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A Historia da Alimentacdo: balizas historiogrficas Ulpiano LBezerra de Meneses Departamento de Hisria - FFLCH/USP Henrique Carneiro. Doutor em Historia Socal / USP Introdugao_ Este texto nGo pretende realizar um levantomento panorémico da Hisria do olimenioggo, multe menos fomecer um reperloio biblogidico. A indefinigdo e plasticidade e a ubiqiidade do tema, sua extensao universal, a multipicidade ‘de abordagens, a amplitude [na quantidade © nos graus de qualidade) dos trabalhos publicados tonam inviével uma bibliografia gue so pretenda abrangente, ainda que nao exaustiva. E, mesmo, talvez, de utilidade problematic ‘Assim, © objetivo € antes caracterizar um campo de estudos que, nesta segunda metade do século, vem assumindo certa peisonalidade propria, n&o 86 nos dominios da Histétia [nosso foco principal de interesse|, mas também nas demais ciéncias sociais. Longe de nds pretender, com isso, dar status epislemolégico & Histéria da Alimentagdo, NGo se trata de aumentar o elenco das miltiplas ‘historias’ em que a disciplina se vem fragmentando, perdendo de vista © principio de que, se a Histéria ndo tiver camo objeto essencial de atengao a sociedade como tal — a sociedade como um todo —, forgosamente comprometeré sua capacidade de produzir conhecimento (ao invés de simples informagao} e entendimento dos fendmenos e seus atributos. No entanio, & forgoso reconhecer que a prética da Historia organiza suas necessidades e conveniéncias em torno de certos referenciais, plataformas, problemas, recursos, articulagées com outras disciplinas, hébitos ‘Anais do Museu Paulista. Sao Paulo. NSér v5, p.9-91- jan /dez. 1997 10 —e até modas —, que constituem efetivamente algo préximo da nogéo de ‘campo proposta por Bourdieu, E a formagéo desse campo e sua consolidagdo, assim como tragos hoje predominantes, que se procuraré tragar. Por certo ser conveniente, antes disso, inserir a Histéria propriamente dita num quadro mais amplo e diversificado de disciplinas que se interessaram pelo problema da alimeniagdo. (Ainda mais que, dentre as disciplinas congéneres, a Histéria est longe de se distinguir pela atengéo dada ao temal. £, depois, caracterizar a bibliogratia histérica, salientando, de um lado, alguns marcos ¢, de outro, selecionando o que se acteditoy referéncia exempllicativa de tendéncias, padrées, tipologia de fendmenos @ assim por diante. Em conseqiiéncia, a estrutura que nos pareceu mais eficaz é a seguinte; De inicio, um panorama dos estudos da alimentacao, salientando, além dos principais enfoquas, a contribuicdo especfica das ciéncias sociais. A seguir, vem uma fentativa de acomponhar a formagéo do que hoje se pode chamar propriamente de Histéria da Alimentagao e sua insiitucionalizago. Seguese o quodro de caracterizagéo geral da bibliografia histérica. Algumas questées relovantes mareceram tratamento mais espectico: assim, foramlhes reservades, na seqiiéncia, espaco proprio: a fome, © universo religioso, a mundializagéo da alimentagao € 0 gosto ¢ a gastronomia, Finalmente, tentou-se também delinear um rapido perfil da problemdtica da climentagao na historiografia brasileira Uma glima ressalva introdutéria deve ser apresentada. A bibliografia aqui considerada é essencialmente européia e norle-americana. Sao esporddicas ‘as mengées 4 literatura sukamericana (salvo Brasill, africana e asidtica, E mesmo @ literatura européia se concentra basicamente na Franca, btélic, Inglaterra, Alemanha e algume coisa de seus vizinhos. Tais lacunas se devem, seja 4 origem predominante dos estudos e ao interesse maior que despertou a pesquisa nessas Greas, seja a seu viés eutopocéntrico, seja, enfim, ds grandes dificuldades, com que nos defrontamos, de acesso 4 bibliografia. Estudos da Alimentagéo Desde o Anigtidade pode-se dizer que o climeloeso vem sendo objeto de atencao ¢ conhecimento. Do um lado, a necessidade inescapavel de ingerir alimentos para mantor a vida 2, de outro, a enorme variedade de ‘escolha neste processo, permitiram sem divida perceber um conjunio de fendmenos prenhes de implicagées. Mas convém desde jé inkoduzir uma questéo determinante: ao se falar de alimentagdo, de que se esta falando, qual, precisamente, © objeto desse interesse, desses registros, crénicas & estudos? A julgar pela situagéo hodiema, ha varios focos que se cruzam ou superpdem @, ds vezes, seguem em paralelo. Falarse em alimentagdo & privilegiar © alimento (sua produgao, aquisiao, circulagéo, consumo, caréncia, o mercado, representagées, fungées sociais e culturais e assim por diante)? Ou a nutrigéo? Nao existe, hoje, uma Antropologia nutricional, assim como uma Sociologia do alimento? Ou o objeto seriam a dieta e os modelos © sistemas alimentares? Ou os habitos @ mesa, as praticas alimentares © a culindria {a ‘cozinha'|, 08 espagos € equipamenlos, contexlos e agentes, em portcular os préprios'comedores © beDedores? Eo historia do goslo 6 da gastronomia, seriam subcategorias da alimentacéio? E a educagéo alimentar, seguran¢a alimentar e as politicas alimentares? Hé, podese ver, grande oscilacéo de sentido e de cenlros de gravitagdo. Estas fronteiras estéo longe de poderem ser claramente demarcadas — e ndo é evidente que devam sélo. No entanto, maior esclarecimento pode derivar de um exame dos enfoques predominantes na andlise desses variados abjetos. Sao eles, basicamente, cinco: 0 enfogue biolégico, o econdmico, 0 social , 0 culural ¢ 0 filosdfico. Segundo tais enfoques, muda a propria natureza do objeto de atencdo: 0 alimento pode ser enfocado enquanto plantas econdmicas ov onimais domésticos (ov, hoje, matétiasprimas de diversa proveniéncia ou sintefizadas), como mercadorias ov nutrientes, como vetores de ‘agG0 social ¢ politica, como elementos simbélicos ou ideolagicos e suportes de praticas culturais © enfoque biolégico O enfoque bioldgico de todos é 0 que conseguiu monfar o quadro mais equilibrado de problemas ¢ métodos, assim como um apreciavel acervo de informago e conhecimento, associados basicamente & nutticao. Na Antigiidade, hé uma farta literatura médica, principalmente entre gregos e romanos: Hipécrates, Galeno, Oribase, Antimio, Dioscérides, Apuleio, Celso etc. procuram desvendar os ‘mistérios’ do metabolismo humano e, particularmente, 0 fenémeno da digestéo. Um tratado famoso do século XVIll, 0 Traité des aliments de Louis Léméry (1702), ainda se enquadie neste filo, Toda © Historia da Medicina, aliés, € uma fonte de informagées para a histéria da alimentagGo. As teoriais nutricionais, a idéia da digestéo como cozimento, as prescrigdes dietéticas, so prodigos reveladores dos hdbitos e concepcées de uma sociedade (cf. Mazzini 1996}. Aliés, o Enomedicina, hoje em dia, prolonga tal tradi¢ao, buscando coletar e explicar informagdo [até mesmo. istoricamente) sobre crengas associadas a alimentos ou formas pelas quais os grupos e sociedades os classificam, no tocanle aos aspectos da nuligdo e saide (Wilson 1979}. Além disso, estalisticas, censos ¢ oultos registios oficiais no campo climentar, nos séculos XVill e XIX, na Europa, ficavam normalmente a cargo de médicos. Caso exemplar € o do Reino de Népoles: a pesquisa esatistica ‘ordenada em 1811 tinha, entre suas cinco segées, a Ill, relativa & “sussisienza e conservazione della popolazione”, cujos dados, ‘muito ricos e precisos, foram colelados © processados exclusivamente por médicos [De Benedettis 1995} A Bolénica ¢ a Zoologia trouxeram aporte fundamental pora a constituicGo de um acervo de conhecimentos basicos referentes a alimentos. No Renascimento, os pioneiros estudos gregos e latinos sobre plants, como a Matéria médica de Dioscérides, a Histéria Natural de Plinio, 0 Velho, ov a Histéria dos plantas de Teofrasto, que tratavam da flora de um ponto de vista utilitério, econémico, tecnolégico e medicinal, foram traduzidos e pela primeira vez publicados no Ocidente. Os herboristas’ (que, na otigem, eram médicos}, W 12 fiveram um papel desbravador no fomecimento de dados histéricos das plontos alimenticias. NGo nos esquegamos que muitos hetbatios do século XVI so chamavam justamente ‘Historia das plantas’ (De Historia Stispium, de Leonhard Fuchs, 1542) ou "Historia dos frutos” (Frugum Historia, de Rembert Dodoens, 1552], por exemplo. As ciéncias modernas relacionadas & nutri¢éo desenvolveramse a partir do século XIX, com um carder interdisciplinar, reunindo os avangos obtidos em diferentes ramos das ciéncios natrais juntomente com os da Medicina {Agronomia, tecnologia alimentar, andlise quimica de alimentos, Fisiologia, Bioquimica, Toxicologia, Microbiologia, Patologia, Epidemiologia e Genética, entre outras}. Por volia de 1850 é que comega a desenvolverse tol género de estudos, principalmente na Franga, na Alemanha e na Holanda, acompanhado de sistemas de coleta de dados, em ambito nacional. Os objetivos da pesquisa biolégica, com énfase na nutri¢éo, foram assim definidos por Teuteberg (1992: 2} “Notiitional research is supposed 10 examine the processes of digestion within the human body and to gather data for an optimal diet which can be modified according fe age, gender and the amour of work humans do. OF special imporonce i he search for 0 sound basis fora dietary treainent fr diseases ofthe metabolic, digestive, ‘and excretive roceses, ‘and progess lowards optimal food conditions, determined by clinical research” Compre notar que, por muito tempo, nesta Grea, os pesquisadores raramente se interessaram por questées fora do ambito biolgico, constituindo um dominio de ala competéncia, mas excessivamente circunscrito, como na caracterizacéo de Teuteberg c esta dimensdo bioquimica da climentacao, vista apenas como um proceso orgénico e metabélico. Mas jé no século XIK, estudos de Medicina procuravam determinar implicagdes histéricas. E 0 caso, por exemplo de Watt, Freeman e Bynum (1881) que, ao estudarem a fome crénica dos marinheiros, trataram de estabelecer a influncia da nutricao na histéria maritima e naval, Doutta parte, a necessidade que outras disciplinas sentiram de um apoio biolégico ha algum tempo comecou a estabelocer pontes, ainda que ‘assimétricas. Em 1983, por exemplo, Scrimshaw publicava um artigo destinado @ realgor a importéncia do conhecimenio nuticional para os historiadores. Mais tarde apareceram até mesmo instrumentos de difusdo, como a obra de Harold McGee (1988), que procura transmitir aos ndo especialistas referancias basicas de Botanica, Zecloge, Fisiologia, Bioquimica, apontando as propriedades de matériaspprimas © suas combinacées (late, carnes, ovos, dlcool, grdos, legumes, etc.|, 05 efeitos de métodos e equipamentos de cozinha e assim por diante Desse contacto com as ciéncias sociais crioramse areas de investigago e afuagao interdisciplinar, como, nos Estados Unidos e na Europa, 2 j@ mencionada Anttopologia Nutricional (Freedman 1977, Wilson 1979, Fieldhouse 1986). Fala-se também de uma Psicotisiologia e de uma Biopsiquiatria da alimentagao, assim como de Nulrigéo Sociale, ainda, de Educagéo Nutricional (Cf, Messer 1984] Hoje ndo se contesta que os grandes problemas de base biolégica no podem ser encaminhados apenas no ambito restito da nuttigéo. Basta aponiar ‘alguns temas criticos — fome e patologias alimentares, seguranga alimentar, jejuns edietas, demagrafia, adogéo/rejeigdo de alimentos, gosto — para néo falar de tematicas mais amplas como a evolugdo biolégica ou os processos nutricionais ‘adaptativos: sGo lodos temas imbricados em outras dimensdes. ‘A fome, como se veré mais adiante, assim como a desnutrigao ov a subnutrigGo, nGo podem mais ser entendidas apenas em seu nivel orgdnico, fisiolégico. Uma obra importante como a de Amartya Sen [1988], por exemplo, propés um modelo explicitamente sécio-cultural para definir a fome e nele & que incorpora o biolégico, ‘A compreensao de patologias como a bulimia e a anorexia nervosa exigem que elas sejam tratadas como ‘welfare diseases’, tipicas de uma sociedade de consumo — para o que as condigées favordveis comegaram a se condensar j& no século_passado. As dimensdes ndo biolégicas sGo aqui determinantes. Caplan (1994: 18), por exemplo, preccupada com as relacdes de poder, nao hesita em caraclerizar a anorexia "as an extreme form of self control, but also involves the exercise of control over others’ Problema associado é 0 do jejum, que convém examinar, como tem sido frequente (cf. Bynum 1987}, conjuntamente com a festa. O jejum tanto pode ser um ato de subordinagao, quando de resisténcia: em ambos os casas (e ndo 86 nas greves de fomel, sua matriz é politica, Jé as dietas [restri¢ées alimentares ou, ao contrério, reforco alimentar} tém sempre implicagdes sociais, politicos, culurais. Apenas para ficar num exomplo evidente, lembrese como o ideal corporal feminino depende do processo de socializagéo da mulher (Caplan 1994: 14-5; Orbach 1978, Charles & Ker 1986). Movimentos populares, como os\ inimeros health movements dos americanos e também de europeus, infegram conhecimentos médicobiolagicos, além de premissas filosdficas e, ds vezes, religiosas, modelos culturais, sem contar um semnimero de pressées séciceconémicas (como se patenteia no caso exemplar do vegetarianismo). Nessas circunstancios, uma autonomia da dimenséo biolgica seria em exlemo deformante. Felizmente, a bibliografia de base procurou ullrapassar tais limitagées (cf. Schwartz 1986, Bauer 1989, Spencer 1995). Merece mengdo & parte a obra de Fiddes (1991} sobre a rejeigdo e consumo da carne — trotada como um ‘simbolo natural” Estudos recenies de evolugGo biolégica insisiem diretamente na dimenso social, ao tratarem da alimentagGo, como por exemplo no tocante 4 nutrigdo dos coletorescagadores. Um caso que merece referéncia sdo os esforgos para explicar a parilha da came de animais de grande porle e que tém mobilizado argumentos variados, mas sempre de conotacdo social: selegao pelo parentesco, folerancia ao furto, reciprocidade, redugdo dos riscos da imprevisibilidade dos recursos, etc. Por sua vez, lembrese como, entre nés, um conceito de conteido bioldgico vinculado 6 produgao de alimento — 0 conceito de domesticagao — ndo dispensa a inclusto de seu significado social. Assim é que Pierre Ducos transfere 0 foco de definigéo para o papel dos animais como ‘propriedade viva’ a domesticasdo pressupde uma forma especifica de integragdo dos animois vivos 1 Kent has eco sage that meat shared primal for w- ‘mic ones, and Peterson Tas ange that foragers share for wcll reason ‘There 6 probably not ‘one explanation, ¢..) 1 peopave thar men sbare eat becaue enables them o eed ther ther culdren — those nt oa 10 thet waves — and thie directly ines ses thei repredcare suecces” (Thiol 1994: 13 14 @ organizagéo socioecondmica do grupo, que implica a possibilidade de posse, heranga, toca, comércio, etc, [Ducos apud CluttorBrock 1989; ver também Vialles 1994], Na mesma linha, estudos de domesticagdo de plantas ndo apenas enformam 0 conceilo de ‘sociedade agricola’, como, ainda, e melhor, o de ‘sistemas especilicos de exploragdo agricola’, entendidos como sistemas s6cio técnicos [leaf 1996: 32}. Em nossos dias se trata correntemente a adogéio ou rejeicto de alimentos como tendo mais a ver com sua consideragao social do que com suas propriedades nutritivas. Burguiére (1986: 10} lembra as dificuldades com que cettos alimentos foram introduzidos na Europa, embora posteriormente desempenhassem papel relevante, por seu valor nutritive, principalmente em tempo de fome. Assim, o milho, cuja origem indigena suscitou “une réaction de repugnance”, ou a balata, cujo “anoblissement social” se deveu a acdo promocional de Parmentier. De igual modo, a castanha, alimento de bom feor nufirtivo e muito importante na Europa do sudoeste até 0 séc.XIK, além de pouco custosa na produgdo e na demanda de méodeobra, entra em dectinio pela imagem de pobreza e de atraso com a qual passa a ser associada: De mesmo teor, 0 gosto ndo pode ser tratado como exclusivo problema biolagico — apesar da importdncia fundamental que o poladar exerce, principalmente como sentinela do organismo; 0 sabor amargo, por exemplo, 6 indicio de olcaléides, substancia téxica que cumpre evitar; (6 © sabor doce indica a presenca de glucidios, sinal de alimento bom (Nicolaides 19936: 39, Moskowitz 1971}. Por isso mesmo, os especialistas sentiram necessidade de estabelecer distingdes, como foi o caso de Rozin e Fallon {apud Garine 1994 232), que propdem separar distate |"corresponding to sensory rejection") de disgust [‘comesponding to refusal on cognitive grounds”) Devese ainda mencionar um campo importante, intimamente vinculado a uma base biolégica, mas que fem tido, no tema da alimentagdo, presenga menor do que a desejdvel: tratase da demogratia. Por certo, existem muitas obras relevantes que poderiam ser lembradas, como The rise of modern population, de Thomas McKeown (1976], que relaciona crescimentos populacionais com melhorias nutricionais, ov Popolazione e alimentazione, de MiviBacci {1987}, que percorre a histéria demografica européia; ou entéo, trabalhos que procuram acentuar a imporiéncia da Demografia Historica nos estudos de climentagéo, como Biraben {1976}. Também, como se vera mais adiante, nas décadas de 60 ¢ 70 — momento de institucionalizagao da Histéria da Alimentaéo —, principalmente os historiadores franceses referiramse com freqiiéncia a questées de conleido demografico. Mas ainda ha muito o que fazer, neste dominio. Por fim, para inferir a estreiteza da perspectiva biolégica, se desonvolvida auionomamente, alentese para o {aio de que os enfoques nutricionais ndo sGo suficientes para explicar a alimentagdo na sociedade industrial. Ne verdade, tratase de casos amplissimos de inadaptacéo nutricional, como [6 nolaram os especialistas, pois os padres olimentares contemporaneos 860, antes, os de uma sociedade tipicamente agricola, otientada para intenso atividade corporal, muito diversa da sedentariedade que caracteriza nosso modo. de vida — além de fovorecerem inimeras tendéncias psico-patolégicas (Teuteberg 1992:6, Garine 1994: 238} O enloque econdmico ‘Ao contrétio do enfoque examinado aié agora, é no campo da Histéria que se concentom os estudos de alimentos em que predomina o interesse econdmico. Com efgito, até mais que na Antropologia, foi na Historia [ou com prespectiva histérica} ¢, secundariamente, no afia, que se produziram abundantes trabalhos sobre @ obtengao e utilizagéo de um dado alimento, numa 6poca ov contexto dados, explorandose, ainda, seu processamento, consumo ingesiéo, oramazenamenio, transporte, comercializagéo ¢ distribuigdo. Na verdade, produgdo, preparo e ulilizagdo dos alimentos, como observa Valeri 11977: 347) 6 “il pid antico e fondamentale proceso economico" Nos iltimos vinte, trinta anos, como jé se disse em particular quanto 4 Franca [Barlésius 1992}, foi a descoberta, pelos historiadores, da cultura material que fomentou os esiudos de alimentagao. Claro esta que a nogdo de ‘civilisation matérielle’ utlizada pela historiogratia dos Annales e, a seguir, pela Nouvelle Histoire, ndo coincide com as propostas que hoje caracterizam este campo (comparar, por exemplo, uma viséo tao esteita e tacanha como a de Pesez 1988, com o quadro amplo, embora por vezes incompleto, tragado por Poult 1997]. Assim, cumpre reconhecer 0 débito implicito com a categroia marxista de infaestrutura, o que em grande parte jusiifica a forte marca econémica de uma Hist6ria que vai preocuparse com a produséo, sobretudo a produgéo agricola, a ponto de se ter podido folar de uma ‘Agrohistéria, acoplada a uma historia do abastecimento. Abastecimento, safras, precos, mercados ¢ suas flutuagdes diversas sdo alguns itens que mreceram destaque Em conseqiiéncia, afirmase a necessidade de consultar ofemenios e dodos censitirios © investigar as técnicas de aquisigdo, consumo, circulagéo, tansporte, as carestias e fomes. Contextos, em especial os da urbanizagdo e industiializagdo, também mereceram aten¢éo particular, (Bumett 1989, Cépade & lagelle 1954, Teuteberg & Wiegemann 1972| Por certo que 4 distancia é mais facil identificar as limitagdes dessa abordagem, que eventualmente ocorteram, quando se ignoraram ov minimizaram cautelas hoje consideradas fundamentais: a necessidade de trabalhar com sistemas © complexos ineiros, ou de considerar variéveis como 0 cotidiano e as fesias, a alimentagdo humana e a animal, a producdo doméstica e suas formas de distibuicSo (via parentela, vizinhanga, etc.). Se as fonles para estes fendmenos “que fogem da contabilidade formal”, como se lem apontado, séo mais escassas para a Historia, no hé como negar o desinteresse das pesquisas sociolégicas, antropolégicas e geogréficas, que dispunham de situacéio mais favoravel, a esse respeilo, Releva nolar que na Antropologia, talvez mais que na Histério, foi possivel concsitvar ‘com bastante rigor oguns fenomenos basicos de’ coréir econémico, inserindoos no context séciocultural adequado. E o caso dos 15 16 sistemas agricolas, em que estudo da terminolagia revelou graves distorsdes principalmente nas taxonomias de base geralmente einocéntrica “while ‘gardening’ and ‘farming’, ‘hontcultwa’ and agriculture’ are appropriate to discussing the development of hese actives in Southwas! Asia ond Europe, even in that “home fertitory’ these terms can imply a greater complexity in food production systems thot may have existed. The agricubinal threshold may lie within the Neolihic rater thon ‘mark its commencement. For ihe rest of the world, we should jusly the applicability of western terms like ‘agricutwe’ and ‘hortculre" before employing them to describe recent o” ethnographic practices, and consider adopting new or neuial terms when discussing origins® {Helen leach 1997: 146}. Um exemplo de inadequagdo ¢ dado pele propria autora quando, citando Hartis ¢ os estudos de Malinowski sobre horticutotes da Oceania, aponta como Enganosa a expresséo produtores’, que deveria ser subsiituida pela de ‘porceitos’, em vitude do lipo de relagde de ‘amitié respectueuse’ mantida entre o homem @ 0 meio ambiente Nesse quadro poderseie supor que « atengéo dada é cultura material teria produzido bons estudos sobre espacos, utensilios ov equipamentos envolvides na alimentacéo. Islo, porém, ndo ocorreu, nem de forma sislematica, nem cbrangente. Ha,” sim, exploragdes tecnolégicas, como as de Braudel (1970), ou inventérids monogidficos, muitos vezes puramente descitivos e clessificatérios, como, por exemplo, os raros estudos sobre talheres (Giblin 1987, Sing 1976] ou sobre equipamentos de aparaio de determinados periode [Rainwaler 1983), elc,. Mas & s6 recentemente que a Anttopologia e o Sociologia, além da Histor’, intioduzicam nos estudos de alimentacao dimensbes do artefato além da econémica. Convém assinalar, todavia, 0 nimero cada vez maior de estudos vinculados as fecnologias de produgdo, dada a imporidincia ossumida entie és pelos alimentos. sintéticos, pela’ bictecnologia, ete {referéncias em Mennell et alii 1992; 71-2), © enfogue social © enfoque social, como se pode ter apreendido acima, é reconhecido hoje como inerente a qualquer estudo de qualquer aspecto’ da alimentacéo. Com efeito, a rede de interrelacdes que o ‘alimento obrigatoriamente evoca transforma-o, na expresso de Johan Pottier (1996: 238}, num ‘most powerful instrument for expressing and shaping interactions... a repository of condensed social meanings" Embora esse entendimento possa ter raizes jd na propra consfitvigéo da Sociologia e do Geogralia Humana, é sem duvida na segunda metade do século que se consolida este enloque, o qual, a partir da década de 70, vai ceder a primazia ao cultural. Duas obras podem ser apontadas para amostrar as grandes linhas. A primeira é 0 estudo classico sobre a batata, de R.Salaman {Ta.ed. 1949}, que representa os trabalhos centtados no alimento/alimentogéo mas. procuram desvendar seus conteiidos sociais. Como vem no titulo, o que o autor pretende é trabalhar "a histéria e a influéncia social da bataio". Seu eixo de alen¢ao, portanto, é um alimento, sua origem, seu transplante para a Europa, as condigdes e dificuldades de sua aceitagGo e difusdo, os aspectos de suprimento e as flutuacdes na resposla a fomes © caréncias, nas quais desempenhou papel fundamental, como no famoso caso da Irlanda no século passado. Uma segunda obra sao os dois trabalhos de Sidney Miniz sobre o acicar (1986, 1996). Na verdade, o que ele esta efelivamente estudando é a sociedade capitalista, num espago de quase dois séculos, utilizando-se da historia do agucar como plataforma de observacdo. O vasto panorama que ele montou se compde das conclusdes a que pode chegar examinando as condigces de produgdo do acicar nas colénias, as repercussées de sua dependéncia do tabalho escravo {um dos ‘pecados da escravidao') € a exploragdo moral decorrente, as fungées nutricionais, medicinais luxurias do a¢icar, seu papel no imaginario ¢ nas classificagdes sociais e na emergenle sociedade de consumo ea consttugao de uma nova subjetividade, a organizagao do mercado, néo s6 como mercadoria, mas também como primeira necessidade exética, produzida em massa, para uma classe operdria. Em suma, como j& se disse, 0 aclcar funcionou como uma metéfora para aricular os diversos agentes sociais dar inteligibilidade 4 interagdo entre eles. Num contaxto séciorpolitico poderiamos incluir os trobalhos relativamente raros que consideram o tema sob © Gngulo do poder, como no estudo que John Super (1988) fez do papel da alimentagée no processo de conquista e colonizagdo da América espanhola, no século XVII, ou, entao, aqueles que giram em toino das paliticas climentares (McMillan, ed. 1991] CO efogue cutural Este enfoque ndo ignora a necessidade Fisica da alimentagdo, mas desloca decisivamenie a atengao dos alimentos para as formas de preparélo e, sobretudo, consumilos como espacos de articulagGo de sentidos, valores, mmondlidedes, ee. {Ct lupton 1984}, So as implicagoes semiologiecs do bsber e do comer que sobressaem, para atender ds decorréncias do ‘arbiirio cultural’ como expresso no dito famoso de Trémoliére: “Homme est consommateur de symboles autant que d’aliments" [apud Garine 1990: 1453}. Ou, na verséo de leslie White (1949: 2d}: "man is the only animal able to distinguish between distilled water and holy water’. Embora ndo se tenha constituido uma verdadeira Semiologia da alimentagdo, houve um avango considerdvel neste rumo, desde pelo menos as tentativas dos antropélogos esiruturalistas ou de semidticos como Barthes (1961), que procurou definir uma 'gramética’ para o sisiema alimentar. Hoje a idéia de cédigo & muito mais flexivel, ¢ € em todos os desvéios de vida social € nas suas miliplas formas que se procuram identificar € explicar as signilicagées associadas & alimentagdo. Sirva de exemplo um trabalho como © de lifschitz 1993} que, a0 estudar & produgéo contemporénea de alimentos, demonstra como a industria e o consumo criaram alimentossigno, cuja ingestio corresponde a introduzitmes em nosso corpo biolégico um fragmento do imaginario social; em decorréncia, ’se 0 alimento consfiui nosso ser biolégico de denito para fora, desde o invisivel do orgGnico ao vistvel da pele, o alimento- signo nos constitui de fora para dentro, do visivel do signo ao invisivel da consciéncia, ou seja, conforma nossa identidade social” [ib.: 147]. 7 18 Para sumarizar, em suas variantes, 0 essencial da 3 pepectva cultural, compensa reproduzir o que propée Stephen Mennel, quando se refere ao que chama de cultura culindria, desenvolvendo pistas abertes por Norbert Elias: “Culinary cultre, by extension, includes everything that we mean by the ‘cuisine’ of sociely ar social group, but a lot more besides. I refers not jus! fo what foods are eaten and how they ore cooked — whether simply 0° by increasingly elaborate methods — fur ao oe aces ta oe rug coeing ond ctr. Tow oxo ili the place of cooking and eating in poople’s patams of sociobilty (eating out, in Conipany, oF in privae); peoples enthusiasm or lack of it towards food; their feelings onverschyof epugnance werd certain foods or rethods of propraton; tho place of food, cooking and eating in a group of saciety’s sense of collective identi, and so on. Becouse culure is learned, shared and transmit’, ia my view we can only understand ‘the cultural conrols of percepsion’ by studying how they develop and are transmited over time. An onthiopology or saciology of food must also be a history of food" (Mennell 1992: 279; wtombbém 1987) O enfogue filosétic. Resta falar de um enfoque de desenvolvimento recente e, ainda, sem muita densidade. Duas linhas podem ser mencionadas A primeira, mais geral, é exemplilicada pelo livro de Elizabeth Telfer (1996} que se inttula, precisamente, Food for thought. Philosophy and food, Tais titulo e subtitulo prometem mais do que oferecem, (No entanto muitas das questdes ‘aqui tratadas também ocorrem em trabalhos dos mais diversos campos). A autora ‘acentua os aspectos de prazer, ndonecesssidade, na alimentagdo, assim como 98 preconceitos contra a dimenséo corporal do homem e, @ partir dai comenta posicdes de filésofos, de Plato e Aristételes a Kant e Stuart Mill. Discorre sobre © valor do prazer de comer, as obrigacées implictas, as virtudes morais da hospitalidade e da temperanca. Colelaneas como a organizada por Curtin € Heldke (1992] também se alocam aqui A outta linha @ repesentada pela coleténea de Ben Mephan (ed., 1996) sobre a ética da alimentagdo, Questées abordadas: a fome enquanto problema ético, a seguranca alimentar, o’respeito d vida animal e as condicdes ambientais, a moralidade das modernas biotecnologias, os aspectos culturais da ética da alimentagao, etc. A Contribuigéo das Ciéncias Sociais Também aqui o que se pretende ndo poderia ser um quadro definido, nem um balango ctiico sistemético, muito menos uma listagem bibliogrdfica substoncial. Pretendese, 10 somente, assinalar tragos que regisiem a contribuigéo que as disciplinas sociais trouxeram para o conhecimento de um tema multifacetado como a alimentaco. Desde ja convém esclarecer que as compattimentagées. entre Anttopologia, Sociologia, Geografia, ele., s80 arlficiais © destinamse apenas a acentuer comodamente algumas caracteristicas espectficas dominantes e néo fecortes epistemolégicos e metodolégicos rigorosos © consistentes. Nessa mesma 6tica, devese salientar a perspectiva historica que caracteriza muito desta literatura —o que faz que 0 esboco a seguir também abranja, implicitamente, a Histbria ‘Convém ainda esclarecer que ndo se abriu espago proprio para a Psicologia, pois muitas de suas contribuigdes fundamentais encontramse aiiculadas a outros temas ov contexlos disciplinares, aqui citados {selecao de alimentos, dietas, patologias, etc.| Anttopclogia ‘A Antropologia, sem divida, pode ser considerada a discilina que mais se preocupou com nosso tema, que recalheu o maior acervo de informagso e que exerceu, sobre as demais disciplinas, inclusive a Histéria, a influncia mais consideravel. Para se fer uma idéia da amplitude, diversidade e consisténcia da producdo antropolégica, basta compulsar, por exemplo, a revisdo bibliogréfica, iG nao tao recente, feita por Ellen Messer {1984} © que se organiza segundo temas to diversificados como os estudos ecolégicos e de abordagem materialista {eneigia, coletorescacadores, problemas bioculturais), principios de selegdo de alimentos, classificagéo e construgdo dietéria (atributos sensiveis do alimento; dimensdes cultuais, simbélicas e cognitivas), estudos semidticos, identidade, etnia, enculturacdo, estrutura dietaria, fatores econédmicos. Ou enldo, para se ter uma ‘visGo de ‘conjunio, segundo outros porémetros, podese exominar uma colelénea, como aquela organizada por Carole Counihen e Penny von Estenk (1997], que reproduz textos ‘classicos’ como os de Margaret Mead, Claude Lévi- Strauss, Roland Barthes, Mary Douglas, jean Soler, Anna Meigs, Anna Freud, Jack Goody, Marshal Sahiins e muitos outros mais. Doutra parte, um livio como 6 de Stephen Mennell, Anne Murcott e Anneke van Otterioa (eds.1992), além de constituir um bom exemplo do transito de dupla mGo de direcdo entre a Antropologia e a Sociologia {sem excluir a Histéria}, cobre uma gama extensa de femas, sobre os quais oferece uma sintese bibliogrdfica de interesse: as conexdes entre alimento, nutrigGo e satde; desordens alimentares; desigualdades de consumo por classe, géneto, idade, nacéo; relagdo do alimento com as esferas publica © privada’ ‘perspectiva aniropolégica e histérica sobre as culturas Culinarias; 0 impacto do colonialismo e das migragdes sobre a alimentacéo; a transformagdo das tecnologias de produsdo ¢ suas conseaiiéncias sociais, etc ‘Os antropdlagos, desde 0 século XIX, se Smpenharam em desenvolver uma einografia sistematica dos habitos alimentares e em buscar interpreté-los culluralmente. A primeita fase da Antopologia caracterizouse por um comparativismo das diferentes tradigdes culturais. A andlise dos tabus, onde se destacam os alimentares, foi desde os primérdios da Antiopologia Cultural um terreno féril para especulagdes sobre o significado simbélico da alimentagéo. No interior da exlensa obra The golden bough, de James Frazer, publicado pela primeira vez em 1890, desenvolveu'se a interpretacao destes temas, particularmente no livro Taboo ond the pens of the soul. © resultado de interesses semelhantes ao de Frazer foi estimulcr © mapeamento dos diversos habitos alimentares, cuja especializagdo, de cardter local, regional e, mesmo, continental, foi devidamente fixada. A alimentagGo serviv, ainda, para proposicao de ‘éreas culurais’: exemplos de qualidade séo comuns na 19 20 ‘Alemanho, como, enlie tantos outros, os levantamentos de Moriz Heyne (1901} ou 05 de Eckstein ef alii (1938) Em tempos mais recentes, os estudos antropolégicos de alimentagéo podem ser considerados segundo matrizes diferentes, ecoando transformagSes globois que ocoreram no seio da disciplina. . Até os anos 60, imperava uma perspectiva funcionalista acentuade. E alias de uma discipula de Malinowski, Audrey Richards (1932), um estudo pioneiro de alimentagdo que toma os Bemba, uma tribo Bantu da Africa Central, como referéncia, A autora n&o apenas retrata a produgéo, preparo e consumo do alimento, mas os insere num contexto sécicpsicolégico, lovando em conta difetenciais como ciclos de vide, grupos e estuluras sociais, modalidades diversas de interagdo, etc. Infelizmente, esse rico modelo nao parece ter tido a difusdo que merecia. Somente nas décadas de 60 e 70, na voga do estruturalismo, € que 0s estudos antopolégicos sobre alimentagao deslancham e se define um padréo de anélise cultural. Claude Fischler (1990: 17} 0 caraceriza com felicidade, em poucas palavias: *While’ the functionalists looked at food, the structurclists examined cuisine’. © alimento passa a ser investigado como sistema cliyral e abordado linguisicomente Algumas obras publicadas por Claude LéviStrauss (le ery ef fe cuit, de 1964; Du miel aux cendres, de 1967, origine des maniéres de table, de 1968 ¢ Le triangle culinaire, também de 1968, comecam a ter considerével repercussdo entre os estudiosos da alimentacao. Elas ndo tratavam apenas do tema, especificamente, mas de estruturas mitologicas. Todavia, reconhecendo que € em torno da alimentacdo que as diferentes culturas estruturam sua vide prética, assim como parte considerdvel de suas representagses, Lévi-Strauss ndo deixou de mobilizar a problematica alimentar. A diferenca ente o ctu e 0 cozido tornase para ele um dos marcos que funcam a propria cultura, Seu tridngulo culinario (cru, cozido, assado} teve ampla divulgacdo e suscitou endosso apoixanado, tanto quanto recusa exacerbada. ‘A-voga, nos anos 80, de estudos de base materialisia, como os de Marvin Harris (1989, ed.cr. 1986) ¢ enfatizando aspectos histéricos. Além disso, vai ser inensa © explicita a discussdo de. problemas tedricos e metodolégicos telativos ao tema. Se quisermos assinalar quais os temas que, nesia tlima década, tm provocado 0 maior investimento da Anttopologia, no campo da alimentagdo, independentemente de orientacées leéricas, salientariamos as préticas culturais, (8 processos de aculturacdo, a identidade cultural, Se as prdticas j@ eram importantes desde os levandamentos dos ‘modos de vida’, agora ganham mais relevo quando o que se procura é pesquisar, nos habitos, nas etiquetas, nas maneiras 4 mesa, problemas como aqueles propostos por Norbert Elias (1990, ed.or. 1939) ao tratar do ‘processo civilizator. Assim, Mennell (1987) procura explorar os usos socials de aspectos conerelos desta’ domesticagdo ‘do natuteza pela’ culura, exominando. 08 mecanismos que ‘civiizam © apelite’. © controle do corpo, © controle das emogées em piblico, a ‘ordem & mesa’, as hieraiquias e os padides de relagéo, © avango do individualismo © 0 espaso prvado, etc., ett., 540 explorados, principalmente entie 0 séc. XVI até a contemporaneidade, como produtos vetores de mecanismos sociais [vRoche 1997: 255-7]. Varios estudos desta natureza tém recortes nacionais, como o de Cooper {1986} sobre as maneiras chinesas, ou de Amaboldi {1986] sobre as francesas ‘As questes de identidade também tem sido foco de pesquisa. Quanto 4 identidade pessoal, ha vinculagées com as diversas verlentes de estudo do corpo e da corporalidade [Fischer 1990; Lupton 1996]. Mais espaco tem merecido a identidade étnica, a caracterizagdo e fungdes da ‘comida étnica’ (principalmente entre migranies e minorias|: foco do imagindio, delimitagéo de fronteiras, base de conflitos, fonte de estereétipos e estigmas {'alemao-batata’, ou ‘chucrute’; ‘siriolibanés-quibe'; ‘nos Estados Unidos, ‘spaghetti’ para os italianos e, na Inglaterra, ‘frogs’ para os franceses, etc.). Entre os intmeros titulos, podem ser citados: Kraut [1979], Jerome (1980), Calvo (1982 ‘A identidade nacional, por sua vez, tem sido vista como de estalulo ambiguo. Mennel (1985) ja reconhecera que o aparecimento das ‘cozinhas nacionais', dos ‘estos nacionais de comer’ — ©, mais que isso, seu reconhecimento piblico, tornado possivel pela difuséio de ‘historias’ e livros de cozinha — coincidem com a formacao, desde o fim do séc. XV, na Europa, dos estadosnagéio, culminada no séeXIX, século privilegiado do gastronomia Entretanto, nem mesmo para o século passado possivel falar de cozinhas essencialmente nacionais, seja pelo substrato comum histérico ou trazido pelos comércio e processos de aculluragdo [é em curso, seja pela regionalizagdo ainda muito marcada dos padrdes (Murcott 1997}. Poucos estudos exislem como os de Catherine Palmer {1998}, que procurou examinar, no cotidiano, o funcionamento dos mecanismos da identidade nacional, incluindo a alimentacao. No préptio espaco das identidades e em relacéo as praticas alimentares se tem associado a problemética da enculturagao (Fischler 1985 e 1988; Widdowson 1981) e, portant, o papel da alimentacdo na reproducao da sociedade e, principalmente, da familia. Sidney Mintz, apés referirse Gos habitos alimentares como veiculos de emogGo profunda, resume seu popel enculturativo: “The learning of personal fasidiousness, manual dexterity, cooperation and sharing, reson ond racfouty ate commonly Inkad fo the consmpton of food by chides Indeed, geting 10 eat with the aduls as an adul, rather than as a child, may be one of the major hurdles of growing yp in some cultures" (Mintz, 196: 70) Para finalizor, cumpre assinalar a criagéo, no interior do campo ontropolégico, de varias instivigdes agrupando os profissionais interessados no estudo da alimentacao, algumas de Gmbito internacional, outras, de vinculagGo nacional mas repercussao muito ampla e responsaveis por pesquisas, publicagdes, encontros de especialistas e outras formas de atuactio académica ¢ politica: US National Academy of Sciences Committee on Food Habits (1945), International Committee for Anthropological Food and Food Habits {1968}, International Commission for the Anthropology of Food and Food Problems/Intemational Union of Anthropological and Ethnological Sciences, Ethnological Food Research Group (1970), Foundation of Chinese Dietary Culture {1991}, Ajinomoto Foundation for Dietary Culture (1989) 21 22 Arqueclogia No Arqueologia, o tema da olimentagéo tem ocupado espaso central ‘Antes de mais nada, pela televéncia do problema diante das perspectivas holisticas da Arqueologia. Em seguida, pela disponibilidade de evidéncias testemunhos frequentes de documentos alimentares entre 08 restos arqueolégicos e da viabilidade de inferéncias. Assim, ndo é de estranhar que a Arqueologia tenha fornecido contribuicéo de monta a estudos de evolugdo cultural. Helen leach (1997: 135] chega a afirmar que foi no tocante 4 substituicio de um sistema de caca e coleta pelo da produséo de alimentos que, nos dimos cinglienta anos se travou 0 debate mais importante no dominio arqueolégico. Infelizmente, nao hé ainda nenhum tratamento consistente e abrangente do tema, A bibliografia é esparsa e muito volumosa e de qualidade variavel, sobretudo nas tentativas de sintese [como Perlés 1996), mas j@ se comeca a ter um quadto mais definido de problemas (Amott, ed. 1997; Harris & Ross, eds., 1987, Ellen 1994 ou Garine 1994). Uma coleténea que justifica lembranca, pela diversidade de contexio, € a que englobe os trabalhos monograticos de Sigfried |.De Laet, Jack R.Harlan, Sandor Békény, José Llorenzo, Mario Sanoja Obediente, Luis G lumbreras Salcedo e outros que colaboram com a Parte Il [From the beginnings of food production fo the fist states), incluida no primeiro volume da History of Mankind, da Unesco, dirigida por SJ.De Laet (1994: 366-39), estendendose desde o Neoliico até ca. 5.000 anos atrés, com os inicios do proceso de domesticagao de plantas © animais em varios dominios geogrdficos, como o Velho e o Nove Mundo € o Oriente. Mais que tudo, a perspectiva holistica da Arqueclogia, como se disse ‘acima, e sua vocagao para expbrar todas as possibilidades inerentes 4 cultura material obrigoue a defrontarse permanenlemente com o problema da alimentagéo, da subsisténcia, das tecnologias de obtencéo, processamento, conservagao e distibuicéo dos alimentos, dielas caréncias, etc.elc., a parlir de restos materiais e sua insereéo espacial. Seria ocioso mencionar titulos, pois s60 excepcionais os estudos ndo monogrdficos que excluam a alimentagGo de seu arco de interesse, Disso resultou a necessidade de formular e calibrar métodos e técnicas de identificagdo, recupetagdo e andlise de evidéncias ~ o que ndo se encontra, em nivel comparavel, em nenhuma outta disciplina que se tenho ocupado da climentagdo, salvo, em parte, nas ciéncias de nutri¢do {v.Brothwell & Brothwell 1998}. Bastaria, por exemplo, examinar um manual corrente de introdugdo 4 Aiqueologia, como 0 de Colin Renfrew e Paul Bahn (1991), para se ter uma idéia da pandplic de recursos desenvolvides pela Arqueologic, com auxilio interdisciplinar. (E que a Historia, por exemplo, desconhece, mesmo naquelas circunstéincias em que tais recuros lhe poderiam ser de grande valia.] © capitulo 7, sobre subsisténcia © dieta, desfila as posibilidades crescentes que se tém aberto. Andlises macro e microbotanicas, técnicas de flotagdo para recuperagdo de vestigios, estudos palinolégicos ou de impressées de vegetais permitem recuperar quadios palecbotinicos e definir, ds vezes em niveis impressionantes de pormenores, a interacdo humana. © exame de restos faunisticos e humans, principalmente de material osteolégico, & capaz de produzir dados de vasto clcance. A andlise isotépica de colageno do osso humano, por exemplo, vern sendo uilizada para esclarecer a origem da agricultura no Novo Mundo, pois registra informacéo sobre consumo alimentar em padrées de longa duragéo. O estudo do desgaste dentario, por sua vez, revela néo s6 dados preciosos sobre dietas, patologias e coréncias alimentares, como também sobre técnicas de manducagade. O conteido estomacal, coprdlitos, residuos culinérios, tipos de utensilios @ tragos dos padiées de uso nos artefatos asseguraram © conhecimento individuado de refeigdes, de técnicas de processamento, de variagGes sazonais, de combinagées alimentares com implicagées nutricionais, de constantes na distribuigdo per capita etc... © contetido de concheiras é convertide em indices nutricionais, que podem, por sua vez, fornecer pistas para varidveis demograficas. E assim por diante. Sumarizam os autores: “All the methods described in his chopie are. providing orchacology with new Iools, not to say with ‘food for hough’. The evidence available varies rom botanical and animal remains, both laige and microscopic, 10 tools and vessels, plan! and animal residues, ‘and ait and fexs. We can discover what was eaten, in which seasons, and sometimes how 1} was prepared. We need to access whethor the evidence arrived in the archaeological record naturally or through human agency and whether the: resources store wl or ender human convol Cccostonally wwe encouier fe romans of ndcal meals lof as funerary offerings or asthe contents of somachs or feces. Finally, the human body iself contains 0 record of die in oothweor and in the chemical signatures lot in bones by diffrent foods” Renfrew & Bohn 1994: 270), Sociologia Embora os grandes nomes da Sociologia, de Marx a Spencer, de Durkheim a Weber, de Simmel a Sorokin, tenham incluide em suas obras reflexdes sobre alimentagdo, néo desenvolveram um campo sistematico de problemas. E somente o partir da difusdo da Sociologia da Cultura que véo surgir os trabalhos de maior continuidade e os verdadeiros especialistas do ramo (para uma visto panordmica do campo, ver Mennell ef alii 1992, Murcott, ed. 1983) Como aliés & desejavel, a Sociologia parthou com a Antropologia um campo comum de interesses — de que também parliciparam a Geografia © @ Historia. Nao obstante, ha certas ares de problemas que ela privilegiou. ‘A primeira referese a questées de diferenciagtio social pelo alimento, de status, e, em suma, de poder. Apesar de se tratar de uma perspectiva corriqueira, ndo deixa de apresentar resultados interessantes, ao identificar as especificidades que, no caso, assume o alimento (v. Wiessner & Schiefenhével 1996), Entre as diferenciagdes sociais, as de género sGo as que mais tém ‘ampliado seu campo na pesquisa. © eixo tem sido a divisdo social do trabalho doméstico, com o homem como provedor exierno do alimento ea mulher como processadora e responsavel pela reprodugdo da familia [para exemplificar: Charles & Kerr 1988, Murcott 1983 e 1993, Wall 1991). As questées de género também 18m sido vistas de Gngulos mais reduzidos, como a associagéo da carne & virlidade — 0 que terd implicagdes muito amplas em movimentos como 0 vegelarianismo {Twigg 1983, Caplan 1994: 17) 23 24 Em escola superior, 6 @ associagéo da alimentagéo co campo do poder que tem sido uma constante. Arjun Appadurai {1981} forjou, mesmo, o neologismo ’gastropolitica’ para coracterizar num estudo sobre hindus, o uso do climento como meio de proteger ou contestar posigdes sociais, Ele também abservou © conteido politico dos eventos alimentares festivos: “the marriage feast is a quintessentially gostopolitical arena" (1981: 502}. Young (1971) i coracterizara a festa como oportunidade impor de disputa de poder: “fighting with food". £ Mary Dougias repetidamente assinalou o banquets como recurso para mobilizar forcas {p.ex. 1972). Na ordem internacional, como demonstram Carole Counihan ¢ Penny van Esterik (eds., 1997: 3], a hierarquia de ‘primeiro mundo’ e ‘terceiro mundo’ se assenta no acesso diferencial ao alimento, especialmente a carne. A segunda drea de questées 6 a comensalidade. Comer e beber juntos sempre foi reconhecido como matriz de sociabilidede (Mennell ef ali 1992: 1159, levenstain 1993, Autell et alii 1992, Douglas 1984). Dai o preocupagdo em estudar a alimentagao e as praticas alimentares como rites de passagem € incorporagéo, de solidariedade ¢ hospitalidade ou exclusdo, de identidade e socializagdo, oportunidade de transgressdes, de relorco compromissos de hievarquias, etc. A importdncia visceral da comensabilidade em certas sociedades antigas — basta atentar para o symposion dos gregos — motivou obras de elevado interesse sociolégico [Panel 1992, Lombardo 1989, Nielsen 1998). Doutto éngulo, os estudos de comensalidade se orientaram para a tefeigdo como instituigGo social, sua natureza e funcionamento, seus icones — como a mesa (Douglas 1972, 1974, Wood 1995, Herpin 1988, Visser 1987, lucas 1994 etc.| Neste contexto, os avancos da tecnologia alimentar {com os alimentos industrializados}, a ampliagéio do habito de comer fora, o aparecimenio da fast food vo comprometer a cozinha doméstica © seus significados sociais {Fischler 1979, Mintz 1985, leidner 1993, Carney 1995]. Fischler até cunhou um termo —"‘goshoanomia’— (1980: 28) para expressar a dessocializagdo que a liberdade irrestrita de escolha individual esta provocando, ao criar a ‘oportunidade de ‘comer sem refeicdes’ Problema correlato, o'do ‘jantar fora’ tem sido, por isso mesmo, examinado como performance social (Finkelstein 1989) ou ‘teatro das relacdes sociais’ (Shelton 1990), estendendose tais enfoques ao estudo do resaurante ‘como espaco simbélico e de seus agentes, os cozinhelros, chefs, garcons [ver refers, em Fine 1996, Pillsbury 1990] Dentro dos padrdes de sociabilidade, ndo se pode esquecer a alimentagao institucional: escolas, prisées, hospitais, navios, quariéis etc. (Lambert 1968, Valentine & Longs 1998) ‘ bebida e seus desvios tm recebido espaco da Sociologia (as vezes acoplada & Antropologia © com perspectiva histérica). Mary Douglas se interessou pelo que chama de Constructive drinking (1991) para identificar a embriaguez como expressdo de uma cultura; Véronique Nahoum-Grappe, em la cule de Tivesse (1991), procure, com auxiio da fenomenologie' hisérica, estudar a “conscience collective de ce que peut étre un tel état (I'ivresse)"; Didier Nourrisson, que jd havia produzido uma tese sobre © alcoolismo € 0 onl alcoolismo na Franca sob a ila, Repiblica (1988), toma a figura do ‘buveur', no séc.XIX, como eixo de sua investiga¢Go (1990); Harrison [1971] ocupouse com a bebida entre os vitorianos (e organizou em 1967 uma bibliografia critica sobre bebida e sobriedade na Inglaterra, ente 1815-1872} e Brennan (1991) com a bebide como padiéo péblico de. soclabilidade ¢ com 0 culuta popular do séc.XVIll. lossifiedes & GefouMadianou (eds. 1992} associam 0 alcool a questées de génro. G.E.Vaillant [1983] tragou uma ‘historia natual do alcoolismo’. Um nimero especial da revista Terrains {Boire 1989) apresenta varios estudos sociolégicos sobre bebidas (alcool, café, cha, chocolate], suas insttuigées € contextos sociais, Finalmente, aponiese o grande tema, que esti mobilizando a Sociologia de alimentacao: 0 consume. O papel central da alimentacdo nesta faixa foi salientado por Fine, Heasman e-Wright (eds. 1995). Em articulagdo ao consumo, alguns temas tém sido intreduzidos: a publicidade alimentar, seu caréter alienador e valorizador do que Barry Smart (1994) cunhou de ‘gastrorporn’ {alimentos sedutores, mas impossiveis de obter e artificial e estereotipicamente perleitos); © papel da olimentagéo na consfitvic¢éo da cultura popular ‘contempordnea [Bell & Valentine 1997] e na constituicdo de estilos de vido (Tomlinson 1990}; paralelamente, na contracultura [Belasco 1993}. Finalmente, o consumo permitiu fomecer um contexto de entendimento para alteragdes de monta que a alimentacdo vem sofrendo no tocante ao tempo. © tempo das refeicdes, tempo regrado, dos sitmos regulares do cotidiano que inlegravam o tempo dos consumidores e dos produtores, tempos naturais, vase desintegrando (Aymard ef alii 1993, Palmer 1952). As tecnologias alimentares suprimem © tempo natural, pois mascaram as estagdes, momentos do calend marcos sociais repetitivos {Gofton 1990), Geografio A Geogratia, como ndo poderia deixar de ser, hé muilo tempo vem contribuindo para’ iluminar os componentes espaciais da. problemética da olimeniagdo. Um artigo como o de M. Soro {1952} dé idéia dos principais preocupacdes em meados deste século, em que ainda linham peso espactfico a produgdo, transporte e comercializacdo dos alimentos [v. Também Géographie de lalimeniation 1980}. Para que se perceba a relevancia do espaco neste campo de estudos, basta lembrar que a maioria dos staple foods {que alguns especialistas, como Igor de Garine 1994: 239 preferem chamar de cultural supertoods) das sociedades modernas tém origem em expagos externos dqueles em que vieram a dominar: a cassava © 0 milho, na Attica’ Equatorial (origem americana), a batata, para grupos himalaios, a cassava e as baiaias doces na Indonésia e Melanésia Nova Guing; 0 arroz, cuja dispersio esteve vinculada ao sistema colonial; o trigo, as especiarias, o lomale, a pimenta chilli etc.etc.etc, (Santieri & Zazzu 1992, Foster & Cordell, eds. 1992). Num oulto rumo, oponiese, ainda, a importancia do tema da fome no seu enquadramento espacial (Young 1998}. 25 26 ‘Mais recentemente, a disciplina ampliou a escala de ocorréncia dos fendmenos que investiga: 0 corpo, a casa, a comunidade, a cidade, a tegido, anacdo e, fnalmente, o globo, com suas forcas polares de homogeneizacdo ¢ diferenciacéo [glocalisation), que redundam seja na universalizago de uma rede de lanchonetes como a McDonald's , seja na valorizaéo particularistica do ‘auténtico exdtico’ (Bell & Valentine 1997: 19). Dentro desse quadro, a ‘globalizagao local’ da cultura culinaria € 0 fetichismo da mercadoria obrigam a Considerar os alimentos como materiais e pidlicas ‘deslocadas’, como lazem Cook & Creng {1996]. E assim que 0s autores arrolades por James Watson fed. 1998) procuram, também tomando McDonalds como referéncia, observar 0 papel da fast food diante das cozinhas locais, em Hong Kong, Beijing, Taipei, Téquio € outias mettépoles asiéticas Nesse percurso, @ Geogratia esté cada vez mais procurando aprofundar duas questées, que se associam intimamente: 0 consumo © as identidades regionais e nacionais. Nao & puro jogo de palavras que o livio de David Bell e Gill Valentine {1997} intitulado Consuming geographies, tenha por subtitulo We are where we eat. No entanto, 6 preciso observar que, na-maiorio, os estidos de gedgratos sobre alimentago tm convergido para preocupagées comuns com as dos sacidlagos, antopélogos e, mesmo, hisloriadores. Os proprios Bell e Valentine, jé citados, tamb’m exploram, ao lado do espago, a prablemética de tempo na alimentagdo ou, mais precisamente, o consumo alimentar como forma de organizagéo do tempo, numa directo semelhante 4 que foi acima apontada para a Sociologia: os ritos de passagem no consumo (a primeira gota de alcool, @ primeira vez que se cozinhou um prato etc.), a pontuagao e periodizagdio da vida, a estrutura¢ao do ritmo temporal, a criag¢Go do tempo pelo consumo {a naturalizagéo das sasonalidedes do consumo) e, finalmente, a supressGo do tempo pelas tecnolagias alimentares. A Insituicéo de um Campo Especializado As paginas precedentes (4 permitiram perceber alguns tacos morcantes de Histéria nos estudos sobre os problemas da alimentagdo. Também se percebeu que @ Histéria esta longe de ser a disciplina dominante. Impdese, porém, examinar mais de perio a natureza, formagaio e transformages do que se poderia hoje chamar de Histéria da Alimentagdo. dificll svar 0 processo constiutve © acompanhar o desenvolvimento. de um "campo" de estudo histérico 140 vasto, heterogéneo e difuso. Nosso esforco, por iss, serd o de fornecer apenas uma cetta carlogratia histérica desse territério, apresentando indicagées sobre sua condensagGo e institucionalizagao. 5 pontos de paride Os historidgrafos franceses [p.ex. Burguiére 1986) costumam opontar como marco referencial para um novo rumo, na Histéria da Alimentagéo, a obra do polonés Adam Mautizius. Maurizio, como veio a ser conhecido, era um boténico, professor na Escola Técnica Superior de Lvov. Além do crédito pessoal que Ihe reconhecem alguns historiadores, como Fernand Braudel, tal imagem talvez se deva em grande parte & propria avaliagéoque Maurizio fazia de seu livro, originalmente publicado em 1926 e logo traduzido pora o aleméo e para © francés [1932]. Partindo do pressuposto de que a histéria da civilizagéo e a histéria da utlizagdo do mundo vegetal se confundem, e mesmo conscientemente excluindo a alimentagéo de origem animal, Maurizio empreendeu uma vasta tentative de tragar a histéric dos alimentos vegelais, desde a préhistoria alé seus tempos. Seu objetivo era preencher uma lacuna, pois © preocupava a inexisténcio, até enldo, de ‘qualquer histéria da alimentagdo’, que ele entendia, portonto, equivalente a uma histéria da agriculture “Je veux dire une hisloie des planies importantes au point de we de ogriculure et des instumen's agricoles. Il ne s‘agit point de Fistoire del’ exploitation et de administration ds teres, car rian ne nous manque ce point de we 16. Mais les quelques ouvn Qui Sinton! histoire des aliments et de Tatimentaion (Bourdeau, Licbierfell) valent surtout par Fintention. Bien plus utles sont des ouvrages (souvent ulisés ci] qui tatent des planies alimentaires av poin! de we purement botanique. Lo travail rés details de D. Bois: los plantos alimentaires chez fous les peyples ef & travers les dges, fome I de FE ncyclopécie biologique {c'est en réalié la 4 éctlion de louvrage de A, Pollieux et D. Bois’ fe Polager d'un curievs), n'0 malheureusement pore qu’é une époque ne mayan fas perms do Fotise, mots sevement de fopprcier oxtémement™ (Mowizio 4 Por certo, © rumo de Maurizio, disciplinado e rigoroso, & diverso das historias que onteriormente apontames, de variado teor, desde a Aniigiiidade e 0 Renascimento, ou os regisiros imaginosos como o Catalague des inventeurs des choses qui se mangent et se boivent {1548} de Orlensio Lando, ou mesmo aquele gee considerado um dos pontos de partida para o reconhecimento do papel la alimentacdo nas ‘histérias dos costumes’ e da vide privada — a obra de Jean- Pierre Legrand d’Aussy {1782}, cuja linhagem ser numerosa, como alesla a importéncia das crénicas histéricas dos costumes, incluindo os hdbitos alimentares |ck Briffault 1846]. No entanio, no se pode ignorar 0 acervo de informacéo segura e confidvel disponivel, no tempo de Maurizio, e acumulada desde o século passado, seja nos ‘repertérios de plantas’ comestiveis, seja nos levantamentos einogréticos (alguns de cardter regional e, mesmo, geral} a que |@ nos relerimos, sefa, enfim, nos dados constontes de uma vasta série de monogratias nacionais ov desenvolendose em lorno de cerlos alimentos espectticos. A historia da agricultura é um dos pontos de partida do estudo sistematico das plantas de uso alimenticio e, enlre os autores que escreveram ensaios de sistematizagao histérico sobre as plantas cultivadas, podemos citar Haudricourt & Hédin (7943), Franklin (1948), Anderson {1952} e Chrispeels & Sadava {1977}, A Inglaterra foi constante nesse interesse pelas questées alimentares. 16 em 1856, George Dodd se preccupave com a alimentagao em Londres. Além disso, na propria Franca, no comego do século Marc Bloch (1914). levantara, na Encyclopédie francaise, questées que teriam um peso quase programatico, como 0 das transformagdes dos regimes dieléticos [fatores associados & 27

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