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Hebreus 11, 1
PREFÁCIO
A SAGA GLITTER
Por muitos anos, ela esteve presa dentro de mim – sempre sozinha,
escondida à plena vista de muitas pessoas. Traços dela são vistos em meus
primeiros trabalhos: muitas vezes ela pode ser vista olhando pela janela,
diminuída por uma enorme moldura, descalça, olhando para um balanço
vazio em movimento em uma árvore solitária diante de um céu escuro de
cor roxa. Ou então ela se encontra no segundo andar de uma casa
geminada de arenito vermelho, observando as crianças do bairro dançando
na calçada abaixo. Essa menina foi vista no auditório de uma escola com
um macacão OshKosh, segurando uma bola de lado, esperando e
desejando ser escolhida. Às vezes ela é vista em um raro momento de
alegria, em uma montanha-russa ou patinando com as mãos para o alto.
Porém, ela sempre mantém um desejo reprimido nos olhos. Ela esteve
assustada e sozinha por muito tempo, e mesmo com toda a escuridão, ela
nunca perdeu o seu brilho. Ela se fez conhecer através de suas canções –
os seus anseios ouvidos nas estações de rádio ou vistos nas telas de TV.
Milhões de pessoas sabem quem é ela, mas nunca a conheceram.
Ela é a pequena Mariah, e grande parte dessa história será sobre ela e
como ela a vivenciou.
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Embora você não possa contestar a experiência de vida de alguém, sem
dúvida, os detalhes desse livro serão diferentes dos relatos da minha
família, amigos e muitas pessoas que pensam que me conhecem. Eu vivi
esse conflito por muito tempo e também estou farta disso. Eu tentei calar a
garotinha buscando proteger os outros. Até aqueles que nunca tentaram
me proteger. Apesar dos meus esforços para dar a volta por cima, ainda
acabaram me puxando o tapete, me processando e me roubando. No final,
eu só machuquei mais ainda a garotinha, e isso quase a matou.
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EXISTÊNCIA
–“Outside”
Na minha família tem a minha mãe, a Patricia, uma mulher de pele mais
clara e de cabelo mais liso, e o meu pai, o Alfred Roy, um homem de pele
mais escura e de cabelo mais crespo, mas que, no entanto, não possuíam
feições semelhantes às minhas. Os dois viviam cheios de arrependimento
– reféns de inúmeras situações ruins. Tem também a minha irmã, a Alison,
e o meu irmão, o Morgan, que eram mais velhos e mais morenos do que eu.
Os dois possuíam uma energia pesada semelhante que parecia bloquear a
luz. Eu tinha uma tendência natural para devaneios e fantasias, entretanto,
os meus irmãos eram o oposto disso. Tínhamos sangue em comum, mas
eu me sentia uma estranha no meio deles, uma intrusa na minha própria
família.
Dizem que Deus fala através das pessoas, e sempre serei grata pela
minha amiguinha falando ao meu coração naquele dia. Ela viu algo especial
em mim e expressou com palavras, e eu acreditei nela. Eu acreditei que a
minha voz era feita de instrumentos – piano, cordas e flautas. Eu acreditei
que a minha voz poderia ser música. Tudo que eu precisava era de que
alguém me visse e ouvisse.
Eu percebi como a minha voz poderia fazer outras pessoas sentirem algo
bom em seu interior, algo mágico e transformador. Isso queria dizer que eu
não era descartável, e sim que eu tinha o meu valor como pessoa. Eis aqui
então algo de valor que eu poderia oferecer aos outros – o sentimento. E
seria o sentimento que eu buscaria encontrar durante toda a vida. Foi o que
me deu uma razão para existir.
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EU FECHO OS MEUS OLHOS
Foram necessários doze policiais para separar o meu irmão e o meu pai.
Dois homens de corpos enormes emaranhados e girando como um furacão
em movimento, colidindo violentamente na sala de estar. Em um segundo,
a minha imagem de família sumiu de vista – não havia mais janelas, nem
chão, nem móveis e nem luz alguma. Tudo o que eu conseguia ver era um
bolo caótico de pernas e braços se movendo: calças escuras e braços fortes
saindo de mangas escuras, mãos enormes agarrando, punhos dando
socos, membros emaranhados destruindo tudo pelo caminho, sapatos
pretos, grandes e polidos chutando por toda parte e pisando forte. Eu vi
flashes rápidos de coisas brilhantes: botões, crachás e armas. Vi também
cerca de uma dúzia de cabos rígidos de pistola, saindo de coldres de couro
fosco, alguns segurados na palma da mão, e outros pendurados em largos
cintos pretos em quadris largos. O ar ficou pesado com sons de
xingamentos, grunhidos e uivos. A casa inteira parecia estar tremendo. E
em algum lugar dessa confusão toda estavam as duas figuras masculinas
mais importantes de toda a minha vida, destruindo um ao outro.
Porém, essa briga em particular com o nosso pai havia sido mais intensa
do que a maioria. De uma disputa de gritos, uma sucessão de socos
aconteceu em seguida; o que pareceu uma questão de segundos. Eles
entraram na sala aos socos e pontapés, derrubando coisas e deixando
estragos pelo caminho. Naquele momento, a raiva entre o meu pai e o meu
irmão foi tão forte que ninguém poderia ter impedido. Ninguém teria tido
coragem.
Eu não sabia se eles tinham vindo para nos salvar ou nos matar. Estou
falando de Long Island na década de 70, e dois homens negros estavam
brigando – o fato da polícia estar presente quase nunca significava que a
ajuda havia chegado. Pelo contrário, a presença de policiais muitas vezes
complicava a situação e aumentava ainda mais o terror e a violência. Isso
ainda não mudou hoje em dia, mas esta foi a minha primeira experiência. A
minha primeira experiência com a polícia não foi nada boa; eu não me
beneficiei com nada. A minha prima Lavinia, filha da Nana Reese, sempre
dizia: “Vocês crianças passam tudo de ruim por serem negros, mas nunca
sentem o lado bom disso”. Eu levei muito tempo para entender a realidade
do comentário dela.
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Essa, é claro, não foi a primeira briga violenta entre o meu pai e o meu
irmão – desde que eu me entendo como gente, a relação deles tinha sido
uma zona de guerra, mas foi a primeira vez que se chamou a polícia. Foi
também a primeira vez que eu senti que um membro da minha família
poderia morrer brutalmente diante dos meus olhos. Ou que eu também
poderia morrer. Eu nem tinha quatro anos ainda.
Não éramos uma família convencional. Será que era melhor mesmo
morar em um lugar onde a minha mãe branca tinha que entrar sozinha
primeiro pela porta da frente, para que só então o meu pai negro pudesse
entrar com os seus filhos birraciais – para a nossa própria segurança? O
que esse tipo de coisa faz com a psiquê de um homem que tem como
responsabilidade ser o chefe da casa? Como um homem assim pode
manter a sua família segura? Que tipo de imagem o meu irmão teria do
próprio pai ao vê-lo ser tratado com tanta indignidade só por ser negro?
A Nana Reese me segurou com força até o meu pequeno corpo parar de
tremer e a minha respiração voltar ao normal. Depois da confusão, eu voltei
para a sala, o meu eu voltou para o meu corpo. Ela virou o meu rosto em
direção à luz e se certificou de que os meus olhos estavam focados e fixos
nos dela. Ela colocou a sua mão delicada firmemente na minha coxa. Assim
que ela me tocou, qualquer tremor que eu porventura tivesse, imediatamente
se estabilizou. O olhar dela era incomum – não o de uma tia avó, nem de
uma mãe ou de um médico. Em vez disso, era como se ela olhasse
diretamente para a minha essência. Naquele instante, eu não era mais uma
garotinha assustada e nem ela uma idosa que me consolava, mas éramos
duas almas, sem idade e iguais.
Enquanto ela falava, uma sensação quente e cheia de amor saiu de sua
mão até a minha perna, suavemente percorrendo o meu corpo como ondas
e subindo até a minha cabeça. Mesmo com toda essa confusão, um
caminho foi aberto; eu sabia que havia luz ali. E de alguma forma eu sabia
que aquela luz era minha e era eterna. Antes daquele momento, eu não
tinha tido nenhum sonho que pudesse me lembrar. Eu também tinha
pouquíssimas memórias. Eu certamente ainda visualizaria algo e ouviria
uma música em minha cabeça.
Por volta dos meus quatro anos de idade, após o divórcio dos meus pais,
eu não via tanto a minha Nana Reese mais. A minha mãe e a família do meu
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pai viviam em constante conflito e, como eu morava com a minha mãe, fui
em grande parte isolada da vida de cura e santidade da Nana do Harlem.
Mais tarde, eu descobri que as pessoas chamavam a Nana Reese de
“profetisa”. Eu também ouvi falar que ela não era a única que tinha o dom
de cura dos meus antepassados. Além de tudo isso, eu acredito que uma
fé profunda foi despertada em mim naquele dia.
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MILAGRES PODEM ACONTECER
Quando eu tinha seis anos, a minha mãe, o meu irmão e eu nos
mudamos para uma casa humilde e minúscula em Northport, Long Island.
Ela foi construída sobre uma pilha de degraus de concreto longos e
sinuosos.
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O meu irmão, muito jovem, ficou em pedaços, e a única coisa que ele
tinha para se defender era sendo violento. Ele brigava com tudo, com os
seus próprios traumas e com todos em volta, especialmente com o nosso
pai. A relação que ele tinha com o nosso pai não o ajudou a remendar os
pedaços quebrados – em vez disso, o puniu ainda mais em sua indignação
interior. Um pai traumatizado não consegue ajudar o seu filho problemático.
Despedaçaram o meu irmão e jogaram os pedaços ao vento. Os métodos
antiquados de disciplina militar do nosso pai eram inadequados para ajudá-
lo a se recompor e prepará-lo para a maturidade. O mal-entendido e a
distância emocional com o nosso pai eram a agonia perpétua e sufocante
do meu irmão, tendo como resultado uma ira sem fim dentro dele.
Não sei quanto tempo fiquei ali, só que saí de lá ao som de uma batida
forte na porta. Corri para abrir a porta para a amiga da minha mãe, e vários
policiais entraram correndo. Eu não conseguia entender o que ninguém
estava dizendo, mas observei enquanto eles corriam para onde a minha
mãe estava deitada. Em seguida percebi que ela estava se movendo. No
momento em que percebi que ela estava viva, a sensação de choque se
desfez e uma onda de medo e pânico tomou conta de mim – a compreensão
do que realmente aconteceu, o que quase aconteceu e o futuro
desconhecido que me esperava. Me abaixei e envolvi o meu pequeno corpo
com os meus braços, ficando no formato de uma bola, abracei a mim
mesma com força e comecei a chorar baixinho. Eu conseguia ouvir o som
fraco da voz da minha mãe enquanto ela voltava à consciência. Então eu
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ouvi a voz de outra pessoa, falando acima da minha cabeça. Era a voz de
um homem, uma voz que eu nunca vou esquecer.
Um dos policiais, olhando para mim, mas falando com outro policial ao
lado dele, disse: “Se essa garota sobreviver, será um milagre”. E naquela
noite, me tornei menos criança e passei a ser mais um milagre.
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QUANDO CHEGAR O NATAL
A minha mãe colocou uma aba extra na pequena mesa de madeira para
torná-la maior, e quase que ela ficou do tamanho família para o grande dia.
Com algumas decorações simples, a mesa se tornou a peça central para a
celebração, junto com uma árvore de natal feinha do estilo que se vê no
desenho do Charlie Brown, de uma sala de estar mobiliada um tanto
improvisada na casa deteriorada onde nós duas morávamos. Apesar das
nossas circunstâncias, a minha mãe queria que nós tivéssemos uma “vida
maravilhosa”.
A minha mãe na cozinha não era lá essas coisas, mas para o jantar de
natal ela se arriscava – nós duas nos arriscávamos. A gente tentava colocar
de lado todo o trauma e drama que nos fizeram mal durante todo o ano e
buscávamos apenas fazer uma refeição de natal tranquila. Será que era
pedir muito? Eu acho que não. Eu era uma criança que desejava viver uma
infância sadia, mas em vez disso eu morava numa casa cheia de
decepções e dores.
Ao longo dos anos, a minha irmã e o meu irmão mal se falavam, muito
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menos vinham visitar a mim e a minha mãe. O natal era uma rara ocasião
em que nos reuníamos sob o mesmo teto frágil. Nós quatro nos sentávamos
à mesa, evitando olhar um para o outro, muitas vezes sem conseguir falar,
fartos com todas as coisas que nenhum de nós conseguia expressar. Eu era
muito jovem e não havia acontecido tanta coisa ruim assim comigo para que
me traumatizasse. Os meus irmãos e a minha mãe mal se falavam na maior
parte do ano, então, na ceia de natal, o meu irmão e a minha irmã chegavam
cheios de mágoa e raiva, carentes de atenção. No fim, todos acabavam
explodindo e xingando um ao outro intensamente. Eu ficava sentada no
meio do caos, chorando e desejando: desejando que eles parassem de
gritar, desejando que a minha mãe conseguisse interromper a gritaria e os
xingamentos dos meus irmãos. Desejando estar em algum lugar seguro e
alegre – algum lugar que realmente parecesse com o natal.
Mas a intensidade do meu desejo era mais forte do que a dor deles. Eu
comecei a criar o meu próprio mundinho mágico e alegre de natal. Passei a
focar em todas as coisas que a minha mãe lutou para criar; tudo que eu
precisava era de uma chuva de purpurina e um coral inteiro de igreja para
me dar apoio. O meu natal imaginário estava cheio de papai noel, renas,
bonecos de neve e todos os sinos e enfeites que os sonhos de uma menina
podiam conter. Eu adorava contemplar o Menino Jesus, e absorver a
poderosa alegria que o verdadeiro espírito da época traz consigo.
O Burt era professor e fotógrafo, e o Myron era, como ele dizia, uma
“esposa do lar”. O Myron era um colírio. Ele tinha uma barba perfeitamente
aparada e o seu cabelo era sempre penteado em camadas, que ele
finalizava fazendo luzes com um spray. Ele vivia bronzeado e costumava
desfilar pela casa em espetaculares caftãs de seda multicolorida. O Burt me
levava para o quintal da casa deles para tirar fotos minhas (eu simplesmente
adorava me exibir na frente de uma câmera) e ele incentivava totalmente
as minhas poses exageradas. Ele sempre me apoiava e entendia a minha
tendência de querer chamar a atenção.
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O PAI E O SOL
Os militares podem ter tirado o meu pai do Bronx, mas não o livraram dos
perigos de ser negro nos EUA. Enquanto ele cumpria serviço militar, uma
mulher branca do quartel em que ele estava disse ter sido estuprada por um
negro. Sem nenhuma prova, mas só por ser negro, acusaram o meu pai de ter
cometido o crime e o prenderam no quartel. Para punir ainda mais e para
servir como exemplo aos outros soldados negros, os oficiais brancos
encarregados designaram um oficial negro2 para supervisionar o meu pai
– um lembrete proposital de que um uniforme do exército americano não
camuflava a sua raça. Era uma técnica de terror eficaz, muito parecida com a
técnica usada nas plantações quando um supervisor negro ficava
encarregado de supervisionar.
O meu pai sentiu-se humilhado, mas com muito mais medo ele ficou.
Como muitos homens negros, ele vivia com medo de ser agredido sem
motivo, de ser sequestrado ou então de morrer. Mas talvez ele sentisse
mais medo de mostrar que estava com medo – porque ele sabia que, para
O meu pai fazia tudo com extremo cuidado. O seu estilo de vida era
bastante rigoroso: meio quartel militar, meio mosteiro Shaolin budista. A sua
cozinha era pequena e organizada impecavelmente. O conteúdo de sua
despensa era indexado com precisão por tamanho e categoria. Não havia
espaço para extravagância ou desperdício de qualquer tipo em sua casa. Só
havia uma coisa de cada: uma TV, um rádio. Dentro do guarda-roupa dele só
tinha a quantidade de camisas necessárias para uma semana, nada mais.
Ele só achava que uma cama estava bem arrumada, se de tão esticada a
colcha estivesse, uma moeda quicasse em cima dela.
O jeito do meu pai lidar com a maioria das coisas era num estilo militar,
super eficiente. Ele considerava fútil o ato de mordiscar. Se eu estivesse
com fome enquanto esperava pelo jantar, ele me dava só um biscoito da
marca Ritz. Só UM. Era de dar água na boca ficar contemplando aqueles
biscoitos dourados e em formato de girassol todos enfileirados sendo
tirados de seu pacote vermelho e brilhante. Ele puxava uma fileira de
biscoitos, retirava o lacre de abertura, tirava um único biscoito e me
entregava delicadamente, como se fosse uma joia preciosa. Em seguida,
ele colocava todos os biscoitos de volta no pacote, dobrava tudo
cuidadosamente e colocava o pacote de biscoito em cima da prateleira, que
era onde ficava.
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Pelos padrões de hoje, o meu pai seria considerado descolado. Depois
de servir no exército, ele se mudou para Brooklyn Heights, tinha um carro
Porsche Speedster clássico e cozinhava autênticos pratos italianos. Ah, eu
adorava a comida do meu pai! Ele preparava um prato de salsicha e
pimentão maravilhoso e um prato delicioso de almôndegas com salsinha,
mas o prato que ele fazia de linguine com molho branco de amêijoa era
divino. O cheiro de alho no azeite quente, o cheiro de macarrão fervendo e
o cheiro de sal do mar são as melhores recordações dos domingos para
mim. Eu adorava os domingos e eram os dias que eu passava com o meu
pai – e as nossas refeições juntos eram o que eu mais esperava.
O meu pai me ensinou que as palavras têm força e que, portanto, têm o
poder de mudar quaisquer situações. Uma vez, em uma adorável tarde de
domingo de verão, eu ouvi um carrinho de sorvete tocar a sua música ao
longe e se aproximar da rua da casa do meu pai. Ao reconhecer a melodia
mágica e o sabor de coisas gostosas que suscitava, eu soltei um grito de
empolgação: “Aaaaa! Sorvete!” A música estava alta e clara agora, então
eu sabia que o carrinho de sorvete havia parado em algum lugar próximo.
O barulho de pés correndo e os gritos de felicidade confirmavam isso – o
carrinho de sorvete estava parado bem na nossa porta. Eu pensei rápido:
eu tenho que ir, senão ele vai embora!
“Me empresta 50 centavos, por favor, por favor?!” Perguntei ao meu pai
com voz esganiçada e quase ficando com falta de ar de tanta ansiedade.
Eu não conseguia pensar direito. Mais uma vez, o meu pai falou de maneira
paciente e equilibrada, e que só fez aumentar a minha inquietação.
Eu estava tão atordoada que eu nem sabia o que dizer naquele momento,
então eu deixei escapar: “Eu quero cinquenta centavos emprestado. Eu te pago
depois! Me empresta, por favor!”
Eu tinha comprado o meu sorvete, mas o meu pai deixou bem claro que
eu teria que devolver o dinheiro que eu tinha pedido emprestado. Aos sete
anos, é claro que eu não ganhava dinheiro ainda, então eu acabei pedindo
à minha mãe. Ela não conseguia entender por que o meu pai estava
fazendo isso comigo, mas acabou me dando o dinheiro. O jeito deles de
educar a nós, os seus filhos, sempre foi muito diferente um do outro. Eu
cumpri a minha promessa e devolvi o dinheiro a ele no domingo seguinte. O
incidente do dia do sorvete foi uma lição que serviu não apenas para me
ensinar o significado das palavras, mas também de como ter integridade e
de como administrar o dinheiro. O meu pai era um tipo de homem que
economizava cada centavo que ganhava.
Ser pai solteiro não era algo tão comum naquela época, então atividades
de lazer ou um dia só para brincadeiras estavam fora de cogitação. Na
maioria das vezes, eu só servia de companhia para ele – eu me ocupava
com alguma coisa e ficava fora do caminho enquanto ele cozinhava, limpava
ou ficava mexendo no carro enquanto ouvia futebol no rádio. E ele adorava
o porsche dele. Era o único luxo que ele tinha. Ele comprou dois porsches
em sua vida, um antes de ter filhos e o outro depois, ambos seminovos. O
porsche speedster dele parecia estar em constante reparo, então ele
passava a maior parte do tempo mexendo nele.
“Esse tipo de cor não existe mais,” ele disse sem rodeios. Eu fiquei
confusa. Mas por que então ele não pintava o carro de outra cor? Se não
tinha como pintar com a cor original, que ao menos o carro fosse pintado
com uma cor diferente. Muito melhor do que a cor que estava.
Ele também gostava de cantar “John Henry”, uma canção popular que
fala sobre um homem negro que trabalhava “martelando brocas de aço na
rocha para construção de túneis”.
Quando ele cantava “colo”, o tom que ele fazia era super grave e isso
sempre me fazia rir. Eu gostava de cantar essas músicas porque ajudavam
o tempo e a distância passarem mais rápido. Naquela época, eu achava que
dirigir era muito chato. Mas agora, ah, o que eu não faria para sentar ao lado
dele, mais uma vez, naqueles bancos de couro, pegando a estrada e tendo
como companhia apenas o barulho do motor e o som do vento. A minha
mãe, enquanto cantora de ópera, me ensinou escalas musicais, mas o meu
pai me ensinou canções que me faziam rir.
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Quando viajávamos de carro ou íamos a autódromos, eu ficava muitas
vezes fazendo outras coisas enquanto o meu pai fazia o que ele gostava, por
exemplo, ele ficava ouvindo jogos de futebol no rádio ou assistindo jogos de
futebol na TV (que ele adorava por sinal e que eu achava extremamente chato),
mas em vez disso eu ficava por perto lendo ou desenhando em silêncio –
observando o que ele fazia.
O meu pai tinha alguns livros em sua casa que eram só para mim. O livro
que eu me lembro mais claramente falava sobre um garotinho negro que
era cego. A capa era branca, com grandes círculos vermelho, laranja e
amarelo. Era um livro bastante ilustrado que contava a história de um
menino que via o mundo através do toque e formato dos objetos, e não
através das cores.
“Por que você acha que somos esquisitos?” Ele indagou. Estremeci com
o seu tom de voz severo e não fazia ideia por que ele tinha ficado com raiva.
“Eu não sei. Talvez eu tenha ouvido em algum lugar,” eu disse. No meu
desenho, eu também escrevi: “Mas sem problemas”, o que eu supunha ser
algo legal. Era só uma pequena ironia.
Bastante sério, o que me deixou paralisada, ele disse: “Nunca diga isso”.
Eu acho que o meu pai não entendia como a gente era diferente de todas
as pessoas dos bairros em que eu morei com a minha mãe. Era esquisito
morar em um apartamento improvisado em cima de uma delicatéssen
quando todo mundo morava em uma casa. Nós morávamos em uma
pequena seção comercial de Northport, onde havia uma fileira de lojas no
andar térreo de um aglomerado de casas vitorianas. Eram negócios de
cidade de interior: uma loja de bicicletas, talvez uma mercearia e por fim a
delicatessen. Uma escada ao lado da entrada da delicatessen levava a um
pequeno e sombrio apartamento com um estilo semelhante a um vagão de
trem onde eu morava com a minha mãe e o Morgan.
–“Bye Bye”
Uma letra de música que fala sobre drogas e viagens alucinógenas não
é um conteúdo típico (ou apropriado) para uma menina. Mas eu cantei
porque a minha irmã mais velha me ensinou. Aprender letras de músicas
para cantar era o que eu mais gostava, mas essa música era cheia de
imagens assustadoras (“o Cavaleiro Branco está falando ao contrário / e a
Rainha Vermelha com o seu, cortem-lhe a cabeça”) e o que me fez achar
ainda mais assustador (“a lagarta que fuma narguilé” – oi?).
A música, como carreira, não era lógica para ele. Quando eu falava sobre
escrever poesias e cantar, ele mudava a conversa para notas e dever de
casa. Ele não via o foco e a disciplina que eu estava cultivando como artista.
Ele não via como eu estava pegando o jeito da coisa, participando de
ensaios com músicos de jazz talentosos com a minha mãe e desenvolvendo
as habilidades de scat3 e de improvisação. Ele nunca se deu conta de
quantas horas eu passava escrevendo, aprimorando o meu ouvido e
3 Scat: é uma técnica de canto criada por Louis Armstrong que consiste em cantar
vocalizando tanto sem palavras, quanto com palavras sem sentido e sílabas, como usado
por cantores de jazz, os quais criam o equivalente de um solo instrumental apenas usando
a voz.
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estudando tendências de música popular nas estações de rádio. Além disso,
nós pensávamos bem diferente um do outro: eu seguia o meu coração,
enquanto ele era guiado pelo medo de não ser aceito. Desde aquele dia
terrível e ao mesmo tempo promissor, quando a Nana Reese impôs as suas
mãos sobre mim e a sua oração tocou o meu coração, eu realmente
acreditei que bastava eu querer, todos os meus sonhos se tornariam
realidade. Era algo real para mim. Sem sombras de dúvida. O meu pai não
acreditava que tudo que a gente desejasse se tornava realidade. Pelo
contrário, ele esperava que o mundo negasse veementemente os seus
desejos, principalmente a dignidade.
O Alfred Roy foi um homem que viveu toda a sua vida com o medo de
ser humilhado e desumanizado por causa da sua identidade. Ele pôs todas
as suas esperanças na noção de que ele seria respeitado socialmente por
meio de sua disciplina, diligência e excelência e que isso só seria possível
de se alcançar em instituições tradicionais como em áreas acadêmicas,
serviço militar ao seu país e com um trabalho respeitável. Os seus outros
dois filhos tinham todas as qualidades para serem grandes alunos. Quando
eram mais jovens, ele exigia que eles só tirassem 10 nas provas, e na
maioria das vezes eles conseguiam (ele às vezes perguntava aos meus
irmãos por que tinham tirado 9,5 e não 10). A única matéria em que eu me
destacava era redação e eu sempre estava entre os melhores da sala. Mas
eu era péssima em matemática e eu realmente não conseguia entender a
maioria das outras matérias.
– “Bye Bye”
Então, com o passar do tempo, a gente passou a se ver cada vez menos
aos domingos. A minha música estava tomando muito do meu tempo e
energia naquele momento. Eu trabalhava nisso sempre que eu podia. Eu
estava determinada a superar as minhas adversidades, a superar todas as
pessoas que não acreditavam que eu conseguiria vencer na vida, a superar
o lugar triste em que a minha irmã havia se metido, a superar os rompantes
de raiva do meu irmão. Eu iria superar tudo isso – mesmo que isso incluísse
o meu pai, o único membro estável da família que eu tinha. Depois de pagar
por um curso de verão em um acampamento de artes cênicas, o máximo
que o meu pai fez pela minha carreira foi me alertar sobre como o negócio
do entretenimento pode ser incerto e traiçoeiro.
“Uau”, disse ele, “você canta igual às cantoras do trio Three Pointer
Sisters!” Ele não era um grande músico, então essa comparação foi um
grande elogio vindo dele. Isso significava que ele havia notado todas as
camadas de voz de backing vocal, além da voz principal. Ele estava
realmente prestando atenção na minha música. E eu poderia dizer que ele
ficou feliz com isso e por mim. Depois de todos aqueles anos, eu me senti
reconhecida.
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COLORINDO FORA DA LINHA
É difícil de explicar
Naturalmente isto sempre foi estranho
Nem aqui e nem lá
Sempre um pouco deslocado em todos os lugares
Ambíguo, com a sensação de que você não pertence a lugar nenhum
–“ Outside”
Ainda rindo, uma delas respondeu: “Oh, Mariah, você usou o giz de cera
com a cor errada! Mas não foi a sua intenção!” Ela estava apontando para
onde eu tinha desenhado o meu pai.
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HODEL
Cantar era uma forma de fuga para mim e compor era uma forma de
processar as ideias. Eu me alegrava fazendo isso, mas o principal motivo
de eu cantar e compor era para que eu conseguisse sobreviver (e continua
sendo). Não foi apenas a minha mãe que reconheceu o meu talento vocal,
mas também os meus professores. Uma amiga da minha mãe era a minha
professora de música e ela era excepcional. Quando eu era criança, eu
participava de algumas peças na escola e cantava para amigos em alguns
eventos. Cantar no palco (ou em qualquer lugar), e imaginar que eu era
outra pessoa, era quando eu mais me conectava comigo. Andar sozinha e
criar melodias enquanto eu cantava para mim mesma era quando eu me
sentia mais preenchida. Até hoje, eu ainda tenho um cantinho todo especial
para mim e é para onde eu vou para me livrar de todas as exigências da
vida e para me conectar mais comigo, cantando sozinha.
A motivação para praticar música também foi algo que a minha mãe
reconheceu e incentivou em mim desde o início. Ela ensaiava as canções
da peça comigo em casa, enquanto tocava no seu piano Yamaha. Mesmo
quando eu era criança, eu me interessava em explorar cada detalhe de uma
música para saber por que ela era tão boa. Eu fiquei fascinada pela
narrativa do musical. Eu até fiz amizade com uma menina do
acampamento, que em sua grande maioria eram crianças judias e ricas.
Nós nos tornamos amigas porque cantar era algo sério para nós e também
porque a gente amava. A gente até parecia um pouco uma com a outra. Ela
era israelense e tinha cabelo crespo, quase pixaim. Então, nós duas
tínhamos um tipo de cabelo bem encaracolado. A gente tentava se vestir
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igual quando dava certo, nós até tínhamos o mesmo macacão cor de rosa.
Porque as pessoas nos viam juntas e também porque viam algumas
semelhanças físicas entre nós, talvez elas pensaram que eu era uma menina
loira e rica de religião judaica.
Uma vez, quando a minha vó Addie estava na casa do meu pai, ela olhou
para mim, com o meu cabelo loiro rebelde e a minha pele clarinha cor de
pêssego, e disse: “Roy, essa menina não é sua filha.” Então, para provar que
ela estava certa, ela se dirigiu a mim: “Garota, dance um pouco para mim”.
Enquanto a música fez parte de toda a minha vida, o mesmo eu não posso
dizer a respeito da dança na minha infância. A minha mãe não dançava; eu
nunca vi os meus irmãos dançarem. O meu pai só passou a dançar no final
dos anos oitenta, quando fez aula de Hustle5.
5 Hustle: é o nome dado a muitas danças disco dos anos 70. Baseado em danças antigas,
como o mambo, o Hustle foi originalmente uma dança em grupo com um toque de salsa
criado na cidade de Nova Iorque e no estado da Flórida.
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Na minha mente, saber dançar era como se fosse a prova de que alguém
é realmente negro e de que pertence a algum lugar e a alguém – e seria a
prova de que eu era realmente filha do meu pai. Eu não dancei para a Addie
naquele dia. Eu também não dancei quase nada depois desse dia. Eu morria
de medo de não dançar “direito” por causa do meu pai. Eu fiquei parada e
com medo de me mexer, achando que se eu não dançasse bem ou me
movesse para o lado errado, isso de alguma forma provaria que eu não era
filha do meu pai.
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LUZ DA MINHA VIDA
A minha mãe me dizia isso várias vezes quando eu era criança. Eu queria
ser a luz dela. Eu queria que ela tivesse orgulho de mim. Eu a respeitava
como cantora e como mãe que trabalha para sustentar a família. Eu a
amava profundamente e, como a maioria das crianças, eu queria que ela
fosse um porto seguro para mim. Acima de tudo, eu queria muito acreditar
nela.
Me afastar de pessoas tóxicas que eu amo tem sido muito doloroso, mas
assim que eu encontrei coragem (com oração e ajuda profissional, é claro),
eu simplesmente desapeguei e deixei Deus tomar de conta. (Vou
acrescentar, porém, que há uma enorme diferença entre simples e fácil.
Não é nada fácil.) No entanto, não existe uma maneira “artística” de
41
desapegar da minha mãe, e o nosso relacionamento é tudo menos simples.
Como muitos aspectos da minha vida, os momentos que a minha mãe e eu
passamos juntas foram cheios de contradições e realidades conflitantes.
Nunca foi apenas preto e branco – foi todo um arco-íris de emoções.
Mesmo depois de todo esse tempo, uma parte de mim imagina que em
um dia qualquer a minha mãe se transformará em uma das mães carinhosas
que eu vi na TV quando criança, como a Carol Brady ou a Clair Huxtable;
que ela de repente vai me perguntar: “Querida, como foi o seu dia?” antes
de me dar um relatório sobre o seu cachorro ou pássaro, ou de me pedir para
pagar alguma coisa ou me pedir para fazer algo – que ela se interessará
continuamente e verdadeiramente por mim e pelo que estou fazendo ou
sentindo. Que um dia ela me conhecerá. Que um dia a minha mãe vai me
compreender.
Até um certo ponto, eu sei como a minha mãe se tornou quem ela é. A
mãe dela certamente não a entendia. E o meu avô nunca teve a chance de
conhecê-la; ele morreu enquanto a minha vó estava grávida dela. A minha
mãe foi criada, com mais um irmão e uma irmã, por uma viúva católica e
irlandesa. A minha mãe era conhecida como a “morena” da casa porque o
seu cabelo não era loiro e os seus olhos eram uma mistura de castanho e
verde, não de um azul puro como os do seu irmão e irmã. Olhos azuis eram
um símbolo da pureza dos brancos, e ser 100% “puro” de descendência
irlandesa era fundamental para toda a identidade da minha vó.
42
homens negros foram linchados e quatro homens brancos foram mortos a
tiros por empresários negros que protegiam as suas propriedades. Na
década de 20, quando a minha vó estava prestes a atingir a maioridade, a
Ku Klux Klan6 tinha uma forte presença na cidade e na prefeitura,
ocupando vários cargos importantes e definindo a bússola moral para a
comunidade. Springfield era uma cidade abertamente envolta em ódio.
Uma das poucas histórias que a minha mãe contou sobre a sua infância
foi quando ela estava no jardim de infância e dividia o seu tapete com um
menino negro na hora do cochilo. Por isso, as freiras de sua escola católica
a envergonharam publicamente. Obviamente, havia uma série de calúnias
horríveis contra os negros quando a minha mãe era jovem, mas ela também
me contou sobre as calúnias bizarras e os xingamentos que eles usavam
para os italianos, judeus e todos os “outros” quando não estavam por perto.
Ela me deixou a par da hierarquia do racismo em sua comunidade branca.
Ironicamente, mesmo entre os seus amados irlandeses, havia um sistema
de castas sociais que dividia a “cortina de renda irlandesa” da “favela
irlandesa”. A cortina de renda irlandesa era “pura”, rica, respeitável e “bem
posicionada” na sociedade (é só a gente lembrar da família Kennedy),
enquanto a favela irlandesa era caracterizada como suja, pobre e ignorante.
Havia uma necessidade essencial e lamentável, neste sistema, de
desprezar os outros. Para a minha vó, todos os “outros” eram inferiores aos
irlandeses. E enquanto aos negros? Bom, os negros sempre estiveram na
base mais baixa da pirâmide social. Não havia ninguém abaixo deles.
A minha mãe não apenas ignorou o código moral de sua cidade natal,
ela também se rebelou contra ele, tornando-se uma ativista no movimento
pelos direitos civis. Pelos padrões da sociedade em que ela vivia e da sua
família, ela era uma excêntrica liberal. Ela se interessava pela vida fora do
seu mundinho branco pequeno e apertado. Ela era intelectualmente curiosa
e atraída pela cultura, especialmente pela música clássica. Ela lembra que
um dia, enquanto ouvia uma estação de música clássica no rádio, ela ouviu
uma ária. Foi o som mais lindo que ela já tinha ouvido, e ela estava
determinada a achar esse som, dentro de si mesma e fora do mundo. Ela
decidiu começar a sua busca na cidade de Nova Iorque, que parecia um
milhão de quilômetros de distância da sua família e do lugar mesquinho que
eles habitavam.
A jovem Patricia tinha grandes sonhos – muitos dos quais ela realizou.
6 Ku Klux Klan: é uma organização terrorista que surgiu nos Estados Unidos, no século
XIX. É conhecida por utilizar uma roupa macabra e por promover atos de violência contra
negros, judeus, católicos e etc.
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Ela era extremamente talentosa e motivada. Ganhando uma bolsa de
estudos para a prestigiosa Juilliard School for music (escola de música
Juilliard), ela iria cantar com a New York City Opera (ópera da cidade de
Nova Iorque), fazendo a sua estreia no Lincoln Center7. A minha mãe vivia
uma vida empolgante, artística e boêmia na cidade de Nova Iorque. Ela
morava no centro da cidade e namorou vários homens que a minha vó teria
ficado mortificada se soubesse. A mãe dela – pura, católica e irlandesa –
não teria aprovado que ela namorasse alguém que não fosse branco como
a neve. (Claro, por outro lado, os supremacistas brancos de Illinois não
morriam de amores pelos irlandeses ou pelos católicos – os WASPs
[protestantes brancos anglo-saxões], como eram chamados na época,
sempre precisavam de novas pessoas para poder controlar.) Um italiano
teria sido um problema, um judeu, teria sido uma tragédia. A minha avó teria
ficado completamente destruída se soubesse que a minha mãe teve um
caso amoroso com um libanês rico e mais velho chamado François, pouco
antes de se apaixonar e se casar com um homem que a sua mãe não
poderia sequer imaginar, o meu pai, que era um negro lindo, mas também
complicado. Isso, para a minha avó (e para a comunidade dela) era a pior
coisa que a sua filha poderia fazer para ela e para a linhagem da família.
Falar com um homem negro era considerado vergonhoso; fazer amizade
com um, uma afronta; namorar com um, um grande escândalo, mas se
casar com um? Isso era uma abominação.
Foi a humilhação final. O casamento da minha mãe com o meu pai foi
mais do que uma traição para a minha vó; era um crime grave contra a sua
linhagem branca, punível com excomunhão.
Para a minha vó, que cresceu em uma época e lugar onde o KKK
realizava manifestações abertamente e era ativo no governo, se casar com
um homem negro trazia um fardo de vergonha que ela não conseguia
entender. A minha vó foi criada para não beber do mesmo bebedouro que
os negros, para não se sentar na mesma cadeira que os negros ou nadar na
mesma piscina. Ela foi ensinada, e acreditava, que os negros eram sujos e
que a negritude podia ser contagiosa. Afinal, os Estados Unidos são o berço
da “regra de uma gota”, o sistema de classificação racial que afirma que
qualquer pessoa com um ancestral possuindo pelo menos uma gota de
sangue negro é considerada negra.
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envolvendo com alguém da mais baixa base social e que iria gerar humanos
inferiores; iria gerar mulatos vira-latas – eu e os meus irmãos. Não é preciso
dizer que a minha avó renegou completamente a minha mãe. Ela não disse
a ninguém mais na família que a sua filha era casada com um homem negro
(e que estava grávida de um filho). Exceto por alguns telefonemas secretos
aqui e ali, a minha mãe perdeu quase que todo o contato que tinha com a
sua mãe. Ela só voltaria para a sua cidade natal muitos anos depois.
Muitas vezes eu me pergunto por que a minha mãe desafiou a mãe dela,
a família e a sua linhagem para se casar com o meu pai. Qual foi a real
motivação dela? Será que foi em nome do amor incondicional? Porque a
relação entre eles nunca foi um “we belong together” (fomos feitos um para
o outro). Ela nunca ficou lembrando do passado e me falando do romance
deles, nem havia qualquer evidência disso: nenhuma foto, nenhum poema,
nenhuma carta, nenhum vestígio de um grande amor. (Bem, eles tinham tido
três filhos.) Talvez a minha mãe quisesse manter a sua história e memórias
do meu pai em segredo, embora eu não possa deixar de me perguntar se o
casamento dela não foi, em parte, uma rebelião contra a sua mãe. Ela fez
isso para chamar atenção e criar um drama com tudo isso? Mais de uma
vez ao longo das décadas, eu ouvi a minha mãe pedir o seu café “preto,
como alguns dos meus homens”. Ela costuma fazer isso na minha frente e
na frente de um dos seus jovens netos negros – que vergonha.
Para ser sincera, eu não sei se a minha mãe alguma vez quis se casar
e ter filhos tão nova. Eu consigo entender que talvez ela quisesse criar uma
rede de segurança, uma nova família para si e continuar abrindo caminhos,
deixando a sua casa e família retrógradas para trás. Mas o que eu não
conseguia entender era por que ela tinha abandonado a sua promissora
carreira de cantora para fazer isso. Desde muito cedo eu decidi que eu não
queria o mesmo destino dela; homem nenhum ou uma gravidez não
planejada não iriam me desviar do caminho. Testemunhar os desvios da
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minha mãe e da minha irmã foi um alerta triste e doloroso. Ver os seus
sonhos serem consumidos pelo fogo acendeu uma chama de advertência na
minha mente.
Em 1977, a minha mãe gravou um disco que ela chamou To start Again
(para começar de novo). Mas naquela época, ela já tinha um casamento
inter-racial problemático, três filhos, um divórcio e uma filha que ainda
morava com ela, eu. Ela achava que uma gravadora iria descobri-la do
nada? Este é um dos muitos erros de cálculo que, quando eu era criança,
eu observei a minha mãe fazer e colocar em um arquivo chamado “O que
não fazer”.
O tempo passou após o divórcio dos meus pais e, um dia, a minha avó
permitiu que a minha mãe a visitasse com a sua neta, mas só a sua neta
mais nova. Eu era uma garotinha de 12 anos e eu não entendia direito por
que ela só havia convidado a mim. Parando para pensar, eu suspeito que
era porque eu era meio loira e muito branca para uma criança birracial. Eu
não levantava muitas suspeitas para o olho não treinado culturalmente. Eu
era muito jovem para perceber como a minha mãe e a mãe dela interagiam,
e eu nunca soube o que aconteceu entre elas naquela época: houve um
pedido de desculpas por parte da mãe da Pat por renegar a sua filha e
também por não permitir que ela entrasse em contato com a sua família?
Ela lidou com o racismo que ela tinha? Houve perdão? Eu não sei. O que
eu me lembro é que ela era rígida e formal. Ela tinha os cabelos totalmente
brancos, que estavam sempre amarrados, mas deixando de lado uma
franja ondulada na testa. Em seu rosto severo, ela usava óculos pretos com
o formato de olhos de gato. A casa dela não era quente e não havia cheiro
no local. Eu me lembro dela entrando no quarto silencioso e sem vida onde
eu dormia enquanto eu estava lá, depois que a minha mãe tinha me
colocado para dormir. Ela se sentou ao lado da minha cama no escuro e,
em um sussurro,
O pão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai-nos as nossas ofensas
assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido
Mateus 6, 11-12
É tudo que eu me lembro daquela visita que eu fiz para a minha avó. Em
uma reviravolta incomum do destino, ela morreu no dia do aniversário da
minha mãe, 15 de fevereiro. Depois disso, estranhamente, a minha mãe
praticamente a santificou. Como adulta, a minha mãe nunca foi católica
praticante, mas por muitos anos ela acendeu uma vela para a sua mãe
46
naquele dia. É estranho como a morte pode fazer as pessoas perdoarem
aqueles que lhes ofenderam e ofenderam aos seus filhos.
47
inúmeros lares adotivos. Durante um dos raros períodos saudáveis da
Gladys, ela e a pequena Norma Jeane viveram juntas por alguns meses em
uma pequena casa branca perto do Hollywood Bowl. O bem mais precioso
em sua modesta residência era um piano de cauda. Quando a doença da
mãe dela mostrou a sua cara feia novamente, isso fez com que ela fosse
arrastada de volta para a escuridão e levada para outra clínica, os poucos
móveis e o piano foram vendidos.
Nós não tínhamos muitas coisas quando eu era jovem, mas o que não
48
podia faltar para a minha mãe era um piano. Nós sempre tivemos um piano
e eu passei muitas horas alegres e de aprendizado junto com a minha mãe.
A minha mãe tocava músicas e escalas comigo, e é claro que eu a ouvia
praticar as escalas dramáticas de ópera. Era ao piano onde eu me sentava
e inventava as minhas próprias melodias.
A minha mãe nunca teve muito dinheiro, mas uma de suas maiores
contribuições para o meu desenvolvimento foi me expor a todos os tipos de
pessoas, especialmente músicos. Ela ganhava alguns dólares aqui e ali
dando aulas de canto em nossa casa. A prática dela era uma constante, mas
o que eu mais valorizava eram os ensaios. Músicos talentosos vinham tocar
música no local boêmio da minha mãe “perto da praia”, e eu tocava com
eles. Música ao vivo era a melhor coisa de se morar com a minha mãe. Eu
estava cercada pelo amor à música, mas muito mais importante que isso,
pelo amor à musicalidade – o amor pela arte, o amor pelo processo. Quando
eu era criança, a minha mãe me apresentou ao mundo de sentar com
músicos: improvisar, sentir o vibe da música e cantar.
49
Eu aprendi várias músicas populares de jazz com a minha mãe e com os
seus amigos músicos, e alguns deles perceberam o meu ouvido aguçado e
as minhas habilidades naturais. Por volta dos 12 anos, eu me sentava com
ela e o Clint, um pianista. Ele era moreno e parecia um ursão de pelúcia, e
ele se garantia tocando piano. Ele se sentava e trabalhava comigo e me
tratava como uma cantora de verdade. Quando eu me sentava com ele e
cantava, nós éramos dois músicos trabalhando juntos. Ele me ensinou
clássicos do jazz, e uma das primeiras canções que eu lembro de ter
aprendido foi “Lullaby of Birdland” (canção de ninar de Birdland), que ficou
famosa na voz da grande Ella Fitzgerald. Eu sempre terei um profundo
respeito pela Sra. Fitzgerald e todas as lendas do jazz que estabeleceram
uma base musical tão fértil para músicos de todos os gêneros. Não era uma
música fácil de ser cantada por pessoa de nenhuma idade, mas para mim
aos doze anos, era muito mais do que avançada. Com a sua melodia
complexa, cheia de transições e mudanças vocais, ela foi composta por uma
das vocalistas de jazz mais ágeis de todos os tempos. Aprender e ouvir jazz
ao vivo ajudou a treinar o meu ouvido e a moldar a minha estrutura criativa.
Eu estava aprendendo como sentir, quando modular e quando fazer scat.
Ser apresentada às musicas populares e à disciplina do jazz me deu o
apreço pelas modulações sofisticadas em uma música e como empregá-las
para comunicar emoções. (O Stevie Wonder é o mestre absoluto disso.)
Para mim, as músicas tem que passar emoção. A minha mãe pode não
ter me levado à igreja, mas tocar com músicos de jazz foi uma experiência
espiritual próxima disso. Existe uma energia criativa que flui pelo local. Você
aprende a sentar e a ouvir o que os outros músicos estão fazendo e se
inspira em um riff de guitarra ou no que o pianista está tocando. Quando
você entra nessa vibe musical, é uma sensação indescritível. Para mim, era
sempre uma forma de fuga extraordinária, que eu sempre precisava e
buscava.
50
essas que viviam me perguntando: “Qual é a sua etnia?” Crianças essas
que me julgavam pela minha aparência e não tinham ideia de como a minha
vida realmente era. Eu sempre soube que o mundo suburbano de Long
Island não era para mim. Eu era um peixe fora d'água e, embora eu tivesse
sobrevivido, eu sabia que ninguém ali realmente se importava comigo, e eu
certamente sabia que eu não ia ficar por muito tempo.
E a minha mãe não era apenas uma senhora mais velha que me apoiava
– ela era uma musicista treinada na Juilliard. A música era algo que a gente
realmente tinha em comum, e sem forçar ou se tornar uma daquelas mães
de palco autoritárias ou “momagers8” (mãe agentes), ela incutiu em mim o
poder de acreditar em mim mesma. Sempre que eu pensava sobre o que
eu faria “se o meu sonho se tornasse realidade”, ela me interrompia e dizia:
"Não diga ‘e se o meu sonho se tornasse realidade’, diga ‘quando o meu
sonho se tornar realidade’. Acredite que os seus sonhos podem se tornar
realidade, que eles se realizarão.”
Eu sentia que “Out Here On My Own” era uma descrição perfeita de toda
a minha vida e eu adorava cantar assim – de um modo que parte da minha
alma se revelasse. E eu ganhei o concurso fazendo isso. Naquela idade,
eu era alucinada pelo filme Fame (PT-BR: fama), e a Irene Cara era tudo
para mim. Eu me identificava com o seu visual multicultural (porto-riquenho
e cubano), com o seu cabelo multitexturado e, acima de tudo, com a sua
ambição e com as suas conquistas. Ela ganhou um Oscar de Melhor
Canção Original com a música “Flashdance... What a Feeling” (que ela co-
escreveu), do filme Flashdance (PT-BR: Flashdance – em ritmo de embalo),
fazendo com que ela se tornasse a primeira mulher negra a vencer em uma
categoria que não fosse atuando. (Ela ganhou um Grammy, um Globo de
Ouro e um American Music Award pela música também.) Mas “Out Here
On My Own” era uma música tão pura e que tocava o meu coração, e eu
não conseguia acreditar que eu tinha ganhado um troféu por cantar uma
música que eu amava. Foi a primeira vez em que eu fui reconhecida como
artista. Que sensação!
51
A minha mãe não me expôs somente à música. Ela tinha amigos que
me tratavam como família, o que ajudou a compensar todos os lugares
miseráveis em que a gente morou e o quanto eu parecia descabelada.
A minha mãe tinha uma amiga chamada “Sunshine”, que era baixa e
bem gordinha, com um coração caloroso e generoso. Ela amarrava o
cabelo em dois longos rabos de cavalo, como a Carole e a Paula de The
Magic Garden (o jardim mágico – um programa de TV infantil local que eu
adorava, e que era apresentado por duas jovens mulheres hippie com um
esquilo rosa de lado, que cantava canções folclóricas e contava histórias,
nos anos setenta e no início dos anos oitenta). A Sunshine tinha filhos
grandes e mais velhos e nenhuma filha, então ela se interessou por mim,
especialmente pela minha aparência desarrumada e negligenciada. Ela
costumava me trazer roupas fofas e bem femininas que ela mesma fazia.
No meu sexto aniversário, ela me vestiu com uma camisa branca bordada
que combinava com uma saia azul, meia-calça branca e sapatos Mary
Jane. Ela até fez o meu cabelo assentar fazendo rabo de cavalo em mim
(talvez porque ela era judia e tinha o cabelo texturizado, ela acabou tendo
uma ideia do que fazer). A minha coroa de aniversário coube bem direitinho
na minha cabeça. Ela até comprou um bolo de aniversário para mim com a
decoração de um cordeiro (lamb)! Um cordeiro! É uma das poucas vezes
em que eu me lembro de me sentir bonita quando eu era criança. A
Sunshine, amorosamente, se certificou que eu ficasse arrumada e bonita.
Ela sempre foi muito carinhosa e doce comigo. Anos mais tarde, quando eu
ia fazer o ensino fundamental, ela apareceu com algumas roupas para mim
e que eu achei muito infantis. Eu rejeitei de forma muito grosseira, de um
jeito todo cruel que só um pré-adolescente angustiado sabe fazer. Até hoje,
eu lamento por ter sido tão cruel com uma pessoa tão atenciosa e que
cuidou tanto de mim – uma das poucas pessoas que fizeram isso em toda
a minha vida.
52
Depois de se divorciar do meu pai, a minha mãe e o François se
reconectaram, e ela planejou um reencontro épico com “o homem rico que
ela deixou escapar de suas mãos”. A minha mãe deixou tanto a mim quanto
ao Morgan entusiasmados com a fantasia de que um homem rico e exótico
viria nos resgatar dos nossos aposentos decadentes, e que o nosso futuro
estava garantido pelo resto da vida – tudo o que a gente tinha que fazer era
impressioná-lo. Eu poderia fazer isso, eu pensei. Talvez a minha mãe e eu
pudéssemos cantar uma música ao piano? A noite do grande encontro
deles chegou, e enquanto a minha mãe e o François não chegavam em
casa, eu escolhi a melhor roupa que eu tinha para cumprimentá-lo. Eu
estava nervosa, porque a minha mãe queria muito ser resgatada, e eu
também queria morar em um lugar bom e seguro. Tinha muita coisa em
jogo.
53
mãe chamado Henry. Ele foi o meu favorito. Ele era cerca de dez anos mais
novo que a minha mãe e era horticultor. Ele dirigia uma velha picape
vermelha, equipada para o campo; as suas muitas ferramentas de
jardinagem, tesoura de poda, adubo e outros suprimentos eram tão grandes
que acabavam não cabendo na parte traseira do veículo. Ele era bom no
que fazia. Ele era muito bem educado e cultivava plantas extraordinárias
que eram bem mais altas do que eu (principalmente algumas espécies que
eram ilegais na época). Ele também deixou o seu cabelo crescer, um cabelo
afro que parecia flutuar em torno de sua cabeça. A minha mãe e eu
moramos em alguns lugares diferentes com o Henry, mas por um tempo
nós três ficamos em uma pequena casa em uma grande propriedade, onde
ele era o jardineiro. O lugar me dava a impressão de que eu estava numa
plantação, e a gente vivia, no que se diz hoje, nos aposentos dos
empregados. No entanto, a casa do Henry era muito melhor do que a
maioria das casas que a gente tinha morado e eu sentia uma leve sensação
de estabilidade.
54
artes cênicas. Eu me lembro da mãe dele, que trabalhava para Estée
Lauder, e era uma cozinheira excepcional. Um dia ela preparou uma pasta
divina, finalizando com um bolo de chocolate alemão, que eu nunca tinha
comido antes. Era um bolo caseiro muito delicioso, quente e que derretia
nas mãos. Mas mesmo com todo esse amor, também havia a parte ruim. O
Henry era um homem negro veterano da guerra do Vietnã que sofria muito
por causa dessas duas coisas. Eu suspeito que ele sofria de transtorno de
estresse pós-traumático (TEPT) e, mesmo eu sendo criança, eu sabia que
ele usava drogas psicodélicas de vez em quando. Eu acredito que ter ido
para a guerra do Vietnã e as consequências que ela lhe causou e o fato de
ser negro foram as causas principais do término do namoro entre ele e a
minha mãe.
“Eu não vou deixar vocês irem embora”, ele disse. “Eu vou cortar vocês
em pedacinhos e vou colocá-las na geladeira e fazer com que vocês fiquem
aqui.” Bem, depois que ele disse aquilo, eu corri para entrar no carro. A
minha mãe ligou o motor.
“Morris!” Eu gritei. “Eu tenho que pegar o Morris; ele ainda está lá
dentro!” Em pânico, eu pulei para fora do carro. Eu estava determinada a
pegar o meu gato. Aquele gato era muito importante para mim; ele era um
amor incondicional para mim.
55
Quando saímos em alta velocidade, o meu coração estava faltando sair
pela boca de tão forte que batia. “Aleluia, eu peguei o Morris!” Eu exclamei
triunfantemente.
56
bastante confusão, e traumas e uma profunda tristeza eram consequências
disso. Eu levei uma vida inteira para encontrar a coragem de enfrentar a
dura dualidade de quem é a minha mãe, a beleza e a fera que coexistem
em uma pessoa – e para descobrir que há beleza em todos nós, mas as
pessoas que te amaram e como elas te amaram determinará quanto tempo
se levará para perceber isso.
Ela cantou o refrão com a sua voz de ópera, e eu virei o meu rosto para
o lado para segurar a risada. Cara, é uma música de R&B dos anos 80,
com o refrão cantado pela voz suave do Michael Jackson, então ouvir o
refrão sendo cantado no estilo da Beverly Sills (uma cantora soprano de
ópera nascida no Brooklyn, popular entre as décadas de 50 a 70) foi muito
engraçado para mim como adolescente.
Ah, mas a minha mãe não achou nada engraçado. Ela baixou o som e
olhou para mim, os seus olhos verde castanhos se estreitaram e ficaram
duros e frios como gelo.
57
Ainda hoje, o que ela disse me assombra e me machuca. Eu não sei se
ela queria me diminuir ou foi apenas um reflexo do seu ego ferido falando;
eu só sei que as palavras que saíram da sua boca perfuraram o meu peito
e se enterraram no meu coração.
58
Winfrey, nada menos que isso)! A madame Price se lembrou da minha mãe
e também reconheceu o meu talento.
“No difícil e exigente negócio das artes, você é uma joia de sucesso.
Alcançar o seu nível de sucesso como artista multidimensional é uma
medida notável do seu talento artístico.” Continuando,
Foi um prazer conversar com você durante o fim de semana em que o Legends Ball
ocorreu e dizer pessoalmente o quanto eu admiro você e o seu talento artístico. A sua
criatividade e as suas apresentações são excelentes. Você apresenta as suas
composições com uma profundidade de sentimento que raramente, se é que acontece,
é visto ou ouvido. É uma alegria ver você transformar todos os obstáculos que você
enfrentou em trampolins para o sucesso. A sua devoção à arte e à sua carreira são
louváveis. Você merece ser aplaudida de pé e um sonoro Brava! Brava! Brava!
*Passada*
Acho que, para a minha mãe, eu posso não ter sido nem a metade da
cantora que ela era, mas eu dei o melhor de mim tanto como cantora quanto
como artista.
Saber que pessoas que você ama tem inveja de você profissionalmente
faz parte do sucesso, mas quando a pessoa é a sua mãe e a inveja é
revelada em uma idade tão tenra, é particularmente doloroso. Eu estava
passando por dificuldades naquela época, e ela expor a sua insegurança
para mim daquela forma, naquele momento, me deixou muito mal. Eu já
tinha corrido tanto perigo de vida e por tanto tempo. Embora tenha sido um
momento sutil e breve, este foi o primeiro grande golpe de muitos que viriam
em que as pessoas próximas a mim tentariam me colocar para baixo, me
colocar no meu lugar, me subestimar ou se aproveitar de mim. Mas ela,
59
particularmente, foi a que mais me machucou, porque ela era a mais
importante. Ela era a minha mãe.
60
CHÁ DE DENTE-DE-LEÃO
– “Petals”
Quando eu era pequena, a minha irmã mais velha parecia viver ao vento.
Ela sempre estava em algum lugar distante. Memórias de infância sobre ela
existem em minha mente como flashes de relâmpagos e trovões. Ela era
excitante, mas imprevisível – as suas rajadas torrenciais sempre traziam
consigo a destruição inevitável.
61
da sua comunidade e país, o Morgan e a Alison foram instruídos pelos nossos
pais a se referirem a eles como “mãe” e “pai”, na esperança, imagino, de que a
formalidade pudesse fazer com que o status deles fosse respeitado. Os meus
pais pareciam pensar que se os vizinhos ou outros curiosos ouvissem a sua
filha e o seu filho dizerem: “Bom dia, mãe” ou “Olá, pai”, eles não os achariam
nojentos.
A Alison e o Morgan acreditavam que a minha vida era mais fácil do que a
deles. O nosso pai era muito rígido com eles. Ele não foi rígido comigo porque
três ou quatro anos era a idade que eu tinha quando todos nós morávamos
juntos. Durante uma de suas inúmeras brigas, eu me lembro vagamente da
minha mãe gritando com ele algo como: “Esta aqui é minha! Você não vai
encostar nessa daqui.” Eu era a caçula dela. Ela costumava dizer que “não
tinha forças” para desafiar a agressividade do meu pai quando os meus irmãos
estavam crescendo.
Eu só tenho uma lembrança que é todos nós jantando juntos. Foi uma
espécie de “jantar para fazer as pazes” – os meus pais tentando mais uma vez
ver se a gente conseguiria se estruturar como família. Todos nós estávamos
sentados em volta da mesa e eu comecei a cantar.
O meu pai disse: “crianças tem que ser vistas, não ouvidas”.
62
A artista dentro de mim interpretou isso como uma deixa, então eu me
levantei da mesa de jantar, dei alguns passos até a área da sala de estar (que
estava bem à vista e bem ao alcance da voz), subi em cima da mesa de centro
e continuei a cantar a plenos pulmões. A Alison e o Morgan baixaram a cabeça,
se abaixando diante da ira do nosso pai, que eles tinham certeza de que
inevitavelmente ricochetearia pela sala. Mas a minha mãe olhou para ele e ele
não disse nada. A minha irmã e o meu irmão ficaram pasmos. Eu não fui
atingida, punida, nem gritaram comigo ou mesmo me pararam. Eles nunca
teriam ousado desafiar o nosso pai. Não é à toa que eles me odiavam.
Não é preciso dizer que o jantar não nos salvou. O divórcio era inevitável.
A minha mãe e o meu pai tomaram a decisão final de terminar antes que tudo
desmoronasse. Eu lembro que me levaram à casa dos nossos vizinhos e eles
me deram pipoca enquanto a minha família estava na casa ao lado discutindo
com quem ficaria cada membro da família Carey. Depois de vários encontros
violentos envolvendo a polícia, por ordem do tribunal, o meu pai e o meu irmão
não puderam morar juntos. Em um dado momento, o Morgan foi levado ao
Centro Psiquiátrico Infantil de Sagamore, um centro de cuidados para crianças
com graves problemas emocionais e famílias em crise. O Morgan era uma crise
por si só. Eu também soube que um psiquiatra chegou à conclusão que um
fator determinante e considerável para os problemas comportamentais do
Morgan era a Alison, que tinha o talento de instigar e manipular o Morgan até
ele perder o controle. A Alison é muito esperta. Então o Morgan teve que morar
com a minha mãe, e ela deixou claro para o meu pai que ele não ficaria comigo.
Isso deixou a Alison dispersa.
Eu já ouvi a Alison dizer que ela sentiu como se a minha mãe a tivesse
jogado fora, que a nossa mãe claramente amava ao Morgan e a mim mais do
que a ela. Eu também ouvi a minha mãe dizer que a Alison escolheu morar com
o nosso pai porque ela se sentia mal e não queria que ele ficasse sozinho.
Provavelmente há alguma verdade em ambas as perspectivas. Eu era muito
jovem para realmente entender.
Eu realmente não sei como era a vida para a minha irmã morando com o
nosso pai, apenas os dois, traumatizados e com raiva. Deve ter sido
extremamente sufocante – um conflito constante de sentimentos de abandono
e ressentimento em relação à minha mãe sob o teto deles. O local não era
propício para se achar uma solução, eles não tinham nenhuma chance de se
curarem. Manter a ordem e a obediência era como o meu pai tentava entender
o caos da sociedade e os escombros que a sua estrutura familiar havia se
tornado.
63
A criança agora sob os cuidados exclusivos do meu pai era uma
adolescente amarga e traumatizada, e ele não sabia como lidar com a
disfunção e a dor dela. Por fim, o meu pai e a Alison formaram um vínculo,
unidos em seu desdém pela minha mãe. Eu acredito que eles também se
uniram devido à inevitável visibilidade de serem negros.
E então, por muito tempo, o meu pensamento era: “Ok, então eu acho que
aos quinze anos é quando as pessoas têm filhos e se casam”.
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Isso distorceu a minha realidade. Mas também me focou. Eu prometi a mim
mesma que isso não iria acontecer comigo. O meu senso de autoestima, ou
melhor, o meu senso de autopreservação surgiu naquele chá de bon voyage /
chá de bebê / festa de despedida. Eu jurei que eu jamais seria promíscua. Essa
promessa de viver uma vida diferente me tornou uma pessoa muito recatada.
Eu descobri naquela época – de repente que eu havia me tornado uma tia antes
dos oito anos de idade – que o caminho que a Alison trilhou eu não trilharia.
Depois que a última fatia de bolo da festa de despedida / chá revelação acabou,
a minha irmã também sumiu, por vários anos.
Eu nunca vou entender o que aconteceu com ela nas Filipinas. Mas eu sei
que quando ela deixou a casa do meu pai, o resto da sua frágil infância foi
deixada para trás.
Depois de alguns anos nas Filipinas, a Alison voltou para Long Island. Eu
tinha cerca de doze anos e ela vinte. O que quer que tenha acontecido com ela
lá, ou em Long Island, ou em um quarto dos fundos em algum lugar, tinha
causado danos a ela. Aquela garota super inteligente e linda com cachos
escuros que era a minha irmã mais velha endureceu e parecia haver uma
pessoa irreconhecível no lugar. Algo, ou muitas coisas, devem ter acontecido
com ela para fazer com que ela usasse o seu corpo para conseguir dinheiro e
drogas, como ela fez por anos. Naquela época, eu não sabia de muita coisa,
mas também havia muita coisa que eu nunca deveria ter descoberto,
certamente não tão jovem. Os anos entre nós poderiam muito bem ter sido
séculos.
Quando a Alison voltou, ela vagava de um lugar para o outro e ficava com
vários homens, às vezes aparecendo do nada na casa da minha mãe entre os
muitos relacionamentos aleatórios com homens que ela mantinha e depois
descartava. Ela chegou a ficar com um homem mais velho – eu imaginei que
ele tivesse cerca de sessenta anos. Ele era meio careca e tinha cabelos
grisalhos. Ele era educado com a minha mãe e às vezes enchia a nossa
geladeira de comida, então eu acho que ela confiava nele? Uma noite no
barraco, a Alison e a minha mãe entraram em uma de suas inúmeras
discussões épicas e, por alguma razão desconhecida, a Alison me levou com
ela para a casa desse senhor mais velho. Eu não lembro de muita coisa da
casa dele e nem daquela noite, porque quando nós chegamos, a Alison me
sentou em um sofá marrom claro e me entregou uma pequena pílula de cor
azul gelo, que parecia um pedaço de giz com uma dobra entalhada no meio, e
um copo d’água.
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Eu tomei a pílula. Em poucos minutos (eu acho) eu estava em uma
escuridão pesada e assustadora, como se eu tivesse ido parar num lugar
abaixo do sono e da consciência, e que eu não conseguia sair. Não sei quanto
tempo fiquei desmaiada. Eu me senti como se eu tivesse sido absorvida pelo
sofá (a única razão pela qual eu me lembro da cor). Foi angustiante.
Embora por volta dos seus 20 e poucos anos a Alison já tivesse se casado,
dado à luz, se divorciado, viajado milhares de quilômetros de distância e feito
coisas terríveis, ela ainda podia ser boba e espontânea. O pior ainda não tinha
acontecido entre nós, então eu ficava genuinamente feliz pelas visitas malucas
que ela fazia à casa da minha mãe. Em seus dias bons, ela era como uma luz
que iluminava a nossa pequena habitação, que era muitas vezes sombria. Ela
parecia madura e tinha um tipo de glamour vazio. Ela passou a se interessar
por mim como uma pré-adolescente agora, em vez de uma garotinha. Ela
prestou atenção à minha aparência desarrumada, tomando a iniciativa de
corrigir as minhas tentativas desastrosas de ficar bonita, o que para uma
criança de 12 anos significa tudo. Depois que eu acidentalmente pintei o meu
cabelo com todos os tipos de tons de um feio laranja, ela me levou a um salão
para pintar o meu cabelo e deixá-lo com uma só cor. Ela me levou a um outro
lugar e que deixou as minhas sobrancelhas lindas. Ela me levou para comprar
o meu primeiro sutiã. Ela e eu buscávamos seriamente ser normais. Nós
estávamos tentando ser irmãs – ou assim eu pensei.
Mesmo sendo jovem, eu sabia que a minha irmã estava fazendo coisas que
não eram boas. Tipo assim, ela tinha um bipe, e apenas traficantes de drogas,
rappers e médicos tinham bipes naquela época. As unhas dela eram lindas –
pintadas com um esmalte rosa brilhante, e às vezes decoradas com strass.
Uma vez, quando ela estava me deixando na frente da casa da minha mãe, ela
enfiou a ponta da unha rosa e afiada dela em um pó de cristal branco e segurou
perto do meu rosto, dizendo: “Experimente, experimente um pouco; quem se
importa?”
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Eu sabia que aquilo era cocaína e eu fiquei morrendo de medo. Graças a
Deus, eu não cheirei. Eu disfarcei e respondi calmamente: “Não, obrigada!
Tchau; até logo.” Estremeço ao pensar no que poderia ter acontecido se eu
tivesse caído na armadilha dela ali e depois naquela casa. Não sei o que teria
acontecido se eu tivesse cheirado cocaína antes de ver a minha mãe, ou
cheirado alguma vez na minha vida.
Um dia, ela informou que era hora de eu conhecer o seu incrível namorado,
o John, e as outras garotas com quem ela andava, sobre as quais ela me
contava histórias. O John era alto, com olhos verdes, um negro grande e fofo e
super carismático. A Christine, uma garota branca fugitiva de dezessete anos,
uma mulher mais velha chamada Denise – “mais velha” significa que ela talvez
tivesse vinte e oito anos – e a minha irmã, então com vinte e poucos anos,
todas moravam em uma casa com o John. Eu olhei para a Christine; ela tinha
um ar mundano, mas também parecia uma garotinha. A sua pele pálida era
cheia de sardas bronzeadas e ela tinha cabelos loiros médios que caíam
suavemente sobre os ombros, que eram longos e finos como o resto do seu
corpo. Ela poderia participar de um filme adolescente, mas em vez disso ela
estava ali, naquela casa. Ela estava destruída por dentro.
A casa do John era mais legal, mais iluminada e mais limpa do que a minha.
Eles tinham um sofá novinho em folha. Tinha uma televisão e eu podia assistir
qualquer programa que eu quisesse. Tinha também todas as guloseimas que
eu poderia querer. Eles tinham até sucos da marca Juicy Juice. Nós não
podíamos pagar por nada disso lá em casa. Algumas vezes a minha irmã
chegava na casa da minha mãe e enchia a geladeira com as coisas que eu
gostava. Era isso que me deixava meio confusa com a nossa relação. Às vezes
parecia que ela se importava, mas os motivos dela sempre eram incertos. Ela
estava sendo uma boa irmã mais velha ou ela estava criando um desejo em
mim pelo que eu sabia que eu poderia ter o tempo todo na casa do John? Era
uma manipulação disfarçada de amor.
A minha irmã me disse para não contar a ninguém que eu estava indo para
a casa onde ela morava com o John, especialmente o nosso irmão. Ela me
disse que o nosso irmão não gostava dele porque o John o havia vencido no
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jogo de gamão. Sendo tão jovem e ingênua na época, eu acreditava que a
animosidade entre eles era por causa de um jogo de tabuleiro, não por causa
de prostituição e envolvimento com drogas. Portanto, não havia ninguém que
soubesse, ninguém para me proteger. Famílias desestruturadas são presas
ideais para os abusadores, os pequeninos expostos são vulneráveis a serem
pegos. Agora, claro, está claro para mim que a casa de diversões era um
bordel. Acho que a minha irmã era uma espécie de prostituta, caçadora de
talentos. Mas na época, eu não tinha ideia; afinal, eu era apenas uma menina
de 12 anos. Me conquistar era muito fácil – literalmente como dar um doce a
uma criança, mas em vez de um doce era uma lavagem de cabelo, um sutiã e
uma caixa de suco da Juicy Juice.
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antes de eu ir para o ponto de ônibus para pegar o ônibus da escola.
O John manteve os olhos voltados para a frente e me garantiu: “Ah, ela vai
chegar aqui mais tarde.” Eu estava sentada no banco da frente e podia ver
claramente uma arma em cima da coxa dele.
Não sei exatamente quantos homens haviam ali; não sei quantas armas,
quanto dinheiro ou quantos pensamentos vis estavam na mesa – mas eu sei
que eram todos homens e somente eu de menina. Eu me sentei em um canto
do chão pegajoso de onde dava para ver a porta e fiquei encolhida. Eu fiquei
quieta e mantive os olhos baixos enquanto aqueles homens contavam piadas,
falavam palavrões, falavam de comer alguma coisa, falavam de seus medos e
fantasiavam perto de mim. De vez em quando, eu percebia que um deles me
olhava maliciosamente ou então eu ouvia uma referência obscena ao meu
respeito em uma conversa.
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A nossa próxima parada foi no cinema ao ar livre, onde o John quase que
imediatamente me abraçou. O meu corpo ficou rígido. Os meus olhos estavam
fixos na arma dele. O John se aproximou de mim e me deu um beijo forçado.
Eu estava com náuseas e medo; eu não conseguia me mexer. Pelo canto do
olho, eu notei um homem branco e idoso estacionar ao nosso lado, olhando
diretamente para o carro do John.
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O John finalmente foi embora. Embora eu tivesse escapado dele por pouco
novamente, o medo que eu passei a ter de homens demorou por muito tempo.
Quando eu cheguei em casa, eu desliguei o telefone da parede e parei de
confiar na minha irmã mais velha para sempre.
Eu não tinha ninguém para contar o que havia acontecido. Eu não podia
contar para a minha mãe. Eu não tinha amigos íntimos de verdade. Eu nunca
havia realmente me enturmado. Mesmo se eu contasse, como eu poderia
explicar isso a uma criança de uma família normal que jantava às seis horas,
ia para a cama às nove e meia e que se metia em encrenca quando não
escovava os dentes? Criança nenhuma seria capaz de entender isso. Se
espera de uma irmã mais velha que ela te proteja – não que ela te ofereça a
um cafetão. Portanto, eu não contei a ninguém nem confiava mais em ninguém.
Mas, quando se é criança, você ainda deseja ter uma irmã mais velha, e os
dentes-de-leão ainda são flores quando florescem.
Uma visita da minha irmã, entre todas as visitas e lembranças, foi a que
mais me marcou.
Nós tentamos tomar chá. Tomar chá era uma ocasião especial na casa da
minha mãe, mas não era nada apropriado. Não havia uma chaleira alegre e
sibilante; a gente fervia a água em uma pequena panela surrada em um fogão
velho na cozinha minúscula, insípida, encardida e cor de fuligem. Xícaras e
pires que combinassem certamente não existiam em lugar nenhum; nós
tínhamos xícaras e canecas que não combinavam, do tipo que se encontra em
caixas marcadas com “grátis” nos brechós ou nas vendas de garagem de Long
Island. O sabor “café da manhã inglês” era o sabor principal de chá que a gente
tomava; cada uma de nós bebeu uma xícara com um saquinho de chá. Eu
segurava uma caneca de cerâmica esmaltada grossa de cor marrom e que
estava lascada na borda. Eu estava segurando o chá preto fumegante e
perfumado com as duas mãos quando o telefone tocou.
Nós duas ficamos um pouco chocadas. O meu pai raramente ligava para a
casa da minha mãe e, se ligava, era quase sempre para nos repreender por
alguma coisa. A Alison e eu trocamos um rápido olhar – quem tinha feito o quê
agora? De repente, a minha mãe olhou em minha direção e eu percebi que eles
estavam falando de mim. Eu balancei a minha cabeça com um “não” e fiz um
gesto de que eu não iria falar no telefone. A Alison e eu estávamos prestes a
tomar chá, talvez até um raro momento de descontração, e eu sabia que eu
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teria que levar a sério se eu tivesse que falar com o nosso pai ao telefone. E
sabe-se lá o que a Alison poderia ter feito e que eu teria que ficar sabendo.
Mas a nossa mãe não nos acobertou. “Sim, ela está aqui; espera um
pouco”, disse ela, segurando o telefone e gesticulando para eu atender.
Qualquer “momento de descontração entre irmãs” que a Alison e eu
estivéssemos tentando criar foi por água abaixo. Endireitei o rosto, me levantei
a contragosto e peguei o telefone. Então eu segurei o telefone, estiquei o fio e
balancei o telefone na cara da Alison para que ela atendesse.
“Nãããão, atende você”, disse ela. Uma conversa boba começou entre nós
por alguns momentos – um jogo de quem ficaria com o fardo de falar com o
nosso pai. Foi quase divertido.
Mas ela não estava olhando para mim. Ela estava olhando para a sua
caneca de chá ainda fumegante em sua mão, e quando ela ergueu o rosto, os
seus olhos estavam cheios de raiva, sem o menor traço de brincadeira de uns
poucos minutos atrás. Antes que eu percebesse o que estava acontecendo, ela
gritou “Não!” e, num piscar de olhos, jogou o chá bem quente em cima de mim.
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minha irmã. A horrível sensação física foi tão intensa que eu acabei
desmaiando. Depois disso, as minhas costas ficaram dormentes e não podiam
ser tocadas sem me causar uma dor terrível. Demorou anos até que eu
pudesse aceitar um simples tapinha nas costas, já que a maior parte da minha
pele teve que se renovar e se reparar completamente.
Eu sei que a minha irmã estava profundamente ferida. Ela é a pessoa mais
brilhante e traumatizada que já conheci. Talvez eu nunca entenda o que a
machucou tanto para que ela viesse a machucar tantas outras pessoas, mas
para mim, ela foi a própria vítima e quem mais se prejudicou com os seus
próprios atos. O meu ponto de vista é que ela escolheu fixar residência
permanente na “terra dos coitadinhos”. O futuro que ela tinha pela frente foi
desperdiçado a preço de banana, em vez de ser redimido por meio de um longo
e difícil processo de recuperação e reconstrução de si mesma.
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“Eu tenho eternamente doze anos.” Eu ainda estou lutando contra o que eu
passei naquela época.
– “Petals”
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DESEMBARAÇADOS E PENTEADOS
Esta foto é uma das minhas favoritas da minha infância. Nela, pareço uma
típica aluna da primeira série nas férias de verão. Pareço pertencer a alguém
que sabe cuidar de mim. Pareço bem cuidada. Mas eu não fui.
Não havia como ir ao salão, dahling. Eu não me lembro da minha mãe indo
13 Siena crua: uma espécie de terra ferruginosa usada como pigmento em pinturas,
normalmente de cor marrom-amarelada.
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uma vez a um salão. Ela vivenciava totalmente a filosofia de beleza boêmia e
descomplicada da década de 50 e 60. Para ela, passar um delineador já
indicava que um rosto estava maquiado – uma pequena asa de gato, por
exemplo. Se ela quisesse parecer muito chique – um toque de rímel, um toque
de blush, um batom e voilà! Rosto perfeito. O cabelo dela era fabuloso, em
todos os sentidos. Mesmo que tivesse se passado pela cabeça dela em ir ao
salão fazer tratamento de beleza, para ela ou para mim, a gente nunca poderia
pagar. E, além disso, não havia salões naquela parte de Long Island que
pudessem dar um jeito nos meus cabelos alinhados e compreendessem o
quanto o meu cabelo precisava de cuidados. Naquela época não havia
profissionais que trabalhassem com o meu tipo de cabelo em lugar nenhum,
realmente, nem havia produtos especializados. Eu vivia no meio de dois
mundos: nem produtos Afro Sheen, para negras com cabelo crespo, e nem
produtos Breck shampoo, para garotas loiras de cabelos lisos, serviam para o
meu cabelo embaraçado.
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próprios fardos para notar? Será que ela não conseguia sentir a secura e os
nós e a juba dos emaranhados nodosos na minha cabeça? Será que ela não
podia me sentar e escovar e pentear o meu cabelo por duas horas, como a
Marcia Brady fazia no seriado The Brady Brunch (PT-BR: a família sol-lá-si-
dó)? Talvez em sua ideologia boêmia e amante dos anos 60 ela pensasse que
eu parecia livre, como uma adorável criança hippie. Talvez ela não soubesse
que eu me sentia suja.
Ter um pai negro e uma mãe branca é complicado, mas quando se é uma
garotinha com mãe branca, em grande parte isolada de outras mulheres e
meninas negras, pode ser terrivelmente solitário. E, claro, eu não tinha modelos
birraciais para me espelhar ou outros tipos de referência. Eu entendo porque a
minha mãe não sabia como cuidar do meu cabelo. Quando eu era bebê, era,
bem, cabelo de bebê, principalmente uniforme, com cachos macios. Conforme
eu fui crescendo, o meu cabelo ficou mais complexo, com diversas texturas
surgindo aparentemente do nada. Ela não sabia o que estava acontecendo. Ela
ficou confusa e do nada passou a cortar uma franja horrorosa no meu cabelo
(acreditar que uma franja se comportaria em um cabelo birracial é corajoso).
Era um desastre e eu não sabia o que fazer. Aos sete anos, eu realmente
pensava que se ela simplesmente lavasse o meu cabelo com o xampu Herbal
Essence, uma fada do cabelo viria à noite, e eu acordaria e puf! Eu teria um
cabelo perfeito, como o da minha mãe ou como os das garotas dos comerciais.
Uma vez, as meias irmãs do meu pai meio que tomaram uma iniciativa,
determinadas a “fazer algo para domar a juba daquela criança”. A coisa tinha
ficado séria. Eu estava na segunda série quando o meu pai me levou para a
casa do meu avô e da Nana Ruby no Queens.
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cedo e que, até hoje, utilizo com frequência. No banco de trás do carro, durante
a longa viagem para visitar a família do meu pai, eu ouvi a Alison, sentada na
frente, resmungando com ele sobre como eu estava absorvendo as
peculiaridades e excentricidades da minha mãe (particularmente aquelas
associadas ao privilégio branco). Eu acho que ela pensava que eu estivesse
no mundo, “fingindo ser branca” com a nossa mãe branca (como se uma
criança pudesse fazer essa diferença).
A doce Nana Ruby foi a segunda esposa do pai do meu pai, com quem ele
teve muitos filhos, meio tias e tios para mim, que posteriormente formaram um
grupo grande de primos, alguns dos quais tinham mais ou menos a minha
idade. O meu pai e o pai dele, o Bob Carey, tinham uma relação complicada. A
mãe do Bob era da Venezuela e acredita-se que o seu pai era negro –
misturado com algum gene branco não documentado, já que ele também tinha
uma cor de pele mais clara para o que era então chamado de “espectro negro”.
Até eu ter cerca de seis anos, fazia anos que o meu pai não falava com o
seu pai. Ele era filho único e tinha uma mãe diferente dos outros filhos do meu
avô; a minha vó Addie, mãe do meu pai, era tão calorosa e acolhedora quanto
a Nana Ruby e a sua casa – e pelo que eu pude ver, a Nana enchia o meu pai
de amor – mesmo assim, ela não era mãe dele, e talvez ele se sentisse como
um peixe fora d’água com eles. Eu acho que o meu pai se esforçou para fazer
as pazes com o meu avô, tanto para o bem dos próprios filhos quanto para o
dele próprio. Ele deve ter percebido como eu me sentia isolada, morando
apenas com a minha mãe em uma comunidade totalmente branca que estava
se tornando cada vez mais hostil para mim. Eu precisava saber o que era
família.
E eu serei eternamente grata por isso, porque aquela casa era um lugar
aconchegante e repleta de vida familiar. Eu adorava ir para lá. Toda a
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vizinhança amava o meu avô. Ele era um cara normal, que gostava de se
divertir e tinha uma risada cordial, que usava meias 3/4 com os seus chinelos
estilo rider. Ele tinha uma pequena vinícola no seu quintal no Queens. Ele
cultivava uvas verdes com as quais ele fazia vinho doce caseiro, e que ele
armazenava no porão. A Nana Ruby e as minhas tias sempre tinham algo
cozinhando na minúscula cozinha – frango, verduras –, mas o prato básico de
destaque era arroz com feijão. Eu comia pratos cheios de arroz com feijão.
Ouvia-se o clamor de ruídos reconfortantes: panelas batendo, música soul ao
fundo, o som da TV, conversas, risos, portas abrindo e fechando, pés correndo
para cima e para baixo nas escadas. Era um local alegre. Havia pessoas
somente papeando, se conectando um com o outro. Passar um tempo lá foi o
sentimento mais próximo que eu tive de ter uma grande família, uma família
normal, uma família de verdade.
“Oh, Sra. Uh-Whiggins!” um dos meus primos falava com um sotaque sueco
tolo e forçado. Eu encarnava a personagem e a gente começava a improvisar.
O que eu mais adorava eram as gargalhadas com os meus primos. Eu amava
o som da minha risada junto com a risada das outras crianças, que eram mais
ou menos parecidas comigo.
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“Sim, ela é nossa prima!” eles respondiam de volta. Quem era a minha mãe,
quem era o meu pai, a quem eu pertencia, estava sempre em jogo. Mas sair
com os meus primos não era tão difícil. Eu fazia parte de um grupo. Eu fazia
parte deles, e eles me defendiam. Sim, ela é. Simples assim. E foi muito
importante. Os meus primos negros eram os únicos que eu conhecia quando
eu era pequena. Como a família por parte da minha mãe, o lado branco, a havia
deserdado, eu não tinha como me relacionar com nenhum deles quando eu era
criança.
Os meus primos eram bem unidos porque as suas mães eram muito unidas.
Uma tia em particular era a mais jovem e tinha um corpão – ela era
simplesmente linda. Ela parecia pronta para arrasar na pista de dança do
programa de TV Soul Train. Ela vivia sempre muito bem maquiada, com os
lábios cheios de gloss brilhando como cristal. Ela usava roupas chiques e da
moda, e o seu cabelo estava sempre muito impecável, penteado para trás, para
que todos vissem o seu rosto. Ela criava moda o tempo todo, de forma sexy e
coordenada, quase tão fabulosa quanto a Thelma do seriado Good Times (mas
com um pouco mais de corpo). Esta minha tia sexy vendia maquiagem em
balcão de loja de departamentos – agora isso era muito show para mim. Certa
vez, ela fez uma avaliação facial de brincadeira em mim e na minha prima
favorita. Enquanto ela examinava os nossos rostinhos, ela disse a Cee Cee:
“Os seus lábios são bons”. Então ela se virou para mim com um olhar perplexo
e fez uma pausa. Eu estava pensando, e me preocupando, o que há de errado
com o meu rosto? Comigo?
“Mariah, os seus lábios não são carnudos o suficiente”, disse ela com um
suspiro.
Eu não sabia para que os meus lábios não eram carnudos o suficiente, mas
eu aceitei totalmente a análise dela como um fato. Alguns anos depois, eu tinha
cerca de 12 anos e eu estava passeando em uma loja de departamentos em
Long Island com uma amiga branca, onde eles maquiavam pessoas grátis em
um dos balcões. A minha amiga, pelos padrões locais, era bonita: grandes
olhos azuis, nariz fino e lábios muito finos. Eu, sem dúvida, usava uma roupa
qualquer, e sabe-se lá como o meu cabelo estava naquele dia. Claramente
aparentando ter a idade que a gente tinha, nós nos sentamos para fazer um
tratamento facial. Talvez a vendedora tenha pensado que a gente tivesse
dinheiro para comprar a maquiagem, ou ela estava entediada, ou simplesmente
ela ficou com pena de nós. Seja qual for o caso, ela começou o processo.
Assim como a minha tia fez, ela estudou os contornos e os ângulos dos
nossos rostos e me relatou: “Os seus lábios são muito carnudos na parte
superior.” Peraê, eu pensei. Eu achava que eu tivesse um lábio superior fino –
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mas não tão fino quanto o da minha amiga branca, cujo tamanho de lábio era
o “padrão” na época. Eu senti vontade de dizer: “Na verdade, eu realmente
quero que os meus lábios sejam maiores” – e que é verdade, desde o dia que
a minha tia me avaliou – mas eu achei melhor não dizer nada. Assim, eu recebi
duas opiniões profissionais diferentes sobre os meus lábios quando eu era
criança; eram muito carnudos para um padrão de beleza de pessoas brancas
e não carnudos o bastante para um padrão de beleza de pessoas negras. Em
quem eu devo acreditar? Era como se as minhas feições não fossem bem
afeiçoadas. E não havia ninguém para me dizer: “Mariah, não há nada de
errado com você.” Ponto final.
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mundo paralelo, uma câmara secreta – uma câmara para embelezar meninas
negras.
Finalmente, eu pensei, que talvez o meu cabelo tivesse jeito. Que ele,
depois de transformado, ficasse com cachos elegantes e brilhantes, e eu ficaria
parecida com as minhas lindas primas e amigas negras que se reuniam no
Queens. Ou que talvez ele ficasse liso e reto como os cabelos das garotinhas
brancas com quem eu cresci em Long Island. De qualquer forma, eu fiquei feliz
porque o meu cabelo finalmente seria cuidado por alguém que sabia o que
fazer.
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Em raras ocasiões, a minha mãe, o meu irmão e eu íamos de carro para
Jones Beach como família. (A proximidade da praia era uma das poucas
vantagens de morar na ilha de Long Island.) Em uma manhã de verão, nós três,
e um dos amigos do meu irmão, embarcamos na lata velha da minha mãe e
pegamos a estrada para a praia. Era um dia claro e brilhante; dava para ver o
oceano no céu. Era um dia perfeito para ir à praia. A minha mãe, usando um
cafetã de algodão azul claro com listras verdes finas, estava dirigindo. Todas
as janelas estavam abertas, dando ao carro uma falsa sensação de
conversível; as mangas de sino da minha mãe balançavam levemente ao
vento. Ela usava os seus óculos escuros grandes, que era a cara dela, e o
cabelo dela estava esvoaçante como de costume. O meu irmão estava sentado
ao lado dela, sem camisa, e o seu cabelo afro grande e fofo balançava
suavemente.
Ao longo da viagem, sem uma única palavra trocada entre nós, ele removeu
todos os nós e emaranhados do meu cabelo. Quando chegamos à praia, o meu
cabelo não era mais um fardo. Estava solto. Eu corri direto para o mar – ah,
como eu amo o mar, algo que eu herdei da minha mãe – e enquanto eu corria
eu pude sentir o meu cabelo, flutuando e balançando ao vento pela primeira
vez. Aleluia! O meu cabelo estava realmente esvoaçante como nos comerciais!
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emaranhado ao qual eu estava acostumada. Em vez disso, eu toquei em
cachos definidos e alongados! Pela primeira vez, o meu cabelo estava bonito.
Eu me senti bonita. Eu me senti suave e leve, como se a vergonha que eu
carregava tivesse sido arrancada de mim e levada embora.
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O MELHOR AMIGO DE UMA GAROTA
Uma noite, eu estava andando sem rumo pelo corredor em uma das muitas
casas em que a gente morou. Enquanto eu passava pelo quartinho escuro da
minha mãe, eu entrei como quem não quer nada. Eu não me lembro se a vi ou
a ouvi primeiro, mas eu sei que algo me levou para aquele quarto. As cores
desbotadas da velha TV em frente à cama eram a única coisa que iluminava o
quarto, onde a minha mãe estava deitada de lado, assistindo a um especial
sobre a vida e a morte da Marilyn Monroe.
A sua energia era como a de uma fada, mas ela parecia uma deusa, envolta
em um luxuoso vestido de seda rosa choque e luvas de ópera combinando,
com diamantes de todos os tamanhos pendurados em suas orelhas e em volta
de seu pescoço e pulsos. As únicas partes da pele dela que estavam expostas
eram o rosto, os ombros e os braços até o cotovelo, mas eu me lembro que a
pele dela parecia incrível e sedosa, brilhando como tecido de seda. O cabelo
dela estava apenas alguns tons mais claro, deslumbrante como fios de ouro.
Ela tinha um corpão, com quadris redondos e curvilíneos, uma cintura pequena
e justa, seios fartos e bem definidos e braços receptivos a abraços. Ela tinha
presença, como uma dançarina, mas os seus pés não pareciam se mover. Em
vez disso, dezenas de pessoas dançavam em volta dela: bajulando e
abanando, se ajoelhando e se curvando diante dela, a erguendo acima de suas
cabeças como faziam com a Cleópatra. Talvez ela fosse uma rainha, eu pensei.
A rainha brilhante das estrelas de cinema.
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Eu nunca tinha ouvido falar sobre a Marilyn Monroe antes daquele
momento. Mas eu me identifiquei na mesma hora. Não era algo típico para uma
garota da terceira série, talvez, mas a minha infância foi tudo menos típica. A
minha mãe apoiava com muito amor o meu fascínio pela Marilyn. Enquanto a
maioria das garotas da minha idade adornava as paredes com fotos de Holly
Hobbie – bonecas de pano com sardas e tranças de fios louros usando uma
touca com estampa de morango – eu tinha um pôster da Marilyn Monroe
vestida como uma vedete sensual, usando um bustiê de contas pretas, meia
arrastão e sapatos de couro preto. Eu olhava para a Marilyn antes de dormir e
ela era a primeira coisa que eu via ao acordar.
Depois, a minha mãe comprou para mim o livro Marilyn: A Biography (PT-
Br: Marilyn), escrito pelo Norman Mailer. Embora eu fosse jovem demais para
ler o livro, como a própria Marilyn, eu lia bastante. Eu me debrucei sobre as
fotos grandes e brilhantes dela, analisando todos os seus diferentes estados
de espírito e aparência. Ela era uma camaleoa – em algumas fotos ela era
incrivelmente bonita e glamorosa, em outras ela parecia destruída e prestes a
desaparecer. O cabelo dela também mudava de formato: cachos, rabos de
cavalo, coques deslumbrantes, bobs com ondas profundas. Eu até detectei
cachos emaranhados e embaraçados semelhantes aos meus sob os seus
perfeitos cabelos ondulados e loiros. Havia também algo de especial no corpo
dela, que parecia ter uma cor branca diferente para mim. Ela não tinha somente
um corpo de violão, ela tinha também uma sensualidade muito particular, de
penetrar a alma.
Eu soube que o nome da Marilyn pode até ter sido a inspiração que a minha
mãe teve para me dar o meu nome. As primeiras quatro letras são iguais: MARI.
No entanto, o meu pai dizia que o meu nome vem de Black Maria / Mariah, o
terrível camburão da polícia usado para transportar pessoas para a prisão no
Reino Unido. Tem também outra história, que o meu nome foi inspirado em
uma música de sucesso dos anos 50, “They Call the Wind Maria” (eles chamam
o vento de Maria), da peça Paint Your Wagon, uma comédia musical da
Broadway sobre a corrida do ouro na Califórnia. (Ambas as referências usam a
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pronúncia suave, com a segunda sílaba pronunciada mais ou menos como
raiya do seriado japonês Jiraiya.) Talvez seja uma combinação de todos os três
nomes: uma estrela dos anos 50, uma canção de uma comédia musical e um
camburão da polícia.
Seja qual for a origem do meu nome, eu não gostava dele quando eu era
mais jovem. Ninguém tinha um nome igual ao meu, e quando se é criança, isso
não é legal. Eu sempre desejei ter um nome normal como Jennifer ou Heather.
Não havia adesivos bonitos, chaveiros ou mini placas de carro feitos com o
meu nome. Mas a pior parte era que quase ninguém sabia pronunciá-lo. Eu
sempre tinha medo de ver um professor substituto, fazendo a lista de chamada,
e me chamar de Maria ou Maya. Eu só vim conhecer outra Mariah quando eu
tinha dezoito anos; ela era uma garota negra legal e a gente se solidarizava
com bom humor pelos erros de pronúncia do nosso nome na nossa infância.
Não tinha como imaginar que apenas alguns anos depois, por minha causa,
muitas pessoas estariam dando o nome de Mariah para as suas filhas.
A garota daquele grupo que era a minha melhor amiga (e eu uso essa
87
palavra generosamente) também era a mais bonita. A gente era meio que
amiga da onça. Eu falava para ela que eu estava a fim de um menino na escola
e, sabendo muito bem que eu nunca tomava iniciativa com nenhum, ela e os
seus grandes olhos azuis iam atrás do garoto e ela quase sempre ficava com
ele. Eu acredito que ela fazia isso apenas para me deixar pra baixo, para que
eu ficasse sabendo que era ela quem mandava. Mas o que ela não sabia é que
eu nunca ia atrás dos meninos com medo de levar um fora e com medo que
eles descobrissem que parte de mim era negra e que todo o resto era pobre.
Ela também não sabia que eu não queria me envolver com garotos estúpidos
e atrapalhar os meus sonhos ou, pior, engravidar como a minha irmã. Ela nem
me conhecia. Nenhuma delas me conhecia.
Alguns dos pais das meninas conheciam a minha mãe, no entanto, eles
tinham um mínimo de respeito por ela porque ela também era irlandesa e uma
cantora de ópera profissional – e ópera era elegante. O drama adulto funciona
de maneira diferente do drama entre os adolescentes, mas eles costumam ser
parecidos. Espalhou-se o boato de que o pai irlandês da garota mais bonita
estava batendo na sua mãe. A minha mãe, que pode ser realmente justa
quando ela quer, assumiu a responsabilidade de escrever uma carta para ele.
Nessa carta, tenho quase certeza de que ela revelou que havia sido casada
com um homem negro e que ele era o pai dos seus filhos (é claro, eu só vim
saber dessa carta muito tempo depois).
Como eu disse, essas garotas não eram legais, mas eu acabei sendo
convidada para ir com algumas delas, incluindo a mais bonita, para uma festa
de pijama em Southampton. Uma delas tinha uma tia rica, chamada Bárbara,
com uma casa chique perto da praia. Ir para a cidade super chique de
Southampton? Participar de uma festa de pijama com as garotas mais
populares? Claro que eu queria ir. Nós entramos em um dos carros grandes
deles e iniciamos a viagem de duas horas ao longo da adorável orla atlântica
de Long Island até o pequeno vilarejo onde os ricos passam verão.
A casa era grande, arejada e arrumada. Tinha até uma sala toda branca
que ninguém tinha permissão para entrar. Eu fiquei pasma quando chegamos,
tão ocupada comparando e desejando que eu não tinha percebido que as
meninas haviam se agrupado perto de uma porta.
Sem dúvida, eu fui aonde elas estavam indo. Elas me levaram a um local
que parecia ser uma sala de jogos ou um esconderijo (eu sabia que pessoas
ricas tinham esconderijos). Era um cômodo menor nos fundos da casa, talvez
um quarto de hóspedes. Uma delas fechou a porta com um clique e, de repente,
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o clima ficou pesado, rápido. Eu achei que talvez elas tivessem trazido bebida
escondido ou algo assim. Mas não havia empolgação e muito menos a energia
típica entre garotas que estão aprontando alguma coisa. Em vez disso, todas
as meninas estavam olhando para mim. De repente, no silêncio pesado, a irmã
da menina mais bonita falou para todo mundo ouvir:
O veneno e o ódio com que essas garotas repetiam esse novo lema criado
por elas era tão forte que literalmente me fez sair do meu corpo. Eu não tinha
ideia de como lidar com o que estava acontecendo. Todas elas estavam contra
mim. Elas haviam planejado isso. Elas me enganaram e me fizeram acreditar
que elas realmente gostavam de mim. Elas me atraíram para bem longe de
casa. Elas me isolaram. Elas armaram uma emboscada para mim. Por fim, elas
me traíram. Eu comecei a chorar histericamente. Eu fiquei desorientada e
apavorada, e eu pensei que talvez, se eu continuasse a chorar, certamente um
adulto viria em meu socorro. Mas ninguém apareceu.
“Por que vocês estão fazendo isso?” a pequena e corajosa voz perguntou.
Era a loira mais velha.
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lidar com nada disso. Certamente não foi a primeira vez que eu fui humilhada
pelos meus colegas de escola. Eu fui escolhida no ônibus escolar, dentre
muitos outros alunos, para ser cuspida. Eu me metia em brigas. Eu revidava
muitas vezes; a minha língua era afiada e eu tinha resposta na ponta da língua.
Às vezes era eu quem começava as brigas. Mas para essa situação eu não
consegui me defender. Eu não estava apenas em desvantagem e isolada, eu
tinha sido traída. Não era uma briga de garotas malvadas no pátio da escola.
Foi um ataque cruel e violento premeditado por garotas que eu achava que
eram minhas amigas. Eu nunca falei sobre isso. Eu guardei para mim. Eu
precisava encontrar uma maneira de sobreviver àquelas meninas, àquela
cidade, à minha família e à minha dor.
– “Looking In”
90
com a minha própria língua afiada. Muitas crianças sofrem com apelidos
maldosos ou “engraçados” dados a eles por seus colegas por causa de sua
aparência ou por algum acontecimento embaraçoso, mas ser provocado por
ser pobre parecia um tipo diferente de crueldade.
A roupa mais legal que eu tinha era uma jaqueta do time da escola de lã
vermelha extragrande e couro preto com AVIREX em letras grandes
estampadas nas costas. Era muito importante que eu tivesse uma roupa de
marca, então eu me certificava de usar um tipo de roupa assim e que fosse
adaptável a uma variedade de looks. Eu fiz o melhor que eu pude para ficar
parecida com as adolescentes bonitas e típicas do subúrbio, para me encaixar
com todas as outras garotas de Long Island.
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assistir. Depois que nós terminamos, ele começou a me perseguir e a me
assediar – um verdadeiro manipulador. O Sr. 1 metro e oitenta e cinco
centímetros de altura o viu me xingando e o levantou do chão e o jogou em
cima de cinco carros estacionados – bem feito! Ele realmente era muito legal
além de ser muito forte. Mas o ensino médio pode ser traiçoeiro, especialmente
para uma excluída como eu, então ficar com o cara mais valentão da cidade
tinha as suas vantagens.
Algo que eu nunca entendi era que tinha um grupo de garotas que estava
numa vibe de usar roupas de banda de rock tingidas (Grateful Dead) dos anos
60. Era o final dos anos oitenta e as tendências de rua eram tão recentes que
eu realmente não entendia o que elas estavam fazendo. Por que elas estavam
voltando a um visual retrô tão sem sentido? Além disso, elas eram agressivas
e valentonas, nada de hippies, nada de fãs da banda de rock Grateful Dead ou
amantes da paz. Sendo a espertinha que eu era, eu as chamei de “Povo da
Paz”. Espalhou-se o boato de que eu estava zombando delas e elas ficaram
putas. Começaram a circular rumores de que eu ia levar uma surra. Mas o Sr.
1 metro e 85 de altura era famoso; todo mundo tinha medo dele, então fazer
alguma coisa comigo não era tão simples assim.
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poderosa atrás de mim. Eu me virei e o que eu vi parecia uma versão
adolescente de um Protesto das Panteras Negras14, havia uma multidão de
garotas negras de todos os tons, de todos os estilos, tamanhos que eu
conhecia na escola. “Ah, conta com a gente,” uma delas disse e assim tudo
terminou.
Aquela família, aquela casa, aquela cidade, aquela época, aquele dia – de
repente, tudo parecia nada para mim. Não era nada em lugar nenhum, e eu
tinha caído fora.
14 Protesto das Panteras Negras: foi um partido político que surgiu nos Estados Unidos,
na década de 1960, no contexto da luta da população afro-americana pelos seus direitos
civis. Fundado por universitários negros, surgiu como um movimento de combate à violência
policial contra negros nos Estados Unidos e transformou-se em um partido político com um
projeto revolucionário de combate à desigualdade contra os afro-americanos.
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Eu vi a vida de muitos lados
Fui estigmatizada
Às vezes fui negra, às vezes fui branca
Me senti inferior por dentro
Até que a minha graça salvadora brilhou sobre mim
Até que a minha graça salvadora me libertou
Me dando paz
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2° PARTE
SING. SING.
UM PRELÚDIO PARA SING SING15
Chegando ao limite
Inconsciente, eu quase
Que caía
Uma parte de mim
Nunca será capaz
De se sentir estável
– “Close My Eyes”
Ainda hoje é difícil explicar, expressar com palavras como eu existia no meu
relacionamento com o Tommy Mottola. Não é que não haja palavras, é apenas
que elas ainda ficam entaladas nas minhas entranhas ou desaparecem na
densidade da minha ansiedade. A energia do Tommy era intensa, mais do que
controladora; para mim, era como se o ar ficasse pesado com ela. Mesmo antes
de ele entrar na sala, eu conseguia sentir a mudança no ar e a minha respiração
ficava ofegante. Ele me envolvia como uma névoa. A sua presença parecia
densa e opressiva. Ele era como a umidade – inevitável.
Nunca, quando eu estava com ele, eu senti que eu podia respirar fácil e
plenamente. A sua presença era dominante e trazia consigo uma inquietação
indescritível. No início do nosso relacionamento, eu pisava em ovos. Depois, a
sensação que eu tinha era a de pisar em espinhos e, por fim, em um campo
minado. Eu nunca sabia quando ou o que o faria explodir, e a ansiedade era
incessante. Nos oito anos que nós estivemos juntos, eu não me lembro de ter
passado dez minutos com ele e ter me sentido confortável – de ter a sensação
de que eu poderia ser eu mesma. Eu sentia que a minha essência era sufocada
constantemente. Eu parecia estar desaparecendo aos poucos.
15 Sing Sing: o Centro Correcional de Sing Sing é uma prisão de segurança máxima
administrada pelo Departamento de Correções e Supervisão Comunitária do Estado de
Nova Iorque.
96
Mantendo os meus olhos fixos nele, eu ia aos poucos e muito lentamente até a
beira da cama e rapidamente girava os meus quadris e pernas para poder pisar
no chão. Nunca desviando o olhar, eu andava na ponta dos pés para trás em
direção à porta, que parecia um quarteirão inteiro de distância. Com muito
cuidado, eu saía pela porta. Era uma grande vitória quando eu conseguia sair
do quarto! Eu descia suavemente a grande escadaria de madeira escura como
um ladrão roubando um pouco de paz de espírito, então eu ia para algum lugar
na mansão. Muitas vezes, eu só queria ir para a cozinha para fazer um lanche,
ou sentar à mesa e escrever algumas letras de música. Mas toda vez, assim
que eu começava a me acostumar com o silêncio e a calmaria da escuridão e
a recuperar o fôlego – Bipe! Bipe! O interfone tocava.
Era como se uma parte de quem eu sou estivesse sendo esmagada. Ele
tentava destruir tudo que ele não criava ou sentia que ele não conseguia
controlar. Eu criei uma garota divertida e livre nos meus clipes para que eu
pudesse assistir a uma versão de mim que parecia estar viva, para que eu
pudesse viver indiretamente através dela – a garota que eu fingia ser, a garota
que eu gostaria de ser. Eu assistia aos meus clipes como prova de que eu era
real.
Eu estava vivendo o meu sonho, mas eu não podia sair de casa. Solitária e
presa, eu fui mantida em cativeiro nesse relacionamento. Aprisionar e controlar
alguém pode acontecer de muitas formas, mas o objetivo é sempre o mesmo –
destruir a vontade da pessoa presa, matar qualquer sensação de valor próprio
nela e apagar a memória da sua própria alma. Eu ainda não tenho certeza do
impacto que isso causou em mim, do quanto eu fui destruída permanentemente
ou aprisionada – talvez, entre outras coisas, a minha capacidade de confiar
totalmente nas pessoas ou de descansar totalmente. Mas, felizmente, eu fui
conseguindo sair aos poucos, através das letras das minhas canções.
97
AMANDO SOZINHA
Quando eu estava na sétima série, foi a primeira vez que eu gravei num
estúdio profissional. Eu fiz backing vocal em algumas músicas originais,
incluindo uma versão da clássica música de R&B “Feel the Fire” (sinta o fogo),
originalmente escrita e gravada pelo Peabo Bryson. A gravação aconteceu em
um pequeno estúdio caseiro, mas era um trabalho de verdade, e eu era paga
por isso. Foi também quando eu comecei a aprender como criar nuanças e
texturas em arranjos vocais e de como usar a minha voz para fazer camadas,
como um pintor. Foi quando o meu romance com o estúdio começou. Foi um
momento importante que deu início à minha jornada, o meu desejo de sucesso.
98
para partitura e ficava balançando os meus pés. Eu cantarolava um pouco uma
melodia, depois procurava o tom mais apropriado para a minha voz. Então,
muito baixinho – quase sussurrando – eu cantava algumas palavras com a
melodia.
Um dos meus primeiros trabalhos foi com dois caras bem malandros que
faziam demos. Eles gostaram do meu som porque eu tinha uma vibe de cantora
adolescente que era popular na época, principalmente por causa do sucesso
da Madonna. Mas eu era adolescente na época, e eu cantava em tons altos
naturalmente. Eu sabia imitar a popular técnica de estúdio da Madonna, mas
usando somente a minha voz.
Eu fiz o teste cantando uma das canções que eles escreveram e eles me
contrataram na hora. Então, esses caras malandros começaram a me pagar
para cantar demos. Este foi o início oficial da minha carreira profissional – e de
uma série interminável de mais malandros que passariam pela minha vida. Eu
havia entrado no território traiçoeiro da “indústria da música”. Embora a minha
jornada estivesse apenas começando, eu logo seria iniciada na dinâmica
complicada que as artistas femininas têm de suportar. Como agora eu sei, a
maioria não consegue sobreviver.
99
Eu sentia algo estranho desde o início, porque eu realmente não sabia dizer
se esses caras eram pervertidos ou não, mas eu acreditava que nada de ruim
aconteceria porque os dois tinham esposas que estavam por perto o tempo
todo. Ingenuamente, eu imaginei que essas mulheres iriam assumir papéis de
irmã mais velha comigo. Elas eram adultas e eu ainda era quase uma criança,
mas infelizmente, a minha idade e o meu talento causavam confusão. Mesmo
eu sendo uma adolescente magricela (tipo, o meu corpo era praticamente como
o da Olívia Palito naquela época), uma das esposas tinha ciúmes de mim. Ela
estava sempre por perto, andando em shorts curtos, me olhando torto. Eu não
entendia o que estava acontecendo. Eu era muito jovem para entender e
também eu estava lá para trabalhar. Talvez os meus próprios shorts curtos
fossem inadequados de se usar perto daqueles homens mais velhos. Eu não
sabia. Eu era apenas uma criança sentindo o primeiro sabor de independência
e, além disso, alguns pares de shorts e tops baratos eram tudo que eu tinha.
Eu estava no meio de um fogo cruzado de shorts curtos sem nem saber.
100
E me sinto perdida dentro de um labirinto
Eu acho que eu estou amando sozinha
– “Alone In Love”
101
começou a minha primeira vida dupla (mais ou menos).
Acontece que em menos de três anos, com um vestido preto simples, com
os cabelos cacheados e com frio na barriga, eu caminhei por um estádio lotado
em meio ao barulho ensurdecedor de dezenas de milhares de vozes. Uma voz
alta e clara interrompeu a algazarra: “Senhoras e senhores, por favor, deem as
boas-vindas à cantora da gravadora Columbia, Mariah Carey, que cantará a
música 'America the Beautiful'”. O toque de piano foi gravado pelo Richard T.
Eu segurei o pequeno microfone e cantei a música com tudo que eu tinha. Atingi
uma nota muito alta em “sea to shining sea” (de um mar ao outro), e o estádio
me ovacionou.
102
em 1° lugar nas paradas de R&B antes de chegar ao topo das paradas pop, e
então a minha estreia na televisão nacional foi no programa do Arsenio Hall. O
Arsênio era mais do que um apresentador; ele tinha mais do que um programa
noturno; o programa dele era um evento cultural, uma verdadeira experiência
com a cultura negra – ou melhor, era um programa de entretenimento popular
visto pelas comunidades negras. Todos assistiram e falaram sobre a minha
apresentação em toda parte. Eu sempre serei grata e terei muito orgulho por
ter pisado no palco do Arsênio, pois foi lá que a maioria dos americanos
conseguiu ver o meu rosto, soube o meu nome e ouviu a minha música pela
primeira vez.
Quando a minha mãe decidiu se casar com ele, eu sabia que era a deixa
para eu me mudar. Eu acho que ela pensou que ia ficar rica se ela se casasse
com aquele cara porque ele tinha um barco na marina West Seventy-Ninth
103
Street Boat Basin. Mas era onde ele morava antes de morar no nosso barraco
e, acredite, o barco dele parecia mais com um rebocador do que com um iate.
Por fim, ela acabou com esse casamento abominável. O divórcio demorou
vários anos e muitos honorários de advogado, que obviamente foi eu quem
paguei após o sucesso do meu primeiro CD. Então o idiota acabou me
processando pelos direitos de uma boneca Mariah Carey fictícia (se eu tivesse
ganhado um dólar por cada caloteiro que me processou, eu estaria... bem,
foram muitos). Mas eu era o contrário de rica quando eu saí da casa da minha
mãe. Eu não tinha um centavo e tinha dezessete anos. Era o final dos anos 80
e eu morava completamente sozinha na cidade de Nova Iorque.
O destino é uma coisa bizarra. Quando eu tinha cerca de sete anos, a gente
morava em um apartamento apertado em cima de uma delicatéssen, e eu
adorava ouvir o som das rádios que entrava pelas nossas janelas. Eu me
lembro de rebolar, fazer pose e cantar com a Odyssey: “Oh, oh, oh, você é um
nova-iorquino da gema / Você já deveria saber o placar.” Eu não sabia o que
era “saber o placar”, mas foi a partir daí que eu fiquei com vontade de sentir
essa vibe fabulosa de Nova Iorque. Demorou mais de dez anos, mas finalmente
aconteceu.
Para mim, Nova Iorque parecia ter uma agitação perceptível e uma
elegância inalcançável. É uma cidade que nunca dorme: pessoas e mais
pessoas andando para lá e para cá, ninguém com aparência semelhante, mas
todos com movimentos sincronizados. A cidade era uma loucura de motoboys
de um lado para o outro e incontáveis táxis amarelos ziguezagueando pelas
ruas como um enxame de abelhas agitadas. Tinha sempre algo acontecendo
onde quer que você olhasse – enormes outdoors, letreiros de néon piscando,
pichações por todos os lugares, em vagões de metrô, torres d’água e vans. Era
como uma grande galeria de arte em movimento. As avenidas principais eram
grandes e lotadas passarelas cheias de modelos ecléticos, magnatas dos
negócios, traficantes de rua e trabalhadores de todos os tipos, todos desfilando
e sem nenhum ficar analisando uns aos outros. Todos tinham um lugar para ir
e algo para fazer. Era um planeta de concreto e cristal louco e magnífico
povoado de desajustados, mágicos, sonhadores e traficantes – e eu caí de
paraquedas bem no meio. Mona, eu nasci para isso.
104
FAÇA ACONTECER
Eu sobrevivia com um dólar por dia e eu tinha que fazer uma escolha – ou
eu tomava café da manhã ou eu pagava o transporte. Os bagels da H&H eram
sublimes: macios, quentes e rechonchudos até a perfeição, um tipo clássico de
café da manhã de Nova Iorque que mantinha o meu estômago satisfeito até as
três horas (H&H significava Helmer e Hector, os dois proprietários porto-
riquenhos, que provavelmente faziam o melhor e mais legítimo bagel do
mundo). Mas, novamente, se locomover é muito importante, e o metrô de Nova
Iorque era a rota mais barulhenta e agitada, mas a mais direta para qualquer
lugar da cidade. A ficha do metrô era um pouco maior do que uma moeda, um
disco de ouro sujo com “NYC” (New York City) estampado no meio e um recorte
distinto em Y fino. Essa era a moeda do povo e que poderia levar você a
qualquer lugar, a qualquer momento. Mas se eu pudesse andar até onde eu
precisava ir, o café da manhã vencia.
105
estúdios de gravação, e trabalhar no caixa não é como fazer backing vocals.
Eu não estava pegando o jeito rápido. E este era um estabelecimento de bairro
com frequentadores assíduos e garçonetes práticas, como a personagem Flo
do programa de TV Alice que dizia “Kiss My Grits16”, mas Nova Iorque é difícil.
As garçonetes me odiavam por bagunçar o dinheiro delas!
– “Make It Happen”
16 Kiss my grits: é uma expressão muito utilizada no sul dos EUA, era um bordão de uma
personagem de um programa de TV dos anos 70 chamado Alice. Esse programa era
humorístico (estilo Zorra Total e A Praça é Nossa), e como a história se passava em uma
lanchonete, eles faziam piadas envolvendo comida. Grits em inglês possui praticamente o
mesmo significado (e pronúncia) de Grütz. Grits no sul dos EUA é como se chama um tipo
de mingau de aveia (oatmeal). “Kiss my grits” substitui a expressão “kiss my ass” (beija a
minha bunda, mas com o sentido de “vai se fuder”).
106
menores que os meus pés. Tinham sido da minha mãe – lamentáveis botas de
tornozelo de couro preto com cordões. Eles eram básicos e úteis, e acabou
dando certo. Em algum momento, a parte superior do sapato despregou da
sola de borracha, e a aba ficava batendo no impiedoso chão da cidade com as
minhas pisadas rumo ao meu destino. O inchaço dos meus pés por ficar o dia
todo em pé com sapatos muito pequenos certamente contribuiu para o
desgaste deles. Os dias de neve eram os piores; o gelo entrava dentro da aba,
derretia e vazava pelas minhas meias finas, e a sensação pegajosa de couro
úmido e barato me deixava arrepiada. E naquele ano, Nova Iorque teve uma
grande tempestade de neve, digna de nota! Mas eu tentava me recompor, o
máximo que eu podia, e eu abria um sorriso, buscando mostrar serviço e
torcendo para que ninguém olhasse para os meus pés. Passei anos e anos
passando por humilhação, mas eu não estava mais na escola; eu estava
morando em Nova Iorque. Eu acreditava no fundo do meu coração que um dia
eu iria conseguir comprar alguns dos sapatos mais chiques e bem ajustados
que se poderia imaginar.
Eu tinha muita fé, mas eu também fui abençoada com muitos sinais e atos
de bondade de pessoas que passaram pelo meu caminho. Como o Charles, o
cozinheiro do Sports, que me fritava um cheeseburguer gorduroso e que dava
para mim escondido com um copo de Sambuca17. Não era nada glamoroso,
mas pelo menos eu fazia uma refeição, eu tinha uma roupa e alguns dólares.
Cada dia que eu sobrevivia, eu sabia que eu estava mais perto de realizar o
meu sonho. Eu me ajoelhava todas as noites e agradecia a Deus por mais um
dia em que eu não tinha desistido ou por não ter levado uma rasteira de
ninguém.
– “Make It Happen”
107
Trabalhar no Sports Bar era um meio, mas o estúdio era o fim. Tudo girava
ao redor da minha fita demo. Um dia, enquanto eu estava comendo no andar
de baixo no restaurante chinês, saboreando com vontade os pedaços baratos
da única refeição do dia, eu notei um rosto familiar. Era a Clarissa, e agora ex-
namorada do amigo produtor do meu irmão, o Gavin Christopher. Nos
abraçamos como velhas amigas. Eu disse a ela que eu havia me mudado
oficialmente para Nova Iorque. Quando eu dei a ela um resumo do caos da
minha vida, como um anjo, ela me convidou para ir morar com ela.
108
mim na época. Ocasionalmente, ela me levava para comer fora. Nós até
escrevemos algumas músicas em seu mini estúdio. Ela conheceu algumas
pessoas na cena musical quando ela namorava com o Gavin e às vezes ela
me apresentava a outros músicos que também moravam no Upper West Side.
Nessas ocasiões especiais, ela até me emprestava um vestidinho preto para
usar (não muito diferente do que eu usei na capa do meu primeiro CD).
Certamente eu não tinha nada adequado para vestir para essas ocasiões
sociais.
Como tudo naquela época, nada durou muito tempo. Um dia, algumas
pessoas malucas passaram a morar conosco e isso fez com que a Clarissa e
eu fugíssemos para salvar as nossas vidas (eu realmente não consigo entrar
nos detalhes do que diabo foi aquilo) e nós tínhamos que seguir em frente e
nos mudar dali. Nós passamos a morar com a minha amiga Josefin (eu a
conheci quando ela teve um relacionamento aberto com o meu irmão). Ela
estava morando com algumas outras garotas da Suécia. Então eram cinco
garotas desconhecidas morando em um apartamento qualquer em cima de um
clube chamado Rascals, na rua East Fourteenth. Eu dormia em um colchão no
chão, mas agora eu estava morando no “centro da cidade”, no coração da cena
artística de Nova Iorque do final dos anos 80. Era empolgante, embora
precário, e os meus olhos estavam sempre voltados para cima. Eu consegui
obter um pouco de estabilidade e adquirido muito mais fé. Eu sabia mais do
que nunca que eu iria realizar o meu sonho.
– “Make It Happen”
109
vestidinho preto de malha, meia-calça preta e meias grossas e frouxas sobre
um par de tênis Reebok Freestyle branco (os sapatos pretos de segunda mão
da minha mãe tinham finalmente ficado só o bagaço). Antes, a Clarissa havia
me incentivado a pedir a minha mãe que comprasse sapatos novos para mim.
A minha mãe então pediu ao Morgan, que, ela me relatou, que ele tinha dito:
“Ela tem que aprender a se virar sozinha”. Eu era uma adolescente que morava
sozinha em Nova Iorque, mas beleza. Por fim, e colocando a maior dificuldade,
o Morgan comprou um par de Reeboks brancos para mim (por que não pretos,
eu me perguntei, que combina com tudo – mas graças a Deus que eu tinha
sapatos que serviam e que não tinham uma entrada de ar involuntária nas
solas). Eu usava essa roupa em quase todos os testes; era como um uniforme.
110
e nem ninguém me atrasar.
Conseguimos gravar uma fita demo completa que eu achei que realmente
mostrava as minhas composições e a minha voz. O que eu me lembro mais
vividamente sobre aquela época no estúdio é que eu ficava sentada sozinha
no chão, no canto, escrevendo letras e melodias, ou olhando pela janela
sonhando com o dia em que eu realizaria o meu sonho. Olha, o Ben era muito
comprometido e eu passei muito tempo trabalhando com ele, e fizemos muita
coisa. Mas eu tinha uma visão, mesmo naquela época, de que a minha carreira
iria muito além do que ele ou a maioria das pessoas ao meu redor conseguiam
imaginar.
Se aproxime
Você parece tão distante
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Há algo que eu sei que você precisa dizer
Eu sinto o que você está sentindo
Quando eu olho em seus olhos
O teu silêncio sussurrando mal-entendidos
Há tanta coisa que você precisa perceber
Você sentirá o que eu sinto
Se olhar nos meus olhos
Ei, querido
Eu sei que você acha que o meu amor está escapulindo
Mas, amor, é tudo coisa da sua cabeça
Então, sim, uma fotocópia: essa é a origem sem cerimônia do meu primeiro
“acordo oficial”. Que boas-vindas ao mundo da música! Que eu estava tão
ansiosa para fazer parte, mas logo eu passei a acreditar que essa fotocópia só
continha a minha primeira assinatura porque agiram de má fé – algo que seria
difícil de desfazer. Mas que certamente não seria a última tentativa. Papeladas
cheias de má intenção ainda estavam por vir.
112
É necessário escolher as batalhas com sabedoria, e eu não ia perder o meu
tempo com alguém que eu já havia deixado para trás. A minha trajetória já
havia começado. Eu só tenho a agradecer e eu desejo tudo de bom para ele.
Essa fita demo ficava guardada no meu Walkman, que ficava no meu
quadril, e a música registrada na minha mente. Além das rádios, eu só escutava
as músicas que nós gravamos. E as propostas das principais gravadoras me
deram a confiança de que algo iria acontecer. Eu só tinha que manter a fé e
continuar trabalhando. Eu não parei. Eu continuei indo a mais gravações de
estúdio, fazendo mais conexões e conseguindo mais trabalho como backing
vocal. Eu comecei a fazer backing vocal para o músico e produtor T.M.
Stevens, que havia escrito canções com o Narada Michael Walden e que
tocava baixo para o James Brown, para a Cyndi Lauper, para o Joe Cocker e
para outros artistas importantes. Foi por meio dele que eu tive a sorte de
conhecer a incrível Cindy Mizelle em um teste de gravação.
113
parte de backing vocal é um dos meus elementos favoritos na construção de
uma música. Eu amo as texturas e as camadas e como elas dão um toque a
mais na música; as partes de backing vocal ficam entranhadas na nossa pele.
De repente, eu caí em mim. Ah, eu entendi. Era para eu ter ligado para ela.
Eu não tinha entendido de imediato que isso fazia parte do processo: a
iniciação, a orientação, o estímulo, a entrada em uma sociedade de cantoras
irmãs. Esses rituais eram todos novos para mim. E eu não estava familiarizada
com o fato de ser bem-vinda em uma família de artistas – em uma família de
qualquer tipo.
114
Eu recebi uma proposta para fazer uma gravação de algumas músicas para
um grupo chamado Maggie's Dream. Quando eu cheguei ao local, me disseram
que eu iria cantar junto com um cantor. E eis que um jovem artista, sexy,
sereno, cor de amêndoa torrada entra no recinto – ele realmente era a definição
da palavra artista. O cabelo espesso e escuro dele estava nas fases iniciais de
dreads. Ele tinha uma barba perfeita por fazer, com um cavanhaque no queixo.
Ele estava vestido como uma estrela de rock casual: uma jaqueta de
motociclista vintage de couro preto pesado, jeans preto e camiseta preta. Ele
tinha uma argola no nariz e o cheiro do perfume dele me fez imaginar que era
daquele jeito que os antigos egípcios cheirariam. O rosto dele era gentil e fino,
com um sorriso de garoto. Ele atendia pelo nome de Romeo Blue. Os seus
amigos o chamavam de Lenny. E cerca de um ano depois, o mundo o
conheceria como Lenny Kravitz.
Eu cantei o melhor que eu pude. Fiz todos os tipos de runs e soltei a voz na
parte final da música. Quando eu terminei, eu fiquei totalmente imóvel, voltando
para o planeta Terra com o coração na mão. A Brenda me lançou um olhar
longo e sem muita expressão, e de repente ela deu um sorriso maroto. Com o
seu sotaque nasal parecido com o dos ingleses, ela disse: “Você está tentando
roubar o meu emprego?” Eu não me mexi. Mas a risadinha dela se transformou
em uma gargalhada calorosa. Eu não sabia que não era para cantar melhor do
que o cantor ou cantora que tem a missão de te contratar!
115
A Brenda era uma mistura apimentada, no verdadeiro sentido da palavra.
Ela cresceu nos projetos habitacionais da rua Ninetieth (90) e da avenida
Amsterdam, e a cultura dos projetos cresceu dentro dela. Ela me disse que a
mãe dela era porto-riquenha e havaiana e que o pai dela, o Harvey Kaplan, era
judeu e fazia parte de uma banda chamada Spiral Starecase. Eles tinham uma
música de sucesso: “More Today Than Yesterday” (mais hoje do que ontem).
A Brenda era um pouco mais velha e mais experiente nas ruas do que eu e
tinha um senso de humor bobo e fácil. Foi fácil fazer amizade com ela.
Eu posso ter sido jovem e ingênua, mas a Brenda sabia que as minhas
canções eram boas e que estavam à frente do seu tempo. Quando ela escutou
a minha fita demo, ela disse: “Oooh, Mariah, eu quero gravar as suas músicas
no meu próximo CD.” Ela tinha uma música que ainda estava tocando bastante
no rádio na época, e toda vez que a gente estava juntas e que eu ouvia tocar,
era incrível. Eu não conseguia acreditar que eu estava trabalhando com ela e
que ela era a minha amiga, sem falar que ela tinha me dado a maior
oportunidade da minha vida até aquele momento.
Mesmo assim, eu disse: “eu sei que eu não tenho nada de muito certo na
minha vida ainda, mas eu sinto muito, eu tenho que manter essas músicas. Eu
escrevi essas músicas para mim.”
Eu posso ter me sentido insegura por causa de dinheiro, por causa das
minhas roupas, por causa da minha família e uma série de outras coisas, mas
eu sabia que as minhas canções eram valiosas. Eu me sentia muito feliz por
finalmente estar na companhia de jovens artistas e músicos, alguns até
passando por uma certa dificuldade, mas a verdade é que eu sempre acreditei
que o meu sonho ia se tornar realidade. A Brenda nunca mais me pressionou
a usar as minhas músicas depois disso.
Cantar como backing vocal com a Brenda durante a turnê com a sua música
116
de sucesso foi muito divertido. Uma vez, nós fomos a Los Angeles para
participar de um show de uma estação de rádio popular. Foi a primeira vez que
eu estive em LA e uma das poucas vezes em que eu tinha entrado em um
avião. Agora, eu estava embarcando em um avião como cantora profissional,
indo fazer um grande show ao ar livre patrocinado por uma rádio de Los
Angeles! Para mim, um artista que tinha uma música tocando nas rádios era
famoso. Para o show, a Brenda tinha que cantar “I Still Believe”, comigo como
uma das cantoras de backing vocal. O Will Smith também estava lá, para cantar
“Parents Just Don't Understand” (os pais não entendem).
O Jeffrey Osborne (do grupo LTD) também estava lá; ele cantou a música
“You Should Be Mine (The Woo Woo Song)” (você deveria ser minha e assim
por diante) como parte do seu repertório. Eu estava na plateia, assistindo.
Jeffrey, o veterano entre nós, começou a cantar o refrão da sua música com a
sua voz experiente e suave: “And you woo-woo-woo” (e assim por diante), ele
começou. A multidão se juntou a ele. Depois de algumas vezes, ele ofereceu
o microfone para a plateia.
“Passe para ela! Passe para ela!” a Brenda murmurou, sacudindo o dedo
para mim parecendo o rabo de um cachorrinho feliz.
117
O Will e eu às vezes íamos para o clube Rascals, embaixo do apartamento
que eu dividia com a Josefin. Ele era um amigo descomplicado. Nós dois
éramos absolutamente ambiciosos e ainda tínhamos uma curiosidade e
admiração meio que infantis pelo mundo. O nosso relacionamento sempre foi
platônico e nunca ficou estranho.
A minha fé e foco eram fortes, mas o meu trabalho árduo também era
perceptível, como um possível acordo com a gravadora Atlantic Records.
Durante esse tempo, as grandes gravadoras estavam colhendo os benefícios
118
das suas estrelas adolescentes – as Tiffanys e Debbie Gibsons da vida. Mas
continuando, o Doug Morris, o chefe da gravadora Atlantic, respondeu à minha
demo dizendo: “nós já temos a nossa filha adolescente”, referindo-se a Debbie
Gibson.
Com certeza ele não entendeu. Por falar nisso, a maioria das gravadoras
realmente não me entendem. Elas realmente não sabiam onde eu me
encaixava como cantora. Elas não entendiam o meu som; a fita demo tinha
canções que não se encaixavam perfeitamente em um gênero específico.
Embora muito jovem, eu definitivamente não era uma adolescente de música
pop. Havia um pouco de soul, R&B e gospel nas minhas músicas, e eu tinha
um entendimento sobre o hip-hop. A minha fita demo era mais diversificada do
que a indústria musical da época.
119
CHERCHEZ LA FEMME
(PROCURE A MULHER)
Certa noite, a Brenda anunciou: “eu vou te levar a uma festa, e você vai
conhecer um grande executivo de uma gravadora, o Jerry Greenberg, e vai ser
ótimo”.
A gente ia se arrumar na casa dela na Nova Jérsei, já que ela tinha todas
as roupas, maquiagens e acessórios por fazer turnê e por ter dinheiro. Ela
deveria me buscar no meu apartamento. Eu esperei no pequeno hall de entrada
do meu prédio, sentada no chão de ladrilhos, por mais de uma hora (vejam
bem, não havia mensagens de texto naquela época). Finalmente, ela
apareceu, acelerada, cheia de energia e pronta para a festa. A empolgação
dela era contagiante.
18 Mousse: é um tipo de espuma que serve para dar formato, textura e volume para o
cabelo, ajudando na modelagem. Além disso, ele também é muito usado para fixar
penteados.
120
meu tênis preto da marca Vans com as minhas meias macias com nervuras.
Eu finalizei o meu visual com a minha única peça – a minha jaqueta Avirex que
eu usava no colégio.
Eu fiz o melhor que eu pude com o meu visual, mas tudo bem. A Brenda
me disse que a festa era para comemorar uma nova gravadora, mas como,
naquela época, eu me interessava pelas grandes gravadoras com os seus
chefões e grandes artistas, eu não tinha grandes expectativas com quem
estaria presente. Três empresários conhecidos da indústria se uniram para
fundar a sua própria gravadora, a WTG Records. “WTG” significa Walter,
Tommy e Gerald. Parecia um negócio de pneus para mim; eu realmente não
os conhecia ainda. Mas a Brenda conhecia o Jerry (Gerald Greenberg), que
ela me disse ser bastante influente na indústria (em 1974, aos trinta e dois
anos, ele se tornou o mais jovem presidente da gravadora Atlantic Records).
Quando ela me disse isso, a festa começou a ficar um pouco mais interessante.
Agora eu entendi por que a Brenda queria que eu trouxesse a minha fita
demo comigo (não que eu já tenha ido a qualquer lugar sem ela) – ela ia me
levar para a festa para conhecer o chefão da Atlantic Records. Quando nós
chegamos à festa, eu estava cercada por “pessoas da indústria”, embora eu
ainda não tivesse ideia do que isso significava. Enquanto eu caminhava, eu
observava o local. Uma artista feminina era conduzida pelo local como cavalos
de feira de exposição. Ela era muito loira, muito bonita, muito branca, e muito
arrumada e penteada, com uma multidão de pessoas da gravadora a cercando.
Havia grandes fotos dela ampliadas por toda a sala. Eu tinha a impressão que
o que era esperado de nós era ficar deslumbrado na presença dela. Mas eu
não estava nem aí. Eu só estava pensando, quem é ela, por que eu deveria
me empolgar? Para mim, ela era somente alguém que as pessoas estavam
conduzindo de um lugar para o outro. Francamente, eu não fiquei
impressionada com o que eu vi.
121
Ele não era um tipo de pessoa que eu normalmente teria notado: não era
alto e nem baixo, nem estiloso e nem cafona. Eu tenho certeza que ele estava
usando terno. Eu teria me esquecido totalmente dele se não fosse pelos seus
olhos. Os nossos olhos se encontraram, e uma energia instantaneamente
percorreu entre nós, como um choque elétrico leve. Ele tinha um olhar
penetrante.
Ele olhou para dentro de mim, não para mim. Eu fiquei um pouco
desconcertada – não de um jeito ruim, mas também não foi amor à primeira
vista. Eu continuei subindo as escadas, desta vez em um ritmo mais lento,
enquanto eu me recompunha ao que acabara de acontecer. Quando eu fechei
a porta do banheiro, a sensação estranha ainda pulsava dentro de mim. O que
tinha acontecido? Eu não sabia quem era ele, mas eu o reconheci de alguma
forma. Eu sabia que não era da TV ou algo parecido. Não era o rosto dele; era
outra coisa. Eu reconheci a energia dele e acho que ele reconheceu a minha.
122
Eu fiquei parada pensando, se ele era tão importante, o que ele queria de
mim? A festa estava repleta de garotas mais bonitas, com maquiagem
profissional e calçados bem melhores. O Tommy perguntou a Brenda: “Quem
é a sua amiga?” – a frase mais intensa que eu já ouvi.
A Brenda dirigiu a resposta ao Jerry. “Ela tem dezoito anos; o nome dela é
Mariah. Você tem que ouvir isso aqui!” Assim que ela foi entregar a minha fita
demo para o Jerry, o Tommy interceptou a mão dela no meio do caminho. Ele
pegou a fita, se levantou, saiu da mesa e foi embora da festa. Foi bizarro e
desconcertante. Eu fiquei tipo, que merda é essa?
Essa fita demo era importante. Tinha algumas das minhas melhores
canções – “All in Your Mind”, “Someday” e “Alone in Love”. Esse tal de Tommy
tinha acabado de levar embora todo o trabalho investido (e dinheiro!) que eu
tive? Eu não fiquei feito boba pensando, Iupiii, eu acabei de entregar a minha
fita demo para um grande executivo de gravadora. Eu estava mais focada no
fato de que eu tinha uma cópia a menos da minha fita demo. Eu sei que esse
tal de Tommy nunca vai ouvir a minha fita, eu pensei.
Por fim, o Tommy voltou à minha procura, ao que parece, não acreditando
que a voz que ele tinha acabado de ouvir era da mesma garota da escada, a
garota de aparência inocente que estava usando tênis Vans e meias macias
com nervuras. Todas aquelas garotas bem vestidas de salto alto tentaram ao
máximo chamar a atenção do W, T ou G – e o T voltou procurando por mim.
123
também era verdade. As condições do nosso apartamento eram precárias.
Havia papel mata-moscas grudentos pendurado no teto e nas paredes, e os
nossos gatos se esfregavam nele. Também não tinha água quente; era uma
bagunça. Mas nós éramos duas garotas jovens e bobas e a gente zoava com
a nossa situação.
A primeira vez que o Tommy ligou, ele desligou. Mas ele não desistiu. Ele
ligou de volta e desta vez deixou uma mensagem curta e séria: “Tommy
Mottola. CBS. Sony Records.” Ele deixou um número. “Me ligue de volta.”
124
PRINCESA. PRISIONEIRA.
– “I Am Free”
Era uma vez, eu morava em uma casa muito grande chamada Mansão Dos
Contos De Fadas. E nela havia grandes diamantes e grandes armários cheios
dos vestidos mais espetaculares e de chinelos cravejados com joias. Mas
também dentro dela havia um grande vazio, maior do que todas as outras
coisas lá dentro, que quase me engoliu por inteira. Não era um lugar para a
Cinderela.
125
finalmente pagar o meu próprio aluguel! Chega de morar em cantos e recantos,
de dormir no chão ou de dividir banheiros minúsculos com quatro ou cinco
outras garotas.
A primeira coisa que eu fiz foi comprar o meu próprio sofá pequeno com
todas as quatro pernas. Às vezes, eu passava a mão no tecido do braço do
meu novo pequeno sofá como se ele fosse um bebê. Foi uma etapa importante
para mim. De um colchão no chão, eu passei a dormir na minha própria cama.
Eu tinha uma pequena cozinha. Eu tinha dois gatos, o Thompkins e o Ninja. Eu
tinha um pouco de paz. Estava sendo um momento todo especial, e eu sentia
vontade de jogar a minha boina framboesa no ar e fazer uma pirueta na
rua com a minha trouxa de roupa suja19 – porque eu tinha sobrevivido. Eu
sobrevivi ao perigo. Eu sobrevivi à fome. Eu sobrevivi à incerteza e à
instabilidade, e agora aqui estava eu, cada vez mais perto do meu destino. Eu
era independente na cidade de Nova Iorque, no meu próprio apartamento cheio
de móveis que eu havia comprado, trabalhando no meu próprio CD, com todas
as canções que eu mesma tinha escrito. Eu poderia receber os meus amigos
agora. Foi a minha primeira sensação de autonomia, e foi divino. Mas que não
duraria por muito tempo.
126
Então este homem poderoso de repente chegou junto, abrindo os mares para
dar lugar ao meu sonho. Ele realmente acreditava em mim.
Com todo o respeito, o Tommy Mottola foi uma pílula difícil que eu tinha que
engolir em um período crucial da minha vida. E muito respeito é devido a ele.
Ele foi um executivo visionário da indústria da música que, destemida e
ferozmente, transformava as suas visões em realidade. Ele acreditou em mim,
ferozmente.
A maneira como ele falou parecia música aos meus ouvidos: Michael.
Jackson. Aqui estava um homem responsável pelo sucesso dos maiores
artistas da indústria e ele via em mim o mesmo potencial que o artista mais
influente da história moderna. Respeito.
E não foi uma lábia de vendedor ou um discurso barato. Ele tinha sido
sincero. A gente não brincava quando se tratava de trabalho. A minha carreira
como artista era a coisa mais importante para mim – era a única coisa. Isso
validou a minha própria existência, e o Tommy entendeu a intensidade do meu
comprometimento. Eu estava falando sério e eu também era ambiciosa. Ele
sabia que os meus vocais eram únicos e fortes, mas ele ficou mais
impressionado com a forma como eu criava as músicas: a estrutura das minhas
melodias, da minha música. Eu me tornei uma nova estrela no momento em
que ele foi promovido ao cargo mais alto de uma nova gravadora, então ele
tinha o poder de abrir os caminhos para a minha ascensão ao céu. Ele estava
disposto a mover céus e terras para me tornar bem-sucedida. Eu reconhecia e
respeitava esse poder. Apesar de estar envolvido com alguns dos maiores
nomes da indústria da música, o Tommy me disse que eu era a pessoa mais
talentosa que ele já tinha conhecido. Ele estava falando sério e eu realmente
acreditei nele.
127
entanto, eu tinha a impressão de que ele possuía uma energia mais sombria –
e que seria um preço a pagar pela sua proteção. Mas, aos dezenove anos, eu
estava disposta a pagar. Para mim, O Tommy era uma forte combinação de
figura paterna, manipulador, parceiro de negócios, confidente e companheiro.
Nunca houve uma atração sexual ou atração física forte, pelo menos não para
mim, mas na época, eu precisava de segurança e estabilidade – uma sensação
de lar – mais do que de um namorado. O Tommy entendeu isso e providenciou.
Eu dei a ele o meu trabalho e a minha confiança. Eu dei a ele a minha convicção
e a combinação do meu código moral.
“Vamos construir uma casa aqui!” O Tommy anunciou. Eu sabia o que isso
queria dizer: seria onde nós construiríamos a nossa casa. Eu não fazia ideia
de onde eu estava me metendo.
128
Naquela época, ali estava longe de ser uma Hillsjail. Era impressionante e
majestosa: cinquenta acres de terra verde fértil perto de uma reserva natural
em Bedford, Nova Iorque. O local ficava bem no meio de duas propriedades,
uma propriedade pertencia ao Ralph Lauren e a outra a um bilionário muito
conhecido, uma área que era garantida de ser segura. Mas, como eu logo viria
a descobrir, o conceito de segurança estava prestes a se voltar contra mim.
Eu nunca quis sair de Nova Iorque, mas era isso que a gente estava
fazendo. Fora do estúdio de gravação, eu me perguntava, quando é que eu
voltaria para a minha amada Manhattan? Com certeza, construir uma casa
nova seria um empreendimento monumental, mas que me deixou fascinada,
criativa e emocionalmente.
Muito do que eu via a minha mãe e a minha irmã mais velha fazer era o que
eu não iria fazer quando eu crescesse. Eu recebi pouquíssima orientação do
que fazer como mulher, embora eu tivesse sido forçada a me comportar como
adulta quando eu ainda era muito jovem. O Tommy era vinte e um anos mais
velho do que eu; ele tinha idade para ser o meu pai. Ele também era o chefe
da minha gravadora. Não havia nenhuma mulher sábia ao meu redor para me
dizer que a dinâmica de poder no nosso relacionamento estava longe de ser
meio a meio, então talvez eu deveria ter pensado duas vezes antes de me
comprometer pagar pela metade dos custos de uma propriedade tão cara. Para
piorar, nós ainda não éramos casados.
129
com a vida ganha. Construir uma casa dos sonhos com o Tommy não parecia
um risco. Eu estava vendendo milhões de CDs na época. Mas eu não sabia
que a nossa mansão dos sonhos custaria um preço abissal de trinta milhões
de dólares. E no final das contas, o meu tempo naquela casa com o Tommy
acabaria me custando muito mais caro do que dinheiro.
Por mais ingênua que eu fosse na época, eu decidi que eu iria construir
uma casa maravilhosa. Eu não tinha como reclamar já que no passado eu não
tinha quase nada: “Ah, coitadinha de mim; eu tenho que construir uma
mansão!” Eu entrei de cabeça. Afinal de contas, eu sinceramente achava que
eu ficaria com o Tommy para sempre e que a casa que a gente estava
construindo juntos seria tão atemporal, eterna e espetacular quanto a música
que nós estávamos criando – que do mesmo modo, é claro, eu também era a
força criativa por trás.
130
andando com os sapatos minúsculos e caindo aos pedaços da minha mãe,
com neve entrando pelas rachaduras das solas. Eu guardei aqueles sapatos
horríveis por um tempo, com a intenção de pintá-los de bronze, como se
fossem sapatinhos de bebê, para nunca esquecer o que eu tinha passado
(como se isso fosse possível). Em tão pouco tempo, de acessórios velhos de
segunda mão, eu passei a ter a minha própria mansão, repleta de paredes
feitas sob medida para uma coleção inteira de calçados. A minha fé e os meus
fãs me abençoaram com riquezas inimagináveis. Eu me sentia imensamente
grata. Mas, apesar dessa grande conquista, eu ainda tinha que perceber que,
na realidade, eu só tinha inspirado o design e investido metade do dinheiro
para construir a minha própria prisão.
Por mais nobre que seja a propriedade, por mais grandiosa que seja a
construção, se ela tiver sido projetada para monitorar o movimento e conter o
espírito humano, ela servirá apenas para diminuir e desmoralizar os que estão
lá dentro. A ironia de eu morar perto da famosa prisão e a ironia do nome
peculiar da mesma não passaram despercebidas por mim: Por piada, eu me
referia à propriedade de Bedford como Sing Sing. Ela era cheia de seguranças
armados, câmeras de segurança na maioria dos quartos e o Tommy era quem
controlava.
131
Enquanto eu estava construindo a minha Sing Sing, eu achei que seria legal
se a minha mãe e os meus sobrinhos, o Mike e o Shawn, morassem perto de
mim. Eu adorava o processo de projetar e de criar uma linda casa. Embora eu
tivesse pouca liberdade em Sing Sing, o Tommy me apoiou na compra de uma
casa nas proximidades para a minha mãe. Era só do que a gente conversava,
e ele finalmente entendeu como era importante para eu tentar criar algo estável
para a minha família. Eu descobri depois que ele secretamente dava ordens
para os seguranças me seguirem sempre que eu ia dar uma olhada em casas
ou ia fazer alguma coisa, mas eu fiquei grata pela pequena demonstração de
ignorância.
A criança em mim, no fundo, ainda sonhava com uma família que não fosse
desestruturada. Eu tinha começado a realizar os meus sonhos de carreira e eu
pensava que talvez eu pudesse comprar uma casa para a minha família – um
local em comum onde todos seriam sempre bem-vindos – e a minha mãe seria
a chefe da casa. Eu me empolguei com a ideia de comprar uma casa que a
minha mãe gostasse e eu finalmente poderia me dar ao luxo de fazer isso com
grande estilo. Encontrar a casa perfeita para ela era o meu novo projeto. Assim
como eu queria que cada cômodo da minha casa refletisse a minha
personalidade, eu estava disposta a comprar uma casa em que cada detalhe
refletisse a personalidade da minha mãe. Eu queria que ela amasse a sua nova
casa.
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Eu tinha encontrado em um bosque o único chalé-dos-sonhos-de-uma-
cantora-de-ópera-hippie em Westchester! Era perfeito e eu sabia exatamente
como reformar e lhe dar uma nova vida. Eu assumi a empreitada como se eu
fosse uma designer de interiores em um daqueles programas de reforma. Fui
eu quem escolhi e comprei todos os móveis novos em folha, todas as
decorações e acessórios. Eu escolhi cada detalhe, das luminárias às cores das
tintas, tudo baseado na “paleta de cores e gostos da Pat”. Vasos de flores de
madeira com românticas flores silvestres foram pendurados do lado de fora. Eu
mandei imprimir fotos dos familiares irlandeses da minha mãe e também de
brasões irlandeses, que depois foram montados, emoldurados e pendurados
na parede ao longo da escada. Eu consegui manter isso em segredo dela.
O maior desafio foi levar o piano dela sem que ela notasse. Eu sabia que
era importante que o piano que estivesse na sala de estar, fosse o seu velho
piano vertical Yamaha de madeira clara, não um modelo novo brilhante. O
piano dela guardava memórias em suas teclas; era um símbolo porque era um
objeto estável e com um grande significado que ela forneceu durante a minha
infância turbulenta. Eu inventei uma história de que eu iria levar o piano para
afinar ou algo assim antes de ir para o armazém; eu até pedi que ela assinasse
documentos falsos de mudança para que o piano pudesse ser levado embora
sem suspeita. O velho piano dela seria a peça de resistência do seu chalé no
bosque de Westchester.
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precisava passar pela casa da amiga do Tommy, a Carole, que ficava perto.
Quando os portões de ferro forjado que eu havia mandado colocar se abriram
como braços de boas-vindas dos pilares de pedra e entramos na propriedade,
eu senti a minha mãe ficar quieta, então eu a ouvi respirar fundo. As árvores
fazem isso: te fazem parar para respirar. Ela saiu do carro como se o ar fresco
a estivesse fazendo diminuir de velocidade.
Ela olhou para a bela casa. Eu a observei apreciar a beleza dos vasos de
flores. E, quando a Carole abriu a porta da frente, o aroma forte de café e de
pãezinhos de canela quentes chegaram até nós. (Eu tinha combinado para que
os pães fossem preparados e estivessem assados quando a gente chegasse,
pois eu queria que esses detalhes preparassem o clima.) A minha mãe parou
na porta e disse suavemente: “Oh, Carole, a sua casa é linda. Entrando no
clima da brincadeira, a Carole se ofereceu para mostrar o local a ela e eu a
segui. Quando nós chegamos à escada, a minha mãe parou nas fotos, mas eu
percebi que ela não tinha notado nada. Então, eu a acordei do transe. “Mãe,
olha quem está nas fotos.” Ela ficou confusa ao notar que era a família dela
que estava na parede da “casa da Carole”. Em voz baixa, ela respondeu: “Eu...
não estou entendendo.”
“Isso é tudo para você. É aqui que você vai morar agora”, eu disse. Ela ficou
sem palavras. E eu nunca me senti tão orgulhosa na vida.
O Mike, que eu amo muito, ainda era bem pequeno na época. Ele saiu
correndo pela casa e foi para o quintal, correndo pela grama macia, gritando
de alegria. Ele era um garoto cheio de pura alegria (e ainda é uma grande fonte
de alegria para mim). Ele se sentia livre. Um menino brincando na brisa da
tarde sem nenhuma sujeira por perto, apenas sentindo-se livre. O círculo da
gente se balançando sobre montanhas de lixo ou de sermos jogados fora como
lixo havia sido encerrado – ou assim eu pensei.
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Em circunstâncias normais, a possibilidade de ter o meu próprio estúdio –
feito sob medida com as minhas especificações exatas e à minha disposição a
qualquer momento – teria sido libertadora. No início da minha carreira, eu
estava à mercê de outras pessoas para conseguir gravar num estúdio, eu me
sentia grata por estar em pequenos espaços sombrios, cantando músicas que
eu não gostava, barganhando, fazendo o que fosse necessário para gravar as
minhas músicas. E agora, eu tinha o meu próprio estúdio de gravação lindo e
totalmente equipado. Eu imaginava que eu poderia gravar músicas e chamar
os artistas para trabalhar comigo quando eu quisesse, como o Prince fazia. A
Sing Sing não era como a Paisley Park, a propriedade do Prince, mas era
fabulosa e era minha. Bem, metade era minha. Havia um estúdio com
equipamentos de gravação sofisticados, mas também equipamentos de
segurança muito sofisticados espalhados pela casa – aparelhos de escuta,
câmeras de detecção de movimento – gravando cada passo que eu dava.
135
UMA FAMÍLIA
– “Hero”
21 Vaudeville: um tipo de entretenimento teatral dos anos 1800 ao início dos anos de 1900
que incluía música, dança e piadas.
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equipados com armas semiautomáticas e usando sapatos brilhantes. A
limusine diminuiu a velocidade enquanto eu olhava pela janela, com as ruas
estranhamente silenciosas. Uma ansiedade familiar estava aumentando dentro
de mim, que eu lutei muito para conter. Eu tinha que me preparar mentalmente
para cantar novas canções para um público novo, um show que seria
televisionado para milhões de pessoas por uma grande emissora de TV. Eu
sabia que eu não podia deixar a minha ansiedade se transformar em medo.
Com a exceção dos policiais – quem chamou todos esses policiais? Eu tinha
os meus próprios seguranças comigo; na verdade, eu sempre andava com
seguranças ao meu lado – a rua atrás do teatro, onde ficava a porta dos
bastidores, estava deserta.
“Mariah”, eles me disseram, “é por sua causa. É porque você veio fazer o
show aqui.”
137
de músicas dos meus dois primeiros CDs para o show extremamente popular
do MTV Unplugged. Incluía uma nova versão da música de sucesso dos
Jackson Five, “I’ll Be There”, apresentando o meu backing vocal e amigo Trey
Lorenz. A música ficou em 1º lugar logo após o show, se tornando o meu 5º
single em 1º lugar e, pela segunda vez, “I’ll Be There” ocupou o seu lugar de
destaque. Eu cantei “Emotions” no MTV Video Music Awards e no Soul Train
Music Awards. E aqui estava eu de novo, prestes a cantar em um outro palco,
e de alguma forma eu não fazia ideia que eu era famosa.
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carreira, todo o meu foco, toda a minha energia e toda a minha paixão foram
usados na composição, na produção e no ato de cantar das minhas músicas.
O Tommy e a sua influência opressora em tudo o que eu fazia pareciam um
preço justo a pagar por conseguir trabalhar com que eu sempre havia sonhado.
Ele controlava a minha vida, mas eu controlava a minha música. Foi só naquele
momento em Schenectady que eu comecei a perceber o quanto eu era popular.
Eu tinha fãs! E que logo se tornariam uma outra fonte de força para mim.
O especial de Ação de Graças foi chamado Here Is Mariah Carey (aqui está
a Mariah Carey), e eu ia cantar três novas canções do CD Music Box:
“Dreamlover”, “Anytime You Need a Friend” e “Hero”, juntamente com alguns
dos meus sucessos anteriores – “Emotions”, “Make It Happen” e, claro, “Vision
of Love”. Eu sempre compus as minhas músicas com muita sinceridade,
usando as minhas próprias experiências de vida e sonhos como inspiração. Eu
também sempre soltava a voz. Eu também ia cantar “Hero” pela 1º vez. É
sempre um risco cantar músicas novas em um show ao vivo se as pessoas não
tiveram a oportunidade de ouvir antes nas estações de rádio. Embora eu tenha
escrito “Hero”, originalmente ela não faria parte do meu repertório.
Me pediram para escrever uma música para o filme Hero (PT-BR: herói por
acidente), estrelado por Dustin Hoffman e Geena Davis. O Tommy concordou
com a proposta de eu escrever uma música para o filme, e que seria cantada
pela Gloria Estefan, contratada pela gravadora Epic Records (a Sony,
gravadora do Tommy, era a matriz). Eu sabia que o Luther Vandross também
estava compondo uma música para a trilha sonora, então eu estaria em ótima
companhia. Eu estava no estúdio chamado Right Track, ou Hit Factory – um
139
dos maiores estúdios que eu já tinha investido. Eu estava lá naquele dia com
o Walter Afanasieff.
A música “Hero” foi criada para um filme comercial, para ser cantada por
uma cantora com um estilo e alcance vocal muito diferentes do meu.
Honestamente, embora eu achasse que a mensagem e a melodia fossem
bastante genéricas, eu também achava que ela preenchia os requisitos. Nós
gravamos uma demo, que eu achei um pouco melosa.
140
O especial de Ação de Graças incluiu crianças do centro da cidade de uma
organização comunitária local. Eu vi as crianças nos bastidores, com muito
medo, mas que tinham um futuro pela frente, e nelas, eu vi a mim mesma. Eu
cantaria essa música para eles também. O show começou com o meu último
sucesso, “Emotions” – uma música alto astral e repleta de agudos, que são a
minha marca registrada. Enquanto eu cantava “Emotions”, e através das várias
pausas e retomadas necessárias (cantar ao vivo para uma gravação de TV dá
muito trabalho), eu pude realmente olhar para as pessoas na multidão. Aqui
estava eu em Schenectady, tendo contato com pessoas de verdade – não
pessoas pagas para preencher assentos ou figurantes vestidos com roupas da
moda, mas fãs autênticos, principalmente jovens com uma ambição e adoração
inconfundíveis no olhar. Eu via a essência deles, e a essência deles era a
mesma que a minha. Eu fechei os olhos e fiz uma oração. Quando os primeiros
acordes da introdução do piano tocaram, eu comecei a cantarolar com o
coração. Quando eu abri a minha boca, “Hero” foi lançada ao mundo.
Alguns de nós precisam ser resgatados, mas todos querem ser vistos. Eu
cantei “Hero” diretamente para os rostos que eu conseguia ver do palco. Eu vi
lágrimas brotarem dos seus olhos e a esperança crescer em seus corações.
Qualquer cinismo que eu tivesse sobre “Hero”, foi embora depois daquela noite.
Mas o Tommy também havia notado o tamanho do impacto.
141
E aqui estou revirando os olhos com desdém ao fazer esse comentário:
algumas pessoas alegaram que a música “Hero” é um plágio e vieram
reivindicar direitos autorais. Eu fui três vezes ao tribunal e três vezes os casos
foram arquivados. Na primeira vez, o pobre idiota que alegou isso teve que
pagar uma multa. No início, eu me senti uma vítima, sabendo como a música
era pura para mim, mas depois de um tempo eu quase que passei a esperar
mentiras e ações judiciais por causa do meu sucesso – de estranhos e da
minha própria família e amigos. E eles não vão parar.
142
atração magnética da cidade diminuía, uma parte da minha força vital também
diminuía.
143
sendo batizada, eu mergulhei a minha cabeça e permaneci no silêncio quente
e escuro. Eu gentilmente me levantei, inclinei a minha cabeça para trás e apoiei
os meus braços ao longo da borda da enorme banheira, as pálpebras ainda
fechadas, desfrutando cada momento desta calma solidão. Lentamente, eu
abri os meus olhos e vi uma lua cheia radiante, brilhando num céu claro, preto
azulado. Eu suavemente comecei a cantar: “Da, da, da, da, da...”
144
O MEU CASAMENTO BAFÔNICO COM
A SONY (E A MINHA LUA DE MEL UÓ)
E isso foi tudo. Ela entrou na limusine que estava esperando por ela e foi
embora. Eu nunca soube realmente o que ela quis dizer com a fala dela. Mas
foi só isso que aconteceu. Não houve nenhum conselho feminino ou risos de
alegria – que, honestamente, eu não esperava, mas eu achava que a ocasião
exigia mais do que uma frase de efeito.
145
não era digna tanto da felicidade pessoal quanto do sucesso profissional. Eu
estava acostumada a fazer todas as escolhas da minha vida com base na
sobrevivência.
146
com os cachos soltos e saltitantes, que eu acho que ele pensava que me fazia
parecer quase como que uma garota italiana (embora, ironicamente, os meus
cachos sejam resultado direto do meu DNA negro, alinhados com a ajuda de
uma boa “varinha modeladora” para acabar com o frizz no cabelo).
Sutileza, para essas meninas, era perda de tempo e sabor. Elas pareciam
um camarão de tão bronzeadas. Os seus cabelos cheios de luzes eram
penteados ao extremo, ao ponto de ficarem lambidos, cada cacho, afro puff23
e franja fixados em seu devido lugar com spray. A maquiagem delas era
brilhante, chamativa e perfeitamente aplicada. Elas faziam as unhas e tinham
as unhas compridas. Algumas até tinham arte nas unhas: uma fileira de
minúsculas tachas de ouro ou as iniciais de seus nomes em cristais em um
perfeito, forte e brilhante “francês” de cor branca – arrasou.
22 Pink Ladies: são garotas que estudam na escola Rydell High School e que gostam de
usar jaquetas cor de rosa e são super estilosas e bem arrumadas.
23 Afro Puff: é um penteado parecido com o coque abacaxi, e que funciona melhor com
cabelos crespos.
147
Todas nós tínhamos que usar um jaleco muito sem graça da cor marrom e
com botões, tínhamos também que usar calças brancas e sapatos de
enfermeira brancos horríveis e grossos. Mas essas garotas não escondiam que
queriam chamar a atenção. Elas usavam os jalecos desabotoados, deixando à
mostra as suas leggings e as suas regatas brancas masculinas com nervuras
e os sutiãs rendados que elas usavam por baixo. E, claro, elas usavam joias
também: correntes de elos de ouro grossas e finas em estilos planos, espinha
de peixe e corda com chifres italianos, cruzes e pingentes com as suas iniciais
pendurados um em cima do outro em seus pescoços, argolas em suas orelhas
e ouro delicado e anéis de diamante em cada dedo.
148
Nós tínhamos mais em comum do que se poderia imaginar. Sempre houve
uma relação secreta e ilegal entre o hip-hop e a máfia na cultura pop. Nós
amávamos especialmente o estilo e a vibe de filmes como The Godfather (PT-
BR: o poderoso chefão) e Scarface. Um tempo depois, eu recriei a cena da
banheira de hidromassagem com o Jay-Z para o clipe de “Heartbreaker”. Esse
clipe sempre será um dos meus favoritos. Eu adorava homenagear a Elvira, a
personagem da Michelle Pfeiffer, a esposa torturada e prisioneira, que tinha
uma casa espetacular e roupas de grife sensuais (muito parecida comigo).
Eu nunca poderia ter imaginado, que apenas alguns anos depois de ter feito
quinhentas horas de aula sobre beleza com as Guidettes, eu estaria me
casando com um dos homens mais poderosos da indústria da música – um
italiano, nada menos que isso. Eu não estava querendo me relacionar com
ninguém. Certamente eu não estava procurando por marido. E eu
definitivamente não tinha a intenção de me casar com o Tommy, mas
aconteceu mesmo assim. E que acontecimento! Assim que eu aceitei me casar,
eu pensei, ei, podemos muito bem fazer disso um grande evento – um
ESPETÁCULO! Como acontece com qualquer projeto ou produção em que eu
me envolvo, eu queria que o meu casamento transmitisse o máximo de
otimismo e que fosse bafônico. O Tommy também ficou entusiasmado com a
pompa e com a situação em potencial que a gente poderia criar. Ele se
concentrou na curadoria do público mais influente e impressionante – ou seja,
na lista de convidados – possível.
149
O vestido era um espetáculo por si só. A minha coordenadora de produção
era amiga de uma das estilistas femininas mais conhecidas da época, cuja
especialidade era noivas. A impressão que eu tinha era a de que a quantidade
de tempo que eu passava no mostruário fazendo ajustes era a mesma que eu
passava dentro de um estúdio gravando um CD inteiro. Eu tinha que provar a
roupa pelo menos umas dez vezes – uma loucura para uma garota que, não
muito tempo atrás, tinha apenas três camisas para vestir.
150
Eu lembro que a nossa música era “You and I (We Can Conquer the World)”
(Você e eu – nós podemos conquistar o mundo) do Stevie Wonder, porque foi
eu quem escolhi, é claro. Eu me lembro do meu rosto tremendo
involuntariamente no altar. Mas no momento em que as portas da igreja se
abriram para a Quinta Avenida, eu ouvi o barulho de gritos e vi a multidão de
fãs inundando cada centímetro da calçada até onde a vista alcançava, os
flashes das câmeras estourando como fogos de artifício. Eu desci as escadas
e sorri para eles. Para mim, o meu casamento não foi dedicado para todas
aquelas pessoas ricas e famosas que eu mal conhecia.
“Você não precisa se casar com ele”, todas elas disseram. Mas eu
realmente acreditava que eu precisava. Não havia saída. Eu não sabia mais o
que fazer. Eu havia aprendido a suportar a decepção e seguir em frente, a tirar
o melhor proveito das coisas e continuar trabalhando. Certamente eu sabia
como conviver com o medo. Eu não conhecia uma vida sem medo.
151
nos hospedamos na casa de alguém, que já era algo sem graça. Eu realmente
não me importei muito, já que o meu relacionamento com o Tommy nunca foi
amoroso, mas mesmo assim, era tecnicamente a nossa “lua de mel” ...
Ainda bem que a casa ficava na praia, e estar perto do mar é sempre um
conforto para mim. No dia seguinte, eu fui ao banheiro colocar um maiô quando
eu ouvi o Tommy falando alto no viva-voz. Deu para notar que ele estava
discutindo. Ótimo.
O Tommy não me defendeu. Então, aqui estava eu, com os meus vinte e
poucos anos, na minha lua de mel com um homem de cinquenta anos gritando
e me xingando ao telefone enquanto o meu marido quarentão não dizia nada
e nem fez porra nenhuma. E ainda por cima, eu estava certa! É claro que as
fotos do nosso casamento eram para ter sido colocadas na capa da revista. Foi
planejado dessa forma – o show business era assim!
152
meu cabelo preso em um coque, usando nada além de um biquíni e uma
canga, eu me sentia como mil jovens solitárias numa praia, não como uma
estrela pop famosa que vendeu milhões de CDs em todo o mundo. Eu
certamente não parecia uma noiva em lua de mel. Se alguém me reconheceu,
me deixou em paz – e ninguém conseguiria imaginar como eu estava me
sentindo sozinha.
Eu pedi para usar o telefone e fiz uma ligação a cobrar para o meu
empresário (lembra quando a gente tinha que memorizar números
importantes?) Eu pedi a ele que desse ao barman um número de cartão de
crédito para que eu pudesse pelo menos comprar uma bebida. Eu pedi um
daiquiri24 doce e gelado para afogar as mágoas. Eu tomei um gole e ouvi as
ondas batendo na costa enquanto eu começava a digerir a realidade da
situação.
Por fim, eu voltei para a praia e fui para casa. Mas eu sabia como ia ser.
Mais uma vez, o Tommy e eu não trocaríamos mais uma palavra depois de
uma DR. O pouco de esperança que eu tinha, que ele mudaria quando a gente
se casasse, foi apagado como as pegadas na areia. Foi a partir daí que eu
comecei a prender a respiração e a resistir à correnteza do Tommy.
24 Daiquiri: é uma bebida alcoólica ou um coquetel feito com rum, suco de limão, e açúcar
ou xarope, de origem cubana.
153
O DIA DE AÇÃO DE GRAÇAS
ESTÁ CANCELADO!
– “Petals”
O boato que rolava era o de que eu, com muito estilo, tinha dado o golpe
do baú em um grande executivo de sucesso e que agora ele estava financiando
o meu estilo de vida de princesa – que eu, belíssima, só ficava sentada em um
trono da minha mansão de trinta milhões de dólares. O casamento certamente
passou essa ilusão, mas não passava disso, uma ilusão. Se a minha vida de
casada parecia ser um conto de fadas, era tudo enganação. A segurança
blindada que o Tommy me cercava contra a minha família se transformou em
uma masmorra blindada.
154
Todos que tinham a tarefa de cuidar de mim eram conectados profundamente
com ele. Eu era muito jovem e inexperiente quando o Tommy me conheceu;
ele sabia muito mais sobre muitas coisas, especialmente sobre o mundo da
música. Mas eu sabia algumas coisas que ele também não sabia,
principalmente no que se referia a tendências e cultura popular, o que eu
suspeito que ele se sentia ameaçado com isso. A impressão que eu tinha era
a de que ele se sentia ameaçado por qualquer coisa que ele não conseguia
controlar.
Ele entrava em parafuso só com a ideia de eu fazer algo que ele não
conseguia controlar. Um exemplo básico e ridículo disso: uma vez, havia uma
revista, a Entertainment Weekly, em cima da mesa da nossa cozinha em Sing
Sing. Tinha uma matéria em que o redator sugeria uma nova versão moderna
do filme All About Eve (PT-BR: a malvada) com a participação da Diana Ross
como a Margo Channing e eu como a Eve Harrington – brilhante! Claro, eu
adorava o filme original, não apenas pelo glamour e as performances icônicas,
mas também porque a Marilyn Monroe fez uma pequena e adorável
participação como a Miss Casswell, uma atriz linda e ambiciosa.
155
compreender totalmente, porque estava à frente do seu tempo. Ele nunca
acreditou realmente no poder cultural duradouro do hip-hop porque ele não
conseguia entendê-lo totalmente. Ele pensava que era uma moda passageira
ou só uma tendência.
A música estava vivendo uma era empolgante em meados dos anos 90, e
eu fazia parte de uma geração pioneira de jovens artistas, compositores,
produtores e executivos inovadores. Nós tínhamos a intenção de fazer um novo
tipo de som, baseado em R&B e rap, mas sem restrições de formatos e
fórmulas antigas. A gente brincava com novas tecnologias e misturava
melodias fluidas de maneira irreverente com a estética e a energia mais realista
do hip-hop. A música que nós estávamos fazendo era original e suave ao
mesmo tempo, e nós éramos os únicos que sabíamos como dar um toque
especial nela. Era o nosso som, reflexo do nosso tempo e das nossas
sensibilidades.
156
gravadora Epic Records voltou-se para mim e perguntou: “Então, o que você
acha desse cara, o Puffy? Qual é a sua opinião sobre ele? Você gosta da
música dele?”
Ele dirigiu a pergunta para mim porque eu era a pessoa mais jovem da
mesa. Eu também amava e entendia o hip-hop, e era a única artista lá. Além
disso, eu havia trabalhado recentemente com o Puff como produtor. A mesa
ficou quieta quando eu me inclinei e dei a minha avaliação honesta: que o Puff
e a gravadora Bad Boy eram definitivamente o som que iria dominar.
Não muito tempo atrás, na mesa da cozinha da nossa casa, o Tommy havia
falado para mim e para o meu sobrinho Shawn: “Daqui a dois anos, o Puffy vai
engraxar os meus sapatos”. Eu fiquei chocada. Peraê. O que foi que ele disse?
Foi uma das poucas vezes em que eu enfrentei o Tommy, e falei para ele que
o que ele havia dito era totalmente racista. Eu fiquei chateada. O Shawn nunca
tinha me visto bater de frente com ele; ele ficou chocado por eu ter mostrado a
minha raiva e ficou realmente preocupado comigo. Muitas pessoas ficaram
preocupadas na época.
Mas naquela noite no restaurante, o que poderia ter sido uma grande
discussão entre um executivo da indústria e uma artista sobre a cultura global
e o futuro da música pop americana se transformou em uma birra épica do
Tommy. Quando eu estava terminando a minha resposta, eu vi os seus olhos
brilharem com uma raiva tão conhecida por mim. Ele saltou da mesa e
começou a andar, bufando pelo restaurante. Ele ficou tão enfurecido que ele
não conseguia se conter. A mesa inteira ficou em silêncio enquanto nós
olhávamos um para o outro, sem saber o que diabos havia de errado com ele
(desta vez) ou o que nós deveríamos fazer. O restaurante inteiro viu o Tommy
tentando descer de um parapeito que só ele conseguia ver. Finalmente, ele
voltou. Ainda tremendo de raiva, ele bateu o punho na mesa e anunciou: “Eu
só quero que todos saibam que O DIA DE AÇÃO DE GRAÇAS ESTÁ
CANCELADO!” Hmmm, beleza.
Nós estávamos planejando fazer uma celebração com um jantar para o Dia
de Ação de Graças em Sing Sing, mas porque eu ousei dar a minha opinião
sincera e independente, em público, para alguém que ele admirava (e que
havia me perguntado o que eu achava), ele iria acabar com a diversão. Como
se fosse a minha festa de aniversário de dez anos. Mesmo assim, foi super
ridículo e arrogante da parte dele declarar que o feriado nacional estava
157
cancelado. Tipo, quem iria ligar para o Frank Perdue26? Pelo amor de Deus,
quem iria cancelar todos os pedidos feitos à empresa Butterballs27? Que culpa
eu tinha de terem me feito uma pergunta?
O que eu deveria ter feito, ficar parada igual a uma estátua e não responder
ao homem? Que coisa mais ridícula!
O que não era nada engraçado era saber como eu seria punida pela minha
transgressão voltando para casa. Algo aconteceu comigo naquela noite, e eu
decidi que eu não iria levar a culpa por algo que não era a minha culpa,
novamente. Naquela noite, eu não seria trancada na câmara de tortura do
Range Rover do Tommy e mandada de volta para a prisão em Bedford. Eu
tomei a decisão de não ir embora com ele em hipótese alguma. Eu percebi que
eu estava correndo um risco enorme, mas como nós estávamos em um local
público, com uma mesa cheia de testemunhas, eu arrisquei, pensando que ele
não iria causar ainda mais e que eu ficaria segura.
26 Frank Perdue: nascido em Salisbury, Maryland, foi por muitos anos o presidente e CEO
da Perdue Farms, agora uma das maiores empresas produtoras de frango nos Estados
Unidos.
27 Butterballs: é uma marca de peru e outros produtos de aves produzidos pela Butterball
LLC. A empresa fabrica produtos alimentícios nos Estados Unidos e internacionalmente -
especializada em perus, carnes curadas, assados crus e produtos especiais, como sopas e
saladas, sanduíches e entradas.
158
Porque é a minha noite
Sem estresse, sem brigas
Estou deixando tudo para trás...
Sem lágrimas, sem tempo para chorar
Apenas aproveitando a vida ao máximo
159
FANTASIA
160
evidência. O Puff vibrou com a minha ideia de cantar junto com o Ol 'Dirty
Bastard do grupo de hip-hop Wu-Tang Clan – ele era o verdadeiro gênio do
amor28.
28 Ele era o verdadeiro gênio do amor: a música “Fantasy Remix” descreve como a
Mariah se sentiu ao ver um cara que ela estava a fim. A gente sabe que o cara era do tipo
mau caráter, porque ela pergunta a mesma coisa várias vezes “o que você vai fazer quando
sair da prisão”? A música original, “Genius of Love” (gênio do amor), também fala do
namorado mau caráter de uma garota e que também tinha acabado de sair da prisão. A
Mariah faz uma comparação e diz que o ODB era o verdadeiro gênio do amor, ou seja, ele
era a perfeita descrição do cara bad boy citado nas duas músicas.
161
Ei, Nova Iorque está na área?
O Brooklyn está na área?
O subúrbio está na área?
Shaolin29 está na área?
O distrito do Bronx está na área?
Sacramento está na área?
Atlanta, Georgia estão na área?
A Costa Oeste está na área?
Japão, você está na área?
Pessoal, vocês estão na área?
Vamos juntos nessa
Baby, vamos todos juntos!
“Que porra é essa?” ele deixou escapar. “Eu sei fazer isso. Dê o fora daqui
com essa porcaria.” Pois é. Foi isso o que ele disse sobre uma das coisas mais
originais e incríveis que eu já tinha ouvido! Eu acho que ele ficou em estado de
choque, ou talvez ele realmente achava que ele conseguia fazer melhor e que
todos nós estávamos ficando loucos. Era como se a nave estelar
Empreendimento tivesse me levado para uma outra galáxia, muito, muito longe
do Tommy. A música era o nosso único vínculo verdadeiro, e agora estávamos
a anos-luz de distância.
29 Shaolin: um dos cinco distritos da cidade de Nova Iorque. Um apelido dado à Ilha de
Staten pelo grupo de hip-hop Wu-Tang Clan.
162
tocada nas estações de rádio. Eu a ouvia voltando para casa em Bedford
(tenho certeza que o Tommy amava isso – só que não). Eu parecia estar
compensando toda a diversão que eu havia perdido na minha infância. Ela me
fazia sentir feliz. A energia do ODB era algo com que todos podiam se
identificar – era como se ele fosse uma espécie de tiozão inconveniente e
divertido que fica bêbado em todas as celebrações, no jantar de natal, no
churrasco, no Dia de Ação de Graças. O ODB e o Puff realmente me ajudaram
a criar um clássico atemporal ao qual todos os tipos de pessoas se conectam.
O remix foi responsável por introduzir gírias e passar sensações que fariam
parte das nossas vidas para sempre. O Donny e a Marie Osmond voltaram à
memória popular depois que ele explodiu com as suas rimas “eu sou um pouco
country, eu sou um pouco rock'n'roll!” Como ele conseguiu fazer isso e cantar
desse jeito? Genial. E agora, quando eu canto “Fantasy Remix” usando os
vocais do ODB em algum show, parece que ele está dizendo “eu sou um pouco
Roc e Roe” –eu sempre fico emocionada.
O dia das filmagens do clipe com o ODB estava nublado e o local reservado
para ele ficar era bem simples, perto do calçadão. Eu entrei no camarim dele
para lhe dar um presente pessoalmente – um frasco de prata com as suas
163
iniciais gravadas. Nós conversamos sobre o conceito – o que, de novo, era
bem simples, porque eu não queria que nada viesse a ofuscar a performance
dele (como se fosse possível de acontecer). Eu compartilhei com ele a ideia de
amarrar um palhaço no poste e que ele mostrasse os seus dentes de ouro. Ele
aceitou a coisa toda, mas ele não gostou muito do figurino e queria usar uma
peruca.
“Eu quero uma peruca”, dizia ele, “Igual a peruca dos artistas dos anos 60.
Como a do Al Green. Eu sou como o Al Green desta geração”.
164
incrivelmente bem: premiado com um disco de diamante. O CD teve alguns
singles realmente especiais e memoráveis, como “Always Be My Baby” e, claro,
“One Sweet Day”, cujas letras e música eu co-escrevi com o Boyz II Men,
inspirado pelo falecimento do meu incrível amigo e colaborador David Cole e o
empresário de turnê deles, ambos morreram cedo demais. “One Sweet Day”
ocupou por dezesseis semanas consecutivas o 1º lugar na Billboard Hot 100,
um recorde mantido por 23 anos.
Porque “Fantasy” não era a única música que eu teria que cantar naquela
noite, tinha um trailer para mim atrás do Shrine Auditorium para que eu pudesse
trocar o meu figurino e coisas do tipo. Eu estava indo para o trailer para trocar
de roupa. Havia segurança em toda parte, então eu não precisava ser seguida
durante a curta caminhada até onde todos os trailers dos artistas estavam
estacionados atrás da casa de eventos.
165
trás apenas o suficiente para que os seus lindos cílios não projetassem uma
sombra e obscurecessem os seus olhos escuros alertas e surpreendentes que
olhavam para os meus.
“Ei, Mariah,” ele disse suavemente, o meu nome saiu dos seus lábios como
fumaça. Então aquele sorriso espetacular me desarmou. Em um instante, a
janela voltou a subir e o rapper Tupac foi embora.
A música e o humor têm sido desde sempre as minhas duas grandes formas
de liberação – eles me ajudaram a sobreviver a todas as angústias da minha
vida. Então, enquanto todos os membros da minha banda ainda estavam
comigo e enquanto eu dispunha de tempo de estúdio na gravadora Hit Factory
para a gravação do CD, eu criei uma artista alter ego e uma banda paródia tipo
a Ziggy Stardust30. A minha personagem era uma menina gótica melancólica
de cabelos escuros (uma versão dela, a Bianca, apareceu alguns anos depois
no clipe de “Heartbreaker”) que escreveu e cantou canções ridículas de
sofrência. Ao final de cada gravação, eu ia para um canto e, sem pensar muito,
30 Ziggy Stardust: a personagem foi inspirada no cantor britânico de rock Vince Taylor,
que o David Bowie conheceu após o Taylor ter um surto e acreditar que era um cruzamento
entre um deus e um alienígena, mas o Taylor foi somente parte do modelo da personagem.
166
eu escrevia rapidamente algumas letras. Em cinco minutos eu fazia uma
música:
Eu sou!
vinagre e água
Eu sou!
A filha feia de alguém
Estou vadeando na água
E eu souuu!
Como uma bolha aberta
Eu sou!
A irmã do Jack, o estripador
Eu sou!
Apenas uma vagabunda solitária
167
Tommy tinha tirado de uma barata gigante morta na Itália. Eu pedi a eles para
adicionar uma paleta de maquiagem de sombra de olhos esmagada. Eles
delinearam e ficou perfeitamente ousado e com aparência grunge de verdade.
Pessoalmente, eu fiquei muito satisfeita em gravar esse CD “alternativo”. Eu
gravei um sarcástico CD hardcore de bater cabeça que ninguém jamais
permitiria que eu fizesse. A minha assistente e eu costumávamos ouvir esse
CD nas alturas no carro andando pelas ruas secundárias de Westchester,
cantando com toda a força dos nossos pulmões, me dando um breve momento
de poder externar a minha raiva e de ser irreverente e livre.
Um tempo depois, quando ficou claro para o Tommy que o casamento não
daria certo, a gravadora Crave rapidamente tornou-se extinta, e o CD
alternativo convenientemente desapareceu. Porém, houve um pequeno e doce
benefício residual da Crave e do grupo de hip-hop Negro League. Eu convidei
um dos meus amigos do grupo para ser o meu par romântico – ele ficaria sem
camisa, andaria de moto comigo e lamberia os lábios em algumas cenas do
clipe “Sweetheart” do Jermaine. Eu o chamava de “Flask31” (que era parecido
com o nome dele) porque ele ficou super nervoso no voo para Bilbao, na
Espanha, e que acabou bebendo muito e ficando embriagado. Mas a ressaca
dele funcionou bem no clipe, enfatizando ainda mais os seus olhos
encantadores. Nós namoramos por um curto período de tempo, logo após um
31 Flask: frasco é a tradução literal e a Mariah deu esse apelido a ele porque ele estava
super bêbado no clipe. Bebidas alcóolicas são colocadas dentro de um frasco ou recipiente.
O nome real dele é Flip Mahlotix.
168
término muito difícil, que eu já já vou falar sobre isso. Ele era divertido, bonito
e perfeito para sarar as minhas feridas.
169
EM UMA NOITE DE VERÃO, NÓS
FUGIMOS POR ALGUNS INSTANTES…
Eu me inspirei bastante no trabalho que ele fez em “Just Kickin’ It” (somente
relaxando) com o novo grupo de garotas também de Atlanta – Xscape. Foi
intencionalmente “subproduzido”; as músicas que ele escolhia não eram super
editadas no estúdio – exatamente o que eu estava procurando. Assim que eu
ouvi essa música, eu senti que a gente deveria trabalhar juntos. O Jermaine –
170
também conhecido como JD, também conhecido como Jermash (é assim que
eu o chamo) – e eu instantaneamente nos encaixamos criativamente. Como
produtores, nós dois tínhamos uma disciplina intensa no estúdio, mas também
podíamos abordar a música com abandono, sem medo de tentar coisas novas.
A gente conseguia se concentrar e fluir juntos. Era uma relação rara e nós
sabíamos disso.
Para deixar a gravadora feliz, eu tinha que criar várias versões de um single,
incluindo uma que fosse mais agitada e simples, sem todos os improvisos e
“inflexões urbanas”. Para eu me sentir feliz e para eu me certificar que uma
música que eu gostava estava apropriada para os frequentadores de boate
(que sempre me davam vida nova), eu dediquei um tempo para fazer remixes,
às vezes vários de uma mesma música. Frequentemente, eu escrevia e
cantava tudo novamente em vez de usar partes do original – especialmente
quando eu trabalhava com o David Morales. A gente refazia uma música
completamente, muitas vezes trabalhando até tarde da noite, que é quando eu
podia ter um tempo só para mim. O David vinha ao estúdio e eu deixava claro
que ele poderia fazer o que ele quisesse com a música. Eu bebia algumas taças
de vinho e aí a gente ia aonde quer que o espírito nos levasse – quase sempre
músicas dançantes de alta energia com grandes vocais totalmente novos. Foi
uma maneira pela qual eu encontrei liberação enquanto eu ficava confinada em
Sing Sing.
171
O JD aceitou. Eu sabia como teria que ser o som do remix, com partes de
backing vocal no estilo Supremes. Eu tive que cantar tudo de novo porque a
música estava em um tom diferente. Mas porque o Jermaine era tão adepto do
estúdio e tão em sintonia com todos os nossos estilos, eu sabia que ele daria
um jeito da coisa acontecer. O dia de gravação foi marcado – a So So Def viria
para Sing Sing.
O Jermaine era tão focado e sério que ele foi direto para o estúdio para
entrar no clima e se organizar. Ele se sentou ao painel, no comando total, como
o capitão de uma nave espacial. Enquanto ele trabalhava na batida, as garotas
do Xscape e eu vibrávamos e conversávamos sobre como a parte de backing
vocal seria gravada. Foi provavelmente a primeira vez que eu recebi cinco
172
mulheres praticamente da mesma idade que eu na minha casa. O grupo
Xscape era composto pela Kandi Burruss, Tameka “Tiny” Cottle, Tamika e pela
LaTocha Scott. Com os seus sofisticados penteados de Atlanta, lábios
brilhantes e roupas esportivas extragrandes, elas eram super estilosas e
transmitiam totalmente o visual glamouroso, mas descontraído, das mulheres
do hip-hop durante aqueles anos. O som e o estilo delas eram exatamente a
vibe certa para a música remix e para o clipe. Eu queria que todos nós
parecêssemos leves e genuínos, não manipulados pelos “executivos de
desenvolvimento artístico”.
A nossa próxima parada da tour foi o quarto principal. A Brat era tão
engraçada; ela deu um grito quando viu a tela gigante da televisão subir, como
se fosse um truque de mágica, de um rack aos pés da nossa cama sofisticada.
A Brat não era uma garota feminina – ela estava usando jeans extragrandes,
uma camisa polo e botas Timberland – mas eu fiz um grande alarde querendo
mostrar a ela o meu closet inspirado na Coco Chanel e eu insisti que ela visse
a minha enorme coleção de sapatos chiques. Eu sabia que se eu a levasse até
o cômodo dos sapatos, os seguranças não nos veriam; fui eu quem tinha
projetado e eu tinha certeza de que não havia câmeras ou aparelhos de escuta
entre os meus sapatos Manolos. Eu falava em voz alta sobre sapatos de salto
agulha enquanto eu fechava lentamente a porta.
Eu nunca sabia quem poderia estar ouvindo, então eu sussurrei para a Brat:
“vamos comer batatas fritas?” Em qualquer outra realidade, isso teria sido uma
sugestão trivial, mas na minha, estava prestes a se tornar uma travessura em
grande escala.
“Isso não é engraçado, porra,” ele disse. “o Tommy está ficando maluco; ele
fez todo mundo procurar por vocês; eles estão armados da cabeça aos pés!”
Ela disse algo como: “Isso não está certo. Você tem que se impor, Mariah.
O Jermaine, as meninas do Xscape – todos nós estamos aqui por sua causa.
Você vendeu milhões de CDs, garota. Você mora em um tremendo palácio.
Você tem tudo, mas se você não tem liberdade de ir à porra do Burger King
32 Thelma e Louise: o filme conta a história de duas mulheres, Thelma, interpretada por
Gina Davis e Louise, interpretada por Susan Sarandon, que, cansadas da vida que levavam,
decidem fugir e iniciar uma viagem inesperada e cheia de surpresas. Este filme, lançado nos
EUA em 1991, tem a direção de Ridley Scott, e foi vencedor do Oscar de Melhor Roteiro
Original e do Globo de Ouro de Melhor Roteiro.
175
quando quiser, você não tem nada. Você precisa cair o fora de lá.” Ela não
estava rindo desta vez. Se a Da Brat, uma rapper de dezenove anos do West
Side, teme por você, é porque a situação deve ser terrível, dahling.
176
Conseguimos: um remix, um clipe e uma fuga da prisão, tudo em um só dia.
Vocês nunca ficariam sabendo pelo clipe que eu dirigi que nós estávamos
cercados por seguranças armados. A tensão foi eliminada na edição, eu era
mestre nisso.
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EFEITOS COLATERAIS
– “Side Effects”
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Sinceramente, eu só queria ter cinco minutos de paz – eu só queria ter
a oportunidade de poder descer as escadas, de ir até a minha própria
cozinha para poder comer alguma coisa sem ser ameaçada pelo interfone:
“O que você fazendo?” Além disso, eu não confiava em ninguém – até então
eu não mantinha contato com a minha família, e todos ao meu redor
estavam ligados ao Tommy e tinham medo dele. Eu sabia que qualquer
coisa que eu dissesse não iria causar nenhum tipo de efeito, e eu acabaria
sofrendo nas mãos dele.
A terapia veio em boa hora. A nossa terapeuta era uma senhora judia e
gentil; ela tinha os cabelos curtos de cor âmbar e com olhos atentos. Ela
tinha um consultório aconchegante em uma casa clássica de Westchester.
Eu gostei dela mais do que eu imaginei, porque eu achava que ela ia “tomar
partido pelo Tommy”, mas ela era super imparcial e uma verdadeira
profissional. E ele a respeitava. (O que era bastante importante). Naquele
momento da minha vida, eu não me relacionava muito com outros
profissionais cujos meios de vida não estivessem ligados às minhas vendas
de discos. Eu não me sentia dominada pela ansiedade em pouquíssimos
lugares: primeiro, eu não ficava ansiosa no estúdio de gravação e agora
tinha também o consultório da nossa terapeuta.
Foi uma grande descoberta eu saber que ela ouvia a nós dois de forma
objetiva. E ela acreditava em mim. Fazia anos que o Tommy era
acompanhado por ela, algo semelhante às cenas do seriado “Sopranos” em
que o personagem Tony Soprano é acompanhado pela psiquiatra Jennifer
Melfi, exceto que a nossa terapeuta era mais uma figura materna do que
uma acadêmica sexy. Ela pode ter sido a única pessoa a ter visualizado
algo na psiquê dele e que poderia compreender completamente as
condições repressivas e paranóicas que me foram impostas enquanto
estávamos casados e morando sob o mesmo teto. Ela foi a primeira a
reconhecer e a mencionar o abuso em que eu vivia. Eu já sabia que o meu
espírito estava sendo destruído, mas foi ela quem identificou os danos que
estavam me afetando emocionalmente.
Ela fez uma pausa e disse, com o seu sotaque seco e prático de Nova
Iorque, “Querida, não é normal. Por que você está agindo como se
estivesse lidando com uma situação normal? Simplesmente não é normal!”
Mas eu não tinha nenhuma referência para saber o que era normal ou
não. O nosso casamento já parecia um prédio prestes a desabar muito
antes da gente fazer terapia.
Sentindo que eu estava resistindo, ela disse: “Vá para um lugar onde
você se sente segura”.
Nada.
“Você tem um lugar onde você se sente segura, Mariah? Vá para lá.
Pode ser um lugar que tenha a ver com a sua infância.”
Nada.
“Imagine que você é uma criança e que tem seis anos. Vá para lá”
–“Close My Eyes”
O Tommy foi taxativo em seu parecer de que eu não poderia atuar; acho
que ele tinha medo de eu conhecer atores ou diretores atraentes ou algo
assim em estúdios glamorosos de filmagem. O fato de ele ter aceitado eu fazer
aulas de teatro (porque ele achava que os professores eram leais a ele) me
deixou um tanto animada. A influência que ele tinha no mundo da música
não era a mesma em Hollywood. Eu fazer aulas de teatro em Nova Iorque
talvez não fosse tão ameaçador para ele assim já que ele conhecia bem a
cidade e tinha olhos em todos os lugares. Mas eu sair com os meus amigos,
pessoas da minha idade, só para me divertir? Ele via isso como uma grande
ameaça. O que talvez fosse mais assustador para ele era eu ser vista sem
a sua presença e, Deus me livre, fotografada sem ele. Seria horrível demais
para ele que as pessoas vissem a sua Cinderela sozinha num baile sem o seu
príncipe encantado para lhe salvar.
Ainda bem que naquela noite eu fiquei sabendo que, um dos meus
amigos, o Wanya Morris do Boyz II Men, também participaria da festa de
gala, então eu não teria que ficar encenando praticamente o tempo todo.
Me alegrei pelo fato de que, do outro lado de onde a sessão de fotos estava
acontecendo, do outro lado de onde ficavam os pratos caríssimos de mil
dólares e do outro lado das futilidades, haveria uma real possibilidade para
eu me divertir – não seria nada parecido com o silêncio sufocante de quando
eu voltava para a casa no Condado de Westchester junto com o Tommy.
Eu conseguiria aguentar a situação. Eu estava usando um vestido de
alcinha vermelho e comprido de malha fosca da Ralph Lauren e fui até o
tapete vermelho, segurando no braço do Tommy.
Eu era muito jovem e não tão confiante assim para desafiar a opinião
dela, então acabei acatando o que ela falou. Eu internalizei muitas das
críticas destrutivas e cruéis que as pessoas mais velhas me fizeram quando
eu era mais jovem; algumas dessas críticas estão tão profundamente
enraizadas no meu psiquê que eu nunca conseguirei me livrar delas
188
inteiramente. Até hoje eu, inconscientemente, só mostro o “lado bonito” do
meu rosto caso tenha uma câmera por perto; fazer o quê?
Nos anos 90, o Giorgio Armani estava no auge da sua carreira de moda.
O Armani era o estilista de luxo preferido de todas as celebridades. O
Tommy, é claro, usava Armani e estava sempre tentando se manter no
estilo. E eu ocasionalmente também usava Armani. Havia várias pessoas
legais e influentes que trabalhavam para o estilista e que saíam com os
clientes legais que ele tinha. Depois da festa de gala, o nosso plano era ir
a um jantar em um restaurante que algumas pessoas da equipe do Armani
havia organizado. A minha assistente e eu fomos, e o Wanya se encontrou
com a gente lá. Era um evento badalado no centro da cidade.
34 Riff: é uma progressão de acordes, intervalos ou notas musicais, que são repetidas no
contexto de uma música, formando a base ou acompanhamento. Riffs, geralmente, formam
a base harmónica de músicas de Jazz, Blues e Rock.
189
eles não chamaram a minha atenção. Eu os achei ambíguos. Depois de
olhar brevemente para eles, pensei: Quem são esses caras? A minha
atenção se voltou para os convidados mais interessantes do jantar.
192
SEM AMARELAR
Sozinha e
Disposta a acreditar
Que já é bom o bastante ser
O que você realmente é
Mas no seu coração
Permanece sempre a incerteza de que
Você sempre estará em algum lugar
Do lado de fora
–“Outside”
193
Eu te amarei para sempre
Pegue a minha mão
E me leve até o seu coração
Eu vou te apoiar para sempre
Eu não vou te abandonar
Eu jamais vou te abandonar
Cada passo que a gente dava, por menor que fosse, tinha um só
propósito: a liberdade. Eu estava bastante acostumada a trabalhar sem
parar, mesmo que preocupada com o que podia acontecer, eu tentava não me
desesperar; para uma mulher jovem como eu, a vida passou a fazer sentido
quando eu me senti como uma garotinha boba e apaixonada novamente.
Apesar de todas as trevas, eu percebi que ainda havia alguns caprichos
reservados para mim e para o meu próprio coração. Eu até comecei a
assistir jogos de beisebol no estúdio quando ele estava jogando. Para a
fantasia se tornar ainda mais perfeita, o Derek jogava na mesma posição
que o grande Joe DiMaggio (o famoso marido do segundo casamento da
Marilyn Monroe) no time da Yankees36, o que aumentou ainda mais a minha
admiração por ele já que eu tinha todo um fascínio pela vida da Marilyn. Eu
literalmente conheci a pessoa que eu sempre tinha imaginado. Eu estava
vivendo a história de amor que eu tanto falava nas minhas músicas.
Ele saiu da sala e voltou com uma garrafa gelada de Moët. “Eu guardei
esse champanhe porque achei que um dia você pudesse vir me visitar.” Eu
sorri e disse: “Sim, uma bebida cai bem.” (E foi realmente a garrafa de “Moe-
ay” que me fez me soltar.) Nós subimos até o terraço, rimos, conversamos
baixinho, tomamos goles de champanhe gelado e curtimos o corpo um do
outro com abraços.
O que quebrou o clima não foi a chuva, e sim o medo. Quanto tempo
fazia que a gente tava ali? Será que o Tommy já sabia? Eu tinha que ir
embora! Eu disse à minha assistente que a gente já estava a caminho. O
Derek me levou às pressas até a pizzaria, onde a minha assistente estava
nos esperando com desespero no olhar. Ela saiu correndo quando me viu e
pulamos dentro da limusine. A gente se sentou no banco de trás com falta
de ar, colocando a mão na boca para abafar as risadas. É claro que o
motorista percebeu que eu estava encharcada, mas eu não dei a mínima! Eu
não tava nem aí se ele fosse, sem dúvida, me dedurar por causa da minha
desobediência. Eu tinha fugido para viver um momento real que era todo
meu. Eu deixei um pouco da tristeza lá naquele terraço e não voltaria lá para
pegar de volta.
197
Assim que o motorista deixou a minha assistente em casa, eu fiquei
sentada sozinha no banco de couro da parte de trás da limusine, e
entendiada por estar voltando para a prisão que eu morava. Eu estava com o
pensamento acelerado e o coração batendo forte. Será que tudo isso aconteceu
mesmo? Será que eu fiz o que fiz? O Tommy vai ficar muito puto! Eu liguei o
rádio para me ajudar a me acalmar. Eu comecei a ouvir uma batida de ghetto
irada do caralho, e o trecho da música era:
Eu acabei dormindo.
– “The Roof”
Certa noite, eu estava trabalhando com dois homens com quem eu tinha
uma certa relação criativa e profissional, e que tinham uma lealdade meio
que mafiosa com o Tommy. Esses três homens, que eu havia contribuído
consideravelmente para que se tornassem ricos e importantes, e eu
estávamos sentados na cozinha, prestes a fazer uma refeição. Mesmo que
todos ali fossem “amigos” reunidos numa mesa, de frente para uma grande
e rústica lareira com a frase triste e irônica de “o casarão dos contos de
fada” gravada na lareira de pedra calcária (eu a chamei assim, no meu
desespero em acreditar que talvez o meu desejo e vontade transformassem
o meu pesadelo num conto de fadas), o ar do local era tudo menos receptivo.
O ar da casa estava frio, silencioso e repleto de dor e confusão,
evidenciando que algo em mim havia mudado. Acho que o Tommy estava
constrangido por ter perdido a sua “mulher” e o controle da situação na
frente dos seus “capangas”. Constrangimento de qualquer tipo o deixava
puto de raiva.
Esse foi o último show dele comigo como prisioneira em Sing Sing.
–“Petals”
201
Os desastres naturais acabaram destruindo todas as paredes que
sustentavam grande parte da minha profunda tristeza. Poucos anos depois
de eu ir embora de Sing Sing, a casa foi destruída totalmente pelo fogo. E a
casa de campo do Tommy em Hillsdale também foi completamente
destruída por um tornado. Eu estava na minha cobertura em Manhattan
quando recebi uma ligação de uma mulher que era a ex-proprietária da
minha antiga casa. Ela havia removido a lareira e guardado em algum lugar,
porque ela achou que talvez eu pudesse querer a lareira por ser um objeto
muito pessoal. Eu fui buscar e mandei pintar a lareira com um novo verniz
branco, assim como a Marilyn fez com o piano que era da sua mãe. Essa
lareira está agora no meu quarto mais pessoal da minha casa, junto com as
fotos da minha família e outras coisas preciosas para mim. Eu não ia deixar
que o meu espírito morresse.
202
ASSIM COMO MEL
Mas sempre que eu dava um passo à frente, havia uma reação contrária.
O “show” que era o meu casamento poderia ter acabado, mas o pós-show
– o “comes e bebes”, a desmontagem do palco – precisava ser planejado
com cuidado. Houve uma grande agitação. A minha vida estava totalmente
interligada com a do Tommy; eu precisava de tempo e conselhos de como
203
me sair de forma amigável (o máximo possível). Então eu me mudei para
um hotel no Upper East Side, zona nobre de Nova Iorque, e continuei
fazendo terapia.
Eu sabia que os meus seguranças tinham nos visto sair do meu quarto
pela manhã, mas finalmente senti algo mais forte do que o medo da
vingança do Tommy. Eu não conseguia imaginar viver sem esse sentimento.
O desejo se tornou a minha razão de viver, o meu tudo. Eu não conseguia
dormir no avião quando eu estava voltando para Nova Iorque, mas a inspiração
para compor aconteceu. Eu comecei a escrever:
–“My All”
Viajar para o Porto Rico foi uma quebra de paradigma. Depois da viagem,
eu travei uma estratégia de novamente dar um golpe certeiro no meu coração:
eu coloquei em uma música tudo o que eu estava sentindo naquele momento.
Eu estava correndo um risco gigantesco, porque eu sabia que o Tommy ia
perceber que eu estava me relacionando com alguém (embora, tecnicamente,
eu ainda não estivesse transando ainda). Além disso, algo estava sendo
revelado. A empolgação impulsionou em mim um novo nível de criatividade e
um novo propósito foi despertado. Eu estava ouvindo melodias diferentes e
tinha experiências novas e reais para poder usar nas minhas músicas agora.
Então eu decidi fazer algo perigoso, mas ao mesmo tempo bonito – e todos
ficaram com medo pelo que eu tinha feito:
–“My All”
–“Honey”
Quando eu mostrei “Honey” para o Tommy, ele brincou: “Bom, fico feliz
que você esteja tão inspirada”. Quanta amargura! Eu disse, “O quê? Agora
você vai ficar com raiva de mim? Por que você não ficou com raiva das
músicas 'Fantasy' ou 'Dreamlover'?” É óbvio que eu também não estava
falando do Tommy nessas músicas! Eu não estava falando dele, ou de
qualquer outra pessoa, praticamente em nenhuma das minhas músicas
românticas. Antes de conhecer o Derek, tudo que era retratado era
imaginário. Mas eu tenho certeza que o Tommy sabia que as músicas
escritas para o CD Butterfly não eram mais sobre amantes idealizados ou
fictícios – essas canções, embora fossem poeticamente embelezadas,
estavam cheias de detalhes específicos e de uma sensualidade vivida na
37 Hey! DJ: (A Mariah brincou com as iniciais da música do World’s Famous Supreme Team,
DJ (Disc Jockey), com as iniciais do nome do Derek Jeter, que também é DJ, e assim
convidando o Derek, ou o DJ como ela chama, para dançar com ela a noite toda).
207
prática.
38 Honey pie, sweetie pie, cutie pants: é uma forma de se dirigir a uma mulher bonita,
equivalente a “gostosa, gatinha”.
208
Enquanto filmávamos o clipe em Porto Rico, muitas vezes eu via o meu
empresário à distância na beira da praia, sem sapatos, calças cáqui
enroladas até o tornozelo, andando pela praia com o celular grudado na
orelha – falando com o Tommy o tempo todo. Mesmo que a gente já
estivesse tecnicamente separados naquele momento, eu ainda era a
melhor artista da Sony. Além disso, saber de tudo que eu fazia era um
hábito difícil para o Tommy quebrar. O meu empresário estava relatando
tudo, mas não nos mínimos detalhes. O Tommy teria ficado maluco se
soubesse que eu estava me divertindo tanto.
Eu não tive medo de voar esse voo. Eu estava muito vulnerável e sem
nenhum disfarce mais. Eu havia fechado e aberto uma porta. Eu sabia que
eu tinha muito que viver ainda e muito trabalho pela frente – e na época eu
achava que eu seria feliz para sempre com o Derek Jeter. A minha vida
romântica até então tinha sido tão sombria, por que não acreditar em um
conto de fadas? Eu mal podia esperar para me jogar nos braços dele com
os papéis do divórcio em mãos. Finalmente!
“Eu tinha um plano”, ele me disse. “Eu queria ir para Nova Iorque para
entrar no time do Yankees. Eu ia te conhecer para então te tomar do Tony
da gravadora Sony” – ele chamava o Tommy de Tony – “e então a gente ia
se casar”. Eu sorri de orelha a orelha. “OK. Eu gostei desse plano.” Só que
ele não me roubou do Tommy – eu que me libertei.
212
time39, o nosso relacionamento foi super importante na minha vida. Foi uma
transição fundamental para mim, e talvez um sonho que tenha se tornado
realidade, ou que talvez tenha sido só uma conquista para ele. Eu não sei.
No final das contas, logo ficou claro que o nosso relacionamento não ia dar
certo. Por um lado, há um grande abismo entre atletas e artistas e,
honestamente, é difícil para duas estrelas de qualquer ramo darem certo.
O tempo que eu passei com o Derek foi um sonho doce e curto, mas
ainda assim o seu impacto perdurou. Eu me lembrava disso de vez em
quando mesmo depois de tanto tempo. Certa vez, eu estava me sentindo
super triste ao relatar o nosso breve caso de amor para uma amiga.
Tentando imitar a voz da Joan Crawford da melhor maneira possível
enquanto eu falava, eu lamentei: “A mãe dele me amava! A irmã dele me
amava! O pai dele me amava! Poderia ter sido perfeito!” A energia
percorrendo o meu corpo naquela hora foi tão grande, que a taça de
champanhe que eu estava segurando se estilhaçou completamente. E foi
essa intensidade que eu usei na música “Crybaby”.
–“Crybaby”
39 A posição dele no time: o Derek ocupava a posição shortstop, ou interbases, que é uma
das mais importantes no beisebol e por isso que ele usava a camisa número 2.
213
por eu ter saído do controle incapacitante do Tommy e por eu entrar em
contato com a minha sensualidade. E a intimidade da nossa experiência
racial em comum foi importantíssima — me conectar com uma família
saudável que se parecia com a minha foi muito inspirador. O Derek
apareceu no lugar certo, na hora certa e para o propósito certo.
O Derek foi um amor NA minha vida, não o amor DA minha vida. Talvez
fosse a ideia do que eu imaginava que ele era, em vez da realidade, que
me atraiu por ele. Por fim, eu atribuo o término do nosso namoro ao fato de
que a gente não conseguiu corresponder às fantasias um do outro. Não dá
para competir com a fantasia. Simplesmente não dá. É tipo como a Marilyn
costumava dizer: “Vão para a cama com a Marilyn Monroe, mas acordam
com a Norma Jeane”.
214
VISITANDO O PRESIDENTE
Eu liguei antes e disse: “Eu vou para o Japão e eu gostaria de falar com
o Sr. Ohga.” Enquanto isso, o pessoal da Sony estava provavelmente
ocupado trabalhando na próxima grande tecnologia global a ser lançada ou
algo assim. Na época, eu não achava que o que eles ganhavam com o
215
negócio da música fosse insignificante se comparado com o resto. Eu só
pensava que devia haver alguém acima do Tommy. Tinha que haver alguma
saída e eu estava disposta a fazer qualquer coisa. Então, eu decidi fazer as
malas, voar para o outro lado do mundo e falar cara a cara com o homem
que realmente comandava as coisas.
A assistente do Sr. Ohga era uma mulher que me tratava com bastante
gentileza e que me ajudou durante toda a viagem. Continuamos amigas por
muitos anos depois. O Sr. Ohga falava inglês, mas sempre havia um
intérprete presente. Eu estive várias vezes no Japão e estava um tanto
familiarizada com as diferenças culturais, principalmente no que se refere
a tratar todos com respeito para não ser desrespeitada. O que era mais
difícil de lidar eram as expectativas culturais quanto aos papéis de gênero.
O Sr. Ohga era muito antiquado e tenho certeza de que ser confrontado por
uma jovem foi assustador para ele, mesmo que a jovem fosse a artista mais
bem-sucedida da sua gravadora. E, sinceramente, eu nem acho que ele
sabia que eu era birracial, e não fazia ideia também que uma jovem negra
estava indo ao seu escritório, para pedir liberdade. Foi uma atitude corajosa,
mas eu tinha as vendas dos meus produtos para me apoiar. Naquela época,
streaming não existia. As vendas eram de objetos físicos, coisas que as
pessoas tinham que sair e comprar – 100 milhões de álbuns, DVDs, CDs,
fitas VHS! As pessoas compravam produtos e pôsteres. Afinal, eu era “a
franquia”. Até hoje eu não sei quanto a Sony faturou comigo. Me disseram
que é algo na casa dos bilhões.
O escritório do Sr. Ohga era sério e elegante assim como ele próprio. O
escritório dele também era mal iluminado, e tinha como peça central, uma
grande mesa tradicional envernizada de preto. O Sr. Ohga era formal e
bastante focado. Eu não me preparei como deveria para a sua extrema
formalidade, sinceramente. Eu não havia consultado nenhuma equipe de
preparação ou mesmo consultores. Então não houve nenhuma preparação,
mas eu tinha um propósito claro. A minha intenção na reunião era que
decidíssemos uma estratégia para eu poder sair da Sony. Precisaríamos
definir os termos de um acordo e eu queria ter certeza de que haveria
suporte de marketing da Sony para o trabalho que eu iria entregar. Apesar
de querer muito sair da Sony, eu sabia que os meus fãs mereciam receber
de mim um tipo de música da mais alta qualidade, nada menos que isso.
Eu queria que a Sony soubesse que eu iria trabalhar bastante e que eu iria
promover o meu trabalho incansavelmente. Eu queria ser vista e ouvida; eu
queria que percebessem a minha presença, que percebessem que eu estava
prestando atenção, que percebessem que eu estava falando sério e que eu
estava disposta a expressar as minhas opiniões.
216
Eu precisava ter certeza de que, se eu cumprisse com a minha parte da
negociação com esses novos CDs, eles não me passariam a perna com
sabotagens. Se eu fosse colocar o meu coração e a minha alma neste
trabalho, eu precisava que eles me dessem a sua palavra de que fariam
todo o possível para apoiar o projeto, como costumavam fazer. Foi uma
reunião breve, mas que teve um impacto duradouro.
O próprio Tommy uma vez foi falar direto com os executivos japoneses
para derrubar o Walter Yetnikoff, um ex-mentor, e que depois virou o seu
rival. Esses homens poderosos não eram apenas bem conhecidos por
esses tipos de negociações cruéis, mas eram também incentivados a se
defenderem. Embora eu não fosse um artista masculino e não tivesse o
apoio dos meus pais ou dos meus advogados na sala, eu estava mais forte
agora e não iria permitir que brincassem com a minha cara nunca mais.
Posso ter parecido mandona, mas eu também fiquei super triste com
todo o processo. Eu queria continuar na Sony, mas eu não sabia como a
situação ia ficar depois que o meu casamento com o Tommy chegasse ao
fim. No fundo, eu esperava que ele fosse despedido para que eu pudesse
ficar. Não foi a primeira vez que ele causou problemas – o George Michael
o processou, e também o Michael Jackson lançou uma campanha contra a
exploração de artistas negros, explicitamente dirigida ao Tommy, com o
reverendo Al Sharpton na sede do Harlem da National Action Network (Rede
de Ação Nacional).
217
Eu não queria só relançar músicas antigas, então, além dos treze
sucessos que tinham ficado em 1° lugar na época, eu coloquei mais quatro
músicas novas no CD. O Brian McKnight e eu gravamos um dueto
totalmente novo de “Whenever You Call”, do CD Butterfly. Eu também fiz um
dueto com o Jermaine, uma versão de “Sweetheart” da Rainy Davis. Eu fiz
uma versão de “I Still Believe”. E por último, mas certamente não menos
importante, o CD #1's incluía a música “When You Believe”, um dueto que
eu fiz com a Whitney Houston para o filme O Príncipe do Egito.
É óbvio que a Whitney era formidável. Quem não foi inspirado pela carreira
dela, por quem ela era como artista e também pela sua incomparável voz?!
Mas nós duas éramos muito diferentes. Eu amava (e ainda amo) fazer
arranjos de backing vocal e harmonizar com camadas da minha própria voz
nas minhas músicas, compor, produzir e estar por trás dos bastidores. Ela
meio que já nasceu assim, como uma princesa real da voz. Para nós, não
havia competição. Nós nos complementávamos. Os nossos corações
estavam ancorados no Senhor de verdade, embora fosse surreal a maioria
das coisas que acontecia ao nosso redor. Depois que a grande indiferença
entre nós (criada por forças externas) teve um fim, nós desenvolvemos um
verdadeiro carinho uma pela outra. Ela tinha um senso de humor
maravilhoso. Ela começou a falar igual a mim e passou a me chamar de
“lamb” – era pura diversão.
218
O Bobby Brown estava sempre por perto e eu não sabia dos detalhes
do que estava acontecendo, mas não era da minha conta. Só sei que a
gente se divertiu e riu muito. Gravar o clipe também foi muito divertido;
passamos muitos momentos incríveis juntas. Todos os dias que a gente
passou juntas foram especiais, e sempre vou guardar com carinho a
lembrança daquela época e de todo o seu legado. “When You Believe” é um
testemunho do poder da fé e, para mim, da irmandade aqui na Terra como
no Céu.
Porque há
Há uma luz em mim
219
que brilha intensamente
Eles podem tentar
Mas não conseguirão tirar isso de mim
A música não fez sucesso porque foi pouco promovida pela gravadora
– e foi o período em que as sabotagens tiveram início. Mas a música era
importante para o fãs, era também importante para as pessoas que
precisavam ouvir. E isso é o que importa. Até hoje, eu ainda ouço CTTA de
vez em quando. Eu ainda preciso ouvir.
–“Petals”
Mas antes desses dois últimos CDs, eu fechei um novo acordo para poder
ganhar a minha liberdade. Depois de participar de reuniões com todas as
grandes gravadoras, eu acabei escolhendo a mais eclética, a gravadora
Virgin, que era muito cordial com os artistas (o Lenny Kravitz e a Janet
Jackson faziam parte de lá). Eu acreditava que, se eu tivesse dinheiro e
apoio de marketing suficientes, nós faríamos sucesso. Com um contrato
novo e histórico, eu estava prestes a embarcar no projeto que ia mudar a
minha vida— o Glitter.
222
3° PARTE
A SAGA GLITTER
FIRECRACKER
–Irv Gotti
A produção do Glitter foi atrapalhada por uma série de coisas: puro azar,
mau planejamento e sabotagem.
No início, a trilha sonora e o filme se chamavam All That Glitters (tudo que
reluz), e embora eu tenha começado a trabalhar no projeto em 1997, a gente
teve que adiar tudo por vários anos para que eu pudesse cumprir obrigações
mais urgentes com a gravadora Columbia. Embora eu possuísse um certo
controle na criação da trilha sonora, já se tratando do filme, eu praticamente
não tinha nenhum tipo de controle. O conceito inicial que eu tinha criado para
a história do filme foi quase que totalmente mudado. Eu comecei a trabalhar no
roteiro com a minha professora de teatro e com a Kate Lanier, que havia escrito
What’s Love Got to Do with It (PT-BR: Tina - A Verdadeira História de Tina
Turner). Ela é uma escritora tão talentosa, que eu acabei realmente confiando
nela. Mas a cada dia que passava, a gente recebia mais e mais observações
do que deveria ser mudado.
Por causa das idas e vindas sem fim e do controle sufocante do Tommy,
o roteiro mudava todos os dias. Ninguém sabia o que estava acontecendo
de um momento para o outro. Além de um roteiro muito diferente, eu
também queria que o Terrence Howard fosse o ator principal (eu imaginava
224
ele sendo o ator principal muito antes do filme Hustle and Flow (PT-BR: Ritmo
de um sonho), que isso fique claro. Mas as forças externas rejeitaram a ideia
de um romance entre o Terrence e eu. Eu desconfiava que era porque ele é
mais negro do que eu (embora ele também seja birracial!) e os poderosos não
entendiam como isso daria certo, se é que me entendem. Então eu fiquei super
chateada. Não estou desconsiderando o Max Beesley, por favor, ele foi
ótimo no papel.
Mas eu conseguia ver uma luz no fim deste túnel cheio de glitter. O Frank
Sinatra disse uma vez que a Dani Janssen foi uma das “primeiras garotas
da Broadway” de Hollywood, e eu adoro essas garotas da Broadway,
especialmente as que sabem dar uma boa festa. As festas do Oscar
promovidas pela Dani Diamonds (esse era o nome artístico dela) são
lendárias – e eu não ando falando a palavra lendária à toa por aí. A maioria
dos convidados, para participar da festa, precisa ter ganhado um Oscar ou
ter sido nomeado para ganhar um. Os convidados dela são todos artistas
de renome – O Sidney Poitier, o John Travolta, o Quincy Jones, a Oprah, a
Babs (a Barbra Streisand) e assim por diante. E a cada ano uma nova safra
de novos vencedores do Oscar se unem aos ícones em sua enorme coleção
de artistas bem-sucedidos. Uma vez, eu tive a sorte de receber um convite
surpreendente e muito especial (naturalmente, a Dani e eu nos demos
muito bem). Um dos atores mais badalados da época, ganhador de dois
Oscars (o código da Dani de não “fazer contatos profissionais” ou de não
ficar falando os nomes dos famosos que você já conheceu é levado muito
a sério, então eu não vou dizer o nome dele), veio até mim e falou sobre o
225
meu trabalho no filme Glitter, “eu sei que as pessoas te detonam por causa
disso. Isso já aconteceu comigo. Você estava retratando algumas coisas
que eram muito genuínas e eu acho que você deveria continuar fazendo
isso. Não permita que ninguém te diga que você não pode mais abordar
esse tipo de assunto.” Ele me fez sentir muito melhor por causa do imenso
respeito que eu tenho por ele como ator. E ainda bem que eu não desisti –
porque alguns anos depois, uma coisa realmente preciosa40 cruzou o meu
caminho.
Grande parte das coisas que deram errado no filme Glitter foi por causa
do Tommy. Ele estava muito puto por causa do nosso divórcio e também
porque eu tinha saído da Sony, e ele acabou usando toda a sua influência
e contato com pessoas poderosas para se vingar de mim. E todos ao meu
redor sabiam o que estava acontecendo, inclusive a minha nova gravadora.
O Tommy e os seus comparsas chegaram ao cúmulo de tirar itens
promocionais, como os meus porta cartazes de pedestal, das lojas de CDs.
Era uma luta sem fim. Ele não queria que ficasse parecendo que eu estava
conseguindo fazer sucesso por conta própria, aí por causa disso, ele acabou
conseguindo interferir na trilha sonora do Glitter. Fazia tempo que eu estava
trabalhando nisso, com pessoas como o Eric Benét e a Da Brat, que também
participaram do filme. O Terry Lewis mexeu os pauzinhos e assim a gente
pôde trabalhar com a música original “I Didn't Mean to Turn You On”. Já que
ela tinha sido produzida pelo Terry e pelo Jimmy Jam, tudo se tornou mais
fácil, é claro! E poder gravar a música “All My Life” escrita pelo Rick James
(que exigia um terno branco, uma limusine branca e outros tipos de
acessórios de cor branca para comparecer no estúdio) foi de um valor
inestimável.
–“Loverboy (Remix)”
228
MORTA, PORÉM VIVA
229
Claro, o momento do lançamento da trilha sonora não poderia ter sido
pior– algo que ninguém poderia ter previsto. As pessoas não foram ao
cinema assistir o meu filme. Eu ainda acredito que o Glitter estava à frente
do seu tempo. As pessoas talvez não estivessem preparadas para lidar com
os anos 80 no início dos anos 2000, mas eu sabia que ia ser incrível. E
acabou sendo! E eu ainda amo a trilha sonora. Eu fico tão feliz e grata,
porque quase duas décadas depois, os lambs e eu finalmente conseguimos
#JustiçaParaoGlitter quando ele ficou em 1° lugar em 2018. Também fico
feliz por poder cantar essas músicas agora. Os fãs deram ao filme Glitter
um novo brilho, um novo resplendor – a vida que ele merecia.
O pouco tempo de sono que eu tinha para dormir, por causa da minha
agenda corrida, era totalmente atrapalhado pela minha grande ansiedade
na época. Eu não conseguia dormir. Eu não conseguia encontrar as minhas
coisas. Eu não conseguia fazer ninguém se recompor.
Parecia que eu estava ali sozinha. Então eu pensei, ok, eu vou fazer um
truquezinho aqui com a minha roupa para sentir a energia do público. Eu tirei,
totalmente sem jeito, a enorme camisa que eu estava usando para ficar de short
e regata no programa. Eu estava usando por baixo um short dourado e brilhante
muito sexy e uma regata da “Supergirl”. Mas o Carson, agindo horrorizado,
disse em resposta: “a Mariah Carey está fazendo striptease no TRL nesse
momento!” (Ah, só agora você decide agir?) É claro que eu não estava fazendo
striptease – eu estava mostrando o look de Loverboy. Beleza, eu admito que
o que eu fiz foi bobo e que foi um momento de vergonha alheia. Mas em vez de
improvisar, o Carson olhava para mim como se eu fosse louca. A minha
adrenalina estava a mil, e o Carson ainda me pergunta: “O que você está
fazendo?” É sério isso?!
O. Programa. Do. TRL. Foi. Uma. Jogada. Publicitária. Que. Não. Deu.
Certo. E sejamos claros e lógicos que eu, Mariah Carey, ou qualquer outra
pessoa não poderia realmente invadir qualquer programa da MTV, e muito
menos carregando um carrinho de sorvete. Talvez o Carson Daly não
soubesse que eu ia “invadir” o programa, mas os produtores tiveram que
agendar a minha visita – coordenadores, publicitários, seguranças, a equipe
inteira sabia que eu estava indo para lá. Foi uma jogada publicitária que
parecia ser uma boa ideia na época. Qualquer ideia parecia boa naquela
época. Parecia que eu era uma comediante de stand-up que tentava ser
engraçada, mas que não conseguia. Todos os artistas cometem erros, mas
ficou parecendo que o que eu fiz desencadeou uma reação em cadeia
colocando um alvo nas minhas costas. Os tabloides e os programas de
fofoca em geral agiram como se eu realmente tivesse feito striptease e
dançado no colo do Carson ao vivo na TV (que agora virou uma rotina entre
as celebridades de reality shows e rappers – ah, como os padrões
mudaram)!
234
no filme, que eles poderiam e deveriam ter usado como clipe (no final das
contas acabaram fazendo isso). Mas a gravadora não estava me ouvindo.
235
Em desespero, eu fui para um hotel perto da minha cobertura. Eu pensava
que se eu pudesse conseguir um quarto, fechar as cortinas, me deitar debaixo
das cobertas e dormir de verdade, as coisas poderiam ficar bem.
Eu dei um pulo e fui até a porta, pronta para xingar quem quer que não
tivesse lido a placa. Abri a porta e vi uma multidão de pessoas – o pessoal
da administração, o Morgan e até a minha mãe!
Ela disse “mana, te acalma. Você ainda sabe que é a Mariah Carey, né?”
Eu nunca sabia o que esperar do Morgan; ele tinha sido tão imprevisível,
instável e violento por tanto tempo. E, no entanto, a minha mãe confiava
mais nele. Ele se tornou o homem forte, o seu protetor, quase que uma
figura paterna para ela – uma posição que nunca deveria ser preenchida por
um filho. E embora ele tivesse me assustado tantas vezes quando eu era
criança, eu também o via como um homem forte e inteligente. O Morgan era
238
muito inteligente e expressivo e havia desenvolvido muitas habilidades
duvidosas com o intuito de sobreviver.
Ele morava no centro da cidade de Nova Iorque no final dos anos 80. Ele
trabalhou em alguns dos bares e boates mais badalados. Ele era
extremamente bonito e às vezes trabalhava como modelo. Ele era bem
conhecido e todos gostavam dele. Ele discretamente fornecia brindes com
o pozinho branco (cocaína) às pessoas bonitas nas festas. Ele era
diabolicamente carismático.
O barraco continuava tão desolado como sempre. Dava para sentir que
o ar da minúscula sala de estar estava carregado de ansiedade e
manipulação. O painel de “madeira” estava tão desbotado e desgastado,
que mais parecia um papelão de embalagem de camisa masculina. Cortinas
baratas e encardidas de renda branca de poliéster estavam penduradas nas
janelas escuras; o duto de ventilação no chão expelia uma camada de
fuligem cinzenta que subia do aro até o meio daqueles painéis deploráveis
de respeitabilidade irlandesa. A minha mãe e o Morgan se sentaram juntos
no sofá de veludo cotelê de cor azul sem vida. Eu me sentei na frente deles
em uma poltrona reclinável desgastada de cor bege. A negligência era a cor
de destaque geral.
A minha mãe estava sem expressão, de vez em quando ela olhava para
o Morgan como se pedisse aprovação. Ele claramente ia ser o “anfitrião”
desta reunião suspeita na nossa ex-casa. Dava para sentir que ele estava
tramando o tempo todo. O seu olhar era feroz e penetrante. Dava para sentir
que ele estava tenso, mas ele havia aperfeiçoado a arte de disfarçar bem
as suas emoções e as suas intenções.
“Vamos lá, são apenas cinco mil dólares, ninguém jamais vai ficar
sabendo”, continuava soando em meus ouvidos. Eu me levantei de um salto
e comecei a andar os cinco ou menos passos entre a pequena sala de estar
241
e a cozinha ainda menor; ambos pareciam encolher um centímetro a cada
segundo que passava. “Você não precisa fazer nada além de me dar o
dinheiro”, ele disse novamente. Eu estava tentando processar o que estava
acontecendo ali . Eu nem acho que eu tinha recebido o meu primeiro
cheque adiantado ainda e o meu irmão e a minha mãe já estavam tentando
tirar dinheiro de mim?! E para quê? Para fuder com o marido da minha
mãe?! Que porra é essa?
Quão delirante da minha parte acreditar que a minha mãe e o meu irmão
iriam brindar à minha felicidade porque o meu único sonho tinha se tornado
realidade. Em vez disso, eles quiseram me ver para arrancar as minhas
entranhas. Eu fiquei chocada e triste. Não me lembro exatamente do que eu
disse, mas eu me lembro de andar em pequenos círculos, aquela sensação
de mal-estar agora no meu coração e chegando até os meus olhos, e eu
estava balançando a minha cabeça – “Não, Não”… e algo invisível dentro
de mim despertou, e eu me afastei deles.
1 João 4, 4
Embora eu nunca tivesse feito uma boa viagem para a casa da minha
mãe, estando só os cacos, o meu irmão apresentou um argumento
convincente. Ninguém, afirmou ele, ousaria me incomodar na casa da
minha mãe. A voz dele soava doce como mel, e eu estava muito esgotada
para ficar em estado de alerta. Se eu estivesse raciocinando direito, eu
saberia que a minha mãe e o meu irmão seriam as últimas pessoas com
quem eu deveria ficar quando eu me sentisse vulnerável.
Mesmo que ela gostasse de mim, naquele momento, a minha mãe não
sabia nada sobre mim, e não sabia de nada que eu estava passando no
momento. Ela não fazia nenhuma ideia do fardo e da responsabilidade de
ser uma artista que gera tanto dinheiro e energia: Ter tantas pessoas
dependendo de você, contando com você e te pressionando a trabalhar
sem parar. Que você cante e sorria, se vista e dê uma rodadinha, voe e
componha e trabalhe o tempo todo! Ela não tinha noção da humilhação que
eu estava passando por causa que o monstro voraz da mídia estava se
alimentando de mim. Ela não conseguia imaginar o quanto eu me sentia
ferida e caçada. A minha mãe nunca reconheceu o meu medo. Na verdade,
era ela quem muitas vezes causava o medo em mim.
243
Mas agora, eu ia ficar numa casa com eles. Qualquer casa em que a
minha mãe estivesse nunca seria um porto seguro, especialmente se o
Morgan estivesse presente, mas eu estava frágil demais para poder resistir.
Na minha confusão, realmente fazia sentido que eu fosse para o interior
para ficar hospedada na casa que eu tinha comprado para ela, uma casa
que eu conhecia tão bem, que era silenciosa e confortável e haveria espaço
de sobra para todos. Totalmente desarmada, eu concordei em ir. Mas se eu
fosse, eu acabei decidindo que todos nós deveríamos ir. Segurança em
números, eu pensei. Então o Morgan, a Tots e eu saímos para um passeio
pelo interior do estado de Nova Iorque. Passando pela ponte e pelo bosque,
aqui vamos nós para a casa da minha mãe.
244
DESGRAÇA E PÊLO DE CACHORRO
245
Eu não sou uma menininha indefesa, eu disse a mim mesma. Esta linda
casa era eu quem tinha comprado, criado e administrado como adulta. Eu não
era uma garotinha em um barraco qualquer. Eu posso colocar ordem nisso.
Mas Deus, eu estava tão cansada. Talvez, eu pensei, por alguma lacuna de
tempo e espaço, nós realmente estivéssemos de volta ao barraco. Eu precisava
dormir. Desesperadamente. E eu estava faminta. A minha mente voltou a
disparar.
Ao tentar abrir a torneira, de repente eu me lembrei. Seis dias. Faz seis dias
que eu não durmo mais de duas horas. As minhas mãos começaram a tremer
enquanto eu tentava iniciar a tarefa que eu havia estabelecido para mim
mesma. Tudo que eu podia ouvir era o meu coração batendo forte dentro do
meu peito. O que eu estou fazendo? Lavando a louça. Certo. Depois do que
pareceu uma eternidade, finalmente eu lavei um prato e coloquei na prateleira.
Em seguida, peguei uma tigela cheia de espuma, mas a senti escorregar pelos
meus dedos e se despedaçar no chão. Eu tentei de novo: eu tinha conseguido
lavar um prato. Eu derrubei outro prato. Agora eu tinha que juntar o prato
quebrado e secar a água do chão. O som da água da torneira aberta, o som de
pratos batendo e o som das pessoas conversando giraram de uma vez. Eu
estava tentando freneticamente limpar tudo e sair de cena antes que a minha
mãe chegasse em casa. Eu me abaixei para juntar o prato do chão, a luz
diminuiu e os sons começaram a diminuir. Todo o espaço ao meu redor se
estreitou e eu comecei a cair. Eu apaguei por uma fração de segundos, mas eu
consegui me recuperar antes de desmaiar completamente.
“Mariah! O que você está fazendo? Eles estão procurando por você!”
Uma voz forte e dramática me puxou violentamente para fora da piscina de
silêncio em que eu estava flutuando. Perdida e balbuciando, voltei à
consciência para encontrar a minha mãe pairando sobre mim. A minha
própria mãe tinha me acordado do primeiro sono que eu tinha conseguido
ter em quase uma semana! Para piorar as coisas, ela estava me acordando
para me dizer que a gravadora estava procurando por mim para que eu
voltasse ao trabalho – como se, em vez de ser a minha mãe e a pessoa
que cuida de mim, ela era uma espécie de agente da máquina que
repetidamente colocava o meu potencial de ganhar dinheiro acima do meu
bem-estar.
Essa foi a gota d'água. Eu realmente perdi o controle. Algo dentro de mim
subiu rapidamente e saiu pela minha garganta; e estava babando de raiva.
“Bem, eu fiz o melhor que eu pude! ‘Eu fiz o melhor que eu pude!’ É tudo
o que você sabe dizer!” Eu rugi para ela, imitando os seus tons exagerados.
Ela sempre se justificava, não foi uma ou duas vezes, mas durante toda a
minha vida. Depois de seis dias sendo caçada – seis dias me escondendo,
seis dias de muita ansiedade e de quase morrer; seis dias sem descanso;
seis dias de trauma – eu finalmente consegui dormir na casa que Eu tinha
comprado, apenas para ser acordada pela minha própria mãe. A minha
mãe, que já havia descansado tanto naquela casa, casa essa que eu tinha
comprado com o suor do meu trabalho!
Todo o medo e fúria que eu tinha guardado dentro de mim agora eram
direcionados à minha mãe. Ela estava no centro do ciclo que eu queria mais do
que tudo quebrar. A minha mãe estava finalmente experimentando o sabor da
minha fúria, que era algo que ela não estava preparada para entender ou tentar
digerir. Ela não conseguia nem mesmo entender a piada – pelo contrário, ela
se sentiu ameaçada e envergonhada por isso. Ela deixou a sua perplexidade
de lado; então ela ficou super fria e me lançou um olhar que dizia: Sério? Você
ousa zombar de mim? Você ousa me ameaçar? Você não faz ideia com quem
está se metendo.
248
Quando a minha mãe fica com medo, ela se sente totalmente segura
com a evidência histórica de que os brancos sempre serão protegidos – e
ela costuma ligar para a polícia. Em várias ocasiões, ela chamou a polícia
para o meu irmão, para a minha irmã e até mesmo para os filhos da minha
irmã. A minha mãe chamava a polícia mesmo quando ela não estava
correndo perigo. Certa vez, eu levei a minha família para passar o natal em
Aspen. Isso aconteceu um ano após eu ter ido embora da minha ex-casa e
eu decidi que eu queria criar a minha própria tradição de natal, então eu levei
todo mundo da família Carey. Para mim, o natal é sinônimo de família. Eu
aluguei uma casa para que eu pudesse decorar e comer coisas feitas em
casa e para que nós pudéssemos cantar canções de natal a plenos
pulmões se assim a gente quisesse, e eu aluguei um hotel fabuloso para a
minha família ficar hospedada.
“Onde está o Morgan?” ela gritou. “Eu não consigo encontrar o Morgan!”
Vejam bem, o Morgan era um homem adulto de trinta e poucos anos, mas a
minha mãe ainda estava em pânico autoinduzido. “Não consigo encontrar
o Morgan!” Ela ligou para o quarto de hotel dele várias vezes, mas não
houve resposta. Então, o que ela fez? Ela chamou a polícia. A minha mãe
ligou para a polícia de Aspen, Colorado, para encontrar o meu irmão
moreno, que às vezes traficava drogas, que já tinha sido fichado pelo
sistema e que estava bêbado. Os policiais foram ao hotel e foi aquele drama.
Ela pediu para que eles arrombassem a porta do hotel, e o Morgan estava
deitado nu com a bunda para cima, desmaiado em cima da cama. A notícia
se espalhou como um incêndio por toda a cidade, e essa, senhoras e
senhores, foi a última vez que o Morgan e a minha mãe chamadora de
policiais foram convidados para passar o natal comigo em Aspen. Eu
realmente não desejo muita coisa para o natal, mas com certeza policiais
não fazem parte da lista de coisas que eu desejo.
O que foi mais assustador era que eu estava exausta demais para me
lembrar da minha amiga. A energia negativa da minha mãe, do Morgan e dos
policiais –todos ali – bloqueavam a minha luz. Eu precisava ver a Tots. Ela tinha
uma grande fé em Deus também, e se eu não pudesse sentir a Deus naquele
momento, eu pensei que talvez eu pudesse sentir a Deus através dela. Eu
acreditava que ela poderia, de alguma forma, me manter segura de uma
maneira espiritual e fraterna. Eu estava buscando o apoio dela, mas ela
também estava com muito medo dos policiais. E ela tem culpa? É totalmente
compreensível. Ela era a única pessoa 100 por cento negra na casa. Depois
de se manter longe de problemas com a polícia durante anos nos projetos
residenciais de Brownsville, como ela poderia explicar para a sua mãe que ela
tinha sido presa em um subúrbio rico e que estava em alguma prisão no interior
do estado? Só Deus sabe o que eles teriam feito com ela lá dentro (isso foi
muito antes do #VidasNegrasImportam e do ativismo através do celular,
embora mesmo um movimento assim não consegue impedir a maior parte da
brutalidade). Então, a Tots estava tentando ao máximo manter a si mesma e
ao Mike longe da confusão e fora de vista. Contra dois policiais brancos e uma
mulher branca, no condado de Upper Westchester, a Tots sabia que ela estava
250
em desvantagem e totalmente derrotada.
252
COLAPSO NERVOSO
253
gemido de pessoas assustadas em seus cômodos nunca parava enquanto a
noite tortuosa passava e a manhã se aproximava.
254
“Parece que você precisa de uma dose de humildade”, foi a resposta
arrogante que ele me deu a tudo que eu tinha dito a ele. Ah, como ele gostou
de vomitar essa frase. Foi uma tomada de poder tão óbvia e lamentável. Eu
quase podia vê-lo bufando, acreditando que ele havia derrotado a diva. Não
são só os tabloides que se deleitam em ver as estrelas caídas no chão. Eu
estava indefesa – apunhalada nas costas pelo meu ex-marido e apunhalada no
coração pelo meu irmão e minha mãe. E todos eles me deixaram sangrando
dentro daquela espelunca.
A alegria dela com a reportagem do tabloide não foi nenhuma surpresa para
mim. Embora eu fosse a filha que não quebrava as regras (ou leis, ou garrafas),
a minha mãe não parecia ter a capacidade de ficar totalmente feliz por mim à
medida que eu amadurecia e me tornava uma artista talentosa. Às vezes eu
me perguntava se ela não conseguia tolerar o meu sucesso. Muitas vezes eu
senti que ela tinha ciúmes de mim e que o seu sorriso parecia forçado, embora
eu ainda a incluísse em muitos dos principais eventos da minha vida.
255
Uma das maiores honras da minha carreira foi receber o Prêmio Congresso.
Eu sonhava em receber Grammys e Oscars por cantar ou atuar, mas ser
homenageada pelo meu país pelos serviços prestados foi um destaque além
dos meus sonhos – e eu sonho alto. Eu recebi o Prêmio Horizon de 1999,
concedido por trabalhos de caridade voltados para a promoção do
desenvolvimento pessoal de jovens, pelo meu trabalho com o Camp Mariah,
através do Fresh Air Fund. Eu nunca me envolvi muito politicamente e, na
época, eu realmente não entendia totalmente o significado do prêmio e do
evento. É uma das duas únicas medalhas legisladas por ato parlamentar (a
outra é a Medalha de Honra). Eu estava sendo homenageada junto com o ex-
secretário de Estado Colin Powell.
Bem…
256
O meu segurança se inclinou e sussurrou: “Nós temos que tirá-la daqui.” Eu
concordei. Eles a tiraram da sala de jantar e a esconderam no meu camarim
perto do palco para a cerimônia da premiação – aparentemente bem a tempo,
porque me disseram que, quando ela entrou na sala, ela começou a gritar: “Eu
odeio a Mariah! Eu odeio a minha filha!” Quando eu consegui escapar da mesa
de jantar para ir ver como ela estava, ela estava completamente bêbada.
Ela pode ter perdido a noção e sem saber o que ela fez ou disse. Mas eu
tive que processar a tristeza, o constrangimento e a dor da experiência. Na
manhã seguinte, eu fiquei preocupada que a embriaguez dela fosse divulgada
pela imprensa. Mas isso não aconteceu. Eu a tinha protegido. Eu não sei quem
a viu, mas, felizmente, o vexame que ela deu no Congresso não apareceu nos
tabloides.
Ser a Mariah Carey dá trabalho – e o meu trabalho era voltar para ele. Eu
sabia que haveria olhos e lentes em todos os lugares. Eu precisava de alguém
para iluminar o caminho e me tirar da escuridão que aquele lugar havia se
tornado. Naquela época, eu confiava apenas em pouquíssimas pessoas.
Portanto, antes que eu pudesse cair o fora da escuridão do chalé da minha
mãe, eu recorri ao meu amigo de confiança e maquiador Kristofer Buckle para
me apoiar. Ele me encorajou, retocou a minha maquiagem me fazendo ganhar
confiança e caminhou comigo de modo com que eu me sentisse iluminada.
O pedestal que eu tinha erguido para o meu irmão quando eu era criança
há muito tempo havia desmoronado, mas eu continuei tentando construir um
novo pedestal para ele em cima dos escombros. Embora eu não pudesse ver
na época, nós dois claramente estávamos despedaçados. Se eu tivesse sido
perspicaz, ou se alguém da minha folha de pagamento tivesse desconfiado, eu
teria tido uma equipe de especialistas e profissionais contratados para me
avaliar e me tratar na minha casa. Eu tinha os meios para poder passar alguns
dias em um spa de verdade, onde pelo menos eu pudesse descansar um
pouco, pudesse comer algo saudável, e talvez tivesse alguns tratamentos
corporais – todas as coisas que eu poderia ter tido se eu não tivesse ido àquele
“spa” infernal. Eu também queria a oportunidade de arejar a minha cabeça e
me proteger (também da gravadora) de manchetes mais pesadas.
O Morgan recomendou que eu fosse para Los Angeles, onde ele estava
morando atualmente, argumentando que havia spas de verdade lá (o que é
verdade) e nenhum jornal de Nova Iorque por lá (também verdade). Um spa
em Los Angeles parecia uma boa ideia na época. Eu deixei o Morgan organizar
tudo (não foi uma boa ideia, algo que eu jamais deveria ter feito ou deveria
fazer novamente, mas eu estava desesperada).
258
Estava acontecendo tanta coisa e eu não conseguia entender o tanto que
estavam tentando me prejudicar. O Morgan entrou em contato com um cara
qualquer que ele disse que nos ajudaria. Eu me lembro de dirigir pela rodovia
pelo que pareceu uma eternidade. Finalmente paramos em um lugar que não
parecia em nada com um spa, mas sim com uma clínica de desintoxicação. Eu
ainda me sentia exausta, então, embora eu não tivesse gostado, eu não resisti.
O Morgan chegou a dizer: “Vamos; vai ser divertido.” Não foi nada divertido.
Foi um dos momentos mais angustiantes da minha vida – e eu tinha passado
por muitos desses momentos.
Mais uma vez, eu não tinha controle da situação. Eu não podia falar por mim
mesma e, quando eu podia, eu era ignorada e dominada.
42 Ambien: é a mesma coisa que o fármaco zolpidem. É utilizado para o tratamento a curto
prazo da insônia.
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emoldurada por nuvens de fumaça cinzas como giz. Bolas de fogo alaranjadas
e vermelhas disparavam do topo das reluzentes Torres Gêmeas prateadas,
como meteoros em um céu azul vibrante. Então, os prédios imponentes e
monumentais desmoronaram por dentro. Um de cada vez, eles caíram em uma
câmera terrivelmente lenta. Os efeitos das drogas que eu estava tomando não
eram páreo para o choque que eu estava sentindo. Naquele instante, eu
acordei do meu torpor enquanto eu observava o meu majestoso horizonte se
desintegrar. A minha cidade natal estava em chamas e desmoronando, e eu
estava a milhares de quilômetros de distância, trancada dentro do desalento de
uma clínica de desintoxicação – sob efeitos de remédio, devastada e sozinha.
Eu estava ansiosa para voltar para Nova Iorque. Foi inspirador como a
cidade imediatamente começou a trabalhar se recompondo após os ataques, e
eu também estava ansiosa para recompor a minha vida. Eu não tinha
permissão de voltar para a minha cobertura ainda, porque grande parte da
Baixa Manhattan ainda estava fechada por razões de segurança. Enquanto
isso, eu fiquei hospedada em um hotel e impedi a minha família e outras
pessoas de chegarem até a mim. Eu estava acordando do pesadelo que eles
criaram e eu precisava ajudar a mim mesma sozinha; eu queria
desesperadamente voltar a ficar bem.
O meu terapeuta deu nome à doença física que eu vinha passando por
tantos anos – todo o desconforto de ser humilhada por crianças e professores,
todas as alergias que explodiram por toda parte da minha pele, todas as fortes
dores de estresse nas costas e ombros causados pelo Tommy, a tontura e a
aversão do terror causados pelo meu irmão, todo o sofrimento psicológico que
eu suportei e que devastou o meu corpo tinham um nome – somatização. Ter
um nome profissional altamente respeitado, validou que o que eu estava
passando fisicamente era real. De repente, tudo pareceu muito real.
A minha carreira era tudo para mim e, por causa da minha mãe, do meu
irmão e do Tommy, eu quase a perdi. Honestamente, parecia que eles quase
tinham me matado. Foi por um triz, mas eles não mataram a mim ou ao meu
espírito. Eles não destruíram permanentemente a minha mente ou a minha
alma. Mas só Deus sabe como eles tentaram.
Eu sabia há muito tempo que, para a minha família, eu tinha sido um “caixa
eletrônico de peruca” (apelido que eu dei a mim mesma). Eu dei a eles muito
dinheiro, especialmente para a minha mãe, e ainda não era suficiente. Eles
tentaram me destruir para assumir o controle total. O terapeuta fez uma
sugestão óbvia: se eles pudessem provar que eu era instável, certamente eles
acreditavam que eles seriam os executores dos meus negócios. Ele me pediu
para olhar para eles objetivamente –como eles viam o mundo, como eles nunca
tiveram um trabalho estável e legítimo, mas ainda sentiam que o mundo lhes
devia algo. Todos nós tínhamos passado por muita merda na nossa família,
mas, mesmo assim, nós tínhamos opiniões fundamentalmente diferentes. Eu
não achava que o mundo me devesse nada. Eu simplesmente acreditava que
eu iria conquistar o meu lugar no mundo, à minha maneira. Enquanto eu
trabalhava até a exaustão extrema, eles observaram e esperaram que eu
caísse, como abutres, para que então pudessem controlar a fortuna que eu
tinha negociado, construído e ganhado por direito.
“Por favor, mude o seu elenco de personagens.” Esse foi o pedido simples
e profundo que o meu terapeuta acabou fazendo. Embora eu não pudesse
mudar os personagens da minha mãe, do meu irmão e da minha irmã, eu tinha
o poder de mudar como eu os definiria em minha vida. Portanto, para a minha
sanidade e paz de espírito, o meu terapeuta me incentivou a literalmente
renomear e reestruturar a minha família. A minha mãe se tornou a “Pat” para
mim, o Morgan, o “meu ex-irmão” e a Alison, a “minha ex-irmã”. Eu tive que
parar de esperar que um dia eles se tornassem milagrosamente a mãe, o irmão
e a irmã mais velhos que eu fantasiava. Eu tive que parar de me colocar à
disposição para não acabar sendo magoada por eles de novo. Tem sido
benéfico. Eu não tenho dúvidas de que é emocional e fisicamente mais seguro
para eu não ter nenhum contato com o meu ex-irmão e a minha ex-irmã. A
situação com a Pat, por outro lado, é mais complicada. Eu reservei um espaço
263
no meu coração e na minha vida para ela – mas com limites. Criar limites com
a mulher que me deu à luz não é fácil; é um projeto em andamento.
O Bispo Keaton costumava ser um velhaco; ele vivia uma vida muito
diferente antes de se tornar pastor. Ele já havia conquistado o respeito no
bairro, em uma época que não era incomum desviar de balas em plena luz do
dia, então ele era protegido e as pessoas não mexiam com ele. Seguranças
foram fornecidos pela igreja para mim, e a congregação respeitava a minha
privacidade – o Bispo cuidava disso. Eu encontrei coletividade na igreja e uma
família no meu Bispo, que me tratou como uma filha. Ele costumava vir falar
comigo, mesmo quando estava passando por problemas de saúde no final da
vida.
Ter uma família em Deus trouxe luz para a minha vida novamente. A Pat
não conseguia entender. Ela me deixou uma mensagem maliciosa no meu
celular Blackberry: “O que está acontecendo com você? E todos esses amigos
de igreja e essa sua vida de oração?” Ninguém da minha família biológica
entendia o sentido de se preocupar tanto com Deus. Mas eu tinha que fazer
isso. Voltar para Deus foi a única maneira de sobreviver a todas as minhas idas
para o inferno. Eu acredito que o meu ex-irmão e a minha ex-irmã tenham
estado em um inferno em suas vidas; eles ainda podem estar presos lá. Eles
264
escolheram as drogas, as mentiras e os tramas como modo de sobreviver, mas
isso só pareceu afundá-los mais ainda na lama e torná-los mais ressentidos
comigo. E eu ainda oro por eles.
Aos poucos, eu superava o tempo sombrio pelo qual a minha família tinha
me colocado. E depois de toda essa putaria, “Loverboy” acabou sendo o single
mais vendido de 2001 nos Estados Unidos. Eu sou real43.
43 Eu sou real: Na música I’m Real, a Jennifer Lopez diz ao seu namorado que mesmo ela
sendo uma estrela glamorosa, ela continua sendo uma garota normal e autêntica, então ele
não precisa tentar impressioná-la. A Mariah cita a música da Jennifer Lopez como uma
alfinetada para a própria para dizer que ela é que é autêntica. Ela não precisou sabotar
ninguém para que “Loverboy” se tornasse o single mais vendido de 2001.
265
4° PARTE
EMANCIPAÇÃO
A MINHA PRIMA VINNY
Depois do fiasco do filme Glitter, a gravadora Virgin ficou com medo e quis
baratear o meu contrato. Eles achavam que não era justificável gastar tanto
dinheiro em uma pessoa tão “instável”. A mulher que me contratou foi demitida
e duas novas pessoas da Inglaterra foram contratadas para substituí-la. Eu me
lembro do primeiro dia em que nos sentamos para ter uma conversa –
basicamente, eles foram horríveis pra caralho. Eles queriam mudar o meu
contrato, e foi naquela hora que eu percebi que eu tinha que sair de lá.
Eu me sentia nas nuvens por ter sido contratada pela gravadora Virgin,
porque eu estava desesperada para sair da Sony. A Virgin não era tão grande,
ela era mais uma mini gravadora, e eu sabia o quanto eles tinham cuidado da
carreira do Lenny Kravitz e da Janet Jackson. Eles me ofereceram um bom
contrato, em parte, por não serem tão espertos e influentes quanto às outras
gravadoras; eles não sabiam todos os macetes que a Sony e as outras grandes
gravadoras sabiam. Eles eram ecléticos e me viam como uma estrela grande e
brilhante. Inicialmente, eu escolhi a Virgin em vez de uma gravadora maior e
mais cruel por causa do valor do contrato que eles tinham me oferecido, mas
quando eles quiseram “ajustar” o contrato, usando aquelas 2 pessoas recém-
contratadas para intermediar, eu não tinha motivos para ficar. Eles ofereceram
um contrato revisado em que me pagariam muito menos e que teriam mais
controle. Eu recusei.
267
supunha. Eu tinha muito mais músicas para mostrar. Pronta para começar de
novo, eu assinei o meu novo contrato.
Eu adorava cantar músicas ao vivo. Fico feliz por ter conseguido vivenciar
isso, porque eu precisava de um momento para mudar os ares. O Jermaine e
eu gravamos “The One” juntos. Eu queria que “The One” fosse o single
principal, mas o Doug escolheu “Through the Rain”. Era uma balada séria, e o
Doug achou que daria certo porque era uma espécie de história triste, o tipo de
momento Oprah Winfrey triunfante de que eu precisava depois do fiasco do
Glitter. Era uma música boa, mas não funcionou tão bem quanto o esperado.
A gravadora investiu muito no gênero “adulto contemporâneo”, o que eu
conseguia fazer dormindo. Mas, pessoalmente, eu sempre preferi trabalhar
com o gênero “urbano contemporâneo”, seja lá o que isso queira dizer.
Eu voltei para Capri, para o lindo estúdio no topo de uma colina. Foi tão
bom: sem carros, sem poluição, o ar e a energia são muito limpos. Eu não tinha
filhos na época, mas as crianças podiam correr livremente por lá porque era
muito seguro. Só dá para chegar lá de balsa, por isso era o esconderijo perfeito
para eu me esconder e gravar. As pessoas vinham me visitar. O Lyor levou o
Cam'ron, que passou um dia lá comigo, para gravar “Boy (I Need You)”. O Cam
levou um pouco de maconha roxa escondida e a fumou num cachimbo (eu não
trago diretamente – por causa das cordas vocais, dahling). Ficamos totalmente
de boa e assistimos o filme History of the World Part I (História do Mundo: Parte
I) – um dos meus filmes favoritos de todos os tempos – e rimos pra caramba.
– “Subtle Invitation”
Me dando paz
Me dando força
Quando eu tinha perdido quase tudo
Me segurando sempre que eu caía
Eu ainda existo porque você me protege
Eu encontrei a minha graça salvadora em você
A gente ainda estava de porre, então parecia uma boa ideia. O Cam'ron é
do Harlem, então a gente confiou que ele sabia quais locais dava para curtir
270
até tarde, tarde da noite até amanhecer. Eu e o Cam entramos no seu
Lamborghini, que era roxo, é claro. Todos os outros, trocando as pernas, se
dirigiram aos seus próprios carros exóticos. O meu guarda-costas, meio alto,
nos seguia em um grande SUV preto. Lá estávamos nós, um pequeno comboio
de rappers e donzelas em carros inimaginavelmente caros, indo em direção à
zona leste através da sonolenta rua do Canal Street, que logo ficaria lotada de
ambulantes chineses e senegaleses montando as suas barracas ao ar livre de
bolsas e relógios de luxo falsificados. Mas um pouco antes das 6 horas da
manhã, além de um varredor de rua ou de um caminhão de lixo casual, éramos
apenas nós, acelerando pela rua larga, sendo jovens e fabulosos,
interrompendo o silêncio da parte perigosa da cidade.
Naquela época – e até hoje, com certeza – era fatal ser um jovem negro em
um carro esporte exótico acelerando na rodovia, especialmente no lado leste
de Manhattan. Mas a gente tinha bebido todas em uma noite de futilidade e
fumado uns becks, curtindo o frescor da manhã. Estávamos nos sentindo
jovens, sexy e livres; o medo de ser presos (ou de morrer, por falar nisso) não
existia. Estávamos atrás de diversão e liberdade, e acabamos encontrando,
mesmo que apenas por alguns quilômetros em um trecho da rodovia da cidade
de Nova Iorque.
Não era mais uma foto em uma moldura – eu estava realmente lá. Eu pude
tocar nos tijolos que foram uma vez da minha família, no lugar onde moravam,
oravam, cantavam, choravam, louvavam, casavam, morriam e recebiam o
Espírito Santo: essa era a igreja que eles congregavam.
A foto que me veio à memória naquele dia na rua 131 é da minha tia avó, a
pastora Nana Reese. Parece que foi tirada na década de 50. Ela era pequena
e elegante, belamente encostada na parede de tijolos desgastada: com uma
pele marrom brilhante, olhos fundos, cabelo preto bem penteado, sem joias,
mas com um buquê de flores perto do seu ombro. Ela estava usando uma
túnica branca esvoaçante de pastora, meias brancas transparentes e sapatos
de bico quadrado estilo senhora evangélica. Ela segurava uma grande bolsa-
carteira – não uma bolsa, vejam bem, uma bolsa-carteira – com um pano
enrolado na alça, pois caso o Espírito Santo se manifestasse e ficasse quente
durante o culto, ela teria como enxugar a testa suada. Encostada na parede
com os pés, em letras maiúsculas e minúsculas não tão bonitas escritas à mão
todas do mesmo tamanho, tem uma placa escrita com giz branco com um
simples letreiro: ESCOLA DA BÍBLIA, PREGAÇÃO, YPHA e CULTO À NOITE,
com os horários discriminados. A Nana Reese mal tinha um metro e meio de
altura; a sua cabeça nem chegava à moldura do peitoril da janela. No entanto,
272
ela parecia uma gigante na foto e em sua comunidade, de túnica branca e
pronta para pregar o Evangelho à congregação.
A minha prima Vinny, sendo Lavinia o seu nome real, foi criada pela Nana
Reese, e a Vinny a chamava de “mãinha”. Foi através da minha prima Vinny
que eu soube grande parte das histórias daquela época e daquela parte da
minha família. Ambas as irmãs, a Nana Reese e a tia da Vinny, a Addie, que é
a minha avó, cada uma tinha um filho – o filho da Addie se chamava Roy, que
é o meu pai, o único que sobreviveu. Ninguém nunca falou do filho da Nana
Reese, mas a história, de acordo com a minha prima Vinny, é que ele morreu
bem cedo porque ele era “uma criança tísica”. Que diagnóstico mais tosco, né?
Chamar uma criança que morreu de tuberculose de tísica.
“A mãinha disse que ele era desobediente, não colocava o casaco, aí ele
acabou morrendo”, a Vinny me disse. A Nana Reese era uma cristã
fundamentalista. Quando criança, a Vinny morava em um dos apartamentos
acima da igreja. A Nana Reese e o seu marido, o bom reverendo Roscoe
Reese, eram donos da casa-galpão que abrigava a igreja e os donos da casa
vizinha, enquanto a minha avó Addie possuía outras duas casas descendo o
quarteirão. O culto acontecia no andar térreo e era no estilo pentecostal onde
o fiel fica berrando e rolando no chão, mas, como a Vinny diz, a verdadeira cura
acontecia no porão da igreja, no porão do galpão. Ela lembra, quando criança,
de testemunhar uma mulher que foi ver o pastor um dia: “A perna dela estava
rompida, parecia carne moída”, a Vinny afirma. “A mãinha colocou teias de
aranha em cima da perna daquela senhora e orou por ela, e quando a senhora
voltou a si, a sua perna estava curada. Absolutamente perfeita.” Enquanto eu
crescia, eu ouvi falar que muitos milagres aconteceram naquele porão. A Nana
Reese tinha um dom dado por Deus.
A mãe do meu pai, a Addie, e a Nana Reese eram próximas como irmãs,
mas diferentes no temperamento. Enquanto a Nana era doce, a Addie era
obstinada e determinada em seus caminhos. Ela e a minha mãe não iam com
a cara uma da outra, para não dizer pior. Eu me lembro de uma vez em que a
minha mãe a expulsou da nossa casa. Por causa dos conflitos deles, a minha
mãe me manteve longe dessa parte da família do meu pai, e o que eu vim saber
sobre eles se baseia principalmente em histórias espetaculares e
contraditórias. Eu me apeguei firmemente às cenas de violência e às fotos
preciosas que a minha avó deixou para o seu filho, o Roy. Eu fiquei com as
fotos quando o meu pai morreu. Eu as amo e protejo.
Essa digna e decadente casa de tijolos diante de mim foi o local onde a
minha mãe e o meu pai se casaram. O casamento deles foi outro drama, outra
história que me contaram em partes que não combinavam. A maioria da minha
família pode pelo menos concordar em uma coisa: a minha mãe desmaiou
durante a cerimônia. Exatamente por que ela desmaiou ainda está em debate.
A minha prima Vinny estava lá e, embora eu fosse uma criança na época, ela
se lembra claramente de como a minha mãe estava linda naquele dia. Ela
descreve o vestido dela como um “lindo azul brilhante”, talvez de cetim, e foi
usando esse vestido azul de noiva que a minha mãe desabou no chão, o seu
novo noivo tendo que dar um tapa em seu rosto para reanimá-la. Uma vez me
disseram que a minha mãe perdeu a consciência depois de ver um grande rato
correndo pelo chão durante a cerimônia, mas depois eu fiquei sabendo que ela
estava grávida na época. O que quer que tenha acontecido, o drama ocorrido
caiu como uma luva para o casamento de uma cantora de ópera dramática num
porão de uma igreja do Harlem.
44 As leis de Jim Crow: foram leis estaduais e locais que impunham a segregação racial
no sul dos Estados Unidos.
274
Reese foi visitada por alguns homens brancos uniformizados: um policial e um
chefe dos bombeiros. A minha prima Vinny se lembra dos seus corpos grandes
e imponentes elevando-se acima do pequeno corpo de um metro e meio da
Nana Reese. Imediatamente após essa “reunião”, e sem dizer uma palavra, ela
arrumou as crianças e deixou a sua igreja de tijolos para trás e a congregação
que ela serviu fielmente por tanto tempo, para nunca mais voltar.
275
O ELVIS LATINO
Certa vez, eu levei alguns amigos íntimos escolhidos a dedo para passar o
natal comigo em Aspen. Sem que eu soubesse, o corretor de imóveis que
cuidou do aluguel da minha casa em Aspen se reuniu com um colega de
trabalho para marcar um encontro às cegas para mim. Era um esquema
simples: eles disseram ao homem misterioso que eu realmente queria conhecê-
lo, e eles me disseram que ele queria me conhecer. Ele acabou por ser o mega
star internacional Luis Miguel, o “Elvis latino”.
276
dar uma volta, ou pegávamos a estrada e íamos para a Cidade do México. Ele
tinha uma casa fenomenal em uma praia intocada em Acapulco, com flamingos
rosa de verdade! A mansão dele era majestosa, com dramáticas portas de
madeira entalhada, varandas e sacadas em todos os lugares. Uma banda
completa de mariachi costumava tocar para nós enquanto a gente jantava ao
ar livre em uma noite quente mexicana. Uma das coisas que eu mais gostava
de fazer era pular da varanda do quarto principal com o meu amado cachorro,
o Jack, na piscina cintilante abaixo. (Eu e o Jack éramos os únicos que não
falavam espanhol, o que nem sempre era fácil.) Os seus funcionários eram
muito dedicados; ele era como um deus para eles. O Luis era amado e querido
por todo o seu povo.
Uma vez eu zoei com a cara dele por não ter uma banheira de
hidromassagem (eu tenho uma cobertura com uma banheira de
hidromassagem quente / podemos assistir TV enquanto enchemos a banheira
com bolhas). Então, o que ele fez? Ele me surpreendeu no natal com uma
banheira de hidromassagem inteira estilo planetário onde dava para nadar!
Fizemos uma festa de ano novo fabulosa por lá, para a entrada do ano 2000,
com a gruta da banheira de hidromassagem como atração principal. O Luis não
poupava despesas em suas demonstrações de carinho. Uma vez, ele encheu
um jatinho particular inteiro com rosas vermelhas para me surpreender. Os
seus dramáticos gestos românticos falavam com a garotinha com a idade
eterna de 12 anos que havia em mim, porque os seus gestos eram realmente
algo que só se via nos filmes.
Foi tudo grandioso e empolgante, mas estava longe de ser perfeito. Por um
lado, o nosso relacionamento foi caracterizado por choques culturais. Apesar
de sermos jovens e bem-sucedidos, ele era muito mais paradão do que eu. Os
nossos amigos eram totalmente diferentes. Os dele eram mais conservadores,
sérios, certinhos e monótonos, enquanto ao meu redor estavam a Brat, a Tots,
o Trey e muitos outros com a mesma vibe. O que era mais difícil eram as
diferenças culturais entre nós quando se tratava de raça. Ele insistia em dizer
que não me via como negra. A gente sempre discutia por causa disso e eu
tentava explicar: “Não, quando se tem um pai negro, isso faz de você uma
pessoa negra, então você vai ter que aceitar isso em mim.” Mas na cabeça
dele, eu não era negra porque a minha cor de pele não era escura. Para ele,
era algo que se tinha que ver externamente. Era muito difícil explicar que, para
os americanos, é muito mais complicado. Eu acho que para ele, quanto mais
fácil, melhor.
Embora nós tenhamos sido um casal intenso, é sempre difícil viver e amar
sob os holofotes. Ele pode ter sido o Elvis do mundo de língua espanhola, mas
quando ele vinha para os Estados Unidos, sem ofensa, mas no geral eu era a
277
“estrela do show”. Ele passou por muita coisa e perdeu a mãe muito jovem.
Pelo que me disseram, o pai dele era muito difícil e controlador. Eu tentei dar o
meu melhor para apoiá-lo emocionalmente, mas eu estava passando pelas
minhas próprias dificuldades e eu cheguei ao ponto de não conseguir mais lidar
com a situação. Nós não estávamos mais ajudando um ao outro a se curar. No
seu melhor, o Luis era generoso, espontâneo e apaixonado, mas no seu pior,
ele era instável e ansioso, e tinha uma nuvem negra pairando sobre a sua
cabeça.
Depois de três anos, eu sabia que era hora de nos separarmos. Nós
passamos por bons momentos e eu ainda tenho boas recordações, mas
basicamente, ele não era o tipo de cara para mim.
Como escreveu o grande Cole Porter: “Foi muito divertido / mas há muito
mais em jogo”.
– “Crybaby”
278
A MINHA EMANCIPAÇÃO
279
época. Sabendo que o Big Jim era um músico excepcional, ele e eu
compusemos “Circles” sem muita dificuldade. Depois de gravar, enquanto ele
se aprontava para ir embora – e do mesmo modo que a inspiração para compor
“Hero” tinha vindo a mim enquanto eu me dirigia ao banheiro – do nada eu ouvi
uma melodia na minha cabeça ao subir as escadas.
Depois, eu levei o Bispo Keaton ao estúdio para abençoar “Fly Like a Bird”
com uma leitura do Salmo 30, 5: “O choro pode durar uma noite, mas a alegria
vem pela manhã.” Essas palavras foram um reflexo de tudo o que eu havia
sobrevivido. Essa passagem da Bíblia realmente significava algo para mim. A
música fala sobre como o mundo é confuso – “Às vezes, esta vida pode ser tão
fria / Eu rezo para que Tu venhas e me leve para casa.” É uma questão tanto
de dificuldade quanto de resiliência: eu não consigo lidar com esta vida sozinha,
mas o Senhor vai me ajudar. Fico muito feliz por ter homenageado o Bispo
Keaton para sempre com uma das minhas canções que é mais importante para
mim.
Dou muito crédito ao L.A. Reid, que então se tornou um amigo, pelo sucesso
do CD The Emancipation of Mimi. Ele e a Universal ainda acreditavam em mim.
O meu CD Butterfly foi um despertar emocional. Já o TEOM foi uma evolução
espiritual; eu depositei grande parte do meu coração e dos meus sentimentos
nele. E são tantos bons momentos. Por exemplo, nem todo mundo sabe o
quanto eu realmente amo “Your Girl” (deveria ter sido um single). É inocente,
mas ao mesmo tempo um pouco ousado. Eu ouvi a batida do DJ Scram Jones
pela primeira vez quando eu estava no estúdio do rapper N.O.R.E. bebendo
algo em um copo de isopor (eu sei que é ruim para o nosso ecossistema, mas
era só o que eles tinham). A vibe da música original passa um pouco mais de
autoconfiança e muito mais emancipação: “I’m gonna make you want to / Get
with me tonight” (Vou fazer você querer / Ficar comigo esta noite.) E há uma
pequena parte com a minha voz falada no meio da música “I Wish You Knew”,
que foi inspirada na Sra. Diana Ross. Existem tantos detalhes íntimos,
especiais, internos, quase impalpáveis que são específicos para mim no
TEOM. Dá para realmente sentir as minhas emoções de forma genuína; não
há baladas dramáticas, super produzidas com o intuito de agradar executivos
de gravadoras. O CD foi simples e super autêntico, sem floreios
desnecessários. Acho que é por isso que tantas pessoas entraram em sintonia
com ele.
Uma noite, eu decidi desopilar um pouco e fui até o ônibus dos dançarinos,
que era de longe o mais movimentado da nossa frota. Parecia uma festa de
porão, totalmente animada. Eu entrei de fininho na muvuca. Parecia que eu
estava no colégio cabulando aula com amigos e não em minha própria turnê
com ingressos esgotados. Era simples e festivo.
282
Um dançarino se destacava. Eu já o tinha visto antes, mas algo parecia
diferente naquela noite. Ele era brincalhão e certamente era o centro das
atenções com os seus gestos expressivos e risada alegre. Eu sempre o achei
um gatinho, mas naquela noite foi diferente. Havia algo realmente nele que
estava chamando a minha atenção – uma deliciosa mistura de beleza de
homem adulto e charme infantil. Eu decidi ficar no ônibus por mais um tempo.
Era uma viagem de lazer, com certeza.
Estávamos todos um pouco alegres por causa da bebida para perceber que
aquele pequeno restaurante monótono havia sido alegrado com o nosso
encanto e sabor. Nós nos esparramamos em várias mesas e nos balcões. O
nome do dançarino era Tanaka. Nós já tínhamos começado a trocar olhares
um com o outro antes mesmo de descer do ônibus. Nos sentamos num balcão
um na frente do outro como alunos da oitava série. Tocamos suavemente as
pernas um do outro sob a mesa, sem ser vistos enquanto o resto da festa
continuava com força total.
284
O PAI E O PÔR DO SOL
Ao longo dos anos, o meu pai continuou levando uma vida pacata e
disciplinada. Ele trabalhou de forma honrada e constante como engenheiro. Ele
ficou em forma. Ele caminhou e escalou montanhas. Ele comia bem e evitava
doces. Ele bebeu muito pouco álcool. Ele não fumava (antes de eu nascer, ele
largou todos os seus vícios em um dia, e ponto final). O Alfred Roy não era um
homem de luxos. Por isso, quando eu recebi a notícia de que ele havia
adoecido enquanto eu estava gravando o CD Charmbracelet em Capri, eu
fiquei chocada. O meu pai forte e invencível? Foi como um golpe na cabeça,
rápido, certeiro e desorientador. O meu pai ligou e sugeriu que eu fosse. Não
para salvá-lo ou financiar os custos com hospital – ele não precisava e nem me
pediu isso; ele sempre ganhou e economizou o seu próprio dinheiro. O que ele
precisava de mim era a minha presença e de esclarecer as coisas.
– “Bye Bye”
Após vários diagnósticos errados, concluiu-se que ele tinha câncer de ducto
biliar, uma forma rara, sem medidas de prevenção ou tratamentos de cura
conhecidos. Esse câncer cresce nos tubos que transportam o fluido digestivo e
conectam o fígado à vesícula biliar. Era mais do que simbólico para mim: um
homem saudável desenvolve um câncer que envenena a parte do seu corpo
que absorve e elimina os resíduos. O meu pai guardou tanta coisa dentro de si
e teve pouca oportunidade de liberar toda a amargura que ele havia consumido.
Agora que ele estava num entra e sai do hospital, do mesmo modo eu ia e
voltava das gravações do meu CD em Capri até ficar de forma definitiva ao lado
da cama do meu pai frágil e enfraquecido em Nova Iorque.
285
Estranho sentir aquele homem orgulhoso e forte
Segurar firmemente na minha mão
Difícil de ver a sua vida interior
Murchar com o passar dos dias
Tentando preservar cada palavra
Ele murmurou no meu ouvido
Observando parte da minha vida desaparecer
“Quando eu era pequena”, eu expliquei, “era muito difícil para mim, porque
os brancos me faziam sentir vergonha por ser o que eu era. o ódio que eu sentia
por parte de alguns deles era muito real. Eu não tinha os meios e nem a
habilidade para poder lidar com isso. E eu jamais quero que você sinta que foi
por sua causa.”
Isso era difícil para uma menina, e eu me sentia tão sozinha – mas nunca
foi culpa dele. Nós dois precisávamos de coisas que não sabíamos dar. Eu
acredito que, no fundo, o meu pai entendeu por que eu tive que mergulhar na
minha música e romper com a minha família – era a minha sobrevivência, a
minha identidade, a minha razão de existir. Eu pedi desculpas por não ter ido
procurá-lo antes. “Eu não sabia o que fazer”, eu confessei, “eu não sabia a
quem ouvir. Eu não sabia se você se importava.”
O meu pai não queria morrer em um hospital. Tivemos que correr para levá-
lo para a casa da sua namorada Jean, para que ele pudesse viver os seus
últimos dias em um ambiente familiar e confortável. O meu sobrinho Shawn
estava lá para me apoiar e para me ajudar a me preparar. Nós fomos para a
casa dele para pegar alguns pertences pessoais. Eu fiquei impressionada com
a escuridão cinzenta da casa do meu pai. Não era uma bagunça, mas era uma
mudança distinta da qualidade alinhada e brilhante que eu associava a ele.
Acho que é difícil manter um padrão tão alto de organização conforme você fica
mais velho e mais fraco.
287
Ver como a estrutura rígida do seu lar havia suavizado tornou a perspectiva
de sua deterioração ainda mais real para mim. Enquanto examinávamos as
coisas na casa do meu pai, eu descobri uma pilha de recortes de jornais e
revistas. Eu os examinei e percebi que cada um deles era sobre mim – todas
as histórias do meu sucesso e realizações. Ele tinha escrito pequenas notas
nas margens, sublinhado e circulado diferentes partes que ele gostou. Eu não
fazia ideia de que ele estava me acompanhando de longe. Eu não fazia ideia
de que ele se importava com a minha carreira. Acima de tudo, eu não fazia
ideia de que ele tinha orgulho de mim. Os meus olhos se encheram de lágrimas.
Aquele monte de pedaços de papel foi mais válido do que todos os meus
prêmios e os de Quincy Jones juntos.
O seu último desejo era que a minha ex-irmã Alison e eu voltássemos a nos
falar. Ele não sabia que a nossa relação era como ter ido às profundezas do
inferno; ele não sabia que havia cinzas onde antes existia um laço frágil entre
irmãs. Mesmo assim, por pouco tempo, pudemos ficar num mesmo cômodo
por causa dele. Talvez isso tenha sido possível devido à distração da muvuca
constante de médicos e outros membros da família. Por respeito ao meu pai,
as pessoas mantiveram o seu drama escondido. A única vez que as coisas
quase saíram de controle foi quando o meu ex-irmão Morgan foi ao hospital. O
nosso pai se recusou a vê-lo; a dor que eles desencadearam e causaram um
ao outro nesta vida era densa demais para ser desfeita, mesmo no final. O
nosso pai tinha ficado fraco e visivelmente menor naquele momento, e como o
problema entre eles era principalmente por causa de poder, força e
masculinidade, eu acredito que o nosso pai não queria ser visto pelo Morgan
em tal estado de vulnerabilidade. Pai e filho não conseguiam encontrar paz
nesta Terra, mas talvez Deus-Pai pudesse fazer isso por eles, um dia.
288
Quase no final, o meu pai não conseguia mais falar, mas ele ainda tentava
manter o controle. Para pedir os seus analgésicos, ele erguia um dedo,
sinalizando que ele só queria tomar um miligrama. Mesmo no leito da morte,
ele tinha medo de se viciar, medo de perder o controle.
Ele tinha muitos conflitos com religião e fé. Sentado ao lado dele na beira
da cama, eu comecei a ler a Bíblia para ele, que ele deixou claro que não
gostava. A sua infância foi imersa na igreja, mas a sua vida foi preenchida com
as contradições dos ensinamentos da Igreja Pentecostal e do Catolicismo.
Ele não fez nenhum pedido de como deveria ser a cerimônia do seu funeral.
Ele frequentou a denominação Unitarista-Universalista por tantos anos que, por
respeito pelo seu sentimento aceito pela congregação não convencional, o
funeral foi realizado na denominação. Mas eu queria que uma experiência
espiritual ocorresse no funeral. Ele se sentiu muitas vezes desvalorizado em
sua vida por ser o único homem negro em muitos lugares, então eu decidi que
ele não seria o único negro presente quando nos despedíssemos dele de vez.
Ele deveria ter uma despedida espiritual. Eu transformei a igreja em um glorioso
jardim de girassóis (que mais tarde eu recriei no clipe “Through the Rain”). A
minha amiga, a talentosa Melonie Daniels, a Tots e eu nos juntamos e criamos
um coral gospel magnífico e completo. Eu queria que o espírito do meu pai
subisse ao som elevado que só um coral gospel consegue cantar. Em suas
vestes majestosas, o grande coral marchava e se movia ritmadamente pelo
corredor e enchia o santuário. Eu fechei os meus olhos e a Tots começou a
cantar:
Se alguém te perguntar
Para onde eu vou
Para onde eu vou em breve
289
para sentir todos os espíritos sendo elevados. Eu consegui sentir o espírito do
meu pai sendo libertado.
Como uma homenagem a ele, eu fiz com que o carro fosse restaurado à
sua glória original. Isso exigiu atenção meticulosa aos detalhes e muita
paciência e investimento. As peças foram transportadas da Alemanha e
finalmente retornou à sua cintilante cor vermelho maçã do amor, com um
acabamento impecável. Demorou anos, mas finalmente está em perfeitas
condições, como o meu pai sempre sonhou que um dia ficaria. Eu o mantenho
principalmente na garagem, mas de vez em quando ele dá uma saidinha de lá.
Em uma das minhas fotos favoritas do Rocky, ele está sentado no banco do
motorista do Porsche do meu pai. No carro esportivo de dois lugares, o meu
filho parece um mini motorista, usando grandes óculos escuros de aviador,
cachos macios e muita confiança. Ele não sabe das estradas difíceis que eu,
ou o avô que ele nunca conheceu, tivemos que viajar para colocá-lo no couro
macio e confortável daquele luxuoso banco de motorista – e ele não é para
saber mesmo. Pelo menos não agora. Ele ainda é um garotinho. Mas eu tenho
meios melhores para guiá-lo e protegê-lo do que os que eu tive no passado.
Quando eu olho para essa foto hoje, eu não posso deixar de pensar que,
embora ele nunca tenha conhecido o seu avô, a expressão no rosto do Rocky
transmite o espírito eterno do Alfred Roy Carey.
290
PRECIOSA – UMA HISTÓRIA DE ESPERANÇA
45 Rosácea: Nariz alargado. Raramente, a rosácea pode engrossar a pele do nariz, fazendo
com que ele adquira um aspecto grosseiro.
291
Eu lembro que uma vez, no set, o Lee me pegou aplicando um pouco de
blush e gritou: “SEM MAQUIAGEM, Mariah!” Um outro aviso que ele me deu
foi “andar com os pés no chão!” (ai ai, sempre andando na ponta dos pés). Eu
me sentia confiante no meu entendimento da personagem da Sra. Weiss; o
maior desafio era não se emocionar com a atuação incrível e poderosa da
Mo’Nique. A Sra. Weiss tinha que ser indiferente, mas a empatia em mim lutava
contra isso. Houve um momento em que a atuação sublime da Mo'Nique
acertou em cheio o meu coração e uma lágrima teimosa acabou brotando no
meu olho. Eu discretamente enxuguei a lágrima, esperando que não tivesse
sido filmada.
A forma como ela e a Gabby Sidibe deram vida às suas personagens foi
simplesmente excelente e impressionante. Eu adorei participar do filme. O meu
empresário na época me desencorajou de participar, porque foi de última hora
e era um filme de baixo orçamento, mas eu sabia que era uma história atípica
e muito humana. Era também uma forma de praticar e foi artisticamente
enriquecedor para mim. Eu senti muito orgulho de ter participado do projeto.
Depois que o filme Preciosa – Uma História de Esperança foi exibido no
Sundance em 2009 e ganhou tanto o Prêmio por parte do público quanto o
Prêmio do Grande Júri na categoria filmes de drama (e de quebra, mais um
Prêmio Especial do Júri para a Mo'Nique), o Tyler Perry e a Oprah anunciaram
que seriam os produtores, dando ao filme o marketing, o suporte promocional
e o brilho que o filme merecia.
Eu também ganhei alguns prêmios pelo meu pequeno papel, mas relevante.
Eu ganhei o Prêmio de Performance Revelação no Festival de Cinema
Internacional de Palm Springs, onde o Lee e eu celebramos bastante, usando
os nossos apelidos no palco (eu, “Kitten”, e ele, “Cotton”), rindo e sussurrando
um para o outro. E, ok, talvez a gente estivesse um pouco embriagado também,
mas é porque era um daqueles eventos de premiação com garrafas-em-cima-
de-todas-as-mesas! Mas principalmente, a gente vibrava de emoção.
292
Eu estava radiante. O filme Preciosa não apenas me validou diante do
público como atriz depois do filme Glitter, mas porque o Lee acreditou em mim,
eu consegui acreditar em mim mesma novamente como atriz. Foi uma prova
de que, com o material certo e as pessoas certas (e com a visão certa), eu
poderia investir seriamente na carreira de atriz. O Lee depois me deu um outro
papel inesperado e desafiador: o papel da Hattie Pearl, mãe do Cecil Gaines (o
personagem principal) e uma escrava de campo no filme The Butler (PT-Br: O
Mordomo da Casa Branca). O Lee viu facilmente em mim o que poucos
ousaram ao menos procurar, e nós temos uma relação rara e real. Uma relação
de confiança.
293
DIVAS
Diva (s): Uma distinta e célebre cantora; uma mulher de grande talento no
mundo da ópera (geralmente soprano) e, por extensão, no teatro, no cinema e
na música popular.
A Aretha Franklin é o alto padrão a ser seguido e a minha estrela guia, uma
musicista magistral e cantora incrivelmente talentosa que não deixou que um
gênero a confinasse ou a definisse. Eu escutava às suas músicas e aprendi
tudo com ela. Quando ela estava no final da adolescência, ela migrou do
gênero gospel para o jazz – ou melhor, ela passou a cantar jazz no seu
repertório, porque ela nunca deixou de cantar música gospel. (Um dos meus
CDs favoritos dela ainda é um CD de gospel: Um Senhor, Uma Fé, Um
Batismo.) E mesmo quando ela cantava música popular, as suas
apresentações se destacavam. O soul único de sua voz era expressado em
cada nota musical.
Eu ainda acredito que a maioria das pessoas não entende o quão incrível
ela era como pianista e arranjadora. Eu acho que quando se é mulher, com
uma voz incrível, a nossa musicalidade sempre é subestimada. Eu tive a
grande honra de trabalhar com o Big Jim Wright como produtora e diretora
musical. O Big Jim havia trabalhado com a Aretha Franklin, e ele me disse que,
quando a Aretha sentia a presença do Espírito Santo, ela dava um tapinha no
ombro dele, e essa era a deixa de que ele deveria se levantar do piano, onde
ela então se sentava e começava a tocar.
294
todas as grandes estrelas da música que estavam na plateia: eu estava mais
preocupada com o fato de eu ter que cantar na frente dela, que para mim, não
havia cantora que se comparasse. Eu tive que cantar “Vision of Love” na frente
da Aretha Franklin, que estava sentada na primeira fila. Muitas vezes eu tinha
visualizado o sonho de cantar em grandes premiações, mas nunca imaginei
que eu teria que fazer isso na frente do meu ídolo na minha primeira
apresentação. Eu não consegui nem dormir na noite anterior. No dia do ensaio,
eu criei coragem para ir até ela. Ela estava calmamente sentada na primeira
fila, do lado esquerdo. Eu me ajoelhei ao lado do assento dela (porque é o que
se deve fazer diante da presença dela).
Anos depois, ela me disse: “Mariah, você sempre teve bons modos e isso é
o que falta à maioria dessas meninas. São os modos. Elas simplesmente não
têm bons modos.” Eu não conseguia imaginar demonstrar menos por alguém
que deu tanto ao mundo. Eu terminei a performance de “Vision of Love” e
ganhei o prêmio de Melhor Artista Revelação e de Melhor Performance Pop
Vocal. Depois, eu analisei cada detalhe da minha performance no Grammy
daquela noite e percebi o que eu não tinha feito. Mas eu cantei diante da
Rainha.
O meu próximo grande encontro com ela foi em 1998, quando eu fui
convidada para me apresentar no Divas Live do canal de TV do VH1, que seria
um concerto em homenagem à Aretha Franklin. Claro que eu disse sim, porque
era para a Aretha, e quando se é convocado para prestar homenagem à
Rainha, se pula de alegria. Quando eu cheguei um dia antes do show para
ensaiar, a Aretha estava mostrando ao produtor para o que veio. O Ken Ehrlich
é um gigante da indústria da música. Ele produziu inúmeros tributos e
premiações, incluindo mais de trinta Grammys (e o meu show #1 to Infinity no
Coliseu do Hotel Caesars Palace, em Las Vegas). Ele e a Aretha tinham
história. Bom: foi ele quem produziu a apresentação de ópera dela no Grammy.
Algo não tão legal: A questão de poder foi motivo de discórdia entre eles, como
um velho casal. As outras cantoras “divas” selecionadas para o show foram a
Céline Dion, a Shania Twain, a Gloria Estefan e a Carole King (por ela ter
escrito a incrível música “[You Make Me Feel Like a] Natural Woman” (você me
faz sentir como uma mulher natural), que a Aretha amou e fez da música um
clássico). O Ken me disse que em várias ocasiões a Aretha disse: “a Mariah é
a única garota com quem eu cantarei esta noite”. É por isso que eu fui a única
a fazer um dueto com ela no show.
295
O clima estava esquentando entre o Ken e a Sra. Franklin porque o ar-
condicionado estava ligado e ela não canta com o ar-condicionado (ou ao ar
livre, no frio congelante).
Mas a Rainha do Soul, é claro, sabia que não se devia cantar no frio.
Quando eu cheguei para o nosso ensaio, eu estava muito animada e nervosa.
A Aretha me cumprimentou com: “Mariah, eles estão zoando com a nossa cara.
E eu não vou ser zoada. Portanto, nós não vamos ensaiar esta noite”, disse
ela, com naturalidade.
Pera. Quem é que está zoando? Eu queria gritar. Já não basta ter que
cantar com a Aretha Franklin, e agora eu não posso ensaiar com ela?! Eu notei
o Ken andando de um lado para o outro, suando, arrancando cabelo e surtando.
“É típico dela fazer isso”, ele se engasgou. Eu não sei o que sempre acontecia
entre eles dois, mas seria a primeira vez que eu iria cantar com, sem dúvidas,
a maior cantora do planeta, o meu ídolo, e eu não iria ensaiar com ela! Por que
eles simplesmente não desligam a porra do ar? Fiquei com vontade de morrer.
46 Há uma certa performance minha no frio de rachar...: a Mariah culpa o frio pela terrível
performance dela na véspera de ano novo do Rockin’ Eve do Dick Clark.
296
A noite sem ensaio foi um pesadelo, exceto por ela ter me dito que
realmente gostava da música “Dreamlover” e sugeriu que nós a cantássemos
juntas. Senti vontade de morrer de novo. Eu fiquei simplesmente maravilhada
por ela conhecer a minha música, quanto mais querer cantá-la. Anos depois,
ela cantou algumas das minhas canções, como “Hero” no aniversário do pastor
Jesse Jackson e “Touch My Body” na sua turnê, onde ela improvisou até
mesmo nas partes mais ousadas. Ela disse: “Diga a Mariah que eu sou uma
mulher que vai à igreja e não posso cantar essas coisas agora” e o público
cantou o refrão junto com ela. Foi incrível.
297
Mas no final, a Aretha decidiu nos levar à igreja e começou a cantar gospel.
Ela se aproximou de mim e me abraçou, e eu cantei “Jesus!” Porque ela me
deu a deixa. É como no jazz: ela era a líder da banda; e a gente tinha que segui-
la. Só que a diva que havia peitado a Aretha antes tinha ido longe demais (na
minha humilde opinião) e parecia querer cantar mais que a Aretha.
Inacreditável. Eu não conseguia acreditar que alguém pudesse tentar ofuscar
a Aretha Franklin no próprio tributo que era para ela, enquanto cantava sobre
Jesus, ainda por cima. Talvez fosse uma grande lacuna cultural, mas parecia
pura loucura para mim, e eu não queria participar daquilo. Enquanto isso
acontecia, o meu corpo começou a involuntariamente se afastar das outras
Divas e eu me juntei aos backing vocals, a maioria dos quais eu conhecia.
Parecia uma blasfêmia para mim, e eu queria estar bem longe caso caísse um
raio.
Eu fiquei mortificada, mas é claro que a Aretha não se importou. Ela tinha
mais habilidades, soul e talento natural do que todas nós juntas e ao dobro. Ela
se divertiu muito naquela noite e arrasou cantando.
Tomara que a única lição que todas nós tenhamos aprendido naquele palco
seja: R-E-S-P-E-I-T-O.
A Aretha Franklin sempre terá não apenas respeito da minha parte, mas
também um oceano de gratidão que me regará para sempre.
299
Era um dos poucos lugares onde se tinha como esbarrar com super estrelas
como o Prince ou os Rolling Stones no corredor.
A Sra. Ross foi tão maravilhosa comigo no set, me dizendo: “Eu te amo; os
meus filhos amam você.” Ela foi muito mais do que adorável. Ela até entrou no
meu camarim só para conversar! Imediatamente eu pensei, eu estou aqui de
bobeira com a Diana Ross; eu tenho que ligar para o Trey! E foi o que eu fiz, e
ela deixou para ele uma mensagem realmente fofa com a sua voz musical e
aguda, mas baixa: “Oh, essa mensagem é para o Trey? Essa mensagem é
para você, Trey. Feliz aniversário, querido.”
Quando ele ouviu, ele quase morreu, bem no aniversário dele. Ele salvou
aquela mensagem de voz para sempre. Ele provavelmente ainda tem até hoje.
Para se preparar para o Divas Live Tributo à Sra. Ross / Supremes, o Trey
estava me ensinando com as músicas da Motown, e eu estava entrando na
vibe dela, mas eu não sabia como incluir a Donna Summer ainda. As memórias
que tenho da Donna Summer são bem carinhosas. Eu era muito jovem e eu
participava de um acampamento de férias para crianças com fundos públicos
na cidade de Nova Iorque. Digamos apenas que não era dos acampamentos
mais organizados e os funcionários eram praticamente crianças. Era
predominantemente negro e eu era uma das poucas crianças mestiças ou de
pele clara ali, e a única de cabelos loiros. Mas eu certamente não estava me
divertindo mais. Em vez disso, eu fui como a lenha é para a fogueira da
animosidade. Nenhuma das meninas gostou de mim. Por que elas estão com
raiva de mim? Eu me perguntava. Eu não entendia na época. Não era apenas
a pele clara e o cabelo loiro – se isso não bastasse. O Khalil gostava de mim.
O Khalil era o garoto mais fofo de todo o acampamento. Ele tinha cabelo
castanho escuro e encaracolado, pele cor de caramelo e os olhos verdes. Eu
também era mais alta do que ele, então eu acho que as meninas também
acharam que eu era muito velha para ele (embora nós tivéssemos a mesma
idade).
300
de discoteca, deixando que as garotas enciumadas e hostis do local sumissem
de vista.
Então, para mim, o sucesso clássico da Sra. Summer foi a trilha sonora do
“Acampamento com o Khalil”, aqueles momentos inocentes de criança (que
não foram muitos). Eu não a tinha conhecido ainda. O Divas Live é um show
ao vivo, mas é gravado na frente de um público no Radio City Music Hall. Havia
uma equipe e pessoas agitadas por toda parte. Todos estavam animados com
a chegada do ícone, a Sra. Ross, e eu estava fazendo bastante sucesso na
cultura pop com o Rainbow, o meu sétimo CD consecutivo a produzir músicas
que ficaram em 1° lugar na Billboard Hot 100 – “Heartbreaker” foi a minha
décima quarta música em 1° lugar. Estávamos fazendo uma inspeção no palco
e nos preparando para passar o som cantando medley de músicas das
Supremes (sem a Sra. Ross). A Donna Summer apareceu silenciosamente,
parecendo tímida e desconfortável. Ninguém falou muito quando ela saiu para
conversar, acho que era sobre o teleprompter, que mostrava a letra de “Baby
Love”. Então, alguém apareceu e mostrou três horríveis vestidos de lantejoulas
verdes. Eles pareciam fantasias baratas, nada parecido com vestidos de alta
costura. Podre.
Quem eles acham que vai usar isso? Eu pensei. Porque eu não vou usar
isso. Eu tinha certeza de que a Sra. Ross também os acharia de muito mau
gosto (para não dizer pior). Eu só sei que em seguida alguém veio nos falar
que a Sra. Summer não se apresentaria conosco. E ela foi embora. Oh ok. Não
tinha como encontrar uma Cindy Birdsong a tempo (ela substituiu a Florence
Ballard nas Supremes). Eu não sei o que fez a Sra. Summer se retirar (se foram
os vestidos, eu certamente não a culpo), mas parecia que o Divas Live deste
ano seria mais uma vez uma viagem alucinante.
301
Então, agora eu tinha que me adaptar à ideia de fazer um dueto com a Sra.
Ross. Claro que foi maravilhoso, mas as abominações verdes? Não Senhora.
Eu não seria frustrada pela má moda naquela noite em particular – não na
frente da Sra. Ross, que é um ícone da moda internacional bem documentado.
Eu disse logo que eu não usaria aquele vestido verde e brilhante horroroso.
Eu nunca saio de casa sem os meus próprios looks, porque nunca se sabe o
que pode acontecer – e algo de muito cafona estava prestes a tomar forma
naquela noite. Eu tinha um plano. Como a Donna Summer havia desistido, eu
ofereci um dos meus looks para a Sra. Ross:
A Donatella Versace tinha feito para mim dois finos vestidos no estilo de
mini toga de malha metálica – um dourado e um prateado – e eu tinha levado
os dois comigo. (Que noite perfeita para ter opções!)
A Diana era uma mulher que usava incontáveis vestidos lindos, fazia
declarações de moda em todas as línguas, e eu estava humildemente
oferecendo o meu vestido (fabuloso como era) para ela. Nem precisa dizer que
eu estava nervosa. Eu apresentei os vestidos minúsculos sem costas para ela,
e ela pegou o prateado. Sim.
Recentemente, tenho refletido sobre algo que a Sra. Ross me disse naquela
vez em Londres. Eu tinha vendido dezenas de milhões de CDs e estava indo
com uma grande equipe – maquiador, cabeleireiro, estilista de figurino,
publicitário, empresário e vários assistentes. Enquanto ela mesma se maquiava
perfeitamente (ela fez curso de beleza também!), ela disse: “Mariah, um dia,
você não vai querer ter todas essas pessoas ao seu redor”.
Então a Whitney disse: “Eu posso fazer melhor” e também arrancou a longa
peça do seu vestido, mostrando um vestido novo e diferente. Rimos muito
disso, mas essa brincadeira entre nós quase que não aconteceu. Quando eu
cheguei no local, o meu vestido não tinha chegado ainda. Já que a coisa toda
girava em torno dos vestidos, não era como se eu ou qualquer outra pessoa
pudesse simplesmente arranjar um vestido diferente. Houve pânico!
Aparentemente, o vestido ainda estava no mostruário, então a produção
providenciou uma escolta policial para pegar o vestido, liberar as ruas para que
o vestido chegasse no local a tempo.
303
UM POUCO SOBRE ALGUNS HOMENS BONS
– Karl –
O Karl Lagerfeld sempre foi muito simpático comigo, o que não acontecia com algumas
das casas de alta costura mais sofisticadas. Nós fizemos uma sessão de fotos de moda
juntos para a revista America – que era uma nova publicação de “luxo urbano” lançada no
início dos anos 2000, quando as palavras “luxo” e “urbano” não eram associadas ainda. A
revista e o Karl estavam dispostos a mostrar um visual mais novo e despojado comigo. O
Karl produziu e fotografou a foto da capa. Ele me fotografou de uma forma íntima e muito
glamorosa, passando um pouco a vibe de Marilyn-Monroe-por-Eve-Arnold. Elas são, até
hoje, algumas das minhas fotografias mais apreciadas. O Karl também foi quem me
fotografou para a capa da revista “V Belong Together” durante o lançamento do CD The
Emancipation of Mimi. O logotipo V gigante foi desenhado com o modelo da minha pulseira
de diamantes Dior – perfeição absoluta (eu amo o Stephen Gan).
Uma vez, o Karl costurou para mim um vestido de alta costura muito
especial para um grande evento. Era simplesmente lindo – um vestido de cetim
preto com um V profundo nas costas. Eu usei o vestido com o cabelo repartido
ao meio, penteado para trás (eu raramente penteio o meu cabelo assim) e
preso com um adorno. Um visual muito clássico de alta costura. Como o vestido
era feito de cetim de seda, que pode refletir as luzes, ele requer iluminação
adequada (na minha opinião, cada situação realmente exige iluminação
adequada). Eu aparentava maior na maioria das fotos ao mostrar os detalhes
nas minhas costas. Os flashes fizeram a minha bunda parecer enorme.
Lembre-se de que estamos falando da época antes dos popozões – falsos ou
autênticos – serem aceitos ou celebrados no mundo pop. Naquela época, não
era para ser popozuda.
Quando a Oprah te convida para ir para a África do Sul, você larga tudo e vai. (Quando
a Oprah te convida para ir para qualquer lugar, você simplesmente vai, mas esse momento
foi super importante.) Foi algo bastante extraordinário até mesmo para ela – a inauguração
de sua instituição “Oprah Winfrey Leadership Academy for Girls” (Academia de Liderança
para Garotas da Oprah Winfrey). Foi um privilégio único estar entre as poucas pessoas que
ela convidou (incluindo a Tina Turner, o ator Sidney Poitier, a Mary J. Blige e o Spike Lee),
e então eu fui ainda uma das poucas pessoas que ela selecionou para conhecer
pessoalmente o ilustre e fenomenal Nelson Mandela.
Eu fui levada a uma sala pequena, simples e elegante, onde o Sr. Mandela
estava sentado em uma poltrona cinza usando uma de suas camisas
estampadas que era a sua marca registrada. Ele parecia um rei. Ele parecia
um pai. Eu passei um breve momento com ele, mas que momento incrível e
poderoso. Eu me inclinei para abraçá-lo e, naquele breve abraço, eu senti a
energia da ancestralidade e do futuro, das lutas e do sacrifício, da fé e visão
inabaláveis – do amor revolucionário. O Sr. Mandela sorriu para mim e, em um
instante, eu senti a minha própria compleição mudar.
– Ali –
305
O Sr. Ali e a sua esposa estavam sentados em cadeiras especiais ao pé do
palco. Como parte da apresentação, eu deveria descer as escadas e cantar
bem na frente dele. Eles devem ter pensado que eu estava literalmente usando
lingerie. O Sr. Ali estava sendo enquadrado na câmera para que o público
pudesse ver o quanto ele estava animado, aparentemente tentando se levantar
da cadeira com entusiasmo – o que naquele estágio da sua síndrome de
Parkinson não era uma tarefa fácil, mas que também causou uma reação de
alegria do público (bem, na maioria das pessoas). Graças a Deus que, durante
a apresentação, eu não sabia que estava sendo inadequada com a sua família;
nenhum dos produtores chamou a minha atenção para essa pequena, mas
importante, questão de respeito religioso. Tipo assim, eles poderiam apenas ter
dito: “Talvez seja melhor não dançar tanto e você poderia usar um vestido mais
longo – o que acha de usar um vestido com mangas?” Eu não sabia. Eu
realmente espero que a família tenha perdoado a minha ignorância e
inexperiência juvenil.
– Stevie –
“De que cor são os pisca-piscas da árvore de Natal? Como elas são?” Eu ouvi o Stevie
Wonder perguntar ao seu irmão enquanto o conduzia pelo hotel MGM Grand de Las Vegas.
Nós dois estávamos lá por causa da premiação do Billboard Music Awards. Ele me
presenteou com o prêmio de Artista da Década. De todos os músicos e de todas as músicas
que me inspiraram, o Stevie Wonder era o meu favorito. Como escritor e compositor, ele é
um mergulhador de águas profundas. Ele vai até o fundo da sua alma e traz tesouros tão
vívidos, tão cheios de emoção, que mudam sonoramente a sua estrutura. E como cantor,
ele entrega com total honestidade e coração. Ele é realmente o meu padrão de diamante.
Eu tive o privilégio de trabalhar com ele algumas vezes. Uma vez, ele até
me mostrou algumas músicas novas em que ele estava trabalhando e
306
perguntou a minha opinião. Um dos maiores compositores de todos os tempos
casualmente me permite ouvir as suas músicas de trabalho e se interessa
genuinamente na minha opinião – como musicista. Um momento musical que
eu sempre vou estimar foi um improviso que ele fez na minha música “Make It
Look Good” do CD Me. I am Mariah… The Elusive Chanteuse. Bem no início,
ele diz ou brinca: “Eu te amo, Mariah” tocando a sua gaita! E então dá uma
gargalhada doce, brilhante e que nos proporciona cura, e então a música
começa. Foi como uma pequena bênção antes da refeição. Ele tocou a sua
gaita, que é a sua marca registrada, durante toda a música, como só o Stevie
Wonder consegue.
– Prince –
O Prince me deu uma Bíblia, encadernada em couro marrom escuro, com letras
douradas em relevo. Eu ainda tenho esse livro sagrado, enviado por um ser de luz, um irmão
e anjo, que veio em meu auxílio nos momentos difíceis inúmeras vezes. O Prince me
defendia como artista. Por volta da época do CD Butterfly, alguns executivos de gravadoras
que não serão citados (porque eu realmente não os conheço) questionaram a minha direção
musical em uma conversa com ele. Naquela época, ele havia alcançado o status de guru
como músico (o que não impedia as gravadoras de tentarem fuder com ele como artista –
quando se trata de dinheiro e poder, nada e ninguém é sagrado, nem mesmo a realeza da
música).
Eles perguntaram a ele: “Por que ela está tentando cantar músicas de
negro?” e “O que ela está fazendo?”
“Eu só acho que isso é problema dela. Pois é disso que ela realmente
gosta”, foi a sua resposta fenomenal. Exatamente isso!
307
O problema é dela. Namastê47, seus trouxas.
Quando eu conheci o Prince, ele me disse que adorava “Honey”. Oh! Meu!
Deus! O Prince conhece a minha música! Eu gritei na minha cabeça. Eu estava
nas nuvens – o maestro da música moderna conhecia a minha música!
Continuamos falando sobre composição e o lado negro da “indústria” em
encontros casuais posteriores em festas ou em boates (o Prince era famoso
por aparecer aleatoriamente, misticamente em uma boate); ele sempre foi
muito atencioso comigo.
47 Namastê: é um cumprimento e saudação típico do sul da Ásia, que significa “eu saúdo a
você”. Este termo é utilizado principalmente na Índia e no Nepal por hindus, sikhs, jainistas
e budistas.
308
“Essa música é da Vanity 6”, disse ele.
309
OS MEUS BEBÊS
– “Love Story”
Alguns anos depois, a Brat me disse: “Ele te ama. Ele sempre fala sobre
você”, referindo-se ao Nick. Ela era fã do programa de TV Wild’N’Out, um
programa de humor e improvisação com hip-hop que ele apresentava na MTV,
que eu também nunca tinha ouvido falar. O programa Wild’N’Out estreou no
mesmo ano em que o CD The Emancipation of Mimi foi lançado, que foi um CD
bem elogiado – finalmente. Foi um momento de grande sucesso que eu
esperava ter fazia tempo. Eu ouvia uma das muitas canções daquele CD no
rádio trinta vezes por dia! Foi um momento incrível para os meus fãs também.
Era o que eles precisavam. Eles precisavam me ver renascer das cinzas
daquela maneira. Eu realmente acredito, para o bem ou para o mal, que a
Lambily, os fãs e eu, passamos pelas coisas juntos.
“We Belong Together” foi uma canção colossal. Ela liderou o topo das
paradas de sucesso e tocou por todo os Estados Unidos e internacionalmente.
Ela se tornou a minha décima sexta música a ficar em 1º lugar na parada da
Billboard Hot 100 (eu também fui a primeira artista feminina a ter duas músicas
no topo das paradas, com “We Belong Together” em 1º lugar e com “Shake It
Off” em 2º lugar). Ela acabou ficando no top 10 por 23 semanas e se manteve
nas paradas por 43 semanas no total. “We Belong Together”, com mais outras
duas canções, se tornou a terceira música a ficar por mais tempo em 1° lugar
na história das paradas dos EUA (atrás de “One Sweet Day”, a música mais
310
popular dos anos noventa da Billboard). A Billboard listou “We Belong Together”
como a canção da década (canção do quê?) dos anos 2000, e a nona música
mais popular de todos os tempos.
WBT ganhou dois Grammys, dois Soul Train Awards e Canção do Ano no
ASCAP Awards e BMI Awards (entre outros). Ela até ganhou um prêmio
chamado Teen Choice Award – por melhor música romântica. Eu não sabia
que o Nick iria entregar o prêmio para mim (aparentemente, ele insistiu para os
produtores do Teen Choice). O show foi barulhento, intenso e cômico – o
prêmio é uma prancha de surfe. Eu me lembro de ver o Nick pela primeira vez
e de ficar observando o seu curioso visual de marinheiro de tamanho GG, que
consistia em um short branco gigante, uma grande camisa polo azul oceano,
um suéter amarelo limão em volta do seu pescoço, meias até os calcanhares e
tênis. Depois que ele me entregou o prêmio, uma prancha de surfe, eu disse:
“Eu ouvi falar de todas as coisas boas que você tem falado sobre mim”. Com
um sorriso radiante e genuíno e uma chama nos olhos, ele respondeu: “Se você
me der uma chance, eu provarei que tudo é verdade.”
Para mim, o Nick era produtor, comediante e ator – eu não fazia ideia de
que ele desejava realmente se tornar um rapper. Ele ria muito e me fazia rir.
Nós fazíamos um ao outro rir muito. A gente conversava sobre a vida e sobre
música. Eu só queria ficar perto dele. Uma vez, eu até dei um fora em um
lendário jogador de basquete muito bonito para andar de carro com o Nick para
que ele pudesse ser o primeiro a ouvir o meu novo CD, E = MC². Eu estava
empolgada e eu queria ouvir as músicas junto com ele.
Eu estava me sentindo mais forte e fazia tempo que eu não me sentia bem
comigo mesma. O meu novo amigo Nick seria escalado para participar do clipe
“Touch My Body”, já que ele era comediante e o clipe teria uma pitada de
humor. (Qual é, pessoal, que outro rumo o clipe poderia seguir com uma letra
como, “Porque se você falar abobrinhas / E se gabar desse encontro secreto /
eu vou caçar você”? Caso contrário, teria sido um filme de perseguição.) Mas
o papel no clipe era para um nerd de computador e, embora o Nick fosse muito
engraçado, ele não parecia nada com um nerd. O Jack McBrayer, no entanto,
foi uma escolha genial, e nos divertimos muito gravando o clipe.
Graças aos meus fãs, que realmente apoiaram a música, sabendo como
ela faria sucesso, “Touch My Body” se tornou o meu décimo oitavo single a ficar
em 1º lugar. Sou eternamente grata aos meus lambs, que são a minha família.
Eu também agradeço a todos da gravadora que acreditaram no CD e em mim.
Era o meu maior single naquele momento; e que parecia ter feito o impossível,
me fazendo ultrapassar o recorde mantido pelo Elvis Presley por tanto tempo,
o recorde de possuir mais singles em 1º lugar de todos os tempos. O Nick
312
acabou sendo escalado para fazer o papel do meu par romântico em um clipe,
“Bye Bye”, que nós filmamos na ilha de Antígua. A química entre nós era
natural, forte e familiar. O conforto e a intimidade gravados no clipe eram reais.
E depois da gravação do clipe, a gente só viria a falar “até mais” um para o
outro depois de um longo tempo.
Eu estava curtindo ficar com o Nick. Nós até brincamos dizendo que iríamos
com calma e que não iríamos apressar nada. Uma vez, ele me enviou um lindo
e gigantesco buquê de flores quando eu estava em Londres. Ao assinar o
cartão, eu li: “de um aluno desistente da Universidade Pace48”, porque as
coisas estavam indo rápido demais. Nós rapidamente nos tornamos muito
amigos, mas mais rapidamente ainda a gente embarcou na montanha russa do
nosso amor em sigilo. A gente compartilhava as nossas individualidades um
com o outro. Nós tínhamos em comum algumas coisas essenciais. Ele era um
cara legal. Ele era uma pessoa de fé. Ele era ambicioso. Ele estava na indústria
do entretenimento há muito tempo, então ele entendia a loucura. Ele prestou
atenção em mim. A dinâmica de poder entre nós parecia igual.
Eu deixei claro para o Nick que eu não estava nem um pouco a fim de me
tornar fisicamente vulnerável novamente. Eu não transaria a menos que
houvesse um compromisso total, o que na época significava casamento.
(Então, obviamente, eu teria que quebrar a promessa que eu tinha feito de
nunca mais me casar.) O Nick respeitava a minha decisão.
– “Candy Bling”
314
tomando um bom champanhe com bons amigos – chega de lágrimas solitárias
e salgadas em daiquiris tristes e açucarados.
O Nick, por outro lado, não compreendia muito bem a enormidade do que
eu estava passando. Certa vez, nós estávamos em uma consulta com o nosso
especialista em gestações de alto risco. Enquanto eu estava fazendo o exame,
com o peso de dois seres humanos e um pequeno lago de fluido enchendo
todo o meu corpo, a memória de conforto de qualquer tipo bem longe da mente,
o meu bondoso e idoso médico, com o seu sotaque forte do Oriente Médio,
olhou para o meu segundo marido mal-humorado e disse: “Pobre Nick; ele está
tão exausto.”
Eu gravei a maior parte das músicas em nossa casa em Bel Air, que teve
como proprietária a falecida e lendária Farrah Fawcett. Em meus muitos papéis
criativos quando criança, um dos meus favoritos de todos os tempos era a
detetive particular Jill Munroe do seriado Charlie’s Angels (PT-BR: as panteras).
Não é de espantar que eu era fascinada pelo cabelo dela: a perfeição da cor e
do corte, todos os fios em seu devido lugar. (Eu prestei várias homenagens
durante a minha carreira.) Eu me lembro da minha mãe dizendo para mim que
fizeram “mechas” no cabelo dela, o que a minha mente de seis ou sete anos
ouviu foi “brechas”. E eu sabia que um dia eu iria pintar o meu cabelo igual ao
da Jill de tão aficionada que eu era por ela.
317
Era maravilhoso e divertido quando os “meus bebês” eram pequenos.
Juntos, o Nick e eu os enchia de muita alegria, atenção e segurança o máximo
possível. Mas com a alegria em dobro havia também o dobro da
responsabilidade. Dava muito trabalho e nós tínhamos que passar mais tempo
em casa e estarmos disponíveis para eles. Fazer os ajustes necessários para
sermos pais que trabalham no entretenimento afetou o nosso relacionamento,
e o fim do nosso casamento aconteceu rápido, da mesma forma que começou.
Embora a gente tivesse um acordo pré-nupcial, o divórcio demorou dois anos
para se tornar definitivo e custou centenas de milhares de dólares em despesas
jurídicas.
– “Faded”
– “Petals”
Eu não me faço mais esse tipo de pergunta. Agora, eu sei com certeza que
nunca houve e provavelmente nunca haverá uma família “perfeita”. Mas eu
finalmente encontrei estabilidade na família que eu criei. Há momentos em que
não consigo acreditar que eu era uma garotinha que morava em barracos, que
sempre se sentiu insegura, pouco cuidada, solitária e eternamente assustada.
Eu queria voltar no tempo para proteger e resgatar aquela garotinha do mundo
precário em que ela estava presa. E agora, fico maravilhada com os meus
próprios filhos maravilhosos, a Monroe e o Moroccan, e o ambiente seguro e
abundante que foi criado para eles. Em vez de terem que se mudar treze vezes,
eles vivem em várias casas lindas, impecáveis e palacianas. Em vez de pregos
expostos nas escadas e carpetes imundos, eles correm livremente por longos
corredores de mármore brilhante, usando meias e gritando de alegria. Em vez
de um sofá de balanço de três pernas, eles assistem filmes numa tela de
318
cinema em um sofá estável e luxuoso feito sob medida com almofadas de
penas de ganso que é maior do que o meu primeiro apartamento.
Os meus filhos estão rodeados pelo meu amor sem fim. Eu nunca fiquei
longe deles por mais de vinte e quatro horas, e quando eu estou trabalhando,
eles são vigiados por uma família amorosa de amigos e profissionais. Eles
jamais foram deixados sozinhos. Eles nunca se perguntaram onde eu estou ou
se o pai deles sabe como é a vida deles. Eles têm inúmeras memórias e
imagens dos seus pais amorosos juntos. Eles nunca correram perigo de vida.
Policiais nunca invadiram a nossa casa. Eles provavelmente têm trezentas
camisas para revezar e doar, e os seus cachos doces e macios são
profundamente compreendidos. Eles não vivem com medo. Eles nunca
precisaram fugir. Eles não tentam destruir um ao outro. Os meus filhos são
felizes e brincam um com o outro, aprendem um com o outro, se divertem, riem
e convivem um com o outro. Aconteça o que acontecer, eles sempre terão um
ao outro. Eles são o Roc e a Roe pelo resto da vida.
319
GLOBO DE NEVE DE ALEGRIA
320
Lambs, fãs e amigos, e todo mundo estava cantando “All I Want for Christmas
Is You” juntos! Eles cantavam junto comigo; eles estavam cantando para mim.
As nossas vozes estavam tão altas e alegres que toda a cidade de Nova Iorque
poderia ter nos escutado e se juntado a nós. Naquele momento, estávamos
todos unidos em nosso próprio universo de espírito natalino. Toneladas de
flocos de confete branco caíram sobre nós do teto. Era como se o mundo inteiro
estivesse comigo em um grande globo de neve de alegria!
Espera. O quê?!
Por dentro, a linda agitação da família aquecia toda a casa. Com músicas
do estilo Messiah (Messias) do Georg Handel às músicas do Jackson 5, o ar
era preenchido com a trilha sonora infinita de músicas de natal (com risos,
cachorros latindo e crianças correndo como música de fundo). Os corredores,
321
as paredes, e todos os lugares estavam enfeitados e decorados, e o fogo rugia
nas lareiras. Na sala de estar, a enorme árvore estava cheia de pisca-piscas
brancos, bolas de ouro, querubins e borboletas douradas e no topo havia uma
linda estrela de anjo com asas com pontas de ouro e um tecido fino descendo
dela. (Na sala da família há sempre uma árvore de natal de estilo antigo com
grandes pisca-piscas multicoloridos, dando uma vibe de árvore Charlie Brown
mais plena e feliz. Nós decoramos a árvore com enfeites feitos em casa e com
fotos Polaroid uns dos outros; eu também coloco enfeites estimados que os
Lambs de todo o mundo já me enviaram ao longo dos anos.) Guirlandas e
pisca-piscas caíam em cascatas sobre cornijas de lareira e portas, e velas
brancas e flores do natal (poinsetia) estavam por toda parte. As xícaras
estavam cheias de chocolate quente e saborosos licores Schnapps de
caramelo.
Eu estou em paz.
Eu me sinto completa.
322
EPÍLOGO
Deus sabe
Que os sonhos são difíceis de seguir
Mas não deixe ninguém
Destruí-los
– “Hero”
– Mateus 17, 20
49 Alguém covarde com um teclado: não ficou claro a quem a Mariah se refere. Pode ser
que ela esteja falando do Walter Afanasieff, que se acovardou e escolheu ficar ao lado do
Tommy, e que a palavra teclado aqui signifique “piano”, ou talvez a Mariah esteja se referindo
aos trolls e haters de internet que destilam os seus venenos atrás de uma tela, ou talvez ela
esteja falando dos dois sentidos? Não sei. Só podemos especular.
323
No final das contas, é tudo uma questão de fé para mim. Eu não consigo
definir o que seja, mas foi algo que me definiu.
324
FOTOGRAFIAS
325
Nana Reese na frente da sua igreja com a sua bolsa-carteira
(Tia-avó)
326
Nana Reese com a sua Bíblia
327
Alfred Roy aos quatro anos (pai)
328
A glamorosa Addie (avó)
329
Mãe da minha mãe
330
A Pat em seus dias de ópera
331
Alfred Roy no exército
332
Pequenina
333
Com o papai noel pela primeira vez
334
A minha prima Vinny aos três anos de idade
335
Eu com a Pat em seus finados dias de boemia
336
Com o meu ursinho de pelúcia, o Cuddles, em um
passeio ao Monte Washington com o meu pai
337
Fazendo o papel da Hodel e segurando
as flores que recebi do Alfred Roy
338
“Longe Do Lar Que Eu Amo”
339
Fazendo pose para os meus tiados
340
Desembaraçados e penteados
341
Jogando xadrez com o Alfred Roy
342
Logo no início, você lida...
343
“Lullaby of Birdland” com o Clint ao piano
344
Uma criança marcada
345
A pequenina Mariah e a Pat
346
A Cee Cee, eu e o Chris
347
Nono ano
348
Curso de beleza! 500 horas
349
Olhando dentro de si
350
Com a Josefin, fazendo acontecer em Nova Iorque
351
“A distância”
352
Eu, o Mike e o Shawn. Fazendo gracinha.
353
Com o Shawn no natal em Aspen
354
Nos bastidores em um momento genuíno de
diva com a incomparável Sra. Whitney Houston
355
Os dois vestidos e a Sra. Ross
356
Com Morris, o ícone
357
O
358
Eu “com” a Marilyn
359
Com a rainha
360
“Momento” nos bastidores do World Music Awards em Mônaco
361
Nos bastidores em Taipei na turnê do Butterfly
362
Eu e o Kris sobrevivendo ao fiasco do Glitter
363
Arrasando com o meu vestido Lagerfeld com Rae Rae e Kris
364
Momento “mergulho” com o meu querido amigo Treymond
365
Uma foto sensual digna de pôster tirada no jardim de Franco em Capri
366
No hotel Lanesborough em Londres com o cachorro Bailey
367
Mariah alternativa
368
Com o Luis Miguel, o Elvis latino
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Bianca depois de anoitecer
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Opulência e decadência no iate do Roberto Cavalli
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Um momento de amor adolescente...
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373
O Presidente Obama fazendo a Roe rir
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Com o Nelson Mandela
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O Prince me salvou e fortaleceu a minha alma quando eu mais precisava,
e por meio de sua música, ele continua salvando o dia, todos os dias.
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Com o meu artista favorito de todos os tempos, Stevie Wonder
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A Liron e eu rindo
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O Shawn e eu com girassóis para o Alfred Roy
no nosso último dia dos pais juntos
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O Roc e a Roe na Itália aprendendo a nadar
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Alfred Roy no Porsche
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O meu filho, Rocky, no carro do seu avô, o Alfred Roy
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AGRADECIMENTOS
Obrigada à minha família de anjos: Alfred Roy, Addie Mae Cole, Nana
Reese, Madre Emma Cutright e o Bispo. Eu sinto a presença de vocês todos
os dias... me levando para mais perto de Deus.
Aos meus primos Cee Cee e Chris – a nossa diversão era igual a fazer
comida. Amo vocês como arroz com feijão.
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E ao Tanaka, que é uma pessoa maravilhosa e única, obrigada pelo
ombro lindo e firme em que posso me apoiar (eu te amo pra caralho).
À Liron, obrigada por ser tão brilhante, inspiradora e, acima de tudo, uma
verdadeira amiga e uma pessoa tão maravilhosa. Obrigada por me
encorajar a ouvir as minhas músicas, e mais do que tudo, por me fazer
apreciá-la ainda mais – não tenho nem palavras.
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