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3-053.2: 304,485. 34 (093) Art we © sags Philippe Ariés Historia Social da Crianca e da Familia Tiadugio de Dora Flaksman Segunda edigao oa Gn LTC autore a editora empenharam-se para citar adequadamente e dar 0 devido crédito a todos os detentores dos direitos autorais de qualquer material uilizado neste lio, dispondo-se a possveis acetos caso, inadvertidamente, a idenifiagéo de algum deles teaha sido omitida [io € responsabilidade da editora nem do autora ocorréncia de eventuais perdas ou {anos a pessons ou bens que tenham origem no uso desta publicasio. _Apesar dos melhores esforgos do autor, da tradutora, do editor e dos revisores ¢ inevitivel ‘que surjam erros no texto. Assim, sfo bem-vindas as comunicagdes de ususrios sobre Corregdes ou sugestbesreferentes ao conteido ou ao nivel pedagSgico que auxliem o apri- ‘moramento de edigdes futuras. Os comentirios dos leitores podem ser encaminhados <C ~ Livros Técnicos e Cientficos Fitora Lida ‘Tiulo original: BV “Eafe eta Vie font sus Ancien Régine @ IN fraduzido da terceira ediglo, publicada em 1975 Sela Eton du Sel de Pcs Frana,na sie nivenetoane Feoeans e Juz 0 Fon Pats Histoire, rigid por Michel Winock NOV NVATANTN A copes Psa 2320010012179 Eadigdo para o Brasil ‘Nao pode circular em outros patses. Federal de Juiz oe Fora Primeira edigdo brasileira: 1978 aibliotecs-da 1.C. HL. Rog, Diretosexclusivos para a lingua portuguese va Copyright © 1981 by iE LIC Live ecicos Celia Edora ida 2 ae ‘Uma editora lntegrante do GEN | Gropo Editorial Nacional Reservados todos 03 direitos, proibida a duplicagto ou reprodugio deste volume, no todo ‘oaem parte, sb quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletnico, mecinico, gravagio, fotocépia,distribuigo na internet ou outros), sem permissio expressa da editors. ‘Travessa do Ouvidor, 11 Rio de Janeiro, RJ — CEP 20040040 ‘Tels: 41-3543.0770/ 11-5080.0770 Fax: 21-3543-0896 1te@ grupogen.com.br ‘www lceditora.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. A746 Ded Acits, Philippe, 1914-1984 ‘Histtia social da erianga e da familia / Philippe Aris; tradugo de Dora Flaksman -2.e, + [Reimpr]. - Rio de Janeiro : LTC, 2011, “Tradupo de: L'enfant et la vie familiale sous 1° Ancien Régime, 3.e ISBN 978-85-216-1347-3 1. Criangas - Franga 2, Familia -Franga. 1. Titulo. 05-3893. cpp 39213 cou 3923 3 A Familia 1 As Imagens da Familia P areceria contestivel falarmos de uma iconografia profana na Idade Média antes do sé- culo XIV, de tal forma o profano se distingue mal do sagrado. Contudo, entre as con- tribuigdes de origem profana a essa representagio total do mundo, ha um tema cuja fre~ giigncia e popularidade sio significativas: o tema dos oficios. Os arquedlogos nos informa- ram que os gauleses da época romana gostavam de representar em seus baixos-relevos faneririos cenas de suas vidas de trabalhadores.' Essa preferéncia pelos temas de oficios nio é encontrada em nenhuma outra parte. Os arqueélogos também ficaram impressionados com sua raridade, quando nfo com sua auséncia, na iconografia funerdria da Africa roma- na?O tema remonta, por conseguinte, a um passado remoto. Ele se manteve ¢ até mesmo se desenvolveu durante a Idade Média. Ressalvando 0 anacronismo da expressio, poderi- amos dizer, grasso modo, mas sem deformar a verdade, que a iconografia “profana” medie~ val consiste acima de tudo no tema dos oficios. # importante que durante tanto tempo 0 oficio tenha parecido as pessous ser a principal atividade da vida quotidiana, uma atividade cuja lembranga se associava a0 culto funeririo da época galo-romana e 4 concepgio erudita do mundo da Idade Média, nos calendarios das catedrais. Sem divvida, isso parece perfeita~ ‘mente natural 20s historiadores modernos. Mas terdo eles se indagado quantos hoje em dia prefeririam esquecer seu oficio e gostariam de deixar uma outra imagem de si mesmos? Em vio tentamos introduzir algum litismo nos aspectos funcionais da vida contempori- nea; 0 resultado é uma espécie de academicismo sem raizes populates. © homem de hoje nao escolheria seu oficio, mesmo que gostasse dele, para propé-lo como tema a seus artis P.M, Duval, La Ve qutdieme en Gale, 1952. 2G.Ch, Picard, Les Rligians de 'Afique amique, 1954 132 AS IMAGENS DA FAMILIA. tas, mesmo que estes iiltimos pudesse aceité-lo. A importincia dada ao oficio na iconografia medieval € um sinal do valor sentimental que as pessoas lhe atribuiam. Era como se a vida privada de um homem fosse antes de mais niada seu oficio Uma das representages mais populares do oficio o liga ao tema das estages, cuja im- portincia jé tivemos a ocasiio de reconhecer a propésito das idades da vida.* Sabemos que a Idade Média ocidental se caracterizou pelo habito de reunir através do simbolismo no- ges cujas correspondéncias secretas, ocultas por detris das aparéncias, se desejava subli- nnhar. A Idade Média ligava as profissbes as estacdes, assim como o fazia com as idades da vida ow os elementos. Era esse o sentido dos calendérios de pedra e de vidro, dos calend’~ rios das catedrais e dos livros de horas. A iconografia tradicional dos 12 meses do ano foi fixada no século XII, tal como a en- contramos, com muito poucas variantes, em Saint-Denis, em Paris, em Senlis, em Chartres, em Amiens, em Reims etc.: os trabalhos € os dias. De um lado, os grandes trabalhos da terra: 0 feno, 0 ttigo, a vinha ¢ © vinho, o porco. De outro, a pausa, do inverno e da pri- mavera. So camponeses que trabalham, mas a representacio dos momentos de interrup- Gio do trabalho oscila entre o camponés o nobre. Janeiro (a festa de Reis) pertence a0 nobre, diante de uma mesa na qual nio falta nada. Fevereiro pertence ao plebeu que volta & casa carregando lenha e se aquece perto do fogo. Maio ora é um camponés que descansa no meio das flores, ora um jovem nobre que parte para a caca e prepara seu falcio. Em todo o caso, € a evocagio da juventude participando das festas de maio. Nessas cenas, 0 homem esta sempre sozinho: excepcionalmente um jovem ctiado (como em Sio Denis) aparece de pé atrés do amo, que come sentado em stia mesa. Por outro lado, trata-se sem= pre de um rapaz ¢ nunca de uma mulher, Podemos ver essa iconografia evoluir a0 longo dos livros de horas até o século XVI, de acordo com tendéncias significativas. Primeiro, vemos surgir a mulher, a dama do amor cortés ou a dona-de-casa. No livro de hotas do Duque de Berry, no més de Fevereiro, o camponés no é mais 0 (nico a se aque- cet, como nas paredes de Senlis, de Paris ou de Amiens. Trés mulheres da casa ja estio sentadas em tomo do fogo, enquanto o homem ainda est do lado de fora, transido de frio no pitio coberto de neve. Em outras representagdes, a cena se tomna a imagem de um in- terior, de uma noite de inverno em que as pessoas ficam dentro de casa: © homem, diante da lareira, ainda aquece as mios e o pé descalco, mas, a0 lado, sta mulher trabalha trangiii~ lamente em sua roca (Charles d’Angouléme). Em abril, aparece o tema da corte de amor: a dama e seu amigo num jardim fechado com muros (Charles d’Angouléme). Ela também acompanha os cavaleitos & caga. Mas mesmo a dama nobre no & mais a heroina ociosa € ‘um tanto imaginfria dos jardins de abril, ou a cavaleira das festas de maio; ela também di- rige os trabalhos desse jardim de abril (Turim). A camponesa aparece mais vezes. Ela par- ticipa dos trabalhos dos campos com os homens (Berry, Angouléme). Di de beber aos tra- balhadores que fazem a colheita enquanto eles descansam nos dias quentes de verio (Hennessy, Grimani). Seu marido a leva de volta numa carreta com 0 cantil de vinho que 3CE spr, parce I cap. 1. ASIMAGENS DA FAMILIA. 133 ela Ihe havia trazido. Os cavaleiros e as damas no estio mais isolados nos prazeres nobres de abril ou de maio. Assim como a dama do livro de horas de Turim cuidava de seu jar~ dim, 0s cavaleiros e as damas se misturam aos camponeses, aos colhedores de uva (como na cena da colheita de cerejas do livro de horas de Turi). Quanto mais avancamos no tem- po, e sobretudo no século XVI, mais freqiientemente a familia do senhor da terra é repre- sentada entre os camponeses, supervisionando seu trabalho e participando de seus jogos. ‘Numerosas tapegarias do século XVI descrevem essas cenas campestres em que os senhores € suas criangas colhem uvas € supervisionam a colheita do trigo. O homem nio esté mais sozinho. O casal nio é mais apenas 0 casal imaginario do amor cortés, A mulher e a familia participam do trabalho e vivem perto do homem, na sala ou nos campos. Nao se trata pro- priamente de cenas de familia: as criangas ainda estio ausentes no século XV. Mas o artista sente a necessidade de exprimir discretamente a colaboragio da familia, dos homens e das mulheres da casa, no trabalho quotidiano, com uma preocupagio de intimidade outrora desconhecida, Ao mesmo tempo, a rua surge nos calendirios. A rua jé era um tema familiar da iconografia medieval: ela se anima com uma vida particularmente expressiva nas admiraveis vistas das pontes de Paris da Vida de Sio Denis, um manuscrito do século XIII. Assim como nas cidades érabes de hoje, a rua era o lugar onde se praticavam os oficios, a vida profissional, as conversas, 0s espeticulos ¢ 0s jogos. Fora da vida privada, por muito tempo ignorada pelos artistas, tudo se passava na rua. No entanto, as cenas dos calendarios, de inspiragio rural, durante muito tempo a ignoraram. No século XV, a rua tomou seu lugar nos calen- E verdade que os meses de novembro ¢ de dezembro do livro de horas de Turim darios, sio ilustrados com o tradicional sacrificio do porco. Mas aqui, ele se passa na rua, ¢ 0s vi~ zinhos estio diante de suas portas para observi-lo. No calenditio do livro de horas de Adelaide de Savoie, aparece 0 mercado: moleques cortam as bolsas de donas-de-casa ocu- padas e distraidas — reconhecemos af o tema dos pequenos batedores de carteiras, que se iria manter na pintura picaresca 20 longo de todo 0 século XVII! Uma outa cena do mesmo calendirio representa a volta do mercado: uma comadre pra para falar com sua vizinha, que esti na janela; alguns homens descansam sentados num banco, protegidos por um telheiro, e distraem-se vendo meninos jogar péla e lutar. Essa rua medieval, assim como a ua rabe de hoje, no se opunha 3 intimidade da vida privada; era um prolongamento dessa vida privada, 0 cendrio familiar do trabalho e das relagdes sociais. Os artistas, em suas tentativas relativamente tardias de representagio da vida privada, comecariam por mostra~ Jana rua, antes de segui-la até dentro de casa. Talvez essa vida privada se passasse tanto ou. mais na rua do que em casa Com a rua, 05 jogos invadiram as cenas dos calendarios: os jogos de cavalatia, como os torneios (Turim, Hennessy), 0s jogos comuns a todos, e as festas foleléricas, como a érvore de maio. O calendério do livro de horas de Adelaide de Savoie compde-se essencialmente de uma descricio dos mais diversos jogos, jogos de salio, jogos de forga e de habilidade, jogos tradicionais: a festa de Reis, a danga de maio, a luta, o héquei, as disputas entre dois ‘Livro de Horas de Adelsde de Savoie, daquesa de Borgonha, Chantilly 134 AS IMAGENS DA FAMILIA homens armados de varas em duas barcas, as guerras de neve. Em outros manuscritos, as~ sistimos a certames de tiro com bestas (Hennessy), a passeios de barco com mésica (Hennessy) ¢ 08 banhos coletivos (Grimani). Ora, sabemos que 0s jogos nio eram entio apenas diver- ses, mas uma forma de participagio na comunidade ou no grupo: jogava-se em familia, entre vizinhos, entre classes de idade, entre pardquias.$ Finalmente, a partir do século XVI, uma nova personagem entra em cena nos calendé- rios: a crianga. Sem diivida, ela ja aparecia com freqtiéncia na iconografia do século XVI, particularmente nos Miracles de Notre Dame, Mas ela havia permanecido ausente dos calen- dirios, como se essa tradi¢io iconogritica antiga tivesse hesitado em aceitar esse elemento tardio, Nos trabalhos dos campos, nio aparecem criangas 20 lado das mulheres. Apenas algumas servem 4 mesa nos banquetes de janeiro, Percebemo-las também no mercado do livro de horas de Adelaide de Savoie; nesse mesmo manuscrito, elas brincam de jogar bolas, de neve, atrapalham com sua bagunca o pregador na igreja e sio expulsas. Nos tiltimos manuscritos flamengos do século XVI, elas se divertem alegremente; percebe-se a predile- go que Ihes dedica o artista. Os calendirios dos livros de horas de Hennessy e de Grimani imitaram com precisio a aldeia coberta de neve das Tiés Riches Heures do Duque de Berry, na cena do més de janeiro que descrevemos acima, em que o camponés corre para casa a fim de se unir as mulheres que se aquecem. Contudo, eles acrescentaram uma outra perso- nagem: a crianga. E a crianga aparece na pose do Manneken-Pis, que se tornara freqiiente na iconografia da época —a crianga urina pela abereura da porta. Esse tema do Manneken- Pis é encontrado em toda a parte: lembremos o sermio de Sio Joio Batista do museu dos ‘Augustins de Toulouse (que outrora ornava a capela do Parlamento dessa cidade), ou um. certo puitto de Ticiano.® Nesses livros de horas de Hennessy ¢ Grimani, as criangas patinam no gelo, brincam de imitar 08 tomeios dos adultos (alguns reconheceriam entre elas o jovem Carlos V). No livro de horas de Munique, elas se atiram bolas de neve. No Hortulus animae, elas brincam. de corte,de amor e de torneio, montadas numa barrica, ou patinam no gelo.” As representacdes sucessivas dos meses do ano introduziram portanto essas novas perso- nagens: a mulher, o grupo de vizinhos e companheiros, e finalmente a crianga. E a ctianga se ligava a essa necessidade outrora desconhecida de intimidade, de vida familiar, quando no ainda precisamente, de vida “em familia” ‘Ao longo do século XVI, essa iconografia dos meses sofreria uma iiltima transformago muito significativa para nosso estudo: ela se tomaria uma iconografia da familia Ela se tor- naria familiar ao se combinar com o simbolismo de uma outta alegoria tradicional: as ida~ des da vida. Havia varias maneiras de representar as idades da vida, mas duas delas eram ‘mais comuns: a primeira, mais popular, sobreviveu na gravura, e representava as idades nos degraus de uma pitimide que subia do nascimento 4 maturidade, ¢ dai descia até a velhice ©a morte, Os grandes pintores recusavam-se a adotar essa composicio demasiado ingénua. SCE supra pate T, eap 4 Um dos put da “Bachanalia” do Prado (Madi). "Horus animae, Frankfurt, 1907, 7 vols. PS ASIMAGENS DA FAMILIA 135, De modo geral, adotavam a representacio das trés idades da vida sob a forma de uma crian- ¢a, alguns adolescentes — em geral um casal — ¢ um velho. No quadro de Ticiano,’ por exemplo, aparecem dois putti dormindo, um casal formado por uma camponesa vestida tocando flauta ¢ um homem nu no primeiro plano, e, 20 fundo, um velho sentado ¢ recurvado segurando uma caveira. © mesmo tema encontrado em Van Dyck,’ no século XVII. Nessas composigdes, as trés ou quatro idades da vida sio representadas separada- mente, segundo a tradicao iconogrifica. Ninguém teve a idéia de reuni-las dentro de uma mesma familia, cujas geracdes diferentes simbolizariam as trés ou quatro idades da vida, Os artistas, ¢ a opiniao que eles traduziam, permaneciam fiéis a uma concep¢ao mais individu- alista das idades: 0 mesmo individuo era representado nos diversos momentos de seu des- tino, Entretanto, ao longo do século XVI, surgira uma nova idéia, que simbolizava a duragio da vida através da hierarquia da familia. JA tivemos a ocasiio de citar Le Grande Propriétaire de toutes choses, esse velho texto medieval traduzido para o francés e editado em 1556.'° Como observamos, esse livro era um espelho do mundo. O sexto livro trata das “Idades”, E ilustrado com uma xilogravura que nio representa nem os degraus das idades, nem as trés ou quatro idades separadas, mas simplesmente uma reuniio de familia. O pai est sen~ tado com uma criancinha sobre os joelhos. Sua mulher esti de pé & sua direita. Um dos filhos esta 4 sua esquerda, e 0 outro dobra o joelho para receber algo que o pai Ihe di. ‘Trata-se a0 mesmo tempo de um retrato de familia, como os que abundavam nessa época nos Paises Baixos, na Itélia, na Inglaterra, na Franga e na Alemanha, e de uma cena de género familiar, como as que os pintores gravadores multiplicariam no século XVII. Esse tema conheceria a mais extraordinaria popularidade. Nao era um tema totalmente desconheci- do da Idade Média, 20 menos do final. Foi desenvolvido de forma notavel num capitel das Ieggias do palicio Ducal de Veneza, dito capitel do casamento. Venturi data essa represen- tagdo de cerca de 1424," enquanto Toesca a coloca no fim do século XIV, 0 que parece majs provivel devido ao estilo e ao traje, mas mais surpreendente em virtude da precoci- dade do tema." As oito faces desse capitel contam-nos uma histéria dramética que ilustra a fragilidade da vida, um tema familiar nos séculos XIV e XV — porém aqui, esse drama se passa no seio de uma familia, ¢ isso € novo. A representagio comeca pelo noivado. A seguir, a jovem mulher aparece vestida com um traje de ceriménia sobre o qual foram costurados pequenos discos de metal: seriam simples enfeites ou seriam moedas, jé que as. moedas desempenhavam um papel no folclore do casamento e do batismo? A terceira face representa a ceriménia do casamento, no momento em que um dos cénjuges segura uma coroa sobre a cabega do outro: rito que subsistiu na liturgia oriental. Entio, os noivos tém © diteito de se beijar. Na quinta face, eles estio deitados nus no leito nupcial. Nasce uma Londtes, Bridgewater Galley, "As Quatro Idades da Vide" CE, spr, parte I ep. Venturi, Storia del Ant tl, t. VI, p 32. "Toesca, Stra del Ate ial, tL 136 AS IMAGENS DA FAMILIA crianga, que aparece enrolada em cuciros e segura pelo pai e a mie juntos. Suas roupas parecem mais simples do que na época do noivado e do casamento: eles se tornaram pes- soas sérias, que se vestem com uma certa austeridade ou segundo a moda antiga. A sétima face retine toda a familia, que posa para um retrato. O pai e a mie seguram a crianca pelo ombro e pela mio. Jé é 0 retrato familiar, tal como o encontramos no Le Grand Propriétaire. Mas, com a oitava face, o drama explode: a familia sofre uma prova, pois a crianga esti morta, estendida sobre a cama, com as mios postas. A mie enxuga as grimas com uma das mios e pSe a outra no brago da crianga; 0 pai reza. Outros capitis, vizinhos deste, sio ormados com putti nus que brincam com friras, aves ou bolas: temas mais banais, mas que permitem recolocar o capitel do casamento em seu contexto iconogritico. A hist6ria do casamento comeca como a histéria de uma familia, mas acaba com 0 tema diferente da morte prematura. No museu Saint-Raimond, em Toulouse, podemos ver os fragmentos de um calendi- rio que péde ser datado do inicio da segunda metade do século XVI gracas aos trajes. Na cena do més de julho, a familia est4 reunida num retrato, como na gravura contemporinea do Le Grand Propriétaire, mas com um detalhe adicional que tem sua importincia: a presen ga dos criados ao lado dos pais. O pai e a mie estio no meio. O pai dé a mio ao filho, e a mie, 4 filha. O criado esti do lado dos homens, e a criada do lado das mulheres, pois os dois sexos sio separados como nos retratos de doadores: os homens, pais e filhos, de um lado, e as mulheres, mies ¢ filhas, do outro. Os criados fazem parte da familia Agosto € o més da colheita, mas o pintor se empenha em representar, mais do que a propria colheita, a entrega da colheita ao senhor, que tem na mio moedas para dar aos camponeses. Essa cena prende-se a uma iconografia muito freqtiente no século XVI, par- ticularmente nas tapecarias em que os fidalgos do campo supervisionam seus camponeses ou se divertem com eles. Outubro: a refeigio em familia. Os pais e as criangas esto sentados 4 mesa. A crianga menor esti encarapitada numa cadeira alta, que Ihe permite alcangar 0 nivel da mesa — uma cadeira feita especialmente para as criangas de sua idade, do tipo que vemos ainda hoje. Um menino com um guardanapo serve & mesa: talvez um criado, talvez um parente, encarregado naquele dia de servir 3 mesa, fungo que nada tinha de humilhante, muito a0 contrario. Novembro: o pai est’ velho e doente, tio doente que foi preciso recorrer ao médico. Este, com um gesto banal pertencente a uma iconografia tradicional, inspeciona o urinol. Dezembro: toda a familia esté reunida no quarto, em torno do leito onde o pai agoniza. Ele recebe a comunhio. Sua mulher esti de joelhos ao pé da cama. Atris dela, uma moga ajoelhada chora, Um rapaz segura uma vela. Ao fizndo, percebe-se uma crianga pequena: sem davida o neto, a proxima geracio que continuaria a familia. Portanto, esse calendério assimila a sucessio dos meses do ano 8 das idades da vida, mas representa as idades da vida sob a forma da hist6ria de uma familia: a juventude de seus fandadores, sua maturidade em tomo dos filhos, a velhice, a doenga e a morte, que é a0 ‘mesmo tempo a boa morte, a morte do homem justo, tema igualmente tradicional, e tam- bém a morte do patriarca no seio da familia reunida, ASIMAGENSDAFAMILIA 137 A histéria desse calendario comesa como a da familia do capitel do casamento do palé- cio dos Doges. Mas nio é 0 filho, a crianga querida, que a morte rouba cedo demais. As coisas seguem um curso mais natural. E 0 pai que parte, ao final de uma vida plena, cerca~ do por uma familia unida, e deixando-lhe sem divida um patriménio bem administrado. A diferenga esti toda af. Nao se trata mais de uma morte sibita, e sim da ilustragio de um sentimento novo: o sentimento da familia © aparecimento do tema da familia na iconografia dos meses no foi um simples episo- dio, Uma evolugio maciga arrastaria nessa mesma direcio toda a iconografia dos séculos XVI e XVIL. No principio, as cenas representadas pelos artistas se passavam ou num espago indeter- minado, ou em lugares piblicos como as igrejas, ou ao ar livre. Na arte gética, livre do simbolismo romano-bizantino, as cenas de ar livre tornaram-se mais numerosas ¢ mais sig- nificativas gracas 4 inven¢io da perspectiva ¢ ao gosto pela paisagem: a dama recebe seu cavaleiro num jardim fechado; a cacada conduz grupos através dos campos e florestas; 0 banho reine as damas em tomo da fonte de um jardim; 0s exércitos manobram, 0s cava- leiros se enfrentam em tomeios, o exército acampa em toro da tenda onde o Rei descan- sa, 05 exércitos sitiam cidades; os principes entram e saem das cidades fortificadas, sob a aclamagio do povo e dos burgueses. Penetramos nas cidades por pontes, passando diante das tendas onde trabalham os ou- tives. Vemos passar os vendedores de biscoitos, e as barcas carregadas descendo o rio. Ao ar livre ainda, vemos todos os jogos serem praticados. Acompanhamos os jograis ¢ os peregrinos em seu caminho. A iconografia profana medieval é uma iconografia do ar livre. Quando, nos séculos XII ou XIV, os artistas se propdem a ilustrar anedotas ou episddios particulares, eles hesitam, e sua ingenuidade suxpresa produz um resultado canhestro: nenhum, deles se compara ao virtuosismo dos artistas que representam epis6dios nos séculos XV e XVI. Antes do século XV, portanto, as cenas de interior sio muito raras. A partir de entio, las se tornam cada vez mais freqtientes. O evangelista, antes situado num meio atemporal, torna-se um escriba em sua escrivaninha, com a pena e a raspadeira na mio. Primeiro ele é colocado na frente de um simples drapeado decorativo, mas finalmente aparece num quaito cheio de livros em prateleiras: do evangelista, passou-se ao autor em seu quarto, a Froissart escrevendo uma dedicatéria em seu livro,' Nas ilustragdes do texto de Teréncio do pali- cio dos Doges, as mulheres trabalham e fiam em seus aposentos, com suas criadas, ou apa~ recem deitadas na cama, nem sempre sozinhas. Véem-se cozinhas e salas de albergues. As cenas galantes ¢ as conversagBes se passam agora no espaco fechado de uma sala. Surge o tema do parto, cujo pretexto é o nascimento da Virgem. Criadas, comadtes ¢ parteiras se atarefam no quarto em torno da cama da mie. Surge também o tema da morte, da morte no quarto, em que agonizante luta em seu leito por sua salvagio. A representacio mais freqiiente do quarto e da sala corresponde a uma tendéncia nova, do sentimento, que se volta entio para a intimidade da vida privada. As cenas de exterior A Lindner, Der Braslaer Fost, 1912. 138 AS IMAGENS DA FAMILIA nfo desaparecem, é certo — sfo a origem das paisagens, mas as cenas de interior tornam- se mais numerosas € mais originais. Iriam caracterizar a pintura de género durante todo o tempo de sua existéncia. A vida privada, rechacada na Idade Média, invade a iconografia, particularmente a pintura e a gravura ocidentais no século XVI e sobretudo no XVII: a pintura holandesa e flamenga e a gravura francesa comprovam a extraordinéria forca desse sentimento, antes inconsistente ou menosprezado. Sentimento ja tio moderno, que para nés € dificil compreender o quanto era novo. ssa farta ilustragdo da vida privada poderia ser classficada em dois grupos: o do namoro da farra 3 margem da vida social, no miundo suspeito dos mendigos, nas tabernas, nos bivaques, entre os boémios € os vagabundos — grupo que desprezaremos por estar fora de nosso assunto — e sua outra face, o grupo da vida em familia. Se percorrermos as colegdes de estampas ou as galerias de pintura dos séculos XVI-XVI, ficaremos impressionados com essa verdadeira avalancha de imagens de familias. Esse movimento culmina na pintura da primeira metade do século XVII na Franga, ¢ na pintura de todo o século e até mais na Holanda. Ele persiste na Franca durante a segunda metade do século XVII na gravura € nos leques pintados, reaparece no século XVIII na pintura, e dura até o século XIX, até a grande revolugio estética que baniria da arte a cena de género. Nos séculos XVI e XVII, os retratos de grupos sio numerosissimos. Alguns sio retratos de conffarias ou corporagdes. Mas a maioria representa uma familia reunida, Estes tltimos surgem no século XV, com os doadores que se fizem representar modestamente no nivel inferior de alguma cena religiosa, como sinal de sua devogio. De inicio, esses doadores sio discretos ¢ estio sozinhos. Mas logo comegam a trazer a seu lado toda a familia, incluindo os vivos ¢ os ‘mortos: as mulheres € os filhos mortos também tém seu lugar na pintura. De um lado aparece ‘© homem e os meninos, do outro a ou as mulheres, cada uma com as filhas de seu leito. O nivel ocupado pelos doadores amplia-se a0 mesmo tempo em que se povoa, em de- trimento da cena religiosa, que se torna entio uma ilustrago, quase um liors-d’oeuvre. Na maioria dos casos ela se reduz aos santos padroeiros do pai e da mie, 0 santo do lado dos homens e a santa do lado das mulheres, Convém observar a importincia assumida pela de- vogio dos santos padrociros, que figuram como protetores da familia: ela é o sinal de um. culto particular de catdter familiar, como 0 do anjo da guarda, embora este tiltimo tenha ‘um cardter mais pessoal e mais peculiar 4 infinci Essa etapa do retrato dos doadores com sua familia pode ser ilustrada com numerosos exemplos do século XVI: os vitrais da familia Montmorency em Monfort-L’Amaury, Montmorency e Ecouen; ou os numerosos quadros pendurados como ex-votos nos pilares e nas paredes das igrejas alemis, muitos dos quais ainda permanecem em seu lugar nas igre- |jas de Nurembergue. Muitas outras pinturas, as vezes ingénuas e malfeitas, chegaram aos ‘museus regionais da Alemanha e da Suica alema. Os retratos de familia de Holbein sio figis. a esse estilo." Tudo indica que os alemies se tenham apegado por mais tempo a essa forma de retrato religiosa da familia, destinado 4s igrejas; ele seria uma forma mais barata do vitral dos doadores, mais antigo, ¢ anunciaria os ex-votos mais anedéticos e pitorescos do século Basilia, Museu de Bels-Arces. ASIMAGENS DAFAMILIA 139 XVIII ¢ inicio do XIX, que representam nio mais a reuniio familiar dos vivos e dos mor- tos, mas 0 acontecimento miraculoso que salvou um individuo ou um membro da familia de um naufragio, um acidente ou uma doenga. O retrato de familia é também uma espécie de ex-voto. A escultura faneraria inglesa da época elisabetana fornece um outro exemplo do retrato de familia a servigo de uma forma de devocio. Esse exemplo, aliés, é especifico, e nio é encontrado com a mesma freqiiéncia ¢ a mesma ficilidade na Franca, na Alemanha ou na Ikdlia. Muitos ttimulos ingleses dos séculos XVI ¢ XVII mostram toda a familia reunida em tomo do defunto, em baixo ou em alto-relevo: a insisténcia na enumeragio das criangas, vivas ou mortas, é impressionante, e varios desses ttimulos ainda so encontrados na abadia de Westminster: Sir Richard Pecksall, por exemplo, morto em 1571, aparece entre suas duas mulheres, ¢ na base do monumento hé pequenas figuras esculpidas: suas quatro filhas. De cada lado da estétua deitada de Margaret Stuart, morta em 1578, véem-se seus filhos € filhas. Sobre ttimulo de Winifred, Marquesa de Winchester, morta em 1586, também es- culpida em posig&o deitada, aparece seu marido ajoelhado, representado numa escala redu- ida, e, ao lado, um minésculo timulo de crianga Sir John e Lady Puckering, morta em 1596, estio esculpidos deitados lado a lado, no meio de suas oito filhas. © casal Norris (1601) aparece ajoelhado no meio de seus seis filhos. Em Holdham, contam-se 21 figurinhas sobre 0 témulo de John Coke (1639), alinhadas como nos retratos de doadores, e as que esto mortas seguram uma cruz. Sobre o témtulo de Cope d’Ayley em Hambledone (1633), os quatro meninos e as trés meninas esto dian- te de seus pais ajoelhados; entre eles, um menino e uma menina seguram uma caveira Em Westminster, a Duquesa de Buckingham mandou erigir em 1634 0 tiimulo de seu marido, assassinado em 1628; 0s cénjuges estio esculpidos em posico deitada, no meio de suas criangas.! Essas representagdes alemies e inglesas prolongam aspectos ainda medievais do retrato de familia. A partir do século XVI, 0 retrato de familia se liberou de sua fungio religiosa. Foi como se 0 rés-do-chio dos quadros de doadores tivesse invadido toda a tela, expulsan- do dela a imagem religiosa, que, ou desapareceu completamente, ou persistiu sob a forma de uma pequena imagem devota pendurada na parede de fundo do quadro. A tradigio do ex-voto ainda esti presente num quadro de Ticiano pintado em tomno de 1560:"* os mem- bros de sexo masculino da familia Cormaro — um velho, um homem maduro de barba grisalha, um homem jovem de barba negra (a barba, sua forma e sua cor sio indicios da dade) e seis meninos, 0 menor dos quais brinca com um cio — esto agrupados em toro de um altar. Em certos casos, também, o retrato de familia adota a forma material, a apre~ sentagio do quadro de igreja: existe no Victoria and Albert Museum um triptico de 1628 que representa no painel central um menininho e uma menininha, e nos painéis laterais, os dois pais.” Esses quadros no se destinavam mais is igrejas, decoravam agora os interiores SCE F. Bond, Westminster Abbey, 1909. "Ticiano, reproduzido em K.d. K., n° 168, Victoria and Albert Museum, a°5, 1951 140 ASTMAGENS DA FAMILIA particulares. E essa laicizagio do retrato de familia é certamente um fenémeno importante: a familia se contempla cla propria na casa de um de seus parentes. Sente-se a necessidade de fixar o estado dessa familia, lembrando-se também as vezes os desaparecidos através de uma imagem ou uma inscrigo na parede. Esses retratos de familia sio muito numerosos, e seria inétil aponté-los todos. A lista seria longa e monétona. Eles sio encontrados tanto em Flandres como na Itilia, com Ticiano, Pordenone e Veronese, na Franga, com Le Nain, Lebrun e Tournier, na Inglaterra ou na Holanda, com Van Dyck, nos séculos XVI, XVII, e até mesmo. inicio do século XVIIL. Nessa época cles deviam ser to numerosos como os retratos individuais. Muitas vezes foi dito que o retrato revela 0 progresso do individualismo, Talvez. Mas é notivel que ele traduza acima de tudo o imenso progresso do sentimento da familia. No inicio, os membros da familia sio agrupados de forma seca, como nos quadros dos doadores ou na gravura das idades da vida de Le Grand Propriétare, ou na miniatura do museu Saint-Raimond, Mesmo quando tém mais vida, “posam”” numa atitude solene € destinada a salientar o Iago que os une. Numa tela de Pourbus,'* 0 marido apéia a mo esquerda no ombro da mulher; a seus pés, uma das crianeas repete © mesmo gesto, apoian— do a mio no ombro da irmazinha. Sébastien Leers foi pintado por Van Dyck segurando a mio de sua mulher." Numa tela de Ticiano,”* trés homens barbudos cercam uma crianga, {inica nota clara no meio dos trajes negros, e um deles aponta-a com 0 dedo: a crianga est no centro da composicio, Contudo, muitos cesses retratos no procuram animar suas per- sonagens: os membros da familia sio justapostos, is vezes ligados por gestos que exprimem seu sentimento reciproco, mas nio participam de uma ago comum. E © que ocorre com a familia Pordenone da galeria Borghese — o pai, a mie e sete criangas — ou ainda da familia Pembroke de Van Dyck:*' 0 Conde ¢ a Condessa estiio sentados, ¢ as outras perso- nagens, de pé & direita um casal, certamente um filho ou filha casados, e & esquerda, dois adolescentes muito elegantes (a elegincia é um simbolo da adolescéncia masculina, e se atentia com a seriedade da maturidade), um escolar com seu livro embaixo do brago, e dois, outros meninos mais mo¢os. Por volta de meados do século XVI, 0s artistas comegaram a representar a familia em tomo de uma mesa coberta de frutas: a familia Van Berchaun de Floris, de 1561, ou a fa- miflia Anselme de Martin de Vos, de 1577.2 Ou entio, vemos a fimilia que parou de co- ‘mer para fazer msica: nao se trata, como sabemos, de um artificio do pintor, pois as refei- ‘ces muitas vezes terminavam por um concerto ou eram interrompidas por uma cangio. A familia que posa para o artista, com um grau maior ou menor de afetagio, permaneceria na arte francesa até pelo menos 0 inicio do século XVIII, com Tournier e Largilligre. Mas, sob a influéncia particular dos holandeses, 0 retrato de failia muitas vezes seria tratado como uma cena de género: o concerto apés a refeicio € um dos temas que os holandeses pourbus, Le Porat dans Vat flanand. Exposigao, Patis, 1952, n° 71 Van Dyck, “Sebastien Leer, sua mulher ese filho”. Reprodurido em K. d. K. 2 *Ticiano, reproduzido em K.d. K., n° 236. Van Dyck, “A Familia Pembroke”, reproduride em K. d. K., nt 393, *Lz Portait dans Var flanand, Pars, 1952, op. cit, nts 19 © 93, 79. ASIMAGENS DA FAMILIA. 141 multiplicariam. Dai em diante, a familia seria retratada num instantineo, numa cena viva, num certo momento de sua vida quotidiana:® os homens reunidos em torno da lareira, uma mulher tirando um caldeitdo do fogo, uma menina dando de comer ao irmaozinho. Dai em diante, torna-se dificil distinguir um retrato de familia de uma cena de género que evoca a vida em familia. Durante a primeira metade do século XVII, as velhas alegorias medievais também sio atingidas por essa contaminagio geral, e sio tratadas como ilustracées da vida familiar, sem respeito pela tradicio iconogrifica. Jé vimos o que aconteceu no caso dos calendarios. As outras alegorias clissicas se alteraram no mesmo sentido. No século XVII, as idades da vida tomaram-se pretextos para as imagens da vida familiar. Numa gravura de Abraham Bosse representando as quatro idades do homem, a infincia é sugerida pelo que hoje chamaria- mos de mursery: um bebé no berco vigiado por uma irmé atenta, uma crianca de ténica mantida de pé numa espécie de cercado com rodas (objeto muito comum entre os séculos XV e XVIII), uma menina com sua boneca, um menino com um catavento, e dois meni- nos maiores preparando-se para brigar, tendo um deles jogado no chao seu chapéu e sua capa. A vitilidade é ilustrada pela refeicio que retine toda a familia em torno da mesa, numa cena aniloga & de varios retratos, e que seria muitas vezes repetida tanto na gravura francesa como na pintura holandesa. Eo mesmo espirito da gravura das idades de Le Grand Propriétaive, do meio do século XVI, e da miniatura do museu Saint-Raimond, Toulouse. A idade viril é sempre a familia. Humbelot* no reuniu a familia em tomno da mesa, mas no gabinete do pai, um rico negociante em cuja casa se amontoam fardos de mercadorias ese alinham pastas de processos. O pai fiz suas contas, com a pena na mio, ajudado pelo filo que se mantém atris; a seu lado, a mulher cuida da filha pequena; um jovem criado entra com uma cesta cheia de provisdes, sem diivida voltando da casa de campo. No fim do século XVII, uma gravura de F. Guérard® retoma o mesmo tema. O pai — mais mogo do que na gravura de Humbelot-Huart — mostra pela janela 0 porto, 0 cais € os navios, fonte de sua fortuna, Dentro do aposento, perto da mesa onde ele fiz suas contas ¢ onde estio pousadas sua bolsa, algumas fichas ¢ um ébaco, sua mulher nina um bebé de cueiros e cuida de outra crianga vestida com uma tinica, A legenda da o tom e sublinha o espfrito dessa iconografia: Heures: qui di Ciel sit la ly Et mt le pls beau de a vie A bien sovr son Dict, fail, et sou Roy* Aqui, a familia é colocada no mesmo plano que Deus ¢ o Rei. Esse sentimento nada tem de surpreendente para nés, homens do século XX, mas era novo na época, ¢ sua ex- pressio deveria nos espantat. Humbelot ilustraria 0 mesmo tema, desenhando uma mulher jovem que mostra o seio a uma crianga trepada em suas costas. Nao devemos esquecer de que P. Aersen, meados do século XVI. Reproduzide em Geran L 98. 'Humbeloc-Huard, Cabinet des Eseampes, Ed. 13 in "Guérand, grvura, Cabiner de Estampes, 02 22, vol. VI. 170. ‘Feliz daquele que segue a lei do Céu / E emprega a parte mais bela de ua vida / Em bem servira seu Deus, sua familia eseu Rei”. (N.doT) 142 ASIMAGENS DA FAMILIA no século XVII as criangas desmamavam muito tarde. Hé ainda uma outra gravura de Guérard que representa a dona-de-casa com suas chaves e suas criangas, dando ordens a uma criada.* ‘As outtas alegorias também evoluem para as mesmas cenas de familia. Num holandés do inicio do século XVII, 0 olfato, um dos cinco sentidos, é representado pela cena que se tomaria banal da toalete da crianga nua no momento em que sua mie lhe limpa o trasciro.”” Abraham Bosse simboliza também um dos quatro elementos, a terra, através de uma imagem da vida familiar: num jardim, uma ama segura uma crianga vestida com uma tiini- ca; seus pais, que, da entrada da casa, a contemplam com ternura, divertem-se em lancar~ Ihe feutas — os frutos da terra. Até mesmo as Beatitudes dio pretexto a evocagies da vida em familia: em Bonnard-Sandrart, a V Beatitude torna-se o perdio da mie is suas crian- ¢2s, perdio que ela confirma distribuindo-lhes guloseimas — é jé o espfrito familiar senti- mental do século XIX. De modo geral, a cena de género moderna nasceu da ilustragio das alegorias tradicionais da Tdade Média. Mas a distincia entre 0 tema antigo e sua nova expressio é enorme, Esquecemo-nos da alegoria das estagdes e do inverno quando contemplamos um quadro de Stella, representando uma noite ao pé do fogo: de um lado da grande sala, os homens ceiam, enquanto do outro, em volta da lareira, as mulheres fiam ou trangam o junco e as criangas brincam ou sio lavadas. Nao é mais o inverno, é 0 vero. Nao é mais a virilidade ow a terceira idade, é a reunio de familia. Nasce uma iconografia original, estranha aos velhos temas desgastados que no principio ela havia ilustrado. O sentimento da familia constitui sua inspiragio essencial, uma inspiragio muito diferente daquela das antigas ale~ gorias. Seria ficil elaborarmos um catélogo de temas repetidos ad nauseam: a mie vigiando a crianga no berco,” a mie amamentarido a crianga,” a mulher fazendo a toalete da crian- ga, a mie catando piolho na cabeca da crianca (operagio corriqueira ¢ que aliis nio se li- iitava ds criangas, pois Samuels Pepys se submetia a ela)" 0 irmao ou irmé tentando ver © bebé no bergo na ponta dos pés, a crianga na cozinha ou no celeiro com um criado ou uma criada a crianga fazendo compras num armazém. Este iio tema, freqiiente na pintura holandesa,® também foi tratado pelos gravadores fianceses — em meados do século por Abraham Bosse (0 padeiro), ¢ no final do século por Le Camus (o taberneiro, que ven- Gérard, “a femme en mariage”, gravura, Cabinet des Estampes, Ee 3 in-f% avid I Ryckaert (1586-1642). Museu de Genebra, 2*Borinar e Sandrat, “Cinguidme Béasitude”, Cabinet des Eseampes, Ed. 113 in-f, vo. 6. Dou, Kd. K, pp. 90, 91 € 92 Fragonard, desenio. Exposigio Fragonard, Berna, 1954. G. Dou, K. d.K., 94, Brouwer, W. de Bode, p. 73, Berey, gravura, Cabinet des Extmpes, Fd, 108 in-f, Sella, “L’Hiver", gravura, Cabinet des Estampes, Da 4 int, p. Cripinde Pos, Cabiner des Estampes, Be 35 in-F,p. 113. ™Dassonville, gavuri, Cabinet des Estampes, Ed 35-c pet. in-f, 5, 6, 26, Dou, K. d. K., 94. G. Terboch, “Mulher ‘atando piolho na cabeca de seu filho”. Bert, 109. P. de Hooch, K. d. K, 60, Siberechts, Bema, 754 %G, Dou, K. d. K., 122, 123, 124 "Crianga na cozinha”. P. de Hooch, “Criada pasando um cantil a uma menina”, K. 4.K,, 57. A. de Pope, "Crianga olhando a cozinheira depenar a caga", Berndt, 634. Velasquez, “Criado pegando uma erianca no colo part coloci-la sobre a mesa com frutas", Kd. K., 166. Strozi, “Cozinheira depenando um ganso”, G. Fiacco, pr. IV. Le Nain, “O jardineito”, Fierens, 87. 8G. Dou, "Menina pogando’ vendedor.", Kd. K., 133. Van Miess, “Crianga comprando um biscoito ¢ comendo-o", Bemdt, $33. Le Camus, gravura ASIMAGENSDAFAMILIA 143 dia vinhos) —mas é 0 espirito dessas imagens que é preciso compreender. Uma tela de Le Nain representa um camponés cansado que ferrou no sono. Sua mulher faz psiu! para as cciangas, mostrando-Ihes o pai que descansa, e que niio deve ser acordado: é jé um Greuze, no pela pintura ou 0 estilo, é claro, mas pela inspirago sentimental. A agio é centrada na crianga. Numa tela de Peter de Hooch,» as pessoas estio reunidas para almocar. O pai bebe sentado; uma crianca de cerca de dois anos esti de pé em cima de uma cadeira; cla usa 0 chapéu redondo e acolchoado comum na sua idade, em que o andar ainda nao é firme, para protegé-la em seus tombos. Uma mulher (a criada?) a segura com uma das mios ¢, com a outra, estende um copo de vinho a uma outra mulher (a mée?), que mergulha nele um biscoito. Ela vai dar o biscoito molhado ao papagaio para distrair a crianga, e a distra~ fo da crianga no seio da familia cuja unidade ela assegura € 0 verdadeiro tema do pintor, © sentido de sua anedota. O sentimento da familia, que emerge assim nos séculos XVI- XVII, é inseparivel do sentimento da infincia, O interesse pela infincia, que analisamos no inicio deste livro, nao é senjo uma forma, uma expresso particular desse sentimento mais geral, 0 sentimento da familia, A anilise iconogrifica leva-nos a concluir que 0 sentimento da familia era desconhecido da Idade Média e nasceu nos séculos XV-XVI, para se exprimir com um vigor definitivo no século XVIL. Somos tentados a comparar essa hipétese com as observagdes dos historiado- res da sociedade medieval. A idéia essencial dos historiadores do direito e da sociedade é que os lagos de sangue nio constituiam um dinico grupo, e sim dois, distintos embora concéntricos: a familia ou mesnie, que pode ser comparada 4 nossa familia conjugal moderna, ¢ a linhagem, que estendia sua solidariedade a todos os descendentes de um mesmo ancestral. Em sua opiniio, haveria, mais do que uma distingio, uma oposigio entre a familia e a linhagem: os progressos de uma provocariam um enfraquecimento da outra, a0 menos entre a nobreza. A familia ou mesnie, embora nao se estendesse a toda a linhagem, compreendia, entre os membros que residiam juntos, varios elementos, e, 4s vezes, virios casais, que viviam numa propriedade que eles se haviam recusado a dividir, segundo um tipo de posse chamado freee ou fiatemitas. A fierce agrupava em tomo dos pais 0s filhos que nio tinham bens proprios, os sobrinhos ou 0 primos solteiros. Essa tendéncia & indivisio da familia, que aliés no durava além de duas geracdes, deu origem s teorias tradicionalistas do século XIX sobre a grande familia patriarcal. A familia conjugal moderna seria portanto a conseqiiéncia de uma evolucio que, no final da Idade Média, teria enfraquecido a linhagem e as tendéncias 4 indivisio, Na realidade, a histéria das relacées entre a linhagem e a familia é mais complicada. Ela foi acompanhada por G. Duby na regio do Miconnais, do século IX 20 XIII inclusive. No Estado franco, escreve G. Duby, “a familia do século X, a0 que tudo indica, era uma comunidade reduzida & sua expressio mais simples, a célula conjugal, cuja coesio em cettos casos se prolongava por algum tempo apés a morte dos pais nas fiereches. Mas os lacos Hp, de Hooch, eproduzido em Berndt, 399, %G, Duby, La Savté aux XF e XTF sees den la rigion mécomneie, 1955. 144 AS IMAGENS DA FAMILIA eram muito frouxos. E que eles eram inditeis: os érgios de paz do velho Estado franco ain- da eram bastante vigorosos para permitir ao homem livre viver uma vida independente ¢ preferir, se assim o desejasse, a companhia de seus vizinhos e amigos 3 de seus parentes” ‘A solidariedade da linhagem e a indivisio do patriménio se desenvolveram, 20 contr rio, em conseqiiéncia da dissolugio do Estado: “Depois do ano mil, a nova distribuicio dos poderes de comando obrigou os homens a se agruparem mais estreitamente”. O es treitamento dos lacos de sangue que entio se produziu correspondia a uma necessidade de protecio, do mesmo modo como outras formas de relagdes humanas e de dependéncias: homenagem de vassalo, a suzerania ¢ a comunidade aldel. “Demasiado independentes € mal defendidos contra certos perigos, 0s cavaleiros procuraram refiigio na solidariedade de linhagem.” ‘Ao mesmo tempo, nesses séculos XI ¢ XII do Miconnais, podemos constatar 0 progres- so da indivisio. £ dessa época que data a indivisio dos bens dos dois cénjuges, que, no século X, ainda nao estavam fundidos numa massa comum, administrada pelo marido: nesse século, o marido e a mulher geriam cada um seus bens hereditirios, compravam e vendiam separadamente, sem que 0 cOnjuge pudesse interferir. ‘A indivisio quase sempre também foi estendida aos fills, que eram impedidos de obter qualquer adiantamento sobre sua heranga: “Agrega¢io prolongada na casa patema e sob a autoridade do ancestral, dos descendentes desprovidos de pectilio pessoal ¢ independéncia econémica”. A indivisio muitas vezes subsistia apés a morte dos pais: “E preciso imaginar © que era entio a casa de um cavaleiro, reunindo num mesmo dominio, numa mesma “corte”, 10, 20 senhoras, dois ou trés casais com filhos, os irmios € as irmis solteiras € 0 tio cénego, que aparecia de tempos em tempos ¢ preparava a carreira de um ou outro sobri- nho”. A fiereche raramente durava além da segunda geracio, mas, mesmo apés a divisio do patriménio, a linhagem conservava um direito coletivo sobre o conjunto do patriménio dividido: a andatio parentum, a recuperacio da heranga da linbagem Essa descricio aplica-se sobretudo A familia dos cavaleiros, que jé poderfamos chamar de familia nobre. G. Duby acredita que a familia camponesa tenha vivido menos intensamen- te esse estreitamento dos lagos de sangue porque os camponeses haviam preenchido de maneira diferente dos nobres 0 vazio deixado pela dissolugio do Estado franco: a tutela do senhor havia substituido imediatamente a protecio dos poderes piiblicos, e a comunidade alded havia fornecido aos camponeses um quadro de organizagio € de defesa superior & familia. A comunidade alded teria sido para os camponeses o que a linhagem foi para os nobres. Durante 0 século XIII, a situagio mais uma vez se inverteu. As novas formas de econo- mia monetiria, a extensio da fortuna mobilidria, a freqtiéncia das transagdes, ¢, ao mesmo tempo, os progressos da autoridade do Principe (quer fosse um Rei capetingio ou o chefe de um grande principado) e da seguranga péblica provocaram um estreitamento das soli- dariedades de linhagem e 0 abandono das indivisées patrimoniais. A fimilia conjugal tor- nou-se novamente independente. Contudo, a classe nobre nio voltou 4 familia de lacos frouxos do século X. O pai manteve ¢ até mesmo aumentou a autoridade que, nos séculos Xe XI, Ihe havia sido conferida pela necessidade de manter a integridade do patriménio ASIMAGENS DA FAMILIA 145 indiviso. Sabemos, por outro lado, que, a partir do fim da Idade Média, a capacidade da mulher entrou em declinio. Foi também no século XIII, na regiio do Maconnais, que 0 direito da primogenitura se difiundiu nas familias nobres. Ele substituiu a indivisio, que se tomou mais rara, como meio de salvaguardar o patriménio e sua integridade. A substitui- io da indivisio e da comunhio de bens do casal pelo direito de primogenitura parace ser ao mesmo tempo um sinal da importéncia atribufda 4 autoridade paterna ¢ do lugar assu- mido na vida quotidiana pelo grupo do pai e seus filhos. Georges Duby conclui: “Na realidade, a familia é o primeiro refiigio em que 0 indivi- duo ameagado se protege durante os periodos de enfraquecimento do Estado. Mas assim. que as institui¢des politicas lhe oferecem garantias suficientes, ele se esquiva da opressio da familia ¢ os laos de sangue se afrouxam. A histéria da linhagem é uma sucessio de contra- Ges e distensdes, cujo ritmo sofre as modificagdes da ordem politica”. A oposigio entre a familia ea linhagem é menos marcada em G. Duby do que em ou- t10s historiadores do direito. Trata-se menos de uma substituigo progressiva da linhagem pela familia — 0 que, de fato, pareceria ser uma visio puramente teérica ~ do que da di- latagio ou da contragio dos lagos de sangue, ora estendidos a toda a linhagem ou aos mem- bros da frereche, ora restringidos ao casal e sua prole. Tem-se a impressio de que apenas a Tinhagem era capaz de exaltar as forcas do sentimento e da imaginacio. Por esse motivo, la deixou tantas marcas nos romances de cavalaria. A comunidade familiar teduzida, 20 conttitio, levava uma vida obscura que escapou 4 atencio dos historiadores. Mas essa obs- curidade tem um sentido. No mundo dos sentimentos e dos valores a familia no contava tanto como a linhagem. Poder-se-ia dizer que o sentimento da linhagem era 0 tinico sen- timento de cariter familiar conhecido na Idade Média. Mas ele € muito diferente do sen- timento da familia, tal como o vimos na iconografia dos séculos XVI e XVII. Estende-se a0s lagos de sangue, sem levar em conta os valores nascidos da coabitagio e da intimidade, A linhagem nunca se retine num espago comum, em toro de um mesmo patio. Nao tem nada de comparivel a Zadrouga serva. Os historiadores do direito reconhecem que nio hi vestigios de grandes comunidades “silenciosas” na Franca antes do século XV. Ao contri~ rio, 0 sentimento da familia esti ligado & casa, ao governo da casa e a vida na casa. Seu encanto nio foi conhecido durante a Idade Média porque esse perfodo possuia uma con- cepeio particular da familia: a linhagem. A partir do século XIV, porém, assistimos ao desenvolvimento da familia moderna, Esse processo, bastante conhecido, foi claramente resumido por M. Pelot:** “A partir do século XIV, assistimos a uma degradacio progressiva ¢ lenta da situacio da mulher no lar. Ela perde o direito de substituir 0 marido ausente ou louco... Finalmente, no século XVI, a mulher casada toma-se uma incapaz, ¢ todos os atos que faz sem ser autorizada pelo mari~ do ou pela justiga tomam-se radicalmente nulos. Essa evolugio reforca os poderes do ma- rido, que acaba por estabelecer uma espécie de monarquia doméstica”. “A partir do século XVI, a legislagio real se empenhou em reforcar 0 poder patemo no que concerne ao casa~ %P. Pelor, “La famille en France sous PAncien Régime”, in Svolge compare dela fille contenpoaine, Colbquios do CNRS, 19: 146 AS IMAGENS DA FAMILIA mento dos fillos.” “Enquanto se enfraqueciam os lagos da linhagem, a autoridade do ma~ rido dentro de casa tomava-se maior e a mulher € os filhos se submetiam a ela mais estri~ tamente. Esse movimento duplo, na medida em que foi o produto inconsciente e espon- tineo do costume, manifesta sem ddvida uma mudanca nos hdbitos ¢ nas condigdes soci~ ais..." Passara-se portanto a atribuir j familia o valor que outrora se atribuia a linhagem. Ela torna-se a céhula social, a base dos Estados, o fiandamento do poder monarquico. Veremos agora a importincia que lhe era atribuida pela religiio. ‘A exaltacio medieval da linhagem, de sua honra, da solidariedade entre seus membros, era um sentimento especificamente leigo, que a Igteja ignorava, quando nao via com des- confianga, © naturalismo pagio dos lagos de sangue pode muito bem ter-lhe parecido re- pugnante. Na Franca, onde a Igreja aceitou a hereditariedade dos reis, é significativo que ela no a tenha mencionado na liturgia da coroagio. Além disso, a Idade Média nao conhecia o principio moderno de santificagio da vida leiga, ou melhor, s6 0 admitia em casos excepcionais: 0 santo rei (mas o rei fora consagra~ do), ou o bom cavaleiro (mas 0 cavaleiro havia sido iniciado apés uma ceriménia que se tornara religiosa). O sacramento do casamento poderia ter tido a fungéo de enobrecer a ‘unio conjugal, de the dar um valor espiritual, bem como 4 familia. Mas, na realidade, ele apenas legitimava a unio, Durante muito tempo, o casamento foi apenas um contrato. A cetiménia, a julgar por suas representagdes esculpidas, nao se realizava no interior da igre- ja, e sim na entrada, diante do pértico. Qualquer que fosse 0 ponto de vista teolégico, a ‘maioria dos padres, considerando suas ovelhas, devia partilhar opinio do cura de Chaucer, para quem o casamento era uma questio de diltimo caso, uma concessio & fiaqueza da car- ne.” Ele no livrava a sexualidade de sua impureza essencial. Sem diivida, essa reprovagio no chegava a condenagio da familia e do casamento, maneira dos cétaros do Sul da Franga; ‘manifestava, porém, uma desconfianga com relagio a todo fruto da came. Nao era na vida leiga que o homem podia se santificar; a unio sexual, quando abengoada pelo casamento, dei- xava de ser um pecado, mas iso era tudo. Por outro lado, o outro grande pecado dos leigos, o pecado da usura, perseguia © homem em suas atividades temporais. O leigo no dispunha de outro meio pata assegurar sua salvacio além de abandonar completamente o mundo e entrar para a vida religiosa, Na sombra do claustro, ele podia reparar os erros de seu passado profano, Foi preciso esperar o fim do século XVI, o tempo da Philotée de Sao Francisco de Sales, ou, no século XVII, 0 exemplo dos senhores de Port-Royal — e, de modo mais geral, de todos esses leigos empenhados em importantes atividades religiosas, teol6gicas, espirituais e misticas — para que se admitisse a possibilidade de uma santificagio fora da vocagao re- ligiosa, na pritica dos deveres civis. Para que uma institui¢io natural tio ligada 4 came como a familia se tornasse objeto de uma devogio, essa reabilitagio da condiglo leiga era necessiria. Os progressos do senti- mento da familia ¢ os da promogio religiosa do leigo seguiram caminhos paralelos. Pois 0 sentimento modemo da familia — a0 contritio do sentimento medieval da linhagem — Chaucer, The Pason's Tale. CE Philippe Avis em Populations, 1954, p. 692. AS IMAGENS DA FAMILIA 147 penetrou na devogio comum. O sinal mais antigo dessa devocio, ainda muito discreto, aparece no hébito iniciado pelos doadores de quadros ou vitrais de igreja de agrupar em seu redor toda a familia, e, mais ainda, no costume posterior de associar a familia ao culto do santo padroeiro. No século XVI, era fieqiiente oferecer como ex-votos rettatos dos santos padroeiros do marido e da mulher, cercados pelos préprios cdnjuges e suas ctiangas. O culto dos santos padroeiros tornou-se um culto de familia. AA influéncia do sentimento da familia também pode ser reconhecida, especialmente no século XVI, na nova maneira de pintar um casamento ou um batismo. No final da Idade ‘Média, os miniaturistas costumavam representar a propria ceriménia religiosa, tal como ela se desenrolava na entrada da igreja: lembremos, por exemplo, o casamento do Rei Cosius ¢ da Rainha Sabinéde na vida de Santa Catarina, em que o padre enrola a estola em toro das mios dos dois noivos: ou 0 casamento de Filipe de Macedénia,™ pintado pelo mesmo Guillaume Vrelant, na historia do bom Rei Alexandre, em que, atris do padre, no timpa~ no da porta da igreja, se percebe uma cena esculpida que mostra um matido batendo na mulher. Nos séculos XVI e XVII, nio se representava mais a ceriménia do casamento — ‘a no ser no caso de reis e principes. Ao contrario, preferia-se evocar os aspectos familiares da festa, quando os parentes, 0s amigos e os vizinhos se reuniam em tome dos noivos. Em Gérard David ja vemos 0 banquete de ipcias (“As Bodas de Cana” do Louvre). Em ou tros pintores, vemos 0 cortejo que acompanha os noives: em Stella,” a noiva de braco dado com o pai, seguida por um grupo de criangas, chega & igreja diante da qual a espera © noivo. Em Molinier,*” a ceriménia jé acabou e o cortejo deixa a igreja — a esquerda, 0 noivo entre seus pajens, ¢ direita, a noiva coroada (mas ainda no vestida de branco: a cor do amor era ainda 0 vermelho, como nos ornamentos sacerdotais) entre suas damas de honra —20 som de gaitas de foles, enquanto uma menina atira moedas na frente da noiva. Certas colegdes de gravuras de “trajes habituais” ou “‘trajes diversos” do fim do século XVI ou inicio do século XVII muitas vezes mostram 0 noivo ow a noiva com seus pajens e damas de honra: nessa época, 0 traje de casamento toma-se mais especifico (sem ser ainda 0 wniforme branco usado do século XIX até nossos dias), 20 menos por certos detalhes. E ha uma tendéncia em apresentar esses detalhes como caracteristcas dos costumes de uma determinada regio. Finalmente, todas as pequenas cenas maliciosas do folclore entraram na iconografia: por exemplo, 0 deitar dos noivos ou o levantar da mie que deu a luz. Da mesma forma, & ceriménia do batismo, os artistas passaram a preferir as reuniSes tra- dicionais em casa: os convidados bebendo ao voltar da igreja enquanto um menino toca flauta, ou a visita das vizinhas 4 mae que acaba de dar 4 luz. Ou entio, vemos costumes foleléricos mais dificeis de identificar, como uma cena de Molenaer"' em que uma mulher Guillaume Vrelaut, “Histoire du bon roi Alexandre”, Pete Pais, ms. 546 £8; “Vie de sainte Catherine”, Bibliothéque nationale, ms. fs. 6449 & 17 stella, Cabinet des Estampes, Da 44 in “8D. Molinier, museu de Genebra “Abraham Bosse, "O deitar dos recém-casdos". Molenaer, “Les eelevailes, mutew de Lille. Brakenburgh, “O desper- ‘ar da noiva”, muscu de Lille, p40. 148 AS IMAGENS DA FAMILIA carrega uma crianga no meio de brincadeiras grosseiras, enquanto as damas da assisténcia cobrem a cabeca com o vestido. Niio devemos interpretar esse gosto pelas estas mundanas ou folcléricas, das quais a malicia nio estava ausente, assim como tampouco estava ausente da linguagem das pessoas de bem, como um sinal de indiferenca religiosa: simplesmente, enfitizava-se o cariter familia e social da ocasiio, mais do que seu cardter sacramental. Nos paises do Norte, onde os temas da familia eram extremamente difundidos, uma pintura muito significativa de J. Steen" mos- tra-nos a nova interpreta¢io familiar do folclore ou da devocio tradicional. Ji tivemos a ocasiio de fiisar a importincia nos costumes do Ancien Régime das grandes festas coletivas, ¢ insistimos na participagao das criangas, que se misturavam aos adultos: toda uma socieda~ de inteiramente diversa se reunia nessas ocasiées, feliz por estar junta. Mas a festa descrita por Steen no é mais exatamente uma dessas festas da juventude, em que as criangas se Ccomportavam um tanto como os escravos no dia das saturnais, em que desempenhavam ‘um papel fixado pela tradicio ao lado dos adultos. Aqui, 20 contriio, os adultos organiza~ ram a festa para distrair as eriancas: € a festa de Sio Nicolau, o ancestral de nosso Papai Noel. Steen reproduz a cena no momento em que os pais ajudam as criangas a achar os brinquedos que eles haviam escondido para elas nos cantos da casa. Algumas criangas jé encontraram os seus. Algumas meninas seguram bonecas. Outras seguram baldes cheios de brinquedos, e hi sapatos espalhados pelo chio: os brinquedos jé seriam escondidos nos sa~ patos, esses sapatos que as criangas dos séculos XIX e XX colocariam diante da lareira na véspera de Natal? Nao se trata mais de uma grande festa coletiva, ¢ sim de uma festa de familia em sua intimidade; e, conseqiientemente, essa concentra¢io da familia é prolonga da por uma contragio da familia em torno das criangas. As festas da familia tornam-se as festas da infincia. Hoje, 0 Natal tornou-se a maior, e poderfamos dizer, a énica festa do ano, comum tanto aos ateus como aos religiosos. © Natal nio tinha essa importincia nas sociedades do Ancien Régime, pois enfrentava a concorréncia da festa de Reis, que era muito préxima, Mas o extraordinario sucesso do Natal nas sociedades industriais contemporine~ as, is quais repugnam cada vez mais as grandes festas coletivas, deve-se a seu cariter fami~ liar, obtido gracas & sua associagio com a festa de Sio Nicolau: a pintura de Steen mostra- nos que, na Holanda do século XVI, jé se festejava So Nicolau como o “Papai Noel” — ‘ou o “Menino Jesus” — na Franca de hoje, com o mesmo sentimento modemo da infin- cia e da familia, da infincia dentro da familia Um novo tema ilustra de maneira ainda mais significativa o componente religioso do tema do benedicite. Fé muito tempo jé, a “cortesia” exigia que, na falta de um padre, um menino pequeno abencoasse a mesa no inicio das refeicdes. Certos textos manuscritos do século XV, publicados por F. J. Furnival numa coletinea intitulada ‘The Babees Book, enumeram as regras estritas da condita & mesa: “As conveniéncias da mesa”, ou “a maneira de se portar 3 mesa”. “Crianga, diz 0 benedicite.. quando estiveres num lugar onde haja um prelado da igreja, deixa-o dizer, se ele assim o desejar, 0 benedicite e as sentimento da familia: 3}, Steen, “La Saint-Nicols",reproduzido em Gerson? 87. The Babes Bool, publicado por F. J. Furival, 1868, ASIMAGENS DAFAMILIA 149. gracas. Crianca, se o prelado ou 0 senhor te mandarem com sua autoridade dizer o benedicite, fi-lo com ardor, pois assim deve ser feito.” Sabemos que entio a palavra enfant (crianga) designava tanto as criangas pequenas como os meninos maiores. Os manuais de civilidade do século XVI, a0 contririo, reservam a tarefa de dizer 0 benedicite nfo a qualquer uma das ccriangas, mas 4 mais nova: o manual pueril e honesto de Mathurin Cordier estabelece essa regra, que € conservada nas edigdes modificadas posteriores; assim, uma edi¢io de 1761" ainda precisa que o dever de abengoar a mesa “pertence aos eclesidsticos, quando os hé, ou, na sua falta, a0 mais jovern membro do grupo”. Segundo a Civilité nouvelle de 1671, “apés servir 4 mesa, ¢ uma mostra de civilidade perfeita e verdadeira fazer uma reveréncia a0 grupo e a seguir dizer as gragas”. Ou, segundo as Ragles de la bienséance et de ta cvilté chrétieune de Jean-Baptiste de La Salle:** “Quando ha uma crianca, é comum se lhe atribuir essa fungGo” (de abencoar a mesa). Em seus Dialogues," Vives descreve uma grande refei io: “O dono da casa, de acordo com seu direito, indicou os lugares. A prece foi dita por uma criaga pequena, de forma breve, curiosa, ¢ rimada: (Ce qui est ms et sera c-dessus ‘Fant soe bie par le nom de Jésus.* Portanto, nao é mais a um menino do grupo, e sim 4 menor crianga da casa que cabe a honra de dizer 0 benedicite. Reconhecemos af um sinal da promogio da infincia no senti- mento no século XVI, mas 0 mais importante é 0 fato de a crianga ter sido associada 4 principal prece da familia, durante muito tempo a tinica prece dita em comum pela familia reunida. Nesse ponto, os textos dos tratados de civilidade sio menos reveladores do que a iconografia. A partir do fim do século XVI, a cena do benedicite tomna-se um dos temas mais freqiientes da nova iconografia, que tentamos distinguir. Examinemos por exemplo uma gravura de Merian.** Trata-se de um retrato de familia 4 mesa, fiel a uma convengio jé antiga: 0 pai ¢ a mie estio sentados em cadeiras com seus cinco filhos em volta. Uma cri- ada traz um prato, ¢ a porta da cozinha esta aberta. Mas o gravador fixou 0 momento em que um menininho de timica, apoiado nos joelhos da mie, com as mos postas, recita 0 benedicire: 0 resto da familia ouve a prece, com a cabeca descoberta e as mios postas. ‘Uma outra gravura de Abraham Bosse” representa a mesma cena numa familia pro~ testante. Antoine Le Nain™ retine uma mulher e seus trés filhos na hora da refei¢io: um dos meninos esti de pé e diz as gracas. Lebrun tratou esse tema segundo a maneira anti- a, como uma Sagrada Familia. A mesa esté posta; 0 pai barbudo, com 0 bastio do via~ jante na mao, esta de pé. A mae, sentada, olha com ternura para a crianga que, de mios Civile pudsiec hound, 1753. La cviténonvelle contenant bon wage et parte instruction. Basin, 1671. “Yj -B, de a Salle: a primeira edigdo & de 1713. "Vivds, Dialogues, wad. fancesa de 1371 **Que'o que est ¢ que estas em cima da mesa / Seja abengoado por Jesus.” (N. do T.) “'Merian, gravura, Cabinet des Estampes, Ee 10 in-f, A. Boss, gravur, Cabiner des Esampes, 02 44 pet inf p. 65. SA. Le Nain, “Bénédicte 150 AS IMAGENS DA FAMILIA postas, recita a prece. Essa composi¢io foi amplamente difundida pela gravura como uma imagem devota.*! E normal encontrarmos esse tema na pintura holandesa do século XVII. Numa pintura de Steen,* o pai é 0 finico sentado: velho habito rural, abandonado ha muito pela burgue- sia fiancesa. A mie serve o pai e as duas criangas que estio de pé: 0 menor, de dois ou trés anos, esti de mios postas e diz a prece. Num quadro semelhante de Heemskerck,® dois velhos sentados e um homem mais jovem de pé estio em toro de uma mesa, a lado de uma mulher sentada com as mios postas: perto dela, uma menina repete a prece, lendo-a nos labios da mie, O mesmo tema é encontrado ainda no século XVIII no célebre “Bénédicité” de Chardin. A insisténcia da iconografia da a esse tema um valor singular. A recitagio do benedicite pela crianga nio é mais uma marca de civilidade. Os artistas se dedicaram a representé-la porque em geral se atribuia a essa prece, outrora banal, uma significacdo nova. O tema iconogrifico evocava ¢ associava numa sintese trés forcas afetivas: a religiosidade, 0 senti- mento da infincia (a crianga menor) ¢ o sentimento da familia (a reuniio em toro da mesa). benedicite tornou-se o modelo da préce dita em familia. Antes, nfo havia cultos religiosos privados. Os livros de civilidade mencionam a prece da manha (nos colégios, os internos a diziam em comum apés a toalete).*! Eles j4 falam menos sobre a prece da noite. Insistem, € isso é significativo, nos deveres das criangas para com seus pais (as regras de cortesia mais antigas, do século XV, nfo falavam nos deveres dos filhos para com seus pais, ¢ sim para com seus mestres): “As criangas, diz JB. de La Salle, no devem ir dormir antes de cum- primentar seu pai e sua mae”. O manual de Courtin de 1671% termina o dia da crianga da seguinte maneira: “Ela deverd recitar suas ligdes, dizer boa-noite a seus pais e mestres, fazer suas necessidades, e deitar-se na cama para dormir” No entanto, foi nessa época que surgiu, ao lado das oracées particulares, uma oragdo piblica da familia, © benedicite € um dos atos desse culto, e sua freqiiéncia iconogritfica prova que ele correspondia a uma forma viva de devogio. Esse culto familiar se desenvol- veu muito nos meios protestantes: na Franca, sobretudo apés a revoga¢io do edito de Nantes, cle substituiu o culto péblico a tal ponto que, apés a volta & liberdade, os pastores do fim do século XVIII tiveram dificuldade em trazer de volta a0 culto piblico os figis habituados a se contentar com suas orages em familia. A célebre caricatura de Hogarth mostra que no século XVIII a oragio da noite em comum, que reunia em torno do pai de familia os pa- rentes ¢ criados, tornara-se corriqueira e convencional. E provavel que as familias catélicas tenham softido uma evolugio quase parelela, ¢ que também tenham sentido a necessidade de uma devogio nem piblica nem individual: de uma devogio familiar. Descrevemos acima o “Bénédicité” de Lebrun, popularizado pela gravura de Satrabat percebemos imediatamente que esse benedicite era também uma Sagrada Familia, uma re- Lebrun, “Bénédicte Louve,pintura populaizads pela gravora def. arab. 24, Stcen,SchmideDegener, . 63 SHieemsterck (1634-1704), Berd, p. 358 Mathurin Corder, Calo, 1536, BCE n. 47, p18. ASIMAGENS DA FAMILIA. 151 presentacio da oracio e da refeicio da Virgem, de Sao José e do Menino Jesus. A cena de Lebrun pertence ao mesmo tempo a duas séries de representagdes, igualmente freqtientes nna época, pois ambas exaltavam 0 mesmo sentimento. Temos de reconhecer, como M. V. L. Tapie, que, “sem davida, era 0 proprio principio da familia que era associado a essa homenagem rendida & familia de Cristo”.®* Todas as familias eram convidadas a considerar 2 Sagrada Familia como seu modelo. A iconografia tradicional modificou-se, portanto, sob 4 mesma influéncia que aumentou a autoridade paterna: So José nao desempenhava mais © papel apagado que ainda lhe era atribuido no século XV inicio do século XVI. Ele aparece no primeiro plano, como o chefe da familia, num outro retrato da Sagrada Familia 4 mesa pintado por Callot ¢ igualmente popularizado pela gravura. “A Virgem, Sio Josée © menino, comenta E. Male, tomam a refei¢ao da noite: um candeeiro colocado sobre a mesa cria um contraste entre a luz viva ea sombra profunda, ¢ dé 4 cena um aspecto mis- terioso; Sao José di de beber 4 criancinha, enternecedora de tio bem comportada, com um guardanapo em tomo do pesco¢o.”*” Ou ha ainda o tema que E. Mile chama de “A Sagrada Familia em marcha”, em que 0 menino é colocado entre Maria e José. Imagino que 0s tedlogos da época possam ter visto ai a imagem da Trindade, mas o sentimento comum se comovia com esse tema como se fosse uma exaltacio da familia, A autoridade de Sio José pode ser notada em vérias cenas: numa tela de um pintor napolitano do século XVII,** Sio José carrega 0 Menino Jesus no colo e passa assim para 0 centro da composicio. Esse tema é freqiiente em Murilo e Guido Reni. Algumas vezes, José aparece reinando em seu atelié de marceneiro, ajudado pelo Menino Jesus.” Chefe de familia na mesa, na hora da refeicio, e no atelié, nas horas de trabalho, Sao José 6 ainda chefe de familia num outro momento dramético da vida familiar, muitas vezes re~ presentado pelos artistas: 0 momento em que a morte o vem buscar. Tornando-se 0 pa- droeiro da boa morte, Sio José conserva seu sentido: a imagem de sua morte lembra a imagem, da morte do pai, tantas vezes representada nas ilustragdes da boa morte — ela pertence 4 ‘mesma iconografia da nova familia ‘As outras sagradas familias inspiram mesmo sentimento. No século XVI em particular tomou-se comum representar santos contemporaneos de Cristo em crianga, reunidos e brincando juntos. Uma tapegaria alemi representa de uma forma encantadoramente pi- toresca as trés Matias cercadas de seus filhos, que se agitam, se banham ¢ brincam. Esse grupo é encontrado com freqiiéncia, particularmente numa bela talha do inicio do século XVII em Notre-Dame la Grande, em Poitiers. (© tema parece evidentemente ligado ao sentimento da infincia e da familia. Essa ligagio é sublinhada com insisténcia na decoracio barroca da capela da Virgem, na igreja franciscana de Lucerne, Essa decoracio data de 1723. A abébada é ornamentada com anjinhos decen— temente vestidos, cada um trazendo um dos simbolos da Virgem, enumerados em suas litanias SV. Tapie, Le Baroque, 1957, p- 256, PE, Male, L'Art lis apis le cone de Tree, p. 312 Spaccaco di Rows, ®Carrache, Pesne. CE Male, op. cit, p. 311. Rembrandt, "O marceneiro” “Gabel I, pr. CLXV, datada de 1573. 182 AS IMAGENS DA FAMILIA (estrela-do-mar etc). Nas paredes laterais, os pais e filhos santos se dio as mios, em tama- nho natural: Sao Joao Evangelista e Maria Salomé, Sio Tiago Maior e Zebedeu... Os temas do Antigo Testamento também sio utilizados para ilustrar essa devogio. O pintor veneziano Carlo Loth*" trata a béngio de José por Jacé como a cena freqtiente nas Idades da vida do velho cercado por seus fillios esperando a morte. Mas foi sobretudo a familia de Adio que foi tratada como uma Sagrada Familia. Numa tela de Veronese,” Adio Eva aparecem no pitio de sua casa no meio de seus animais e de seus filhos, Caim e Abel. ‘Um deles mama na mie, enquanto 0 outro, menor, brinca no cho. Adio, escondido atris de uma drvore a fim de no perturbar esses folguedos, observa a cena. Ele é visto de costas. Sem diivida, poderiamos com razio encontrar uma intengio teolégica nessa familia do “primeiro Adio”, que anunciava a vinda de Cristo, o “segundo Adio”. Mas essa intenci0 erudita esconde-se atrés de uma cena que evoca as alegrias entio consagradas da familia (O mesmo tema é encontrado num teto mais recente do convento de San Martino, emNépoles, que provavelmente data do inicio do século XVIII. Adio cava a terra — como José trabalha com a madeira —, Eva fa — como a Virgem costura — e seus dois filhos estio a seu lado. Portanto, a iconografia nos permite acompanhar a ascensio de um sentimento novo: 0 sentimento da familia. Espero ter sido bem compreendido. © sentimento era novo, mas no 2 familia, embora esta sem dévida no desempenhasse em suas origens o papel primor- dial que lhe atribuiram Fustel de Coulanges e seus contemporaneos. M. Jeanmaire desco- briu na Grécia sobrevivéncias ainda fortes de estruturas ni familiares, como as classes de idade. Os etnélogos mostraram a importincia das classes de idade entre os afticanos, e das comunidades clanicas entre os indigenas americanos. Nio teriamos, sem o perceber, nos deixado impressionar pela fun¢io que a familia desempenha em nossas sociedades ha al- guns séculos, € nio nos sentitiamos tentados a exageri-la indevidamente e até mesmo a atribuir-he uma espécie de autoridade histérica quase absoluta? No entanto, no hia menor davida de que a familia foi constantemente mantida e reforcada por influéncias a0 mesmo tempo semiticas (endo apenas bfblicas, creio eu) € romanas. Por outro lado, é possivel que ela tenha enfraquecido na época das invasdes germinicas. Pouco importa: seria vio contestar a existéncia de uma vida familiar na Idade Média. Mas a familia subsistia no siléncio, nao despertava um sentimento suficientemente forte para inspirar poetas ou artistas. Devemos atribuir a esse longo siléncio uma significagio impor- tante: nio se conferia um valor suficiente familia. Da mesma forma, devemos reconhecer a importincia do florescimento iconogrifico que a partir do século XV, sobretudo XVI, sucedeu a esse longo periodo de obscuridade: 0 nascimento ¢ 0 desenvolvimento do sen- timento da familia, Dai em diante, a familia nfo é apenas vivida discretamente, mas é reco- nhecida como um valor ¢ exaltada por todas as forcas da emogio. Ora, esse sentimento tio forte se formou em tomo da familia conjugal, a familia forma— da pelos pais e seus filhos, E raro uma tela reunir mais de duas geragdes. Quando netos ou G. Losh (hl "Veronese, 1698), reproduaido em Fiacco, Veneta Paiatue,p. 49. familia de Adio", Veneta, Palio dos Doges ASIMAGENSDAFAMILIA 153 filhos casados aparecem, é sempre discretamente, como uma coisa sem importincia, Nada ai lembra a antiga linhagem, nada acentua a ampliagio da familia ou a grande familia pacri- arcal, essa invengio dos tradicionalistas do século XIX. Essa familia, ou a propria familia, ou ao menos a idéia que se fazia da familia a0 representi-la e exalté-la, parece igual 4 nossa O sentimento é o mesmo. Esse sentimento est muito ligado também ao sentimento da infancia. Ele afasta-se cada vez mais das preocupacées com a honra da linhagem ou com a integridade do patriménio, ou com a antigiiidade ou permanéncia do nome: brota apenas da reunio incomparivel dos pais e dos filhos. Uma de suas expresses mais comuns seria 0 habito criado de se in- sistir nas semelhancas fisicas entre os pais e seus filhos. No século XVII, pensava-se que Sio José se parecia com seu filho adotivo, salientando-se assim a forca do laco familiar. Erasmo. 48 possufa a idéia extremamente moderna de que as criangas uniam a familia e de que sua semelhanga fisica produzia essa unio profunda; no nos espantaremos, pois, com o fato de seu tratado sobre o casamento ter sido reimpresso ainda no século XVIII. Vejamos um trecho dessa obra, numa tradugio francesa de 1714, que adorna de maneira picante e um tanto anacrénica a prosa do Renascimento:® “S6 nos pode causar admiracio 0 cuidado surpreendente da natureza nesse ponto: ela pinta duas pessoas num mesmo rosto € num mesmo corpo; o marido reconhece o retrato de sua mulher em seus filhos, ¢ a mulher, 0 do marido. As vezes, descobre-se uma semelhanga com 0 avé e com a av6, com um tio-av6. ou com uma tia-avé”. O que conta acima de tudo é a emogo despertada pela crianga, a imagem viva de seus pais. Erasmo, ed. de 1714 do Carameuo Crise 2 Da Familia Medieval 4 Familia Moderna estudo iconogrifico do capitulo anterior mostrou-nos o novo lugar assumido pela familia na vida sentimental dos séculos XVI e XVII £ significativo que nessa mesma época tenham ocorrido mudancas importantes na atitude da familia para com a crianga. A familia transformou-se profundamente na medida em que modificou suas relagées internas com a crianga. ‘Um texto italiano do fim do século XV dé-nos uma idéia muito sugestiva da familia medieval, 20 menos na Inglaterra. Ele foi extraido pelo historiador inglés Furnival' de uma Relago de Tha da Inglaterra de um italiano: “A falta de afeicao dos ingleses manifesta-se par- ticularmente em sua atitude com relagio as suas criangas. Apés conservé-las em casa até a idade de sete ou nove anos (em nossos autores antigos, sete anos era a idade em que os meninos deixavam as mulheres para ingressar na escola ou no mundo dos adultos), eles as colocam, tanto os meninos como as meninas, nas casas de outras pessoas, para af fazerem o servigo pesado, eas criangas ai permanecem por um perfodo de sete a nove anos (portanto, até entre cerca de 14 e 18 anos). Elas sio chamadas entio de aprendizes. Durante esse tem- po, desencumbem-se de todas as tarefas domésticas. H4 poucos que evitam esse tratamen- to, pois todos, qualquer que seja sua fortuna, enviam assim suas criangas para casas alheias, enquanto recebem em seu proprio lar criangas estranhas”. O italiano achava esse costume cruel, 0 que faz supor que fosse desconhecido ou tivesse sido esquecido em seu pais. Ele insinua que os ingleses recorriam 3s criancas dos outros porque pensavam ser melhor ser- vvidos dessa maneira do que por seus proprios filhos. De fito, a explicagio que os préprios ingleses davam ao observador italiano devia ser a verdadeira: “Para que suas criangas apren- dam as boas maneiras” Esse género dé vida foi provavelmente comum ao Ocidente medieval. Jé no século XII, G. Duby descreve a familia de um cavaleiro natural do Maconnais, chamado Guigonet, A Retain of the Iand of England, Camden Society, 1897, p. XIV, citado em The Balees Books, publicados por F. J Furnival, Londes, 1868. DA FAMILIA MEDIEVAL A FAMILIAMODERNA 155 com base numa anélise de seu testamento.? Guigonet havia confiado seus dois filhos meno- res ao mais velho de seus trés irmaos. Mais tarde, numerosos contratos de aprendizagem que confiavam criangas a mestres provam como o hibito de entregar as criangas a familias, estranhas era difundido. As vezes, é especificado que o mestre deveria “ensinar” a crianca e “mostrar-Ihe os detalhes de sua mercadoria”, ou que deveria “fazé-la freqiientar a esco- 1a” Sio casos particulares. De um modo mais geral, a principal obrigacio da crianga assim confiada a um mestre era “servi-lo bem ¢ devidamente”. Quando examinamos esses con- tratos sem nos despojarmos de nossos hAbitos de pensamento contemporineos, hesitamos em decidir se a crianga era colocada ein casa alheia como aprendiz (no sentido moderno da palavra), como pensionista ou como criado. Farfamos mal em insistir: nossas distingdes si0 anacrénicas € o homem da Idade Média via af apenas variagdes de uma nogio essencial, a nogio de servigo. O tinico servico que durante muito tempo se péde conceber, 0 servico doméstico, nio implicava nenhuma degradacio e no despertava nenhuma repugnincia, No século XV existia toda uma literatura em lingua vulgar, francesa ou inglesa, que enu- ‘merava sob uma forma mnemotécnica os mandamentos de um bom servidor. Um desses. poemas' intitula-se em francés Régie pour tous serviteuns. O equivalente inglés era 0 wayting servant — que permaneceu no inglés moderno com 2 palavra waiter, garcom. Esse servidor, é claro, devia saber servir A mesa, fazer as camas, acompanhar seu mestre etc. Mas esse servico doméstico compreendia também uma fan- do a que hoje chamariamos funcdo de secretério. Além disso, nio era considerado um estado definitivo, e sim um estigio, um perfodo de aprendizagem: Sit veuts bon seriteur estre, Craintie dois et aimer ton maistre ‘Manger dois sans scot & table..* (Seguem-se regras de boa apresentagio.) Suys toujours bone compagnie ‘Soi seulier ou lee ou prestro™* (Um clérigo podia servir na casa de outro clérigo.) Me faut pour le bien servir ‘Se son amour veulz deeseroir Laisser toute ta volonté Pour tn niaiste serie & grey ‘Se tw ses maiste qui ayt ferme Bourgeoise, dewoiselle ou dame ‘Son hionneur doit partout garder 2G, Duby, op. dl p. 425. °C. de Robillard de Beaurepaire, lustusion publigue ov Normandie, 1872, 3 vols. Ch. Clerval, Ls Ecoles de Chartes a Moyen Age, 1895, "Se quiseres ser um bom servidor, / Deves temere amar te meste, / Deves comer sem te sentares mesa." (N. do 1) ‘Segue sempre 2 boa companhia, / Quer sea a de um secular, elérigo ou padre.” (N. do T}) 156 DA FAMILIA MEDIEVAL A FAMILIA MODERNA, Ets t srs un der ou preste Gardes we soyes valet aise S'i est qu soyes secre Tia dois toujours les sce tie. ‘Set srs ge on avocat [Ne rappates wl owen cas Ex! Padvint par adventure A serve duc ou prince on conte ‘Marquis ou bra on vcante, (On aute sigur ene, Ne soyes de tile, inventeur, Diimpots, de subsides; tls biens ‘Du peuple neler ote ren. Se tu ses genilonine en guere Ne vas déobantnle get Ex toujours, en quelque maison, (On quelque maitre que tu serves, Fay’ set peulz que tu deserves La grace et Vamour de ton ste Afin que tu puisses maistre estee Quand il sera temps et méter. ‘Mais pine & seve bow nestor Car pou ca vie praiquer Tet ton coeur y dis appliguer Ense fisant tu pourras este Exdevenir de valet maistre EL te pours fie ser Ext pris et lonmeur desenir Exoquétfinaement De ton dine le suvenent * Assim, 0 servigo doméstico se confundia com a aprendizagem, como uma forma muito comum de educagio. A crianca aprendia pela pritica, e essa pritica no parava nos limites, de uma profissio, ainda mais porque na época nio havia (¢ por muito tempo ainda nio haveria) limites entre a profissio e a vida particular; a participacio na vida profissional — expressio bastante anacrénica, aliés — acarretava a participacZo na vida privada, com a qual se confundia aquela. Era através do servigo doméstico que o mestre transmitia a uma cri- anga, no ao seu filho, mas ao filho de outro homem, a bagagem de conhecimentos, a experiéncia pratica e o valor humano que pudesse possuir. Assim, toda a educagio se fazia através da aprendizagem, e dava-se a essa nogio um sen- tido muito mais amplo do que o que ela adquiriu mais tarde. As pessoas no conservavam “Pata bem serv-i, / Ese quiseres merecer seu amor, / Deves deixar toda a ta vontade / Para servia teu mestre de bom grado. / Se servresa um mestre que cenha mulher / Burguets,senhorta ou senhora, / Deves sempre guardar sua honra../ Ese servires a um clérigo ou padre, / Cuidado para nio seres um crisdo-amo.../ Se Fores secret, / Deves sempre guardar os segredos... /Seservites atm juiz ou a um advogado, / Nio contes nenhum caso novo, /E, 3 Pe ventura te acontecer / Servtes a um Duque, Principe ou Conde, / Margués, Bario 04 Viseonde, / Ou outro senhor de terra, / Nio inventes imposes e subsidios/ E no tomes paa os bens do pov... /Sesevires a um fdalgo na guerra, */ Nao roubes ninguém.../ E sempre, em qualquer casa / Ou a qualquer mestres quem sivas, / Faz, se puderes, por merecer / A graga eo amor de teu mestee,/ A fide que posss ser metre / Quando cigar 0 tempo, / Mas esforga-te para aprender um bom ofico, /Pois, para praticar tua vida, / Deves apliea nela todo 0 teu coracio. / Astin fazed, podenis ser E te tomar, decide, mes, / poderis te fazer servir / E merecer prémios e honras, / E Bnalmente obser / A salvagio de ua alma.” (N. do T:) DAFAMILIA MEDIEVAL A FAMILIA MODERNA 187 as proprias criangas em casa: enviavam-nas a outras familias, com ou sem contrato, para que com elas morassem e comecassem suas vidas, ou, nesse novo ambiente, aprendessem, as maneiras de um cavaleiro ou um oficio, ou mesmo para que freqiientassem uma esco~ la e aprendessem as letras latinas. Essa aprendizagem era um habito difundido em todas as condiges sociais. Apontamos acima uma ambigiiidade entre o criado subalterno eo em- pregado de nivel mais elevado, dentro da mesma nogio de servigo doméstico. Uma am- bigiiidade semelhante existia entre a crianca — ou 0 rapazinho — e o servidor. As cole- tneas inglesas de poemas didéticos que ensinavam a cortesia aos servidores se intitulavam, Babees Books. A palavra valet significava um menino pequeno, ¢ Luis XIII crianga, numa explosio de afeicio, diria que gostaria muito de ser “o pequeno valet do papai”. Na Iin- gua fiancesa dos séculos XVI ¢ XVII, a palavra gargon designava ao mesmo tempo um rapazinho novo e um jovem servidor doméstico: foi conservada para interpelar os em- pregados que servem num restaurante. Mas mesmo quando, a partir dos séculos XV- XVI, comecou-se a distinguir melhor dentro do servico doméstico os servicos subalter- nos dos oficios mais nobres, o setvigo da mesa continuou a ser tarefa dos filhos de familia € no dos empregados pagos. Para parecer bem educado, nio bastava como hoje saber comportar-se 4 mesa: era preciso também saber servir 4 mesa. © servigo da mesa até o século XVIII ocupou um lugar considerével nos manuais de civilidade e nos tratados de boas manciras: é 0 assunto de um capitulo inteiro do manual de civilidade crista de J.-B. de La Salle, um dos livros mais populares do século XVIII. Tratava-se de uma sobrevi- vancia do tempo em que todos os servigos domésticos eram realizados indiferentemente pelas criangas a quem chamaremos aprendizes, e por empregados pagos, provavelmente muito jovens também, A distinc3o entre essas duas categorias fez-se muito progressive mente. O servidor era uma crianga, uma crianga grande, quer estivesse colocada em casa alheia por um perfodo limitado a fim de partilhar da vida familiar e assim se iniciar na vida adulta, quer nao tivesse esperanga de algum dia passar “de criado a mestre”, pela obscuridade de sua origem. 'Nio havia lugar para a escola nessa transmissfo através da aprendizagem direta de uma geragio a outra. De fato, a escola, a escola latina, que se destinava apenas aos clétigos, aos Iatin6fones, aparece como um caso isolado, reservado a uma categoria muito particular. E. a escola era na realidade uma exce¢io, ¢ o fito de mais tarde ela ter-se estendido a toda a sociedade nio justifica descrever através dela a educacio medieval: seria considerar a exce- go como a regra. A regra comum a todos era a aprendizagem. Mesmo os clérigos que cram enviados 4 escola muitas vezes eram confiados — como 0s outros aprendizes —a um clérigo, um padre, as vezes a um prelado a quem passavam a servir. O servigo fazia tio parte da educacio de um clérigo quanto a escola. No caso dos estudantes muito pobres, ele foi substituido pelas bolsas dos colégios: vimos que essas fandagées foram a origem dos colégios do Ancien Réginte. Houve casos em que a aprendizagem perdeu seu carter empirico e assumiu uma forma mais pedagégica. Um exemplo curioso de ensino técnico oriundo da aprendizagem tradi- ional é fornecido pelo Manuel dur Veneur. So descritas ai verdadeiras escolas de caga, na corte de Gaston Phoebus, onde se ensinava “maneiras € condigdes que devia ter aquele 158 DA FAMILIA MEDIEVAL A FAMILIA MODERNA que desejava aprender a ser bom cagador”.S Esse manuscrito do século XV é ilustrado com belissimas miniaturas. Uma delas representa uma verdadeira aula: 0 mestre, um nobre (2 julgar pelo traje), esta coma mio direita erguida ¢ o dedo indicador levantado — um gesto que serve para pontuar 0 discurso. Com a mio esquerda, ele agita um bastio, o sinal indubitivel da autoridade magistral, o instrumento de correo. Trés alunos, meninos ain- da pequenos, estio lendo os grandes rolos que seguram com as mios e devem aprender de cor: uma escola como outra qualquer. Ao fiindo, alguns velhos cagadores observam. Uma cena semelhante representa uma li¢io de trompa: “Como se deve soprar a trompa”. Eram coisas que se aprendiam com a pritica, como a equitagio, as armas e as maneiras dos cava~ leiros. B possivel que alguns tipos de ensino técnico, como o da escrita, se tenham origina do de uma aprendizagem jé organizada e escolarizada. Contudo, esses casos foram excepcionais. De modo geral, a transmissio do conhecimento de uma geracio a outra era garantida pela participacio familiar das criangas na vida dos adultos. Assim se explica essa mistura de criancas e adultos que tantas vezes observamos a0 longo deste estudo, até mesmo nas classes dos colégios, onde seria de esperar, ao contririo, uma distribuigo mais homogénea das idades, Mas nfo se tinha a idéia dessa segregacio das criangas, a que estamos tio habituados. As cenas da vida quotidiana constantemente reuni- am criangas € adultos ocupados com seus oficios como, por exemplo, o pequeno aprendiz que prepara as cores do pintor,¢ ow a série de gravuras dos oficios de Stradan, que nos mostra criangas em ateliés com companheiros mais velhos. O mesmo acontecia nos exércitos. Conhecemos casos de soldados de 14 anos! Mas pequeno pajem que leva a manopla do Duque de Lesdiguigres,” e os que levam o capacete de Adolf de Wignacourt na tela de Caravaggio que se encontra no Louvre, ou o do General del Vastone, no grande Ticiano do museu do Prado, também nao sio muito mais velhos: sua cabeca bate abaixo do ombro de seus senhores. Em suma, em toda a parte onde se trabalhava, e também em toda a parte onde se jogava ou brincava, mesmo nas tavernas mal-afamadas, as criangas se misturavam 0s adultos. Dessa maneira elas aprendiam a viver, através do contato de cada dia. Os agru~ pamentos sociais correspondiam a divisdes verticais que reuniam classes de idade diferen- tes, como esses mtisicos das pinturas de concertos de cmara, que fincionam tanto como retratos de familia quanto como alegorias das idades da vida, pois retmem criancas, adultos e velhos. Nessas condigdes, a crianga desde muito cedo escapava 4 sua prépria familia, mesmo que voltasse a cla mais tarde, depois de adulta, 0 que nem sempre acontecia. A familia no podia portanto, nessa época, alimentar um sentimento existencial profundo entre pais e filhos. Isso nao significava que os pais nao amassem seus filhos: eles se ocupavam de suas criangas menos por elas mesmas, pelo apego que Ihes tinham, do que pela con~ tribuigao que essas criangas podiam trazer & obra comum, a0 estabelecimento da familia A familia era uma realidade moral e social, mais do que sentimental. No caso de familias ‘Lécole des vencurs", Ms., Bibliotheque Nationale ‘Conrad Manuel, muscu de Berna "Museu de Grenoble DA FAMILIA MEDIEVAL A FAMILIA MODERNA. 159 muito pobres, ela no correspondia a nada além da instala¢3o material do casal no seio de um meio mais amplo, a aldeia, a fazenda, 0 pitio ow a “casa” dos amos ¢ dos senhores, onde esses pobres passavam mais tempo do que em sua propria casa (is vezes nem ao me- nos tinham uma casa, eram vagabundos sem eira nem beira, verdadeiros mendigos). Nos meios nis ricos, a familia se confundia com a prosperidade do patriménio, a honra do nome. A fa- iilia quase no existia sentimentalmente entre os pobres, ¢ quando havia riqueza ¢ ambicio, © sentimento se inspirava no mesmo sentimento provocado pelas antigas relacGes de linhagem. A partir do século XV, as realidades e os sentimentos da familia se transformariam: uma revolucao profanda ¢ lenta, mal percebida tanto pelos contemporineos como pelos histo- riadores, e dificil de reconhecer. E, no entanto, o fato essencial é bastante evidente: a ex- tensio da freqiiéncia escolar. Vimos que na Idade Média a educagio das criangas era garan- tida pela aprendizagem junto aos adultos, e que, a partir de sete anos, as criangas viviam com uma outra familia que nfo a sua. Dessa época em diante, a0 contririo, a educacio passou a ser fornecida cada vez mais pela escola. A escola deixou de ser reservada aos clé- rigos para se tornar o instramento normal da iniciacao social, da passagem do estado da infincia a0 do adulto. J& vimos como isso se deu. Essa evolucio correspondeu a uma ne- cessidade nova de rigor moral da parte dos educadores, a uma preocupagio de isolar a ju- ventude do mundo sujo dos adultos para manté-la na inocéncia primitiva, a um desejo de treind-la para melhor resistir as tentacdes dos adultos. Mas ela correspondeu também a uma preocupacio dos pais de vigiar seus filhos mais de perto, de ficar mais perto deles e de nio abandoné-los mais, mesmo temporariamente, aos cuidados de uma outra familia. A subs- titui¢do da aprendizagem pela escola exprime também uma aproximacao da familia e das criangas, do sentimento da familia e do sentimento da infancia, outrora separados. A fami- lia concentrou-se em torno da crianca. Esta no ficou porém desde o inicio junto com seus pais: deixava-os para ir a uma escola distante, embora no século XVII se discutissem as vantagens de se mandar a crianca para 0 colégio e muitos defendessem a maior eficicia de uma educagio em casa, com um preceptor. Mas o afistamento do escolar nao tinha o mesmo cariter e no durava tanto quando a separagio do aprendiz. A crianga geralmente nio era interna no colégio. Morava num pensionato particular ou na casa do mestre. Nos dias de feira, traziam-lhe dinheiro e provisées. O laco entre o escolar e sua familia se estreitara: segundo os dilogos de Cordier, era mesmo necesséria a intervengio dos mestres para evi- tar visitas muito freqientes 4 familia, visitas projetadas gracas 4 cumplicidade das mies. Algumas criangas mais ricas nao saiam de casa sozinhas; eram acompanhadas de um pre- ceptor, um estudante mais velho ou de um criado, quase sempre seu irmio de leite. Os tratados de educacio do século XVII insistem nos deveres dos pais relativos & escolha do colégio e do preceptor, e & supervisio dos estudos, 4 repetigio das liges, quando a crianga vinha dormir em casa. O clima sentimental era agora completamente diferente, mais pro- ximo do nosso, como se a familia moderna tivesse nascido ao mesmo tempo que a escola, ‘ou, 20 menos, que o hibito geral de educar as criangas na escola. De qualquer maneira, o afastamento que 0 pequeno niimero de colégios tornava ine- vitavel nio seria tolerado por muito tempo pelos pais. O esforco dos pais, secundados 160 DA FAMILIA MEDIEVAL A FAMILIA MODERNA pelos magistrados urbanos, no sentido de multiplicar as escolas a fim de aproxima-las das familias, é um sinal digno de nota. No inicio do século XVII, como mostrou o Pe. de Dainville,* criou-se uma rede muito densa de instituicdes escolares de importincia di- versa. Em torno de um colégio com a série completa de classes, estabelecia-se um Sis- tema concéntrico formado por alguns poucos colégios de Humanidades (sem classe de filosofia) e de um maior niimero de escolas latinas (com apenas algumas classes de gta~ mitica). As escolas latinas forneciam alunos para as classes superiores dos colégios de Humanidades e dos colégios com a série completa de classes. Alguns contemporineos inquietaram-se com essa proliferagio das éscolas. Ela correspondia ao mesmo tempo a essa necessidade de educacio teérica, que substituia as antigas formas priticas de aprendi~ zagem, e a0 desejo dos pais de no afastar muito as criangas, de manté-las perto o mais tempo possivel. Esse fenémeno comprova uma transformagio considerivel da familia: esta se concentrou na crianga, e sua vida confizndiu-se com as relagdes cada vez mais sentimen- tais dos pais e dos filhos. Nao ser surpresa para nés descobrir que esse fenémeno situa-se no mesmo periodo em que vimos emergir e desenvolve-se uma iconografia da familia em. torno do casal e das criangas. E verdade que essa escolarizacio, tio cheia de conseqiiéncias para a formagio do senti- ‘mento familiar, nio foi imediatamente generalizada, ao contririo. Ela no afetou uma vas- ta parcela da populagio infantil, que continuow a ser educada segundo as antigas priticas de aprendizagem. Antes de mais nada, havia as meninas. Com excegio de algumas, que eram enviadas is “pequenas escolas” ou a conventos, a maioria era educada em casa, ou também. nna casa de outras pessoas, uma parenta ou vizinha. A extensio da escolaridade as meninas nio se difundiria antes do século XVIII ¢ inicio do XIX. Esforgos como os de M™ de Maintenon e de Fénelon teriam um valor exemplar. Durante muito tempo, as meninas seriam educadas pela pritica e pelo costume, mais do que pela escola, e muitas vezes em. casas alheias. No caso dos meninos, a escolarizagio estendeu-se primeiro 4 camada média da hierar quia social. A alta nobreza ¢ os artesios permaneceram ambos fis & antiga aprendizagem, fornecendo pajens aos grandes senhores ¢ aprendizes aos diferentes artesios. No mundo artesanal e operirio, a aprendizagem subsistiia até nossos dias. As viagens 4 Itilia e 3 Ale- manha dos jovens nobres no fim de seus estudos ligavam-se também antiga tradigzo: eles iam para cortes ou casas estranhas para af aprender as linguas, as boas maneiras € os esportes da cavalaria. Esse costume caiu em desuso no século XVII, substituido pelas Academias: ‘outro exemplo dessa substituico da educacio pritica por uma instrucio mais especializada mais teGrica. ‘As sobrevivéncias da antiga aprendizagem nas duas extremidades da escala social nio impediram seu declinio: a escola venceu, através da ampliacio dos efetivos, do aumento do nimero de unidades escolares ¢ de sua autoridade moral. Nossa civilizagio moderna, de base escolar, foi entio definitivamente estabelecida. O tempo a consolidaria, prolongando e estendendo a escolaridade. 'P. de Daiwvile, "Etec des collages”, Populations, 1955, pp. 455-483, DA FAMILIA MEDIEVAL A FAMILIA MODERNA 161 (Os problemas morais da familia apareceram entio sob uma luz nova. Isso fica evidente no caso do antigo costume que permitia beneficiar apenas um dos filhos em detrimento dos inmaos, em geral o filho mais velho. Tudo indica? que esse costume se difundiu no século XIII, para evitar 0 perigoso esfacelamento de um patriménio cuja unidade no es- tava mais protegida pelas priticas de propriedade conjunta ¢ solidariedade de linhagem, ‘mas, a0 contrério, era ameagada por uma maior mobilidade da riqueza. O privilégio do filho, beneficiado por sua primogenitura ou pela escolha dos pais, foi a base da sociedade familiar do fim da Idade Média até o século XVII, mas nio mais durante século XVII. De fato, a partir da segunda metade do século XVII, os moralistas educadores contestatain, a legitimidade dessa pratica, que, em sua opiniio, prejudicava a eqiiidade, repugnava a um sentimento novo de igualdade de direito & afeicio familiar, e era acompanhada de uma utilizagio profana dos beneficios eclesiésticos — esses moralistas eram também reformadores religiosos. Um capitulo do tratado de Varet De Méducation des enfants, publicado em 1666, trata da “igualdade que se deve manter entre as criangas”."° “Hi uma outra desordem que se introduziu entre os fiéis e que no fere menos a igualdade que os pais e as mies devem a seus fils. Essa desordem se resume no fato de os pais pensarem apenas no estabeleci~ mento daqueles que, pela condigio de seu nascimento ou pelas qualidades de sua pessoa, hes agradam mais.” (Eles Ihes “agradavam” porque serviam melhor ao futuro da familia ‘Trata-se da concepgio de uma familia como uma sociedade indepenente do sentimento pessoal, como uma “casa”.) “As pessoas temem que, se dividirem igualmente seus bens entre seus filhos, nfo possam aumentar como queriam o brilho e a gléria da familia. filho mais velho nio poderia nem possuir nem manter os encargos ¢ os empregos que os Pais Ihe tentam obter se seus irmios ¢ irmis tivessem as mesmas vantagens que cle. E pre- ciso, portanto, pé-los em condicdes de nfo poder disputar esse direito com 0 mais velho, E preciso envié-los aos claustros contra sua vontade ¢ sacrificé-los logo aos interesses da- quele que se destina a0 mundo e a vaidade”. E curioso notar que a indignagdo provocada pelas falsas vocagGes e os privilégios do filho mais velho nio esti mais presente quando se trata do casamento: ninguém pensava em contestar 0 poder dos pais nessa questio. O texto citado acima exprime uma opiniio categérica. Em suas Régles de I’éducation des enfants," Coustel traduz, a0 contririo, um certo embarago, ¢ prefere cercar-se de todo 0 tipo de precaugdes para condenar uma pritica antiga e difiandida, e que parecia ligada 4 permanéncia da sociedade familiar. Ele admite que os pais tenham preferéncias: “Nao é que os pais fagam mal em amar mais aqueles de seus filhos que so mais virtuosos ou tém mais boas qualidades que os outros. Mas digo que pode ser perigoso manifestar de forma muito gritante essa distingdo ¢ essa preferéncia”. O abade Goussault, em seu Portrait d’un honnéte homme de 1692,'* é mais veemente: “Hi rio apenas vaidade em se doar a melhor parte dos bens ao filho mais velho da familia, para °G, Duby, op. at "Ware, Be Péduation des fans, 1661 *Cousel, Rigs de éduaion de: efans, 1687. "Gousault,Portait dw hounéte home, 1692. 162 DA FAMILIA MEDIEVAL A FAMILIA MODERNA, manté-lo sempre no luxo e etemnizar seu nome (sentimos aqui perfeitamente a oposicio centre a familia-casa ¢ a familia sentimental moderna); ha mesmo injusti¢a. Que fizeram os mais mocos para serem tratados assim?” “Hé pessoas que, a fim de estabelecer alguns de seus filhos num nivel superior a seus proprios meios, sacrificam 0s outros € os encerram em mosteiros sem consulté-los a respeito e sem examinar se tm uma vocagio real. Os pais nio amam igualmente seus filhos ¢ introduzem diferencas onde a natureza nao quis fizé-lo.” Apesar de sua conviccao, Goussault admite ainda, como uma concessio ao senso comum, que os pais “possam ter de fato mais amor por alguns de seus filhos”, mas “esse amor € um fogo que eles devem manter oculto sob as cinzas”. Assistimos aqui ao inicio de um sentimento que resultaria na igualdade do cédigo civil, e que, como sabemos, ja havia penetrado nos costumes no fim do século XVIII. Os esfor~ os para restabelecer os privilégios do mais velho no infcio do século XIX chocaram-se contra uma repugnincia invencivel da opiniao piiblica: muito poucos chefes de familia, mesmo nobres, utilizaram o direito que lhes era reconhecido pela lei de beneficiar apenas tum dos filhos. Fourcassié cita uma carta de Villéle em que este se lamenta desse insucesso de sua politica, e profetiza 0 fim da familia.!® Na realidade, esse respeito pela igualdade entre os filhos de uma familia é uma prova de um movimento gradual da familia-casa em direcio 4 familia sentimental moderna. Tendia-se agora a atribuir & afeigao dos pais e dos filhos, sem diivida to antiga quanto o proprio mundo, um valor novo: passou-se a basear na afei¢do toda a realidade familiar. Os teéricos do inicio do século XIX, entre os quais Villéle, consideravam essa base demasiado fragil; eles preferiam a concep¢io de uma “casa” familiar, uma verdadeira empresa independente dos sentimentos particulares; haviam com- preendido também que o sentimento da infincia estava na origem desse novo espirito fa- ‘miliar, do qual suspeitavam. Por essa razdo, tentaram restaurar o direito da primogenitura, derrubando assim toda a tradigo dos moralistasreligiosos do Ancien Régime. Observaremos aqui que sentimento de igualdade entre as criangas pode desenvolver- se num novo clima afetivo e moral gragas a uma intimidade maior entre pais e filhos. Parece-nos indicado comparar essas observagdes com um fendmeno cuja novidade ¢ sentido moral foram sublinhados num processo de 1677.'* Tolerava-se entio 0 casamento dos mestres, mas continuava-se a proibir aos mestres casados 0 exercicio de cargos univer- sitérios. Assim, em 1677, um professor casado foi eleito decano da Tribo de Paris. O can- didato derrotado, o escrivio Du Boulay, apelou, e o caso foi entregue a0 Conselho Priva- do. O advogado de Du Boulay apresentou numa meméria as raz6es que se teriam para manter o celibato dos professores. Os mestres tinham o hibito de receber em casa pensio- nistas, ¢ a virtude desses meninos poderia ser exposta a varios perigos: “Inconvenientes que acontecem com muita freqiiéncia devido 4 convivéncia que os mestres casados sio obrigados a admitir entre os jovens que educam e suas mulheres, filhas e criadas. E impos- sivel para eles impedir essa convivéncia, menos ainda aos pensionistas que vivem em sua casa do que aos externos. Os senhores comissirios fario a gentileza de refletir sobre isto: ), Foureasié, Vile, 1954. HL Fert, Les Grade universes dans Poncienne fc dee ants, 1868. DA FAMILIA MEDIEVAL A FAMILIA MODERNA 163 sobre a indecéncia que ha para os escolares em ver de um lado as roupas das mulheres ¢ das meninas, e de outro, seus livros ¢ suas escrivaninhas, e muitas vezes, todas essas coisas jun- tas; em ver mulheres e meninas penteando-se, vestindo-se, ajustando-se, eriangas de cuei- ros em seus bergos, ¢ tudo o mais que é 0 apandgio do casamento”. Aste tiltimo argumento, particularmente interessante para nosso estudo, o mestre ca~ sado responde: “O dito Du Boulay fila como se tivesse acabado de deixar a aldeia onde nasceu... Pois todos sabem que onde moram mulheres hi quartos para elas, onde elas se vvestem em sua privacidade (privacidade sem diivida bastante recente, ¢ limitada as grandes cidades), ¢ ha outros para os escolares”. Quauito as criangas de hero, nao eram vistas nas habi- tagdes parisienses, pois eram todas entregues a amas: “E sabido que as criancas sio enviadas as casas das amas em alguma aldeia vizinha, de modo que em casa dos professores casados se ‘vem to poucos bercos € cueiros como no cartério do dito Du Boulay” Esses textos parecem indicar que o costume de enviar as criangas para as casas das amas, “numa aldeia vizinha” era comum nos meios sociais urbanos como os dos mestres, mas que nio era antigo, jé que um dos querelantes podia fingir ignori-lo. Esse costume ter-se- ia desenvolvido durante o século XVII, enquanto era denunciado pelos educadores mora- listas que, muito antes de Rousseau, recomendavam que as mies mutrissem elas mesmas suas criangas. Mas sua opinio, tantas vezes eficaz, apoiava-se apenas em tradigdes conven- cionais que remontavam a Quintiliano. Ela nfo conseguiu prevalecer sobre um costume que certamente se apoiava na experiéncia e correspondia ao melhor tratamento da época. De fato, podemos imaginar as dificuldades provocadas pela alimentagio ¢ a cria¢ao dos bebés no caso de a mie nio ter leite. Recorrer ao leite de vaca? Esta era a sina dos pobres. O humanista Thomas Platter, para descrever toda a miséria de sua infancia no inicio do sécu- lo XVI, no encontra nada mais expressivo do que confessar que fora criado com leite de vaca. As condigées de higiene da coleta do leite permitem compreender essa repugnincia, Além disso, nao era ficil administré-lo 4s criangas: os recipientes estranhos que estio ex- postos nas vitrinas do museu da Faculdade de Farmacia de Paris, e que serviam de mama- deiras, deviam exigir muita habilidade e paciéncia. Pode-se compreender muito bem 0 recurso as amas-de-leite. Mas que amas-de-leite? Podemos supor que no inicio elas geral- mente fossem criadas recrutadas na vizinhanga, e que a crianga amamentada permanecia em casa, onde era criada junto com as outras criangas. Tudo indica que nas familias ricas do século XVI e do inicio do século XVII 0s lactentes eram mantidos em casa, Por que entio, sobretudo nas familias da pequena burguesia, como as dos mestres, dos oficiais modestos, se criou o habito de enviar os bebés para o campo? Nao devemos interpretar esse costume relativamente recente como uma medida de protecio, eu ousaria mesmo dizer de higiene, que deveria ser comparada com os outros fenémenos em que reconhecemos uma aten¢io particular com relacio 8 crianca? De fato, apesar da propaganda dos filésofos, os meios ricos, nobres e burgueses, conti- nuaram a entregar suas criangas a amas-de-leite até 0 fim do século XIX, ou seja, até 0 momento em que os progressos da higiene e da assepsia permitiram utilizar sem riscos 0 leite animal. Contudo, uma mudanca significativa ocorreu nese meio tempo: a ama pas- soua se deslocar, em lugar da crianga, e passou a morar na casa da familia e a familia passou 164 DA FAMILIA MEDIEVAL A FAMILIA MODERNA a se recusar a separar-se dos bebés. Esse fendmeno € comparivel ao da substituigio do in- temmato pelo externato, estudado num capitulo anterior. ‘A historia aqui esbogada, sob um certo ponto de vista, surge como a histéria da emersio da familia moderna acima de outras formas de relagdes humanas que prejudicavam seu desenvolvimento. Quanto mais o homem vive na rua ou no meio de comunidades de tra~ balho, de festas, de oracdes, mais essas comunidades monopolizam nao apenas seu tempo, mas também seu espirito, e menor é o lugar da familia em sua sensibilidade. Ao contritio, se as relagdes de trabalho, de vizinhanca, de parentesco pesam menos em sua consciéncia, se elas deixam de alien4-lo, 0 sentimento familiar substitui os outros sentimentos de fide~ lidade, de servigo, ¢ torna-se preponderante ou, as vezes, exclusivo. Os progressos do senti- mento da familia seguem os progressos da vida privada, da intimidade doméstica. sentimento da familia nao se desenvolve quando a casa est muito aberta para o exterior: cle exige um minimo de segredo. Por muito tempo, as condigdes da vida'quotidiana nio permitiram esse entrincheiramento necessirio da familia, longe do mundo exterior. Um dos obsticulos essenciais foi sem diivida o afastamento das criangas, enviadas para outras ‘casas como aprendizes, ¢ sua substitui¢io em sua propria casa por criangas estranhas. Masa volta das eriangas, gracas & escola, ¢ as conseqtiéncias sentimentais desse fechamento da fimilia no bastaram: estava-se ai muito longe ainda da familia moderna e de sua forte vida interior; a antiga sociabilidade, incompativel com esse tipo de familia, subsistia quase que integralmente. No sé culo XVI, constituiu-se um equilibrio entre as forcas centrifigas — ou sociais— e centripetas — ou familiares — que nio sobreviveria aos progressos da intimidade, conseqjiéncia talvez dos progressos técnicos. Vimos nas paginas anteriores o despertar dessas forcas centripetas. Obser~ ‘vemos agora a resisténcia das forcas centrifigas, a sobrevivéncia de uma sociabilidade compacta, Os historiadores jé insistiram na manutengio até muito tarde no século XVII de rela~ ‘des de dependéncia que antes haviam sido negligenciadas. A centralizago monarquica de Richelien e de Luis XIV foi mais politica do que social. Se ela conseguiu reduzir os pode~ res politicos rivais da coroa, deixou intactas as influéncias sociais. A sociedade do século XVII na Franga era uma sociedade de clientelas hierarquizadas, em que os pequenos, os “partculiers", se uniam aos maiores."* A formagio desses grupos implicava toda uma rede de contatos quotidianos, sensoriais. Para nés, iso se traduz numa quantidade inimagindvel de visitas, conversas, encontros € trocas. O éxito material, as convengdes sociais ¢ os divertimentos sempre coletivos no se distinguiam como hoje em atividades separadas, assim como nio existia separago entre a vida profissional, a vida privada e a vida mundana ou social. O essencial era manter as re- ages sociais com o conjunto do grupo onde se havia nascido, e elevar a prépria posi¢io através de um uso. hibil dessa rede de relagdes. Ter éxito na vida nfo significava fazer for~ tuna ou obter uma situagio — ou ao menos isso era secundério; significava antes de tudo. ‘obter uma posi¢o mais honrosa numa sociedade em que todos os membros se viam, se A, Adam, Histoire dela idraturefanse ou XVEF sl, eI (1948), 11 (1951). R. Mounier, avant a Fronde", Rev. Hist, nod. e cont, 1938, pp. 81-113, oulévements populaires

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