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O urbano tem sido objeto de interesse por

parte dos geógrafos desde, pelo menos, os


primeiros anos do século XX, consoante as
profundas transformações, em curso, verificadas
tanto no espaço urbano quanto na rede urbana.
Tratava-se de registrar e interpretar aqueles
impactos que o capitalismo industrial produziu
nas velhas cidades européias e nas novas
cidades americanas. O interesse foi crescente e
marcado, como em outras áreas de interesse por
parte dos geógrafos, pela adoção de muitas
matrizes teórico-metodológicas que caracte-
rizaram a geografia e as ciências sociais em
geral. Uma perspectiva determinista foi incor-
porada aos estudos da cidade. A influência da
Escola de Chicago, de Robert Park, foi, e ainda
é, muito grande. Um viés calcado no positi-
vismo lógico, com seus modelos hipotético-
dedutivos, marcou os estudos geográficos sobre
o urbano. A análise crítica, fundada nas semi-
nais contribuições de Henri Lefébvre, iria
ampliar o interesse dos geógrafos sobre o
urbano: os trabalhos de David Harvey e
Edward Soja são expressões de grande cali-
bre dessa influência.
Recentemente ainda, a partir de meados dos
anos 70, os geógrafos incorporaram, em suas
análises sobre o urbano, uma perspectiva que
inclui as práticas socioespaciais e seus
significados, envolvendo crenças, valores e
intersubjetividades diversas, admitindo a coe-
xistência de múltiplas espacialidades cons-
1ruídas, percebidas e vivenciadas por uma
sllCÍl'dadc gue é fragmentada, estando longe de
A CONDIÇÃO URBANA
Do Autor:
Paulo Cesar da Costa Gomes
Geografia e Modernidade

-
A CONDIÇAO URBANA
ENSAIOS DE GEOPOlÍTICA
DA CIDADE

IB
BERTRAND BRASIL
Copyright © 2001 Paulo Cesar da Costa Gomes

Capa: Rodrigo Rodrigues


SUMÁRIO

2002 Apresentação 7
Impresso no Brasil Introdução 11
Printed in Brazil
Primeira Parte
DUAS MATRIZES TERRITORIAIS:
CJP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FO'ITE
NOMOESPAÇO E GENOESPAÇO
SJ'IDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS. RJ
I. O nomoespaço 31
G616c Gomes, Paulo Cesar da Costa Os espaços contratuais: Exemplos e dinâmicas 40
A condição urbana: ensaios de geopol ítica da cidade 1
Paul o Cesar da Costa Gomes. -Rio de Janeiro: Bcrtrand 11. O genoespaço 60
Brasil, 2002 Quando a idéia da diferença funda um espaço 66
304p.
Ill. Os modelos políticos: Que lugares para a cidadania
Inclui bibliografia moderna? O Estado, a Nação e os Estados-nações 81
ISBN 85-286-0956-1
IV. Os modelos sociológicos: Os espaços da civilização
1. Espaço urbano - Rio de Janeiro (RJ). 2. Espaço ou territórios das culturas 102
urbano- Paris (França). 3. Geopolítica. L Título.
V. Os limites metodológicos dos modelos de
nomoespaço e geuoespaço 113
CDD - 307.76 O recurso às matrizes como modo de operação
02-0406 CDU- 316.334 56
analítico 121

Todos os direitos reservados pela: Segunda Parte


EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA. A APLICAÇÃO DAS MATRIZES AOS CASOS
Rua Argentina, 171 - 1~andr- São Cristóvão VI. Cidadania e espaço público: O que a geografia
20921-380- Rio de Janeiro- RJ
tem a dizer? 129
Tel.: (0xx21) 2585-2070- Fax: (0xx2l) 2585-2087
Um olhar geográfico sobre o debate da cidadania
Não ·é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quais- moderna 141
quer me tos, sem a prévia autorização por escrito da Editora.
A importância da dimensão física: Os espaços
públicos 159
Atendemos pelo Reembolso Postal.
VII. O espaço público e as manifestações do recuo
da cidadania 169
A atual dinâmica do espaço público 176
A apropriação privada dos espaços comuns 176
A progressão das identidades ten-itoriais 180 APRESENTAÇÃO
O emuralhamento da vida social J82
O crescimento das ilhas utópicas 186
O recuo da cidadania 188
VIII. Rio-Paris-Rio: Ida e volta com escalas 192
A ida: Das praias aos bulcvares ou dos arrastões
aos casseurs 192
O que pode haver de comum entre ir à praia ou ao jogo de
As escalas ou como cada local mobiliza elementos de
futebol, no Rio de Janeiro, as manifestações estudantis que
alcance diverso na compreensão de sua dinâmica 206
A volta: Uma territorialidade na praia 216 ocorrem no Boulevard Beaumarchais, em Paris, ou a luta pela
independência da Província do Quebec, no Canadá? O que
IX. O futebol e sua dimensão estética: Entre a geopolítica poderia relacionar estes eventos com a discussão sobre a cida-
da bola e a geopolítica dos torcedores 231
dania? O que estes assuntos, aparentemente tão díspares,
O f~tebol como metáfora de uma disputa territorial 234
A c1dade como metáfora do futebol 242 podem conter de geográfico?
Nosso grande desafio é demonstrar que estes fenômenos,
X. Viva o Quebec livre! Os paradoxos de uma
habitualmente tratados por especialistas de áreas muito diver-
democracia 252
sas (cientistas políticos, historiadores, antropólogos, sociólo-
Do tradicional ao moderno: Mudanças na escala
territorial da identidade 255 gos etc.), possuem um componente comum e essencial: uma
O pós-moderno: Um novo contexto na Juta pela dinâmica espacial. Mais especificamente queremos trazer à
soberania? 262 tona um elemento que nos parece estrutural nestes fenômenos:
Democracia e território: As lições do Canadá 265 a disputa territorial. Se lograrmos êxito nesta demonstração,
Versões e contraversões: As diferentes leituras teremos que concordar que, daqui por diante, estes temas
da diversidade socioterritorial 273 merecem figurar na agenda da geografia.
Os paradoxos de uma democracia 282 Durante muito tempo predominou, e ainda hoje persiste, a
Últimas notas 287 idéia de que a geografia estaria fadada a produzir longos inven-
Bibliografia citada 294 tários descritivos de lugares -quando bem-feita, a obra geo-
gráfica se confundia com um exercício de erudição; quando
malfeita, o resultado se avizinhava à pura banalidade. Hoje,
cada vez mais conscientemente, a geografia toma para si ares-
ponsabilidade de produzir uma verdadeira interpretação dos
fenômenos, por meio de uma inovadora análise espacial. Isto
implica manter-se fiel ao compromisso de exprimir primor- da estetização do processo de luta e de domínio territorial e,
dialmente a importância e o alcance da dimensão espacial nos como tal, tende a se transformar em um veículo de referência
fenômenos que ela estuda. Duas principais conseqüências deri- para outras arenas de luta, fora do controle imposto pelas regras
vam daí. Em primeiro lugar, a ordem espacial dos objetos e das que o limitam dentro do campo. Igualmente, a freqüência às
práticas sociais passa a ser o elemento central desta análise, ou praias do Rio de Janeiro e os recentes movimentos dos arrastões
seja, a trama relaciona! das localizações é um dos elementos- são examinados como fenômenos territoriais, ou seja, como fru-
chave na compreensão dos fenômenos. Em segundo lugar, esta tos de uma classificação das pessoas a partir do espaço que con-
ordem espacial, além de ser uma das condições básicas para a quistam e ocupam, ou ainda, pelas referências ao espaço de
existência das práticas, é também concebida, simultaneamente, onde elas procedem. Assim, é-nos permitido aproximar esta
como portadora de sentidos, ou seja, esta análise espacial pode dinâmica carioca de uma outra, esta parisiense, que também
produzir uma interpretação original desses fenômenos. classifica e distingue os sujeitos pela sua procedência e delimita
Convém insistir no fato de que, por tratar-se de uma inter- práticas diferenciadas sobre um espaço de luta, como no caso
pretação, alguns elementos e aspectos serão mais valorizados dos casseurs I infiltrados nas passeatas estudantis dos bulevares
do que outros neste trabalho e, dessa forma, uma leitura sui da capital francesa. Finalmente, prosseguindo na apresentação
generis acena para a possibilidade de um verdadeiro diálogo do raciocínio que guia este livro, a cidadania é aqui concebida
interdisciplinar, mantendo-se, todavia, a identidade do olhar como algo que se traduz no cotidiano e nas ações mais habituais
geográfico. Assim, reafirmamos aqui a intenção de somar, e do cenário da vida pública, ou seja, onde há vida pública há dis-
não a de substituir. Em outras palavras, os princípios de coe- cussão e conflitos, que, de uma forma ou de outra, traduzem-se
rência e lógica na dispersão das coisas sobre o espaço podem em uma disputa tenitorial. Dentro desta perspectiva, cidadania e
trazer à luz um novo ângulo para a compreensão de certas dinâ- democracia não podem ser pensadas sem refletirmos sobre a
micas sociais e constituem a contribuição propriamente geo- noção de espaço público e sobre as dinâmicas sociais que aí se
gráfica na análise dos fenômenos que habitualmente são estu- desenvolvem.
dados por áreas disciplinares vizinhas. Esperamos que os leitores se sintam interpelados e seduzi-
Voltando aos temas citados no início, como já o dissemos, o dos a prosseguir a leitura após esta primeira e breve enunciação
que há neles de constante, segundo o ponto de vista defendido dos nossos propósitos. Para cada um destes exemplos, dedica-
aqui, é uma central valorização do papel da espacialidade no mos um capítulo, em que tentamos construir um quadro de ele-
seio destes eventos e da capacidade que a análise desta dimen- mentos que justificam a centralidade da dinâmica territorial.
são pode trazer para a compreensão de certas manifestações e Escolhemos a forma de ensaio para trabalhar estes casos como
características destes movimentos sociais. Assim, a questão do uma estratégia para tornar a leitura mais agradável e dar autono-
regionalismo ou do nacionalismo do Quebec é examinada sob a mia ao leitor, que poderá optar livremente sobre a ordem ou
ótica dos desafios e dos impasses que uma identidade territorial
pode criar quando se associa a um discurso que pretende obter
1 A tradução literal para esta expressão é "quebradores" e se aplica aos jovens pro~e­
legitimidade a partir da idéia de democracia ou de consulta nientes dos subúrbios parienses que promoveram um ceno número de saques às loJaS
popular. O futebol é visto como uma atividade que tira sua força por ocasião das grandes manifestações estudantis ocorridas nos anos 90.

8 )lflJ\ ~ 9
escolha dos capítulos a serem lidos. Eles são, no entanto, prece-
didos por uma necessária discussão teórica geral em que figuram
as matrize~ _ epistemológicas desta reflexão e que dão o funda-
mental suporte metodológico e analítico ao que se segue.
Esperamos também que o prazer vivido ao longo da pesquisa INTRODUÇÃO
que nos levou a estas "pequenas descobertas" esteja fielmente
retratado nesta narrativa, para poder ser compartilhado com nos-
sos eventuais leitores.2

Três noções básicas estruturam toda a reflexão contida neste


livro: teJTitório, política e cidade. Evitaremos a tentadora velei-
datl.c de buscar nestas noções um sentido único, estabelecido de
uma vez por todas, de forma definitiva. O interesse que nos move
aqui é muito mais o de percorrer alguns dos temerádos acessos
que podem existir entre elas ou, ainda de forma mais precisa, a
tentativa é a de valodzar as zonas de sombreamento que existem
na superposição e na interseção destas três noções. Aliás, esta
intenção já está sinteticamente contida no título escolhido. A
expressão "condição urbana" era utilizada na época do Império
Romano para distinguir um estatuto próprio adquirido por um
ce11o adensamento populacional, dotado de formas estritamente
relacionadas à organização urbana: Jari, templos, e a orientação
dos arruamentos, seguindo o cardo e o decumanus. Indissociável
destas formas era a estrutura de poder, e as cidades constituíam
simultaneamente sua sede, sua representação e a condição para o
seu exercício. A concepção romana do poder o associava neces-
sariamente a uma extensão física, um território, sobre a qual ele
2
se organizava e se exprimia. A herança grega da polis, simulta-
Esta pesquisa contou com o apoio do CNPq e, por meio de bolsas de Iniciação
Ctentffica: permitiu que alunos de graduação em geogralia desenvolvessem alguns dos neamente forma física e fonna de organização social, foi, neste
temas aqUJ apresentados em seus trdbalhos de monografia. O autor também estende os sentido, inteiramente reatualizada. Acrescentemos a isto o fato
agradecimentos a todos os seus colegas professores do Dcpto. de Geografia da UFRJ
e aos alunos da Graduação e da Pôs-Graduação em Geografia da mesma instituição, de que a divisão espa~il é uma daSToiTiiãSmaiSãntigas gue
asstm como aos alunos c professores da Uni versidade de La Rochelle, pelas renovadas cõnheéemos de classificar as coisas, não apenas por seus atribu-
e instigantes di scussões realizadas durante os cursos e seminários.
tc>s ou valores singulares, mas sobretudo por sua localização.
o )lf1f\
1
...... 11
nenhum deles signifique sempre o exercício efetivo de um con-
Sem a pretensão de estabelecer uma definição acabada, um
trole sobre os objetos e as práticas sociais que aí ocorrem.
certo número de precisões parece ser necessário no uso da idéia
Queremos dizer que a idéia de território traduz, ao m-esmo
de território, visto o seu largo emprego na geografia. Entende-
tempo, uma classificação que exclui e inclui; um exercício de
mos aqui por territorializar o movimento de um agente titular no
gestão que é objeto de mecanismos de controle e de subversão;
ato de presidir a lógica da distribuição de objetos sobre uma
e uma qualificação do espaço que cria valores diferenciais, rede-
dada superfície e de, simultaneamente, controlar as dinâmicas
finindo uma morfologia de cunho socioespacial. Estes pares-
que afetam as práticas sociais que aí terão lugar. O território é,
exclusão/inclusão, submissão/subversão, e valorização/desvalo-
pois, neste sentido, parte de urna extensão física do espaço,
rização- criam tensões e resultam em lutas territoriais que alme-
mobilizada como elemento decisivo no estabelecimento de um
jam modificar seus limites, sua dinâmica, suas regras ou seus
poder. Ele é assim uma parcela de um terreno utilizada como
valores. Por isso, chamamos este fenômeno de geopolítica, ou
forma de expressão e exercício do controle sobre outrem. Por
seja, lutas que têm como objeto de disputa a busca pela afirma-
meio deste controle é possível a imposição das regras de acesso, ção de ufi.fiJÕderque étãmbérn a luta por um território.-Aesco-
de circulação e a normatização de usos, de atitudes e comporta- 111ãdã._dênominãção "geopolítica urbana" se fez pelõ"fato de que
mentos sobre este espaço. Este controle do território é a expres- esta luta se constrói dentro de um quadro restrito, ou melhor, a
são de um poder, ou seja, ele é aquilo que está em jogo em gran- partir de uma certa estrutura que associa pessoas a uma forma
de parte das disputas sociais, aí incluídas aquelas que disputam fís ica específica, a cidade. Estas pessoas, movidas por diferentes
um direito à cidade. Finalmente, a territorialidade é vista aqui anseios e expectativas, estão reunidas sobre este terreno comum
como o conjunto de estratégias, de ações, utilizadas para estabe- da cidade e aí desenvolvem relações orientadas e organizadas
lecer este poder, mantê-lo e reforçá-lo) tenitorialmente. Como nos ensina Arendt, "a política trata da
Por isso, ao contrário de muitos geógrafos, não acredita- convivência entre diferentes. Os homens se organizam politica-
mos que a noção de território se confunda com qualquer mente para certas coisas em comum, essenciais num caos abso-
dimensão emotiva ou de identidade, pois estas já seriam parte luto, ou a partir do caos absoluto das diferenças".s A cidade
de uma estratégia de tomada de controle.4 Tampouco, asseme- exprime com eloqüência, em sua forma física e em sua dinâmi-
lhamos tout court a noção de território à idéia de apropriação, ca, urna das modalidades fundamentais de "organização" destas
pois esta última pode ser construída a partir de múltiplos veícu- diferenças; poderíamos mesmo dizer que esta é uma de suas
los, imaginário, sentimentos, posse, propriedade, uso, sem que condições fundadoras. Voltaremos à questão da definição de
cidade; antes, entretanto, vejamos rapidamente dois exemplos.
3 Somos inteiramente tributários das reflexões sobre o tema desenvolvidas por Sack,
Recentemente, em um documentário televisivo sobre os
R. The Human territoriality: lts cheory and history, Cambridge University Press, problemas dos direitos civis dos negros nos EUA, foram mos-
Cambridge, 1986.
tradas cenas e entrevistas que faziam alusão à violência que
4 Esta visão do território como definido pelo sentimento de identidade é uma das mais
utilizadas pela geografia. Ver, por exemplo, Bailly, A. & Ferras, R. Éléments
d'épistémologie de la géograpl1ie, Armand Colin, Paris, 1997; e Raffestin, C. Por uma
s Arendt, Hannah. O que é política?, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1998, p. 21.
geograjia do poder, Ed. Ática, São Paulo, 1993.

12 ftl]\ ~ 13
caracterizou as lutas raciais ocorridas na cidade de Chicago no In los l x~s
tane interessantes. Ele nos indica que se trata de uma
final dos anos 50. O discurso dessa apresentação fazia apelo a ·.t:~ão de guerra entre territórios, por meio da qual se afirma
expressões diretamente inspiradas na imagem da guerra. 'l:tramcn te que estes espaços estariam submetidos a forças
Assim, palavras como invasão, ocupação, terra de ninguém, ltl'p.cmônicas diferentes: de um lado, a sociedade "legalmente"
conquistas, avanços, zona limítrofe etc . foram utilizadas como 'onslituída; de outro, um território controlado "informalmen-
material narrativo adequado para caracterizar esse movimento. lt>" pela força ou pelo prestigio de grupos marginais. O fato
O objeto central da discussão eram as lutas pelos direitos dos rciL:vante aqui é apresentarmos esses relatos fazendo apelo a
negros norte-americanos na cidade de Chicago, mas a forma da um raciocínio que se nutre da imagem de uma oposição entre
apresentação, ao valorizar a idéia de uma guerra, chamava dois territórios mutuamente excludentes, embora, em princi-
indiretamente a atenção para um dos elementos estruturantes pio, ambos façmp;:rt~ e - ~ontiuam aquilo que denominamos
do evento: a disputa territorial. Havia estratégias espaciais de a cidade do Rio de Janeiro. Esta dualidade não existe apenas no
lado a lado: das organizações negras, cotizando-se para adqui- discurso dos meios de comunicação; ela se manifesta como
rir casas em bairros brancos; dos brancos, organizando barrei- uma experiência vivida no cotidiano dos moradores e se traduz
ras físicas legais e manifestações para impedir o livre acesso de várias formas) Uma delas se revela na expressão "favela-
dos negros a determinadas áreas. O problema dos negros na dos" e "moradores do asfalto". A pavimentação age aqui como
cidade de Chicago era em grande parte o do confinamento símbolo da demarcação de territórios diferentes, e a fronteira
espacial no gueto, no qual eles deveriam permanecer margina- l'ísica pretende delimitar formas diferentes de comportamentos
espacial e social. Dessa maneira, a exclusão social deixa de ser
lizados do resto da cidade, assim como o eram da ordem social
apenas um estatuto abstrato; ela ganha a forma de um território.
hegemônica. Na evolução dos acontecimentos, o conhecido
Estes dois exemplos poderiam ser multiplicados infinita-
gueto negro extrapolou seus lirrútes, conquistou direito à cida-
mente na demonstração do ponto de vista que será aqui susten-
de, e uma nova geografia surgiu deste movimento. O poder
tado: a cidade é também, sem dúvida, um fenômeno de origem
público, representado sobretudo pela prefeitura, organizou pla-
político-espacial, e a manifestação deste caráter se revela em
nos de deslocamento e assentamento das populações, contro-
sua dinâmica territorial.8 Em outros termos, a ordem espacial
lou preços, e o setor sul da cidade passou a ser objeto de gran-
des intervenções, após os incêndios e as depredações que lem- 7 Outra forma discursiva largamente utilizada para se re ferir às pessoas que habitam a
bravam claramente manobras de guerra.6 favela é a denominação de "comunidade". De fato, esta categoria, que, à primeira
vista, pode parecer simpática, pois confere um estatuto de grupo organizado e "harmô-
Atualmente, no Rio de Janeiro, com freqüência podemos nico" a estas pessoas, na verdade, age como um reforço da idéia de exclusão. na medi-
ler nas manchetes dos jornais que a polícia "ocupou", "inva- da em que diferenc ia estas "comunidades" de uma sociedade urbana global que forma
a cidade. A este respeito, ver também Souza, Marcelo L. O desafio metropolitano.
diu" ou "fez um cerco" à favela. Este vocabulário nos revela Bertr.J.nd Brasil, Rio de Janeiro, 2000, p. 62.
8 Em seu ensaio sobre a cidade, Max Weber (La ville, ed. Aubier Montaignc, Paris.
1982), afirmava que o conceito de cidade é próprio da civilização ocidental, pois é
6 O confronto étnico/territorial na cidade de Chicago já havia inspirado, no primeiro fruto da simultaneidade histórica das regulamentações próprias a uma economia urba-
quarto do século XX, a escola de sociologia urbana, conhecida como Escola de na, associadas à afirmação de uma a utoridade político-admin istrati va que reunia, em
Chitago, corrente pioneira em valorizar a idéia de disputa tetTitorial entre diferentes um mesmo território e sob uma mesma gestão, uma população sujeita às mesmas
comunidades, muito embora a concepção de território ainda fosse largamente tributá- regras. A cidade para ele é, pois, ao mesmo tempo um fato econômico e uma relação
ria dos modelos ecológicos e, portanto, carregada de fortes tintas naturalizantes. polftica.

11, ,nnJ\ .al&â 15


da cidade, isto é, sua disposição física unida à sua dinâmica
dl! uma tripla orientação que marca este campo da pesquisa na
sociocomportamental, são os elementos fundadores da condi-
grografia francesa.Jl Em primeiro plano, os trabalhos sobre a
ção urbana. A tal ponto isto é importante, que, ao procurarmos
ridade foram concebidos como a descrição da morfologia de
uma definição para o fato urbano, podemos nos perder deta- ruas e atividades, e esta orientação esteve sempre presente, seja
lhando critérios que podem parecer para cada situação mais ou nas grandes monografias urbanas, seja nos estudos mais
menos apropriados, mas não possuem a capacidade de abran- sistemáticos que tendiam a concluir por uma tipologia da
gência. Os autores que se debruçaram sobre este problema ten- forma urbana. A segunda grande tendência é aquela que parte
dem a matizar sempre seus critérios e a admitir, por fim, que de um sistema de aglomerações, ou seja, concebe o fato urba-
nenhum deles é suficientemente capaz de recobrir o essencial no como um conjunto de cidades, e estas são vistas como ele-
na idéia de cidade.9 O critério demográfico está entre os mais mentos de um território. Este segundo tipo de abordagem teve
freqüentes; entretanto, facilmente compreendemos que a sim- como grande marco inicial o trabalho de Christaller sobre as
ples densidade de população não pode ser responsável pelo localidades centrais. Atualmente, ainda que os modelos sejam
aparecimento da cidade. Além disso, ainda que saibamos que o outros, como no caso de Pumain, que busca inspiração na teo-
gradiente de densidade da ocupação populacional do espaço ria da auto-organização, continua-se a se procurar explicar e
varie enormemente, os limites que estabelecem os umbrais do mensurar a geometria do processo de urbanização e suas prin-
fenômeno urbano são obrigatoriamente arbitrários. lO cipais inflexões, sendo a cidade tomada como unidade dentro
Em uma publicação multidisciplinar que pretende fazer de um processo mais geral, que é o verdadeiro objeto destas
um balanço dos estudos sobre a cidade e o urbano, o artigo pesquisas.12 Finalmente, uma terceira grande linha de orienta-
referente à contribuição dos geógrafos demonstra a perenidade ção das pesquisas foi aquela de analizar a organização interna
das cidades. Este tipo de abordagem tem raízes antigas na geo-
O papel precursor desta obra já foi, aliás, reconhecido por inúmeros comcntadores que
grafia e sofreu fortes influências, primeiro, do modelo funcio-
se debruçaram sobre o mesmo tema. Ver, por exemplo, Cardoso, Fernando Henrique. nalista e, em seguida, da escola de Chicago e das correntes da
Autoritarismo e democratização, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1975, e McCrone, D. &
economia espacial de cunho neoclássico. Mais tarde, estes
E lliot, B. The Cily: Patterns ofdomiJtaliOil and conflicr. The McMillan Press, Londres,
1982. Para mais detalhes sobre as relações entre cidade e política no pensamento estudos agregaram também u ma preocupação marxista e
weberiano, consul tar Bruhns, H. "La ville bourgeoise ct l'émergence du capitalisme desenvolveram a idéia de produção do espaço e de divisão ter-
moderne" in Lepetit, B e Topalov (di r.), La vi/le des sciences sociafes, Belin, Paris.
2001, pp. 47-78. ritorial do trabalho urbano. Os fenômenos investigados, no
9 Esta constatação é quase uma regra para todos aqueles autores que se confrontaram entanto, têm uma certa recorrência; dizem respeito à segrega-
com o problema da generalização do fenômeno urbano, seja em sua extensão espacial,
seja na história ou em ambas as dimensões, como, por exemplo, Bairoeh, Paul. De
Jéricho à Mexico. Vifles er économie dans l'histoire, Gallimard, Paris, 1985; Beaujeu
t1 Lussault, Michel. « La ville des géographes » in Paquot, T. & Lussault M. Body-
Garnicr, J. Géographie urbaine, Armand Colin, Paris, 1980; Mumford, Lewis The Ciry
Gendrot (dir.) La vil/e et l'urbainl'état des savoirs, La Découverte, Paris, 2000, pp.
in llisrory, Harcourt Brace & Co, Orlando, 1961; Bnwdcl, Fernand. Civilisarion maté-
rielfe. économie et capiralisme, XV•-XVIII• siecle (capítulo "Les Villes"), Armand 21-35.
12 A adoção de um modelo fundado na teoria da auto-organização é apresentada e jus-
Colin, Paris, 1967; Duby. Gcorges, (dir.) Hi.stoire de la France urbaine, Seuil, Paris,
tificada pela própria Pumain como estudo da interdependência entre as cidades, ~m
1985; Roncayolo Mareei. La vii/e et ses terriroires, Gallimard, Paris, 1990, entre outros.
um breve artigo, "Le devenir des villt!S el la mod~lisatn" Íl! Michaud, Yves (dtr.)
lll Ver a este respeito a idéia de contimmm exposta em Catter, Harold. Study oj urban
gmgmphy. Arnold, Londres, 1973. L'Université de ww;les savoirs. qu'est-ce que lasociété, Odile Jacob , Paris, 2000, pp.
l81·92.
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-"" 17
ção espacial, à funcionalidade ou à qualificação das diferentes A <:idade não pode, pois, ser concebida como uma forma
pattes da cidade, e o que se procura fundamentalmente é inter- qt w ~t· produz simplesmente pela contigüidade das moradias ou
pretar o processo de organização e diferenciação do espaço no JWitl ~in1p l es adensamento de população; ela é, antes de qual-
interior da cidade de forma mais ou menos classificatória.l3 qtlct r llis;l, um tipo de associação entre as pessoas, associação
Este quadro esboçado para a geografia urbana francesa t'" '" que é uma forma física e um conteúdo.l5 Muitas vezes,
bem poderia ser aplicado ao Brasil, e, tanto em um caso como qtt.ltH io C\Ludamos a cidade parece que nos referimos a uma evi-
no outro, só muito recentemente a geografia vem se mostrando dl'tK·ia que se apresenta direta e inteiramente formada diante dos
mais sensível nestes estudos urbanos às representações institu- 11ossos oll1os. Trabalhamos com critérios de densidade ou com
cionais no espaço aos verdadeiros sistemas de valores e qua- h111i les administrativos, como se estes não fossem passíveis de
dros de referência que se exprimem por meio de imaginários st·r submelidos a uma análise lógica que, em última instância,
complexos e diferenciados que têm uma importância funda- ptldcria nos conduzir a questionar a idéia do que é uma cidade.
mental na definição da vivência urbana e de sua dimensão Por isso, cometemos freqüentemente o equívoco de consi-
espacial. O que se pode concluir desta breve descrição é que só derar o fato urbano sob o ângulo único de uma morfologia. A
muito recentemente a tentação de tomar a morfologia como l'volução urbana é concebida como a transformação ou a pro-
uma referência objetiva e a finalidade classificatória têm sido gressão simples da forma urbana, e assim nos oferecemos o
abandonadas pelos geógrafos.l4 As formas urbanas ganham conforto de trabalhar com uma categolia descontextualizada e
assim outras dimensões, já não sendo associadas de maneira trans-histórica. Ao assim fazê-lo, perdemos em contrapartida a
unívoca a uma atividade ou função. O comportamento, dinâ- capacidade de compreender o conteúdo desta morfologia ou,
mico e mutável, dos atores sociais é considerado de forma rele- em outras palavras, escapa-nos a idéia mesmo de vida urbana.
vante, e surge tod~ ga~ de problemas e de ~qualifc­ Freqüentemente, falamos de formas que parecem perma-
ções do espaço, estranhas ao modelo das tip?logias tradicio- nentes no tempo: de praças, por exemplo, espaços abertos entre
nais. Este tipo de abordagem obriga também os geógrafos a o casaria, espaços estes que podem ser encontrados desde a
uma colaboração mais estreita com profissionais de outras dis- Antigüidade até os dias atuais. Ao assim procedermos, esta-
ciplinas que também vêm estudando o fenômeno urbano: mos abdicando da análise que nos mostraria a verdadeira dia-
arquitetos, sociólogos, antroprólogos e historiadores. lética entre espaço e sociedade. Para insistir no mesmo exem-
plo, basta ver que uma mesma cidade contemporânea dispõe
de diversas praças, nem todas apresentando as mesmas dinâmi-
13 Uma exceção dentro deste quadro foi o hvm de Clava!, Paul. La logique des villes,
Litec, Paris, 1982, em que a cidade é concebida como o lugar de maximização das inte-
cas sociais ou o mesmo conteúdo. A cidade é uma forma
rações sociais. necessária a um certo gênero de associação humana, e suas
14 Uma contribuição decisiva neste sentido tem sido dada nos últimos anos pela assim
mudanças morfológicas são condições para que esta associa-
chamada "nova geografia cultural", e dois exemplos significativos destas novas orien-
tações dos trabalhos sobre o urbano são Cosgrove, D. Tlle pal/adian /andscape:
Environmentaltransformations and its cultural representatiollS and renais~·c ltaly,
Leiccster University Press, Leicester, 1992, e Duncan, J. "The city as a text: The poli te 15 Ninguém melhor do que Milton Santos expri me a importância desta relação para a
of Jandscape interpretation", in The Kandian Kingdom, Cambridge Uoiversity Press, compreensão dos processos estudados pela geografia. Ver, por exemplo, A natureza
Cambridgc, 1990. do espaço. Técnica e tempo. Razão e emoçüo, Hucitec, São Paulo, 1996.

18 )1f1J\ ... 19
ção se transforme. Assim, uma análise geográfica do espaço h tas denominações correspondem a conjuntos comportamen-
urbano deve imperativamente ser nutrida da disposição loca- l.lls :1ssociados a idéias que se desenvolveram a partir de dife-
cional dos objetos espaciais confrontados com o comporta- lt'tlll's concepções da cidade. Tudo muda, a forma física, sua
mento social que aí tem lugar. t•-,t r111 ura, seus valores, sua dinâmica, também as práticas
Se este é o caso, o caminho mais apropriado parece ser o '•t ll'Íil is, os usos, a estrutura de poder e prestígio social etc. O que
de reconhecer, para cada situação estudada na evolução urba- pnmanece? A relação dialética entre território e política, erigi-
na, os fatores que historicamente geraram estas unidades físi- da em um ideal de um determinado desenho físico e de uma
cas e sociais.l6 Polis, urbes, burgo, cidade e metrópole são dada arquitetura social. Utopia ·política, utopia urbana; estas
diferentes denominações para diferentes coisas. Parecidas i1nagens sempre se confundiram. Produto de sonhos de perfei-
entre si, por vezes somos tentados a ver nessa evolução a sim- \ ao confrontados com a realidade dialética entre organização
ples progressão dessa forma de adensamento. Erramos. Cada política e dinâmica territorial, a história nos legou diferentes
tipo de associação criou na história formas físicas e comporta- simulacros reunidos nesta entidade particular chamada cidade.
mentos distintos. Ao tecermos um mesmo fio lógico, estamos Em um dos livros de G. Balandier há um capítulo intitulado
de fato diminuindo a coerência que a dinâmica deste adensa- "o poder em algum lugar."l9 Nesse texto o autor enfatiza a
mento possuía a cada momento.l7 Isto não quer dizer que não 11ccessidade de reconhecer na dinâmica do poder mais do que a
existam analogias e rel ações evolutivas entre elas, mas estas só " des~rição, a identificação e a classificação das formas políti-
podem ser estabelecidas à medida que vislumbrarmos a intera- cas; o estudo das funções, dos 'personagens', das práticas e das
ção necessária que existe, a cada momento histórico, entre a representações; a interpretação das formas de controle social e
morfologia urbana e o conteúdo comportamentaJ. I8 dos conflitos; a relação do poder com o parentesco, com a estra-
Não é, pois, fortuito o fato de que diversos sistemas de com- tificação social, com a religião e com o direito". Infelizmente, as
portamento tenham raízes etimológicas que remetem às deno- formas simbólicas do imaginário político preconizadas como
núnações que caracterizaram, em momentos diferentes, a forma renovadoras do estudo sobre a natureza do poder, mais uma vez,
urbana: cidadania, civilidade, polidez, cortesia, urbanidade. tocam apenas tangencialmente o território, embora o autor
admita que "a relação com a terra é tão valorizada, que o poder
é indissociável de um território, de um espaço político". Acredi-
16 Há muitas rcfcrencias bibliográficas que recobrem este tema, entre as mais conheci·
dase utilizadasaqui estão, entreoutras: Bairoch, P. De Jéricho à Mexico. Villes et éco· tamos, modestamente, que a geografia tem condições de de-
nomie dans l'histoire, Gal limard. Paris, 1985; Benevolo, L. História da cidade, monstrar que as práticas e representações do poder têm uma
Perspectiva, São Paulo, 1983; Harouel, Jean-Louis. História do urbanismo, Papirus,
São Paulo, 1990; Lavedan, P. Hístoire de /'urbanisme, Paris, 1926; Mumford, Lewis. incontornável dimensão espacial e que as formas de controle
Tfze City in His10ry, Harcourt Brace & Co, Orlando, 1961. social e do direito se situam em uma posição de dependência
17 Um exemplo atual: os tempos pós-modernos inspiram, pela concepção de mosaicos,
de pequenas narrativas, a idéia frequentemente utilizada de "aglomeração", que tende direta em relação às disposições territoriais. Esta é a tarefa que
a substituir a expressão grande cidade. nos damos aqui, o desafio ao qual nos lançamos agora.
IB Mais uma vez, Milton Santos foi um dos pioneiros a demonstrar o ritmo diferente
das transformações nas formas físicas, emfunção mesmoda resistência material delas
em relação às transformações de conteúdo. Ver, por exemplo, Espaço e método, 19 Balandier, G. O contorno: Poder e modernidade, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro,
Nobel, São Paulo, 1985. 1997.

20 ;ú1f\ .a&lâ 21
PRIMEIRA PARTE

Duas matrizes territoriais:


Nomoespaço e Genoespaço
1 imtaríamos de introduzir este tema com uma discussão
Jlll 11m. parece básica para a definição do alcance e das possi-
ltllitl.tlks de um campo de pesquisas propriamente geográfico:
" 111 )'111' da reflexão espacial, suas propriedades, sua importân-
' 11 1' Mia colaboração dentro do domínio das ciências sociais.
1 llltlils vezes, temos lido, em textos de origens diversas, a de-

lj' ll ill,;iio de "condições geográficas", sendo utilizada para des-


' l l ve r os elementos morfológicos e ambientai:> de uma certa
lll l'; l. Dentro deste quadro, estas "condições" são vistas como

, ,plit.:ativas, quando não determinantes, de certos aspectos so-


l lil is. Parece, assim, que a geografia pode contribuir apenas

1 lllll a descrição do quadro físico no qual são estudados os

ll'l tômenos sociais e que a única relação possível entre esses


dumínios é aquela que estabelece uma relação simplista de
cklcrminação entre eles.2o
Paralelamente, nos propósitos gerais dos geógrafos, perce-
l1emos uma pretensão muito diversa, que é a de demonstrar, por
L"xcmplo, como o espaço constitui um elemento ativo na organi-
/ação social, ou seja, que ele é de forma simultânea agente e

!U Um dos últimos exemplos é o livro de Landes, David S. Tl!e wealth and poverty oj
nations. Why some are so rirh and some so poor, W. W. Norton & Co., New York,
1998, que aliás recebeu de Souza, Marcelo L. um comentário crítico a propósito des-
sas teses um pouco simplificadoras sobre as "condições geográficas", Rev. Turit6rio,
ll. 8, 1998,pp.l05-9.

.,... 25
paciente nessa dinâmica. Desse descompasso, podemos tirar tlt p,llt't t'lll inclinados à leitura dos textos antropológicos, e
duas hipóteses. A primeira diria respeito ao problema de '1 111'1 p• '~I veis pontes ficaram mais ou menos desertas.
comunicação ou de diálogo entre a geografia e as demais ciên- I 111 11111 outro li vro consagrado à antropologia, parte-se de
cias sociais, no qual as responsabilidades são divididas, ou til li 1 lt ""l' d~.: Gcorges Perec, para se chegar a propósitos muito
seja, os geógrafos não conseguem, em sua maior parte, desper- p11• llllll:o. dos que aqui estamos definindo como um campo de

tar o interesse dos colegas de outros domínios sobre os temas 111 ·'it l ~a geográfico:
realmente discutidos pela geografia contemporânea;2 1 a segun-
da hipótese é a de que estes outros campos disciplinares ainda M udar o lugar de uma praça é mudar na cidade ou mudar de
não conseguiram atentar para a importante contribuição de t' rdade'! E o que é uma cidade? Lugar de uma coisa, lugares de
uma verdadeira análise espacial na compreensão dos proble- nlisas em um conjunto que as contém, lugar de um conjunto,
mas sociais.22 lugares destes conjuntos; relações entre as coisas, entre lugares
Nenhuma das duas parece inteiramente satisfatória. Sem das coisas, entre os conjuntos que os contêm; lugares de pessoas,
fazer do espaço uma categoria central dos seus estudos, a rl'lações de pessoas com as coisas, com os lugares das coisas.
antropologia, por exemplo, tem, já ao longo de muitos anos, eutrc elas, entre seus lugares, com os conjuntos que os contêm,
valorizado esse ângulo como tendo uma dimensão fundamen- representações destes lugares, destes conjuntos e de suas rela-
tal na compreensão de certos processos sociais. Um dos exem- çoes etc.23
plos mais eloqüentes é o de Claude Lévi-Strauss, que, ao estu-
dar os sistemas de parentesco ou a estrutura social de algumas Ao que parece, essas complexas interações entre lugares,
sociedades concretas, mostrou que a composição espacial não ruisas, pessoas e comportamentos só podem ser analisadas se
corresponde simplesmente à imagem de uma sociedade, seu IIJ <tntivermos em sua base uma visão dialética, em suas mais
reflexo rebatido sobre o plano da extensão, mas também que v;triadas combinações, ou seja, evitando-se tomá-las como se
essa composição é produtora de sistemas sociais, uma de suas \'stivessem simplesmente dispostas em um círculo de determi-
causas. Mas parece que Lévi-Strauss não é um grande leitor da IJaÇões.24 A tarefa não é simples.
bibliografia geográfica, e, infelizmente, os geógrafos tampou- Na famosa querela que opunha os marxistas "althusse-
ri<mos" aos "historicistas", um elemento fundamental da con-
trovérsia era o estatuto de independência do espaço.2s Para os
21 Um exemplo eloqüente é o de Pierre Bourdieu, que, a despeito do seu exemplar estu- assim chamados historicistas, o espaço é uma "instância" onto-
do sobre a casa Kabilia ("La maison ou le monde renversé" in Esquisse d'une théorie
de la pratique, Seuil, Paris, [1972], 2000), em que demonstra a impo11ância estrutural
lógica, no mesmo patamar do capital e do trabalho, ou seja, a
da dimensão espacial no quadro da vida social, manifestou-se frontalmente contra a
manutenção da geografia nos currículos escolares sob a argumentação de que esta
nunca havia demonstrado seu possível estatuto científico. ~· Paul-Lévy, F. & Segaud. M. Anthropologie de /'espace, collection Alors, Centre
22 De fato, esse não é o caso de muitos cientistas sociais de grande renome, entre eles Gcorges Pompidou, Paris, 1983, p. 19.
Fernand Braudel, Michel Foucault, Henri Lefebvre, Artthony Giddens, entre outros, 1~ Notemos o paralelismo desses propósitos com aqueles defendidos por Santos,
para quem a dimensão espacial teve sempre uma importância primordial na compreen- ~ilton como definidores de um campo de pesquisas geográfico, em A 11atureza do
são elos processos sociais. Infelizmente, na valorização de suas obras tem prevalecido espaço. Técnica e tempo. razüo e emoçüo, Hucitec, São Paulo, 1996.
a apreciação de outros aspectos, e a centralidade da análise espacial nas ciências 25 Os termos desse debate são muito bem apresentados por Gottdicncr, Mark, A produ·
sociais ainda não se nutre de muitos seguidores. çcio do espaço urbano, Edusp, São Paulo, 1993.

2G ,1\Jlfl..._ .al.ul 27
forma espacial é parte do processo de reprodução social. Para 111 t\'Hcai r na armadilha de um espaço sobredeterminado so-
Lefebvre. por exemplo, há um espaço de consumo. mas há l I tltlll'llh.!, ou para simplificar, a cada modo de produção cor-
simultaneamente um consumo do espaço, ou seja, o espaço ' L pnndl'ria um espaço-tipo.

também é propriamente um objeto de consumo. As relações < 'n tamcnte, essa concepção é mais um sintoma da doença
socioespaciais estão presentes no modo de produção e o espa- • 111p111sta que existe latente na geografia, e que, de vez em quan-
ço atua, simultaneamente, como produtor e como produto, tln. dl'l lagra um novo surto de febre morfológica, impondo seus
como relação e como objeto.26 Esta posição é contrária àquela, t .p11 s111Údicos acessos de razão classificatória.28 A despeito
exemplificada por M. Castells, que concebe o espaço como tl ll.ln, u dialética pode nos ajudar a compreender conceitos que
uma unidade específica onde atua a articulação geral das ins- .t t•xprimcm por meio de jogos de oposições e confrontos, tais
tâncias (econômica, política e ideológica), ou seja, onde a 1 tlllll • os de moderno e tradicional, de novo e velho, de público e
forma espacial, neste caso o urbano, é um subsistema comprá- Jlll vauo, de relações contratuais e relações contextuais e, sobre-
ticas análogas às do sistema estrutural; ele é assim uma unida- ltltl(1, de forma e conteúdo.
de particular onde se reproduz a força de trabalho.27 É dentro dessa perspectiva que tentaremos trabalhar aqui,
A repercussão desse debate na geografia não foi tão grande, ''"piorando as possibilidades desses jogos de confronto. Ao lado
muito embora devamos admitir que a obra de Lefebvre tenha d.ts categorias já consagradas, propomos duas outras, que. acre-
sido muito bem recebida por parte de alguns geógrafos que nela di lamos, são formas propriamente geográficas de pensar o espa-
encontraram efetivamente a afirmação da independência de um \'O em relação direta com a sociedade, e, por isso, chamamo-nas
campo analítico para o espaço e, p01tanto, um estatuto episte- de matrizes. Nesse sentido, o significado de matriz é aquele dado
mológico novo para a geografia. No geral, no entanto, a dialéti- pela matemática, de um quadro de relações entre n colunas e p
ca na geografia parece ter tido um emprego quase sempre bas- linhas. Podemos, todavia, acrescentar que uma segunda signifi-
tante limitado. cação vem se somar à primeira, esta de ordem técnica, como de
Ela foi utilizada como uma simples extensão das catego- uma forma que serve para reproduzir uma certa marca sobre um
rias tradicionais do discurso marxista elevadas a parâmetros objeto submetido à sua ação. Acreditamos assim que as caracte-
essenciais: lutas de classe/segregação espacial, acumulação de rísticas contidas nessas duas matrizes constituem marcas durá-
capital/divisão territorial do trabalho, produção do espaço/ veis, profundas e distintas de conceber e de viver o espaço, e
reprodução social. A dialética foi ainda mais amplamente re- resultam em modelos igualmente distintos de refletir sobre a
clamada na idéia de um espaço geográfico, fruto da relação en- dimensão política do espaço; por conseguinte, de escrever uma
tre natureza e sociedade. No caso dessa imagem, no entanto, geografia política. Pretendemos, assim, criar as condições para
essas categorias foram comumente tomadas como dados, coi-
sas, e não como construções históricas, e fatalmente se costu- . 28 Groethuysen nota com propriedade que esse comportamento classiftcatório é caro à
época de nascimento do "gênio burguês" e sua obsessão pelos museus, coleçôes, jar-
dins botânicos e zoológicos; todo um momento de valorização da nomenclatura que
26 Lefebvre, H. Laproduction de I'espace, Anlhropos, Paris, 1975. procura reunir parte da dispersão em um pequeno mundo construído e ordenado. A
21 Para uma apreciação crítica desse debate fundada sobre um estudo de caso ver, por geografia moderna é filha desse momento, e por isso, talvez, um dos grandes projetos
exemplo, Santos, Carlos Nelson F. Movimenros soriais urbanos no Rio de Janeiro, que mobilizou grandes nomes foi o de escrever uma geografia universal, espécie de
Zahar ed., Rio de Janeiro, 1981. catálogo de toda a diversidade contida no mundo. Groethuysen, B. Philosophie de la
révolutionjrançaise, Gallimard, Paris, 1956.

28 )lf1J\ • 29
um d iálogo explícito com outros domínios das ciências sociais
que trabalharam o mesmo campo da política sob outros ângulos
preferenciais: a antropologia, a história, a sociologia e, propria-
mente, a ciência política.
I - O nomoespaço
Para dar início a essa reflexão, suponhamos, por um ins-
tante, que haja apenas esses dois modelos fundamenta is e
excludentes de relação en tre um grupo de pessoas e o território
onde vivem: o nomoespaço e o genoespaço.

N.t p1imcira forma, essa relação da sociedade com o espa-


1" p11·ssupõc a existência de indivíduos, ou seja, unidades
11111\lllllllaS, com variadas gamas e níveis de expectativas, inte-
" ,,,... , pmpostas e práticas sociais. As diferenças entre esses
111r llv ld11os são, em princípio, infinitas, e os únicos fundamen-
, , ,., ,., 1111lll1S são a consciênci a da diversidade e a crença de que
1 11 ,•,nciação dessas diferenças pode ser a estratégia mais ade-
q11 .1d.1 para se ter êxito na realização de seus interesses, tanto
ll'llll'll:s que são gerais quanto os particulares a cada um. Para
, ''" segui-lo, é necessário que se estabeleçam bases formais
l fl",sa associação, contratos que limitem, coíbam e punam cer-
1 ~ aritudes em nome do equil íbrio do conj unto. Ao mesmo
,,.,,,po, essa associação deve garantir, resguardar e proteger
dl'lerminados direitos e liberdades que constituem os maiores
lll'ncfícios supostos nessa cooperação.
A forma de traçar um limite entre o condenável e o desejá-
vl'l- entre o que deve ser objeto de coerção e a garantia dos di-
tl'itos- é a criação de um código de normas para regular, de
lnrma estável, gera l e lógica , a d inâmica social. Daqui por
diante, chamaremos s implesmente esse conj unto de regras de
lei. A palavra latina para direito é jus, o mesmo radical que de-
' ivou em justiça, aplicação objetiva de normas sociais preven-
tivas e puni tivas feitas em nome do bem comum. A diferença
entre o que é legal e o que é j usto constitui matéria de amplo
debate nas ciências j urídicas, mas o direito ou a lei, dentro de

.,. 31
30 )lflJ\.
..

um sistema social fundado na lógica, sempre tem como princi- 1 \ ~s itn,a liberdade é tanto maior quanto for a ausência de obs-
pal justificativa para sua existência e seu exercício o princípio l.tt tdos c entraves para realizarmos nossa vontade.
de justiça.
Mais recentemente, Isaiah Berlin, ao examinar as perspecti-
Como se trata de uma associação entre indivíduos, com \ us desses autores, desenvolveu uma concepção que opõe dois
variados graus de investimento e interesses, com uma variada tlpns de Liberdade. Uma liberdade negativa, definida pela sim-
capacidade de julgamento e de adesão a esse conjunto, a lei pll-s ausência de obstáculos, e uma liberdade positiva, estabele-
pretende ser a garantia dos limites da liberdade comportamen-
t ltl:i pela disponibilidade de meios para realizarmos certas
tal dentro de um espectro de atitudes possíveis e plausíveis ao
11\tll.'S, sendo esta disponibilidade a condição primeira para uma
conjunto das pessoas.
Vl'tdadeira autonomia.32 Ele reagiu assim contra os regimes
Compattilhamos da crença de que essa forma de sociedade
;HtloritáJios, que confundem muito facilmente a vontade geral
tem como elemento fundamental de regulação e de ordenamen-
1 tllll a vontade indivjdual, posição rousseauniana, e simultanea-
to a disposição espacial, ou seja, a lei se exprime pela forma
tllt'ntc contra a justificativa do absolutismo hobbesiano. Sua cri-
como as coisas estão organizadas e distlibuídas no território
ltra se estende da mesma maneira contra o excessivo laissez-
segundo uma coerência formal que é lógica e deve atender aos
foire liberal que, de Locke a Stuart Mill, na Inglaterra, e de
preceitos estabelecidos pela idéia geral, e um tanto quanto vaga,
< 'nnstant a Tocqueville, na França, pretende que possa existir
de equilíbrio entre o bem comum e as liberdades individuais.29
ullla efetiva liberdade quando sabemos que os meios disponí-
Esses limites entre os princípios gerais coercitivos que devem se
wis para o seu exercício não são de forma alguma distribuídos
justificar pela idéia de bem comum e o domínio da liberdade
'I'Ualmente.33
individual são um dos temas recorrentes entre os teó r ico~ que se
O fato fundamental para nós nessa discussão é que as dife-
debruçaram sobre a justiça social no seio dos Estados modernos.
ll'ntes compreensões do estatuto desejável para a liberdade
Para Jean-Jacques Rousseau, a lei é a expressão de uma
ciL·I"inem limites diversos de esferas de poder e de autonomia
unanimidade consensual, estabelecida e justificada pela racio-
l'tltre o Estado e os indivíduos, e que estas esferas correspon-
nalidade, que pode ser resumida na fórmula da ''vontade geral".
dem a limites físicos, espaciais e comportamentais entre um
Assim, para ele, "a obediência à lei prescrita por nós mesmos é
domínio público e um domínio privado.
Iiberdade".30 Para Hobbes, a tensão entre a dimensão humana,
natural, e a cidadã, nascida de um pacto social, só pode ser paci-
ficada pela aceitação de alguns princípios fundamentais de obe-
diência: "A obediência e a liberdade são contrários rígidos."3 l '-' Essa idéia de liberdade positiva, em grande parte, tem justificado a chamada polfti-
L" H da discrimina,·ão posiriva nos EUA, pois, na medida em que a liberdade de um
grupo foi violada por outro, este último tem o direito de receber dos responsáveis por
29 Maquiavel já propunha a concepção do território como um fator essencial na dura- essa violação um ressarcimento que recolocará o primeiw grupo novamente em posi-
bilidade da lei. o;ilo de conquistar uma auto nomia.
JO Rousseau, Jean-Jacques, Discours sur /'origine et les fondeme/1/s de l'inegalité 11 Para maiores esclarecimentos e detalhes sobre esse ponto, sugerimos a leitura do
parmi les hommes, Gallimard, Paris (1755), 1964, p. 365. livro de Berlin, Isaiah, Fou r essays onliberty, Oxford University Press, Oxford, 1969,
31 Mannet, Pierre. "Thomas Hobbes" in Dicionário das obras poUticas, Chatelet, F.;
especialmente o capftulo III, "Duas concepções da liberdade". Para um ponto de vista
Duhamel, O.; Pisier, E. (org.), Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1993, p. 497.
crítico, ver também: Miller, David, Liberty, Oxford University Press, Oxford, 1991 .

32 )lJ1f\ .al.u 33
A lei, como convenção que é, pressupõe limites físicos h1 ~ A~. arcas de fronteiras não têm transição; são linhas ela-
para seu vigor e extensão, extensão esta que é também coinci- "' 1 d l' tlarc .:a d<~s com precisão e rigor.36 Heráclito comparava
dente com os limites da efetividade do poder que as promul- "'"" lt~ · ao das muralhas urbanas ao estabelecimento das leis
gou: "O território [um dos três elementos constitutivos do 11 llllll'l:bia como processos correlatos à criação de uma
Estado moderno] torna-se o limite da validade espacial do ld 11h· I Jma polis definia-se assim, para ele, como a fronteira
direito do Estado, no sentido em que as normas jurídicas ema- .t,, , t1111ms c de suas leis.
nadas do poder soberano valem apenas dentro de determinadas
A lei é a circunvalação-fronteira produzida e feita por um homem,
fronteiras."34 Assim, a instituição da lei diferencia espaços à
dl' lllroda qual nasce então o espaço da verdadeira coisa política,
medida que exclui aqueles que não são por ela atingidos; então,
1•11de muitos se movem livremente. Por isso, Platão invoca Zeus,
cria e formaliza territórios de inclusão e de exclusão social. No
t 1 protetor das fronteiras e dos marcos, antes de pôr mãos à obra e
interior do tenitório no qual se aplica, no entanto, ela é equâni-
JIHimulgar suas leis para uma cidade recém-fundada.37
me; em outras palavras, o espaço sobre o qual se projeta a lei é
composto de equivalências, ou seja, ainda que materialmente
lpwlmente, o exemplo romano, que formalizou a idéia do
diferente, esse espaço deve ser visto, sob o ponto de vista do
dtll'tlo e da lei, é, também nesse caso, bastante eloqüente e,
direito, como o terreno abstrato de uma isonomia.
t.l'}'.lllldo Moatti,

Nós estamos acostumados a entender lei e direito no sentido dos a história romana começa sob o reino da obsessão dos confins
dez mandamentos, enquanto mandamentos e proibições, cujo (...).Delimitar, marcar seu território: tal é a dinâmica da funda-
único sentido consiste em que eles exigem obediência e que dei- ~ão da cidade- e de toda cidade. Tal é igualmente o da conquis-
xamos cair no esquecimento, com facilidade, o caráter espacial ta: a de terras e sua organização, a redistribuição da propriedade,
original da lei. Toda lei cria, antes de mais nada, um espaço onde acompanham-se de uma divisão do solo e de uma delimitação
ela vale, e esse espaço é o mundo onde podemos mover-nos em das parcelas, necessitando de instrumentos de medida iguais e
liberdade. O que está fora desse espaço está sem lei e, falando precisos e, sob o Império, é pela organização defensiva das fron-
com exatidão, sem mundo; no sentido do convívio humano, é teiras que se encontram garantidas a integridade e segurança do
um deserto.35 Império. Centuriation e limitatio, pomerium e limes, eis aí as

Uma conseqüência direta disso é que os limites desse terri- .16 São conhecidos os diversos estratagemas (transporte dentro de cestos. disfarce s etc.)
tório são precisos, tanto g lobalmente como nas diversas hierar- ul ilizados pelos romanos para transpor as muralhas da cidade e, assim liberados das
leis e das penas, podiam dar livre curso a ações que eram condenadas dentro dos limi-
quias em que se subdividem a administração e a gestão dessas lcs da ~idae, sem prejuízo dos ideais da dignidade e da virtude, sempre tão valoriza-
dos na cidade. Neste exemplo é muito clara a estrita coincidência entre os limites fis i-
cos e os limites da transgressão que marcam esta idéia de nomoespaço. Ver a esse res-
34 Bobbio, Norberto. Estado, governo, sociedade: Para uma teoria geral da polftica, peito, Veyne, Paul, "L'Empire romain" in llisiOire de la vie privée, Ariês, P. & Duby,
Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1992, p. 94. G. (dir.) , Seuil, Paris, !999, I'Oll, pp 17-214.
35 Arendt, H. O que é a política?, op. cit., p. 123. 37 Arcndt, Hannah. O que é a política?, op. cit., p. 1!4.

... 35
formas romanas de organização do terri tório. A propriedade pri- 1 ulndãos que também habitavam ou transitavam pelos domí-
vada, a cidade e o Império devem estar circunscritos e rigorosa- llllls do Império.
mente definidos.38 Segundo essa compreensão, o direito à cidade é próprio a
1 mla povo e denota o domínio de um certo grupo sobre um ter-
Vemos nessa descrição como a delimitação espacial é soli- •110rio onde ele desfruta de privilégios e direitos superiores aos
dária e está associada à organização social. Poderíamos mesmo doqucles que não têm compromisso com a reprodução das rela-
dizer que essa "obsessão" de delimitar, denominar, classificar, \ ' t)l.lS formais e da manutenção do controle social sobre esse ter-
em suma, ordenar o território, é uma condição fundadora do
1itório. Da mesma forma, o acesso de elementos estranhos à
fenômeno social. Quando comparamos o comentário acima
associação fundada nesse espaço é também objeto de regula-
com a observação de um outro historiador, especialista da
llle!ltações e coerção, tudo isso sob a perspectiva da preserva-
Idade Média - segundo o qual, "os limites feudais desespera-
\':lo do bem comum dos membros privilegiados, signatários do
ram durante muito tempo os medievistas. Eles os viam tão
ronlrato social original e emanados das leis que regem esse
mutáveis, tão complexos, tão imprecisos, que se recusavam
lerritório.
mesmo a descrevê-los e a desenhá-los" -, percebemos a rele-
Dentro dessa maneira de se relacionar com o espaço, é
vância desse processo de delimitação e classificação normati-
m:cessário constatar que cada unidade territorial interior, ou
va do território como definidora de uma dinâmica própria e
subdivisão do conjunto global, corresponde a competências,
singular que estamos chamando aqui de nomoespaço.39
Percebemos também quanto essa relação pode se apresentar de l'unções e esferas bem-delimitadas com atributos e práticas
forma diferente e resultar em outras dinâmicas quando este diferentes. O espaço é hierarquizado, assim como os poderes
processo não tem o mesmo curso, como é o caso majoritário na que sobre ele são exercidos. Sua estrutura é complexa, assim
organização da sociedade medieval. como o são as disposições formais (da lei) que o regem e con-
As pessoas que transitam por esse espaço normatizado, trolam sua dinâmica. A esse tipo de relação social com o terri-
entretanto, nem sempre são objeto da mesma lei que rege o tório demos o nome de nomoespaço, ou seja, uma extensão
conjunto associativo, ou seja, há maneiras também regulamen- física, limitada, instituída e regida pela lei. Trata-se de um
tares de distinguir os compromissos formais, as normas que espaço definido por uma associação de indivíduos, unidos
regem os direitos e os deveres, de indivíduos diferentemente pelos laços de solidariedade de interesses comuns e próprios, e
associados ao espaço. Em Roma, por exemplo, distinguia-se o pela aceitação e aplicação de certos princípios logicamente
jus civitatis, direito composto de normas referentes apenas justificados.
àqueles que detinham a cidadania, ou o direito à cidade, do jus Idealmente, esse espaço define um limite de adesão volun-
gentium ou jus peregrini, concernente aos homens livres não- tária. Nesse sentido, trata-se hipoteticamente de um espaço
inclusivo, pois para todos aqueles que se propuserem a obede-
JB Moatti, Claude. Archives et panage de la terre dans /e monde romain, École cer à ordem é, em princípio, garantido o acesso em igualdade
Françaisc de Rome, Paris, 1993, p. 3. de situação com os outros. Na prática, essa adesão se faz
39 Guenée, Bernard. << Des limites féodales aux frontieres polítiques ''• in Nora, Pierre
(di r.) Les /ieu.x de mémoire, Gallimard, Paris, 1997, pp. 1.103-46. segundo os interesses daqueles que controlam a associação e

3G .nrú\ ~ 37
pode variar em função dos diferentes contextos dos momentos. •'· l11 wm pela estabilidade dos princípios legais que as origi11a-
Mais uma vez, embora o direito de acesso seja livre, ele deve , 11 11 ll ú, por assim dizer, princípios fundamentais que dão
sempre estar submetido à idéia do bem comum das pessoas que I• ''"'"e contorno legais a todos os outros instrumentos norma-
compõem essa associação ou a controlam. 1 \'t.~ Llllllplementares e funcionam como base de legitimidade
Um bom exemplo disso nos é dado pelos procedimentos 1 1 ~.\ oleg isladora ulterior.42 Os outros instrumentos legais que
que levavam à concessão da cidadania, que datam dos primór- ,,,..,,.,,uram seu funcionamento, no entanto, são mutáveis e ten-
dios das cidades gregas na Antigüidade, especialmente em dn ll a ser revistos segundo uma lógica de aperfeiçoamento e
Atenas. Antes de conceder direitos políticos a alguém que não ptn)•rcss ividade. É importante perceber que estes grandes prin-
tivesse nascido de outros cidadãos da polis, esse indivíduo • lptos que originam as associações estão sempre relacionados
deveria passar por di versos processos que demonstrariam sua ,t tutidades territoriais formais, também mais ou menos está-
capacidade e empenho em renunciar aos costumes de sua área ' •. ,.. ( 'ontudo, a gestão interna do território, suas subdivisões,
de origem e simultaneamente demonstrar, conhecer, respeitar e .n.ts competências e sua forma de hierarquia e controle são,
defender as leis que regiam a ordem daquela polis.40 Nesse pl' tltlanentemenle, objeto de debates e mudanças.
caso, em par ticular, a naturalização era um processo muito I\ transgressão à lei é, nesse sentido, o único crime e nos
difícil e raro, embora fosse sempre citada como uma possibili- '.t'liS mais graves ela deve ser penalizada com a completa exclu-
dade.4I Assim, fazer parte dessa associação, desse espaço, sig- , tu, social e territorial. Mais uma vez, o exemplo grego é enfáti-
nifica aceitar suas regras, endossar os contratos que unem os ' •1; atinai, quase tão grave quanto a condenação à morte era o
indivíduos e, conseqüentemente, preservar os limites da lei, ~ ~ lr ac i s mo, que significava, simultaneamente, uma "morte sim-
limites territoriais e sociais. Significa também renunciar a to- ln•lica" acrescida da humilhante expulsão, que implicava perder
das as outras formas de regulação do comportamento que iudos os direitos relativos àquele território (muito embora exls-
entrem em conflito com o código de conduta estabelecido t 1sscm penas de ostracismo com duração de apenas alguns anos,
nesses domínios. Até hoje, na maioria das sociedades contem- r olllumente dez anos). Em nossas sociedades contemporâneas,
porâneas, as cerimônias de outorga da cidadania seguem o rito l•cqüentemente, as penalidades impostas pelo descumprimento
que prevê a assinatura de um contrato de adesão e um juramen- das leis podem conduzir ao encarceramento, que corresponde
to, pronunciado solenemente, diante de uma autoridade jurídi- igualmente a uma exclusão teJTitorial.43
ca, juramento este que implica fidelidade e aceitação das con- Este nomoespaço é assim construído de maneira a expri-
dições normativas do país ao qual está sendo demandado o mir relações formais de pertencimento, mas sobretudo de orde-
direito à cidadania. namento. Assim, cada instituição social dispõe de sua área de
Além de ser aberta a novas adesões, essas sociedades se

l Z Estamos pensando aqui nos princípios constitucionais da maioria das sociedades


40 Ver, por exemplo, Baslez, Marie F. L'étrallger dans la Grêce Antique, Les Bclles modernas.
Lettres. Paris, 1984. 11 Na França, para os estrangeiros, há a dupla pena, ou seja, o encarceramento em uma
41 Ha via duas definições de estrangeiros para os gregos, uma política, os não-cidadãos, prisão no território francês, seguido da expulsão do país após o cumprimento da pena-
e outra cultural, os bárbaros. Baslez, Marie F. op. cit. lidade.

38 fi1J\
controle e vigilância, as práticas sociais são regulamentadas no I['' <il' isonomia de Clístenes, pressupõe um novo arranjo espa-
espaço, e os signos de delimitação territorial são inequívocos. 1li , lll'spaço da polis é então pensado e figurado como um cír-
As interdições e a coerção são sempre matéria de comunicação ' 11111 Ao centro, a ágora, antigo espaço aberto destinado ao
e sinalização territorial, ou, em outras palavras, o espaço é 1111 1~ a do, é desde então delimitado e ganha o estatuto de espa-
internamente qualificado por uma regulamentação formal e \ll llllhl ico, lugar de encontro dos isoi (iguais).44
uma visibilidade explícita de suas normas e fronteiras. Os rela-
cionamentos tendem a ser impessoais e regulares dentro dos llssc espaço público só se torna político quando assegurado
limites das diferentes esferas socioterritoriais. Dessa maneira, numa cidade, quer dizer, quando ligado a um lugar palpável que
há marcos territoriais que delimitam esferas de práticas regula- possa sobreviver tanto aos feitos memoráveis quanto aos nomes
res, e eles são, simultaneamente, a condição para que essas prá- dos memoráveis autores, e possa ser transmitido à posteridade na
ticas existam e o reflexo delas. seqüência das gerações. Essa cidade a oferecer aos homens mor-
De fato, esse tipo de espaço é a base que funda uma socie- tais e a seus feitos e palavras passageiros um lugar duradouro
dade de contrato. O nomoespaço é assim uma condição neces- constitui a polis - que é política e, desse modo, diferente de
sária para que se configure a idéia de um pacto social do tipo outros povoamentos, porque originalmente foi construída só em
contratual. Diferentes pactos dão origem a diferentes composi- torno do espaço público, em torno da praça do mercado, onde os
ções espaciais. Um breve percurso histórico pode nos ajudar a livres e iguais poderiam encontrar-se a qualquer hora.4s
compreender essas distinções e algumas características essen-
ciais das sociedades fundadas sobre a idéia de um espaço nor- A antiga distinção entre cidade baixa e acrópole, fortemen-
mativo, regulador e formalizador de práticas. le hierarquizada, de acesso discricionário, dissolver-se em uma
abstração geométrica. A localização do bouleutério (assem-
bléia), recém-criado, entre a colina e a ágora, ajuda a dissolver
Os espaços contratuais: Exemplos e dinâmicas a antiga hierarquia.46 A distinção fundamental do espaço já não
é entre o sagrado e o profano; agora se trata das distinções
A cidade grega, o fato político que funda a sociedade oci- entre o público e o privado (oikos).
dental, estabelece um novo vínculo social, não mais a função A dessacralização·do espaço foi uma das primeiras conse-
de uma comunhão religiosa, familiar ou da submissão a um qüências e pode ser avaliada, por exemplo, no imediato impe-
mesmo .monarca, e sim da integração de indivíduos, como dimento de enterrar os mortos dentro dos limites definidos pela
sujeitos de direito, de uma nova associação, fundada na co- muralha das cidades. Assim, a ancestralidade deixa de fazer
participação de uma soberania política. Assim, a polis grega
cria um novo domínio da vida coletiva e redefine seus quadros 44 Grande parte dos elementos dessa descrição se encontram em Vernant,

físicos e comportamentais. Jean-Pierre. Mythe et pensée chez les grecs, Maspero, Paris, 1980, especial-
mente no capítulo 3, "L'organisation de !'espace".
A simetria igualdade e reciprocidade das relações entre 45 Arendt, H., op. cit., p. 54.
esses novos personagens sociais, os cidadãos, definidos pelas 46 A esse respeito, consultar Vernant, Jean-Pierre, op cit., pp. 207-22.

40 ft1J\
parte da ordem primária da polis. Em parte dessacralizado, o tltt l11s1ilu içõcs que a definem, e sua imagem passa a se confun-
espaço ganha um novo estatuto: espaço público. O culto a 1ll1 ttll\1 n própria morfologia urbana que a abriga.
Réstia, deusa dos lares, tradicionalmente mantido no interior (I :--l'c ul o de Péricles, comumente visto como um rnomen-
de cada casa, passa a ser um culto comum e público, com o 111 dt 11 pogcu das cidades gregas e, sobretudo, de Atenas foi de
templo no centro da aglomeração. 11111 11111 primeiro marco de mudanças ocorridas dentro dessa
Isso não quer dizer que os grupos familiares perderam toda l1111 11ra inicial da polis. Com essas mudanças surgem novos
a sua antiga importância. Na verdade, os oikoi continuaram a ,''"IIHlllt.:ntes na vida social grega, que vão assim ensejar novas
ser a base da organização social, sua associação na fundação da 1 I" ,,.s tio espaço, novas hierarquias, novos segmentos sociais,
polis definia uma organização social, e fundada na idéia de um
lllil is uma vez, isso demanda necessariamente um novo
ethnos (povo). Esta é a explicação comumente apontada para
lll •lllj ll espacial.
se compreender a razão pela qual os limites das democracias
<) modelo hipodêmico, sua divisão em três grandes classes
gregas nunca tenham ido além da unidade básica da cidade,
olt lwhit.antes, que correspondem a três funções (artesãos, agri-
pois nesta se configurava o quadro estreito da vida das ethne.
l llll mes e guerreiros) e a três tipos de estatuto do espaço
Assim, a reforma de 507 a.C., que estabeleceu a isonomia e
1'-111'' ado, público e privado), dispostos em uma grade ortogonal,
as trinta circunscrições de Atenas, mudou completamente os cri-
• u lonna dominante das novas cidades e corresponde a uma
térios legais de pertencimento, que passaram a ser unicamente a
1111Va imagem de proporcionalidade geométrica que substitui a
cidadania e o lugar de domicílio. Essa nova organização substi-
IJ'I Iiddadc aritmética do círculo. Este modelo é aplicado larga-
tuiu o modelo exclusivo de funcionamento das cidades, que era
dado pelas grandes e tradicionais familias, que monopolizavam lllt'llte nas colônias da Sicília e do Mar Negro ou na reconstrução
d 1 ~. cidades destruídas pela guerra, como a de Mileto, ou ainda
completamente os direitos civis e fundiários obtidos pelo con-
trole sobre as parcelas de terra, os kleros, e que mantinham sua 1u •s 11ovos empreendimentos, como no porto do Pireu.

exclusividade e prestígio pela ocupação dos cargos e obrigações A difícil comunhão entre estes dois tipos de organização
políticos e militares. O que se denomina até a reforma de ,... pac ial da polis serviu, aliás, de tema para uma comédia de
Clístenes como polis era, assim, o agrupamento de habitações e /\ 1istôfanes, As vespas, que, por intermédio do personagem de
templos, e as áreas de atividade agropastoril que formavam a 11111 arquiteto, procurava demonstrar a difícil conciliação entre

chora e pertenciam aos aristocratas. A transformação do genos II II W sociedade que pretendia a isonomia, a forma circular, e
em demos, ou seja, a passagem de uma comunidade étnica a ll tl, mesmo tempo, a hierarquia, traduzida na forma ortogonal.

uma sociedade civil, aliás, foi um fenômeno limitado às cidades Ml'lon, o personagem arquiteto, constrói assim uma imagem
do Sul da península balcânica, e no Noroeste a tônica foi a per- ,·spac ial absurda, propondo a quadratura do círculo, que
manência de uma aristocracia apoiada em grupos de afmidade tklllonstra de certa forma o paradoxo mesmo de imaginar uma
familiar continuar no poder das cidades. Todavia, a partir de hierarquia entre iguais: "Eu tomarei minhas dimensões com
Atenas e nesse momento, a polis passa a ser também a denomi- llllla régua e as aplico de maneira a inscrever o círculo em um
nação dessa sociedade civil isonômica, sede do poder cidadão, quadrado. No centro haverá uma praça pública, aonde chega-

42
...

rão as ruas retas; convergindo para o centro, como um astro lttl'111.1da primordialmente sob um ideal contratual e formalista.
redondo, partirão em todas as direções raios retos."47 11111.1 dlli.:rcnça em relação à cidade grega, no entanto, deve ser
Outro fato inédito e de grande repercussão posterior trazi- 11111 tllalamcnte percebida no que diz respeito ao grau de inclu-
do pela nova composição socioespacial dapolis grega é a idéia I! '' dv Roma em uma mesma unidade jurídico-política dos
de um Direito Urbano, que vai se aplicar e que irá reger o tll\t'l:o.os espaços e pessoas sob seus domínios em comparação
desenvolvimento desses espaços. Desde o momento em que a '1 1111 a manutenção de fronteiras socioespaciais, um tanto quan-
cidade começa a ser vista como o lugar de uma sociedade civil, h 111g1das, da polis grega. Na verdade, a cidadania romana vai,
isto é de uma comunidade política de cidadãos, o arranjo espa- 1 11111 o tempo, reafirmando cada vez mais uma vocação univer-
cial passa também a ser matéria de exame e intervenção do 'llillsla ..'\0
público. Assim, são votadas leis de regulamentação e constru- I >csde muito cedo, Roma começa a conceder a cidadania
ção, estabelecidas segundo critérios gerais e justificados por fp, uristocracias das cidades aliadas. Para que tal processo fosse
razões de saúde, higiene, segurança, mas também de ordem ll'lilllado, exigiam-se a adoção do Direito Romano e a renún-
estética. Na cidade de Pérgamo, por exemplo, as novas cons- ' 1.1 a loda outra forma de costume que pudesse ferir essa legis-
truções eram objeto de regras muito precisas e rigorosas, e o l.~ · ao, podendo, no entanto, cada cidade permanecer com suas
não-cumprimento delas era passível de multas, demolições e lllt'rarquias internas preservadas, sua língua, costumes e reli-
de condenação dos seus construtores.48 ••H>l'S. Na maior parte dos casos, esse processo incluía a orga-
O Direito Urbano vai conhecer um desenvolvimento muito 111/ação física de uma nova cidade, quando não a reforma de
mais amplo em Roma, onde quase todos os elementos de um LILHa antiga e a adoção de um arranjo espacial semelhante ao

código de obras, recuo, altura, proporção, tamanho etc. esta- pmlrão romano.s1 De fato, a relação formal entre o estatuto
vam previstos e eram supervisionados por funcionários espe- po lítico da população e o estatuto territorial sempre foi uma
cialmente delegados para essa missão. Entretanto, o fato mais das marcas fundamentais da administração romana, e isso per-
importante que marcará fundamentalmente esta forma de pen- sistiu até o decreto de Caracala no ano de 212 . Assim, podem-
sar o espaço são as inéditas noções de legalidade e legitimida- ~l' distinguir três classes de territórios, a colônia, composta, a
de, aplicadas também na produção do espaço construído. fJriori, por cidadãos de procedência romana ou latina, em geral
Aliás, segundo Ferry, há uma solidariedade básica entre os
princípios de legalidade, inscritos na gênese do estado de direi-
' 11 Ern princípio, a aquisição da cidadania romana passava pela transformação das
to, e o de civilidade, que explica a gênese da sociedade civil.49 • omunidades aliadas em municípios. Entre os séculos 1e ill a.C., o número de cidadãos
A República romana e posteriormente o Império foram, H'l'Onhecidos variou bastante, e , repetidas vezes, os direitos c ivis de alguns grupos
como repetidamente nos afirmam, os herdeiros e prolongadores ln1am suspensos, mas manteve-se uma ordem de grandeza de mais ou menos 300 mil
mladãos. A chamada "'guerra social" impôs o reconhecimento de todos os ''italianos"
do espólio grego. Trata-se também de uma sociedade funda- ,·omo estratégia de paz, e esse número passou então em 70 a.C. a 910 mil pessoas. A
partir de então, esse efetivo não cessou de aumentar com a incorporação progressiva de
novos cidadãos das províndas, até o ato do imperador Caracala, em 212, quando final-
47 Citado por Blanquart, Paul. Une ilistoire de la vil/e: Pour repenser la societé, La li lente todos os habitantes livres do Império se transformaram em cidadãos.
Découverte, Paris, 1977, p. 52. ~ 1 llomo. Leon. Rome impériale et l'urbanisme dans l 'amiquité, Albin Michel, Paris,
48 Martin, R L' Urbanisme dans la Grêo: Antique, Picard, Paris, 1956. 1971, e David, Jean·Michel. La République romaine: De la deuxieme guerre punique
49 Ferry, Jean-Marc. "CiviliLé, légaciLé, publicité", Urbcmisme, n. 318, pp. 58-61. !lia baraille d 'actium, 218-31, Seuil, Paris, 2000, p. 172.

44 )lf1f\ .aa.... 45
veteranos do exército; o município, onde uma elite latina ou h1 1 tltil' tl tllil o te mpo. A tendência destes últimos, sobretudo
local podia pretender obter a cidadania, mas a maior parte da 1111 li ll i'ltllttd io do direito à herança, foi de se apossar de gran-
população ficava excluída desta condição, ainda que todos " '"n·las nessas áreas e assim constituírem grandes domí-
estivessem submetidos ao direito civil romano (sobretudo às l 1 < 'ttitHl a organização social e militar estava fortemente
regras do conu.bium e do commercium); e as cidades peregri- tl1 • ltil,iuo s istema de transmissão e exploração da terra, a dinâ-
nas, submetidas ao poder romano, mas completamente excluí- lttl• 1 rll' oc upação do ager publicus foi um elemento decisivo
das dos direitos civis, e que fundonavam segundo as normas tltt \ ',JI~ ·ü o c expansão da condição da cidadania.53 A partir do
do direito consuetudinário local. Em muitos casos, na Gália, na , ttltt I a.C. , essas diferenças tenderam a diminuir, sem, no
Espanha ou na Anatólia, a autoridade dos grupos familiares e l itl lllll tl, desaparecer. No geral, a aplicação de um mesmo direi-
clânicos se dissolveu com o tempo, em face da autoridade dos Ht lllll .l lodos passou a predominar à medida que se alargavam
pretores romanos, uma vez que, contrariamente ao caso das 1 1111111d ras do domínio romano e o direito tradicional passou a
cidades gregas, o poder e gestão não emanavam diretamente de Ih 111 t :tda vez mais confinado à esfera doméstica.
um corpo civil, mas sim das magistraturas . Dessa forma, tal Acrescente-se a isso o fato de que o regime de representação
administração centralizada e sempre submetida às instituições 1 \ 111os pro movidos pelos comícios era organizado por inter-
romanas foi freqüentemente acompanhada da criação de uma ltt•1il lu das tribos, ou seja, não havia representação individual e o
aristocacia-cidadã e da adoção crescente do Direito Romano, o ' Ji,•ttl d ismo e a dependência entre membros de cada grupo eram
que terminou por transformar o estatuto de uma grande parte 111t 1111> grandes. 54 A idéia de proporcionalidade geométrica, figu-
destas cidades peregrinas em municípios.52 ' ul1t no modelo do tipo hipodêmico, parece ter sido conveniente
Há também uma outra diferença não-negligenciável em 1t'\'>C tipo de organização, uma vez que se difundiu como um
relação à Grécia Clássica, referente ao papel permanentemente /, 11111otiv do urbanismo romano e ficou conhecida como ocas-
ativo de uma aristocracia romana e, portanto, de uma distinção tnlr ll. Ele era composto em sua base de dois eixos, o cardo, de
social de base entre patrícios e plebeus. Ainda que desde a pro- tlll\'lltação norte-sul, e o decumanus, de orientação leste-oeste, e
mulgação da Lei das Doze Tábuas, no século V a.C., ou seja, 1 111 sua interseção situavam-se os fori, as principais basílicas
antes da grande expansão romana, o direito do populus tenha,
sobretudo no que diz respeito à propriedade fundiária, começa-
'"'s 1
I relações são complexas e estreitas. e de monstram em sua transformação a pas-
do a se afirmar em igualdade ao das gentes, as diferenças ainda ·l)•.n n de uma comun idade fami liar para uma comunidade cívica: "A centúria é o ele-
permaneceram bastante ativas. A propriedade individual agora t llo' iil o de base da cúria e da composição da legião; ela é também uma un idade agrária.
'u111prcendendo cem vezes uma unidade fundamental, o heredium. Por sua vez, esm é
poderia ser concedida a todos, mas os direitos sobre a explora- '' 11111dade mínima da explotação agrícola que o pater familias transmiti a a seu filho."
ção do ager publicus, as terras coletivas, permaneceram como l'o ll'll mais de talhe s. ver Trochet. Jean-René. Géographie historique, Natllan-
t lnivcrsité, Paris, 1998, pp. 55-7.
um elemento de conflito persistente entre plebeus e patrícios ' 1 Segundo muitos historiadores, à dualidade e ntre as duas principais esferas da vida
· <~t:ia l ro mana, a res privada e ares publica, somava-se uma segunda dua lidade entre
11 111 comportame nto formal, de relações oficiais, e as relações clientelistas ou de fac-
52 A província romana continha uma idéi a mais ampla de soma dos povos sob domi- ~·ks políticas, que eram o eco da antiga organização tribal ou clânica, que persistiu,
nação direta de Roma e podia, em seu interior, abrigar diferentes estatutos territoriais, • 111110 um legado, na organização social romana. Ver, por exemplo, Mann, M. Th e
cidades, colônias. municípios, embora contasse sempre com uma capital provincial, wurces ofpower, Cambridge University Press, Cambridge, 1986, vol. I, "A history of
principal urbe daquela área. power from tlle begínning to A. D. 1760". p. 251.

46 A
(edifícios públicos) e os principais templos. A partir desse cen- 1 td.tdc imperial, assim como o novo regime político, foram
tro e dos dois eixos, definem-se quatro setores ou bairros, com 1 n111plctados por Augusto, que, do ponto de vista urbanístico,
uma sucessão de arruamentos, desenhando um padrão em tabu- li •ir iou o confisco gradual da colina do Palatino pelos impera-
leiro de xadrez, onde cada unidade ou insula é individualizada dtucs c no plano geral da cidade incluiu novos territórios da
pelo desenho geométrico das vias. Ainda que não possamos , ontinentia (subúrbios).56
falar de uma efetiva segregação espacial de atividades ou de Estas mudanças deram origem à criação de Roma, cidade
classes, pode-se, todavia, perceber uma certa orientação dos d.ts XlV regiões, em substituição às quatro anteriormente esta-
usos e do estatuto social de alguns trechos, como nos mostram, lil- IL-cidas, ou seja, uma nova delimitação do espaço e de seus
por exemplo, as ruínas de Pompéia. 11t1Íbutos foi necessária para a construção de um novo pacto
Os ritos que marcavam a fundação das urbes romanas ~,· ial na passagem da Roma republicana para a Roma imperi-
eram derivados dos etruscos e seguiam uma cerimônia em que i tl. ~' Uma das mudanças mais significativas que marcam este
um perímetro era traçado a partir de uma charrua amarrada a 111omcnto foi a inclusão do Campo de Marte à cidade. Nessa
um touro, que definia o pomerium, limite e terreno sagrado da l ll l'a eram originalmente organizados os comícios em armas e
cidade. De fato, ainda que essa tradição tenha sido mantida l1r avam lá depositadas as armas e as insígnias militares, impe-
durante todo o período de domínio dos romanos, os desenhos d 1das de penetrar o pomerium durante quase toda a fase republi-
urbanos em xadrez eram na maior parte das vezes preestabele- 1 .111a. Uma vez que o imperium havia sido completamente apro-
cidos segundo as direções cardeais e freqüentemente se adap- Jll iado por um único personagem, em grande parte pela força
tavam à topografia local. A cidade de Roma não foi propria- d•ts armas, a interdição perdeu seu sentido e essa enorme área
mente a inspiradora desse desenho, uma vez que sua origem uu lado do rio Tibre foi definitivamente incorporada à cidade,
mítica estava associada aos Limites do pomerium, que com- ou seja, a força militar ganha direito à cidade.ss
preendia as sete colinas, e sua estrutura interna pouco repousa-
va sobre os ângulos retos.
Isso não impediu que Si las, o grande tirano reformador da 111 dcnada na extremidade da praça e o associar sobre o flanco setentrional ao pórtico
República, e César, o imperador, tentassem redefinir o desenho 1k \C U própriojorum, de tal maneira que unificava assim, em um mesmo quadro arqui-
h !l)nico, a legitimidade cívica que ele encarnava por suas magistraturas à ascendência
e os limites da cidade. De fato, nesses dois períodos tratava de d1 vina pretendida por ele", David, Jean-Michel, op. cit., p. 239.
simbolicamente refundar a cidade, assim como o pacto social "' O IC1mo suburbia ou suburbinitas era utilizado para designar territórios muito mais
que a definia. As grandes reformas urbanas empreendidas por ul.l\lados de Roma, enquanto a expressão continemia correspondia à idéia propria-
llll"lllc de arredores.
esses dois personagens são, ao lado da mudança dos limites da '' Scnnet traça um paralelo entre o declínio da vida pública em Roma, a partir de
urbe, outro elemento eloqüente na demonstração de que a cida- 1\llt'IISto, quando a cultura pública passa a ser vista como uma obrigação formal, com
de deveria dar nascimento, de maneira simultânea, a uma nova 11111 Jcclínio que nos é conremporâneo, em que a sobrevalorização da intimidade esva-
' "" ia a dimensão pública e tomaria o espaço comum vazio de sentido, fenômeno visí-
composição física e social.SS A nova organização espacial da 1'<' 1, ~cg undo ele, nas amais grandes cidades. Sennet, R. O declínio do homem piÍblico,
<·,,,das Letras, São Paulo, 1989, p. l5.
'~ É muito interessante perceber que a atribuição de poderes institucionais em Roma
ss "Ele [César) podia assim construir sobre o antigoforum uma nova basflica que tinha n t<IVa associada sempre a um certo território. Assim, o tribuno dispunha dos seus
seu nome no lugar da basílica Sempronia. Ele podia sobretudo se aproveitar da desrrui- p1tl~rcs até o raio de I milha (1.479m) do pomeriwn; a partir desse limite ele se trans-
ção da cúria e do comitium de 52 para remodelar o conjunto, o inscrever de maneira
lmlllava em um simples cidadão. Da mesma forma, o imperium era um poder que se

48 ~
Subseqüentemente à fragmentação e ao desmoronamento )•rande transformação do espaço físico.61 O en fraquccimclllo
do Império Romano, a formação de novas sociedades contra- da solidariedade e lealdade dos clãs liberou novas forças fun-
tuais se restringiu, durante a Idade Média européia, a pequenas dadas na racionalidade que gradativamente substituíram esses
iniciativas de compra de direitos em cidades animadas pela sistemas de "afinidades" e terminaram por ganhar pleno direi-
retomada dos circuitos comerciais e pela ascensão dos burgue- lo à cidade.62
ses. É nesse período que se localiza a origem do ditado alemão,
citado por M . Weber, e que se encontrava inscrito nas portas "A Renascença, nessa visão, é nada menos do que um paradig-
das cidades germânicas, segundo o qual "o ar da cidade eman- ma da modernização, sua história urbana um exemplo da teoria
cipa". De fato, ainda que pequenas, essas iniciativas demons- da modernização contemporânea . De acordo com esta visão que
travam a possibilidade de uma nova forma de organização enfatizao triunfo do racional e do secular, o espaço é dotado de
social, liberada dos jugos senhoriais, e significaram, do ponto um valor funcional ou instrumenlal. Vizinhanças e outras subdi-
visões não eram mais fontes de poder ou de influência e se tor-
de vista espacial, a conquista do espaço interno de um segmen-
naram sujeitas ao controle superior do poder de uma nova ordem
to social e de atividades que haviam sido rechaçadas anterior-
social, econômica e política que Iransformou residentes em
mente para fora de seus limites.s9
cidadãos. "63

A liberdade transforma-se em condição jurídica da burguesia, Nesse momento vemos novamente emergirem as discus-
em tal grau, que não é somente um privilégio pessoal, mas tam- sões que pretendem distinguir os domínios e atributos do sobe-
bém um privilégio territorial inerente ao solo urbano, da mesma rano, o "príncipe", e de seus sujeitos, ainda que esses não esti-
forma que a servidão é inerente ao solo senhorial, bastando para vessem ainda sido completamente transformados em sujeitos
isso ter residido um ano e um dia na cidade.60 de direito. A reinvenção da perspectiva, e da própria idéia de
"ponto príncipe", demonstra-nos a nova concepção do espaço
O ápice desse processo foi a formação das cidades-estado
renascentistas e com elas toda uma nova preocupação com a (oi Para Carter. o exemplo mais significativo dessa nova maneira de conceber o espaço
se encontra na proposição do desenho da cidade de Sforzinda (assim chamada, pois o
refundação da idéia de centralização do poder, paralela a uma projeto foi uma encomenda do duque de Milão. Francisco Sforza), obra de Antonio
Pietro Avertino, também conhecido como Filarete, onde se entrecruzam preocupações
da linguagem arquitetônica, com preocupações funcionais acrescidas de uma base filo-
concedia por decretos, os quais estabeleciam simultaneamente as províncias sobre as sófica em termos políticos que simbolizam o controle central e autocrático de quem a
quais ele tinha validade. Na passagem da República ao Império, este poder, o impe· construiria . Curter. Harold. An introduccion to urban historical geography, Edward
riwn, foi apropriado por uma personagem e associado a ela. o imperador, e estendido Amold, Londres, 1983, pp. Ll 5·6.
a todos os dorrúnios sob controle de Roma. Aymard, A. & Auboyer, J. "Roma e seu 62 Essa expressão, d ireito à cidade, deve ser antes de mais nada compreendida no senti-

Império" in Crouzet, Maurice (dir.), História Geral das Civilizações, Benrand Brasi l, do dado por Lefebvre, da c idade como lugar do direito, o acesso a um espaço O[Ide o
direito protege a existência do indivíduo contra os poderosos, o acesso à cidade signi-
Rio de Janeiro, 1993, pp. 152·63.
ficando assim a passagem de um sujeito de um senhor a um sujeito de direito. Henri
59 O lugar dessas pessoas e dessas atividades era conhecido entre os séculos X e XII
Lefebvre. Le droir à la ville, Editions Anthropos, Paris, 1968.
como burgusforis, o que literalmente quer dizer "fora da cidade". 6) Muir. E. &Weissman, F. E. "Social and simbolic places in Renassence" in Agnew,
60 Pirenne, Henri. História eco11ômica e social da Idade Média. Mestre Jou Ed., São J & Duncan, J. The power ofplace - Bringing rogecher geogmphical and sociologi-
Paulo, 1978, p. 57 (o grifo é nosso). ca/ imaginatior1s, Cambridge University Press, Cambridge, l989. p. 81.
dialeticamente associada às novas dimensões da sociedade. O cooperação mútua, ou seja, de uma nova forma de comunidade
jogo de cubos florentino constrói cenários urbanos e uma nova política, em que vigora o princípio da universalização da li ber-
profundidade do campo visual, que faz convergir o olhar para dade política a partir de um indivíduo autônomo. Essa nova
um ponto imaginário situado fora do seu alcance. Por meio ordem social deve ser equânime e fortemente unida por laços de
desse jogo visual , simultaneamente, misturam-se realidade e solidariedade. O poder do soberano deve ser limitado e expri-
idealidade do olhar e do espaço, em um permanente vaivém mirá a vontade coletiva:
entre construção e utopia.64 A obra de Vitrúvio, escrita na An-
tigüidade romana, e suas preocupações com a disposição das Esse contrato é uma simples idéia da razão, mas possui entretan-
coisas sobre o espaço (o lugar dos edifícios públicos, os usos to sua realidade indubitável, que consiste em obrigar toda pessoa
dos espaços públicos, a forma e localização das praças e tem- que legisla a produzir suas leis, de tal maneira que elas pudessem
plos etc.) foram reapropriadas e se transformaram em inspira- ter nascido da vontade unida de todo um povo e a considerar
ção direta para numerosos tratados de urbanismo e arquitetura todo sujeito, na medida em que ele quer ser cidadão, como tendo
renascentistas (Alberti, Palladio, Catâneo, entre outros), difun- dado seu sufrágio a uma tal vontade.66
didos por toda a Europa, que reconstruía nesse momento seu
espaço e dava origem a uma nova organização socioespacial. Dessa forma, há uma nítida separação entre o público e o
Simetria, proporção e geometria passam a ser os novos va- privado, uma vez que aos indivíduos cabe, no exercício de sua
lores que presidem a organização do espaço. O monumentalismo liberdade, a escolha dos termos do contrato, a cooperação ge-
é o ingrediente obrigatório nas cidades onde os soberanos pro- neralizada entre cidadãos e a solidariedade, fruto dessa cons-
c uram estabelecer um domínio absoluto. Nascem também trução coletiva; à potência pública cabem a garantia da igual-
nesse momento as raízes do Estado modemo.65 Com elas, surge dade de condições, a defesa dessa comunidade politica e de seu
toda uma linha de raciocínio, as teorias do contrato social, que território, a coerção social em nome da justiça e a organização
pretendem explicar os princípios razoáveis de obediência que e desenvolvimento das instituições que promovem os valores
regem governantes e governados. Estas teorias são baseadas na fundadores do contrato.67 Sem dúvida, o Estado moderno cor-
idéia de que, a partir de um raciocino lógico, há um geral con- responde à territorialização desta nova sociedade, ou melhor,
sentimento em se submeter ao poder do soberano que estabele- para não deixar hesitações quanto ao papel ativo do espaço, é
ce leis e regras de comportamento, mas estabelece também os por meio dessa nova organização espacial que uma nova or-
limites das esferas de poder, dos indivíduos e das instituições. dem social se constrói, a sociedade contratual moderna.68
Um dos valores fundamentais do contrato social é essa idéia de
66 Kant, Immanuel, Oeuvres philosophiques, Gallimard, Paris, 1985, p. 279.
64Note-se. nesse sentido. que nesse momento houve uma coincidência entre os 67 De fato, o modelo hobbesiano não se enquadra exatamente nesse caso, uma vez que
home ns que fabricavam as máquinas do teatro e as máquinas de g uerra, entre os que em sua proposta há uma alienação do poder por parte dos sujeitos em benefício da afir-
construíam cenários teatrais e aqueles que faziam planos urbanos, como Giro lano mação da soberania do monarca.
ó8 Ao utilizarmos a expressão "contratualista" estamos englobando todos os movimen-
Ardu ini 65 Diversos autores aproximam ,aliás, o modelo de domi nação que constituiu
tos que tendem a estabelecer as bases de um poder a partir de regras racionais c lógi -
o Est:ado absoluto modemo ao processo socioespacial vivido por algumas cidades mais
cas. Assim, esta expressão recobre tanto os pensadores associados ao modelo conheci -
ou menos um século antes. Ver, por exemplo, a este respeito: Garrison, J. Royaume,
do como teoria do contrato social quanto aqueles identificados com o utilitarismo. A
Renoissance, Réjorme, 1483-1559, Paris, Fayard, I 988, e Mandrou, R. L'histoire de la
idéia de contrato responde aqui por uma suposição de udesão lógica e voluntária a um
civili.mtionfrançaise, Armand Colin, Paris, 1980.
conjunto de regras.

52 ftlf\,
Os espaços dos Estados modernos são construídos e uni- de sua popularidade, à afirmação de seu poder diante do parla-
dos por linhas intersecionadas por numerosas redes que ligam mento e diante da nobreza, ao desenvolvimento da agricullura,
os diversos elementos espaciais. Há uma idéia de composição da indústria etc. Poderíamos afirmar a mesma coisa sob um ân-
dos mesmos elementos segundo maneiras diferentes, dando gulo bastante diverso, ou melhor, utilizando um outro prisma,
assim forma a configurações territoriais que são, simultanea- por meio dos trabalhos urbanos realizados por Henrique IV em
mente, semelhantes, pois comportam um certo número de ele- Paris, particularmente dois, a Pont Neuf (a ponte nova) e a
mentos comuns e diferentes, pois a soma destes elementos gera Praça dos Vosges.
em cada espaço unidades distintas. Departamentos, regiões, A Pont Neuf foi a primeira ponte construída sobre o rio
estados, províncias etc ., estão, no entanto, sempre unidos pelas Sena sem ser financiada pela venda de lotes para construção de
redes de colaboração e de solidariedade, mas também estão casas, corno era o hábito generalizado à época. Primeira ponte
unidos pela estrutura de poder que os conforma e os hierarqui- construída inteiramente em pedra, ela era parte de um conjunto
za. De forma esquemática, diríamos que a geometria variável que previa o local de uma estátua eqüestre (inspirada na estátua
dos espaços é compensada por um sentido geral de proporcio- romana de Marco Aurélio, em Roma) e de uma praça triangular,
nalidade. O Estado é assim um lugar, no sentido material e abs- a Place Dauphine, onde seriam vendidos lotes para a construção
trato, onde se reafirma a luta contra as desigualdades e a injus- de casas bancárias e de comércio. O partido arquitetônico das
tiça, criadas pela ordem natural ou social. construções da praça, ainda que financiadas por particulares,
Nossa pretensão não é a de produzir uma longa descrição deveria seguir um plano preestabelecido, regular, uniforme e si-
dos processos socioespaciais que deram origem às chamadas métrico. Ao longo das edificações, um passeio funcionava como
sociedades modernas. Queremos apenas chamar a atenção para espaço de circulação. Podemos, pois, constatar que esse peque-
o fato de que a cada momento de uma relação contratualista a no conjunto foi concebido corno urna nova forma de composi-
forma de organização do espaço foi uma das condições de base ção espacial, um espaço público que ultrapassava a dimensão
para que essa ordem social se realizasse. Os princípios do con- simplesmente utilitária da ponte, um verdadeiro espaço público
trato são os que regem a organização espacial e por meio dela moderno, onde era previsto que as pessoas iriam transitar, pas-
constroem-se os lugares para determinadas práticas e comporta- sear e admirar a unidade física e institucional, simbolicamente
mentos que põem em cena essa ordem social. Assim, o espaço representada pelo espaço. Este simbolismo pode também ser
delimita os comp01tamentos, classifica as ações sociais, ordena observado no fato de que a ponte unia as duas margens da cida-
a dinâmica social e hierarquiza práticas e instituições. de, passando pela ponta da ilha da Cité, tradicionalmente vista
Com o intuito de ser mais claros, tomemos um exemplo como o coração da cidade, além de oferecer da amurada uma
simples. A historiografia francesa vem ultimamente reavalian- vista perspectivada do palácio do Louvre, sede do poder real.
do o papel do rei Henrique IV (1553-1610) como um dos gran- A mesma idéia de um espaço público foi desenvolvida na
des artífices do Estado moderno francês. Para tal demonstra- concepção da Place des Vosges, larga, regular, geométrica, si-
ção, os historiadores têm aventado argumentos relativos à métrica, um espaço aberto em meio ao casaria denso e de ruas
posição desse monarca em relação à religião (o Edito de Nan- tortuosas do bairro do Marais. O projeto da praça previa um
tes), à união dos reinos da França e Na varra, à centralização do certo número de exigências a ser cumpridas pelos compradores
poder em Paris, à política em face da Espanha, à importância dos lotes, tais como o de não parcelar as unidades, obedecer a
54 ,JIIlJ1..,
um mesmo gabarito de altura e material e prolongar a unidade um próximo ao centro e o outro na periferia. Quanto maior a
das fachadas e dos arcos que contornam os jardins, oferecendo proximidade ao centro (ágora) do primeiro, maior seria a dis
justamente a possibilidade de permanência e circulação ao tância do segundo, de forma que todos estivessem situados a
público. uma distância média semelhante em relação a um ponto central.
Além dessas iniciativas, no reino de Henrique IV outras A cidade de Platão era geométrica, a matemática seria o instru-
operações urbanas foram iniciadas em Paris, todas dentro mento de justiça e igualdade, e nesse espaço poderiam ser cria-
dessa idéia de criar espaços abertos, renovados e de livre aces- das as condições para uma cidade perfeita.n Esta foi a primeira
so, como a Place de France (sistema de ruas em forma de estre- grande utopia urbana de que se tem notícia. O desenho do espa-
la convergindo para uma praça, mas que nunca foi inteiramente ço era acompanhado de narrativas sobre uma população feliz e
concluída), ou, ainda, o quarteirão Richclícu ou a ocupação da bem-aventurada. Muitas outras a sucederam.
ilha de Saint Louis.69 O sucesso da Place des Vosges foi tama- Podemos concluir este breve histórico chamando a atenção
nho, que ela se transformou em modelo, conhecido como Place para o fato de que nas condições contratualistas a tendência é
Royale, copiado em inúmeras outras cidades francesas. Essas ser vista uma concepção do espaço geométrica, matematica-
estruturas espaciais marcam o nascimento de um arranjo que, mente proporcionada. Trata-se de um espaço normativo, onde
em seguida, será desenvolvido como o espaço público das mo- as diferentes competências e comportamentos são classifica-
dernas cidades. Ele foi a condição para que aparecesse mesmo
dos segundo urna rígida divisão do espaço. A mais importante
a idéia de um público, ou seja, pessoas, cidadãos, que reprodu-
dessas distinções impostas pela forma contratual é a delimita-
zem novas práticas sociais em novos espaços.70
ção entre as esferas do público e do privado. Essa é a maneira
Para concluirmos resumidamente, voltemos à Antigüi-
de colocar em prática os valores que de certa forma organizam
dade. Segundo Platão, "tudo o que é feito na cidade segundo a
a idéia de pacto, isonomia, igualdade e justiça.73
ordem e a direção da lei só pode ter bons efeitos, enquanto tudo
Nem todos são otimistas em relação a esse tipo de dinâmi-
o que não é regrado causa malefício à maior parte das outras
ca. Para L. Wirth, por exemplo, o consenso normativo, basea-
regras sabiamente estabelecidas",7t A partir destes propósitos,
do na autoridade, das sociedades primitivas, foi substituído,
ele criou uma imagem da cidade ideal. Com um número limi-
nas sociedades urbanas, por bases formais e racionais. Toda-
tado de habitantes, essa cidade deveria exprimir rigorosamente
via, essas sociedades urbanas jamais conseguem atingir um
a idéia de igualdade, e dois lotes seriam dados a cada cidadão,
verdadeiro consenso, a despeito de toda a sofisticação de suas
leis formais e sanções. Diferentes grupos de interesse e afini-
69 Para mais detalhes, consuhar: Chartier, Roger. "Power, space and investments in dade segmentam a população, e a integração social é fortemen-
Paris", in Edo and Paris: Urbanlife and rhe state in the early modem era, McCiain,
J.; Mcrriman, J. & Kaoru, U. (orgs.), Cornell University Press, Nova York, 1994,
pp. 132-52.
7l Não devemos, no entanto, esquecer que a cidade de Platão era fortemente hierarqui·
70Um exemplo disso é a constatação de que "o triunfo da opinião pública será primei-
zada e, de fato, afirmar-se-ia como um contraponto às idéias de isonomia democrática.
ramente preparado pela emergência de um espaço público", in Reynié, Dominique. Le 73 "O problema da cidade não é a soberania, mas primeiramente a justa proporção cnt rc
triomplle de /'opinion publique: L'espace publique frwzçais du XVI•· au XX• siecle, a igualdade, numérica ou aritmética, e a desigualdade, segundo os valores respectivos
Editions Jacob, Paris, 1988, p. 31. dos indivfduos. Seve R. lndividu etjuslice soeia/e: Auto urde Jolm Rawls, Seu iI, Pu ris,
71 Plutão, "Lcs lois'', Oeuvres completes, VI, Les Bclles Lettres, Paris, J960. p. 780. 1998, p. 29.

56 )1fl1\
te comprometida pelas fronteiras de cada facção social. Essa comportamentos privados são inteiramente controlados po r
"desorganização" gera um comportamento carregado de cinis- uma potência pública monstruosa, capaz de manter um perma-
mo e descrença, traços que constituem. segundo ele, caracterís- nente estado de vigilância sobre todos os espaços.
ticas marcantes desses cidadãos urbanos. O desenvolvimento Essas verdadeiras antiutopias podem ser vistas como aler-
desses valores terminaria por dar margem a um comportamento tas às condições do contrato social e de seus desvios, mas tam-
anômico (falta de leis, sentido de vazio, patologia e desorgani- bém podem ser uma negação definitiva aos termos desse con-
zação comunal).74 trato e das formas físicas associadas a eles.76
Outro exemplo críti~o eloqüente é o de M. Foucault, para Sem dúvida alguma, o Século das Luzes foi um momento
quem a sociedade moderna é em grande parte estruturada sobre privilegiado quanto a esse tipo de relação entre o espaço e a
espaços disciplinares.75 Os comportamentos desviantes são norma. A modemidade, fundada no século XVIII, associa-se à
objeto de um discurso normativo, e os instrumentos do poder idéia de cidadania, às doutrinas do Estado moderno e às ideo-
operam sobre os indivíduos seguindo lógicas de vigilância per- logias dos direitos e deveres individuais e coletivos; porém, de
manente. O espaço e os comportamentos que aí incidem são mo- forma alguma esse tipo de relação com o espaço pode ser visto
nitorados segundo um ideal de sistema de controles. O normati- como uma exclusividade do período moderno. Procuramos
vo se transfigura em verdadeiro pela força discursiva. Igual- justamente demonstrar que essa forma normativa do espaço
mente, para O. Spengler, nossa cultura ocidental faústica, do do- tem um longo percurso e está associada a um tipo de socieda-
mínio da técnica e da fé na razão, produziu a cidade mundial, de fundada nos valores do racionalismo e do individualismo;
última criação de urna civilização que anuncia seu declínio e sua ela é contratualista e concebe o espaço de forma abstrata e geo-
morte, e, com ela, a morte do próprio mundo ocidental. métrica, contínua e com pretensões universais.
Muitos outros autores compartilham desse ponto de vista,
e há toda uma farta literatura na qual os valores e princípios
desse tipo de sociedade são denunciados pelos perigos da
opressão, do totalitarismo, do desrespeito às liberdades indivi-
duais ou ainda em que são sinalizados os alertas contra a possi-
bilidade da uniformidade, do mecanicismo e da padronização.
Um dos exemplos mais conhecidos nos foi deixado pela ficção
de George Orwell, 1984, em que as iniciativas individuais e os

74 Uma boa análise crftica dessa concepção de Wirth é encontrada em Smith, que
comenta também a perspectiva de Roszak e sua idéia de "desnaturalização" das socie-
dades modernas, confrontadas ao holi smo das comunidades urbanas medievais. Smith,
Michael P. The city and social rheory, Basil Blackwell, Londres, 1980. 7
6 A esse respeito é interessante consultar Choay e sua descrição dos dois JIJ{Xlc h l\ '
75 Foucault, Michel. Surveiller et punir: Naissance de la prison, Gall imard, Paris,
damentais do urbanismo moderno, o progress ismo e o culturalismo C'lr·
1975. L'urbanisme: utopies e/ réalités, Seuil, Paris, 1965.

6'o
ld
te comprometida pelas fronteiras de cada facção social. Essa comportamentos privados são inteiramente controlados por
"desorganização" gera um comportamento carregado de cinis- uma potência pública monstruosa, capaz de manter um perma-
mo e descrença, traços que constituem, segundo ele, caracterís- nente estado de vigilância sobre todos os espaços.
ticas marcantes desses cidadãos urbanos. O desenvolvimento Essas verdadeiras anti utopias podem ser vistas como aler-
desses valores terminaria por dar margem a um comportamento tas às condições do contrato social e de seus desvios, mas tam-
anômico (falta de leis, sentido de vazio, patologia e desorgani- bém podem ser uma negação definitiva aos termos desse con-
zação comunal).74 trato e das formas físicas associadas a eles.76
Outro exemplo críti~o eloqüente é o de M. Foucault, para Sem dúvida alguma, o Século das Luzes foi um momento
quem a sociedade moderna é em grande parte estruturada sobre privilegiado quanto a esse tipo de relação entre o espaço e a
espaços disciplinares.1S Os comportamentos desviantes são norma. A modernidade, fundada no século XVIII, associa-se à
objeto de um discurso normativo, e os instrumentos do poder idéia de cidadania, às doutrinas do Estado moderno e às ideo-
operam sobre os indivíduos seguindo lógicas de vigilância per- logias dos direitos e deveres individuais e coletivos; porém, de
manente. O espaço e os comportamentos que aí incidem são mo- f01ma alguma esse tipo de relação com o espaço pode ser visto
nitorados segundo um ideal de sistema de controles. O normati- como uma exclusividade do período moderno. Procuramos
vo se transfigura em verdadeiro pela força discursiva. Igual- justamente demonstrar que essa forma normativa do espaço
mente, para O. Spengler, nossa cultura ocidental faústica. do do- tem um longo percurso e está associada a um tipo de socieda-
mínio da técnica e da fé na razão, produziu a cidade mundial, de fundada nos valores do racionalismo e do individualismo;
última criação de uma civilização que anuncia seu declínio e sua ela é contratualista e concebe o espaço de forma abstrata e geo-
morte, e, com ela, a morte do próprio mundo ocidental. métrica, contínua e com pretensões universais.
Muitos outros autores compartilham desse ponto de vista,
e há toda uma farta literatura na qual os valores e princípios
desse tipo de sociedade são denunciados pelos perigos da
opressão, do totalitarismo, do desrespeito às liberdades indivi-
duais ou ainda em que são sinalizados os alertas contra a possi-
bilidade da uniformidade, do mecanicismo e da padronização.
Um dos exemplos mais conhecidos nos foi deixado pela ficção '\
de George Orwell, 1984, em que as iniciativas individuais e os

7 4 Uma boa análi se crítica dessa concepção de Wirth é encontrada em Smith, que

comenta também a perspectiva de Roszak e sua idéia de "desnaturalização" das socie·


dades modernas, confrontadas ao holismo das comunidades urbanas medievais. Smith,
Michael P. The city and social 1he01y, Basil Blackwell, Londres, J 980. 76 A esse respeito é interessante consultar Choay e sua descrição dos dois modelos fun-
7S Foucault, Michel. Surveilfer et punir: Naissance de la prison, Gallimard, Paris, damentais do urbanismo moderno, o progressis mo e o culturalismo. Choay, F.
1975. L'urbanisme: wopies et réalités, Seuil, Paris, 1965.

58 )lf1J\
festados e reforçados continuamente. O compromisso soc i;ll
não é, pois, do tipo formal, sendo relações de solidariedade
baseadas em uma pretensa homogeneidade e em uma solid a-
li- O genoespaço riedade advinda de um forte sentimento de coesão. Em termos
geográficos, podemos dizer que a classificação das ações não é
feita pela sua distribuição no espaço, como no primeiro caso
acima descrito; ela é, antes, este espaço, objeto de uma disputa
pela afirmação de um poder hegemônico de uma comunidade
que se julga pela força, pela tradição ou pela história, mais apta
a controlar um território ou simplesmente proclamar, por
Na segunda forma de relação com o espaço, o que estamos
razões diversas, que está destinada a fazê-lo. Nesse sentido,
chamando de genoespaço, o tipo de agregação social que qua-
obrigatoriamente estas disputas não possuem nunca um caráter
lifica o território é o grupo ou a comunidade. A escolha dessa
cosmopolita, não sendo a dinâmica dessas lutas inclusiva, visto
etimologia está relacionada à importância fundamental que
que se define pela diferenciação ontológica, constituindo-se,
tem a leitura das origens comuns nesse tipo de relação entre o
pois, como uma afirmação da diferenciação de direitos em um
espaço e as comunidades. espaço, segundo critérios de domínio e controle coletivos.
O discurso que funda a identidade comunitária é o da dife- O exemplo da Idade Média européia pode nos ajudar a
rença. Em outras palavras, a diferenciação se faz exagerando os compreender esse tipo de dinâmica. A partir do século VI, o
traços distintivos daquele grupo de pessoas e diminuindo a Direito Romano escrito começou a entrar em desuso frente às
importância de todas as outras características comuns comparti- novas formas do direito consuetudinário não-escrito. Simul-
lhadas com os outros grupos. Sublinhar um nível de diferença taneamente, o direito deixa de ser aplicado de forma isonômi-
significa que, a despeito do infinito patamar de diferenciação ca sobre o território e passa a vigorar nos julgamentos o princí-
teoricamente possível, um limite será privilegiado, aquele que pio de considerar em um contencioso as leis particulares que
distingue o grupo dos demais. regem cada um dos beligerantes, ou seja, as mesmas que
A unidade pode ser construída por meio de traços étnicos, haviam governado seus ancestrais.77 Independentemente de
familiares, culturais, históricos, morfológicos, comportamen- onde as pessoas habitam são seus grupos de origem que funda-
tais ou alguns desses considerados simultaneamente. Indi- mentam e servem de guia para o julgamento de suas ações.
ferentemente, o que esses elementos vão legitimar é uma iden- Dessa forma, vemos claramente que a divisão do espaço .perde
tidade comum e própria. A identidade é antes de mais nada um o principal papel de classificar as ações, estando elas, antes,
1
sentimento de pertencimento, uma sensação de natureza com- referenciadas a um grupo, a uma identidade social.
partilhada, de unidade plural, que possibilita e dá forma e con-
"Sob este ponto de vista, nada há de mais contrário ao espírito das democracias
sistência à própria existência. O coletivo tem absoluta preemi- 11
modernas do que o exclusivismo com que as cidades medievais defenderam seus pri-
nência sobre o indivíduo, e a construção de uma identidade se vilégios( ...). Cada domínio tinha sua ou suas cortes territ0riais. integradas por aldeões
e presididas por alcaides ou vilicus e que proferiam as suas sentenças de acordo com o
faz dentro do coletivo por contraste com o "outro". direito consuetudinário próprio do senhorio." Pirenue, Heuri. História ecollômica e
O espírito coeso e o caráter de unidade do grupo são mani- social da idade Média, op. cit., pp. 62 e 68.

60 fl1J\ .allâ GI
Essas sociedades tradicionais tendem a valorizar, aliás, os ao grupo identitário, à cultura própria e ao sonho ou pcrspcc li-
costumes particulares que se perpetuaram através do tempo, va de poder restaurar o território original são os elementos que
assim: "Um costume é tanto mais condenável quanto ele é preservam e dão consistência a essas identidades. Esse espaço
jovem [ ... ]. O prestígio do passado só poderia ser contestado original parece também ser freqüentemente marcado pela idéia
opondo-se-lhe um passado ainda mais antigo e veneráveJ."78 de ser objeto de uma "invasão" ou sofrer um permanente pro-
Isso corresponde a dizer que pessoas dividem um espaço onde cesso de enfrentamento ou ameaça. É dessa maneira que estes
suas ações são dirigidas sob princípios diferentes, e seus laços relatos mobilizam as populações e organizam as lutas pelo
fundamentais não se situam na solidariedade com o próximo, espaço. Essas lutas são de conquista, expansão ou retomada,
mas sim com uma origem que lhes é mais fundamental do que ou ainda, muitas vezes, são lutas travadas em prol de uma pos-
qualquer outro compromisso que, porventura, ela possa ter sível homogeneização da cultura identitária no território, como
com seus coabitantes. as lutas religiosas ou mais recentemente aquelas que ficaram
Esta identidade comunitária só pode existir, no entanto, conhecidas como "limpezas étnicas".
quando definida em relação a um território, real ou mítico, de As fronteiras desse tipo de espaço são sempre muito flui-
homogeneidade, de domínio e de pleno desenvolvimento do das e instáveis. Há, por assim dizer, núcleos territoriais marca-
espírito do grupo. A identidade comunitária está assim sempre dos pelo simbolismo e pela idéia de agregação vivida em dife-
relacionada a uma identidade territorial. Muitas vezes, esta rentes escalas que podem variar desde a de um bairro até a de
identidade territorial é estabelecida por meio de nebulosas um vale ou de um tipo de paisagem ou região. Em torno desses
fábulas ou de improváveis relatos de uma longínqua origem núcleos, as fronteiras são menos claras que as do nomoespaço,
espacial comum. Há sempre relatos míticos relacionados a um e a extensão é sempre relativa aos critérios chamados a depor
tempo específico e a um espaço particular, ou seja, estas cate- no reconhecimento da identidade do grupo, extensão da língua,
gorias espaço-temporais são vistas como elementos singulares da religião, do gênero de vida etc. É o espírito comum ao grupo
fundadores da identidade. Não raramente essa narrativa corres- que qualifica o espaço, sacralizando-o.so Como o grupo se
pende à enumeração das dificuldades de sobrevivência do pró- define pelo mecanismo de exclusão, tendo em vista uma carac-
prio grupo e das iniqüidades contra ele cometidas. terística demarcadora qualquer, ele sempre se vê ameaçado
Neste sentido, outra idéia forte e comum nesse tipo de pelos elementos oriundos de fora dele, e essas fronteiras, ainda
dinâmica é o relato de uma diáspora. A supressão pela força, a que fluidas, são territórios de conflito, reivindicação e reprodu-
submissão imposta a uma outra cultura ou comunidade e, ção da ideologia central da diferenciação.
sobretudo, a perda do território original pela conquista e pela Os mitos de fundação ligados a um espaço original e a um
dispersão de seus integrantes são traços marcantes dessas nar- tempo passado res ultam em tradicionalismos na preservação
rativas que povoam identidades nacionalistas ou regionalis- dos elementos que soldam a identidade. A história e a geog-I:_a-
tas.79 Enfim, a manutenção de uma certa tradição que remete
so Antes do advento e da afirmação da polis, os territórios das comunidades gregas
eram delimitados por santuários e oferendas colocados próximos aos limites, que defi-
78Bloch, Marc. La société [éoda/e, Albin Michel, Paris, 1968, p. 171. niam uma área de culto e assim se estabeleciam, de forma pouco estável e pouco clara,
79Uma crítica interessante a esses instmmentos discursivos é fe ita por Todorov, os limites de um genos. Polignac, François de. La naissance de la cité grecque, Ed. La
Tzvetan. Les abus de la mémoire, Arléa, Paris, 1998. Découverte, Paris, 1995. pp. 12 e 18.

62 )1fÚ\
fia singular criam elos ontológicos, vistos como necessários à A linguagem compreende, pois, sistemas que se encélixam c qlll.:
própria existência do grupo. Como nos diz Said, na narração não podem se fechar. A vida cotidiana exige uma perpélua tra-
que liga um território a uma comunidade, os apelos ao passado dução em linguagem corrente desses sistemas de signos que são
estão entre as estratégias mais comuns na interpretação do pre- os objetos que servem à habitação, às vestimentas, à alimenta-
sente. SI Não se trata de qualquer espaço, há um espaço próprio, ção. Aquele que não sabe traduzi-los é um ignorante ou um es-
organicamente ligado à origem e à identidade do grupo, que trangeiro" ,83
precisa ser preservado, conquistado ou depurado do controle
estranho a ele. Quando esta volta ao território original é impos- Percebemos também uma simplificação na hierarquia ter-
sível, torna-se necessário recriá-lo ou refundá-Jo simultanea- ritorial, que corresponde mesmo à pequena estratificação
mente ao processo de reorganização da estrutura do grupo social que se define basicamente pela presença de líderes e
pela massa de integrantes, ou, para usar a expressão de Da
identitário.
Matta, o espaço se hierarquiza pouco, porém fortemente.
Esse espaço é não só fortemente marcado, como também
Ainda segundo ele, algumas áreas (praças e adros) "servem de
preenchido de signos inclusivos, ou seja, signos que demarcam a
foco para a relação estrutural entre o indivíduo (o líder, o santo,
presença ou controle daquele território pelo grupo ou comunida-
o messias, o chefe da igreja ou do governo) e o 'povo', a
de. Não raramente ritos iniciadores funcionam como provas de
'massa', a coletividade que lhe é oposta e o complementa".B4 O
fidelidade, como julgamentos de submissão à ordem comunitária
espaço tende a ser lido assim a partir das categorias absolutas
ou como confirmação do poder do grupo sobre os indivíduos e
"nosso" e "deles", aliás, como os demais valores associados a
sobre o espaço. Esses ritos são organizados também segundo
essa dinâmica. Ao se definir pela diferença e pelo contraste,
percursos espaciais, carregados de simbolismo, seja em incur-
esses movimentos têm êxito em apagar todas as outras fraturas
sões em áreas de conflito, seja em estadias afastadas do grupo
internas virtualmente expostas pelo grupo, criando uma forte
01iginal ou ainda pela organização de roteiros iniciáticos.82
unidade, coesa e monocromática.
A simbologia é definidora de um espaço comum, privativo
Toda a oposição é externa ao grupo e deve ser mais ou
ou desejado pela comunidade. Aos elementos estranhos ao
menos permanente, para que haja a manutenção desses laços de
grupo, essa linguagem do espaço pode parecer opaca. Trata-se
coesão. Isso corresponde a dizer que esse tipo de identidade é
muito mais da simples notação de um domínio ou de uma pre-
necessariamente movido pela arte do conflito. Estas caracterís-
sença. O fato marcante é que esses símbolos só ganham trans-
ticas são estruturantes na construção e na reprodução do espa-
parência para os iniciados, mas são os marcos efetivos de uma
ço. Os conflitos são territoriais, e, ainda que sejam apresentados
visibilidade que nem sempre quer ser compreendida, querendo
como lutas étnicas, religiosas culturais, a verdadeira luta é terri-
apenas ser notada. Como nos diz Lefebvre,
'
83 Le~bvr.' Henri. "Introduction à l'étude de !'habitat pavilon~c", in Habitat
pavtlilonnatre, Haumont, N.; Raymond, H. (org.), Editions du C.R.Ú, Paris, 1967.
81Said, Edward. Culture and imperialism, Vintage, Londres. 1994, p. XII. 84.Da Matta, Roberto. A casa e a rua. Ed. Guanabara, Rio de Janeiro, 1987, p. 47.
82 Balandier chama isso de abundância simbólica. Ele descreve, por exemplo, o Amda segundo ele, "no caso das cidades brasileiras, a demarcação espacial (e social)
cammho que o soberano de Mossi, em Burkina Faso, deve seguir antes de ser entro- se faz sempre no sentido de uma gradação ou hierarquia entre centro c periferia, dcn·
nizado. Balandier, Georges. O contorno: Poder e modernidade, Bertrand Brasil, Rio tro e fora. Para verificar isso. basta conferir a expressão brasileira "centro da cidudc",
de Janeiro, 1997, p. 95. idem, p. 34.

64 )lflf\
torial, pelo domínio e controle de um determinado território, porta cera . De fato, seu uso está reservado aos homens, e todos
visto como ontológico, essencial e próprio a esse grupo que o aqueles que residem em um setor são originários do outro c
reclama. inversamente.85
Tentaremos a seguir demonstrar, a partir de alguns exem-
plos, como a dominação deste tipo de relação com espaço Percebemos assim que todas as grandes distinções, vividas
resulta em produtos fundamentalmente diferentes daqueles já na c ultura do grupo como delimitações importantes, estão ins-
apresentados para o nomoespaço. Não seguimos um percurso critas no espaço e são operacionalizadas pela sua organização
histórico regular justamente para não sugerir uma evolução física. Primeiramente, a diferença entre os dois grupos; em
linear e uniforme, mas escolhemos exemplos em que as gran- segundo lugar, a diferença sexual; e, em terceiro a diferença do
des rupturas com o modelo contratualista são suficientemente estatuto civiJ.86 São estas diferenças e suas vivências sobre o
marcantes para que possam ser comparados aos exemplos que espaço, baseadas em critérios variados de afinidades, que ten-
foram dados na primeira parte desta exposição. taremos mostrar que estão no núcleo dessa idéia de genoespa-
ço. Deveríamos mesmo evitar falar de espaço e talvez fosse
mais apropriado falar em lugares, de tanto que as singularida-
Quando a idéia da diferença funda des físicas do terreno possuem importância nesse tipo de dinâ-
um espaço mica. O particularismo de cada grupo ou segmento se funda
sobre u m lugar que lhe é próprio e único nesse caso, a identi-
Parece ser válido afirmar que haverá no espaço tantas divi- dade social é perfeitamente igual à identidade territorial.
sões observáveis quantas forem as diferenciações internas Nosso primeiro exemplo histórico é extraído do confronto
vividas de forma significativa e estável no interior de um grupo entre o surgimento da polis grega com o regime social anterior,
social, sejam elas organizadas por etnia, sexo, idade, função ou conhecido naquela área e comumente denominado período
qualquer outro elemento. Um caso que pode ser il ustrativo micênico.87 Nesta sociedade, conhecida também como pala-
disto que dissemos, entre muitos outros, é-nos descrito por ciana, o rei ou Basileu concentrava várias funções e poderes:
Lévi-Strauss em seu estudo sobre os indígenas bororós. A for- religioso, mili tar, j urídico e político. Ao lado dele, aos poucos
ma de suas aldeias é circular, as casas fami liares se dispõem na se formam uma classe de guerreiros, uma aristocracia e uma
extremidade do círculo, e diante delas estende-se um terreno classe de funcionários, escribas, servidores diretos do rei. A
abe1to, com o centro abrigando a casa comunal, corresponden- estrutura espacial dessa sociedade pode ser apreciada na orga-
te à habitação dos homens solteiros. Todo esse conjunto está nização do palácio, que possuía sempre ao centro o megaron,
dividido em dois hemisférios correspondendo aos dois grupos,
o cera e o tugaré. Na casa comuna! há duas portas, uma volta-
85 Lévi·Strauss, Claude. Tristes tropiques, 10-18, Paris, ~6 , pp. 190·1.
da para o território definido pelo hemisfério cera e a o utra para 86 Por isso, quando este grupo se viu confrontado, no c~ntao com a "civilização", a
o hemisfério tugaré: viver em espaços dispostos sob outros padrões, não ~ónseg ui u se reproduzir social·
mente, ou seja, como sistema original de relações/ socíais e culturais, Cf. Lévi·Strauss.
Claude. Tristes tropiques, op. cit.
Mas as regras de residência explicam que a porta voltada para o
81 Esta descrição se baseia, em grande parte, na descrição do período miccnico feita
território cera se chame porta tugaré, e a do território tugaré, por Vernant, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego, Di fel, São Paulo, 19ll6.

66 A
sala do trono, em torno do qual se situavam as outras depen- comuns, sem qualificação social e sem posição espacial de fi 11 i
dências da moradia real, que abrigavam, justapostas a ela, a da, seguindo apenas o tropismo do prestígio do centro e a di rc-
residência dos chefes militares e dos dignitários do palácio. renciação estabelecida pela distância em relação a ele.
Esses domínios eram murados e, em geral, construídos Todavia, o exemplo mais eloqüente e mais conhecido de
sobre uma elevação de onde era possível controlar a região uma sociedade não-contratualista e de sua organização espa-
plana circunvizinha. Em torno do palácio, espremiam-se os cial nos é dado, sem dúvida, pela cidade medieval. Esta deno-
outros moradores, dispostos em uma estrutura labiríntica, uma minação, porém, recobre situações muito diferentes no espaço
espécie de dédalos, muito densamente ocupados, em aparente e no tempo. De forma muita sucinta, podemos distinguir três
desordem, com inúmeras passagens e vielas. Assim, nesse tipo grandes épocas com características bem distintas e variando
de estrutura, a lei espacial fundamental é a de concentração em bastante de uma área para a outra.89
tomo de um ponto que congrega todo o valor e prestígío.88 Já
A primeira corresponde aos assentamentos urbanos entre os
houve quem comparasse esse modelo à imagem da pirâmide, e,
séculos III e vm. Nesse período, as cidades medievais corres-
de fato, em algumas cidades pré-colombianas do México, a
pondero ao núcleo da urbe romana, fortemente limitada por
divisão social se rebatia sobre o plano horizontal em perfeita
muralhas, construídas com as pedras retiradas dos antigos
simetria com os andares desse tipo de construção.
monumentos. As invasões e saques, muito freqüentes nessa
O mais importante a perceber, no entanto, é que esse agru-
época, renovavam a idéia de urna comunidade que deveria se
pamento de pessoas, sua união e seus laços são definidos pela
fechar ao perigo externo e contar fundamentalmente com a soli-
leitura de uma origem e destino comuns. No caso micênico,
dariedade imediata do próximo, que compartilhava a mesma
por exemplo, tratava-se de clãs, reunião de famílias, que supu-
situação de insegurança geral. Os bispos, beneficiando-se do
nham ou, pelo menos, aceitavam compartilhar o culto de um
desaparecimento das antigas autoridades dos magistrados, subs-
mesmo ancestral. É nesse sentido talvez que possamos com-
tituíram-nos na administração dessas cidades, exercendo inclu-
preender essa lei de concentração espacial e de densidade da
sive o poder de justiça. Seguindo a orientação dos concílios do
ocupação, pois, quanto mais perto do núcleo de onde emanam
século IV, cada cidade deveria ter seu bispo, e sua esfera de po-
os traços distintos do grupo, mais se reafirmam a continuidade
der definia um território municipal. Mais tarde, as mudanças eco-
e o pertencimento a ele.
nômicas e sociais exigiram uma hierarquia mais complexa. Era
Ao contrário do que às vezes é dito, não há uma desordem
necessário, para a afirmação da nova hegemonia institucional
espacial nesses estabelecimentos, havendo, sim, uma forma
da Igreja Católica, estabelecer uma hierarquia socioespacial que
quase orgânica de agenciamento do espaço. Em grande parte
fosse aplicada de forma geral, mas que guardasse simultanea-
do mundo antigo, o centro das aglomerações possuí uma forma
mente a proximidade com as diferentes localidades. As paró-
geométrica, compreendendo o palácio, os templos e os jardins,
quias, controladas por padres, transformam-se assim na verda-
e em torno deles se desenvolviam as moradias das pessoas 1
deira unidade elementar de admj nistração do território. Essa
i
I
88 Para mais de talhes sobre a organização do espaço nesse perfodo, ver t a mb ~ m , 89Para mais detalhes sobre essa periodizá(ão, ver, por exemplo, Barel, Yves. La ciu
Owcns, E. J. Th e city in Greek and Roman world, Routledge, Londres, 1991, especial- dad medieval: Sistema social - Sisrema urbano, Instituto de EsiUdios de
mente os capítulos Il e VIII. Administracion Local, Madri, 1981.

68 )lf1i\
estrutura se viu reforçada quando, no século IX, o império de Novas cidades são criadas, mas uma grande parte do signi li ca-
Carlos Magno adotou a paróquia como unidade de percepção de tivo crescimento demográfico desse período é absorvido pelas
impostos. Só a partir do século XI, com a afirmação de poderes antlgas cidades, que desenvolvem também novas atividades ao
concorTentes da nobreza, dos reis e dos burgueses, essa forma de longo de suas vias de acesso, nosfaubourgs, agora densamente
divisão e administração territmial começa a perder espaço. povoados. No interior das cidades a limitação dos terrenos leva
A Igreja tinha todo o interesse em reforçar as estruturas do a um elevado agrupamento das casas. Elas são comumente
tipo comunitário, e as paróquias muitas vezes funcionavam de coladas às muralhas, às igrejas e umas às outras, além das pon-
fato como pequenas unidades diferenciadas e quase autônomas. tes, que se apresentam completamente ocupadas pelo casaria, e
Um elemento eloqüente da refundação de um espaço comunitá- dos novos andares construídos sobre as antigas casas. O comér-
rio foi o hábito renovado, reintroduzido nesse começo da Idade cio se desenvolve, novas profissões são criadas, e uma prospe-
Média, de voltar a enterrar os mortos no interior das cidades. Os ridade nova redesenha o perfil social e espacial dessas cidades.
túmulos dos ancestrais ou dos fundadores de uma linhagem são A partir do século XI e até a Renascença, as atividades e as
os lugares significativos dessas renovadas e variadas identidades. novas classes que estavam nosfaubourgs ganham direito à
Essas cidades abrigam uma pequena população, comanda- cidade e a ocupam, substituindo-se também no comando e na
da pelo clero e completamente submetida ao jugo dos senhores gestão desse espaço. As antigas paróquias que dividiam o con-
e de seus cavaleiros nobres. A população costuma viver de trole e a administração das cidades se transformam em bairros
pequenas áreas de cultivo, algumas dentro da própria cidade, e começam a ter sua gestão efetuada por poderes civis e lei-
estabelecidas nos terrenos dos monumentos destruídos. Há gos.9t As muralhas são alargadas, quando não abatidas, traba-
uma espécie de "invasão" da ruralidade sobre o território urba- lhos de reforma urbana começam a ser executados nas velhas
no, e podem-se encontrar mesmo pequenas hortas no interior cidades, alargando ruas, criando estruturas físicas para o mer-
das casas. A proporção entre área construída e habitada, e áreas cado e recompondo o tecido urbano segundo uma diferencia-
de cultivo dentro dos limites urbanos tem a tendência a se apre- ção dos ofícios . Quando, mais tarde, os burgueses começaram a
sentar invertida, ou seja, mais de 50% dos terrenos urbanos criar estruturas autônomas em relação ao poder senhorial, nas
estão ocupados pelas culturas; Paris, por exemplo, só verá esta cidades-francas ou cidades-novas, o conselho que reunificava a
tendência se inverter a partir do século XIII. administração da cidade, em geral, construía uma grande torre, o
béffroi, onde funcionavam uma sala de reunião, o depósito de
Materialmente, subsistiram as cidades; porém, perderam suas arquivos, os instrumentos de medida e a balança; eventualmente
populações de mtesãos e comerciantes, e, com elas, tudo o que também esse espaço podia funcionar como prisão. Nasce assim
sobrevivera da organização municipal do Império Romano.90 uma nova centralidade urbana, a torre da cidade é justaposta à
praça do mercado, e este conjunto substitui os antigos elemen-
Somente a partir do século IX, e muito mais fortemente nos
séculos XI e XII, há um verdadeiro renascimento urbano .
1
I

91 Por exemplo, Paris, no século ~1, I com aproximadamente 25 m1I· hab.1tantcs, ct'1v1'dc-
se em 33 paróquias, que até entilo detinham um poder formidável na adminisu-açno
<.JO Pirenne, Henri. História econômica e social da Idade Média op. cit., p. 46. dessas terras. _/

70 ~ ..... 11
tos, abadias, igrejas, catedrais, monastérios e castelos, que, ante- do quando nos damos conta de que esse espaço era fortemente
riormente, polarizavam o espaço urbano. disputado e dividido por vários segmentos sociais: dois ou três
Sem dúvida, uma das mais extraordinárias criações do sécu- senhores, o clero, príncipes territoriais, a nova nobreza buro-
lo XI foram as Bastides, cidades novas, fortificadas com mura- crática (noblessse de robe), comerciantes, grandes corporações
lhas, que marcam o movimento de liberação urbano, em grande de artesãos, todos eles pretendendo afirmar uma certa sobera-
parte dirigido pela burguesia nascente e que é acompanhado nia e um certo controle sobre o espaço urbano.95
nesse processo pela retomada dos principias do Direito Roma- O terceiro período se estende do século XII até a Renas-
no. Essas cidades possuíam sempre um plano prévio de traçado cença e corresponde a uma época turbulenta, de grandes crises.
regular e geométrico, muitas vezes ortogonal, com ruas largas e Crise de abastecimento, com a elevação dos preços do trigo;
uma rígida diferenciação do tecido urbano.92 Eram marcadas crise do q uadro do equilíbrio hierárquico, com a dissolução das
assim por uma ruptura estética e funcional em relação às outras antigas estruturas sociais; crise do comércio, crise demográfi-
cidades medievais. ca, com muitas guerras e a grande epidemia da peste; tudo isso
levou a uma reestruturação crítica do quadro dessa organização
A maior parte das cartas [constitucionais] das cidades-novas das urbana que resultará mais tarde na cidade renascentista.
cidades-francas especificavam que os novos habitantes, os hós- É, entretanto, no período imediatamente anterior, naquilo
pedes, receberiam um lugar a construir na cidade e, além disso, que comumente concebemos como sendo as cidades medievais
lotes de teiTa. As ruas das cidades-novas, regularmente traçadas, mais típicas, que se situa nosso exemplo mais evocador do
cortavam-se em ângulo reto e eram prolongadas fora da muralha, genoespaço. Em relação à morfologia, as ruas são estreitas,
dividindo o território rural em blocos geométricos, réplicas exa- sinuosas e escuras, de vez em quando um pequeno alargamen-
tas daqueles do tecido urbano".93 to é mantido no lugar de um poço, de uma fonte ou de uma
cruz. As pequenas praças são resultado do cruzamento de uma
Esse novo desenho urbano correspondia a uma nova estru- ou mais ruas e têm traçados irregulares. As casas, coladas
tura social, menos polimorfa do que a das cidades medievais umas às outras e ocupando toda a extensão do terreno, seguem
antigas, onde a estiutura polinuclear era uma característica de padrões diversos, a ltas, largas, estreitas ; algumas avançam
base.94 De fato, o modelo polinuclear só pode ser compreendi- sobre a rua a partir do segundo andar, deixando apenas o espa-
ço necessário à circulação, mas cortando a luminosidade e a
92 Sobre o mito da Bastide em plano de "tabuleiro de xadrez". ver. por exemplo: aeração das ruas. Outras edificações são construídas fechando
Berdoulay. V. Bielza de Ory, V. "Pour une rclecture de l'urbanisme médiéval: proces- as ruas e deixando um pequeno pórtico apenas para a passa-
sus transpyrénéens d' innovation et de diffusion", Sud·Ouest Européen, 11'? 8, Toulouse,
2000, pp. 75-81. gem. Assim, os becos e ruas com partes cobertas são uma mor-
93 Heers, Jacques, Le Moyen Âge, Une imposture, Perrin, Pari s. 1992, p. 207. fologia muito freqüente nessas cidades . O escoamento das
94 "Nos primeiros tempos de sua história, a cidade medieval cresceu de maneira origi-
águas pluviais é recolhido pelas paredes divisórias entre as
nal. Em lugar de se desenvolver a partir de um centro único com uma periferia que
seria progressivamente urbanizada, ela dispunha muito mais freqUentemente de uma
estrutura poli nuclear, na qual os novos elementos portavam o nome de burgos e cuja 9sUma boa descrição desses grupos que dividiam o poder e o território urbano, nascida-
destinação variava em função das atividades que os animavam." Cllédeville, A.; Le des italianas de Florença, Gênova,1Roma e em Barcelona, é-nos apresentada por Darci,
Goff, J. & Rossiaud, J. La vil/e en France au Moyen Âge, Seuil, Paris, 1998, p. 55. Yves. La ciudad medieval: Sis~a social - Sistema Urbano, op. rir., pp. 124-37.

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casas, uma vez que os telhados são, em geral, inclinados late- cação tão importante. Algumas ruas também muitas vezes são
ralmente, o que resulta em persistentes conflitos entre vizi- ocupadas exclusivamente por artesãos de um mesmo ofício.
nhos. Toda visão de conjunto só pode ser obtida do alto das tor- No mundo social e do trabalho, proliferam grupos, confra-
res. Elas podem ser em grande número e simbolizam os diver- rias, guildas , comunas, comunidades rurais, que nos demons-
sos grupos que se representam na cidade. Eis uma descrição tram a necessidade medieval de se criarem estruturas de solida-
evocadora da cidade de Paris nessa época: riedade baseadas na idéia de identidade. O casamento endogâ-
rnico é uma prática muito difundida no interior deles, chegando
As grandes ruas comumente medem entre 2 e 5 metros de largu- mesmo a ser uma condição em algumas corporações para que o
ra. No centro da cidade, um labirinto complexo de vias de pedes- aprendiz pudesse passar a mestre. Até mesmo no universo dos
tres e becos formam passagens de 1 a 2 metros, que permitem a modelos da farrúlia, a substituição do modelo romano pelo ger-
entrada de apenas uma pessoa. A circulação é entravada pelos mânico, mais largo e mais unido, mais comunitário, demonstra-
esgotos a céu aberto, pelas águas da chuva, que caem em gotei- nos essa necessidade de solidariedade dentro de um círculo
ras, e pelos montes de lixo depositados diante das portas das fechado de pessoas, tidas como afins.
casas. Além disso, é difícil identificar as ruas, pois a maior parte A fragmentação social e do espaço pode ser sentida também
delas permanece anônima. Por razões financeiras, os terrenos na quase ausência de um direito territorial. Para cada unidade de
são exíguos, e as casas construídas perpendicularmente à rua. poder há um conjunto de leis ou tradições legais que são paiti-
As casas podem ser divididas para locação em "quartos", "can- culares, que não sentem necessidade de se justificar em princí-
tos" ou "andares", habitações muito simples. Mesmo os jardins pios gerais e se estendem aos estreitos domínios onde cada
são ocupados pelos mais pobres que se amontoam em barracos senhor ou grupo é soberano . Como há muito já nos disse
de tábuas.96 Epicuro, a justiça e a injustiça não existem em relação aos seres
que não concluíram esse tipo de pacto.97 A fragmentação da lei
Muitas cidades medievais se formaram a partir da reunião e do direito é, pois, generalizada e se caracteriza por:
de um ou mais núcleos; a cidade episcopal com a cidade comer-
cial, e à urbi se somaram o portus (mercado) e o vicus (residên- Relações ou ligações pessoais que substituem o sentido de Estado,
cia). São as chamadas cidades duplas. Entretanto, várias outras um poder recolhido e próximo, mas geograficamente limitado,
são o resultado da reunião de três, quatro e até cinco núcleos, uma propriedade distinta da posse, um costume prisioneiro do
como Brunswick ou Toulouse. Entre esses núcleos, as muralhas detalhe e substituindo freqüentemente a lei, ela mesma muito mais
muitas vezes são mantidas, mostrando a fragmentação desse pessoal do que territoria[.98
conjunto e o caráter particular de cada uma de suas partes. De
fato, na maior parte da sociedade medieval o que predomina é a Nesse sentido, uma das práticas mais características dessa
diferenciação, seja ela interna ou externa ao grupamento urbano. dinâmica é a vendetta, uma vez que esta demonstra que, ao se
Insígnias, cores, roupas e acessórios são utilizados nessa demar-

97 Lenoble, R. Esquisse d'une histoire de /'idée de nacure, Albin-Michel, Paris, 1969,


96Chadych, Danielle & Leborgne, Dominique. Atlas de Paris: Évolution d'un paysa- p. 109.
ge urbain, Parigramme, Paris, 1999, p. 43. 98 Delort, Robert, La vie /'l!oyen Âge, Sellil, Paris, 1982, p. 119.
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74 )lf1f\ -~
atingir um membro da comunidade se estará de fato atingindo o O importante para nós aqui é demonstrar como a organiza-
grupo como um todo, e a vingança pode, dessa forma, ser desfe- ção espacial dimensiona e condiciona os comportamentos; por-
rida indistintamente também contra qualquer elemento do outro tanto, nesta descrição das formas físicas ficou faltando ainda a
grupo.99 Assim, na Europa neste período, por exemplo: comu- imagem da vida cotidiana sobre esse espaço. De dia, as ruas se
mente as famílias ou os grupos de afinidade, que nesse mstante movimentavam pela presença, sobretudo de mulheres e crian-
constituíam as formas predominantes de solidariedade social, ças, e pelas atividades do comércio variado das lojas. O trânsito
poderiam invocar o direito a essa vendetta para ~atr .ou punir das carroças era difícil, e os cavalos eram muito utilizados, mas
outro grupo. Não eram respeitadas relações de s1metna nessas somente pelos mais ricos. As ruas também eram comumente
retaliações, e qualquer membro, independentemente de sua bloqueadas para a passagem de uma procissão, verdadeira ocu-
posição na hierarquia, poderia ser objeto de uma vingança. Al- pação da cidade por um santo padroeiro de alguma corporação
gumas vezes, essas retaliações saltavam gerações ou.eram. exe- 9u de alguma confraria. Contribuindo para o espetáculo da rua,
cutadas em locais diferentes daqueles em que se havta regtstra- havia ainda os vendedores ambulantes, os adestradores de ursos,
do o evento detonador da vendetta. Para que se tenha uma idéia os malabaristas ou um predicador, vociferando contra os peca-
da disseminação e da preeminência desse hábito, na Normandia dos do mundo.
e em Flandres, no século XIII, por exemplo, o perdão do sobe- Em meio a esses personagens, uma grande quantidade de
rano ou de qualquer outra autoridade só poderia ser acordado à pedintes e doentes, muitas vezes sem domicílio fixo. O barulho
pessoa faltosa se antes ele houvesse sido autmizado pela família era intenso, as vendas eram anunciadas aos gritos e se mistura-
prejudicada.1oo vam aos ruídos das oficinas e das pessoas circulando. Os odores
Não é difícil compreender assim que essas variadas identi- também eram variados, o lixo se acumulava na rua, esperando
dades fossem vividas também territorialmente e que na cidade as chuvas para carregá-lo, e o esgoto era, na maior parte dos
aparecesse uma multiplicação de lugares apropriados ou asso- casos, a céu aberto.
ciados a um grupo particular. Segundo relatos, a cidade de San Ao cair da noite, as portas da cidade se fechavam, as casas
Giminiano, na região da Toscana italiana, chegou a ter setenta eram trancadas, portas e janelas, e as ruas se tornavam desertas,
torres, cada uma delas associada a uma corporação, sendo várias silenciosas e perigosas, havia muitos roubos, e evitava-se sair à
delas de um mesmo tipo de ofício. Essas torres atestavam auto- noite, ou, para quem dispusesse de meios, o percurso era feito
nomia, riqueza e potência. Grande parte desta descrição refere-se acompanhado por uma escolta, com armas e tochas.
ao período da Idade Média que corresponde aos séculos IX e XII, Em algumas descrições das cidades medievais, encontra-
pois, a partir de então no norte da Itália, em Flandres, em prute da mos o emprego da categoria de espaço público para falar das
Alemanha e França, a ascensão da burguesia e sua tentativa de suas ruas ou das suas praças.! OI Conforme o que tentamos ante-
criar um espaço novo introduziram novas espacialidades. riormente demonstrar, o emprego dessa categoria é problemático
dentro de uma esfera tipicamente medieval. Tendemos assim a
99 Notemos que este comportamento é diametralmente ops~ ao da. idéia d~ justiça,
uma vez que esta "arranca o objeto do ressentimento das maos da vmgança , segun-
do Krcmer-Marietti, A. La mora/e, PUF, Paris, 1982, p. 106.
10u Bloch, Marc. Lo sociétéféodale, op.cit.
IO I
1997.
__
Por exemplo, Oelfante, Charles. Grande histoire de la vil/e, Armand Co! in, Paris,

.....--
/

7/
76
dar à morfologia um caráter essencialista, do tipo "onde há lares. Qualquer noção próxima da idéia de equivalência ou
li\' li

ruas e praças, há espaços públicos". tlv ismnorfia é es tranha à sua compreensão, e a categoria mais
No caso da cidade medieval e nos outros exemplos aqui t•xprcssiva para caracterizar este espaço é a da diferença.I 04
citados, essas áreas comuns não correspondem exatamen te a Muitas vezes, esse tipo de relação com o solo foi com-
esta denominação. Nelas não se observam na maior parte dos preendido como uma forma pré-moderna, como característica
casos um comportamento público.I02 Além disso, a ausência de 1il' outros tempos, antes da afirmação dos Estados . Teria uma
uma esfera social propriamente pública deveria ser um elemen- l'Xplicação no terror medieval, na necessidade de uma solidarie-
to suficiente para nos resguardarmos em relação ao emprego d;tdc imposta à sobrevivência em tempos de pouca o u nenhuma
indiscriminado dessa noção de espaço público. Preferimos nos proteção institucional. Este genoespaço foi visto também como
juntar a Isaac Joseph e conceber esse tipo de espaço comum a l'orma mais típica das sociedades primitivas e, nas sociedades
como um espaço coletivo que se opõe, dessa forma, aos espaços contemporâneas, como um modelo que foge ao padrão das so-
exclusivos das casas e das instituições da época, o que corres- ciedades ocidentais, baseadas numa racionalidade de princípios
ponde a dizer que tampouco utilizaremos a categoria de espaço unJversars.
privado para descrevê-los. Segundo a expressão de Joseph, estes Uma vez mais, temos que discordar dessa perspectiva. Não
espaços coletivos são dissuasivos e de defesa, mas não são com- llá uma evolução que se dirija do genoespaço ao nomoespaço e
pletamente proibidos aos membros dos outros grupos: não há distinções globais no tempo ou no espaço que regularizem
a existência dessas duas formas. Elas encontraram evoluções
Eles servem para assinalar ao estrangeiro ou intruso virtual que diferentes, não podendo uma ser reduzida à protoforma da outra,
ele não está no espaço dele quando ele por lá se aventura; trata- sob pena de vermos em alguns movimentos recentes das histó-
se de multiplicar os operadores materiais e imateriais de comu- rias moderna e contemporânea simples "testemunhos" de tempos
nitarização, espalhar no ambiente disposi tivos (... ) que dizem passados, defasados e condenados ao desaparecimento, perspec-
que aquele espaço pertence a uma comunidade e se encontra sob tiva sedutoramente abrangente, mas explicativamente falsa. lOS
seu controle.f03 Esses dois tipos descritos correspondem a duas formas de-
ser-no-espaço e são simultaneamente duas formas de-ser-do-
A partir desses exemplos podemos perceber que os espa- espaço. Na primeira, o espaço é uma condição para a ordem
ços do tipo coletivo produzem um agenciamento fragmentado formal; ele se constitui na verdade em um classificador das
do solo, seguindo uma ordem de tipo orgânica. O espaço é
vivido e concebido como uma soma de locais, concretos e par-
IQ.l Como nos ensina Le Goff, o contrato de reciprocidade do regime feudal, autenti-

camente mútuo. simbolizado nas investiduras senhoriais, é sempre precedido de uma


reafirmação da desigualdade. Desta forma, é a diferença (desigualdade) que cria a
102 Uma boa descrição dessas dinâmicas no século XVTII e das tentativas de controle solidariedade e o vínculo. Le Goff, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média
do espaço exercido pela nova ordem burguesa. com a imposição de novos limites -tempo, trabalho e cu/wra 110 Ocidente, Ed. Estampa, Lisboa, 1980, pp. 344-5.
entre o público e o privado, nos é dada por Farge, Arlette. Vivre da11s la rue à Paris 105 A cidade islâmica·. com suas ruas sinuosas, suas casas de paredes cegas sobre a rua,
au XVII!' siecle, Galli mard, Paris, 1992. sua medina, é um ôtimo exemplo da contemporancidade desse tipo de espaço. Da
1m Joseph, Isaac. "L'espace public comme lieu d'action". in Espaces publics en vil/e, mesma forma, as "favelas" constituem também um exemplo e loqüente deste nosso
Annalcs de la Rccherche Urbaine, 1993, pp. 21 1·6. ponto de vista .

78 ft1f\ ....... 79
coisas e das ações que nele se passam, e a forma de organizá-
lo ou produzi-lo é solidária à forma da organização e da repro-
dução social e vice-versa. A segunda estabelece uma relação
ontológica entre um grupo e o local, ou melhor, uma identida- 111 -Os modelos políticos:
de ontologicamente fundada em um local. Que lugares para a cidadania moderna?
O Estado, a Nação e os Estados-nações

Em um conhecido e muito utilizado livro de geografia do


ensino médio, pode-se ler a propósito da África a seguinte afir-
mativa:

A partilha e a colonização desse continente, como já vimos,


foram feitas sem levar em consideração os interesses ou as carac-
terísticas culturais dos africanos. Povos semelhantes foram divi-
didos por fronteiras, e outros, muitas vezes inimigos tradicionais,
passaram a conviver no mesmo território, criado pelos coloniza-
dores europeus. Esse é um dos grandes problemas da África
negra, que persiste até os nossos dias: o artificialismo dos países
ou Estados-nações, que congregam etnias e culturas diversifica-
das, com idiomas diferentes e hábitos e tradições distintos,106

Neste pequeno texto percebemos o recurso a um raciocínio


sintético que identifica na colonização européia a causa funda-
mental dos problemas atuais vividos nesse continente. Esta
passagem sintética, da causa aos efeitos, é obtida pela seguinte
seqüência: o poder colonizador impôs um idioma e fronteiras,
criando unidades administrativas que, mais tarde, transforma-
ram-se em países independentes (Estados-nações), mas que
sofrem do "artificialismo" dessas fronteiras legadas pela colo-

106 Vesentini, J. W. Sociedade e espaço, Ed. Ática, São Paulo, 1992, p. 197.

80 )1flR. ~ 131
nização européia, resultando daí conflitos permanentes. Nessa "franceses", "alemães" e "ingleses" são produto de uma longa
argumentação, figuram como fortes subentendidos: a cada história e , assim como os idiomas, hábitos e tradições, começa-
etnia deve corresponder um Estado-nação; idiomas, hábitos e ram a ser vistos como elementos nacionais somente a partir do
tradições diferentes devem definir fronteiras entre países dife- final do século XVIII e, sobretudo, nos primeiros anos do sécu-
rentes; países são equivalentes a Estados-nações; quando esses lo Xrx.ros Ironicamente, somos presas daquilo que denuncia-
critérios são respeitados, as fronteiras são "naturais"; na maior mos, o colonialismo, só que, nesse caso, das idéias recebidas.
parte do mundo, salvo na África negra, esse foi o processo do- Nosso interesse fundamental no conjunto deste trabalho é
minante.l07 Tudo isso pretende ser extremamente lógico e evi- o de criar por meio dessas feiTamentas, genoespaço e nomoes-
dente; afinal, a França, a Alemanha e a Inglaterra, por exem- paço, instrumentos que nos ajudem a compreender certas dinâ-
plo, são Estados-nações estáveis, pois correspondem respecti- micas nas quais o espaço tem um papel fundamental, abrir no-
vamente aos países dos franceses, dos alemães e dos ingleses; vos campos para a pesquisa geográfica, mas, sobretudo, revis i-
falam idiomas próprios; e suas fronteiras correspondem assim tar alguns momentos da cultura teórica, que, segundo nosso
a recortes de etnias, idiomas, hábitos e tradições diferentes. ponto de vista, ao não centralizarem a dimensão da análise es-
O grande incômodo nessa economia dos argumentos que pacial, podem nos levar a um e ntendimento parcial de alguns
funda esse recurso sintético não se limita aos erros e impreci- fenômenos. Tal nos parece ser o caso de categorias como as de
sões sobre as dinâmicas socioterritoriais, fazendo uma tabula Estado e de Nação e, por consegui nte, a de Estado-nação, so-
rasa da complexidade dos processos históricos que deram ori- bretudo no uso que é feito pela geografia. Em outras palavras,
gem às nações modernas. O mais grave nesse raciocínio é que não se trata de re visitar o conjunto das discussões sobre o
ele nos leva a conceber equivocadamente que há um processo Estado Nacional; nossos objeti vos são simplesmente demons-
"natural" na constituição dos Estados-nações, que a nacionali- trar corno, a partir dessas matrizes, um outro ângulo pode ser
dade se confunde com a etnia, que o idioma, os hábitos e as tra- visualizado e urna temática verdadeiramente espacial pode ser
dições traçam recortes fundamentais entre os países e nos leva valorizada.
a concluir que a não-coincidência entre os limites étnicos e as O ponto principal que pretendemos discutir diz respeito à
fronteiras nacionais constitui sempre um problema, causador associação tantas vezes apresentada como óbvia entre naciona-
de conflitos e guerras. Tomamos alguns países europeus como lidade e cidadania. Segundo o ponto de vista aqui sustentado a
modelo absoluto desse processo. Esquecemos assim que os partir das idéias desenvolvidas em torno das matrizes, a cida-
dania tem uma origem e uma relação com o espaço muito
107 Esse mesmo recurso sintético aparece em quase todos os li vros de geografia que
tratam da África e constitui assim uma explicação quase "consensual" . Longe da pre- 108 Na França. é a partir desse momento que começam os relatos épicos sobre os cel-
tensão de ser exaustivo, podem ser citados ainda dois outros livros muito utilizados
tas e Vcncingétorix. a Gália e a civilização gallo-romana, os francos e o batismo de
no ensino médio. Cunha, Murilo A. Geografia Geral e do Brasil, Francisco Alves
ed., Rio de Janeiro, 1982 e Adas, Melhem Geografia Geral: Quadro político do Clóvis, o franco-cristão império de Carlos Magno e sua cemralit:ação territo1ial, os
mundo atual. ed. Moderna , São Paulo, 1979. O apelo a esse tipo de explicação não é, pri meiros Capetas e a defesa do território; enlim, de toda uma ideologia que pretende
no entanto, uma exclusividade dos livros didáticos. e podemos encontrá-lo igual- apresenrar uma França "nacional" e um povo "francês", muito antes de estes efeti va-
mente em publicações ~ni ve rsitáa , por exemplo, Mary. Cristina Pessanha "África: mente existirem como construções históricas, como se estas noções sempre estives-
De mundo exótico a periferia abandonada", in Globalização e fragmentação no sem presemes de forma latente, e, nesse sentido, esses eventos se transformam em
mundo contemporâneo, Haesbaert, R. (org.), EDUFF, Niterói, 1998, pp. 277-308. verdadeiros anunciadores de um destino i nexorável, a nação.

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diversa daquela que é estabelecida pela nacionalidade. Além construção de um mesmo espaço companilhado entre iguais,
disso, como veremos mais adiante (sobretudo nos capítulos VI uma vez que estão submetidos às mesmas regras, legitimadas
e VII), a discussão da cidadania, sob o ângulo dessas matrizes, pela racionalidade lógica e amparadas no ideal do bem co-
pode ser encaminhada sob diferentes escalas e se traduzirá mum. Exemplos disso são os princípios gerais enunciados pela
quadros de análise bastante espec íficos, mas manterá como Declaração dos Direitos do Homern e do Cidadão, originária
elemento de federação um tipo de relação com o espaço que é dos ideais da Revolução Francesa: igualdade, fraternidade e
sempre semelhante, o nomoespaço. O mesmo pode ser dito a liberdade. O espaço nacional define, pois, o limite de extensão
propósito da nacionalidade e de sua relação com o genoespaço, da validade de um ce1to contrato social em vigor naquele terri-
o que aproxima esse fenômeno de todas as outras manifesta- tório e no qual a obediência e o cumprimento são correspon-
ções que se fundam na idéia de diferença e de identidade. Para dentes à aceitação de sua justeza e de nossa adesão. Não signi-
esta demonstração, apresentamos rapidamente os regimes que fica que os termos desse contrato não possam ser modificados,
justificam a nacionaJidade e suas relações com um território; e sim que o compromisso maior está concentrado no respeito à
em seguida, examinaremos alguns problemas na fusão que lei, lei esta que é isonômica e geral, ancorada no ideal de justi-
comumente é feita entre Estado e Nação, tentando demonstrar ça. Esse regime é conhecido como direito de solo.
que estes problemas ocorrem justamente pela não-considera- No outro regime, a lógica que o preside corresponde a pri-
ção da filiação respectiva desses dois conceitos, pelo menos de vilegiar laços interpessoais de consangüinidade. A solidarieda-
forma clara, a essa dupla matriz. Finalmente, pretendemos mos- de supõe uma proximidade não apenas espacial, mas sobretudo
trar que no debate mais atual que é feito em torno da questão da de padrões, valores e costumes étnicos tradicionais, não com-
democracia nos Estados modernos, com posições antagônicas, partilhados por outros grupos. Nesse caso, o Estado nacional é
representadas sobretudo pelos argumentos multiculturalistas e o instrumento de preservação de uma diferença portadora de
seus opositores, elas podem também ser enriquecidas por esse grande significado e de uma identidade construída em uma
ângulo de análise que privilegia essa dupla filiação. ambiente físico, este também particular e único. A preservação
As leis que deram origem aos Estados modernos seguem desse espaço singular significa a garantia da fonte provedora da
globalmente duas lógicas e dois regimes na atribuição da na- diferenciação que deu margem à formação daquela comunidade
cionalidade. Por um lado, no primeiro regime, são reconheci- nacional. Em geral, nesse regime são as mães as responsáveis
dos como nacionais todos aqueles que nasceram no território pelas linhagens do reconhecimento. Este regime é conhecido
controlado pelo Estado e que não foram, por punição ou vonta- como direito de sangue. No mundo atual vigoram ambos siste-
de, excluídos dos direitos e deveres conferidos a essa naciona- mas, havendo tanto países que reconhecem o direito do solo
lidade. Por outro lado, o segundo regime prevê que dispõem da quanto aqueles em que são reconhecidos os direitos de sangue.
mesma nacionalidade todos aqueles que, tendo ou não nascido Ainda que os regimes jurídicos sejam ditados por esses
sobre um mesmo território, compartilham de uma herança princípios gerais, a legislação tende a matizá-los com disposi-
comum própria àquela nacionalidade. ções secundárias bastante restritivas. Na França, por exemplo,
A lógica do primeiro tipo de regime supõe que os laços de onde vigora o direito de solo, o filho de imigrantes disporá da
fraternidade e solidariedade se firmam na coexistência, na nacionalidade francesa desde que tenha vivido os cinco últi-
mos anos antes de sua maioridade no território francês e terá
84 A
ainda que fazer uma declaração de opção pela nacionalidade esforçaram para restaurar da tradição romana tudo aquilo que as
desse p aís, abdicando daquela dos seus pais. Na Alemanha, pmlcssem fazer escapar aos compromissos de submissão inter-
onde teoricamente o direito de sangue é a base da legislação, pessoal característicos desse período. O número, a quantidade e
há, por exemplo, inúmeras restrições, quanto ao número de .t impo1tância dessas comunidades podem ser, portanto, uma das
gerações para as quais o reconhecimento ainda é passível de chaves para a compreensão das diferenças relativas à aplicação
validade.I09 de certas medidas que privilegiam um ou outro regime.
Tradicionalmente, a existência desses dois regimes tem Tal vez pareça temerário, porém, pretendermos demonstrar
sido explicada por meio das heranças do Direito Romano, por que o conceito de cidadania só é aplicável inteiramente ao pri-
um lado, e dos direitos consuetudinários das tribos germânicas, meiro caso. I li Cidadão, segundo a perspectiva que é defendida
por outro. Estas últimas, não possuíam leis escritas, códigos :.~qu i , corresponde a um estatuto derivado de um certo contrato
gerais, os costumes variando de aldeia para aldeia sob a tutela social. Trata-se, pois, de uma comunidade de direito que se
das autoridades locais, que tinham grande apreço pelas linha- funda na delimitação e qualificação formal de um território. O
gens e pela solidariedade fundada na parentela, o que teria Estado é, pois, a única instituição que cria e dispõem meios
derivado no reconhecimento dos laços consangüíneos como para estabelecer e outorgar uma verdadeira cidadania. Quanto
relações determinantes. Já o Direito Romano, pela sua tradição àqueles que estão submetidos simplesmente ao direito de san-
territorial, na competência das diversas magistraturas, pelo gue, sobre eles podemos apenas dizer que são sujeitos nacio-
princípio de isonomia e pelo exercício geral das leis em todo o nais e serão cidadãos, na medida em que estejam s imultanea-
espaço sob seu domínio, teria derivado no direito do solo.IIO A mente abrigados sob uma instituição formal estatal.
explicação é válida, embora um pouco esquemática, pois sabe- Quanto à nação, já houve quem dissesse q ue sua constru-
mos quanto as linhagens e as filiações foram importantes, tam- ção se funda em uma narrativa: uma na(rra)ção.m Esta narra-
bém no Império Romano, como criadoras de círculos de afini- tiva tem por objeto demonstrar a inexorabilidade do destino
dades e privilégios. comum de um povo, sua especificidade histórica, sua particu-
O fato é que, na Idade Média, os princípios do Direito Ro- laridade cultural e sua singularidade evolutiva em função das
mano se misturaram em doses muito variáveis com outros siste- condições naturais do território nacional.ll3 Ela mostra tarn-
mas, mas desde o começo do século XII houve uma larga reto-
mada de seus princípios partindo do Norte da península da Itália lll Temerário, mas nem tanto, se considerarmos como necessária a associação entre

e do Sul da França, e depois se expandindo por quase toda a Eu- as idéias de ridadania e de cidade como o fizemos anteriormente. Nesse sentido,
Max Weber também manifestava dúvidas a propósito da validade de chamar de
ropa. As comunidades urbanas foram as que mais fortemente se "cidade" as grandes aglomerações chinesas ou outras da Antigüidade, questionando
se essas seriam apenas massas hierarquicamente ordenadas, sem a organização diver-
sificada que caracterizaria Veneza, AmsLerdã, Bruges e outras. Dentro desta perspec-
109 Recentes discussões no FDP (partido liberal) e mesmo em parte do CDU (partido
tiva, Duvigna ud afirma também que as sociedades patriarcais e feudais ignoram
dt:mocrata-cristão) previam um projeto de modificação da legislação do direito de
completamente a idéia de cidade e acrescenta que "Corinto, do V século a.C. é mais
sangue e a aceitação da extensão do direito de nacionalidade aos filhos de imigrantes próxima de Siena do lrecemo que uma ou outra o eram do mundo que as envolvia".
nascidos na Alemanha. Die Zeit, apud Courriu !mernalional, maio de 1997, p. 16. Duvignaud, Jean do Lieux et non lieux, Ed. Galilée, Paris, 1977, p.16.
110 Até mesmo para os filhos bastardos era fácil adquirir a nacionalidade romana, uma
m Said, E. lmperialism and culture, op cit.
vez que esse direito não era transmitido pelo sangue, mas pelo nome. Em Roma, o pai 113 Sobre o processo de constituição de uma "identidade narrativa", na qual a soma das
era o responsável pe la "legitimação", e as mães respondiam pela "naturalidade" dos histórias de um personagem o sing ulariza em face dos outros, veja: Ricoeur, Paul.
nascimentos. Temps et récil, T. !11, Paris, Seuil, 1985.

86 ,llflf\ \ .al,a; BI
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bém como esse território foi objeto de lutas e conquistas, e de pios. Isso explica, por exemplo, o universalismo daDeclaraçüo
oposições a outros povos. Ela demonstra, por fim, a necessida- dos direitos do homem e do cidadão, direitos estes que se
de desse solo para a sobrevivência do povo e de sua cultura. A somam tanto direitos naturais quanto direitos cívicos, de uma
identidade de um povo é, neste sentido, fundada em uma iden- comunidade política estabelecida, não pelo sentimento vago de
tidade territorial, neste caso a do território nacional. O discur- compartilhar uma história, uma cultura particular ou um terri-
so narrativo nacional trabalha, pois, com uma dimensão teleo- tório singular, mas por uma adesão a um contrato.
lógica, do destino de um povo confundido com o controle de
um dado espaço, particular, concreto e único. ll4 Duas concepções muito diferentes da nação se cruzam: a concep-
A origem de nossa confusão em torno desses conceitos de ção democrática revolucionária e a concepção nacionalista. A
Estado e de Nação parece advir do fato de a partir do século assimilação Estado =nação =povo se aplica às duas, mas para os
XVIII, e mais caracteristicamente do século XIX, haver um nacionalistas a criação de entidades políticas que comportavam
grande movimento que pretendia juntar essas duas noções em essa assimilação resultaria da preexistência de alguma comunida-
uma só, o Estado-nação. Isto foi realizado mediante a soma dos de se distinguindo dos estrangeiros, enquanto, do ponto de vista
atributos do primeiro à segunda, sem que as zonas de exclusão democrático revolucionário, o conceito central de nação era o
entre as duas noções aparecessem. De forma esquemática, esse poder soberano dos cidadãos, identificado ao Estado, que, em re-
movimento tentou unir, num mesmo território, as projeções lação ao resto da Humanidade, constituía uma nação.Jt5
obtidas a partir das leis que fundam o Estado e seus limites, e a
imagem de um sentimento de pertencimento a uma comunida-
Esse ponto de vista é, em parte, também compartilhado por
de identitária. Neste último, isso corresponderia a participar de
Isaiah Berlin, que diferencia dois principais tipos de nacionalis-
uma gama variada de valores uniformes e próprios (cultura,
mos o primeiro: que ele chama de sentimento nacional, ou
história, patrimônio, língua etc.), que delimitariam um mesmo
consciência de participar de uma nação, de uma comunidade
recorte, de forma coincidente com as fronteiras definidas pelo
Estado. política. O outro, segundo Berlin, é portador de muitos perigos,
De fato há uma cultura que é fundada pela aceitação do impõe-se como uma convicção de que os homens pertencem a
contrato social, mas ela tem uma natureza e um caráter inteira- um grupo bem-definido e que os modos de vida desse grupo se
mente diverso. Trata-se de uma cultura que podemos chamar diferenciam dos outros; que o caráter dos indivíduos desse
de pública ou democrática, ou seja, há um certo número deva- grupo é um modelo para o resto do grupo; que ele se defme pela
lores que devem ser vividos por esses indivíduos, os da justiça posse de um território singular; que há uma comunhão de valo-
social, liberdade individual, ética comportamental, moral lógi- res, costumes e, às vezes, linhagem étnica; que a natureza das
ca etc. Fora destes valores, as diferenças são por princípio infi- relações no seio da nação é orgânica; e que a supremacia nacio-
nitas e aceitas na medida em que não intercedam nesses princí- nal é inquestionável, o que dá origem a um verdadeiro culto.l l6

114 A esse respeito ver também Gellner. E. Nations and narionalism, Oxford, 1993, e 115 Hobsbawn, Eric. Nations et 11ationalisme depuis 1780, Gallimard, Paris, 1990, p. 35.
Hobsbawm, E. & Ranger, T. (orgs.). The invention ofrradition, Cambridge, 1983. 11 6Berlin, lsaiah. A comre-courallt, Essai sur l'histoire des idées, Albin Michel,
Paris, 1988, pp. 355-61.

88 )lf1f\
(
Atualmente, podem-se encontrar distinções semelhantes uação culturaJ.ll7 Essa argumentação peca, no entanto, por n1lo se
na diferenciação estabelecida entre um nacionalismo cívico em dar conta das numerosas ambigüidades dos propósitos de Renan,
relação a um nacionalismo étnico ou culturalista. O fato a que, aliás, teve uma apropliação ulterior marcada pela compreen-
sublinhar é que, na primeira forma, o nacionalismo correspon- s.lo ambivalente (retomado por Barres e Maurras, por exemplo,
de de fato à idéia de Estado, uma comunidade política definida fundadores de posições nacionalistas extremas no começo do sé-
por um estado de direito. Há diferenças entre as regras aplica- culo XX, na França). Peca também por não reconstituir o contex-
das por cada Estado, e o conceito de nação corresponde assim lo no qual a conferência foi proferida, no ano de 1870, em plena
às particularidades históricas de cada uma dessas construções. disputa pelo controle da Alsácia. Em relação ao Discurso, de
Na segunda forma, a nação é um recorte fundamental da dife- Fichte, o contexto é ainda mais complexo; admirador da Revolu-
rença entre comunidades; ela se define por uma homogênea ção Francesa e da liberdade por ela instaurada, ele escreve, em
vivência de valores, aspirações, crenças e costumes, e, para que 1807, seu discurso em Berlim, ocupada pelas tropas napoleônicas.
esta singular unidade do gênero humano sobreviva, precisa de Toda essa situação, embora colabore para uma ambígua
um território onde possa reproduzir seu modo de vida único. compreensão dos propósitos contidos nesse termo nação, não
Assim, constatamos que a categoria "nação" pode existir sob esco nde completamente uma variação sensível que se deixa
dois registros bastante diferentes, diríamos mesmo duas formas perceber historicamente. De fato, a palavra nação é conhecida
opostas de se estabelecer uma relação com o espaço: na primei- desde a Antigüidade, mas seu sentido sofreu grandes modifica-
ra, um nomoespaço e, na segunda, um genoespaço. ções ao longo do tempo. Uma das mais marcantes mudanças
ocorreu no começo do século XIX, quando, depois das guerras
Muitos utilizam essa distinção binária, entre uma nação con-
napoleônicas, uma grande parte do território da Europa, libera-
tratual e uma nação orgânica, como modelos históricos que opo-
do das antigas e complexas redes administrativas dinásticas,
riam a França à Alemanha. O mais grave em tal composição que
confrontou-se com o problema das fronteiras dos novos esta-
quer fazer coincidir modelos teóricos "puros" com processos his- dos que se formavam. É nesse momento que surge a imagem
tóricos específicos é a dificuldade de se interpretar a complexida- da nação como o reflexo perfeito da idéia de uma comunidade
de desses processos, que nunca obedecem ao percurso esquemá- territorial identitária. Um pouco antes, como podemos com-
tico e linear da explicação lógica. Por isso, insistimos que as provar pelos textos fundadores da Revolução Francesa, a pala-
idéias de um nomoespaço e de um genoespaço, na base dessas vra nação era ainda utilizada como sinônimo de povo, popula-
duas compreensões da nação, não correspondem a individualida- ção ou conjunto de indivíduos. Esta é a idéia, por exemplo, do
des históricas puras, sendo apenas modelos analíticos. Co- artigo 3~ da Declaração, de 1789, que nos fala da nação como
mumente, são utilizadas como peças de demonstração desse princípio de toda soberania.l l8
ponto de vista fusionador de um modelo e de um processo histó-
117 Mas ele afirma também na mesma oportunidade que "a nação é uma alma, um
rico o Discurso à nação alemã, de Fichte, contraposto à confe- princípio espiritual", e acrescenta a importância do culto dos ancestrais e do passado
rência de Renan, O que é uma nação? e sua frase de efeito: "Um glorioso. construído em conj unto, temas que poderiam muito bem ser atribuídos a um
pensamento próximo do Romantismo alemão. Renan, Ernest. Qu 'est·ce qu'une
plebiscito de todos os dias", corno elemento decisivo para opor o narion ?, Agora. Paris. 1992, p. 54.
118 Picard: Etienne". La notion de citoyenneté". in Qu'est-ce que la société, Univer.!ité
modelo francês, de uma nação política, ao da Alemanha, de uma de tous les savoirs, Michaud, Y. (di r.). vol 3. Ec..l. Odile Jacob, Paris, 2000, pp. 711-3 1.

90 )1[1f\, a&l.aâ DI
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Ulteriormente, o termo nação foi majoritariamente empre- cionalismo popular de grande força. Houve uma busca por pro-
gado no sentido de uma comunidade de destino cultural e etni- teção que recaía sobre a comunidade imediata por parte <.la
camente identitárla. Apenas para exemplificar essas ambigüida- população desamparada, em um momento de grandes transfor-
des, notemos que no texto da constituição da 11 República fran- mações sociais na Europa. Ainda assim, esse forte sentimento
cesa, de 1848, pode-se ler, por exemplo, no artigo VI: "Os cida- de enraizamento a uma pequena esfera identitária não conduziu
dãos devem amar a Pátria, servir à República, defendê-la ao a verdadeiras tentativas de criar novos Estados-nações de
preço de suas vidas, participar dos encargos do Estado em pro- pequenas dimensões; tal fenômeno ainda estava reservado a
porção de sua fortuna( ... )." Percebe-se assim que nesse período, uma escala de extensão que conespondia aos grandes Estados
ainda que o amálgama já estivesse feito, ou seja, Nação e Estado soberanos europeus, e não ocorria a ninguém reclamar um fra-
se correspondessem, a nuance é que a Pátria ou a nação, deve- cionamento maior. Entretanto. a partir dos anos 1870, os
mos amar, e ao Estado, devemos encargos. Na Constituição Estados em via de modernização viram, nesse sentimento de
Francesa, da VI República, de 1946, o vocabulário varia segun- enraizamento, a possibilidade de criar um instrumento extrema-
do o tipo de direito ou dever e vemos uma longa série de subs- mente potente, integrando-o ao "pauiotismo de Estado":
tantivos, utilizados como sinônimos de um mesmo grupo ou de
uma mesma unidade territorial: a "nação", a "nação francesa", a Naturalmente, isso foi freqüentemente possível pela simples
"República", a "República francesa", a "França", a '1Jnião fran- projeção sobre o "grande" país do sentimento autêntico, existen-
cesa" e, o mais surpreendente, "as nações e povos" que com- cial, de identificação com seu "pequeno" país (... ). Pelo simples
põem a França, quando a referência quer incluir os domínios ter- fato de se tornar um "povo", os cidadãos de um país se tornaram
ritoriais herdados do colonialismo. Por fim, notemos rapida- uma espécie de comunidade, ainda que imaginária, e seus mem-
mente que a convenção européia de salvaguarda dos direitos do bros começaram a procurar, e se deram, coisas em comum, luga-
homem e das liberdades fundamentais, assinada por todos os res, práticas, heróis, lembranças, signos e símbolos (...). De
países membros da União Européia, escrita em 1951 e emenda- forma mais geral, o problema teórico, tão bem resumido no
da em 1997, utiliza sempre o termo "Estados", salvo no artigo grande Tableau de la géographie de la F rance, de Vida! de La
15, quando fala da ameaça de guerra "à nação".119
Blache, datado de 1903, foi resolvido em quase todos Estados-
De fato, este amálgama entre o Estado e a Nação parece ter
nações: "Como um fragmento da superfície terrestre que não é
tido seu primeiro grande momento por volta do primeiro quarto nem península, nem ilha, e que a geografia física não saberia
do século XIX, quando a diplomacia européia criou o "princípio considerar propriamente como um todo, elevou-se ao estado de
das nacionalidades", que redesenhou o mapa da Europa. Segun- unidade política e se tornou enfim uma pátria?" Pois toda nação,
do Hobsbawm, a esse primeiro momento se seguiu um protona- mesmo de tamanho médio, devia construir sua unidade sobre a
base de uma disparidade evidente.l20
119Segundo Magnoli , um processo correlato pode ser observado no Brasil, se acom·
panharmos a evolução do discurso de José Bonifácio de Andrada e Silva, que passa
de referências ao " território" brasileiro, à "pátria" e finalmente à "nação", como urna
reação à política de recolonização portuguesa. É, aliás, nesse momento que ele situa
o nascimento da "nação brasileira". Magnoli, Demétrio. O corpo da pátria, Unesp,
São Pau lo, 1998, pp. 91-2. 12o Hobsbawm, Eric, op. cit., pp. 117-8.

92 )1111\
Os riscos da fusão do "patriotismo de Estado" com esse nação, o papel do Estado e a crise ou reforma necessária dos
nacionalismo eram muitos, já que os critérios que os delimitam l ~s tados- na ções ganharam novamente a ordem do dia com a
são de natureza bastante diversa. Ainda segundo Hobsbawm, a queda do Muro de Berlim, com o problema dos Bálcãs e com a
doutrina do presidente Wilson de "a cada nação um Estado", recrudescência de alguns movimentos nacionalistas, Quebec,
que marcou as negociações ao final da Primeira Grande Guerra, Catalunha, País Basco, Irlanda, entre outros.l22 Os termos do
já era um indício da existência de um novo nacionalismo, este debate são agora variados: autodeterminação dos povos, direi-
muito mais agressivo e muito menos comprometido com o lo à diferença, subculturas, crise do Estado, falência do indivi-
"patriotismo de Estado" e, portanto, com uma sociedade de dualismo, novo comunitarismo etc.
direito. A segregação territorial, o racismo, a limpeza étnica, a Uma das vertentes mais interessantes desse debate tem
xenofobia e a depuração das línguas foram algumas das caracte- sido trazida pelo multiculturalismo e pela crítica que ele vem
tisticas desse movimento. recebendo por parte de pensadores que pretendem reafirmar a
As conseqüências foram os grandes deslocamentos e mas- pertinência de um projeto de sociedade de direito, ou para usar
sacres de populações: armênios, gregos, judeus etc. Segundo um dos termos aqui empregados, de um nomoespaço.L23
Noiriel, O multiculturalismo parte de uma manobra simples, ou
mesmo simplista, que é a de transferir diretamente o raciocínio
é preciso ter em mente as duas facetas da definição da nação (a relativo a um indivíduo à cultura, ou seja, a um grupo.I24 Uma
cidadania e a identidade) para compreender porque a defesa do cultura terá o direito de existir desde que ela se caracterize pela
princípio das nacionalidades resultou, muito rapidamente, em diferença em relação aos outros grupos. Segundo Taylor, um
situações políticas explosivas. Na parte oriental da Europa e nos dos mais representativos autores dessa perspectiva, alguns gru-
Bálcãs a mistura de línguas, costumes, religiões impedia a cons- pos têm necessidade de um reconhecimento positivo de sua
tituição de Estados nacionais a partir de critérios nacionalitá- "identidade única":
rios. t2t

Em diversas regiões foram organizados plebiscitos, e, ainda


que os resultados surpreendessem pela disposição das popula-
122 No Brasil. esse debate aparece também sob a forma de discussão da questão indí-
ções que, muitas vezes, preferiram permanecer em um território gena, mas ainda com muita timidez e muito cuidado. ou sej a, poucos se arriscam a
onde a língua oficial seria diferente de sua língua materna, ou de abordar o tema sobre o lugar. a legitimidade, o estatuto e o interesse de manter e pre·
servar os "índios" dentro da nação brasi leira.
muitos poloneses que preferiram se integrar à Alemanha, eslo-
m Essa noção de multiculturalismo foi criada no Canadá, no começo dos anos 70. e se
venos à Áustria etc., esta doutrina continuou sendo fortemente tornou um princípio constitucional em 1982, visando ao reconhecimento público da
aplicada, mesmo após a Segunda Grande Guerra. diversidade cultural e da variedade étnica da população canadense. Ela foi também
uma urma eticaz contra as demandas de reconhecimento feitas pela comunidade de
N os últimos anos do século XX, o debate sobre o lugar da origem francesa (para mais detalhes, veja o último capítulo deste livro). Hoje, sob essa
denominação. encontramos uma verdadeira orientação do pensamento político.
124 Sobre a pretensa unidade entre comunidade cultural e comunidade política, assim
21 Noiriel, Gérard. "La constructi on historique de la n~tio", in Qu 'est-ce que la como os usos polfticos, por certos segmentos da populaçao, da construção de uma
société, Université de tous les savoirs, Michaud, Y. (dir.), vol. 3, Ed. Odile Jacob, idéia de cultura como patrimônio comum e coletivo ("invenção das tradições"), vcju
P·tris, 2000, pp. 739-48. a análise de Bayard, Jean·François. L 'illusion identilaire, Fayard, Pari s. 1996.

94 ftú\
Existe uma política de respeito igual, embutida no liberalismo dos que estamos falando de comunidades fundadas em tradições,
direitos, que não é hospitaleira à diferença, visto que ela repousa em costumes, enfim, em valores, que muitas vezes se afirmam
sobre uma aplicação uniforme das regras que definem esses direi- c se nutrem pela oposição aos outros grupos. Como vimos, a
tos, sem exceção, e uma vez que ela é bastante desconfiada em base do raciocínio democrático é, em última instância, a lei
relação aos anseios coletivos.I25 estabelecida e baseada em um princípio de justiça que dificil-
mente se conjugaria com a afirmação de direitos diferentes a
Os traços que marcam a distinção são variados e corres- grupos diferentes.l27
pondero a uma gama infinita de características que vão desde a O terceiro ponto importante ad vém do fato de que esta
morfologia sexual, homens e mulheres, às manifestações da , identidade compartida entre membros de um grupo que se defi-
sexualidade, homossexuais, femininos e masculinos, às classes nem por suas diferenças foi e é uma estratégia ele luta eficaz e
sociais, passando por etnias, religião, língua etc., diversidade
muitas vezes libertadora. O nacionalismo, no início dos tem-
que pode ser acrescida também do caráter muito ambíguo de
pos modernos, foi o instrumento que conquistou a liberdade ao
algumas destas noções.J26 Cada uma dessas identidades exis-
j ugo das submissões originárias de tradições impostas à força
tenciais, para se afirmar como autonomias, de':'em correspon-
pelos grandes impérios. Ele foi o instrumento efetivo na desco-
der a um território, uma vez que, como já vimos, as diferenças
lonização e é uma força atuante na criação de esferas mais ou
sociais significativas, para ser efetivamente vividas como dife-
menos independentes na dinâmica atual da formação de gran-
renças, devem estar relacionadas a um espaço de distinção ou,
se preferirmos, de segregação. des blocos políticos. As armadilhas, no entanto, são muitas.
O que o multiculturalismo não nos responde é como proce- A primeira é a ele não se saber até onde impor limites ao
der a esse fracionamento do espaço para que ele corresponda reconhecimento das diferenças, uma vez que elas podem sem-
exatamente a essa multiplicidade de critérios, quando aliás pre ser mobilizadas em níveis quase infinitos. Assim, os argu-
sabemos desde o início que essas identidades não são exclusi- mentos que forjam uma unidade em um determinado momen-
vas e se manifestam de fmma variada no tempo e no espaço. to são os mesmos que podem precipitar uma progressiva frag-
Ele também não nos diz como é possível o reconhecimento, já mentação, uma vez que se trata de um reconhecimento funda-
que essa conquista de direitos deve se passar em um espaço do em uma percepção bastante circunstancial e subj etiva do
público, estatuto este que o próprio particularismo, ao se afrr- sentimento de unidade segundo variadas modalidades.J28 Este
mar, está negando. raciocínio é, pois, uma tautologia. A segunda armadilha se
O segundo ponto problemático do multiculturalismo é a
confusão entre comunidade política cívica e comunidade cul-
121 O segLJndo princípio da Teoria da Justiça de John Rawls, segundo o qual as desi-
tural. O apelo à idéia de democracia é paradoxal na medida em
gualdades só podem ser admitidas como juslas quando proporcionam benefício aos
membros ma is desfavorecidos, dá margem à idéia de uma justiça distribuliva, no
e ntanto, este princ(pio de diferença está submetido às regras de base da teoria da jus-
12s Taylor, Charles, Multiculturalisme: Différence et démocratie, Champs Flam-
liça, os quais concernem aos indivíduos e garantem, primeiramente, um direito igual
marion, Paris, 1994, p. 83.
à liberdade para todos. Rawls, John. A Theory of Justice, Havard University P r e~s.
t26 Mais uma vez, recomendamos a leitura de Hobsbawm, E., op. cit.• em que ele exa-
Cambridge, 1971.
mina cada um desses critérios desconstruindo sistematicamente a pretendida objetivi-
128 Ver a este respeito, Dieckhoff, Alain. La narion dans rous ses Érars, Flammuritm,
dade desses recLJrsos.
Pans, 2000, especialmente o cap. VII, "A temação seccionisla".

96 )lll1\ ~ '1 /
titui no fato de que, ao, se utilizar esta arma, o efeito é quase Esse espaço é o lugar da lei e, poderíamos ac rescentar,
sempre duplo: por um lado há uma mobilização e unidade, contrário às manifestações identitárias, sobretudo aquelas que
facilmente operacional na condução de oposições, mas, por rd1cte m as tradicionais e irrefletidas posições nacionali stas. A
outro, ela gera imediatamente um rígido limite exclusivo, do posição de uma democracia radical, pós-nacional, nos termos
qual muitos outros segmentos sociais, inicialmente não visa- J c Habermas, deve dissociar qualquer ligação entre cidadania
dos, terminam por ser também excluídos. A terceira e mais c nacionalidade e substituir o culto à nação pelo "patriotismo
grave é a de criar um terreno no qual as normas serão reafirma- constilucional", sentimento que une um grupo de pessoas aos
deras de uma certa diferença e, portanto, fortemente .injustas princípios próprios do estado de direito.
quando confrontadas a um conjunto de pessoas que repartem Antes de finalizannos esta apresentação sobre a discussão de
em graus variáveis essa identidade. Estado e de nação, e sua impottância para a compreensão de um
A posição de Habermas é frontalmente contrária aos juízos 11omoespaço e de um genoespaço, voltemos ao exemplo que abre
comunitaristas, defendidos, por exemplo, pelo multicultural is- esta apresentação sobre a "artificial idade" das fronte iras legadas
mo.l29 Para ele, é necessário definir normas, valores e papéis que pela descolonização na África. Segundo a explicação mais cor-
sejam compartilhados por todas as sociedades; para isso, revisita rente na geografia, ao não respeitar os limites das etnias os colo-
a teoria sociológica do direito e a teoria filosófica da justiça, para nizadores estabeleceram acordos de fronteiras que tinham ape-
demonstrar como "a velha promessa de uma auto-organização nas relação com seus interesses ou com sua força para se impor
jurídica de c idadãos livres e iguais pode ser concebida nas condi- aos outros colonizadores. Por não respeitar os limites "naturais"
ções de uma sociedade complexa".l30 Um dos pontos fundamen- das nações africanas, os novos países são freqüentemente vítimas
tais dessa possibilidade se encontra no espaço público, sobre o de lutas interétnicas que fraturam o tecido social e impedem que
qual se repercutem os problemas, um espaço que está ao alcance se estabeleçam uma ordem justa e a paz social.
de todos e, portanto, passível de garantir as condições de uma Há nessa explicação, aparentemente simples, problemas
verdadeira atividade comunicacional: estamos talvez mais aptos a discernir após esta breve apresenta-
ção. A idéia de fronteiras "naturais", que coincidiriam com os
O espaço público pode ser mais bem definido como uma rede limites da ocupação territorial das etnias, é falsa, pois sabemos
permitindo comunicar conteúdos e tomadas de decisão e, portan- que a maioria esmagadora dos Estados modernos, mesmo os
to, de opiniões; os fluxos da comunicação são aí filtrados e sin- mais antigos, não são constituídos por uma única etnia; sabemos
tetizados nele de maneira a condensar em opiniões públicas rea- também quanto esse critério é ambíguo, pois se defme a partir
grupadas.t3l de um padrão de "pureza" dificilmente reconhecido na média de
uma população. 132 Assim, descrevemos um critério para estabe-

129 Para um comentário de Habermas sobre as posições de Taylor, veja Habermas, J. 132 Há, aliás. autores que procuram demonstrar que, em grande parte, a i dentidade
L'lmégration républü:aine: Essais de théorie politique, Fayard, Paris, 1998, especial- étnica na África foi também uma consu·ução dos tempos da colonização, tratando-se.
mente a terceira parte. pois, de um fenômeno eminentemente moderno e paralelo ao processo do "Estado
130 Habermas, J. Droit et Démocratie, Gallimard, Paris, 1992, p. 21. importado", e não uma ressurgência da cultura tradicional. Bayard, Jean-François.
131Jdem, p. 387. L'lllusion idelllilaire, Fayard, Paris, 1996, pp. 43-4.

98 ~
lecer fronteiras nacionais que dificilmente é encontrado nos povos.l34 De fato nesta explicação, tão banal e cotidianamc ntú
modelos históricos das nações que conhecemos. repetida, encontramos as várias dimensões da confusa relação
Da mesma forma, a explicação geográfica, ao "naturalizar" teórica entre Estados, nações e Estados-nações.I35
este processo, omite justamente os ingredientes históricos e
geopolíticos dessas construções, ou seja, desperdiçamos aqui-
lo que é seu material analítico mais rico, os elementos e o con-
texto de sua produção, e os processos particulares que indivi-
duaUzam tais representações:

Toda nação é uma idéia política que afirma a unidade histórica


de seus membros se opondo a uma periferia estrangeira mais ou
menos hostil. Toda nação é uma representação geopolítica que,
após ter sido lançada em certas circunstâncias históricas por pen-
sadores militantes, conseguiu progressivamente a adesão da
maior parte da população de um Estado ou de um território.m

Sabemos também que, no caso da África, os problemas e


conflitos ocorrem fundamentalmente pelo fato de que não são
respeitados os princípios básicos de um estado de direito, ou
seja, a isonomia, a igualdade e a justiça social são desrespeita-
das em detrimento de uma solidariedade fundada na identidade
étnica. Assim, as perseguições, os obstáculos impostos aos
grupos minoritários, os privilégios obtidos pelas etnias domi-
nantes, tudo isso é devido à não-constituição de um verdadeiro
estado de direito, de um Estado moderno e democrático. Além
disso, os Estados precederam o nacionalismo, não o contrário,
e, poderíamos ainda acrescentar, os Estados-nações são o pro-
duto de um momento, e não um destino inexorável na vida dos 134 No Brasil, uma mitologia comumente utilizada e acei ta é a apresentação de uma
"inversão" excepcional, tendo o Estado precedido a nação. Nesta mitologia há ainda
a pressuposição de que o tetritório brasileiro foi "dado" nesse processo de construçilo
do E stado-nação brasileiro . A respeito deste "equívoco", veja por exemplo,
Machado, Lia O. "A questão da unidade territorial do Brasil", Anais do 8? Encomro
Naciorzal dos Geógrafos, 1990, Salvador, v. li.
133 Lacoste, Yves. "Nation Brésil", in Hérodote, n\' 98, 2000, pp. 3-8. 135 Para um exemplo histórico das relações mutantes entre o estado e a nação, veja
Verriere, Jacques. Genese de la nationfrançaise, Champs Flammarion, Paris, 2000 .

100 fi1)\, .&lu I o I


de desenvolvimento. Essa foi a resposta de Herder à idéia
chave do Iluminismo de um progresso irreversível, uniforme c
geral da Humanidade, um progresso baseado na disseminação
do bom senso e da racionalidade lógica.
IV - Os modelos sociológicos:
A Humanidade não é para ele um conjunto de indivíduos
Os espaços da civilização ou unidos por uma semelhança racional abstrata, mas sim um
territórios das culturas agrupamento de nações que são autênticas individualidades
históricas pela maneira como conceberam o trabalho, a trans-
formação do seu ambiente natural, a sua língua, a sua cultura.
Por isso, valorizava o reconhecimento dos climas, das canções
No final do século XVIII, o filósofo e exegeta Johann G. populares, da literatura popular, dos mitos e, sobretudo, dos
Herde produziu obras que pretendiam ser uma reação e uma idiomas e das linguagens Iocais.m Todos esses valores eram
resposta às idéias iluministas de interpretação da história e da muito pouco respeitados por uma aristocracia alemã que falava
evolução das sociedades. Essas idéias, originárias em grande francês e procurava se comportar segundo as regras cosmopo-
parte da França, vinham se impondo com força na Europa litas do mundo d ito "civilizado".
Ocidental e serviam, fundamentalmente, como um modelo Nações são, segundo tal raciocínio, as unidades mínimas
para as elites alemãs da época, contra as quais exatamente se de inteligibilidade de todas as ações humanas. No processo de
insurgiu Herder. Para ele, a Terra é constituída de formas e desenvolvimento delas são realizadas escolhas orientadas e
associações naturais fundamentalmente diferentes e por povos limitadas relativamente pelo tipo de ambiente no qual esta
igualmente diversos. Acreditava ele que essa diferenciação nação está assentada. Trata-se, pois, de um gênero de vida
estava, aliás, intimamente relacionada. adaptado às condições naturais e aos anseios construídos indi-
vidualmente por cada cultura. Cada nação opera sobre seu
Qualquer dispositivo que o homem possa imaginar que foi pro- ambiente, criando fisionomias e "personalidades" no espaço.
duzido completamente por ele mesmo está, no entanto, submeti- A ligação entre um povo e seu território original é assim vital
do à innuência da natureza exterior no desenvolvimento de suas para sua reprodução e sobrevivência. A partir dessa concep-
faculdades . 136 ção, Herder pôde afirmar a existência de uma harmonia nessas
relações entre natureza e sociedade, mediada pela cultura que
Eram culturas diversas, trabalhando a partir de condições se estabelece no seio de diferentes nações.138 A tradição, aqui-
ambientais e materiais diferentes, que teriam resultado em uni- lo que foi espontaneamente herdado de tempos anteriores, é o
dades particulares, sínteses da relação cultura-ambiente: as
nações. Assim, essas unidades, as nações, marcam a natureza e 137 A palavra "clima", no raciocínio de Herder, tem uma extensão muito maior do que
a história com o cunho da diversidade dos processos singulares aquela hoje atribuída a ela. Na verdade, atualmente esta palavra correspondcria mui to
mais à idéia de ambiente.

I
ns As semelhanças do pensamento de Hcrder com as idéias de K. Ritter e com a orien-
D6 ll erder, Johann G. fdées sur la philosophie de l'histoire de /'humanité, Agora, tação da Escola Francesa de Geografia não são fortuitas. Aliás, basta substituir o nome
Paris, 199l,p. l37. nação pelo de região para encontrarmos argumentações perfeitamenle análogas.

102 fo~ ..W I o•,

I
maior patrimônio dessas nações, a marca de sua singularidade turas africanas e asiáticas, sobretudo à chinesa, inspirado certa-
e a prova de que aquelas escolhas haviam sido feitas correta- mente nos preconceitos comuns à sua época.
mente, uma vez que se perpetuaram. Sintetizando, poderíamos repetir com Dumontl39 que
As nações são assim um todo orgânico composto basica- llerder foi um dos inauguradores de uma ideologia que terá a sua
mente da relação sintética entre culturas e ambientes diversos. continuação na modernidade e que consiste a ver o indivíduo
Herder via nessa variedade original um plano urdido por Deus não como uma unidade autônoma, consciente e livre para acei-
para oferecer à Humanidade toda uma gama de possibilidades lar ou refutar compromissos com base na análise racional como
de desenvolvimento. A manutenção das condições de autonomia o queria o Iluminismo, mas como um indivíduo que só existe
das nações era, pois, uma necessidade para manter esses desíg- t:omo parte de uma comunidade de destino, fruto de uma especi-
nios em vigor. É dentro dessa perspectiva que podemos entender ficidade cultural e local. A cultura para Herder tem um local que
toda a sua oposição às dinâmicas de formação dos Estados llle é próprio e ontológico, território e cultura formando um todo
modernos. Criação artificial, instituidor de normas gerais e des- orgânico que necessita de autonomia para poder realizar seu
respeitadoras das singularidades locais, esses Estados significa- pleno desenvolvimento.
vam um empobrecimento das nações, na medida em que preten-
diam criar uma entidade hegemônica com modelos uniformes. Ao estudar as mentalidades predominantes que evoluíram
Esta seria a finalidade do gênio nacional, gênio este que na Europa a partir do século XVIII, Norbert Elias distinguiu o
seria para ele o verdadeiro produtor da diversidade e da plena que para ele são duas formas diferentes dessa evolução. Ele
realização intelectual e moral da Humanidade. Sua pregação aponta para os processos sociogenéticos "inequivocamente
contra a colonização se justifica pelos mesmos motivos. Ainda opostos" implicados nos conceitos de civilização e de cultura
que reconheça alguma superioridade nos "gêneros de vida" (Kultur). Civilização é a expressão da pretensa superioridade do
desenvolvidos na Europa Ocidental, estes não poderiam ser Ocidente erigida em consciência social. Exp1ime a idéia de um
impostos indiscriminadamente à custa do esmagamento de
progresso geral e il!eversível que conduz ao estabelecimento de
outras nações e sob pena de se corromper, pois perderiam suas
um código de condutas lógico, vütuoso e justo. O apelo à civili-
dimensões locais originais.
zação nos dois últimos séculos tem sido marcado pela suposição
Tido por muitos como o pai do relativismo cultural, de fato
da superioridade das sociedades ocidentais, de seu comporta-
o discurso geral de Herder nos leva a desenvolver um raciocí-
mento, formador de uma Humanidade coesa, justa e equilibrada,
nio de respeito às diferenças. Elas existem, pois são fruto de
uma vez que se constitui por intermédio do respeito às regras
formas orgânicas no relacionamento sociedade-natureza. Mas
que delimitam as fronteiras da liberdade individual dentro de um
não nos esqueçamos do contexto no qual ele desenvolveu suas
idéias, um momento de revalorização da cultura alemã, coloca- universo plural. De certa forma, esta consciência civilizatória é
da em face da hegemônica civilização francesa em face da que vista como já alcançada pela maioria dos povos ocidentais,
pretendia ser o modelo universal de todas as culturas. Se havia, devendo apenas ser expandida para que haja uma plena realiza-
pois, essa preocupação em resgatar a importância das culturas ção da Humanidade em seu verdadeiro sentido.
locais, fundadas em um determinado contexto ambiental e
segundo valores e critérios culturais, isso não o impediu de 139 Dumont, Louis. O individualismo: Uma perspectiva antropológica da ideologii1
modema, Rocco, Rio de Janeiro, 1985.
expressar opiniões extremamente negativas em relação às cul-
a&iu I()',
Ainda que este seja o sentido predominante dado ao con- da França e vistos como universais, permaneceu fechada ao
ceito de Civilização, construído como um modelo geral, sobre- ingresso das classes médias burguesas. Isso explica em grande
tudo pelo contexto francês no processo de substituição do parte o caráter distinto do nacionalismo alemão, que foi emer-
Antigo Regime no Século das Luzes, ele não é o único. A gindo com a ascensão dessas classes médias. O território ale-
palavra civilização, para os alemães (Zivilisation), tem conota- mão, fragmentado em inúmeras unidades soberanas , deu lugar
ções muito diversas, dado o caráter específico das transforma- a disputas e conflitos, origem de exclusões mútuas e de um
ções vividas pela Alemanha nessa época. Seu emprego em ale- processo no qual há a legitimação de alguns tipos de diferen-
mão costuma significar uma aparência externa, algo superfi- ças. O estabelecimento de um modelo unificador foi, portanto,
cial, desprovido de autenticidade, sinceridade e espontaneidade. dificultado por esta dinâmica e a construção de uma nacionali-
Segundo Elias, a palavra pela qual os alemães se interpretam, dade se fez por meio de uma identidade alicerçada numa difu-
que expressa, a sua vaidade e o orgulho de suas realizações, é sa estrutura das emoções, na linguagem e em expressões pró-
Kultur. As realizações, os livros, os sistemas filo~ ' pficos e reli- prias expostas em obras de arte, vistas como unificadoras de
giosos as obras de arte exprimem repetidamente!no contexto uma maneira de ser particular e distinta.
I

alemão os ideais de "amor à natureza e à liber_5!-ade, exaltação O mesmo não ocorreu na França ou na Inglaterra, o nde os
solitária, a rendição às emoções do coração, sem o freio da valores da aristocracia, antes a ela exclusivos, foram em grande
razão fria",l40 Por meio deste conceito valoriza-se não o movi- parte assumidos pela burguesia em ascensão nesses países.
mento ou a dinâmica regular e formal da interação social, mas O comportamento da corte aos poucos foi se transformando em
sim as realizações ou obras, nas quais se realizam de forma comportamento social geral e desejável para todos. Cortesia, po-
estável a individualidade e a personalidade de um povo: lidez, civilidade e urbanidade foram as denominações atribuídas
a esse padrão de comportamento, generalizado, "bom para to-
Até certo ponto, o conceito de civilização minimiza as diferenças dos". Ainda que tais palavras indiquem uma certa similaridade
nacionais entre os povos: enfatizao que é comum a todos os seres de sentido, há entre elas diferenças sutis, mas significativas.
humanos ou- na opinião dos que o possuem -deveria sê-lo [...]. De fato, a cortesia era a palavra utilizada predominante-
Em contraste, o conceito alemão de Kultur dá ênfase especial às mente na Idade Média como padrão do bom comportamento e
diferenças nacionais e à identidade particular de grupos,l41 estava em grande parte associada à sociedade cavalheiresca.
Segundo Elias, nesse momento ainda não se impunha uma
parede invisível às emoções na relação com os outros, como
As diferenças nesses conceitos não são dadas, mas foram
mais tarde se constituiria. Ainda segundo ele, o conceito de
construídas por meio de processos particulares. Na Alemanha,
courtoisie diminuiu gradativamente a partir do século XVII,
a ru.istocracia, seguidora em grande parte dos valores oriundos
sendo substituído, primeiro, por civilidade e mais tarde por
urbanidade. Essa mudança está associada ao fato de que os
homens dos séculos XVIII e XIX tiveram que se defrontar com
140 Elias. Norbert. O processo civilizador- Uma hisrória elos cosrumes, vol. I, Jorge
Zahar ed., Rio de Janeiro, 1994, p. 36. uma vida de relações muito mais intensas, em que a atenção ao
141 Idem, pp. 24-5. outro não poderia prescindir da observação e do controle dos

I 06 )lflJ\ .... 10/


comportamentos sociais. Poderíamos acrescentar que os qua- seus significados correlatos, muda em significação e função: de
dros espaciais do comportamento também se modificaram antítese primária social torna-se primariamente naciona[.t42
substancialmente. A corte, de onde se origina a expressão cor-
tesia, é uma unidade fundada em um grupo social; a urbanida- Essa é a estratégia. A fragmentação territorial elege a cul-
de, oriunda de urbi, a cidade, fundamenta-se em um comporta- l ura como elemento de unificação e diferenciação. Os valores
mento espacializado, ou ainda, em um espaço que define e é proclamados pelo Iluminismo francês, ao contrário, têm uma
definido por um certo comportamento. hase cosmopolita e se pretendem, gerais, uniformes e inteligí-
Nesse relato de Elias, a relação entre a espacialidade e a veis por todos. Urbanidade é um conjunto de atitudes e com-
diferenciação dos processos sociais ainda pode ser um pouco portamentos que dá ênfase à reciprocidade entre indivíduos
mais explorada. Por um lado, uma sociedade alemã dos estratos diferentes, mas expostos a um lugar de permanentes trocas
mais populares, pouco cosmopolita, fragmentada territorial- sociais, a urbe. A cidade é, pois, nesse modelo o locus da tem-
mente, elege a distinção, a diferenciação, como elemento fun- perança, do controle das pulsões individuais e da ordem esta-
damental de valorização, o que a torna única, em face da nacio- belecida sobre bases racionais e lógicas.143 Podemos portanto,
nalidad: ~onstruída sobre valores proclafados pelos centros concluir que civilização e cultura, nos termos em que nos são
hegemomcos da cultura cosmopolita ~á época, a França e descritas por Elias, compõem dois quadros distintos em rela-
Inglaterra. De certa forma, ele não nos diz mas podemos con- ção ao espaço, opostos e antagônicos.
/ '
cluir que o apelo à cultura foi a estratégia capaz de criar uma
individualidade, que, embora sobrevalorizando a diferenciação, O modelo fundamental, de maior impacto e posteridade,
possuísse uma base territorial, dada nesse caso pela idéia de fundado sobre a oposição entre dois sistemas sociais, é nos
cultura, capaz de englobar o conjunto dos territórios de cultura apresentado no final do século XIX pelo sociólogo alemão F.
germânica. De fato, a refutação maior é ao cosmopolitismo, às Tonnies. Ele distingue, a partir dos quadros de organização da
vida em comum, traços diversos na origem das vontades
atitudes gerais e uniformes e a um espaço construído e constru-
humanas: de um lado, a vontade orgânica (Wesenwille) e do
tor de regras ditadas pela "razão fria". Há, por assim dizer, uma
outro, a vontade refletida (Kurwille).I44 Estes dois tipos de
sensibilidade que é pretensamente geral no território da
vontade são, para ele, as raízes do comportamento humano e,
Alemanha e que é simultaneamente particular a ela em relação
portanto, as bases para a compreensão das relações sociais.
aos outros Estados.
Em relação ao primeiro tipo, ele se constrói dentro de um
contexto afetivo e um domínio de ações concreto, personaliza-
Como experiência subjacente à formulação de pares de opostos
do. Origina um tipo de organização social comunitário - a Ge-
como "profundeza" e "superficialidade", "honestidade" e "falsi-
meinschaft. Trata-se de um todo orgânico, dominado por laços
dade", "polidez de fachada" e "autêntica virtude", e dos quais,
entre outras coisas, brota a antítese entre Zivilisation e Kultur,
142 Elias, Norbert, op. cit., p. 46.
descobrimos, em uma fase particular do desenvolvimento ale- 143 Esse, aliás, é o ponto de vista de Elias em seu outro livro, Elias, Norbert. La dyna·
mique de /'Orcident, Agora, Paris, 1969.
mão, a tensão entre intelligentsia de classe média e a aristocracia
144 Tõnnies, F. Communauté et société. Catégories fondamentales de la sociologie
cortesã. (... ] A antítese entre Kultur e Zivilisation, com todos os pure, PUF, Paris, 1944.

108 )lfÚ\ .alia I U' J


naturais familiares ou de afinidades, em que o interesse dos segunda era é dada quando as cidades se desenvolvem a partir das
membros se identifica completamente com a vida do conjunto. aldeias. As aldeias e as cidades formam juntas o princípio espacial
No segundo tipo, predominam as vontades refletidas, justifica- da vida comum em lugar do princípio temporal da família (da raça
das por mecanismos lógicos por relações formais. Esse é o e do povo). Pois este princípio tem, por assim dizer, suas raízes in-
modelo da Gesellschaft. Sua tendência é ver nesses dois tipos visíveis e metafísicas sob a terra, uma vez que provêm de ances-
de modelo o quadro evolutivo fundamental da Humanidade, ou trais comuns. As gerações passadas e futuras, o passado e o futuro
seja, da Idade Média à Modernidade haveria uma tendência em geral, é que ligam os vivos. Em oposição, a terra física e real é
geral de os laços formais virem a substituir os laços de solida- o lugar imutável, o país [pays] visível, pelo qual as relações mais
riedade baseados em linhagens ou na parentela.l4S fortes tornam-se necessárias. Durante a era da comunidade
As relações comunitárias são regidas pela tradição, pelos [Gemeinschaft], esse princípio espacial mais recente permanece,
todavia, ligado ao princípio temporal, mais antigo. Na era da so-
costumes, e sobre os indivíduos pesa um controle social exer-
ciedade [gese/lschaft] , ele se separa, e é nisso que consiste a exis-
cido em nome do espírito do grupo. O caráter dessas relações é
tência da grande cidade. Esta é ao mesmo tempo, como o seu no-
emotivo, pois vive da exaltação do espírito comum e dos laços
me indica, a expressão transbordante e desmesurada da forma
afetivos de dependência e domínio, "laços orgânicos", naturais
urbana e do princípio espacial.
e espontâneos; por isso, são também conhecidas como socieda-
des "quentes". Já na Gesellschaji, as pessoas "njidSão organi- Assim, a grande cidade é a forma mais evoluída; ela dá
camente ligadas, mas sim organicamenteseparadas".l46 São inclusive iní9io a uma nova era, durante a qual os princípios do
indivíduos que, ainda que colaborando em diferentes associa- direito, frios e formais, tendem a reduzir ao mini mo as relações
ções, mantêm-se independentes em suas ações, seus interesses "quentes", do tipo familiar ou comunitário. Existem três aspec-
e seus julgamentos. Esses indivíduos são regidos por laços for- tos importantes a discutir sobre essas idéias.
mais do direito mantêm relações sociais baseadas na constru- O primeiro é a importância em seu raciocínio da organiza-
ção de um espaço político; estas sociedades são por isso tam- ção espacial na definição da evolução da sociedade. De certa
bém conhecidas como "frias". forma, antes de qualquer geógrafo, ele estabeleceu que o tipo
A associação entre esses dois tipos de relações sociais e o de construção do espaço define-se como uma condição funda-
espaço nos é apresentada por Tonnies da seguinte maneira: dora de novas dinâmicas sociais. O princípio espacial não é
uma leitura do espaço como reflexo da sociedade, mas sim a
A primeira era se forma pela ação de uma base da vida comum, formação de práticas a partir de arranjos territoriais resultando
base que é representada pela terra c ulti vada e pela vizinhança, ao em novos formatos da vida social no espaço.
lado da velha base constiruída pelos laços de sangue e persistente O segundo aspecto importante é que, para Tonnies, a pre-
na nova, pela aldeia [village] tomando lugar ao lado da família. A dominância do que ele chamou de princípios, o temporal e o
espacial, são formas de evolução social. Assim, a criação de um
espaço político, portanto de urna territorialidade, é privilégio
145 Esta tipologia de Tõnnies talvez tenha sido a fonte de inspiração para a d istinção

utilizada por Durkileim entre relações mecãnicas e orgânicas. Durklleim reprovava, no


das sociedades de direito. Nesse sentido, é corno se as comuni-
entanto, a compreensão individual, quase psicológica. da orientação de Tõnn ies. dades, fundadas em laços de consangüinidade ou afinidade, não
146 Tõnnies F., op. cit., p. 15.
estabelecessem vínculos espaciais, mas apenas temporais.

11 o ftl]\ a&W 111


Por fim, o terceiro aspecto que gostaríamos de assinalar é
o fato de Tonnies chamar o espaço político de "grande cidade".
Teria sido possível ele ter associado essa nova forma, advinda
da evolução do princípio espacial, de Estado. A decisão de
V- Os limites metodológicos
identificar a sociedade moderna à "grande cidade" se explica,
em primeiro lugar, pelo fato de que em grande parte Tonnies dos modelos de
associava a comunidade ao universo rural e, parafraseando nomoespaço e genoespaço
Marx, propunha ver a História como um resumo da oposição
campo-cidade.t47 Em segundo lugar, a grande cidade, como ele
nos diz, é o trasbordamento da forma em dois sentidos, o da
forma política, associação entre indivíduos, espaço de regras e A tipologia legada por Tonnies teve um destino singular na
da racionalidade lógica do julgamento e, simultaneamente, o sociologia. Inspiradora de muitas outras, ela foi, no entanto,
da expansão física da forma urbana. Em resumo, se nos for pouco citada e, quando o foi, as críticas sempre prevaleceram
pe1mitido dizer, é o trasbordamento da polis, da cidade, como sobre a apreciação de suas possíveis virtudes. Tornado muitas
nós tentamos definir aqui, desde o início deste trabalho. vezes como marxista, ele foi criticado pelos liberais. Os mar-
xistas, no entanto, reconheciam-no como um social democrata
tradicio$alista, querendo ressuscitar as velhas hierarquias
. _____ _/ comunitárias e também o criticaram muito. De qualquer forma,
sua obra teve uma repercussão forte, embora controvertida, e
ele foi lido e comentado por Durkheim e Weber, tendo este
reconhecido a importância de seu trabalho na criação de um
verdadeiro campo para a sociologia.
Pedra angular de muitas outras, essa tipologia está na base
de diversas distinções feitas entre as sociedades tradicionais e
as sociedades modemas.I48 Isso corresponde a dizer que ela foi
também comumente utilizada para caracterizar grandes exten-
sões no tempo e no espaço. Corno vimos anteriormente, o pró-
prio Tonnies acreditava que a transformação dos laços comu-
nitários em laços formais poderia explicar melhor os modelos
de relações sociais dos tempos medievais aos nossos dias. De

148 Durkheim, por exemplo, utilizou a expressão sociedades segmentárias territoriais


para exprimir a qualidade dos grupos em que as "articulações sociais essenciais corres-
pendem às divisões territoriais". Durkheim, E. Division du travail social, PP· l89-21 O,
147 Tonnies, F., op. cit., p. 239. apud As regras do método sociológico, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1972, p. 54 .

112 )1Jl1\ ..... 11 '·


alguma maneira, o modelo comunitário se identifica com as intermédio de seu conceito de ideologia, a perspectiva de
sociedades sem Estado, desde as comun idades primitivas até Tonnies . Não se trata mais de um comportamento baseado na
as "sobreviventes" atuais, e o modelo societal estaria represen- distinção de vontades individuais; para Dumont, as sociedades
tado sempre que a regulamentação social se fizesse por meio se estruturam sob modelos de cultura, modelos estes que criam
de estruturas estatais.l49 bases de coerência globais.l5t Homo aequalis e homo hierar-
Em relação à extensão espacial, ainda nos dias atuais, na quicus correspondem aproximadamente à idéia de Gesells-
Europa e nos EUA, fala-se comumente em sociedades ociden- c.:haft e Gemeinschaft, respectivamente. Sociedades tradicio-
tais, vistas como individualistas, democráticas, estruturadas na nais, da manutenção dos costumes, dos hábitos, das hierar-
racionalidade lógica, nos direitos dos homens e dos cidadãos, e quias, das diferenças, opõem-se assim à maior parte das socie-
nas outras sociedades não-ocidentais (orientais?), p renhes de dades modernas, que partem de uma base de igualdade da con-
tradições, obedientes às hierarquias do prestígio e fundadas dição humana, sendo formais e progressivas.
sobretudo em laços comunitários. De fato, a despeito da Há, no entanto, muitas críticas metodológicas relativas à
nomenclatura, a localização dessas unidades não segue uma tipologia inspirada nesse modelo de oposição criado por
coerência cardeal, e o mundo Ocidental é identificado ao que, Tónnies. A primeira está construída em tomo da dúvida relativa
em anos anteriores, era denominado como "mundo desenvolvi- à organicidade natural e espontânea da Gemeinschaft, à sua
do". Já o que não é ocidental inclui a África, a América Latina idéia de harmonia, concórdia e unanimidade coletiva. Muitos
e a Ásia (sem o Japão), ou seja, constitui o que nas décadas pas- são os que criticam essa pretensa homogeneidade. Gurvitch, por
sadas era conhecido como "mundo subdesenvolvido". Esta exemplo; não acredita que o conceito de comunidade, o qual
classificação não deixa, aliás, de fazer eco também ao evolucio- repousa sobre a idéia de comunhão espontânea, possa caracteri-
nismo, pois o mundo não.,ócidental é caracterizado pelo "atra- zar qualquer conjunto social por inteiro, uma vez que assim se
so" de suas instJpç _ g~s " icost umes . Veremos a seguir como um faz tabula rasa da diversidade de investimentos e interesses que
dos problemas críticos da idéia de Gemeinschaft na sociologia cercam este aparente consenso.l52 Boudon desconfia de que este
se relaciona exatamente à incipiente reflexão sobre o espaço.tso modelo globalizante possa de alguma forma ter poder explicati-
Entre os autores modernos, L. Dumont pode ser visto vo e ressalta que sob essas pressuposições analíticas, que traba-
como um dos exemplos claros de inspiração nos conceitos de lham segundo uma perspectiva holística, as imagens concep-
Gesellschaft e Gemeinschaft, pois, de certa forma, retoma, por tuais são, na verdade, sempre simplistas. Para ele, nenhum
grupo social pode ser visto sob o ponto de vista de uma totalida-
de coerente, uma vez que pode despir os atores sociais de toda
149 Essa posição é bastante contestada. Para Clastres, por exemplo, não há uma ausên- iniciativa.t53 Ele faz assim eco às hesitações de Parsons, na uti-
cia de espaço político nas sociedades sem Estado, mas uma forma de poder diferente,
que não está baseada na coerção ou no monopólio da violência legítima. Veja, por
exemplo, Clastres, P. "Copérnico e os selvagens", in Sociedade contra o Estado, 151 Dumont, L. Homo hierarquicus: Le systeme des castes et ses implications,
Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1982.
Gallimard, Paris, 1979, e Homo aequalis: Genese et épanouissement de l'idéologie
150 Esse problema já foi profLmdamcnte examinado por Poche; suas conclusões, no
éronomique, Gallimard, Paris, 1977.
entanto, diferem das nossas, uma vez que concebemos que essas distinções binárias
1s2 Gurvitch, G. La vocation actuelle de la sociologie, PUF, Paris, 1963.
podem ter grande valor analítico, desde que sejam vistas exclusivamen te como mode- JSJ Boudon, R. "[ndividualisme et holisme dans les sciences sociales", in Sur L'indi-
lo. Poche, Bcrnard. L'espace fragmenté. Éléments pour une analyse sociologique de la vidualisme, Birnbaum, P. & Leca J. (dir.), Presses de la Fondation Nationale des
terriwrialité, L' Harmattan, Paris, 1996.
Sciences Politiques, Paris, 1991, pp. I 09-31.

114 )IJl1\
i!

bem coletivo e agem de forma a confundir os seus interesses


lização do conceito de comunidade, que conduz a um entendi-
mento de todas as ações sociais sob a forma de relações induzi- com os de todos.
Neste, ponto. M. Weber pode trazer uma relevante contri-
das segundo um único critério, o da organicidade do conjunto. A
idéia de comunidade local, por exemplo, é contestada, na medi- buição, quando afirma:
da em que toda a trama das ações se vê circunscrita à contigüi-
As idéias que governaram os homens de uma época, isto é, aque-
dade do espaço.IS4 Há, segundo ele, muitos outros laços, de
las que agiram de uma maneira difusa neles, não podem, uma
natureza diversa, que poderiam nos remeter a uma variedade de
critérios, não-homogêneos, que se incluiriam igualmente nessa vez que se trata de um quadro de pensamento um pouco compli-
categoria de comunidade tenitorial. cado, ser compreendidas com ri gor conceptual senão sob a
Já Elias critica Parsons quando este sugere que haja uma forma de um tipo-ideal, pela simples razão de que elas tratavam
oposição nos comportamentos sociais guiados respectivamente empiricamente um número de homens indeterminado e variável
pela afetividade e pela neutralidade afetiva.ISS A natureza está- e que tomavam em cada um deles os matizes mais variados
tica dos conceitos de Parsons o levaria a estabelecer estados quanto à forma e ao fundo, quanto à clareza e ao senhdo. Os ele-
onde, na verdade, existem processos complexos. Para Elias, a mentos da vida espiritual dos diversos indivíduos de uma época
análise por meio de pares de conceitos, estáticos e antitéticos, é determinada da Idade Média, por exemplo, que nós podemos
um equívoco, que empobrece a análise sociológica pela limita- designar pelo termo de "cristianismo" dos indivíduos em ques-
ção metodológica.I 56 tão , formariam naturalmente, ainda que estivéssemos aptos a
Numerosos outros, por meio de reconstituições históricas expô-los integralmente, um caos de relações intelectuais e senti-
do Período Medieval ou do acompanhamento de casos, procu- mentos de todas as sortes, infinitamente diversos e contraditórios
ram demonstrar a~/o's:iblade de conceber um grupo s oci~l ao mais alto nível, mesmo considerando que na Idade Média a
em que todas-as-açoes SeJam d1tadas e controladas por um senti- Igreja tenha tido certamente a capacidade de afirmar em uma
mento de afinidade, sem que se constituam comunidades políti- grande medida a unidade da fé e dos costumes.J57
cas. Isso quer dizer que, em alguma medida, há intenções e pro-
pósitos contextuais, calculados racionalmente, com o objetivo Esta argumentação de Weber dissolve, em grande parte, as
de atingir certos fins. Nestes exemplos, muitas vezes, é demons- críticas apresentadas anteriormente. Os argumentos que ali-
trado como o tradicionalismo, o espírito comunitário ou o senti- mentam as hesitações levantadas por estes críticos tin ham em
mento de identidade são fruto de variadas circunstâncias deses- sua maior parte considerado a questão da distância e da impre-
tabilizadoras para o grupo ou para alguns de seus elementos, que cisão dos conceitos de Gemeinschaft e de Gesellschaft em rela-
procuram tentar fundir seus objetivos com a própria imagem do ção aos casos específicos, sobretudo no que diz respeito à uni-
formidade e homogeneidade relativa aos critérios que levam a
esta classificação, a saber: os dois tipos de vontade que guiam
154 Parsons, T. Th e ;·truNure ofsotial Action. Fr e~ Press, New York, t. ll, pp. 689-90. as ações sociais. Estes conceitos, todavia, podem ser vistos,
Citado por Badie, B. "Communauté, individualisme et culturc", in Birnbaum, P. Leca
J. (dir.), op. cit., pp. 109·3 1.
1 ~5 O que remete, sem dúvida, à idéia de sociedade:> quent:>~ sociedades frias.
157 Weber, M. Essaís sur la théorie de la science, Plon, Paris, 1965, p. 189.
1 ~6 Elias, Norbcrt, op. dt., p. 219.

...... 117
I 16 ,J1ll.f\
não como expressões fenomênicas puras, mas sim, conforme t·ssa identidade não é um dado irredutível da realidade, mas
recomenda Weber, como construções logicamente possíveis. •.un uma construção, que associa de maneira vital e orgânica os
Por meio desse raciocínio poderemos também justificar a v111c ulos entre um grupo e seu território. Cada manifestação
utilização dos conceitos de Tonnies em nossos propósitos de deste tipo de territorialidade tem, no entanto, seus interesses,
demonstrar que eles nos oferecem um quadro formal de análise, -. uas propriedades e seu alcance definido em contextos que lhes
que não é um quadro médio, não corresponde a nenhum caso o.,ao próprios. A significação conferida e o tipo de discurso que
específico e nem tem a pretensão de responder a todas as ques- -.ustenta essa identidade socioterritorial podem ser a cada mo-
tões relativas à organização espacial. Esse quadro pode ser, mento muito diferentes, como, aliás já havíamos dito. Etnia,
entretanto, bastante útil na discussão das relações entre poder e consangüinidade, religião, cultura etc. podem ser, juntos ou
espaço ao distinguir formas de territorialidade, como aquele que separadamente, os elementos ativos desse discurso.
foi esboçado no estabelecimento das matrizes territoriais. Essa
tipologia pode também guiar a análise de casos específicos, O que nos interessa na conduta de um homem no seio das relações
desde que a territorialidade seja sempre pensada necessariamen- sociais é especificamente particularizado em cada caso, segundo a
te em relação aos contextos sociais nos quais ela se constrói. significação cultural específica da relação em questão.IS<J
Nesse sentido, não se trata de tomar a idéia de nomoespaço
e de genoespaço como "estados" antitéticos do espaço, mas Em termos muito simples, não é o fato substantivo de coa-
sim como estratégias mobilizadas em momentos diversos e bitar um espaço, seja ele o de uma casa, de uma aldeia, de um
contextos diferentes, que nos ajudam a compreender certos bairro ou de uma região, que pode nos levar a compreender o
processos socioespaciais. Diríamos que esta perspectiva se fenômeno da identidade territorial, mas sim a significação que
aproxima da idéia de trama, em que os atores assumem deter- essa contigüidade espacial ganha dentro de um contexto espe-
minados comprt~ehs que só podem ser compreendidos cífico. As formas como esta identidade é vtvida, como ela é
dentro da sequêiiêia do enredo e sem que os perfis dos perso- representada para aqueles que fazem parte do grupo ou para os
nagens por eles desempenhados se esgotem nesses comporta- que se situam exteriormente a ele correspondem a imagens que
mentos ou que estes tenham uma dimensão necessária na com- têm operacionalidade para a mobilização social. A pergunta a
posição da história. ISS ser feita não é, pois, o que é a identidade territorial comunitá-
O sentimento de identidade e de pertencimento, por exem- ria, como se a resposta pudesse transcender todos os contextos
plo, embora subjetivo, tem sempre um sentido. Como tentamos e pudesse afirmar um sentido essencial ao fato de coabitar.
demonstrar, esta identidade é simultaneamente uma forma de A pergunta deve ser o que significa, em um dado momento,
relação social e uma forma de representação espac ial q ue em uma dete1minada situação, manifestar-se uma solidariedade
resulta em um certo tipo de territorialidade. Em outros termos, construída em torno de uma vizinhança ou de um espaço que
qualifica as pessoas como semelhantes. Essa questão pode se es-
158 Esta idéia de tra ma foi primeiramente desenvolvida por Latour. Veja, por exemplo,
tender e inquirir a propósito das estratégias de controle e dorni-
Latour, Bruno. "Joliot: l'lústoire etla physique mêlées" , in Éléments d 'lti.1toire des
sl'ienres, Serres, M. (org.), Bordas, Paris, 1991, pp. 493-5 14.
159 Weber, M. Essais sur la théorie de la scie12ce, Plon, Paris, 1965, p. 178.

11 8 ~
. . . 1 19
nio espacial que são postas em prática, assim como as suas ope- relativa à forma como as pessoas usam o território, como elas
racionalidades e seus interesses. Isso corresponde a dizer que a estão organizadas no espaço e como são atribuídos valores e
identidade comunitária é fruto de circunstâncias específicas, sentidos a um lugar.
reversível e variável em sua intensidade e eficiência. Nesse sentido, é um grave erro imaginar, como se faz comu-
A identidade comunitária territorial não é assim desprovida mente, que nas sociedades comunitárias "o espaço do político
de racionalidade, não retira dos personagens individuais suas remete ao grupo, e não ao território" ou, mais grave ainda, que a
responsabilidades na ação social, nem submete toda a possibi- construção de um espaço político é "monopolizada pela cons-
lidade de afirmação de indivíduos que agem segundo fins, por trução de um Estado e pelo papel individual da cidadania, que
isso, aliás, ela não é incompreensível para aqueles que a inves- colocaria em questão os modelos comunitários".I62 A identida-
tigam. Assim, a "totalidade coerente" não é um dado da reali- de territorial da comunidade é a construção de um espaço políti-
dade que podemos contestar, uma vez que compreendemos os co, a forma de mobilização, o discurso que congrega, imprime a
variados interesses dos seus diferentes atores. Ela é isso sim, idéia de consenso e representa o grupo, pois é a própria defini-
uma imagem operacional dentro de uma certa dinâmica, uma ção dele. Mais uma vez, segundo Sack, a territorialidade é uma
forma de representação. forma de classificação das coisas pelo espaço e de definir coisas
Entretanto, é necessário compreender que representação sem enumerá-las; nesse caso, classificando-as como nossas ou
não quer dizer farsa. Para aqueles que são os atores não há o estranhas a nós.
recuo reflexivo para compreender esse sentimento como ação \
simbólica. Nem por isso essa identidade é uma ilusão, nem um
cálculo maquiavélico para o exercício de um poder. A repre- O recurso às matrizes como modo
sentação fupda uma realidade em que as pessoas de um grupo de operação analítico
vivem sua~ relações de vizinhança, sangüínea ou não, como
definidora,J essenciais de sua maneira de ser. Como nos ensina As idéias de nomoespaço e de genoespaço podem constituir
Gertv,·~ real é tão imaginado quanto o imaginário".l60 ferramentas bastante úteis para descrever a complexidade
Segundo Sack, a territorialidade humana se define como socioespacial. Todavia, esse recurso analítico só será de grande
uma estratégia para afetar, influenciar ou controlar recursos e valia se evitarmos conceber essa tipologia como uma imagem
pessoas, controlando uma área.l61 É a forma de expressão geo- correspondente a exemplos Jimpidamente concretos. Tais tipos
gráfica do poder social. Seu uso depende de quem a está são instrumentos, modelos, que podem ressaltar determinadas
influenciando ou controlando e dos contextos espaciais e tem- características dos fenômenos, neste caso, relativas à territoria-
porais nos quais essa territorialidade se exerce. E1a é por isso lidade ou, em outras palavras, diferentes formas de referência ao

160 Geertz, Clifford. Negara: O Estado teatro no século XIX, Difel, Rio de Janeiro,
1980, p. 170. 162 Badie, B. "Communauté, lndividualisme et cullure", in Bimbaum, P. Leca J. (dir.),
161 Sack, Robert D. Human territoriality: lts theory and history, Cambridge, pp. 109-31, op. cit. Tomamos como exemplo as palavras de Badie, mas de fato esse é
Cambridge University Press, 1986. um raciocínio bastante difundido nas ciências sociais.

120 )lf1f\
espaço definido por essas dinâmicas. Elas não correspondem a dio; a significação desse espaço, seu comportamento, suas
nenhum caso concreto e não podem por isso traduzir toda a estratégias e seus interesses nele é que são fundamentalmente
complexidade envolvida em diferentes contextos históricos e diferentes nas duas situações. Cidadão e membro de uma
espaciais. São, por assim dizer, idealizações, exageros, simplifi- "tribo" convivem na mesma pessoa sem que haja necessaria-
cações, mas têm a utilidade de produzir um quadro de análise mente distúrbios de personalidade. A mesma praça que de dia
coerente e lógico de determinadas manifestações fenomênicas. é um território de descanso e amenidade do espetáculo da vida
Seu uso aqui neste trabalho se aproxima da idéia de tipo-ideal da pública pode, à noite, transformar-se em terreno de urna gan-
proposta metodológica weberlana e é somente nesse sentido que gue em luta contra a polícia.t64
nossas matrizes devem ser compreendidas.IG3 Percebemos a distinção dos comportamentos mas ainda
assim esses comportamentos díspares podem se abrigar em
Iniciamos esta apresentação das matrizes propondo queima- uma mesma pessoa ou em um mesmo grupo. Da mesma forma,
ginássemos que haveria duas formas de ser do espaço ou duas pode não haver diferença dos objetos espaciais, mas há a praça
formas de ser-no-espaço, mutuamente exclusivas. Gostaríamos pública e a praça de guerra. As d iferenças estão na significa-
de finalizar propondo exatamente o inverso, ou seja, que vislum- ção. Seria mais fácil se uma mudança de comportamento esti-
bremos essas duas formas como coexistências, no tempo históri- vesse sempre associada a uma forma, e justamente por ser mais
co e na atualidade, na área de uma praça ou na metrópole, coexis- fácil é que alguns de nós insistem em criar morfologias expli-
tindo no seio de um mesmo grupo ou na vida de um mesmo indi- cativas. Fazemos nossas as palavras de Geertz:
víduo. O recurso de separá-las serve para vê-las unidas de uma
forma melhor, fora do caos das singularidades excepcionais. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um an imal
O homem que trabalha, vota, paga impostos e circula amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a
como cida4ão pela cidade pode ser o mesmo que nos domingos cultura como sendo essas teias e a sua aná lise; portanto, não
se reúne dom os seus companheiros de torcida e se dirige uni- como uma ciência experimental em busca de leis, mas como
uma ciência interpretativa, à procura de significados.J65
formizáêÍo ao estádio, ocupando e disputando com os adversá-
rios os ônibus, as ruas e determinados lugares no estádio; ou se
Poderíamos substituir a palavra cultura pela palavra espa-
veste de tagger e reúne seu grupo de pichadores e recobre à
ço, e a ciênc ia interpretativa em pauta seria então a geografia.
noite, talvez, os mesmos muros por onde passou de dia, com
Acreditamos, pois, que nossas matrizes podem interpretar cer-
suas mensagens cifradas. O caminho, ou o tenitório, que o leva
tos comportamentos territoriais, tanto o do cidadão quanto o do
ao trabalho pode ser semelhante àquele que o conduz ao está-
membro tribal, sem que precisemos, para isso, considerar que
se tratam de duas pessoas distintas. A distinção é, antes de

163 Nada há de inovador nesse uso, uma vez que alguns comentadores da obra de
Weber já ressaltaram a inspiração que a tipologia de Tonnies pode ter despertado na 164 Veja esse respeito também a descrição da complexa dinâmica social de urn j'oirail
proposição weberiana da construção de tipos·ideais. Veja, por exemplo, Freund, J., A (praça do mercado} feita por Corbin, A. Le vil/age des cannibales, Champs·
Sociologia de Max Weber, Forense, Rio de Janeiro, I970, e Aron, R. Les écapes de la Flammarion, Paris, 1996.
/)l!lt.>ét: sociologique, Gallimard, Paris, I 967. t65 Geertz, C. A interpretação das culturas, Zahar Eds ., Rio de Janeiro, 1973, p. 15.

122 ft~ a&IJ.t 123


mais nada, do comportamento territorial e de sua significação. uma multiplicidade semiológica, universo do caos e da ordem,
A separação é de ordem metodológica e não precisa necessa- da transformação infinita, da polifonia e da variedade de inter-
riamente se impor ao real como dado concreto independente. pretações. O espaço é assim uma construção social, mas nem
A "cidade grande", ou a metrópole, é o palco de todas essas por isso pode ser objeto de uma interpretação tirânica e fixista,
"esquizofrenias".166 Abriga os mais variados comportamentos dado o seu caráter mutável e transformador. Essa demonstração
e permite a mudança de papel e a alternância de estatuto pes- é justamente um dos nossos maiores interesses neste trabalho.
soal. Os comportamentos são relacionais nas imprevisíveis tro-
cas diárias que o cotidiano metropolitano nos impõe. A cidade
dos indivíduos de interesses racionais e lógicos, do consumo e
da produção em massa, superpõe-se à cidade dos grupos de afi-
nidade, das tribos. Ela é o espaço do discurso geral e inteligí-
vel, o espaço das trocas, o espaço político por excelência, mas
não é só isso. Ela é a o espaço das compartimentações, das
pequenas comunidades, das lutas por um território de reconhe-
cimento e da heterogeneidade de valores.
Nesse sentido, sua constituição é sempre dinâmica, e os sig-
nificados das marcas espaciais não são jamais possíveis de ser
aprisionados dentro de um único significado. A cidade "é uma
máquina de transformar matéria em símbolos".J67 A idéia de
uma "floresta de signos" também já foi bastante utilizada para
~ falr da cidade, mas continua a ser boa no sentido de que indica
........ _ -~."

166 No sentido durkheimniano, grande parte das territorialidades ilegais poderia ser
vista como manifestações normais, uma vez que fazem parte de todas as sociedades
que estabelecem um controle normativo do espaço, e a transgressão é, nesse sentido,
apenas o outro lado da moeda. No entanto, segundo uma interpretação mais precisa e
análoga àquela utilizada para classificar as formas de suicídio, elas seriam "anômicas"
(patológicas), na medida em que não anunciam a passagem a um regime social ou eco-
nômico fundamentalmente diferente; são a prova de uma desorganização da sociedade
moderna. Além disso, segundo Durkheim, o princípio de justiça é essencial e indispen-
sável à sociedade moderna, e toda estabilidade social (saúde) depende do respeito da
idéia de justiça. Durkheím, E. Le suicide, PUF, Paris, 1960. Nesse ponto é interessan-
te contrapor a interpretação da anomia trazida por J. Duvignaud, para quem esses com-
portamentos desviantes anunciam sempre a orientação das mudanças sociais, e, assim,
essas manifestações territoriais podem ser vistas como demandas de integração que
ocorrem pela não-assistência das necessidades de um grupo em relação às possibilida-
des que a sociedade oferece de satisfazê-las. Duvignaud, J. lntroduction à la sociolo-
gie, Gallimard, Paris, 1966.
167 Duvignaud, Jean. Lieux et nonlieux, Ed. Galilée, Paris, 1977, p. 14.

~ 12b
SEGUNDA PARTE
A aplicação das matrizes aos casos
VI -Cidadania e espaço público:
O que a geografia tem a dizer?

"Assim, segundo a concepção da Antigüidade, o status


do indivíduo é tão exclusivamente dependente do espaço
no qual ele se move de cada vez, que o mesmo homem,
como filho crescido de um pai romano, era subordinado
ao seu próprio pai... na condição de cidadão poderia cair
no caso de dar-lhe ordens como senhor."
Hannah Arendt

Definitivamente, a cidadania está na moda. Em diferentes


terrenos da vida social, assim como em diversos domínios
científicos, esta noção aparece, muitas vezes, justaposta a
outras (cidadania e cultura, cidadania e história, cidade e cida-
dania etc.) e, por meio dessa colagem, os sentidos de justiça, de
eqüidade, solidariedade, ética ou direitos civis são sugeridos.
Cidadania é, portanto, hoje simultaneamente uma idéia muito
valorizada, mas, ao mesmo tempo, imprecisa em suas signifi-
cações ou contornos.
Uma das questões que se colocam imediatamente é, pois, a
de saber qual poderia ser a contribuição da geografia nessa dis-
cussão. Para isso, parece ser necessário, de imediato, renunciar à
sedução do simples efeito de moda, que, na maior parte das
vezes, esconde atrás desse novo rótulo de cidadania velhos argu-
mentos e conhecidos pontos de vista que procuram ares de reno-
vação, fazendo apelo à simples substituição da denominação.
Para nós, aqui o problema maior é o de primeiramente nos
interrogarmos sobre a possível relação existente entre a condi- outras da Antigüidade, até então se reproduzia segundo as
ção cidadã e a configuração espacial. Em seguida, é necessário regras da filiação e da limitação ao acesso a um grande núme-
analisar em que medida essa relação pode contribuir para tra- ro de lugares (nos dois sentidos do termo, isto é, como hierar-
zer alguma perspectiva nova na investigação dessa multiface- quia social e como lugar físico).
tada dinâmica. Atrás da aparente simplicidade de tal problemá- A valorização da cidadania na Grécia era, portanto, a luta
tica, escondem-se duas legítimas preocupações de operaciona- pela reorganização do poder travada contra os genos e as
lização bastante complexa. fatrias e suas formas de solidariedade, baseadas em laços de
A primeira é a de construir um objeto teórico, delimitando consangüineidade. Esse processo resultou também na adoção
com precisão seus contornos, de maneira a se prevenir contra o de uma nova forma de legitimidade para o exercício do poder,
uso indiscriminado de um conceito em voga que todavia pode não mais submisso às hierarquias da tradição, mas a partir de
se mostrar pouco profundo, devido à ausência de uma reflexão então estabelecido sob critérios de justiça, baseados numa
que o estruture. A segunda preocupação diz respeito à contri- argumentação racional-lógica, segundo o princípio da não-
buição possível de uma reflexão geográfica sobre esse proble- contradição. O novo valor que se impunha era, pois, o de atin-
ma. Esta última se justifica essencialmente pelo fato de que gir uma posição de completa isonomia (posição de igualdades
acreditamos poder demonstrar que no próprio conceito de social e espacial, segundo, por exemplo, o modelo da cidade
cidadão existe uma matriz territorial, isto é, a idéia de cidada- ideal platônica).168 Toda essa transformação denominada
nia possui em sua base um componente espacial. É fundamen- como o "milagre grego" é bastante conhecida, e uma farta e
talmente em torno dessa demonstração que iremos desenvolver erudita bibliografia sobre o terna pode ser facilmente consulta-
nossos esforços neste capítulo. da. O que propriamente nos interessa aqui não é voltar às des-
Antes de mais nada, devemos convir que se hoje essa nova crições desse momento, nem explorá-lo em seus múltiplos
forma de se referir à cidadania corresponde simplesmente a aspectos, mas sim mostrar que na raiz dessas transformações
uma maneira imprecisa de caracterizar uma preocupação ética e havia um importantíssimo componente espacial. Mais do que
de justiça social, difusamente contida nessa expressão, o isso, acreditamos que o fenômeno espacial é co-fundador do
mesmo não ocorreu em outros períodos históricos e em outros fenômeno político, o que aliás transparece em uma série de
contextos sociais. Podemos inclusive observar de forma bastan- textos fundadores sobre o universo do mundo grego.
te clara que, em outros momentos de valorização dessa noção, Em sua obra clássica sobre a cidade antiga, Fustel de
ela foi o veículo de transformações bastante específicas. Coulanges afirma a existência de uma continuidade entre o clã,
No mundo grego, onde a expressão tem sua origem, cida- o genos, ajatria, a tribo e o demos, ou seja, entre o núcleo
dania era uma forma de relação social, mas não apenas isso. familiar, consangüíneo, grupo unido pela imagem dos ances-
Ela significou também uma nova forma de arranjo espacial trais comuns e a assembléia dos cidadãos; haveria uma conti-
dessas relações, e isso poucas vezes nos é dito. O poder cida- nuidade e uma evolução em que um grau de complexidade e
dão surgiu da confrontação dos habitantes, concentrados em desenvolvimento crescente se pôs em marcha.l69 Dessa forma,
uma certa área, no caso a cidade de Atenas, contra o poder de
uma oligarquia rural que controlava o poder político e a produ- 168 Platão," Les Lois", in CEuvres completes, Gallimard, Paris, 1985.
ção da riqueza dessa sociedade. Essa oligarquia, como tantas 169 Fustel de Coulanges & Numa Denis. La Cité antique, ( 1864], Albatros, Paris, 1982.

130 prli\
sua tendência é ver e sublinhar, no comportamento dos cida- pacidade de se produzir uma paz duradoura entre regimes tão
dãos do século V a.C., os reflexos da antiga comunidade fami- díspares e antagônicos, a aristocracia e a democracia. 172 Da
liar. A cidadania seria assim uma conquista, um desenvolvi- mesma forma, a concepção de Glotz do genos como unidade
mento natural na evolução do espírito humano em seu infinito harmônica, comunitária, coletivista e solidária, explicar-se-ia
progresso. Segundo alguns comentadores, essa continuidade muito mais por uma perspectiva ideológica do que propriamen-
foi a forma de valorizar a diferença e evolução da democracia te pelas provas documentais, que, aliás, segundo Mossé, contes-
moderna, fundada em instituições impessoais e não compro- tariam essa concepção. Ele concorda, no entanto, que houve
metida com os interesses privados, em relação com a democra- uma ruptura fundamental entre o sistema gentílico e a democra-
cia do mundo antigo, ainda fortemente influenciada pelos laços cia, e corrobora para demonstrar que esse momento ocorreu jus-
sangüíneos e comunitários, pois derivada diretamente da estru- tamente a partir do governo do tirano Clístenes e de suas refor-
tura da família. mas, no que é acompanhado por outros especialistas. 173
Em outra obra não menos clássica sobre a cidade grega, Dois fatos interessantes devem ser assinalados nesses
André Glotz não esconde desde o início sua discordância com comentários. Primeiramente, sabemos que as reformas de
desse ponto de vista. nO Para ele, ao contrário de uma continui- Clístenes, quase consensualmente concebidas como o momen-
dade, foi rompendo os laços da solidariedade familiar que a to fundador da democracia grega, consistiram essencialmente
democracia grega pôde surgir e se desenvolver. A passagem do na substituição da representação politica baseada nas tribos
poder do genos ao demos significou uma ruptura pela qual toda gentílicas por uma representação de base espacial, ou seja,
a estrutura social e política se viu completamente redefinida. estabelecida por uma divisão territorial, e não mais por uma
Seu livro é, em grande parte, dedicado à descrição dessas mu- divisão que respeitava as fronteiras sangüíneas e de afinidades
danças em diversos campos da vida social nas c.idades gregas. definidas pelos genos .174 Importa, pois, perceber aqui a rele-
Ainda segundo Glotz, a principal causa da decadência do vância fundadora dessa divisão territorial, vista como um
mundo helenístico se deveu à fragmentação espacial em unida- momento original de um fato político, no caso um dos funda-
des políticas autônomas e à incapacidade das cidades-Estado mentos maiores da democracia. Importa também assinalar que
em firmarem acordos perenes. Assim, a fragmentação do solo a partir desse momento original surge uma nova categoria ou
resultou em um isolamento municipal "oposto à formação de estatuto do espaço, o espaço público, lugar dessa nova ordem
um grande Estado helenístico". social. Assim, não parece exagerado afirmar que foi a partir da
Para Claude Mossé, grande helenista contemporâneo, a disposição de uma nova ordem espacial que se fundou esse
interpretação de Glotz está impregnada do espírito dominante momento político.
do momento em que ele escreveu sua obra.l71 De fato, desde os
anos revolucionários, predomina na França uma leitura que se
alimenta da oposição entre atenienses e espartanos, pretenden- m Essa oposição foi também muitas vezes utilizada na demarcação entre a cultura
do demonstrar a superioridade política dos primeiros e a inca- francesa e algumas outras culturas européias, sobretudo a alemã. . ..
173 Por exemplo, Vernant, Jean-Pierre. Mythe et pe11Sée cllez les Grecs, Ltbrame
François Maspero, Paris, 1965. . .
174 Lcveque, Pierre & Vidai-Naquet, Pierre. Clisthene, l'athénien, Annales L1ttératres
170 Glotz, André: La cité grecque, Albin Michel, Paris, [ 1928), 1988.
de J'Université de Besançon, Lcs Belles Lettres, Paris, 1964.
171 Mossé, Claudc. Histoire d'une démocratie: Athenes, Seuil, Paris, 1971.

. . . 13.5
132 ftlfl...
Decisivo dessa liberd ade política era o fato de ser ela vinculad[a mais significativo do que o fato de polis ser não só o nome des-
espacialmente. Quem deixava sua polis ou era dela degredad sa estrutura espacial, "a cidade", mas também ao mesmo tem-
perdia não apenas sua terra natal ou pátria, mas também o único po, um feixe de relações sociais formais que originou a palavra
espaço no qual poderia ser livre. Perdia a companhia daqueles "política". Resumidamente, ser cidadão é pertencer a uma
que eram seus iguais.t75 determinada porção territorial, ou seja, esta é sem dúvida uma
classificação espacial. Corrobora com essa interpretação a eti-
De forma análoga, a decadência e a perda de poder das ci- mologia da palavra cidadão, que tem origem no fato de habitar
dades gregas, assim como a fragilidade ulterior das instituições na cidade. Não uma cidade qualquer, mas uma cidade que se
democráticas nessas mesmas cidades, foram vistas também define como uma associação de pessoas unidas por laços for-
como um produto da fragmentação espacial. Segundo Glotz, a mais e hierárquicos; uma cidade que dispõe de lugares próprios
democracia no mundo grego manteve sempre um caráter local, a essa nova atividade e natureza do homem grego, espaços
e a representação política emforí mais largos nunca foi verda- públicos; uma atividade e natureza que não advêm simples-
deiramente experimentada com êxito.l76 Assim, parece que mente do fato de habitar juntos, pois nem todos os moradores
podemos afirmar sem medo que, a despeito do pouco relevo são originariamente cidadãos, o que nos dá uma medida da
explícito da questão territorial no discurso de alguns especia- diferenciação espacial interna à própria cidade. As cidades de
listas sobre a questão da cidadania, o território, sua dinâmica, cidadãos exibem representações espaciais do exercício dessa
sua configuração, sua constituição e natureza são assinalados cidadania, definindo ao mesmo tempo os espaços de exclusão,
como elementos fundamentais na redefinição das relações assim o foi desde a Grécia Clássica até a moderna aglomeração
políticas. A democracia começa quando urna divisão territorial urbana, que exprime com complexidade toda uma rede espa-
das tribos é adotada, segundo a maior parte dos historiadores, e cial de pertencimento diferencial.
termina ou se enfraquece, segundo alguns, pela excessiva frag- Em uma das mais difundidas e respeitadas obras de síntese
mentação também territorial. A dinâmica territorial está assim histórica, lê-se no início do capítulo sobre a cidade grega: "A
associada de forma necessária ao fato político da democracia cidade é, necessariamente, um Estado de pequenas dimensões.
sob todos os seus ângulos. De resto, o território desempenha papel insignificante em sua
Dessa forma, a democracia e a cidadania surgem a partir definição. O essencial são os cidadãos, o povo, o demos."l77 (0
de uma reorganização do território. O ancestral comum deixa grifo é nosso.) O interesse central de nosso trabalho é demons-
de ser o elemento-chave da solidariedade comunitária, e esse trar exatamente o grave equívoco dessa afirmativa, que, infeliz-
laço agora é exercido pela delimitação de um território, um mente, ainda resiste em vários domínios das ciências sociais.
limite físico de inclusão, e conseqüentemente pela delimitação Relações políticas e território são duas dimensões interatuantes
de outros territórios de exclusão. Isso demonstra que ser cida- e fundadoras na constituição e no exercício do poder. As deno-
dão é, em certa medida, uma localização na teia das relações minações "cidade" e "Estado" possuem, amalgamadas a elas,
sociais e simultaneamente uma localização espacial. Nada uma imagem física e territorial, podendo tanto servir para indi-

t75 Arendt, H., op. dt., p. 50. m Aymard, André. "O Oriente e a Grécia Antiga", in História geral das rivilizaçiit:s,
176 Glotz, A., op. cit.
Crouzet, M. (org.), vol. I, Bertraud Brasil, Rio de Janeiro, 1990.

164 ,JiflJ\
car determinados tipos de relações políticas quanto servir o acesso ao controle muito mais sutil do que simplesmente
como referência a certo tipo de fenômeno espacial. aquele ditado pelo uso da força ou da intimidação direta. Tudo
Não se trata aqui, todavia, apenas da idéia simplista de isso se relaciona a necessidades e interesses muito mais com-
uma coalescência perfeita entre uma dada organização política plexos do que a simples reprodução física do grupo. Portanto,
e sua expressão física o que pretendemos desenvolver. De fato, a despeito de toda uma tradição geográfica de procurar no
nesta relação entre poder e espaço há dinâmicas complexas que naturalismo ou na biologia a essência do modelo de regras ter-
exigem uma reflexão mais acurada dos fenômenos normal- ritoriais para a sociedade, como uma dinâmica comum a todos
mente vistos sob ângulos excludentes, ou seja, de um lado o os seres vivos e da qual aliás deriva o próprio conceito de ter-
político e, do outro, o espacial. ritorialidade, desenvolvido por biólogos no final do século
Chegamos aqui ao ponto talvez mais importante desta XIX, queremos mais uma vez afirmar a irredutível diferença e
apresentação. Em que medida a cidadania pode ser um objeto especificidade da territorialidade humana.
de pesquisas geográficas? Que contribuições efetivas a refle- Assim, necessidades da reprodução social querem dizer
xão geográfica poderia trazer a este importante tema? aqui imposições da dinâmica social, imposição de certas regras
Comecemos pela noção de território e seus atributos. Essa de acesso e controle de uma dada porção do espaço. Por outro
noção é denotativa de uma delimitação espacial, e, quando es- lado, a disposição dessas práticas no território e seus limites de
tabelecemos limites, estamos de fato criando uma separação e ação são partes constituintes de urna ordem espacial. Isso cor-
uma classificação das coisas que têm como parâmetro funda- responde a dizer que a interpretação da vida social é em grande
mental sua distribuição no espaço. Isso corresponde a dizer parte tributária da compreensão da lógica territorial sobre a qual
que o território é um conceito que atua como uma das chaves ela está organizada. Em outras palavras, toda interpretação da
de acesso à interpretação de práticas sociais circunscritas a vida social que prescinda da análise da lógica espacial corre o
uma dada porção do espaço. O território é o limite dessas prá- sério risco de resultar em equívocos ou julgamentos parciais.I79
ticas, o terreno onde elas se concretizam e, muitas vezes, a con- De certa forma, a geografia tem, por intermédio de alguns
dição para que elas existam. autores, insistido nessa dimensão essencial do espaço na com-
De fato, a territorialidade humana tem muito pouco em preensão da vida social.lBOPorém, ainda que muitos geógrafos
comum com aquela vivida pelo mundo animal. É possível afir- nos tenham precedido na afirmação da importância dessa
mar que os três principais fatores da territorialidade humana
são a classificação das coisas e das relações por área, o contro- 179 Para ser mais claro, vejamos um exemplo disso: na fdade Média européia, em algu-

le de uma determinada porção do espaço e a comunicação da mas cidades, os judeus gozavam de inteira liberdade política e religiosa, ou ainda, esse
era o estatuto legal a eles atribuído. No entanto, o tetTitório da cidade era a concessão
efetividade desse poder.l78 A expressão da estratégia utilizada de um senhor ou um direito comprado pela comunidade urbana, o que resultava no fato
para o aparecimento de uma territorialidade em grupos huma- de que a definição de um espaço "comum" e o direito a circular nele se restringiam
àquelas pessoas submetidas às ordens senhoriais medievais, e, dessa forma, a comuni-
nos é, portanto, fruto de uma dinâmica social, revelada por um dade "livre" dos judeus, por exemplo, era, por muitas vezes, obrigada ao confinamen-
certo código de condutas que poderíamos chamar de cultural e to, urna \'ez que estava excluída dessas ordens. Assim, a decantada liberdade política e
religiosa resultava, nesse caso, em prisão.
tso Essa é uma tradiç-ao que pode ser localizada na geografia acadêmica desde os seus
178 Sack, Robert. The lzuman territoriality: lt:s theory and history, Cambridge primórdios, na obra de Ratzel e de Reclus, e continuamente renovada, sobretudo pelos
University Press, Cambridge, 1986. geógrafos que se dedicaram à geografia política.

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dimensão, no que diz respeito à cidadania e sobre suas possí- tes graus de implicação e penetração do discurso sobre o direi-
veis relações com o território, muito pouco há como bibliogra- to e o dever social. Estamos aptos a ver no espaço os signos e
fia, e o pioneirismo é quase absoluto.ISI Isso pode se explicar a apropriação diferenciada deles no exercício e na consciência
em parte pela forte associação criada entre as noções de justiça dessa cidadania.
social e a de classes sociais. Nos anos 70 e 80, muito marcados Como já foi dito anteriormente, o conceito de território é
pela influência do instrumental marxista, a geografia multipli- antes de mais nada uma classificação, não simplesmente uma
cou as análises sobre a segregação espacial, movimentos soci- classificação de coisas, mas de coisas dentro de u m espaço.
ais e desigualdades espaciais, tendo, no entanto, como referên- Visto dessa forma, o território é definido pelo acesso diferen-
cia quase exclusiva a diferenciação de classes.182 Dentro dessa cial do qual ele é o objeto, por uma certa hierarquia social da
perspectiva, como as classes sociais são fruto da diferente in- qual é a representação e finalmente por um certo exercício do
serção dos grupos na esfera da produção, essas análises facil- poder do qual é produto e um dos principais instrumentos. A
mente derivaram para uma leitura matizada de um certo econo- noção de território na geografia moderna fez assim emergir
micismo. Mais grave ainda, elas praticamente desautorizavam com força a reflexão sobre o poder referenciado ao controle e
quaisquer outras divisões que não aquelas que pudessem ser à gestão do espaço.
rebatidas na dita esfera da produção. Ainda hoje, na parca Acreditamos assim que o poder, sua conquista, seu exercí-
bibliografia disponível sobre cidadania, pode-se perceber o pe- cio e sua configuração estão sempre associados ou rebatidos
so dessa influência na tentativa de utilizar esse mesmo marco, sobre um plano espacial. Assim, pactos político-sociais consti-
as classes sociais, como critério fundamental para a análise. tuem sempre, em qualquer nível que se considere, local, regio-
Se aceitarmos, no entanto, que uma reflexão de identidade nal ou global, reestruturações no arranjo espacial daquela
geográfica é aquela que procura discutir uma certa "lógica" na sociedade, e o conceito geográfico que incorpora essa reflexão
ocupação do espaço, ou seja, em outras palavras, que a análise é o conceito de território.183
geográfica tem um compromisso maior com a ordem espacial A cidadania não é assim simplesmente uma representação
das coisas, compreenderemos toda importância de um trata- dos indivíduos dentro do Estado nacional, mas, sem dúvida,
mento geográfico da questão da cidadania. A geografia pode um fenômeno muito mais complexo que incide no quadro da
enriquecer o debate que comumente trata a cidadania como dinâmica territorial cotidiana da sociedade. Em um excelente
uma referência direta ao Estado nacional. Dispomos dos ins- estudo sobre as transformações da sociabilidade e da concomi-
trumentos para estabelecer a diferenciação existente na vivên- tante mudança das representações da idéia de nação Argentina
cia da identidade territorial, para compreender também, por- no século XIX, Quiróz nos demonstra que:
tanto, através da dinâmica territorial na sociedade, os diferen-
183 Nesse sentido, a decantada crise do Estado moderno bem poderia ser vista como
uma crise dos modelos espaciais de representação política, inadequação da divisão ter-
181 Mais uma vez, cabe ressaltar a iniciativa pioneira de Milton Santos ao escrever o ritorial ou de redefinição do quadro territorial das esferas do poder. De qualquer
livro O espaço do cidadão, em 1987, que, embora conduza sua análise em outra dire- modo, é disso que se trata essencialmente quando se discute sobre a nova relação dos
ção, é sem dúvida um marco no tratamento desse tema na geografia. Estados dentro de novos conjuntos espaciais (União Européia, Mercosul etc.) ou de
182 Um exemplo, entre outros, é o de Reynaud, Alain. Société, espace etjuscice, PUF, muitos aspectos da globalização e de suas repercussões sobre as estruturas estatais, ou
Paris, 1981, p. li. Segundo Reynaud, no estudo das relações entre espaço, sociedade ainda quando falamos da progressão dos modelos de representação fundados sobre a
c justiça social, "um primeiro conceito se impõe, o de classe socioespaciaJ". idéia com unitarista (nacionalismos, regionalismos, integrismos religiosos etc.) .

138 ,nlll\ .... 130


As formas de sociabilidade contratuais foram um fator de trans- conclusão é que se desenvolve uma equivalência entre cid ade
formação da sociedade e de suas representações( ... ). Nesse sen- c nação e que "certos aspectos da representação nacional do ser
tido, elas serviram para veicular uma nova representação da coletivo se exprimem na ocupação desse espaço".tss
coletividade como "sociedade nacional". Efetivamente, o dis- Assim, parece que as práticas re lacionais cotidianas têm
curso associacionista é freqUentemente utilizado pelas elites cul- uma relação direta com os processos políticos mais globais, de
turais e políticas para pensar a agregação social ; a associação é construção e vivência do político, da presença efetiva do esta-
pensada por elas como uma forma de pedagogia cívica pela qual do e da construção da idéia de nação. Podemos então afirmar
o cidadão apreende a coisa pública, constitutiva da comunidade que as diferentes vivências da cidadania não são sinalizadas
política; a prática associativa, que aliás ultrapassa o quadro das apenas pelo vago sentimento de nacionalidade em relação a um
elites, inscreve-se em uma rede de relações que rompe com 0 Estado que se mantém distante, mas também são vividas coti-
quadro local de referência instaurando um novo espaço de rela- dianamente e referidas ao quadro territorial imediato onde dei-
ções a partir do qual é pensada a sociedade como um agregado xam marcas e escrevem seus códigos territoriais (de acesso,
de indivíduos racionais e a agregação social como produto de hierarquia, valorização etc.). As discussões sobre a cidadania e
um contrato voluntário. Essas práticas declinam o pertencimen- a democracia não podem, portanto, ignorar mais que estas
to a uma nação que tende a se definir como sociedade ci viJ.184 noções possuem uma dimensão espacial ontológica e fundado-
ra. Tendo em vista essa dimensão, os fenômenos relativos a dis-
O mais importante, entretanto, é que este estudo nos putas socioterritoriais que ocorrem no mundo atual ganham um
demonstra também como a transformação de práticas relacio- novo relevo, colocando em jogo um espaço que é simultanea-
nais estava inteiramente associada às mudanças nas formas de mente condição e meio de exercício dessa cidadania.
organização do espaço urbano da cidade de Buenos Aires. O
desenvolvimento de uma outra sociabilidade e de um inédito
imaginário relativo à nação existe por intermédio de uma nova Um olhar geográfico sobre o debate da
configuração física, nos recém-criados bulevares e praças, na cidadania moderna
distribuição de cafés, clubes, associações etc., onde se fixam os
elementos que remetem à nova idéia da nação Argentina. De A cidadania não é uma característica universal ou perma-
tal forma essas dimensões estavam associadas, que o trabalho nente na história das sociedades. Cada momento a definiu de
dessa autora, que pretendia ser uma compreensão das formas maneira diversa, e cada forma concreta se revestiu de manifes-
históricas da sociabilidade, viu-se forçado a desenvolver uma tações próprias.t86 Muitos autores se dedicaram a demarcar as
cartografia analítica e um "geografismo da sociabilidade", que fronteiras que identificam a aparição desse fenômeno na mo-
pudesse dar conta destas concomitantes transformações. Sua

185Quiróz, Pilar Gonzales Berna! do de. Civilité et politique, op. cit., p. 323.
184
Quir_óz, Pilar Gonzales Berna Ido de. Civilité el politique: Aux origüzes de la Nation 186Nesse sentido é muito interessante perceber como foi feita a tradução da palavra
Argentme - Les sociabilités à Buenos Aires, 1829-1862, Publications de La cidadão pai<! o japonês, no século XIX. Shimin combina dois ideogramas: o primeiro
Sorbonne, Paris, 1999, p. 24. significando mercado, feira ou, no sentido mais genérico, cidade; e o segundo, povo.
dernidade, diferenciando-o daquele vivido em suas origens na Qualquer que seja o traço mais imp01tante nessa diferença,
Grécia Clássica. Para alguns, é no caráter das instituições, pro- o principal é que a experiência democrática moderna não pode
fundamente diferentes, que a distância ao modelo da Antigüi- ser vista como o simples prolongamento da cidadania dos anti-
dade é mais forte. O peso do prestígio pessoal nas instituições, gos. 190 Todavia, ainda que estejamos conscientes dessas dife-
o caráter direto, sem representação, ou ainda o fato de que na renças, existiriam talvez princípios fundamentais em todas
Antigüidade essa atividade política era vista como algo de essas manifestações que estariam sempre presentes e essen-
transcendente e substancial, em oposição à quase dominante cialmente associados ao fenômeno da cidadania? Para Aristó-
doutrina utilitarista e pragmática fundada na modernidade, são teles, a democracia corresponde "a uma certa organização dos
alguns dos argumentos aventados por diversos autores que se habitantes da cidade", uma comunidade de cidadãos que parti-
debruçaram sobre esse tema.t87 Para outros, a grande distância cipam do exercício dos poderes, do julgamento e das magistra-
se faz pela vocação universalista da democracia moderna turas, enfim, que participam do poder.t9t Não sem riscos,
em contraposição aos estritos termos da comunidade política poderíamos parafraseá-lo, afirmando que outro traço essencial
dos antigos, que os fazia conviver sem culpa com a exclusão corresponde a uma certa organização do espaço.
das mulheres, dos estrangeiros e dos escravos.t8B Finalmente, No primeiro, como no segundo caso, isso não quer dizer
existem aqueles para quem é toda a constituição da vida públi- uma forma precisa e única, mas sim que há elementos estr utu-
rantes sem os quais não teríamos uma verdadeira democracia.
ca que se organiza diferentemente:
Ora, essa "comunidade de cidadãos" foi vivida e pensada de
forma muito diversa desde a Antigüidade até os nossos dias,
Com o surgimento de uma esfera social, cuja regulamentação a
assim como também a participação no poder. Continuando a
opinião pública disputa com o poder público, o tema da esfera
comparação, podemos talvez dizer que as transformações nes-
pública moderna, em comparação com a antiga, deslocou-se das
sa organização espacial também foram muito variadas, mas
tarefas propriamente políticas de uma comunidade de cidadãos
manteve-se como constante o princípio de base, o nomoespa-
agindo em conjunto, para as tarefas mais propriamente civis de
uma sociedade que debate publicamente. A tarefa política da
ço. Não nos alongaremos neste ponto, que já foi exposto na
primeira parte deste livro. Vejamos apenas rapidamente como,
esfera pública burguesa é a regulamentação da sociedade civil
em grandes linhas, a cidadania moderna foi construída e que
(por oposição à res publica), que, já tendo a experiência de uma
esfera privada íntima, enfrenta a autoridade da monarquia estabe-
tipo de relação com o espaço ela desenvolveu nesse período.
Na formulação do direito divino em Bossuet, na França, e
lecida: nesse sentido, ela tem, desde o começo, um caráter priva-
do e polêmico.I89
de Robert Filmer, na Inglaterra, no século XVII, podemos per-
ceber a resolução de um grande problema instaurado nos tem-
pos cristãos, entre o domínio da cidade de Deus e e o da cida-
l87 Sobre alguns desses pontos de vista, veja Finley, M. Démocratie anti que et démo-
cratie modeme, Payot, Paris, 1976. 190 Aliás, é importante sublinhar q ue a palavra "cidadania" data do século XVIll, e
l88 Como já foi dito anteriormente, esse era o ponto de vista de Fustel de Coulanges,
mesmo que a idéia que ela traduza tenha origem na AntigUidade Clássica, esta ressur-
op. rit.
gência do conceito moderno não nos deixa dúvida a propósito de sua renovada impor-
IH9 Habermas, J. Mudan ça estrutural da eJfera pública, Tempo Brasileiro, Rio de
tância.
Janeiro, 1983, p. 69.
19l Aristóteles, Politique, Gallimard, Paris, 1993, p . 73.

...... 145
de do mundo. Os termos deste dualismo já podem ser encontra- peito às regras da própria sucessão e, em segundo, pela não-
dos em Santo Agostinho, que, influenciado pelo platonismo, a- alienação do domínio da Coroa. O monarca então tende pro-
firmava a perfeição da Jerusalém Celeste, exemplar, eterna e gressivamente a ser visto como a representação de um domí-
fundada na lei divina em oposição à cidade real, que, ao contrá- nio, de um território-Estado.192 Em outras palavras, a sobera-
rio, representaria o mundo da queda no pecado, baseando-se nia passa a ser um domínio público, e não mais privado, asso-
nas imperfeitas e, muitas vezes injustas, regras dos homens. Se, ciado a uma pessoa ou linhagem.l93 Se aceitarmos corno ele
no entanto, os monarcas e dirigentes fossem concebidos como que a primeira marca da soberania é o poder de fazer e desfa-
representantes da Vontade Divina, certamente suas ações zer leis civis, poderemos dizer que esse deslocamento se de-
ganhariam legitimidade, pois seriam vistas como projeções des- senvolverá pela crescente institucionalização desse poder, que
ses divinos ideais de justiça e felicidade, aplicados sobre a cida- se desprende da figura pessoal do rei e se transforma em insti-
de do mundo. tuição civil. Essa tendência só fez aumentar com o tempo.
Essa sacralização da autoridade conduziu a uma personifi- Da mesma forma, os princípios que justificam o assujeita-
cação do poder. A soberania era vista, assim, como domínio mento a uma pessoa ou a uma instituição, desde há muito já
pessoal, e esse processo de centralização do poder foi sempre demonstravam uma tendência à secularização fundada em um
acompanhado de uma certa unificação territorial. Durante raciocínio lógico e demonstrável, e identificada com urna uni-
muito tempo, no entanto, o território é visto ainda como domí- dade territorial física.l94 Ainda que, para Maquiavel, essa lógi-
nio privado de uma linhagem ou família. Os limites e a posse ca fosse exclusividade do príncipe, para a imposição de sua
de terras, cidades e domínios podiam variar assim ao livre sa- soberania, já que não se baseava em um verdadeiro consenti-
bor da biografia desses personagens e dependiam diretamente mento, no período imediatamente posterior esse instrumental
de suas filiações e estratégias de alianças e casamentos. Quan- racional transforma-se no único meio legítimo para impor
tas vezes os domínios de urna família reinante não foram ame- limites tanto aos sujeitos quanto ao rei.
açados por pretendentes oriundos de outros reinos, pela falta Esse princípio da organização do poder fundado em um
de descendentes ou por sua morte prematura? Como explicar compromisso formal de troca, lógico e racional, presidiu tam-
que o casamento de Henrique Plantageneta, da Inglaterra, com bém as novas concepções do espaço. Muitas vezes vemos
Alienar o tenha transformado em um soberano mais poderoso exposto o raciocínio de que as cidades renascentistas do Prín-
em seus domínios continentais na França do que o próprio cipe são constituídas pelo espetáculo da potência. Parece ser
Luís VII, rei da França e seu senhor? Quantas vezes as cidades lícito, segundo o ponto de vista aqui defendido, que essas cida-
de Milão, de Nápoles ou a Sicília mudaram de soberanos por des, reformadas e redefinidas nesse momento, constituíram o
conta destas pretensões a heranças e patrimônios familiares? arranjo necessário para criar uma nova relação social do
De fato, somente a partir do final do século XVI, em
Bodin, por exemplo, aparece mais claramente a idéia de sobe-
192 Terrel, Jean. Les thtEories dupacte social, Ed. Seuil, Paris, 2001.
rania e a demonstração e justificativa de um deslocamento 193 Para se ter uma idéia desse processo, até o fina l do século XV não havia um mapa
dela, da pessoa do rei para o território. Para ele, a lei funda- completo do reino da França, muito embora os súditos e o rei tivessem uma noção bas-
tante desenvolvida de seus limites.
mental que funda um Estado é aquela que estabelece a perpe- 19~ Veja, por exemplo, Déloye, Yves . Sociologie historiqcte du politique, La Décou-
tuidade da soberania e se traduz, em primeiro lugar, pelo res- verte, Paris, 1997, p. 40.

l lt4 ~
poder.195 O radiocentrismo dos planos urbanos determina em 1516 a Utopia, obra que se transformou em modelo c deu
espacialmente uma relação de hierarquia e interdependência. nome a todo esse tipo de literatura.J97 Ela é dividida em duas
A relativa uniformidade do espaço cria as condições para que partes: na primeira, ele constata a difícil situação socioeconô-
socialmente as antigas hierarquias sejam dissolvidas em um mica vivida, naquela época, nas cidades e nos campos. Na
novo desenho da sociedade, mais geométrico e mais polariza- segunda, ele desenvolve sua descrição de um mundo melhor,
do. A qualificação dos espaços pelos usos e atributos ressurge de casas semelhantes distribuídas igualmente em 54 cidades da
da força da aplicação da lógica em benefício do conjunto da ilha. Seus habitantes devem se mudar a cada dez anos para evi-
população, e retoma-se a idéia de que há espaços públicos des- tar que desenvolvam uma ligação afetiva com cada local. Na
tinados a trocas mais amplas do que aquelas geradas apenas Utopia, todos podem se integrar à sociedade com a única con-
pelo comércio dos bens. dição de respeitar as regras preestabelecidas. Thomas More
Há uma espécie de rito de refundação das cidades nesse chega mesmo a preconizar a intervenção do Estado na defesa
período, e os planos, geométricos, regulares e com composições do interesse geral. Trata-se de uma sociedade "j usta, na qual os
radiais ou estrelares, disseminaram-se. Nas velhas cidades exis- homens, todos os homens, serão emancipados dos obstáculos
tentes, sobretudo no Norte da Itália, onde este movimento foi alienantes de um sistema social, econômico e jurídico, subme-
mais forte, as reformas urbanas não podiam mudar tudo, mas tido à autoridade do dinheiro ou de uma casta qualquer no
incluíam sempre o desenho de um novo conjunto arquitetônico poder".198 A Utopia é assim uma comunidade política, um ter-
para ocupar o centro monumental. Este conjunto era composto ritório e uma nova forma de construir um espaço e uma socie-
de praças perspectivadas pelo alargamento e retificação do tra- dade, imagem ideal da cidade, sobre o plano físico e social.
çado das ruas e de novos edifícios, desenhados segundo uma A obra de Thomas More conheceu um grande sucesso, foi
linha sempre regular e uniforme, mas se mantendo freqüente- rapidamente reeditada e traduzida para várias outras línguas
mente um detalhe pa11icular (cor, revestimento, movimento de nos anos subseqüentes à sua publicação. Muitas outras obras
fachada etc.) que os identificava com uma certa procedência. As de teor semelhante se seguiram e tiveram muito boa aceitação,
cidades competiam entre si, assim como os Príncipes. entre outras, a de Tommaso Campanella, A cidade do sol,
Nada é, no entanto, mais significativo dessas transforma- composta de círculos concêntricos, e a de Cyrano de Bergerac,
ções nesse momento do que a fundação de um novo gênero História cômica dos estados da Lua, e mais tarde, do Sol, em
literário de grande longevidade : as utopias urbanas.196 Thomas que um sistema político perfeitamente racional é posto em
More, biógrafo de Pico de la Mirando la, amigo muito próximo prática.
de Erasmo e conselheiro pessoal de Henrique VIII, escreveu No campo propriamente da política, a doutrina dos direitos

195 Neste sentido, Sennet faz uma leitma bastante interessante sobre a perspectiva e a 197 Como nos ensina Patrick Geddcs, o termo utopia tem um duplo sentido, podendo

posição do obelisco de Roma, no século XVI. Sennet, R. La vil/e à vue d 'oeil, Plon, ser compreendido como ou topos, nenhum lugar, e como eu topos, bom lugar. "Civics
Paris, 1990; ver particularmente o capítulo "Ruas plenas de vida". as applied sociology", Conferência na Universidade de Londres, de 1904, publicada iu
196 Podemos falar em fundação se considerarmos o projeto da Calipólis platônica e da Sociological papers, Macmillan and Co, Londres, 1905, p. 111, citada por Choay, F.
cidade de Hipodemos como de outra natureza, senão diremos que estas utopias urba- L'urbanisme, utopies e/ réalirés, Seuil, Paris, 1965, p. 353.
nas renascentistas foram apenas um momento suplementar no sonho de criar um novo 198 A citação e grande parte dessa apresentação de Thomas More são tomadas de

espaço para uma nova sociedade. Paquot, Thierry, A Utopia, Difel, 1999.
naturais substituiu a doutrina do Direito Divino e estendeu a limites de um território, a violência física legítima como meio de
limites muito mais amplos a idéia de uma unidade política.19C} dominação e, dentro dessa meta, reuniu nas mãos dos dirigentes os
Os homens livres alienam uma série de direitos que lhes são meios materiais de gestão.203
naturais em detrimento de uma autoridade que estabelecerá
uma soberania e uma justiça logicamente legítimas. A polis Dois valores fundamentais surgem como base desse novo
não é mais a fronteira definitiva da comunidade, os direitos são Estado: liberdade e igualdade. Estes dois valores dividem duas
estendidos a quase todos e, ainda que nem sempre eles tenham esferas da vida social, a esfera privada dos indivíduos, a quem
a capacidade de assinar o acordo ou participar de sua estrutura, cabe o exercício da liberdade, e a esfera pública, asseguradora
eles têm direito ao benefício dos direitos. da condições de igualdade. Desde então, as relações com o
As leis são convenções; os limites da lei são os limites dos espaço são pensadas em termos de redes institucionais, que
acordos que as estipulam, nascendo uma nova unidade políti- significam a presença do Estado em todo o território. Nas pala-
ca, que corresponde a uma nova unidade territorial, o Estado vras de Foucault, a governabilidade do Estado moderno "se
moderno. Estas são as idéias de grande parte dos fi lósofos con- confunde com uma correta distribuição das coisas".204 Esta é
tratualistas, conhecidos também como jusnaturalistas.200 uma das marcas mais contundentes na transformação operada
Norbert Elias nos mostra como essa construção de um novo pela Revolução Francesa em relação ao Antigo Regime:
modelo de poder correspondeu à construção de um novo espa-
ço.20J Aos poucos, as autonomias locais são submetidas, o rei Centralizada de direito, a administração não era entretanto uni-
se fortalece em face dos outros soberanos, e ele e a corte se forme. A ausência de unidade caracterizava o Antigo Regime.
fixam em um local, havendo uma centralização das funções Certas leis só se aplicavam a certas regiões; os pesos e medidas
paralela a uma centralização espaciaJ.202 variavam de nome e de valor segundo os lugares; os impostos
não incidiam da mesma maneira sobre todos os franceses( ...) em
O Estado moderno é um grupamento de dominação de caráter ins- mais da metade do reino, as mercadorias pagavam direitos de
titucional que procurou (com sucesso) monopolizar, dentro dos alfândega cada vez que passavam de uma região à outra.205

199 Ruby, Chrislian. lntroduction à la philosophie polilique, La Décollverte, Paris, Logo em seguida à Revolução, todas as cidades francesas,
1996, p. 55. seguindo o exemplo de Paris, constituíram novas municipali-
200 A precedência dos direitos humanos sobre os direitos civis é Lima posição identifi-
cada com a tradição inglesa, o modelo francês sendo aquele que parte da idéia de que dades e novos poderes. A tomada do poder gerou uma necessi-
os direitos naturais são definidos e assegurados pela organização dos cidadãos. dade de rearranjar o espaço de forma diversa daquela praticada
Segundo Sclmapper, "a tradição inglesa é fundada sobre a idéia de que para assegllrar
a verdadeira liberdade dos homens contra o poder, que corre sempre o risco de setor- pelo Antigo Regime, heterogênea e baseada, em grande parte,
nar arbitrário, é preciso respeitar a diversidade de pertencimentos e de ligações parti-
culares", posição que explica hoje a política da "ação afirmativa", por exemplo, e con-
trária ao do modelo francês rousseauniano. Schnapper, Dominique. Qu 'est-ce que la
ritoyenneté?, Folio Actuel, Paris, 2000, p. 43. 203 Weber, M. ú savant et le politique, Plon, Paris, 1959, p. 119.
201 Elias, Norbert. La dynamique de l'Occident, Calmann-Lévy, 1975. 204 Foucault, Michel, "La gouvernabilité", in Dits et écrits, 1954-1988, Gallimard,
202 Segundo Elias, 16 casas nobres disputavam o controle na França antes que se pro- Paris, 1994, p. 636.
duzisse uma verdadeira unificação, op. cit. 2os Malet & Isaac, L'Histoire, Marabout, Paris, 1959, p. 569.
nas tradições locais. Depois das jornadas revolucionárias, a ainda era praticada às vésperas da Revolução de 1789, na con-
França foi dividida em 83 departamentos, subdivididos em dis- vocação dos Três Estados, por exemplo. É lógico que esta clas-
tritos, cantões e comunas, e cada uma destas divisões detinha sificação territorial convivia, ainda nos primeiros tempos da
poderes específicos. Uma assembléia deliberativa, para os democracia moderna, com outros tipos de classificação, como
departamentos, distritos e cantões. um diretório, que conespon- a discriminação entre cidadãos ativos e passivos (em função do
dia ao poder executivo para os departamentos e o distrito, e um sexo, da idade, da renda, do estatuto ou não de homem livre
corpo municipal e o prefeito, para as comunas. Como podemos etc.), aos primeiros cabendo a responsabilidade de organizar e
constatar, o primeiro esforço revolucionário foi o de criar uma decidir o direito e deveres dos demais, os passivos. Grada-
descentralização do poder, ainda que este obedecesse a normas tivamente, no entanto, a tendência foi a de afirmação de uma
estritamente uniformes. A ameaça da contra-revolução, no distinção do eleitorado exclusivamente em termos de circuns-
entanto, levou a uma nova concentração do poder nas mãos do crições territoriais.
Comitê de Salvação Pública, que adotou, como uma de suas pri- A democracia representativa se desenvolveu a partir de
meiras medidas, enviar representantes diretos, com plenos diversas instituições, eleições, parlamentos, partidos etc., mas
poderes, para cada distrito e impôs em cada comuna um funcio- todas elas seguem uma grade fundamental que estabelece uma
nário nomeado por esse comitê. Essas medidas de centralização divisão espac ial e uma hierarquia fundada nessa delimitação.
ficaram conhecidas como jacobinas, sinônimo desde então para A importância dessa condição de delimitação espacial na
essa presença forte e interveniente do Estado nos locais. Essa organização da vida democrática é decisiva, sendo lamentável
centralização foi também pensada como extensão de uma rede que ela nem sempre seja parte integrante das análises políti-
de isonomia organizada. É isso que revela o esforço de promul- cas. Assim, muitas vezes a democracia é concebida como uma
gar um código civil único (adotado por Napoleão Bonaparte em simples medida aritmética de votos, como o domínio da maio-
1804 e depois largamente utilizado como modelo por vários ria. O que esquecemos nesse tipo de raciocínio é que essa
outros países) ou a preocupação com a instrução pública, que maioria é sempre relativa a um espaço, e todo resultado
depende antes da forma e da hierarquia como a representação
previa pelo menos uma escola por cantão.
está estabelecida nesse espaço.
O outro dado fundamental na relação entre essa cidadania
Três tipos de crítica surgiram desde o final do século XVIII
moderna e o espaço foi a invenção de um regime de represen-
e tiveram enorme importância no processo de desenvolvimen-
tação. Esta modalidade surgiu na Revolução Americana, que
to da cidadania moderna. A primeira pode ser identif icada
criou a democracia representativa. Alguns anos depois a
como uma crítica contra-revolucionária, bem representada
Assembléia criada pela Revolução Francesa também decidiu
pelo personagem de Edmund Burke. Ele parte da recusa da
por um regime representativo. Isso significa que há, na base da
idéia de um cidadão abstrato, em qualquer lugar o mesmo, dis-
cidadania moderna, um recorte espacial, hierarquizado, verda- pondo dos mesmos direitos e deveres. Burke, a partir da refle-
deiro limite de poderes, políticas e competências. Essa repre- xão de Hume sobre a importância dos costumes e das tradi-
sentação pelo espaço, ou para utilizar um vocabulário geográ- ções, em contraposição ao esquema teórico que parte do esta-
fico, essa classificação das coisas por área é uma negação da do de natureza na teoria do contrato, afirma também que a
representação estritamente por estatuto social, como a que idéia de liberdade nasce de uma tradição particular, ou seja, é

1~o A .aw 15 1
relativa a cada povo. Não há então direitos gerais derivados de de promover uma verdadeira igualdade e justiça social. Lu-
uma racionalidade pura. lava-se pela noção de direitos credores, aqueles que deveriam
Outra grande corrente crítica à idéia de democracia moder- ser assegurados para que a liberdade pudesse ser efetivamente
na é desenvolvida pelo movimento romântico. Não nos alonga- exercida. As composições políticas saídas desse tumultuado
r:mos nos comentários sobre essa corrente, pois a apresenta- momento revolucionário reconhecem, em sua maior parte, a
çao do Romantismo já foi feita em outra op01tunidade; é preci- responsabilidade do Estado em fornecer as condições mínimas,
so apenas guardar a idéia de que esse movimento concebe 0 abrigo, educação, alimentação, segurança etc., para que a cida-
espaço como um conjunto de unidades preestabelecidas pela dania possa ser exercida por todos em igualdade de condições.
história e pela geografia; o homem em geral não existe, e ele se É o Estado-nação, raiz do Estado do bem estar social, que nasce
define antes pelas culturas nas quais está inserido. O raciocínio dessas reivindicações e com ele um novo valor se agrega à idéia
d~ que há direitos e deveres relativos a um homem em geral é de justiça social, a solidariedade.207 O Estado é também uma
vtsto antes como uma imposição dos valores da cultura euro- nação, um corpo coeso de pessoas, solidárias em face de um
péia ocidental sobre culturas que são estranhas ao racionalis- destino comum vivido dentro dos limites de comunidades polí-
n:o, portanto traduzi~o-se pois de fato, segundo esta concep- ticas que são em grande parte narradas como comunidades his-
çao, em uma verdadeira agressão. tóricas.208 As fronteiras entre esses Estados passam a ser vistas
. A terceira grande crítica, a mais importante, veio do socia- como limites definitivos de toda a diferenciação. É nesse perío-
ltsm? e. do marxismo.206 Partia do princípio de que a igualdade do que as escolas nacionais, na arte, na ciência, na cultura em
de. dtrettos da democracia burguesa não tem nenhum compro- geral, impõem-se e são tomadas como recortes naturais e essen-
:ntsso ~om u~a verd~ia igualdade social. A revolução ciais em todos os campos da vida social.
mdustnal recnou e redtmensionou diferenças sociais entre as A segunda metade do século XIX e o primeiro quarto do
classes, que de fato não são consideradas na abordagem clássi- XX também foi um período de grandes transformações na
ca da economia política. O direito à propriedade, por exemplo, forma da cidade. Intervenções cirúrgicas são feitas em grandes
q.u e ~ura na Declaração dos direitos do homem e do cidadão, cidades, Paris, Bruxelas, Milão, Viena, Berlim, Madri, Atenas
stgmftca, segundo essa perspectiva, na prática, o direito de etc., novos meios de transporte se desenvolvem, e os serviços
a~guns de se beneficiarem de uma fortuna, por meio da explora- urbanos, gás, eletricidade, saneamento básico, água etc . se
çao daqueles que não a possuem. Entre a democracia de direito estruturam em verdadeiras redes subterrâneas. Choay identifi-
burguesa, e a democracia real existe portanto uma difernç~ ca nesse período duas principais correntes do urbanismo: o
fundamental, que é a necessária condição de igualdade social. progressismo e o culturalismo.209
Os movi_mentos sociais explodiram na Europa na primeira
metade do seculo XIX, culminando com a sucessão de revolu- 207 Só depois de 1848, a palavra "fraternidade" foi incorporada à divisa Liberdade e
ções no ano de 1848, que em grande parte retomavam essas Igualdade sobre as fachadas dos edifícios públicos franceses.
208 Por isso, nossa discordância em relação ao argumento que quer criar um paralelis-
constatações e exigiam do Estado uma ação efetiva no sentido mo absoluto entre o desenvolvimento da cidadania e o da nacionalidade, vistos como
pares indissociáveis: "a cidadania como subconjunto da nacionalidade", expressão que
206 aparece, por exemplo, em Constant, Fred. La citoyenneté, Montchrestien, Paris, !998.
A expressão
, "socialismo"
_ foi criada por Pierre Leroux, em 1832, J·ustamente para 209 Há também uma terceira corrente, o naturalismo, que se desenvolverá mais tarde,
se contrapor a concepçao política dita individualista.
sobretudo nos EUA. Choay, F. L'urbanisme, utopies et réalités, Seuil, Paris, 1965.

152 )lf1[\
....... 153
A primeira tem um compromisso claro com a racionalida- solo. A tudo isso se soma um plano de produção capaz de gerar
de, com o desenho geométrico, com a disposição hierárquica a completa autonomia dessa comunidade, um modelo que ele
dos usos e do zoneamento. Esse urbanismo parte da idéia de via poder se reproduzir em qualquer outro lugar.
um homem geral e supõe uma mesma gama de necessidades Alguns anos mais tarde, Charles Fourrier propõe um outro
básicas, uniformes, para qualquer lugar ou sociedade. Ele inte- modelo, o da falange, como célula fundamental de um novo
gra também a indústria como uma forma de organização para a programa socioespacial. Os complexos planos e as posições de
construção de modelos, standards, de casas, equipamentos, Charles Fourrier, muitas vezes de vanguarda para o seu tempo,
medidas etc. Prevê um modelo de espaço reprodutível, racio- podem ser compreendidos como inspirados a partir da concep-
nal, lógico e cosmopolita, um lugar para o indivíduo tal como ção de uma sociedade-empresa ideal, funcionando como uma
ele é definido na Modernidade. rede de falanstérios e abdicando do papel regulador e coerciti-
Já na segunda corrente identificada por Choay, aquela vo do Estado. Algumas experiências foram levadas a cabo por
denominada de culturalista, a ênfase é dada à idéia de comuni- Considérant e Godin, que deram forma física aos falanstérios,
dade e de particularismo cultural. Cada homem inscreve sobre um universo ordenado, de unidades semelhantes, habitações e
o espaço suas particularidades culturais, que são em grande oficinas ligadas entre elas por ruas-galerias.211 O uso do solo
parte advindas do singularismo das condições ambientais. Há, era também rigidamente estabelecido, e a classificação de fun-
em geral, um f01te sentimento de nostalgia, e esse modelo vai ções seguia um plano de ordenação e zoneamento territorial.
buscar inspiração nas cidades medievais, vistas como unidades Como nos demonstra Choay, no entanto, nem todas as uto-
orgânicas. Não há uniformidade possível nos projetos, e cada pias integravam a racionalidade e a uniformidade dos u sos,
caso é único. nem todas propunham unidades-tipo distribuídas igualmente
Esse é também o período que conhecerá uma nova febre de sobre um espaço classificatório.2t2 Autores como Ruskin e
utopias.2 IONovamente, uma nova sociedade é pensada a partir Morris, por exemplo, criticavam a uniformidade e a racionali-
de uma nova composição espacial. O mundo do trabalho indus- dade modernas, pregavam a volta às comunidades culturais,
trial é uma fonte direta de inspiração das novas utopias. Um dos estabelecidas sob um modelo particular, não-geométrico.
pioneiros dessa nova fase utópica foi Robert Owen. Nascido em Camillo Sitte, importante urbanista, foi um grande admirador
um meio bastante modesto, com 20 anos ele já possuía uma do modelo urbano das cidades medievais e inspirado nele con-
indústria que empregava quase 500 pessoas. Acreditando, como cebia o espaço público das cidades modernas como um lugar
Rousseau, na importância da educação para a formação de de festas, mercado e manifestações culturais, louvando a irre-
novos indivíduos, ele financia escolas e em 1825, associado a gularidade do desenho das ruas e recomendando uma compo-
Richard Flower, funda uma comunidade nos EUA, a New sição do espaço quase teatral.
Harmony, onde seus princípios pedagógicos são aplicados, alia-
dos a uma estrutura socioespacial inovadora: edifícios públicos 21l No Brasil, um francês de Lyon tentou implantar uma colônia fourrierista na cidade
ao centro, um plano quadrado, uma rígida disciplina de usos do de Colônia do Saí, no estado de Santa Catarina, em meados do século XIX, mas a
experiência não teve mui ta duração; Droulcrs, M. Brésil: Une géohistoire, PUF, Paris,
2001.
2 10 Há alguns anos foram contabilizadas mais de 1.600 obras desse gênero, Paquot, T ., 212 Grande parte dessa descrição das utopias do século XIX foi extraída da antologia
op. tit., p. 6. organizada por Choay, F., op. cit.
Uma observação primordial e quase imediata é o fato de, não só dos direitos sociais, mas também da proteção social:
até o final do século XIX, essas propostas de novas sociedades saúde, trabalho e educação. Embora este último tenha tido a sua
estarem quase sempre unidas a um desenho espacial. A arte de luta iniciada no século XIX, ele se afirmou realmente como um
construir espaços era vista também, simultaneamente, como a direito a partir da supressão do Estado liberal pelo Estado do
arte de projetar novas formas sociais. Cidade, política e espaço bem-estar social, característico da primeira metade do século
compunham um único objeto. XX. Ainda que bastante esquemático, esse percurso serviu
De fato, parece que só com o aparecimento e a afirmação como base de legitimação do discurso que pregava a necessida-
das ciências sociais e com a fragmentação dos campos de estu- de e irreversibil idade do Estado modemo.2t6
do, conseqüência das estratégias de institucionalização das No mundo bipolar que se originou depois de 1945, essa
ciências, esses temas voltaram a se separar e a ser tratados visão da democracia era contestada por um modelo que prega-
como problemas de natureza diversa e, portanto, por discipli- va uma igualdade absoluta intermediada pela supressão da pro-
nas autônomas, que, para assegurar suas identidades, traçaram priedade privada dos meios de produção. A solidariedade não
limites bastante rígidos nessa delimitação.213 A cidade passa a deveria estar mais fundada em sentimentos nacionais, mas sim
ser vista sob o ângulo de sua conformação fisica por discipli- na con dição de absoluta igualdade social, e a liberdade só
nas que ignoram as outras que a tratam como fenômeno políti- poderia ser plenamente estabelecida se fossem eliminados os
co in abstrato.214 entraves criados pela propaganda ideológica burguesa, que do-
Depois dos conflitos que culminaram com a Segunda Gran- minava o mundo da informação.
de Guerra, a evolução do Estado e da cidadania recebeu uma Um dos grandes debates dessas esquerdas foi gerado pelo
síntese muito apreciada por intermédio da obra do sociólogo conflito entre posições que defendiam a necessidade de preser-
inglês Thomas H. Marshall.215 Para ele, há três campos de exer- vação da estrutura nacional e seus opositores, que viam nessa
cício da cidadania, que são complementares, embora tenham se preservação apenas uma herança de uma democracia particula-
imposto em momentos diferentes da história. O primeiro é o dos rista. Os sentimentos associados aos Estados nacionais deveri-
direitos civis, garantia da liberdade, propriedade e justiça, con- am ceder lugar a uma concepção cosmopolita e universalista
quistado no século XVIII. O segundo campo se desenvolveu, da igualdade e da solidariedade entre os povos. A revolução
em grande parte, no século XIX, diz respeito aos direitos políti- socialista significaria assim uma etapa transitória antes da
cos: o sufrágio universal, a irrestrita elegibilidade e a garantia de queda definitiva de todas as fronteiras de um mundo absoluta-
informação. Finalmente, o terceiro se caracteriza pela afirmação mente unido segundo condições semelhantes.
Os termos desta discussão mudaram significativamente,
213 Esta é uma proposição que pode ser retirada da leitura de Mucchielli, L. La décou- sobretudo depois da queda do Muro de Berlim, mas ainda hoje
verte du social naissance de la sociologie en France, La Découverte, Paris, 1998. persiste a discussão sobre as fronteiras do Estado. De fato, a
214 Esta posição parece, às vezes, constituir quase um consenso e, em algumas obras,
vemos, em relação à cidadania, comentários críticos sobre a pretensa confusão em
"conceber os problemas sociais com os problemas espaciais", ou seja, eles são vistos 2 16 A perspectiva histórica evolucionista de Marshall serviu de inspiração para diver-
como problemas absolutamente distintos, ver, por exemplo, Madec, A. e Murard, N. sos outros autores. Bemard Manin, por exemplo, descreve-nos uma democracia que
Citoyenneté et politiques sociales, Flammarion, Paris, 1995, p. 70. atravessou Lrês idades: parlamentar e liberal, exercida por notáveis; democracia dos
2 15 Marshall, T. H. Citizenship and social class and other essays, Cambridge, partidos, ligada à eKtensão do sufrágio universal; e a democracia do público atual.
University Press, Cambridge, 1950. Citado por Sclmapper , Dominique, op. cit., p. 167.

...... 15 /
questão persiste sob a forma da significação dos limites do Esta- deste lapso do pensamento, que evacua os requ isitos espaciais du
do. Perguntamos se a democracia é ainda hoje uma questão que problemática. Os d ireitos do homem estão na origem do rato
se define na escala nacional. Se é assim, em nome de que precei- urbano, não como um acidente histórico, mas como uma neces-
to se justificari am os direitos de ingerência, como o que vemos sária estrutura espacial e sociaJ.217
atuar hoje nos Bálcãs? Os direitos do homem e do cidadão são
universais; então, o que delimitam as fronteiras nacionais? Sem Examinemos agora brevemente um ponto crucial dessa
dúvida caminhamos para uma flexibilização do sentido das fron- idéia de cidadania transportada para uma dimensão física coti-
teiras dos Estados nacionais, flexibilização que é em grande diana, a do espaço público.
parte econômica e que recentemente tem demonstrado uma
estratégia para agir em grandes blocos.
O desafio de se construir uma Comunidade Européia reco- A importância da dimensão física:
loca os problemas dos recortes espaciais. Um dos mais incett os Os espaços públicos
de bates trata exatamente da visão da grade espacial dessa nova
unidade. Trata-se de uma Europa de regiões como querem al- Vimos anteriormente como na base da idéia de liberdade e
guns, para quem essa é única maneira de produzir uma redistri- de igualdade, de um regime político que pretende estabelecer
buição de recursos e diminuir a diferença entre as populações um valor isonômico entre as pessoas, há uma condição espacial
que nela vivem; ou trata-se de uma federação de Estados, uni- importantíssima e absolutamente necessária, a concepção de
dos para potencializar certos aspectos do crescimento econô- um espaço público. Em torno desta noção, aparentemente tão
mico, mas mantendo uma independência política e cultural, em simples, há certas incompreensões que devem se comentadas.
grande parte ancorada nessas fronteiras estatais? Finalmente,
Em primeiro lugar, a forma negativa de definição larga-
seria uma Europa dos locais, que ganhariam cad a vez mais
mente utilizada, ou seja, é público aquilo que não é privado,
autonomia, baseada em uma idéia de cidadão-habitante? Ao
não parece ser muito apropriada. Esta definição não pode
aprovar esta idéia não estaríamos talvez renunciando aos pre-
suprir nossas necessidades conceptuais e tampouco pode ser
ceitos redistributivos que legitimaram a ação do Estado, ou
utilizada como uma forma prática de identificação. A ambigüi-
seja, esta autonomia não seria o veículo para uma competição
dade de fronteiras assim delimitadas, somada ao fato de tam-
entre locais e que reproduziria no final uma desigualdade con-
bém existirem outros estatutos possíveis para o espaço,
tra a qual o discurso democrata procura lutar?
comum, coletivo etc., impede-nos de nos satisfazermos com
Como vemos, os debates não se esgotaram, e a impotiân-
esse tipo de raciocínio. Em segundo lugar, tomar o espaço
cia da dimensão física da idéia de cidadania também não. Po-
púbHco como uma área juridicamente delimitada, ou seja, ape-
deríamos concluir fazendo nossas estas palavras:
lar para o texto legal que regulamenta a existência desses espa-
O mundo dos fatos históricos mostra os laços históricos tecidos ços, sign ifica inverter os procedimentos. Em outros termos,
entre a construção da cidade européia e a construção e legitima-
ção progressiva dos princípios dos d ireitos dos homens. Pode- 217 Ansay. P. & Schoonbrodt, R. Penser la ville: C/wix de rextes pl!ilosophiqfles, AAM
Editions, Bruxelas, 1989. p. 40.
mos mesmo nos surpreender desta estranha ausência de estudos,
partimos da lei que regulamenta uma existência para definir o em passivos espectadores.2l8 Hoje, a compreensão desse quali-
objeto, quando é possível imaginar que este precede a lei e que, ficativo público parece corresponder freqüentemente à idéia de
além disso, manifeste-se em uma variedade fenomenológica uma massa posta diante de imagens e discursos espetaculares.
que não obrigatoriamente é do interesse estrito da legislação Ele pode também se associar à concepção de uma multidão
descrever. Finalmente, o terceiro obstáculo a dificultar a com- passiva, incapaz de reagir criticamente, prisioneira de uma
preensão do espaço público é a concepção, muito difundida, de cotidianidade niveladora. O espaço público foi, nesse sentido,
que ele é simplesmente definido pela qualidade de livre aces- em grande parte parasitado pela ação demagógica dos gover-
so. Ora, por um lado, esta concepção peca pelo fato de não dis- nantes, por uma mídia criticamente dócil e pela passividade da
tinguir público de coletivo ou comum, ou seja, a simples carac- " massa", tudo isso resultando na transformação de toda discus-
terística de ter um acesso livre não configura um estatuto são social em um espetáculo. O desafio é, portanto, o de reto-
público ao espaço. Por outro lado, conhecemos diversas for- mar o espaço público como lugar de uma participação ativa,
mas de espaço público que não têm essa qualidade, hospitais, normatizada e refundá-la como um espaço da política. 21 9
áreas militares, administrativas, escolas etc.; todos estes não Como podemos perceber, não se trata de imaginar um
possuem como regra um acesso aberto a todos e nem por isso mundo utópico, onde o bem absoluto se imporia com suas no-
perdem sua qualidade de locais públicos. vas regras, tampouco nem mesmo de uma recomendação de
Os atributos de um espaço público são aqueles que têm como transfOimar o mundo, mas sim apenas de estabelecer os
uma relação direta com a vida pública. Para Habermas, o espa- princípios e as condições em que uma norma é válida e perti-
ço público é o lugar do discurso político. Para que esse "lugar" nente ao conjunto das pessoas que vivem juntas. Dessa forma,
opere uma atividade pública é necessário que se estabeleça, em a unidade social provém de uma atividade cotidiana, de um
primeiro lugar, uma co-presença de indivíduos. A transmuta- agir comunicacional.
Insistimos para que essa perspectiva possa ser vista como
ção do indivíduo em público ocorre pelo princípio da publici-
a de um espaço público que é um lugar no sentido imaterial e
dade, capacidade de apresentar sua razão em público sem obs-
material, ou seja, que os princípios e condições vistos como
táculos, confrontá-la à opinião pública e instituir um debate.
necessários por tal dinâmica sejam também atributos do espa-
Para que isso ocorra, esse diálogo deve ser veiculado por meio.
ço físico e material. Como nos diz Jacob:
de uma linguagem comum, uma língua pública, que é parte de
uma cultura pública.
A comunicação entre indivíduos diferentes é possível pela
intersubjetividade, ou seja, ainda que um indivíduo não possa 21s Segundo alguns críticos mais radicais, as sociedades modernas, apesar de procla-
marem os valores da consciência individual e da democracia, estão completamente
ser reduzido a outro, existe sempre um domínio de interlocu- parasitadas pelo corporativismo e pela propaganda, e nunca chegar~ de fato a cons-
ção que garante o sucesso da comunicabilidade. Dessa forma, truir um espaço público, como aquele idealizado pelo pensamento hberal moderno.
o espaço público é simultaneamente o lugar onde os problemas Saul, John Ralston. The unconscious civilization, CBC, Ontário, 1995.
219 Essa é também a conclusão de um grande estudo realizado na França, "Entrevistas
se apresentam, tomam forma, ganham uma dimensão pública da cidade" , no qual uma das conclusões gerais diz: "A política da cidade se encontra
e, simultaneamente, são resolvidos. Um dos maiores proble- assim na encruzilhada de uma dupla investigação: a da ligação social, suas tensões e
suas fraturas, e a do papel do estado, mais propriamente do político." Roman, Joel
mas da nossa sociedade foi o de haver transformado o público (dir.), Vil/e, exclusion et citoyenneté, vol. 11, Ed. Esprit, Paris, 1993, p. 18.

160 ,.nnl\ ..,... 16 1


Por que nos impedir uma aproximação entre estas duas acepções Da mesma forma, Sennet nos diz que a cidade deveria ser o
de espaço público, entre o espaço abstrato que se constrói e se lugar da possibilidade do encontro sem que isso nos induzisse à
elabora no falar-junto de dois ou vários locutores (a conversa) compulsão da intimidade ou de uma suposta identidade profun-
e o espaço físico e sensível da co-presença de dois estrangeiros da.222 Trata-se, portanto, essencialmente de uma área onde se
(a rua)?220
processa a mistura social. Diferentes segmentos, com diferentes
expectativas e interesses, nutrem-se da co-presença, ultrapas-
Fisicamente, o espaço público é, antes de mais nada, o sando suas diversidades concretas e transcendendo o particula-
lugar, praça, rua, shopping, praia, qualquer tipo de espaço, rismo, em um prática recorrente da civilidade e do diálogo.223
onde não haja obstáculos à possibilidade de acesso e participa- Sobre esse espaço se constitui e se desenvolve assim um certo
ção de qualquer tipo de pessoa. Essa condição deve ser uma código de conduta, código este que é estabelecido pelo relacio-
norma respeitada e revivida, a despeito de todas as diferenças namento, na co-presença e na coabitação. Não se trata de tomar
e discórdias entre os inúmeros segmentos sociais que aí circu- essa sociabilidade como um valor em si ou um percurso
lam e convivem, ou seja, as regras do convívio e do debate predeterminado, mas de reconhecer nessas práticas comporta-
devem ser absolutamente respeitadas. Essa acessibilidade é mentos socialmente significativos.224 Como nos diz Agulhon,
física, mas também diz respeito ao fato de que não deve estar se este comportamento, a sociabilidade, apresenta-se de forma
condicionada à força de quaisquer outros critérios senão variada no espaço e no tempo, ela pode e deve se transformar
daqueles impostos pela lei que regula os comportamentos em em um objeto de análise.m No caso do espaço público a socia-
áreas comuns. Por isso esse espaço é o locus da lei. Podería- bilidade se transforma em civilidade, em compmtamento que
mos dizer que o espaço público é o lugar das indiferenças, ou extrapola a simples maneira convencional que uma sociedade
seja, onde as afinidades sociais, os jogos de prestígio, as dife- atribui ao homem educado de se apresentar e se conduzir, a "eti-
renças, quaisquer que sejam, devem se submeter às regras da queta". Ela ganha uma dimensão nova nesse espaço, que é um
civilidade. universo de trocas e de encontros que reafirmam o estatuto de
Para Lévy uma característica básica do espaço público, uma sociedade civil fundada em relações do tipo contratual.
outra que não a acessibilidade, é a extimidade: Civilidade, urbanidade ou polidez. Estas denominações
não deixam dúvidas a propósito da origem espacial desse tipo
O percurso no espaço público supõe uma suspensão do íntimo, de comportamento, a cidade, este universo de trocas cotidianas
que paradoxalmente é uma condição de existência( ...) só o "ano-
nimato", isto é, a garantia de que o outro urbano não projetará 222 Sennet, R. O declínio do lwmem público. Cia. das Letras, São Paulo, 1989.
sua intimidade sobre a nossa por uma injunção ao interconheci- zn Convém lembrar que a palavra civilidade é derivada de civis, que em latim quer
mento, permite à individualidade se desenvolver e se realizar.22I dizer cidadão.
224 Diferente portanto da wncepção de Simmel e Elias; este último, por exemplo, via
no comportamento da nobreza européia, na Renascença, os primeiros sinais de um
contro le da violência e da humanização das relações sociais cotidianas, que se trans-
formariam em regra geral na modernidade.
220
Joscph, lsaac.IA vil!e sans qualités, L' Aube, Paris, 1998, p. 52. 22S Agulhon, Maurice. "La sociabilité est-elle objet de I'histoire?", in Sociabilité et
221
Lévy, Jacques. Le toumant géographique: Penser /'espaf·e pour /ire le monde. société en France, er1 Allemagne et en Suisse, 1750-1850, Ed. Recherche des civilisa-
Bel in, Paris, 1999, p. 239. tions, Paris, 1986, pp. 13-22.

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e reguladas. É por intermédio da civilidade, seu emprego ou certos elementos, como roupas e acessórios; e pelos comporta-
uso que surge a possibilidade de diálogo e que se opera a trans- mentos, a maneira de falar e se conduzir em face da diversida-
formação desse lugar de contato e de mistura em espaço públi- de de circunstâncias oferecidas nesse espaço. Os itinerários, os
co, terreno fundamental da vida social democrática.226 O espa- percursos as paradas são igualmente significativos, demons-
ço público é assim a mise-en-scene da vida pública, desfile trando uma escolha, uma forma de particularizar e valorizar
variado de cenas comuns onde nos exercitamos na arte da con- diferencialmente esse espaço. Em suma, essas manifestações
vivência. O lugar físico orienta as práticas, guia os comporta- são formas de ser nesse espaço.
mentos, e estes por sua vez reafirmam o estatuto público desse A denominação "signalética" serve, na área da comunica-
espaço, e dessa dinâmica surge uma forma-conteúdo, núcleo ção, para falar dessas interações entre a topologia do espaço, o
de uma sociabilidade nonnatizada, o espaço público. percurso dos usuários e os signos inscritos nesse espaço. Ela é
Ele também é um lugar de conflitos, de problematização da muito utilizada nas programações visuais dos supermercados,
vida social, mas sobretudo é o terreno onde esses problemas são estações de metrô, aeroportos etc. O que estamos sugerindo
assinalados e signitl.cados. Por um lado, ele é uma arena onde aqui é que esses elementos possam ser incorporados à análise
há debates e diálogo; por outro, é um lugar das inscrições e do crítica do espaço e que suas possibilidades possam servir para
reconhecimento do interesse público sobre determinadas dinâ- um melhor conhecimento das dinâmicas sacias, sobretudo
micas e transformações da vida social. Todas as cidades dis- aquelas que se desenvolvem sobre o espaço público.
põem de lugares públicos excepcionais que COtTespondem à Em geral, a concepção de um diálogo público é visto sob o
imagem da cidade e de sua sociabilidade. Por meio desses luga- prisma de uma discussão verbal, em que os argumentos são
res de encontro e comunicação, produz-se uma espécie de resu- estabelecidos de forma clara, racional e lógica, e isso se cons-
mo físico da diversidade socioespacial daquela população. truiria essencialmente pela palavra. A idéia aqui sustentada é
Sobre esse espaço se desenrola a cena pública, que é com- que o espaço físico é preenchido por um vocabulário que se
posta de uma multiplicidade de manifestações que variam bas- declina a partir de diferentes "lugares" e de variadas práticas.
tante, segundo a localização espacial e o período de tempo no Como essas práticas são relacionais, pois se desenvolvem sob
qual ocorrem.227 De fato essa cena é uma espécie de discurso um espaço comum, sua interpretação depende do contexto no
que se constrói por meio de certos gestos, pela maneira de se qual se inscrevem. Igualmente, elas são orientadas segundo a
apresentar (em grupo, sozinho, com a família etc), pelas ativi- localização; todavia, ao mesmo tempo que esses lugares modi-
dades desenvolvidas; pelas imagens criadas e lidas a partir de ficam o sentido das práticas, eles são simultaneamente trans-
formados por elas. Eis aí toda a complexidade desse espaço e
226 talvez todo o desafio no qual ele se constitui para a análise das
Para Paquot, a idéia mesmo de civilização hoje está irremediavelmente associada à
imagem de um homo urbanus. Paquot, T, Homo urbanus: Essai sur l'urbanisation du ciências sociais.
monde et des Moeurs, Ed. du Félin, Paris, 1990. Como já foi dito anteriormente, esse espaço público é, an-
2 7
~ Se de scj~r m os aprofundar mais esta relação entre a cena e o espaço podemos repe-
tir com Duv•gaud: "a forma mesmo da ação teatral, da representação de uma ação ima- tes de mais nada, o resultado de um gênero de relação contra-
ginária pelos meios da poesia depende menos da concepção de mundo que os homens tual com o espaço. Ele se opõe assim ao conceito de espaço
ou a sociedade se dão delas mesmas, menos do estado geral desta sociedade ou de sua
~i lua ção econômica, menos da religião ou da estética, que das relações mesmo do
coletivo, fundado sobre a idéia de uma coletividade estrutura-
h om~ m com o espaço". Duvignaud, Jean, op. cit.,p.!OS. da por uma identidade, ela mesma originária de uma suposta

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afinidade repartida de maneira uniforme sobre o espaço.228 O vem ser apresentadas e vividas sobre um espaço de comunica-
que constrói o espaço público é a obediência à lei e a seus limi- ção; tentam negá-lo, mas se utilizam dele para existir.229
tes. Do ponto de vista simbólico, poderíamos dizer que esse Esse grande painel tem um caráter quase exploratório. Ele
espaço é composto pelo espetáculo da tensão entre a diferença não pretende de forma alguma ser conclusivo, razão pela qual
e a possibilidade de coabitação. Ele é assim a condição funda- o consideramos uma reflexão preliminar. O fato fundamental
mental de expressão da individualidade dentro de um universo ao qual gostaríamos que fosse dada especial atenção é o papel
forçosamente plural. Ele depende diretamente, pois, da afirma- da espacial idade nesse tipo de dinâmica que envolve a cidada-
ção permanente do contrato social que o funda. nia. Tentamos demonstrar que na origem mesma desse concei-
Compreendemos assim porque as afinidades e as diferen- to está gravada uma matriz territorial. Prosseguimos nossa de-
ças não podem se constituir em uma identidade política nesse monstração tentando correlacionar as mudanças na compreen-
espaço, sob pena de, ao afirmar seu controle, subverter o pró- são e na prática da cidadania moderna a imagens e arranjos
prio estatuto público. A única identidade possível de ser afir- diversos nas diferentes unidades territoriais sob as quais essa
mada, de maneira geral, é aquela compatível com a natureza incidia.
normativa, ou seja, aquela que se associa à idéia de cidadão, Finalmente, terminamos por tentar demonstrar que o deba-
que reforça os termos do contrato social que estrutura esse te sobre a cidadania na geografia nos convida a refletir sobre o
espaço. A cultura pública, ao contrário do que muitas vezes é conceito de espaço público. É preciso, portanto, reconhecer os
dito, não exige que renunciemos ao estatuto da diferença indi- princípios que fundam esse gênero de espaço, sua estrutura e
vidual. Esta cultura é fruto direto de uma sociedade civil que sua evolução. Vimos que os princípios fundamentais que
nada tem de uma comunidade coesa pela identidade, mas tra- orientam a construção desse espaço são extraídos de uma con-
duz a idéia de uma societas, uma associação contratada por cepção de espacialidade que repousa sobre a lei, geral, unifor-
aliados; e la é civil, ou seja, política; é um contrato e, por isso, me e democrática. Trata-se de uma formalização social que
firma-se e ntre partes, entre diferentes. Ao se afirmar esta esca- possui em sua base uma divisão tenitorial das práticas sociais,
la de diferenc iação estamos de fato nos insurgindo contra a seguindo a idéia de direito e de justiça. O espaço se estrutura
possibilidade de uma perigosa identidade coletiva que tende a pela aplicação de diferentes regras que classificam e hierarqui-
apagar esse nível de manifestação.
Compreendemos, no entanto, que as aparições dessas 229 Mais uma vez, devemos assinalar que existem compreensões di versas sobre esse
identidades sobre esse espaço público muitas vezes podem ser mesmo tema. Berdoulay, por exemplo. por meio da categoria d e lugar, procura
demonstrar que o espaço público pode se articular sem oposição 11 idéia de identidade
entendidas como demandas de reconhecimento e problemati- coletiva, definida sobretudo pelo viés da cultura. Veja Berdoulay , V. "Le li cu et
zações que vêm a público e se expõem assim ao debate e ao !"espace public", in Cahiers de géographie du Québec, vol. 41, m 114, 1997, pp. 301-
controle democrático. De fato, para existir, essas afinidades de- 9, ou ainda Berdoulay, V. Morales, M. "Espace public et culture: slrategies barcelonai-
scs", in Géographie e/ cultures. m29, 1999. No âmbito propriamente da filosofia polí-
tica, há quem veja nessa complexa questão da relação do individualismo na sociedade
moderna c o papel da cultura na conformação de grupos de afinidade um paradoxo
228 Nem todos estão de acordo com esse ponto de vista. c há algumas tentativas de con- fundador do liberalismo clássico (Mesure, S. & Rcnaut, A. A/ter ego. Les paradoxt'.\'
ciliar a idéia d~ comunidade à d~ espaço público. por meio da requali ficação da idéia de l'identilé démocratique, Aubier, Paris, 1999.) A tentativa aí é de também apontar
de comunidade. Ver. por exemplo. Tassin, E. "Espace commum ou espace public?", in para uma possível convergência desses valores; porém, tendem a predominar no pano-
1/ermes. r1> I D. 1991, pp. 23·37. rama global as posições irredutíveis que sublinham suas diferenças.

1(iG ,nnf\
zam os territórios. A cidade é o terreno privilegiad o dessa
matriz, na medida em que o tecido urbano é composto justa-
mente da relação entre esses dois elementos fundamentais do
espaço. VIl -O espaço público e
Acreditamos, assim, firmemente que, no debate sobre a as manifestações do recuo
democracia, a geografia está apta a demonstrar que não pode
haver cidadania sem democracia, não pode haver cidadania
da cidadania
sem espaços públicos, e o espaço público não pode existir sem
uma dimensão física.
"Nas favelas, no Senado, sujeira pra todo lado.
Ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam
no futuro da nação. "
"Que país é esse?", Legião Urbana

Sem dúvida alguma, o livro de Habermas sobre o espaço


público, publicado pela primeira vez em 1962, foi um mar-
co.230 Com uma temática construída a partir da interseção de
vários domínios das ciências sociais com a filosofia, ele expan-
diu o campo do debate sobre a ação e a reflexão políticas, inci-
dindo sobre ângulos genuinamente inovadores. Uma das mais
importantes contribuições desse trabalho foi a reconstituição
do ambiente nos séculos XVIII e XIX, que conformou o pro-
cesso de instituição de um espaço público e de uma opinião
pública, seus foros de legitimidade, sua natureza comunicacio-
nal e sua complexa relação com as outras esferas da vida so-
cial; tudo isso fora dos parâmetros, até então únicos, consagra-
dos pelas ciências jurídicas.
A segunda grande contribuição foi a de se colocar esse do-
mínio público em relação com a esfera privada e demonstrar a
importância dessa última na construção da sociabilidade, e isso

230 Habermas, J. Strukturwalldi!l der Offentlic:hkeit, (1962], trad. Mudança estrutu ral
da .~f"eraE Pública (traduzido por Flávio Kotbe). Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro,
1984.
...... 169
I G8 ,nnJ\
em um momento em que as "histórias da vida privada" ainda "espaço público" em um sentido sempre bastante amplo, como
não tinham alcançado o estatuto de objeto epistemológico, n de uma esfera pública. Trata-se, pois, de uma denomina<;.ão
que, muito depois, afirmou-se inteiramente. que procura abranger tudo o que se refere à vida pública, sob
Hoje, uma das críticas mais recorrentes a esse trabalho lodos os seus aspectos. Nesta acepção, a palavra "espaço" sig-
provém de outros estudos de hi stória feitos sobre a mesma épo- nifica figurativamente, antes de tudo, a extensão ocupada por
ca e que procuram demonstrar que houve um exagero na di- nma certa característica ou propriedade, neste caso específico,
mensão e na leitura da participação política no espaço público daquilo que é relativo e comum ao povo ou à coletividade, con-
assim como foi descrito por Habermas. Esta crítica incide, por- siderado em um certo espaço-tempo.
tanto, sobre a origem do espaço público na Modernidade e po- Paralelamente, a geografia tem de forma contínua insistido
de, a partir de um viés mais radical, levar mesmo ao questiona- na necessidade de rediscutir e requalificar esta noção de espa-
mento sobre a possibilidade da existência real desse espaço. A \'O. Seu maior interesse é o de fazer emergirem novos recortes
importância fundamental desses comentários é a de colocar em t: focos de análise por meio dessa categoria. Em outras pala-
dúvida a interpretação de que houve um grande momento, uma vras, a geografia tem tentado construir a partir dessa noção um
espécie de "anos dourados", em que a participação democráti- verdadeiro conceito e propriamente um domínio epistemológi-
ca e uma plena racionalidade tenham existido no espaço públi- co. Dentro dessa perspectiva e de forma bastante sintética, o
co.23t Como podemos constatar, se não houve esse momento, conceito de espaço geográfico possui características um pouco
toda a leitura de que há hoje uma diminuição e uma manipula- diversas daquelas veiculadas pela expressão "espaço público"
ção da opinião pública e do espaço público fica desacreditada. tal como ela é comumente empregada e entendida atualmente.
Voltaremos a este ponto mais adiante. Em primeiro lugar, o espaço geográfico é sempre uma
Gostaríamos antes de chamar a atenção sobre um outro extensão fisicamente constituída. O sentido puramente figurado
aspecto que nos parece fundamental no comentário dessa obra ou metafórico de uma esfera de ações públicas não pode, pois,
e que, por vezes, tem sido esquecido. Trata-se do fato de, na representar inteiramente a idéia de um espaço geográfico, que é
análise feita sobre a instituição dessa cultura púb1ica, Haber- também concreto, material e substantivo. De fato, esse concei-
mas demonstrar, sem que isso fo sse seu projeto central, a to de espaço, tal como o entendemos, tem uma dupla dimensão.
importância dos lugares físicos. A opinião pública foi instituí- Ele é composto do dialético mantido entre a disposição física
da e desenvolvida como forma de sociabilidade nos salões das coisas e as ações ou práticas sociais que aí têm lugar.
mundanos, nos cafés, nos clubes e associações, como as lojas Conforme as palavras de Milton Santos, o espaço é uma forma-
maçônicas, nas tavernas, na reapropriação de conventos duran- conteúdo, o conjunto dos sistemas de formas e ações.232
te a Revolução Francesa, entre outros lugares. Infelizmente, Em segundo lugar, essa disposição física das coisas mate-
nos últimos anos, habituamo-nos a compreender a expressão riais, ou mais precisamente essa ordem espacial, possu i uma
lógica ou uma coerência. É justamente a interpretação dessa
231 Para uma visão sintética das críticas endereçadas a essa obra de Habermas, veja. lógica do arranjo espacial e de seus sentidos que compõe o
por exemplo, François, Bastien & Neveu, Erik. "Pour une sociologie poli tiq ue des
espaces conlemporains", in François. B. & Neveu, E. E.1paces publiques mo:;aique.\·:
1\<·teurs, arimes et rhétoriques, des débats publics contemporains, Presses 212 Santos, Mihon, A natureza do espaço: técnica e tempo. raziio e emoção. Hucitec,
Uni vcrsitaires de Rennes, 1999, pp. 13-úO. São Paulo, 1996.

....... 1 /1
campo fundamental das questões geográficas: por que as coi- Voltemos agora ao aspecto crítico que denuncia a conccp-
sas estão dispostas no espaço dessa maneira? Qual o significa- ~ · fío de Habermas sob o ponto de vista de que a degenerescência
do e as conseqüências de tal ordem espacial? tlcsse tipo de espacialidade pública atualmente só teria sentido
Dessa maneira, compreendemos que o arranjo físico das ~c houvesse efetivamente existido um momento de apogeu do
coisas é um agente a ti vo na realização de determinadas ações espaço público. Segundo esse ponto de vista, a descrição do
sociais, e essa ordem espacial é concebida como uma condição slSculo XVIll como um momento fundador, onde o espaço
para que essas ações se produzam. lsso quer dizer que as práti- público teria disseminado uma nova dinâmica social, parece
cas sociais são, em certa medida, dependentes de uma dada não ser inteiramente comprovada por algumas pesquisas histó-
distribuição ou arrumação das coisas no espaço. É necessário, ricas recentes.234 Sem querer entrar diretamente nesse debate de
no entanto, ter cuidado nesse ponto para que não se reprodu- especialistas. podemos, no entanto, conceber que a Modernida-
zam os velhos esquemas lógicos mecanicistas. Não há uma de trouxe de fato uma nova idéia de política, uma idéia de cida-
determinação da forma sobre o conteúdo, as formas espaciais de e vida social coincidente com esse período.235 Esse "projeto"
não explicam completamente a maneira de ser da sociedade, e permaneceu, a despeito de algumas controvérsias, como ima-
o objetivo da geografia não é o de produzir morfologias classi- gem ideal da vida coletiva, imagem social e imagem física.
ficatórias; mas tampouco se poderia acreditar que ocorre o Na verdade, não seria inteiramente correto fazer apelo ao
inverso, ou seja, o espaço não é um simples reflexo da socieda- sentido de decadência para descrever o período atual, pois
de, como tantas vezes nos foi repetido. De forma resumida, o assim estaríamos impondo uma concepção evolutiva e preten-
espaço geográfico é, simultaneamente, o terreno onde as práti- samente dando um sentido ordenado a um fenômeno que seria
muito mais produto de nossa vontade do que o fruto da obser-
cas sociais se exercem, a condição necessária para que elas
vação da natureza intrínseca desse processo. No entanto, pode-
existam e o quadro que as delimita e lhes dá sentido.233
mos ver signos de que a vida social e coletiva nos dias de hoje
Desse ponto de vista, um olhar geográfico sobre o espaço
se transforma e transforma também esse projeto inicial.
público deve considerar, por um lado, sua configuração física
Como já foi dito, a cidadania é um pacto social estabelecido
e, por outro, o tipo de práticas e dinâmicas sociais que aí se
simultaneamente como uma relação de pertencimento a um
desenvolvem. Ele passa então a ser visto como um conjunto
grupo e de pertencimento a um território. Esse pacto associati-
indissociável das formas com as práticas sociais. É justamente
vo é formal e pretende assegurar os direitos e deveres de cada
sob esse ângulo que a noção de espaço público-pode vir a se
individuo. A coabitação desses indivíduos ocorre assim sobre
constituir em uma categoria de análise geográfica. Aliás, essa
um espaço que é também objeto de um pacto formal, que ins-
parece ser a única maneira de se estabelecer uma relação dire-
ta entre a condição de cidadania e o espaço público, ou seja,
' 1·1 Schudson, M. "Was there ever a public sphere? If so, when? Rencctions on the
sua configuração física, seus usos e sua vivência efetiva.
umcrican case", in Calhoun, C. (org.). Habermas and the Public Sphere, Cambridge,
I hc MIT Press, 1992, citado por François, B Nevcu, E .. op. cit.
'I \ Para uma discussão mais ampla da relação entre geografia, espaço e modem idade,

233 Essa perspectiva fo i mais longamente desenvolvida em Gomes, Paulo C. C ., andicamos a consulta de Gomes, Paulo C. da Costa & Haerbaert, R.. "O espaço na
"Geografia }in de sii?Cie, o discurso sobre a ordem espacial do mundo e o fim das ilu- Modernidade", in O espaço em questão, Terra Livre, Rio de Janeiro, 1988, pp. 47-68;
sões", in Explorações geográficas, Castro, L Gomes, P. & Correa, R. (org.), Bertrand ,. Gomes, Paulo C. da Costa. Geografia e modernidade, Bcrtrand Brasil, Rio de
Brasil, Rio de Janeiro, 1997, pp. 13-42. Janeiro, 1996.

I 12 ;tfli\. .aw 17.5


taura limites , indica usos, estabelece parâmetros e sinaliza as mudando, ou seja, seus sentidos e sua forma, e isso correspon-
interdições. Esse tipo de espaço normatizado é a matriz do úc a um processo maior de redcfinição das idéias que nos orien-
espaço público e o principal/ocus de reprodução da vida cole- laram dentro de um projeto civilizatório, como diriam alguns.
tiva, e toda ação social que pretenda subverter a existência Cidade e civilização, duas palavras de raízes comuns, nas
desse espaço ou transformar seu estatuto é necessariamente quais podemos ver projetos associados, mas que são constru-
redefinidora dos termos e COITesponde a um recuo do contrato ~ões históricas e por isso também estão sujeitas a alterações.
inicial que funda a cidadania, recuo que é tanto da instituciona- As categorias podem permanecer, mas as formas que associa-
lização das práticas sociais que compõem um quadro de vida mos a elas estão nesse momento em profunda transformação. É
democrático e cidadão quanto físico, do arranjo material que a observação desta transformação física que queremos descre-
limita e qualifica as ações. ver aqui.
Assim, podemos facilmente relacionar as mudanças na Assim, nosso interesse é justamente analisar esse tipo de
imagem da cidade, diferente daquela construída nos primeiros dinâmica, que subverte a idéia de cidadania, na forma como ela
tempos da Modernidade, com esse tipo de recuo. Ela é hoje é classicamente definida. Nosso foco é sua relação com os es-
concebida como fragmentada, como soma de parcelas mais ou paços públicos das metrópoles brasileiras. Os exemplos serão
menos independentes, havendo uma multiplicação de espaços emprestados, sobretudo, ao caso da cidade do Rio de Janeiro,
que são comuns, mas não públicos; há um confinamento dos mas processos análogos ocorrem, em maior ou menor grau, em
terrenos de sociabilidade e diversas formas de nos extrairmos todas as grandes cidades brasileiras. Por outro lado, algumas
do espaço público (telefones celulares, fones de ouvido etc.), dessas características podem também ser identificadas em
os modelos de lugares se redefiniram, shopping centers, ruas diversas outras metrópoles no mundo. Isso nos indica, como já
fechadas, paredes "cegas" etc. dissemos, que há um processo de redefinição nos quadros da
Podemos assim afirmar que há um recuo da idéia fundado- vida social coletiva que vem, gradativamente, modificando o
ra de cidadania que organizou a cidade e a convivência social estatuto das práticas sociais e espaciais de forma geral no
nos primeiros anos da Modernidade. Não há nostalgia nesta mundo contemporâneo. Chamamos aqui esse processo de
constatação, mas há a certeza de que esses signos de novos ar- recuo da cidadania.237
ranjos físicos resultam em novas formas de se construir a vida
coletiva, novas imagens físicas e sociais da cidade. 'É nesse sen-
tido que nos autorizamos a utilizar a expressão "recuo da cida-
dania". Trata-se assim do recuo do projeto social e espacial que 111 Estamos, todavia, conscientes de que, em contextos sociais diferentes, essa noção
apresenta também manifestas:ões muito diversas. Da Matta, R., op. cit., por exemplo,
está em processo de "encolhimento", muito embora ele ainda coloca em relevo a idéia de um universo relaciona! na cultura brasileira que distingue
subsista como imagem mental em diversos segmentos pensan- em muito a concepção social que as pessoas têm de direitos e deveres daquelas vividas
tes da sociedade.236 Sinteticamente, a natureza da cidade está c.:m outm> ,ociedades. Isso levaria, segundo ele, a uma multiplicidade de códigos que
operam simultaneamente, segundo as situações. Uma outra característica importante é
o nível de distinção entre a vida social e política, no caso brasileiro, vividas como esfe-
236 A discussão sobre a propriedade da manutenção dessa idéia de cidadania ou sobre
ras que obedecem a lógicas diversas e mesmo opostas, e que são muito bem assinala-
a possibilidade de mantê-la na atualidade não é objeto de nossas preocupações aqui; tias nos movimentos sociais urbanos, por Wolf. Leila. La démocratie au quotidien,
nosso interesse se reduz à constatação de que há modificações em curso, físicas e com- Syros, Paris, 1993. Chamaremos aqui esse tipo de relação que predomina no Brasi l de
portamentais, que indicam seu recuo. contextual e a oporemos a relações do tipo contratual, típicas dessas outras sociedades.

1 7 ~ )111[\ .ai.Lt 1·; [)


A atual dinâmica do espaço público Um primeiro elemento fundamental nessa dinâmica no
Brasil metropolitano é o enorme crescimento do chamado
Se concordarmos com o que foi exposto acima, não tere- setor informal da economia: camelôs, guardadores de carros,
mos problemas em aceitar que um recuo da cidadania corres- transportadores, prestadores de pequenos serviços etc. O adje-
pende a um recuo paralelo do espaço público. Sem dúvida, tivo informal serve para denominar todo ramo de atividade que
trata-se de uma dinâmica bastante complexa que tem profun- foge ao controle do Estado e, portanto, da legislação vigente.
das relações, entre outras, com os sistemas de representação Todos sabemos, desde Hobbes, que, na ausência de normas
que regulamentem o direito de cada um, a tendência natural é
política, com as formas associativas, com o processo de urba-
o uso de todos os artifícios, entre os mais comuns a força ou a
nização recente, com a migração e com a situação econômica
intimidação, para maximizar os interesses particulares daquele
mais geral. Embora reconhecendo a importância destas rela-
que os mobiliza. Tal é o caso desse tipo de implantação.
ções, dado os nossos interesses, limitar-nos-emas aqui aos
Esse chamado setor informal se desenvolve quase sempre
aspectos mais diretos, concretos e físicos dessa dinâmica sobre
nos locais públicos de maior circulação ou de grande valoriza-
o espaço público metropolitano.
ção comercial e se estabelece como um meio de explorar uma
Identificamos quatro principais processos em que esse
certa atividade sobre uma área que, em princípjo, deveria ser
recuo pode ser caracterizado: a apropriação privada crescente
de livre acesso a todos. O livre acesso pressupõe a não-exclu-
dos espaços comuns; a progressão das identidades territoriais;
siv idade de ninguém ou de nenhum uso diferente daqueles que
o emuralhamento da vida social; e o crescimento das ilhas utó-
são os de interesse comum. Na prática, no entanto, o que ocor-
picas. A descrição destes processos de forma individualizada re é uma apropriação desses espaços.
se deve fundamentalmente à preocupação de se sistematizar Os camelôs, por exemplo, literalmente ocupam as ruas e
esta apresentação e não significa de maneira alguma que eles estendem de forma contínua sua malha de barracas ou bancas
sejam excludentes. Na realidade, são processos que se mani- nas principais vias de circulação de pedestres. Há toda uma
festam sobre o espaço com áreas de superposição e de maneira estratégia de ocupação que começa sempre por uma ocupação
complementar. física mínima, pequenas malas abertas sobre o solo e depois,
gradativamente, vão incorporando estruturas mais fixas, po-
dendo se transformar em verdadeiros assentamentos perma-
A apropriação privada dos espaços comuns ne ntes. Os terrenos são muito disputados, e sobre o espaço
público são estabelecidos verdadeiros loteamentos controlados
Trata-se de um processo muito amplo, complexo e com por pessoas, inúmeras vezes vistas como verdadeiros "proprie-
manifestações e aspectos bastante variados. De fato, sua magni- tários", que algum tempo depois passam, como legítimos loca-
tude pode compreender desde uma simples ocupação da calçada dores, para recolher o fruto dos "aluguéis".
até o fechamento de ruas ou de bairros inteiros. Sua manifesta- Praças transformam-se assim em grandes mercados, e as
ção pode ocorrer por meio de estruturas físicas fixas, mas principais ruas da cidade tomam-se estreitas, pois restam ape-
também pode ser uma ocupação veiculada por instrumentos bem nas pequenas passagens para os transeuntes. Os lugares da vida
mais sutis e simbólicos. pública, da deambulação, do passeio, do espetáculo da coabita-

I I (i ,ofll\., .&l&â 1/1


ção, da idéia de vida urbana, que construíram os grandes proje- cam, as passagens de pedestres são ocupadas etc. Estas são as
tos urbanísticos do final do século XIX e começo do XX, desa- conseqüências mais imediatas; há, porém, toda uma gama de
parecem, dando lugar a um emaranhado de balcões de merca- efeitos que não pode ser medida de forma direta e que diz res-
dorias. A dimensão do homem público se estreita, restringin- peito à prática cotidiana da vida pública, do contrato que prevê
do-se à de um mero passante ou no máximo se limitando à de a forma e os limites para a ocupação dos espaços, que protege
um eventual consumidor.238 o patrimônio comum e procura assegurar igualdade de condi-
O fenômeno é correlato nas atividades dos guardadores de ções a todos. Poderíamos dizer que se processa assim uma
carros. Em uma área que por direito é pública esses guardado- degradação moral desses espaços.239
res a transformam em uma área de fato privada. Para estacio- Essa ocupação dos espaços públicos não é, no entanto, pri-
nar, deve-se pagar como se fosse um estacionamento privativo. vilégio apenas dos setores informa is da soc iedade brasileira.
Em lugares de grande afluência, eles "autorizam" o estaciona- Nem necessitamos recuar muito no tempo para constatar que, a
mento e ocupam as calçadas, colocando acessos para os carros partir dos anos 80, por exemplo, atrás de um d iscurso que se
conseguirem subir o meio-fio. Muitas vezes se vangloriam de manifestava con tra o sentimento de insegurança, uma verda-
ter acertos com as autoridades públicas e, dessa forma, recriam deira corrida pela ocupação das calçadas foi lançada pelos pré-
regras e constituem novos poderes. Tudo isso ocorre sobre um dios residenc iais da área mais valorizada da cidade, a Zona
espaço que presumidamente é público e tem suas regras de Sul. O exemplo não tardou a ser seguido mais tarde pelo con-
ocupação ditadas pela lei, que na maioria das vezes restringe junto dos bairros da cidade. A estratégia consiste em colocar
justamente o estacionamento de veículos. À primeira vista, grades de ferro que delimitam um espaço adicional ao prédio.
parece que todos ganham, os guardadores ao se apropriarem Muitas vezes vasos de plantas ou colunas com correntes de
e ao explorarem uma área pública, e os motoristas por conse- ferro também são usados nessa estratégia. O importante é ocu-
guirem, por meio desse mecanismo, burlar a lei e maximiza- par uma área adicional, ganhar espaço, privatizar o público,
rem seus interesses imediatos. deixando apenas o mínimo necessário à circulação.240
De fato, o que ocorre é uma requalificação do espaço, que
m uitas vezes resulta em sua degradação: as calçadas se que-
bram com o peso dos carros, os congestionamentos se multipli- 239 Encontramos aqui numerosas analogias com a descrição feita por Goheen da dinâ-
mica do centro da cidade de Toronto, no século XIX. Gohccn, Pctcr, G. "Negociating
access to public space in mid-nineteenth century Toronto", Joumal of Historical
238 É natural que nas sociedades extremamente desiguais, como é o caso da sociedade GeografJhy, 20, 4, 1994, pp. 430-49; e "The ritual ofthe strcets in mid-nineteenth-cen-
brasileira, o papel do consumo e a demonstração do poder aquisitivo atuem como ele- tu ry, Toronto, Environment anil Plwzning 1): Society mui space, vol 11, 1993,
mentos de distinção social e que sejam concebidos como correlatos à expressão dos pp. 127-45.
direitos cidadãos. Nesse sentido, consumidores e cidadãos se confundem no imaginá- 2411 É interessante perceber que essa parcela da população, classe média metropolitana,

rio social. Isso explicaria o fato de uma grande parcela da população menos favoreci- foi aquela que mais protestou contra as privatizações das empresas públicas efetuadas
da fazer tantos esforços para acompanhar o padrão de consumo das classes médias recentemente. O paradoxal nisso tudo é que o espaço público não é identificado como
altas e que, muitas vezes, os roubos praticados tenham como móvel o acesso a deter- bem público, mas sim como um terreno exposto à conquista dos particulares. Como
minados produtos que identificam qualidade ou preço alto (tênis, moclúlas, relógios muito bem assinalou um jornalista: esta parcela da população "aceita sem reclamar
etc. todos de marcas precisas e valorizadas socialmente). A propósito do tema sobre a que se privatizem propriedades muito mais públicas do que uma estatal de mineração.
possibilidade de que o consumo possa implicar uma nova forma de construção da cida- 1\s calçadas por onde anda, por exemplo. Para privatizá-las, qualquer esquina serve de
dania, veja Canclini, Nestor G. Coi!Sumidores e cidadãos, Ed. UFRJ, Rio de Janeiro, comitê ao neoliberalismo selvagem". Corrêa, Marcos Sá, Revista Veja, 9 de julho de
1995. 1997. p. 21.

1 /8 ,nnJ\ ~ 179
Em muitas ruas, sobretudo as pequenas vias sem saída, absoluta e indiscutível validade. A predominância do nível
disseminou-se também o uso de barreiras, com seguranças par- coletivo é total, e a oposição e a diferenciação são estabeleci-
ticulares, em guaritas controlando a entrada e a saída das pes- das em relação à figura de um outro, que é exterior ao grupo.
soas e dos carros, como se estivéssemos de fato diante de um O espaço é, sob essa dinâmica, sempre objeto de conflitos,
espaço privado, onde seria lícito estabelecer critérios diferen- pois estabelecer um território de domínio de um grupo signifi-
ciados de acesso. Os ritos de invasão dos espaços públicos são ca a afirmação de sua diferença em oposição aos demais. Esse
muito numerosos para ser todos descritos neste breve relato: fenômeno é também conhecido como tribalização e é em parte
condomínios clandestinos, ocupações em áreas de reserva, 0 responsável pela transformação da imagem da cidade con-
ampliações sobre domínios non aedifincandi, aberturas de temporânea. Hoje, o espaço fragmentado nas divisões impos-
janelas sobre paredes "cegas", muros em área de recuo etc. tas por esses grupos de afinidade se ajusta ao que alguns geó-
Muitos também são os expedientes móveis utilizados grafos denominam de metrópole pós-moderna. Ela traduz a
nessa ocupação. Caminhões que estacionam para vender mer- idéia de mosaico, de unidades independentes justapostas.
cadorias, apresentando suas promoções por meio de microfo- Trata-se da própria negação do conceito anterior de cidade,
nes em níveis altíssimos, pequenos comerciantes que colocam unitária, coesa e hierarquizada por funções, classes ou usos,
sobre as calçadas mercadorias e bancas, bares que estabelecem em benefício de uma noção de simples ajuntamento demográ-
uma projeção sobre a calçada e passam a utilizar as mesmas fico, a aglomeração.
como uma extensão física do estabelecimento.24I A degrada- Muitos fenômenos espaciais estão diretamente associados
ção do espaço nessas invasões é física, mas também, em gran- a esse tipo de manifestação. No Rio de Janeiro, por exemplo,
de parte, construída pelos usos que são substitutivos à idéia de grupos de jovens organizam-se em gangues territorializadas e
um espaço público, um espaço de convivência e, sobretudo, um procedem a verdadeiras incursões sobre a "área inimiga".
espaço de respeito ao outro. Comunidades evangélicas colonizam praças, ocupando-as com
pastores e sacerdotes, utilizando microfones, acompanhados
por seus seguidores. Nas favelas, narcotraficantes dominam
A progressão das identidades territoriais completamente o espaço, estabelecendo um rígido controle e
acesso. As entradas são vigiadas, as lajes das casas mais bem
O segundo processo diz respeito à afirmação de identida- posicionadas são apropriadas, para a partir daí instaurar uma
des sociais na cidade. Essa identidade, como vimos anterior- vigilância quase absoluta da circulação. Trata-se de territórios
mente, traduz-se sobre o território por um discurso sobre a fechados, onde o acesso é discricionário. Estabelecem um
diferença. O território próprio ao grupo é concebido como um poder local, controlam as associações de moradores e reforçam
terreno onde as regras que fundam a identidade gozam de uma um discurso do tipo comunitário como uma estratégia para for-
talecer suas posições e seu domínio. A escolha da localização
nas praias se faz, em grande parte, segundo áreas predefinidas
Em uma publicação recente, Yázigi faz um verdadeiro "inventário" das atividades
por grupos identitários. A freqüência aos populares bailes fu~k
241
c dinâmicas que ocupam ou atravessam os espaços das calçadas, na cidade de São
Paulo. A esse respeito, veja: Yágizi, Eduardo. O mundo das calçadas, Humanitas, também possui sempre uma predefinição das galeras envolvi-
FFLCH, São Paulo, 2000.
das, as quais ocupam determinados circuitos da circulação

180 )1ll1\ .... 181


urbana, ruas, ônibus e acessos. O mesmo ocotTe com as torci- dns sintomas mais flagrantes desse mundo fechado e cgocGn
das de futebol em dias de jogo. Em São Paulo, inclusive, os 11 ico foi difundido pela moda do walkman, verdadeiro símbolo
poderes públicos já chegaram a estabelecer roteiros para que d.t recusa a estabelecer contatos, ou ainda, símbolo de uma
não haja conflitos entre torcidas de clubes diferentes . Uma tlL:monstração inequívoca da vontade de permanecer distante
parte da cidade é assim virtualmente ocupada por uma dinâmi- 11as situações de contato do dia-a-dia.
ca tribal, que funda sobre o espaço público uma idéia de terri- Ainda que no uso do walhnan essa característica seja fla-
tório identitário fechado e exclusivo. grante, devemos também admitir que uma série de equipamen-
O preconceito do asfalto em relação às favelas também faz los e serviços são cada vez mais difundidos com o intuito de fa-
com que, em geral, haja referências a essas populações utili- cilitar o acesso ao confinamento social. Serviços telemáticos
zando a expressão "as comunidades", como se esse espaço fos- (bancários, de compras, de comunicação, de entrega em domi-
se realmente ocupado por uma comunidade, com regras e valo- cílio etc.), de telefonia, redes de televisão com ofertas de diver-
res diferentes do resto da sociedade urbana, que compõe a ci- sos canais, Internet, videocassetes, entre outros, penetram com
dade. Isso significa que a noção de identidade comunitária, velocidade crescente e magnitude ampliada em grande parte
mesmo quando não é uma reivindicação dos elementos assim Jas sociedades metropolitanas. Transformam-se rapidamente
denominados, passa a ser utilizada como uma forma de exclu- em equipamentos básicos dos domicílios e são adquiridos
são social. mesmo pelos baixos estratos das classes médias urbanas. O
A noção de um espaço identitário, entretanto, é a negação mundo chega até nós sem que precisemos sair de casa: o lazer,
do ideal de mistura e de respeito à diferença no qual se baseia as necessidades de abastecimento e a comunicação social são
o espaço público. Do ponto de vista conceptual, essas duas ca- assim cada vez mais intermediados por máquinas que permi-
tegorias possuem um estatuto de oposição absoluta; do ponto tem um deslocamento solitário e virtual.
de vista concreto e físico, o aumento de territórios identitários Duas conseqüências básicas desse processo se produzem
significa uma diminuição dos espaços públicos na cidade. no contexto das cidades brasileiras e, em particular, da cidade
do Rio de Janeiro. A primeira é a vivência cada vez menor do
espaço da cidade. O uso da via pública se restringe progressi-
O emuralhamento da vida social vamente ao seu valor instrumental primário, a circulação. Saí-
mos cada vez menos e quando o fazemos, em geral por absolu-
O individualismo não obrigatoriamente contribui para o ta necessidade, devemos usar um automóvel, que nos levará a
reconhecimento da alteridade. Ele pode, e esta parece ser uma um lugar preciso, onde, habitualmente, reproduz-se a idéia de
das tendências que se afirmam hoje, ter um caráter hedonista e confinamento e de segurança.243 Esta parece ser a explicação
narcísico. Percebemos de diversas maneiras que o dito homem pela qual os grandes shopping centers estão continuamente
moderno dispõe de variados recursos para transformar-se em
invisível e, portanto, inacessível para o contato sociaJ.242 Um
243Não estamos querendo dizer com isso que o perigo não esteja presente nos espaços
públicos. Para se ter uma medida desse fenômeno hoje. no Brasil, ~ast s_aber que só
Lipovetsky, Gilles. "Espace privé, espace public à !'age post-moderne", in
24 2 na Praça da Sé, tradiciona l ponto do centro da cidade de São Paulo, sao regtstrados, 1:111
Ciwyenneté et urbanité, Ed. Esprit, Paris. 1991 , pp. 105-22. média, 20 assaltos por dia. O Estado de São Paulo, 20 de agosto de 1998.

I B2 Jllll\
cheios, ocupados sobretudo por adolescentes, que procuram dos espaços públicos por aqueles que, não tendo meios puru
por uma sociabilidade mais ampla do que aquela oferecida pela reproduzir privadamente esse estilo de vida, estão condenado/o!
família. Ainda assim, permanecem e se reproduzem social- a desfilar sua condição por esse espaço: os pobres. Assim, os
mente dentro de circuitos espaciais fechados e seletivos. espaços públicos se transformam cada vez mais numa espéc il'
Os edifícios, onde habitam as classes média e alta, são fe- de passarela para o espetáculo da pobreza. Mendicância, pros-
chados, gradeados, guardados e vigiados; possuem às vezes o tituição, comércio ambulante de mercadorias baratas ou con-
que costuma se chamar de infra-estrutura: piscina, sala de lrabandeadas são assim tolerados, sem muitas queixas, em al-
ginástica e playground. Nos mais recentes, os andares mais guns dos principais eixos da vida pública carioca, ao longo das
baixos são ocupados por garagens, o que os afasta ainda mais praias, no centro da cidade, em parques, jardins etc. As classes
do contato imediato com a rua. Em São Paulo, muitas torres populares também comumente são as usuárias majoritárias,
são construídas com paredes "cegas" ou ainda com pequenas sobretudo nos fins de semana, dos grandes centros de lazer ou
janelas sobre a fachada, demonstrando um nítido desinteresse das grandes praças da cidade, como Quinta da Boa Vista,
pela abertura sobre a rua. Parque do Flamengo, Campo de São Cristóvão, Largo do Ma-
O uso do transporte particular é quase a regra para aqueles chado, Praça Serzedelo Correia, Campo de Santana, Passeio
que têm condições de ter um carro. As garagens são interiores, Público etc. Mais uma vez, as classes médias procuram sempre
e a saída dos veículos se faz por meio de portas automáticas; por espaços de lazer mais protegidos e de mais difícil acesso,
dessa forma, ao sair à rua, já estamos devidamente protegidos onde o filtro exercido pelo poder aquisitivo ou pela ac~sibl­
por nossas carapaças privativas. As grandes cidades devem, dade seja efetivo na seleção social.
portanto, aumentar continuamente o espaço de circulação dos Hoje, no Brasil, a idéia de coisa pública se confunde, em
carros particulares, em detrimento de outros usos possíveis grande medida, com algo de baixa qualidade ou de uso exclu-
para o espaço público. sivo das camadas populares, como no caso de hospitais, esco-
As casas são equipadas, dentro da medida do possível, las, parques, centros de lazer etc. De certa forma, a mesma des-
com o máximo de máquinas que compõem o arsenal de comu- valorização ocorre com o espaço público, uma vez que o aces-
nicação privado. Trata-se, sem dúvida, de um processo parado- so é livre, e a freqüência majoritária é composta, em geral, de
xal de abertura maior sobre o mundo a partir de um confina- elementos oriundos dessas camadas populares.
mento cada vez mais expressivo no espaço imediato. O uso dos A enorme desigualdade social, na qual o Brasil tem a lide-
espaços públicos se restringe, a área de sociabilidade tem uma rança mundial, tende a produzir uma vivência espacial do gêne-
pequena extensão, procura-se, sempre que possível, conviver ro apartheid, pois todas as possibilidades de mistura ou de se
com os semelhantes, quando não os da família imediata, pelo compartilhar um espaço comum são vistas com desconfiança e
menos aqueles que mais se aproximam dos mesmos padrões e evitadas socialmente. Abandonados pelos poderes públicos e
que se refugiam, como quase todos, em espaços selecionados e pela população que mais efetivamente dispõe dos meios de exer-
controlados. cer e reclamar a cidadania, os espaços públicos se convertem em
A outra conseqüência desse processo é que, do abandono terra de ninguém, sem regras de uso, perdem sua característica
dos espaços comuns e dessa recusa em compartilhar um terri- fundamental, ou seja, a de terreno de convivência, associação
tório coletivo de vida social, surge o fenômeno da ocupação social, encontro entre diferentes, ou, em uma palavra, espaço
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democrático. Desgaste, sujeira, desrespeito e invasões são, pois, Recentemente, em São Paulo, um grande lançamento imo-
algumas das características freqüentes nesse tipo de espaço, sem bi liário denominado "Piace des Vosges" utilizava como princi-
que isso gere de fat9 uma reação efetiva da população. p:d mensagem publicitária a idéia de que nesse condomínio se
lt.:ria uma praça similar à Place des Vosges, de Paris, mas nesse
t:aso, dizia o anúncio, seria privativa dos moradores.
O crescimento das ilhas utópicas Uma característica também marcante nesses condomínios
é a ordem espacial estrita que neles vigora. Todas as atividades
Diante desse quadro, é possível compreender uma tendên- são previstas, e a regulamentação do uso do espaço costuma
cia que vem se afirmando em alguns segmentos das classes ser bastante rigorosa. A vigilância é permanente, não apenas
médias metropolitanas brasileiras: morar em ambientes cada no que diz respeito à entrada e saída, como também em relação
vez mais homogêneos e isolados. Os condomínios exclusivos ao comportamento dos condôminos, que costumam aceitar,
são vendidos como cidades dentro da cidade. Trata-se de gran- sem muitos protestos as convenções que fundam este tipo de
des conjuntos de prédios de apartamentos ou casas, em áreas associação.
de valorização imobiliária, em geral distantes do centro antigo O arremedo de cidade dá lugar ao nascimento de uma cida-
da cidade. No Rio de Janeiro, é na região da Barra da Tijuca dania fragmentada ou, sem exagero, a um simulacro da condi-
que se concentra a maior parte desses empreendimentos. Nesse ~ão de cidadania. O homem público procura se reproduzir em
bairro, onde a fisionomia se aproxima do padrão suburbano um espaço privado, ou ainda, o espaço público é recriado em
norte-americano, os moradores são reconhecidos majoritaria- esferas menores e privativas. Recusa-se dessa maneira a convi-
mente como elementos que recentemente conseguiram alcan- ver dentro de uma sociedade/ variada e multi facetada. Co n-
çar um novo estatuto social, sendo por isso chamados de funde-se sociedade com homogeneidade. Os limites do respei-
"emergentes". Assim, os condomínios exclusivos trabalham a to às regras e a possibilidade de coabitação e convivência so-
imagem de um quadro de vida alternativo de alto padrão, onde cial são correlacionados aos níveis de renda que permitem o
seria possível encontrar calma, segurança, lazer e prestígio. acesso a esse tipo de espaço seletivo e controlado, limpo e
Nesses condomínios, procura-se reproduzir todos os equi- regulado, que se opõe figurativamente ao verdadeiro espaço da
pamentos urbanos possíveis. Eles funcionam simultaneamente rua- público, aberto e inseguro, sujo e anárquico.
como moradia e clubes; possuem às vezes minimercados , Nessas "ilhas utópicas" é o padrão monetário que determi-
transportes coletivos para os condôminos e contam mesmo na a possibilidade de ingresso. Por isso, tantas vezes se confun-
eventualmente, até com escolas. Os limites com o mundo de a idéia de ter direitos com o fato de apresentar signos sociais
que demonstrem um certo padrão de consumo. Definitivamente,
externo são muito bem demarcados, e o controle e a vigilância
as noções de cidadão e de consumidor se associam e se mistu-
são elementos fundamentais em seu func ionamento. As men-
ram. De certa forma, essa associação é moeda corrente em uma
sagens publicitárias para a venda desses imóveis exploram
sociedade caracterizada pela enorme desigualdade econômica
bastante a idéia de um ambiente planejado que reproduzirá
e ocorre em todos os lugares onde as d istinções sociais são
toda a qualidade de vida do ambiente urbano, com a vantagem
necessárias para demarcar uma hierarquia ou a posse de uma
da segurança e da homogeneidade social.
cidadania efetiva. Nesses territórios dos bairros fechados ou
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dos condonúnios exclusivos, entretanto, o contraste que eles relação distante e abstrata entre o Estado nacional e os indiv f-
criam com o entorno transforma a separação e a distinção duos de uma coletividade. Estamos nos referindo a uma cida-
social em uma condição de base tão forte, que merece que se uania que é praticada no cotidiano, no espaço concreto do dia-
estabeleçam muros e cercas quase impenetráveis. a-dia. Trata-se de um pacto social que é vivido concretamente
Por fim, esses pequenos arremedos de cidade jamais con- nos espaços de convivência social, que estabelecem normas de
seguem estabelecer uma verdadeira vida urbana. Reproduzem comportamento, limites de práticas, negociação de interesses
suas formas: ruas, calçadas, praças; e seus serviços e equipa- etc. Em poucas palavras, estamos nos referindo às práticas que
mentos: infra-estrutura básica, segurança, lazer etc., mas caracterizam os espaços públicos da cidade.
negam os princípios de uma vida urbana democrática. Estão Inquietante é, portanto, perceber que esses espaços estão
condenados aos ritos narcísicos do encontro com o igual, con- sendo progressivamente objeto de processos que os desfigu-
denados ao tédio do esperado, marginalizados da verdadeira ram: apropriações, invasões, ocupações etc. A fragmentação
vida social, que ocorre fora de seus limites. Esses espaços, social crescente é acompanhada de uma fragmentação territo-
cópias da cidade, funcionam de fato como a sua antítese, na rial, e os espaços comuns, públicos transformam-se em objeto
medida em que recusam a diferença, a liberdade de entrada, a de disputa ou simplesmente são vistos como espaços instru-
possibilidade do encontro com o diverso, a construção de uma mentais para o deslocamento. Desaparecendo o terreno da vida
verdadeira individualidade dentro de uma coletividade variada em comum, desaparecem também as formas de sociabilidade
e múltipla. que unem os diferentes segmentos sociais.
A urbanidade ou a civilidade são códigos de conduta cada
vez mais segregados em pequenos espaços de freqüência mais
O recuo da cidadania ou menos homogênea. Temos também a tendência a pensar que
esses códigos são estritamente relacionados à educação, quando
Esses processos descritos acima nos indicam a importân- de fato eles são fruto de uma convivência espacial, que, ao se
cia da organização espacial na constituição e nas dinâmicas impor, inscreve no espaço a idéia de direitos e deveres do cida-
sociais da cidade. Esperamos ter demonstrado que a categoria dão e, estabelece mensagens explícitas dos códigos de compor-
de "espaço público", dentro de uma perspectiva geográfica, tamento aceitável. A dinâmica dos espaços públicos se apresen-
tem uma centralidade absoluta na condução de uma análise ta, por assim dizer, como verdadeiros textos da vida urbana.
sobre a apreciação da cidadania hoje. De tal forma essas cate- Citemos um exemplo simples, mas bastante evocativo des-
gorias estão associadas - espaço público e cidadania-, que a sas crônicas da vida carioca. Recentemente, em uma praia da
configuração e a transformação da primeira significam mudan- Zona Sul carioca, a Urca, em um domingo de sol e de grande
ças absolutas na segunda. afluência de banhistas, podíamos observar que a superfície da
Procuramos mostrar que nos processos que nos são con- areia estava completamente tomada por detritos e embalagens
temporâneos nas metrópoles brasileiras, particularmente na de produtos que são vendidos no local. As duas porções da
cidade do Rio de Janeiro, o encolhimento do espaço público areia poupadas da sujeira eram exatamente duas áreas destina-
corresponde a um recuo na vivência da cidadania. Note-se que das à coleta do lixo. A recusa em colocar os detritos dentro
dentro dessa perspectiva a cidadania não é definida por uma destas áreas não pode ser meramente interpretada como falta
1 m~ ,llflf\.l .&Wi I H' >
de educação. Trata-se de uma prática que precisa ser interpre- 1 onteúdos das práticas traduzem uma negação do estatuto fun-
tada como um comportamento que possui significação social. damental do espaço público, como um terreno normativo de
Ora, no Brasil costuma-se re lacionar o lixeiro, dentro da esca- 1 onv.ivência e de respeito social entre diferentes.
la da hierarquia social, como o elemento situado na base dessa A proscrição das normas que regem os usos e costumes do
pirâmide. Jogar lixo no chão significa, portanto, a demonstra- t'spaço público significa, sem dúvida, a perda de sua natureza
ção de um certo privilégio social, por menor que ele seja. Em ,·sscncial ; a anomia legal transforma estes territórios em áreas
outros termos, as pessoas não sujam o espaço público simples- de disputas e conquistas. Dessa maneira, estreita-se a possibi-
mente por falta de informação, pois ninguém tem o mesmo ltdade do exercício da cidadania pela diminuição do espaço
comportamento dentro de suas próprias casas. Suja-se o chão pt'tblico, suprimindo assim a dimensão de homem público dos
como uma demonstração de prestígio social, pois isso quer habitantes ou usuários das grandes cidades. As metrópoles
dizer que alguém, menos importante socialmente, deverá reco- desfazem-se em fragmentos socioespaciais e perdem a idéia de
lher a sujeira produzida.244
unidade. Assim. não seria exagero afirmar que vivemos hoje
Como nos ensina Lefebvre: nas grandes metrópoles brasileiras uma situação de verdadeiro
nrqui pélago urbano. Dentro do tecido urbano, há, de forma
Os sistemas parciais de objetos, de atos, de signos (coisas e pala- crescente, o estabelecimento de espaços proibidos ou nunca
vras) são obras do homem social. São os ind ivíduos membros de lrcqüentados, espaços que, ao ser apropriados, são submetidos
uma sociedade, inseridos em sua práxis, tomados como uma a normas de uso próprias e a critérios particulares de acesso e
globalidade, que comem, bebem, jogam e habitam. Os indiví- vigilância.
duos e os grupos constituem um laço ativo e incessante entre o Como vimos, as práticas sociais não são indepcndcnles de
conjunto social de um lado e os sistemas parciais do outro, a lín- uma certa organização espacial, e reconstituir uma esfera públi-
gua lhes servindo simultaneamente como meio intermediário e ca implica redefinir o espaço, em suas dimensões física e sim-
meio físico.245
bólica. Islo não significa uma idéia de retorno ao século XIX,
aos cafés, salões, passeios públicos e grandes avenidas; uma
Esse tipo de dinâmica se apresenta sobre um espaço públi- nova sociedade demanda novas formas de ordenamento territo-
co, comum; trata-se, portanto, de uma demonstração pública. rial. Essas novas formas serão respeitosas da dinâmica que rege
Compreendemos dessa forma que o espaço público é também a vida pública? Conseguirão elas estabelecer as condições de
o instrumento onde são sinalizados conteúdos da vida social cidadania dentro do mundo de hoje? Eis algumas das questões
urbana. Isso corresponde a dizer que esse espaço permanece que desafiam os geógrafos que examinam o problema dos espa-
sendo um terreno de comunicação social até mesmo quando os ços públicos e suas relações com a cidadania.

244
Corrobora com esse ponto de vista toda uma gama de comportamentos trans-
gressores, no trânsito, na ocupação dos espaços, no relacionamento interpessoal, por
exemplo. demonstrando claramente que a obediência à lei na cultura brasileira pocle
ser concebtda comumente como uma prova de inferioridade social.
245
Lefebvre, Henri. " Introduction à l'étude de !'habitat pavill ionnaire", in Habitat
pavillionnaire, Haumont, N. Raymond, H. (orgs.), Editions du C.R.U., Paris, 1967.

I ~J O ,Jlnf\ ........ 191


roubo de pequenos objetos ou d e pequenas quantias dos
banhistas, que, atordoados pelo deslocamento rápido, em ban-
do, desse grande número de jovens, tornam-se presas fáceis pa-
VIII- Rio-Paris-Rio: ra o roubo e a agressão. O nome provém da atividade ela pesca
com rede, ou seja, todos os que estão no cami nho são "colhi-
Ida e volta com escalas tios", agredidos, atropelados e roubados, derivando daí o nome
tle arrastão. A origem do movimento estaria relacionada aos
"Daqui do morro dá pra ver tão legal
jovens de baixa renda, oriundos das fave las, dos subúrbi os ou
O que acontece aí no seu litoral ( ...) da periferia da cidade.246 Em suma, esse movimento reuniria
Mais do que um bom bronzeado habitantes de áreas "longínquas", dentro de uma perspectiva ele
Nós queremos estar do seu lado." distância definida não exatamente pela extensão medida em
metros, uma vez que as favelas se situam, muitas vezes, dentro
"Nós vamos invadir sua prai a", Ultraje a Rigor
l: próximas às áreas das praias. A "distância" é, sobretudo, uma

imagem que considera o sentido dessas áreas como periféricas


ou marginais aos limites da cidade, esta última sendo tomada
A ida: Das praias aos bulevares como um espaço onde predomina uma determinada sociabili-
ou dos arrastões aos casseurs dade que exclui essas áreas.
Uma versão mais recente e mais acurada do fenômeno, no
Domingo de muito sol no verão carioca. Como de hábito, entanto, faz referência a motivações bem menos pragmáticas.
uma multidão se reúne sobre as areias das praias da Zona Sul Ele teria origem de fato no enfrentamento entre facções rivais
da cidade, quando subitamente é surpreendida por um movi- de freqüentadores de bailesfunk, que comumente ocorrem nas
mento de pessoas correndo e gritando ao longo da orla. Uma favelas, nos subúrbios ou na periferia. Segundo esta versão, as
onda de pânico toma conta dos banhistas, que reagem, por sua galeras rivais, que costumam se enfrentar nos bailes de um
vez, correndo e agitando-se, aumentando a sensação de turbi- determinado bairro, recriariam suas oposições nas areias das
lhão causada pelo arrastão. Esses a rrastões se constituem praias da Zona Sul da cidade, muito longe, portanto, de seu
basicamente em um deslocamento rápido de uma massa de local de origem.247 De fato, é comum o -relato nos jornais de
jove ns sobre as areias da praia, criando alvoroço, choques e
brigas rápidas entre as pessoas. Trata-se de um fenômeno rela-
246 "O perfil estabelecido pela polfcia mostra que esses j ovens têm idades que variani
tivamente novo, surgido nos anos 90, mas, desde então, eles entre 16 e 20 anos, e são moradores das zonas Oeste e Norte e da Baixada Fluminen-
têm se repetido com uma certa regularidade nos dias de grande se." Jornal do Brasil, 21 de outubro de 1992, p. 12 (o grifo é nosso).
247 O sentido fundamental de gale ra é o de um grupo de jovens que divide uma mesma
afluência às praias, em fins de semana ou feriados, isto duran-
identidade social. Na prática, percebemos que essa identidade está quase sempre for-
te pelo menos três anos consecutivos, e continuam ainda de vez temente associada a um território preciso, que q ualifica e diferencia a galera. Assim,
em quando ocorrendo, embora com menor freqüência. as identificações são, em geral, acompanhadas da sua localização espacial. Note-se
também que em francês o verbo galérer, muito utilizado pelos jovens na França, tem
O arrastão nas praias foi primeiramente descrito como um uma conotação de lutar com dific uldade para sobreviver, mas o substantivo que se uti-
movimento coordenado que teria como objetivo principal o liza para descrever esses grupos de jovens é o debande, grupo.

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problemas de agressões e lutas durante alguns dos bailes ou na mesmo pequenas enfermarias montadas nos clubes para atcn
saída deles. A própria forma de dançar nestes bailes é agressi- dimcnto aos feridos.
va, pois são grupos unidos por uma mesma coreografia que se As galeras, quando entram no recinto do baile, lançam um
impõem em meio ao conjunto das pessoas que dançam, con- grit o de exaltação, que se constitui em um verdadeiro "grito de
quistando assim um espaço na pista. guerra" e de apresentação do grupo. Esse grito tem sempre
Surgidos ainda na década de 80, estes bailes se difundiram ~o mo conteúdo a identificação do bairro de onde provém a
e hoje são freqüentados por urna grande parte dos jovens mora- galera (seu local de moradia). Também as músicas começam,
dores, muitas vezes menores de idade, das áreas faveladas, muitas vezes, pelo grito de apresentação. Os próprios integran-
suburbanas ou periféricas da cidade do Rio de Janeiro.248 Cal- tes de cada galera se referem ao local de moradia como o fato
cula-se que haja em tomo de 500 bailes funks no Rio de lundamental na criação da identidade do grupo. O percurso até
Janeiro por fim de semana. Os freqüentadores costumam o baile é também escolhido para não haver encontros anteriores
reproduzir quase todos uma mesma estética, um mesmo e a de. As linhas de ônibus transformam-se em circuitos privati-
exclusivo vocabulário e uma maneira específica de ritualizar a vos dessas galeras, e muito comumente eles não pagam a passa-
sociabilidade (saudações, gestos de reconhecimento etc.). Há ~ · c m , alegando que o ônibus é do local de onde eles provêm. "É
dois tipos de baile "funk", os chamados bailes da "comunida- o bonde da nossa área", dizem. Há dessa forma uma apropria-
de" e os bailes "corredor".249 Os primeiros são freqüentados <J ío em nome do grupo dos meios de transporte que servem seus
por uma única galera e não há brigas entre grupos divergentes, locais de moradia. Outro recurso utilizado na reafirmação da
a violência quando existe se dá por circunstâncias inesperadas idéia do grupo como um todo coeso é o de fazer uma contribui-
e tendem a ser gerenciadas pelo grupo de forma a diminuir o ção para cotizar a entrada nos bailes para os membros que não
conflito. Já os bailes "corredor" são organizados prevendo di spõem de meios para pagá-la. Nesse momento também há
antecipadamente que haverá o enfrentamento entre galeras uma exaltação do espírito do grupo e do sentido de solidarieda-
diferentes e inimigas, o lado "A" e o lado "B". A denominação uc: "todos aqui são iguais, é tudo uma mesma galera."
"corredor" se justifica pelo fato de os próprios organizadores A estrutura da galera é muito simples e pouco hierarquizada,
dos bailes deixarem um espaço aberto entre as diferentes gale- há os líderes e a massa dos componentes. No espetáculo há
ras para que haja uma nítida divisão espacial no salão para também o M.C., ou mestre-de-cerimônias, que anima a galera
separar os grupos conconentes. Nestes bailes as lutas são pre- e apresenta o show. O vocabulário empregado pelos integran-
vistas por todos e há uma espécie de excitação que precede o tes tem sempre expressões tomadas do vocabulário de guerra:
encontro. A idéia do conflito é tão presente, que são previstas invasão, penetração, domínio etc. A música identifica a galera;
o tipo de "rnixagem", mistura de trechos de música, é visto
248 A respeito dos bailes.fimk, ver, Herschmann, M. Abalando os anos 90 - Funk e como exclusivo de cada grupo e, segundo eles mesmos, consti-
Hip Hop: Globalização, violência e estilo cultural, Ed. Rocco, Rio de Janeiro, 1997, tui um ingrediente fundamental na "emoção" que precede e
ou ainda do mesmo autor, "Funk- um circuito "marginaValternati vo" de produção e
consumo cultural", Lugar comum, n° 56, pp. 59-80.
acompanha a luta.
249 Os bailes da "comunidade" foram proibidos em 1995 durante a Operação Rio, Eventual mente, os membros dos grupos rivais podem se
informação obtida na entrevista de Michael Herschmann ao Jornal do Brasil, de 3 de encontrar em outros ambientes por acaso, e os conflitos tam-
janeiro de 1998.
bém podem acontecer fora dos bailes, mas se evitam os encon-
.al,u I IJ 1 1
tros inesperados. No caso da praia, ao contrário, o encontro é, Na mesma época, em Paris, o fim de tarde vive uma das
como no baile, antecipado, organizado e esperado. muitas manifestações que protestam contra a política educa-
Ocorreria, portanto, uma reatualização desses conflitos no cional do governo. Centenas de estudantes desfilam suas pala-
encontro desses diferentes grupos no espaço da praia, ou seja, os vras de ordem em meio a cartazes e faixas, ocupando grandes
conflitos são revividos, dos bailes à praia. Da luta física entre eixos de circulação. Em geral, essas manifestações descem os
esses grupos resulta o pânico e a corrida de pessoas que arras- grandes bulevares abertos em meados do século XIX, durante
tam a tudo e a todos, extravasando sua rebeldia e sua violência a reforma conduzida pelo barão de Haussmann.
indiscriminadamente. Essa segunda versão parece efetivamente Como é sabido, essa reforma urbana se fez, majoritaria-
ser bem mais plausível do que a simples organização de roubos mente, pela substituição de áreas de habitação populares por
coletivos, visto que as pessoas que freqüentam as praias não cos- novos e elegantes edifícios, alinhados uniformemente ao longo
tumam dispor de muitos valores, e o roubo só poderia ser mesmo desses novos bulevares. Eles eram de fato o novo espaço polí-
uma manifestação secundária na estrutura desta dinâmica.250 tico do Segundo Império. Nessas artérias desfilavam as novas
As praias cariocas costumam ser ocupadas seguindo uma classes abastadas parisienses, que ocupavam as calçadas, sen-
ceJta ordem em sua freqüência pelos grupos que se identificam tavam-se nos cafés e promoviam verdadeiros espetáculos da
com determinadas parcelas territoriais ou horários . O arrastão nova mundanidade urbana.
tem origem sempre nos trechos onde esta freqüência coincide Essas grandes avenidas convergem para gra ndes praças ou
com a população de baixa renda, em geral concentrada nas largos - Bastillle, Montparnasse, Denfert-Rochereau ou Na-
áreas próximas aos pontos finais dos ônibus que fazem a liga- tion. São fruto da arquitetura das perspectivas, ou seja, de gran-
ção entre a Zona Norte ou Centro e a Zona Sul da cidade, ou, des ruas que terminam em grandes largos, que por sua vez são
ainda menos freqüentemente, em frente às áreas de acesso aos ocupados, em geral, por monumentos que ressaltam o espírito
morros ocupados por favelas. Os jornais, as rádios e as redes patriótico ou cívico: a coluna do anjo da liberdade na Bastilha,
de televisão noticiam com destaque esse novo fenômeno, res- evocati:vo do evento que deflagrou a Revolução Francesa,
saltando constantemente a origem habitacional e a desordem
monumento à República, à Nação etc.
criada por esse tipo de atitude.2SJ
Consta que originalmente o plano de varandas no segundo
e no quinto andares das fachadas dos edifícios, alinhadas ao
Muito embora a denominação arrastão agora sirva para denominar todo tipo de
250
longo dos bulevares, previsto no urbanismo haussmanniano,_
roubo que ocorra na cidade, no qual haja um grande número de pessoas envolvidas,
assaltantes e vílimas, nos túneis, nas barreiras organizadas nas ruas etc. deveria servir às tropas de repressão, no caso de ocorrerem
251 Apenas como exemplo desse tipo de discurso: "Os rapazes que freqüentam o trecho
novas revoltas, como as de 1848. Ironia ou não, hoje essas
da Vinícius de Moraes- a maioria formada por moradores do baitTo-- resolveram
bloquear a passagem dos garotos usando até raquetes de frescobol." (Jornal do Bras il, grandes artérias são freqüentemente percorridas pelas manifes-
13 de outubro de 1992, p. 12.) Ou ainda : "De um lado os moradores do Morro do tações. Contrastam sua pulsação movimentada com os tranqüi-
Cantagalo, que se concentram junto à Pedra do Arpoa dor. Do outro, os freqüentadores
habituais de lpanema, que costumam ticar perto do Posto 8. Entre eles, um trecho de los bairros residenciais que não foram tocados pelo urbanismo
aproximadamente 200 metros de praia praticamente vazio. Essa área, que no domingo haussmanniano. Dessas largas vias se construiu a imagem de
foi disputada pelas gangues de.fzmkeiros de Vigário Geral e Parada c.Je Lucas, transfor-
mou·se em terra de ninguém nos dias de semana." (Jornal do Brasil, de 16 de outubro
Paris, pois a preocupação foi a de retraçá-las sobre planos pers-
ele 1993, p. I 1.) pectivados pelos monumentos. Assim, a imagem dos postais é,
....... 197
em grande parte, fruto das vias e dos parques urbanos criados Boulevard Périphérique, que envolve completamente os vinte
por Haussmann ou sob sua inspiração. rrrrondissements que compõem a cidade. Até mesmo o metrô
Nesses bulevares, em meio à manifestação cívica dos estu- Ioi concebido como uma empresa exclusivamente parisiense, c
dantes, subitamente, sem que ninguém identifique ao certo o ~e u traçado, embora denso, não previa a extensão para além
momento, um grupo de pessoas começa a gerar um grande tu- dos limites da cidade. Pode-se dizer que Paris construiu sua
multo, estilhaçam vitrines, saqueiam as lojas e quebram tudo imagem de beleza e qualidade de vida urbana, em parte, pela
que estiver ao seu alcance, can·os, vidraças etc. A preferência delimitação e exclusão do seu entorno.
do saque se faz sobre as lojas de bens de consumo, de roupas, Hoje, esses jovens que integram os grupos de casseurs
de tênis, de sapatos etc., sobretudo aquelas que oferecem arti- vivem em bairros (também chamados de villes ou cités), onde
gos valorizados no mercado jovem por suas reconhecidas eti- ~ e concentram os maiores índices de desemprego, imigração e
quetas. No dia seguinte, os jornais explicam que o fenômeno se marginalidade. Também em Paris, e les costumam freqüentar
deve aos casseurs (quebradores), jovens provenientes dos as áreas próximas às estações do trem RER, sistema que liga a
subúrbios em tomo de Paris, que se organizaram para atuar à periferia à cidade, e podem ser comumente vistos circulando
margem da manifestação estudantil. As lideranças estudantis em pequenos grupos, vestidos de forma bastante característica,
lamentam o incidente e se desolidarizam com estes métodos, nos Halles, área central do maior entroncamento da circulação
mas aproveitam para indicar que essa é a resposta desesperada urbana parisiense.
de um grupo de jovens sem perspectiva, resultado de uma polí- Muitas vezes, esses jovens fazem parte de grupos indivi-
tica de exclusão, posta em prática há muito tempo e que explo- dualizados pela origem espacial, pelo nome do subúrbio de
sivamente se fez mais presente nos últimos anos. onde provém. Constituem assim verdadeiros membros de "tri-
De fato, estes jovens casseurs são identificados como bos urbanas", coesos e revoltados, e definem um universo de
habitantes das áreas construídas nos anos 60 e 70 para resolver significações próprio e exclusivo ao grupo, vocabulário, ges-
o difícil problema de moradia na aglomeração parisiense. As tual, música etc. Os "Zulous", por exemplo, exprimem-se por
muralhas de Philippe Auguste ( 1190), que delimitavam os meio de um vocabulário próprio e a partir de todo um repertó-
umbrais da Paris medieval, desapareceram, e seus restos vira- rio de referências internas ao grupo e teJTitorialmente identifi-
ram monumentos históricos; contudo, a cidade sempre possuiu cado. Eles costumam fazer aparições em espaços bem-delimi-
rígidos limites territoriais. As subseqüentes fronteiras, as tados da capital, bares, boates ou clubes, e marcam também
muralhas de Carlos V (1365), as "Fossas Amarelas" (1634), a diversos lugares do trajeto com suas características pichações.
muralha dos "Fermiers Généraux" (1785) e a muralha de O diagnóstico desse problema levou o governo francês a
Thiers (1846) marcaram progressivamente os limjtes da cidade criar uma comissão ministerial, que tem como função primor-
e sua ruptura com os teJTenos contígüos.252 Hoje, as modernas dial estudar o problema da integração, sobretudo dos jovens
muralhas são constituídas por uma enorme autopista, o habitantes dessas áreas periféricas. Diversos planos de recupe-
ração das banlieues têm sido postos em prática, assim como
atividades esportivas, culturais e a renovação física dos condo-
252 Estas datas entre parênteses correspondcm ao ínicio dos trabalhos de construção mínios. Os equipamentos comun itários e o pequeno comércio
dos limites que, muitas vezes, s~ prolongaram durante muito anos.
característico da vida urbana parisiense, como, por exemplo,

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os cafés e as padarias, têm, no entanto, dificuldades para resis- il(lCa, não tinham que pagar impostos sobre as mercadorias que
tir ao medo e à violência, reais ou imaginários, que estão asso- t•mm vendidas na cidade. Assim, ainda que não fossem com-
ciados à imagem dessas áreas. pletamente associadas à cidade, essas populações mantinham
O que poderia haver de comum entre esses dois aconteci- l om ela laços fortes de dependência e submissão.

mentos, passados em lugares diferentes e em circunstâncias c É preciso distinguir, sobretudo na França, a banlieue do
contextos tão diversos? Que analogias seriam capazes de apro- {i111bourg. Embora ambos estivessem fora dos limites da cida-
ximar as praias da Zona Sul do Rio de Janeiro dos grandes de (na maior parte das vezes murados), os faubourgs eram
bulevares parisienses, os casseurs dos arrastões, as banlieues reconhecidos como parte dela, uma vez que se situavam ao
dos subúrbios ou das favelas cariocas? lado das portas e constituíam prolongamentos externos das
As "novas cidades" dos subúrbios parisienses são de boa vias urbanas intramuros. Tradicionalmente, essesfaubourgs
qualidade se comparadas às favelas ou às habitações da perife- eram ocupados por guildas ou pelo comércio especializado. Já
ria do Rio de Janeiro. Elas dispõem de bons serviços, são bem na banlieue, os comerciantes e os artesãos eram impedidos de
dotadas de infra-estrutura urbana, de transporte público, de se estabelecer para não concorrer com os privilégios concedi-
equipamentos básicos e de diversos serviços de assistência dos às corporações urbanas. Havia, portanto uma espécie de
social. Com exceção de alguns conjuntos, a aparência geral gradação dos espaços, sendo a banlieue a parcela fronteiriça
não é de degradação, e a programação física dos apartamentos mais exterior - sem ser parte da cidade, ela era ainda assim
é confortável. Alguns conjuntos, julgados como muito densos, objeto do seu controle e parte de sua dinâmica.
degradados ou gigantes, passam hoje em dia por um processo Nos séculos XVII e XVIII, esse conceito passa a definir
de renovação que inclui inclusive a demolição de algumas tor- com mais exatidão um espaço intermediário, na medida em
res ou sua completa reforma. que as tenas da banlieue são vistas como a extensão máx ima
As origens do conceito de banlieue podem talvez nos aju- dos poderes dos magistrados urbanos e simultaneamente como
dar a refletir sobre alguns elementos da dinâmica atual. Légua 0 espaço não-urbano que depende da cidade, mas ainda não a
de banimento (ban-lieue) é a etimologia e se deve originalmen- zona rural propriamente dita. A partir do século XIX, essa de-
te à associação feita com os espaços de exclusão estabelecidos nominação passa a significar mais claramente um terreno de
em torno das cidades da Idade Média. O termo foi também oposição entre a cidade e o espaço que a envolve. Em Paris, a
usado para demarcar a fronteira que separaria as tetTas cultiva- hanlieue imediata, próxima e mais integrada e solidária com o
das daquelas ainda não trabalhadas. A população que aí residia desenvolvimento da cidade recebeu o nome de "pequena ban-
estava submetida ao complexo sistema de poder da época de lieue" ou "petite ceinture" em oposição à "grande banlieue",
forma um pouco singular: devia obediência e serviços ao sobe- espaço de exclusão efetivo do tecido urbano parisiense. A par-
rano, à autoridade eclesiástica ou aos burgueses, sediados na tir dos anos 1840, essa "pequena banlieue" começa a sofrer a
cidade, descritos na época como direitos do "ban", que intervenção do poder público sob a forma de retificação do tra-
incluíam o direito de legislar, julgar e arrecadar impostos. Com çado das ruas, ligação das principais vias, renovação das parce-
o tempo, esses camponeses também foram obrigados a contri- las e finalmente, em 1860, partes dessas áreas foram definitiva-
buir na defesa da cidade, embora residissem fora dela; em mente incorporadas à cidade, definindo um novo limite entre a

?00 ftll\. ........ 201


capital e seu entorno, a nova banlieue. Foi, portanto, a partir do descrita como espaço da deambulação, da mise-en-scene Ja
Segundo Império, quando Paris assume uma posição de cidade vida pública, da beleza e da elegância urbanas.254 Quanto
moderna que essa oposição se configurou com mais clareza. 111aior era a criação de uma imagem esplendorosa e brilhante
da cidade, mais distante, obscura e indistinta se tomava a fi gu-
A política do Segundo Império empurrou os operários para a ra da banlieue. Em 1920, Henri Sellier, descrevendo Paris e
periferia da cidade, para Grenelle, Belleville, Vaugirard, Mé- sua periferia, dizia: "De fato, o comércio, a indústria, a riqueza
nilmontant. .. Sobretudo, ela criou em torno de Paris uma verda- da aglomeração inteira estão grupados no interior das fortifica-
deira banlieue, mas em condições tão particulares, que não se \Ões . A população operária, ao contrário, foi rejeitada para a
assemelha à de nenhuma outra metrópole. A banlieue parisiense periferia. Quanto mais nos afastamos do Centro de Paris, em
foi povoada menos pelos camponeses empobrecidos vindos tra- direção à banlieue, mais a população das comunas se torna
balhar como operários na cidade, como em Viena, ou por bur- pobre e rniserável."2S5 Assim, tudo o que parecia feio foi posto
gueses remediados fugindo da confusão e da vetustez do centro, rora dos 1imites da cidade. Fábricas, grandes supermercados,
como em Londres, e muito mais por artesãos expulsos do coração
conjuntos habitacionais ou, em outras palavras, operários, imi-
grantes e pobres em geral, sendo em grande parte os principais
da cidade em vagas sucessivas. A banlieue parisiense representa
integrantes das banlieues.
exatamente o "lugar do banimento", o território onde se está bani-
Os estranhos à cidade são identificados pelo número das
do. A diferença era grande em relação aos antigosfaubourgs, que
placas dos carros, alguns cafés ou bares são ni tidamente asso-
envolviam Paris até as obras de Haussmann: eles formavam
ciados aos banlieuesards, e seus comportamentos identificados
excrescências da grande cidade ao longo das principais vias,
pelos parisienses com um certo desdém. Finalmente, nas áreas
espécie de prolongamentos da vida urbana penetrando no campo.
internas à cidade, onde ainda há um predomínio de imigrantes
A banlieue, ao contrário, aparece, a partir de Haussmann, apre-
pobres ou velhos setores das classes populares, são previstos
sentando um aspecto original: era o lugar para onde os citadinos
grandes trabalhos de renovação e revalorização urbana.
pobres, mas habituados a uma vida urbana, haviam sido expulsos,
Interessante é perceber que foi exatamente a partir desse
um território que não era exatamente a cidade, mas era menos
processo de diferenciação espacial que surgiu, ainda no final
ainda o campo, uma cultura original e diferente da cultura urba-
do século XIX, no atual bairro de Belleville, na época banlieue
na, constituída ao lado dela e contra ela.253
da cidade, o movimento Apache, movimento este que, em vá-

Foi também sobre esse espaço que iriam mais tarde se lo-
calizar as atividades com menos glamour que compõem neces- 21 4 Desde meados do século XIX, a transferência de certas atividades para a banlieue
liberou espaços que se reconverteram em praças, jardins ou em novas áreas de habita-
sariamente o equipamento urbano, como armazéns, grandes \·~ o. Exemplos maiores desse processo são os conjuntos de Halles e o Pare de La
indústrias, pátios de manobras e manutenção etc., em oposição Villete. Essas operações, entretanto, continuam sendo executadas, e as últimas em data
sao a reconversão da ilha pertencente à fábrica Citroen em parque, e dos armazéns de
clara à cidade de Paris, renascida das reformas, já tantas vezes llcrcy em parque e áreas de habitação altamente valorizadas.
1'1 Sellier, Henri, "Les banlieues urbaines et la réorganisation administrativedu dépar·
t~mcn de la Seine", in Les Docwnems d1r sodalisme, Mareei R1viêre. 1920, citado em
253Marchand, Bernard. Paris: Hütoire d'une vil/e (XJXe-XXe siecles), Seuil, Paris, l ~o ncayl, M. & Paquot, T. Villes el civilisation urbaine XV/IJ•·-XXe Sii!de.1·,
1993, pp. 101·12. Larousse, Paris, 1992, p. 465.
I
11111 oloo ~iq•,1da Grande Guerra, a banlieue se
rios sentidos, é o precursor dos atuls.~f
, 1111101 ''"'" de habitação com grande concen-
particular, com vocabulário, mancirus c
1 •,,-_,,_lllndu um processo comum nas gran-
vam a ética burguesa e hegemônica do "''" htlllll
11 111• '''""'"'"populacional da aglomeração
homens e mulheres, filhos de opcdrinH,
111111 ''"' I'·"'"Je parte pela periferização da
ramente, incursões e depois se esla~d1
R""" "'""''1'0 de habitantes da cidade pro-
nente sobre o tecido da cidade, da quul MtUI
li,'"""""" /la/Jy boom foi, dessa forma, em
sido expulsos. Havia um certo culto uo
•h I•• po·lal•a11/ieue, que viu também se inau-
às vestimentas, que, se não eram us IIIGIInd
•• o111d•·•· ,·onjuntos em 1955, política habita-
sociedade mundana estabelecida em l'm'll,
' "l"''dllminante até 1975.
uma certa sofisticação e uma mandra
I•• .. ,.,,.,rentar que nem todas as banlieues
Esses apaches tinham de fato a intcn,·nu dl
•1111o11••• '·''" m·upadas por habitações populares;
passado operário que os havia rclq,:udn A
fo,uill, "''" <'Kircmamente valorizadas nas dire-
filhos de pobres procuravam não só nouhnr,
1' .. 111'1. llllt'lllanto, são comumente designadas
reconhecidos."257
Em torno da cidade de Paris, tms p~M du 1"''1'''"''· Nt•llilly, Passy etc. e não encontram
I~-'H 11n l'."t~rico banlieue.
truídas em 1845, ficava o que se dCIII<llllliiiiYii
non aedificandi, que logo se transfonm111 nn u•-1 ~ dt·~.l)'íf o ponto frágil do equilíbrio social,
parlamento desviante e do não-cumprlmfnll lfUIt~ n~· tumper. As banlieues estariam prestes a
1925, essa área permaneceu como terrill\t'IU a lttluildlt'IHHl aí seria ultrajada-:- a insegurança aírei-
de de Paris, sendo inteiramente intcgrudn t dn 111rdn, "hwzlieues do Islamismo" também.260
pela força de decretos sucessivos.258 Eru
tarde viu aparecer habitações precárias, t!IIO 01 el•
lu•l•'. ,.,,la denominação de banlieue (ou de
nham seus ritos e suas bases. Não obstunlo, lllt•ll'llh' ,,,,.,.,,·iada a uma imagem negativa, muitas
a'"'''I"'"' da presença de imigrantes, sobretudo
eles tentavam se apropriar dos bairros, d~l ool•l• """· Essas áreas são também referidas
por meio de batalhas sangrentas, seu loril'ild•l'l• •h• "/ri IU~loi", ou seja, do não-cumprimento
filhos de operários quisessem reconquisllll' 1111 "o/11 """ dmit", fora dos limites da legalidade.
lll•lll'l"'"itlmlc, imigrantes e subúrbio parecem
.,.,"""''' indislinto na ideologia do senso comum,
-••'"" 11 '''"dhos que mostram a proporção nume-
256 Veja a esse respeito, Drachline, P. & Peti~CuscU, (',C ""'·l•ai>itantes franceses nessas áreas.
Renandot et Cie, Paris, 1990.
257 Marchand, Bemard, op. cit., p. 212.
258 Clozier, René. "Essai sur la banlleue", /11 /.ti 1'(-"~,
Roncayolo, M. & Paquot, T., op. cit., p. 445.
"'tt' ,,, 1 I~•'J,·u.\ Pn.:ss.cs de Scicnces Poli tiques, Paris, 1996, p. 7 .
259 Marchand, Bernard, op. cit., p. 211.

204 jú1l\
.aw 205
As escalas ou como cada local mobiliza I'<Jlo de que, em grande parte dos casos, esse jogo de escalas é
elementos de alcance diverso na visto como sendo o caminho para uma progressiva generaliza-
compreensão de sua dinâmica ção, quando optamos por representar o fenômeno em escalas
menores, ou de detalhamento, ao optarmos pelo caminho in-
Nesse tipo de problema, estamos, sem dúvida, privilegiando verso, o de representá-lo em escalas maiores.263
elementos de uma escala local. lsso, no entanto, não quer dizer A raiz desse problema da representação, tanto analítica
que eles sejam visíveis apenas nessa escala ou que podem ser quanto cartográfica, parece residir na enganosa hipótese de que
completamente inteligíveis apenas dentro desse universo de ta- há um fenômeno real, concreto, limitado e visível, e de que so-
manho.26l De fato, nessa escala local podemos relacionar, com mos capazes de representá-lo com rigor e precisão, seja por
mais facilidade e mais elementos, a teia de sentidos das locali- meio de uma linguagem descritiva, seja por meio de uma lin-
zações. A busca de coerê ncia e ntre o s istema de arranjo dos guagem cartográfica. Ora, sabemos que uma grande parte dos
objetos e a organização dos comportamentos sociais a ele rela- objetos e fenômenos que desenhamos sobre um mapa não é
cionada aparece com muito maior expressão quando estamos proporcional ao tamanho que escolhemos para representá-la.
neste patamar de observação. No entanto, o sentido dessa dialé- Muitas vezes, eles não poderiam aí figurar se a escolha fosse
tica espaço-comportamento, ainda que observada localmente, efetiva e unicamente guiada pela proporção do tamanho. Esse
não poderá ficar aí restrito. Não é recomendável voltar ao singu- é o caso de estradas, vias, redes hidrográficas, pequenas cida-
larismo de uma geografia que pretendia simplesmente alinhar des, povoados etc. De fato, cada carta é um quadro arbitrário
estudos de casos únicos. A observação local não pode ficar res- de escolhas, de objetos e fenômenos, que desejamos colocar
tii ta a uma descrição das diferenças e propriedades singulares. É em relação. A carta é assim um meio g ráfico utilizado como
necessário dispor de condições para proceder a comparações e a instrumento de demonstração. Ela não pode e não deve se con-
reconstituições possíveis dos problemas, em outras escalas. l'undir com a " realidade".
Nós, geógrafos, acostumamo-nos a empregar a expressão Segundo o conto de Borges, restam ainda alguns retalhos
"jogo de escalas" para exprimir o que constituiria uma certa da carta em escala de 1:1, sonhada pelo cartógrafo do rei, e
particularidade e riqueza metodológica associada à própria parece que alguns deles são preciosamente guardados por
natureza da geografia. O primeiro e me nor problema desse alguns geógrafos. Estes últimos, muitas vezes, obstinam-se
raciocínio é que isso não corresponde exatamente a uma exclu- nessa fantasia, que os impede de vislumbrar o problema sim-
siva particularidade da geografia, pois outras disciplinas tam- ples de que uma representação é uma escolha. Assim, ainda
bém utilizam o mesmo recurso (a história, a antropologia, a que fosse possível criar uma representação absoluta, estaría-
biologia etc.).262 O maior problema, todavia, constitui-se no mos de fato procedendo apenas a uma substituição, o real pela
representação, tarefa impossível e sem sentido, uma vez que
~6 1 Os parrtgrafos qu e seguem já foram, com algumas modificações, apresentados no
teríamos uma cópia perfeita que corresponderia ao objeto e,
trabalho "A cultura pública e o espaço: Desafios metodológicos", no li Encontro de
Geografia Cultural, UERJ , ouL de 2000. portanto, sem qualquer valor analítico ou instrumental.
262 Veja, por exemplo, Castro, lná E. "O problema da escala", i11 Geografia: Conceilos
e remas, Castro, I. e/ ali i (org.), Bertrand 13rasil, Rio de Janeiro, 1995; Boudon, P. De
l'archilecwre à /'épisrémologie. La quesrion de /'échel/e, Paris, PUF, 199 1, e Revel, l6J A questão da grandeza das escalas é aqui empregada no sentido cartográfico, inver-
Jacques. (dir.). Jeux d'échel/es. IHESS, Paris. 1996. samente proporcional à área representada.

:>OG ,f\111\ .... 20 I


A simplificadora metáfora do binóculo não pode ser a singularidade de cada um desses movimentos, um certo tipo de
matriz da idéia de um jogo de escalas. Para cada escala, cria-se abordagem pode revelar alguns pontos em comum. Em outros
um quadro referencial; o fenômeno não é o mesmo, e seu uni- lermos, os fenômenos não são absolutamente diferentes ou simi-
verso relaciona! o redefi ne, embora em quaisquer dessas re- lares em si e dependem essencialmente do tipo de análise que se
constituições de variadas proporções ele guarde traços essen- pretenda fazer. e cada tipo de aproximação mostrará aspectos e
ciais que o identificam e permitem a comparação. dimensões di versas criadas por iluminações não-exclusivas.265
A imigração estrangeira, que tanta importância assume nos Comparar aqui não quer dizer fazer um uso abusivo dos
debates políticos na França, não tem nenhuma dimensão no casos semelhantes, espécie de multiplicação de um mesmo
universo carioca. Da mesma forma, as diferenças de localiza- sentido, tautologia fortemente associada às nossas tradições
ção da população mais pobre, agrupada em g rande parte na acadêmicas. Ao contrário, as comparações devem ser estabele-
periferia de Paris, misturada ao tecido valorizado da cidade, no cidas também pelas suas dessemelhanças ou, como diria
caso do Rio de Janeiro, ou ainda, as diferenças dos sistemas cul- Detienne, comparando o incomparáveJ.266 Essa abordagem nos
turais, do nível de escolaridade, de acesso aos serviços públi- permite identificar os graus de variabilidade de um fenômeno
cos, do nível de democratização da sociedade, da exuberância c seu quadro referencial. Mais uma vez, para compreender os
das desigualdades sociais, são indubitavelmente muito distintas lermos dessa comparação não estamos condenados a permane-
se tomados os dois casos descritos acima, ou seja, as diferenças cer fixados no domínio do local, mas é a parti r dele que pode-
gerais dos níveis de qualidade de vida entre esses dois casos não mos traçar uma série de relações com o utras dimensões da
podem ser vistas como análogas. Na opinião de muitos, seriam vida pública, na França e no B rasil. Por intermédio dessas
situações muito díspares para poder ser colocadas lado a lado, comparações, percebemos quanto nos é util relacionar fenô-
realidades muito diversas e, portanto, dinâmicas muito diferen- menos que estão diferentemente associados a outros, para cada
tes a moverem casseurs e arrastões.264 Além disso, se analisa- caso. Assim, na França, o debate da inclusão social, por exem-
dos em detalhes, esses acontecimentos apresentariam tantas plo, associa-se hoje à religião, à etnia, dados que no Brasil não
outras particularidades locais, que invibializariam, sem d úvida, são nem mesmo relevantes. No Brasil, por outro lado, a com-
qualquer ponto de vista generalizador. preensão da dinâmica do espaço público deve levar em conta
A despeito dessa perspectiva que sublinha as diferenças, as grandes distinções de renda, elemento fundamental que na
quando esses dois acontecimentos são narrados, na maneira França se apresenta de forma muito menos eloqüente ou, pelo
como são descritos e nos elementos que figuram nessa descd- menos, de maneira m uito mais sutil.
ção, deixam transparecer fortes indícios de similaridade entre
eles. Seria mais correto afirmar que, sob determinados ângulos,
a comparação é valida, ou seja, sem negar a especificidade e a 265 Colocamo-nos, assim. frontalmente conLru a perspectiva quase dominante. que é a
de sublinhar diferenças e qu e concebe como única similaridade o fato de que essas
populações são "excluídas". economicamente "despossuidas". Acreditamos que essa
264 posição renova a idéia de um determinismo econômico simplista c que tende a fazer
Esse é, por exemplo, o ponto de vista sustentado por Zalu ar, A. e m "Gangues,
uma rabu/a rasa de toda dimensão cul tural, como um epife nômeno derivado. Como
galeras e quadrilhas: G lobalizução, juventude e violência'", in Vianna, H. (org.)
exemplo recente dessa perspectiva, pode-se consultar: Wacquant, Lo·lc. Os coudellll·
Galeras cariocas: Territórios de conflitos e eJlCOntros culturais, Editora UFRJ, 1997.
dos da cidade. Ed. Revan. Rio de Janeiro, 2001.
pp. 17-57.
266 Detienne. M. Comparer /'illcomparable. Scuil, Paris, 2000.

/08 ,nnf\ ..... 209


A este tipo de contextualização não-ortogonal de escalas, tcncimento, dinâmicas também de orientação espacial, segundo
chamaremos de obliqüidade, ou seja, os elementos importantes signos estruturados, ou vivências diferenciais que resultam em
das comparações nem sempre estão situados no mesmo pata- imaginários próprios aos grupos que tran sitam e transformam
mar e são chamados a depor segundo a importância que assu- esses espaços. Pode-se mesmo dizer, sem exageros, que nos
mem em cada contexto. A imagem do "tapete" foi utilizada por últimos anos houve a "redescoberta", atrás da simples extensão
historiadores para demonstrar a importância desses cruzamen- física do espaço, de toda uma ordem de significações, códigos
tos analíticos: "Pode-se verificar a coerência do desenho per- de referência espacial, que constitui uma dimensão incontorná-
correndo com o olhar o tapete segundo diferentes direções."267 vel na estrutura das dinâmicas sociais.
A trama horizontal possui um desenho, uma seqüência de linhas No Rio de Janeiro, a situação do espaço físico é bastante
e pontos, de diferentes tonalidades, e a esta trama junta-se uma diversa daquela assinalada em Paris. As grandes demarcações
outra, coerente e ordenada, com outro padrão morfológico e de foram feitas segundo diferentes padrões de oposição: bairros-
tonalidade. Juntas, estas tramas dão origem a um novo padrão, subúrbios, favela-bairro, Estado do Rio de Janeiro-Estado da
que, por sua vez, pode ser observado também sob um ponto de Guanabara, alto-baixo, asfalto-favela.269 A própria idéia de
vista diagonal, dessa vez "saltando de um contexto ao outro". favela mudou no tempo e se apresenta sob formas diversas no
Essa formulação metodológica, fundada no que aqui pode- universo carioca. Na Zona Sul da cidade, hoje esta designação
ríamos chamar de três procedimentos escalares e nas possíveis está muito mais relacionada a uma imagem desordenada do
relações entre estes três planos analíticos, exige também uma padrão construtivo e da apropriação da terra do que à total
nova organização dos dados e da definição do que pode ser um ausência de serviços ou à presença de barracos de madeira,
documento geográfico e, ainda mais importante, do que pode como ocorria até meados da década de 70.270 Ainda que a pre-
ser uma anál ise geográfica.268 cariedade e o oferecimento de serviços tenham mudado muito,
Para os pesquisadores das questões espaciais, sobretudo os permanece constante, desde o seu início até os dias de hoje,
geógrafos, existem, nesta breve descrição dos arrastões e dos este padrão "informal" de construção, ou seja, a construção e o
casseurs, alguns elementos de grande relevância e que são pas- arranjo do espaço fora dos modelos oficiais de controle e legis-
síveis de introduzir novos tratamentos analíticos e atuar sobre lação que regem a habitação na cidade. Esse "padrão infor-
recortes e dinâmicas territoriais inéditos no temário disciplinar mal", desde muito cedo, misturou-se e acompanhou o desen-
tradicionalmente admitido para a geografia. Esta concepção volvimento da "cidade formal" .
colabora e reforça uma reflexão sobre o espaço que atualmente Nos casos brevemente expostos acima existem três pontos
cada vez mais sublinha os processos sociais de estruturação do que endossam essa nova perspectiva e abrem novos veios para
espaço, suas dinâmicas e ritos de apropriação, exclusão e per-
2ó9 Em Paris, as oposições são outras e possuem realmente sentidos diferentes, como
aquela que opõe a Rive Gauche (margem esquerda do rio Sena), elegante, intelectual ,
267 Ginzburg. Carlo, Myrhes, emblemes, traces: morplwlogie et histoire, Frammarion. burguesa, à Rive Droite (margem direita), boêmia, alternativa e. muitas vezes, popu-
Paris, 1989. p. 169. lar; ou ainda a oposição entre o Oeste e o Leste de Paris, carregada de um sentido aná-
268 Em ouu·a oportunidade tentamos demonstrar que esse lipo de abordagem poderia
logo ao anterior.
constituir a abertura para um novo campo, uma "microgeografia", ass im denominada 270 A esse respeito, consultar, por exemplo, Valladares, Licia. "Qu 'est·ce qu'unefave-
pela analogia com as conhecidas escolas de micro-história ou de micmssociologia. la?", in Calliers des Amériques Latines, m34, 2000, pp. 61-74.

/ I 0 ,1lf1f\. . . . 211
a pesquisa. O primeiro diz respeito ao fato de que esses aconte- primeiro grande grupo, o Zulu Nation, declarou estar se insur-
cimentos ocorreram no quadro de grandes cidades metropolita- F.indo contra a tendência predominante na indústria musical e
nas, onde a complexa dinâmica social desafia a simplicidade demarcando uma ruptura com o domínio dos brancos, do rock
dos esquemas teóricos globais e totais que prevaleceram nos ""d rol! e dos grandes espetáculos. As letras, em geral, descre-
anos 60 e 70. A metrópole moderna não pode ser vista exclusi- vem, em vocabulário próprio ou característico dessa comuni-
vamente como um ponto onde se concentra a acumulação do tbde, as situações de opressão e racismo ou tratam de temáti-
capital, onde todos os conflitos são aqueles resultantes das lutas cas relacionadas aos problemas urbanos da atualidade. O fenô-
de classe, e onde o espaço é simplesmente concebido dentro de meno se associa também às pichações ou taggers, com os
uma ótica dualista, seja ela de centro e periferia, de pobres e nomes dos grupos ou suas assinaturas.272
ricos ou de cidadãos e excluídos. A complexidade da dinâmica O segundo ponto se refere às praias e aos bulevares. No
metropolitana nos leva a conceber estas categorlas de forma caso do Rio de Janeiro, nada é mais característico como espa-
relaciona!. Universos de referência flexíveis e instáveis, os t,:o do "carioquismo" do que as praias da Zona Sul da cidade.
espaços da metrópole são dinâmicos e se associam de maneira Nas praias se inscreve o estilo de vida do habitante da cidade.
diversa, criando composições próprias, com filtros e fronteiras Nelas, que são uma das imagens picturais mais fortes do Rio de
de permeabilidade diferente e conteúdo particular. .Janeiro, são lançadas as novas modas, as novas gírias, onde o
A despeito dessa complexidade e do particularismo de cada ~.:arioq ui s mo é mais característico, ou seja, a praia serve como
caso, há, entretanto, sempre muitas possibilidades de compará- um poderoso referencial na definição do estilo de vida, carica-
los. Esses dois casos descritos, por exemplo, correspondem ao turizado, é claro, da cidade. A praia é também um referente que
Rio de Janeiro e a Paris, mas poderiam muito bem ser relaciona- ultrapassa em muito os limites das areias, seja na referência à
dos a outros movimentos existentes em outras grandes cidades. parte da praia da qual se é freqüentador, seja no bronzeado exi-
O fato de no Rio de Janeiro estes grupos se associarem ao funk, bido fora dela como signo do direito ao ócio, muito importan-
enquanto em Paris a referência é o rap, estilo musical identifica- te na leitura cultural carioca. Mais uma vez, é preciso notar, a
do com as banlieues, já demonstra uma citação, por meio da propósito do bronzeado, que este signo é central dentro do uni-
escolha musical, de uma situação vivida em outras grandes cida- verso simbólico carioca, mas é talvez apenas uma modalidade
des, neste caso as grandes metrópoles norte-americanas. dentro de uma dinâmica comum à cidadania, que pressupõe
Essas cidades foram o nascedouro desses doi s ritmos mu- que os homens "têm que se libertar para a liberdade", ou seja,
sicais. Em ambientes também de exclusão, eles se definiram estar livres das necessidades da sobrevivência imediata para
em grande parte como oposição a outros gêneros musicais poder exercer seu direito à autonomia. Este parece ser o senti-
"aceitos na cidade". O rap é um estilo de música nascido no do fundamental da idéia de schole, em grego, ou de otium, em
Bronx, em Nova Iorque, no seio da comunidade negra.271 O
m Notemos que o fenômeno das pichações sobre as paredes é correlato à imagem dos
271 Nos EUA, a dinâmica da exclusão ou o domfnio dos grupos marginalizados são logotipos comerciais que também preenchem nossos espaços urbanos. O logotipo é
particularmente sentidos na difícil convivência entre grupos étnicos diferentes. Nesse também um objeto semiótico que se aparenta à assinatura e se define muito mais por
caso, a identidade étnica parece ser o problema fundamental. Negros e hispânicos não aquilo que ele é do que por aquilo que designa. Pouco importa que a assinatura seja
se percebem como americanos; ao contrário, sentem-se parte de uma comunidade de legível, contamo que ela possa ser associada em permanência a uma certa pessoa ou
excluídos dentro de uma democracia racial. coisa.

..... 2 13
Roma que, por oposição, resultou em negotium, que significa a tamente publicidade, ou seja, inscrevem-se como problemas
negação dessa possibilidade.273 Assim, a praia, embora não dl! ordem pública pois se associam a ela ao ocorrerem sobre
seja dentro da dinâmica carioca um local primariamente iden- l'sse tipo de espaço.275 O que estamos querendo dizer é que
tificado com a idéia de direito e deveres de um cidadão, funcio- m·sses dois casos há uma similaridade fundamental já que as
na indiretamente como o local que indica, pela freqüência, o praias e os bulevares são respectivamente os espaços de reco-
acesso a este exercício. Compreendemos assim de outra forma nhecimento do exercício da cidadania nesses dois exemplos,
a central idade desse espaço dentro do imaginário da cidade. Jo Rio de Janeiro e de Paris.
É nesse sentido que podemos julgar a importância das O terceiro elemento de ordem espacial que figura nades-
expressões de largo uso, como, por exemplo, "vamos invadir crição dos movimentos dos casseurs e dos arrastões diz res-
sua praia", utilizada para qualquer situação de chegada de um peito à origem espacial dos jovens envolvidos nesses tumultos.
grupo dentro de um espaço mais ou menos delimitado por 1 ~ provável que, desde o momento em que esse espaço tenha
outro; ou da expressão "esta não é a minha praia", que serve sido associado a um lugar importante da identidade urbana,
para exprimir qualquer tipo de preferência ou de identidade tenha também conhecido, no mesmo momento, as rupturas
social diferente daquela que está sendo apresentada. Jiferenciadoras e excludentes. Tanto nos jornais brasileiros
Segundo Duvignaud, "todas as sociedades oferecem um quanto na mídia francesa, os distúrbios são sempre acompa-
lugar de representação do imaginário, um lugar do espaço onde nhados dos comentários sobre o não-pertencimento desses
são interpretadas as ficções e os símbolos, os mitos ou o tea- jovens ao território sobre o qual eles se manifestam, e a im-
tro".274 Duas noções nesta afirmativa merecem ser comenta- pressão criada é sempre de uma invasão. Assim, as designa-
das. A primeira é a de interpretação, pois carrega um duplo ções usuais no universo de significação das praias de " turista",
sentido importante; ela pode ser vista como representação de "paulista", "paraíba", "bife à milanesa" e "farofeiro" são
um personagem ou de uma situação, na linguagem teatral, mas alguns dos vocábulos que refletem essa dinâmica de exclusão.
também pode ser vista como a expressão de uma compreensão, Esses adjetivos se referem, explicitamente nos três primeiros
de uma forma de conceber. Por isso, interpretar (n)a cidade exemplos, ao fato de estas pessoas serem provenientes de
quer dizer também fazer uso de signos que remetem a outros outros espaços, longínquos e pouco valorizados; nos dois últi-
signos e estes ocupam um lugar definido na trama do discurso mos, esta referência é implícita, pois serviram e servem ainda
urbano. "A cidade é uma linguagem ( ... ). Habitar Atenas, para denominar aqueles que, embora também habitantes da
Corinto, Siena ou Amsterdã é habitar um discurso." mesma cidade, possuem um comportamento "estranho" ao
A segunda noção importante é propriamente a de teatro, local, o que denuncia sua proveniência espacial, ou seja, subur-
que no sentido primeiro, do grego theatron, quer dizer "aquilo banos ou periféricos.
que se faz ver". Por isso, não poderíamos, mesmo que quisés- Desta sumária apresentação, destacam-se questões sobre a
semos, esquecer também que essas manifestações descritas se exclusão, suas manifestações e suas representações no espaço,
passam sobre um espaço público e, portanto, ganham imedia- questões sobre cidadania, do direito ao território e de comuni-

273 Arcndt, H., op. cit., p. 47. 275 O termo publicidade está sempre sendo empregado aqui em seu sentido kantiano,
274 Du vignaud, Jean, Lieux et non lieu.x, Ed. Gali lée, Paris, 1977, p. 112. que quer dizer tomar público, difundir, oferecer à livre discussão.

~ 215
dades territoriais. Cidadania, exclusão e comunidades territo- suas desigualdades, suas alianças e seus enfrentamentos, sua
riais são temas ligados às ciências política e jurídica. Vimos, lógica organizadora e seus sentimentos. A praia é espetacular.276
entretanto, que estas categorias têm implicações diretas sobre a
dinâmica espacial; poderíamos até dizer que o espaço tem uma Nas praias todos podem se reunir, todos os grupos existen-
dimensão fundadora nestes fenômenos. A surpresa é constatar tes podem ter acento, e todos devem convi ver sob o mesmo sol
que, por um lado, os especialistas desses temas, ao fazer suas c sobre o mesmo espaço. ou melhor, quase todos.277 Já disse-
análises, tratam sempre de um espaço abstrato, sem espessura, ram algumas vezes que sobre as areias do Rio de Janeiro exis-
de significações fluidas, ou ainda tomando grandes unidades te um modelo de democracia, pois no despojamento da indu-
territoriais como base de homogeneização; por outro lado, os mentária sumária não há leituras diferenciadoras possíveis;
especialistas preocupados com as questões da dimensão espa- todos são iguais e dispõem de um mesmo espaço onde se avi-
cial da sociedade parecem não considerar os debates sobre zinham . Trata-se, no entanto, de uma perspectiva enganosa,
nacionalidade e cidadania como temas possíveis dentro de seus visto que interpreta os sinais de diferenciação social como se
programas de pesquisa. fossem exclusivamente proporcionais à materialidade dos sig-
nos que os veicula. Da mesma forma, falar em democracia das
praias, simplesmente porque as pessoas estão sob um mesmo
A volta: Uma territorialidade na praia espaço, é esquecer que nem por isso elas estão situadas no
mesmo lugar
De fato, historicamente, desde o momento em que as
Nenhuma área se apresenta, do ponto de vista morfológico,
praias perderam a imagem repulsiva que tinham, como lugar
com maior regularidade do que as areias de uma praia. Po-
de despejos e doenças, e se transformaram em um topos valo-
deríamos pretender então que neste tipo de isomorfia a tendên-
rizado pelo discurso terapêutico, no final do século XVIII, per-
cia maior seria a indistinção na freqüência, uma vez que a loca-
cebemos que sua ocupação recria as distinções sociais mais
lização do trecho ao longo das praias muito pouco interfere nas
importantes.
atividades nela praticadas. Esta não é, no entanto, a constatação
que fazemos. Ao olharmos a ocupação de uma praia carioca em
Em 1827, a praia de Swinemude é dividida em cinco zonas. A do
um dia de grande afluência, imediatamente percebemos um
meio deve permanecer vazia; tem por finalidade separar os dois
desequilíbrio interpelador; há pontos de grande concentração
setores, um reservado aos homens e outro às mulheres( ... ). Essa
de pessoas, muitas vezes onde é difícil encontrar um lugar livre,
clássica distribuição segundo o sexo vê-se acrescida de uma
justapostos a superfícies quase desocupadas.
fro nteira social. O setor reservado ao sexo masculino divide-se
em duas zonas. Na primeira ficam os membros das classes infe-
A praia aparece para a análise como um destes lugares privile-
giados onde a sociedade se põe em cena com seus ritos e seus 'I<• Urbain, J. D. Sur la plage. Payot, Paris, 1996, p. 19.
símbolos, seus costumes festivos e suas convenções, seus dese- m !\ questão da diferenciação das classes sociais é um dos aspectos mais estudados
m·,sa distinção de usos de territórios nas praias. Veja, por exemplo. Duteurtre. B. "La
jos e suas normas, suas regras e suas transgressões, suas estraté-
luttc des classes d'Étretat ", in Revue liuéraire et politique, rP. 4, 1998; c Erwitt, Elliot.
gias de coexistência e seus códigos de instalação, suas divisões e I 'lllgl.'s. Ed. du Chêne, Paris, 1996.

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riores, que não possuem cabines nem carros de banho. O segun- dos do século XIX, começaram a se impor como lugares de
do setor da praia destina-se aos ricos( ... ). A primeira das zonas encontro da aristocracia e da alta burguesia: a duquesa de
reservadas às damas beneficia-se do mesmo tipo de equipamento, Oerry em Dieppe, o duque de Momy em Dauville, a imperatriz
do qual estão privadas as mulheres das classes inferiores, relega- Eugénie em Biarritz. Segundo consta, a atriz francesa Sarah
das ao último setor.278 Bernhardt foi uma das primeiras pessoas a teimar banho de mar
em Copacabana, o que naquela épÓca, final do século XIX,
A mudança da imagem associada ao terapêutico para o ainda chocou as elites brasileiras. A partir de então, a leitura do
universo hedonístico do homem moderno, ao longo do século banho de mar e da praia em geral começa a ser revista também
XIX e XX, só fez complexificar e ampliar essas distinções. Às no Brasil. Recomendado pelos médicos, esse espaço também
distinções por sexo ou classe, vieram se juntar muitas outras, passou a ser visto como uma área de lazer, de práticas esporti-
moradores e forasteiros, turistas de temporada ou de desloca- vas e saudáveis ou simplesmente como possibilidade de um
mento diário, vindos de longe ou de perto, jovens ou idosos, contato direto com a natureza.279
em famíl ia ou solteiros, em grupos grandes ou pequenos etc. A ocupação da orla marítima, correspondente ao que hoje
São todas essas distinções que irão regular a distribuição das denominamos praias da Zona Sul, começa nessa época. Desde
pessoas sobre esse espaço, criar proximidades e distâncias, 1892, um túnel dá acesso direto a Copacabana a partir de
Botafogo, e dois anos depois são implantadas as linhas de bon-
criar cont1itos e alianças, imagens e dinâmicas.
des ligando os dois extremos do bairro; em 1904, foi inaugura-
No Brasil, mais precisamente no Rio de Janeiro, o proces-
da a avenida Atlântica com quatro metros de largura, e dois
so de valorização das praias foi bastante semelhante ao descri-
anos depois um novo túnel é aberto, incorporando definitiva-
to acima, ainda que com um certo atraso. Por volta do final do
mente essas áreas ao resto da cidade. Assim, já na primeira
século XIX, as temperaturas altas, a maresia e a proximidade
década do século XX, diversas casas foram construídas em Co-
às praias ainda eram vistas, em geral, como características
pacabana, e um grande loteamento foi organizado para as praias
negativas. Tudo isso nos enviava também a imagem de uma
de Ipanema e Leblon. Ainda que as densidades da ocupação
paisagem tropical vista como distante dos modelos europeus
fossem muito baixas, o governo investia na infra-estrutura, cal-
de civilização urbana e temperada. Por isso, muitas casas eram çando ruas, saneando e iluminando. A maior parte das pessoas
construídas dando as costas ao mar, os bairros valorizados que aí residiam eram segmentos de uma nova classe média alta
ainda eram aqueles que se situavam em áreas mais altas, e, nos e personagens da elite carioca. Isso ajudou na divulgação da
meses do verão, aqueles que podiam abandonavam a cidade e imagem desses logradouros como bairros de luxo.
preferiam ir para a região serrana, sobretudo para Petrópolis. Ao mesmo tempo se configurava uma distinção funda-
A partir do começo do século XX, no entanto, essa ima- mental no tecido da cidade que crescia também na direção do
gem começa no Brasil a ser transformada, sobretudo seguindo que hoje é a área denominada como os subúrbios da Central.
o exemplo dos grandes balneários franceses, que, desde mea-

219 O relativo "atraso" brasileiro em relação ao uso dos banhos de mar como terapia
278 Corbin, Alain. Território do va;:io: A praia e o imaginário ocidental, Cia. das lalvez possa ser explicado pelo fato de que só os banhos em águas frias eram recomen·
Letras, São Paulo, 1989. tlados no século XIX.

. . . 219
Diversas vezes a intenção de separar a cidade em três grandes tu1vam a cidade e mesmo dos mapas que representavam a ocu-
unidades foi enunciada: o Centro, coração da cidade e ponto dl! 1'.1 \:tO urbana. A "democratização" da ocupação dessas áreas
comutação; a Zona Norte, operária e pobre, servida pelo siste· 1111nbém foi o resultado da substituição dos grandes casarões ou
ma de trens; e a Zona Sul, burguesa e elitista, servida pelos 1h1" pequenos edifícios de grandes unidades pelos grandes edifí-

bondes. Na reforma de Pereira Passos, na administração de IIOS com unidades cada vez menores. Segundo Maurício Abreu

Serzedelo Correia ou no Plano Agache, essas disposições são (llf). cit.):


enunciadas sem muitos contornos.280
A nova importância das áreas litorâneas de praia pode tam· O período de 1930-1950 veio impor à Zona Sul carioca uma Série
bém ser comprovada pela "Lei do Banho", datada de 1917, do de transformações, moti vadas sobretudo pela necessidade de
então prefeito Amaro Cavalcanti, que cria uma rígida regula· ap licação imediata de capitais em época de alta inflação .
mentação dos espaços e horários permitidos e da indumentária Resultou daí um estímulo considerável dado ao setor da constru-
necessária aos banhistas. De certa forma, esta regulamentação ção civil, que, capitalizando o status que a ideologia do "morar à
gerava uma segregação, na medida em que estabelecia con- beira· mar" oferecia a quem aí residia, vendeu novamente a ZQna
dições que nem sempre permitiam o acesso de toda a popula- Sul da cidade, substituindo, em mu itos casos, unidades unifami-
ção à praia. Além disso, havia também a pretensão de limitar liares, que não tinham mais do que 20 ou 30 anos- como é o caso
os comportamentos, os ruídos e as aglomerações de pessoas. de Copacabana-, por edifícios de vários pavimentos.
A partir da década de 20, a densidade da ocupação dessas
áreas foi constante. O antigo padrão de casas no centro dos Assim, foi ao longo das décadas de 50 e 60 que definitiva-
lotes foi sendo gradativamente substituído por unidades multi- mente as praias da Zona Sul se transformam em uma imagem
familiares e, em 1940, Copacabana, por exemplo, já contava rlássica da vida pública carioca. O Centro da cidade perde a
com inúmeros edifícios. Essas áreas deram também origem a <tbsoluta primazia que detinha na organização urbana do Rio de
novas imagens da cidade que vinham se somar às do Centro, Janeiro, ou seja, uma parte do que acontece na cidade se locali-
reformado, no começo do século XX. A avenida Atlântica e r.a nessa nova área das praias. A própria identidade "carioca'' se
seu grande hotel, o Copacabana Palace, inaugurado em 1923, transforma; agora há um e lemento novo, central, na imagern do
seus edifícios ou simplesmente seus moradores, que ocupam carioquis mo, que é dado pela praia ou por seu freqüentador.281
prazerosamente as areias da praia, passam a compor o álbum Uma parte do comércio de luxo se desloca para lá, a nova músi-
do imaginário visual da cidade. <.:a (Bossa Nova) fala sobre mar, barquinhos, azul, mulheres que
Paralelamente, a ocupação das encostas dos morros pela desfilam sobre a praia; no cinema, nacional e internacional, a
população mais pobre também se acentuava, e as favelas pare- imagem da praia se associa à da cidade; enfim, é toda a cultura
ciam um necessário e irreversível parceiro no processo de con- urbana que se reorienta em torno dessa nova paisagem.
quista urbana dessas novas áreas. Durante muito tempo, no
entanto, essas favelas permaneceram fora dos clichês que mos-
)~I A idéia de um carioquismo "'malandro" dominou por um largo tempo o imaginário
da cidade c se associava a dtterminados bairros próximos ao Centro. A esse respeito
28() Abreu, Maurício de A lmeida. Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, v.:ja também. Candido, Antonio. O ;/iscurso e t1 cidade, Livraria Duas Cidades, Silo
JPLANRIO, 1987, pp. 73-5. Paulo, 1993.

.&lu 22 1
A partir do final da década de 60, uma parte do prestígio /.ona Sul à Barra da Tijuca. Desse modo, a "invasão" tornou-
dessas áreas se transferiu para Ipanema, que se transformou na ~· um resultado rotineiro pelo efeito das ligações realizadas pe-
imagem síntese das tendências, da moda, das vanguardas, do lo~ túneis. Posteriormente, uma nova passagem foi aberta com
movimento artístico, ou seja, de tudo o que a cidade do Rio de .1 ~.:r iação de linhas de ônibus que fazem a ligação entre a Zona
Janeiro irradiava de bom e de novo. Se a decadência de Su l e a Zona Norte através do túnel Rebouças, antes reservado
Copacabana era em grande parte explicada pela popularização upcnas a automóveis.
e mistura, em Ipanema a valorização já foi imediatamente Nesse sentido, podemos observar, no que diz respeito à
acompanhada por uma certa distribuição de trechos e grupos, lrcqüênc ia às praias, o desenvolvimento de um senso de identi-
que, se não eram exclusivos, pelo menos procuravam manter (lade espacial, que se transforma em senso de exclusividade e
um certo controle sobre a freqüência. Em frente ao Arpoador, (lc compartimentação social cada vez mais agudo. Esse senso
à antiga rua Montenegro ou à rua Garcia d ' Ávila, havia um de exclusividade pode ser percebido nos propósitos das pes-
grupo de pessoas mais ou menos identificadas a certos precei- soas, na recusa a conviver sobre o mesmo espaço, estabelecen-
tos que, por assim dizer, davam a tônica do lugar. do horários estratégicos para evitar o encontro, ou ainda a ado-
Simultaneamente, no entanto, a freqüência às praias foi se ção de acessórios e linguagem comportamental para estabelecer
tomando um apelo forte demais para ser exclusivo de um certo ns diferenças.283 Para nós, geógrafos, o mais importante é per-
número de pessoas. Mesmo aquelas que habitavam longe, alu- rcber o uso de estratégias espaciais sobre a praia para desenvol-
gavam ônibus e vinham se juntar ao grande encontro promovi- ver esse sentido de compartimentação e exclusividade, estraté-
do nos fins de semana sobre as areias. No começo, esses gias territoriais de conquista e manutenção de um territórío.284
banhistas eram conhecidos como "farofeiros", não só porque Tomando a praia de Ipanema em um domingo como exem-
vinham de longe e traziam comida para consumir na longa jor- plo, podemos distinguir com relativa facilidade a presença e o
nada da praia, mas também por terem um comportamento de se ngcnciamento territorial de cada grupo, mais ou menos estável,
sujarem de areia, o que parecia estranho aos freqüentadores
habituais. A outra denominação utilizada era a de "paraíba", lXI Essa constatação já foi fe ita na França no livro de Urbain, J. D .. op. ri/.; veja sobre-
I mio o capítulo que trata das "Tribos e territórios".
genericamente aplicada a qualquer migrante nordestino, ou de
IH~ A Escola de Ecologia Humana de Chicago foi, sem dúvida, bastante inovadora ao
"paulista", para aqueles que, embora pudessem dividir um l''labclecer uma relação necessária entre a manifestação de uma identidade e a afirma-
mesmo poder aquisitivo, não tivessem os mesmos hábitos e a \·'n de uma territorialidade. A idéia de uma desorganização causada pela migração, a
lutcrpretação fortemente naturalista, além das particularidades locacionais dessas
mesma "elegância" demandada nesse ambiente.282 populações nas grandes cidades americanas, fora m algumas das principais razões
Esse fato foi sendo reforçado com a abertura dos túneis: p\"las quais os esquemas explicativos dessa escola foram abandonados. Lamentável é
•111c o problema também tenha sofrido um processo de abandono paralelo ou simples-
Rebouças, na década de 60, que liga o bairro do Rio Comprido ntcnle passou a ser tratado a partir de um ângulo fortemente subjetivo e psicológico,
à Lagoa, e o túnel Dois Irmãos, na década de 70, que liga a •1nando não era concebido como um mero exemplo da oposição de classes dentro das
pt·r~ecivas radicais e críticas. Para reavaliar o papel fundamental dessa temática,
wja, por exemplo, Grafmeyer, Y. & Joseph, I. L'tcole de Chicago, Aubier, Paris,
2 2 11!79, ou ainda Joseph, I. "Ou bon usage de I' école de Chicago", in La vil/e sans qua-
8 Logo após a eclosão do primeiro "arrastão", uma polêmica sobre a possibilidade de
11111.v, L' aube, Paris, 1998, pp. 71-89.
fechar as praias às pessoas do subúrbio foi seriamente discutida por algumas pessoas e
m Todas essas observações foram obtidas a partir de entrevistas e visitas ao local
teve mesmo uma certa cobertura da imprensa, por exemplo, Jornal do Brasil, de 29 de
ki tas por Roberta G. Kurrik, aluna do curso de geografia da UFRJ e bolsista de inici-
setembro de 1992, Revista Isto É, de 28 de outubro.
11\":lo Científica, do CNPq, que preparou uma monografia sobre o tema em 1999 .

.&LLt 223
dos freqüentadores da praia.zss No Arpoador, nos fins de sema- nllar cadeiras e toalhas, e criar situações espaciais nas quais os
na, predominam as pessoas que provêm da Zona Norte, sobre- roteiros para a passagem dos outros banhistas já estejam, mais
tudo das áreas servidas pelos ônibus que fazem o ponto final ou menos, predeternúnados. De fato, as pessoas não costumam
no Posto Seis, de Copacabana, em frente ao parque que dá invadir esses espaços interiores e, quando o fazem, criam mal-
acesso direto à praia do Arpoador. Há também pessoas que são L~s lar e estranheza.
residentes nas favelas do Pavão e do Pavãozinho que freqüen- O resto desse trecho é ocupado por um grupo mais ou
tam essa área ou suas imediações. De uma forma geral, esses menos diferenciado, usuários de maconha (no chamado "terri-
grupos se distribuem sobre a areia seguindo um padrão pouco tório da maconha", remanescente do local denominado, na
uniforme. As mulheres, deitadas, e os homens, em pé ou senta- ~ poca da construção do emissário submarino, de "dunas da
dos, delimitam os espaços com as roupas estendidas ou amon- Gal"), jovens da Zona Sul, extremamente comprometidos com
toadas sobre a areia; freqüentemente, há rádios tocando funk, o a moda e com os signos de um alto padrão de consumo (telefo-
deslocamento intenso das pessoas e o vozerio ajudam a criar a ucs celulares, produtos importados etc.), pessoas de meia-
sensação de grande movimentação. À beira do mar, alguns sur- idade, antigos freqüentadores, em geral ligados aos partidos de
fistas ficam em pé ao lado de suas pranchas. oposição. Embora muito diferenciada, a forma de organização
Prosseguindo em direção ao Leblon, nas imediações do na areia tende a reproduzir uma estrutura celular de pequenos
Posto de Salvamento 8, percebe-se um nitido contraste na con- grupos, estabelecidos grosseiramente como triângulos, ou seja,
centração populacional. Trata-se de um trecho pouco freqüen- fileiras de pessoas, cadeiras ou toalhas e cangas enfileiradas e
tado, e, mesmo nos dias de grande afluência, a densidade de pessoas sentadas em frente, formando um espaço fechado. Pró-
pessoas é sempre sensivelmente menor. Logo depois, em frente ximo à água as pessoas costumam se deslocar ou ficar em pé.
à rua Teixeira de Melo e se prolongando até a rua Farme de Finalmente, um outro grupo pode ser identificado, um
Amoedo, fica o grupo dos GLS (gays, lésbicas e simpatizantes), pouco mais para o sul: as fanúlias que chegam com crianças e
majoritariamente masculino, cujo aspecto é compacto e nuclea- espalham brinquedos, piscinas, roupas e barraca em forma de
do. As pessoas permanecem em grande parte em pé ou em torno círculos. Novamente, na mesma direção do Leblon, no último
de núcleos de barracas. A compartimentação é muito bem deli- trecho da praia de Ipanema, estende-se uma área de pouca fre-
mitada, uma vez que em tomo do grupo a ocupação das areias é qüência, que precede a foz do canal do Jardim de Alá.
bem mais rarefeita. Recentemente, um novo grupo fez sua apa- Além deste tipo de distribuição, há uma outra que segue os
rição sobre a praia, os lutadores de artes marciais, que escolhe- períodos do dia. Entre as 5h e 7h da manhã, homens e mulhe-
ram exatamente o trecho próximo à rua Farme de Amoedo, em res de todas as idades fazem ginástica; esse horário reúne os
uma área junto ao calçadão, onde há aparelhos de ginástica. aposentados, as mulheres acima de 40 anos e um ou outro
Novamente, uma estreita área menos densamente ocupada jovem. Por volta das 7h30nún, o cenário se transforma; che-
se estende até a próxima concentração diante do Posto de Sal- gam as crianças, seguindo, mais ou menos, uma ordem por
vamento 9, visivelmente a parte da praia de lpanema mais fre- idade, primeiro os bebês, depois os mais velhos e depois ainda
qüentada. Nessa área, diversos grupos disputam uma parcela os maiores. A faixa de horário infantil vai até as llh. Alguns
da praia. Freqüentadores assíduos que jogam vôlei e suas tur- moradores também preferem esse horário, que precede ache-
mas ocupam a parte mais próxima das calçadas. Costumam ali- gada dos moradores que vêm de outros bairros e começam a
/ ) /1 I nnr,, L .aw 225
surgir mais intensamente após as 11 h. Em dias de verão, o augl' ulllamado das torcidas organizadas, funkeiro, freqüentador ck
de freqüentadores é atingido por volta das 13h, quando muitos huiles, e dividir estas e outras identidades com outras esreras
moradores das proximidades vão embora. A praia permanece d:t vida social, inclusive dentro de um sistema formal de traba-
cheia, no entanto, até por volta das I6h, quando a maior parte lho. Embora mutável e sem um padrão regular, o fenômeno nos
das pessoas que vieram de ônibus começa a fazer longas filas tk-tnonstra duas principais características. A primeira é a orga-
para voltar.
nização da ocupação das areias conforme um padrão de afini-
A Superintendência Municipal de Transportes Urbanos dac..les, e a segunda é a dimensão estratégica da forma de agen-
(SMTU) calcula que 98 mil pessoas deslocam-se da periferia c: iamemo do espaço.
para a Zona Sul todas as vezes que há dias de sol nos finais de Compreendemos, portanto, o embaraço causado pelo fenô-
semana. Ainda segundo essa superintendência, há 937 ônibus meno do arrastão, pois ele desorganiza, invade e ameaça o
servindo as praias da Zona Sul, sendo 594 em 25 linhas da c:omplexo mosaico dos grupos tenitorializados sobre a areia.
Zona Norte e 343 em linhas radiais (Rodoviária, Praça XV e lisses grupos, que se auto-organizam, revivem algumas fratu-
Estrada de Ferro), que transportam os passageiros da Baixada ras e composições sociais sobre um espaço urbano valorizado,
Fluminense e da Zona Oeste. ~a nham publicidade e o reconhecimento, na medida em que se
Somem-se a essa distribuição as galeras, que estão dividi- ~sl abelcm sobre um espaço público de primeira ordem.286
das, mais ou menos, da seguinte forma: Posto 10, turmas da As galeras que promovem o arrastão também procuram de
Cruzada e Jacarezinho; Posto 9, turmas de Vila Isabel e Grajaú; certa forma um reconhecimento, um espaço para divulgar as
Posto 8, turmas da Abolição, Pilares, Irajá, Piedade e morros suas fraturas, seus conflitos, e para isso se impõem sobre esse
do Alemão e da Caixa D' Água; e Posto 7, turmas do Pavão e valorizado espaço público.
Cantagalo. Muitos afirmam que o primeiro arrastão ocorrido na praia,
No final da tarde, quando o movimento de refluxo dos ba- em outubro de 1992, surgiu em deconência de uma briga por
nhistas que vieram de longe resulta em uma verdadeira desocu- 1erritório, ou seja, uma das turmas havia invadido o espaço
pação do terreno das praias, outra dinâmica se instala. Nas delimitado pela outra: "Tudo não passou de um confronto de
areias, formam-se grupos dedicados a atividades esportivas, gangues que, há muito tempo, haviam loteado parte das duas
futebol e vôlei, e novos e numerosos freqüentadores, identifica- praias".2B7 De um lado se alinhavam as galeras da favela de
dos como moradores das áreas próximas, circulam pelos calça- Vigário Geral, Morro do Urubu (Piedade), Cidade Alta e Mor-
dões ou andam de bicicleta e patins nas ruas fechadas da orla. ro do Adeus (Bonsucesso), pertencentes ao Comando Verme-
Esta composição nada tem de permanente, transforma-se lho e, de outro, as galeras de Parada de Lucas, Vila Cruzeiro
continuamente seguindo um padrão extremamente irregular, (Penha), Nova Holanda e Baixa do Sapateiro, Guaporé e
varia com os dias da semana, com a época do ano, recompon- Quitungo (Brás de Pina), pertencentes ao Terceiro Comando.
do-se diferentemente a cada verão. A descrição feita aqui cor- As palavras de um dos envolvidos no arrastão parecem resumir
responde aos anos de 1996/97.
Da mesma forma, as identidades sociais também são instá- Ul6 O poder público também investe neste espaço ou luta por impor sua legitimidade c
reconhecimento através dele. No caso das praias, são inúmeras as iniciativas o{iciais
veis e intercambiáveis, ou seja, o jovem funkeiro de hoje pode- na organização de atividades culturais, desportivas ou festivas sobre este espaço.
rá ser o evangélico de amanhã ou ele pode ser ainda o torcedor 287 Jornal do Brasil, 21 de outubro de 1992, p. 12.

2 26 .nnfl..,
..... 22 /
perfeitamente essa situação: "O problema é que a praia ficou estatuto, reconhecimento, direitos, prestígio ou qualquer outro
pequena para tantas galeras. "288 que seja fundado apenas e exclusivamente na possível unidade
Em outubro de 1993, outro arrastão ganhou grande noto- metropolitana. Quando observamos, no entanto, o fato de que
riedade; dessa vez, a briga, que aconteceu num domingo na essas grandes cidades ainda oferecem um campo comum de
praia de Ipanema, foi a continuação da oconida no Largo da manifestações e que esses movimentos " tribais" aparecem,
Penha. Na viagem para a praia, um grupo originário de Vigário ganham visibilidade e reconhecimento à medida que fazem sua
Geral atirou, ainda na avenida Brasil, pedras e rojões no ônibus aparição sobre este espaço, compreendemos talvez que a frag-
485 (Penha-Praça General Osório), que trazia a galera do mentação da vida urbana, ainda que seja um processo agudo,
Penhão. Na praia, eles assumiram seus respectivos territórios. busca comunicação e reconhecimento sobre um terreno
Vigário, no Posto 7, gritava: "O Arpoador é nosso", ao queres- comum, os espaços públicos.
pondia a galera do Penhão, com incursões na "área inimiga", A dinâmica da cidade é também a operacionalidade de
gerando, assim, o corre-cone. seus espaços de comunicação e mistura. Espaços públicos são,
Segundo um menor, morador de Vigário Geral, "a torcida por excelência, aqueles que se configuram como esses espaços
briga por causa do time, a gente, por conta do bairro". Na mes- de comunicação entre diferentes. Lugar de confronto e nego-
ma ocasião, outro integrante de uma galera indicava que ele ciação, esses espaços são cotidianamente atravessados por
não ia à praia pelo mar, mas sim para "zoar" (fazer bagunça) e estratégias de ocupação entre os diferentes grupos. Parado-
para " lombar" (agredir) o "alemão" (estranho ao grupo) .289 xalmente, o espaço das cidades modernas é talvez simultanea-
Notemos que o vocabulário e as estratégias dessas galeras são mente o arranjo espacial dessa extrema diferenciação e de rea-
próximas de outros movimentos urbanos, das torcidas organi- firmação de um espaço comum de convivência e comunicação
zadas, do tráfico de drogas, das grandes organizações crimino- -"lugar da (des)ordem e da (des)harmonia, apoiadas em práti-
sas como o Comando Vermelho e o Terceiro Comando. Note- cas socioespaciais culturais e universais, lugar da confluência
mos, enfim, que elas reproduzem um modelo de comporta- de significados".291 Por isso, o tecido urbano das grandes cida-
mento em conflito com os padrões e valores médios afirmados
des estrutura e define as relações de força política entre os
pela sociedade formal. Produzem também uma outra forma de
diversos grupos sociais que aí se afirmam.
se relacionar com o espaço, uma estratégia territorial invasiva
Em um de seus romances, o escritor Paul Auster cria um
e agressiva, e a afirmação de donúnio sobre um território que
personagem que, por meio de seu deslocamento pelas ruas de
deve, em princípio, ser exclusivo.
Manhattan, em Nova Iorque, desenharia letras, que, justapos-
Há uma linha interpretativa que pretende apresentar esses
tas, resultariam em palavras, espécie de mensagens cifradas.292
grupos como integrantes de uma imensa policultura de "tribos
urbanas", resultado de uma modernidade (ou pós-moderni- Essa inscrição espacial de significados ocorre todos os dias,
dade) multipolarizada.290 De fato, não há uniformidade de sem que precisemos recorrer ao alfabeto para descobrir seus
nexos. A forma cotidiana de se lidar com os espaços é a forma
288 Jornal do Brasil, 25 de setembro de 1993, p. 17.
289 Jornal O Dia, janeiro de 1993.
290 Por exemplo, Soja, E. Posrmodem geographies: The reassertion oj space in criti- 291 São expressões retir:1das de Imrie, Rob; Pinch & S. Boyle, M. "Identities, citizcns-
caltlwory, 13ristol, 1989; e Harvey, David. The condition ojpostmodemily, Basil hip and power in the cities", in Urban studies, vol. 33, rn 8, 1996.
Blackwell, Oxford, 1989. 292 Auster, Paul. The city of glass (A cidade de vidro), Cia. das Letras, 1985.
de significá-los. Percebemos facilmente que estas significa-
ções são construídas socialmente, e nossa habilidade consiste
em decifrá-las. Alguns espaços públicos constituem, na cidade
moderna contemporânea, os filtros por onde a comunicação IX - O futebol e sua dimensão estética:
social é obtida. Dentro de uma estrutura cada vez mais fracio-
Entre a geopolítica da bo la e a
nada, de uma cidade que hoje perde seu sentido global e se
transforma em uma aglomeração, algumas áreas surgem justa- geopolítica dos torcedores
mente com o papel de ser as intermediárias no diálogo entre os
diferentes segmentos que compõem a cidade.293 No Rio de
"A beleza do sapo é a sapa. "
Janeiro, esses espaços são as praias.
Voltaire

É muito freqüente, quase um lugar-comum, o comentário


de que o futebol é uma arte.294 Em geral, esta afirmação se
baseia nas belas jogadas executadas, nos dribles perfeitos, nas
boas defesas, nos jogadores míticos etc. É esta a idéia que
estrutura, por exemplo, a conhecida oposição entre os assim
chamados "futebol-arte" e "futebol de resultados". Ao primei-
ro, associa-se a beleza do espetáculo, o prazer lúdico do jogo;
ao segundo, a frieza dos obje tivos, que, muitas vezes, segundo
esse ponto de vista, estaria transformando esse esporte em um
antiespetáculo, na medida em que sacrificaria a beleza do jogo
em favor de um resultado final favorável, ainda que este seja
obtido por meio de uma dinâmica pouco criativa e sem muitos
atrativos para os espectadores. Sem querer entrar diretamente
nessa polêmica, é possível, todavia, introduzir uma outra pers-
pectiva sobre as relações entre esse esporte e sua dimensão
estética.
Podemos, na verdade, procurar a "arte" do futebol não
293Muitos autores procuram caracterizar esse processo de fragmentação como o sinto-
somente em seus grandes momentos, na excelência e na excep-
ma maior de uma era pós-moderna. Para uma discussão sobre o tema da fragmentação
social, do novo comunitarismo e sobre o novo papel da cullura. vistos como elemen-
tos centra is da pós- modern idade, veja: Bauman, Zygmunt. O mal-esTar da pós- 2Q4Esse trabalho foi originalmente desen volvido com Rodrigo R. H. ValverJ e para
modernidade, Zahar Ed., Rio de Janeiro, 1998. Especificamente sobre a perda do sen- uma monografia de final de curso de geografia da UFRJ, com o título de '"Torcidas
tido global da cidade, consultar também Soja, E. Poslmodern geograpllies. Th e reas- organizadas", dentro do quadro da pesquisa "Cidadania e territorialidade", apoiada
sertion uf.lpace ill r-riliral :;ocialtheury. Verso, Londres, 1989. pdo CNPq.
cionalidade de seus grandes mestres, mas em sua própria con- rcs em tomo da bola.296 Mais ainda, esse domínio se traduz em
cepção e na transformação da sua idéia em ato, ou seja, em sua gol quando a bola alcança o espaço mais guardado do campo
execução.295 De forma mais simples, podemos ver essa ativi- do adversário . Em um certo sentido, é a posição da bola no
dade como uma arte, na medida em que ela produz uma esteti- campo, seu deslocamento, que, em última instância, informa-
zação correspondente a uma atitude comum a várias dinâmicas nos sobre a força e a fraqueza das duas equipes. Assim, quan-
sociais: a disputa tcnitorial. do na maior pat1e do jogo o predomínio do controle da bola se
De fato, o futebol narra um combate. Duas equipes de fez sobre o campo do adversário, dizemos que aquela equipe
igual número de jogadores dividem um terreno composto de que a manteve mais tempo em situação de ataque, ou seja, no
dois lados dispostos simetricamente. Nesse campo estão dese- campo do outro, dominou o jogo; em outras palavras, dominou
nhados os limites e os movimentos principais que guiam o jogo. o adversário.
Se tomarmos o esquema traçado no campo de cada uma das Queremos dizer que na organização de um jogo de futebol
equipes, veremos que dois semicírculos em posição oposta sig- a bola é um instrumento de agressão e de imposição de um
nificam principalmente a idéia de frentes, uma de ataque e outra domínio, mas o verdadeiro objetivo, ou ainda para usar um
de defesa, definindo um espaço que costuma ser chamado de vocabulário mais próximo desse universo, a meta é colocá-la
"intermediária". Recuada em relação ao semicírculo da defesa, entre as traves do adversário e demonstrar assim o domínio de
encontra-se a "pequena área". Este espaço demarca a idéia de uma das equipes sobre o campo como um todo.
iminência do gol, último bastião da defesa antes da meta. Eis por que podemos ver nesse esporte uma estetização;
Entre os jogadores e o campo há a intermediação de uma ele fala de um combate, em igualdade de condições, entre dois
bola. Ela constitui, à primeira vista, o elemento central de dis- grupos que disputam um campo entre si. Esta disputa não é
puta. Observemos, no entanto, que a bola não é cobiçada pelo direta, ou seja, os jogadores não se digladiam entre eles, para
simples interesse de guardá-la mais tempo ou de simplesmente impor pela força um domínio este passa pela intermediação da
possuí-la; ela é a forma explícita de demonstrar um domínio de bola. Assistir a um jogo de futebol significa assim, de alguma
uma equipe sobre a outra. Este fato é mais ou menos evidente, forma, reatualizar de forma metafórica um tipo de disputa pelo
uma vez que os jogadores se distribuem pelo campo de forma espaço.
a guardá-lo ou ocupá-lo, e, diferentemente das conhecidas Uma partida de futebol instala assim uma d inâmica de
peladas, não há a precipitação permanente de todos os jogado- grupo, na qual são seguidas estratégias de combate, respei-
tando-se as regras que garantem os direitos e os deveres iguais
para as duas equipes, ou seja, garante-se o combate dentro de
295O fato de ver o futebol como uma expressão artística poderia introduzir novos ele- um universo em que a violência deve permanecer controlada.
mentos na discussão de uma estética moderna. As conclusões de Ferry, por exemplo,
sobre o caráter eminentemente intcrsubjetivo da arte contemporânea em uma cultura Em sua expressão mais simples, o espetáculo se compõe de
democrática e a tensão entre o individual e o coletivo na criação e na definição do
gosto poderiam ser relativizadas se fossem construídas não apenas seguindo a cotJcep-
ção da arte exclusivamente restrita aos domínios já consagrados, pintura, literatura,
296Tomamos essa denominação aqui para significar os jogos de bola de rua, em que
escultura etc. e passassem a ser vistas dentro de um quadro bem mais amplo e comple-
algumas vezes há dois grupos, mas nem sempre há goleiros, nem delimitação rígida do
xo. A este re s p~i to, wr: Ferry. Luc. Homo Aesrhelims: L'inventiotl du gout à l'âge
campo, como, por exemplo, na maneira como esses jogos são mUltas vezes pral!cados
démocrarique, Grasset, Paris, 1990.
nas praias cariocas.

.al&à 233
uma mise-en-scene de uma luta entre dois grupos coordenados, do espetáculo de uma partida de futebol se situa na capacidade
em disputa pelo domínio de um terreno, que se traduz no domf- dt• metaforizar um combate territorial.
nio da bola. Chamamos isso de esporte, mas poderíamos tam- Na verdade, para nós, a trama que se constrói a partir do
bém chamar de arte, pois nesse espetáculo cada gesto é rituali- ,. ~ ~o faz apelo essencialmente ao fato de que dois grupos, bem-
zado e de fato, em seu conjunto, metaforiza os combates terri-
dv linidos, entram em uma arena para lutar, mas não no enfren-
toriais que ocorrem no mundo. Neste último, no entanto, nem
l,llncnto direto, em que o ganhador seria aquele que se impu-
sempre as regras são estáveis; em geral, não há igualdade de
M~se fisicamente sobre o outro em um combate direto, como
condições, e a violência não é controlada.
1'111 uma luta de boxe. A arena é mais do que um campo de luta,

uwis do que o cenário da Juta, mais do que o simples suporte


dela, ela é o que está em jogo. Por isso, o campo de futebol é
O futebol como metáfora de uma
disputa territorial um território, pois é a partir do seu controle e domínio que uma
equipe impõe seu prestígio, superioridade e poder sobre a
outra.
A popularidade e o alcance cada vez maior do futebol nas
sociedades contemporâneas têm despertado recentemente A lei do impedimento, por exemplo, demonstra-nos clara-
alguns interessantes estudos de cunho sociológico.297 Vários Jncnte a idéia de que existe uma necessidade básica de estabe-
aspectos são contemplados nessas pesquisas, por exemplo, 0 lecer uma disputa sobre um campo ou sobre um território.
fato de que esse esporte se baseia em uma dinâmica de grupo; 1\ssim, o "verdadeiro'' jogo, ou ainda, o jogo váJjdo, é aquele
o esporte em geral, e particularmente o futebol, como uma das l'm que há possibilidade de combate e a posição avançada em
atividades lúdicas mais generalizadas na sociedade moderna; a relação ao adversário caracteriza uma situação de "fora do
relação entre o tipo de esporte e a construção de um universo jogo" (outside em inglês ou, mais explícito ainda em francês,
masculino; e as relações entre o futebol e o urbano. Estes, entre lwrs j eu). Assim, aquele jogador que estiver em posição de ata-
outros, foram alguns dos temas que têm sido freqüentemente que não deve se adiantar mais do que pelo menos um outro
abordados. jogador da equipe oposta (excluindo-se o goleiro), para com
No caso aqui presente, não são essas as nossas motivações isso poder ser combatido. Esta parece ser a lógica que presidiu
primordiais . Concordamos com o interesse e a pertinência o estabelecimento dessa regra, que entrou em vigor em 1925 e
desse tratamento e reconhecemos realmente a importância des- roi a última grande modificação das leis que normatizam esse
ses aspectos sobre a perspectiva que desenvolvemos aqui, mas esporte.
nosso objeto essencial é outro. De fato, como j á dissemos ante- Diversos autores especulam também sobre a verdadeira
riormente, gostaríamos de demonstrar que um dos elementos raiz do futebol moderno. O problema de situar definitivamente
fundamentais que cria a grandeza, a popularidade e a sedução ~ uas origens não é objeto de nosso interesse aqui. Achamos, no
entanto, interessante perceber que em todas as possibilidades
297
Em op si~o
à visão simplista que dominou os anos 60 de uma "sociologia políti- c itadas, seja na China, na Mongólia, no Império Azteca ou na
c.: do esporte
como, por exemplo, Bcnhaud, G. et alli. Parlisans, ~por/, cul1ure & Idade Média européia, todos esses "antecessores" do futebol
repre:mon, Maspero, Paris, I 972.
tenham se constituído sempre em um contexto de intensas lutas

.&l&à 2 3 ~
das tensões de status, e seu poder estético deriva de sua capaci-
territoriais e disputas acirradas entre grupos que pretendiam
dade de conseguir combinar essas três realidades diversas. 299
demonstrar uma ascendência ou supremacia sobre outros gru-
pos que viviam em áreas lirrútrofes. Entretanto, mesmo pouco
o poder simbólico do futebol também se express.a nessa
importando suas "verdadeiras" origens, jogos de guerra, chinês
l'ombinação, uma vez que o fato de se filiar a uma torc1da ou a
ou azteca, com a cabeça dos adversários ou com o sacrifício
11 m time exprime uma afinidade que de certa forma r~mp e c?m
dos perdedores etc., temos que admitir que esportes sempre
us categorias hierárquicas que organizam o resto da vtda soc t~L
foram elementos fundamentais nos jogos de identidade e na Nesse sentido, a popularidade do futebol, sobretudo no Bras1~,
construção de referências territoriais.298 Extraordinário, no parece ter sido mais forte a partir do momento em que os est~­
entanto, parece ser atualmente o poder do futebol em se difun- tos códigos de escolha que vigoravam no começo para a deft-
dir, popularizar-se e a se transformar em um veículo de mobi- nição de afinidades dentro desse esporte foram romp1.'d os. 300
lização de um número crescente de pessoas, mesmo naqueles Na Europa, salvo algumas poucas exceções (até onde vm ~os
países onde até bem pouco tempo ele ainda era praticado ape- conhecimento, Londres, Manchester e Turim), cada c1dade
nas por uma pequena minoria. conta apenas com um grande clube de futebol, que representa
De fato, outros esportes, o handebol, o rúgbi, o basquete, o assim 0 conjunto das identidades socioterritoriais, ~stab.elcn­
pólo, o hóquei, entre outros menos conhecidos, dividem com o do dessa forma uma nova base de experiência soc1al, diferente
futebol a mesma perspectiva de um campo comum de confron- daquela que envolve a vida cotidiana e seus segmentados per-
to e um objeto de controle explícito em disputa direta, sendo cursos.
uma bola o mais comum entre eles. Certo, diversas circunstân- No Brasil, e em grande parte da América Latina, sabemos
cias históricas podem ter contribuído para a maior popularida- que este esporte foi durante os primeiros anos do ~éculo XX
de do futebol, mas, sem dúvida, há uma expressão nesse espor- uma atividade essencialmente associada à elite socJal. O fa~o
te que encontra na sociedade urbana moderna contemporânea de se inserir em uma sociedade fortemente fraturada talvez seJa
uma dimensão superior. responsável pelo fato de dois ou mais clubes surgirem em uma
Segundo Geertz, estudando a briga de galos em Báli: mesma cidade, e isso possivelmente devido à dificuldade de se
alinharem, nesse momento, todos os habitantes em ~ma
A briga, uma figura cultural contra um fundamento social, é ao mesma unidade. Assim, várias cidades dos países latmo-
mesmo tempo uma avolumação convulsiva de ódio animal, uma amedcanos possuem, em geral, essa peculiaridade de ~ontar
guerra caricaturada de eus simbólicos e uma simulação formal com mais de um grande time por cidade (comumente dms).
Podemos, no entanto, imaginar que a popularidade do fute-
298 Concordamos inteiramente com as razões identificadas por Elias, N. & Dunning, E. bol foi paralela à flexibilização dessas fronteiras que estabele-
Sport et civilisarion, Agora, Paris, I 994, para difert:ndar o esporte na sociedade
moderna de todas as outras manifestações que o precederam. Mesmo quando os ges-
299 Geertz, Clifford. A interpretação das culturas, Zahar Ed., Rio de Janeiro, 1978,
tos e os movimentos se assemelham, a prática e o sentido do espane têm hoje uma
natureza di versa daquelas identifi cadas no passado e, dessa forma , descredenciam o p. 312. h ' d"ta
conceito de Jwmo ludens do historiador Huizinga, Johan. Homo ludens, essai sur la 300 De fato, 0 futebol fo i introduzido no Brasil como um espor~ que se ?pun a_a 1
fvnnion soda/e dujeu, Gallimard, Paris, I 988, que procurava ver nos jogos uma fun- cultura popular. Veja a esse respeito Santos, Joel R. dos. HISiona poUrwa do }utebol
ção essencial, comum a todos os tempos e culturas. bra~ileo, Ed. Brasiliense. 1981.

.al.lâ 2S I
ciam um clube de elite e um clube popular por cidade, ou ainda tuidas no exercício comum da vida modema.J04 O terce iro c
segundo uma matriz étnica.30t Hoje, verifica-se que esse tipo 11wis importante para nós aqui é a capacidade desse esporte de
de identificação não c o!Tesponde de forma alguma ao perfil lt tt'laforizar e dramatizar todo um conjunto de lutas q ue ocor-
dos torcedores, embora um ce1to imaginário ainda se refira a tl'tn no quadro da cidade: as lutas territoriais. É neste aspecto
esse gênero de distinção para classificar os torcedores dos dife- que iremos nos deter um pouco mais.
rentes clubes. Assim, em quase todas as grandes cidades brasi- A expressividade de um evento não se distingue da narra-
leiras, encontramos pelo menos dois grandes clubes, e se na liv idade que fazemos dele . Assim, a popularidade do futebol
origem eles reproduziam essa idé ia de um clube de elite e de tt<io se separa do tipo de discurso que o narra. Neste sentido, a
um clube popular, hoje apenas representam o reordenamento e difusão do rádio e de todo um estilo de locução parece ter sido
a ressignificação desses conteúdos.302 de alguma forma um fator defmitivo na amplificação e na popu-
O tripé estético do futebol se articula em p rimeiro lugar larização desse esporte. Durante muitos anos, o espetáculo den-
pela busca de um prestígio e de uma posição hierárquica fun- 1ro do campo se duplicava pela escuta atenta dos pequenos
dada na superioridade de um time. Os elementos que definem r:ídios portáteis, que eram parte do material básico daqueles que
assim uma torcida são muito menos a proximidade a um bairro freqüentavam os estádios. Os locutores brasileiros criaram real-
e muito mais um conjunto complexo de fatores, inclusive, na tncnle um estilo inconfundível, reconhecido internacionalmente.
hora da escolha ou da troca de afinidade, num mome nto em A narração da partida era densa, dramática, explosiva e, de certa
que o clube se apresentava em uma boa fase no que diz respei- forma, procurava construir ou dirigir a forte carga emotiva dos
to aos campeonatos. Isso é muito importante para a geografia, lorcedores. Hoje, a transmissão dos jogos pela televisão di mi-
que poderia se deixar tentar por um esquema sedutor de definir nuiu em muito a fascinação que esse tipo de discurso detinha.
filiações das torcidas segundo uma matri z espac ial.303 O Permanece, no e ntanto, um certo vocabulário, que, ainda que
segundo elemento é a catarse produzida dentro de uma ativida- não seja acompanhado pela mesma emoção nem do mesmo
de controlada e que atualiza tantas outras "convulsões" repri- ritmo imposto pelos locutores, continua a oferecer a g rade des-
critiva fundamental do futebol. Por meio da análise desse voca-
bulário comumente empregado, poderemos perceber como efe-
301 A progressiva núscigenação na composição das equipes brasileiras é muitas vez.es 1ivamente a imagem de luta por um espaço se configura como
apontada como um dado fundamental na popularidade desse esporte no Brasil, uma
vez que corresponde à imagem de uma identidade nacional mestiça. Para mais deta· sendo uma das plincipais forças metafóricas nesse esporte.
lhes, veja: Lopes, José Sergio Leite. "Le football brésilien, conflits sociaux et identité Comecemos pela nomenclatura oficial que distingue os
nationale", in Hérodote, rn 98.2000, pp. 161-77.
302 Sobre o imaginário que acompanha os principais clubes cariocas, consultar Mattos,
jogadores de uma equipe. Todos são identifi cados pelas posi-
C laúdia. Cem anos de paixão: Uma mitologia carioca no furebol , Rocco, Rio de ções que ocupam sobre o campo: arqueiro ou goleiro (situado
Janeiro, 1997.
303 O trabalho realizado por Toledo sobre as torcidas organizadas na cidade de São
Paulo parece chegar a uma conclusão oposta. Segundo ele: "A afinidade pelo time, 1 0~ Mais uma vez., Elias e Dunning nos dão um quadro preciso desta possibilidade na
vivenciada na condição de torcedor organizado, é condil'ionada pelo bairro ou pedaço Mlciedade moderna, em q ue as tensões crescem devido a um processo de civilização
a que pertence e por fim pela torcida organizada à qual se fi lia" (o grifo é nosso). elevado e são monitoradas e protegidas por um controle eficaz da violência física (op .
Toledo, Luiz. "A cidade das torcidas: Representações do espaço urbano entre os torce· t·it., p. 53). Eles acrescentam: "O espaço reservado à manifestação destes sentimentos
dores e torcidas de futebo l na ci dade de São Pa ulo", in Magnani , C. (org.), Na é reduzido a compartimentos específicos e as alividades de laz.er são destinadas a sedu·
Metrópole, Edusp, São Paulo, 1996. pp. 124-55. 1ir e a despertar estes sentimentos em proporções variadas." (op . l'it., p. 54)

) 'ÍB ,oni\
no arco ou gol); os beques (originalmente backs, os que ficam :tdjetivação coerente com a idéia de armamento, quando se diz
atrás) ou zagueiros que defendem a zaga; os laterais, esquerdos que foi interceptada, cortada, neutralizada, lançada etc. Ilá
e direitos; os meios-campistas, também designados segundo o ainda uma forma de qualificar a bola que é, de forma evidente,
setor do meio-campo que ocupam, esquerdo ou direito. Estes uma transposição do seu domínio ao domínio do campo, como,
podem também receber a denominação de armadores pelo fato por exemplo, nas expressões dividida, conquistada, disputada,
de municiarem o ataque. No ataque, há os pontas-de-lança, dominada, tomada, controlada.
esquerda e direita, e os centroavantes. Assim, a denominação é Os sentidos seguem o mesmo fluxo de significação quan-
ela mesma uma valorização da idéia de ocupação do campo do são descritas as principais jogadas consagradas no universo
como um todo e uma indicação do movimento dos jogadores desse esp01te. Além das clássicas situações de defesa e ataque,
sobre o terreno na consecução de seu objetivo. temos: ataques pelos flancos, cercos, retrancas, barreiras, cru-
Paralelamente a essa designação fundada sobre a posição ;.amentos, lançamentos, comandos, recuos, avanços, arma-
espacial de cada membro da equipe, existe também uma série ções, desarmes, infiltrações, contra-ataques etc.
de qualificativos que distinguem atributos específicos associa- Finalmente, a referência ao campo traduz a mesma idéia de
dos aos jogadores. Um dos mais conhecidos é o de artilheiro, um campo de batalha em disputa. Ele pode ser qualificado
ou seja, aquele jogador que tem um alto índice de aproveita- como dominado, sob pressão, invadido, guardado, atacado,
mento em transformar as jogadas em gol. Há também, nesse defendido etc. Igualmente, o vocabulário que descreve as par-
sentido, a figura do "capitão" do time, escolhido em função das celas do campo é inspirado na idéia de batalha, e, comumente,
suas qualidades de liderança sobre o conjunto da equipe.
utiliza-se a terminologia de flancos, setor, frente, como em
Fora da regularidade dessas denominações gerais, encon-
manobras militares.
tramos um largo emprego de adjetivos comumente utilizados,
Os jogadores se movem dentro do campo de uma forma
tais como valente, rompedor, corajoso, habilidoso, violento,
mais ou menos organizada e seguindo trajetos estabelecidos a
matador etc., para caracterizar o temperamento ou o tipo de
partir da posição segundo a qual eles são designados. Este
ação dos jogadores em campo. Não podemos também esquecer
movimento coordenado é chamado de tática. "A tática designa
as denominações utilizadas para descrever a equipe como um
todo e que fazem apelo também à idéia marcial ou de exército os lugares que os jogadores ocuparão em campo e o seu raio de
de combatentes: esquadra, armada, formação etc. ação."306 Dessa forma, percebemos que a dinâmica da locali-
No que diz respeito à bola, comumente ela recebe denomi- zação (posição no campo e deslocamentos) é um dado funda-
nações que correspondem a substantivos emprestados direta- mental na estrutura do jogo. Resumindo, podemos dizer que os
mente de um vocabulário bélico: tiro, canhão, bomba, míssil, jogadores são vistos como combatentes, um grupo organizado
petardo, foguete etc. Todos eles enfatizam a mesma concepção que entra em um campo com o objetivo de conquistá-lo.
da bola vista como um instrumento de agressão e imposição de
um controle.305 Dentro desse sentido ela recebe também uma

305 Um outro tipo de tratamento, ~ t e entre erótico-carinhoso, também é comumente uti-


lizado, mas também aí o mimetismo com as amms de guerra é flagra ute, uma vez que é 306Goldgrub, Franklin. Futebol: arte ou guerra? Elogio ao drible, lmago, Rio de
muito freqUente que os soldados apelidem suas armas com denominações carinhosas. Janeiro, 1990, p. 56.
A cidade como metáfora do futebol Uma primeira esfera desse transbordamento é a do pró prio
csládio. Os espectadores não se limitam a assistir passivamcn
Toda estetização é uma maneira de reconhecer determina- t~ ao combate apresentado diante dos seus olhos; e les se
das formas comuns alçadas a uma forma mais ou menos sacra- envolvem diretamente na disputa e recriam uma outra arena d~
lizada ou retirada do curso da cotidianidade. Nesse sentido ela enCrentamento nos lugares da assistência . Desde 1949, por
é objeto de admiração e contemplação pela idéia exemplar que l!xemplo, as arquibancadas do estádio do Maracanã se transfor-
carrega e pela excepcionalidade que instaura. Todo espetáculo maram em um espaço qualificado pela presença desta ou
artístico pode, pois, ser visto como organizador de uma certa daquela torcida em áreas predeterminadas. Por meio de smteio
subjetividade transmitida enquanto sensação aos espectadores. e com o beneplácito dos poderes oficiais, ficou decidido que as
torcidas dos quatro maiores clubes cariocas ocupariam parce-
Entretanto, por meio de outro desses paradoxos que perseguem a las preestabelecidas no estádio (a torcida do Vasco ocupa o
estética, ao lado dos sentimentos pintados e dos atos inconseqüen- espaço à direita da Tribuna de Honra, ficando a do Flamengo à
tes, e porque essa subjetividade não existe propriamente até que esquerda; a do Bota fogo, à direita, exceto quando joga contra o
seja organizada dessa forma, as formas de arte orioinam
o
e reoene-
e Vasco; a do F luminense, à esquerda, exceto quando j oga con-
ram a própria subjetividade que elas propõem exibir. Quartetos, tra o Flamengo). Apesar desta distribuição, os conflitos são
naturezas mortas e brigas de galo não são meros refl exos de uma quase que permanentes. Incursões, invasões e ocupações são
sensibilidade preexistente e representada analogicamente: eles são freqüentes e até mesmo esperadas.
agentes positivos na criação e manutenção de tal sensibilidade.307 Esses comportamentos raramente provêm de iniciativas
individuais. Tal como no campo, essas ações são coordenadas e
É dentro dessa perspectiva que gostaríamos agora de inter- organizadas, e, de certa forma, há nas arquibancadas a mesma
pretar os eventos que freqüentemente e a cada dia mais acom- idéia de "tática" que é vivida dentro do campo pelos jogadores.
panham o fenômeno do futebol. Como geógrafos, o que nos Segundo Toledo, no estádio a "delimitação do território é feita
chama particularmente a atenção é o fato de que os comporta- pelas bandeiras que são estendidas por um grande espaço das
mentos territoriais e o princípio da disputa de " territórios" se arquibancadas ou mesmo por bambus que delimitam a parte a
reconfiguram em outras esferas da vida social.308 Ao extrapo- ser ocupada",309 As bandeiras desenroladas, os gritos de guerra,
lar o campo, esta idéia fundamental da di sputa territorial, con- as músicas, os fogos e os deslocamentos de grupos segue m
tida no futebol, ganha o mundo profano e a cidade se metafori- assim um comando, uma estratégia, ou, para empregar uma ter-
za em futebol. minologia mais próxima da geografia, uma territorialidade.3 10
A torcida promove o seu próprio espetáculo e reinventa os con-
flitos. Assim, é comum o comentário segundo o qual o time per-
307 Geei1Z, A illlerpretação dos culturas, op. cit., p. 319.
Jos Maffcsoli faz observações muito próximas às nossas, reJa ti vas à importância elo que
ele chama de "modulação específica ela relação entre espaço-socialidacle", utilizando .109 Toledo.
Lu iz C. . op. ât .. p. l-+8.
inclusive o exemplo elo candomblé brasileiro para sua demonstração. Para mais deta- Estamos nos referindo à concepção desenvolvida por R. Sack sobre a territorialidade
JIO
lhes veja: Maffesoli, Michel. Le temp.1· des tribus, Klincksieck et Cie, Paris, 1988, como estratégia de controle sobre um teiTitúrio. Veja Sack, Roberr, Tfre lwmmr terri
pp.l98-9.
roriality: lts tlumry and hisrory, op. cit.
deu a partida em campo, ou jogou mal, mas a torcida "deu um polícia tente organizar a saída dos torcedores dos estádios,
show" ou "massacrou" a adversária. definindo percursos exclusivos para cada uma das torcidas.
Isso nos possibilita também entender a razão pela qual Os meios de transporte que conduzem os torcedores aos
muitos "espectadores" permanecem de costas para o campo, jogos também são objeto de apropriação. Tudo se passa como
onde se desenrola o jogo, envolvidos que estão pela ação nas se a excepcionalidade do evento tomasse conta da cidade.
arquibancadas, como é comum, por exemplo, com os chefes de Tudo que de alguma forma se relaciona com esse universo
torcida. Mais ainda, compreendemos também um pouco me- deve estar dividido pelas torcidas; todo espaço toma-se objeto
lhor o fenômeno tantas vezes comentado de que uma grande de disputa e deve receber as marcas de um domínio, de uma
parte dos conflitos mais violentos em dias de jogo não são apropriação. Este sentido de apropriação é tão forte, que comu-
cometidos por "verdadeiros" torcedores, mas simplesmente mente, e isso não só no Brasil, os torcedores agrupados tendem
por pessoas que querem aproveitar a ocasião. Segundo muitos a não respeitar as regras que cotidianamente reg ulam o uso
torcedores, quando os elementos violentos são identificados, desses espaços ou desses meios de transporte. Um dos atos sig-
muitos são incapazes de responder às perguntas básicas que nificativos nessa dinâmica é o fato de que os meios de trans-
correspondem ao conhecimento de um "verdadeiro" torcedor: porte devem manter a aparência de circular apenas no interes-
a escalação do time e seu desempenho nos últimos tempos.Jll se das torcidas. Conseqüentemente, os torcedores sentem a
De alguma forma, ainda que ligado ao futebol, o fenôme- tentação de afirmar este controle não pagando a passagem, por
no da violência das torcidas ganha autonomia em relação ao exemplo.313 Ao mesmo tempo, instalam-se sobre os bancos,
espetáculo, as arenas de Juta são outras, e os objetivos imedia- gritam pelas janelas, colocam bandeiras dos clubes para fora;
tos também. Muito já se falou do fenômeno dos hooligans, que em certo sentido, desfilam seu domínio pela cidade.
desde os anos 60 acompanham o futebol inglês, apresentando-se
sistematicamente nos estádios em dias de competições entre A cidade é nossa, disse Sammy, repetindo o possessivo, cada vez
clubes de grandes torcidas, e que nem sempre são identificados com maior intensidade: É nossa, nossa, nossa.3I4
como "verdadeiros" torcedores.JI2
Os acessos ao estádio também são controlados e monitora- Esta frase, pronunciada por um torcedor inglês em Turim
dos pelas torcidas. Na entrada e na saída dos grupos de torce- no dia da decisão de um campeonato europeu interclubes, dá-
dores, os encontros são sinônimos de enfrentamento, e em nos uma medida da amplitude do fenômeno. A cidade passa a
diversas ocasiões o poder público interferiu para criar trajetos ser vista como um terreno de disputa; independentemente do
especiais e roteiros diversos para diferentes grupos de torcedo-
resultado do jogo, o conflito é gerado pela disputa que busca
res. Em São Paulo, é prática mais ou menos corrente que a
uma representação majoritária no espaço urbano.

311 Em parte, essa opinião procura demarcar com uma clareza nem sempre muito jus·
tificada a diferença entre os verdadeiros amantes do futebol daqueles que se aprovei- 313 Um fe nômeno perfeitamente análogo ocorre com as galeras dos bailes fimk, nos
tam dele, mas não compartilham a mesma paixão. ônibus que os conduzem ao clube onde s~ reali2ará o respectivo baile, como já foi assi-
3 12 Veja, por exemplo, Buford, Bill. Entre o~ vândalos: A multidão e a ~edução da vio- nalado em outro capítulo deste livro.
lênda, Cia. das Letras, São Paulo, 1991. 3 14 Buford, Bill, op. cit., p. 83.
Diferentemente também do esporte é o fato de que essu l hegavam mesmo a incentivar sua formação. Desde o s anos
disputa é direta, não havendo intermediações, ou seja, o com (tO, no entanto, as explosões de violência começaram a se

bate se faz pela força física, pela agressividade exercida direta manifestar mais fortemente, e os clubes foram aos poucos se
mente sobre o outro, e a violência não é controlada. Não há res· dissociando desse tipo de organização. Hoje, algumas das prin-
peito por regras de simetria; pouco importa se o combate é l'ipais torcidas organizadas dos grandes clubes funcionam
desigual e também pouco importa se o outro que é visto como romo entidades completamente autônomas em relação à estru-
"o adversário" o é efetivamente. Uma leitura simplificada se tura oficial dos clubes de futebol.
impõe na idéia de conquista - todos aqueles que não fazem O papel dessas organizações é fundamentalmente o de
parte do grupo são oponentes, e o poder será tanto mais efetivo L:oordenar as ações dos torcedores, dentro e fora do estádio.
quanto mais indiscriminado for seu exercício sobre o outro. Dentro dele, como vimos, são estes elementos que organizam
Simbolicamente, a cidade passa a pertencer ao universo simbó- os principais movimentos da torcida, ocupação de um territó-
lico do futebol e às suas representações; o espaço urbano torna- rio, cantos, bandeiras, fogos etc. Elas também podem ser as
se um campo de futebol, e a dinâmica se opera como na ima- responsáveis pelo fornecimento do material necessário para as
gem das equipes, só existindo os lugares referentes aos dois lutas que serão travadas. As principais armas utilizadas são o
grupos, e um deles deve afirmar seu poder sobre o outro. Este "Estalão", as "Malvi nas" e os "Molotovs", todas de origem
poder se traduz em um domínio territorial, ou seja, a cidade caseira, que penetram no estádio comumente como "recheio",
deve ser conquistada. ou seja, escondidas sob as camisas ou entre as bandeiras.
O dia de jogo estabelece uma excepcionalidade fundamen- Fora do estádio, essas torcidas organizam os trajetos para o
tal sobre esse espaço. Há, em primeiro lugar, a suspensão da deslocamento dos torcedores, que se reúnem para ir juntos ao
cidadania sob uma dupla forma. Primeiro, pela supressão do estádio. Dessa forma, elas produzem um enquadramento que
direito de ir e vir livremente; segundo, pela suspensão de algu- trabalha a partir de dois ângulos: oferecendo uma fmm a segura
mas regras básicas de respeito social: barulho, exclusividade de se chegar ao estádio e, simultaneamente, pelo número que
no uso do espaço, dos equipamentos urbanos etc. Tudo e ntra reúne, ameaçando os "territórios" dos adversários, ao atravessá-
em um espaço-tempo excepcional, espaço-tempo de luta, de los. Essas torcidas também se encarregam do controle das áreas
combate, de afirmação. próximas às sedes dos clubes ou dos estádios em dias de jogos.
Um elemento d eterminante que possibilita a existência Assim, são enviadas "patrulhas" e criadas "milícias", encarre-
dessa dinâmica é a torcida organizada3t5 De fato, desde que o gadas da proteção das áreas que lhes são atribuídas.
futebol começou a ser um esporte de grande mobilização, sur- É interessante perceber que uma das denominações utiliza-
giu, paralelamente, a idéia de os torcedores se organizarem. A das pela Torcida Jovem-Fia é a de ''Exército Rubro-Negro" ao
primeira torcida organizada no B rasil, por exemplo, foi a que se acrescenta uma legenda- "a torcida 100% porrada".
"Charanga Rubro-Negra", fundada ainda em 1942. No come- Dentro desse espírito, a torcida oferece cursos de boxe tailandês
ço, os clubes mantinham fortes vínculos com esses grupos e ou de jiu-jítsu aos associados, e não é fortuito perceber que poli-
ciais freqüentemente façam patte dos seus quadros regulares.
3 l5 As observações e comentários sobre as torc idas organizadas são, em stJa maior par- A estrutura interna das torcidas organizadas segue uma
cela, fruto da observação do caso da cidade do Rio de Janeiro. hierarquia e uma especialização crescente, de acordo com a
.aiJ.t ')11 I
importância e a amplitude do fenômeno. No topo, estão os che- espaço próprio de ação e visibilidade. Esse espaço é então
fes ou os "cabeças"; há ainda os "armeiros", os "guerreiros" e rearrurnado e redefinido, estruturando uma dinâmica segundo
os "olheiros". Os adversários ou os "estranhos" ao grupo são suas necessidades simbólicas e práticas. É neste contexto que
conhecidos como "alemães". Essa estrutura não é propriamen- as praças públicas podem se transformar em praças de guerra,
te original, pois muitos outros movimentos sociais urbanos, os meios de transportes em comboios de voluntários, os muros
que dependem da mesma forma, para existir, de um controle em suportes de mensagens etc.
territorial, fazem apelo ao mesmo tipo de organização. As No começo dos anos 90, a população brasileira ficou um
denominações também são as mesmas utilizadas por outros pouco surpresa com diversos casos de violência, alguns segui-
grupos mobilizados por outras "guerras territoriais", pela rede dos de morte, por parte das chamadas torcidas organizadas.317
do tráfico de drogas nas favelas cariocas, pelos grupos que dis- Descobrimos também a crueza dos ritos de iniciação mantidos
putam "territórios" nas praias da Zona Sul da cidade, pelas por algumas dessas torcidas, sendo o caso mais gritante o da
galeras, definidas em relação à freqüência a um certo baile "Mancha Verde", do Clube Palmeiras, de São Paulo, que exi-
funk, ou pelos lutadores das academias de artes mardais, que gia dos pretendentes associados que eles oferecessem uma
também podem derivar em controle territorial, como foi recen- camisa ou uma bandeira rasgadas ou ensangüentadas dos
temente visto em algumas ruas do bairro de Ipanema. Aliás, adversários, como prova de bravura.
percebemos que muitos integrantes de um movimento podem Para nós, que estamos diretamente envolvidos pela temáti-
pertencer a outros; torcedores, lutadores, funkeiros, membros ca territorial, o mais surpreendente é descobrir que essas torci-
dos "arrastões", trabalhadores no tráfico pertencem e freqüen- das possuem, em geral, um verdadeiro mapeamento da cidade.
tam muitas vezes diferentes arenas de luta. De fato, elas costumam estar divididas em comandos, bata-
Dunning nos oferece uma interessante denominação para lhões, pelotões e fal1111ias, em geral representadas em diversos
esse conjunto de atividades que se enquadram na vida social, bairros ou localidades da cidade. A torcida organizada perpe-
fugindo da ética individualista, predominante na sociedade tua e transforma em estabilidade os conflitos que seriam visí-
urbano-industrial; ele as chama de Gemeinschaften de lazer.316 veis apenas em dias de jogos. Forja-se assim urna representa-
Elas podem ser definidas como organizações, mais ou menos ção particular delas no espaço da cidade, recriando a idéia de
instáveis, que fundam um lugar onde seriam aceitas manifesta- territórios urbanos disputados por "tribos" diversas.
ções mais afetivas e emocionais. Nesses enclaves temporários, Uma das manifestações relacionadas a esse fenômeno é a
de integração relativamente espontânea, haveria uma vivência notificação, por meio de símbolos ou grafismos, de um certo
de forte proximidade, igualdade e solidariedade, sentimentos domínio ou, pelo menos, da presença de uma dada torcida
estes que neutralizariam a rotina de uma sociedade formal, for- sobre um território. Esta manifestação, que parece ser bem
temente hierarquizada e individualista. mais desenvolvida na cidade de São Paulo, foi assim descrita
Mais uma vez, devemos sublinhar o fato de que um com- porToledo:
portamento social distintivo necessita, para existir, criar um

317 Em agosto de 1995, a violência seguida de morte e uma grande onda de destruição
316 Elias, N. & Dunning, E., op. cit., p. 165. em São Paulo resultaram na proibtção das torcidas organizadas.

........ 249
Tais grafismos sobrepõem cada uma das afinidades (por timr~. , 11 tdcseja possível impor normas próprias definidas pelo sentido
bairros e torcidas), construindo uma imagem do torcedor orgu111 d.e afinidade. Significa, portanto, de forma simultânea e contra-
zado. Essas pichações sinalizam uma espécie de gramática t/1 11 ,tória, suspender definitivamente os direitos comuns e ganhar o
rua entre esses torcedores: assim, temos, por exemplo, "Xerife
111reilo à cidade. Paradoxalmente, clama-se por um direito que
gaviões- ZO" (apelido expressando a individualidade, adesão 11 1 1n essência é o que está sendo questionado e destituído.
um grupo específico- uma torcida determinada- e região dt Mais uma vez, a escolha do vocabulário não é fortuita, e,
moradia na cidade) [... ]. Esses "anagramas", encontrados graf:1 para as torcidas organizadas, a denominação usada para definir
dos pelos muros, prédios, pontes, ônibus, estádios, são os mais
11 .:írca dominada ou sob disputa com o "adversário" é a de ter-
variados e perfazem um código peculiar de identificação e dill: 1 itrJrio. A superposição dos diversos "mapas" oriundos desses
renciação observado, sobretudo, na cidade de São Paulo.3l8
111 ovi mentos nos dá uma imagem muito diversa daquela, apre-
se ntada classicamente, d a pacificada cidade democrática.
Essas representações, ilegíveis aos olhos profanos, estão Tribos em Juta, territórios sob disputa, trajetos proibidos, bar-
marcadas sobre os muros e paredes, criando terrenos de dispu- 1eiras levantadas, mensagens cifradas, as grandes metrópoles
ta e de confronto mais ou menos permanemes. Somos tentados são o palco de muitas guerras, objeto de variadas territoriali-
a ver nesse fenômeno, mais do que uma gramática, uma verda- dades. Dentro desta perspectiva, é o próprio sentido de cidade
deira cartografia, que reproduz a idéia de limites e fronteiras. o que está em jogo.
Esta idéia aliás se coaduna muito bem com a imagem, sempre
veiculada e valorizada, de um time e seus torcedores como um
conjunto que confere uma verdadeira nacionalidade:

"O Corinthians é como o Flamengo, uma nação( ... ). Não


podemos prometer nada, só muita luta."3t9

Dessa forma, a suspensão da cidadania se transforma em


um evento mais ou menos estável, ou ainda, a cidadania institu-
cional tende a ser substituída por uma "nacionalidade" outra,
definida por afinidades variadas e intermitentes. Nesse tipo de
dinâmica, a única promessa possível é a de lutar e t:ombater por
um espaço de referência e de visibilidade na cidade, que passa a
ser vista como um território aberto para a luta e a conquista. Em
outras palavras, isso significa conquistar um território urbano

318 Toledo, Ltliz C., op. cit., p. 138.


319
O comentário é do técnico do Corinthians da época, Candinho. Folha de São Paulo,
25 de agosto de 1997.

?SO ,onR.
situação pode parecer orbitar em torno da simples escolha de um
idioma de comunicação e se explicaria pelo simples argumcnlo
de que as pessoas têm o direito de escolha e de fidelidade ao seu
idioma de origem em uma sociedade oficialmente bilíngüe.
X- Viva o Quebec livre! O fato, no entanto, é que a língua é apenas o sintoma mais
Os paradoxos de uma democracia aparente e, portanto, o mais discutido de um desacordo maior e
mais profundo entre duas culturas políticas. A adoção de um
idioma e seu uso na sociedade canadense não é um dado pura-
"O Canadá não nos oprime mais, ele nos deprime." mente cultural, mas político, indicando uma posição num dos
Alain Turgeon
véttices da oposição. Assim, compreendemos por que a luta na
verdade não é para poder falar um ou outro idioma, mas sim
para impô-lo como obrigatório e de forma quase exclusiva sobre
Visto de longe, o fato de o Canadá ter como língua oficial um determinado tenitório, no espaço público provinciaJ)20
dois idiomas, o inglês e o francês, justamente as duas línguas Desde os anos 70, essa divisão cultural tomou as cores de
mais prestigiadas para a comunicação no mundo atual, pode uma luta política aberta. Os canadenses franceses se organiza-
parecer-nos uma enorme vantagem, uma vez que para entrar- ram em di versas direções, partidos políticos, organizações
mos em contato com o mundo em diversos sentidos (viajando civis e frentes parlamentares, para reivindicar mais direitos,
ou mesmo em nosso país, nas atividades mais triviais, relativas reconhecimento e até mesmo a separação definitiva da Provín-
à informação, ao trabalho ou à cultura) deparamos freqüente- cia do Quebec do resto da Federação. Por duas vezes, nestes
mente com a necessidade de manejarmos esses idiomas. É nor- últimos vinte anos (1980 e 1995), foram organizados referen-
mal que acreditemos pmtanto que ta] situação os favoreça, pois dos, perguntando à população dessa província, onde a maioria
o que constitui um esforço adicional para nós é, para eles, um dos habitantes tem origem francesa, sobre se deseja vam ou não
dado natural. Comumente, acredita-se então que todo cidadão a separação do resto do Canadá. Os resultados dessa consulta
canadense seja, se não voluntariamente, pelo menos formal- popular mostram de forma inequívoca a divisão e c conflito:
mente, bilíngüe. A realidade, entretanto, não é essa; os bilín- no último referendo a diferença entre o sim e o não foi de ape-
gües fora das grandes cidades de Montreal e Ottawa são muito nas 0,5% pela manutenção dos vínculos com a Federação.
raros e nos serviços públicos, mesmo nos aeroportos, pode-se A consulta popular se apresentou sempre como a forma
ter alguma dificuldade em encontrar um funcionário perfeita- mais democrática de se decidir o futuro da Província do
mente bilíngüe. Quebec; afinal, esse procedimento parece ser incontestavel-
De fato, uma profunda cisão marca a sociedade canadense e mente o de maior justiça e legitimidade, na medida em que a
divide, de forma contundente, anglófonos e francófonos. A decisão cabe àqueles que estão diretamente envolvidos no pro-
cisão é vivida como uma verdadeira batalha, em que são identi-
ficados inimigos e aliados, estratégias e manobras; a batalha
320É o que se percebe, por exemplo, claramente, .. o programa do Partido Qucbc-
mobiliza e desgasta grande parte da energia do país e tendeu a se quense, que propõe que o ensino do inglês seja proibido nas escolas até a quarta série
acentuar nestes últimos trinta anos. Aparentemente toda essa do ensino básico.

?b2 ~
blema. Pelo menos é assim que costumamos raciocinar em Do tradicional ao moderno:
relação a esse tipo de questão. Mudanças na escala territorial
Segundo Derrénnic, a consulta popular é desejada porque da identidade
aqueles que a propõem acreditam na disseminação de um novo
nacionali smo no Quebec. Esse nacional ismo estaria baseado De uma maneira quase consensual, a evolução da luta pela
muito mais em evidências do que em razões, apoiando-se em independência do Quebec nos é apresentada pelos seus defen-
uma fábula. Eis a fábula quebequense segundo ele: sores seguindo um mesmo roteiro. Primeiramente, um grande
período de conquista e constituição de uma sociedade distinta
A maior parte dos povos, em um certo momento de sua história, se desenvolve. Esse período se inicia pela fundação e domínio
tomou e m mãos seu próprio destino. O povo quebequense es tá, da colonização francesa no continente norte-americano. Nesse
nesse sentido, em uma situação anormal, que deverá inevitavel- momento, o fato mais marcante foi o estabelecimento da em-
mente ser um dia corrigida. O Direito Internacional reconhece o presa colonial denominada N ouvelle F rance ( 1608-1760)3 22 em
direito dos povos à autodeterminação. Um voto da maioria dos terras do Quebec, mas são também lembradas as pequenas
habitantes de um território é a maneira normal de se decidir comunidades francófonas pioneiras espalhadas pelo continente
sobre o estatuto desse. A validade desse método de decisão é norte-americano e as grandes expedições de desbravamento rea-
incontestável na democrac ia, visto que a lei suprema é a da lizadas sob a égide desta colonização. A esse momento se segue
maioria. Em face da decisão de nos tornarmos independentes, o a conquista inglesa (1760-1791), ou o abandono da França, que
resto do Canadá manifestará com toda a certeza uma certa má renunciou ao domínio dessas terras como parte do acordo com a
vontade, mas ele será muito rapidamente o bri gad o a adotar Inglaterra (a expressão comumente usada é o "abandono da
conosco um a a titude cooperativa_321 mãe-pátria").J23
A partir de 1791, ocorre uma série de iniciativas para a reu-
Na verdade, nessa discussão, que envolve a soberania do nião do Quebec aos outros territórios que hoje compõem as ter-
Quebec, estão presentes temas geográficos mu ito importantes: ras da Federação Canadense. Datam dessa época as primeiras
identidade regional, regionalismo, a relação entre cultura e ter- rebeliões das comunidades francófonas. Desde então, a cons-
ritório e, sobretudo, o que raras vezes aparece com clareza nos ciência de que o grupo de origem francesa consistia em uma
discursos da ciência política e tampouco por intermédio das comunidade distinta não cessa de crescer, e, como reação a essa
vozes interessadas na discussão da soberania do Quebec, a progressiva conscientização, aumenta paralelamente a repres-
iJTe mediável relação entre democracia e espaço. São justamen-
te estes elementos que gostaríamos de explorar um pouco mais
322 Seoundo Dumont, esse foi o morncnto inicial do desenvolvimento do "sentimento
aqu i.
nacio:al". Dumont, F. Genese de la société québécoise, Boréal, Québec, 1966, P· 323.
323 A expressão "abandonados pela mãe-pátria" é textual e figura em diversos livros
que têm como objeto a história do Canadá. Um desses exemplos pode ser encontrado
em Dufour, Christian, Le déji québécols, L' Hexagone, 1989, p.l4. Igualmente, segun-
do 0 historiador Yvan Lamonde, os q uebequenses vivem o sentimento de ter Sid o
32 1 Derrénnic, Jean-Pierre. Nationalüme et démocratie: R~jlexirms sur les illusüms di!J' abandonados d urante mais de dois séculos pela mãe-pátria, Le Courrier intema-
indépendentistes québewis, Boréal, Québec. 1995, pp. 9-1O. rionale, m 437, março de 1999, p. 45.

.aLt.t 255
.•A.

são por parte do grupo dominante, o anglófono. Ainda nesse zado" ou, pelo menos, sem uma clara delimitação de suas pre-
período, a liderança dos grupos francófonos é formada por uma tensões espaciais. Na verdade, antes desse evento, o naciona-
classe de proprietários rurais e pela Igreja. O catolicismo está lismo, movido pelo espírito católico de conquista, tinha preten-
unido à língua francesa e aos costumes conservadores e ruralis- sões quase continentais. Costumava-se relacionar todos os gru-
tas na formação de uma identidade exclusiva a esse grupo. pos e povoamentos originários da colonização francesa na
A Segunda Guerra Mundial marca o início de transforma- América do Norte e se reportar a eles como parte da grande
ções profundas nessa estrutura tradicional, e abre-se uma con- nação francófona no Novo Mundo. Mapas de densidade eram
testação direta em relação à hegemonia dos grupos ligados à feitos e incluíam até os grupos que haviam perdido os princi-
Igreja. Paralelamente, a luta contra a "donúnação" inglesa se pais traços distintivos dessa cultura, como a religião c a lín-
intensifica. A partir dos anos 60 um fenômeno conhecido gua.324 O sonho de uma cultura francófona continental, as
como a "Revolução Tranqüila" abre as portas da comunidade expedições de La Salle ao Mississippi e de La Vércndrye ao
francesa do Quebec à modernidade, e se encerra assim o perío- Missouri, no século XVII, nutriam relatos fundadores de uma
do caracterizado como tradicional na evolução do Quebec. empresa transcontinental.
Essa revolução pode ser vista como um movimento social A "traição" francesa, que negociou esses territórios em tra-
complexo ocon·ido ao longo dos anos 60 que trouxe uma rápi- tados e acordos com a coroa britânica, e a seqüência de opres-
da modernização das atitudes e dos valores da cultura fran- sões das comunidades de origem francesa nessas terras, assim
cófona no Canadá, sobretudo a partir da transformação das ins- como a deportação dos habitantes da Acadia, eram vistas, se
tituições de ensino, desde então majoritariamente leigas, e da não como fatos reversíveis, pelo menos como elementos que
supressão do preconceito que pesava sobre as atividades eco- autorizavam e legitimavam uma argumentação a favor da ex-
nômicas não-rurais. pansão e da reconquista territorial para a cultura francófona.3 25
Muitos intelectuais afirmam, portanto, que a "Revolução A partir dos anos 60, a identidade territorial se redefine. A
Tranqüila" redefiniu a natureza da cultura francófona. O que religião católica perde a primazia de expressão da cultura fran-
era antes chamado de canadenses-franceses, sem uma clara cesa na América do Norte, a valorização de uma vida campo-
base espacial, passou depois a ser conhecido como quebequen- nesa e a "ideologia" ruralista perdem o fôlego, e surge tam-
se, ou seja, houve uma territorialização que a partir de então bém, com força, a idéia de que o poder econômico, em grande
tende a identificar os anseios da comunidade de origem france-
sa a um tenitório preciso: o da Província do Quebec. Alguns
324 Alguns textos são emblemáticos quanto a esta perspectiva. Veja, por exemplo:
realmente se preocupam com o destino daqueles que, embora Magnam, D. Histoire de la racejrall(aise aux État.r-Unis, Charles Amat, Paris, 1913;
oriundos de uma cultura francesa, residem em outras provín- Brouillette, B. La pénétration du continent améritain par les Canadiens français,
Granger, Montréal, 1939; e, mais recentemente, Louder. D. & Waddell, E. Du conti-
cias, estando, pois, abandonados à própria sorte, uma vez que nent padu à l'archipel retou~é: Le Québec et l'Amérique jrançaise, Presses de
as lutas pela preservação do patrimônio cultural francófono l' Université de Lavai, Québec, 1983.
325 Sobre os mitos e recriações que cercam a história da deportação dos habitantes
estão hoje centradas exclusivamente na luta pela soberania do francófonos da Acadia, veja, por exemplo , Clarke, P. D. "Sur l'empremier" ou récit et
Quebec. mémoire en Acadie", pp. 3-39, in La question identitaire au Cmwdajrarlcophone:
Há, assim, um certo consenso em apresentar o naciona- Récits, parcours, enjeu.x, lzors-lieux, Létourneau, J. & Bernard, 13. (dir.), Presses de
I'Université Lavai, Sainte-Foy, 1994.
lismo anterior à "Revolução Tranqüila" como "desterritoriali-

?b6 ,nni\ 257


parte nas mãos dos anglófonos, era um dado fundamental na A Modernidade coincide com a consciência de que uma
reconquista dos direitos, desses que a partir de meados do sociedade distinta necessita, para possuir uma autonomia legal,
século XVIII passam a ser minoria no território do Canadá. de um tenitório bem-definido e bem-delimitado. Assim, se a
Minoria no Canadá, mas eles são a maioria na Província do "Revolução Tranqüila" marca a entrada do Quebec na Moderni-
Quebec, neste território que é também o centro de inadiação de dade, esse período pode ser caracterizado fundamentalmente
uma cultura distinta no território da América do Norte.326 pela luta territorial dessa sociedade distinta que corresponderia,
pois, a um novo estatuto de soberania.328 Ele é assim marcado
Em outras palavras, o que caracteriza os anos 60 e 70 é a redefi- por um duplo movimento: por um lado, de radicalização por
nição da identidade canadense-francesa. O que importa daqu i parte dos soberanistas, que se organizam também como forças
em diante é a ligação com a língua, não com a rel igião, é a liga- políticas legais dentro dos quadros institucionais canadenses
ção com a província, não com continente norte-americano. Se o (governo provincial do Partido Quebequense, por exemplo), ~or
Estado é a nação, trata-se agora então do Estado do Quebec, não outro, multiplicam-se as ações reativas por parte dos federahs-
mais do Canadá, para os habitantes dessa província.327 tas, que fazem uso dos instrumentos constitucionais para criar
barreiras à concessão de limites autônomos ao Quebec.
Assim, desenvolve-se o nacionalismo que elege sua terra Segundo o relato comumente apresentado, um primeiro
prometida, o nicho territorial onde essa sociedade distinta pode golpe contra os soberanistas foi desferido pela reforma consti-
se desenvolver soberanamente e a nova palavra de ordem é tucional levada a efeito pelo governo do primeiro-ministro
"Être maítre chez naus"- ser dono de nossa casa. A imagem de Pierre Trudeau, em 1971, que, embora tenha estabelecido o
que essas terras, de povos distintos, havia sido submetida a princípio do bilingüismo, diluiu o sentido dos dois povos fu~­
uma verdadeira empresa de "colonização" inglesa foi larga- dadores em uma idéia de sociedade multicullural. 329 Por meJO
mente utilizada e durante os anos 70 se alimentava muito do dessa concepção se defende que todos os imigrantes (alemães,
processo de descolonização da África, ocorrido um pouco italianos, chineses, ucranianos etc.), a partir de determinadas
antes, para traçar diversas analogias, que reforçavam as idéias
de jugo, dominação econômica, opressão e, finalmente, a pro- 328 Ponto de vista sustentado por Dion, Léon, Québec 1945-2000: à la recherche du
messa de libertação. Data desse momento a organização da Québec, Presses de l' Université Lavai, Sainte Foy, 1987. . .
329 A grande mudança de perspectiva em favor de um reconhecimento do. ",lulucultu-
Frente de Liberação do Quebec (FLQ), que realizou diversas ra1ismo se deu nesta época, como se pode notar pelo relatório da CommlSlon royal.e
ações armadas sob a alegação de estar lutando contra a domi- d'enquête sur le bilinguisme et le biculturalisme que, em 1969, afirmava que~ pn ncl-
nação colonialista dos ingleses. pal conclusão de seus trabalhos era "a recomendação para que a ~o nf edraç ao cana-
dense se desenvolva segundo o princípio da igualdade entre os dms povos que a fun-
daram e tendo em vista a cm1tribuição dos outros grupos étnicos que contribuíram para
0
enriquecimento cultural do Canadá", Rapport de la commision royale d ' e~quêt sur
326 No Quebec, 82% da população têm o francês como língua materna. Este percentual le bilinguisme et le biculturalisme, Ottawa, 1%9, p.3. Em alguns an ~s ~.discu r so do
desce, no entanto, a 4,5%, quando considerado o conjunto do território do Canadá. Estado mudou significa tivamente e se mostra centrado na expressao Mu lu c~ lt u ­
327 Waddel, Eric. "L'État, la langue et la société: Les vicissitudes du français au ralismo". Suas recomendações serão agora de que os imigrantes se adaptem à socieda-
Québec et au Canadá", Les dimensions politiques du sexe, de J'étfmie et de la langue de canadense, mas simultaneamente os encoraja a mant~re seus patnmõmos cultu-
au Canada, Caims, A. & Williams, C. (org.), Centre d'édition du gouvernement d u ra is próprios. Note-se que a menção aos povos fundadores também desapareceu.
Canada, Ottawa, 1986, pp. 77-124. "AUitudes à I'égard du multiculturalisme et dcs groupes étlm1ques au Canada, Rapport
du Ministere d'Étal au Multiculturalisme, 1976.

. . . 259
258 ,nnf\
taxas de concentração espacial, têm o direito de manter seu "Compartilhar uma etnia não deve resultar em unanimidade de
patrimônio cultural e dispõem inclusive de algumas salvaguar- visões. Se o individual não for traído, uma ampla Humanidade
das garantidas pela Constituição relativas à proteção de sua deve prevalecer sobre a estreiteza da etnia."332
cultura de origem, ainda que imersos no bilingüismo oficial do A aspiração a uma autonomia do Quebec dentro de uma
ing lês e do francês. Dessa forma, a iniciativa de Trudeau, vista federação multicultural é a partir de então apresentada como um
pelos francófonos não sem uma certa dose de maquiavelismo e desejo coletivo e majoritário (mas não somente étnico) de cons-
conspiração, redefine os destinos da comunidade francófona, tituir um projeto singular de sociedade sobre o território da
que passa a ser vista apenas como mais uma em meio a outras Província do Quebec. Essa singularidade é afirmada na história
que convivem no tenitó1io da Federação.
c no território. Na história, essa singularidade e o direito à auto-
nomia aparecem pela preeminência da cultura francesa nas ter-
Em 1971, o governo federal escolheu deliberadamente o multi-
ras canadenses e no relato das posteriores e sucessivas opressões
culturalismo em detrimento do biculturalismo para fazer aceitar
das quais esse grupo foi objeto; no território, a justificativa se faz
mais facilmente o bili ngüismo pela maioria e circunscrever as
pela naiTativa de um espaço singular, construído e moldado por
aspirações nacionais do Quebec. E, sobretudo, sua capacidade
essa cultura; assim, o Escudo canadense, o grande Noite, o vale
de integrar os imigrantes e, em conseqüência, a possibilidade
do rio São Lourenço, objeto de uma quase "veneração", entre
que se u ltrapassassem os limites da etni a. Os quebequenses
outros elementos, são saudados como pilares de sustentação
foram assim convidados a se juntar à celebração da diversidade
para essa argumentação palticularizadora. Os ecos desse tipo de
e da igualdade das culturas, como uma etnia como outras no
grande mosaico canadense.330 discurso podem ser identificados, por exemplo, na decantada
necessidade de se escrever uma Constituição para o Quebec, na
Nesse tipo de perspectiva, a decisão de manter-se fiel à sua qual fique claro, antes de mais nada, "o direito dessa província
cultura de origem é uma opção pessoal e o Estado por meio de de viver sua especificidade", segundo as palavras de seu, na
sua isonomia legal estabelece limites às manifestações das múl- época do último referendo, primeiro-ministro, J. Parizeau.333
tiplas culturas e garante uma legislação superior de proteção ao A luta pela soberania é, assim, precedida pela afirmação
indivíduo e à sua liberdade de escolha. Como afirma o escritor do estatuto de sociedade distinta, e, nesta afirmação, os direitos
Neil Bissoondath, "o multiculturalismo termina quando nossas coletivos de um grupo primam sobre os direitos individuais.334
noções de direitos humanos e dignidade começam".331 Ele
sublinha também o fato de esta escolha ser individual, e não
3l2fdem.
coletiva, como desejam alguns grupos que pretendem impor
333 Muitas informações e documentos foram obtidos pelos endereços eletrônicos
suas regras a todos aqueles que paJtilham de uma mesma etnia: ht tp ://www .mu !ti mania.com/i ndependence; h ttp://www .smartnet.ca/users/vigi-
Je/index/indexa.html; http://blocquebe.org; http:www.plq.org e http:www.ass-
nat.qe.ca/index2.html.
334 O mesmo debate sobre os direitos coletivos e individuais no que diz respeito às lín-
33° Dupont, Louis. " La logique continentale nord-américaine et ses avatars: Le regard
culturel et la géographie", Géographie 1!1 Cuilllrl!s, n°17, 1996, pp. 7-30. guas existe na França e diz respeito ao ensino e uso das líng~as region~s. É interes-
31
3 Bissoondath. N. "Don't cal! me ethnic -l'am canadian", Saturday nigth, outubro
sante ver que nesse caso se procura uma solução de comprorrusso, ou seJa, sem negar
de 1995, p. 15. abertamente o direito dessas línguas, reconhecidas.aliás pelo documento assinado pela
França junto ao Parlamento europeu, tenta-se enquadrá-las como exceções culturais c

2GO )ll1)\,
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Além disso, o estatuto de sociedade distinta daria ao Quebec assim, que os argumentos eram diferentemente mobilizados
poderes particulares no seio da Federação canadense que cor- para justificar as situações de conflito e compunham, pmtanto,
responderiam de fato a uma quase autonomia, o que aliás gerou um quadro ambíguo sobre a própria natureza dessa Pós-
a crise em tomo do acordo do Lago Meech, em 1987.335 Modernidade.
Nosso interesse sobre a natureza da argumentação pós-
moderna foi despertado na medida em que esta se envolve
O pós-moderno: Um novo contexto diretamente na discussão sobre o direito às diferenças e da
na luta pela soberania? sociedade vista como mosaico étnico-cultural. 337 Assim, pós-
moderno pode ser, por um lado, a reformulação do "contrato
Novamente, de maneira geral, o período que se inicia nos social", que dá origem ao Estado moderno, no sentido de admi-
anos 80, e sobretudo a partir do ano de 1985, quando houve 0 tir que esse espaço deve ser a garantia da possibilidade de con-
referendo, tende a ser apresentado como uma nova fase na luta vivência com o diverso. Em outras palavras, trata-se da flexibi-
pela soberania do Quebec. Inicialmente, nosso objetivo consis- lização da norma, no sentido de simultaneamente proteger e
tia em examinar os novos elementos.desse discurso sobre o limitar a múltipla conformação sociocultural e, nesse ângulo, a
regionalismo e sobre a identidade territorial, surgidos nos últi- sociedade passa a ser vista como um mosaico variado de expe-
mos anos no Canadá. Acreditáv_amos que, de forma explícita riências culturais, unidas por regras que possibilitam comparti-
ou não, esse discurso procurava sua legitimidade nos argumen- lhar um espaço comum.
tos trazidos pela discussão sobre a Pós-Modernidade, mas tra- Por outro lado, e em contraposição, a Pós-Modernidade
duziam e matizavam essa apreensão com base no antagonismo pode ser compreendida como o momento de falência das gra~­
entre posições soberanistas e federalistas.J36 Supúnhamos, des utopias racionais. Como nos diz, não sem ênfase, MaffesoiL:

Este Estado-Nação, expressão política do contrato e do ideal


recomenda-se mesmo que sejam tuteladas pelo Estado. Esta é a posição de Renaut, por democrático, satura-se, e poderíamos reunir toda uma série de
exemplo, que ~1ega a propor um model? de "multiculturalismo temperado". Veja
elementos de demonstração, de maneira violenta e sangrenta em
Rcnaut: ~Iam .. M~lIcutrahsme, plurahsme, communautarisme", in Qu'est-ce que
la socwte, Unrver.I'Ete de tous les savoirs, Michaud, Y. (dir.), vol. 3, Ed. Odile Jacob
Paris, 2000, pp. 454-64. '
335 Por esse acordo de revisão constitucional, o Quebec seria reconhecido como uma nationalism, Montreal e Kingston , McGili-Queen's Universlty Press, 1992. Seu P?nto
sociedade distinta no seio da Federação. Ele foi definitivamente rejeitado em 1990 de vista foi fortemente contestado por Habermas, dando origem a uma controversm
pclo_voto oposicionista de outras províncias e em 1992 um outro acordo menos auto- que em diversos momentos assumiu as cores de um debate entre grandes concepções
no mista, de Charlottctown, foi esboçado, sendo, contudo, rejeitado por via referendá- da política nos tempos atuais e sobre a natureza da Pós_-Modernidade. Um ~ parte.desse
na por todos, mclus1ve pelos quebequenscs soberanistas. Para mais detalhes sobre a debate está em Habermas, J. L'intégration républzcame: Essazs de théo~ze polEIUJ~e,
evolução da Federação veja, por exemplo, Brown, Craig. Histoire générale du Fayard, Paris, !998, e Droit et démocratie: Entre fait~ el nom~ es, Galu~rd, Pans,
Canada, Boréal, Québec, 1990. 1997. Outros autores enoajados na discussão pós-moderna também se mamfestaram a
336 O caso do nacionalismo qucbequense foi utilizado, por exemplo, como argumento o "Th
propósito do nacionalismo do Quebec como, por exemplo, F. Fukuyai_Ila, em e war
por Charlcs Taylor em sua idéia de "política de reconhecimento", que garantiria no of ali against ali", in The New York Times Book Revzew, de lO de abnl d: 1994-. .
mten or de uma comunidade republicana os direitos coletivos. Ele vê no caso do 337 o exemplo do Quebec é repetidas vezes utilizado na a.rgumentaçao do Multi-
Quebec a positividade de uma demanda por reconhecimento em lugar das formas anti- cuituralismo, por exemplo, por Taylor, C. Multiculwralisme: Di.fférence et democra-
gas de denúncia de injustiças c descriminação. Taylor, Charles. "l mpcdiments to a tie, Champs/Fiammarlon, Paris, 1994.
Canad1an Future", in Recontiling the soliludes: E~say on cauadian.fe deralism and

. . . 263
'

alguns países ou de uma maneira mais policiada e mais suave em


sobre o regionalismo e sobre a identidade territorial no Ca-
outros( ... ). Em outros termos, uma sociedade mais sensualista
nadá. Ainda que aPós-Modernismo tenha sido uma manifesta-
substitui pouco a pouco a sociedade racionalista, que foi a socie-
ção primeiramente européia, com fortes contribuições france-
dade moderna".338
sas, esse discurso teve a tendência a ser absorvido no Canadá
majoritariamente pelos anglófonos, que o somaram às idéias
O direito público, instrumento de legitimidade do Estado do politicamente correto, e tendem assim a confundir todas as
moderno, é assim visto com desconfiança, e a pretendida eqüi- dimensões da alteridade numa mesma e só legalidade, o que
dade dos direitos individuais não deixa espaço para a manifes- não corresponde a uma boa interpretação da especificidade
tação muito mais fundamental dos direitos coletivos estrutura- canadense para o grupo francófono. De fato, esse é apenas
dos e fundidos por uma cultura comum. Nessa interpretação, 0 mais um aspecto que se soma aos inúmeros outros, que são
~stado moderno é o instrumento de uma homogeneização ao também objetos de uma clivagem primeira, que opõe, se nos
1mpor regras gerais a "diferentes".339 for permitido simplificar, posições simpáticas à autonomia da
ad~ comunidade desenvolveu referências em um espaço província a posições contrárias a ela.
de v1da, e essa identidade é entendida como um patrimônio O debate fundamental que se trava hoje em relação a essa
coletivo intelectual e artístico distinto. Comunidades específi- autonomia tem uma relação direta com a territorialidade. São
cas, que construíram e conformaram um espaço a partir de for- as relações entre cultura e território que estão no centro da dis-
mas culturais particulares, devem ter o direito de decidir de cussão. As diferentes concepções sobre o regionalismo na Pós-
forma autônoma sobre seu destino, conforme seus interes- Modernidade se constituem, apenas nesse sentido, em produ-
ses.340 Nesse formato a luta regionalista ou nacionalista consti- tos derivados, e, para entendê-las, é necessário, antes de mais
tui uma luta contra a opressão de um Estado centralizador e nada, conhecer suas matrizes, nesse caso; as perspectivas sobre
homogeneizador, que tenderá a vergar a vontade e a especifici- a relação entre cultura e território.
dade local em prol de uma hegemonia empobrecedora.
Percebemos, no entanto, de imediato, que a natureza dessa
Pós-Modernidade era um elemento secundário nas discussões Democracia e território:
As lições do Canadá

338
Maffcsoli, Michel. "Pcrspectives tribales ou Ic changemcnt de paradicrme social" É muito comum no Canadá que a narração dos problemas
m Qu'est-ce que la soriété, Université de tous les savoirs, Michaud, Y. Cclir.), vol. 3: relativos à autonomia do Quebec seja apresentada a partir de
Ed. Od1le Jacob, Paris, 2000, pp. 423-31.
339
Segundo D~pont, Louis, op. cit., o discurso pós-moderno tende a ver o movimento
uma visão dicotômica: por um lado, uma autonomia forjada
pela l~dcpn1a do Quebcc como uma reação aos novos tcmros, e seus líderes são sob o ângulo de um nacionalismo cívico, isto é, de um movi-
assurulados às figuras n~acioárs no cenário internacional; porém, ao se impor como
mento que prega a soberania baseado em distinções territo-
u~ d1scurso de uma lógtca supenor, esse pós-modemo de fato contraria suas próprias
rmzes de relativizador das verdades universais. riais; por outro lado, um projeto que se submeteria a argumen-
340
Esse ponto de v.ista é sustentado, por exemplo, em Létourneau, J. & Bemard, B. tos do tipo étnico-culturais, caracterizando-se, portanto, um
C?Jr.). La quest1on tdentztwre au Canada franphone: Rérits, parcours, enjeu.x, hors-
lteu.x, Presses de l'Université Lavai, Sainte-Foy, 1994. nacionalismo do tipo comunitário, em que a questão territorial
seria secundária. Essa distinção se baseia na definição de

...... :ws
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Nosso nacionalismo é não-étnico, nosso nacionalismo é territo-


Gesellschaft e de Gemeinschaft, na forma como essas catego- rial (...). A noção de nação no Quebec mudou muito ao longo das
rias foram explicadas na primeira parte deste livro, ou de décadas. O nacionalismo dos anos 30 estava centrado sobre o
maneira bastante simplificada, de uma sociedade de contrato grupo étnico fra ncófono. Ao contrário, o nacionalismo que eu
ou uma comunidade de afinidades. Destas duas possibilidades professo e que nos inspira a ação é essencialmente de natureza
nascem adesões ou refutações ao projeto autonomista. econô mica e territorial. Não mais baseado na concepção de um
Pelo que foi exposto anteriormente a propósito das dinâmi- grupo étnico, mas reco nhecendo que a "nação q uebcquense" é
cas comunitárias, fica claro que dificilmente um nacionalismo constituída pelo povo que habita o Quebcc como um todo.
341

está desligado de uma matriz espacial. Podemos, no entanto, es-


tabelecer com clareza uma diferença fundamental dessa relação Apesar de esta afi rmativa ser corrente, podemos nos per-
com o espaço, nos dois casos apontados. No nacionalismo cívi- guntar o que significa de fato, nesse caso, um nacionalismo ter-
co, o espaço assegura a continuidade do direito e da norma a to- ritorial, uma vez que é também comum se afirmar a oposição
dos aqueles que dividem os limites de um Estado. Os princípios entre uma democracia procedural de matriz anglo-saxônica a
que estruturam esse Estado são gerais, e não discriminatórios, uma democracia nacionalista, em que se dará espaço às mani-
sendo as balizas espaciais que estabelecem suas fronteiras. festações identitárias coletivas. Ao le rmos o programa do
No nacionalismo étnico ou identitário, o Estado se define Partido Quebequense, a dúvida se acentua, uma vez que nesse
por uma origem comum, ancorada em relatos épicos, ou ainda texto há uma definição para a sociedade distinta que se baseia
em uma língua, religião ou costumes comuns. Os limites espa- na idéia de uma comunidade francófona da América, que quer
ciais nesse caso também existem, mas são dados por esses ele- inscrever sua identidade na "civilização do planeta".
mentos, medidos por sua difusão, e incluem aqueles que com- A língua francesa, segundo esse programa, não deve se resu-
partilham desse patrimônio. Na História, sobretudo nos séculos mir ao uso instrumental do idioma; o francês deve ser pensado
XVill e XIX, encontramos alguns exemplos dessa dinâmica, e é como um sistema de valores e referências históricas. Mais do
possível afirmar que, com freqüência, nesse tipo de nacionalismo que isso, ele deve ser único e em nen hum caso serão permitidas
o relato histórico relaciona uma comunidade a um certo território instituições bilíngües: "Nossa linguagem delineia conceitos e
mítico, colocado como centro da cultura. A narrativa parte das constitui uma maneira de pensar, de refletir e de compreender o
dificuldades que esse grupo enfrentou nesse território, causa de mundo."342 De fato, parece assim que a decantada territoriali-
uma "diáspora" que expandiu os símbolos e fundamentos dessa dade do projeto autonomista é simplesmente uma coalescência
cultura oprimida, os quais é necessário reunificar. ou projeção da cultura francófona sobre o espaço, já que a idéia
Quase consensualmente, os partidários do projeto autono- de uma democracia territorial deveria ser muito menos exclusi-
mista defendem a idéia de que, se no passado efetivamente o
desejo de soberania teria sido construído sobre o fundamento
étnico, hoje, na Modernidade, esse projeto seria, no entanto, 341 Entrevistaconcedida por Lucien Bouchard à P olit i q r 1~ Jrt ~mation / e, rP. 63 , prima-
inteiramente tributário de uma concepção territorial e não- vera de 1994, pp. 334-45. Citado por Jolulson, W. t\ Canadianmyth: Queber, between
Canada and the il/usimr o.ft~ p ia, Robert Davies publishing, Montreal-Toronto, 1994.
étnica. Lucien Bouchard, grande protagonista da luta pela
p. 379.
independência, durante algum tempo primeiro-ministro da 342 Partido Quebequense, P rog r a m ~ du Parti Québecois, 1994, Montreal, pp. 156-8.
Província do Quebec afirmou, por exemplo:
. . . 267
?G6 JlrR.
Em outras palavras, por um lado, o governo da Federação é por
va e procurar conviver com a diversidade, que, aliás, já faz parte
demais centralizador e apaga as diferenças; por outro, um
desse país, caracterizado pelo forte contingente de migrantes
governo do Quebec independente será a voz forte do povo quc-
(quase 20% da população residente no Quebec possui outra lín-
bequense e nesse nível parece se diluírem todos os conflitos
gua materna diferente do francês; destes, 8,5% têm o inglês
possíveis advindos de uma política centralizadora.J44 O contra-
como língua materna). Isso fica ainda mais claro no manifesto
ditório aparece na argumentação sobre o papel e a intervenção
lançado pelo Bloco Parlamentar Quebequense, que declarou
do Estado e se duplica na contradição da representação do
categoricamente, por exemplo, que o "Quebec pertence ao povo
Estado, por um lado, o da Federação, injusta e tendenciosa; por
que é francês pela cultura e linguagem."
Assim, de posse desses elementos, poderemos refletir com outro o do Quebec, homogênea e harmônica.
mais clareza sobre a complexa relação entre nacionalismo e Supondo que o referendo de 1995 tivesse obtido uma res-
território da cultura francófona na América e sobre seus princi- posta majoritariamente positiva à consulta sobre a soberania
pais problemas. do Quebec, poder-se-ia então dizer que a maioria das pessoas
Um primeiro e importante problema se coloca para aqueles residentes naquela província optou por não ser mais uma mino-
que defendem a soberania do Quebec baseados na lei da maio- ria no seio da Federação canadense e portanto reclama seus
ria ou pela via do referendo. Diversos homens da política e legítimos direitos à autodeterminação. Entretanto, aqueles que
alguns cientistas sustentam que um governo centralizador, houvessem votado pela permanência na Federação, nesse caso
como o que se configurou a partir da reforma constitucional de as minorias, a estes seria imposta uma mudança de estatuto
1982, não se coaduna com os novos tempos. Aqui o argumen- político. Isso nos revela um fato curioso: o desejo de não ser
to fundamental é o de que o Estado em sua versão "moderna" uma minoria, ao se impor, cria novas minorias. Esse patamar
tende a neutralizar as diferenças internas em seu território, e silogístico só pode se resolver por intermédio da consideração
um Estado que convive com conflitos tão profundos advindos do fator territorial, ou melhor, até onde se podem estabelecer
da diversidade deve se render, em função do respeito à autode- os limites de uma consulta? Há um território evidente e essen-
terminação dos povos, à vontade daqueles que pretendem a cial à cultura francófona no Canadá? Esse território coincide
autonomia em nome de suas diferenças. com os limites da Província do Quebec?
Seguindo tal raciocínio é democrático consultar essas Podemos dizer que de um modo mais ou menos geral o ter-
comunidades sobre seu desejo ou não de permanecer dentro de ritório do Quebec é considerado como um patrimônio indivisí-
uma ordem global e hegemônica de um Estado centralizador e vel. A "Belle Province" deve permanecer unida, sendo ela o
opressor. Esse tipo de discurso sobre uma Federação que explo- centro de onde partem os estímulos que mantêm viva a cultura
de, pois não se flexibiliza para dar espaço à manifestação das minoritária, pois ela é a terra mítica dos relatos épicos.
diferenças, enxerta-se aparentemente sem conflito à idéia de
um governo local forte no caso do Quebec, pois este centraliza-
ria os anseios da maior parte da população dessa província.343 344 Sobre a ambigüidade dos discursos no que diz respeito à descentralização, veja, por
exemplo, Hamel, P. & Klein, J. L. "Le dévcloppcmenl régional au Québec: Enjeu de
pouvoir ct discours politique", in Le Phénomime régiorwl au Québer, Proulx, Marc-
343 Lessage,
primeiro-ministro do Quebec, afirmava, em 1963: "Os quebequenses têm Urbain (di r.), Presses Universilaires du Québec, 1996, pp. 293-311.
uma única poderosa instituição, seu governo", citado por Johnson, W., op. cit., p. 28.

268 .roR
.al&â 269
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dcria ser dividido ao sabor das percentagens de um referendo
Contudo, essa territorialidade não se exprime consensual-
mente. O Norte da Província do Quebec é ocupado majoritaria- sem prejuízo de sua própria identidade?
O utra sugestão é a de postergar para um n ovo referendo a
mente ~elos "autóctones"345, e estes, várias vezes, afirmaram
decisão da soberania quando as outras "etnias" (portugueses,
q_u~ far:.~ uma secessão caso a resposta ao referendo fosse po-
chineses, haitianos, italianos etc.) residentes no Quebec pude-
Slt~v: N~s amamos o Canadá. É um bom país; não queremos
rem estar convencidas de que seriam respeitadas em suas difc-
de1xa-lo. E stas fo ram as palavras do líder inuit Zebedee
rcnças.347 A dificuldade maior dessa tarefa é a armadilha dos
Nu~gk, que possui um mapa do Quebec no qual a fronteira
próprios argumentos da sociedade distinta, baseada em valores
esta Situada no paralelo 55. Imediatamente depois dessa decla-
c atitudes completamente inspirados na comunidade de origem
ração, ele foi contestado por L. Bouchard, presidente do Bloco francesa. Os repetidos "deslizes" dos discursos dos líderes do
Quebequense, que afirmou que o Quebec era um Estado unitá- movimento independentista, desde Lévesque e Johnson até
r~o.e que "nenhuma polegada quadrada será arrancada do terri- 4
Parizeau e Bouchard, são nesse sentido emblemáticos.3 8
tono do Quebec". Que direito, entretanto, há em negar a esse Finalmente, a solução da confederação, onde cada pro-
outro povo sua autodeterminação, justamente quando são esses víncia seria mais ou menos autônoma, parece ser sedutora. Em
os argumentos que ensejam a consulta referendária do grande parte, no entanto, o projeto de soberania votado no refe-
Quebec? Questão insolúvel, que desafia todos os soberanistas rendo de 1995 daria ao Quebec uma soberan ia bastante ambí-
que defendem seus direitos baseados no direito à diferença e na gua, pois se guardaria uma moeda comum, o direito de manter
autodeterminação. o passaporte canadense e a cidadania, j unto com os novos
Esse é um dos núcleos fortes do conflito que opõe fracófo- documentos expedidos pelo Quebec. Previa ainda a livre circu-
nos a autóctones, um conflito que possui raízes históricas vivi- lação de bens, de mercadorias e de trabalhadores e um new
do hoje d~ forma aberta e que tende a definir imagens e discur- partnership, um arranjo complexo com igual número de minis-
sos negat1vos entre esses dois grupos.346 tros dos dois novos países, com direito de veto para ambos,
. D i~n te dessa situação surgem diferentes respostas. A pri- uma nova Assembléia e um novo tribunal econômico comum.
~eira e o chamado "particionismo", ou seja, s ugere-se que as Este projeto, bastante próximo do modelo de uma confedera-
areas onde o voto soberanista não é majoritário devem se des- ção, formada de duas principais parcelas (retomando a idéia
~embra do Qu~bec e permanecer na Federação. Esta suges- dos dois povos fundadores do Canadá), foi rejeitado, talvez em
tao, no entant?, e obrigada a se confrontar com o fato de que, parte porque, para haver uma confederação, seja necessário
I_Jes~o n~ tec1do urbano da cidade de Montreal, há diferenças contar com a solidariedade dos outros; nesse caso, justamente
Slgm~catvs, e a pergunta seguinte é responder até onde se daqueles dos quais se está querendo a separação.
P?dena desmembrar esse território, até os quarteirões de uma A pergunta que resta é a seguinte: como legitimar a sepa-
Cidade? Por outro lado, o território da Província do Quebec po-
347Essas populações de outras origens são denominadas comumente como "alofôni·
cas", o que dá uma idéia da polarização exercida pelo uso dos idiomas na vida políti-
345 Nome atribuído às populações de origem pré-colombiana. ca canadense.
348 De fato, repetidas vezes, esses líderes deixaram escapar a idéia de que a soberania
"346 so b re a d"•_nanuca
' . das lutas territoriais no Norte do Quebec, consultar Dufour, Jules
do Quebec é um projeto exclusivo da comunidade francesa. O último destes deslizes
Les revend1cauons territoriales des peuples autochtones au Québec" c 1 · . d ·
Géo , 1 · d Q 'b • a uers e foi a atribuição da derrota no último referendo ao "voto alofônico".
srap ue u ue ec, vol. 37, n° 101, setembro de 1993, pp. 263-90.

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ração do Quebec, com base nos argumentos de maioria no põe que 0 estatuto de minoria autônoma deve ser conce.dido ape-
Quebec e de minoria no Canadá, em face das outras inúmeras nas às situações em que um conjunto de elementos esteja p~en­
comunidades não-francófonas residentes no território dessa te, a saber: coletividade nacional ou étnica, lingüística e. rehg•osa
província? Há aqueles que contestam o estatuto de minoria ou bem distinta do resto da população de um Estado; estar Implanta-
pelo menos sua definição corrente como grupo numericamen- da há muito tempo e manifestar uma vontade coletiva de preser-
te inferior em relação ao resto da população de um Estado. var sua identidade própria; e estar mais ou menos dominada den-
Segundo Lafontant, por exemplo, o termo comunidade tem tro de um estado central ou de uma sociedade global.
uma conotação mais positiva, pois se trata "de uma entidade No que diz respeito à govemabilidade autônoma, essas cole-
substancial tendo vida própria, relativamente autônoma e inde- tividades devem dispor de: recursos materiais e humanos para
pendente dos outros grupos que a cerca: dotar seu próprio Estado e já contar com estruturas institucionais
parciais· e concentração sobre uma fração do tetTitório onde seu
Para isso nem é preciso se referir à tipologia de Tonnies que con- número' é superior ao dos outros grupos que aí residem. E~tes
trastava o holismo e a força de integração da Gemeinschaft às elementos compõem uma tipologia das minorias que vanam
relações segmentadas e o individualismo competitivo da desde a situação de "nacionalidade minoritária" (caso ~os que- .
Gesellschaft.
bequenses) e disporia de todas as condições para re~ha ~m
Percebe-se claramente a "superioridade" atribuída à idéia de projeto de soberania até a "diáspora'' (passando pelas nunonas
comunidade. É preciso também, segundo ele, distinguir uma fragmentadas" e pelo "enclave minoritário") .. sob~e o qual pesa
identidade de escolha de uma identidade de refúgio, o que dife- realmente a dúvida de que constituam uma nunona.
rencia, por exemplo, os filhos dos imigrantes haitianos dos outros Percebemos, portanto, que os discursos se adpto~ às
francófonos, que não se distinguem em termos de franceses ou situações e que o elemento obscuro desse debate talvez seJa o
belgas de raça branca: "No Quebec, a 'escolha' das pessoas de mais imp 01tante: como definir um território de consulta; como
origem haitiana em se definirem como haitianos (de raça negra) delimitá-lo; a partir de que idéia fundadora estaremos es ta~cl­
é somente a constatação realista da dificuldade que eles têm em cendo 0 território da Província do Quebec como um da~, l~di­
aceder aos recursos em pé de igualdade com os quebequenses de visível e absoluto; como estabelecer raciocínios de ma1?n~ e
souche e talvez também a reivindicação subseqüente de uma soli- minoria quando não nos propomos a discutir a base terntonal
dariedade de revolta com outros negros do continente."349 de representação?
Já para Vandyke, o termo minoria pode permanecer, desde
que se estabeleçam diferenças substanciais entre as diversas
situações e se abandone a simples relação numérica.JSO Ele pro- Versões e contraversões:
As diferentes leituras da
349 Lafontant, Jean. "lnterrogations d'un métêque sur la sibylline et dangercuse notion diversidade socioterritorial
d'identité colleclive", Sorio/ogie el sociétés, vol. XXVI, n° I, primavera de 1994,
pp. 47-58.
350 Vandycke, Robert. "Le statutde minorité en sociologie du droit. Avec quelques
Por meio desta breve descrição fica evidente que a fratura
considérations sur le cas québécois", Sociologie et sociétés, vol. XXVI, n° I, primave- vivida no Canadá não é produto exclusivo de uma cultura
ra de 1994, pp. 87-97.
bilíngüe; esse país é sobretudo testemunha de uma oposição
. . . 273
272 Infll\.
que se refere diretamente ao estatuto dos seus habitantes. no Quebec atualmente, devemos olhar para duas cidades:
Trata-se de fato de uma luta por prestígio, mobilizada em nome Montreal e Toronto".35I Finalmente, se os francófonos reso lve-
de sua perda, ou uma luta por privilégios e concessões. Essa rem optar pela separação, eles serão os principais prejudica-
oposição toma a forma de urna luta pela língua e utiliza os ele- dos, sobretudo economicamente.352
mentos discursivos oriundos de culturas que têm origens dife- Há que se destacar alguns pontos nessas duas versões . Na
rentes, pois os limites comunitários foram escolhidos como primeira, chama a atenção o fato de que "ingleses" de fato são
aqueles que definir iam todo o universo de diferenciações todos aqueles que têm como principal língua o inglês, e isto
sociais possíveis. Orientadas desta forma antagônica, é natural inclui os imigrantes poloneses, ucranianos, alemães etc. Há,
que este divisor d'água tenha criado duas historiografias, duas por assim dizer, uma posição de suspeição por parte dos
versões para os personagens públicos e duas posições mais ou francófonos de origem francesa em relação às outras comuni-
menos irredutíveis que organizam a vida social e política. dades étnicas que residem no Quebec, vistas muitos vezes
Urna primeira versão parte do relato de uma sucessão de corno possíveis aliadas dos ingleses e, portanto, contrárias ao
iniqüidades e desrespeitos cometidos pelos anglófonos após a projeto de soberania.353 Aliás, não se pode esconder que,
"Conquista". Dessa forma, uma atitude verdadeiramente sub- segundo diversos relatórios oficiais, a região do Quebec está
jugadora foi posta em prática, e o território do Quebec passou entre aquelas nas quais a absorção e integração dos imigrantes
a ser verdadeiramente "colonizado" pelos ingleses. Eles não são algumas das mais difíceis. Nessa província, eles se encon-
conseguiram, no entanto, subverter o orgulho e a distinção cul- tram majoritariamente concentrados na região de Montreal e
tural desses habitantes primevos, que lutam pelo reconheci- dentro dela em espaços mais ou menos delirrútados, essencial-
mento e sobrevivência de sua cultura. mente sobre a ilha de Montreal.354
Na outra versão, os ingleses tiveram um sonho de construir Outro elemento interessante dessa versão é a imagem de
um país de homens livres, que, associados, construiriam uma uma "colonização" inglesa do Quebec, uma figura que é clara-
nova sociedade. Libertaram os camponeses das áreas francesas mente utilizada para esconder o papel das elites locais na pro-
do jugo de relações de servidão, desenvolveram o comércio e, dução da pobreza; afinal, se o inimigo está fora, mais facilmen-
graças a essa iniciativa, conseguiram desenvolver uma agricul- te se conseguirá uma perfeita coesão interna, baseada em uma
tura competitiva e uma indústria que se situa entre as mais for- homogenia pela condição de oprimidos. Esse modelo é ainda
tes do mundo. Desde os anos 70, essa comunidade inglesa
começou a ser sistematicamente perseguida pelos franceses no
351 Citada por Sénécal, Gillcs & Manzagol, Claude. '·Montréal ou la méwmorphose dcs
Quebec, seus negócios foram prejudicados, e suas empresas territoires", in Cahiers de Géographie du Québec, vol. 37, Tf? 10 1, I 993, pp. 351-70.
nacionalizadas pelo governo provincial. Sem outra opção, 352 A propósito destas diferentes versões, muitos elementos foram tomados do livro de
Johnson, William, op. cit.
muitos se deslocaram para outras províncias e reconstruíram 153 Interessante é perceber que os irlandeses, que possuem como língua materna o
suas fortunas e negócios. Graças a essa iniciativa, aliás, inglês, são vistos pelos fran cófonos com uma cena simpatia, nao só pelo fervoroso
catolicismo, mas sobretudo pelo sentimento anti-britânico desta comunidade.
Toronto passou a ser a cidade mais importante do Canadá, e
354 Quase 90% dos emigrantes recentes se instalam sobre a ilha de Montreal. Para mais
sua região hoje é a de maior dinamismo econômico em detri- detalhes, consultar Séguin. Anne-Marie e Tennote, Marc, "La dimension territorialc
mento da cidade de Montreal, ou, nas palavras de Jacobs, "para de 1'immigration internationa1e au Québec", Cahias de Géographie du Québec. vol.
37, n° 1OI, setembro de 1993, pp. 241-62.
entender por que a soberania emergiu como uma séria questão
. . . 275
:; 11. ,Jtnfl,.,
.

fartamente utilizado pelo discurso político soberani sta, que, e anglófona, diversas vezes a cultura do Quebec aparecia como
lógico, não quer chamar a atenção para a diferença de interes- 0 traço distintivo. Isto quer dizer que o Canadá existe em gran-
ses que porventura possa existir intemamente.355 de parte devido a essa união, ainda que fragmentada. Podemos
Finalmente, a relação com a "mãe Pátria" ainda é bastante até mesmo supor que, se o Quebec vier a alcançar sua autono-
problemática; afinal, a cultura que os distingue na América do mia, a Federação dificilmente permanecerá mantendo o mes-
Norte é a mesma que tem sede em Paris e que, segundo a leitu- mo pacto entre as outras províncias. Na versão anglófona, a
ra corrente, menospreza-os.356 Este fato define uma verdadeira democracia é um valor associado a essa cultura, e todos os pro-
relação de amor e de ódio com a França, como bem o demons- blemas causados pelos soberanistas se devem inclusive à utili-
tra a ambivalência da interpretação despertada pelo gesto do zação dos meios democráticos, postos à disposição pela cons-
general De Gaulle ao fazer sua proclamação por um Quebec tituição para impor uma ordem autoritária e discricionária no
livre.J57 Assim, por um lado, os quebequenses são francófonos Quebec.359
e, por outro, canadenses, e finalmente podem ser norte-ameri- É perceptível que, após o referendo de 1995, algumas posi-
canos, dependendo do tipo de distinção que se procure valori- ções se radicalizaram em torno da aceitação ou não dos argu-
zar no momento.J58 mentos que justificam a luta pela independência da Província
Na segunda versão, o Canadá aparece como produto quase do Quebec. Em Montreal, que teve uma fundamental impor-
exclusivo da sociedade anglófona, pelo menos em seus aspec- tância nas decisões do referendo devido ao grande peso demo-
tos de prosperidade. A moeda, a estrutura produtiva e até gráfico que possui no Quebec, as pessoas facilmente se dizem
mesmo a bandeira parecem pertencer exclusivamente a esse cansadas dos termos desse debate: "A tensão está presente na
grupo, como se eles os tivessem construído sozinhos. Recente- mídia e nos políticos, mas nas ruas as pessoas se entendem.
mente, um documentário na televisão procurou realçar a dife- Nós viemos todos de outro lugar."360
rença dos canadenses em relação aos seus vizinhos dos Estados Hoje, fala-se também bastante da "República de Montreal"
Unidos e nesse programa, embora produzido por uma rede para se afirmar a idéia de uma convivência segundo as leis do
direito à cidade, independentemente das afinidades comunitá-
mAs di ferenças internas que marcam o espaço regional do Quebec são objeto do livro rias. De certa maneira, esta é uma forma de reagir contra a ima-
de Proulx, Marc-Ur bain (dir.). Le pilénomime régional au Québec, Presses
gem de uma cidade repartida por um muro invisível, que p~·e­
Universitaires du Québec, 1996.
356 A esst: respeito, é interessante perceber a recorrência de artigos na imprensa sobre dominou durante muito tempo. Esse "muro" é a rua Samt
as repercussões na Fmnça da luta do Quebec. Segundo a edição de outubro de 1996 da Laurent, popularmente conhecida como a "Main", a qual serve
revista L'l\rtualilé, o Qut:bec terá st:mpre necessidade da França, de sua li teratura e de
sua cultura(...). A quest.'io da França é central para o Quebec, e a do Q uebec periféri- de limite entre o território das comunidades francófonas e
ca para a França". Ou ainda: "Outro grave mal-entendido s urgido da gmnde aproxima- anglófonas residentes nessa cidade. A dificuldade de contato
ção franco-qucbequensc é a ilusão, de ambos. de se compreenderem mutuamente c
mesmo de se parecerem. Digamos que o quebequense por definição se coloca mais fre-
qüentemente a questão do que os franceses", outubro de 1996, p. 16. 359 "Antes de P. Trudeau e de F. Scott, Durham já repreendia os canadenses franceses
3.57 Para se ter uma noção dos "olhares cruzados" no que diz respeito ao Canadá como por terem utilizado as instituições democráticas p ~r a d.cfender s u ~. n~cioa l i.d~e
um tema na geografia fra ncesa. ver Augustin, J. P. & Bcrdoulay. V. (org.). Modanité Thériault, J. Y. "Nation et démocralle au Québec: I atfa1re Durham , 111 ldenmes et
et tradition au Canada, L' Harmattan, Paris, 1997. marginalicés, Revue lnternationale d 'éwdes carzadiennes, outono de 1994, pp. 1 5-~8.
358 Du mont nos mostra que estas distinções também podem ser vistas ao longo da His- 360 Courrier Jnternational, rr. 4 17, março de 1999, "Québec: Yoyage duns une nauon
tória, Dumont, Fernand, op. cit.
incertaine", p. 39.

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pela sociedade moderna industrial. A anterioridade na ocupa-


entre estas duas partes gerou até mesmo a expressão "duas ção dessas terras, a violência da expulsão, a exploração das ter-
solidões", cunhada pelo escritor Hugh MacLennan para car~ ras e dos recursos das comunidades ameríndias são comumen-
terizar a incomunicabilidade de uma cidade dividida. Dentro
te referidos como atos brutais e injustos.
dessa "geografia étnica", entre as "duas solidões" se estende o O mesmo não ocorre, no entanto, em relação a uma outra
que é também conhecido como o "conedor étnico", ou seja, a comunidade, a dos chineses. Ao lado dessas manifestações de
seqüência territorial de comunidades de outras origens, italia- culpa e respeito em relação aos autóctones, há nitidamente um
nos, portugueses, gregos etc., que ocupam essa rua segundo mal-estar em relação aos asiáticos. Essa província na verdade
determinados trechos, facilmente identificáveis pelo tipo de conheceu vagas sucessivas de imigração asiática, e a própria
ocupação, de adereços ou oferta de alimentação típica. natureza do imigrante se modificou bastante desde os primei-
Percebe-se, portanto, por que as questões sobre o territó- ros chineses trazidos para trabalhar na construção da estrada de
rio, cidadania, multiculturalismo, limites da democracia, entre ferro, até os ricos imigrantes de Hong-Kong, que chegam
outras, assumem uma importância tão grande e urgente dentro atualmente. A velha Chinatown, próxima ao centro, é associa-
desse contexto. Todavia, ainda que o debate seja no Canadá, do à criminalidade e, de fato, constitui-se em um bairro em
definitivamente polarizado pelo tema da soberania do Quebec, franco processo de obsolescência ao lado do porto. Aí estão
ele não é propriamente singular. localizadas lojas que oferecem produtos a preços baixos e
Nesse sentido é interessante perceber nesse país que o pro- grande número de mercadorias falsificadas. Segundo alguns
blema entre cultura e território não se esgota na questão do relatos, esta é a área-sede da máfia "chinesa", que controla o
nacionalismo, embora esta seja sua face mais vistosa. Em contrabando de mercadorias e atua também no tráfico de dro-
Vancouver, por exemplo, no outro extremo do país, considera- gas. A marginalidade urbana também se encontra muitas vezes
da uma cidade cosmopolita, onde a grande afluência nos últi- associada no imaginário local à ação das "gangues chinesas",
mos anos de imigrantes, sobretudo asiáticos, tende a renovar a grupos de jovens asiáticos que cometem pequenos delitos e
fisionomia urbana, o problema também se coloca, embora sob
promovem arruaças.
formas diferentes. No outro extremo, os ricos imigrantes chineses de Hong-
Em primeiro lugar, chama a atenção o enorme respeito e a Kong são vistos como "novos-ricos", sempre ostentando sím-
grande valorização da cultura autóctone nessa cidade. O passa- bolos de seu alto padrão de consumo e trazendo, pelo poder
geiro, ao desembarcar no aeroporto, é surpreendido por uma financeiro, um "desequilíbrio" nocivo à cidade. Na área do
enorme escultura inspirada na mitologia pré-colombiana; em "North Shore", o tipo de urbanização em grandes lotes, odes-
diversos parques e outros espaços públicos os motivos dessa matamento de grandes superfícies e a ocupação das áreas de
mitologia estão sempre presentes. Museus, camisetas, gravu- encosta são elementos da paisagem urbana associados negati-
ras, objetos os mais variados retomam ad nauseam esses
vamente a esses imigrantes.
temas. Na exposição que reuniu os novos talentos das artes São eles também objeto de uma forte oposição quando se
plásticas da Província de Britsh Columbia, na Art Gallery, instalam em áreas de ocupação antiga na c"idade. Suas casas
aberta em outubro de 1996, pinturas, artefatos e instalações são muitas vezes denominadas de "Monster Houses", pois ocu-
inspirados na cultura autóctone eram majoritários. Ao lado pam geralmente a área de dois lotes tradicionais e costumam
destes, os temas ecológicos lembravam a destruição trazida . . . 279
278 Jlf1.[\
..

ser grandes superfícies construídas.36I O nome também se lumbia. A fisionomia urbana se assemelha a uma "Inglaterra
refere ao tipo de arquitetura dessas casas, ostentatórias e sun- revisitada", sobretudo nas áreas centrais. O elemento asiático é
tuosas. Repetidas vezes, a iniciativa de construir estas casas bem menos importante na composição populacional; porém, o
tem enfrentado reações de associações e dos moradores locais, mesmo não se pode dizer dos autóctones. Algumas reservas
não só pelo "desequilíbrio" da unidade arquitetônica, mas tam- indígenas estão próximas, e vagam pela cidade grupos de pes-
bém, e sobretudo, pelo hábito de cortar todas as árvores do ter- soas facilmente identificáveis como oriundas dessas popula-
I I
reno, costume tfpico da cultura urbana chinesa, segundo nos ções. Os comentários sobre esses grupos já são bem menos
foi explicado, e diametralmente oposto à urbanização do tipo gentis e compreensivos do que aqueles emitidos na cidade de
"inglesa", que preserva e replanta grande quantidade de árvo- Vancouver. Aqui os "totens" das praças são substituídos pelos
res. Nesse caso, ainda que não haja nenhuma compartimenta- parques à moda inglesa, e a estética ameríndia é bem menos
ção ou segregação espacial, há uma "leitura" do tecido (ou do presente. No museu há uma enorme galeria que nos mostra a
texto) urbano que é capaz de identificar esse segmento sociaL corrida do ouro, a exploração da madeira e a pesca do salmão.
Vancouver tem sido muitas vezes citada como um exemplo Em Vitória, o que predomina talvez seja a valorização da cul-
do pós-moderno urbano, pela sua fragmentação cultural e tura da fronteira e a transformação do espaço pelo trabalho do
espacial. De fato, facilmente se percebe a presença e a impor- colonizador; nesse caso, o "outro" está próximo demais para
tância do elemento "estrangeiro" na vida urbana dessa cidade. ser valorizado.
Este breve relato sugere, no entanto, que essa convivência nem De qualquer maneira, o Canadá atualmente é o fórum de
sempre se faz nos moldes previstos pelo politically correct, tão uma ampla e geral discussão de alguns conceitos básicos, tais
em voga neste momento. Sugere também que, talvez, o apreço como: identidade territorial, autonomia espacial (regional ou
aos valores e à estética da cultura ameríndia sejam muito mais local) e mesmo do conceito de região e de suas relações com o
uma mise-en-scene de um elemento que, de fato, encontra-se conceito de nação. Ele é também a arena privilegiada de fortes
ausente nessa aglomeração. A despeito de todos os monumen- conflitos territoriais que têm como base a distinção étnica ou
tos e das recon·entes citações à cultura ameríndia, as popula- cultural. Privilegiada porque o contexto de fartura e o alto nível
ções autóctones não têm uma presença muito visível na cidade médio de educação não permitem interpretar, como tantas
e efetivamente não contribuem para a divisão do espaço urba- vezes se fez, esses fenômenos debitando-os simplesmente à
no nela. Parece, pois, que essa valorização atua muito mais no ignorância, à manipulação ou o não-atendimento das necessi-
sentido de fornecer um elemento de comunhão, um valor fun- dades materiais do povo. Nesse sentido, refletir sobre tais con-
dador, uma personalidade, que solde a identidade urbana fraa- flitos a partir dos elementos dados pela sociedade canadense
o
mentada.
pode nos colocar mais perto da essência desses eventos.
Vizinha a essa cidade, sobre a ilha de Vancouver, está Infelizmente, percebe-se, muitas vezes, que a bibliografia
situada a cidade de Vitória, capital da Província da British Co- gerada por intelectuais oriundos da cultura francófona incorre
em uma certa criptografia. Em outras palavras, são textos que
361
Ver, por exemplo, Brosseau. Marc et alii. "Les méga-maisons de Kerrisdale, Van- em muitos casos se referem a fatos da política interna ou even-
couver: Chronique d'un quartier en transformation", T!Je Canadian Geogmplzer 40
m 2, 1996, pp. 164-72. ' ' tos históricos pouco conhecidos, e não há um grande esforço
em explicá-los, como se o conhecimento prévio e o envolvi-
280 )lf1/\
.AW 28 1

--
..

nio de um território constituem, sem dúvida, um material por


mento com a di scussão específica fossem tomados como demais rico para ser negligenciado pela geografia.
dados. Essa pressuposição de uma proximidade existencial A amplitude e a importância da luta pela soberania do
com o interlocutor é, sem dúvida, um outro dado importante a Quebec são um importante catalisador desse tipo de reflexão,
se levar em consideração, pois dá contornos conscientemente mas simultaneamente os aspectos que emergem dessa discus-
limitados a esse diálogo. Tal fato revela também a parcela de são conduzem à abertura de novas frentes de debate sobre
mobilização e militância social que a ciência tantas vezes tenta
esses problemas em outras áreas e outros contextos.
encobrir. Como em toda ampla discussão que mobiliza um grande
Simultaneamente, fica patente que a geografia cultural de número de pessoas, diversos elementos ou linhas de raciocínio
língua inglesa trata desses temas acima referidos - identidade , são tomados como dados definitivos por um ou por outro lado.
autonomia e região -com um certo nível de ~ ~renalizcão ' e' .)
Alguns desses argumentos se equilibram dificilmente quando
de certa forma, na produção dos universitários canadenses de analisados de uma forma mais acurada. São justamente esses
língua inglesa a discussão desses assuntos é evitada ou são bas- elementos em ação que tomam o Canadá um terreno tão fértil
tante cautelosos com o exemplo do Quebec.362 É possível tam- para observar estes fenômenos da relação complexa entre terri-
bém perceber nessa bibliografia anglo-saxônica um relativo tório e política, e a geografia, tão útil para desvendar alguns
obscurecimento dos conflitos territoriais interétnicos, reflexo
talvez da positividade com que são vistas a idéia do "direito à desses paradoxos.
O primeiro e mais flagrante paradoxo da discussão que
diferença" e a ideologia do poli ticamente correto. De certa
envolve hoje a soberania do Quebec se relaciona à idéia de que
forma, a geografia cultural demonstra, muitas vezes, ao anali- a democracia é a forjada pela manifestação de uma maioria.
sar tais problemas, quase que um desinteresse em tratar da sua
Conhecemos os problemas da definição da democracia como
dimensão política. uma medida aritmética de votos desde os tempos mais remotos
da implantação de um regime democrático. Em Aristóteles já
havia toda uma cautela advinda da preocupação com a questão
Os paradoxos de uma democracia
da maioria ou da minoria nas tomadas de decisão.
Vimos que, de fato, essa questão é fundamentalmente defi-
Os destinos dos conflitos presentes no Canadá parecem
nida pelo tipo de recorte territorial considerado, maiorias e
conduzir a uma encruzilhada de incertezas. Todos os cenários
minorias são relativas a um espaço dado e nunca são absolutas.
podem ser vislumbrados como desdobramentos possíveis des-
Pode-se concluir, pois, que a discussão democrática primeira é
ses processos. De fato, esse país se apresenta hoje como um
aquela que define os limites territoriais das consultas. Vimos
locus privilegiado para efetuar diversas discussões sobre as
também, em outra passagem deste livro, como o espaço, seu
relações entre política e território. As imagens e representações
recorte e a representação por unidade de área constituem fun-
do "outro", as construções de sistemas de convívio e as versões
damentos do fenômeno democrático. Diante disso, só pode nos
e fábulas que utilizam material inspirado na conquista e domí-
causar surpresa a maneira como os limites da Província do
Quebec são "naturalmente" vistos como as fronteiras defint~
362 Veja, por exemplo, Clurke, Colin, Ley, David & Peuch. Ceri, Geography & Etlmic
plur(l/ism, George Allen & Unwin, Londres, 1984. vas da francofonia no continente norte-americano.
.aw 283
?82 ;úR.
ria (no sentido de membro de uma coletividade nacional), mas
Concebido como o território de uma exclusividade, da também a convivência em um espaço, definido como Lcrrcno
"cultura" francófona, essa afirmação termina por significar a de um código comum, o território nacional.
condenação de outros grupos francófonos fora dessa província, Por mais que os relatos ideológicos tentem se aproximar
dentro de uma perspectiva de que "cada um tem o seu lugar". dessa idéia, com suas velhas fábulas das origens culturais
Assim, a idéia de maioria é vista sob o ângulo da exclusivida- comuns, os princípios que presidem a formação dos Estados
de, enquanto a de minoria perde, por conseguinte, o direito modernos são a lei e o poder de impô-la sobre um território,
sequer à existência. sendo todo o resto argumentações geopolíticas postas em prá-
O segundo grande paradoxo diz respeito ao fato de os ter- tica em um momento oportuno para tentar impor uma hegemo-
mos da separação serem vistos geralmente como direitos à
nia sobre os territórios.
diferença cultural. As idéias de cultura e Estado se confundem Finalmente, o terceiro paradoxo trazido por essa discussão
tirando proveito de uma confusão comumente veiculada à d~ é a definição de uma democracia que se baseia em um recmte
Estado-Nação. Assim, de forma banal, tudo se passa como se de subculturas assentadas sobre um território identitário. Do
para cada cultura independente se associasse um Estado, este ponto de vista geográfico, esse paradoxo pode ser apresentado
existindo, aliás, para proteger, resguardar e desenvolver um como a completa oposição de duas concepções do espaço, um
patrimônio histórico e cultural comum. espaço coletivo e um espaço público. Esta comum confusão,
Sabemos, no entanto, há algum tempo, que essa idéia de inclusive praticada por alguns geógrafos, não percebe a dife-
Estado-Nação é problemática e enganadora. Os Estados defi- rença de estatuto entre esses dois tipos de espaço. Espaços
nem limites da lei, da garantia de certos direitos e deveres, e coletivos e comunitários são fundados numa idéia de identida-
estão associados à ideologia da reunião de consciências indivi- de, social e territorial. Apropriados em nome dessa identidade,
duais, trabalhando em associação pelo bem comum. Indiví- os territórios comunitários são uma expressão do poder coerci-
duos racionalmente reunidos pelo interesse comum não obri- tivo dos que falam em nome da identidade para exercer um
gatoriamente incluem recortes de identidade coletiva do tipo controle e um domínio baseados em valores que realimentem a
comunitária. Em certo sentido, o raciocfnio individualista se distinção e a diferença do grupo em relação aos outros.
opõe ao comunitarista, uma vez que a idéia de um Estado iso- O espaço público, território que funda a democracia, ao
nômico não pode conviver com a prática dos privilégios e das contrário, patte de uma idéia de coabitação dentro de uma pers-
garantias culturais, como uma segunda ordem legal a governá- pectiva de infinitas diferenças, limitadas em suas manifesta-
lo. Os Estados modernos, ao criar limites, incluíram diferentes ções pela norma, geral e lógica, estabelecida a partir de uma
nações. Espanha, França e Grã-Bretanha desenvolveram códi- concepção de um homem sem atributos outros senão o da
gos de pertencimento nacional fora dos limites estritos das cul-
racionalidade e o da lógica.
turas comunitárias (língua, costumes, leis etc.) e fundaram Hoje, na sociedade anglo-saxônica, a idéia de multicultu-
novos limites impostos pela lei dentro de uma associação de ralismo, ou do direito das comunidades, tende a se impor como
interesses vizinhos. Diferenças existem, diferenças nacionais, uma ideologia dominante e de legitimidade quase absoluta.
regionais e até locais (raiz, aliás, de algumas lutas no interior Ora, uma democracia multicultural significa que tomamos as
desses Estados). O que funda entretanto essas novas coletivi- diferenças de culturas (seja lá sob que definição for: étnica, ori-
dades é não só o acesso a uma ordem legal comum e igualitá- .&Laâ 28o
281• pnJ\.
gem geográfica, sexual, gênero etc.) como os limites incontor-
náveis da diferenciação cultural. Há uma pretendida homoge-
neidade no interior desses grupos e uma suposta heterogenei-
dade entre eles, que justificam a justaposição de cada comuni-
Últimas notas
dade no espaço, garantindo-se dessa forma sua reprodução
diferenciada. "Não o espaço visto, mas o espaço que o espírito
Interessante é perceber que esse paradigma que anima veria, se ele se perguntasse sobre as próprias condi-
grande parte do Canadá anglófono se manifesta contraditoria-
ções da reflexão."
mente em favor da manutenção do Quebec no interior da fede- Jean Duvignaud, Lieux et non lieux
r~ção canadense. De certa forma é como se a segregação espa-
cial fosse admitida e até certo ponto incentivada, enquanto a
separação definitiva parece ser inconcebível.
Estes três paradoxos não são de forma alguma exclusivos O processo de constituição deste livro foi bastante longo.
do Canadá, tampouco os únicos aspectos importantes nessas De fato, as primeiras notas e o esboço de sua estrutura datam
discussões, mas resumem brevemente alguns dos problemas do inverno de 1997. A despeito da vontade de escrevê-lo e
centrais apresentados ao tetmo desta análise aqui empreendida. acabá-lo, muitos outros compromissos se impuseram antes
~lém disso, nestes três aspectos, acreditamos, a análise espacial como prioridades. Mas as verdadeiras razões da longa duração
aJuda a dar uma nova visibilidade e compreensão aos problemas não foram apenas estas. Uma outra ordem de dificuldades
sobre esta complexa relação entre cultura e território. Este foi o retardaram sua aparição. Como pode ser visto, o livro recobre
objetivo fundamental desta análise; esperamos, por fim, dessa temáticas variadas e procura dialogar com campos disciplina-
maneira, ter demonstrado que existem talvez várias versões para res diversos. Assim, um primeiro desafio foi o de justificar a
se compreender a expressão Viva o Quebec livre!. cada momento a unidade possível entre esses diferentes territó-
rios temáticos. A composição da discussão não foi organizada
aqui segundo um ordenamento já constituído e consagrado.
Além disso, um livro de geografia que se propõe a falar de
praias, esportes e cidadãos não facilita a imagem imediata de
um todo organizado e lógico. As matrizes, o nomoespaço e o
genoespaço, foram, sem dúvida, os veículos dessa trajetória,
mas a coerência dos propósitos precisava ficar clara.
Soma-se a essa dificuldade, uma outra não menos ameaça-
dora, a de apresentar discussões fronteiriças com outras áreas
do conhecimento. Os riscos aí são muitos. Por um lado, exige
um certo domínio de matérias que não fazem parte do arsenal
da formação básica de um geógrafo. Demanda assim um inten-
. . . ?B/

?86 ,nrú\.
so trabalho de leitura e análise que deve ultrapassar aquilo que prometem dar novas cores aos assuntos aqui presentes. Depois
é apresentado para evitarmos as sempre tão sedutoras simplifi- de algumas hesitações e adiamentos, parece ter chegado o
cações. Por outro lado, há outra enorme tentação de, nesse momento em que se impôs como mais importante fechar os
mergulho, perder-se de vista o horizonte de nossos estreitos olhos e correr os riscos de dar vida à criatura, ou seja, entregar
interesses e enveredar por domínios, sem dúvida fascinantes, os originais.
mas distantes dos pontos centrais, que, em princípio, deseja- Desse conjunto das matérias apresentadas nos capítulos
mos explorar. Por isso, esta versão final foi o resultado de um anteriores não há propriamente conclusões a tirar. Existem, no
contínuo e bastante doloroso processo de "emagrecimento". entanto, breves comentários e alguns elementos que gostaríamos
Muitos exemplos, julgados redundantes, foram abandonados de ressaltar e que podem ser esquematicamente reagrupados
durante o percurso, e muitas descrições históricas foram corta- em cinco principais pontos.
das ou resumidas ao que nos pareceu ser o estritamente essen- O primeiro diz respeito aos modelos ou matrizes que atra-
cial. De certa forma, contamos com a boa vontade do leitor, vessam e constituem a espinha dorsal de toda a discussão aqui
que certamente teve que mobilizar seus próprios conhecimen- contida. Esperamos ter conseguido demonstrar que o recurso
tos para preencher as possíveis lacunas aqui deixadas. às idéias de nomoespaço e de genoespaço foi útil para fazer
A grande quantidade de notas reflete também essa preocu- emergir alguns aspectos essenciais presentes em certos proces-
pação de não perder as marcas fundamentais da discussão, sos socioespaciais. Estas duas matrizes constituem modelos
sem, no entanto, deixar de assinalar alguns dos potenciais des- que procuram exprimir duas formas bastante diversas de repre-
vios e seus mais competentes interlocutores. Da mesma manei- sentação da espacialidade, com repercussões indubitáveis
ra, a farta bibliografia é também a expressão desse esforço de sobre as dinâmicas nas quais atuam. O apelo a essas denomina-
fornecer as pistas e origens do que foi apresentado; por isso, ções não deve ser debitado à vaidade de criar nomes ou catego-
limitamo-la ao que foi citado e utilizado na reflexão e na com- rias novas, como se estivéssemos inventando formas inteira-
posição do texto.
mente inéditas de pensar o espaço. Elas devem ser vistas como
Ainda em relação à bibliografia, podemos perceber que a franca atitude de utilizar uma espécie de óculos conceptuais,
algumas referências são bastante recentes, e isso reflete o inte- deliberadamente deformadores, mas que têm a propriedade de
resse que atualmente alguns temas aqui tratados vêm receben- nos fazer realçar aspectos e chamar a atenção sobre determina-
do. Assim, embora os temas analisados, em sua maior parte, dos ângulos, que, sem eles, seriam dissolvidos em uma massa
não sejam presenças tradicionais na literatura geográfica, a de informações variadas. Acreditamos que modelos não são
obliqüidade do tratamento adotado nos conduziu ao encontro prisões analíticas, mas modulações com as quais certos ele-
de obras de origens disciplinares variadas que tangenciavam mentos ganham relevo e visibilidade. Os instrumentos conti-
nossa discussão. Esse foi também um dos motivos pelos quais dos nessas idéias de nomoespaço e genoespaço nos ajudaram
a finalização do trabalho foi oportunamente postergada para a assim a percorrer recortes temáticos muito di versos e de certa
exploração e, quando foi o caso, para a incorporação destas forma permitiram a criação de elos entre fenômenos que comu-
recentes publicações. Constatamos com alegria o fato de que mente são analisados seguindo outros roteiros.
esse interesse persiste e que às vésperas da entrega dos manus- O segundo ponto importante é a tentativa de demonstra-
critos ao editor sempre chegam novidades, que, muitas vezes, ção, que também fez parte do conjunto das discussões, da
?88 ,nflf\
~ 289
'.
primário, seja das palavras tomadas individualmente, seja dos
a~solut necessidade de a geografia desenvolver uma concep- signifcados obtidos a partir da simples adição dos vocábulos.
çao do espaço que contemple simultaneamente a forma e 0 Dentro desse universo, transmitir e compreender um sentido
conteúdo. Em outras palavras, insistimos na idéia de que a aná- significa interpretar algumas regras que presidem a organiza-
lise espacial deva ser concebida como um diálogo permanente ção dos objetos elementares. Depois, podemos vê-los ~m rel~­
entre a morfologia e as práticas sociais ou comportamentos. Os ção, que nos conduz por conseguinte a sentidos mmto mats
0
sentidos e significações da organização do espaço são sempre complexos. O espaço pode assim também ser visto como uma
tributários de um universo relaciona!: da relação entre coisas complexa composição, de formas, aspectos, combinações, ati-
espacialmente distribuídas, da relação entre essas coisas e as vidades e contextos. Dentro dessa perspectiva, tão importante
práticas que aí têm lugar, dos lugares com as coisas, e assim quanto os elementos já tradicionais das análises geográfias da
sucessivamente. Devemos perder desse modo a ingenuidade cidade- equipamentos, densidade de população, divisão terri-
de conceber interpretações definitivas e aceitarmos a flexibili- torial do trabalho etc.-, são também fundamentais as fachadas
dade de tratamentos como um incontornável procedimento que das casas, a distribuição de seus cômodos, os arruamentos, os
resulta realmente da complexidade desse universo. Isso não valores associados a estas formas, as imagens que veiculam, as
quer dizer que todas as interpretações produzidas são válidas atividades, aparentemente banais, que aí se desenvolvem e as
ou equivalentes. Algumas são mais bem-sucedidas que outras, relações que podemos estabelecer entre estes objetos espaciais
tendo mais posteridade ou mais alcance; porém, o segredo do e as condições que criam para certas dinâmicas que neles se
possível sucesso permanece ainda misterioso. Assim, não há a desenvolvem. Imaginários espaciais não são forçosamente uni-
pretensão de estabelecer protocolos, mesmo que nos pareça ficados, não havendo assim uma única forma de se conceber e
sempre ser absolutamente necessário neste exercício interpre- viver o espaço. Suas diferentes modulações e variedades nos
tativo investir em alguns instrumentos metodológicos claros e indicam as diferentes formas de circulação dos sentidos por
bem- explicados. De qualquer forma, se conseguirmos evitar
intermédio dessa estrutura.
nestas interpretações os simplismos das "evidências" ou dos O quarto ponto que gostaríamos rapidamente de comentar,
"consensos" que prescindem de discussão, já nos parece que associado ao anterior, é que o espaço se declina segundo dife-
estamos realizando um grande passo. rentes registros. Poderíamos dizer, diferentes estatutos: públi- I
I

Isso nos leva ao terceiro ponto, que é o de ver o espaço físi- co, privado, coletivo, sagrado, profano, urbano etc. Cada um
co e sua vivência como uma singular espessura dada pelos destes registros deve chamar nossa atenção para certas formas,
diferentes sentidos que ele é capaz de veicular e condicionar. A regras, valores, comportamentos e imagens a eles relaciona-
metáfora da linguagem pode aqui nos ser útil. As palavras têm dos. Estes estatutos não são exclusivos, nem fixos. O espaço
sentidos e estes mudam quando são articulados com outras sagrado, por exemplo, só adquire esta dimensão para aqueles
palavras; mudam também com a ordem pela qual essas apare- que estão investidos desse sentimento da sacralidade. Par.a
cem em uma frase, ela mesma dotada de um sentido. O contex- outros personagens, destituídos desse sentimento, mas que uti-
to no qual se faz a emissão, os interlocutores, assim como as lizam esse espaço, ele terá outros sentidos. Todavia, ainda que
pontuações da elocução, todos estes elementos também parti- aquele mesmo espaço esteja sendo concebido sobre um outro
cipam como ingredientes fundamentais na transmissão de sen- registro para outras pessoas, o investimento desses outros sen-
tidos, que, muitas vezes, ultrapassam em muito o significado ~ 291
290 ftL[\
tidos não será completamente estranho e opaco à dinâmica da Os conteúdos dos diferentes temas tratados nos capítulos
sacralidade. Tudo se transforma pelo feixe de relações locacio- não estão assim, de forma alguma, representados nestas breves
nais. Para uma rápida conclusão, o espaço une e separa; ele notas. Para aqueles que, por ventura, decidirem começar pelo
tanto pode ser o elemento de federação de grupos e/ou ativida- final, talvez esses pontos possam mesmo parecer obscuros, e
des quanto o instrumento de separação e decomposição de aconselhamos firmemente que façam antes uma passagem pelo
dinâmicas. conjunto dos textos que compõem o livro. Guardamos a teme-
Finalmente, o quinto e último ponto se refere às escalas de rosa ambição de traduzir na própria estrutura desta obra um
análise. Tradicionalmente, a geografia se conformou com cer- elemento a mais na demonstração da validade do ponto de
tas relações de grandeza. Há, por assim dizer, limites mínimos vista da riqueza de um universo relacional e de que também o
que são preciosamente mantidos afastados do tratamento geo- espaço textual é parte desse universo, e sua maior virtude é tra-
gráfico. Esperamos também ter introduzido elementos sufi- duzida por sua capacidade de diálogo.
cientes ao longo de algumas de nossas análises para demons-
trar que esses limites não são interdições absolutas e que, ao
descermos a unidades menores, podemos enriquecer nossas
discussões sem perder de vista a identidade disciplinar. Ao
contrário, ao fazermos isso estamos de fato nos insurgindo
contra a idéia preconcebida de que a cada disciplina correspon-
de um "recorte". Preferimos pensar que a identidade do olhar
disciplinar se encontra no tipo de questão que dirigimos aos
objetos. Aliás, podemos conceber que os objetos de investiga-
ção são construídos pelo tipo de questões a eles endereçadas,
sendo estas questões que os conformam, os limitam, os criam,
e não o inverso, como, por vezes, tendemos a imaginar. Um o-
lhar geográfico sobre a cidade pode assim percorrer diferentes
rumos, diferentes recortes e ainda assim manter-se fiel ao com-
promisso fundamental da geografia, de desvendar a ordem
espacial urbana.
Esses pontos estão desenvolvidos, sob variados ângulos,
em diferentes momentos deste livro. Nosso propósito por meio
desses comentários não é o de produzir ao final um resumo sin-
tético de tudo o que foi anteriormente apresentado. Por isso,
não nos preocupamos em apresentar esses pontos de forma
exaustiva ou detalhada e preferimos simplesmente assinalá-
los. São momentos da análise que nos parecem ter um relevo
particular na orientação de nossa pesquisa.
. . . 293
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sentido a unidade da cidade fragmenta-se por
intermédio de práticas socioespaciais diferen-
ciadas. Esta perspectiva amplia o escopo da
geo_grafia urbana.
E esta a perspectiva contid a no livro
A Condição Urbana: Ensaios de Geopolítica da
Cidade, de Paulo César da Costa Gomes,
geógrafo que já nos brindou com seu excelente
Geografia e M odernidade, também publicado
pela Bertrand Brasil. A contribuição do autor,
alicerçada na reflexão teórica e em trabalhos
empíricos, reside na distinção, no espaço
urbano, de dois tipos fundamentais de espaços,
que, entretanto, não se excluem. Trata-se do
nomoespaço e do genoespaço, os quais não eli-
minam outras categorias espaciais, construídas
segundo outras perspectivas teórico-metodo-
lógicas, como distrito central de negócios,
periferia urbana e áreas sociais. A contribuição
do autor, ao contrário, soma-se a estas tradi-
cionais categorias, enriquecendo a visão geográ-
fica da cidade.
Os genoespaços são privilegiados na exempli-
ficação, pois são as práticas sociais não regidas
por normas, regras e leis, que a geografia precisa
aprofundar, oferecendo a sua particular contri-
buição. Os exemplos vêm do Rio de Janeiro e
de Paris, e envolvem, entre outros, a espacia-
lidade de práticas sociais nos espaços públicos
da praia e dos estádios de futebol.
Ganha a cidade uma leitura rica, que contri-
bui para desvendá-la em sua complexa multi-
dimensionalidade. Ganham também a geogra-
fta e, naturalmente, os leitores.

R oberto L obato Corrêa


Departamento de Geografia /UFRJ

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