitorioso, os positivistas aproximaram-se
de Benjamim Constant, com o qual tinham tantas divergências, e
acercaram-se do poder.
Tenha ou não participado imediatamente do movimento repu
blicano em seus momentos decisivos, a verdade é que o positivis
mo serviu de apoio ideológico  ao grupo de militares que trama
va a queda da Monarquia e foi o positivismo, afinal, quem se bene
ficiou com esta queda. "Graças à influência militar no primeiro go
verno da República  e principalmente do governo Benjamim Cons
tant, que com razão ou sem ela passava por decidido  sectário  de
Augusto Comte, o positivismo foi quase uma religião do Estado, a
qual não era porventura desvantajoso praticar" - diz  José Verís
simo.32
Essa associação entre positivismo e militarismo já havia sido
estabelecida por Sylvio Romero em 1894 nas  páginas  de Doutri
na contra doutrina:  "Um estudo perfeito da ação do positivismo,
em nossa malsinada República,  para ser perfeito, deveria associar
aos feitos desse partido (os positivistas não negam que constituem
um partido  político), os feitos do partido militar."33  Esses dois
"partidos" teriam exercido a maior influência no  início  da Repú
blica como dois braços  de um mesmo organismo: os militares pas
saram a deter o poder, enquanto os positivistas providenciaram o

32 PAIM, Antônio.  Op. cit., p. 208.


33.  ROMERO, Sylvio. Doutrina contra doutrina: o evolucionismo e o positivismo no
Brasil In:  Obra Filosófica,  Rio de Janeiro, José  Olympio, 1969, p. 291.
 

86 A Razão Afirmativa

arcabouço ideológico  de justificação desse poder. "Qualquer qu


pudesse ser a influência do militarismo em nossa  política  - conti
nuemos com Sylvio Romero - nos dias que correm, essa influência,
esse valor não teria chegado para fazer, entre nós, dos militares
um verdadeiro partido preponderante, se ao  militarismo,  por uma
singular aberração, por uma esquisitice de nossa educação desorien
tada, não se tivesse vindo juntar, em   íntima aliança,  o positivi
mo.  E, por outro lado, os positivistas, a despeito de suas preten-,
soes e ousadias, não passariam, não teriam passado até hoje de
um grupo  insignificantíssimo, sem a  mínima  preponderância, se
não contassem entre seus adeptos os  moços  estudantes e os mo
cos oficiais, há pouco saídos  da Escola Militar e da Escola Supe
rior de Guerra."34
Sylvio Romero lamenta ter havido esta associação  entre-nós,
porque "essa hibridação extravagante tem feito mal ao Exército  e
vai fazendo dano a este  país".35  Tais malefícios  seriam devidos a
fato de o positivismo ter revestido o movimento republicano com
idéias  conservadoras, retrógradas,  transplantando para terras tupi
niquins os modelos da sociocracia imaginada por Augusto Comte,
sob a forma de uma "ditadura republicana". "Note-se - diz Sylvio
Romero - esta diferença:  até 15 de novembro a força armada apa
recia a propósito,  intervinha em prol do mundo civil e retirava-se
da cena  política,  dando as mais  inequívocas  provas de abnega
ção."3*
Nas concepções que trouxeram  prejuízo ao país, e que pode
ser atribuídas  "à má orientação positivista"37, encontramos o regi
me  totalitário de inspiração comtiana, cujo melhor exemplo, o
mais direto, seria o de  Júlio  de Castilhos, no Rio Grande do Sul,
onde governou autocraticamente de 1893 a 1898, sob a inspiração
do Sistema de  Política Positiva de Comte. Sistema totalmente
tralizado, esse regime ditatorial trazia ainda outras marcas. A des-

34.  Idem, ibidem.


35.  Idem, p. 292.
36.  Idem, ibidem.
37.  Idem, ibidem.
 

 A Razão Afirmativa 87

confiança  com relação ao voto - "o voto não é nem pode ser o
verdadeiro instrumento capaz de determinar precisamente o pro
fundo trabalho de formação das opiniões", dizia  Júlio  de CastUho
- e a personalização do poder, pois era suposto que o governo ca
beria a um "ditador institucional", enquanto o poder Executivo ab
sorveria o Legislativo, podendo o chefe de governo demitir os ocu
pantes dos executivos municipais. Todos estes poderes acumulados
nas mãos de um só homem marcavam desde já o  caráter antiparla-
mentar e  antipartidário  que, mais tarde, estaria presente em ou
tros movimentos militares como, por exemplo, o tenentismo. Essas
concepções  totalitárias  eram de todo coerentes com o que dizia
Augusto Comte no Catecismo a respeito dos direitos humanos: "A
noção de direito deve desaparecer do  domínio político,  como
noção de causa do domínio filosófico.  Todo direito humano é tã
absurdo quanto imoraL"
É fácil  perceber, e os exemplos não faltariam, que esta visão
política se perpetuou no país a partir da República,  assumindo fo
mas as mais variadas, mas trazendo sempre a marca de uma Ra
zão Afirmativa que se impunha sem admitir contestação. A isso o
positivismo desde sempre esteve ligado, uma vez que, mesmo ho
je,  como diz Antônio  Paim, "é  difícil  supor que exista na atual so
ciedade brasileira um grupo social onde a mentalidade positivista
esteja mais arraigada que naquele  constituído  pela oficialidade". 38
O caminho descrito pelas idéias totalitárias  do positivismo,
"ditadura republicana", vem de  Júlio  de Castilhos, no Rio Gran
de,  passando por Borges de Medeiros que, por sua vez, cedeu o
posto a Getúlio Vargas, "ao qual incumbiria transplantar o castilhis
mo para o plano nacional". 39  Eis como um pensamento retrógra
do e  débü,  de uma insuficiência  crítica  total, na medida em qu
poderia servir de instrumento nas mãos de grupos dominantes, con
seguiu se impor ao país,  vindo a ser o  traço  mais marcante e
nossa formação  política  e  filosófica,  constituindo-se no fenômen

38.  PAIM, Antônia Op. cit, p. 186.

39.  Idem, p. 183.


 

88
 A Razão Afirmativa

onde mais significativamente podemos encontrar as  raízes  de nos


sas alienações atuais.

Procuremos agora encarar a Razão Afirmativa de um outro


ângulo, ou seja, a partir das ilusões com que nos acena sua positividade
De fato, é muito mais  cômodo  - refira-se isto ao positivismo
ao tomismo ou ao marxismo - acatar globalmente um conjunto
de "verdades" resumidas em alguns poucos livros, manual ou cate
cismo do que se fazer capaz de enfrentar um longo e penoso pro
cesso de reconstrução histórica  da Filosofia. Mais fácil,  e até mai
fascinante pelo conjunto de certezas que nos oferece, embrenhar-
se em piruetas verbaüsticas e conciliar o  inconciliável  do que, nu
processo de revisão  crítica, reconsiderar integralmente o ato de
espirito que gerou esta atitude que chamamos de  filosófica.  Não
se trata, porém,  como erradamente muitos viriam a supor, de me
ra preguiça mental - do que temos sido acusados, às vezes na brin
cadeira, por amigos e inimigos. Pondo de lado a questão de saber
mos se a preguiça  não seria um dos valores com o qual podería
mos brindar uma humanidade desesperada (a  Divina  Preg
de Mário  de Andrade), gostaria de ressaltar que o afastamento, a
fuga de uma revisão  crítica  da Filosofia que a Europa nos envia
va,  não pode ser dissociada do processo paralelo que nos envolve:
a circunstância  de sermos um pais dependente. Sendo um prolon
gamento da cultura ocidental, a Filosofia  entre-nós, ausente de cri
ticidade, acabou por optar pela simples afirmação desse prolonga
mento. E o intelectual brasileiro - que tem conseguido ser o  protó
tipo de nossos defeitos mais chocantes - assumiu, na fascinação
pelo passado europeu, o papel de ser-dependente. Não deve revi
sar criticamente. Deve, como na ingênua posição de  Luís W. Vita,
ser um "assimilador", um continuador ou repetidor de  idéias gera
das em outras terras. Deve dizer  sim -  reproduzindo - àquilo que

Uma Razão que dissesse não seria algo estranho ao papei


que o país  deveria desempenhar face ao passado europeu. Nega
 

 A Razão Afirmativa 89

coroistiria, no caso, colocar-se à margem, fora da visão (e da posi


ção) de mundo européia que nos havia sido legada. Pois é isto qu
significa negação: para ser global e significativa - não apenas trans
formista como gostamos de ser, quando brincamos de  revolucioná
rios -, deve descentrar integralmente as razões do pensamento an
terior. Como isso seria  realizável  se o país, econômica, política
socialmente, era um apêndice da Europa e tão bem se adaptara
ao papel de filho edipianamente submisso? Como negar, se todo
o conjunto tupiniquim era dependente e se às produções intelec
tuais, vítimas  da Razão Ornamental,  reservávamos  o simples p
pel de refletoras - não de reflexão - do que se passava em torno?
No entanto, era exatamente isso que precisaria ter sido feito. Des
sa maneira, todo pensamento  entre-nós  tem sido prisioneiro d
modelos e fins europeus, desligado de nosso contorno. Os cami
nhos de alienação da Razão Tupiniquim encaminham-se então
no sentido de uma dependência ainda mais acentuada. Agora ao
nfvel das justificações ideológicas  providenciadas para a manuten
ção do vigente através  da Razão Afirmativa.

Da indiferenciação do ecletismo ao  espírito dogmático do p


sitivismo, a distância  era mínima  e foi percorrida festivamente pe
la inteligência nacional. Fascinados por um modelo de pensamen
to e de ciência atado ao  espírito  oitocentista,  caímos  em algu
mitos e novas falsificações. O mito da certeza em geral e da certe
za científica  em particular. Qualquer positivista elimina a criticida-
de da Razão com quatro ou cinco argumentos, onde a fé na afir-
matividade é tão presente quanto o fanatismo nos santos guerrei
ros. Ao invés de favorecer o verdadeiro desenvolvimento do espíri
to científico,  a Razão Afirmativa só fez  bloqueá-lo,  atado à cami
sa-de-força  sumariada por Comte e seguidores em mui  fáceis  li
ções. Apresentando-se como irrefutável, a Razão Afirmativa impe
diu o aparecimento da única  coisa que poderia gerar pensamento:
a dúvida.
Com a vitória  da afirmatividade, o  espírito  da negação, se
o qual não existe Filosofia, deixa de existir. A conseqüência é fu-
 

90  A Razão Afirmativa

nesta: ausência de capacidade criadora, pois esa é antes do mais


destruição e dúvida.  A afirmatividade fez apenas acentuar quadro
mentais que se impuseram acima do direito e da urgência de pro
videnciarmos nossos próprios  modos de ver e viver. Uma Filosofi
brasileira passou a ser impossível a partir do momento em que, co
mo fenômeno  geral, se deu  entre-nós  a opção pela certeza. Se
verdade é patrimônio  de um outro, não nos resta senão ser "assi
miladores". O que equivale a morrer para o pensamento.

Já no pensamento eclético encontrávamos  a tendência a di
solver oposições e a  desconfiança com qualquer posição que conti
vesse traços  de marginalidade: do ponto de vista  eclético,  aquel
que discorda é um criminoso, pois o ecletismo gera o fanatismo
da mesmidade.  É essencialmente tirânico  e antidemocrático,  aves
so ao livre circuito de posições que se questionem radicalmente.
Para termos como definitivo que o positivismo só fez acentuar pres
supostos ecléticos,  não sendo com relação ao ecletismo uma supe
ração mas um desdobramento, "basta indicar que é  solidário des
sa mentalidade positivista o pressuposto  antidemocrático  de que
na sociedade não deve ter lugar o livre jogo dos grupos e das fac
ções,  mas a tutela de agrupamentos que se atribuem semelhante
privilégio  a diversos pressupostos. Nisso talvez a particularidade
distintiva mais característica entre a mentalidade positivista e o  cien-
tificismo contemporâneo,  este último  visceralmente ligado à trad
ção do liberalismo anglo-saxão, expresso na incapacidade de acei
tar o diálogo  e o debate em qualquer plano". 40
Não houve salto entre o ecletismo e o positivismo, mas pura
continuidade, desdobramento, uma afinidade que explica como o
segundo - movimento filosoficamente inconsistente - foi capaz
de encontrar entre-nós  uma terra de promissão, arada e adubada
pelo ecletismo. As duas atitudes prolongam a condição de depen
dência, ausentes de qualquer posição negadora.

40.  Idem, p. 208.


 

 A Razão  Afirmativa 91

Tudo parece preparar o que  entre-nós  aconteceria quando


levada a desconfiança com relação à democracia a seu limite, pas
sou-se a uma declarada hostilidade contra qualquer coisa que pu
desse representar debate  político  - onde, de resto, nossas urgên
cias terminariam por surgir - e optou-se por uma franca tecnobu-
rocracia, onde o que menos conta é esta  caótica,  vulgar e tropica
"opinião do povo". Sylvio Romero já advertira quanto ao positivis
mo:  "tal é o sistema que se propõe enfaticamente a acabar com
os males da opinião democrática e liberal, que domina no  país!..."4
Aliás,  foi a Real Mesa Censória,  criada por Pombal em 1776, qu
proibiu a tradução e difusão de Descartes, "porquanto o povo por
tuguês ainda não está  acostumado a ler no seu próprio  idioma es
te gênero de escritos". Simples, portanto: o povo sempre tem cul
pa. Não é sem motivo que ainda se discute se estaremos "prepara
dos"  para a democracia. Um precursor, este Pombal
Que os poderes constituídos  adotassem tal posição, nada
estranhar, embora muito a lamentar. Mas que os pretensos intelec
tuais, fantasiados de inúmeras  maneiras, inconscientemente ou po
simples má-fé,  o fizessem, eis algo a estranhar e a lamentar. No
momento em que desabou sobre nós a afirmatividade, toda  possí 
vel criação que questionasse nosso mundo estava condenada. E a
conseqüência, estabelecida:   entre-nós  o pensamento haveria d
ser "ornamento e prenda".
Essas,  as questões que deverão ser abordadas numa introdu
ção a uma possível  Filosofia brasileira. Não apenas ao  nível das te
orizações abstratas - ao modo das  infindáveis  "introduções à Filo
sofia" que se publicam entre-nós  - , mas investigando aquilo qu
a Filosofia veio a ser  entre-nós  e as condições que circundam ta
acontecimento. Em suma, revivificar os modos de alienação do
pensamento brasileiro, sua incapacidade de maior compromisso
com as urgências históricas  que nos rodeiam e sua fuga para a sé
tima nuvem à direita, onde se pensa "do ponto de vista da eterni
dade". E sobre isso exercer a consciência negadora.

41.   ROMERO, Sylvio. Op. cit, p. 30&


 

92  A   R a z ã o Afi r mativa

Com efeito, o que faz a Filosofia? Sua pretensão parece ser


clara: desde sempre pretendeu ser um pensar ao limite. Ou: um
levar a  sérioque busca extrair de si as  últimas  conseqüências.
É justo aqui que encontramos o entrave  básico  a um pensa
brasileiro. Se o próprio  homem é resultado de um ato de criaçã
de si, o viver social providencia - e nós providenciamos - nossos
modos de instalação no real, modos de contornos bem definidos
e  práticos,  numa especialização de nossa existência, objetivand
manejar situações com a máxima segurança.
Uma condição talvez nos leve a isso: o homem é um animal
enraizado na insegurança,  o que faz com que nada nos fascine
mais do que a certeza. As certezas dos limites de nossas instala
ções,  as quais acabam plasmando nosso mundo. É de agarrar-se
a tais limites que extraímos  nossa débil segurança.  A dinâmica 
sica da existência oscila entre momentos de  segurança e inseguran
ça, certeza e  dúvida  - sendo o ato criador aquele momento que
faz romper algumas certezas, desequilibrando um sistema. Ao con-
 

 A Razão Afirmativa 93

trário,  a vitória  de uma dada visão de mundo  tenderá  a se tran


formar em instituição, segura e  sólida,  vigente. Logo, morta.
Um pensar ao limite só poderia nos atrapalhar. Se devo pen
sar, tudo está  em jogo,  sendo o pensar a  sérioum levar-se ao l
te.  Equivale a expor nossas instalações ao perigo da dissolução, já
que pensar é o mesmo que duvidar. A face inquietante da Filoso
fia é a ameaça  ao tranqüilo  esquema de instalação que  montár
mos para enfrentar o real, aniquilando-o como coisa em sL O pen
samento tenderá  a explodir esta inércia  do dado bruto ao qua
nos agarrávamos. Contávamos  com comodismos de instalação qu
vemos, súbito,  desabar. E o que pretende a Filosofia quando a  sé 
rio? Salvar-nos? Não. A Filosofia não é salvação - é perdição.
Ao menos antes de alienar-se nalgum sistema. Convida-nos a lar
gar tudo, a encontrar soluções por conta  própria.  Em suma: pen
sar por si mesmo.
Eis o convite que nos aterroriza e que nos põe nos limites
de nossas certezas: pensar por conta  própria.  Me contaram ou li
(ou inventei) que segundo os chineses "pensar dói". Dói. E um ris
co a assumir. Exige colocar tudo em jogo. É conduzir-se aos limi
tes a despeito da insegurança.  É neste momento que o chão no
falta - e preferimos a burra paz dos que não sabem. De fato, pen
sar dói. Mas é a única  coisa que nos resta.

Uma Razão Afirmativa é o mesmo que uma sem-razão. Com


plemento desesperado do senso impensado da Razão  Eclética.
Equivale a agarrar-se ao dado na pretensão de  perpetuá-lo,  quan
do a função radical do pensamento é destruir a positividade do da
do.  Se a Razão Eclética  perdia-se numa indiferenciação amorfa e
despersonalizada, a Razão Afirmativa tende a sacralizar o passa
do,  fonte de todas as certezas - certezas que já não sabemos ver
dades caducas. E ambas encontram na Razão Ornamental a for
ma adequada à sua expressão: o pensamento não pensado,  alegó
rico. Que não incomoda nem arrisca. O pensar  anestésico  e esteri
lizado.
 

94 A Razão Afirmativa

Por exemplo, o estruturalismo, o neopositivismo, a predomi


nância da lógica, formal ou matemática, são os lugares onde se re
lizam aquelas intuições  filosóficas  que se perderam. Verdadeiras
salas de operação: esterilizadas e inofensivas. E   úteis.  Ou, pel
menos, consentindo. Isso se dá em função do estado de alienação
no qual nos encontramos; preferimos jogos  lógicos e epistemológi
cos àquilo que sabemos urgente.
 

Captíub 11
RazãoDependente
e negação
 

96
 Razão Dependente e aegaç

...porque as estirpes condenadas a


cem anos de solidão nao tinham uma
segunda oportunidade sobre a terra.

GABRIEL GARCÍA MARQUEZ
(Cem Anos de Solidão)

e a função da consciência é explodir um mundo, pode

S
mos dizer que com a Semana de Arte Moderna, em
1922, realizamos uma primeira tentativa de real indepen
dência cultural face ao passado europeu e aos modelos
estrangeiros. Com exagero - este sim, bastante nosso -
efetuamos a constatação do óbvio: à nossa volta não havia fog,  ne
ve ou castelos medievais - mas bananeiras, coqueiros, casas de ca
boclo e gente de nariz batatudo e  lábios grossos. O parnaso super-
refinado, os traços suaves das madonas, o bom gosto oficial vieram
abaixo; nossos artistas retiraram de seus ombros a carga de um
passado alheio e que lhes pesava. Tornava-se  possível  criar. O re
sultado foi uma revolução. De   Mário  e Oswald a Drummond e
João Cabral de Mello Neto, súbito  percorremos os caminhos de
uma emancipação artística.  Os imensos pés das figuras de Portina-
ri denunciam: encontrou-se um chão sobre o qual pisar.
É claro que  análises  detalhísticas  encontrariam por detrá
do Manifesto  Antropofágico  o  italianíssimo  Marinetti. Mas um
coisa se ressalta: mudou o espírito,  a atitude. A partir daí uma re
ação em cadeia será  liberada, permitindo produzir uma arte cujo
 

 Razão Dependente e negação 97

significado é flagrante: assumir nossa posição. "Confesso - diz Os


wald de Andrade - que a revolução modernista eu a fiz mais con
tra mim mesmo (...) Pois eu temia escrever bonito demais. Temia
fazer a carreira literária  de Paulo Setúbal.  Se eu não destroças
todo o velho material  lingüístico  que utilizava, amassasse-o de no
vo nas formas agrestes do modernismo, minha literatura aguava e
eu ficava parecido com D'Annunzio (...) Não quero depreciar ne
nhuma destas altas expressões da mundial literatura. Mas sempre
enfezei ser eu mesmo. Mau mas eu." 42
O modernismo brasileiro instalava-se sobre o signo da nega
ção.  Havia que destruir, como diz Oswald, aquilo que falsamente
viéramos a ser: "A revolução modernista eu a fiz contra mim mes
mo".  Destruir as condições internas e subjetivas da dependência,
pois esta não é simples fato externo - se existem fatos puramen
te internos ou externos - mas disposição internamente assumida:
o escravo traz o senhor dentro de si. Lutando contra si mesmo,
contra seus próprios  fantasmas, os modernistas sentiam a urgênci
de se libertarem dos  vínculos que os mantinham presos a uma Eu
ropa idealizada.
"A Alemanha racista - diz Oswald - purista e recordista pre
cisa ser educada pelo nosso mulato, pelo chinês, pelo  índio  mai
atrasado do Peru ou do  México,  pelo africano do Sudão. E preci
sa ser misturada de uma vez para sempre. Precisa ser desfeita no
melting-pot   do futuro. Precisa mulatizar-se."43  Um mundo desaba
va.  E a primeira coisa a fazer - assim como nas revoluções - era
queimar os retratos e bustos dos tiranos. Não contra os tiranos -
mas contra nós mesmos. E o efeito de substituição: a tomada de
consciência do mulato, do  índio,  da América  Latina. A consciênci
daquilo que nos constituía  e sem o que nada poderíamos  ser.
Após  a derrubada do ídolo  - saudavelmente barulhenta
assistimos à aproximação de nossos valores, de nossos limites e
possibilidades. "Nada podemos esperar da Europa  européia,  par

4Z ANDRADE, Oswald de. Op. cit, p. 11.


43.  Idem, p. 62
 

98 Razão  Dependente e negação

onde vivemos por tanto tempo voltados, com a luz de Paris em


nossos espíritos. Foi uma época que terminou. Tínhamos pelos la
no-americanos um desprezo que participava do conhecimento de
nós mesmos, de nossos pobres recursos civilizados, perdidos no es
magamento de uma fiança torpe ligada à fome dos imperialismos." 4

Nas páginas de OMovimento Modernista*  ,
5  Mário de Andr
de deixou algumas lições que   precisaríamos  recuperar, já que
possível Filosofia brasileira muito teria a aprender com nossa Litera
tura. Encontramos aí certos  traços  de desgosto e arrependimento
certas restrições a seu passado modernista.
Não se revolta por ter sido modernista, mas por não ter ido além
de suas pretensões. Não propõe um retorno, mas a revisão  crítica,
na tentativa de recuperar a intuição revolucionária que se perdera.
O modernismo havia sido "uma ruptura, foi um abandono
de princípios  e de técnicas conseqüentes,  foi uma revolta cont
o que era a Inteligência Nacional".  Mário nota, porém,  que o "e
pírito  modernista e suas modas foram diretamente importados da
Europa". Daí o aparecimento   subterrâneo,  às vezes nem tanto,
de uma postura nitidamente  aristocrática,  de um internacionalis
mo modernista e um nacionalismo embrabecido. "Era uma aristo
cracia do espírito."  No entanto, o movimento, essencialmente des
truidor e com possibilidades de criar, representava uma convulsão
no panorama artístico  e intelectual brasileiro. O que ficaria expres
so nos três princípios  apontados por Mário:  "O direito permane
te à pesquisa estética;  a atualização da inteligência artística  bras
leira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional."
Isso permitiria uma reviravolta aos artistas brasileiros, que ti
nham sempre jogado "colonialmente certo". Havia que dar conta
das "numerosas Cataguases", o que, associado à pesquisa  estética,

44.  Idem, p. 63.


45. ANDRADE, Mário de.   O Movimento Modernista In: Aspectos da Literatura Brasi
leira.  São Paulo, Martins  [s/d.], pp. 231-55.
 

 Razão Dependente e negação 99

pudesse representar o primeiro movimento de independência,  legí


timo e  indiscutível,  da inteligência brasileira. "Essa normalizaçã
do  espírito  de pesquisa  estética,  antiacadêmica,  porém  não m
revoltada e destruidora, a meu ver, é a maior manifestação de in
dependência e de estabilidade nacional."
Mas onde o lamento e a lição maior? Aqui, creio: "Se tudo
mudávamos em nós, uma coisa nos esquecemos de mudar: a atitu
de interessada diante da vida  contemporânea.  E isto era o princi
pal!" Vítima  de seu próprio  individualismo, Mário  crê não enco
trar em suas obras e nas obras de seus companheiros "uma paixão
mais contemporânea,  uma dor mais viril da vida. Não tem. Tem
mais é uma antiquada ausência de realidade em muitos de nós".
Essa consciência dolorosa, aguda, denuncia o   espírito  num
momento decisivo: o da consciência que explode um mundo. O
momento da negação, -a crítica,  que permitiria superar o  própri
modernismo e vislumbrar o que deveria vir em seguida. Falta al
go.  Este contato -  fora de toda Razão Ornamental  -  com nosso
contorno; talvez um levar-se a  sérioainda mais comprometido. "
veríamos  ter inundado a caducidade   utilitária  do nosso discurso
de maior angústia do tempo, de maior revolta contra a vida como  está.
Revisando tudo, Mário  aponta onde fora efetivamente reno
vador e onde fracassara -  e dá testemunho deste fracasso, supe-
rando-o. Esquecera-se de seu tempo, quando muito lhe fizera, "de
longe, uma careta". Creio que isso possa explicar por que mesmo
Mário  de Andrade não tenha ficado livre, ao final, do  espírito  con
ciliador; é  fácil  encontrar nele traços  de uma Razão  Eclética  d
qual não conseguiu se libertar inteiramente.
Mas estava, ao dar testemunho de si, virtualmente pronto a
reiniciar tudo, tendo sido capaz de negar mesmo seu passado, recu-
perando-o criativamente. Seu lamento deve ser considerado co
mo uma devastadora revisão crítica, legítima, porque dava testemu
nho de um mundo seguinte. "Eu creio que os modernistas da Se
mana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a  ninguém.
Mas podemos servir de lição. O homem atravessa uma fase inte
gralmente política  da humanidade."
Registremos agora a ausência de repercussão do modernis-
 

100  Razão Dependente e negação

mo na Filosofia praticada  entre-nós. Mais uma vez vemos aí denun


ciado o estado de alienação, de apartamento, da Filosofia diante
de uma realidade nossa. Foi, para os praticantes da Filosofia, co
mo se a Semana não houvesse existido. "A partir da Semana de
Arte Moderna e da Revolução de 30 - diz Roland Corbisier - ,
ocorreu no  país  uma significativa renovação cultural, assinalad
pelo aparecimento de romancistas, poetas, arquitetos, pintores,
músicos, críticos literários, ensaístas  etc. A essa eclosão de valo
no campo da arte e do ensaio não correspondeu,  porém,  no cam
po da Filosofia, ao surgimento de valores equivalentes." 4*
A razão disso, creio, possa ser encontrada no fato de ter si
do na Filosofia onde se enraizou mais fortemente - já pela primei
ra tentação alienante da Filosofia: pensar acima do tempo e do
espaço   - o caráter  afirmativo da dependência cultural, perdura
do aí a atitude "assimüadora", de prolongamento do universo euro
peu.  Ao  nível  das justificações ideológicas,  houve uma reação d
defesa por parte das  idéias  e ideais dominantes, não permitind
que se questionassem mais radicalmente as bases da visão de mun
do vigente. Enquanto estas manifestações de libertação se davam
ao nível  das propostas  artísticas  e ensaísticas,  fazendo, de long
caretas para o tempo - coisas, de resto, facilmente   redutíveis 
um estado de ornamento social -, era  fácil  manter o seu controle,
absorvendo os seus golpes. Mas pensemos no que ocorre sempre
que se tenta ir, na Filosofia ou em qualquer outra forma de expres
são e conhecimento, além  de um mero questionamento ornamen
tal das condições nacionais.
Vista a questão de dois  ângulos,  complementares e indissoci
veis,  podemos dizer que, por um lado, houve a retenção do espíri
to crítico  aos limites permitidos pela ordem vigente e, por outro,
os praticantes da Filosofia entre-nós, desde sempre vítimas  e ben
ficiários  da Razão Ornamental, preferiram manter-se a  dis
de questões mais delicadas, permitindo-se flutuar no limbo das  ques
tões "metafísicas".

46.  CORBISIER, Roland. Carência de Filosofia. Jornal  Crítica,  Rio de Janeiro, an


37:7,  21 a 27 abr., 1975.
 

 Razão Dependente e negação 101

Razão pela qual a Filosofia preservou  entre-nós  uma atitud


de desprezo face às questões efetivamente urgentes, delas se es
quecendo, considerando-as coisas pouco  sérias,  não dignas das lu
zes de nossos pensadores.  Sérias, só teses secas e desinteressa
montadas a partir de questões que foram vitais para homens que
viveram há, no mínimo,  sete séculos.  Sérios são estudos m
que cheiram a Europa. Assim, apesar dos  traços  de emancipaçã
de uma inteligência nacional que podemos encontrar no modernis
mo,  os praticantes da Filosofia continuaram, e continuam, como
no verso de Manuel Bandeira, "macaqueando a sintaxe  lusíada".

Podemos agora equacionar a questão de um pensamento bra


sileiro. A Filosofia representa, por si só, num desafio a nossas insta
lações, uma exigência de questionamento radical. Por outro lado,
por comodismo, ligação incestuosa e pela violência do projeto colo
nizador, sempre delegamos à Europa nos dizer o que  deveríamos
pensar. Deste irreconciliável choque - quanto a isso não há como
dar um jeito - resultou a impossibilidade de uma Filosofia brasileira.
Ou não?
A questão é irrespondível se não fizermos referências às pecu
liaridades de nossa formação  histórica.
Este país  foi iniciado por pessoas que para cá vieram sem
pretensão de permanecer. Tanto que até o  início  do século  XVU
"o termo brasileiro, como expressão e afirmação de uma nacionali
dade, era praticamente inexistente". 47  Não só por oposição à for
mação dos EUA mas até mesmo com relação ao que aconteceria
na América  Espanhola, o sonho de enriquecer depressa e voltar
em seguida fez com que a ação dos portugueses se caracterizasse
entre-nós  por um mercantilismo selvagem.
Os primeiros que se instalaram nestas terras mantiveram uma
ligação permanente com Portugal e, por seu intermédio,  com
resto da Europa. Desde o início  existiam as condições externas e

47.  MOOG, Vianna.  Bandeirantes  e  Pioneiros,  paralelo entre duas culturas. 8? ed.,  Rio
de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966, p. 116.
 

102  Razão Dependente e negação

internas da dependência: a força  da metrópole  e a mente do ba


deirante - atividade extrativa,  predatória  e desinteressada do lu
gar - caracterizam a posição  periférica  do Brasil, com toda sua
produção voltada para o centro europeu. Assim, os primeiros "bra
sileiros" - no sentido que esta palavra tinha até meados do  sécu
lo XVII: aquele que explora o pau-brasil ou aquele que fez fortu
na nestas terras - sempre se mantiveram voltados com muitas sau
dades (já se pensou nas explorações dessa palavra  entre-nós?)  pa
ra as terras d'além-mar.  De lá vinham as notícias  significativas,
o destino do mundo era decidido. Lá estavam o poder e o saber.
E para lá se voltaria algum dia.
O primeiro traço  a ser destacado na formação brasileira é
origem colonial, com seu  característico  alheamento. Não possuin
do uma geração interna, resultou de um transplante cultural Ja
mais sujeito da própria história,  a dependência lhe reservava ape
nas o papel de objeto de exploração, exigindo que assumisse o pa
pel de assimilador. "Numa produção transplantada, e montada
em grande escala, para atender exigências externas, surge natural
mente uma cultura também  transplantada."48
Condição que contaminaria séculos  de Brasil De país colon
zado, tornamo-nos formalmente livres - e sempre saudosos. O pó
lo de nossa dependência  econômico-cultural sofreu vários  desloca
mentos, mas sempre esteve nalguma parte fora de nossos limites.
De um modo geral este centro sempre foi a "Europa", não a  geo
gráfica, mas a espiritual,  no sentido da distinção feita por Hu
e analisada por Mario Casalla; neste sentido, os EUA  também  fa
zem parte da "Europa". 49  Lá se encontra o centro do mundo. É
onde se fazem descobertas, se escrevem romances  notáveis,  se re
novam os costumes, se é fino e inteligente. O brasileiro, assim, sem
pre desejou ser europeu. Vale dizer: não-brasileiro. O que explica
ria o incrível  sucesso de uma viagem ou de estudos realizados na

48. SODRÉ,  Nelson Werneck. Síntese  de  História  da Cultura Brasileira.  2? ed., Ri


Janeiro, Civilização Brasileira, 1972, p. 5.
49.  CASALLA, Mario. Husserl Europa y la justification   ontológica  dei imperialismo.
Revista de  Filosofia Latinoamericana,  Liberación  y Cultura,  Buenos Aires, l(l):16-50,
 jun., 1975.
 

Sazão Dependente e negação 103

Europa - para não falar do charme sempre  desejável  das manei


ras européias.
As origens de nosso mazombismo têm data remota. Como a
pretensão era a posse e a instalação  provisória  nestas terras - sen
do permanente o desejo de voltar - o  própio  padre Nóbrega  j
notara: "Não querem bem à terra, pois têm afeição a Portugal".
Com a sucessão de outros  pólos  de dependência, essa atitu
de se viu reforçada e acabou generalizando-se. Em gerações recen
tes encontramos o irresistível  desejo de ser norte-americano. Vale
aqui um registro quanto ao verdadeiro perfeccionismo que empre
gamos ao falar uma língua  estrangeira. É fácil  observarmos que
um norte-americano ou europeu costuma falar português com a
fluência de quem cospe cascalhos. E não dão a isso a menor im
portância.  São o que são e querem ser o que são. Daí se concluir
que falar mal uma língua  estrangeira é sinal de amadurecimento
cultural.
Executores e vítimas  desta situação de colonialismo cultural,
jamais nos conformamos e muito menos desejamos ser o que so
mos. Os norte-americanos, por exemplo, nasceram de uma preten
são assumida: um novo mundo. Gostemos deles ou não, foram ca
pazes de assumir-se culturalmente. Enquanto isso, o mazombo que
habita em cada um de nós continua suspirando pela culta vida d'a-
lém-mar.

Estamos aqui em pleno domínio  daquilo que  Octávio  Ian


chamou de "cultura da dependência", referindo-se mais especifica
mente ao caso da Sociologia, que  "também  reflete as peculiarida
des da dependência estrutural e histórica  que caracteriza as socie
dades da América  Latina".50
Podemos dizer que tanto na Sociologia quanto na Filosofia
a problemática  é externa, importada, e traz consigo as implicaçõe

50.  IANNI,  Octávio.  Sociologia da Sociologia Latino-americana.  Civilização  Brasileira,


Rio de Janeiro, 1971, p. 39.
 

104  Razão Dependente e negação

teóricas  que dela resultam. Daí a dificuldade de aplicação de tai


conhecimentos à realidade que nos circunda, o que impede que
venhamos a conhecer criticamente a  superfície ideológica  que en
cobre nossas alienações.
"Da mesma maneira que no passado, na atualidade també
a produção científica e filosófica dos países da América Latina co
tinua a revelar influências acentuadas da produção intelectual nor
te-americana, francesa, alemã, inglesa etc. (...) Na Sociologia, assim
como nas artes, nas outras ciências sociais e na Filosofia, ainda é
freqüente  que o prestígio  de alguns sociólogos   latino-american
esteja relacionado com a informação sobre a  última  novidade so
ciológica  norte-americana ou francesa." 51
O pensar latino-americano e particularmente o brasileiro se
encontram presos a importâncias  e urgências que não são nem im
portantes nem urgentes, senão para europeus e norte-americanos
- motivo pelo qual a Razão  entre-nós  se perdeu nas alegorias d
ornamentalidade. Ocorre então à Filosofia optar por uma reprodu
ção do pensar alheio - que é, em   última  análise,  a reproduçã
do pensar europeu, no âmbito  do qual seremos mdefinidament
dependentes - sem se dar conta do que nos é   próprio.  Ou, em
momentos de exaltação patrioteira, a querer se refugiar no mato,
como bugres. "A Filosofia no Brasil se acha, pois, muitas vezes en
tre duas tentações igualmente funestas: a de se entregar, abando
nar-se cegamente ao passado, ou a de confiar nos  filósofos estran
geiros. Enquanto nos contentarmos com estudar problemas do pas
sado ou do estrangeiro; enquanto, de fato, manifestarmos menos
prezo pelos verdadeiros problemas do Brasil de hoje - a Filosofia
merecerá ser tachada como artigo de  luxo, que o país poderia eve
tualmente dispensar."52
O que Michel Schooyans não acrescenta, e do que pouca gen
te quer dar-se conta, é que justamente esta Filosofia  alegórica inte
ressa à manutenção de nosso estado de dependência. Com efeito,

51 .  Idem, pp. 41 e 42

52.  SCHOOYANS, Michel. Op. ciL, p.  78.


 

 Razão Dependente e negação 105

urge libertar o Brasil de dois modos: externamente, das pressões


econômico-culturais,  e, internamente, da introjeção do papel d
dependente e "assimilador". É vigente, no entanto, a  crença  de
que o verdadeiro pensar encontra-se nesta incestuosa ligação com
os centros da Razão Européia,  na repetição do  dito, jamais no di
zer. O pensamento, que poderia e deveria ser essencialmente nega-
dor e  libertário  se atendesse a urgências  históricas  nossas, torna
se apenas mais um instrumento de  domínio.  E grave, posto qu
instalado dentro de nós.

Estamos aqui às voltas com a oposição entre o passado e o


futuro. Passado representado pelo que nos legou a cultura euro-
péia-ocidental,  sendo o futuro a possibilidade ainda existente de
que possamos superar as amarras que nos atam a esse legado.
"De tal maneira que a 'nova cosmologia' e a 'nova  história'  não
são nem mais nem menos que a superação - no sentido estrito
de Aufheben - de um passado históricoem direção a um 
redefínidor." 
53
Não se trata de julgar conveniente qualquer tipo de ilhamen-
to cultural. O que se isola, morre; o futuro não se  constrói a partir
de um presente arbitrariamente fixado, mas do questionamento
do passado. É tão grave esquecer-se no passado quanto esquecer
o passado. Nos dois casos desaparece a possibilidade de história.
O contato continuado com o universo euro-ocidental é condição
de nossa maturidade. Mas sob uma condição: o  exercício  de uma
impiedosa antropofagia. É urgente devorar a "estranja" - como
gostava de dizer Mário  de Andrade. Devorar sem culpa ou senti
mento de inferioridade.
Com relação ao passado europeu, precisamos ter consciência
de que estamos diante de uma estrutura de vida e pensamento,
de um horizonte de sentido que é preciso desvendar para compre

si  CASALLA, Mario. Razón  y Liberación,  notas para una filosofia latinoa


1? ed., Buenos Aires, Siglo XXI, Argentina. Ed. 1973, p. 71.
 

106  Razão Dependente e negação

endermos o que nos ocorreu. A possibilidade de redefinirmos um


futuro existe na medida em que nos for  possível estabelecer as con
tradições a que se viu conduzida esta Razão  Européia.  "O germ
do novo mora na caducidade efetiva do velho. O futuro não é
um simples desejo, nem um projeto  demagógico  a mais, não
um novo produto para o mercado, é o levantamento definitivo da
contradição à qual um modelo de vida-pensamento chegou." 54
A Razão Euro-Ocidental é a Razão  Metafísica  que se gerou
a partir da Grécia, vindo culminar no século XIX, sendo a "civiliz
ção euro-ocidental uma civilização   metafísica".55 Esta metafísica
que nos foi legada hoje sofre as mesmas impossibilidades da civili
zação à qual deu forma e da qual é o reflexo. A Razão Dualista
que emerge desde as origens na Filosofia grega encontrou sua tra
gédia:  a impossibilidade de conciliar uma consciência atemporal,
universal, com uma história que é fluidez no tempo. Nesta dualida
de,  a bipartição do homem residente nesta civilização tornou-se
inevitável,  e sua reconciliação,  impossível.  O século  XIX expres
a última  busca desesperada da reconciliação, quando a Razão Eu
ro-Ocidental atinge sua maior grandeza e miséria.  Em tal contex
to é  compreensível  o desvario final de Husserl: é preciso "salvar
a humanidade da crise". Não nos iludamos. Não a humanidade,
mas uma parcela da humanidade e seu modelo de vida e pensa
mento preocupava a Husserl. Defender a perpetuidade de seus
valores e a "missão civilizadora" da Europa face ao resto do mun
do foi a tarefa à qual Husserl se dedicou. Batalha previamente
perdida. A Europa não precisou ser  destruída  por ninguém,  che
gando por seus próprios  pés ao limite de exaustão do qual encon
tramos os sinais por toda parte: guerras, dominação, exploração,
marginalidade, violência, desespero. Expressão de uma civilização
que morre, "a metafísica - agrade ou não a Husserl - terminou".56
A nós cabe a conquista da consciência de que só seremos li
vres após  devorarmos o legado de nossos pais. A solução do com-

54.  Idem, p. 80.


55.  Idem, p. 73.
56.  Idem, p. 7R
 

 Razão Dependente e negação 107

plexo de Édipo, que Freud propôs e milhões se recusaram a enten


der, consiste nisto: a vida explode para fora - e morre quando se
volta para o passado. De uma condição de dependência e envolvi
mento com relação aos pais, urge chegar ao ponto de  introjetá-los.
Devorar nossos pais - o que ficou expresso no assassinato do pai
primordial - numa assimilação profunda e, então, propor nosso
caminho. Numa explosão para fora e para a liberdade. Inexplicá
vel sem nossos pais, mas irredutível  a eles.
No todo da cultura as coisas se passam assim, pois é o todo
histórico-social que determina o psicológico.  Com grande aborreci
mento noto o excesso de escrúpulos  de nossos praticantes de Filo
sofia, esmerando-se em permanecer fiéis aos textos, questões e sis
temas dos mestres europeus. A máxima  fidelidade a um mestre é
abandoná-lo. É jamais deixar que seu pensamento vire  fórmula va
zia. Não deixar que a originalidade de sua intuição morra na este
rilidade de um conceito. Fazer o que um mestre fez não é fazer
o que fez, mas o que faria se estivesse em nosso lugar.
É preciso devorar o mestre e referir a lição restante a uma
situação nossa, aquilo que está  diante de nós - sem o que nunca
haverá verdade para nós, não havendo verdade nossa. A Filosofia,
já foi visto, é negação do passado, é dizer o  contrário.  A tentativa
de enxergar um palmo diante do nariz. Enquanto a Razão Euro-
Ocidental, com seus fins, interesses, preocupações,  esforços,  conti
nuar sendo para nós a prisão intelectual que até aqui represen
tou,  aquelas pretensões radicais da Filosofia serão irrealizáveis  en-
tre-nós.  "Tudo aquilo que não cheira o bom perfume de nossa in
telectualidade faz mal a nosso nariz. Nós estamos tão cheios de
uma importância de sabidice e de teorismos  inúteis que não quere
mos nos aproximar daquilo que   está  diante de nosso nariz, nas
ruas,  nas conduções coletivas, nas gerais dos campos de futebol,
nos suburbanos, porque tudo isto fede e fere o nosso chamado
bom gosto, que eu não sei de onde veio: somos afinal uns mesti
ços luso-afro-tupiniquins com  incríveis  problemas de povo pobre,
mas pensamos em termos de uma civilização cristalizada e que po
de se dar ao luxo de pesquisar e divagar sobre problemas  esotéri
cos antes de resolver os problemas da existência mais imediata:
 

108  Razão Dependente e negação

alimentação, habitação, saúde,  educação etc. Somos uns deslum


brados daquilo que nem conhecemos:  América do Norte e Europa."57

O que impede o surgir de um pensar nosso é a recusa  implí


cita de enfrentarmos algo brasileiro. Se os modelos de ver que as
similamos são os de um outro, não nos vemos a não ser de modo
distorcido e sem chegarmos a nos assumir  teórica  e praticamente.
Nossos temas são recusados por não serem de odor tão refinado
quanto as questões européias.  Nosso modo específico  de aborda
o real, tornando-o importante, é esquecido. O mesmo se dá com
os problemas que  deveríamos  efetivamente problematizar, pois
não se enquadram entre aqueles que possamos pensar com "isen
ção",  "distanciamento", de modo "neutro". Quer dizer: não pode
riam ser objeto de uma Filosofia esterilizada sem  contaminá-la,
obrigando-a a assumir seu papel  histórico entre-nós.  Contamina
da, esta Filosofia viria a ser muito  incômoda,  já não permitindo a
infindável  conciliação. O que não é  recomendável,  quer do pont
de vista do vigente - e o vigente  entre-nós  é a dependência - ,
quer do ponto de vista das instalações que providenciamos para
nos proporcionar certezas.
Esta Filosofia esterilizada,  asséptica,  refinada, de bom gosto
e ornamental é na verdade "a voz do dono". Não se comprome
te nem suja as mãos. Dedica-se de preferência ao puro jogo for
mal que a ninguém  incomoda ou contamina.

As condições de possibilidade de um  juízo filosófico brasilei


ro se encontrariam na missão de demolir as condições subjetivas
e objetivas da dependência, a consciência  crítica  voltada contra a
introjeção do papel de "assim Dadores" que a condição de coloniza-

57.  FERREIRA FILHO, João Antônio.  "Um Apanhador de Dados". Depoimento a


 Nelson Blecher sobre o papel do repórter  no jornalismo. Jornal Ex-, São  Paulo, 8:9, dez., 1974.
 

 Razão Dependente e negação 109

dos nos reservou. O crivo severo com relação ao passado: reler


nossa história.  Criar uma nova consciência com relação a nós mes
mos e com relação à consciência que se veio gerando no Ociden
te e da qual somos uma última  expressão desfibrada e mambem
be.  Saber que somos outra realidade, o que de pronto exige outra
consciência, outros fins, interesses, preocupações. "Sendo a Filoso
fia uma atividade vital, inseparável  da existência e dos problema
da vida, é  necessário  (para Cruz Costa) filosofar sobre o Brasil
vestindo as idéias com os músculos, o sangue, os nervos da realid
de presenciada e apreendida: explicar sua gênese, analisar a sua
natureza, prever as suas diretrizes. Em suma, é preciso ligar a nos
sa atividade mental aos destinos de nossa história,  porquanto 'pa
ra que o pensamento não seja fantasia sem proveito - como dizia
el-rei D. Duarte - é mister que não perca contato com a história,
com os problemas reais da vida'." 58
É preciso inventar as condições de nosso futuro: nossas im
portâncias  e urgências. Mas fora de todo contexto dependente
deixando vir à tona as virtualidades efetivamente nossas para que
estas mesmas importâncias  e urgências não se vejam novament
vítimas  da Razão Ornamental. Para tanto, dar adeus ao mazom
bo que habita em nós. Resolvido nosso complexo de dependentes
- desveladas suas condições internas e externas - , superar a cul
pa e a inferioridade. Conceder a nós mesmos o direito de ser o
que somos, a nosso modo. Afinal, não estamos fazendo um pique
nique em Hampshire ou Saint-Germain. Aceitar que há uma dolo
rosa verdade no juízo  segundo o qual somos "los macaquitos".
pior: macaquitos que julgam tão sem classe comer banana.
A condição prévia a qualquer Filosofia brasileira que não quei
ra se ver reduzida, como tem acontecido até hoje, à mera assimila
ção ornamental e dependente -   úteis  tão só a britharecos verbai
diante de um povo adormecido - é fazer desabar as instalações
sérias nas quais vivemos. Negar postiças importâncias  e urg
providenciadas estranhamente e que não nos expressam, encobrin
do condições que poderiam liberar em nós um pensamento de fa-

58.  VITA, Luís  Washington. Op. cit, p. 81.


 

110  Razão Dependente e negação

to criador. Jamais esquecer-se nalgum sistema  cômodo  de pensar


em qualquer arquivo de primeiros socorros existenciais. Correr o
risco de não saber coisa alguma, longe de qualquer certeza  prévia.
Pois o pensamento não é gerado pela certeza, mas pela dúvida.
Urge ser o que somos - descobrir-se no Brasil, na América  Lati
na. Sem um "outro" ao qual possamos nos agarrar. Só a solidão
gera pensamento - só na  tragédia  nasce Filosofia. Mas que seja
um pensamento comprometido, a   sério, fora de toda Razão Or
mental. Essencialmente negador.
Antes disso, qualquer Filosofia será, entre-nós, pura ingenuidad 
Aprendamos duas coisas. Que nesta altura dos acontecimen
tos um soco na mesa, violento e sonoro, é mais importante do que
sabermos da validade dos juízos sintéticos  a priori  E que, do pon
to de vista de um pensar brasileiro, Noel Rosa tem mais a nos en
sinar do que o senhor Immanuel Kant, uma vez que a Filosofia,
como o samba, não se aprende no  colégio.
 

111

Sugestões de
atividades
didáticas

Um 
título Cap.  1
1. Fazer uma sessão de apresentação/repre
sentação das melhores piadas que o grupo
conhece. Em seguida analisar as relações
entre os personagens; apontar as piadas crí
ticas e as alienantes.
2.  Pesquisar sobre o Movimento Modernis
ta,  Oswald de Andrade e  Mário  de Andra
de.  Apresentar os resultados.
3.  Comentar a frase do texto: "Gaba seu
inigualável jeito piadístico,  mas na hora da
coisas 'culturais' mergulha num escafandro
greco-romano".
4.  Apontar formas de conformismo nos vá
rios campos da vida brasileira.
5. Elencar algumas obras dos autores cita
dos na página  12.
6. Montar  painéis  com reportagens e arti
gos sobre o caráter brasileiro.
7. Analisar as ilustrações do   capítulo  (o
mesmo vale para os capítulos  seguintes).
 

112 Sugestões de atividades didátic


sério: a seriedadeCap.  2
1.  Apontar pessoas ou atividades  "sérias"
e "a sério".
2.  Entrevistar um artista, um filósofo  sobre
sua atividade e sobre o poder demolidor
do pensamento crítico.
3.  O que é erotizar o agir?
4. Analisar o conto "A hora e a vez de Au
gusto Matraga", de Guimarães Rosa, sobre
a libertação da personalidade de uma pessoa.
5. Criar uma comédia,  "a sério".  Sugestã
de  título: "Viagem de um barnabé, que sai
do sério  e rodou a baiana, a  sério".
6. Comentar a frase de Nelson Rodrigues
sobre o escanteio.
7. Ao dizer que "o Brasil não é um  país  sé
rio", o general De Gaulle, sem querer, fez
um elogio ou uma crítica?
8. Comentar: " afinal, o peixe é que menos
sabe da água".

Cap.  3

1.  Responda, a partir do texto: " Onde es


tou? Quem sou?"
2. Faça uma coleção de sambas-enredo, or
ganize uma audição e aponte as imagens
que eles apresentam sobre o Brasil Ressal
tar a visão oficial e a visão alternativa.
3.  Comentar a frase do poeta brasileiro:
"Cansei de ser eterno, agora quero ser mo
derno".
4.  Procurar a relação entre a arte de um
conjunto de rock e a sua época.  O que é
sucesso e o que é impasse em arte?
 

Sugestões de atividades didáticas Ili

5. Dar exemplos de situações (equipamen


tos,  métodos, idéias, modas) estrangeiras
mal adaptadas,  entre-nós  (uma boa font
são revistas ilustradas antigas).
6. Citar casos de soluções originais para al
guns problemas brasileiros.

Filosofia enegação Cap. 4


1. Pesquisar artigos de jornal e revista sobre
a Academia Brasileira de Letras e apontar
as relações dessa instituição com o pensa
mento oficial.
2.  Localizar em Machado de Assis o perso
nagem José  Dias. Escrever um texto sobr
a figura dos agregados na família patriarcal
brasileira.
3.  Comentar: "O verdadeiro intelectual e o
verdadeiro artista são sempre negadores".
4. O que é ser  clássico? O que é ser moder
no? Qual a relação entre as duas caracterís
ticas?

Omitoda impar Cap.  5


cialidade: o ecletismo
1.  O que é ecletismo? Vantagens e desvan
tagens.
2.  O brasileiro é um ser cordial?
3. Sinais da dependência cultural do brasileiro.
4 . 0 Brasil é um país velho, jovem ou infantil
5. Comentar: "  O espírito da dúvida é o i
cio e a essência do pensamento". Vanta
gens e desvantagens da dúvida  como atitu
de mentaL
 

114 Sugestões de atividades didáti

6. Fazer um cartaz (com colagens, dese


nhos) criticando a frase: "Mais uma vez, a
Europa se curva perante o Brasil".

Omito da 
concórdia :  6
Cap.
o jeito
1. Fazer uma pesquisa sobre as revoltas san
grentas na História  brasileira, passada e re
cente.
2. Entrevistar um burocrata assumido, sobre
o que ele considera a  importância  da buro
cracia.
3.  Entrevistar uma vítima  da burocracia.
4.  A partir dos depoimentos, montar uma
pequena peça  teatral.
5. Apontar no cotidiano manifestações de
 jeitinho e de  intolerância.  Ver como ela
aparecem na musica popular.

Originalidadeejeito Cap. 7
1. Fazer o levantamento das modas intelec
tuais que assolam o Brasil e dos resíduo
que deixam.
2. Pesquisar sobre as idéias de Sylvio Rome
ro, Sérgio  Buarque de Holanda.
3.  Com o que os brasileiros se importam,
profundamente?
 

Sugestões  de atividades didáticas 113

A Filosofia 
entre-nós 8
Cap.
1. Diferença entre ser criativo e assimilativo.
2 Quais as principais correntes  filosóficas
entre-nós?
3.  Entrevistar um  filósofo  brasileiro sobre
suas influências e sua originalidade.
4.  O brasileiro tem "cabeça filosófica"?
5. Comentar a relação pensamento-lingua-
gem, levantada por Mário  de Andrade na
p.  65. Entrevistar um professor de Portu
guês sobre os preconceitos a respeito da
nossa língua.

A Razão Ornamental Cap.  9


1.  Aponte algumas pessoas "brilhantes"  e
outras "esforçadas",  que você conheça.
2. Analise nas campanhas eleitorais o paren
tesco entre "brilhantismo" e demagogia.
3.  Comparar o bacharel bem-falante com
o sofista da Grécia Clássica.
4.  Estudar os livros e artigos de  Millôr Fer
nandes. Responda se ele é um  filósofo, um
humorista, ou ambos. Demonstrar sua con
clusão com trechos das obras.

Cap.  10
1.  Pesquisar sobre Comte e o positivismo.
2.  Comentar a opinião de Comte sobre o
voto e os direitos humanos.
3.  Comparar o positivismo e o ecletismo.
 

116
Sugestões de atividades didátic

A Razão Afirmativa 4. Fazer um levantamento das  idéias de


Benjamim Constant
5. Demonstrar a presença  da afírmativida-
de e a dúvida na educação, religião, nas re
lações cotidianas, no sistema de trabalho,
política  e cultura.
6. Comentar: "A Filosofia não é salvação,
é perdição" e "Pensar dói".

RazãoDependente Cap.  11
enegação
1. Além da Semana de 22, que outros movi
mentos culturais provocaram rompimento
no Brasil?
2. Comentar: " O escravo traz o senhor den
tro de si".
3.  O que é "jogar colonialmente certo"?
4.  Apontar a presença  do lucro imediato e
o sucesso fácil e rápido na economia, políti
ca e cultura no Brasil
5. "O brasileiro sempre desejou ser europeu
(ou norte-americano)" - levantar na músi
ca ou na poesia comentários a essa situação.
6. Qual a tarefa atual da filosofia no Brasil?
7. Produzir um texto (redação, peça, músi
ca, cartaz) que sintetize as principais  idéias
que você teve a partir das discussões deste
livro.
 

117

O autor
Igual a todo mundo, nasci Mas, em 8/10/1944, na cidade de Blume
nau,  Maternidade Santa Isabel, num domingo às 15 horas, só eu e um
amigo de infância, chamado Cacaes, com quem nunca mais cruzei  na vi
da. Um ponto a menos para os  horóscopos.  Aos treze anos, por culp
de Mark Twain, disparei a ler livros, revistas, jornais, folhetos, cartazes,
bulas de remédios, receitas de bolo, regulamentos de  hotéis (desses q
ficam pendurados atrás das portas). Desde então vivo com uma porçã
de livros por perto e quase me transformo em personagem de Borges.
Aos 16 anos, resolvi que ia ser escritor e gastei o primeiro  salário de au
xiliar de desenhista da prefeitura na compra de uma  máquina  de escre
ver usada. Nela e em mais três outras, até chegar ao micro que uso ho
 je, escrevi contos, romances,  artigos, reportagens, crônicas, o que resulto
numa imensa montanha de papel e em nove livros publicados, além  d
uns três ou quatro inéditos.  O livro  C rítica da Razão Tupiniquim
crito entre 1974 e 1977. Nele eu investi contra a hipocrisia intelectual,
contra a falsa cultura, contra a filosofia desfibrada e mole qüe se prati
cada) no Brasil. Mas também investi contra mim mesmo, quer dizer, co
tra aquilo que o ensino, a escola e a universidade haviam feito de mim.
Foi uma libertação emocional e intelectual pela qual  agradeço  até hoje
A minha esperança é que o mesmo aconteça com os leitores.
Roberto

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A Filor er vista e apresentada como


algo c*  esquisitices de gregos e ale
mães  .o uma coleção de teorias que
se Tf   nas que, de tão profundos, são
in'  comum dos mortais. A preocu-
P  mérito, desta CRÍTICA DA RAZÃO
,razer estas questões para o solo
3 no dia-a-dia, fazendo da indaga-
m questionamento que parte do co-
.  1 0 que nos é próximo, das formas que
.•a particular usa para nos construir
, numanos. Darcy Ribeiro disse a propó-
ablicação deste livro: "O Brasil volta, final-
 j ,  a filosofar." Preocupado em reconstruir o
modo como nós brasileiros nos apropriamos da tra
dição européia,  Roberto Gomes tem da Filosofia
uma visão muito particular. Ela é uma crítica dos
mecanismos por meio dos quais nos tornamos dig
nos ou indignos da Razão.

Livros desta coleção:


PLATÃO - OUSAR A UTOPIA Jorge Cláudio Ribeiro
ARISTÓTELES - O EQUILÍBRIO DO  SER Otaviano Pereira
DESCARTES - A PAIXÃO PELA RAZÃO Mario Sérgio Cortella
ROUSSEAU  - O BOM SELVAGEM Luiz R. Salinas Fortes
MARX  - TRANSFORMAR   O MUNDO Moacir Gadotti
SARTRE - É PR0D3ID0 PROIBIR Fernando José  de Almeida
GANDHI - POLÍTICA DOS GESTOS POÉTICOS Rubem Alves
CRÍTICA DA RAZÃO TUPINIQUTM Roberto Gomes

FTD

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