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1 Anaisuniandrade2020 EleserammuitoscavalosAnais 12 20
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Claudia Camargo
Centro Universitário Campos de Andrade
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All content following this page was uploaded by Claudia Camargo on 06 January 2022.
Resumo: Analisaremos, a partir da obra Eles eram muitos cavalos (2001), de Luiz Ruffato, os aspectos
que contextualizam esse texto literário dentro da perspectiva crítica da pós-modernidade. A obra de
Ruffato, considerada um mosaico literário e também um dos livros mais importantes da
contemporaneidade, recebeu o Troféu APCA e o Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca
Nacional. Relata um dia na grande cidade de São Paulo, com diversas histórias de indivíduos ignotos, de
diversas classes sociais, fragmentos de vida num ambiente muito urbano. Nos textos encontramos um
cabeçalho que nos situa no tempo e espaço, anúncios de jornal, horóscopo, numerologia, simpatias,
cardápio, lista de títulos de livros, descrição da decoração de um cômodo de uma casa simples, orações,
e variadas narrativas de pessoas diversas, que não se conhecem, como é normal no ambiente urbano.
Veremos que muitos traços nos levam a considerá-la na perspectiva pós-moderna, como a desesperança,
o medo, a ultracotidianidade, a fé e a degradação do ser-humano, além da forma não linear e fragmentada
da narrativa. Para esta análise, destacamos como referencial teóricos autores como Zygmunt Bauman,
Walter Benjamin, Byung-Chul Han, Jean-François Lyotard, Georg Simmel, entre outros.
Introdução
A análise do texto de Ruffato tem como objetivo expor algumas características que o vinculam
ao conceito do pós-modernismo e, para tanto, vamos apontar brevemente algumas características sobre
o panorama do ambiente e da arte pós-moderna.
A pós-modernidade acontece num período difícil de definir, mas podemos contextualizá-la,
sobretudo, depois da segunda Guerra Mundial. Está vinculada à ideia do líquido (BAUMAN, 2007), do
volúvel, do que não permanece, da perda de fronteiras, de um mundo cada vez menor, do grande avanço
tecnológico, da imaterialidade da arte, da mudança de valores, no qual o fugaz e a individualidade
ganham lugar de destaque. Percebe-se uma falta de perspectiva histórica, de vinculação com a tradição
e com o passado. Se configura muito mais como uma ruptura, uma revisitação do que já se tinha na
modernidade. Segundo Bauman:
O sujeito não legitima mais os grandes discursos. Então, a modernidade se dilui, e é posta a
condição pós-moderna. Lyotard (2013, p. 28) define o pós-modernismo como o rompimento com
qualquer estrutura, o fim das narrativas-mestras, dos metadiscursos ou metanarrativas, ou seja, da
CAMARGO, Claudia Regina. A pós-modernidade de Eles eram muitos cavalos, p. 136-146. Curitiba, 2020
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ingressar numa espécie de barbárie, “uma difícil prova de honradez”, como desabafa Benjamin (1986,
p. 115).
Byung-Chul Han é um filósofo coreano que se inspira nas reflexões de Benjamin para falar da
pós-modernidade, apontando a degradação do indivíduo por meio da positividade da sociedade, que se dá
ao aplainar relações e padronizar sentimentos. Han discorre sobre a sociedade do desempenho, que neste
sentido tece relação com a sociedade do consumo que Bauman (2013, p. 71) descreve. O autor coreano
analisa a pós-modernidade de forma crítica, sobretudo nos campos do neoliberalismo, exploração do
homem, perda da liberdade e as implicações negativas do uso das redes digitais e da positivação
excessiva da pós-modernidade.
Em sua obra Sociedade da transparência, Han (2014) aborda a transparência como força cultural
originada no neoliberalismo, e esta como uma estratégia para o mercado capitalista, com suas
implicações sociais, estéticas e políticas. Já no âmbito social, o conceito de transparente se dá no sentido
de que a sociedade, por meio da positivação exagerada, abandona a negatividade natural humana em
detrimento do capital, e da dinâmica de resultados. Para o autor, as coisas (e a sociedade) se tornam
transparentes quando se tornam rasas e planas, se encaixando sem qualquer resistência ao curso raso do
capital, da comunicação e da informação. O filósofo ainda propõe outras características da pós-
modernidade, como a sociedade que despreza o respeito, que enaltece o espetáculo e o escândalo.
Han (2015) apresenta o desempenho como causador dos sofrimentos psíquicos (síndrome de
Burnout, transtorno de déficit de atenção, hiperatividade e depressão) que são apreendidos por este autor
em sua relação direta com o modo como o capitalismo contemporâneo opera. Han preconiza que nossa
memória anda “cheia de lixo e vazia de história” (2014, p. 76), possivelmente devido a nossa relação
viciosa e sem controle dentro das redes sociais existentes, onde procuramos a confirmação de nós
mesmos em relações virtuais apenas com aqueles que pensam da mesma forma, uma repetição do que
somos (HAN, 2017, p. 39).
Na arte, o pós-modernismo se manifesta a partir da mistura de várias tendências, de forma
fragmentada, poluída, confusa, entre erudito e popular, real e ficcional, passado e presente. Num
cotidiano fragmentado, as incertezas e o caos ocupam também a arte e, portanto, a literatura. Desta forma,
percebemos a dificuldade em conceituar este evento tão contraditório em si mesmo. Para Linda
Hutcheon:
O pós-modernismo é um fenômeno contraditório, que usa e abusa, instala e depois subverte os próprios
conceitos que desafia – seja na arquitetura, na literatura, na pintura, na escultura, no cinema, no vídeo, na
dança, na televisão, na música, na filosofia, na teoria estética, na psicanálise, na lingüística ou na
historiografia. (HUTCHEON, 1991, p. 19)
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Contudo, é Hutcheon (1991, p. 20) que assinala ainda outras importantes características do pós-
modernismo, como uma "presença do passado", que na literatura se dá nas metaficções, em que fatos
históricos se misturam com a ficção, sendo também uma “tendência cultural dominante”, caracterizada
pelos resultados da dissolução da hegemonia burguesa por ação do capitalismo e desenvolvimento da
cultura de massa, a qual desafia mas não nega. O pós-modernismo é “uma reavaliação crítica, um diálogo
irônico com o passado da arte e da sociedade, a ressurreição de um vocabulário de formas arquitetônicas
criticamente compartilhado” (HUTCHEON, 1991, p. 20).
Benjamin enunciava em 1936 que se estava assistindo ao nascimento das short story, ao falar do
declínio do artesanato e nascimento das narrativas breves. O autor se referia ao trabalho em camadas,
que exigia lentidão e donde nasciam as narrativas perfeitas, coroando o dia, após narrações sucessivas
(1986, p. 206). É dentro dessa perspectiva que avançamos, agora, para a análise da obra de Luiz Ruffato,
Eles eram muitos cavalos, romance que joga com a realidade social, tipicamente comum nos romances
da literatura contemporânea brasileira, construído de fragmentos sem uma ligação aparente, a não ser
pelo protagonista principal, que justamente é o espaço urbano de São Paulo.
Esta obra, num primeiro momento, causa certa estranheza sobre que tipo de narrativa traz.
Romance? Mini-contos? Isto porque os capítulos são, às vezes, apenas algumas linhas, sendo que cada
capítulo (ou fragmento) não tem qualquer ligação aparente com o próximo.
A metanarrativa encontrada na epígrafe do livro traz o trecho de um poema da escritora Cecília
Meireles, do livro Romanceiros da inconfidência: (1972, p. 228). “Eles eram muitos cavalos, / mas
ninguém sabe os seus nomes, / sua pelagem, sua origem…”. Ora, se cavalos não têm nomes, poderíamos
interpretar como uma referência aos fatos ou personagens que são esquecidos com o tempo. Também
pode ser vista como uma metáfora sobre a animalidade do homem, que apenas sobrevive, abandonando
sua humanidade e civilidade. Assim são os personagens desse romance: Pessoas desconhecidas,
anônimas, multifacetadas, de diferentes origens, raças e classes sociais. Diferentes vozes que ecoam
mudas na selva de pedra. Ninguém ouve suas lamúrias, ninguém vê suas mazelas.
Há a seguir mais uma epígrafe, antes de entrarmos nos capítulos/fragmentos, que traz um salmo:
“Até quando julgareis injustamente, sustentando a causa dos ímpios?” (Salmo 82, ARA). Esse salmo fala
sobre a corrupção dentro dos julgamentos, além da questão da religiosidade que é um tema bastante
explorado na pós-modernidade, período no qual alguns assuntos começam a se destacar, como o
esoterismo, as religiões orientais, o espiritismo, a psicanálise, a autoajuda e demais temas que se
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relacionam com uma busca pela subjetividade. Não se trata, contudo, da religião enquanto instituição,
porque isso também será questionado pela pós-modernidade, mas sim sobre a necessidade que o ser
humano tem de sustentação para enfrentar seus sofrimentos, que parecem cada vez mais profundos,
mesmo por coisas aparentemente banais. Bauman discorre sobre esse fenômeno:
Eles eram muitos cavalos apresenta diversas histórias de indivíduos ignotos, numa narrativa
fragmentada, até que o leitor perceba que se trata de um dia na grande cidade de São Paulo, conforme
enunciado no primeiro fragmento do livro – 1. Cabeçalho – que nos situa no tempo e espaço: “São Paulo,
9 de maio de 2000. Terça-feira.” Há uma variedade de estilos narrativos nos fragmentos, sendo que
encontramos anúncios de jornal, horóscopo, numerologia, simpatias, cardápio, lista de títulos de livros,
a descrição da decoração de um cômodo de uma casa simples (a copa), orações, etc., além de variadas
narrativas de pessoas diversas, que não se conhecem, como é normal nas grandes cidades, sendo este,
também, um traço da pós-modernidade, da individualização e da falta de relação social e afetiva
verdadeira.
Se na modernidade tínhamos o sujeito que caminhava e gostava das multidões, o flâneur
(BAUDELAIRE, 2002, p. 857), o sujeito pós-moderno se isola nessas multidões. Neste romance de
Ruffato, finais em aberto e algumas narrativas em fluxo de consciência, nos mostram a confusão de
ideias e os atropelos da contemporaneidade.
O livro é dividido em 69 fragmentos (capítulos, narrativas. A obra consultada não possui
paginação, por tratar-se de um objeto digital – arquivo kindle, optando-se em utilizar o número e título
dos capítulos para situar o leitor) e em cada um deles temos retratos da vida cotidiana e, principalmente,
de seus desgostos: condição humana precária, marginalidade, vandalismo, morte, desigualdade social,
preconceito, traição, violência doméstica, doença, prostituição, corrupção, desemprego, religião, crença,
fé, entre outros. É uma obra que evidentemente retrata o pós-moderno, tanto no estilo não linear e
fragmentado, quanto nas temáticas realistas e caóticas das narrativas que apresenta. Vejamos, a seguir,
alguns trechos para ilustrar esses traços.
A questão da morte é relatada em várias ocasiões (chacina, suicídio, latrocínio etc.) de forma
banal. Uma das passagens mais perturbadoras, neste sentido, é a narrativa que acontece no fragmento 23
– Chegasse o cliente:
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com um balde amarelo de plástico cheio de água azulada de sabão em pó e uma vassoura de pelo sintético
amarelo os dois faxineiros rapidamente lavaram o cimento esburacado o vermelho escoou para a sarjeta
um riozinho espumoso correu para a boca-de-lobo no momento em que os primeiros clientes um casal
estaciona em frente ao restaurante e a chave do carro entrega ao valete sorriso boa tarde doutor boa tarde
quê que aconteceu ali? um probleminha doutor mas já resolvido. (RUFFATO, 2001, s. p.)
Essa falta de empatia é um traço de como a tragédia é encarada. Para sobreviver nesse mundo de
desgraças e violências, não é possível sentirmos as dores do outro, pois não suportaríamos. Assim, vemos
e não sentimos nada, seguimos em frente. Do contrário, não conseguiríamos viver com certo conforto,
pensando na fome, nas guerras, doenças e sofrimentos. A pós-modernidade nos determina sobreviver, e
para isso é necessário banalizar os dramas da vida. Podemos identificar essa falta de empatia como uma
atitude blasé, que Simmel (1973) nos fala em seu texto A metrópole e a vida mental, que se dá quando
os nervos já estão tão condicionados que não reagem mais aos estímulos, uma forma de autopreservação
da personalidade, que Lipovetsky (2005) trata como indiferença.
Outro traço evidente na obra é a presença constante da cultura de consumo, comum nos grandes
centros urbanos, e que faz parte da perspectiva do cotidiano tratada no texto. Bauman (2009) descreve
de forma magistral essa questão da sociedade do consumo que está retratada em vários fragmentos. No
fragmento 4 — A caminho — temos a descrição de um carro importado, luxuoso, que que corre veloz
por ruas em condições precárias (capital privado x capital público). Ainda neste fragmento, um homem
usa “camisa Giorgio Armani, perfume Polo borrifado no pescoço, sapatos italianos, escanhoado, cabelo
à-máquina-dois, Rolex de ouro sob o tapete” (RUFFATO, 2007, s.p.), evidenciando um alto status social
do personagem, baseado nas marcas que consome.
Da mesma forma, no fragmento 28 — Negócio — há a menção de marcas e atividades que
demonstram também a lógica do capitalismo selvagem, conforme Bauman assevera que, no mundo
contemporâneo, encontramos o discurso de sobrevivência individual por meio do consumo, em vez do
discurso moderno de progresso coletivo (Bauman, 2007, p. 108). No fragmento 22 – (ela, – que descreve
a moça pobre que sonha com as coisas que vê nas vitrines, e também no fragmento 57 – Newark, Newark
– que conta a história de um rapaz que sonha deixar o Brasil para trabalhar, mesmo que seja de forma
ilegal, em um subemprego nos Estados Unidos, para conseguir ser alguém. Este tema é abordado por
Bauman (2005) ao tratar das relações num novo contexto global. Para ilustrar, destacamos um trecho de
Newark, Newark, que mostra a desesperança com o país natal e o sonho americano:
Arrumado, em três anos de Nova York, o apê, superlegal: o salário, de chapeiro, imagine!, de chapeiro!,
digno; e as sobras de tempo e grana despende estudando artes, à noite. No Brasil, o suor de oito, dez horas
por dia consome-o o aluguel, a comida... Bem fez o Rick. A coisa não andava, se mandou. Agora, em
dólar, as pessoas respeitamele. E em cartas, telefonemas, atentando, Vem pra cá, vem, Vem que a gente
vai se divertir pra caralho! Vem, vamos botar pra foder! O Rick é uma pessoa fantástica! Mas, ai, acho
que. José Geraldo!, deixe de veadagem!, choramingar por esse paiseco de merda?, povinho conformado,
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elite sacana, corrupção, politicalha, bandalheira, filhadaputice, corneagem, putaria... Ah, não!, chega!, seja
o que deus quiser... (RUFFATO, 2001, s. p.)
Estar em movimento, antes um privilégio e uma conquista, não é mais, portanto, uma questão de escolha:
agora se tornou um “must”. Manter-se em alta velocidade, antes uma divertida aventura, transformou-se
em uma tarefa exaustiva. (BAUMAN, 2005, p. 37-38).
Outro traço da pós-modernidade a ser destacado são as relações fugazes, trazidas no fragmento
53 – Tetrálogo –, que descreve um encontro para troca de casais, e no fragmento 55 – Via Internet. Em
ambos, a questão do sexo como forma primitiva de consumo, e a dificuldade em manter uma relação
verdadeira pode, muitas vezes, acabar com a separação de casais, e esta também é retratada no fragmento
10 – O que quer uma mulher –, que aborda uma relação onde duas pessoas vivem juntas, mas já não têm
nada em comum, e a esposa, depois de uma experiência traumatizante num assalto, resolve que a vida
deve ser vivida. Também no fragmento 25 – Pelo telefone –, onde a esposa deixa inúmeros recados na
secretária eletrônica da amante, primeiro com ofensas e certa vitimização, e por último, fala das durezas
da rotina e da vida de um casal, quase como que oferecendo aquela vida à amante, no momento em que
percebe que não vale a pena lutar por uma vida assim. Nesses dois últimos fragmentos citados, algum
fato acontece que desperta certo inconformismo com a relação que vivem, mas sem perspectivas de que
algo possa melhorar, as protagonistas ficam inertes. A separação, nestes casos, parece que já aconteceu,
embora nem sempre documentada, na vida prática já é uma realidade.
Outro aspecto importante a se considerar é a significativa relação que os indivíduos têm com a
religiosidade, de forma que muitos filósofos da pós-modernidade trataram desse assunto, entre eles,
Lyotard, Bauman e Leonardo Boff. Embora houvesse uma crença que a religião fosse acabar, com o
avanço técnico e científico da modernidade, isso não aconteceu, mas mudou, de forma que muitas vezes
a religiosidade não está vinculada, necessariamente, às instituições religiosas convencionais. E é nessa
perspectiva que Ruffato traz no fragmento 27 – O evangelista –, um jovem que prega em praça pública,
pois, por ter sido resgatado do inferno, quer dar seu testemunho. No entanto o mundo, que não está
preparado para lhe ouvir, o agride:
Senhor, Senhor: livra-nos da guerra... que existe... dentro... dentro... dentro de... cada...” e as palavras
engastalham-se-lhe nos dentes. E, súbito, um como que monolito esmaga seu peito / abafando a sinfonia
da tarde / explodindo-a em blecautes / alguns segundos? minutos? um par de sapatos um par de tênis solas
gastas aproximam-se bitucas folhas copos descartáveis pombos guardanapos palitos papéis de bala poça
de mijo “Tudo bem aí?” “Tudo... Tudo bem...” levanta-se espana a calça o paletó o lenço descobre um
filamento de sangue na calva capenga rumo ao largo de São Francisco arde o estômago latejaa cabeça
Senhor, não sou digno (RUFFATO, 2001, s. p., destaque no original)
O apego à religião pode ser entendido, na pós-modernidade, como a expectativa que o ser
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humano tem de ser resgatado de um mundo cruel e vazio. A crença de que algo pode mudar, melhorar,
se não nesta vida, em outra (quem sabe?). E, assim, Ruffato traz a oração de Santo Expedito, além de
algumas “simpatias” ou encantos, como forma dessa crença de mudança, sem uma ação direta do
interessado, mas sim através de uma intervenção divina. Essa religiosidade é, ainda, abordada no
fragmento 33 – A vida antes da morte – onde um senhor idoso vive uma vida tão miserável de sentido,
um vazio existencial tão grande, que espera encontrar uma vida que compense essa falta de vida, mesmo
que seja após a sua morte:
Dia desses, demandou à porta, desajeitado, indagou, a dentadura folgada dentro da boca banguela, se eu
tinha algum livro, um que falasse como é a vida depois da morte, os minguados cabelos brancos cheirando
a naftalina. Estranhei, somos apenas bom-dia boa-tarde boa-noite, O senhor... o senhor é espírita? Os olhos
amarelos procuraram refúgio nas mãos que estufavam um pedaço da flanela do pijama de riscas finas azuis
e brancas fedendo a suor, Vamos entrar... Avançou dois passos, estacou, desembaralhei títulos na estante,
“O Céu e o Inferno”, Allan Kardec, estendi, folheou, É... acho que..., suspirou. Se o senhor gostar... Deu
meia-volta, arrastou os tênis sujos enfiados nos pés esverdeados pelo corredor escuro... (RUFFATO, 2001,
s. p.)
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e nada nada disso restará nada o bairro se transformará em lugar ermo a morte sob cada poste de luz
apagada em cada esquina botequins agachados meia-folha cada pardieiro cada sobrado cortiço cada gato
cachorro cada saco de lixo e tudo terá sido em vão são paulo inteira decadência e todos a / abandonarão e
uma cidade fantasma como as dos filmes de faroeste preto e branco que trazia da / videolocadora sentado
na cama comendo pipoca de micro-ondas e tomando Coca-Cola / surgirá / para que / tudo / se daqui a
alguns milhares de anos a terra sucumbirá numa hecatombe deixará de girar fria inerte / e o sol se
consumirá bola de hélio que devora o próprio estômago / para que / se tudo acaba / tudo / tudo se perde
num átimo / o sujeito no farol se assusta / atira/ e o cara sangrando sobre o volante o carro ligado / o povo
puto atrás dele / ele / atrapalhando o trânsito / e o povo puto atrás dele / buzinando / buzinando /
puto atrás dele (RUFFATO, 2001, s. p.)
Por fim, a obra termina com um fragmento sem título, que não por acaso retrata o medo e a
indiferença, quando um casal percebe que na sua porta está alguém ferido, mas que, inertes, resolvem
que é melhor dormir e no dia seguinte ficar sabendo o que estava acontecendo lá fora, por medo de sofrer
algum tipo de violência, preferindo ficar indiferentes.
Conclusão
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Referências
BAUDELAIRE, C. O pintor da vida moderna. In: Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
Bíblia Sagrada. Almeida Revista e Atualizadas (ARA). Sociedade Bíblica do Brasil, 1988.
HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
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LIPOVETSKY, G. Narciso ou a Estratégia do Vazio. In: _____. A Era do Vazio: Ensaio sobre o
individualismo contemporâneo. São Paulo: Manole, 2005.
RUFFATO, L. Eles eram muitos cavalos. Rio de Janeiro: Editora Record, 2011. Arquivo Kindle.
SIMMEL, G. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio G. (Org). O fenômeno urbano. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1973.
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