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Hebreus 11, 1
PREFÁCIO
A SAGA GLITTER
Firecracker .................................................................................................224
Já Vai Tarde (Só Que Não)........................................................................230
Calamidade E Pelo De Cachorro ...............................................................246
Colapso Nervoso .......................................................................................254
4º PARTE - EMANCIPAÇÃO
FOTOGRAFIAS ...........................................................................................329
AGRADECIMENTOS ...................................................................................388
1° PARTE
Por muitos anos, ela esteve presa dentro de mim – sempre sozinha,
escondida à plena vista de muitas pessoas. Traços dela são vistos em meus
primeiros trabalhos: muitas vezes ela pode ser vista olhando pela janela,
diminuída por uma enorme moldura, descalça, observando um balanço
vazio em movimento em uma árvore solitária diante de um céu crepuscular
de cor roxa. Às vezes, ela se encontra no segundo andar de uma casa
geminada estilo brownstone1, observando as crianças do bairro
dançando na calçada abaixo. Essa menina foi vista no auditório de uma
escola com um macacão OshKosh, segurando uma bola de lado,
esperando e desejando ser escolhida. Às vezes, ela é vista em um raro
momento de alegria, em uma montanha-russa ou patinando com as mãos
para o alto. Porém, ela sempre mantém um desejo reprimido nos olhos. Ela
se sentiu assustada e sozinha por muito tempo, e mesmo com toda a
escuridão, ela nunca perdeu o seu brilho. Ela se fez conhecer através das
suas canções – os seus anseios ouvidos nas estações de rádio, ou vistos
nas telas de TV. Milhões de pessoas sabem quem é ela, mas nunca a
conheceram.
Ela é a pequena Mariah, e grande parte dessa história será sobre ela e
como ela a vivenciou.
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EXISTÊNCIA
Logo no início, você lida com o fato de que você não tem um lugar para
Se encaixar e reconhecer que nasceu para existir, totalmente sozinho.
–“Outside”
Na minha família tem a minha mãe, a Patricia, uma mulher de pele mais
clara e de cabelo mais liso, e o meu pai, o Alfred Roy, um homem de pele
mais escura e de cabelo mais crespo, mas que, no entanto, não possuíam
feições semelhantes às minhas. Os dois viviam cheios de arrependimento,
reféns de inúmeras situações ruins. Tem também a minha irmã, a Alison, e
o meu irmão, o Morgan, que eram mais velhos e mais morenos que eu. Os
dois possuíam uma energia pesada semelhante que parecia bloquear a luz.
Eu tinha uma tendência natural para devaneios e fantasias, entretanto, os
meus irmãos eram o oposto disso. Tínhamos sangue em comum, mas eu
me sentia uma estranha no meio deles, uma intrusa na minha própria
família.
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mãe, eu cantava pequenas melodias pela casa também (o que ela sempre
incentivava.) Um dia, enquanto a minha mãe praticava uma ária de ópera
chamada Rigoletto, ela não conseguia fazer direito essa parte, então eu
comecei a cantar do jeito certo para ela, em italiano perfeito. Eu devia ter uns
três anos. Ela olhou para mim, surpresa, e a partir daquele momento eu
percebi que ela passou a me notar. Eu agora era mais que uma garotinha
para ela. Eu era a Mariah. Uma musicista.
Dizem que Deus fala através das pessoas, e sempre serei grata pela
minha amiguinha falando ao meu coração naquele dia. Ela viu algo especial
em mim e expressou com palavras, e eu acreditei nela. Eu acreditei que a
minha voz era feita de instrumentos – piano, cordas e flautas. Eu acreditei
que a minha voz poderia ser música. Tudo que eu precisava era ser vista e
ouvida por alguém.
Eu percebi como a minha voz poderia fazer outras pessoas sentirem algo
bom em seu interior, algo mágico e transformador. Isso queria dizer que eu
não era descartável, e sim que eu tinha o meu valor como pessoa. Eis aqui
então algo de valor que eu poderia oferecer aos outros – o sentimento. E
seria o sentimento que eu buscaria encontrar durante toda a vida. Foi o que
me deu uma razão para existir.
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EU FECHO OS MEUS OLHOS
Foram necessários doze policiais para separar o meu irmão e o meu pai.
Dois homens de corpos enormes, emaranhados e girando como um furacão
em movimento, colidindo violentamente na sala de estar. Em um segundo,
a imagem que eu tinha de família sumiu de vista – não havia mais janelas,
nem chão, nem móveis, e nem luz alguma. Tudo o que eu conseguia ver
era um bolo caótico de pernas e braços se movendo: calças escuras e
braços fortes saindo de mangas escuras, mãos enormes agarrando e
dando socos, membros emaranhados destruindo tudo pelo caminho,
sapatos pretos, grandes e polidos chutando por toda parte e pisando forte.
Eu vi flashes rápidos de coisas brilhantes: botões, crachás e armas. Vi
também cerca de uma dúzia de cabos rígidos de pistola saindo de coldres
de couro fosco, alguns segurados na palma da mão, e outros pendurados
em largos cintos pretos em quadris largos. O ar ficou pesado com sons de
xingamentos, grunhidos e gemidos. A casa inteira parecia estar tremendo.
E em algum lugar dessa confusão toda estavam as duas figuras masculinas
mais importantes de toda a minha vida, destruindo um ao outro.
Porém, essa briga em particular com o nosso pai havia sido mais intensa
do que a maioria. De uma disputa de gritos, uma sucessão de murros
aconteceu logo em seguida, o que pareceu acontecer em uma questão de
segundos. Eles entraram na sala aos murros e pontapés, derrubando
coisas, e deixando estragos pelo caminho. Naquele momento, a raiva entre
o meu pai e o meu irmão foi tão intensa, que ninguém poderia ter impedido.
Ninguém teria tido coragem.
Eu não sabia se eles tinham vindo para nos salvar ou nos matar. Estou
falando de Long Island na década de 70, e dois homens negros estavam
brigando – o fato da polícia estar presente raramente significava que a
ajuda havia chegado. Pelo contrário, a presença de policiais muitas vezes
complicava a situação e aumentava ainda mais o terror e a violência. Isso
ainda não mudou hoje em dia, mas esta foi a minha primeira percepção. A
minha primeira experiência com a polícia não foi nada boa; eu não me
beneficiei com nada. A minha prima Lavinia, filha da Nana Reese, sempre
dizia: “Vocês crianças sofrem tudo de ruim por serem negros, mas nunca
sentem o lado bom disso”. Eu levei muito tempo para entender a realidade
do comentário dela.
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Essa, é claro, não foi a primeira briga violenta entre o meu pai e o meu
irmão – desde que eu me entendi por gente, a relação deles tinha sido uma
zona de guerra, mas foi a primeira vez que se chamou a polícia. Foi também
a primeira vez que eu senti que um membro da minha família poderia morrer
brutalmente diante dos meus olhos, ou que eu também poderia morrer. Eu
nem tinha quatro anos ainda.
Não éramos uma família convencional. Será que era melhor mesmo
morar em um lugar onde a minha mãe branca tinha que entrar sozinha
primeiro pela porta da frente, para que só então o meu pai negro pudesse
entrar com os seus filhos birraciais – para a nossa própria segurança? O
que esse tipo de coisa faz com a psique de um homem que tem como
responsabilidade ser o chefe da casa? Como um homem assim pode
manter a sua família segura? Que tipo de imagem o meu irmão teria do
próprio pai ao vê-lo ser tratado com tanta indignidade só por ser negro?
A Nana Reese me segurou com força até o meu pequeno corpo parar de
tremer e a minha respiração voltar ao normal. Depois da confusão, eu voltei
para a sala, o meu eu voltou para o meu corpo. Ela virou o meu rosto em
direção à luz, e se certificou de que os meus olhos estavam focados e fixos
nos dela. Ela colocou a sua mão delicada firmemente na minha coxa. Assim
que ela me tocou, qualquer tremor que eu porventura tivesse, imediatamente
cessou. O olhar dela era incomum – não o de uma tia-avó, nem de uma
mãe ou de um médico. Em vez disso, era como se ela olhasse diretamente
para a minha essência. Naquele instante, eu não era mais uma garotinha
assustada, e nem ela uma idosa que me consolava, mas éramos duas
almas, sem idade e iguais.
Enquanto ela falava, uma sensação quente e cheia de amor saiu de sua
mão até a minha perna, suavemente percorrendo o meu corpo como ondas,
e subindo até a minha cabeça. Mesmo com toda essa confusão, um
caminho foi aberto; eu sabia que havia luz ali. E de alguma forma, eu sabia
que aquela luz era minha, e que era eterna. Antes daquele momento, eu
não tinha tido nenhum sonho que pudesse me lembrar. Eu também tinha
pouquíssimas memórias. Eu certamente ainda visualizaria algo, e ouviria
uma música em minha cabeça.
Por volta dos meus quatro anos, após o divórcio dos meus pais, eu não
via tanto a minha Nana Reese mais. A minha mãe e a família do meu pai
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viviam em constante conflito e, como eu morava com a minha mãe, fui em
grande parte isolada da vida de cura e santidade da Nana do Harlem. Mais
tarde, eu descobri que as pessoas chamavam a Nana Reese de “profetisa”.
Eu também ouvi falar que ela não era a única que tinha o dom de cura nos
meus antepassados. Além de tudo isso, eu acredito que uma fé profunda
foi despertada em mim naquele dia.
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MILAGRES PODEM ACONTECER
O meu irmão, muito jovem, ficou em pedaços, e a única coisa que ele
tinha para se defender era sendo violento. Ele brigava com tudo: com os
seus próprios traumas e com todos em volta, especialmente com o nosso
pai. A relação que ele tinha com o nosso pai não o ajudou a remendar os
pedaços quebrados – em vez disso, o puniu ainda mais em sua indignação
interior. Um pai traumatizado não consegue ajudar o seu filho problemático.
Despedaçaram o meu irmão e jogaram os pedaços ao vento. Os métodos
antiquados de disciplina militar do nosso pai eram inadequados para ajudá-
lo a se recompor e prepará-lo para a maturidade. O mal-entendido e a
distância emocional com o nosso pai eram a agonia perpétua e sufocante
do meu irmão, tendo como resultado uma ira sem fim dentro dele.
Não sei quanto tempo fiquei ali, só que saí de lá ao som de uma batida
forte na porta. Corri para abrir a porta para a amiga da minha mãe, e vários
policiais entraram correndo. Eu não conseguia entender nada do que estava
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sendo dito, mas observei enquanto eles corriam para onde a minha mãe
estava deitada. Em seguida, percebi que ela estava se movendo. No
momento em que percebi que ela estava viva, a sensação de choque se
desfez e uma onda de medo e pânico tomou conta de mim – a compreensão
do que realmente aconteceu, o que quase aconteceu e o futuro
desconhecido que me esperava. Me pus de cócoras e envolvi o meu
pequeno corpo com os meus braços; ficando no formato de uma bola,
abracei a mim mesma com força e comecei a chorar baixinho. Eu conseguia
ouvir o som fraco da voz da minha mãe enquanto ela voltava à consciência.
Então eu ouvi a voz de outra pessoa, falando acima da minha cabeça. Era
a voz de um homem, uma voz que eu nunca vou esquecer.
Um dos policiais, olhando para mim, mas falando com outro policial ao
seu lado, disse: “Se essa garota sobreviver, será um milagre”. E naquela
noite, me tornei menos criança e passei a ser mais um milagre.
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QUANDO CHEGAR O NATAL
Eu não quero muito para o Natal
Eu preciso somente de uma coisa
Eu não me importo com os presentes
Debaixo da árvore de Natal
A minha mãe colocou uma aba extra na pequena mesa de madeira para
torná-la maior, e quase que ela ficou do tamanho família para o grande dia.
Com algumas decorações simples, a mesa se tornou a peça central para a
celebração, com uma árvore de Natal feiinha do estilo que se vê no desenho
do Charlie Brown, em uma sala de estar mobiliada um tanto improvisada na
casa deteriorada onde nós duas morávamos. Apesar das nossas
circunstâncias, a minha mãe queria que nós tivéssemos uma “vida
maravilhosa”.
A minha mãe na cozinha não era lá essas coisas, mas para o jantar de
Natal ela se arriscava – nós duas nos arriscávamos. A gente tentava colocar
de lado todo o trauma e drama que nos fizeram mal durante o ano inteiro e
buscávamos apenas fazer uma refeição de Natal tranquila. Será que era
pedir muito? Eu acho que não. Eu era uma criança que desejava viver uma
infância sadia, mas em vez disso eu morava numa casa cheia de
decepções e dores.
Ao longo dos anos, a minha irmã e o meu irmão mal se falavam, muito
menos vinham visitar a mim e a minha mãe. O Natal era uma rara ocasião
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em que nos reuníamos sob o mesmo teto frágil. Nós quatro nos sentávamos
à mesa, evitando olhar um para o outro, muitas vezes sem conseguir falar,
fartos com todas as coisas que nenhum de nós conseguia expressar. Eu era
muito jovem e não havia acontecido tanta coisa ruim assim comigo para que
me traumatizasse. Os meus irmãos e a minha mãe mal se falavam na maior
parte do ano, então, na ceia de Natal, o meu irmão e a minha irmã chegavam
cheios de mágoa e raiva, carentes de atenção. No fim, todos acabavam
explodindo e xingando um ao outro intensamente. Eu ficava sentada no
meio do caos, chorando e desejando: desejando que eles parassem de
gritar, desejando que a minha mãe conseguisse interromper a gritaria e os
xingamentos dos meus irmãos. Desejando estar em algum lugar seguro e
alegre – algum lugar que realmente parecesse com o Natal.
Contudo, a intensidade do meu desejo era mais forte do que a dor deles.
Eu comecei a criar o meu próprio mundinho mágico e alegre de Natal.
Passei a focar em todas as coisas que a minha mãe lutou para criar; tudo
que eu precisava era de uma chuva de glitter e um grande coral de igreja
como meu backing vocal. O meu Natal imaginário estava cheio de Papai
Noel, renas, bonecos de neve e todos os sinos e enfeites que os sonhos de
uma menina podiam conter. Eu adorava contemplar o Menino Jesus,
absorvendo a poderosa alegria que o verdadeiro espírito da época traz
consigo.
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Quando eu era mais nova, a minha mãe era uma pessoa de mente
aberta, com um grupo diversificado de amigos. Eu lembro que eu tinha uma
amiga – vamos chamá-la de Ashley – cuja mãe era lésbica (a Ashley não
fazia ideia). A minha mãe era uma pessoa muito prática: “A mãe da Ashley
é lésbica e mora com a namorada” e isso não tem nada de mais. Realmente
não tinha. Os meus tiados (tios viados) Burt e Myron eram as minhas duas
pessoas favoritas. Eles eram maravilhosos e tinham uma casa maravilhosa
também. A casa deles não era muito grande, mas era uma casa de médio
porte bem charmosa feita de tijolos situada em um lindo terreno arborizado.
Framboesas silvestres cresciam no quintal e eles tinham um labrador
dourado chamado Sparkle. Quando eles viajavam, a minha mãe e eu
cuidávamos da casa deles. Eu me deleitava com a limpeza e o conforto.
O Burt era professor e fotógrafo, e o Myron era, como ele dizia, uma
“esposa do lar”. O Myron era um colírio. Ele tinha uma barba perfeitamente
aparada e o seu cabelo era sempre penteado em camadas, que ele
finalizava fazendo luzes temporárias com um spray. Ele vivia bronzeado e
costumava desfilar pela casa em espetaculares cafetãs4 de seda
multicolorida. O Burt me levava para o quintal da casa deles para tirar fotos
minhas (eu simplesmente adorava me exibir na frente de uma câmera) e
ele incentivava totalmente as minhas poses exageradas. Ele sempre me
apoiava e entendia a minha tendência de querer chamar a atenção.
4 Cafetã: túnica talar ornada e debruada, geralmente forrada de peles, muito difundida entre
os turcos, os árabes e outros povos vizinhos.
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o real sentido de ter um lar.
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O PAI E O SOL
Os militares podem ter tirado o meu pai do Bronx, mas não o livraram dos
perigos de ser negro nos EUA. Enquanto ele cumpria serviço militar, uma
mulher branca do quartel em que ele estava disse ter sido estuprada por um
negro. Sem nenhuma prova, mas só por ser negro, acusaram o meu pai de ter
cometido o crime e o prenderam no quartel. Para punir ainda mais e para
servir como exemplo aos outros soldados negros, os oficiais brancos
encarregados designaram um oficial negro5 para supervisionar o meu pai
– um lembrete proposital de que um uniforme do exército americano não
camuflava a sua raça. Era uma técnica de terror eficaz, muito parecida com a
técnica usada nas plantações quando um supervisor negro ficava
encarregado de inspecionar.
O meu pai se sentiu humilhado, mas com muito mais medo ele ficou.
Como muitos homens negros, ele vivia com medo de ser agredido sem
motivo, de ser sequestrado ou então de morrer. Mas talvez ele sentisse
mais medo de mostrar que estava com medo – porque ele sabia que, para
O meu pai fazia tudo com extremo cuidado. O seu estilo de vida era
bastante rigoroso: meio quartel militar, meio mosteiro Shaolin budista. A sua
cozinha era pequena, mas organizada impecavelmente. O conteúdo de sua
despensa era indexado com precisão por tamanho e categoria. Não havia
espaço para extravagância ou desperdício de qualquer tipo em sua casa. Só
havia uma coisa de cada: uma TV, um rádio. Dentro do guarda-roupa dele só
tinha a quantidade de camisas necessárias para uma semana, nada mais.
Ele só julgava que uma cama estava bem arrumada, se de tão esticada a
colcha estivesse, não houvesse uma só dobra.
O jeito do meu pai lidar com a maioria das coisas era num estilo militar,
super eficiente. Ele considerava fútil o ato de mordiscar. Se eu estivesse
com fome enquanto esperava pelo jantar, ele me dava apenas uma bolacha
da marca Ritz. Apenas UMA. Era de dar água na boca ficar contemplando
aquelas bolachas douradas e em formato de girassol todas enfileiradas
sendo tiradas de seu pacote vermelho brilhante. Ele puxava uma fileira de
bolachas, retirava o lacre de abertura, tirava uma única bolacha e me
entregava delicadamente, como se fosse uma joia preciosa. Em seguida,
ele colocava todas as bolachas de volta no pacote, dobrava tudo
cuidadosamente e colocava o pacote de bolacha em cima da prateleira, que
era onde ficava.
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de servir no exército, ele se mudou para Brooklyn Heights, comprou um
carro Porsche Speedster clássico e cozinhava autênticos pratos italianos.
Ah! Eu adorava a comida do meu pai. Ele preparava um prato maravilhoso
de salsicha e pimentão e um prato delicioso de almôndegas com salsinha,
mas o prato que ele fazia de linguine com molho branco de mariscos era
divino. O cheiro de alho no azeite quente, o cheiro de macarrão fervendo e
o cheiro de sal do mar são as melhores recordações dos domingos para
mim. Eu adorava os domingos porque eram os dias que eu passava com o
meu pai – e as nossas refeições juntos eram o que eu mais esperava.
O meu pai me ensinou que as palavras têm força e que, portanto, têm o
poder de mudar quaisquer situações. Uma vez, em uma adorável tarde de
domingo de verão, eu ouvi um carrinho de sorvete tocar a sua música ao
longe e se aproximar da rua da casa do meu pai. Ao reconhecer a melodia
mágica e o sabor de coisas gostosas que suscitava, eu soltei um grito de
empolgação: “Aaaaa! Sorvete!” A música estava alta e clara agora, então
eu sabia que o carrinho de sorvete havia parado em algum lugar próximo.
O barulho de pés correndo e os gritos de felicidade confirmavam isso – o
carrinho de sorvete estava parado bem na nossa porta. Eu pensei rápido:
eu tenho que ir, senão ele vai embora!
“Me empresta 50 centavos, por favor, por favor?!” Perguntei ao meu pai
com voz esganiçada e quase ficando com falta de ar de tanta ansiedade.
Eu não conseguia pensar direito. Mais uma vez, o meu pai falou de maneira
paciente e equilibrada, e que só fez aumentar a minha inquietação.
Eu estava tão atordoada, que eu nem sabia o que dizer naquele momento,
então eu deixei escapar: “Eu quero emprestado cinquenta centavos. Eu te pago
depois! Me empresta, por favor!”
Eu tinha comprado o meu sorvete, mas o meu pai deixou bem claro que
eu teria que devolver o dinheiro que eu tinha pedido emprestado. Aos sete
anos, é claro que eu não ganhava dinheiro ainda, então eu acabei pedindo
à minha mãe. Ela não conseguia entender porque o meu pai estava fazendo
isso comigo, mas acabou me dando o dinheiro. O jeito deles de educar a
nós, os seus filhos, sempre foi muito diferente um do outro. Eu cumpri a
minha promessa e devolvi o dinheiro a ele no domingo seguinte. O incidente
do dia do sorvete foi uma lição que serviu não apenas para me ensinar o
significado das palavras, mas também de como ter integridade e de como
administrar o dinheiro. O meu pai era um tipo de homem que economizava
cada centavo que ganhava.
Ser pai solteiro não era algo tão comum naquela época, então atividades
de lazer ou um dia só para brincadeiras estavam fora de cogitação. Na
maioria das vezes, eu só servia de companhia para ele – eu me ocupava
com alguma coisa e ficava fora do caminho enquanto ele cozinhava, limpava
ou ficava mexendo no carro enquanto ouvia futebol no rádio. E ele adorava
o porsche dele. Era o único luxo que ele tinha. Ele comprou dois porsches
em sua vida, um antes de ter filhos e o outro depois, ambos seminovos. O
porsche speedster dele parecia estar em constante reparo, então ele
passava a maior parte do tempo mexendo nele.
“Esse tipo de cor não existe mais,” ele disse sem rodeios. Eu fiquei
confusa. Mas por que então ele não pintava o carro de outra cor? Se não
tinha como pintar com a cor original, que ao menos o carro fosse pintado
com uma cor diferente. Muito melhor do que a cor que estava.
Quando ele cantava a palavra “colo”, o tom que ele fazia era tão grave,
que isso sempre me fazia rir. Eu gostava de cantar essas músicas porque
ajudavam o tempo e a distância passarem mais rápido. Naquela época, eu
achava que dirigir era muito chato. Mas agora, ah! O que eu não faria para
sentar naqueles bancos de couro ao lado dele mais uma vez, pegar a
estrada e ter como companhia apenas o barulho do motor e o som do vento.
A minha mãe, enquanto cantora de ópera, me ensinou escalas musicais,
mas o meu pai me ensinou canções que me faziam rir.
O meu pai tinha alguns livros em sua casa que eram só para mim. O livro
que eu me lembro mais claramente falava sobre um garotinho negro que
era cego. A capa era branca, com grandes círculos vermelhos, laranjas e
amarelos. Era um livro bastante ilustrado que contava a história de um
menino que via o mundo através do toque e formato dos objetos, e não
através das cores.
“Por que você acha que somos esquisitos?” Ele indagou. Estremeci com
o seu tom de voz severo e não fazia ideia por que ele tinha ficado com raiva.
“Eu não sei. Talvez eu tenha ouvido em algum lugar,” eu disse. No meu
desenho, eu também escrevi: “Mas sem problemas”, o que eu supunha ser
algo legal. Era só uma pequena ironia.
Bastante sério, o que me deixou paralisada, ele disse: “Nunca diga isso”.
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Nunca tive a intenção de ofendê-lo, na verdade, eu queria era agradar.
Eu me senti muito mal naquele dia. Mas o fardo que ele carregava, e o seu
profundo desejo em ser aceito plenamente como pessoa, era algo que eu
somente aprenderia bem depois – e é algo também que eu ainda estou
tentando estabelecer comigo mesma.
Eu acho que o meu pai não percebia o quanto a gente era diferente de
todas as pessoas dos bairros em que eu morei com a minha mãe. Era
esquisito morar em um apartamento improvisado em cima de uma
delicatéssen quando todo mundo morava em uma casa. Nós morávamos
em uma pequena seção comercial de Northport, onde havia uma fileira de
lojas no andar térreo em um aglomerado de casas vitorianas. Eram
negócios de cidade de interior: uma loja de bicicletas, talvez uma mercearia
aqui e ali e por fim a delicatéssen. Uma escada ao lado da entrada da
delicatéssen levava a um pequeno e sombrio apartamento com um estilo
7 Brinquedos misfit: narra a história do Rudolph, uma jovem rena de nariz vermelho, que
sofre bullying por ser diferente. Ele e um elfo, o Hermey (que quer ser dentista), partem em
uma aventura para encontrar um lugar que os aceite. Eles encontram uma ilha cheia de
brinquedos esquisitos, que foram jogados fora por causa dos pequenos “defeitos” que eles
possuem. No final, o Rudolph salva o dia encontrando um lar para cada brinquedo esquisito.
A Mariah faz o mesmo paralelo com os menbros dessa denominação e os brinquedos da
ilha.
27
semelhante a um vagão de trem, que era onde eu morava com a minha mãe
e o Morgan.
–“Bye Bye”
Uma letra de música que fala sobre drogas e viagens alucinógenas não
é um conteúdo típico (ou apropriado) para uma criança, mas eu só cantei
mesmo porque foi a minha irmã mais velha quem me ensinou. Aprender
letras de músicas para cantar era o que eu mais gostava, mas essa música
era cheia de imagens assustadoras (“o Cavaleiro Branco está falando ao
contrário / e a Rainha Vermelha com o seu, cortem-lhe a cabeça”) e o que
me fez achar ainda mais assustador (“a lagarta que fuma narguilé” – oi?).
A música, como carreira, não era algo lógico para ele. Quando eu
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comentava sobre compor e cantar, ele mudava de assunto e falava em
notas escolares e dever de casa. Ele não via o foco e a disciplina que eu
estava cultivando como artista. Ele não via como eu estava pegando o jeito
da coisa, participando de ensaios com músicos de jazz talentosos com a
minha mãe, e desenvolvendo as habilidades de scat8 e de improvisação.
Ele nunca se deu conta de quantas horas eu passava escrevendo,
aprimorando o meu ouvido e estudando tendências de músicas populares
nas estações de rádio. Além disso, nós pensávamos bem diferente um do
outro: eu seguia o meu coração, enquanto ele era guiado pelo medo de não
ser aceito. Desde aquele dia terrível e, ao mesmo tempo, promissor,
quando a Nana Reese impôs as suas mãos sobre mim e a sua oração tocou
o meu coração, eu realmente passei a acreditar que bastava eu querer,
todos os meus sonhos se tornariam realidade. Era algo real para mim, sem
sombras de dúvida. O meu pai não acreditava que tudo que a gente
desejasse se tornava realidade. Pelo contrário, ele esperava que o mundo
lhe virasse as costas diante dos seus anseios, dentre eles os de viver com
dignidade.
O Alfred Roy foi um homem que viveu toda a sua vida com medo de ser
humilhado e desumanizado por causa da sua identidade. Ele pôs todas as
suas esperanças na noção de que ele seria respeitado socialmente por meio
da sua disciplina, dedicação e excelência, e que isso só seria possível de
se alcançar em instituições tradicionais como em áreas acadêmicas, ou
fazendo carreira militar ou através de um trabalho estável. Os seus outros
dois filhos tiveram todas as possibilidades para se tornarem grandes alunos.
Quando eram mais jovens, ele exigia que eles só tirassem 10 nas provas, e
na maioria das vezes eles conseguiam (ele às vezes perguntava aos meus
irmãos por que tinham tirado 9,5 e não 10). A única matéria em que eu me
destacava era redação e eu sempre estava entre os melhores da sala. Mas
eu era péssima em matemática e eu realmente não conseguia entender a
maioria das outras matérias.
8 Scat: é uma técnica de canto criada por Louis Armstrong que consiste em cantar
vocalizando, tanto sem palavras quanto com palavras sem sentido e sílabas.
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considerava improvável, misterioso e perigoso. O meu pai era
extremamente rígido com os meus irmãos, e eles sempre reclamavam ou
zoavam do jeito rígido e excêntrico dele para a minha mãe. No entanto, a
minha mãe tentava me proteger das críticas pesadas dos meus irmãos em
relação ao nosso pai, eu muitas vezes a ouvia dizer para eles: “Não diga
isso na frente da Mariah.”
– “Bye Bye”
Então, com o passar do tempo, a gente passou a se ver cada vez menos
aos domingos. A minha música estava tomando muito do meu tempo e
energia naquele momento, pois eu me dedicava a ela sempre que eu podia.
Eu estava determinada a superar as minhas adversidades, a contrariar todas
as pessoas que não acreditavam que eu conseguiria vencer na vida; eu
estava determinada a não trilhar o mesmo caminho que a minha irmã havia
trilhado e a superar os rompantes de raiva do meu irmão. Eu iria dar um
basta em tudo isso – mesmo que isso incluísse o meu pai, o único membro
estável da família que eu tinha. Depois de pagar por um curso de verão em
um acampamento de artes cênicas, o máximo que o meu pai fez pela minha
carreira foi o de me alertar sobre como o negócio do entretenimento pode
ser incerto e traiçoeiro.
“Uau”, disse ele, “você canta igual às cantoras do trio Three Pointer
Sisters!” Ele não era um grande músico, então essa comparação foi um
grande elogio vindo dele. Isso significava que ele havia notado todas as
camadas de voz de backing vocal, além da voz principal. Ele estava
realmente prestando atenção na minha música. E eu poderia dizer que ele
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ficou feliz com isso e por mim. Depois de todos aqueles anos, eu me senti
reconhecida.
32
COLORINDO FORA DA LINHA
É difícil de explicar
Naturalmente isto sempre foi estranho
Nem aqui e nem lá
Sempre um pouco deslocada em todos os lugares
Ambíguo, com a sensação de que você não pertence a lugar nenhum
–“ Outside”
As vezes em que eu tive que lidar com o racismo foram como passar
pelo momento de antecipação do primeiro beijo: sempre que acontecia, era
como se parte da minha pureza fosse arrancada do meu ser. A sensação
que eu tinha era como se uma mancha que se espalha tivesse sido deixada
para trás, e que aos poucos, parecia penetrar dentro de mim. Até hoje, eu
nunca consegui limpar essa mancha completamente – nem com o tempo,
nem com a fama ou riqueza, nem mesmo com o amor. Uma das minhas
primeiras experiências aconteceu quando eu tinha cerca de quatro anos e
estava na pré-escola. A atividade do dia era desenhar os membros da nossa
família. Em cima da mesa, havia uma pilha de cartolina grossa da cor
marrom avermelhada e alguns gizes de cera para escolhermos. Embora eu
preferisse muito mais quando a gente cantava e contava histórias, eu fiquei
animada com a atividade e disposta a dar o meu melhor. Achei que, se eu
me empenhasse, talvez a professora decorasse o meu desenho com uma
estrela dourada.
33
eu senti uma sombra alta se aproximar de mim no meu cantinho. Eu sabia
instintivamente que era uma das jovens professoras pairando sobre mim.
Aos quatro anos, eu já havia começado a desenvolver um instinto aguçado
de alerta, então eu parei de desenhar na mesma hora. A tensão aumentou
e o meu pequeno corpo enrijeceu. Por um motivo que eu ainda não sabia,
eu senti como se estivesse em perigo e de repente passei a tentar me
proteger. Eu fiquei completamente parada até ela falar.
Ainda rindo, uma delas respondeu: “Oh! Mariah, você usou o giz de cera
da cor errada. Acredito que sem querer!” Ela estava apontando para o
desenho do meu pai.
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HODEL
Cantar era uma forma de fuga para mim e compor era uma forma de
processar as ideias. Eu me alegrava fazendo isso, mas o principal motivo
de eu cantar e compor era para que eu conseguisse sobreviver (e continua
sendo). Não foi apenas a minha mãe que reconheceu o meu talento vocal,
mas também os meus professores. Uma amiga da minha mãe era a minha
professora de música, e ela era excepcional. Quando eu era criança, eu
participava de algumas peças na escola e cantava para amigos em alguns
eventos. Cantar no palco (ou em qualquer lugar), e imaginar que eu era
outra pessoa, era quando eu mais me conectava comigo. Andar sozinha e
criar melodias enquanto eu cantava para mim mesma era quando eu me
sentia mais preenchida. Até hoje, eu ainda tenho um cantinho todo especial
para mim e é para aonde vou para me livrar de todas as exigências da vida.
É aonde vou para cantar sozinha e poder me conectar mais comigo mesma.
A motivação para praticar música também foi algo que a minha mãe
reconheceu e incentivou em mim desde o início. Ela ensaiava as canções
da peça comigo em casa, enquanto tocava seu piano Yamaha – devo dizer
que a narrativa do musical me deixou fascinada – e mesmo quando eu era
criança, eu me interessava em explorar cada detalhe de uma música para
saber porque ela era tão boa. E foi nesse acampamento, frequentado em
sua grande maioria por crianças judias ricas, que eu fiz amizade com uma
menina israelense9. Nós nos tornamos amigas porque cantar era algo
9 Uma menina israelense: será que essa menina seria a também cantora Nanne Puritz-
Allecia, que aparece no documentário não autorizado: Mariah – a diva, os fantasmas, o
drama?
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sério para nós e também porque o amor pela música era algo que tínhamos
em comum. A gente até parecia um pouco uma com a outra: nós duas
tínhamos os cabelos bem encaracolados. Além de parecidas, tentávamos
nos vestir com roupas iguais quando possível; nós até tínhamos o mesmo
macacão cor de rosa. Porque as pessoas nos viam juntas e também porque
havia algumas semelhanças físicas entre nós, talvez pensaram que eu fosse
uma menina loira e rica de religião judaica.
Uma vez, quando a minha vó Addie estava na casa do meu pai, ela olhou
para mim, com o meu cabelo loiro rebelde e a minha pele clarinha cor de
pêssego, e disse: “Roy, essa menina não é sua filha.” Então, para provar que
ela estava certa, ela se dirigiu a mim: “Garota, dance um pouco para mim”.
Enquanto a música fez parte de toda a minha vida, o mesmo eu não posso
dizer a respeito da dança na minha infância. A minha mãe não dançava; eu
nunca vi os meus irmãos dançarem. O meu pai só passou a dançar no final
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dos anos oitenta, quando fez aula de hustle10.
Na minha mente, saber dançar era como se fosse a prova de que alguém
é realmente negro e de que pertence a algum lugar e a alguém – e seria a
prova de que eu era realmente filha do meu pai. Eu não dancei para a Addie
naquele dia. Eu também não dancei quase nada depois desse dia. Eu morria
de medo de não dançar “direito” por causa do meu pai. Eu fiquei parada e
com medo de me mexer, achando que se eu não dançasse bem ou me
movesse para o lado errado, isso de alguma forma provaria que eu não era
filha do meu pai.
10 Hustle: é o nome dado a muitas danças disco dos anos 70. Baseado em danças
antigas, como o mambo, o hustle foi originalmente uma dança de grupo com um toque de
salsa criado na cidade de Nova Iorque e no estado da Flórida.
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LUZ DA MINHA VIDA
A minha mãe me dizia isso várias vezes quando eu era criança. Eu queria
ser a luz dela. Eu queria que ela tivesse orgulho de mim. Eu a respeitava
como cantora e como mãe que trabalha para sustentar a família. Eu a
amava profundamente e, como a maioria das crianças, eu queria que ela
fosse um porto seguro para mim. Acima de tudo, eu queria muito acreditar
nela.
Me afastar de pessoas tóxicas que eu amo tem sido muito doloroso, mas
assim que eu encontrei coragem (com oração e ajuda profissional, é claro),
eu simplesmente desapeguei e deixei Deus tomar de conta. (Vou
acrescentar, porém, que há uma enorme diferença entre simples e fácil.
Não é nada fácil.) No entanto, não existe uma maneira “artística” de
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desapegar da minha mãe, e o nosso relacionamento é tudo, menos
simples. Como muitos aspectos da minha vida, os momentos que a minha
mãe e eu passamos juntas foram cheios de contradições e realidades
conflitantes. Nunca foi apenas preto e branco – foi todo um arco-íris de
emoções.
Mesmo depois de todo esse tempo, uma parte de mim imagina que em
um dia qualquer a minha mãe se transformará em uma das mães carinhosas
que eu vi na TV quando criança, como a Carol Brady ou a Clair Huxtable;
que ela de repente vai me perguntar: “Querida, como foi o seu dia?” Antes
de me dar um relatório sobre o seu cachorro ou pássaro, ou de me pedir para
pagar alguma coisa, ou me pedir para fazer algo – que ela se interessará
continuamente e verdadeiramente por mim e pelo que estou fazendo ou
sentindo. Que um dia ela me conhecerá. Que um dia a minha mãe vai me
compreender.
Até um certo ponto, eu sei como a minha mãe se tornou quem ela é. A
mãe dela certamente não a entendia. E o meu avô nunca teve a chance de
conhecê-la; ele morreu enquanto a minha vó estava grávida dela. A minha
mãe foi criada, com mais um irmão e uma irmã, por uma viúva católica
irlandesa. A minha mãe era conhecida como a “morena” da casa porque o
seu cabelo não era loiro e os seus olhos eram uma mistura de castanho e
verde, não de um azul puro como os do seu irmão e irmã. Olhos azuis eram
um símbolo da pureza dos brancos, e ser 100% “puro” de descendência
irlandesa era fundamental para toda a identidade da minha vó.
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linchados e quatro homens brancos foram mortos a tiros por empresários
negros que protegiam as suas propriedades. Na década de 20, quando a
minha vó estava prestes a atingir a maioridade, a Ku Klux Klan11 tinha uma
forte presença na cidade e na prefeitura, ocupando vários cargos
importantes e definindo a bússola moral para a comunidade. Springfield era
uma cidade abertamente envolta em ódio.
Uma das poucas histórias que a minha mãe me contou sobre a sua
infância era quando ela costumava dividir o seu tapete com um menino negro
na hora do cochilo no jardim de infância. Por fazer isso, as freiras de sua
escola católica a envergonharam publicamente. Obviamente, havia uma
série de calúnias horríveis contra os negros quando a minha mãe era jovem,
mas ela também me contou sobre as calúnias bizarras e os xingamentos
que eles usavam para os italianos, judeus e todos os “outros” quando não
estavam por perto. Ela me deixou a par da hierarquia do racismo em sua
comunidade branca. Ironicamente, mesmo entre os seus amados
irlandeses, havia um sistema de castas sociais que dividia a “cortina de
renda irlandesa” da “favela irlandesa”. A cortina de renda irlandesa era
“pura”, rica, respeitável e “bem posicionada” na sociedade (é só a gente
lembrar da família Kennedy), enquanto a favela irlandesa era caracterizada
como suja, pobre e ignorante. Havia uma necessidade essencial e
lamentável, nesse sistema, de desprezar os outros. Para a minha vó, todos
os “outros” eram inferiores aos irlandeses. E enquanto aos negros? Bom,
os negros sempre estiveram na base mais baixa da pirâmide social. Não
havia ninguém abaixo deles.
A minha mãe não apenas ignorou o código moral da sua cidade natal,
ela também se rebelou contra ele, tornando-se uma ativista no movimento
pelos direitos civis. Pelos padrões da sua família e da sociedade em que
ela vivia, ela era uma excêntrica liberal. Ela se interessava pela vida fora do
seu mundinho branco, pequeno e apertado. Ela era intelectualmente curiosa
e atraída pela cultura, especialmente pela música clássica. Ela lembra que
um dia, enquanto ouvia uma estação de música clássica no rádio, ela ouviu
uma ária. Foi o som mais lindo que ela já tinha ouvido, e ela estava
determinada a achar esse som, dentro de si mesma e mundo afora. Ela
decidiu começar a sua busca na cidade de Nova Iorque, que parecia um
milhão de quilômetros de distância da sua família e do lugar mesquinho que
eles habitavam.
11 Ku Klux Klan: é uma organização terrorista que surgiu nos Estados Unidos, no
século XIX. É conhecida por utilizar uma roupa macabra e por promover atos de violência
contra negros, judeus, católicos e etc.
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A jovem Patricia tinha grandes sonhos – muitos dos quais ela realizou.
Ela era extremamente talentosa e motivada. Ganhando uma bolsa de
estudos para a prestigiosa Juilliard School for music (escola de música
Juilliard), ela começou a cantar com a New York City Opera (ópera da
cidade de Nova Iorque), fazendo a sua estreia no Lincoln Center12. A minha
mãe vivia uma vida empolgante, artística e boêmia na cidade de Nova
Iorque. Ela morava no centro da cidade e namorou vários homens que a
minha vó teria ficado escandalizada se soubesse. A mãe dela – pura, católica
e irlandesa – não teria aprovado que ela namorasse alguém que não fosse
branco como a neve. (Claro, por outro lado, os supremacistas brancos de
Illinois não morriam de amores pelos irlandeses ou pelos católicos – os
WASPs [protestantes brancos anglo-saxões], como eram chamados na
época, sempre precisavam de novas pessoas para poder controlar.) Um
italiano teria sido um problema, um judeu, teria sido uma tragédia. A minha
avó teria ficado completamente destruída se soubesse que a minha mãe
teve um caso amoroso com um libanês rico e mais velho chamado François,
pouco antes de se apaixonar e se casar com um homem que a sua mãe
não poderia sequer imaginar, o meu pai, que era um negro lindo, mas
também complicado. Isso, para a minha avó (e para a comunidade dela),
era a pior coisa que uma filha poderia fazer para ela e para a linhagem da
família. Falar com um homem negro era considerado vergonhoso; fazer
amizade com um, uma afronta; namorar um, um grande escândalo, mas se
casar com um? Isso era uma abominação.
Foi a humilhação final. O casamento da minha mãe com o meu pai foi
mais que uma traição para a minha vó; era um crime grave contra a sua
linhagem branca, punível com excomunhão.
Para a minha vó, que cresceu em uma época e lugar onde o KKK
realizava manifestações abertamente e era ativo no governo, se casar com
um homem negro trazia um fardo de vergonha que ela não conseguia
entender. A minha vó foi criada para não beber do mesmo bebedouro que
os negros bebiam, para não se sentar na mesma cadeira que os negros se
sentavam ou nadar na mesma piscina que eles. Ela foi ensinada, e
acreditava, que os negros eram sujos e que a negritude podia ser contagiosa.
Afinal, os Estados Unidos são o berço da “regra de uma gota”, o sistema de
classificação racial que afirma que qualquer pessoa com um ancestral
possuindo pelo menos uma gota de sangue negro é considerada negra.
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tornando uma “alimentadora de base”, ou seja, que ela estava se
envolvendo com alguém da mais baixa base social e que iria gerar humanos
inferiores; iria gerar mulatos vira-latas – eu e os meus irmãos. Não é preciso
dizer que a minha avó renegou completamente a minha mãe. Ela não
contou para ninguém da família que a sua filha era casada com um homem
negro (e que estava grávida de um menino). Exceto por alguns telefonemas
secretos aqui e ali, a minha mãe perdeu quase que todo o contato que tinha
com a sua mãe. Ela só voltaria para a sua cidade natal muitos anos depois.
Para ser sincera, eu não sei se a minha mãe alguma vez quis se casar
e ter filhos tão nova. Eu consigo entender que talvez ela quisesse ter tido
uma certa estabilidade, uma nova família para si e continuar abrindo
caminhos, deixando a sua casa e família retrógradas para trás. Mas o que
eu não conseguia entender era porque ela tinha abandonado a sua
promissora carreira de cantora para fazer isso. Desde muito cedo, eu decidi
que eu não queria o mesmo destino dela; nenhum homem ou mesmo uma
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gravidez indesejada me desviaria do caminho. Testemunhar os passos em
falso da minha mãe e da minha irmã foi um alerta triste e doloroso. Ver os
seus sonhos serem consumidos pelo fogo acendeu uma chama de
advertência na minha mente.
Em 1977, a minha mãe gravou um disco que ela chamou To start Again
(para começar de novo). Mas naquela época, ela já tinha um casamento
inter-racial problemático, três filhos, um divórcio e uma filha que ainda
morava com ela, euzinha. Ela achava que uma gravadora iria descobri-la do
nada? Este é um dos muitos erros de cálculo que, quando eu era criança,
eu observei a minha mãe fazer e que eu coloquei em um arquivo chamado
“O que não fazer”.
Um certo tempo passou após o divórcio dos meus pais e, um dia, a minha
avó permitiu que a minha mãe a visitasse com a sua neta, mas só a sua neta
mais nova. Eu era uma garotinha de 12 anos e eu não entendia direito por
que ela só havia convidado a mim. Parando para pensar, eu suspeito que
tenha sido porque eu era meio loira e muito branca para uma criança
birracial. Eu não levantava muitas suspeitas para o olho não treinado
culturalmente. Eu era muito jovem para perceber como a minha mãe e a
mãe dela interagiam, e eu nunca soube o que aconteceu entre elas naquela
época: houve um pedido de desculpas por parte da mãe da Pat por renegar
a sua filha e também por não permitir que ela entrasse em contato com a
sua família? Ela lidou com o racismo que ela tinha? Houve perdão? Eu não
sei. O que eu me lembro é que ela era rígida e formal. Ela tinha os cabelos
totalmente brancos, que estavam sempre amarrados, mas com uma franja
ondulada de lado na testa. Em seu rosto severo, ela usava óculos pretos
com o formato de olhos de gato. A casa dela não era quente e não havia
cheiro no local. Depois que a minha mãe tinha me colocado para dormir, eu
me lembro da minha vó entrando no quarto silencioso e sem vida onde eu
dormia na casa dela. Ela se sentou ao lado da minha cama no escuro e, em
um sussurro, disse:
O pão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai-nos as nossas ofensas
assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido
Mateus 6, 11-12
É tudo que eu me lembro da visita que eu fiz para a minha avó. Em uma
reviravolta incomum do destino, ela morreu no dia do aniversário da minha
mãe, no dia 15 de fevereiro. Depois disso, estranhamente, a minha mãe
praticamente a santificou. Como adulta, a minha mãe nunca foi católica
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praticante, mas por muitos anos ela acendeu uma vela para a sua mãe no
dia 15 de fevereiro. É estranho como a morte pode fazer as pessoas
perdoarem aqueles que lhes ofenderam e que ofenderam aos seus filhos.
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orfanatos, depois morando em inúmeros lares adotivos. Durante um dos
raros períodos saudáveis da Gladys, ela e a pequena Norma Jeane viveram
juntas por alguns meses em uma pequena casa branca perto do anfiteatro
Hollywood Bowl. O bem mais precioso da sua modesta residência era um
piano de cauda. Quando a doença da Gladys mostrou a sua cara feia
novamente, isso fez com que ela fosse arrastada de volta para a escuridão
e internada em outra clínica; os poucos móveis e o piano foram vendidos.
Dito isso, a Marilyn saiu em missão para encontrar o piano de sua mãe.
Embora ainda ela fosse uma modelo e atriz buscando o seu lugar ao sol,
ela encontrou o piano em um leilão, o comprou e depois o guardou até
poder levá-lo para a sua própria casa. Ela levava o piano para todas as
residências em que morou. Uma de suas últimas casas foi um luxuoso
apartamento em Manhattan, que ela dividiu com o seu terceiro e último
marido, o renomado dramaturgo Arthur Miller. Lá, ela revestiu o piano com
um verniz branco espesso e brilhante para combinar com a decoração
glamorosa e angelical do apartamento – “um mundo de branco”, como a sua
meia-irmã, a Berniece Miracle, costumava chamar. “Esse piano fez parte
dos momentos mais felizes que tive quando eu era criança”, disse a Marilyn.
Eu imagino que quando a nossa infância é cheia de insegurança e medo,
como foi no caso da Marilyn e da minha, as horas felizes e perdidas são
romantizadas por nós e é algo extremamente valioso. Eu entendi por que
ela tinha procurado, comprado, guardado e cuidado do piano – e foi por isso
que eu comprei o piano dela em um leilão na Christie’s em 1999. É o meu
tesouro e a minha obra de arte mais cara. E agora, o piano de cauda branco
da Marilyn Monroe é a peça central, a pièce de résistance (a obra-prima; o
pedaço de resistência), da minha glamorosa cobertura em Manhattan. A
Marilyn foi a minha primeira visão de uma superstar; eu me identifiquei com
ela em um nível quase que espiritual.
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mas o que não podia faltar para a minha mãe era um piano. Nós sempre
tivemos um piano. Eu passei muitas horas alegres e de aprendizado com
ela ao piano. A minha mãe tocava músicas e escalas comigo, e é claro que
eu a ouvia praticar as escalas dramáticas de ópera. Era ao piano onde eu
me sentava e criava as minhas próprias melodias.
A minha mãe nunca teve muito dinheiro, mas uma de suas maiores
contribuições para o meu desenvolvimento foi a de me expor a todos os
tipos de pessoas, especialmente músicos. Ela ganhava alguns dólares aqui
e ali dando aulas de canto em nossa casa. A prática dela era uma constante,
mas o que eu mais valorizava eram os ensaios. Músicos talentosos vinham
ensaiar no local boêmio “perto da praia” da minha mãe, e eu ensaiava com
eles. Música ao vivo era a melhor coisa de se morar com a minha mãe. Eu
estava cercada pelo amor à música, mas muito mais importante que isso,
pelo amor à musicalidade – o amor pela arte, o amor pelo processo. Quando
eu era criança, a minha mãe me apresentou ao mundo do ensaio com
músicos: improvisar, sentir a vibe da música e cantar.
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Eu aprendi várias músicas populares de jazz com a minha mãe e com os
seus amigos músicos, e alguns deles perceberam o meu ouvido aguçado e
as minhas habilidades musicais. Por volta dos 12 anos, eu cantava com a
minha mãe e o Clint, um pianista moreno que parecia um ursão de pelúcia
(ele se garantia tocando piano.) Ele costumava tocar piano para mim e me
tratava como uma cantora de verdade. Quando eu cantava com ele ao
piano, nós éramos dois músicos trabalhando juntos. Ele me ensinou
clássicos do jazz, e uma das primeiras canções que eu lembro de ter
aprendido foi “Lullaby of Birdland” (canção de ninar de Birdland), que ficou
famosa na voz da grande Ella Fitzgerald. Eu sempre terei um profundo
respeito pela Sra. Fitzgerald e por todas as lendas do jazz que
estabeleceram uma base musical tão fértil para músicos de todos os
gêneros. Não era uma música fácil de ser cantada por pessoa de idade
alguma, mas para mim aos doze anos, era muito mais que avançada. Com
a sua melodia complexa, cheia de transições e mudanças de tom, ela foi
composta por uma das vocalistas de jazz com uma das vozes mais ágeis
de todos os tempos. Aprender e ouvir jazz ao vivo ajudou a treinar o meu
ouvido e a moldar a minha estrutura criativa. Foi assim que eu aprendi a
sentir, a modular e a fazer scat. Ser apresentada às músicas populares e à
disciplina do jazz me deu o apreço pelas modulações sofisticadas em uma
música e como empregá-las para comunicar emoções (o Stevie Wonder é
o mestre absoluto disso.)
Para mim, as músicas têm que passar emoção. A minha mãe pode não
ter me levado à igreja, mas tocar com músicos de jazz foi uma experiência
espiritual próxima disso. Existe uma energia criativa que flui pelo local. Você
aprende a acompanhar o tempo da música e a ouvir o que os outros
músicos estão fazendo, se inspirando em um riff de guitarra ou no que o
pianista está tocando. Quando você entra nessa vibe musical, é uma
sensação indescritível. Para mim, era sempre uma forma de fuga
extraordinária, que eu sempre precisava e buscava obter.
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encorajando enquanto eu cantava. Eu me sentia mais bem-vinda (e natural)
com os músicos de jazz à noite no restaurante do que com os meus colegas
de classe durante o dia – crianças essas que viviam me perguntando: “Qual
é a sua etnia?” Crianças essas que me julgavam pela minha aparência e
não tinham ideia de como a minha vida realmente era. Eu sempre soube
que o mundo suburbano de Long Island não era para mim. Eu era um peixe
fora d’água e, embora eu tivesse sobrevivido, eu sabia que ninguém
realmente se importava comigo, e eu certamente sabia que eu não ia ficar
ali por muito tempo.
E a minha mãe não era apenas uma senhora mais velha que me apoiava
– ela era uma musicista treinada pela Juilliard. A música era algo que a
gente realmente tinha em comum, pois não era forçado; ela nem mesmo
era uma daquelas mães de palco autoritárias, as “momagers13” (mãe
agentes), ela somente incutia em mim o poder de acreditar em mim mesma.
Sempre que eu pensava sobre o que eu faria “se o meu sonho se tornasse
realidade”, ela me interrompia e dizia: “Não diga ‘e se o meu sonho se
tornasse realidade’, diga ‘quando o meu sonho se tornar realidade’.
Acredite que os seus sonhos podem se tornar realidade, que eles se
realizarão.”
Eu sentia que “Out Here On My Own” era uma descrição perfeita de toda
a minha vida e eu adorava cantá-la de um modo que parte da minha alma
se revelasse. E eu ganhei um concurso fazendo isso. Aos 12 anos, eu era
alucinada pelo filme Fame (PT-BR: fama), e a Irene Cara era tudo para
mim. Eu me identificava com o seu visual multicultural (porto-riquenho e
cubano), com o seu cabelo multitexturado e, acima de tudo, com a sua
ambição e conquistas. Ela ganhou um Oscar de Melhor Canção Original
com a música “Flashdance... What a Feeling” (que ela co-escreveu), do
filme Flashdance (PT-BR: Flashdance – em ritmo de embalo), fazendo com
que ela se tornasse a primeira mulher negra a vencer em uma categoria
que não fosse atuando. (Ela ganhou um Grammy, um Globo de Ouro e um
American Music Award pela música também.) Porque “Out Here On My
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Own” era uma música tão pura que tocava o meu coração, eu não
conseguia acreditar que eu tinha ganhado um concurso ao cantar essa
música que eu tanto amava. Foi a primeira vez em que eu fui reconhecida
como artista. Que sensação!
A minha mãe não me expôs somente à música. Ela tinha amigos que
me tratavam como família, o que ajudou a compensar todos os lugares
miseráveis em que a gente morou e o quanto eu parecia descabelada.
A minha mãe tinha uma amiga chamada “Sunshine”, que era baixa e
bem gordinha, com um coração enorme e uma pessoa bem generosa. Ela
costumava amarrar o cabelo em dois longos rabos de cavalo, como a
Carole e a Paula de The Magic Garden (o jardim mágico – um programa de
TV infantil local que eu adorava, e que era apresentado por duas jovens
mulheres hippies com um esquilo rosa de lado, com apresentações de
cantigas de roda e narração de histórias, nos anos 70 e início dos anos 80).
A Sunshine já tinha filhos homens adultos, mas nenhuma filha mulher, o
que fez ela se interessar por mim, especialmente pela minha aparência
desarrumada e negligenciada. Ela costumava me presentear com roupas
fofas bem femininas que ela mesma fazia. No meu aniversário de seis anos,
ela me presenteou com uma camisa bordada de cor branca que combinava
com uma saia azul, meia-calça branca e sapatos Mary Jane. Porque ela fez
rabo de cavalo em mim, o meu cabelo ficou assentado e a minha coroa de
aniversário coube direitinho na minha cabeça (talvez porque ela era judia e
tinha o cabelo texturizado, ela soube como lidar com o meu cabelo). Ela
também comprou um bolo de aniversário para mim, com a decoração de
um cordeiro (lamb)14; isso mesmo, um cordeiro! É uma das poucas vezes
em que eu me lembro de me sentir bonita quando eu era criança. A
Sunshine, amorosamente, se certificou que eu ficasse arrumada e bonita.
Ela sempre foi muito carinhosa e doce comigo. Anos mais tarde, quando eu
ia fazer o Ensino Fundamental II, ela quis me dar algumas roupas que eu
achei muito infantis. Eu rejeitei de forma muito grosseira, de um jeito todo
cruel que só um pré-adolescente angustiado sabe fazer. Até hoje, eu
lamento por ter sido tão cruel com uma pessoa tão atenciosa e que cuidou
tanto de mim – uma das poucas pessoas que fizeram isso em toda a minha
vida.
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um certo homem na vida da minha mãe pouco antes dela conhecer o meu
pai e ele se tornar a peça central da nossa família. Nós sabíamos o nome
dele, François; sabíamos também que ele era libanês e que era rico. Apesar
de ser muito talentosa, a minha mãe, como muitas mulheres da sua época,
acreditava que se casar com um homem era o meio mais seguro de possuir
estabilidade. A minha mãe começou a namorar o meu pai pouco tempo
depois de ter terminado com o François; até mesmo se cogitou que ela tinha
namorado os dois ao mesmo tempo, o que levantou a suspeita de que
talvez o Morgan não fosse filho do meu pai. Passada.
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nos “proteger” do Morgan durante um dos seus rompantes de fúria,
dizendo: “eu peguei a minha arma” e mostrando uma pistola. Imagina só: o
namorado da sua mãe segurando uma arma e ameaçando atirar no filho
adolescente dela, no seu irmão. Infelizmente, eu me senti mais segura
quando ele fez isso; o Morgan tinha se tornado uma presença assustadora
para mim naquela época.
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Enquanto eu me balançava sobre a colina de lixo com o Morris no colo, com
o cheiro de comida podre pairando sobre o meu rosto, eu prometi a mim
mesma, não importa o que aconteça, eu jamais esquecerei como é ser uma
criança – um momento que recriei anos depois no clipe “Vision of Love”.
(Sem o lixo, é claro! Eu queria passar sentimento, não assustar ninguém.)
Eu realmente gostava do Henry; ele era ariano assim como eu. Ele me
levantava e girava quando a gente dançava juntos. Ele me proporcionou
momentos de como poderia ser a vida de uma garotinha despreocupada.
Além disso, o Henry era generoso; ele até pagou pelo meu segundo ano de
acampamento de verão em artes cênicas. Eu também me lembro da mãe
dele, que trabalhava para Estée Lauder; ela era uma cozinheira
excepcional. Um dia ela preparou uma pasta untável divina, finalizando com
um bolo de chocolate alemão que eu nunca tinha comido antes. Era um
bolo caseiro muito delicioso, quente e que derretia nas mãos. Mas mesmo
com todo esse amor, também havia a parte ruim. O Henry era um homem
negro, veterano da guerra do Vietnã, que sofria muito por causa dessas
duas coisas. Eu suspeito que ele sofria de transtorno de estresse pós-
traumático (TEPT) e, mesmo eu sendo criança, eu sabia que ele usava
drogas psicodélicas de vez em quando. Eu acredito que ter ido para a
guerra do Vietnã, e as consequências que ela lhe causou, além do fato de
ser negro, foram as causas principais do término do namoro entre ele e a
minha mãe.
“Eu não vou deixar vocês irem embora”, ele disse. “Eu vou cortar vocês
em pedacinhos e vou colocá-las na geladeira para que não possam ir
embora.” Bem, depois que ele disse aquilo, eu corri para entrar no carro. A
minha mãe deu a partida logo em seguida.
“Morris!” Eu gritei. “Eu tenho que pegar o Morris; ele ainda está lá
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dentro!” Em pânico, eu pulei para fora do carro. Eu estava determinada a
pegar o meu gato. Aquele gato era muito importante para mim; ele era um
amor incondicional para mim.
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mansão ou em algo muito maior, porque eu sabia que os meus sonhos se
realizariam. Vendo o horizonte da cidade de Nova Iorque, parecendo um
gigante cristal de prata incrustado com joias multicoloridas, eu imaginava
morar em algum lugar onde eu pudesse apreciar esse horizonte. E hoje eu
moro num lugar assim e posso apreciar tudo claramente; eu vejo a cidade
inteira do último andar da minha cobertura no centro de Manhattan. Como
resultado de muito trabalho, de uma garotinha que se balançava atolada no
lixo, eu me tornei uma cantora que mora em uma mansão nas alturas.
Ela cantou o refrão com a sua voz de ópera, e eu virei o rosto para o
lado para segurar a risada. Cara, é uma música de R&B dos anos 80, com
o refrão cantado pela voz suave do Michael Jackson, então ouvir o refrão
sendo cantado no estilo da Beverly Sills (uma cantora soprano de ópera
nascida no Brooklyn, popular entre as décadas de 50 a 70) foi muito
engraçado para mim como adolescente.
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Ah! mas a minha mãe não achou nada engraçado. Ela baixou o som e
olhou para mim, os seus olhos verdes castanhos se estreitaram e ficaram
duros e frios como gelo.
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almoço privado na casa da Oprah em Montecito, onde as “lendas” foram
saudadas pelas “jovens”, incluindo Alicia Keys, Angela Bassett, Halle Berry,
Mary J. Blige, Naomi Campbell, Missy Elliott, Tyra Banks, Iman, Janet
Jackson, Phylicia Rashad, Debbie Allen, eu e muitas outras.
“No difícil e exigente negócio das artes, você é uma joia de sucesso.
Alcançar o seu nível de sucesso como artista multidimensional é uma
medida notável do seu talento artístico.” Continuando...
... Foi um prazer conversar com você durante o fim de semana em que o Legends Ball
ocorreu e dizer pessoalmente o quanto eu admiro você e o seu talento artístico. A sua
criatividade e as suas apresentações são excelentes. Você apresenta as suas
composições com uma profundidade de sentimentos que raramente, se é que acontece,
é visto ou ouvido. É uma alegria ver você transformar todos os obstáculos que você
enfrentou em trampolins para o sucesso. A sua devoção à arte e à sua carreira são
louváveis. Você merece ser aplaudida de pé e de um sonoro, Brava! Brava! Brava!
*Passada*
Acho que, para a minha mãe, eu posso não ter sido nem a metade da
cantora que ela era, mas eu dei o melhor de mim tanto como cantora quanto
como artista.
Foi a primeira vez que eu percebi como palavras ríspidas de uma mãe
podem realmente afetar uma criança. Que diferença uma simples risada
dela teria feito. O que quer que tenha nos conectado antes, um frágil vínculo
de mãe e filha, foi quebrado naquele momento. Houve uma mudança
considerável: ela me fez sentir como se eu estivesse competindo com ela,
como se eu fosse uma ameaça. No lugar do vínculo que a gente tinha,
surgiu um laço diferente, surgiu um laço que nos une somente por causa
do DNA e por causa das obrigações sociais. De forma alguma a minha mãe
destruiu os meus sonhos de ser bem-sucedida naquele dia; a minha fé já
era muito forte naquela época.
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Faz parte do sucesso saber que pessoas que você ama tem inveja de
você profissionalmente, mas quando a pessoa é a sua mãe e a inveja é
revelada em uma idade tão tenra, é particularmente doloroso. Eu estava
passando por dificuldades naquela época, e ela expor a minha insegurança
para mim daquela forma, naquele momento, me deixou muito mal. Eu já
tinha corrido tanto perigo de vida e por tanto tempo. Embora tenha sido um
momento sutil e breve, este foi o primeiro grande golpe de muitos que
viriam, em que as pessoas próximas a mim, tentariam me colocar para
baixo, me colocar no meu devido lugar, me subestimar ou se aproveitar de
mim. Mas ela, particularmente, foi a que mais me machucou, porque ela era
a mais importante. Ela era a minha mãe.
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CHÁ DE DENTE-DE-LEÃO
– “Petals”
Quando eu era pequena, a minha irmã mais velha parecia viver ao vento.
Ela sempre estava em algum lugar distante. Memórias de infância sobre ela
existem em minha mente como flashes de relâmpagos e trovões. Ela era
excitante, mas imprevisível – as suas rajadas torrenciais sempre traziam
consigo a destruição inevitável.
A distância que há entre a minha mãe, o meu pai, a sua primeira filha e eu
é muito grande. Ao contrário dela, enquanto eu crescia, eu nunca passei um
tempo considerável como parte de uma família inter-racial unida. A maioria das
minhas experiências foi com um dos pais de cada vez – eu com a minha mãe
ou eu com o meu pai. Eu não me lembro deles como um casal feliz. É bizarro
até imaginar que eles já foram casados, não apenas por causa da etnia deles,
mas por serem tão diferentes como pessoas. Mas antes de eu nascer, a família
Carey era formada por um pai negro, uma mãe branca, um menino e uma
menina birraciais. Os quatro desciam a rua e as pessoas sabiam. Este quarteto
rebelde dos Carey experimentou a espetacular ignorância e a ira de uma
sociedade lamentavelmente despreparada para recebê-los ou aceitá-los;
Loving v. Virginia, a decisão da Suprema Corte que derrubou a lei que proíbe
o casamento inter-racial nos Estados Unidos, só viria a acontecer três anos
após o casamento da minha mãe e do meu pai. Como resultado da hostilidade
61
da sua comunidade e país, o Morgan e a Alison foram instruídos pelos nossos
pais a se referirem a eles como “mamãe” e “papai”, na esperança, imagino, de
que a formalidade pudesse fazer com que o status deles fosse respeitado. Os
meus pais pareciam pensar que se os vizinhos ou outros curiosos ouvissem a
sua filha e o seu filho dizerem: “Bom dia, mamãe” ou “Olá, papai”, eles não os
achariam nojentos.
A Alison e o Morgan acreditavam que a minha vida era mais fácil do que a
deles. O nosso pai foi muito rígido com eles. Ele não foi rígido comigo porque
três ou quatro anos era a idade que eu tinha quando todos nós morávamos
juntos. Durante uma de suas inúmeras brigas, eu me lembro vagamente da
minha mãe gritando com ele algo como: “Esta aqui é minha! Você não vai
encostar nessa daqui.” Eu era a caçula dela. Ela costumava dizer que “não
tinha forças” para desafiar a agressividade do meu pai quando os meus irmãos
estavam crescendo.
Eu só tenho uma lembrança que é todos nós jantando juntos. Foi uma
espécie de “jantar para fazer as pazes” – os meus pais tentando mais uma vez
ver se a gente conseguiria se estruturar como família. Todos nós estávamos
sentados em volta da mesa e eu comecei a cantar.
62
O meu pai disse: “crianças tem que ser vistas, não ouvidas”.
Não é preciso dizer que o jantar não nos salvou. O divórcio era inevitável.
Os meus pais tomaram a decisão final de terminar antes que tudo
desmoronasse. Eu lembro que me levaram à casa dos nossos vizinhos e eles
me deram pipoca enquanto a minha família estava na casa ao lado discutindo
com quem ficaria cada membro da família Carey. Depois de vários encontros
violentos envolvendo a polícia, por ordem do tribunal, o meu pai e o meu irmão
não puderam morar juntos. Em um dado momento, o Morgan foi levado ao
Centro Psiquiátrico Infantil de Sagamore, um centro de cuidados para crianças
com graves problemas emocionais e famílias em crise. O Morgan era uma crise
por si só. Eu também soube que um psiquiatra chegou à conclusão que um
fator determinante e considerável para os problemas comportamentais do
Morgan era a Alison, que tinha o talento de instigar e manipular o Morgan até
ele perder o controle. A Alison é muito esperta. Consequentemente, o Morgan
teve que morar com a minha mãe, e ela deixou claro para o meu pai que ele
não ficaria comigo. A Alison ficou ao deus-dará.
Eu já ouvi a Alison dizer que ela sentiu como se a minha mãe a tivesse
jogado fora, que a nossa mãe claramente amava ao Morgan e a mim mais do
que a ela. Eu também ouvi a minha mãe dizer que a Alison escolheu morar com
o nosso pai porque ela se sentiu mal e não queria que ele ficasse sozinho.
Provavelmente há alguma verdade em ambas as versões. Eu era muito jovem
para realmente entender.
Eu realmente não sei como era a vida da minha irmã morando com o nosso
pai, apenas os dois, traumatizados e com raiva. Deve ter sido extremamente
sufocante – um conflito constante de sentimentos de abandono e ressentimento
em relação à minha mãe sob o teto deles. O local não era propício para se
achar uma solução, eles não tinham nenhuma chance de se curarem. Manter
a ordem e a obediência era como o meu pai tentava entender o caos da
63
sociedade e os escombros que a sua estrutura familiar havia se tornado.
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E então, por muito tempo, o meu pensamento era: “Ok, então eu acho que
aos quinze anos é quando as pessoas têm filhos e se casam”.
Eu nunca vou entender o que aconteceu com ela nas Filipinas. Só sei que
quando ela deixou a casa do meu pai, o resto da sua frágil infância também foi
deixada para trás.
Depois de alguns anos nas Filipinas, a Alison voltou para Long Island. Eu
tinha cerca de doze anos e ela vinte. O que quer que tenha acontecido com ela
lá, ou em Long Island, ou em um quarto dos fundos qualquer, tinha causado
danos a ela. Aquela garota super inteligente e linda com cachos escuros que
era a minha irmã mais velha endureceu e parecia haver uma pessoa
irreconhecível no lugar. Algo, ou muitas coisas, devem ter acontecido com ela
para fazer com que ela usasse o seu corpo para conseguir dinheiro e drogas,
como ela fez por anos. Naquela época, eu não sabia de muita coisa, mas
também havia muita coisa que eu nunca deveria ter descoberto, certamente
não tão jovem. Os anos que passamos afastadas poderiam muito bem ter sido
séculos.
Quando a Alison voltou, ela vagava de um lugar para o outro e ficava com
vários homens, às vezes aparecendo do nada na casa da minha mãe entre os
muitos relacionamentos casuais com homens que ela mantinha e que depois
descartava. Ela até chegou a ficar com um homem mais velho – talvez ele
tivesse cerca de sessenta anos. Ele era meio careca e tinha cabelos grisalhos.
Ele era educado com a minha mãe e às vezes enchia a nossa geladeira de
comida, então será que era por isso que ela confiava nele? Uma certa noite no
barraco, a Alison e a minha mãe entraram em uma de suas inúmeras
discussões épicas e, por alguma razão desconhecida, a Alison me levou com
ela para a casa desse senhor mais velho. Eu não lembro de muita coisa da
casa dele e nem daquela noite, porque quando nós chegamos, a Alison me
sentou em um sofá marrom claro e me entregou uma pequena pílula de cor
azul gelo, que parecia um pedaço de giz com uma dobra entalhada no meio, e
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um copo d’água.
Embora por volta dos seus 20 e poucos anos a Alison já tivesse se casado,
dado à luz, se divorciado, viajado milhares de quilômetros de distância e feito
coisas terríveis, ela ainda podia ser brincalhona e espontânea. O pior ainda não
tinha acontecido entre nós, então eu ficava genuinamente feliz pelas visitas
malucas que ela fazia à casa da minha mãe. Em seus dias bons, ela era como
uma luz que iluminava a nossa pequena habitação, que era muitas vezes
sombria. Ela parecia madura e tinha um tipo de glamour vazio. Ela passou a
me ver como uma pré-adolescente agora, em vez de uma garotinha. Ela
prestou atenção na minha aparência desarrumada, tomando a iniciativa de
corrigir as minhas tentativas desastrosas de ficar bonita, o que para uma
criança de 12 anos é tudo de bom. Depois que eu acidentalmente pintei o meu
cabelo com todos os tipos de tons de um feio laranja, ela me levou a um salão
para pintar o meu cabelo e deixá-lo com uma só cor. Ela me levou a outro salão
também, para que eu fizesse as minhas sobrancelhas e as deixasse lindas. Ela
me ajudou a comprar o meu primeiro sutiã. Ela e eu buscávamos seriamente
ser normais. Nós estávamos tentando ser irmãs – ou assim eu pensei.
Mesmo sendo jovem, eu sabia que a minha irmã fazia coisas que não eram
legais. Tipo assim, ela tinha um pager, e apenas traficantes de drogas, rappers
e médicos tinham pagers naquela época. As unhas dela eram lindas – pintadas
com um esmalte rosa brilhante, e às vezes decoradas com strass. Certa vez,
66
quando ela me deixou na frente da casa da minha mãe, ela enfiou a ponta da
unha rosa e afiada dela em um pó de cristal branco e segurou perto do meu
rosto, dizendo: “Experimente, experimente um pouco; quem se importa?”
Um dia, ela anunciou que era hora de eu conhecer o seu incrível namorado,
o John, e as outras garotas com quem ela andava, sobre as quais ela me
contava inúmeras histórias. O John era alto e tinha olhos verdes; um negão fofo
e super carismático. A Christine, uma garota branca fugitiva de dezessete anos,
uma mulher mais velha chamada Denise – “mais velha” significa que ela talvez
tivesse vinte e oito anos – e a minha irmã, então com vinte e poucos anos,
todas moravam em uma casa com o John. Olhando para a Christine, percebi
que ela tinha um olhar mundano, apesar de também parecer uma garotinha. A
sua pele alva era cheia de sardas por causa de muito bronze e os seus cabelos
loiros médios ficavam na altura dos ombros, finos como o resto do seu corpo.
Ela seria uma garota ideal em um filme adolescente, mas em vez disso ela
estava ali, naquela casa. Ela estava destruída por dentro.
A casa do John era mais legal, mais iluminada e mais limpa que a minha.
Eles tinham um sofá novinho em folha, e de quebra, tinham uma televisão que
eu podia assistir qualquer programa que eu quisesse. Tinha também todas as
guloseimas que eu gostava. Eles tinham até sucos da marca Juicy Juice. Nós
não podíamos pagar por nada disso lá em casa. Algumas vezes, a minha irmã
chegava na casa da minha mãe e enchia a geladeira com as coisas que eu
gostava. Era isso que me deixava meio confusa com a nossa relação. Às vezes
parecia que ela se importava, mas os motivos dela sempre me causavam
desconfiança. Ela estava sendo uma boa irmã mais velha ou ela estava criando
um desejo em mim pelo que eu sabia que eu poderia ter o tempo todo na casa
do John? Era uma manipulação disfarçada de amor.
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A minha irmã me disse para não contar a ninguém que eu estava indo para
a casa onde ela morava com o John, especialmente para o nosso irmão. Ela
me disse que o nosso irmão não gostava do John porque ele o havia vencido
num jogo de gamão. Sendo tão jovem e ingênua na época, eu acreditava que
a animosidade que havia entre eles era por causa de um jogo de tabuleiro, não
por causa de prostituição e envolvimento com drogas. Portanto, não havia
ninguém que soubesse, ninguém para me proteger. Famílias desestruturadas
são presas ideais para os abusadores, os pequeninos expostos são vulneráveis
nessa armadilha. Agora, obviamente, está claro para mim que a casa de
diversões era um bordel. Acho que a minha irmã era uma espécie de prostituta
caça-talentos. Mas, na época, eu não fazia ideia; afinal, eu era apenas uma
menina de 12 anos. Me conquistar era muito fácil – literalmente como dar um
doce a uma criança, mas em vez de um doce era uma lavagem de cabelo, um
sutiã e uma caixa de suco da Juicy Juice.
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terminar o sétimo ano do ensino fundamental II. Ninguém na escola sabia que,
apenas algumas horas antes, eu havia convencido a minha irmã mais velha a
não cometer suicídio – algo que acontecia com frequência. Se matar tornou-se
uma ameaça comum que ela compartilhava comigo na madrugada antes de eu
ir para o ponto de ônibus para pegar o ônibus da escola.
O John manteve os olhos voltados para a frente e me garantiu: “Ah, ela vai
chegar aqui mais tarde.” Eu estava sentada no banco da frente e podia ver
claramente uma arma em cima da coxa dele.
Não sei exatamente quantos homens haviam ali; não sei quantas armas,
quanto dinheiro ou quantos pensamentos vis estavam na mesa – mas eu sei
que eram todos homens e somente eu de menina. Eu me sentei em um canto
do chão pegajoso de onde dava para ver a porta e fiquei encolhida. Eu fiquei
quieta e mantive os olhos baixos enquanto aqueles homens contavam piadas,
falavam palavrões, falavam de comer alguma coisa, falavam de seus medos e
fantasiavam perto de mim. De vez em quando, eu percebia que um deles me
olhava maliciosamente ou então eu ouvia uma referência obscena ao meu
respeito em uma conversa.
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pânico na garganta. Para onde eu vou? Por que eu estou sozinha com o
namorado da minha irmã? Por que ele me levou até aqueles homens nojentos?
Por que não podemos simplesmente ir ao IHOP? Onde está a minha irmã?
Onde ela está? Eu comecei a orar.
A nossa próxima parada foi no cinema ao ar livre, onde o John quase que
imediatamente me abraçou. O meu corpo ficou rígido. Os meus olhos estavam
fixos na arma dele. O John se aproximou de mim e me beijou à força. Eu fiquei
com náuseas e medo; eu não conseguia me mexer. Pelo canto do olho, eu
notei um homem branco e idoso estacionar ao nosso lado, olhando diretamente
para o carro do John.
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procurando por algo ou alguém. Em pânico, eu instintivamente me abaixei atrás
de uma casa, fingindo me esconder de quem quer que fosse “esse alguém” que
ele procurava. Não havia como eu contar aos meus amigos que eu era “esse
alguém” que um cafetão com uma arma estava procurando.
O John finalmente foi embora. Embora eu tivesse escapado dele por pouco
novamente, o medo que eu passei a ter de homens demorou muito tempo para
passar. Quando eu cheguei em casa, eu desconectei o telefone da parede e
cortei ligações com a minha irmã mais velha para sempre.
Eu não tinha ninguém para contar o que havia acontecido. Eu não podia
contar para a minha mãe. Eu não tinha amigos de verdade. Eu nunca havia
realmente feito amizade. Mesmo que eu contasse para alguém, como eu
poderia explicar isso a uma criança de uma família normal que janta às seis
horas, tem que dormir às nove e meia e que só se mete em encrenca quando
não escova os dentes? Criança nenhuma seria capaz de entender isso. Se
espera de uma irmã mais velha que ela te proteja – não que ela te ofereça a
um cafetão. Portanto, eu não contei a ninguém e nem confiava mais em
ninguém.
Mas, quando se é criança, você ainda deseja ter uma irmã mais velha, e os
dentes-de-leão ainda são flores quando florescem.
Uma visita da minha irmã, entre todas as visitas e lembranças, foi a que
mais me marcou.
Nós tentamos tomar chá. Tomar chá era uma ocasião especial na casa da
minha mãe, mas não era nada estiloso. Não havia uma chaleira alegre e
sibilante; a gente fervia a água em uma pequena panela surrada em um fogão
velho na cozinha minúscula, insípida, encardida e cor de fuligem. Xícaras e
pires que combinassem certamente não existiam em lugar nenhum; nós
tínhamos xícaras e canecas que não combinavam, do tipo que se encontra em
caixas marcadas com “grátis” nos brechós ou nas vendas de garagem de Long
Island. O sabor “café da manhã inglês” era o sabor principal de chá que a gente
tomava; cada uma de nós bebeu uma xícara com um sachê de chá. Eu
segurava uma caneca de cerâmica esmaltada grossa de cor marrom e que
estava lascada na borda. Eu estava segurando o chá preto fumegante e
perfumado com as duas mãos quando o telefone tocou.
Nós duas ficamos um pouco chocadas. O meu pai raramente ligava para a
casa da minha mãe e, se ligava, era quase sempre para nos repreender por
71
alguma coisa. A Alison e eu trocamos um rápido olhar – quem tinha feito o quê
agora? De repente, a minha mãe olhou em minha direção e eu percebi que eles
estavam falando de mim. Eu balancei a minha cabeça com um “não” e fiz um
gesto de que eu não iria falar no telefone. A Alison e eu estávamos prestes a
tomar chá, talvez até um raro momento de descontração, e eu sabia que eu
teria que ficar séria se eu tivesse que falar com o nosso pai ao telefone. E sabe-
se lá o que a Alison poderia ter feito e que eu teria que ficar sabendo.
Mas a nossa mãe não nos acobertou. “Sim, ela está aqui; espera um
pouco”, disse ela, segurando o telefone e gesticulando para eu atender.
Qualquer “momento de descontração entre irmãs” que a Alison e eu
estivéssemos tentando criar foi por água abaixo. Endireitei o rosto, me levantei
a contragosto e peguei o telefone. Então eu segurei o telefone, estiquei o fio e
balancei o telefone na cara da Alison para que ela atendesse.
“Nãããão, atende você”, disse ela. Uma conversa boba começou entre nós
por alguns momentos – um jogo de quem ficaria com o fardo de falar com o
nosso pai. Foi quase divertido.
Mas ela não estava olhando para mim. Ela estava olhando para a sua
caneca de chá ainda fumegante em sua mão, e quando ela ergueu o rosto, os
seus olhos estavam cheios de raiva, sem o menor traço de brincadeira de uns
poucos minutos atrás. Antes que eu percebesse o que estava acontecendo, ela
gritou “Não!” e, num piscar de olhos, jogou o chá bem quente em cima de mim.
72
colado nas minhas costas.)
Eu sei que a minha irmã estava profundamente ferida. Ela é a pessoa mais
brilhante e traumatizada que já conheci. Talvez eu nunca entenda o que a
machucou tanto para que ela viesse a machucar tantas outras pessoas, mas
para mim, ela foi a própria vítima e quem mais se prejudicou com os seus
próprios atos. O meu ponto de vista é que ela escolheu fixar residência
permanente na “terra dos coitadinhos”. O futuro que ela tinha pela frente foi
desperdiçado a preço de banana, em vez de ser redimido por meio de um longo
e difícil processo de recuperação e reconstrução de si mesma.
73
jornal de fofoca ou site lixo que quisesse comprar ou ouvir. Eles me atacam há
décadas. Mas quando eu tinha 12 anos, a minha irmã me drogou com valium,
me ofereceu cocaína na unha do dedo mindinho, me causou queimaduras de
terceiro grau e tentou me vender para um cafetão. Algo em mim ficou
aprisionado depois de todo aquele trauma. É por isso que eu costumo dizer:
“Eu tenho eternamente doze anos.” Eu ainda estou lutando contra o que eu
passei naquela época.
– “Petals”
74
DESEMBARAÇADOS E PENTEADOS
Esta foto é uma das minhas favoritas da minha infância. Nela, pareço uma
típica aluna do primeiro ano do Ensino Fundamental I nas férias de verão.
Pareço pertencer a alguém que sabe cuidar de mim. Pareço bem cuidada... Só
que não.
Fui muito negligenciada na minha infância. Havia muitas coisas sobre mim
que a minha mãe não sabia como cuidar ou manter – mas a mais óbvia, a mais
simbólica e a mais visível era o meu cabelo.
19 Siena crua: uma espécie de terra ferruginosa usada como pigmento em pinturas,
normalmente de cor marrom-amarelada.
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Não havia como ir ao salão, dahling. Eu não me lembro da minha mãe indo
a um salão uma única vez sequer. Ela vivenciava totalmente a filosofia de
beleza boêmia e descomplicada da década de 50 e 60. Para ela, passar um
delineador ou fazer uma pequena asa de gato, por exemplo, já indicava que
um rosto estava maquiado. Se ela quisesse parecer muito chique – um toque
de rímel, um toque de blush, um batom e voilà! Rosto perfeito. O cabelo dela
era fabuloso, em todos os sentidos. Mesmo que tivesse se passado pela
cabeça dela em ir ao salão fazer tratamento de beleza, para ela ou para mim,
a gente nunca poderia pagar. E, além disso, não havia salões naquela parte de
Long Island que compreendessem a contradição que era o meu cabelo
alinhado e nem a imensa complexidade que era cuidar do meu cabelo. Naquela
época não havia profissionais que trabalhassem com o tipo de textura de um
cabelo birracial em lugar nenhum, realmente, nem havia produtos
especializados. Eu vivia no meio de dois mundos: nem produtos Afro Sheen,
para negras com cabelo crespo, e nem produtos Breck shampoo, para garotas
loiras de cabelos lisos, serviam para o meu cabelo embaraçado.
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cabelo deixava aparente. Será que ela estava muito preocupada com os seus
próprios fardos para notar? Será que ela não conseguia sentir a secura, os nós
e a juba dos emaranhados nodosos na minha cabeça? Será que ela não podia
me sentar para escovar e pentear o meu cabelo por duas horas, como a Marcia
Brady fazia no seriado The Brady Brunch (PT-BR: a família sol-lá-si-dó)? Talvez
em sua ideologia boêmia e amante dos anos 60, ela pensasse que eu parecia
livre, como uma adorável criança hippie. Talvez ela não soubesse que eu me
sentia suja.
Ter um pai negro e uma mãe branca é complicado, mas quando se é uma
garotinha com mãe branca, em grande parte isolada de outras mulheres e
meninas negras, pode ser terrivelmente solitário. E, claro, eu não tinha modelos
birraciais para me espelhar ou outros tipos de referência. Eu entendo porque a
minha mãe não sabia como cuidar do meu cabelo. Quando eu era bebê, era,
bem, cabelo de bebê, principalmente uniforme, com cachos macios. Conforme
eu fui crescendo, o meu cabelo ficou mais complexo, com diversas texturas
surgindo aparentemente do nada. Ela não sabia o que estava acontecendo.
Com a sua confusão, do nada, ela passou a cortar uma franja horrorosa no
meu cabelo (acreditar que uma franja se comportaria em um cabelo birracial é
corajoso).
Era um desastre e eu não sabia o que fazer. Aos sete anos, eu realmente
pensava que se ela simplesmente lavasse o meu cabelo com o xampu Herbal
Essence, uma fada do cabelo viria à noite, e eu acordaria e puf! Eu teria um
cabelo perfeito, como o da minha mãe ou como os das garotas dos comerciais.
Uma vez, as meias-irmãs do meu pai meio que tomaram uma iniciativa,
determinadas a “fazer algo para domar a juba daquela criança”. A coisa tinha
ficado séria. Eu estava no segundo ano do ensino fundamental I quando o meu
pai me levou para a casa do meu avô e da Nana Ruby no Queens.
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defender. Eu também usava o humor para expressar o meu ponto de vista
quando eu não tinha controle. Era uma ferramenta que eu comecei a afiar bem
cedo e que, até hoje, utilizo com frequência. No banco de trás do carro, durante
a longa viagem para visitar a família do meu pai, eu ouvi a Alison, sentada na
frente, resmungando com ele sobre como eu estava absorvendo as
peculiaridades e excentricidades da nossa mãe (particularmente aquelas
associadas ao privilégio branco). Eu acho que ela pensava que eu andava por
aí “fingindo ser branca” com a nossa mãe branca (como se uma criança
pudesse fazer essa diferença).
A doce Nana Ruby foi a segunda esposa do pai do meu pai, com quem ele
teve muitos filhos, meias-tias e meios-tios para mim, que posteriormente
formaram um grande grupo de primos, alguns dos quais tinham mais ou menos
a minha idade. O meu pai e o pai dele, o Bob Carey, tinham uma relação
complicada. A mãe do Bob era da Venezuela e acredita-se que o pai dele era
negro – misturado com algum gene branco não documentado, já que ele
também tinha uma cor de pele mais clara para o que era então chamado de
“espectro negro”.
Até eu ter cerca de seis anos, fazia anos que o meu pai não falava com o
seu pai. Ele era filho único e tinha uma mãe diferente dos outros filhos do meu
avô; por mais calorosa e acolhedora que fosse a Nana Ruby e a sua casa – e
pelo que eu pude ver, a Nana enchia o meu pai de carinho – mesmo assim
ela não era mãe dele, e talvez ele se sentisse como um peixe fora d’água com
eles. Eu acho que o meu pai se esforçou para fazer as pazes com o meu avô,
tanto para o bem dos próprios filhos quanto para o dele próprio. Ele deve ter
percebido como eu me sentia isolada, morando apenas com a minha mãe em
uma comunidade totalmente branca que estava se tornando cada vez mais
hostil para mim. Eu precisava saber o que era família.
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E eu serei eternamente grata por isso, porque aquela casa era um lugar
aconchegante e repleta de vida familiar. Eu adorava ir para lá. Toda a
vizinhança amava o meu avô. Ele era um cara comum que usava meias 3/4
com os seus chinelos estilo rider, que gostava de se divertir e que tinha uma
risada cordial. Ele tinha uma pequena vinícola no seu quintal no Queens. Ele
cultivava uvas verdes com as quais ele fazia vinho doce caseiro, que ficava
armazenado no porão. A Nana Ruby e as minhas tias sempre tinham algo
cozinhando na minúscula cozinha – frango, verduras – mas o prato básico de
destaque era arroz com feijão. Eu comia pratos cheios de arroz com feijão.
Ouvia-se o clamor de ruídos reconfortantes: panelas batendo, música soul ao
fundo, o som da TV, conversas, risos, portas abrindo e fechando, pés correndo
para cima e para baixo nas escadas. Era um local alegre em que as pessoas
ficavam somente papeando ou se conectando umas com as outras. Passar um
tempo com eles foi o sentimento mais próximo que eu tive de ter uma grande
família, uma família normal, uma família de verdade.
“Oh, Sra. Uh-Whiggins!” um dos meus primos falava com um sotaque sueco
tolo e forçado. Eu incorporava a personagem e a gente começava a improvisar.
O que eu mais adorava eram os momentos de gargalhada com os meus primos.
Eu amava o som da minha risada junto com a risada das outras crianças, que
tinham uma fisionomia mais ou menos parecida com a minha.
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deles, e algumas crianças inevitavelmente diziam: “Ela não é sua prima. Ela é
branca.”
“Sim, ela é nossa prima!” eles respondiam de volta. Quem era a minha mãe,
quem era o meu pai, a quem eu pertencia, estava sempre em jogo. Mas sair
com os meus primos não era tão difícil. Eu fazia parte de um grupo. Eu fazia
parte deles, e eles me defendiam. Sim, ela é. Simples assim. E foi muito
importante. Os meus primos negros eram os únicos que eu tinha contato
quando eu era pequena. Como a família por parte da minha mãe, o lado
branco, a havia deserdado, eu não tinha como me relacionar com nenhum
deles quando eu era criança.
Os meus primos eram bem unidos porque as suas mães eram muito unidas.
Uma tia em particular, a mais jovem, tinha um corpão – ela era simplesmente
linda. Ela parecia estar sempre pronta para arrasar na pista de dança do
programa de TV Soul Train. Ela vivia sempre muito bem maquiada, com os
lábios cheios de gloss brilhando como cristal. Ela usava roupas chiques e da
moda, e o seu cabelo estava sempre muito impecável, penteado para trás,
para que todos vissem o seu rosto. Ela criava moda o tempo todo, de forma
sexy e coordenada, quase tão fabulosa quanto a Thelma do seriado Good
Times (mas a minha tia era mais bem feita de corpo). Esta minha tia sexy
vendia maquiagem em balcão de loja de departamentos – agora isso era muito
show para mim. Certa vez, ela fez uma avaliação facial de brincadeira em mim
e na minha prima favorita. Enquanto ela examinava os nossos rostinhos, ela
disse a Cee Cee: “Os seus lábios são bons”. Então ela se virou para mim com
um olhar perplexo e fez uma pausa. Eu fiquei preocupada e pensei, o que há
de errado com o meu rosto? Comigo?
“Mariah, os seus lábios não são carnudos o suficiente”, disse ela com um
suspiro.
Eu não sabia para que os meus lábios não eram carnudos o suficiente, mas
eu aceitei totalmente a análise dela como um fato. Alguns anos depois, com
cerca de 12 anos, eu estava passeando em uma loja de departamentos em
Long Island com uma amiga branca, onde eles maquiavam pessoas grátis em
um dos balcões. A minha amiga, pelos padrões locais, era bonita: grandes
olhos azuis, nariz fino e lábios muito finos. Eu, sem dúvida, usava uma roupa
qualquer, e sabe-se lá como o meu cabelo estava naquele dia. Claramente
aparentando ter a idade que a gente tinha, nós nos sentamos para fazer um
tratamento facial. Talvez a vendedora tenha pensado que a gente tivesse
dinheiro para comprar a maquiagem, ou ela estava entediada, ou simplesmente
ela ficou com pena de nós. Seja qual for o caso, ela começou o processo.
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Assim como a minha tia fez, ela estudou os contornos e os ângulos dos
nossos rostos e me relatou: “Os seus lábios são muito carnudos na parte
superior.” Peraê, eu pensei. Eu achava que eu tivesse um lábio superior fino –
mas não tão fino quanto o da minha amiga branca, cujo tamanho de lábio era
o “padrão” na época. Eu senti vontade de dizer: “Na verdade, eu realmente
quero que os meus lábios sejam maiores” – e que é verdade, desde o dia que
a minha tia me avaliou – mas eu achei melhor não dizer nada. Assim, eu recebi
duas opiniões profissionais diferentes sobre os meus lábios quando eu era
criança; eram muito carnudos para um padrão de beleza de pessoas brancas
e não carnudos o bastante para um padrão de beleza de pessoas negras. Em
quem eu devo acreditar? Era como se as minhas feições não fossem bem
afeiçoadas. E não havia ninguém para me dizer: “Mariah, não há nada de
errado com você.” Ponto final.
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martelo pousava ameaçadoramente na superfície da chapinha, ficando cada
vez mais quente. Quando eu passei pela porta para entrar no quarto, eu me
senti como se eu tivesse entrado em um mundo paralelo, uma câmara secreta
– uma câmara para embelezar meninas negras.
Finalmente, eu pensei, que talvez o meu cabelo tivesse jeito. Que ele,
depois de transformado, ficasse com cachos elegantes e brilhantes, e eu ficaria
parecida com as minhas lindas primas e amigas negras que se reuniam no
Queens. Ou que talvez ele ficasse liso e reto como os cabelos das garotinhas
brancas com quem eu cresci em Long Island. De qualquer forma, eu fiquei feliz
porque o meu cabelo finalmente seria cuidado por alguém que sabia o que
estava fazendo.
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chamuscado e irregular (e visivelmente mais curto) na parte de trás. Eu estava
longe de ter um cabelo domado.
Ao longo da viagem, sem uma única palavra trocada entre nós, ele removeu
todos os nós e emaranhados do meu cabelo. Quando chegamos à praia, o meu
cabelo não era mais um fardo. Estava solto. Eu corri direto para o mar – Ah!
Como eu amo o mar! Algo que eu herdei da minha mãe – e enquanto eu corria,
eu pude sentir o meu cabelo, flutuando e balançando ao vento pela primeira
83
vez. Aleluia! O meu cabelo estava realmente esvoaçante como nos comerciais!
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OS MELHORES AMIGOS DE UMA GAROTA
Certa noite, enquanto eu andava sem rumo pelo corredor em uma das
muitas casas em que a minha mãe e eu moramos, eu entrei no quartinho escuro
dela como quem não quer nada. Eu não me lembro se a vi ou a ouvi primeiro,
mas eu sei que algo me atraiu para aquele quarto. As cores desbotadas da
velha TV em frente à cama eram a única coisa que iluminava o quarto, onde a
minha mãe estava deitada de lado assistindo a um especial sobre a vida e a
morte da Marilyn Monroe.
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Eu nunca tinha ouvido falar sobre a Marilyn Monroe antes daquele
momento, mas eu me identifiquei com ela na mesma hora. Não era algo típico
para uma garota do terceiro ano do ensino fundamental I, talvez, mas a minha
infância foi tudo menos típica. A minha mãe apoiava com muito amor o meu
fascínio pela Marilyn. Enquanto a maioria das garotas da minha idade decorava
as suas paredes com fotos da Holly Hobbie – bonecas de pano com sardas e
tranças de fios louros, que usavam uma touca com estampa de morango – eu
tinha um pôster da Marilyn Monroe vestida como uma vedete sensual, usando
um bustiê de contas pretas, meia arrastão e sapatos de couro preto. A Marilyn
era a última coisa que eu via antes de dormir e era a primeira coisa que eu via
ao acordar.
Eu soube que o nome da Marilyn pode até ter sido a inspiração que a minha
mãe teve para me dar o meu nome. As primeiras quatro letras são iguais: MARI.
No entanto, o meu pai dizia que o meu nome vem de Black Maria / Mariah, o
terrível camburão da polícia inglesa usado para transportar pessoas para a
prisão. Tem também outra história, a de que o meu nome foi inspirado em uma
música de sucesso dos anos 50, “They Call the Wind Maria” (eles chamam o
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vento de Maria), da peça Paint Your Wagon, uma comédia musical da
Broadway sobre a corrida do ouro na Califórnia. (Ambas as referências usam a
pronúncia suave, com a segunda sílaba pronunciada mais ou menos como o
RAI de SaRAIva.) Talvez seja uma combinação de todos os três nomes: uma
estrela dos anos 50, uma canção de uma comédia musical e um camburão da
polícia.
Seja qual for a origem do meu nome, eu não gostava dele quando eu era
mais jovem. Ninguém tinha um nome igual ao meu, e quando se é criança, isso
não é legal. Eu sempre desejei ter um nome comum como Jennifer ou Heather.
Não havia adesivos bonitos, chaveiros ou mini placas de carro feitos com o
meu nome. Mas a pior parte era que quase ninguém sabia pronunciá-lo. Eu
sempre tinha receio de ver um professor substituto, ao fazer a lista de chamada,
me chamar de Maria ou Maya. Eu só vim conhecer outra Mariah quando eu
tinha dezoito anos; ela era uma garota negra legal e, com bom humor, a gente
se solidarizava pelos erros de pronúncia do nosso nome na nossa infância. Não
tinha como imaginar que apenas alguns anos depois, por minha causa, muitas
pessoas estariam dando o nome de Mariah para as suas filhas.
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A garota mais bonita do grupo também era a minha melhor amiga (e eu uso
essa palavra generosamente) – a gente era meio que amigas da onça. Quando
eu falava para ela que eu estava a fim de um menino da escola e, sabendo
muito bem que eu nunca tomava iniciativa com nenhum, ela e os seus grandes
olhos azuis iam atrás do garoto até conseguir ficar com ele (o que acontecia
muitas vezes). Eu acredito que ela fazia isso apenas para me deixar pra baixo,
para que eu ficasse sabendo que era ela quem mandava. Mas o que ela não
sabia é que eu nunca ia atrás dos meninos com medo de levar um fora ou com
medo que eles descobrissem que parte de mim era negra e que todo o resto
era pobre. Ela também não sabia que eu não queria me envolver com garotos
estúpidos para não atrapalhar os meus sonhos, ou pior, para não engravidar
como a minha irmã. A verdade é que ela não me conhecia. Nenhuma delas me
conhecia.
Alguns dos pais das meninas conheciam a minha mãe, e por ela ser uma
cantora de ópera profissional (pois ópera era elegante) e também irlandesa,
eles tinham um mínimo de respeito por ela. O drama adulto funciona de maneira
diferente do drama dos adolescentes, mas costumam ser parecidos. Espalhou-
se o boato de que a mãe da garota mais bonita estava sendo agredida pelo seu
pai irlandês. A minha mãe, que pode ser realmente justa quando quer, assumiu
a responsabilidade de escrever uma carta para ele. Nessa carta, tenho quase
certeza de que ela revelou que havia sido casada com um homem negro e de
que ele era o pai dos seus filhos (é claro, eu só vim saber dessa carta muito
tempo depois).
Como eu disse, essas garotas não eram legais, mas eu acabei sendo
convidada para ir com algumas delas, incluindo a mais bonita, para uma festa
do pijama em Southampton. Uma delas tinha uma tia rica, chamada Bárbara,
que era dona de uma casa chique perto da praia. Ir para a cidade super chique
de Southampton? Participar de uma festa do pijama com as garotas mais
populares? Claro que eu queria ir. Nós entramos em um dos carros grandes
delas e iniciamos a viagem de duas horas ao longo da adorável orla atlântica
de Long Island até o pequeno vilarejo onde os ricos passam verão.
A casa era grande, arejada e arrumada. Tinha até uma sala toda branca
que ninguém tinha permissão para entrar. Eu fiquei pasma quando chegamos.
Fiquei tão absorta na comparação e no desejo, que eu não tinha percebido
que as meninas haviam se agrupado perto de uma porta.
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Sem dúvida, eu fui aonde elas estavam indo. Elas me levaram a um local
que parecia ser uma sala de jogos ou um esconderijo (eu sabia que pessoas
ricas tinham esconderijos). Era um cômodo menor nos fundos da casa, talvez
um quarto de hóspedes. Uma delas fechou a porta com um clique e, de repente,
o ar ficou rapidamente pesado. Eu achei que talvez elas tivessem levado
bebida escondido ou algo assim. Mas não havia empolgação e muito menos a
energia típica entre garotas que estão aprontando alguma coisa. Em vez disso,
todas elas estavam olhando para mim. De repente, no silêncio pesado, a irmã
da menina mais bonita falou para todo mundo ouvir:
O veneno e o ódio com que essas garotas repetiam esse novo lema criado
por elas eram tão forte, que literalmente me fez sair do meu corpo. Eu não
tinha ideia de como lidar com o que estava acontecendo. Todas elas estavam
contra mim. Elas haviam planejado tudo: me enganaram e me fizeram
acreditar que elas realmente gostavam de mim. Elas me atraíram para bem
longe de casa, para me isolar e me armar uma emboscada. Por fim, todas me
traíram. Eu comecei a chorar histericamente. Eu fiquei desorientada e
apavorada, passando pela minha cabeça que, talvez, se eu continuasse a
chorar, certamente um adulto viria em meu socorro. Mas ninguém apareceu.
“Por que vocês estão fazendo isso?” a pequena e corajosa voz perguntou.
Era a loira mais velha.
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mais desprezível criada pelos brancos... para chamá-la de macaca?
– “Looking In”
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corredor apontando para mim. O meu estômago embrulhou e o meu rosto ficou
vermelho de vergonha. Eu achei que fosse vomitar ali mesmo no chão
ladrilhado.
A roupa mais legal que eu tinha era uma jaqueta do time da escola. Era uma
jaqueta de lã vermelha extragrande feita de couro preto, com a palavra AVIREX
estampada com letras grandes nas costas. Era muito importante que eu tivesse
uma roupa de marca, então eu buscava usar roupas que combinassem com
uma variedade de looks. Eu fiz o melhor que pude para ficar parecida com as
típicas adolescentes bonitas do subúrbio, para me encaixar com todas as
outras garotas de Long Island.
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tinha bíceps mais grossos que as minhas duas coxas juntas. Ele tinha vinte e
poucos anos, um carro e ninguém mexia com ele. E essa era a principal razão
de eu “ficar” com ele. Ele era protetor, um campo de força. O garoto anterior
com quem eu tinha ficado era instável; nós até começamos a brigar fisicamente
na frente de um grupo de garotas, que ficaram por perto para assistir. Depois
que nós terminamos, ele começou a me perseguir e a me assediar – um
verdadeiro manipulador. O Sr. 1 metro e oitenta e cinco centímetros de altura,
ao me ver sendo xingada pelo meu ex, o levantou do chão e o jogou em cima
de cinco carros estacionados – bem feito! Ele, além de ser muito forte, era
realmente muito legal. Mas o ensino médio pode ser traiçoeiro, especialmente
para uma excluída como eu, então ficar com o cara mais valentão da cidade
tinha as suas vantagens.
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O grupo das garotas tinha chegado perto o suficiente para que o calor de sua
fúria chamuscasse os pelos dos meus braços. Eu tinha que dizer algo, então
eu comecei a gritar a plenos pulmões – não faço ideia o que. Ver a coragem
delas murchar na mesma hora, enquanto cada uma recuava lentamente e
rapidamente se dispersava, é algo que eu nunca vou esquecer. Por um rápido
instante, eu pensei que eu tivesse causado medo nelas, mas então eu senti
uma energia poderosa atrás de mim. Eu me virei e o que eu vi parecia uma
versão adolescente de um Protesto das Panteras Negras20: havia uma
multidão de garotas negras de todos os tons, de todos os estilos e tamanhos
que eu conhecia na escola. “Pode contar com a gente,” uma delas disse e
assim tudo terminou.
Aquela família, aquela casa, aquela cidade, aquela época, aquele dia – de
repente, tudo parecia nada para mim. Não era nada em lugar nenhum, e eu
tinha caído fora.
20 Protesto das Panteras Negras: foi um partido político que surgiu nos Estados Unidos,
na década de 1960, no contexto da luta da população afro-americana pelos seus direitos
civis. Fundado por universitários negros, surgiu como um movimento de combate à violência
policial contra negros nos Estados Unidos e transformou-se em um partido político com um
projeto revolucionário de combate à desigualdade contra os afro-americanos.
93
Quando eu me virei para entrar no carro, eu ouvi a loira gritando: “Mariah,
eu estou tão feliz por você; eu estou tão feliz por você!” E ela se tornou a irmã
mais bonita de todas.
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2° PARTE
SING. SING.
UM PRELÚDIO PARA SING SING21
Chegando ao limite
Inconsciente, eu quase
Que caía
Uma parte de mim
Nunca será capaz
De se sentir estável
– “Close My Eyes”
21 Sing Sing: é uma prisão de segurança máxima do estado de Nova Iorque. Aqui, é usado
como um trocadilho de duplo sentido – retratando a Mariah como uma prisioneira em seu
relacionamento com o Tommy e também por ser sempre pressionada a cantar.
96
beira da cama e rapidamente girava os meus quadris e pernas para poder pisar
no chão. Nunca desviando o olhar, eu andava na ponta dos pés para trás em
direção à porta, que parecia um quarteirão inteiro de distância. Com muito
cuidado, eu saía pela porta. Era uma grande vitória quando eu conseguia sair
do quarto! Suavemente, eu descia a grande escadaria de madeira escura,
como um ladrão roubando um pouco de paz de espírito, e depois eu ia para
algum lugar na mansão. Muitas vezes, eu só queria ir para a cozinha para fazer
um lanche, ou sentar à mesa e escrever algumas letras de música. Mas toda
vez, assim que eu começava a me acostumar com o silêncio, com a calmaria
da escuridão e a recuperar o fôlego – Bipe! Bipe! O interfone tocava.
Era como se uma parte de quem eu sou estivesse sendo esmagada. Ele
tentava destruir tudo que ele não criava ou sentia que não conseguia controlar.
Eu criei uma garota divertida e livre nos meus clipes para que eu pudesse
assistir a uma versão de mim que parecia estar viva, para que eu pudesse viver
indiretamente através dela – a garota que eu fingia ser, a garota que eu gostaria
de ser. Eu assistia aos meus clipes como prova de que eu era real.
Eu estava vivendo o meu sonho, mas eu não podia sair de casa. Solitária e
presa, eu fui mantida em cativeiro nesse relacionamento. Aprisionar e controlar
alguém pode acontecer de muitas formas, mas o objetivo é sempre o mesmo –
destruir a força de vontade da pessoa presa, matar qualquer sensação de valor
próprio nela e apagar a memória da sua própria alma. Eu ainda não tenho
certeza do impacto que isso causou em mim, do quanto eu fui destruída
permanentemente ou aprisionada – talvez, entre outras coisas, a minha
capacidade de confiar totalmente nas pessoas ou de descansar totalmente não
é a mesma. Mas, felizmente, eu fui conseguindo sair aos poucos, através das
letras das minhas canções.
97
AMANDO SOZINHA
98
banquinho de madeira do piano da minha mãe, e balançando os pés, eu tinha
um momento de leveza na pequena e escura sala de estar. O piano da minha
mãe era um piano vertical Yamaha incrivelmente conservado. Eu cantarolava
um pouco uma melodia, depois procurava o tom mais apropriado para a minha
voz. Então, muito baixinho – quase sussurrando – eu cantava algumas palavras
com a melodia.
Um dos meus primeiros trabalhos foi com dois caras bem malandros que
faziam demos. Eles gostaram do meu som porque eu tinha uma vibe de cantora
adolescente que era popular na época, principalmente por causa do sucesso
da Madonna. No entanto, eu cantava em tons altos naturalmente porque eu era
adolescente na época. Eu sabia imitar a popular técnica de estúdio da
Madonna, mas usando somente a minha voz.
Eu fiz o teste cantando uma das canções que esses caras malandros
escreveram e fui contratada na hora. A partir daí, eles começaram a me pagar
para cantar demos. Este foi o início oficial da minha carreira profissional – e de
uma série interminável de mais malandros que passariam pela minha vida. Eu
havia entrado no território traiçoeiro da “indústria da música”. Embora a minha
jornada estivesse apenas começando, eu logo seria iniciada na dinâmica
complicada que as artistas femininas têm de suportar. Como agora eu sei, a
99
maioria não consegue sobreviver.
Eu sentia algo estranho desde o início, porque eu realmente não sabia dizer
se esses caras eram pervertidos ou não, mas eu acreditava que nada de ruim
me aconteceria porque as esposas dos dois estavam por perto o tempo todo.
Ingenuamente, eu imaginei que essas mulheres iriam assumir papéis de irmã
mais velha comigo. Elas eram adultas, e eu só uma garotinha, mas
infelizmente, a minha idade e o meu talento causavam confusão. Mesmo eu
sendo uma adolescente magricela (tipo, o meu corpo era praticamente como o
da Olívia Palito naquela época), uma das esposas tinha ciúmes de mim. Ela
estava sempre por perto, andando em shorts curtos, me olhando torto. Eu não
entendia o que estava acontecendo. Eu era muito jovem para entender e
também eu ia para lá para trabalhar. Talvez os meus próprios shorts curtos
fossem inadequados de se usar perto daqueles homens mais velhos. Não sei
dizer. Eu era apenas uma criança sentindo o primeiro sabor de independência
e, além disso, tudo o que eu tinha era alguns pares de shorts e tops baratos.
Eu estava no meio de um fogo cruzado de shorts curtos sem nem saber.
100
Mas agora o que restou foi só uma faísca
Sozinha, você me deixou muito confusa
E me sinto perdida dentro de um labirinto
Eu acho que eu estou amando sozinha
– “Alone In Love”
101
Iorque. Eu passei a ir para Nova Iorque para gravar à noite e depois dava meia-
volta para regressar a Long Island para ir para a escola na manhã seguinte. Foi
aí que começou a minha primeira vida dupla (mais ou menos).
Acontece que em menos de três anos, com um vestido preto simples, com
os cabelos cacheados e com frio na barriga, eu caminhei por um estádio lotado
em meio ao barulho ensurdecedor de dezenas de milhares de vozes. Uma voz
alta e clara interrompeu a algazarra: “Senhoras e senhores, por favor, deem as
boas-vindas à cantora da gravadora Columbia, Mariah Carey, que cantará a
música ‘America the Beautiful’”. O toque de piano foi gravado pelo Richard T.
Eu segurei o pequeno microfone e cantei a música com tudo que eu tinha. Atingi
uma nota muito alta em “sea to shining sea” (de um mar ao outro), e o estádio
me ovacionou.
102
lembrariam de mim quando eu saísse. Uma vitória.
103
assistir ao filme De volta para o futuro II. Não, graças a ele.
Quando a minha mãe decidiu se casar com ele, eu sabia que era a deixa
para eu me mudar. Eu acho que ela pensou que ia ficar rica se ela se casasse
com aquele cara, só porque ele tinha um barco na marina West Seventy-Ninth
Street Boat Basin. Vale ressaltar que era onde ele morava antes de morar no
nosso barraco e, acredite, o barco dele parecia mais com um rebocador do que
com um iate.
Por fim, ela acabou com esse casamento abominável. O divórcio demorou
vários anos e muitos honorários de advogado, que obviamente foi eu quem
paguei após o sucesso do meu primeiro CD. O idiota ainda acabou me
processando pelos direitos autorais de uma boneca Mariah Carey fictícia (se
eu tivesse ganhado um dólar por cada caloteiro que me processou, eu estaria...
bem, foram muitos). Mas eu era o contrário de rica quando eu saí da casa da
minha mãe. Eu tinha dezessete anos e sem um só centavo no bolso. Era o final
dos anos 80 e eu morava completamente sozinha na cidade de Nova Iorque.
O destino é uma coisa bizarra. Quando eu tinha cerca de sete anos, a gente
morava em um apartamento apertado em cima de uma delicatéssen, e eu
adorava ouvir o som das rádios que entrava pelas nossas janelas. Eu me
lembro de rebolar, fazer pose e cantar com a Odyssey: “Oh, oh, oh, você é um
nova iorquino da gema / Você já deveria saber como funciona.” Eu não sabia o
que era esse “saber como funciona”, mas foi a partir daí que eu fiquei com
vontade de sentir essa vibe fabulosa de Nova Iorque. Demorou mais de dez
anos, mas finalmente aconteceu.
Para mim, Nova Iorque parecia ter uma agitação própria e uma elegância
inalcançável. É uma cidade que nunca dorme: pessoas e mais pessoas
andando para lá e para cá, ninguém com aparência semelhante, mas todos
com movimentos sincronizados. A cidade era uma loucura de motoboys de um
lado para o outro e incontáveis táxis amarelos ziguezagueando pelas ruas
como um enxame de abelhas agitadas. Tinha sempre algo acontecendo onde
quer que você olhasse – enormes outdoors, letreiros de néon piscando e
pichações por todos os lugares: em vagões de metrô, caixas d’água e vans.
Era como uma grande galeria de arte em movimento. As avenidas principais
eram grandes e lotadas passarelas cheias de modelos ecléticos, magnatas dos
negócios, traficantes de rua e trabalhadores de todos os tipos – todos
desfilando e sem nenhum ficar analisando uns aos outros. Todos tinham um
lugar para ir e algo para fazer. Era um planeta de concreto e fachada de vidro
louco e magnífico povoado de desajustados, mágicos, sonhadores e traficantes
– e eu caí de paraquedas bem no meio. Mona, eu nasci para isso.
104
FAÇA ACONTECER
Como eu sobrevivia com um dólar por dia, eu tinha que fazer uma escolha
– ou eu tomava café da manhã ou eu pagava o transporte. Os bagels da H&H
eram sublimes e perfeitos: macios, quentes e rechonchudos, um tipo clássico
de café da manhã de Nova Iorque que mantinha o meu estômago forrado até
as três da tarde (H&H significava Helmer e Hector, os dois proprietários porto-
riquenhos do estabelecimento, que provavelmente faziam o melhor e mais
legítimo bagel do mundo). Mas, novamente, se locomover é muito importante,
e o metrô de Nova Iorque, apesar de muito barulhento e agitado, era o modo
mais rápido para ir a qualquer lugar da cidade. A ficha do metrô era um pouco
maior que uma moeda, um disco de ouro sujo com as iniciais “NYC” (New York
City) estampadas no meio com um recorte distinto de um Y fino. Essa era a
moeda do povo e que nos levava a qualquer lugar, em qualquer hora do dia.
Mas se eu pudesse ir a pé até onde eu precisava ir, o café da manhã vencia.
105
Eu não estava conseguindo pegar o jeito. Esse bar era um estabelecimento de
bairro com frequentadores assíduos e garçonetes práticas, como a
personagem “Flo” do programa de TV “Alice” com o seu bordão “Kiss My
Grits22”, mas Nova Iorque é difícil. As garçonetes me odiavam por bagunçar o
dinheiro delas!
– “Make It Happen”
Eu também tinha apenas um par de botas, que era bem pequeno para os
meus pés. As botas tinham sido da minha mãe – lamentáveis botas de
tornozelo de couro preto com cordões. Eram botas básicas e úteis com as quais
eu me virava. Em algum momento, a parte superior do sapato se despregou da
22 Kiss my grits: é um bordão muito utilizado no sul dos EUA, que foi criado pela
personagem de um programa de TV dos anos 70 chamada Alice. Esse programa era
humorístico (estilo Zorra Total e A Praça é Nossa), e como a história se passava em uma
lanchonete, eles faziam piadas envolvendo comida. Grits, no sul dos EUA, é como se
chama um tipo de mingau de aveia. “Kiss my grits” substitui a expressão “kiss my ass” (beija a
minha bunda, mas com o sentido de “vai se fuder”).
106
sola de borracha, fazendo com que a aba solta ficasse batendo no impiedoso
chão da cidade com as minhas pisadas rumo ao meu destino. O inchaço dos
meus pés, por ficar o dia todo em pé com sapatos muito pequenos, certamente
contribuiu para o desgaste deles. Os dias de neve eram os piores; o gelo
entrava dentro da aba, derretia e vazava pelas minhas meias finas; a sensação
pegajosa de couro úmido e barato me dava calafrios. E naquele ano, Nova
Iorque teve uma grande tempestade de neve que foi noticiada por todos
veículos de comunicação! Mesmo diante de contratempos, eu buscava
aparentar o melhor que eu podia, abrindo um sorriso e buscando mostrar
serviço, mas torcendo para que ninguém olhasse para os meus pés. Passei
anos e anos sofrendo humilhação, mas eu não estava mais na escola; eu
estava morando em Nova Iorque. Eu acreditava no fundo do meu coração que
um dia eu iria conseguir comprar alguns dos sapatos mais chiques que se
poderia imaginar (e que coubessem nos meus pés.)
Eu tinha muita fé, mas eu também fui abençoada com muitos sinais e atos
de bondade de pessoas que passaram pelo meu caminho. Como o Charles, o
cozinheiro do Sports, que me dava escondido um cheeseburguer gorduroso
com um copo de sambuca23. Não era nada glamoroso, mas pelo menos eu
fazia uma refeição, eu tinha uma roupa e alguns dólares. Cada dia que eu
sobrevivia, eu sabia que eu estava mais perto de realizar o meu sonho. Eu me
ajoelhava todas as noites e agradecia a Deus por mais um dia em que eu não
tinha desistido ou por não ter levado uma rasteira de ninguém.
– “Make It Happen”
107
Trabalhar no Sports Bar era um meio, mas o estúdio era o fim. Tudo girava
em torno da minha fita demo. Um dia, enquanto eu estava comendo no andar
de baixo do restaurante chinês, saboreando com vontade os pedaços baratos
da única refeição do dia, eu vi um rosto familiar. Era a Clarissa, e agora ex-
namorada do amigo produtor do meu irmão, o Gavin Christopher. Nos
abraçamos como velhas amigas. Eu disse a ela que eu havia me mudado
oficialmente para Nova Iorque. Quando eu dei a ela um resumo do caos da
minha vida, como um anjo, ela me convidou para ir morar com ela.
108
músicas em seu mini estúdio. Ela conheceu algumas pessoas do ramo da
música quando namorou com o Gavin e às vezes me apresentava a outros
músicos que também moravam no Upper West Side. Nessas ocasiões
especiais, ela até me emprestava um vestidinho preto para usar (não muito
diferente do que eu usei na capa do meu primeiro CD). Certamente, eu não
tinha nada adequado para vestir para essas ocasiões sociais.
Como tudo naquela época, nada durou muito tempo. Um dia, algumas
pessoas malucas passaram a morar conosco e isso fez com que a Clarissa e
eu fugíssemos para salvar as nossas vidas (eu realmente não consigo falar
com detalhes do que diabo foi aquilo); só sei que tivemos que seguir em
frente e nos mudar dali. Nós passamos a morar com a minha amiga Josefin
(eu a conheci quando ela teve um relacionamento aberto com o meu irmão),
que morava com algumas outras garotas da Suécia. Então éramos cinco
garotas que não conhecíamos umas às outras, morando em um apartamento
qualquer em cima de um clube chamado Rascals, na rua East Fourteenth.
Apesar do meu recanto de dormir não ser mais em um sótão e eu ter passado
a dormir em um colchão no chão, eu agora morava no “centro da cidade”, no
coração da cena artística de Nova Iorque do final dos anos 80. Era
empolgante, embora precário, mas os meus olhos estavam sempre voltados
para o alto. Eu consegui obter um pouco de estabilidade e a minha fé estava
muito mais forte. Eu sabia mais do que nunca que eu iria realizar o meu
sonho.
– “Make It Happen”
110
mim. O meu tempo era agora, e eu conseguia sentir isso. Eu sentia como se
eu fosse esbarrar em algo ou alguém muito em breve, e eu não ia deixar nada
e nem ninguém me atrapalhar.
Conseguimos gravar uma fita demo completa, que eu achei que realmente
mostrava as minhas composições e a minha voz. O que eu me lembro mais
vividamente sobre aquela época no estúdio é que eu ficava sentada no chão
sozinha em um canto, escrevendo letras e criando melodias, ou olhando pela
janela, sonhando com o dia em que eu realizaria o meu sonho. Olha, o Ben
era muito comprometido e eu passei muito tempo trabalhando com ele; é fato
que nós fizemos muitas coisas juntos. Entretanto, eu tinha uma visão, mesmo
naquela época, de que a minha carreira iria muito além do que ele ou a
maioria das pessoas ao meu redor conseguia imaginar.
111
Se aproxime
Você parece tão distante
Há algo que eu sei que você precisa dizer
Eu sinto o que você está sentindo
Quando eu olho em seus olhos
O teu silêncio sussurrando mal-entendidos
Há tanta coisa que você precisa perceber
Você sentirá o que eu sinto
Se olhar nos meus olhos
Ei, querido
Eu sei que você acha que o meu amor está escapulindo
Mas, amor, é tudo coisa da sua cabeça
Então, sim, uma fotocópia: essa é a origem sem cerimônia do meu primeiro
“acordo oficial”. Fotocópia essa que só continha a minha primeira assinatura
porque agiram de má fé comigo – algo que seria difícil de desfazer. Que boas-
vindas ao mundo da música! Um mundo que eu desejava tanto fazer parte!
112
Obviamente, essa não foi a única e nem a última vez que tentaram me ferrar.
Papeladas cheias de má intenção ainda passariam pelo meu caminho.
Desde o meu primeiro trabalho como backing vocal aos 12 anos de idade,
eu ganhei respeito pelas habilidades e talentos específicos necessários para
isso. Eu gostava de ouvir especificamente a parte de backing vocal nas
músicas que tocavam nas rádios. Eu analisava o encarte e as capas dos CDs
para saber quem é que fazia os vocais de backing vocal (especialmente em
músicas dance, pois eu acredito que as vozes dos backing vocals são a base
dessas músicas). Eu passei a saber o nome de todos os cantores excepcionais
de backing vocal, como a Audrey Wheeler e a Lisa Fischer... e a Cindy. Para
mim, ela era uma das melhores. A Cindy Mizelle era a backing das backing
vocals. Ela cantou com os vocalistas mais talentosos de todos os tempos – a
Barbra Streisand, a Whitney Houston, o Luther Vandross e os Rolling Stones.
Ela era uma cantora de verdade. A Cindy era uma baita cantora para mim. Eu
a admirava muito.
113
que aprender como realmente fazer tudo com perfeição, fazer tudo exatamente
do jeito que eles queriam. A prática leva à perfeição. A Cindy tinha que gravar
praticamente todos os dias; ela se garantia demais. Quando eu comecei a
cantar ao lado dela, eu tive que me esforçar muito para acompanhar. Agora, a
parte de backing vocal é um dos meus elementos favoritos na construção de
uma música. Eu amo as texturas, as camadas, e como elas dão um toque a
mais na música; as partes de backing vocal ficam entranhadas na nossa pele.
De repente, eu caí em mim. Ah! Eu entendi. Era para eu ter ligado para ela.
Eu não tinha entendido de imediato que isso fazia parte do processo: a
iniciação, a orientação, o estímulo, a entrada em uma sociedade de cantoras
irmãs. Esses rituais eram todos novos para mim. E eu não estava familiarizada
com o fato de ser bem-vinda em uma família de artistas – ou em uma família
de qualquer tipo.
114
no bairro Upper West Side de Manhattan. Eu não curtia beber ou ficar com
ninguém; a noitada, para mim, estava relacionada com fazer conexões – o
meu foco era no trabalho. Valeu a pena.
Eu recebi uma proposta para fazer uma gravação de algumas músicas para
um grupo chamado Maggie’s Dream. Quando eu cheguei ao local, me disseram
que eu iria cantar junto com um cantor. E eis que um jovem artista, sexy,
sereno, cor de amêndoa torrada entra no recinto – ele realmente era a definição
da palavra artista. O cabelo espesso e escuro dele estava nas fases iniciais de
dreads. Ele tinha uma barba de fim de tarde perfeita, com um cavanhaque no
queixo, e se vestia como uma estrela de rock casual: uma grossa e preta
jaqueta de couro de motociclista de estilo vintage, jeans preto e camiseta preta.
Ele tinha uma argola fina no nariz e o cheiro do perfume dele me fez imaginar
que os óleos dos antigos egípcios teriam um aroma semelhante. O rosto dele
era gentil e bonito, com um sorriso de garoto. O seu nome artístico era Romeo
Blue, mas os seus amigos o chamavam de Lenny. E cerca de um ano depois,
o mundo o conheceria como Lenny Kravitz.
115
após o teste, a Brenda teve que ir se apresentar em algum lugar, mas assim
que ela voltou, eu fui contratada. Ela vivia dizendo: “Eu contei a todo mundo
sobre essa garota chamada Mariah!”
Eu posso ter sido jovem e ingênua, mas a Brenda sabia que as minhas
canções eram boas e que estavam à frente do seu tempo. Quando ela escutou
a minha fita demo, ela disse: “caramba, Mariah, eu quero gravar as suas
músicas no meu próximo CD.” Ela tinha uma música que ainda estava tocando
bastante nas estações de rádio na época, e toda vez que a gente estava juntas,
e que eu a ouvia tocar, era estonteante. Eu não conseguia acreditar que eu
estava trabalhando com ela e que ela era a minha amiga, sem falar que ela
tinha me dado a maior oportunidade da minha vida até aquele momento.
Mesmo assim, eu disse: “eu sei que eu não tenho nada de muito concreto
na minha vida ainda, mas eu sinto muito, eu não posso te dar as minhas
músicas. Eu as escrevi para mim.”
Eu posso ter me sentido insegura por causa da falta de dinheiro, por causa
das minhas roupas, por causa da minha família e uma série de outras coisas,
mas eu sabia que as minhas canções tinham valor. Eu me sentia muito feliz
por finalmente estar na companhia de jovens artistas e músicos, alguns até
passando por uma certa dificuldade, mas a verdade é que eu sempre acreditei
116
que o meu sonho ia se tornar realidade. A Brenda nunca mais falou em querer
gravar as minhas músicas depois disso.
Cantar como backing vocal para a Brenda com a sua música de sucesso
em uma turnê foi muito divertido. Uma vez, nós fomos a Los Angeles para nos
apresentar em um show promovido por uma estação de rádio popular. Foi a
primeira vez que eu estive em Los Angeles e uma das poucas vezes em que
embarquei em um avião também. Só que agora, eu estava embarcando em um
avião como cantora profissional, para fazer um grande show ao ar livre
patrocinado por uma rádio de Los Angeles! Para mim, um artista só era famoso
quando as suas músicas tocavam nas rádios. Na apresentação, a Brenda tinha
que cantar “I Still Believe”, comigo como uma das cantoras de backing vocal.
O Will Smith também estava presente, para cantar a sua música “Parents Just
Don’t Understand” (os pais não entendem).
“Passe para ela! Passe para ela!” a Brenda murmurou, sacudindo o dedo
para mim parecendo o rabo de um cachorrinho feliz.
117
era apenas super talentoso, mas também inteligente e focado. Eu amava a
música dele, “Parents Just Don’t Understand” (Os pais não entendem), e eu
fiquei muito impressionada com o que ele conseguiu conquistar.
118
A minha fé e foco eram fortes, mas o meu trabalho árduo também não ficava
atrás; prova disso foi um possível contrato com a gravadora Atlantic Records.
Durante essa época, as grandes gravadoras estavam colhendo os frutos das
suas estrelas adolescentes – as Tiffanys e Debbie Gibsons da vida. Como se
sabe, o Doug Morris, o chefe da gravadora Atlantic, respondeu à minha fita
demo dizendo: “nós já temos a nossa filha adolescente”, referindo-se a Debbie
Gibson.
É óbvio que ele não entendeu nada. Por falar nisso, a maioria das
gravadoras realmente não me entende. Elas não conseguiam entender o meu
som e realmente não sabiam onde eu me encaixava como cantora. A minha
fita demo tinha canções que não se encaixavam perfeitamente em um gênero
específico. Embora muito jovem, eu definitivamente não era uma adolescente
de música pop. Havia um pouco de soul, R&B e gospel nas minhas músicas,
além de eu ter um pouco de entendimento sobre o hip-hop também. A minha
fita demo estava à frente de seu tempo se comparada com a indústria musical
da época.
119
CHERCHEZ LA FEMME
(PROCURE A MULHER)
Certa noite, a Brenda anunciou: “eu vou te levar a uma festa. Você vai
conhecer um grande executivo de uma gravadora, o Jerry Greenberg, e vai ser
ótimo”.
A gente ia se arrumar na casa dela em Nova Jérsei, já que ela tinha todas
as roupas, maquiagens e acessórios necessários (frutos de turnês e dinheiro),
e ela iria me pegar no meu apartamento. Eu esperei por ela no pequeno hall
de entrada do meu prédio, sentada no chão de ladrilhos, por mais de uma hora
(vejam bem, não havia mensagens de texto naquela época). Finalmente, ela
apareceu, acelerada, cheia de energia e pronta para a festa. A empolgação
dela era contagiante.
24 Mousse: é um tipo de espuma que serve para dar formato, textura e volume para o
cabelo, ajudando na modelagem. Além disso, ele também é muito usado para fixar
penteados.
120
preto da marca Vans com as minhas meias macias com nervuras. Eu finalizei
o meu visual com a minha única peça – a minha jaqueta Avirex que eu usava
no colégio.
Eu fiz o melhor que pude com o meu visual, mas tudo bem. A Brenda me
disse que a festa era para comemorar o lançamento de uma nova gravadora,
mas como, naquela época, eu me interessava pelas grandes gravadoras com
os seus chefões e grandes artistas, eu não tinha grandes expectativas com
quem estaria presente. Três empresários conhecidos da indústria se uniram
para fundar a sua própria gravadora, a WTG Records. “WTG” significa Walter,
Tommy e Gerald. Parecia um negócio de pneus para mim; eu realmente não
os conhecia ainda, mas a Brenda conhecia o Jerry (Gerald Greenberg), que
ela disse ser bastante influente na indústria (em 1974, aos trinta e dois anos,
ele se tornou o mais jovem presidente da gravadora Atlantic Records). Quando
ela me disse isso, a festa começou a ficar um pouco mais interessante.
Agora eu entendi porque a Brenda queria que eu levasse a minha fita demo
comigo (não que eu já tenha ido a qualquer lugar sem ela) – ela queria que
eu fosse para a festa para conhecer o chefão da Atlantic Records. Quando
nós chegamos à festa, eu estava cercada por “pessoas da indústria”, embora
eu ainda não fizesse ideia do que isso significava. Eu vi uma artista
feminina25 ser conduzida de um lado para o outro como um cavalo de feira
de exposição enquanto eu caminhava e observava o local. Ela era muito loira,
muito bonita, muito branca, e muito arrumada e penteada, com uma multidão
de pessoas da gravadora a cercando. Havia grandes fotos dela por todo o
local. Eu tinha a impressão que o que era esperado de nós era ficar
deslumbrado na presença dela, mas eu não estava nem aí. “Quem é ela e por
que eu deveria ficar deslumbrada?” foram as únicas coisas que se passaram
pela minha cabeça. Para mim, ela era somente alguém que as pessoas
estavam conduzindo de um lugar para o outro. Francamente, eu não fiquei
impressionada com o que eu vi.
121
Enquanto nós subíamos as escadas, eu o vi.
Ele não era um tipo de pessoa que eu normalmente teria notado: não era
alto e nem baixo, nem estiloso e nem cafona. Eu tenho certeza que ele estava
usando terno. Eu teria me esquecido totalmente dele se não fosse pelos seus
olhos. Quando os nossos olhos se encontraram, uma energia
instantaneamente percorreu entre nós – como um choque elétrico leve. Ele
tinha um olhar penetrante.
Ele olhou para dentro de mim, não para mim. Eu fiquei um pouco
desconcertada – não de um jeito ruim, mas também não foi amor à primeira
vista. Eu continuei subindo as escadas, desta vez em um ritmo mais lento,
enquanto eu me recompunha ao que acabara de acontecer. Quando eu fechei
a porta do banheiro, a sensação estranha ainda pulsava dentro de mim. O que
tinha acontecido? Eu não sabia quem era ele, mas eu o reconheci de alguma
forma. Eu sabia que não era da TV ou algo parecido. Não era o rosto dele; era
outra coisa. Eu reconheci a energia dele e acho que ele reconheceu a minha.
122
Eu fiquei parada pensando: se ele era tão importante, o que ele queria de
mim? A festa estava repleta de garotas mais bonitas, com maquiagem
profissional e calçados bem melhores. O Tommy perguntou a Brenda: “Quem
é a sua amiga?” – a frase mais intensa que eu já ouvi.
A Brenda dirigiu a resposta ao Jerry. “Ela tem dezoito anos; o nome dela é
Mariah. Você tem que ouvir isso aqui!” Assim que ela foi entregar a minha fita
demo para o Jerry, o Tommy interceptou a mão dela no meio do caminho. Ele
pegou a fita, se levantou, saiu da mesa e foi embora da festa. Foi bizarro e
desconcertante. Eu fiquei tipo, que merda é essa?
Essa fita demo era importante. Tinha algumas das minhas melhores
canções – “All in Your Mind”, “Someday” e “Alone in Love”. É sério mesmo que
esse tal de Tommy acabou de levar embora todo o trabalho investido (e
dinheiro!) que eu tive? Eu não fiquei feito boba pensando: Iupiii, eu acabei de
entregar a minha fita demo para um grande executivo de gravadora. Eu estava
mais focada no fato de que eu tinha uma cópia a menos da minha fita demo.
Eu sei que esse tal de Tommy nunca vai ouvir a minha fita, eu pensei.
Por fim, o Tommy voltou à minha procura, ao que parece, não acreditando
que a voz que ele tinha acabado de ouvir era da mesma garota da escada, a
garota de aparência inocente que estava usando tênis Vans e meias macias
com nervuras. Todas aquelas garotas bem vestidas de salto alto tentaram ao
máximo chamar a atenção do W, T ou G – mas nenhum deles deu bola, só o
T que voltou procurando por mim.
123
mas também era pura verdade. As condições do nosso apartamento eram
precárias. Havia papéis mata-moscas grudentos pendurados no teto e nas
paredes, e os nossos gatos se esfregavam neles. Também não tinha água
quente; era uma zorra. Mas nós éramos duas garotas jovens e bobas, e a
gente zoava com a nossa própria situação.
A primeira vez que o Tommy ligou, ele desligou. Mas ele não desistiu. Ele
ligou de volta e desta vez deixou uma mensagem curta e séria: “Tommy
Mottola. CBS. Sony Records.” Ele deixou um número. “Me ligue de volta.”
124
PRINCESA. PRISIONEIRA.
– “I Am Free”
Era uma vez, eu morava em uma casa muito grande chamada Mansão Dos
Contos De Fadas. E nela, havia grandes diamantes e armários cheios dos
vestidos mais espetaculares e dos chinelos mais cravejados com joias. Mas
também dentro dela havia um grande vazio, maior que todas as outras coisas
em seu interior, que quase me engoliu por inteira. Não era um lugar para a
Cinderela.
125
finalmente pagar o meu próprio aluguel! Chega de morar em cantos e recantos,
de dormir no chão ou de dividir banheiros minúsculos com quatro ou cinco
outras garotas.
A primeira coisa que eu fiz foi comprar o meu próprio sofá pequeno com
todas as quatro pernas. Às vezes, eu passava a mão no tecido do braço do
meu novo e pequeno sofá como se ele fosse um bebê. Foi uma etapa
importante para mim. De um colchão no chão, eu passei a dormir na minha
própria cama. Eu tinha uma pequena cozinha. Eu tinha dois gatos, o Thompkins
e o Ninja. Eu tinha um pouco de paz. Estava sendo um momento todo especial,
e eu sentia vontade de jogar a minha boina framboesa no ar e fazer uma
pirueta na rua com a minha bolsa para roupa suja26 – porque eu tinha
sobrevivido. Eu sobrevivi ao perigo. Eu sobrevivi à fome. Eu sobrevivi à
incerteza e à instabilidade, e agora aqui estava eu, cada vez mais perto do meu
destino. Eu era independente na cidade de Nova Iorque, no meu próprio
apartamento cheio de móveis que eu havia comprado com o dinheiro do meu
trabalho e com todas as canções do meu CD que eu mesma tinha escrito. Eu
poderia receber os meus amigos agora. Foi a minha primeira sensação de
autonomia... e que sensação maravilhosa! Mas que não duraria por muito
tempo.
126
Então este homem poderoso de repente chegou junto, abrindo os mares para
dar lugar ao meu sonho. Ele realmente acreditava em mim.
Com todo o respeito, o Tommy Mottola foi apenas um remédio amargo que
eu tive que tomar em um período crucial da minha vida. Entretanto, ele deve
receber o crédito que lhe é devido: o Tommy era um executivo visionário da
indústria da música que, bravamente e com todas as suas forças, transformava
as suas visões em realidade. Ele acreditou em mim, com todas as suas forças
também.
A maneira como ele falou parecia música aos meus ouvidos: Michael.
Jackson. Aqui estava um homem responsável pelo sucesso dos maiores
artistas da indústria e ele via em mim o mesmo potencial do artista mais
influente da história moderna. Respeito.
E não foi uma lábia de vendedor ou um discurso barato. Ele tinha sido
sincero. A gente não brincava quando se tratava de trabalho. A minha carreira
como artista era a coisa mais importante para mim – era a única coisa que
importava para mim. Isso validou a minha própria existência, e o Tommy
entendeu a intensidade do meu comprometimento. Eu estava falando sério e
eu também era ambiciosa. Ele sabia que os meus vocais eram únicos e
fortes, mas ele ficou muito mais impressionado com a forma como eu criava as
músicas: a estrutura das minhas melodias, da minha música. Eu me tornei
uma nova estrela no momento em que ele foi promovido ao cargo mais alto
de uma nova gravadora; ele agora tinha o poder de abrir os caminhos para a
minha ascensão ao céu. Ele estava disposto a mover céus e terras para me
tornar bem-sucedida. Eu reconhecia e respeitava esse poder. Apesar de estar
envolvido com alguns dos maiores nomes da indústria da música, o Tommy
me disse que eu era a pessoa mais talentosa que ele já tinha conhecido. Ele
estava falando sério e eu realmente acreditei nele.
127
realmente empoderada, o que me deixou atraída. Por baixo do brilho, no
entanto, eu tinha a impressão de que ele possuía uma energia mais sombria –
e que seria um preço a pagar pela sua proteção. Mas, aos dezenove anos, eu
estava disposta a pagar. Para mim, O Tommy era uma forte combinação de
figura paterna, manipulador, parceiro de negócios, confidente e companheiro.
Nunca houve uma atração sexual ou atração física forte, pelo menos não da
minha parte, mas na época, eu precisava de segurança e estabilidade – uma
sensação de lar – mais do que de um namorado. O Tommy entendeu isso e
providenciou. Eu dei a ele o meu trabalho e a minha confiança. Eu dei a ele a
minha convicção e a combinação secreta do meu código moral.
A relação era intensa e nos tomava todo nosso tempo – afinal de contas, a
gente já trabalhava juntos, e era assim que a gente passava a maior parte do
tempo. Quando nós não estávamos trabalhando, estávamos jantando em
churrascarias chiques ou restaurantes italianos famosos, ou participando de
eventos da indústria juntos. Eu passava cada vez menos tempo no meu
apartamento em Chelsea e comecei a passar a maioria das noites com ele.
128
“Vamos construir uma casa aqui!” O Tommy anunciou. Eu sabia o que isso
queria dizer: seria onde nós construiríamos a nossa casa. Eu não fazia ideia
de onde eu estava me metendo.
Naquela época, ali estava longe de ser uma Hillsjail. Era impressionante e
majestosa: cinquenta acres de terra verde fértil perto de uma reserva natural
em Bedford, Nova Iorque. O local ficava bem no meio de duas propriedades,
uma propriedade pertencia ao Ralph Lauren e a outra a um bilionário muito
conhecido, uma área que era garantida de ser segura. Mas, como eu logo viria
a descobrir, o conceito de segurança estava prestes a se voltar contra mim.
Eu nunca quis sair de Nova Iorque, mas era isso que a gente estava
fazendo. Fora do estúdio de gravação, eu me perguntava: quando é que eu
vou voltar para a minha amada Manhattan? Com certeza, construir uma casa
nova seria um empreendimento monumental, o que me fascinou tanto criativa
quanto emocionalmente.
Quando eu era pequena, eu decidi que não faria a maioria das coisas que
vi a minha mãe e a minha irmã mais velha fazer. Eu recebi pouquíssima
orientação do que fazer como mulher, embora eu tivesse sido forçada a me
comportar como adulta quando eu ainda era muito jovem. O Tommy era vinte
e um anos mais velho que eu; ele tinha idade para ser o meu pai. Ele também
era o chefe da minha gravadora. Eu não conhecia nenhuma mulher
experiente que pudesse me dizer que a dinâmica de poder no nosso
relacionamento estava longe de ser meio a meio, então talvez eu deveria ter
pensado duas vezes antes de me comprometer em pagar pela metade dos
custos de uma propriedade tão cara. Para piorar, nós ainda não éramos
casados.
129
Mas eu era jovem e eu entrei de cabeça com o Tommy. Eu me orgulhava
de ganhar o meu próprio dinheiro (embora eu não soubesse quanto). Eu
havia recebido recentemente um enorme cheque com os direitos autorais das
vendas do meu CD de estreia, então eu achava que eu estava com a vida
ganha. Construir uma casa dos sonhos com o Tommy não parecia um risco.
Eu estava vendendo milhões de CDs na época. Mas eu não sabia que a
nossa mansão dos sonhos custaria o preço incomensurável de trinta milhões
de dólares. E no final das contas, o tempo investido naquela casa com o
Tommy acabaria me custando muito mais caro do que o dinheiro.
Por mais ingênua que eu fosse na época, eu decidi que eu iria construir
uma casa maravilhosa. Eu não tinha como reclamar já que no passado eu não
tinha quase nada: “Ah, coitadinha de mim; eu tenho que construir uma
mansão!” Eu entrei de cabeça. Afinal de contas, eu sinceramente achava que
eu ficaria com o Tommy para sempre e que a casa que a gente estava
construindo juntos seria tão atemporal, eterna e espetacular quanto a música
que nós estávamos criando – que do mesmo modo, é claro, eu também era a
força criativa por trás.
E ficou espetacular: tinha até um salão de baile. Com vinte e poucos anos,
eu já tinha o meu próprio salão de baile! Eu construí um closet enorme
inspirado no closet da Coco Chanel, semelhante ao que ela tinha em seu
apartamento da rue Cambon, número 31, em Paris; cheio de espelhos
130
opulentos e uma escada em espiral que levava à uma seção de sapatos. Eu
tinha ganhado tantos sapatos em todas as minhas sessões de fotos e
gravações de clipe, que eu tive que construir paredes inteiras de prateleiras
para eles. Era impressionante pensar que, poucos anos antes, eu usava os
sapatos minúsculos e surrados da minha mãe, que entrava neve pelas
rachaduras das solas. Eu guardei aqueles sapatos horríveis por um tempo, com
a intenção de pintá-los de bronze, como se fossem sapatinhos de bebê, para
nunca esquecer o que eu tinha passado (como se isso fosse possível). Em tão
pouco tempo, de acessórios velhos de segunda mão, eu passei a ter a minha
própria mansão, repleta de paredes feitas sob medida para uma coleção inteira
de calçados. A minha fé e os meus fãs me abençoaram com riquezas
inimagináveis. Eu me sentia imensamente grata. Mas, apesar dessa grande
conquista, eu ainda tinha que perceber que, na realidade, eu só tinha inspirado
o design e investido metade do dinheiro para construir a minha própria prisão.
Por mais nobre que seja a propriedade, por mais grandiosa que seja a
construção, se ela tiver sido projetada para monitorar o movimento e conter o
28 Ponte Tappan Zee: a ponte governador Malcolm Wilson Tappan Zee, comumente
conhecida como a ponte Tappan Zee, era uma ponte cantiléver de Nova Iorque.
29 Foi para o interior: upstate é a palavra usada aqui. Para ser sincero, é uma palavra
de difícil definição até mesmo para os residentes do estado de Nova Iorque, mas
basicamente “upstate” é tudo que está fora da cidade de Nova Iorque. (Long Island,
projetando-se a leste da cidade, torna-se apenas “Long Island”.) Algumas possíveis
traduções: norte do estado de Nova Iorque, interior do estado de Nova Iorque e etc.
131
espírito humano, ela servirá apenas para diminuir e desmoralizar os que estão
em seu interior. A ironia de eu morar perto da famosa prisão e a ironia do
nome peculiar da mesma não passaram despercebidas por mim: Por piada,
eu me referia à propriedade de Bedford como Sing Sing. Ela era cheia de
seguranças armados e câmeras de segurança na maioria dos cômodos –
todos controlados pelo Tommy.
A criança em mim, no fundo, ainda sonhava com uma família que não fosse
desestruturada. Eu tinha começado a realizar os meus sonhos de carreira e eu
queria comprar uma casa para a minha família – um local em comum onde
todos seriam sempre bem-vindos – com a minha mãe sendo a chefe da casa.
Eu me empolguei com a ideia de comprar uma casa que fosse do gosto da
minha mãe e eu finalmente poderia me dar ao luxo de fazer isso com grande
estilo. Encontrar a casa perfeita para ela era o meu novo projeto. Assim como
eu fiz questão de que cada cômodo da minha casa refletisse a minha
personalidade, eu estava disposta a comprar uma casa em que cada detalhe
refletisse a personalidade da minha mãe. Eu queria que ela amasse a sua nova
casa.
132
O serviço de poda não era meticuloso, o que era típico daquela região do
Upper Westchester; em vez disso, a paisagem foi deixada ao natural de
propósito. Os seis acres verdes estavam cheios de esplêndidos carvalhos
antigos e a casa combinava perfeitamente com a natureza ao seu redor. O
interior era espaçoso e aconchegante, com tons quentes de madeira; pelas
janelas graciosas, entrava uma luz suave. Uma vez lá dentro, não dava para
ouvir ou ver o mundo externo.
O maior desafio foi levar o piano dela sem que ela notasse. Eu sabia que
era importante que o piano que estivesse na sala de estar, fosse o seu velho
piano vertical Yamaha de madeira clara, não um modelo novo brilhante. O
piano dela guardava memórias em suas teclas; era um objeto proporcionado
pela minha mãe que simbolizava estabilidade e que dava sentido à minha
infância turbulenta. Eu inventei uma história de que eu iria levar o piano para
afinar ou algo assim antes de ir para o armazém; eu até pedi que ela assinasse
documentos falsos de mudança para que o piano pudesse ser levado embora
sem suspeita. O velho piano dela seria a peça de resistência do seu chalé no
bosque de Westchester.
133
Eu fiquei muito contente quando chegou o grande dia de apresentar a
casa que eu havia comprado para a minha mãe. Eu me senti orgulhosa pelo
trabalho que eu tinha feito. Para mim, essa casa provava que eu era capaz de
realizar os meus sonhos de infância, era a prova de que o trauma e o perigo
que eu enfrentei não tinham destruído a minha esperança. A minha mãe
pensou que ela estivesse indo para a Sing Sing, para um dos nossos jantares
ocasionais. Quando eu cheguei na casa dela, eu disse que eu precisava
passar antes pela casa da amiga do Tommy, a Carole, que ficava no
caminho. Quando os portões de ferro forjado que eu havia mandado colocar
se abriram como braços de boas-vindas dos pilares de pedra, eu senti a minha
mãe ficar quieta e respirar fundo ao entrarmos na propriedade. As árvores
fazem isso: te fazem parar para respirar. Ela saiu do carro como se o ar fresco
a estivesse fazendo diminuir de velocidade.
Ela olhou para a bela casa. Eu a observei apreciar a beleza dos vasos de
flores. E, quando a Carole abriu a porta da frente, o aroma forte de café e de
pãezinhos quentes de canela chegaram até nós. (Eu tinha combinado para que
os pães fossem preparados e estivessem assados quando a gente chegasse,
pois eu queria que esses detalhes preparassem o clima.) A minha mãe parou
na porta e disse suavemente: “Oh, Carole, a sua casa é linda. Entrando no
clima da brincadeira, a Carole se ofereceu para mostrar o local a ela e eu a
segui. Quando nós chegamos à escada, a minha mãe parou nas fotos, mas eu
percebi que ela não tinha notado nada. Então, eu a acordei do transe. “Mãe,
olha quem está nas fotos.” Ela ficou confusa ao notar que era a família dela
que estava na parede da “casa da Carole”. Em voz baixa, ela respondeu: “Eu...
eu não estou entendendo.”
“Isso é tudo para você. É aqui que você vai morar agora”, eu disse. Ela ficou
sem palavras. E eu nunca me senti tão orgulhosa na vida.
O Mike, que eu amo muito, ainda era bem pequeno na época. Ele saiu
correndo pela casa e foi para o quintal, para correr na grama macia e gritar de
felicidade. Ele era um garoto cheio de pura alegria (e ainda é uma grande fonte
de alegria para mim). Ele se sentia livre. Um menino brincando na brisa da
tarde sem nenhuma sujeira por perto, apenas sentindo-se livre. O círculo da
gente se balançando sobre montanhas de lixo ou de sermos jogados fora como
entulho havia sido encerrado – ou assim eu pensei.
134
Junto com o salão de baile e os closets de sapatos chiques da Sing Sing,
eu construí um estúdio de gravação fantástico e de última geração. Ao lado do
estúdio, havia uma enorme piscina de mármore branco em estilo romano
dentro de um grande salão. Nestes dois lugares, eu encontrava consolo e paz
espiritual. Foi um alívio temporário e uma possibilidade de me sentir leve – no
estúdio de gravação e na piscina. Mas o estúdio, a piscina e eu ainda
estávamos confinados, trancados dentro dos limites da fortaleza de Sing Sing.
135
UMA FAMÍLIA
– “Hero”
30 Vaudeville: um tipo de entretenimento teatral dos anos 1800 ao início dos anos de 1900,
que incluía apresentações de música, dança e piadas.
136
equipados com armas semiautomáticas e usando sapatos brilhantes. A
limusine diminuiu a velocidade enquanto eu olhava pela janela, com as ruas
estranhamente silenciosas. Uma ansiedade familiar estava aumentando dentro
de mim, que eu lutei muito para conter. Eu tinha que me preparar mentalmente
para cantar novas canções para um público novo, um show que seria
televisionado para milhões de pessoas por uma grande emissora de TV. Eu
sabia que eu não podia deixar a minha ansiedade se transformar em medo.
Com a exceção dos policiais – por que todos aqueles policiais estavam ali? Eu
tinha os meus próprios seguranças comigo; na verdade, eu sempre andava
com seguranças ao meu lado – a rua atrás do teatro, onde ficava a porta dos
bastidores, estava deserta.
“Mariah”, eles me disseram, “é por sua causa. É porque você veio fazer o
show aqui.”
137
para o show extremamente popular do MTV Unplugged. O EP incluía uma
nova versão da música de sucesso dos Jackson Five, “I’ll Be There”, com a
participação do meu backing vocal e amigo Trey Lorenz. A música ficou em 1º
lugar logo após o show, se tornando o meu 5º single em 1º lugar e, pela
segunda vez, “I’ll Be There” ocupou o seu lugar de destaque nas paradas. Eu
também cantei “Emotions” no MTV Video Music Awards e no Soul Train Music
Awards. E aqui estava eu de novo, prestes a cantar em um outro palco, e de
alguma forma eu não fazia ideia que eu era famosa.
138
carreira, todo o meu foco, toda a minha energia e toda a minha paixão foram
usados na composição, na produção e no ato de cantar das minhas músicas.
O Tommy e a sua influência opressora em tudo o que eu fazia pareciam um
preço justo a pagar por conseguir trabalhar com que eu sempre havia sonhado.
Ele controlava a minha vida, mas eu controlava a minha música. Foi só naquele
momento em Schenectady que eu comecei a perceber o quanto eu era popular.
Eu tinha fãs! E que logo se tornariam uma outra fonte de força para mim.
Me pediram para escrever uma música para o filme Hero (PT-BR: herói por
acidente), estrelado por Dustin Hoffman e Geena Davis. O Tommy concordou
com a proposta de eu compor uma música para o filme, e que seria cantada
pela Gloria Estefan, contratada pela gravadora Epic Records (a Sony,
gravadora do Tommy, era a matriz). Eu sabia que o Luther Vandross também
estava compondo uma música para a trilha sonora, então eu estaria em ótima
139
companhia. Eu estava no estúdio chamado Right Track (também conhecido
como Hit Factory) – um dos maiores estúdios em que eu já investi. O Walter
Afanasieff estava comigo nesse dia.
A música “Hero” foi criada para um filme comercial, para ser cantada por
uma cantora com um estilo e alcance vocal muito diferentes do meu.
Honestamente, embora eu achasse que a mensagem e a melodia fossem
bastante genéricas, eu também achava que ela tinha tudo a ver com a
mensagem do filme. Nós chegamos a gravar uma versão da música, que eu
achei um pouco melosa.
140
não pertencia à Gloria Estefan, a um filme, ao Tommy ou a mim. “Hero”
pertencia aos meus fãs, e eu iria cantá-la para eles dando tudo de mim.
Alguns de nós precisamos ser resgatados, mas todos nós queremos ser
vistos. Eu cantei “Hero” diretamente para os rostos que eu conseguia ver do
palco. Eu vi lágrimas brotarem dos seus olhos e a esperança crescer em seus
corações. Qualquer cinismo que eu tivesse sobre “Hero” foi embora depois
daquela noite. Mas o Tommy também havia notado o tamanho do impacto.
141
certificado com um disco de diamante nos Estados Unidos e é um dos CDs
mais vendidos de todos os tempos.
142
glamorosa Manhattan para trás para passar o fim de semana em Hillsdale.
Conforme as luzes e os arranha-céus diminuíam no espelho retrovisor e a
atração magnética da cidade diminuía, com eles diminuía também uma parte
da minha força vital.
143
cerimoniosamente algumas velas brancas. Eu me rendi à água aconchegante.
Como se eu estivesse sendo batizada, eu mergulhei na banheira e permaneci
no silêncio quente e escuro. Eu me levantei devagarinho, encostei a minha
cabeça na borda da enorme banheira e apoiei os meus braços ao lado da
mesma; com os olhos ainda fechados, desfrutei cada momento desta calma
solidão. Lentamente, eu abri os meus olhos e vi uma lua cheia radiante,
brilhando num céu claro, preto azulado. Eu suavemente comecei a cantar:
“Da, da, da, da, da...”
144
O MEU CASAMENTO BAFÔNICO COM
A SONY (E A MINHA LUA DE MEL UÓ)
E isso foi tudo. Ela entrou na limusine que estava esperando por ela e foi
embora. Eu nunca soube realmente o que ela quis dizer com a fala dela, mas
foi só isso que aconteceu. Não houve nenhum conselho de mãe ou mesmo
risos de alegria – que, honestamente, eu não esperava que fosse acontecer,
mas eu achava que a ocasião exigia mais do que uma frase de efeito.
Eu tinha vinte e poucos anos, e não muito tempo atrás o barraco ainda fazia
parte da minha realidade, portanto, a percepção de uma vida que incluía tanto
a realização pessoal quanto a profissional era incompreensível para mim. Eu
145
realmente acreditava que eu não era digna de ser realizada na minha vida
pessoal e profissional ao mesmo tempo. Eu estava acostumada a fazer todas
as escolhas da minha vida com base na sobrevivência.
146
creio eu, me deixava quase que parecida com uma garota italiana (embora,
ironicamente, os meus cachos sejam resultado direto do meu DNA negro,
alinhados com a ajuda de uma boa “varinha modeladora” para acabar com o
frizz no cabelo).
Sutileza, para essas meninas, era perda de tempo e sabor. Elas pareciam
um camarão de tão bronzeadas. Os seus cabelos cheios de luzes eram
penteados ao extremo, ao ponto de ficarem lambidos; cada cacho, afro puff32
e franja eram fixados em seu devido lugar com spray. A maquiagem delas era
brilhante, chamativa e perfeitamente aplicada. As suas unhas compridas eram
feitas no salão e eram até decoradas com arte: uma fileira de minúsculas
tachas de ouro ou as iniciais de seus nomes usando cristais em um perfeito,
forte e brilhante “francês” de cor branca – arrasou.
31 Pink Ladies: são garotas que estudam na escola Rydell High School, que gostam de
usar jaquetas cor de rosa e que são super estilosas e bem arrumadas.
32 Afro Puff: é um penteado parecido com o coque abacaxi, e que funciona melhor com
cabelos crespos.
147
Todas nós tínhamos que usar como uniforme uma bata com botões muito
sem graça da cor marrom. Tínhamos também que usar calças brancas e
horrorosos sapatos brancos grossos de enfermeira. No entanto, essas garotas
não escondiam que queriam chamar a atenção: as suas batas ficavam
desabotoadas, deixando à mostra as suas leggings, regatas brancas
masculinas com nervuras e os sutiãs rendados que elas usavam por baixo. E,
claro, elas usavam joias também: correntes de elo de ouro grossas e finas em
estilos plano, espinha de peixe e corda com chifres italianos. Além disso, elas
usavam cruzes e pingentes com as suas iniciais – pendurados um em cima do
outro em seus pescoços. Usavam também argolas nas orelhas, e em cada
dedo, ouro delicado e anéis de diamante.
Elas eram tão adultas para mim. Elas obviamente já transavam – e não digo
isso por causa do jeito delas, mas porque elas faziam questão que todos
soubessem. Elas falavam fácil e abertamente sobre sexo (o que era um grande
tabu para mim). Elas se chamavam de “Guidettes” e eu não fazia ideia o que
isso queria dizer, mas eu achava legal que elas tivessem um nome, como um
grupo musical ou algo assim.
148
Nós tínhamos mais em comum do que se poderia imaginar. Sempre houve
uma relação secreta e ilegal entre o hip-hop e a máfia na cultura pop. Nós
amávamos especialmente o estilo e a vibe de filmes como The Godfather (PT-
BR: o poderoso chefão) e Scarface. Um tempo depois, eu recriei a cena da
banheira de hidromassagem com o Jay-Z, para o clipe de “Heartbreaker”. Esse
clipe sempre será um dos meus favoritos. Eu adorava homenagear a Elvira, a
personagem da Michelle Pfeiffer; uma esposa torturada e prisioneira, que tinha
uma casa espetacular e roupas de grife sensuais (isso é tão familiar).
Eu nunca poderia ter imaginado que, apenas alguns anos depois de ter feito
quinhentas horas de aula de beleza com as Guidettes, eu estaria me casando
com um dos homens mais poderosos da indústria da música – um italiano,
nada menos que isso. Eu não estava querendo me relacionar com ninguém.
Certamente eu não estava procurando por marido. E eu definitivamente não
tinha a intenção de me casar com o Tommy, mas aconteceu mesmo assim. E
que acontecimento! Assim que aceitei me casar, eu pensei: ei, podemos muito
bem fazer disso um grande evento – um ESPETÁCULO! Como acontece com
qualquer projeto ou produção em que eu me envolvo, eu queria que o meu
casamento transmitisse o máximo de otimismo e que fosse bafônico. O Tommy
também ficou entusiasmado com a pompa e com a situação em potencial que
a gente poderia criar. Ele se concentrou na curadoria do público mais influente
e impressionante possível, ou seja, na lista de convidados.
149
O vestido era um espetáculo por si só. A minha coordenadora de produção
era amiga de uma das estilistas mais conhecidas da época, cuja especialidade
era noivas. A impressão que eu tinha era a de que a quantidade de tempo que
eu passava no mostruário fazendo ajustes era a mesma que eu passava dentro
de um estúdio gravando um CD inteiro. Eu tinha que provar a roupa pelo menos
umas dez vezes – uma loucura para uma garota que, não muito tempo atrás,
tinha apenas três camisas para vestir.
150
Eu lembro que a nossa música era “You and I (We Can Conquer the World)”
(Você e eu – nós podemos conquistar o mundo) do Stevie Wonder, porque foi
eu quem escolhi, é claro. Eu me lembro do meu rosto tremendo
involuntariamente no altar. Mas no momento em que as portas da igreja se
abriram para a Quinta Avenida, eu ouvi o barulho de gritos e vi a multidão de
fãs inundando cada centímetro da calçada até onde a vista alcançava, com os
flashes das câmeras parecendo fogos de artifício. Eu desci as escadas e sorri
para eles. Para mim, o meu casamento não foi dedicado para todas aquelas
pessoas ricas e famosas que eu mal conhecia.
“Você não precisa se casar com ele”, todas elas disseram. Mas eu
realmente acreditava que eu precisava. Não havia saída. Eu não sabia mais o
que fazer. Eu havia aprendido a suportar a decepção e seguir em frente, a tirar
o melhor proveito das coisas e continuar pensando positivo. Certamente eu
sabia como conviver com o medo. Eu não conhecia uma vida sem medo.
151
De. Jeito. Nenhum. Nós nos hospedamos na casa de alguém, que já foi uó
começando por aí. Eu realmente não me importei muito, já que o meu
relacionamento com o Tommy nunca foi amoroso, mas mesmo assim, era
tecnicamente a nossa lua de mel...
Ainda bem que a casa ficava na praia, e estar perto do mar é sempre um
conforto para mim. No dia seguinte, eu fui ao banheiro colocar um maiô quando
eu ouvi o Tommy falando alto no viva-voz. Deu para notar que ele estava
discutindo. Ótimo.
O Tommy não me defendeu. Então, aqui estava eu, com os meus vinte e
poucos anos, na minha lua de mel com um homem de cinquenta anos gritando
e me xingando ao telefone enquanto o meu marido quarentão não dizia nada
e nem fez porra nenhuma. E ainda por cima, eu estava certa! É claro que as
fotos do nosso casamento eram para ter sido publicadas na capa da revista.
Foi planejado dessa forma – o show business era assim!
152
identidade. Eu não teria nem como beber algo para afogar as mágoas. Com o
meu cabelo preso em um coque, usando nada além de um biquíni e uma
canga, eu me sentia como mil jovens solitárias numa praia, não como uma
estrela pop famosa que vendeu milhões de CDs em todo o mundo. Eu
certamente não parecia uma noiva em lua de mel. Se alguém me reconheceu,
me deixou em paz – e ninguém conseguiria imaginar como eu estava me
sentindo sozinha.
Eu pedi para usar o telefone e fiz uma ligação a cobrar para o meu
empresário (lembra quando a gente tinha que memorizar números
importantes?) Eu pedi a ele que desse ao barman um número de cartão de
crédito para que eu pudesse pelo menos comprar uma bebida. Eu pedi um
daiquiri33 doce e gelado para afogar as mágoas. Eu tomei um gole e ouvi as
ondas batendo na costa enquanto eu começava a digerir a realidade da
situação.
Por fim, eu voltei para a praia e fui para casa. Mas eu sabia como ia ser.
Mais uma vez, o Tommy e eu não trocaríamos mais uma palavra depois de
uma DR. O pouco de esperança que eu tinha, de que ele mudaria quando a
gente se casasse, foi apagado como as pegadas na areia. Foi a partir daí que
eu comecei a prender a respiração e a resistir à correnteza do Tommy.
33 Daiquiri: é uma bebida alcoólica ou um coquetel feito com rum, suco de limão, e açúcar
ou xarope, de origem cubana.
153
O DIA DE AÇÃO DE GRAÇAS
ESTÁ CANCELADO!
– “Petals”
O boato que rolava era o de que eu, com muito estilo, tinha dado o golpe
do baú em um grande executivo de sucesso e que agora ele estava financiando
o meu estilo de vida de princesa – que eu, belíssima, só ficava sentada em um
trono da minha mansão de trinta milhões de dólares. O casamento certamente
passou essa ilusão, mas não passava disso, uma ilusão. Se a minha vida de
casada parecia ser um conto de fadas, era tudo enganação. A segurança que
o Tommy me proporcionava me blindava contra a minha família, mas que
acabou se transformando em uma cárcere blindada.
154
que tinham a tarefa de cuidar de mim eram conectados profundamente com
ele. Eu era muito jovem e inexperiente quando o Tommy me conheceu; ele
sabia de muito mais coisas que eu, especialmente sobre o mundo da música.
Mas eu também sabia de algumas coisas que ele não sabia, principalmente
no que se referia às tendências e cultura popular, a minha suspeita é de que
talvez ele se sentisse ameaçado por causa disso. A impressão que eu tinha
era a de que ele se sentia ameaçado por qualquer coisa que ele não
conseguia controlar.
Ele entrava em parafuso só com a ideia de eu fazer algo que ele não
conseguia controlar. Um exemplo básico e ridículo disso: uma vez, havia uma
revista, a Entertainment Weekly, em cima da mesa da nossa cozinha em Sing
Sing. Tinha uma matéria em que o redator sugeria uma nova versão moderna
do filme All About Eve (PT-BR: a malvada) com a participação da Diana Ross
como a Margo Channing e eu como a Eve Harrington – brilhante! Claro, eu
adorava o filme original, não apenas pelo glamour e as performances icônicas,
mas também porque a Marilyn Monroe fez uma pequena e adorável
participação como a Miss Casswell, uma atriz linda e ambiciosa.
155
compreender totalmente, porque estava à frente do seu tempo. Ele nunca
acreditou realmente no poder cultural duradouro do hip-hop porque ele não
conseguia entendê-lo totalmente. Ele pensava que era uma moda passageira
ou só uma tendência.
A música vivia uma era empolgante em meados dos anos 90, e eu fazia
parte de uma geração pioneira de jovens artistas, compositores, produtores e
executivos inovadores. Nós tínhamos a intenção de fazer um novo tipo de som,
baseado em R&B e rap, mas sem restrições de formatos e fórmulas antigas. A
gente brincava com novas tecnologias e misturava melodias fluidas de maneira
irreverente com a estética e a energia mais realista do hip-hop. A música que
nós estávamos fazendo era original e suave ao mesmo tempo, e nós éramos
os únicos que sabíamos como dar um toque especial nela. Era o nosso som,
reflexo do nosso tempo e das nossas sensibilidades.
156
voltou-se para mim e perguntou: “Então, o que você acha desse cara, o Puffy?
Qual é a sua opinião sobre ele? Você gosta da música dele?”
Ele dirigiu a pergunta para mim porque eu era a pessoa mais jovem de
todas. Eu amava e entendia o hip-hop, e também era a única artista que estava
à mesa. Além disso, eu havia trabalhado recentemente com o Puff como
produtora. A mesa ficou quieta quando eu me inclinei e dei a minha avaliação
honesta: que o Puff e a gravadora Bad Boy eram definitivamente o som que
iria dominar.
Não muito tempo atrás, na mesa da cozinha da nossa casa, o Tommy havia
falado para mim e para o meu sobrinho Shawn: “Daqui a dois anos, o Puffy vai
engraxar os meus sapatos”. Eu fiquei chocada. Peraê. O que foi que você
disse? Foi uma das poucas vezes em que eu enfrentei o Tommy: falei para ele
que o que ele havia dito era totalmente racista. Eu fiquei puta de raiva. O Shawn
nunca tinha me visto bater de frente com ele; ele ficou chocado por eu ter
demonstrado que estava com raiva e ficou realmente preocupado comigo.
Muitas pessoas ficaram preocupadas comigo na época.
Mas naquela noite no restaurante, o que poderia ter sido uma conversa
espetacular entre um executivo da indústria e uma artista sobre a cultura global
e o futuro da música pop americana se transformou em uma birra épica do
Tommy. Quando eu estava terminando de responder, eu vi os seus olhos
brilharem com uma raiva tão conhecida por mim. Ele saltou da mesa e
começou a andar, bufando pelo restaurante. Ele ficou tão enfurecido, que não
conseguiu se conter. A mesa inteira ficou em silêncio enquanto nós olhávamos
um para o outro, sem saber o que diabos havia de errado com ele (desta vez)
ou o que nós deveríamos fazer. O restaurante inteiro viu o Tommy tentando
descer de um parapeito que só ele conseguia ver. Finalmente, ele voltou. Ainda
tremendo de raiva, ele bateu o punho na mesa e anunciou: “Eu só quero que
todos saibam que O DIA DE AÇÃO DE GRAÇAS ESTÁ CANCELADO!”
Hmmm, beleza.
157
quem iria ligar para o Frank Perdue35? Pelo amor de Deus, quem iria cancelar
todos os pedidos feitos à empresa Butterballs36? Que culpa eu tinha de terem
me feito uma pergunta?
O que eu deveria ter feito, ficar parada igual a uma estátua e não responder
ao homem? Que coisa mais ridícula!
O que não era nada engraçado era saber como eu seria punida, a caminho
de casa, pela minha transgressão. Algo aconteceu comigo naquela noite: eu
decidi que eu não iria levar a culpa por algo que não era a minha culpa,
novamente. Naquela noite, eu não seria trancada na câmara de tortura do
Range Rover do Tommy e mandada de volta para a prisão em Bedford. Eu
tomei a decisão de não ir embora com ele em hipótese alguma. Eu percebi que
eu estava correndo um risco enorme, mas como nós estávamos em um local
público, com uma mesa cheia de testemunhas, eu arrisquei, pensando que ele
não iria causar ainda mais e que eu ficaria segura.
35 Frank Perdue: nascido em Salisbury, Maryland, foi por muitos anos o presidente e CEO
da Perdue Farms, agora uma das maiores empresas produtoras de frango nos Estados
Unidos.
36 Butterballs: é uma marca de peru e outros produtos de aves produzidos pela Butterball
LLC. A empresa fabrica produtos alimentícios nos Estados Unidos e internacionalmente –
especializada em perus, carnes curadas, assados crus e produtos especiais, como sopas e
saladas, sanduíches e entradas.
158
Porque é a minha noite
Sem estresse, sem brigas
Estou deixando tudo para trás...
Sem lágrimas, sem tempo para chorar
Apenas aproveitando a vida ao máximo
159
FANTASY
160
Os executivos do “necrotério corporativo” não gostavam nem um pouco do
ODB. Eles achavam que o ODB era totalmente maluco e que os meus fãs iriam
ficar chocados caso eu trabalhasse com ele. O Tommy chamava o rap de
poluição sonora, mas ele não fazia ideia que o ODB estava prestes a “poluir o
som” da música “Fantasy”. Eles não sabiam o quão diversos eram os meus fãs,
e não sabiam também do impacto global do Wu-Tang Clan (principalmente com
o CD de estreia deles “Enter the Wu-Tang (36 Chambers)!” – fala sério!). O
Wu-Tang era um movimento, um tipo de grupo que aparece uma vez na vida,
e o ODB era um membro extra especial. Eu realmente acreditava que ele faria
algo incrível com o remix. O Puff visualizou como seria e foi atrás para dar
certo. Tinha também algumas pessoas legais do departamento A&R (Artistas
e Repertórios) que me ajudaram a trabalhar em segredo em uma das maiores
colaborações com um artista de rap de todos os tempos.
37 Shaolin: um dos cinco distritos da cidade de Nova Iorque. Um apelido dado à Ilha de
Staten pelo grupo de hip-hop Wu-Tang Clan.
161
A Costa Oeste está na área?
Japão, você está na área?
Pessoal, vocês estão na área?
Vamos juntos nessa
Baby, vamos todos juntos!
“Que porra é essa?” ele deixou escapar. “Eu sei fazer isso. Dê o fora daqui
com essa porcaria.” Pois é. Foi isso o que ele disse sobre uma das coisas mais
originais e incríveis que eu já tinha ouvido! Eu acho que ele ficou em estado de
choque, ou talvez ele realmente achava que ele conseguia fazer melhor e que
todos nós estávamos ficando loucos. Era como se a nave estelar
Empreendimento tivesse me levado para outra galáxia, longe, mais muito longe
do Tommy. A música era o nosso único vínculo verdadeiro, e agora estávamos
a anos-luz de distância um do outro.
162
conseguia fazer isso e cantar desse jeito? Genial. E agora, quando eu canto
“Fantasy Remix” usando os vocais do ODB em algum show, parece que ele
está dizendo “eu sou um pouco Roc e Roe” – eu sempre fico emocionada.
O dia das filmagens do clipe com o ODB estava nublado e o local reservado
para ele ficar era bem simples, perto do calçadão. Eu entrei no camarim dele
para lhe dar um presente pessoalmente – um frasco de prata com as suas
iniciais gravadas. Nós conversamos sobre o conceito – o que, de novo, era
bem simples, porque eu não queria que nada viesse a ofuscar a performance
dele (como se fosse possível de acontecer). Eu compartilhei com ele a ideia de
amarrar um palhaço no poste e que ele mostrasse os seus dentes de ouro. Ele
aceitou de boa, mas ele não gostou muito do figurino – ele queria usar uma
peruca.
“Eu quero uma peruca”, dizia ele, “Igual a peruca dos artistas dos anos 60.
Como a do Al Green. Eu sou como o Al Green desta geração”.
Porque “Fantasy” não era a única música que eu teria que cantar naquela
noite, tinha um trailer para mim atrás do Shrine Auditorium para que eu pudesse
trocar o meu figurino e fazer outras coisas do tipo. Quando eu fui ao trailer para
trocar de roupa, eu não precisei ser seguida durante a curta caminhada até
onde todos os trailers dos artistas estavam estacionados atrás da casa de
eventos, já que havia seguranças em toda parte.
“Ei, Mariah,” ele disse suavemente, o meu nome saiu dos seus lábios como
fumaça. Então, aquele sorriso espetacular me desarmou. Em questão de
segundos, a janela voltou a subir e o rapper Tupac foi embora.
165
Embora eu estivesse gravando o Daydream, certas áreas da minha vida
ainda eram um pesadelo. Apesar de estar compondo e cantando músicas
animadas como “Always Be My Baby” e baladas arrebatadoras como “One
Sweet Day”, apesar de me sentir completamente inspirada por ter me arriscado
juntamente com outras pessoas ao colaborar com o ODB no remix de “Fantasy”
e mesmo apesar de estar me aventurando musicalmente, ainda assim, eu
sentia muita raiva. O reconhecimento e a liberação do sentimento de raiva
sempre foram um desafio para mim. A minha vida pessoal foi sufocante
durante a era Daydream; eu precisava desesperadamente de liberação
emocional.
A música e o humor têm sido desde sempre as minhas duas grandes formas
de liberação emocional – que me ajudaram a sobreviver a todas as angústias
da minha vida. Então, enquanto todos os membros da minha banda ainda
estavam comigo e enquanto eu dispunha de tempo de estúdio na gravadora
Hit Factory para a gravação do CD, eu criei uma artista alter ego e uma banda
paródia tipo a Ziggy Stardust38. A minha personagem era uma menina gótica
melancólica de cabelos escuros (uma versão dela, a Bianca, apareceu alguns
anos depois no clipe de “Heartbreaker”) que escrevia e cantava canções
ridículas de sofrência. Ao final de cada gravação, eu ia para um canto e, sem
pensar muito, eu escrevia rapidamente algumas letras. Em cinco minutos, eu
fazia uma música:
Eu sou!
vinagre e água
Eu sou!
A filha feia de alguém
Estou vadeando na água
E eu souuu!
Como uma bolha aberta
Eu sou!
A irmã do Jack, o estripador
Eu sou!
Apenas uma vagabunda solitária
38 Ziggy Stardust: a personagem foi inspirada no cantor britânico de rock Vince Taylor,
que o David Bowie conheceu após o Taylor ter um surto e acreditar que era um cruzamento
entre um deus e um alienígena, mas o Taylor foi somente parte do modelo da personagem.
166
Eu mostrei a minha singela canção de rock alternativo para a banda e
cantarolei um riff bobo de guitarra. Eles aprendiam a música e a gente gravava
logo em seguida. Era irreverente, original e urgente, e a banda entrava na onda.
Eu passei até a gostar de algumas das canções. Eu me comprometia
totalmente com a minha personagem: eu fingia ser uma dessas cantoras
brancas com um estilo mais leve e descontraído de punk e grunge que eram
populares na época (me refiro àquelas que não estavam nem aí para os seus
sentimentos e imagem). Elas podiam estar com raiva, angustiadas e
desarrumadas, usando sapatos velhos, vestidos camisola amarrotados e
sobrancelhas por fazer, enquanto que cada movimento que eu fazia era super
calculado e observado. Eu queria me libertar, me soltar e expressar a minha
profunda tristeza – mas eu também queria rir.
Eu ficava super ansiosa para personificar o meu alter ego toda noite e
começar a gravar com a minha banda após as gravações do CD Daydream.
Como o Tommy passava a maior parte do tempo na Itália naquela época, eu
tinha um pouco de liberdade e ar para poder me divertir e continuar com essa
bizarrice – era algo que a banda adorava. Nós acabamos fazendo músicas
dignas de serem gravadas em um CD, que a gente mixou e tudo mais. A minha
brincadeira de “liberação da raiva” acabou se tornando uma coisa meio que um
rock alternativo estranhamente bom, satírico e underground. Quando o Tommy
e algumas outras pessoas da gravadora ouviram as músicas, eles não
conseguiam acreditar que nós tínhamos feito tudo aquilo durante a gravação
do Daydream. Eu até pedi ao departamento de arte da gravadora para projetar
algo que eu havia concebido: de uma foto Polaroid de uma barata morta
gigante que o Tommy havia tirado na Itália, com o título escrito por mim mesma
com batom rosa, se fez uma capa. Além disso, eu pedi para adicionar uma
paleta de maquiagem de sombra de olhos à capa, mas uma que estivesse
esmagada. O design que o departamento de arte criou ficou perfeitamente
ousado e com aparência grunge de verdade. Pessoalmente, eu fiquei muito
satisfeita em gravar esse CD “alternativo”. Eu gravei um sarcástico CD
hardcore de bater cabeça que ninguém jamais permitiria que eu fizesse. A
minha assistente e eu costumávamos ouvir esse CD nas alturas no carro
quando a gente andava pelas ruas de Westchester, cantando com toda a
força dos nossos pulmões. Isso me fazia externar a minha raiva por um breve
momento e de ser irreverente e livre também.
167
A primeira contratação da gravadora crave foi um grupo de hip-hop
chamado Negro League (eles fizeram uma participação especial no clipe “The
Roof”). O grupo recebeu o nome de Negro League em homenagem a
famosos jogadores negros de beisebol como o Satchel Paige e o Cool Papa
Bell, que tiveram que formar a sua própria liga por causa da segregação. Eles
eram jovens, divertidos e todos muito bonitos. Eu simplesmente adorava ir às
baladas com eles – em que eles sempre entravam cantando “NEGRÕES!
NEGRÕES!” Não tem nada de ambíguo nisso, dahling, pois eram de fato.
Um tempo depois, quando ficou claro para o Tommy que o casamento não
daria certo, a gravadora crave rapidamente tornou-se extinta, e o CD alternativo
convenientemente desapareceu. Porém, houve um pequeno e doce benefício
residual da gravadora crave e do grupo de hip-hop Negro League. Eu convidei
um dos meus amigos do grupo para ser o meu par romântico – ele ficaria sem
camisa, andaria de moto comigo e lamberia os lábios de um jeito sensual em
algumas cenas do clipe “Sweetheart” do Jermaine. Eu o chamava de “Flask39”
(que era parecido com o seu nome) por ele ter bebido muito e ficado
embriagado devido ao seu nervosismo no voo para Bilbao, na Espanha. No
entanto, a ressaca dele funcionou bem no clipe, enfatizando ainda mais os seus
olhos encantadores. Nós namoramos por pouco tempo, logo após um término
muito difícil, que eu já já vou falar a respeito. Ele era divertido, bonito... e foi a
pessoa perfeita para que eu pudesse afogar as minhas mágoas.
39 Flask: frasco é a tradução literal. Bebidas alcóolicas são colocadas dentro de um frasco
e por isso a Mariah deu esse apelido ao rapaz do grupo Negro League, já que ele estava
super bêbado no clipe. O nome real dele é Flip Mahlotix.
168
EM UMA NOITE DE VERÃO, NÓS
FUGIMOS POR ALGUNS INSTANTES…
Após o sucesso do remix de “Fantasy” com o Ol’ Dirty Bastard, passaram a
me dar mais crédito – o que tornou um pouco mais fácil a tarefa de se trabalhar
com pessoas fora da jurisdição do Tommy. Fazia algum tempo que eu vinha
ouvindo um som na cabeça, então passei a buscar o que eu pensava ser os
colaboradores certos para poder criar esse som que eu ouvia (que incluía o hip-
hop e uma diversidade de rappers). No entanto, a velha guarda da A&R (Artes
e Repertórios) e os executivos musicais das grandes gravadoras não sabiam
como controlar ou conter o hip-hop, me pedindo sugestões a contragosto.
169
conhecido como JD, ou Jermash (como eu o chamo carinhosamente) – e eu
instantaneamente nos encaixamos criativamente. Como produtores, nós dois
tínhamos uma disciplina intensa no estúdio, mas também podíamos abordar a
música com abandono, sem medo de tentar coisas novas. A gente conseguia
se concentrar e fluir juntos. Era uma relação rara e nós sabíamos disso.
O JD aceitou. Eu sabia como teria que ser o som do remix, com partes de
backing vocal no estilo Supremes. Eu tive que cantar tudo de novo porque a
música estava em um tom diferente, mas porque o Jermaine era tão adepto do
170
estúdio e tão em sintonia com todos os nossos estilos, eu sabia que ele daria
um jeito da coisa acontecer. O dia da gravação foi marcado – a So So Def viria
para Sing Sing.
O Jermaine era tão focado e sério, que ele foi direto para o estúdio para
entrar no clima e se organizar. Ele se sentou ao painel, no comando total, como
o capitão de uma nave espacial. Enquanto ele trabalhava na batida, as garotas
do Xscape e eu vibrávamos e conversávamos sobre como a parte de backing
vocal seria gravada. Foi provavelmente a primeira vez que eu recebi cinco
mulheres praticamente da minha idade na minha casa. O grupo Xscape era
composto pela Kandi Burruss, Tameka “Tiny” Cottle, Tamika e pela LaTocha
Scott. Com os seus sofisticados penteados de Atlanta, lábios brilhantes e
roupas esportivas extragrandes, elas eram super estilosas e transmitiam
171
totalmente o visual glamouroso, mas descontraído, das mulheres do hip-hop
da época. O som e o estilo delas eram exatamente a vibe certa para o remix e
para o clipe. Eu queria que todos nós parecêssemos leves e genuínos, e não
que parecêssemos manipulados pelos “executivos de desenvolvimento
artístico”.
A nossa próxima parada do passeio foi o quarto principal. A Brat era muito
engraçada; ela deu um grito quando viu a tela gigante da televisão subir, como
que em um passe de mágica, de um rack aos pés da nossa chique cama. A
Brat não era uma garota com trejeitos femininos – ela estava usando jeans
extragrandes, uma camisa polo e botas Timberland – mesmo assim eu fiz um
grande alarde querendo mostrar a ela o meu closet inspirado na Coco Chanel
e eu insisti que ela visse a minha enorme coleção de sapatos chiques. Eu sabia
que se eu a levasse até o cômodo dos sapatos, os seguranças não nos veriam;
fui eu quem tinha projetado o local e eu tinha certeza de que não havia câmeras
ou aparelhos de escuta entre os meus sapatos Manolos. Eu falava em voz alta
sobre sapatos de salto agulha ao fechar lentamente a porta.
Eu nunca sabia quem poderia estar ouvindo, então eu sussurrei para a Brat:
“vamos comer batatas fritas?” Em qualquer outra realidade, isso teria sido uma
sugestão trivial, mas na minha, estava prestes a se tornar uma travessura em
grande escala.
“Isso não é engraçado, porra,” ele disse. “o Tommy está ficando maluco; ele
fez todo mundo procurar por vocês; eles estão armados da cabeça aos pés!”
Ela disse algo como: “Isso não está certo. Você tem que se impor, Mariah.
O Jermaine, as meninas do Xscape – todos nós estamos aqui por sua causa.
Você vendeu milhões de CDs, garota. Você mora em um tremendo palácio.
Você tem tudo, mas se você não tem liberdade de ir à porra do Burger King
quando quiser, você não tem nada. Você precisa cair fora de lá.” Ela não
estava rindo desta vez. Se a Da Brat, uma rapper de dezenove anos do West
Side, teme por você, é porque a situação deve ser terrível, dahling.
40 Thelma e Louise: o filme conta a história de duas mulheres, Thelma, interpretada por
Gina Davis, e Louise, interpretada por Susan Sarandon, que, cansadas da vida que levavam,
decidem fugir e iniciar uma viagem inesperada e cheia de surpresas. Este filme, lançado nos
EUA em 1991, tem a direção de Ridley Scott, e foi vencedor do Oscar de Melhor Roteiro
Original e do Globo de Ouro de Melhor Roteiro.
174
Quando chegamos à propriedade, havia mais de dez seguranças do lado
de fora, preparando dois grandes SUVs pretos para fazer uma busca. Eles me
pararam do lado de fora antes que eu pudesse dirigir até a garagem, como se
eu fosse uma fugitiva cruzando a fronteira. Eu fui prontamente levada de volta
para casa e de volta ao estúdio – de volta à minha torre, à minha prisão.
176
EFEITOS COLATERAIS
– “Side Effects”
177
Sinceramente, eu só queria ter cinco minutos de paz – eu só queria ter
a oportunidade de poder descer as escadas, de ir até a minha própria
cozinha para poder comer alguma coisa sem ser ameaçada pelo interfone:
“O que você fazendo?” Além disso, eu não confiava em ninguém – até então
eu não mantinha contato com a minha família, e todos ao meu redor
estavam ligados ao Tommy e tinham medo dele. Eu sabia que qualquer
coisa que eu dissesse não iria causar nenhum tipo de efeito, e eu acabaria
sofrendo nas mãos dele.
A terapia veio em boa hora. A nossa terapeuta era uma gentil senhora
judia; ela tinha cabelos curtos de cor âmbar e possuía olhos atentos. Ela
tinha um consultório aconchegante em uma casa clássica de Westchester.
Eu gostei dela mais do que eu imaginei, porque eu achava que ela ia “tomar
partido pelo Tommy”, mas ela era super imparcial e uma verdadeira
profissional (e ele a respeitava – o que era bastante importante). Naquele
momento da minha vida, eu não me relacionava muito com outros
profissionais cujos meios de vida não estivessem ligados às minhas vendas
de discos. A ansiedade não tomava conta de mim em pouquíssimos
lugares: primeiro, eu não ficava ansiosa no estúdio de gravação e agora
tinha também o consultório da nossa terapeuta.
Foi uma grande descoberta eu saber que ela ouvia a nós dois de forma
objetiva e que ela acreditava em mim. Fazia anos que o Tommy era
acompanhado por ela, algo semelhante às cenas do seriado “Sopranos” em
que o personagem Tony Soprano é acompanhado pela psiquiatra Jennifer
Melfi, exceto que a nossa terapeuta era mais uma figura materna que uma
acadêmica sexy. Ela pode ter sido a única pessoa a ter visualizado algo na
psique dele, e que conseguiria compreender completamente as condições
repressivas e paranóicas que me foram impostas enquanto estávamos
casados e morando sob o mesmo teto. Ela foi a primeira a reconhecer e a
mencionar o abuso em que eu vivia. Eu já sabia que o meu espírito estava
sendo destruído, mas foi ela quem identificou os danos que estavam me
afetando emocionalmente.
Ela fez uma pausa e disse, com o seu sotaque seco e prático de Nova
Iorque, “Querida, não é normal. Por que você está agindo como se
estivesse lidando com uma situação normal? Simplesmente não é normal!”
Mas eu não tinha nenhuma referência para saber o que era normal ou
não. O nosso casamento já parecia um prédio prestes a desabar muito
antes da gente fazer terapia.
181
Sentindo que eu estava resistindo, ela disse: “Vá para um lugar onde
você se sente segura”.
Nada.
“Você tem um lugar onde você se sente segura, Mariah? Vá para lá.
Pode ser um lugar que tenha a ver com a sua infância.”
Nada.
“Imagine que você é uma criança e que tem seis anos. Vá para lá”
182
Não me diga que você se sente mal por ter me machucado
Quantas vezes eu tenho que ceder?
Quantas batalhas você tem que ganhar?
Oh, não implore por perdão hoje à noite
Hoje à noite, porque eu não aguento mais
–“Everything Fades Away”
No entanto, o exercício que me fez chorar me deu um alívio, embora
tenha sido muito pouco. Eu vinha guardando esse sentimento por um longo
tempo. Eu comecei a respirar, um pouco.
–“Close My Eyes”
O Tommy foi taxativo em seu parecer de que eu não poderia atuar; acho
que ele tinha medo de eu conhecer atores ou diretores atraentes ou algo
assim em estúdios glamorosos de filmagem. O fato de ele ter aceitado eu fazer
aulas de teatro (porque ele achava que os professores eram leais a ele) me
deixou um tanto animada. A influência que ele tinha no mundo da música
não era a mesma em Hollywood. Eu fazer aulas de teatro em Nova Iorque
talvez não fosse tão ameaçador para ele assim, já que ele conhecia bem a
cidade e tinha olhos em todos os lugares. Mas eu sair com os meus amigos,
pessoas da minha idade, só para me divertir? Ele via isso como uma grande
ameaça. O que talvez fosse mais assustador para ele era eu ser vista sem
a sua presença e, Deus me livre, fotografada sem ele. Seria horrível demais
para ele que as pessoas vissem a sua Cinderela sozinha num baile sem o seu
príncipe encantado para lhe salvar.
187
O HOMEM DA CIDADE DE KALAMAZOO
Ainda bem que naquela noite eu fiquei sabendo que, um dos meus
amigos, o Wanya Morris do Boyz II Men, também participaria da festa de
gala, então eu não teria que ficar encenando praticamente o tempo todo.
Me alegrei pelo fato de que, do outro lado de onde a sessão de fotos estava
acontecendo, do outro lado de onde ficavam os pratos caríssimos de mil
dólares e do outro lado das futilidades, haveria uma real possibilidade para
eu me divertir – não seria nada parecido com o silêncio sufocante de quando
eu voltava para a casa no Condado de Westchester junto com o Tommy.
Eu conseguiria aguentar a situação. Eu estava usando um vestido vermelho
longo de alcinha de malha fosca da Ralph Lauren e fui até o tapete
vermelho, segurando no braço do Tommy.
Eu era muito jovem e não tão confiante assim para desafiar a opinião
dela, então acabei acatando o que ela falou. Eu internalizei muitas das
críticas destrutivas e cruéis que as pessoas mais velhas me fizeram quando
eu era mais jovem; algumas dessas críticas estão tão profundamente
enraizadas no meu psique, que eu nunca conseguirei me livrar delas
inteiramente. Até hoje eu, inconscientemente, só mostro o “lado bonito” do
meu rosto caso tenha uma câmera por perto; fazer o quê?
188
Festas de gala eram eventos típicos de jantar beneficente com muitas
celebridades onde eu só ficava sentada, com a barriga encolhida e
prendendo a respiração até que acabassem. O Tommy e eu conseguimos
fingir a noite toda sem incidentes. Nós dois tínhamos bastante prática nisso.
E a festa finalmente acabou: eu havia cumprido com a minha parte do
acordo e agora eu poderia ir para onde eu quisesse! E esse acordo era uma
grande coisa para mim! Eu não podia ir a nenhum lugar sem ele. Eu não
conseguia acreditar: eu agora podia rir e me divertir, como uma pessoa
normal, sem olhares feios para o meu lado e sem reprovações. Eu me sentia
como a Cinderela às avessas; as festas chiques é que eram o pesadelo em
vez dos afazeres domésticos.
Nos anos 90, o Giorgio Armani estava no auge da sua carreira de moda.
O Armani era o estilista de luxo preferido de todas as celebridades. O
Tommy, é claro, usava Armani e estava sempre tentando se manter no
estilo. E eu ocasionalmente também usava Armani. Havia várias pessoas
legais e influentes que trabalhavam para o estilista, e que saíam com os
clientes legais que ele tinha. Depois da festa de gala, o nosso plano era ir
a um jantar em um restaurante que algumas pessoas da equipe do Armani
haviam organizado. A minha assistente e eu fomos, e o Wanya se
encontrou com a gente lá. Era um evento badalado no centro da cidade.
43 Riff: é uma progressão de acordes, intervalos ou notas musicais, que são repetidas no
contexto de uma música, formando a base ou acompanhamento. Riffs, geralmente, formam a
base harmónica de músicas de Jazz, Blues e Rock.
189
Caras sarados do tipo atleta nunca me atraíram, nem mesmo no colégio,
que é onde os atletas são mais populares. O Derek e o seu amigo não eram
exceção à minha regra. O terno Armani que ele usava não escondia a sua
origem humilde de Kalamazoo44. Ele não tinha a vibe elegante de Nova
Iorque com a qual eu estava tão acostumada. Eu não estou falando mal de
ninguém, mas cara, ele estava usando sapatos de bico fino. As celebridades
seguem certos padrões, e os comparando com os artistas de hip-hop e de
R&B, modelos, fashionistas e garotos descolados de todos os tipos que
estavam na mesa, eles pareciam com dois caipiras.
191
AMARELANDO NA HORA H45
Sozinha e
Disposta a acreditar
Que já é bom o bastante ser
O que você realmente é
Mas no seu coração
Permanece sempre a incerteza de que
Você sempre estará em algum lugar
Do lado de fora
–“Outside”
45 Amarelando na hora H: não é uma tradução literal da gíria “shook ones”, inventada pelo
grupo de rap Mobb Deep. A gíria “shook ones” descreve pessoas valentonas e marrentas, mas
que na menor dificuldade, amarelam (se acovardam) diante da situação. Na verdade, são
pessoas frouxas. “Arregando” é outra possível tradução.
192
Você nunca ficará sozinho novamente
Então não tenha medo
Mesmo que você esteja a quilômetros de distância
Eu vou estar do seu lado
Então, não se sinta só
O amor fará com que tudo fique bem
Se você acreditar em mim
Eu te amarei para sempre
Pegue a minha mão
E me leve até o seu coração
Eu vou te apoiar para sempre
Eu não vou te abandonar
Eu jamais vou te abandonar
Cada passo que a gente dava, por menor que fosse, tinha um só
propósito: a liberdade. Eu estava bastante acostumada a trabalhar sem
parar, mesmo que preocupada com o que podia acontecer, eu tentava não me
desesperar; para uma mulher jovem como eu, a vida passou a fazer sentido
quando eu me senti como uma garotinha boba e apaixonada novamente.
Apesar de todas as trevas, eu percebi que ainda havia alguns caprichos
reservados para mim e para o meu próprio coração. Eu até comecei a
assistir a jogos de beisebol no estúdio quando ele estava jogando. Para a
fantasia se tornar ainda mais perfeita, o Derek jogava na mesma posição
que o grande Joe DiMaggio (o famoso marido do segundo casamento da
Marilyn Monroe) no time dos Yankees46, o que aumentou ainda mais a
minha admiração por ele, já que eu tinha todo um fascínio pela vida da
Marilyn. Eu literalmente conheci a pessoa que eu sempre tinha imaginado.
Eu estava vivendo a história de amor que eu tanto falava nas minhas
músicas.
Ele saiu da sala e voltou com uma garrafa gelada de Moët. “Eu guardei
esse champanhe porque achei que um dia você pudesse vir me visitar.” Eu
sorri e disse: “Sim, uma bebida cai bem.” (E foi realmente a garrafa de “Mou-
ei” que me fez me soltar.) Nós subimos até o terraço, rimos, conversamos
baixinho, tomamos goles de champanhe gelado e curtimos o corpo um do
outro com abraços.
O que quebrou o clima não foi a chuva, mas sim o medo. Quanto
tempo fazia que a gente estava ali? Será que o Tommy já sabia? Eu tinha
que ir embora! Eu disse à minha assistente que a gente já estava a
caminho. O Derek me levou às pressas até a pizzaria, onde a minha
196
assistente estava nos esperando com desespero no olhar. Ela saiu
correndo quando me viu e pulamos dentro da limusine. A gente se sentou
no banco de trás com falta de ar, colocando a mão na boca para abafar as
risadas. É claro que o motorista percebeu que eu estava encharcada, mas
eu não dei a mínima! Eu não tava nem aí se ele fosse, sem dúvida, me
dedurar por causa da minha travessura. Eu tinha fugido para viver um
momento real que era todo meu. Eu deixei um pouco da tristeza lá
naquele terraço e não voltaria lá para pegar de volta.
197
Depois de uma noite tão sexy, arriscada e perigosa, o enorme quarto
todo pintado de branco e a enorme cama de cor branca pareciam mais
estranhos do que nunca. Eu puxei o fofo edredom branco de penas de
ganso até o meu pescoço e fechei os olhos. Me deu vontade de voltar para
o terraço na mesma hora para reviver os bons momentos que eu tinha tido
lá. Involuntariamente, a minha cabeça começou a balançar suavemente no
travesseiro e eu comecei a ouvir a mesma batida que eu tinha ouvido no
carro antes, a música “Shook Ones, Parte II” do Mobb Deep. Ela começou a
tocar bem alto na minha cabeça agora e eu comecei a sussurrar:
Eu acabei dormindo.
– “The Roof”
199
O ÚLTIMO SHOW EM SING SING
Esse foi o último show dele comigo como prisioneira em Sing Sing.
–“Petals”
202
ASSIM COMO MEL
Mas sempre que eu dava um passo à frente, havia uma reação contrária.
O “show” que era o meu casamento poderia ter acabado, mas o pós-show
– o “comes e bebes”, a desmontagem do palco – precisava ser planejado
com cuidado. Houve uma grande agitação. A minha vida estava totalmente
interligada com a do Tommy; eu precisava de tempo e conselhos de como
203
me sair de forma amigável (o máximo possível). Então eu me mudei para
um hotel no Upper East Side, zona nobre de Nova Iorque, e continuei
fazendo terapia.
Eu sabia que os meus seguranças tinham nos visto sair do meu quarto
pela manhã, mas finalmente senti algo mais forte que o medo da vingança
do Tommy. Eu não conseguia imaginar viver sem esse sentimento. O desejo
se tornou a minha razão de viver, o meu tudo. Eu não conseguia dormir no
avião quando eu estava voltando para Nova Iorque, mas a inspiração para
compor aconteceu. Eu comecei a escrever:
–“My All”
Viajar para o Porto Rico foi uma quebra de paradigma. Depois da viagem,
eu travei uma estratégia de novamente dar um golpe certeiro no meu coração:
eu coloquei em uma música tudo o que eu estava sentindo naquele momento.
Eu estava correndo um risco gigantesco, porque eu sabia que o Tommy ia
perceber que eu estava me relacionando com alguém (embora, tecnicamente,
eu ainda não estivesse transando ainda). Além disso, algo estava sendo
revelado. A empolgação impulsionou em mim um novo nível de criatividade, e
um novo propósito foi despertado. Eu estava ouvindo melodias diferentes e
tinha experiências novas e reais para poder usar nas minhas músicas agora.
Então eu decidi fazer algo perigoso, mas ao mesmo tempo bonito – e todos
ficaram com medo pelo que eu tinha feito:
–“My All”
–“Honey”
Quando eu mostrei “Honey” para o Tommy, ele brincou: “Bom, fico feliz
que você esteja tão inspirada”. Quanta amargura! Eu disse, “O quê? Agora
você vai ficar com raiva de mim? Por que você não ficou com raiva das
músicas 'Fantasy' ou 'Dreamlover'?” É óbvio que eu também não estava
falando do Tommy nessas músicas! Eu não estava falando dele, ou de
qualquer outra pessoa, praticamente em nenhuma das minhas músicas
românticas. Antes de conhecer o Derek, tudo que era retratado era
imaginário. Mas eu tenho certeza que o Tommy sabia que as músicas
escritas para o CD Butterfly não eram mais sobre amantes idealizados ou
fictícios – essas canções, embora fossem poeticamente embelezadas,
estavam cheias de detalhes específicos e de uma sensualidade vivida na
prática.
48 Hey! DJ: a Mariah brincou com as iniciais da música do World’s Famous Supreme Team,
DJ (Disc Jockey), e com as iniciais do nome do Derek Jeter, que também é DJ, e assim
convidando o Derek, ou o DJ como ela chama, para dançar com ela a noite toda.
207
O Tommy e a gravadora também não estavam gostando do meu novo
estilo de música. E mais uma vez, eu ouvi um sonoro “esse estilo está
urbano demais”, e que obviamente queria dizer que “isso é música de
negro” – e é claro que eu jamais poderia retratar algo assim na minha
carreira.
49 Honey pie, sweetie pie, cutie pants: é uma forma de se dirigir a uma mulher bonita,
equivalente a “gostosa, gatinha”.
208
enroladas até o tornozelo, andando pela praia com o celular grudado na
orelha – falando com o Tommy o tempo todo. Mesmo que a gente já
estivesse tecnicamente separados naquele momento, eu ainda era a
melhor artista da Sony. Além disso, saber de tudo que eu fazia era um
hábito difícil para o Tommy quebrar. O meu empresário estava relatando
tudo, mas não nos mínimos detalhes. O Tommy teria ficado maluco se
soubesse que eu estava me divertindo tanto.
“Eu tinha um plano”, ele me disse. “Eu queria ir para Nova Iorque para
entrar no time dos Yankees. Eu ia te conhecer para então te tomar do Tony
da gravadora Sony” – ele chamava o Tommy de Tony – “e então a gente
se casava”. Eu sorri de orelha a orelha. “OK. Eu gostei desse plano.” Só
que ele não me roubou do Tommy – eu que me libertei.
Fui muito bem recebida por todas as pessoas da família dele. Durante
toda a minha vida, eu acreditei que os problemas que a minha família tinha
eram culpa das questões raciais, mas conhecer a família Jeter pôs um fim a
esse mito. O desmantelo da minha família era mais profundo que
questões raciais. A família do Derek parecia com a minha na cor da pele,
mas ao mesmo tempo era tão diferente da realidade da minha família –
eles eram próximos e amorosos, interagindo como se realmente se
conhecessem e se importassem um com o outro, um sempre apoiando ao
211
outro; a família Jeter era composta de pessoas íntegras e de confiança.
Além disso, foram gentis comigo, todos eles. Foi um grande exemplo para
mim: um pai negro e uma mãe branca convivendo em harmonia, e agindo
como pais de verdade. Irmãos que tinham orgulho um do outro, que não
eram inimigos. Eis a prova de que uma família que se parecia com a minha
podia, sim, ser estruturada. Talvez o grande legado que o Derek me deixou
no nosso curto relacionamento foi o entendimento de que uma família
miscigenada podia ser perfeitamente estruturada. A imagem da família
Jeter me deu esperança.
212
O Derek foi a segunda pessoa que eu transei na vida (por coincidência,
ele vestia a camisa número 2 nos Yankees). Assim como a função dele no
time50, o da parada rápida das bolas da defesa, o nosso relacionamento foi
uma parada rápida na minha vida. Foi uma transição fundamental para
mim – talvez tenha sido um sonho que se tornou realidade ou talvez eu
tenha sido só uma conquista para ele. Eu não sei. No final das contas,
logo ficou claro que o nosso relacionamento não ia dar certo. Por um lado,
há um grande abismo entre atletas e artistas e, honestamente, é difícil
para duas estrelas de qualquer ramo darem certo.
O tempo que eu passei com o Derek foi um sonho bom e curto, mas
ainda assim o seu impacto perdurou. Eu me lembro do nosso
relacionamento de vez em quando, mesmo depois de tanto tempo. Certa
vez, eu fiquei muito triste quando comecei a relatar o nosso breve
romance para uma amiga. Tentando imitar a voz da Joan Crawford da
melhor maneira possível enquanto eu lamentava: “A mãe dele me amava!
A irmã dele me amava! O pai dele me amava! Poderia ter sido perfeito!” A
energia que percorreu o meu corpo naquela hora foi tão grande, que a
taça de champanhe que eu estava segurando se estilhaçou
completamente. E foi essa mesma intensidade que eu usei na música
“Crybaby”.
50 A função dele no time: o Derek tinha a função da parada rápida das bolas da defesa,
função desempenhada pelo jogador que ocupa a posição shortstop, ou interbases. A posição
interbases é uma das mais importantes no beisebol e por isso que ele usava a camisa
número 2.
213
milhões de cópias.
O Derek foi um amor NA minha vida, não o amor DA minha vida. Talvez
fosse a ideia do que eu imaginava que ele era, em vez da realidade, que
me atraiu por ele. Por fim, eu atribuo o término do nosso namoro ao fato de
que a gente não conseguiu corresponder às fantasias um do outro. Não dá
para competir com a fantasia. Simplesmente não dá. É tipo como a Marilyn
costumava dizer: “Vão para a cama com a Marilyn Monroe, mas acordam
com a Norma Jeane”.
214
VISITANDO O PRESIDENTE
Eu liguei antes e disse: “Eu vou para o Japão e eu gostaria de falar com
o Sr. Ohga.” Enquanto isso, o pessoal da Sony estava provavelmente
ocupado trabalhando na próxima grande tecnologia global a ser lançada ou
algo assim. Na época, eu não achava que o que eles ganhavam com o
215
negócio da música fosse insignificante se comparado com o resto. Eu só
pensava que devia haver alguém acima do Tommy. Tinha que haver alguma
saída e eu estava disposta a fazer qualquer coisa. Então, eu decidi fazer as
malas, voar para o outro lado do mundo e falar cara a cara com o homem
que realmente comandava as coisas.
O escritório do Sr. Ohga era sério e elegante assim como ele próprio.
Ele também não era tão iluminado e tinha, como peça central, uma grande
mesa tradicional envernizada de preto. O Sr. Ohga era formal e bastante
focado. Eu não me preparei como deveria para a sua extrema
formalidade, sinceramente. Eu não havia consultado nenhuma equipe
especializada ou mesmo consultores, portanto não houve nenhuma
preparação prévia, mas eu tinha um propósito claro. A minha intenção na
reunião era que decidíssemos uma estratégia para eu poder sair da Sony.
Precisaríamos definir os termos de um acordo e eu queria ter certeza de
que haveria suporte de marketing da Sony para o trabalho que eu iria
entregar. Apesar de querer muito sair da Sony, eu sabia que os meus fãs
mereciam receber de mim um tipo de música da mais alta qualidade, nada
menos que isso. Eu queria que a Sony soubesse que eu iria trabalhar
bastante e que eu iria promover o meu trabalho incansavelmente. Eu queria
ser vista e ouvida; eu queria que percebessem a minha presença, que
percebessem que eu estava prestando atenção, que percebessem que eu
estava falando sério e que eu estava disposta a expressar as minhas
opiniões.
216
Eu precisava ter certeza de que, se eu cumprisse com a minha parte do
acordo com esses novos CDs, eles não me passariam a perna com
sabotagens. Se eu fosse colocar o meu coração e a minha alma neste
trabalho, eu precisava que eles me dessem a sua palavra de que fariam
todo o possível para apoiar o projeto, como costumavam fazer. Foi uma
reunião breve, mas que teve um impacto duradouro.
É óbvio que a Whitney era formidável. Quem não foi inspirado pela carreira
dela, por quem ela era como artista e também pela sua incomparável voz?!
Mas nós duas éramos muito diferentes. Eu amava (e ainda amo) fazer
arranjos de backing vocal e harmonizar com camadas da minha própria voz
nas minhas músicas, compor, produzir e estar por trás dos bastidores. Ela
meio que já nasceu assim, como uma princesa real da voz. Para nós, não
havia competição. Nós nos complementávamos. Embora fosse real que os
nossos corações estivessem ancorados em Nosso Senhor, era surreal a
maioria das coisas que acontecia ao nosso redor. Depois que a grande
indiferença entre nós (criada por forças externas) teve um fim, nós
desenvolvemos um verdadeiro carinho uma pela outra. Ela tinha um senso
218
de humor maravilhoso. Ela começou a falar igual a mim e passou a me
chamar de “lamb” – era pura diversão.
219
Porque há
Há uma luz em mim
que brilha intensamente
Eles podem tentar
Mas não conseguirão tirar isso de mim
– “Can’t Take That Away (Mariah’s theme)”
A música não fez sucesso porque foi pouco promovida pela gravadora
– e foi o período em que as sabotagens tiveram início. Mas a música,
além de ser importante para o fãs, foi também importante para as pessoas
que precisavam ouvir a sua mensagem. E isso é o que importa. Até hoje,
eu ainda ouço CTTA de vez em quando. Eu ainda preciso ouvir.
–“Petals”
221
completo com a parte de backing vocal. Eu gosto de cantar a minha parte
solo quando não tem ninguém por perto, apenas eu e o meu engenheiro de
som. Se eu soubesse fazer o que um engenheiro de som faz, eu faria igual
ao Prince: gravaria tudo completamente sozinha. Eu prefiro não ter que
considerar a opinião das outras pessoas no desenvolvimento dos vocais.
Eu gosto de um espaço calmo onde eu possa trabalhar e ficar focada; eu
preciso ouvir os meus pensamentos e ver a visão na minha cabeça. Eu
preciso brincar com a música, fazer algumas mudanças quando necessário,
e é claro que eu preciso cantá-la algumas vezes. Onde é que precisa subir
o tom? Onde não precisa? O ato de gravar música é uma espécie de ciência
espiritual se comparado com uma apresentação vocal ao vivo. A melhor
situação para mim é quando não existe pressa e eu posso vivenciar a
música com calma.
O conceito para o The Remixes foi inédito: era um CD duplo como o The
Greatest Hits, só que no primeiro CD estavam todas as músicas eletrônicas
(club mixes), e no segundo estavam todas as colaborações e remixes de
hip-hop, de “Honey” a “Loverboy (Remix)”, até mesmo “Breakdown”, com a
participação de Bone Thugs-N-Harmony. Incluía até o remix So So Def de
“All I Want for Christmas” com o Lil’ Bow Wow (ele ainda era pequeno na
época), e a minha música de sucesso com o Busta Rhymes e o Flipmode
Squad, “I Know What You Want”.
Mas antes de lançar esses dois últimos CDs, eu havia fechado um novo
acordo para poder ganhar a minha liberdade. Depois de participar de reuniões
com todas as grandes gravadoras, eu acabei escolhendo a mais eclética, a
gravadora Virgin, que era muito cordial com os artistas (o Lenny Kravitz e a
Janet Jackson eram artistas contratados dela). Eu acreditava que, se eu
tivesse dinheiro e apoio de marketing suficientes, nós faríamos sucesso.
Com um novo contrato histórico, eu estava prestes a embarcar no projeto
que ia mudar a minha vida — o Glitter.
222
3° PARTE
A SAGA GLITTER
FIRECRACKER
“Ele sabe que a gente acabou de fazer merda com a Mariah...
Ele está tentando fuder com a Mariah.”
–Irv Gotti
A produção do Glitter foi atrapalhada por uma série de coisas: puro azar,
mau planejamento e sabotagem.
No início, a trilha sonora e o filme se chamavam All That Glitters (tudo que
reluz), e embora eu tenha começado a trabalhar no projeto em 1997, a gente
teve que adiar tudo por vários anos para que eu pudesse cumprir obrigações
mais urgentes com a gravadora Columbia. Embora eu possuísse um certo
controle na criação da trilha sonora, já se tratando do filme, eu praticamente
não tinha nenhum tipo de controle. O conceito inicial que eu tinha criado para
a história do filme foi quase que totalmente mudado. Eu comecei a trabalhar no
roteiro com a minha professora de teatro, e com a Kate Lanier, que havia escrito
What’s Love Got to Do with It (PT-BR: Tina – A Verdadeira História de Tina
Turner). Ela é uma escritora tão talentosa, que eu acabei realmente confiando
nela. Mas a cada dia que passava, a gente recebia mais e mais observações
do que deveria ser mudado.
Por causa das idas e vindas sem fim e do controle sufocante do Tommy,
o roteiro mudava todos os dias. Ninguém sabia o que estava acontecendo
de um momento para o outro. Além de um roteiro muito diferente, eu
também queria que o Terrence Howard tivesse sido o ator principal (eu
imaginava ele sendo o ator principal muito antes do filme Hustle and Flow
224
(PT-BR: Ritmo de um sonho), que isso fique claro. Mas as forças externas
rejeitaram a ideia de um romance entre o Terrence e eu. Eu desconfiava que
era porque ele aparenta ser mais negro do que eu (embora ele também seja
birracial!) e os poderosos não achavam que tinha como dar certo, se é que
me entendem. Então eu fiquei super chateada. Não estou jogando shade no
Max Beesley, por favor, ele foi ótimo no papel.
Entretanto, eu conseguia ver uma luz no fim deste túnel cheio de glitter.
O Frank Sinatra disse uma vez que a Dani Janssen foi uma das “primeiras
garotas da Broadway” de Hollywood, e eu adoro as garotas da Broadway,
especialmente as que sabem dar uma boa festa. As festas do Oscar
promovidas pela Dani Diamonds (esse era o nome artístico dela) são
lendárias – e eu não ando falando a palavra lendária à toa por aí. A maioria
dos convidados, para participar da festa, precisa ter ganhado um Oscar ou
ter sido nomeado para ganhar um. Os convidados dela são todos artistas
de renome – O Sidney Poitier, o John Travolta, o Quincy Jones, a Oprah, a
Babs (a Barbra Streisand) e assim por diante. E a cada ano, uma nova safra
de novos vencedores do Oscar se une aos ícones em meio a enorme
coleção de orquídeas brancas dela. Uma vez, eu tive o privilégio de receber
esse convite inesperado e muito especial (naturalmente, a Dani e eu nos
demos muito bem). Um dos atores mais badalados da época51, ganhador
de dois Oscars (o código da Dani de não “fazer contatos profissionais” ou
Grande parte das coisas que deram errado no filme Glitter foi por causa
do Tommy. Ele ficou muito puto por causa do nosso divórcio e também
porque eu tinha saído da Sony, e ele acabou usando toda a sua influência
e contato com pessoas poderosas para se vingar de mim. E todos ao meu
redor sabiam o que estava acontecendo, inclusive a minha nova gravadora.
O Tommy e os seus comparsas chegaram ao cúmulo de tirar itens
promocionais, como os meus porta cartazes de pedestal, das lojas de CDs.
Era uma luta sem fim. Ele não queria que ficasse parecendo que eu estava
conseguindo fazer sucesso por conta própria, sem ele; ele chegou ao
cúmulo de interferir na trilha sonora do Glitter. Fazia tempo que eu estava
trabalhando nisso, com pessoas como o Eric Benét e a Da Brat, que também
participaram do filme. O Terry Lewis mexeu os pauzinhos e assim a gente
pôde trabalhar com a música original, “I Didn't Mean to Turn You On”. Já
que ela tinha sido produzida pelo Terry e pelo Jimmy Jam, tudo se tornou
mais fácil, é claro! E poder gravar a música “All My Life”, escrita pelo Rick
James (que exigia um terno branco, uma limusine branca e outros tipos de
acessórios de cor branca para comparecer no estúdio), foi de um valor
inestimável.
O Tommy ficou furioso quando eu quebrei as amarras que ele usava para
me manipular. Era impossível para ele me ver fazer muito sucesso depois
de eu ter me separado dele e depois de eu ter saído da Sony. Ele não ia
permitir que nem eu ou o meu filme Glitter brilhasse; em vez disso, ele tinha
a intenção de nos eliminar. Ele não se daria por satisfeito a não ser que eu
flopasse terrivelmente. Ele costumava sempre dizer: “Você faz o que tem
que fazer, e eu finalizo com a minha magia.” Ele teria acabado comigo antes
mesmo de eu dizer que ele não tinha magia nenhuma. Se a trilha sonora do
Glitter tivesse feito muito sucesso, ele teria que admitir que ele não era
onipotente, que ele não era insubstituível, que a Mariah Carey não foi feita
sozinha por ele. Para aumentar ainda mais a sua raiva, o Tommy ficou
sabendo que eu tinha acabado de assinar o contrato mais caro da história
(na época) com uma gravadora (e a minha família ficou sabendo também,
mas depois falo mais sobre isso). E além disso, eu estava gravando um
filme, algo que ele proíbia terminantemente quando a gente estava juntos;
isso queria dizer que a minha carreira estava se expandindo, e por causa
disso ele se sentia como se estivesse encolhendo. Ele já havia sido
humilhado publicamente quando eu me separei dele e ainda ter que me
aguentar fazendo sucesso sem ele? Isso era demais para o ego frágil dele
suportar. Qual seria o impacto do meu sucesso para o seu grande império
baseado na intimidação? Como ele reagiria caso outros artistas soubessem
que eu estava fazendo sucesso sem ele? Eu acreditava plenamente que o
Tommy fazia questão de eu não viver uma vida que ele não pudesse
controlar, que ele só se daria por satisfeito quando acabasse totalmente
comigo.
–“Loverboy (Remix)”
229
JÁ VAI TARDE (SÓ QUE NÃO)53
53 Já vai tarde (só que não): não é a tradução literal de “resting in pieces”, título original
do capítulo. Um trocadilho foi feito com o ditado “rest in peace” (descanse em paz), que é
algo que se deseja a alguém que amamos e que faleceu. “Resting in pieces” é um ditado
usado quando alguém que você odeia morre, algo como “já foi tarde” ou “já vai tarde”. O
sentido empregado aqui é o da indústria da música de tentar cancelar a Mariah e a sua
carreira, o que sabemos que não se concretizou. Além disso, o sentido também se refere a
Mariah estar só os frangalhos de tanto trabalhar e ser impedida de descansar.
230
descanso. Em nenhum momento do meu dia havia D-E-S-C-A-N-S-O, e na
época, eu não sabia como contestar. Quando se trabalha sem parar, deve
haver alguns cuidados com a pessoa envolvida no processo: uma alimentação
saudável, exercícios físicos, descanso vocal, mas o mais importante de
tudo, ter tempo para dormir. (Eu sabia disso, mesmo que eu só tenha
passado a me cuidar de verdade uma década depois).
O pouco tempo que eu tinha para dormir, por causa da minha agenda
231
corrida, era totalmente atrapalhado pela minha grande ansiedade na época.
Eu não conseguia dormir. Eu não conseguia encontrar as minhas coisas. Eu
não conseguia encontrar ninguém para colocar as coisas em ordem.
Parecia que eu estava ali sozinha. Então eu pensei: ok, eu vou fazer um
truquezinho aqui com a minha roupa para sentir a energia do público. Eu tirei,
totalmente sem jeito, a enorme camisa que eu estava usando para ficar de short
e regata no programa. Eu estava usando por baixo um short dourado e brilhante
muito sexy e uma regata da “Supergirl”. Mas o Carson, agindo horrorizado,
disse em resposta: “a Mariah Carey está fazendo striptease no TRL nesse
momento!” (Ah, só agora você decide agir?) É claro que eu não estava fazendo
striptease – eu estava mostrando o look de Loverboy. Beleza, eu admito que
o que eu fiz foi bobo e que foi um momento de vergonha alheia. Mas em vez de
improvisar, o Carson olhava para mim como se eu fosse louca. A minha
adrenalina estava a mil, e o Carson ainda me pergunta: “O que você está
fazendo?” É sério isso?!
O. Programa. Do. TRL. Foi. Uma. Jogada. Publicitária. Que. Não. Deu.
Certo. E sejamos francos e lógicos que eu, Mariah Carey, ou qualquer outra
pessoa não poderia simplesmente invadir qualquer programa da MTV, e
muito menos carregando um carrinho de sorvete. Talvez o Carson Daly não
soubesse que eu ia “invadir” o programa, mas os produtores tiveram que
agendar a minha visita – coordenadores, publicitários, seguranças, a equipe
inteira sabia que eu estava indo para lá. Foi uma jogada publicitária que
parecia ser uma boa ideia na época. Qualquer ideia parecia boa naquela
233
época. Parecia que eu era uma comediante de stand-up que tentava ser
engraçada, mas que não conseguia porque as piadas eram uma merda.
Todo artista faz cagada, mas ficou parecendo que a cagada que eu fiz era
uma dor de barriga sem fim e que o alvo da merda era sempre a minha
cabeça. Os tabloides e os programas de fofoca em geral agiram como se
eu realmente tivesse feito striptease e dançado no colo do Carson ao vivo
na TV (que agora virou uma rotina entre as celebridades de reality shows e
rappers – ah, como os padrões mudaram)!
235
precisava ser sempre retocada. Eu posso ter parecido super animada no
clipe, mas filmar o clipe de “Loverboy” foi tecnicamente extenuante, e a
gravadora queria que eu pegasse um avião imediatamente, voltasse para
Nova Iorque e começasse a gravar o clipe de “Never Too Far” no dia
seguinte!
Eu dei um pulo e fui até a porta, pronta para xingar quem quer que não
tivesse lido a placa. Abri a porta e vi uma multidão de pessoas – da
empresa de gerenciamento ao Morgan, e até a minha mãe!
238
ninguém jamais pensaria em me procurar lá. Eu fugi para o Brooklyn assim
que consegui me recompor, mas eu estava bastante ansiosa. Eu sabia que
não era só a gravadora que estava procurando por mim, mas quem sabe se
o Tommy também não estava me seguindo? Não teria sido a primeira vez.
(A matéria “Tommy Boy” de 1996 do Robert Sam Anson na revista Vanity
Fair relatou apenas algumas das suas práticas fraudulentas, mas ela também
ajudou e muito a justificar as minhas alegações sobre o seu controle e vigilância
maníacos.) E os tabloides estavam na minha cola e salivando pelo meu menor
passo em falso (e ainda continuam assim).
Ela disse “mana, te acalma. Você ainda sabe que é a Mariah Carey, né?”
239
Ninguém sabia disso, mas para mim, confiar no Morgan era algo perigoso.
Eu nunca sabia o que esperar do Morgan; ele tinha sido tão imprevisível,
instável e violento por tanto tempo. E, no entanto, ele era a pessoa que a
minha mãe mais confiava. Ele se tornou o homem forte, o seu protetor,
quase que uma figura paterna para ela – uma posição que nunca deveria
ser preenchida por um filho. E embora ele tivesse me assustado muitas
vezes quando eu era criança, eu também o via como um homem forte e
inteligente. O Morgan era muito inteligente e expressivo, e havia
desenvolvido muitas habilidades mafiosas com o intuito de sobreviver.
A minha mãe estava sem expressão, de vez em quando ela olhava para
o Morgan como se pedisse aprovação. Ele claramente ia ser o “anfitrião”
desta reunião suspeita na nossa ex-casa. Dava para sentir que ele estava
tramando o tempo todo. O seu olhar era feroz e penetrante. Dava para sentir
que ele estava tenso, mas ele havia aperfeiçoado a arte de disfarçar bem
as suas emoções e as suas reais intenções.
242
Eu mal tinha começado a fazer o terceiro ano do Ensino Fundamental I
quando o Morgan, por dinheiro, se envolveu em um complô para assassinar
alguém. Eu me lembro dele e da minha mãe conversando sobre essa história
e eu tenho uma vaga lembrança de ter visto esboços da sala de audiência
em casa. Porque o Morgan denunciou, ele não foi preso mesmo tendo
recebido dinheiro.
“Vamos lá, são apenas cinco mil dólares, ninguém jamais vai ficar
sabendo”, continuava soando em meus ouvidos. Eu me levantei de um salto
e comecei a andar pela pequena sala de estar, e pela cozinha ainda menor;
ambos parecendo encolher a cada segundo que passava. “Você não
precisa fazer nada, é só me dar o dinheiro”, ele disse novamente. Eu estava
tentando processar o que estava acontecendo ali. Eu nem acho que eu
tinha recebido o meu primeiro adiantamento salarial ainda, e o meu irmão
e a minha mãe já estavam tentando tirar dinheiro de mim?! E para quê?
Para fuder com o marido da minha mãe?! Que porra é essa?
Quão delirante da minha parte acreditar que a minha mãe e o meu irmão
iriam brindar à minha felicidade porque o meu único sonho tinha se tornado
realidade. Em vez disso, eles se uniram para arrancar as minhas entranhas.
Eu fiquei chocada e triste. Não me lembro exatamente do que eu disse, mas
243
eu me lembro de andar em pequenos círculos, com uma sensação de mal-
estar no peito e palpitações nos olhos, e eu balançando a cabeça – “Não,
Não”… algo dentro de mim despertou e eu me afastei deles.
1 João 4, 4
Apesar de eu nunca ter feito uma viagem boa para a casa da minha mãe,
estando só os cacos, o argumento que o meu irmão usou foi convincente.
Ninguém, afirmou ele, ousaria me incomodar na casa da minha mãe. A voz
dele soava doce como mel, e eu estava muito esgotada para ficar em estado
de alerta. Se eu estivesse raciocinando direito, eu saberia que a minha mãe
e o meu irmão seriam as últimas pessoas com quem eu deveria ficar estando
tão vulnerável.
Mesmo que ela gostasse de mim, naquele momento, a minha mãe não
sabia nada sobre mim, e não sabia de nada que eu estava passando no
244
momento. Ela não fazia nenhuma ideia do fardo e da responsabilidade de
ser uma artista que gera tanto dinheiro e energia: Ter tantas pessoas
dependendo de você, contando com você e te pressionando a trabalhar
sem parar. Que você cante e sorria, se vista e dê uma rodadinha, viaje
e componha, e trabalhe o tempo todo! Ela não tinha noção da humilhação que
eu estava passando por causa que o monstro voraz da mídia estava se
alimentando de mim. Ela não conseguia imaginar o quanto eu me sentia
ferida e caçada. A minha mãe nunca reconheceu o meu medo. Na verdade,
era ela quem muitas vezes causava o medo em mim.
Mas agora, eu ia ficar numa casa com eles. Qualquer casa em que a
minha mãe estivesse nunca seria um porto seguro, especialmente se o
Morgan estivesse presente, mas eu estava frágil demais para poder resistir.
Na minha confusão, realmente fazia sentido que eu fosse para o interior
para ficar hospedada na casa que eu tinha comprado para ela, uma casa
que eu conhecia tão bem, que era silenciosa e confortável, e que haveria
espaço de sobra para todos. Totalmente desarmada, eu concordei em ir.
Mas se eu fosse, todos nós deveríamos ir também. Segurança em números,
eu pensei. Então o Morgan, a Tots e eu saímos para um passeio pelo interior
do estado de Nova Iorque. Passando pela ponte e pelo bosque, aqui vamos
nós para a casa da minha mãe.
245
CALAMIDADE E PELO DE CACHORRO
A minha mãe ainda não havia chegado em casa depois de ir para Nova
Iorque com a equipe da gravadora que compareceu no hotel, e eu fiquei
aliviada. Isso significava que eu não correria o risco de ser provocada por
ela e pelo Morgan juntos e, especialmente, que eu não teria que usar a pouca
energia que me restava para tentar explicar a ela porque eu só precisava
dormir. Felizmente, eu também tinha a minha amiga Tots para me proteger.
Ao nos aproximarmos da casa, eu comecei a relaxar um pouco. Eu pensei:
esta é a casa que eu comprei para a minha mãe e para a minha família
morar e encontrar conforto. Agora era eu quem precisava disso mais do
que tudo. Eu havia projetado um quarto de hóspedes para qualquer
pessoa da família que precisasse de um lugar para ficar, que eu sabia que
certamente eu poderia usar agora. Eu já conseguia imaginar o seu
conforto em minha cabeça. Tudo o que eu queria fazer era comer um
pouco, subir, fechar a porta e dormir antes que a minha mãe chegasse em
casa.
246
Eu não sou uma menininha indefesa, eu disse a mim mesma. Fui eu que
comprei essa linda casa, fui eu que fiz o design e que a administrou como
adulta. Eu não era mais uma garotinha morando em um barraco. Eu posso
colocar ordem nisso. Mas Deus, como eu estava cansada! Talvez, eu pensei,
por alguma falha do tempo e espaço, nós realmente estivéssemos de volta ao
barraco. Eu precisava muito dormir e eu estava com tanta fome... A minha
mente voltou a disparar.
Ao tentar abrir a torneira, de repente eu me lembrei. Seis dias. Faz seis dias
que eu não durmo mais de duas horas. As minhas mãos começaram a tremer
enquanto eu tentava iniciar a tarefa que eu havia estabelecido fazer. Tudo que
eu podia ouvir era o meu coração batendo forte dentro do meu peito. O que eu
estou fazendo? Lavando a louça. Certo. Depois do que pareceu uma
eternidade, finalmente eu lavei um prato e coloquei no escorredor. Em
seguida, peguei uma tigela cheia de espuma, mas a senti escorregar pelos
meus dedos e se despedaçar no chão. Eu tentei de novo: eu consegui lavar
um prato e derrubei outro. Agora eu tinha que juntar o prato quebrado e secar
a água do chão. O som da água da torneira aberta, o som de pratos batendo e
o som das pessoas conversando giraram de uma vez. Eu estava tentando
freneticamente limpar tudo e sair de cena antes que a minha mãe chegasse
em casa. Eu me abaixei para juntar o prato do chão, a luz escureceu e os
sons começaram a diminuir. Todo o espaço ao meu redor se estreitou e eu
comecei a cair. Eu apaguei por uma fração de segundos, mas eu consegui me
recuperar antes de desmaiar completamente.
“Mariah! O que você está fazendo? Eles estão procurando por você!”
Uma voz forte e dramática me puxou violentamente para fora da piscina de
silêncio em que eu estava boiando. Perdida e balbuciando, voltei à
consciência para encontrar a minha mãe pairando sobre mim. A minha
própria mãe tinha me acordado do primeiro sono que eu tinha conseguido
ter em quase uma semana! Para piorar as coisas, ela estava me acordando
para me dizer que a gravadora estava procurando por mim para que eu
voltasse ao trabalho – como se, em vez de ser a minha mãe e a pessoa
que cuida de mim, ela fosse uma espécie de agente da máquina que
repetidamente colocava o meu potencial de ganhar dinheiro acima do meu
bem-estar.
Essa foi a gota d’água. Eu realmente perdi o controle. Algo dentro de mim
subiu rapidamente e saiu pela minha garganta; e estava babando de raiva.
“Bem, eu fiz o melhor que eu pude! ‘Eu fiz o melhor que eu pude!’ É tudo
o que você sabe dizer!” Eu esbravejei para ela, imitando os seus tons
exagerados. Ela sempre se justificava, não foi uma ou duas vezes, mas
durante toda a minha vida. Depois de seis dias sendo caçada – seis dias
me escondendo, seis dias de muita ansiedade e de quase morrer; seis dias
sem descanso; seis dias de trauma – eu finalmente consegui dormir na casa
que EU tinha comprado, apenas para ser acordada pela minha própria mãe.
A minha mãe, que já havia descansado tanto naquela casa, casa essa que
eu tinha comprado com o suor do meu trabalho!
248
“Bem, eu fiz o melhor que eu pude! Eu fiz o melhor que eu pude!” Eu a
imitava e zombava com a cara dela sem parar. Eu queria que ela acordasse,
usando as suas próprias palavras contra ela, e que ela entendesse que eu
ter que passar por aquilo era cruel e um absurdo. Eu sabia que eu estava
errada, mas eu tinha feito de tudo para que a situação não tivesse chegado
naquele ponto.
Todo o medo e fúria que eu tinha guardado dentro de mim agora eram
direcionados à minha mãe. Ela estava no centro do ciclo que eu queria mais do
que tudo quebrar. A minha mãe estava finalmente experimentando o sabor da
minha fúria, que era algo que ela não estava preparada para entender ou para
tentar digerir. Ela não conseguia nem mesmo entender a piada – pelo contrário,
ela se sentiu ameaçada e envergonhada por isso. Ao deixar a sua perplexidade
de lado, ela ficou super fria e me lançou um olhar que dizia: Sério? Você ousa
zombar de mim? Você ousa me ameaçar? Você não faz ideia com quem está
se metendo.
249
Quando a minha mãe fica com medo, ela se sente totalmente segura
porque as evidências históricas mostram que os brancos sempre serão
protegidos – e ela costuma ligar para a polícia. Em várias ocasiões, ela
chamou a polícia para o meu irmão, para a minha irmã e até mesmo para os
filhos da minha irmã. A minha mãe chamava a polícia mesmo quando não
corria perigo. Certa vez, eu levei a minha família para passar o natal em
Aspen. Isso aconteceu um ano após eu ter ido embora da minha ex-casa e
tomar a decisão de criar a minha própria tradição de natal; foi nessa época
que eu levei todo mundo da família Carey. Para mim, o natal é sinônimo de
família. Eu aluguei uma casa para que eu pudesse decorar e preparar
comida caseira, e para que nós pudéssemos cantar canções de natal a
plenos pulmões se assim a gente quisesse; para a minha família ficar
hospedada eu aluguei fabulosos quartos de hotel.
“Onde está o Morgan?” ela gritou. “Eu não consigo encontrar o Morgan!”
Vejam bem, o Morgan era um homem adulto de trinta e poucos anos, mas a
minha mãe ainda estava em pânico autoinduzido. “Não consigo encontrar
o Morgan!” Ela ligou para o quarto de hotel dele várias vezes, mas não
houve resposta. Então, o que ela fez? Ela chamou a polícia. A minha mãe
ligou para a polícia de Aspen, Colorado, para encontrar o meu irmão
moreno, que às vezes traficava drogas, que já tinha sido fichado pelo
sistema e que estava bêbado. Os policiais foram ao hotel e foi aquele drama.
Ela pediu para que eles arrombassem a porta do hotel, e o Morgan estava
deitado nu com a bunda para cima, desmaiado em cima da cama. A notícia
se espalhou como um incêndio por toda a cidade, e essa, senhoras e
senhores, foi a última vez que o Morgan e a minha mãe chamadora de
policiais foram convidados para passar o natal comigo em Aspen. Eu
realmente não desejo muita coisa para o natal, mas com certeza policiais
não fazem parte da lista de coisas que eu desejo.
O que foi mais assustador era que eu estava exausta demais para me
lembrar da minha amiga. A energia negativa da minha mãe, do Morgan e dos
policiais – todos ali – bloqueavam a minha luz. Eu precisava ver a Tots. Assim
como eu, ela tinha uma grande fé em Deus também, e se eu não pudesse sentir
a presença de Deus naquele momento, eu pensei que talvez eu pudesse
sentir a presença de Deus através dela. Eu acreditava que ela poderia, de
alguma forma, me manter segura de uma maneira espiritual e fraterna. Eu
busquei o apoio dela, mas ela também ficou com muito medo dos policiais. E
ela tem culpa? É totalmente compreensível. Ela era a única pessoa 100 por
cento negra na casa. Depois de se manter longe de problemas com a polícia
durante anos nos projetos residenciais de Brownsville, como ela poderia
explicar para a sua mãe que ela tinha sido presa em um subúrbio rico e que
estava em alguma prisão no interior de Nova Iorque? Só Deus sabe o que eles
teriam feito com ela lá dentro (isso foi muito antes do #VidasNegrasImportam
e do ativismo através do celular, embora mesmo um movimento assim não
consegue impedir a maior parte da brutalidade). Então, a Tots tentou ao
máximo manter a si mesma e ao Mike fora de vista e longe da confusão.
Contra dois policiais brancos e uma mulher branca, no condado de Upper
251
Westchester, a Tots sabia que ela estava em desvantagem e totalmente
derrotada.
252
“É isso mesmo.” Ele assentiu. “É isso mesmo.”
253
COLAPSO NERVOSO
255
“Parece que você precisa de uma dose de humildade”, foi a resposta
arrogante que ele deu a tudo que eu tinha dito a ele. Ah! Como ele gostou de
vomitar essa frase. Foi uma tomada de poder tão óbvia e lamentável. Eu quase
podia vê-lo bufando, acreditando que ele havia derrotado a diva. Não são só os
tabloides que se deleitam em ver as estrelas caídas no chão. Eu estava
indefesa – fui apunhalada nas costas pelo meu ex-marido e apunhalada no
coração pelo meu irmão e minha mãe. E todos eles me deixaram sangrando
dentro daquela espelunca.
A alegria dela com a reportagem do tabloide não foi nenhuma surpresa para
mim. Embora eu fosse a filha que não quebrava as regras (ou leis, ou as coisas
de dentro de casa), a minha mãe não parecia ter a capacidade de ficar
totalmente feliz por mim à medida que eu crescia e me tornava uma artista
talentosa. Às vezes eu me perguntava se ela não conseguia nem mesmo
tolerar o meu sucesso. Muitas vezes eu sentia que ela tinha ciúmes de mim e
que o seu sorriso parecia forçado, embora eu ainda a incluísse em muitos dos
principais eventos da minha vida.
256
Uma das maiores honras da minha carreira foi receber o Prêmio Congresso.
Eu sonhava em receber Grammys e Oscars por cantar ou atuar, mas ser
homenageada pelo meu país pelos serviços prestados foi um destaque além
dos meus sonhos – e eu sonho alto. Eu recebi o Prêmio Horizon de 1999,
concedido por trabalhos de caridade voltados para a promoção do
desenvolvimento pessoal de jovens, pelo meu trabalho com o Camp Mariah,
através do Fresh Air Fund. Eu nunca me envolvi muito politicamente e, na
época, eu realmente não entendia totalmente o significado do prêmio e do
evento. É uma das duas únicas medalhas legisladas por ato parlamentar (a
outra é a Medalha de Honra). Eu estava sendo homenageada junto com o ex-
secretário de estado Colin Powell.
Bem…
Ela pode ter perdido a noção e pode não se lembrar do que ela fez ou
disse, mas eu tive que processar a tristeza, o constrangimento e a dor da
experiência. Na manhã seguinte, eu fiquei preocupada que a embriaguez dela
tivesse sido divulgada pela imprensa, mas isso não aconteceu. Eu a tinha
protegido. Eu não sei quem a viu, mas, felizmente, o vexame que ela deu no
Congresso não apareceu nos tabloides.
O pedestal que eu tinha erguido para o meu irmão quando eu era criança
há muito tempo havia desmoronado, mas eu continuei tentando construir um
novo pedestal para ele em cima dos escombros. Embora eu não pudesse ver
na época, nós dois claramente estávamos despedaçados. Se eu tivesse sido
perspicaz, ou se alguém da minha folha de pagamento tivesse pensado melhor,
eu teria tido uma equipe de especialistas e profissionais contratados para me
avaliar e me tratar na minha casa. Eu tinha os meios para poder passar alguns
dias em um spa de verdade, onde pelo menos eu pudesse descansar um
pouco, pudesse comer algo saudável, e talvez fizesse alguns tratamentos para
o corpo – todas as coisas que eu poderia ter tido se eu não tivesse ido àquele
“spa” infernal. Eu também queria a oportunidade de arejar a minha cabeça e
me proteger de manchetes mais pesadas (e também da gravadora).
O Morgan recomendou que eu fosse para Los Angeles, onde ele estava
morando na época, argumentando que havia spas de verdade lá (o que é
verdade) e nenhum jornal de Nova Iorque por lá (também verdade). Um spa
em Los Angeles parecia uma boa ideia na época. Eu deixei o Morgan organizar
tudo (não foi uma boa ideia, algo que eu jamais deveria ter feito ou deveria
fazer novamente, mas eu estava desesperada).
259
Estava acontecendo tanta coisa e eu não conseguia entender o tanto que
estavam tentando me prejudicar. O Morgan entrou em contato com um cara
qualquer que ele disse que nos ajudaria. Eu me lembro de dirigir pela rodovia
no que me pareceu uma eternidade. Finalmente paramos em um lugar que não
parecia em nada com um spa, mas sim com uma clínica de desintoxicação. Eu
ainda me sentia exausta, então, embora eu não tivesse gostado, eu não resisti.
O Morgan chegou a dizer: “Vamos; vai ser divertido.” Não foi nada divertido.
Foi um dos momentos mais angustiantes da minha vida – e eu tinha passado
por muitos desses momentos.
Mais uma vez, eu não tinha controle da situação. Eu não podia falar por mim
mesma e, quando eu podia, eu era ignorada e dominada.
55 Ambien: é a mesma coisa que o fármaco zolpidem. É utilizado para o tratamento a curto
prazo da insônia.
260
estava emoldurada por macilentas nuvens cinzas de fumaça. Bolas de fogo
alaranjadas e vermelhas disparavam do topo das reluzentes Torres Gêmeas
prateadas, como meteoros em um céu azul vibrante. Então, os prédios
imponentes e monumentais desmoronaram por dentro. Um de cada vez, eles
caíram em uma câmera terrivelmente lenta. Os efeitos das drogas que eu
estava tomando não eram páreo para o choque que eu estava sentindo.
Naquele instante, eu acordei do meu torpor enquanto eu observava o meu
majestoso horizonte se desintegrar. A minha cidade natal estava em chamas e
desmoronando, e eu estava a milhares de quilômetros de distância, trancada
dentro do desalento de uma clínica de desintoxicação – sob efeitos de remédio,
devastada e sozinha.
Então quer dizer que eu magicamente fui liberada para ir embora, porque
terroristas tinham atacado os Estados Unidos e uma “diva maluca” não era mais
interessante? (Oi?!!) Mas eu não questionei. Parecia que o mundo estava
chegando ao fim para todos nós. E se fosse o fim, eu queria dar o fora dali.
Diante da situação de ficar na clínica, ir embora, e do caos e terror dos
ataques que tinham ocorrido perto da minha casa, eu nem mesmo percebi que
era o dia em que a trilha sonora do Glitter tinha sido agendada para ser
lançada.
261
Tudo ainda estava um pouco confuso, mas eu segui em frente. Eu fiz luzes
no cabelo, depois o cortei e finalmente alisei. Eu usei um top de uma só alça,
igual ao do pôster do Glitter, com uma deslumbrante bandeira americana
estampada na frente em homenagem às vítimas e aos heróis. Combinando o
top com uma calça jeans simples de cintura baixa, eu levantei a cabeça e fui
para o tapete vermelho do Village Theatre em Westwood com um sorriso. Fui
abençoada por ter muitas crianças e jovens na estreia, pois eles eram o
público-alvo. O Glitter não foi feito para telespectadores sérios e apreciadores
de galerias de arte; era um filme imperfeito e divertido para ser assistido com
o acompanhamento dos pais.
Eu estava ansiosa para voltar para Nova Iorque. Foi inspirador como os
nova iorquinos imediatamente começaram a trabalhar para colocar as coisas
em ordem após os ataques, e eu também queria muito colocar a minha vida
em ordem. Eu não tinha permissão de voltar para a minha cobertura ainda,
porque grande parte da Baixa Manhattan ainda estava fechada por razões de
segurança. Enquanto isso, eu fiquei hospedada em um hotel e não quis contato
com outras pessoas – nem mesmo com a minha família. Eu estava acordando
do pesadelo que eles criaram e eu precisava ajudar a mim mesma sozinha; eu
queria desesperadamente voltar a ficar bem.
262
não eram apenas perspicazes, mas também reconfortantes – ele me passava
a vibe de um Buda branco moderno. Sob os seus cuidados profissionais, eu fui
capaz de começar a desfazer a provação desmoralizante e desumana pela qual
eu acabara de passar. Perder o meu poder e ser internada em clínicas
assustadoras e inadequadas pela minha mãe e pelo meu irmão, enquanto a
imprensa destruía a minha reputação, foi quase o fim para mim.
O meu terapeuta deu nome à doença física que eu vinha passando por
tantos anos – todo o desconforto de ser humilhada por crianças e professores,
todas as alergias que explodiram por toda parte da minha pele, todas as fortes
dores de estresse nas costas e nos ombros causadas pelo Tommy, toda
tontura e pavor que o meu irmão me causava, todo o sofrimento psicológico
que eu suportei e que acabou com o meu corpo tinham um nome –
somatização. Ter um nome profissional altamente respeitado validou que o
que eu estava passando fisicamente era real. De repente, tudo pareceu muito
real.
A minha carreira era tudo para mim e, por causa da minha mãe, do meu
irmão e do Tommy, eu quase a perdi. Honestamente, parecia que eles quase
tinham me matado. Foi por um triz, mas eles não mataram a mim ou ao meu
espírito. Eles não destruíram a minha mente ou a minha alma de forma
permanente. Mas só Deus sabe como eles tentaram.
Não há nada mais poderoso que sobreviver a um inferno astral e dar a volta
por cima iluminada pela luz da restauração. O trajeto para eu voltar a ser eu
mesma e retornar para Deus não foi nada fácil, mas eu estava de pé e seguindo
em frente. Ninguém, eu decidi, jamais iria me impedir ou iria tomar o controle
da minha vida novamente. Jamais.
263
coincidência que a minha mãe e o meu irmão estivessem de complô com a
gravadora: em vez de me proteger e de priorizar o meu bem-estar, eles
passaram simplesmente a alegar que eu não estava bem da cabeça e usando
desse argumento como desculpa para me internar – logo após eu ter assinado
o contrato mais caro da história que uma artista solo já assinou com uma
gravadora. Eu aceitava ser a galinha dos ovos de ouro para as gravadoras;
afinal, eu era “a franquia”. É a alma do negócio – pode ser sujo, mas eu não
me iludia achando que o mundo da música não era, antes de mais nada, um
negócio cruel. Mas embora eu não tivesse fechado um acordo com a minha
mãe ou com os meus irmãos, eles ficaram felizes de me levar para o
matadouro, assim como as gravadoras e a mídia.
“Por favor, mude o seu elenco de personagens.” Esse foi o pedido simples
e profundo que o meu terapeuta acabou fazendo. Embora eu não pudesse
mudar os personagens da minha mãe, do meu irmão e da minha irmã, eu tinha
o poder de mudar como eu os definiria em minha vida. Portanto, para ter
saúde mental e paz de espírito, o meu terapeuta me incentivou a literalmente
renomear e reestruturar a minha família. A minha mãe se tornou a “Pat” para
264
mim, o Morgan, o “meu ex-irmão”, e a Alison, a “minha ex-irmã”. Eu tive que
parar de esperar que um dia a Pat se tornasse milagrosamente a mãe; o
Morgan, o irmão; e a Alison, a irmã, que eu tanto fantasiava. Eu tive que parar
de me colocar à disposição para não acabar sendo magoada por eles de novo.
Tem dado certo. Eu não tenho dúvidas de que é emocionalmente e
fisicamente mais seguro para mim se eu não tiver nenhum tipo de contato
com o meu ex-irmão e a minha ex-irmã. A situação com a Pat, por outro lado,
é mais complicada. Eu reservei um espaço no meu coração e na minha vida
para ela – mas com limites. Criar limites com a mulher que me deu à luz não é
fácil; é um projeto em andamento.
O Bispo Keaton costumava ser um velhaco; ele vivia uma vida muito
diferente antes de se converter. Ele já havia conquistado o respeito do bairro,
em uma época que não era incomum desviar de balas em plena luz do dia,
então ele era protegido e as pessoas não mexiam com ele. Seguranças foram
fornecidos pela igreja para mim, e a congregação respeitava a minha
privacidade – o Bispo cuidava disso. Eu encontrei um senso de comunidade
na denominação e uma família no meu Bispo, que me tratou como uma filha.
Ele costumava vir falar comigo, mesmo quando estava passando por
problemas de saúde antes de falecer.
265
Ter uma família em Deus trouxe luz para a minha vida novamente, algo
que a Pat não conseguia entender. Ela me deixou uma mensagem maliciosa
no meu celular Blackberry: “O que está acontecendo com você? Por que
agora você vive na igreja orando?” Ninguém da minha família biológica
entendia o sentido de eu me preocupar tanto com Deus, mas eu tinha que
fazer isso. Voltar para Deus foi a única maneira que eu encontrei de
sobreviver ao inferno que a minha vida havia se tornado. Eu acredito que o
meu ex-irmão e a minha ex-irmã tenham vivido um inferno em suas vidas
também; talvez eles ainda estejam presos nessa vida. Eles escolheram as
drogas, as mentiras e os tramas como modo de sobrevivência, mas isso só
pareceu afundá-los mais ainda na lama e torná-los mais ressentidos comigo.
E eu ainda oro por eles.
56 Eu sou real: na música “I’m Real”, a Jennifer Lopez diz ao seu namorado que mesmo
ela sendo uma estrela glamorosa, ela continua sendo uma garota normal e autêntica, então
ele não precisa tentar impressioná-la. A Mariah cita a música da Jennifer Lopez como uma
alfinetada para a própria para dizer que ela é que é autêntica. Ela não precisou sabotar
ninguém para que “Loverboy” se tornasse o single mais vendido de 2001.
266
4° PARTE
EMANCIPAÇÃO
A MINHA PRIMA VINNY
Eu me sentia nas nuvens por ter sido contratada pela gravadora Virgin,
porque eu estava desesperada para sair da Sony. A Virgin não era tão grande,
ela mais parecia uma mini gravadora, mas eu sabia o quanto eles tinham
cuidado da carreira do Lenny Kravitz e da Janet Jackson. Eles me ofereceram
um bom contrato, em parte, por não serem tão espertos e influentes quanto às
outras gravadoras; eles não sabiam todos os macetes que a Sony e as outras
grandes gravadoras sabiam. Eles eram ecléticos e me viam como uma estrela
grande e brilhante. Inicialmente, eu escolhi a Virgin em vez de uma gravadora
maior e mais impiedosa por causa do valor do contrato que eles tinham me
oferecido, mas quando eles quiseram “ajustar” o contrato, usando apenas duas
pessoas recém-contratadas para intermediar, eu não tinha motivos para ficar.
Eles ofereceram um contrato revisado em que me pagariam muito menos e que
teriam mais controle artístico sobre mim. Eu recusei.
Eu adorava cantar músicas ao vivo. Fico feliz por ter conseguido vivenciar
isso, pois eu precisava de um momento para mudar os ares. O Jermaine e eu
gravamos “The One” juntos. Eu queria que “The One” fosse o single principal,
mas o Doug escolheu “Through the Rain”. O Doug achou que daria certo
porque era uma típica balada com uma espécie de história triste, o tipo de
momento Oprah Winfrey triunfante de que eu precisava depois do fiasco do
Glitter. Era uma música boa, mas não funcionou tão bem quanto o esperado.
A gravadora investiu muito no gênero “adulto contemporâneo”, o que eu
conseguia fazer dormindo. Mas, pessoalmente, eu sempre preferi trabalhar
com o gênero “urbano contemporâneo”, seja lá o que isso queira dizer.
Eu voltei para Capri, para o lindo estúdio localizado no topo de uma colina.
Foi tão bom: sem carros, sem poluição; o ar e a energia de lá são revigorantes.
Eu não tinha filhos na época, mas as crianças podiam brincar livremente por lá
porque era muito seguro. Só dá para chegar lá de balsa, por isso era o
esconderijo perfeito para eu me esconder e gravar. Apesar de ser um local bem
escondido, ainda assim eu recebia visitas. O Lyor levou o Cam’ron até o meu
esconderijo para gravar “Boy (I Need You)”; ele passou um dia inteiro lá comigo.
O Cam levou um pouco de maconha roxa escondida e a fumou num cachimbo
(eu não trago diretamente – por causa das cordas vocais, dahling). Ficamos
totalmente de boa e assistimos ao filme History of the World Part I (História do
57 Ponte do arco-íris (rainbow bridge): é uma ponte mística que supostamente conecta o
céu e a Terra – e, mais precisamente, um local onde donos de animais de estimação em luto se
reúnem para sempre com seus amigos peludos que partiram. Aqui, o termo indica que a Mariah,
ao atravessar a ponte, passou por maus bocados (na época do CD Rainbow), mas ao chegar no
fim da ponte e aguardar pacientemente, obteve a tão desejada liberdade (que foi sair da Sony
justamente após o CD Rainbow.)
269
Mundo: Parte I) do Mel Brooks – um dos meus filmes favoritos de todos os
tempos – e rimos pra caramba.
– “Subtle Invitation”
270
O Charmbracelet foi um dos CDs favoritos dos fãs. Os Lambs sempre
quiseram fazer “Justiça para o Charmbracelet,” e foi realmente um CD muito
bom. O CD contou com a presença do Jay-Z e do Freeway na música “You Got
Me”. Tem também o Cam’ron cantando na música “Boy”, o Westside
Connection cantando na música “Irresistible” e o Joe e a Kelly Price cantando
comigo no remix de “Through the Rain”. Gravar esse CD foi como virar uma
página e começar um novo capítulo na minha vida. A Universal me apoiou e
ficou ao meu lado; não parecia a zona de batalha hostil que era a Sony durante
o reinado do Tommy. Comercialmente, o Charmbracelet não fez muito sucesso,
mas o Doug não desistiu de mim – e graças a Deus, porque a emancipação
estava às portas.
O que ocorreu por volta de 2003, depois que o Charmbracelet foi lançado.
271
para tons de roxo e rosa, como um anel de humor58. Toda a aura da sala
estava roxa; afinal, o Dipset (conhecido formalmente como o super grupo de
rap os Diplomatas) adora tudo que é roxo.
Pareceu uma boa ideia ir para a periferia na hora já que a gente ainda
estava de porre. Como o Cam’ron é do Harlem, a gente concordou que ele
sabia quais locais dava para curtir até tarde, tarde da noite (ops, até o
amanhecer.) Eu e o Cam entramos no Lamborghini dele, que era roxo, é claro.
Todos os outros, trocando as pernas, se dirigiram aos seus próprios carros de
luxo. O meu guarda-costas, ligeiramente embriagado também, nos seguia em
um grande SUV preto. Lá estávamos nós, um pequeno comboio de rappers e
donzelas em carros extremamente caros, indo em direção à zona leste através
da sonolenta rua do Canal Street, que logo ficaria lotada de ambulantes
chineses e senegalenses montando ao ar livre as suas barracas de bolsas e
relógios de luxo falsificados. Porém, um pouco antes das 6 horas da manhã,
além de um varredor de rua ou de um caminhão de lixo casual, éramos apenas
nós, jovens fabulosos dirigindo pela larga rua em alta velocidade e quebrando
o silêncio da parte perigosa da cidade.
Naquela época – e até hoje, com certeza – era fatal ser um jovem negro e
dirigir um carro esporte de luxo em alta velocidade nas rodovias, especialmente
no lado leste de Manhattan. Entretanto, bem antes, a gente tinha bebido todas
e fumado uns becks em uma noite de futilidades. Agora curtindo o frescor da
manhã, estávamos nos sentindo jovens, sexy e livres; o medo de ser presos
(ou de morrer, por falar nisso) não existia. Estávamos atrás de diversão e
liberdade, e acabamos encontrando, mesmo que apenas por alguns
quilômetros em um trecho da rodovia da cidade de Nova Iorque.
58 Anel de humor: é um tipo de anel barato feito com cristal líquido que muda de cor
conforme a temperatura do corpo da pessoa.
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instantaneamente se tornou uma pequena partícula no espelho retrovisor.
Rindo o tempo todo, parecia que a gente tinha acabado de vivenciar a versão
hip-hop barra-pesada do filme The little Rascals (PT-BR: os batutinhas), eu no
papel da Darla, é claro. Muitas vezes eu sentia como se eu tivesse que me
esforçar para me divertir, para manter viva a criança dentro de mim. Mas eu me
lembrei daquela promessa que uma vez eu fiz a mim mesma, de que eu nunca
esqueceria de como é ser criança. Eu nunca deixaria a garotinha dentro de mim
morrer.
Não era mais uma foto em uma moldura – eu estava fisicamente lá. Eu pude
tocar nos tijolos que foram uma vez da minha família, no lugar onde moravam,
oravam, cantavam, choravam, louvavam, casavam, morriam e recebiam o
Espírito Santo: essa era a igreja que eles congregavam.
As muitas histórias que sei sobre os familiares dos meus pais são através
de momentos congelados em molduras douradas. As fotos da minha família
são sagradas e me fazem colocar os pés no chão: me fazem lembrar das
minhas origens e das pessoas que entraram e passaram pela minha vida.
Essas fotos são mantidas em um pequeno cômodo particular, perto do meu
camarim hollywoodiano de mármore espelhado. Por trás das intermináveis
fileiras de saltos altos, dos mini vestidos, dos vestidos de baile que vão até o
chão, das bugigangas brilhantes, dos broches e bolsas, por trás de toda a
opulência que o closet possui, há uma porta secreta que leva ao meu pequeno
santuário – a minha igreja pessoal com a história da minha família. Cada foto é
uma história, prova de que eu estou conectada a todas essas outras pessoas,
todas diferentes e lindamente complicadas. Elas são cuidadosamente e
estrategicamente guardadas; eu quero reunir todos os membros da minha
família e mantê-los perto de mim por meio de fotos. Eu geralmente entro nesse
cômodo sozinha, para olhar as fotos e ficar com elas. Nesse cômodo, eu
analiso a minha família linda, desestruturada e fodida; guardando os seus
rostos em meu coração.
A foto que me veio à memória naquele dia na rua 131 foi a da minha tia-
avó, a pastora Nana Reese. Parece que foi tirada na década de 50. Ela era
pequena e elegante, belamente encostada na desgastada parede de tijolos:
273
com uma pele marrom brilhante, olhos fundos, cabelo preto bem penteado e
sem joias; ela só estava com um buquê de flores perto do seu ombro. Ela
estava usando uma túnica branca esvoaçante de pastora, meias brancas
transparentes e sapatos de bico quadrado estilo senhora evangélica. Ela
segurava uma grande bolsa-carteira – não uma bolsa, vejam bem, uma bolsa-
carteira – com um pano enrolado na alça, pois caso o Espírito Santo se
manifestasse e ficasse quente durante o culto, ela teria como enxugar a testa
suada. Encostada na parede ao lado dos pés dela, com letras maiúsculas e
minúsculas não tão bonitas escritas à mão todas do mesmo tamanho, tem uma
placa com as seguintes palavras escritas com giz branco: ESCOLA DA BÍBLIA,
PREGAÇÃO, Y.P.H.A e CULTO À NOITE, com os horários discriminados. A
Nana Reese mal tinha um metro e meio de altura; a sua cabeça nem chegava
à moldura do peitoril da janela. No entanto, ela, de túnica branca, parecia uma
gigante na foto e em sua comunidade, pronta para pregar o Evangelho à
congregação.
A minha prima Lavinia, vulgo Vinny, foi criada pela “mãinha” – que era como
ela chamava a Nana Reese. Foi através da minha prima Vinny que eu soube
grande parte das histórias daquela época sobre a família do meu pai. Ambas
as irmãs, a Nana Reese e a Addie, tiveram um filho cada; a Addie, que é a
minha avó e tia da Vinny, teve um filho chamado Roy, que é o meu pai, o único
que sobreviveu. Ninguém nunca falou do filho da Nana Reese, mas a história,
de acordo com a minha prima Vinny, é que ele morreu bem cedo porque ele
era “uma criança tísica”. Que diagnóstico mais tosco, né? Chamar uma criança
que morreu de tuberculose de tísica.
“A mãinha disse que ele era desobediente, que não colocava o casaco, aí
ele acabou morrendo”, a Vinny me disse. A Nana Reese era uma cristã
fundamentalista. Quando criança, a Vinny morava em um dos cômodos acima
da igreja. A Nana Reese e o seu marido, o bom reverendo Roscoe Reese, eram
donos tanto da “casa-porão” que abrigava a igreja quanto da casa vizinha,
enquanto a minha avó Addie era dona de outras duas casas descendo o
quarteirão. O culto acontecia no andar térreo e era no estilo reteté pentecostal
(onde o fiel fica berrando e rolando no chão), mas, segundo a Vinny, a
verdadeira cura acontecia no porão da igreja, no porão da “casa-porão”. Ela
lembra, quando criança, de testemunhar a cura de uma mulher no culto um dia:
“A perna dela estava rompida e a carne estava exposta”, a Vinny afirma. “A
mãinha colocou teias de aranha em cima da perna daquela senhora e orou por
ela, e quando a senhora voltou a si, a sua perna estava curada. Absolutamente
perfeita.” À medida que eu crescia, eu ouvia falar que muitos milagres
aconteceram naquele porão. A Nana Reese tinha um dom dado por Deus.
274
A mãe do meu pai, a Addie, e a Nana Reese eram próximas como irmãs,
mas bem diferentes no temperamento. Enquanto a Nana era doce, a Addie
tinha uma personalidade obstinada e determinada. A minha vó e a minha mãe
não iam com a cara uma da outra, para não dizer pior. Eu me lembro de uma
vez em que a minha mãe a expulsou da nossa casa. Por causa dos conflitos
deles, a minha mãe me manteve longe dessa parte da família do meu pai, e as
coisas que sei sobre eles se baseiam principalmente em histórias exageradas
e contraditórias. Eu me apeguei firmemente às cenas de violência que vi e às
fotos preciosas que a minha avó deixou para o seu filho, o Roy. Eu fiquei com
as fotos quando o meu pai faleceu. Eu as amo e protejo.
Essa digna e decadente casa de tijolos diante de mim foi o local onde a
minha mãe e o meu pai se casaram. O casamento deles foi outro drama, outra
história que me contaram em pedaços que não se encaixavam. A maioria da
minha família pode pelo menos concordar em uma coisa: a minha mãe
desmaiou durante a cerimônia. Exatamente porque ela desmaiou ainda é uma
polêmica. A minha prima Vinny, embora fosse uma criança na época, se lembra
claramente de como a minha mãe estava linda naquele dia. Ela descreve o
vestido dela como um “lindo azul brilhante”, talvez de cetim, e foi usando esse
vestido azul de noiva que a minha mãe desabou no chão. Para reanimá-la, o
meu pai teve que lhe dar um tapa no rosto. Uma vez me disseram que a minha
mãe desmaiou porque viu um grande rato correndo pelo chão durante a
cerimônia, mas depois eu fiquei sabendo que ela estava grávida na época. O
que quer que tenha acontecido naquela igreja / porão do Harlem, o drama que
a minha mãe causou em seu próprio casamento caiu como uma luva para a
cantora de ópera dramática que era.
59 As leis de Jim Crow: foram leis estaduais e locais que impunham a segregação racial no
sul dos Estados Unidos. As leis discriminatórias negavam direitos aos negros, submetiam-nos à
humilhação pública e perpetuavam a sua marginalização econômica e educacional. Qualquer
um que desafiasse a ordem social enfrentava menosprezo, assédio e assassinato.
276
O ELVIS LATINO
Certa vez, eu levei alguns amigos íntimos, escolhidos a dedo, para passar
o natal comigo em Aspen. Sem que eu soubesse, o corretor de imóveis que
cuidou do aluguel da minha casa em Aspen se reuniu com um colega de
trabalho para marcar um encontro às cegas para mim. Era um esquema
simples: eles disseram ao homem misterioso que eu realmente estava a fim de
conhecê-lo, e eles me disseram que o homem misterioso estava a fim de me
conhecer também. Esse homem misterioso era o mega star internacional Luis
Miguel, o “Elvis latino”.
277
O Luis era provocante e extravagante. Nós dois somos arianos e a vibe
entre nós era intensa. Ele era incrivelmente romântico e espontâneo – a gente
até embarcava em aventuras: dávamos uma folga aos nossos seguranças e
íamos dar uma volta, ou pegávamos a estrada e íamos para a Cidade do
México. Ele tinha uma casa fenomenal em uma praia intocada em Acapulco,
com flamingos rosa de verdade! A mansão dele era majestosa, com dramáticas
portas de madeira entalhada, varandas e sacadas em todos os lugares. Uma
banda completa de mariachi costumava tocar para nós enquanto a gente
jantava ao ar livre em uma noite quente mexicana. Uma das coisas que eu mais
gostava de fazer era pular da varanda do quarto principal com o meu amado
cachorro, o Jack, na piscina cintilante abaixo. (Eu e o Jack éramos os únicos
que não falavam espanhol, o que nem sempre era fácil.) Os funcionários do
Luis eram muito dedicados; ele era como um deus para eles. O Luis era amado
e querido por todo o seu povo.
Uma vez eu zoei com a cara dele por não ter uma banheira de
hidromassagem (a minha cobertura possui uma banheira de hidromassagem
com aquecimento / podemos até assistir TV enquanto relaxamos na espuma).
Então, o que ele fez? Ele me surpreendeu no Natal com uma banheira de
hidromassagem imensa, estilo planetário, onde dava para nadar! Fizemos
uma festa de ano novo fabulosa lá, para a entrada do ano 2000, com a gruta
da banheira de hidromassagem como atração principal. O Luis não poupava
despesas em suas demonstrações de carinho. Uma vez, ele encheu um jatinho
particular inteiro com rosas vermelhas para me surpreender. Os seus
dramáticos gestos românticos impressionavam a eterna garotinha de doze
anos que havia em mim, porque os seus gestos eram realmente algo que só
se via nos filmes.
Era tudo grandioso e empolgante, mas estava longe de ser perfeito. Por um
lado, o nosso relacionamento foi caracterizado por choques culturais. Apesar
de sermos jovens e bem-sucedidos, ele era muito mais paradão do que eu. Os
nossos amigos eram totalmente diferentes. Os dele eram mais conservadores,
sérios, certinhos e monótonos, enquanto ao meu redor estavam a Brat, a Tots,
o Trey e muitos outros com a mesma vibe baladeira. O que era mais difícil entre
nós eram as diferenças culturais quando se tratava de raça. Ele insistia em
dizer que não me via como negra. A gente sempre discutia por causa disso e
eu tentava explicar: “Não, quando se tem um pai negro, isso faz de você uma
pessoa negra, então você vai ter que aceitar isso em mim.” Mas na cabeça
dele, eu não era negra porque a minha cor de pele não era escura. Para ele,
era algo que se tinha que ver externamente. Era muito difícil explicar que,
para os americanos, é muito mais complicado. Eu acho que para ele, quanto
mais fácil, melhor.
278
Embora nós tenhamos sido um casal intenso, é sempre difícil viver e amar
sob os holofotes. Ele pode ter sido o Elvis do mundo de língua espanhola, mas
quando ele vinha para os Estados Unidos, sem ofensa, mas no geral eu era a
“estrela do show”. Ele passou por muita coisa e perdeu a mãe muito jovem.
Pelo que me disseram, o pai dele era muito difícil e controlador. Eu tentei dar o
meu melhor para apoiá-lo emocionalmente, mas eu estava passando pelas
minhas próprias dificuldades e eu cheguei ao ponto de não conseguir mais lidar
com a situação. Nós não estávamos mais ajudando um ao outro a se curar. No
seu melhor, o Luis era generoso, espontâneo e apaixonado, mas no seu pior,
ele era instável e ansioso, melancólico e mimimizento.
Depois de três anos, eu sabia que era hora de nos separarmos. Nós
passamos por bons momentos e eu ainda tenho boas recordações, mas
resumindo: ele não era o tipo de cara para mim.
Como escreveu o grande Cole Porter: “Foi muito divertido / mas são coisas
que acontecem”.
– “Crybaby”
279
A MINHA EMANCIPAÇÃO
280
imaginar o que a Natalie Cole ou mesmo a Aretha teriam feito naquela época.
Pelo fato do Big Jim ser um músico excepcional, ele e eu compusemos “Circles”
sem muita dificuldade. Depois de gravar, enquanto ele se aprontava para ir
embora – e do mesmo modo que a inspiração para compor “Hero” tinha vindo
a mim enquanto eu me dirigia ao banheiro – do nada eu ouvi uma melodia na
minha cabeça ao subir as escadas.
Depois, eu levei o Bispo Keaton ao estúdio para abençoar “Fly Like a Bird”
com uma leitura do Salmo 30, 5: “O choro pode durar uma noite, mas a alegria
vem pela manhã.” Essas palavras foram um reflexo de tudo o que eu havia
passado. Essa passagem da Bíblia foi realmente muito importante para mim. A
música fala sobre como o mundo é confuso – “Às vezes, esta vida pode ser tão
fria / Eu rezo para que Tu venhas e me leve para casa.” A música retrata as
nossas dificuldades, mas também de como devemos ser resilientes: não
conseguimos lidar com esta vida sozinhos, mas o Senhor vai nos ajudar. Fico
muito feliz por ter homenageado o Bispo Keaton para sempre com uma das
minhas mais importantes canções.
Dou muito crédito ao L.A. Reid, que então se tornou um amigo, pelo sucesso
do CD The Emancipation of Mimi: ele e a gravadora Universal ainda
acreditavam em mim. O meu CD Butterfly foi um despertar emocional, já o
TEOM foi uma evolução espiritual; eu depositei grande parte do meu coração
e dos meus sentimentos nesse CD – e são tantos bons momentos – por
exemplo: nem todo mundo sabe o quanto eu realmente amo “Your Girl” (deveria
ter sido um single). É inocente, mas ao mesmo tempo um pouco ousado. Eu
ouvi a batida do DJ Scram Jones pela primeira vez quando eu estava no estúdio
do rapper N.O.R.E. bebendo algo em um copo de isopor (eu sei que é ruim
para o nosso ecossistema, mas era só o que eles tinham). A vibe da música
“Your Girl” passa um pouco mais de autoconfiança e muito mais emancipação:
“I’m gonna make you want to / Get with me tonight” (Vou fazer você querer /
Ficar comigo hoje à noite.) Já em “I Wish You Knew”, há uma pequena parte
com a minha voz falada no meio da música, que foi inspirada na Sra. Diana
Ross. Existem muitos detalhes íntimos, especiais, quase impalpáveis que
brotaram do meu âmago no TEOM; coisas bem específicas para mim. Dá para
realmente sentir as minhas emoções de forma genuína: não há baladas
dramáticas, super produzidas com o intuito de agradar executivos de
gravadoras. O CD foi simples e super autêntico, sem floreios desnecessários.
Acho que é por isso que tantas pessoas se identificaram com ele.
Uma noite, eu decidi desopilar um pouco e fui até o ônibus dos dançarinos,
que era de longe o mais movimentado da nossa frota. Estava rolando uma festa
super animada e cheia de sarração. Eu entrei de fininho na muvuca. Parecia
283
que eu estava no colégio cabulando aula com amigos e não em minha própria
turnê com ingressos esgotados. Era simples e festivo.
Estávamos todos um pouco alegres por causa da bebida para perceber que
aquele pequeno restaurante monótono havia sido alegrado com o nosso
encanto e sabor. Nós nos esparramamos em várias mesas e nos balcões. O
nome do dançarino era Tanaka. Nós já tínhamos começado a trocar olhares
um com o outro antes mesmo de descer do ônibus. Nos sentamos num balcão
um na frente do outro como alunos do oitavo ano. Tocamos suavemente as
pernas um do outro sob a mesa, sem sermos vistos, enquanto o resto da festa
continuava com força total.
285
O PAI E O PÔR DO SOL
Ao longo dos anos, o meu pai continuou levando uma vida pacata e
disciplinada – trabalhando de forma honrada como engenheiro – e ainda se
manteve em forma: caminhando, escalando montanhas, comendo bem e
evitando doces. Ele não fumava e bebeu muito pouco (antes de eu nascer, ele
largou todos os seus vícios em um dia, e ponto final). O Alfred Roy não era um
homem de luxos. Por isso, quando eu recebi a notícia de que ele havia
adoecido enquanto eu estava gravando o CD Charmbracelet em Capri, eu
fiquei chocada. O meu pai forte e invencível? Foi como um golpe na cabeça,
rápido, certeiro e desorientador. O meu pai ligou e sugeriu que eu fosse. Não
para salvá-lo ou financiar os custos com hospital – ele não precisava e nem me
pediu isso; ele sempre ganhou e economizou o seu próprio dinheiro. O que ele
precisava era da minha presença e de esclarecer certas coisas.
– “Bye Bye”
Após vários diagnósticos errados, concluiu-se que ele tinha câncer de ducto
biliar – uma forma rara, sem medidas de prevenção ou tratamentos de cura
conhecidos. Esse câncer cresce nos tubos que transportam o fluido digestivo e
conectam o fígado à vesícula biliar. Era mais do que simbólico para mim: um
homem saudável desenvolve um câncer que envenena a parte do seu corpo
que absorve e elimina os resíduos. O meu pai guardou muita coisa dentro de
si e teve pouca oportunidade de liberar toda a amargura que ele havia
vivenciado. Agora que ele estava num entra e sai do hospital, do mesmo modo
eu ia e voltava das gravações do meu CD em Capri, até ficar de forma definitiva
ao lado da cama do meu pai frágil e enfraquecido em Nova Iorque.
286
Estranho sentir aquele homem orgulhoso e forte
Segurar firmemente na minha mão
Difícil de ver a sua vida interior
Murchar com o passar dos dias
Tentando preservar cada palavra
Ele murmurou no meu ouvido
Observando parte da minha vida desaparecer
“Quando eu era pequena”, eu expliquei, “era muito difícil para mim, porque
os brancos me faziam sentir vergonha por ser o que eu era. O ódio que eu
sentia por parte de alguns deles era muito real. Eu não tinha os meios e nem a
habilidade para poder lidar com essas situações. E eu jamais quero que você
se sinta culpado por isso.”
Isso era difícil para uma menina, e eu me sentia tão sozinha – mas nunca
foi culpa dele. Nós dois precisávamos de coisas que não sabíamos dar. Eu
acredito que, no fundo, o meu pai entendeu porque eu tive que mergulhar na
minha música e romper com a minha família – era a minha sobrevivência, a
minha identidade, a minha razão de existir. Eu pedi desculpas por não ter ido
procurá-lo antes. “Eu não sabia o que fazer”, eu confessei, “eu não sabia a
quem ouvir. Eu não sabia se você se importava.”
288
Perceber que o cuidado que o meu pai tinha com a sua casa havia
diminuído tornou a perspectiva do seu definhamento ainda mais real para mim.
Enquanto examinávamos as coisas na casa dele, eu encontrei uma pilha de
recortes de jornais e revistas. Eu os examinei e percebi que cada um deles era
sobre mim – todas as histórias do meu sucesso e realizações. Ele tinha escrito
pequenas notas nas margens, sublinhado e circulado diferentes partes que ele
gostou. Eu não fazia ideia de que ele estava me acompanhando de longe. Eu
não fazia ideia de que ele se importava com a minha carreira. Acima de tudo,
eu não fazia ideia de que ele tinha orgulho de mim. Os meus olhos se encheram
de lágrimas. Aquele monte de pedaços de papel era mais valioso do que
todos os meus prêmios e os do Quincy Jones juntos.
O seu último desejo era que a minha ex-irmã Alison e eu voltássemos a nos
falar. Ele não sabia que a nossa relação era como ter ido ao quinto dos infernos;
ele não sabia que agora havia somente cinzas onde antes existia um laço frágil
entre irmãs. Mesmo assim, por pouco tempo, pudemos ficar num mesmo
cômodo por causa dele. Talvez isso tenha sido possível devido à distração da
muvuca constante de médicos e outros membros da família. Por respeito ao
meu pai, as pessoas mantiveram o seu drama escondido. A única vez que as
coisas quase saíram de controle foi quando o meu ex-irmão Morgan foi ao
hospital. O nosso pai se recusou a vê-lo; a dor que eles desencadearam e
causaram um ao outro nesta vida era profunda demais para ser desfeita,
mesmo no final. O nosso pai tinha ficado fraco e visivelmente menor naquele
momento, e como o problema entre eles era principalmente por causa de
poder, força e masculinidade, eu acredito que o nosso pai não queria ser visto
pelo Morgan em tal estado de vulnerabilidade. Pai e filho não conseguiam
encontrar paz neste plano, mas talvez Deus-Pai pudesse fazer isso por eles,
um dia.
Agora você está brilhando como um girassol no céu, bem alto
– “Sunflowers for Alfred Roy”
289
Antes de falecer, o meu pai não conseguia mais falar, mas ele ainda tentava
controlar tudo. Para pedir os seus analgésicos, ele erguia um dedo, sinalizando
que ele só queria tomar um miligrama. Mesmo no leito de morte, ele tinha medo
de se viciar, medo de perder o controle.
Ele tinha muitos conflitos com religião e fé. Sentado ao lado dele na beira
da cama, eu comecei a ler a Bíblia para ele, que ele deixou claro que não
gostava. Apesar da sua infância ter sido dentro da igreja, a sua vida era cheia
das contradições dos ensinamentos da Igreja Pentecostal e do Catolicismo.
Ele não fez nenhum pedido de como deveria ser a cerimônia do seu funeral,
mas porque ele havia frequentado a denominação Unitarista-Universalista por
tantos anos, e por respeito por ele ter se sentido aceito nessa denominação
nada convencional, o funeral foi realizado lá. No entanto, eu queria que uma
experiência espiritual ocorresse no funeral. Ele se sentiu muitas vezes
desvalorizado em sua vida por ser o único homem negro em muitos lugares,
então eu decidi que ele não seria o único negro presente quando nos
despedíssemos dele de vez. Com o intuito de ele ter uma despedida espiritual,
eu transformei a igreja em um glorioso jardim de girassóis (que mais tarde eu
recriei no clipe “Through the Rain”). Além disso, a minha amiga, a talentosa
Melonie Daniels, a Tots e eu unimos forças para levar um coral gospel
magnífico ao funeral. Eu queria que o espírito do meu pai subisse ao céu ao
som excelso que só um coral gospel consegue cantar. Em suas vestes
majestosas, o grande coral marchava e se movia ritmadamente pelo corredor,
enchendo o santuário. Eu fechei os meus olhos e a Tots começou a cantar:
Se alguém te perguntar
Para onde eu vou
Para onde eu vou em breve
290
para sentir todos os espíritos sendo elevados. Eu consegui sentir o espírito do
meu pai sendo libertado.
Como uma homenagem a ele, o carro foi restaurado à sua glória original –
o que exigiu atenção meticulosa aos detalhes, muita paciência e dinheiro. As
peças foram transportadas da Alemanha e finalmente retornou à sua cintilante
cor vermelha maçã do amor, com um acabamento impecável. Demorou anos,
mas finalmente está em perfeitas condições, como o meu pai sempre sonhou
que um dia ficaria. Eu o deixo guardado principalmente na garagem, mas de
vez em quando ele dá uma saidinha de lá. Em uma das minhas fotos favoritas
do Rocky, ele está sentado no banco do motorista do Porsche do meu pai. No
carro esportivo de dois lugares, o meu filho com os seus cachos macios parece
um mini motorista, usando grandes óculos escuros de aviador e mostrando
muita confiança. Ele não sabe das estradas difíceis que eu e o avô, que ele
nunca conheceu, tivemos que percorrer para colocá-lo no couro macio e
confortável daquele luxuoso banco de motorista – e não é para ele saber
mesmo. Pelo menos não agora. Ele ainda é um garotinho. Hoje, eu tenho meios
melhores para guiá-lo e protegê-lo do que os que eu tive no passado. Quando
eu olho para essa foto hoje, eu não posso deixar de pensar que, embora o
Rocky nunca tenha conhecido o seu avô, a expressão do rosto dele transmite
o mesmo espírito eterno do Alfred Roy Carey.
291
PRECIOSA – UMA HISTÓRIA DE ESPERANÇA
A forma como ela e a Gabby Sidibe deram vida às suas personagens foi
simplesmente excelente e impressionante. Eu adorei participar do filme. O meu
empresário na época me desencorajou de participar, porque foi de última hora
e também porque era um filme de baixo orçamento, mas eu sabia que era uma
história atípica e muito humana. Era também uma forma de eu praticar a
minha atuação, o que foi artisticamente enriquecedor para mim. Eu senti
muito orgulho de ter participado do projeto. Depois que o filme Preciosa –
Uma História de Esperança foi exibido no Sundance em 2009 e ganhou tanto o
Prêmio por parte do público quanto o Prêmio por parte do Grande Júri na
categoria filmes de drama (e de quebra, mais um Prêmio Especial concedido
pelo Júri para a Mo’Nique), o Tyler Perry e a Oprah anunciaram que seriam os
produtores, dando ao filme o marketing, o suporte promocional e o brilho que
ele merecia.
61 Queloide: é uma condição que ocorre quando o tecido responsável pela cicatrização
cresce mais do que o normal, deixando a pele no local elevada e endurecida.
293
Eu também ganhei alguns prêmios pelo meu pequeno, mas relevante papel.
Eu ganhei o Prêmio de Performance Revelação no Festival Internacional de
Cinema de Palm Springs, onde o Lee e eu celebramos bastante, usando os
nossos apelidos no palco (eu, “Kitten”, e ele, “Cotton”), rindo e sussurrando um
para o outro. Ok! talvez a gente estivesse um pouco embriagado também, mas
é porque o evento era um daqueles eventos de premiação com bebidas à
vontade! O mais importante foi que a gente vibrou de felicidade.
294
DIVAS
A Aretha Franklin é o alto padrão a ser seguido e a minha estrela guia, uma
musicista magistral e cantora incrivelmente talentosa que não deixou que um
gênero a confinasse ou a definisse. Eu escutava às suas músicas e aprendi
tudo com ela. Ao final da adolescência, a Aretha migrou do gênero gospel
para o jazz – ou melhor, ela passou a cantar jazz no seu repertório, porque
ela nunca deixou de cantar música gospel. (Um dos meus CDs favoritos dela
ainda é um CD de gospel: Um Senhor, Uma Fé, Um Batismo.) E mesmo
quando ela cantava música secular, as suas apresentações se destacavam.
O soul único de sua voz era expressado em cada nota musical.
A Aretha tinha uma visão maior para si mesma. O seu CD de estreia tinha
as músicas “I Never Loved a Man (The Way I Love You)” (Eu nunca amei um
homem – Do jeito que eu te amo), “Do Right Woman, Do Right Man” (Mulher
correta, homem correto) e “Respect” (Respeito), que a colocou no topo das
paradas de R&B e pop. Em todas as épocas da minha vida, alguma música
maravilhosa da Aretha foi como uma espécie de trilha sonora.
Eu ainda acredito que a maioria das pessoas não entende o quão incrível
ela era como pianista e arranjadora. Eu acho que quando se é mulher, com
uma voz incrível, a nossa musicalidade sempre é subestimada. Eu tive a
grande honra de trabalhar com o Big Jim Wright como produtora e diretora
musical. O Big Jim havia trabalhado com a Aretha Franklin, e ele me disse que,
quando a Aretha sentia a presença do Espírito Santo, ela dava um tapinha no
ombro dele, e essa era a deixa de que ele deveria se levantar do piano, onde
ela então se sentava e começava a tocar.
295
todas as grandes estrelas da música que estavam na plateia: eu estava mais
preocupada com o fato de que eu teria que cantar na frente dela, que para
mim, não havia cantora que se comparasse. Eu tive que cantar “Vision of
Love” na frente da Aretha Franklin, que estava sentada na primeira fila. Muitas
vezes eu sonhava estar cantando em grandes premiações, mas nunca
imaginei que eu teria que cantar na frente do meu ídolo na minha primeira
apresentação. Eu não consegui nem dormir na noite anterior. No dia do ensaio,
eu criei coragem para ir até ela. Ela estava calmamente sentada na primeira
fila, do lado esquerdo. Eu me ajoelhei ao lado do assento dela (porque é o que
se deve fazer diante da presença dela).
Anos depois, ela me disse: “Mariah, você sempre teve bons modos e isso é
o que falta à maioria dessas meninas. São os modos. Elas simplesmente não
têm bons modos.” Eu não conseguia imaginar demonstrar menos por alguém
que deu tanto ao mundo. Eu terminei a performance de “Vision of Love” e
ganhei o prêmio de Melhor Artista Revelação e de Melhor Performance Pop
Vocal. Depois, eu analisei cada detalhe da minha performance no Grammy
daquela noite e percebi o que eu não tinha feito. Mas eu tinha cantado diante
da Rainha.
O meu próximo grande encontro com ela foi em 1998, quando eu fui
convidada para me apresentar no Divas Live do canal de TV do VH1, que seria
um concerto em homenagem à Aretha Franklin. Claro que eu disse sim, porque
era para a Aretha, e quando se é convocado para prestar homenagem à rainha,
se pula de alegria. Quando eu cheguei para ensaiar um dia antes do show
acontecer, a Aretha estava mostrando ao produtor para o que veio. O Ken
Ehrlich é um gigante da indústria da música: ele produziu inúmeros tributos e
premiações, incluindo mais de trinta Grammys (e o meu show #1 to Infinity no
Coliseu do Hotel Caesars Palace, em Las Vegas). Ele e a Aretha tinham
história; o lado bom dessa história: foi ele quem produziu a apresentação de
ópera dela no Grammy; o lado não tão bom assim: A questão de poder foi
motivo de discórdia entre eles, como um velho casal. As outras cantoras
“divas” selecionadas para o show foram a Céline Dion, a Shania Twain, a
Gloria Estefan e a Carole King (por ela ter escrito a incrível música “[You
Make Me Feel Like a] Natural Woman” [você me faz sentir como uma] mulher
natural, que a Aretha amou e fez da música um clássico). O Ken me disse
que em várias ocasiões a Aretha disse: “a Mariah é a única garota com quem
eu cantarei esta noite”. É por isso que eu fui a única a fazer um dueto com ela
no show.
296
O clima estava esquentando entre o Ken e a Sra. Franklin porque o ar-
condicionado estava ligado e ela não canta com ar-condicionado (ou ao ar livre,
no frio congelante).
Mas a Rainha do Soul, é claro, sabia que não se devia cantar no frio.
Quando eu cheguei para o nosso ensaio, eu estava muito animada e nervosa.
A Aretha me cumprimentou com: “Mariah, eles estão zoando com a nossa cara.
E eu não vou deixar ninguém me zoar. Portanto, nós não vamos ensaiar hoje
à noite”, disse ela, com naturalidade.
Pera. Quem é que está zoando? Eu queria gritar. Já não basta ter que
cantar com a Aretha Franklin, e agora eu não posso ensaiar com ela?! Eu notei
o Ken andando de um lado para o outro, suando, arrancando os cabelos e
surtando. “É típico dela fazer isso”, ele se engasgou. Eu não sei o que sempre
acontecia entre eles dois, mas seria a primeira vez que eu iria cantar com,
sem dúvidas, a maior cantora do planeta, o meu ídolo, e eu não iria ensaiar
62 Há uma certa performance minha no frio de rachar...: a Mariah culpa o frio pela terrível
performance dela na véspera de ano novo do Rockin’ Eve do Dick Clark. E a descrição da
Mariah de “entrar areia no olho quando criança e começar a chorar escandalosamente, e ainda
ser questionada sobre isso mesmo depois de 20 anos, apesar de muito bem-sucedida” se refere
como as pessoas focaram numa única situação desastrosa que lhe ocorreu, desconsiderando
todas as suas conquistas e longa história de sucesso.
297
com ela! Por que eles simplesmente não desligam a porra do ar? Fiquei com
vontade de morrer.
A noite sem ensaio foi um pesadelo, exceto por ela ter me dito que
realmente gostava da música “Dreamlover” e sugeriu que nós a cantássemos
juntas. Senti vontade de morrer de novo. Eu fiquei simplesmente maravilhada
por ela conhecer a minha música, quanto mais querer cantá-la. Anos depois,
ela cantou algumas das minhas canções, como “Hero” no aniversário do pastor
Jesse Jackson e “Touch My Body” na sua turnê, onde ela improvisou até
mesmo nas partes mais ousadas. Ela disse: “Diga a Mariah que eu sou uma
mulher que vai à igreja e que não posso cantar mais sobre essas coisas” e o
público cantou o refrão junto com ela. Foi incrível.
Mas no final, a Aretha decidiu nos “levar à igreja” e começou a cantar uma
música gospel. Ela se aproximou de mim e me abraçou, e eu cantei “Jesus!”
Porque ela me deu a deixa. É como no jazz: ela era a líder da banda; e a gente
tinha que segui-la. Só que a diva que havia peitado a Aretha antes tinha ido
longe demais (na minha humilde opinião) e parecia querer cantar mais que a
própria Aretha. Inacreditável. Eu não conseguia acreditar que alguém
pudesse tentar ofuscar a Aretha Franklin no próprio tributo que era para ela,
enquanto cantava sobre Jesus, ainda por cima. Talvez fosse uma grande
lacuna cultural, não sei, mas parecia pura loucura para mim, e eu não queria
participar daquilo. Enquanto a coisa toda acontecia, o meu corpo começou a
involuntariamente se afastar das outras Divas e eu me juntei aos backing
vocals, a maioria dos quais eu conhecia. Parecia uma blasfêmia para mim, e
eu queria estar bem longe caso caísse um raio.
Eu fiquei mortificada, mas é claro que a Aretha não se importou. Ela tinha
mais habilidades, soul e talento natural do que todas nós juntas e ao dobro. Ela
se divertiu muito naquela noite e arrasou cantando.
Tomara que a única lição que todas nós tenhamos aprendido naquele palco
seja: R-E-S-P-E-I-T-O.
A Aretha Franklin sempre terá não apenas respeito da minha parte, mas
também um oceano de gratidão que me regará para sempre.
A Sra. Ross foi tão maravilhosa comigo no set, ao me dizer: “Eu te amo; os
meus filhos te amam.” Ela foi muito mais que adorável. Ela até entrou no meu
camarim só para conversar! Imediatamente eu pensei, eu estou aqui de
bobeira com a Diana Ross; eu tenho que ligar para o Trey! E foi o que eu fiz, e
ela deixou para ele uma mensagem realmente fofa com a sua voz baixa e
aguda, mas musical: “Oh, essa mensagem é para o Trey? Essa mensagem é
para você, Trey. Feliz aniversário, querido.”
Quando ele ouviu a mensagem, ele quase teve um piripaque, pois ele a
recebeu no dia do seu aniversário. Ele salvou a mensagem de voz para
sempre. Ele provavelmente ainda a tem até hoje.
Para me preparar para o Divas Live Tributo à Sra. Ross / Supremes e poder
pegar a vibe das músicas, o Trey passou a me ensinar as músicas da
Motown, mas eu não sabia como incluir a Donna Summer ainda. As canções
da Donna Summer me trazem boas recordações: uma delas é de quando eu
era bem jovem e participava de um acampamento de férias para crianças de
baixa renda na cidade de Nova Iorque. Digamos apenas que não era dos
acampamentos mais organizados, e os funcionários eram praticamente
crianças também. A maioria das crianças era negra e eu era uma das poucas
crianças mestiças ou de pele clara ali, e a única de cabelos loiros. Eu não
estava me divertindo nem um pouco: nenhuma das meninas gostou de mim e
eu era como a lenha para a fogueira do bullying. Por que elas estão com raiva
de mim? Eu me perguntava. Eu não entendia na época. Não era apenas a
pele clara e o cabelo loiro – se isso não bastasse. O Khalil gostava de mim. O
Khalil era o garoto mais fofo de todo o acampamento: ele tinha cabelo
castanho escuro e encaracolado, pele cor de caramelo e os olhos verdes.
Porque eu era mais alta que ele, acredito que talvez as meninas tenham
achado que eu era muito velha para ele (embora nós tivéssemos a mesma
idade).
Então, para mim, o sucesso clássico da Sra. Summer foi a trilha sonora do
“Acampamento com o Khalil”, aqueles momentos inocentes de criança (que
não foram muitos). Eu não conhecia a Donna Summer ainda antes do Divas
Live 2000 acontecer; o Divas Live é um show ao vivo gravado na frente de um
público no Radio City Music Hall. Havia uma equipe e pessoas agitadas por
toda parte. Todos estavam animados com a chegada do ícone, a Sra. Ross, e
eu estava fazendo bastante sucesso na cultura pop com o Rainbow, o meu
sétimo CD consecutivo a produzir músicas que ficaram em 1° lugar na Billboard
Hot 100 – “Heartbreaker” foi a minha décima quarta música a ficar em 1°
lugar. Estávamos fazendo uma inspeção no palco e nos preparando para
passar o som cantando medley de músicas das Supremes (sem a Sra. Ross).
A Donna Summer apareceu silenciosamente, parecendo tímida e
desconfortável. Ninguém falou muito quando ela saiu para conversar, acho
que era sobre o teleprompter, que mostrava a letra de “Baby Love”. Então,
alguém apareceu e mostrou três horríveis vestidos de lantejoulas verdes, que
pareciam fantasias baratas, nada parecido com vestidos de alta costura.
Podre.
Quem eles acham que vai usar isso? Eu pensei. Porque eu não vou! Eu
tinha certeza de que a Sra. Ross também os acharia de muito mau gosto (para
302
não dizer pior). Eu só sei que, em seguida, alguém veio nos falar que a Sra.
Summer não se apresentaria conosco. E ela foi embora. Oh ok. Não tinha como
encontrar uma Cindy Birdsong a tempo (ela substituiu a Florence Ballard nas
Supremes). Eu não sei o que fez a Sra. Summer desistir (se foram os vestidos,
eu certamente não a culpo), mas parecia que o Divas Live deste ano seria mais
uma vez uma viagem alucinante.
Pois bem, agora eu tinha que me adaptar à ideia de fazer um dueto com a
Sra. Ross. Claro que foi maravilhoso, mas as abominações verdes? Não
Senhora. Aqueles vestidos terríveis não me atrapalhariam, especialmente
naquela noite – não na frente da Sra. Ross, que é um ícone da moda
reconhecida internacionalmente.
Eu disse logo que eu não usaria aquele vestido verde e brilhante horroroso.
Eu nunca saio de casa sem os meus próprios looks, porque nunca se sabe o
que pode acontecer – e algo de muito cafona estava prestes a tomar forma
naquela noite. Eu tinha um plano. Como a Donna Summer havia desistido, eu
ofereci um dos meus looks para a Sra. Ross:
A Donatella Versace tinha feito para mim dois lindos mini vestidos em estilo
de toga de malha metálica fina – um dourado e um prateado – e eu tinha levado
os dois comigo. (Que noite perfeita para ter opções!)
303
Eu humildemente ofereci o meu vestido (fabuloso como era) para a Diana,
uma mulher que usava incontáveis vestidos lindos e que fazia declarações de
moda em todas as línguas. Nem precisa dizer que eu fiquei nervosa. Eu
apresentei os vestidos minúsculos de costa nua para ela, e ela pegou o
prateado. Maravilha.
Ultimamente, venho refletindo sobre algo que a Sra. Ross me disse quando
nos encontramos em Londres. Eu tinha vendido dezenas de milhões de CDs
e uma grande equipe me acompanhava – maquiador, cabeleireiro, estilista de
figurino, publicitário, empresário e vários assistentes. Enquanto ela mesma se
maquiava perfeitamente (ela fez curso de beleza também!), ela disse:
“Mariah, um dia, você vai perceber que não precisa ter todas essas pessoas
ao seu redor”.
Então a Whitney disse: “Eu posso fazer melhor” e também arrancou a longa
peça do seu vestido, mostrando um vestido novo e diferente. Rimos muito
disso, mas essa brincadeira entre nós quase que não aconteceu. Quando eu
cheguei no local, o meu vestido não tinha chegado ainda. Já que a coisa toda
girava em torno dos vestidos, não era como se eu ou qualquer outra pessoa
pudesse simplesmente arranjar um vestido diferente. Houve pânico!
Aparentemente, o vestido ainda estava no mostruário, então a produção
304
providenciou uma escolta policial para liberar as ruas e pegar o vestido, para
que ele chegasse no local a tempo. A polícia salvou o dia ao ir pegar o meu
vestido exclusivo e único para a ocasião. Se ao menos alguém pudesse ter
salvado a nossa única e incomparável Whitney Houston.
305
UM POUCO SOBRE ALGUNS HOMENS BONS
– Karl –
O Karl Lagerfeld sempre foi muito simpático comigo, o que não acontecia com algumas
das casas de alta costura mais sofisticadas. Nós fizemos uma sessão de fotos de moda
juntos para a revista America – que era uma nova publicação de “luxo urbano” lançada no
início dos anos 2000, quando as palavras “luxo” e “urbano” não eram associadas ainda. A
revista e o Karl estavam dispostos a mostrar um visual mais novo e despojado comigo. O
Karl produziu e fotografou a foto da capa. Ele me fotografou de uma forma íntima e muito
glamorosa, passando um pouco a vibe de Marilyn-Monroe-por-Eve-Arnold. Elas são, até
hoje, algumas das minhas fotografias que mais gosto. O Karl também foi quem me fotografou
para a capa da revista “V Belong Together” durante o lançamento do CD The Emancipation
of Mimi. O logotipo V gigante foi desenhado com o modelo da minha pulseira de diamantes
Dior – perfeição absoluta (eu amo o Stephen Gan).
Uma vez, o Karl costurou para mim um vestido de alta costura muito
especial para um grande evento. Era simplesmente lindo – um vestido de cetim
preto com um decote V profundo nas costas. Eu usei o vestido com o cabelo
repartido ao meio, penteado para trás (eu raramente penteio o meu cabelo
assim) e preso com um adorno. Um visual muito clássico de alta costura. Como
o vestido era feito de cetim de seda, que pode refletir as luzes, ele requer
iluminação adequada (na minha opinião, cada situação realmente exige
iluminação adequada). Eu aparentava ser maior na maioria das fotos ao
mostrar os detalhes nas minhas costas. Os flashes fizeram a minha bunda
parecer enorme. Lembre-se de que estamos falando da época antes dos
popozões – falsos ou autênticos – serem aceitos ou celebrados no mundo pop.
Naquela época, não era para ser popozuda.
306
– Mandela –
Quando a Oprah te convida para ir para a África do Sul, você larga tudo e vai. (Quando
a Oprah te convida para ir para qualquer lugar, você simplesmente vai; só tenho a dizer que
esse momento foi super especial.) Foi algo bastante extraordinário até mesmo para ela – a
inauguração de sua instituição chamada “Oprah Winfrey Leadership Academy for Girls”
(Academia de Liderança para Garotas da Oprah Winfrey). Foi um privilégio único estar entre
as poucas pessoas que ela convidou (incluindo a Tina Turner, o ator Sidney Poitier, a Mary
J. Blige e o Spike Lee); além disso, eu fui ainda uma das poucas pessoas que ela selecionou
para conhecer pessoalmente o ilustre e fenomenal Nelson Mandela.
Eu fui levada a uma sala pequena, simples e elegante, onde o Sr. Mandela
estava sentado em uma poltrona cinza usando uma de suas camisas
estampadas que era a sua marca registrada. Ele parecia um rei. Ele parecia
um pai. Eu passei um breve momento com ele, mas que momento incrível e
poderoso! Eu me inclinei para abraçá-lo e, naquele breve abraço, eu senti a
energia da ancestralidade e do futuro, das lutas e do sacrifício, da fé e visão
inabaláveis – do amor revolucionário. O Sr. Mandela sorriu para mim e, em um
instante, eu senti a própria constituição do meu ser mudar.
– Ali –
307
O senhor Ali e a sua esposa estavam sentados em cadeiras especiais ao
pé do palco. Como parte da apresentação, eu deveria descer as escadas e
cantar bem na frente dele. Eles devem ter pensado que eu estava literalmente
usando lingerie. O Sr. Ali estava sendo enquadrado na câmera para que o
público pudesse ver o quanto ele estava animado, aparentemente tentando se
levantar da cadeira com entusiasmo – o que naquele estágio da sua síndrome
de Parkinson não era uma tarefa fácil, mas que também causou uma reação
de alegria no público (bem, na maioria das pessoas). Graças a Deus que,
durante a apresentação, eu não sabia que estava agindo de forma inadequada
para a família dele; nenhum dos produtores chamou a minha atenção para essa
pequena, mas importante questão de respeito religioso. Tipo assim, eles
poderiam apenas ter dito: “Talvez seja melhor não dançar tanto e você poderia
usar um vestido mais longo – o que acha de usar um vestido com mangas?”
Eu não sabia. Eu realmente espero que a família do Ali tenha perdoado a minha
ignorância e inexperiência de jovem.
– Stevie –
“De que cor são os pisca-piscas da árvore de natal? Como eles são?” Eu ouvi o Stevie
Wonder perguntar ao seu irmão enquanto era conduzido pelo hotel MGM Grand de Las
Vegas. Nós dois estávamos no hotel por causa da premiação do Billboard Music Awards.
Ele me presenteou com o prêmio de Artista da Década. De todos os músicos e de todas as
músicas que me inspiraram, o Stevie Wonder era o meu favorito. Como escritor e
compositor, ele é um mergulhador de águas profundas. Ele vai até o fundo da sua alma e
traz tesouros tão vívidos, tão cheios de emoção, que mudam sonoramente a sua composição
como pessoa. E como cantor, ele entrega com total honestidade e coração. Ele é realmente
o meu padrão de diamante.
308
Eu tive o privilégio de trabalhar com o Stevie algumas vezes. Uma vez, ele
me mostrou algumas músicas novas em que ele estava trabalhando e até
perguntou a minha opinião. Um dos maiores compositores de todos os tempos
casualmente me permite ouvir as suas músicas de trabalho e se interessa
genuinamente pela minha opinião – como musicista. Um momento musical que
eu sempre vou estimar foi um improviso que ele fez na minha música “Make It
Look Good” do CD Me. I am Mariah… The Elusive Chanteuse. Bem no início,
antes da música começar, ele diz as palavras “Eu te amo, Mariah” através das
notas da sua gaita e depois dá uma gargalhada doce, terapêutica e radiante. O
trabalho de produção do Stevie em uma música é como uma bênção antes da
refeição: ele tocou a sua gaita, que é a sua marca registrada, durante toda a
música, como só o Stevie Wonder sabe fazer.
– Prince –
O Prince me deu uma Bíblia, encadernada com couro marrom escuro e com letras
douradas em relevo. Eu ainda tenho esse livro sagrado, enviado por um ser de luz, um irmão
e anjo, que veio em meu auxílio nos momentos difíceis inúmeras vezes. O Prince sempre
me defendia como artista. Por volta da época do CD Butterfly, alguns executivos de
gravadoras que não serão citados (porque eu realmente não os conheço) questionaram a
minha direção musical em uma conversa com ele. Naquela época, ele havia alcançado o
status de guru como músico (o que não impedia as gravadoras de tentarem fuder com ele
como artista – quando se trata de dinheiro e poder, nada e ninguém é sagrado, nem mesmo
a realeza da música).
Eles perguntaram a ele: “Por que ela está tentando cantar músicas de
negro?” e “O que ela está fazendo?”
309
“Eu só acho que isso é problema dela, pois é disso que ela realmente
gosta”, foi a sua resposta fenomenal. Exatamente isso!
Quando eu conheci o Prince, ele me disse que adorava “Honey”. Oh! Meu!
Deus! O Prince conhece a minha música! Eu gritei na minha cabeça. Eu estava
nas nuvens – o maestro da música moderna conhecia a minha música!
Continuamos falando sobre composição e o lado negro da “indústria” em
encontros casuais posteriores, em festas ou em boates (o Prince era famoso
por aparecer aleatoriamente, misticamente em uma boate); ele sempre foi
muito atencioso comigo.
63 Namastê: é um cumprimento e saudação típico do sul da Ásia, que significa “eu saúdo a
você”. Este termo é utilizado principalmente na Índia e no Nepal por hindus, sikhs, jainistas e
budistas.
310
Turn You On” (não foi a minha intenção te deixar excitado)). O Prince me
desafiou.
311
OS MEUS BEBÊS
Um garoto conhece uma garota e olha em seus olhos
O tempo para e dois corações pegam fogo
Lá vão eles, viver uma montanha russa de emoções
– “Love Story”
Alguns anos depois, a Brat me disse: “Ele te ama. Ele sempre fala de você”,
referindo-se ao Nick. Ela era fã do programa de TV Wild’N’Out, um programa
de humor e improvisação de hip-hop que ele apresentava na MTV, que eu
também nunca tinha ouvido falar. O programa Wild’N’Out estreou no mesmo
ano em que o CD The Emancipation of Mimi foi lançado, e sempre falavam bem
de mim lá – finalmente, né? Fazia tempo que eu esperava ter um momento de
grande sucesso como esse. Uma das minhas canções do TEOM, por
exemplo, tocava no mínimo umas trinta vezes por dia nas rádios! É óbvio que
foi um momento incrível para os meus fãs também – era o que eles precisavam!
Eles precisavam me ver renascer das cinzas daquela maneira. Eu realmente
acredito, para o bem ou para o mal, que a Lambily, os fãs e eu, passamos pelas
coisas juntos.
“We Belong Together” foi uma canção colossal. Ela liderou o topo das
paradas de sucesso e tocou por todo os Estados Unidos e pelo mundo. Ela se
tornou a minha décima sexta música a ficar em 1º lugar na parada da Billboard
Hot 100 (eu também fui a primeira artista feminina a ter duas músicas no topo
das paradas, com “We Belong Together” em 1º lugar e com “Shake It Off” em
2º lugar). WBT acabou ficando no top 10 por 23 semanas e se manteve nas
paradas por 43 semanas no total. “We Belong Together”, com mais outras duas
canções, se tornou a terceira música a ficar por mais tempo em 1° lugar na
312
história das paradas dos EUA (atrás de “One Sweet Day”, a música mais
popular dos anos noventa da Billboard). A Billboard listou “We Belong Together”
como a canção da década (canção do quê?) dos anos 2000, e a nona música
mais popular de todos os tempos.
WBT ganhou dois Grammys, dois Soul Train Awards e Canção do Ano no
ASCAP Awards e BMI Awards (entre outros). Ela até chegou a ganhar uma
prancha de surfe em um programa barulhento, intenso e cômico chamado Teen
Choice – como prêmio por melhor música romântica. Eu não sabia que o Nick
iria entregar o prêmio para mim (aparentemente, ele insistiu com os produtores
do Teen Choice para fazê-lo). Eu me lembro de ver o Nick pela primeira vez e
de ficar observando o seu curioso visual de marinheiro tamanho GG, que
consistia em um short branco gigante, uma grande camisa polo azul oceano,
um suéter amarelo limão em volta do pescoço, meias até os calcanhares e
tênis. Depois que ele me entregou o prêmio Teen Choice Awards, eu disse: “Eu
ouvi falar de todas as coisas boas que você tem falado sobre mim”. Com um
sorriso radiante e genuíno e uma chama nos olhos, ele respondeu: “Se você
me der uma chance, eu provarei que tudo é verdade.”
Um bom tempo se passou e a Brat não desistia, insistindo para que o Nick
e eu nos conhecêssemos melhor. Começamos a conversar ao telefone, quase
que diariamente. Então, finalmente, a gente teve o nosso 1º encontro, e que
por sinal foi super divertido! Na época, eu só queria me divertir; eu não estava
a fim de me relacionar com ninguém novamente. Eu tinha amadurecido muito
rápido, tanto profissionalmente quanto afetivamente (principalmente por causa
do meu primeiro casamento; casar foi algo que eu prometi a mim mesma de
nunca mais fazer de novo.)
Para mim, o Nick era produtor, comediante e ator (eu não fazia ideia de que
ele desejava realmente se tornar um rapper.) Ele ria muito e me fazia rir
também. Nós fazíamos um ao outro rir muito. A gente conversava sobre a vida
e sobre música. Eu só queria ficar perto dele. Uma vez, eu até dei um fora em
um lendário jogador de basquete muito bonito para andar de carro com o Nick;
eu queria que ele fosse o primeiro a ouvir o meu novo CD, E = MC². Eu estava
muito feliz, e fiz questão de ouvir as músicas junto com ele.
Durante essa época, eu estava finalmente colocando tudo nos seus devidos
lugares. Além de já ter feito uma limpeza espiritual, eu estava prestes a me
batizar; eu estava fazendo terapia também. Agora eu ia focar em mim mesma,
fisicamente falando. Eu estava malhando bastante e sendo acompanhada por
uma personal trainer incrível, a Patricia. O primeiro single do novo CD era
“Touch My Body”, então eu tinha que me preparar e ficar com o corpo em forma.
Eu estava me sentindo mais forte, e fazia tempo que eu não me sentia bem
comigo mesma. O meu novo amigo Nick seria escalado para participar do clipe
“Touch My Body”, já que ele era comediante e o clipe teria uma pitada de
humor. (Qual é, pessoal, que outro rumo o clipe poderia seguir com uma letra
como, “Porque se você falar abobrinhas / E se gabar desse encontro secreto /
eu vou caçar você”? Caso contrário, teria sido um filme de perseguição.) Mas
o papel no clipe era de um nerd de computador e, embora o Nick fosse muito
engraçado, ele não parecia nada com um nerd. O Jack McBrayer, no entanto,
foi uma escolha genial, e nos divertimos muito gravando o clipe.
64 Wendy Williams: fofoqueira como a Fabíola Reipert, Sônia Abrão, Leo Dias ou Nelson
Rubens.
314
Graças aos meus fãs, que realmente apoiaram a música, e sabendo como
ela faria sucesso, “Touch My Body” se tornou o meu décimo oitavo single a ficar
em 1º lugar. Sou eternamente grata aos meus lambs, que são a minha família.
Eu também agradeço a todos da gravadora que acreditaram no CD e em mim.
Era o meu maior single naquele momento, e que parecia ter feito o impossível,
me fazendo ultrapassar o recorde mantido pelo Elvis Presley por tanto tempo,
o recorde de possuir mais singles em 1º lugar de todos os tempos. O Nick
acabou sendo escalado para fazer o papel do meu par romântico no clipe da
música “Bye Bye”, que nós filmamos na ilha de Antígua. A química entre nós
era natural, casual e intensa. A sensação de conforto e intimidade entre nós,
gravada no clipe, era real. E depois da gravação do clipe, a gente só viria a
falar “até mais” um para o outro depois de um longo tempo.
Eu estava curtindo ficar com o Nick. Nós até brincávamos dizendo que
iríamos com calma, que não iríamos apressar nada. Uma vez, ele me enviou
um lindo e gigantesco buquê de flores quando eu estava em Londres. Ao
assinar o cartão, eu li: “de um aluno desistente da Universidade Pace65”,
porque as coisas estavam indo rápido demais. Nós rapidamente nos tornamos
muito amigos, porém, muito mais rapidamente a gente embarcou na montanha
russa do nosso amor proibido. Além da gente compartilhar as nossas
individualidades um com o outro, nós também tínhamos em comum algumas
coisas essenciais. O Nick era um cara legal, uma pessoa de fé, e bastante
ambicioso. Porque ele estava na indústria do entretenimento há muito tempo,
ele sabia como era a loucura. O Nick prestou atenção em mim e a dinâmica de
poder entre nós parecia igual.
Eu deixei claro para o Nick que eu não estava nem um pouco a fim de me
tornar fisicamente vulnerável novamente. Eu não transaria a menos que
houvesse um compromisso total, o que na época significava casamento.
(Então, obviamente, eu teria que quebrar a promessa que eu tinha feito de
nunca mais me casar.) O Nick respeitou a minha decisão.
– “Candy Bling”
O mundo inteiro parece ser cor de rosa com tons de lavanda quando os
ventos imprevisíveis das emoções sopram ao nosso favor66, e certamente
era o que nós estávamos vivenciando (ser levado sem rumo pelos ventos das
emoções é bem melhor que ser sempre soprado para o mesmo destino). O
pedido de casamento do Nick para mim teve uma vibe de romance infantil. Ele
estava sempre comendo chocolates, o que a minha identidade de “eternamente
com doze anos” achou totalmente aceitável para um homem adulto. À noite, o
Empire State Building foi programado para ser iluminado com as minhas cores
características, “rosa com tons de lavanda”, em celebração a uma nova
iorquina entrando na história por ter estabelecido um novo recorde com “Touch
My Body” (enquanto o Nick e eu relaxávamos, conversávamos, ríamos e
ouvíamos música na sala marroquina.) Com o seu sorriso enorme e radiante,
o Nick me deu um daqueles enormes bombons em formato de anel; ele estava
dentro de uma lancheira de metal da Hello Kitty no meio de outros bombons.
Eu pensei: Que fofo! Eu vou celebrar comendo alguns doces com ele.
Disfarçado como bombom em formato de anel, havia um grande anel de
diamante transparente de esmeraldas, acompanhado por dois diamantes
lapidados com luas, rodeado por diamantes menores cor de rosa; era um anel
de verdade, que além de deslumbrante, combinava com o momento. Eu estava
usando um vestido cor de lavanda com um cardigã rosa, e para curtir o nosso
momento, demos um passeio de helicóptero sobre Nova York; ficamos
maravilhados com todas as luzes. Naquela noite, o Nick e eu brilhamos muito
mais que o próprio Empire State Building.
66 cor de rosa com tons de lavanda quando os ventos imprevisíveis das emoções
sopram ao nosso favor...: a Mariah descreve a cor que o mundo parece ter para os
apaixonados usando o nome do seu perfume – rosa com tons de lavanda (pink yet lavender).
Além disso, ela compara o seu romance com o Nick com os “ventos imprevisíveis das
emoções”, ou seja, que ela prefere a noção de não saber o que pode acontecer à noção de
algo premeditado, algo sempre previsível. Ao citar essa previsibilidade, ela faz uma alusão
clara ao relacionamento que ela tinha com o Tommy, algo chato e rotineiro que a deixava
sufocada.
316
íntimo também, talvez houvesse uma dúzia de pessoas ao todo. O pastor de
onde eu congrego, o Bispo Clarence Keaton, veio do Brooklyn para oficializar
a nossa união. Nos casamos na minha linda casa em Eleuthera, nas Bahamas.
O vestido jersey de seda branca fosca que eu usei tinha uma silhueta simples
e justa, e foi feito sob medida para mim, não por uma casa de moda de alto
nível, mas pela Nile Cmylo, uma estilista independente com quem eu havia
trabalhado por anos. O meu véu ficava na altura dos ombros e não precisou
ser carregado, precisou apenas de alguns grampos de cabelo. O primeiro filho
da minha ex-irmã, o Shawn, a quem carinhosamente eu me refiro como o meu
sobrinho-barra-irmão-barra-tio-barra-primo-barra-avô, e a quem amo muito, foi
realmente o único membro de sangue da minha família que sempre esteve ao
meu lado em todas as situações, e foi ele quem caminhou comigo pelo corredor
arenoso cor de salmão. Depois da cerimônia, eu tirei os meus saltos manolos
e rodopiei descalça nos finos grãos de areia cor de rosa, deixando a bainha do
meu vestido cor de nuvem balançar e oscilar nas águas de cor azul aqua. Nós
nos deleitamos no brilho do pôr do sol das Bahamas e no amor genuíno. Era o
nosso momento e de mais ninguém. Não houve nada de extravagante no nosso
casamento, nem fotos nós tiramos (embora, ironicamente, fotos nossas tenham
ido parar na capa da revista People). Desta vez, eu estava tomando um bom
champanhe com bons amigos; chega de lágrimas solitárias e salgadas em
daiquiris tristes e açucarados.
317
necessário. Nada importava, exceto me preparar da melhor maneira possível
para engravidar e continuar grávida.
O Nick, por outro lado, não compreendia muito bem a enormidade do que
eu estava passando. Certa vez, quando nós estávamos em uma consulta com
o nosso especialista em gestações de alto risco para fazer o meu pré-natal,
carregando em meu corpo um pequeno lago de fluido e o peso de dois seres
humanos, e na minha mente somente dor e desconforto, o meu bondoso e
idoso médico, com o seu sotaque forte do Oriente Médio, olhou para o meu
segundo marido mal-humorado e disse: “Pobre Nick; ele está tão exausto.”
Eu gravei a maior parte das músicas em nossa casa em Bel Air, que teve
como proprietária a falecida e lendária Farrah Fawcett. Nas minhas muitas
imitações criativas quando criança, uma das minhas favoritas de todos os
tempos era a detetive particular Jill Munroe do seriado Charlie’s Angels (PT-
BR: as panteras). Não é de espantar que eu era fascinada pelo cabelo dela: a
perfeição da cor e do corte, todos os fios em seu devido lugar (eu prestei várias
homenagens ao cabelo dela durante a minha carreira.) Eu me lembro da minha
mãe dizendo para mim que o cabelo dela tinha “mechas degradê”, o que a
minha mente de seis ou sete anos entendeu foi “de glacê”. Eu sabia que um
dia eu iria pintar o meu cabelo com tons de chocolate e baunilha iguais aos da
Jill.
Um dos destaques do CD foi o dueto “O Come All Ye Faithful / Hallelujah
Chorus” (Ó vinde, todos os fiéis / com o refrão aleluia) com a Patricia Carey,
onde eu pude unir ópera e gospel. Nós nos apresentamos no meu especial de
natal da ABC, com uma orquestra completa e um coral (e comigo muito grávida
– três gerações no palco juntas!). Durante essa época, eu também gravei a
música “When Do the Bells Ring for Me” (quando os sinos tocam para mim)
para o CD Duets II, do incomparável Tony Bennett; o próprio ícone atemporal
veio ao estúdio da minha casa para gravar. Eu espremi o meu corpo grande e
grávido dentro da pequena cabine cor de rosa do meu estúdio e instalamos
microfones do lado de fora para o Sr. Bennett (mas dava para a gente ficar no
mesmo local), com o intuito de deixar as nossas vozes separadas e suaves –
algo muito importante para o Sr. Bennett. Pela minha pequena vidraça, eu me
lembro de olhar com admiração para uma lenda viva cantando comigo em
minha casa – uma grande ocasião. “Eu nunca cantei com um trio antes” foi o
seu comentário espirituoso (já que tecnicamente havia quatro corações
batendo na gravação), uma memória que sempre permanecerá comigo.
319
juntou a nós. Um pouco antes, o Nick havia sugerido que eu contasse o nosso
segredo para a Michelle Obama. Ela e o presidente Obama estavam passando
de pessoa em pessoa, agradecendo a todos nós, e quando ela veio até mim,
eu aproveitei o momento e sussurrei em seu ouvido que eu estava grávida de
gêmeos. Depois que eu cantei “One Child”, a Michelle Obama, a nossa sempre
histórica Primeira-dama, foi a primeira a saber que a gente ia ter dois filhos.
Que bênção.
– “Faded”
Honestamente, acho que o Nick e eu poderíamos ter resolvido isso entre
nós dois, mas os egos e a emoções se inflamaram (o que pode se traduzir em
muitas horas pagas para advogados, e que no final das contas foi o que
aconteceu). Foi difícil. Nós dois queríamos ter certeza de que tudo ia ficar bem
para a nossa família. Nós vamos sempre ser uma família, e nós fazemos de
tudo para sermos uma. Nós ainda nos divertimos, lembramos dos velhos
320
tempos e brincamos juntos. E nós dois temos certeza que o Roc e a Roe são
de fato a nossa luz. Todos os dias eles dão um novo sentido à nossa vida.
– “Petals”
Eu não me faço mais esse tipo de pergunta. Agora, eu sei com certeza que
nunca houve e provavelmente nunca haverá uma família “perfeita”, mas eu
finalmente encontrei estabilidade na família que eu criei. Há momentos em que
não consigo acreditar que eu já fui uma garotinha que morava em barracos,
que sempre se sentiu insegura, pouco cuidada, solitária e eternamente
assustada. Eu gostaria de poder voltar no tempo para proteger e resgatar
aquela garotinha do mundo precário em que ela estava presa. E agora, fico
maravilhada com os meus próprios filhos maravilhosos, a Monroe e o
Moroccan, e o ambiente seguro e próspero que foi criado para eles. Em vez de
terem que se mudar treze vezes, eles vivem em várias casas lindas, impecáveis
e palacianas. Em vez de pregos expostos nas escadas e carpetes imundos,
eles correm livremente por longos corredores de mármore brilhante, usando
meias e gritando de alegria. Em vez de um sofá de balanço de três pernas, eles
assistem a filmes numa tela de cinema sentados em um sofá luxuoso que
nunca se balança, feito sob medida com almofadas de penas de ganso, maior
até que o meu primeiro apartamento.
Os meus filhos estão rodeados pelo meu amor sem fim. Eu nunca fiquei
longe deles por mais de vinte e quatro horas, e quando eu estou trabalhando,
eles recebem os cuidados de uma família amorosa de amigos e profissionais.
Eles jamais foram deixados sozinhos. Eles nunca se perguntaram onde eu
estou ou se o pai deles sabe como é a vida deles. Eles têm inúmeras memórias
e imagens dos seus pais amorosos juntos. Eles nunca correram perigo de vida.
Policiais nunca invadiram a nossa casa. Eles provavelmente têm trezentas
camisas para revezar e doar, e os seus cachos doces e macios são
profundamente compreendidos. Eles não vivem com medo. Eles nunca
precisaram fugir. Eles não tentam destruir um ao outro. Os meus filhos são
felizes e brincam juntos, aprendem juntos, se divertem, riem e convivem em
harmonia um com o outro. Aconteça o que acontecer, eles sempre terão um ao
outro. Eles são o Roc e a Roe pelo resto da vida.
322
GLOBO DE NEVE DE ALEGRIA
323
Lambs, fãs e amigos, e todo mundo estava cantando “All I Want for Christmas
Is You” junto e misturado! Eles cantavam junto comigo; eles estavam cantando
para mim. As nossas vozes estavam tão altas e alegres enquanto cantávamos,
que é provável que toda a cidade de Nova Iorque nos escutou e se juntou a
nós. Naquele momento, estávamos todos unidos em nosso próprio universo de
espírito natalino. Quando o teto se abriu e toneladas de flocos de confete
branco caíram sobre nós, era como se o mundo inteiro estivesse comigo em
um grande globo de neve de alegria!
Espera. O quê?!
67 Anjos de neve: fazemos um anjo de neve movendo os braços para cima e para baixo, e as
pernas de um lado para o outro deitados na camada fofa da neve.
324
Dentro da casa, a linda agitação de família aquecia todo o local. Com
músicas do estilo Messiah (Messias) do Georg Handel às músicas do Jackson
5, o ambiente era preenchido com a trilha sonora infinita de músicas de natal
(com risos, cachorros latindo e crianças correndo como música de fundo). Os
corredores, as paredes, e todos os lugares estavam enfeitados e decorados, e
o fogo rugia nas lareiras. Na sala de estar, a enorme árvore estava totalmente
decorada com pisca-piscas brancos, bolas de ouro, querubins e borboletas
douradas, além de um lindo anjinho com asas de pontas douradas vestido com
um flutuante tecido fino e transparente no topo (na sala da família há sempre
uma árvore de natal de estilo antigo com grandes pisca-piscas multicoloridos,
dando uma vibe de árvore estilo Charlie Brown mais plena e feliz. Além de
decorarmos a árvore com enfeites feitos em casa e com fotos Polaroid uns dos
outros, também colocamos enfeites enviados pelos Lambs de todo o mundo;
presentes que recebo ao longo dos anos e que estimo muito.) Guirlandas e
pisca-piscas em cascata enfeitavam as molduras das lareiras e os vãos das
portas, e velas brancas e flores poinsétia estavam por toda parte. As xícaras
estavam cheias de chocolate quente e saborosos licores Schnapps de
caramelo.
Eu estou em paz.
Eu me sinto completa.
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EPÍLOGO
Deus sabe
Que os sonhos são difíceis de seguir
Mas não deixe ninguém
Destruí-los
– “Hero”
– Mateus 17, 20
68 Covardes usando um teclado: não ficou claro a quem a Mariah se refere. Pode ser que ela
esteja falando do Walter Afanasieff, que se acovardou e escolheu ficar ao lado do Tommy.
Talvez a palavra teclado aqui signifique “piano”. Ou então a Mariah esteja se referindo aos trolls
e haters de internet que destilam os seus venenos atrás de uma tela, ou talvez ela esteja falando
dos dois sentidos? Não sei. Só podemos especular.
327
No final das contas, é tudo uma questão de fé para mim. Eu não consigo
definir o que seja, mas foi algo que me definiu.
328
FOTOGRAFIAS
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A Nana Reese na frente da sua igreja com a sua bolsa-carteira
(Tia-avó paterna)
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A Nana Reese com a sua Bíblia
331
Alfred Roy aos quatro anos (pai)
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A glamorosa Addie (avó paterna)
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Mãe da minha mãe
334
A Pat em seus dias de ópera
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Alfred Roy no exército
336
Pequenina
337
Com o Papai Noel pela primeira vez
338
A minha prima Vinny aos três anos de idade
339
Eu com a Pat em seus finados dias de boêmia
340
Com o meu ursinho de pelúcia, o Cuddles, em um
passeio ao Monte Washington com o meu pai
341
Fazendo o papel da Hodel e segurando
as flores que recebi do Alfred Roy
342
“Longe Do Lar Que Eu Amo”
343
Fazendo pose para os meus tiados
344
Desembaraçados e penteados
345
Jogando xadrez com o Alfred Roy
346
Logo no início, você lida...
347
“Lullaby of Birdland” com o Clint ao piano
348
Uma criança marcada
349
A pequenina Mariah e a Pat
350
A Cee Cee, eu e o Chris
351
1° ano do ensino médio
352
Curso de beleza! 500 horas
353
Olhando dentro de si
354
Com a Josefin, fazendo acontecer em Nova Iorque
355
“A distância”
356
Eu, o Mike e o Shawn fazendo gracinha.
357
Com o Shawn em Aspen na época de natal
358
Nos bastidores em um momento genuíno de
diva com a incomparável Sra. Whitney Houston
359
Os dois vestidos e a Sra. Ross
360
Com Morris, o ícone
361
O produtor de teatro Kermit Bloomgarden com
o Arthur Miller, a Marilyn Monroe e o piano
362
Eu “com” a Marilyn
363
Com a rainha
364
Momento “bastidores” no World Music Awards em Mônaco
365
Nos bastidores em Taipei na turnê do Butterfly
366
Eu e o Kris sobrevivendo ao fiasco do Glitter
367
Arrasando com o meu vestido Lagerfeld com a Rae Rae e o Kris
368
Momento “dançando até o chão” com o meu querido amigo Treymond
369
Uma foto sensual digna de pôster tirada no jardim de Franco em Capri
370
No hotel Lanesborough em Londres com o cachorro Bailey
371
Mariah estilo alternativa
372
Com o Luis Miguel, o Elvis latino
373
Bianca depois do anoitecer
374
Opulência e decadência no iate do Roberto Cavalli
375
Um momento de amor fofo adolescente...
376
377
O Presidente Obama fazendo a Roe rir
378
Com o Nelson Mandela
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O Prince me salvou e fortaleceu a minha alma quando eu mais precisava,
e por meio de sua música, ele continua salvando o dia, todos os dias.
380
Com o meu artista favorito de todos os tempos, o Stevie Wonder
381
Eu e a Liron rindo
382
O Shawn e eu com os girassóis para o Alfred Roy
no nosso último dia dos pais juntos
383
O Roc e a Roe na Itália aprendendo a nadar
384
Alfred Roy no Porsche
385
O meu filho, Rocky, no carro do seu avô Alfred Roy
386
Desejo Realizado: ‘All I Want for Christmas Is You’ da Mariah Carey fica em
primeiro lugar na parada Hot 100 após 25 anos de espera.
387
AGRADECIMENTOS
Este livro não teria sido possível sem a orientação amorosa de Deus.
Obrigada à minha família de anjos: Alfred Roy, Addie Mae Cole, Nana
Reese, Madre Emma Cutright e o Bispo. Eu sinto a presença de vocês todos
os dias... me levando para mais perto de Deus.
Aos meus primos Cee Cee e Chris – tão bom quanto comer comida de
panela era o quanto a gente se divertia. Amo vocês mais que arroz com
feijão.
À minha família de quatro patas ao longo dos anos (da raça Jack Russel
Terriers) que me amou de forma incondicional: A Princess, o Duke (peguei
as bolas, ha!), o sempre presente Jackson P. Mutley Gore III (vou sempre
te amar), o bom Reverendo Pow, o Jill. E. Beans, o Squeak. E. Beans, o JJ
também conhecido como Jack Jr. Dat Boy, o Mutley!!!!!! A Jackie E.
Lambchops, Pipitty, Dolemite, a rainha e boa menina CHA CHA, a baby e o
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O.G. Clarence da Centerport COVQ (cague onde você quiser), meu grande
amigo (te amo).
À Liron, obrigada por ser tão brilhante, inspiradora e, acima de tudo, uma
verdadeira amiga e uma pessoa tão maravilhosa. Obrigada por me
encorajar a ouvir as minhas músicas, e mais do que tudo, por me fazer
apreciá-las ainda mais – não tenho nem palavras.
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