Você está na página 1de 394

Levei uma vida inteira para criar coragem e adquirir a

lucidez para escrever este livro de memórias. Eu desejo


contar a história desses momentos – dos altos e baixos, dos
triunfos, dos traumas, dos fracassos e dos sonhos, e de todas
essas coisas que contribuíram para que eu me tornasse a
pessoa que sou hoje.

Embora existam muitas histórias sobre mim, sobre a minha


carreira e vida pessoal, é impossível falar com profundidade
sobre as minhas complexidades numa matéria de revista ou
numa entrevista de TV de dez minutos. E, mesmo assim, as
minhas palavras eram interpretadas de forma diferente pelas
pessoas, satisfazendo e muito a tarefa delas em tentar me
definir.

Esse livro é composto com as minhas memórias, os meus


percalços, as minhas lutas, a minha busca por sobrevivência
e sobre as minhas músicas. Mergulhei fundo na minha
infância e dei àquela menina assustada dentro de mim uma
grande voz. Eu dei voz à adolescente ambiciosa e
abandonada, e a mulher traída e vitoriosa que eu me tornei
pode agora contar a sua história.

Escrever este livro de memórias foi extremamente difícil,


mas a experiência me trouxe grande humildade e me
proporcionou muita cura.

Eu sinceramente espero que vocês possam ter um novo


entendimento, não apenas sobre mim, mas também sobre a
resiliência do espírito humano. Com amor,
Aos meus filhos e descendência, Roc e Roe,
Vocês são a expressão do amor incondicional.

Para todos os meus antepassados...


Vocês podem ter feito parte de dois mundos diferentes
que se chocavam um com o outro,
porém, o melhor de vocês vive dentro de mim,
finalmente, de forma harmoniosa.

E para a Pat, a minha mãe, que, apesar de tudo,


acredito que realmente fez o melhor que pôde.
Eu vou te amar o máximo que puder, sempre.

Tradução: Kálio Barbosa


A fé é o fundamento da esperança,
é uma certeza a respeito do que não se vê.

Hebreus 11, 1
PREFÁCIO

Eu desconsidero o tempo, como todos sabem. Já contei muitas piadas e fiz


muitos memes a respeito, mas é algo que eu acredito de verdade. Chorei no
meu aniversário de dezoito anos, porque eu me achava uma fracassada por
ainda não ter um contrato com uma gravadora. Esse era o meu único objetivo.
A sensação que eu tinha era a de estar prendendo a respiração, pelo simples
fato de não segurar uma coisa física, um CD que tivesse o nome “Mariah Carey”
na capa. Assim que eu fui contratada por uma gravadora, eu pude finalmente
soltar a respiração, e aí a minha vida começou. Daquele dia em diante, eu
passei a calcular a minha vida por meio dos meus CDs, experiências
criativas, realizações profissionais e feriados. Natal após natal,
acontecimentos após acontecimentos, festas após festas, eu venho
desconsiderando os meus aniversários ou idade. (Para o grande
descontentamento de algumas pessoas.)

A vida me ensinou um jeito próprio de viver neste mundo. Por que


arruinar a experiência focando no passar do tempo? Tanta coisa aconteceu
comigo antes mesmo que soubessem o meu nome, o tempo parece uma
forma inadequada de medir ou registrar a minha experiência! Não viver com
base no tempo também se tornou uma forma de eu me manter fiel a mim
mesma, de manter viva a minha criança interior e de mantê-la por perto. É
por isso que eu mantenho vivos personagens como o papai noel, a fada do
dente e a Tinker Bell (sininho). Eles me fazem lembrar que podemos ser
atemporais.

É um desperdício ficar obcecado pelo tempo. Muitas vezes, o tempo pode


ser ruim, dahling, então por que escolher viver nele? A vida é definida pelos
momentos que criamos e lembramos. A minha memória é um lugar sagrado,
uma das poucas coisas que pertence inteiramente a mim. Este livro de
memórias é uma coleção dos momentos que importa, os momentos que
contam com mais precisão a história de quem eu sou, pelo meu ponto de vista.
Um livro de acontecimentos e momentos que acrescentam ao significado de
quem eu sou agora.
Mas, me pergunto, quem está cronometrando?
SUMÁRIO
1º PARTE - UMA CRIANÇA MARCADA

Uma Intenção ............................................................................................... 2


Existência ..................................................................................................... 4
Eu Fecho Os Meus Olhos............................................................................. 6
Milagres Podem Acontecer ......................................................................... 11
Quando Chegar O Natal ............................................................................. 15
O Pai E O Sol ............................................................................................. 20
Colorindo Fora Da Linha............................................................................. 33
Hodel .......................................................................................................... 38
Luz Da Minha Vida ..................................................................................... 41
Chá De Dente-De-Leão .............................................................................. 61
Desembaraçados E Penteados .................................................................. 75
O Melhor Amigo De Uma Garota ................................................................ 85
2º PARTE - SING. SING.

Um Prelúdio Para Sing Sing ....................................................................... 96


Amando Sozinha ........................................................................................ 98
Faça Acontecer ........................................................................................ 105
Cherchez La Femme (Procure A Mulher) ................................................. 120
Princesa. Prisioneira. ................................................................................ 125
Uma Família ............................................................................................. 136
O Meu Casamento Bafônico Com A Sony (E A Minha Lua De Mel Uó).... 145
O Dia De Ação De Graças Está Cancelado .............................................. 154
Fantasia.................................................................................................... 160
Em Uma Noite De Verão, Nós Fugimos Por Alguns Instantes .................. 170
Efeitos Colaterais ..................................................................................... 178
O Homem Da Cidade De Kalamazoo ....................................................... 188
Sem Amarelar .......................................................................................... 193
O Último Show Em Sing Sing ................................................................... 200
Assim Como Mel ...................................................................................... 203
Visitando O Presidente ............................................................................. 215
3º PARTE - ALL THAT GLITTERS (TUDO QUE RELUZ)

A SAGA GLITTER

Firecracker ............................................................................................... 224


Morta, Porém Viva .................................................................................... 229
Desgraça E Pêlo De Cachorro.................................................................. 245
Colapso Nervoso ...................................................................................... 253
4º PARTE - EMANCIPAÇÃO

A Minha Prima Vinny ................................................................................ 267


O Elvis Latino ........................................................................................... 276
A Minha Emancipação .............................................................................. 279
O Pai E O Pôr Do Sol ............................................................................... 285
Preciosa – Uma História De Esperança.................................................... 291
Divas ........................................................................................................ 294
Um Pouco Sobre Alguns Homens Bons ................................................... 304
Os Meus Bebês ........................................................................................ 310
Globo De Neve De Alegria ....................................................................... 320
Epílogo ..................................................................................................... 323
FOTOGRAFIAS .......................................................................................... 325

AGRADECIMENTOS .................................................................................. 384


1° PARTE

UMA CRIANÇA MARCADA


UMA INTENÇÃO

A minha intenção era a de mantê-la segura, mas talvez eu só tenha


conseguido aprisioná-la.

Por muitos anos, ela esteve presa dentro de mim – sempre sozinha,
escondida à plena vista de muitas pessoas. Traços dela são vistos em meus
primeiros trabalhos: muitas vezes ela pode ser vista olhando pela janela,
diminuída por uma enorme moldura, descalça, olhando para um balanço
vazio em movimento em uma árvore solitária diante de um céu escuro de
cor roxa. Ou então ela se encontra no segundo andar de uma casa
geminada de arenito vermelho, observando as crianças do bairro dançando
na calçada abaixo. Essa menina foi vista no auditório de uma escola com
um macacão OshKosh, segurando uma bola de lado, esperando e
desejando ser escolhida. Às vezes ela é vista em um raro momento de
alegria, em uma montanha-russa ou patinando com as mãos para o alto.
Porém, ela sempre mantém um desejo reprimido nos olhos. Ela esteve
assustada e sozinha por muito tempo, e mesmo com toda a escuridão, ela
nunca perdeu o seu brilho. Ela se fez conhecer através de suas canções –
os seus anseios ouvidos nas estações de rádio ou vistos nas telas de TV.
Milhões de pessoas sabem quem é ela, mas nunca a conheceram.

Ela é a pequena Mariah, e grande parte dessa história será sobre ela e
como ela a vivenciou.

Momentos de violência fazem parte das minhas primeiras lembranças e


por isso sempre usei um disfarce na tentativa de esconder grande parte da
minha infância. Tem sido um fardo. Mas eu não aguento mais o peso desse
disfarce e o silêncio da menininha que sufoca diante disso. Agora eu sou
uma mulher adulta, com uma filha e um filho. Eu vi muitas coisas: eu tive
medo; fui ferida e cicatrizei... Eu sobrevivi! Eu usei a minha voz através da
música para inspirar outras pessoas e também para libertar o meu eu
adulto. Eu ofereço este livro, em grande parte, com a finalidade de
emancipar a menininha assustada dentro de mim. É hora de dar voz a ela,
de deixá-la contar a sua história exatamente como a vivenciou.

2
Embora você não possa contestar a experiência de vida de alguém, sem
dúvida, os detalhes desse livro serão diferentes dos relatos da minha
família, amigos e muitas pessoas que pensam que me conhecem. Eu vivi
esse conflito por muito tempo e também estou farta disso. Eu tentei calar a
garotinha buscando proteger os outros. Até aqueles que nunca tentaram
me proteger. Apesar dos meus esforços para dar a volta por cima, ainda
acabaram me puxando o tapete, me processando e me roubando. No final,
eu só machuquei mais ainda a garotinha, e isso quase a matou.

Esse livro é uma prova da resiliência de meninas e meninos silenciados


por toda parte, é um modo insistente de dizer que acreditamos neles, é um
modo de honrar as suas experiências e contar as suas histórias. É um livro
para libertá-los.

3
EXISTÊNCIA

Logo no início, você lida com


O fato de que você não
Tem um lugar
Para se encaixar e
Reconhecer que nasceu para existir,
Totalmente sozinho

–“Outside”

Houve uma época em minha infância onde eu já cheguei a acreditar que eu


não era digna de viver. Eu era muito jovem para pensar em cometer suicídio,
mas tinha idade suficiente para saber que eu não tinha começado a viver ainda
e que nem tinha encontrado o meu lugar. Em nenhum lugar do meu mundo eu
via alguém que se parecesse comigo ou refletisse como eu me sentia por
dentro.

Na minha família tem a minha mãe, a Patricia, uma mulher de pele mais
clara e de cabelo mais liso, e o meu pai, o Alfred Roy, um homem de pele
mais escura e de cabelo mais crespo, mas que, no entanto, não possuíam
feições semelhantes às minhas. Os dois viviam cheios de arrependimento
– reféns de inúmeras situações ruins. Tem também a minha irmã, a Alison,
e o meu irmão, o Morgan, que eram mais velhos e mais morenos do que eu.
Os dois possuíam uma energia pesada semelhante que parecia bloquear a
luz. Eu tinha uma tendência natural para devaneios e fantasias, entretanto,
os meus irmãos eram o oposto disso. Tínhamos sangue em comum, mas
eu me sentia uma estranha no meio deles, uma intrusa na minha própria
família.

Eu vivia sempre com medo quando eu era criança, e a música era a


minha fuga. A minha casa tinha um ar pesado, cheia de gritos e caos.
Quando eu cantava em sussurros, isso me acalmava. Eu encontrei um lugar
calmo, suave e leve dentro da minha voz – uma vibração em mim que me
dava um doce alívio. Cantar sussurrado era a minha canção de ninar
secreta para mim mesma.

Mas, através do canto, eu também encontrei algo em comum com a


minha mãe, uma cantora de ópera treinada pela Juilliard. Enquanto eu a
ouvia fazer exercícios vocais em casa, a repetição das escalas parecia um
4
mantra, que acalmava a minha mente assustada. A voz dela subia e descia,
até que se elevava sem parar – e algo dentro de mim se elevava juntamente
com a voz dela. (Eu também cantava a música “Lovin’ You” da Minnie
Riperton, que é uma linda canção angelical de ritmo soul, e eu
acompanhava o tom da voz dela até as nuvens.) Eu cantava pequenas
melodias pela casa, para a alegria da minha mãe. E ela sempre me
incentivava. Um dia, enquanto ela praticava uma ária de ópera chamada
Rigoletto, ela não conseguia fazer direito essa parte e aí eu comecei a cantar
do jeito certo para ela, em italiano perfeito. Eu devia ter uns três anos. Ela
olhou para mim, chocada, e a partir daquele momento eu percebi que ela
passou a me notar. Eu agora era mais do que uma garotinha para ela. Eu
era a Mariah. Uma musicista.

O meu pai me ensinou a assobiar antes mesmo de eu saber falar.


Mesmo naquela época, eu já tinha uma voz rouca, e eu gostava disso
porque a minha voz era diferente da maioria das outras crianças da minha
idade. Mas quando eu cantava, a minha voz era suave e forte. Um dia,
quando eu tinha mais ou menos oito anos, eu passeava na rua com a minha
amiga Maureen, que tinha uma pele de porcelana com cabelos castanhos
brilhosos e um rosto meigo como o da Dorothy de O Mágico de Oz. Ela era
uma das poucas garotinhas brancas do bairro que podiam brincar comigo.
Enquanto a gente andava, eu comecei a cantar alguma coisa. Ela parou de
repente, paralisada na calçada. Ela me ouviu por um momento em silêncio,
muito quieta. Finalmente, ela se virou para mim e disse, de forma bem clara:
“Quando você canta, parece que há instrumentos em você. Há música em
sua voz.” Ela disse isso como uma proclamação, quase como uma oração.

Dizem que Deus fala através das pessoas, e sempre serei grata pela
minha amiguinha falando ao meu coração naquele dia. Ela viu algo especial
em mim e expressou com palavras, e eu acreditei nela. Eu acreditei que a
minha voz era feita de instrumentos – piano, cordas e flautas. Eu acreditei
que a minha voz poderia ser música. Tudo que eu precisava era de que
alguém me visse e ouvisse.

Eu percebi como a minha voz poderia fazer outras pessoas sentirem algo
bom em seu interior, algo mágico e transformador. Isso queria dizer que eu
não era descartável, e sim que eu tinha o meu valor como pessoa. Eis aqui
então algo de valor que eu poderia oferecer aos outros – o sentimento. E
seria o sentimento que eu buscaria encontrar durante toda a vida. Foi o que
me deu uma razão para existir.

5
EU FECHO OS MEUS OLHOS

Foram necessários doze policiais para separar o meu irmão e o meu pai.
Dois homens de corpos enormes emaranhados e girando como um furacão
em movimento, colidindo violentamente na sala de estar. Em um segundo,
a minha imagem de família sumiu de vista – não havia mais janelas, nem
chão, nem móveis e nem luz alguma. Tudo o que eu conseguia ver era um
bolo caótico de pernas e braços se movendo: calças escuras e braços fortes
saindo de mangas escuras, mãos enormes agarrando, punhos dando
socos, membros emaranhados destruindo tudo pelo caminho, sapatos
pretos, grandes e polidos chutando por toda parte e pisando forte. Eu vi
flashes rápidos de coisas brilhantes: botões, crachás e armas. Vi também
cerca de uma dúzia de cabos rígidos de pistola, saindo de coldres de couro
fosco, alguns segurados na palma da mão, e outros pendurados em largos
cintos pretos em quadris largos. O ar ficou pesado com sons de
xingamentos, grunhidos e uivos. A casa inteira parecia estar tremendo. E
em algum lugar dessa confusão toda estavam as duas figuras masculinas
mais importantes de toda a minha vida, destruindo um ao outro.

Eu sempre comparava a raiva do meu irmão com o clima – algo


poderoso, destrutivo e imprevisível. Não sei dizer se foi um único trauma ou
vários fatores que desencadearam a sua instabilidade, mas era tudo o que
eu conhecia. Eu era uma garotinha com poucas lembranças de um irmão
mais velho que a protegia. Muito mais vezes, eu sentia que eu precisava me
proteger dele e às vezes me pegava protegendo a minha mãe dele também.

Porém, essa briga em particular com o nosso pai havia sido mais intensa
do que a maioria. De uma disputa de gritos, uma sucessão de socos
aconteceu em seguida; o que pareceu uma questão de segundos. Eles
entraram na sala aos socos e pontapés, derrubando coisas e deixando
estragos pelo caminho. Naquele momento, a raiva entre o meu pai e o meu
irmão foi tão forte que ninguém poderia ter impedido. Ninguém teria tido
coragem.

Quando eu era criança, eu desenvolvi o instinto de sentir quando brigas


estavam prestes a ocorrer. Assim como sentir o cheiro da chuva que se
aproxima, eu sabia quando era briga na certa, e que eu tinha que me
proteger quando os adultos começavam a gritar, e também com o
desenrolar dos acontecimentos. Quando o meu irmão estava por perto, não
6
era estranho ter buracos nas paredes com os socos dele ou arremesso de
objetos pelos ares. Eu nunca soube realmente como ou por que as brigas
começavam, mas eu sentia quando uma tensão estava para se tornar em
uma discussão e quando uma discussão estava prestes a se tornar uma
briga corporal. E eu sentia que essa briga em particular seria das grandes.

A minha Nana Reese estava hospedada na nossa casa, o que era um


pouco estranho, pois era raro que ela ou alguém da família do meu pai, que
morava no Harlem, ficasse conosco. Morávamos em Melville, uma cidade
vizinha predominantemente branca e rica do condado de Suffolk, em Long
Island, Nova Iorque, embora eu tivesse me mudado umas treze vezes
enquanto crescia. Treze vezes tive que fazer as malas e ir embora, para
tentar encontrar outro lugar – um lugar melhor, um lugar mais seguro. Treze
novos começos, treze novas ruas com novas casas cheias de gente para te
julgar e se perguntar de onde ou quem é o seu pai. Treze ocasiões para ser
rotulada como insignificante e descartável, para ser colocada de escanteio.

A pastora Nana Reese, o bom reverendo Roscoe Reese e a sua Igreja


Pentecostal Metodista de origem africana foram de onde o meu pai veio. O
Roy era o único filho da Addie, irmã de Nana Reese. O meu pai nunca
morou com o meu avô e sempre houve uma grande distância entre eles,
um mistério que inevitavelmente carregava consigo uma grande tristeza.
Essas pessoas, que vivem na região do Harlem, eram o povo dele. Eles
tinham vindo do Alabama, de outros lugares da Carolina do Norte e outras
regiões do Sul, trazendo consigo tradições, traumas e dons – alguns dos
quais eram de uma antiga origem mística africana.

A Nana Reese e eu estávamos juntas antes que a briga infernal


acontecesse de vez. A quantidade de palavrões, socos e pontapés abafou
todos os sons em volta, então eu não ouvi quando os policiais chegaram.

Eu não sabia se eles tinham vindo para nos salvar ou nos matar. Estou
falando de Long Island na década de 70, e dois homens negros estavam
brigando – o fato da polícia estar presente quase nunca significava que a
ajuda havia chegado. Pelo contrário, a presença de policiais muitas vezes
complicava a situação e aumentava ainda mais o terror e a violência. Isso
ainda não mudou hoje em dia, mas esta foi a minha primeira experiência. A
minha primeira experiência com a polícia não foi nada boa; eu não me
beneficiei com nada. A minha prima Lavinia, filha da Nana Reese, sempre
dizia: “Vocês crianças passam tudo de ruim por serem negros, mas nunca
sentem o lado bom disso”. Eu levei muito tempo para entender a realidade
do comentário dela.

7
Essa, é claro, não foi a primeira briga violenta entre o meu pai e o meu
irmão – desde que eu me entendo como gente, a relação deles tinha sido
uma zona de guerra, mas foi a primeira vez que se chamou a polícia. Foi
também a primeira vez que eu senti que um membro da minha família
poderia morrer brutalmente diante dos meus olhos. Ou que eu também
poderia morrer. Eu nem tinha quatro anos ainda.

Antes do casamento da minha mãe e do meu pai se tornar insuportável,


eles moravam juntos em Brooklyn Heights. Embora muitos boêmios1
tivessem se mudado para o bairro por volta de 1910, e a década de 50
tivesse trazido consigo uma onda de ativistas urbanos – liberais
endinheirados que odiavam os subúrbios – na década de 70 o bairro ainda
era uma mistura bastante eclética, em sua grande maioria, de
trabalhadores de famílias de classe média. Era uma época anterior aos
playboys e patricinhas da vida e a área ainda não era valorizada. Se existia
um lugar tolerante para uma jovem família de raça mista naquela época,
Brooklyn Heights era provavelmente o mais próximo que se podia chegar.

Ao longo da minha infância, eu morei em muitos lugares duvidosos,


principalmente em Long Island, e eu me sentia como se eu fosse uma
náufraga nesta ilha de Manhattan afastada do litoral. Os meus pais
trabalharam muito para que nós pudéssemos morar em bairros onde
tivéssemos a noção vaga de uma “vida melhor” e que nos sentíssemos
“seguros”. Porém, é de conhecimento geral que as palavras “melhor” e
“seguro” são sinônimas da classe branca.

Não éramos uma família convencional. Será que era melhor mesmo
morar em um lugar onde a minha mãe branca tinha que entrar sozinha
primeiro pela porta da frente, para que só então o meu pai negro pudesse
entrar com os seus filhos birraciais – para a nossa própria segurança? O
que esse tipo de coisa faz com a psiquê de um homem que tem como
responsabilidade ser o chefe da casa? Como um homem assim pode
manter a sua família segura? Que tipo de imagem o meu irmão teria do
próprio pai ao vê-lo ser tratado com tanta indignidade só por ser negro?

1 Boêmios: é um adjetivo que caracteriza o comportamento de um indivíduo que vive


despreocupadamente, que gosta de sair pelas ruas a procura de festas. Com um sentido
pejorativo, uma pessoa boêmia leva uma vida sem regras, padrões ou limites; mas no
sentido bom da palavra, é uma designação para uma vida hedonista, alegre e livre.
8
Depois que os policiais conseguiram separar o meu pai e o meu irmão,
embora ainda houvesse bastante gritos, todos continuavam vivos. A
confusão chegara ao seu fim; o perigo real havia acabado. Logo depois, eu
tomei consciência de estar aninhada nos braços da Nana Reese, chorando
e tremendo. Ela me pegou e segurou como se faz com uma trouxa de roupa
suja e me colocou sentada num sofá perto dela, no que nós crianças
costumávamos chamar de “sofá de balanço”, uma estrutura frágil e barata
da cor de sujeira, ferrugem e azeitona, pontilhada com manchas de
mostarda. Às vezes eu acho que foi aquele sofá que me fez me interessar
pela Chanel. Nós crianças chamávamos o sofá de “sofá de balanço” porque
estava faltando uma perna nele, e caso se colocasse o nosso peso para
frente e para trás, o sofá balançava. Foi uma tentativa nobre de encontrar
humor diante de tantos traumas, um talento que tanto eu quanto os meus
irmãos tínhamos em comum. Em meio à violência e ao trauma, aquele triste
sofá me dava grande conforto.

A Nana Reese me segurou com força até o meu pequeno corpo parar de
tremer e a minha respiração voltar ao normal. Depois da confusão, eu voltei
para a sala, o meu eu voltou para o meu corpo. Ela virou o meu rosto em
direção à luz e se certificou de que os meus olhos estavam focados e fixos
nos dela. Ela colocou a sua mão delicada firmemente na minha coxa. Assim
que ela me tocou, qualquer tremor que eu porventura tivesse, imediatamente
se estabilizou. O olhar dela era incomum – não o de uma tia avó, nem de
uma mãe ou de um médico. Em vez disso, era como se ela olhasse
diretamente para a minha essência. Naquele instante, eu não era mais uma
garotinha assustada e nem ela uma idosa que me consolava, mas éramos
duas almas, sem idade e iguais.

Ela me disse: “Não tenha medo de todos os problemas diante de você.


Todos os seus sonhos e visões vão se tornar realidade. Sempre lembre-se
disso.”

Enquanto ela falava, uma sensação quente e cheia de amor saiu de sua
mão até a minha perna, suavemente percorrendo o meu corpo como ondas
e subindo até a minha cabeça. Mesmo com toda essa confusão, um
caminho foi aberto; eu sabia que havia luz ali. E de alguma forma eu sabia
que aquela luz era minha e era eterna. Antes daquele momento, eu não
tinha tido nenhum sonho que pudesse me lembrar. Eu também tinha
pouquíssimas memórias. Eu certamente ainda visualizaria algo e ouviria
uma música em minha cabeça.

Por volta dos meus quatro anos de idade, após o divórcio dos meus pais,
eu não via tanto a minha Nana Reese mais. A minha mãe e a família do meu
9
pai viviam em constante conflito e, como eu morava com a minha mãe, fui
em grande parte isolada da vida de cura e santidade da Nana do Harlem.
Mais tarde, eu descobri que as pessoas chamavam a Nana Reese de
“profetisa”. Eu também ouvi falar que ela não era a única que tinha o dom
de cura dos meus antepassados. Além de tudo isso, eu acredito que uma
fé profunda foi despertada em mim naquele dia.

Eu entendi, espiritualmente, que não importa o que aconteça comigo,


ou ao meu redor, há algo vivo dentro de mim e que sempre poderei contar.
E que esse algo me guiaria diante de qualquer dificuldade.

E quando o vento soprar e as sombras se aproximarem


Não tenha medo, não há nada que você não possa enfrentar
E se caso te disserem que você nunca vai superar
Não hesite, mantenha-se firme e diga
Eu consigo superar as adversidades

–“Through The Rain”

10
MILAGRES PODEM ACONTECER
Quando eu tinha seis anos, a minha mãe, o meu irmão e eu nos
mudamos para uma casa humilde e minúscula em Northport, Long Island.
Ela foi construída sobre uma pilha de degraus de concreto longos e
sinuosos.

Tinha alguns cômodos minúsculos que percorriam cada lado de uma


escada íngreme e rangente dessa simples casa, que levava a cômodos
ainda menores. A minha mãe costumava trabalhar ou sair à noite, então o
Morgan ficava cuidando de mim. Ele não sabia cuidar de mim. Ele me
deixava sozinha em casa e ia atrás de aventuras com os seus amigos
adolescentes. Uma noite, enquanto eu estava sozinha e assistindo um
especial de programa de TV 20/20 sobre crianças sequestradas –
totalmente inapropriado para uma criança de seis anos, aconteceu que,
naquele momento, alguns garotos do bairro resolveram jogar pedras na
janela. As vozes deles, aos berros, romperam o silêncio da noite escura:
“Mariah, vamos pegar você!” Eu estava morrendo de medo, tanto das
notícias quanto dos meninos; eu estava com medo da noite, da casa, da
minha solidão absoluta.

Eu queria que o meu irmão me amasse. Eu me impressionava com a


sua forte energia, mas ela também me assustava. Esta pequena casa não
conseguiria suportar o fardo de toda a nossa dor e medo – especialmente
do meu irmão. Foi uma época tão difícil. Eu era uma garotinha assustada, a
minha mãe estava desolada e o meu irmão – bem, digamos apenas que ele
era mais do que simplesmente um adolescente rebelde, especialmente no
ensino médio. De um sentimento de raiva durante os seus últimos anos de
escola, ele passou a ter ira total ao terminar o ensino médio. Quando o meu
irmão era adolescente, ele era uma promessa tanto para o mundo da arte
quanto para o atletismo. Porém, no início de sua vida, ele havia sofrido
bullying e foi espancado por ter uma deficiência e por ser mestiço. A
diferença visível da sua cor de pele sempre o distanciava dos meninos
brancos de Long Island e o tornava um alvo. Crianças podem ser ruins, mas
quando a simples maldade se junta com o racismo, assume uma
brutalidade peculiar, muitas vezes apoiada (e aprendida com) adultos.
Provavelmente, o meu irmão sofreu nas mãos de crianças negras também.
Tenho certeza de que pelo tom de pele do meu irmão ser mais claro do que
a cor negra – já que os negros são agredidos pelos policiais sem motivo
nenhum – tenha despertado neles uma raiva que se manifestava através
de agressões físicas e xingamentos.

11
O meu irmão, muito jovem, ficou em pedaços, e a única coisa que ele
tinha para se defender era sendo violento. Ele brigava com tudo, com os
seus próprios traumas e com todos em volta, especialmente com o nosso
pai. A relação que ele tinha com o nosso pai não o ajudou a remendar os
pedaços quebrados – em vez disso, o puniu ainda mais em sua indignação
interior. Um pai traumatizado não consegue ajudar o seu filho problemático.
Despedaçaram o meu irmão e jogaram os pedaços ao vento. Os métodos
antiquados de disciplina militar do nosso pai eram inadequados para ajudá-
lo a se recompor e prepará-lo para a maturidade. O mal-entendido e a
distância emocional com o nosso pai eram a agonia perpétua e sufocante
do meu irmão, tendo como resultado uma ira sem fim dentro dele.

Durante a maior parte da minha infância, eu me senti presa entre a fúria


do meu irmão e a busca triste e incessante da minha mãe por algo. Raiva e
desânimo são altamente prejudiciais, mas, penso eu, que um desses
sentimentos se expressa internamente e o outro se expressa externamente.
Quando eles colidem, pode ser um desastre. Na época que eu estava no
jardim de infância, desastres do tipo já eram rotina para mim. Quando
morávamos em Northport, pequenas brigas ocorriam entre a minha mãe e
o meu irmão diariamente. Eu me condicionei a ficar quieta e a esperar que
as brigas passassem. Na maior parte do tempo, eu ignorava as palavras e
os motivos por trás de suas brigas – o “porquê” era território de gente
grande. Para mim, as suas discussões eram apenas berros sem sentido,
repletas dos xingamentos mais terríveis.

Certa noite, porém, eu soube o porquê da discussão: o meu irmão queria


usar o carro da minha mãe e ela não permitiu. Com certeza eles já tinham
brigado bastante por causa do carro, mas por algum motivo esta noite
parecia diferente. Eu estava prestando atenção. Normalmente, as brigas
entre eles começavam do jeito que eu imaginava que as brigas normais
entre a maioria dos adolescentes e pais começavam, mas não foi assim
dessa vez. Já começou com baixaria e rapidamente obscenidades violentas
foram lançadas pela sala. Palavras dolorosas voavam de um lado para o
outro como balas ricocheteando nas paredes, ganhando força a cada nova
rodada. Não havia como escapar do fogo cruzado; gritos vinham de quarto
em quarto, subindo e descendo as escadas, e toda a casa se tornou um
campo de batalha. Não havia lugar seguro. Eu senti o ar apertar quando a
minha mãe e o meu irmão ficaram cara a cara, meros centímetros de
distância de raiva intensa entre eles. Eu estava apavorada. O meu corpo
inteiro enrijeceu. Com os olhos bem abertos, olhei fixamente para o espaço
entre eles e gritei: “Parem com isso! Parem!” repetidas vezes, em meio às
lágrimas. Eu esperava que talvez o meu grito pudesse entrar naquele
espaço e desarmá-los por um momento.
12
De repente, escutei um barulho alto e agudo, como de um tiro de
verdade. O meu irmão empurrou a minha mãe com tanta força que o corpo
dela se chocou contra a parede, fazendo um barulho alto de estalo. Eu vi o
corpo dela enrijecer; por um momento ela pareceu estar congelada contra
a parede, pendurada como uma pintura, seus pés levantados vários
centímetros acima do chão. Em seguida eu percebi que ela estava
totalmente mole, como se os seus ossos tivessem derretido, ao dobrar-se
no chão. Foi uma fração de segundos. Foi uma eternidade. Meus olhos ainda
estavam fixos no lugar, só que agora eu estava olhando para a minha mãe
desabada como uma trouxa de roupas amassada no chão. O meu irmão saiu
pisando forte e bateu a porta, fazendo a casa tremer uma última vez, e saiu em
disparada no carro dela.

Eu fiquei quieta por um momento em um silêncio assustador. Eu


conseguia me ouvir respirando, mas eu não sabia dizer se a minha mãe
ainda estava. Eu tive um momento de lucidez que me fez arrepiar, do
mesmo modo que uma recordação boa da minha infância tinha ido embora.
Sem tirar os olhos da minha mãe imóvel, eu me recompus. Ao pegar o
telefone, o senti pesado e frio, encostado na minha pequena orelha. Os meus
dedinhos discavam os botões quadrados de um número familiar. Era o
número de uma das amigas da minha mãe, cuja casa ela às vezes visitava
para passear. Como eu tinha apenas seis anos, o dela foi um dos poucos
números que eu memorizei.

Ao limpar a minha voz para que eu pudesse ser ouvida no zumbido


estático do telefone, engasguei com as minhas lágrimas, e fiz o possível
para dizer a ela com calma: “O meu irmão machucou muito a minha mãe e
eu estou sozinha em casa. Por favor, venha nos ajudar.” Não me lembro do
que ela disse. Desliguei o telefone, mas ainda estava focada, os meus olhos
ainda fixos no corpo da minha mãe. Eu entrei em uma espécie de transe.

Não sei quanto tempo fiquei ali, só que saí de lá ao som de uma batida
forte na porta. Corri para abrir a porta para a amiga da minha mãe, e vários
policiais entraram correndo. Eu não conseguia entender o que ninguém
estava dizendo, mas observei enquanto eles corriam para onde a minha
mãe estava deitada. Em seguida percebi que ela estava se movendo. No
momento em que percebi que ela estava viva, a sensação de choque se
desfez e uma onda de medo e pânico tomou conta de mim – a compreensão
do que realmente aconteceu, o que quase aconteceu e o futuro
desconhecido que me esperava. Me abaixei e envolvi o meu pequeno corpo
com os meus braços, ficando no formato de uma bola, abracei a mim
mesma com força e comecei a chorar baixinho. Eu conseguia ouvir o som
fraco da voz da minha mãe enquanto ela voltava à consciência. Então eu
13
ouvi a voz de outra pessoa, falando acima da minha cabeça. Era a voz de
um homem, uma voz que eu nunca vou esquecer.

Um dos policiais, olhando para mim, mas falando com outro policial ao
lado dele, disse: “Se essa garota sobreviver, será um milagre”. E naquela
noite, me tornei menos criança e passei a ser mais um milagre.

14
QUANDO CHEGAR O NATAL

Eu não quero muito para o natal


Eu preciso somente de uma coisa
Eu não me importo com os presentes
Debaixo da árvore de natal

–“All I Want for Christmas Is You”

A minha mãe colocou uma aba extra na pequena mesa de madeira para
torná-la maior, e quase que ela ficou do tamanho família para o grande dia.
Com algumas decorações simples, a mesa se tornou a peça central para a
celebração, junto com uma árvore de natal feinha do estilo que se vê no
desenho do Charlie Brown, de uma sala de estar mobiliada um tanto
improvisada na casa deteriorada onde nós duas morávamos. Apesar das
nossas circunstâncias, a minha mãe queria que nós tivéssemos uma “vida
maravilhosa”.

Os dias que antecediam o natal eram um grande acontecimento. A minha


mãe sempre usava um calendário para contar os dias até o natal. Virávamos
uma nova página a cada dia. Eu lia o trecho de uma história ou poema
impresso ali, e ela me dava os chocolates escondidos lá de dentro. O vinho
aquecido que ela preparava camuflava a umidade da casa com um aroma
quente e picante. Eu sabia que não tínhamos muito dinheiro, então, embora
eu nunca realmente esperasse receber presentes caros ou brinquedos
populares, eu adorava o esforço feito para que todos entrassem no espírito,
fazendo-se o possível para criar um ambiente de alegria e júbilo. Nós
limpávamos, decorávamos a casa e, claro, cantávamos. Músicas de natal
cantadas com a voz de ópera da minha mãe traziam uma sensação de
grandeza ao minúsculo espaço da nossa morada.

A minha mãe na cozinha não era lá essas coisas, mas para o jantar de
natal ela se arriscava – nós duas nos arriscávamos. A gente tentava colocar
de lado todo o trauma e drama que nos fizeram mal durante todo o ano e
buscávamos apenas fazer uma refeição de natal tranquila. Será que era
pedir muito? Eu acho que não. Eu era uma criança que desejava viver uma
infância sadia, mas em vez disso eu morava numa casa cheia de
decepções e dores.

Ao longo dos anos, a minha irmã e o meu irmão mal se falavam, muito
15
menos vinham visitar a mim e a minha mãe. O natal era uma rara ocasião
em que nos reuníamos sob o mesmo teto frágil. Nós quatro nos sentávamos
à mesa, evitando olhar um para o outro, muitas vezes sem conseguir falar,
fartos com todas as coisas que nenhum de nós conseguia expressar. Eu era
muito jovem e não havia acontecido tanta coisa ruim assim comigo para que
me traumatizasse. Os meus irmãos e a minha mãe mal se falavam na maior
parte do ano, então, na ceia de natal, o meu irmão e a minha irmã chegavam
cheios de mágoa e raiva, carentes de atenção. No fim, todos acabavam
explodindo e xingando um ao outro intensamente. Eu ficava sentada no
meio do caos, chorando e desejando: desejando que eles parassem de
gritar, desejando que a minha mãe conseguisse interromper a gritaria e os
xingamentos dos meus irmãos. Desejando estar em algum lugar seguro e
alegre – algum lugar que realmente parecesse com o natal.

A minha irmã e o meu irmão claramente não suportavam um ao outro,


mas a grande mágoa deles contra mim era uma ameaça constante e
silenciosa que aumentava gradativamente. Eu era a terceira dos filhos e a
mais nova, e os nossos pais se divorciaram quando eu tinha três anos. Eu
era o que eles consideravam uma criança de ouro: cabelos mais claros, pele
mais clara e um espírito mais leve. Eu morava com a nossa mãe, e eles
foram separados um do outro e de nós. O tipo de dor deles era diferente,
era uma dor de crianças problemáticas que se sentiam menos amadas por
serem birraciais, era uma dor que absorvia qualquer hostilidade onde quer
que morassem, fosse o bairro para negros ou brancos. Eu achava que eles
acreditavam que eu estava fingindo ser branca. Lá estava eu com o meu
cabelo loiro, morando com a nossa mãe branca, no que eles consideravam
um bairro branco e seguro. A grande mágoa deles em relação a mim era
talvez a única coisa que eles tinham em comum; eles pareciam presos
naquela amargura. Eu realmente entendia porque eles tinham raiva e ódio
de mim, mas na época, eu não conseguia entender por que todos os anos,
eles simplesmente tinham que estragar o natal.

Mas a intensidade do meu desejo era mais forte do que a dor deles. Eu
comecei a criar o meu próprio mundinho mágico e alegre de natal. Passei a
focar em todas as coisas que a minha mãe lutou para criar; tudo que eu
precisava era de uma chuva de purpurina e um coral inteiro de igreja para
me dar apoio. O meu natal imaginário estava cheio de papai noel, renas,
bonecos de neve e todos os sinos e enfeites que os sonhos de uma menina
podiam conter. Eu adorava contemplar o Menino Jesus, e absorver a
poderosa alegria que o verdadeiro espírito da época traz consigo.

Porém, a minha família não estragava o natal toda vida.


16
Quando eu era mais nova, a minha mãe era uma pessoa de mente
aberta, com um grupo diversificado de amigos. Eu lembro que eu tinha uma
amiga – vamos chamá-la de Ashley – cuja mãe era lésbica (a Ashley não
fazia ideia). A minha mãe ia direto ao assunto: “A mãe da Ashley é lésbica
e mora com a namorada” e isso não tem nada demais. Realmente não tinha.
Os meus tiados (tios viados) Burt e Myron eram as minhas duas pessoas
favoritas. Eles eram maravilhosos e tinham uma casa maravilhosa também.
A casa deles não era muito grande, mas era uma casa de médio porte bem
charmosa feita de tijolos situada em um lindo terreno arborizado.
Framboesas silvestres cresciam no quintal e eles tinham um labrador
dourado chamado Sparkle. Quando eles viajavam, a minha mãe e eu
cuidávamos da casa deles. Eu me deleitava com a limpeza e o conforto.

O Burt era professor e fotógrafo, e o Myron era, como ele dizia, uma
“esposa do lar”. O Myron era um colírio. Ele tinha uma barba perfeitamente
aparada e o seu cabelo era sempre penteado em camadas, que ele
finalizava fazendo luzes com um spray. Ele vivia bronzeado e costumava
desfilar pela casa em espetaculares caftãs de seda multicolorida. O Burt me
levava para o quintal da casa deles para tirar fotos minhas (eu simplesmente
adorava me exibir na frente de uma câmera) e ele incentivava totalmente
as minhas poses exageradas. Ele sempre me apoiava e entendia a minha
tendência de querer chamar a atenção.

Me lembro claramente de uma sessão de fotos de natal que fizemos. Eu


usava um vestido verde florido, e, como um milagre especial de natal, a
minha franja estava decente. Eu fingi estar colocando um enfeite na árvore
enquanto timidamente olhava para trás, aí o Burt tirou a foto: um momento
fashion de natal.

Eu gostava do lar adorável e aconchegante do Burt e do Myron o ano


todo, mas especialmente na época de natal. Eles preparavam tudo com
carinho para a época e sempre pondo muita personalidade. A casa ficava
super limpa, com uma linda decoração em cada lugar, e um fogo aceso na
lareira. O cheiro de comida assando no forno ficava no ar; eles sempre
tinham uns aperitivos saborosos para mordiscar e serviam bebidas
sofisticadas como conhaque Alexanders. Eu me lembro uma vez de estar na
casa deles num dia de feriado e não tinha como eu voltar para a minha casa
por causa de uma tempestade de neve, que eu estava torcendo para que
nunca acabasse. O Burt e o Myron me fizeram experimentar a verdadeira
sensação de natal. Foram eles, em geral, quem me ensinaram o real
sentido de ter um lar.

Meus tiados apoiavam a artista que havia em mim. Sempre que eu


17
queria fazer pequenas apresentações (o que acontecia com frequência),
eles prestavam total atenção em mim. Eles nunca tentaram domar a minha
imaginação exagerada. Foi usando o espírito dessa garotinha em mim e as
suas fantasias relacionadas à família, que eu compus “All I want for
Christmas Is You”. Tentem lembrar o começo: ding, ding, ding, ding, ding,
ding, ding, ding... os delicados sinos lembram aqueles pequenos pianos de
brinquedo de madeira, como os que o Schroeder tinha no desenho Peanuts
(Minduim).

Na verdade, a maior parte da música foi tocada em um teclado baratinho


da Casio. Mas era a sensação que eu queria que a música captasse. Há
algo de meigo e puro nela. Ela não foi inspirada em nenhuma música
gospel, embora eu já tivesse cantado e escrito canções com um lado mais
soul e espiritual. Em vez disso, a inspiração para AIWFCIY tem a ver com
as minhas experiências de criança; quando a compus, aos vinte e dois anos,
eu meio que ainda era uma. Então eu me arrisquei a gravar um CD de natal.
Simplesmente ninguém via clipes de natal na MTV naquela época. Na
verdade, era quase que inédito – imagine para uma jovem cantora como
eu, bem no início de carreira – compor e gravar uma canção de natal de sua
autoria, mas que acabou se tornando um grande sucesso.

Embora eu estivesse usando na música o mundo da imaginação de


quando eu era criança, eu não me sentia muito feliz na época que a escrevi.
A minha vida mudou tão rapidamente, mas eu ainda me sentia perdida,
como se eu vagasse entre o limite desconhecido da infância e da vida
adulta. O meu relacionamento com o Tommy Mottola, que acabou se
tornando o meu primeiro marido (e muito mais que isso) já estava ficando
estranho, e ainda nem tínhamos nos casado. Mas, por ele ser o presidente
da minha gravadora, ele me incentivou a gravar o meu primeiro CD de Natal,
Merry Christmas.

Eu estava relembrando muito o passado também. Eu sempre fui uma


pessoa muito emotiva, e a época de natal personifica esse sentimentalismo
para mim. Eu queria compor uma música que me deixasse feliz e me fizesse
sentir amada e livre de preocupações no natal. Eu também queria que a
minha música ficasse parecida com as músicas dos artistas que cresci
idolatrando – o Nat King Cole e os Jackson Five – que tinham os seus
próprios clássicos incríveis de natal. Eu queria cantar “All I Want For
Christmas Is You” de um jeito que ela pudesse deixar todos alegres e que
para sempre essa sensação permanecesse. Sim, eu queria dar um ar de
felicidade mais vintage para a minha música de natal. Eu também acredito
que, em algum lugar dentro de mim, eu já sabia que era tarde demais para
dar paz aos meus irmãos e uma vida maravilhosa para a minha mãe como
18
compensação por tudo que passaram, mas em vez disso eu poderia
oferecer ao mundo um grande clássico de natal.

19
O PAI E O SOL

Obrigada por abraçar um bebê de cabelos loiros


Embora eu saiba que você teve certas incertezas
Eu acho que essas incertezas qualquer um teria tido

–“Sunflowers for Alfred Roy”

O meu pai sempre me lembrava um girassol – alto, orgulhoso e


inabalável, mas também brilhante, forte, bonito e seguro de si. Ele trabalhou
duro para galgar voos mais altos. Ele estava determinado a ultrapassar as
limitações enfrentadas pelos seus pais, seus tios e toda a geração deles. Os
seus pais se chamavam Robert e Addie e ele era filho único. Ele tinha
vergonha da sua mãe Addie porque ela só tinha estudado até a terceira
série. A minha vó Addie era rígida com o meu pai, então ele passou a
respeitar e a confiar na ordem e na lógica. Com o seu próprio mérito, ele
conseguiu sair de um ambiente violento e opressor que havia levado um dos
seus tios a matar o outro. O meu pai ansiava por disciplina, cultura e
liberdade, então ele se alistou no exército – uma escolha lógica para um
homem nascido numa época em que não se tinha voz por causa da cor da
pele.

Os militares podem ter tirado o meu pai do Bronx, mas não o livraram dos
perigos de ser negro nos EUA. Enquanto ele cumpria serviço militar, uma
mulher branca do quartel em que ele estava disse ter sido estuprada por um
negro. Sem nenhuma prova, mas só por ser negro, acusaram o meu pai de ter
cometido o crime e o prenderam no quartel. Para punir ainda mais e para
servir como exemplo aos outros soldados negros, os oficiais brancos
encarregados designaram um oficial negro2 para supervisionar o meu pai
– um lembrete proposital de que um uniforme do exército americano não
camuflava a sua raça. Era uma técnica de terror eficaz, muito parecida com a
técnica usada nas plantações quando um supervisor negro ficava
encarregado de supervisionar.

O meu pai sentiu-se humilhado, mas com muito mais medo ele ficou.
Como muitos homens negros, ele vivia com medo de ser agredido sem
motivo, de ser sequestrado ou então de morrer. Mas talvez ele sentisse
mais medo de mostrar que estava com medo – porque ele sabia que, para

2 Oficial negro: semelhante a um capitão-do-mato


20
essa infração, a morte era o castigo certo. O meu pai acabou sendo liberado,
sem nenhum pedido de desculpas, apoio ou aconselhamento. A única
explicação que os militares deram foi a de que eles haviam apreendido o
verdadeiro culpado. Com uma arma autorizada pelo governo nas mãos, ele
saiu direto da prisão para cumprir serviço no topo de uma colina.
Consumido pelo trauma e pela raiva, ele pensou em apertar o gatilho – mas
não para cometer suicídio.

O meu pai fazia tudo com extremo cuidado. O seu estilo de vida era
bastante rigoroso: meio quartel militar, meio mosteiro Shaolin budista. A sua
cozinha era pequena e organizada impecavelmente. O conteúdo de sua
despensa era indexado com precisão por tamanho e categoria. Não havia
espaço para extravagância ou desperdício de qualquer tipo em sua casa. Só
havia uma coisa de cada: uma TV, um rádio. Dentro do guarda-roupa dele só
tinha a quantidade de camisas necessárias para uma semana, nada mais.
Ele só achava que uma cama estava bem arrumada, se de tão esticada a
colcha estivesse, uma moeda quicasse em cima dela.

O jeito do meu pai lidar com a maioria das coisas era num estilo militar,
super eficiente. Ele considerava fútil o ato de mordiscar. Se eu estivesse
com fome enquanto esperava pelo jantar, ele me dava só um biscoito da
marca Ritz. Só UM. Era de dar água na boca ficar contemplando aqueles
biscoitos dourados e em formato de girassol todos enfileirados sendo
tirados de seu pacote vermelho e brilhante. Ele puxava uma fileira de
biscoitos, retirava o lacre de abertura, tirava um único biscoito e me
entregava delicadamente, como se fosse uma joia preciosa. Em seguida,
ele colocava todos os biscoitos de volta no pacote, dobrava tudo
cuidadosamente e colocava o pacote de biscoito em cima da prateleira, que
era onde ficava.

Eu colocava esse único biscoito salgado e crocante de sabor


amanteigado no nariz, fechava os olhos, e bem estilosa, ficava sentindo o
cheiro dele por um longo tempo. Eu dava pequenas mordidas ao redor da
borda do biscoito com perfeição. Eu mastigava bem devagar, deixando o
gostoso sabor ficar na minha língua. Virando o meu precioso biscoito
levemente, eu mordiscava outro pedacinho da borda, saboreando cada
pedaço com seus grãos de sal, fazendo o meu único biscoito durar o
máximo que eu pudesse. (Ironicamente, o slogan do pacote dizia “Biscoitos
Ritz, só há UM” – e que condizia com a minha realidade de biscoitos por
dia!)

21
Pelos padrões de hoje, o meu pai seria considerado descolado. Depois
de servir no exército, ele se mudou para Brooklyn Heights, tinha um carro
Porsche Speedster clássico e cozinhava autênticos pratos italianos. Ah, eu
adorava a comida do meu pai! Ele preparava um prato de salsicha e
pimentão maravilhoso e um prato delicioso de almôndegas com salsinha,
mas o prato que ele fazia de linguine com molho branco de amêijoa era
divino. O cheiro de alho no azeite quente, o cheiro de macarrão fervendo e
o cheiro de sal do mar são as melhores recordações dos domingos para
mim. Eu adorava os domingos e eram os dias que eu passava com o meu
pai – e as nossas refeições juntos eram o que eu mais esperava.

Em um domingo qualquer, a minha vó Addie visitou o meu pai – algo raro


de acontecer. Eu acho que eu não tinha mais de cinco anos. Tudo acontecia
como de costume, o meu pai passou o dia inteiro preparando com todo o
cuidado o seu prato mais famoso. Ele descascou e limpou todos os
mariscos, cortou o alho e picou a aromática salsinha italiana. Era um
processo longo – um ritual, na verdade. Como de costume, eu não tinha
comido o dia todo, exceto talvez por um único biscoito Ritz (e eu
provavelmente não havia comido bem no dia anterior; comer na casa da
minha mãe não era nada fácil aos sábados à noite). Entre ler e colorir e
com a minha barriga roncando de fome, eu olhei para a despensa. O ar
estava perfumado com o cheiro da comida do meu pai. Eu esperei a
semana toda e o dia inteiro; eu só precisava aguentar até a hora do jantar.
Logo eu estaria me deliciando com o meu prato favorito.

Eu senti o cheiro do macarrão amolecendo na água fervente e eu sabia


que não ia demorar muito. “É hora do jantar!” o meu pai avisava cantando.
Eu dei um salto e corri para me sentar à pequena mesa de fórmica da
cozinha. A minha vó Addie, usando uma peruca vermelha fabulosa e um
cafetã estampado vermelho para combinar, estava sentada à frente,
contando uma história que só os adultos se interessam. Eu mal conseguia
olhar para frente já que eu estava quase desmaiando e babando de
antecipação pela deliciosidade que se faria presente diante de mim. Eu
observei o meu pai colocar a comida no meu prato, e em seguida, pegar o
divino molho e fazer uma obra de arte no meu linguine com ele. Eu
acompanhava cada movimento dele enquanto ele abaixava o prato branco
fumegante na minha frente. Já estava mais do que na hora! E então,
quando eu ia pegar o meu garfo, a minha vó Addie – que não havia parado
um minuto de falar – tirou queijo parmesão ralado de uma lata verde e
despejou uma gororoba nojenta em cima do meu elegante e recém-
preparado linguine.

Nããããão!!!!!! Eu gritei horrorizada. Mas era tarde demais; o meu prato já


22
estava coberto com ele. O meu pai nunca colocava aquele tipo de queijo no
molho branco de amêijoa! De onde foi que ela arranjou aquele queijo? Ela
tirou da bolsa dela?! Incapaz de controlar o meu choque e nojo, saí
correndo para o banheiro, bati a porta e desatei a chorar. “Roy, é para o bem
dela vir aqui comer. Faça ela vir comer agora!” Ouvi a minha vó Addie
desafiando o meu pai. Essa foi a única vez que eu me lembro do linguine
perfeito do meu pai ter sido estragado, e acho que foi a última vez que a
minha vó jantou com a gente no domingo.

O meu pai me ensinou que as palavras têm força e que, portanto, têm o
poder de mudar quaisquer situações. Uma vez, em uma adorável tarde de
domingo de verão, eu ouvi um carrinho de sorvete tocar a sua música ao
longe e se aproximar da rua da casa do meu pai. Ao reconhecer a melodia
mágica e o sabor de coisas gostosas que suscitava, eu soltei um grito de
empolgação: “Aaaaa! Sorvete!” A música estava alta e clara agora, então
eu sabia que o carrinho de sorvete havia parado em algum lugar próximo.
O barulho de pés correndo e os gritos de felicidade confirmavam isso – o
carrinho de sorvete estava parado bem na nossa porta. Eu pensei rápido:
eu tenho que ir, senão ele vai embora!

“Me empresta 50 centavos, por favor, por favor?!” Perguntei ao meu pai
com voz esganiçada e quase ficando com falta de ar de tanta ansiedade.

“Você quer que eu te empreste cinquenta centavos? Ou você quer que eu


te dê cinquenta centavos?” ele respondeu calmamente.

Comecei a sentir um pouco de pânico. “ÉÉÉÉ”, e comecei a gaguejar. Eu


não sabia o que dizer. Tudo que eu queria era dinheiro para comprar
sorvete. “Eu não sei!”

Eu não conseguia pensar direito. Mais uma vez, o meu pai falou de maneira
paciente e equilibrada, e que só fez aumentar a minha inquietação.

“Há uma diferença em emprestar e em dar algo. Você quer que eu te dê


50 centavos, é isso que você está me pedindo?”

Eu estava tão atordoada que eu nem sabia o que dizer naquele momento,
então eu deixei escapar: “Eu quero cinquenta centavos emprestado. Eu te pago
depois! Me empresta, por favor!”

Ele enfiou a mão no bolso, tirou duas moedas de prata brilhantes e as


colocou na palma da minha mão trêmula de ansiedade. Tão precioso
quanto ganhar somente UM biscoito Ritz do meu pai, assim pareciam as
23
duas moedas. Eu saí correndo pelas portas do prédio, mal pisando nos
degraus, e corri até o carrinho de sorvete parecendo uma gazela sendo
perseguida por um leão.

Eu tinha comprado o meu sorvete, mas o meu pai deixou bem claro que
eu teria que devolver o dinheiro que eu tinha pedido emprestado. Aos sete
anos, é claro que eu não ganhava dinheiro ainda, então eu acabei pedindo
à minha mãe. Ela não conseguia entender por que o meu pai estava
fazendo isso comigo, mas acabou me dando o dinheiro. O jeito deles de
educar a nós, os seus filhos, sempre foi muito diferente um do outro. Eu
cumpri a minha promessa e devolvi o dinheiro a ele no domingo seguinte. O
incidente do dia do sorvete foi uma lição que serviu não apenas para me
ensinar o significado das palavras, mas também de como ter integridade e
de como administrar o dinheiro. O meu pai era um tipo de homem que
economizava cada centavo que ganhava.

Ser pai solteiro não era algo tão comum naquela época, então atividades
de lazer ou um dia só para brincadeiras estavam fora de cogitação. Na
maioria das vezes, eu só servia de companhia para ele – eu me ocupava
com alguma coisa e ficava fora do caminho enquanto ele cozinhava, limpava
ou ficava mexendo no carro enquanto ouvia futebol no rádio. E ele adorava
o porsche dele. Era o único luxo que ele tinha. Ele comprou dois porsches
em sua vida, um antes de ter filhos e o outro depois, ambos seminovos. O
porsche speedster dele parecia estar em constante reparo, então ele
passava a maior parte do tempo mexendo nele.

Como o carro dele parecia estar em constante reparo, dava a impressão


de que nunca ficava pronto. Tinha uma leve cor fosca e indefinida, porque
ele havia sido pintado, não com tinta, mas com um fundo primer de cor
cinza. Uma vez eu perguntei ao meu pai por que a cor do carro era tão sem
vida. Ele me explicou que era por causa do fundo primer, mas que a cor
original era vermelho da cor da maçã de amor. “Ah, então quer dizer que
um dia você vai pintar o carro de novo de vermelho da cor da maçã de
amor?” Eu perguntei.

“Esse tipo de cor não existe mais,” ele disse sem rodeios. Eu fiquei
confusa. Mas por que então ele não pintava o carro de outra cor? Se não
tinha como pintar com a cor original, que ao menos o carro fosse pintado
com uma cor diferente. Muito melhor do que a cor que estava.

Ele tinha muita paciência de ficar mexendo no porsche – passava horas


mexendo nele e ele dizia que era um carro de alto desempenho e de beleza
exótica. Era um conversível de 2 assentos e com capota retrátil muito
24
chique e legal. Ele adorava baixar a capota e também porque só tinha
espaço para 2 passageiros. A gente passeava bastante de carro, mas sem
conversar muito. Quando ele ligava o rádio, era para ouvir as notícias
(“Rádio 1010 WINS – daqui dez minutos, notícias do mundo todo”). De vez
em quando, a gente cantava algumas músicas infantis engraçadas que não
tinham fim, tipo “There’s a Hole in the Bottom of the Sea” (tem um buraco
no fundo do mar).

Tem uma verruga no sapo, na saliência, no tronco,


no buraco no fundo do mar

Ele também gostava de cantar “John Henry”, uma canção popular que
fala sobre um homem negro que trabalhava “martelando brocas de aço na
rocha para construção de túneis”.

John Henry era um bebezinho, sentado no colo do seu pai

Quando ele cantava “colo”, o tom que ele fazia era super grave e isso
sempre me fazia rir. Eu gostava de cantar essas músicas porque ajudavam
o tempo e a distância passarem mais rápido. Naquela época, eu achava que
dirigir era muito chato. Mas agora, ah, o que eu não faria para sentar ao lado
dele, mais uma vez, naqueles bancos de couro, pegando a estrada e tendo
como companhia apenas o barulho do motor e o som do vento. A minha
mãe, enquanto cantora de ópera, me ensinou escalas musicais, mas o meu
pai me ensinou canções que me faziam rir.

Obrigada pelas montanhas


Pela visita ao Lake of the Clouds
Estou imaginando você e eu lá agora
Enquanto as águas cristalinas descíam céu abaixo

– “Sunflowers for Alfred Roy”

Às vezes, a gente ia ao autódromo Lime Rock Park do estado de


Connecticut, que era bem mais chique do que os típicos eventos realizados
pela NASCAR (Associação Nacional para Corridas de Carros de Série).
Paul Newman tinha uma equipe de pilotos de 1º classe nesse autódromo,
como por exemplo, o Mario Andretti. Eu achava autódromos super
monótonos, mas era o hobby favorito do meu pai, e ele sempre levava tanto
a mim quanto os meus irmãos junto com ele. Era algo que eu e os meus
irmãos concordávamos: carros girando numa pista de corrida sem parar
não era algo assim tão divertido.

25
Quando viajávamos de carro ou íamos a autódromos, eu ficava muitas
vezes fazendo outras coisas enquanto o meu pai fazia o que ele gostava, por
exemplo, ele ficava ouvindo jogos de futebol no rádio ou assistindo jogos de
futebol na TV (que ele adorava por sinal e que eu achava extremamente chato),
mas em vez disso eu ficava por perto lendo ou desenhando em silêncio –
observando o que ele fazia.

O meu pai tinha alguns livros em sua casa que eram só para mim. O livro
que eu me lembro mais claramente falava sobre um garotinho negro que
era cego. A capa era branca, com grandes círculos vermelho, laranja e
amarelo. Era um livro bastante ilustrado que contava a história de um
menino que via o mundo através do toque e formato dos objetos, e não
através das cores.

Quando eu me lembro daquele paradidático, eu me lembro do Stevie


Wonder. Ao lê-lo, me perguntei se esse era o motivo pelo qual o Stevie
Wonder conseguia criar mundos e emoções tão vívidos por meio das suas
canções: em vez de ver as coisas ao seu redor usando os olhos, ele via
tudo através da sua alma. O Stevie Wonder é, de longe, o compositor que
mais respeito e amo. Ele é genial; eu acredito que as suas músicas são
divinamente inspiradas. Acredito que o livro falando de um menino negro e
cego foi uma forma que o meu pai usou para me apresentar os conceitos de
racismo e percepção de mundo, porque na verdade não falávamos sobre
isso. A gente não conversava sobre os diferentes tipos de pessoa, seja pela
cor da pele ou pelos tipos de corpo.

O meu pai também era bastante perceptivo. Uma vez, enquanto eu


desenhava ao lado dele em uma tarde tranquila de domingo, desenhei algo
que achei ser muito inteligente. Era um desenho da nossa família com os
dizeres: “Eles são esquisitos, mas sem problemas.” Mas quando eu mostrei
o desenho ao meu pai, ele ficou muito chateado.

“Por que você acha que somos esquisitos?” Ele indagou. Estremeci com
o seu tom de voz severo e não fazia ideia por que ele tinha ficado com raiva.

“Eu não sei. Talvez eu tenha ouvido em algum lugar,” eu disse. No meu
desenho, eu também escrevi: “Mas sem problemas”, o que eu supunha ser
algo legal. Era só uma pequena ironia.

Bastante sério, o que me deixou paralisada, ele disse: “Nunca diga isso”.

Nunca tive a intenção de ofendê-lo, na verdade, eu queria era agradar.


Eu me senti muito mal naquele dia. Mas o fardo que ele carregava, e o seu
26
profundo desejo em ser aceito plenamente como ser humano, era algo que
eu somente aprenderia bem depois – e é algo também que eu ainda estou
tentando estabelecer comigo mesma.

Na época, eu não sabia como dizer a ele que eu me sentia esquisita. Eu


não sabia como dizer a ele que era assim que eu achava que as outras
pessoas nos viam – esquisitões. Eu achava que tudo em mim era esquisito
– o meu cabelo, as minhas roupas, os meus irmãos e os seus amigos, a
minha mãe e todos os míseros lugares em que a gente viveu com ela – era
tudo muito esquisito.

Eu achava que a igreja Unitarian Universalist Fellowship (Congregação


Unitário-Universalista) era um local esquisito. Nós começamos a frequentá-
la quando a família ainda estava unida. Nós cinco íamos à essa igreja que
era como se fosse um antigo castelo de pedra de estilo medieval. Ela tinha
paredes grossas e uma torre alta, lotada com o que parecia ser todas as
pessoas esquisitas da ilha. Para mim, quando garotinha, a congregação se
assemelhava à igreja dos brinquedos misfit em uma Feira da Renascença.
O pastor, que antes era judeu, mudou o seu nome de Ralph para Lucky.
“Reverendo Lucky?” Okay. Os adolescentes subiam na torre e faziam todo
tipo de esquisitice que os adolescentes geralmente fazem. Mesmo sendo
uma criança, eu sabia que aquele não era o meu lugar. Mas o meu pai,
embora fosse o único negro, sentía-se aceito ali entre os outros esquisitos,
então ele permaneceu na congregação para sempre.

Eu acho que o meu pai não entendia como a gente era diferente de todas
as pessoas dos bairros em que eu morei com a minha mãe. Era esquisito
morar em um apartamento improvisado em cima de uma delicatéssen
quando todo mundo morava em uma casa. Nós morávamos em uma
pequena seção comercial de Northport, onde havia uma fileira de lojas no
andar térreo de um aglomerado de casas vitorianas. Eram negócios de
cidade de interior: uma loja de bicicletas, talvez uma mercearia e por fim a
delicatessen. Uma escada ao lado da entrada da delicatessen levava a um
pequeno e sombrio apartamento com um estilo semelhante a um vagão de
trem onde eu morava com a minha mãe e o Morgan.

Eu tinha um quarto no final do corredor, mais ou menos do tamanho de


um cômodo de um closet. O apartamento era pequeno, o chão era coberto
com um carpete verde ervilha e as paredes e as portas eram finas; o som
de risos e vozes frequentemente me mantinham acordada à noite. Eu tinha
pouquíssimas coisas naquele quarto minúsculo que me confortasse. Os
mais preciosos, talvez, tenham sido os presentes do meu pai – um pequeno
coelho de cerâmica e um lindo ursinho de pelúcia cor de melaço chamado
27
Cuddles, que esteve comigo até o momento em que foi destruído muitos
anos depois, após uma enchente em um apartamento de Manhattan que
ficava em cima de um bar e de uma boate (é, parece que temos que passar
por diferentes etapas até chegar a morar em cima de estabelecimentos, e
eu já passei por todas elas).

Eu me lembro quando você costumava me aconchegar à noite


com o ursinho de pelúcia que você me deu
e que eu abraçava com tanta força

–“Bye Bye”

Mesmo com o Cuddles ao meu lado, eu frequentemente tinha pesadelos,


e foi naquele apartamento sombrio que os meus problemas com o sono
começaram.

Eu não me lembro de mais ninguém morando por ali, e certamente


negros moravam a muitos quilômetros de distância daquela região. O
Morgan era o único negro que existia na redondeza. Uma vez, depois que
ele se meteu em confusão, a minha mãe docilmente o repreendeu e exigiu
que ele “ficasse em seu quarto”. Pouco depois, o dono da delicatessen do
andar debaixo ligou para a minha mãe para informá-la de que ele estava
vendo o Morgan pular os telhados das lojas. O Morgan havia escalado a
janela para subir no telhado e estava tentando fugir descaradamente. Ele
também passou por uma fase de raspar os cabelos e de sempre usar calças
de caratê, às vezes segurando uma cobra no pescoço. Ele andava pela
cidade parecendo um ninja punk, cheio de raiva, na esperança de encontrar
alguém para brigar. Mesmo estando careca, ele era impossível de passar
despercebido.

O meu pai pode não ter gostado de eu ter chamado os Carey de


esquisitos, mas coisas esquisitas com certeza aconteciam com a gente. De
vez em quando, a Alison chegava do nada no apartamento, e os amigos
dela e os do Morgan ficavam juntos a noite toda.

Certa noite, a Alison me escalou como parte do espetáculo. Antes de eu


me apresentar na frente de todos, ela me ensinou a cantar a música “White
Rabbit” (coelho branco) do Jefferson Airplane. Uma escolha bem estranha,
com certeza, mas eu imaginava que talvez ela gostasse da música por
causa do refrão “Vá perguntar à Alice”, que parecia estar falando o nome
dela. Quando me levaram para a sala de estar para me apresentar, todas as
luzes estavam apagadas e eu estava rodeada por velas acesas e um grupo
de adolescentes (e a minha mãe também estava). Olhando para a Alison
28
em busca de aprovação, eu comecei a cantar a parte inicial da música:

Uma pílula te aumenta de tamanho, e a outra te diminui


E as que a sua mãe te dá, não servem de nada
Vá perguntar à Alice, quando ela tiver três metros de altura

Uma letra de música que fala sobre drogas e viagens alucinógenas não
é um conteúdo típico (ou apropriado) para uma menina. Mas eu cantei
porque a minha irmã mais velha me ensinou. Aprender letras de músicas
para cantar era o que eu mais gostava, mas essa música era cheia de
imagens assustadoras (“o Cavaleiro Branco está falando ao contrário / e a
Rainha Vermelha com o seu, cortem-lhe a cabeça”) e o que me fez achar
ainda mais assustador (“a lagarta que fuma narguilé” – oi?).

Claro, eu me perguntava qual era o sentido dessa música e por que eu


estava cantando no escuro. Já passava da meia-noite e, enquanto todas as
outras crianças da minha idade estavam aninhadas em suas camas, eu estava
cantando a plenos pulmões: “Alimente a sua cabeça!”, rodeada por velas, para
adolescentes aspirantes a hippie que pareciam estar conduzindo uma pseudo
sessão espírita. Me digam se isso não é esquisito?

“Nos vemos no próximo domingo!” Esse era o combinado entre a gente.


O meu pai e eu nos despedíamos um do outro com um aceno quando eu ia
embora para casa da minha mãe, com a promessa de que nos veríamos
no próximo fim de semana. Mas à medida que eu crescia, a minha
seriedade como cantora e compositora começou a rapidamente se tornar
prioridade na minha vida. E eu já cantava como cantora profissional por volta
dos meus 12 anos. O meu pai não via ou apoiava isso em mim,
principalmente porque ele não entendia.

A música, como carreira, não era lógica para ele. Quando eu falava sobre
escrever poesias e cantar, ele mudava a conversa para notas e dever de
casa. Ele não via o foco e a disciplina que eu estava cultivando como artista.
Ele não via como eu estava pegando o jeito da coisa, participando de
ensaios com músicos de jazz talentosos com a minha mãe e desenvolvendo
as habilidades de scat3 e de improvisação. Ele nunca se deu conta de
quantas horas eu passava escrevendo, aprimorando o meu ouvido e

3 Scat: é uma técnica de canto criada por Louis Armstrong que consiste em cantar
vocalizando tanto sem palavras, quanto com palavras sem sentido e sílabas, como usado
por cantores de jazz, os quais criam o equivalente de um solo instrumental apenas usando
a voz.
29
estudando tendências de música popular nas estações de rádio. Além disso,
nós pensávamos bem diferente um do outro: eu seguia o meu coração,
enquanto ele era guiado pelo medo de não ser aceito. Desde aquele dia
terrível e ao mesmo tempo promissor, quando a Nana Reese impôs as suas
mãos sobre mim e a sua oração tocou o meu coração, eu realmente
acreditei que bastava eu querer, todos os meus sonhos se tornariam
realidade. Era algo real para mim. Sem sombras de dúvida. O meu pai não
acreditava que tudo que a gente desejasse se tornava realidade. Pelo
contrário, ele esperava que o mundo negasse veementemente os seus
desejos, principalmente a dignidade.

O Alfred Roy foi um homem que viveu toda a sua vida com o medo de
ser humilhado e desumanizado por causa da sua identidade. Ele pôs todas
as suas esperanças na noção de que ele seria respeitado socialmente por
meio de sua disciplina, diligência e excelência e que isso só seria possível
de se alcançar em instituições tradicionais como em áreas acadêmicas,
serviço militar ao seu país e com um trabalho respeitável. Os seus outros
dois filhos tinham todas as qualidades para serem grandes alunos. Quando
eram mais jovens, ele exigia que eles só tirassem 10 nas provas, e na
maioria das vezes eles conseguiam (ele às vezes perguntava aos meus
irmãos por que tinham tirado 9,5 e não 10). A única matéria em que eu me
destacava era redação e eu sempre estava entre os melhores da sala. Mas
eu era péssima em matemática e eu realmente não conseguia entender a
maioria das outras matérias.

Os dois filhos mais estudiosos e promissores desandaram terrivelmente


na adolescência, fazendo com que os maiores medos de um pai negro se
tornassem realidade. O Morgan havia sido “institucionalizado”, colocado sob
os precários “cuidados” do estado, um passo perigoso e rápido estava prestes
a ser dado para se tornar parte da estatística. E a Alison, grávida antes de
completar 16 anos, já havia dado esse primeiro passo. E eu, a filha caçula,
e que não era rebelde, não segui o caminho tradicional e “seguro” de se
obter uma carreira estável e comecei a ir atrás do que ele considerava um
caminho improvável, misterioso e perigoso. O meu pai era extremamente
rígido com os meus irmãos, e eles sempre reclamavam ou zoavam do jeito
rígido e excêntrico dele para a minha mãe. No entanto, a minha mãe tentava
me proteger das críticas pesadas dos meus irmãos em relação ao nosso
pai, eu muitas vezes ouvia ela dizer para eles: “Não diga isso na frente da
Mariah.”

Houve momentos em que o meu pai realmente me decepcionou. Depois


que a Alison deixou de morar com ele, de um pai solteiro divorciado ele
passou a se comportar como se nunca tivesse sido casado antes. Às vezes
30
ele nem mesmo aparecia nos nossos encontros.

Quando eu era criança, houve momentos que


Eu não entendia, mas você me manteve na linha
Eu não sabia porque você não aparecia às vezes
Nas manhãs de domingo
E eu sentia a sua falta

– “Bye Bye”

Então, com o passar do tempo, a gente passou a se ver cada vez menos
aos domingos. A minha música estava tomando muito do meu tempo e
energia naquele momento. Eu trabalhava nisso sempre que eu podia. Eu
estava determinada a superar as minhas adversidades, a superar todas as
pessoas que não acreditavam que eu conseguiria vencer na vida, a superar
o lugar triste em que a minha irmã havia se metido, a superar os rompantes
de raiva do meu irmão. Eu iria superar tudo isso – mesmo que isso incluísse
o meu pai, o único membro estável da família que eu tinha. Depois de pagar
por um curso de verão em um acampamento de artes cênicas, o máximo
que o meu pai fez pela minha carreira foi me alertar sobre como o negócio
do entretenimento pode ser incerto e traiçoeiro.

Anos depois, quando eu estava no estúdio, eu liguei para o meu pai e


toquei “Vision of Love” para ele ouvir, colocando o fone no alto-falante da
marca Yamaha.

“Uau”, disse ele, “você canta igual às cantoras do trio Three Pointer
Sisters!” Ele não era um grande músico, então essa comparação foi um
grande elogio vindo dele. Isso significava que ele havia notado todas as
camadas de voz de backing vocal, além da voz principal. Ele estava
realmente prestando atenção na minha música. E eu poderia dizer que ele
ficou feliz com isso e por mim. Depois de todos aqueles anos, eu me senti
reconhecida.

No entanto, mesmo depois de tudo que eu havia realizado, eu não fiquei


imune ao perfeccionismo que ele projetou em seus outros filhos. Depois de
ganhar dois Grammys no meu primeiro ano na indústria, ele comentou:
“Talvez se você fosse uma produtora, você ganharia mais prêmios, como o
Quincy Jones”. Naquele mesmo ano, o lendário Quincy Jones levou para
casa sete Grammys pelo seu projeto épico Back on the Block (De volta ao
Bloco), que abrangeu a história inteira da música negra americana, com a
participação de gigantes como a Ella Fitzgerald, Miles Davis e Luther
31
Vandross.

Eu tinha me saído muitíssimo bem como artista revelação (que havia


escrito as suas próprias canções de sucesso), e lá estava o meu pai, me
comparando com um dos maiores artistas que a indústria já conheceu, com
décadas de experiência e infinitos elogios e honras ao seu nome! Revivi
momentos da minha infância na mesma hora, era como se os meus dois
Grammys equivalessem às duas notas de 9,5 no meu boletim escolar e ele
estivesse me perguntando por que que eu não tinha tirado 10. Acho que o
meu sucesso na música o assustou porque ele não tinha ideia, e
aparentemente nenhum entendimento, de como eu tinha conseguido. Ele
nunca me perguntou e eu também nunca falei.

Gradualmente, o “até o próximo domingo” se transformou em um domingo


por mês. Eu tive que abrir mão dos nossos domingos para que eu pudesse
buscar o meu lugar ao sol.

32
COLORINDO FORA DA LINHA
É difícil de explicar
Naturalmente isto sempre foi estranho
Nem aqui e nem lá
Sempre um pouco deslocado em todos os lugares
Ambíguo, com a sensação de que você não pertence a lugar nenhum

–“ Outside”

As vezes em que eu tive que lidar com o racismo foram como


experimentar o primeiro beijo ao contrário 4: sempre que acontecia, era
como se parte da minha pureza fosse arrancada do meu ser. A sensação
que eu tinha era como se uma mancha que se espalha tivesse sido deixada
para trás, e que aos poucos, parecia penetrar dentro de mim. Até hoje, eu
nunca consegui limpar essa mancha completamente. Nem com o tempo,
nem com a fama ou riqueza, nem mesmo com o amor. Uma das minhas
primeiras experiências aconteceu quando eu tinha cerca de quatro anos e
estava na pré-escola. A atividade do dia era desenhar os membros da nossa
família. Em cima da mesa, havia uma pilha de cartolina grossa da cor de
cascas de ovo e alguns gizes de cera para escolhermos. Embora eu
preferisse muito mais quando a gente cantava e contava histórias, eu fiquei
animada com a atividade e disposta a dar o meu melhor. Achei que, se eu
me empenhasse, talvez a professora decorasse o meu desenho com um
adesivo de estrela de folha dourada.

Eu escolhi o meu material com cuidado, encontrei um canto tranquilo e


me ocupei com a tarefa. Naquela época, a nossa família de cinco pessoas
ainda não havia se fragmentado. Por um curto período, eu tive um pai, uma
mãe, uma irmã e um irmão, e todos vivíamos juntos no que me parecia ser
um ambiente de paz. Eu queria desenhar um retrato de família que eu
pudesse me orgulhar. Eu queria desenhar todas as coisas diferentes e
únicas sobre todos – as suas roupas, a altura e o tipo de corpo de cada um,
as feições dos seus rostos – todos os pequenos detalhes que fariam o meu
retrato ganhar vida. O meu pai era alto e a minha mãe tinha longos cabelos
escuros. O meu irmão era forte e a minha irmã tinha lindos cachos. Eu queria
desenhar tudo isso. O som de giz de cera rabiscando no papel grosso criou
um ruído monótono enquanto o cheiro leve e reconfortante da cera de
crayola enchia o ar da sala.

4 Beijo ao contrário: é o tipo de beijo semelhante ao do filme do homem aranha em que


ele, pendurado de cabeça para baixo na sua teia, beija a sua amada Mary Jane.
Portanto, os lábios se tocam em uma posição contrária.
33
Totalmente empenhada em aperfeiçoar a minha obra-prima, eu estava
curvada com a cabeça baixa, com o nariz quase tocando o papel, quando eu
senti uma sombra alta se aproximar de mim no meu cantinho. Eu sabia
instintivamente que era uma das jovens professoras pairando sobre mim.
Aos quatro anos, eu já havia começado a desenvolver um instinto aguçado
de alerta, então eu parei de desenhar na mesma hora. A tensão aumentou
e o meu pequeno corpo enrijeceu. Por um motivo que eu ainda não sabia,
eu senti como se estivesse em perigo e de repente passei a tentar me
proteger. Eu fiquei completamente parada até ela falar.

“Está dando certo, Mariah? Deixa eu ver.”

Relaxando um pouco, eu entreguei a minha folha de papel para ela e


orgulhosamente mostrei o desenho da minha família que estava para ser
terminado. A professora caiu na gargalhada na mesma hora. Uma outra
jovem professora se aproximou de nós e começou a rir também. Por fim,
uma terceira pessoa se aproximou de nós para se juntar à risadaria. O
burburinho alegre de crianças pintando com giz de cera parou. A sala inteira
se virou para olhar o que estava acontecendo no meu cantinho. Uma
mistura de autoconsciência e constrangimento subiu dos meus pés à minha
cabeça. A classe inteira estava prestando atenção. Eu consegui falar
mesmo com um engasgo na minha garganta.

“Por que vocês estão rindo?” Eu perguntei.

Ainda rindo, uma delas respondeu: “Oh, Mariah, você usou o giz de cera
com a cor errada! Mas não foi a sua intenção!” Ela estava apontando para
onde eu tinha desenhado o meu pai.

Enquanto elas continuavam rindo, eu olhei para o desenho da minha


família que eu tinha feito com todo amor e empenho. Eu usei o giz de cera
da cor de pêssego para pintar a minha pele, a da minha mãe, a da minha
irmã e a do meu irmão. Eu usei um giz de cera da cor marrom para pintar a
cor da pele do meu pai. Eu sabia que a cor da minha pele era mais parecida
com a cor mais clara dos biscoitos passatempo, já a cor da pele do meu
irmão e da minha irmã era mais parecida com a cor um pouco mais escura
dos biscoitos cream cracker, enquanto o tom de pele do meu pai tinha a cor
mais escura ainda dos biscoitos oreo. Mas não tinha nenhum giz de cera da
cor de biscoito, então eu tive que improvisar! Elas estavam agindo como se
eu tivesse usado um giz de cera da cor verde ou algo assim. Eu me senti
humilhada e confusa. O que eu fiz de tão errado?

Ainda gargalhando histericamente, as professoras insistiram: “Você


34
usou o giz de cera da cor errada!” Cada vez que uma delas repetia essa fala,
toda a turma ria sem parar. Eu fiquei paralizada com toda a situação, mas
mesmo assim eu consegui me levantar lentamente, com os olhos ardendo
e cheios de lágrimas.

O mais calma que eu pude, eu disse às professoras: “Não. Eu não usei


o giz de cera da cor errada.”

Se recusando até mesmo a falarem comigo diretamente, uma delas


disse para a outra maliciosamente: “Ela nem se tocou que usou o giz de
cera da cor errada!” As risadas e as provocações pareciam não ter fim. Eu
fiquei olhando para elas, me esforçando para não vomitar de vergonha.
Mas, apesar de estar sentindo náusea, eu não desviei o meu olhar.

Por fim, as risadas começaram a diminuir e, uma de cada vez, se afastou


do meu desenho e de mim. Eu as observei do outro lado da sala, todas
juntas e sussurrando. Elas só tinham prestado atenção em um membro da
minha família de cinco pessoas: a minha mãe, que me deixava na escola
todos os dias. O tom de pele da minha mãe era da mesma cor do giz de
cera da cor de pêssego. Elas não faziam ideia e nem imaginavam que a cor
levemente escura da minha pele, que o meu nariz maior do que um botão e
que as ondas e os cachos do meu cabelo eram do meu pai – o meu pai
bonito que era da cor do biotônico Fontoura. O tom de pele dele era de uma
cor de giz de cera que elas não tinham; a cor marrom era a cor mais próxima
que eu poderia usar. Foram as professoras que entenderam tudo errado.
Mas, apesar do ataque cruel e injustificado delas, elas nunca se
desculparam por me humilharem publicamente, nunca se desculparam pela
ignorância e imaturidade que tiveram, ou por desmoralizar uma menina de
quatro anos durante uma atividade escolar.

Quando eu comecei a fazer a primeira série, a minha família com cinco


pessoas havia se esfarelado como certos biscoitos dentro do pacote. Os
meus pais se divorciaram, mas embora morassem a uma curta distância de
carro um do outro, racialmente falando, os bairros em que moravam em
Long Island não poderiam ser mais diferentes.

Na primeira série, eu tinha uma melhor amiga e ela se chamava Becky.


Ela era fofa e doce e que, para mim, parecia com a personagem do desenho
animado da Moranguinho. Ela tinha grandes olhos azuis, cabelos lisos e
ruivos com tons mais claros e dourados, que pareciam brilhar como a luz
do sol e que, de tão sedosos, balançavam perfeitamente ao vento, e sardas
avermelhadas pontilhavam as suas bochechas cor de creme chantilly. Na
minha mente, ela tinha a aparência que todas as meninas deveriam ter. Ela
35
parecia ser uma menina muito amada e protegida; seria o tipo de menina
que a minha mãe teria tido caso ela tivesse se casado com um homem que
a minha vó aprovava.

Um certo domingo, as nossas mães combinaram para que a Becky fosse


brincar comigo na minha casa. Eu fiquei super animada porque a Becky e
eu realmente nos divertíamos muito juntas. Quando o domingo finalmente
chegou, a minha mãe foi pegar a Becky num carro caindo aos pedaços que
ela dirigia na época e fomos todas para a casa do meu pai. Paramos na
casa de tijolos e a Becky e eu saltamos para fora do carro. Eu segurei a mão
dela e pulei as escadas com muito entusiasmo. O curioso é que a minha
mãe ficou esperando e observando tudo – normalmente ela já teria ido
embora. Assim que os nossos pés pisaram no topo da escada, o meu pai,
de quase dois metros de altura e um homem muito charmoso, apareceu na
porta com um sorriso caloroso. Ele parecia uma estrela de cinema.

“Fala, Mariah!” ele falou, me saudando do jeito que sempre fazia.


Quando ele se aproximou de nós, a Becky de repente soltou a minha mão.
O corpo dela congelou e, como uma nuvem carregada prestes a chover,
ela desatou a chorar. Confusa, eu olhei para o meu pai pedindo ajuda, mas
eu pude ver que ele também estava congelado e sem fôlego, um olhar
mortificado distorcendo as suas fortes feições. Em estado de choque, a
minha mente embaralhava enquanto eu tentava processar a mudança
abrupta e dolorosa dos eventos. A Becky chorando de forma histérica e meu
pai em um silêncio agonizante: como foi que isso aconteceu em menos de
alguns segundos?

Eu não sabia o que fazer. Fiquei completamente imóvel por alguns


minutos, mas que pareceram horas de desconforto. Finalmente, a minha
mãe apareceu atrás de nós na escada, para resgatar a Becky. Sem nem
mesmo olhar em minha direção, ela gentilmente colocou o braço em volta
da menina desesperada e sem falar nada a guiou escada abaixo até o banco
de trás do seu carro. A minha mãe saiu às pressas com a minha amiguinha
no carro, sem nem ao menos tentar esclarecer o que havia acontecido. Não
houve consolo, nenhuma conversa, nenhum tipo de esclarecimento
daquela situação incômoda para mim ou para o meu pai. Ainda chocados
com o comportamento da Becky, o meu pai e eu ficamos quietos juntos na
varanda e esperamos que a dor passasse. Ninguém mais falou sobre isso
depois, mas a Becky e eu também nunca mais brincamos juntas, e o
acontecido ficou registrado comigo para sempre. E, acredite ou não, o nome
dela realmente era Becky.

Ninguém jamais questionou abertamente a minha etnia quando eu


36
estava sozinha com a minha mãe. As pessoas não tinham coragem de
perguntar, ou então não conseguiram notar nada de diferente na nossa
aparência ou na cor das nossas peles. A Becky, e muito provavelmente a mãe
dela também, devem ter pensado que o meu pai também era branco, ou que
talvez tivesse uma aparência exótica – mas com certeza não achavam que
ele era negro. Naquele dia na varanda, eu descobri, sem sombra de dúvida,
que eu não era como as pessoas da minha escola e nem do meu bairro. O
meu pai era totalmente diferente deles e eles tinham medo dele. Mas ele
era o meu progenitor; a minha razão de existir é por causa dele. Naquele
dia, eu vi em primeira mão como ele ficava magoado quando as pessoas
tinham medo dele. E ver que ele estava magoado também me deixava
super magoada. Mas o que talvez foi mais doloroso para ele naquela tarde
foi perceber que EU tinha notado que as pessoas tinham medo dele. Ele
sabia que isso iria me impactar para sempre. Ele sabia que eu tinha perdido
a inocência que todas as crianças merecem ter.

37
HODEL

Cantar era uma forma de fuga para mim e compor era uma forma de
processar as ideias. Eu me alegrava fazendo isso, mas o principal motivo
de eu cantar e compor era para que eu conseguisse sobreviver (e continua
sendo). Não foi apenas a minha mãe que reconheceu o meu talento vocal,
mas também os meus professores. Uma amiga da minha mãe era a minha
professora de música e ela era excepcional. Quando eu era criança, eu
participava de algumas peças na escola e cantava para amigos em alguns
eventos. Cantar no palco (ou em qualquer lugar), e imaginar que eu era
outra pessoa, era quando eu mais me conectava comigo. Andar sozinha e
criar melodias enquanto eu cantava para mim mesma era quando eu me
sentia mais preenchida. Até hoje, eu ainda tenho um cantinho todo especial
para mim e é para onde eu vou para me livrar de todas as exigências da
vida e para me conectar mais comigo, cantando sozinha.

Eu estava na quinta série quando eu tive a oportunidade de participar de


um acampamento de verão exclusivo de artes cênicas. Foi uma grande
conquista! Eu poderia finalmente conhecer outros jovens que sonhavam em
ser artistas e aprimorar a minha arte, sem me distrair com a confusão e o
caos da minha casa. Eu consegui o papel da Hodel na peça de teatro, uma
das cinco filhas do personagem principal de Fiddler on the Roof (PT-BR:
Violinista no Telhado). Eu amava ir aos ensaios. Era a minha hora e lugar
favoritos. Eu me sentia confiante, eu aprendia as músicas super rápido e
ainda analisava o significado de cada uma. Ensaiar era algo natural para
mim; eu gostava de repetir tudo que eu fazia várias vezes. Eu adorava
perceber que as minhas apresentações estavam ficando cada vez melhores,
encontrando maneiras novas e melhores de cantar uma música.

A motivação para praticar música também foi algo que a minha mãe
reconheceu e incentivou em mim desde o início. Ela ensaiava as canções
da peça comigo em casa, enquanto tocava no seu piano Yamaha. Mesmo
quando eu era criança, eu me interessava em explorar cada detalhe de uma
música para saber por que ela era tão boa. Eu fiquei fascinada pela
narrativa do musical. Eu até fiz amizade com uma menina do
acampamento, que em sua grande maioria eram crianças judias e ricas.
Nós nos tornamos amigas porque cantar era algo sério para nós e também
porque a gente amava. A gente até parecia um pouco uma com a outra. Ela
era israelense e tinha cabelo crespo, quase pixaim. Então, nós duas
tínhamos um tipo de cabelo bem encaracolado. A gente tentava se vestir

38
igual quando dava certo, nós até tínhamos o mesmo macacão cor de rosa.
Porque as pessoas nos viam juntas e também porque viam algumas
semelhanças físicas entre nós, talvez elas pensaram que eu era uma menina
loira e rica de religião judaica.

Eu amava a Hodel porque ela se apaixonou por um garoto revolucionário


e ela foi até os confins do mundo por causa da sua paixão. A minha
apresentação aconteceu no segundo ato da peça, eu cantei uma música
chamada “Far from the Home I Love” (longe do lar que eu amo). Foi uma
música que caiu bem com a minha voz soprosa, e eu lembro de ter cantado
com muita emoção. A música começa assim:

Que esperança eu tenho de te fazer entender


Por que eu faço o que faço?
Por que eu devo viajar para uma terra distante
Longe do lar que eu amo

O meu pai ia participar da noite de abertura do show no acampamento e eu


fiquei entusiasmada. Ele era um homem prático que não se entusiasmava com
a minha paixão pela arte, mas ele, mesmo sem querer, pagou a metade do
valor da minha cara mensalidade para participar do acampamento naquele ano.
Portanto, embora ele com certeza estivesse indo para me prestigiar, ele
também iria verificar o investimento que ele tinha feito. Eu não tive o privilégio
de fazer uma série de atividades, como as crianças com quem eu estudava
faziam – era pegar ou largar essa experiência no acampamento. Então eu sabia
que eu tinha que aproveitar o máximo possível. Não tinha essa história de pagar
para fazer aulas aqui e ali, aulas de tênis, aulas de violão, aulas de dança ou o
que quer que fosse. Não que eu fosse pisar em uma aula de dança, mesmo
que a gente pudesse pagar. Eu fiquei traumatizada muito antes por causa da
dança.

Uma vez, quando a minha vó Addie estava na casa do meu pai, ela olhou
para mim, com o meu cabelo loiro rebelde e a minha pele clarinha cor de
pêssego, e disse: “Roy, essa menina não é sua filha.” Então, para provar que
ela estava certa, ela se dirigiu a mim: “Garota, dance um pouco para mim”.
Enquanto a música fez parte de toda a minha vida, o mesmo eu não posso
dizer a respeito da dança na minha infância. A minha mãe não dançava; eu
nunca vi os meus irmãos dançarem. O meu pai só passou a dançar no final
dos anos oitenta, quando fez aula de Hustle5.

5 Hustle: é o nome dado a muitas danças disco dos anos 70. Baseado em danças antigas,
como o mambo, o Hustle foi originalmente uma dança em grupo com um toque de salsa
criado na cidade de Nova Iorque e no estado da Flórida.
39
Na minha mente, saber dançar era como se fosse a prova de que alguém
é realmente negro e de que pertence a algum lugar e a alguém – e seria a
prova de que eu era realmente filha do meu pai. Eu não dancei para a Addie
naquele dia. Eu também não dancei quase nada depois desse dia. Eu morria
de medo de não dançar “direito” por causa do meu pai. Eu fiquei parada e
com medo de me mexer, achando que se eu não dançasse bem ou me
movesse para o lado errado, isso de alguma forma provaria que eu não era
filha do meu pai.

Naquele dia no acampamento, fazendo o papel da Hodel, eu cantei,


sorri, andei pelo palco e cantei um pouco mais. Eu cantei a música de um
jeito diferenciado, como se ela fosse uma canção de ninar. Eu cantava bem
e todos sabiam disso. Eu pude ouvir as salvas de palmas quando eu me
curvei ao fim do espetáculo; as palmas eram música aos meus ouvidos
também, elas me dão energia e me enchem de esperança. Quando eu
levantei a minha cabeça, o maior sorriso de todos ali era do meu pai. O seu
sorriso era como o próprio sol. Ele caminhou até a beira do palco,
carregando um grande buquê de margaridas ensolaradas e amarradas com
uma fita lilás. Radiante de orgulho, ele me entregou as flores como se
fossem um grande prêmio. No início, nós dois estávamos tão contentes que
acabamos não notando as pessoas olhando para nós – e não eram olhares
de aprovação e muito menos estavam nos olhando porque a minha
apresentação tinha sido a melhor da noite. Eles estavam nos olhando
porque o meu pai era o único negro à vista e porque eu era filha dele.
Naquela noite, os professores, os pais e todas as outras pessoas que
participaram do acampamento souberam que o meu pai era negro e eu
paguei o preço por isso. Eu fui muito aplaudida e ainda ganhei flores, mas
nunca mais me deram um papel importante naquele acampamento depois
disso.

Por favor, esteja em paz, pai


Eu estou em paz contigo
Não vale a pena se agarrar à amargura
Depois de toda a angústia que nós passamos

– “Sunflowers for Alfred Roy”

40
LUZ DA MINHA VIDA

Desapegar não é fácil


Oh, é extremamente doloroso
Porque alguém que você conhecia
Está abalando o seu mundo
E eles observam enquanto você desmorona,
Desmoronando, amor

– “The Art of Letting Go”

“Você sempre foi a luz da minha vida.”

A minha mãe me dizia isso várias vezes quando eu era criança. Eu queria
ser a luz dela. Eu queria que ela tivesse orgulho de mim. Eu a respeitava
como cantora e como mãe que trabalha para sustentar a família. Eu a
amava profundamente e, como a maioria das crianças, eu queria que ela
fosse um porto seguro para mim. Acima de tudo, eu queria muito acreditar
nela.

Mas a nossa história é uma história de traição e beleza. De amor e


abandono. De sacrifício e sobrevivência. Faz tempo que eu venho me
libertando de todos os tipos de amarras, mas eu suspeito que sempre
existirá uma nuvem de tristeza pairando sobre mim, não apenas por causa
da minha mãe, mas por causa dos momentos complicados que nós
passamos juntas. Isso me causou muita dor e confusão. O tempo me
mostrou que não vale a pena tentar proteger pessoas que nunca tentaram
me proteger. O tempo e a maternidade finalmente me deram a coragem para
falar abertamente sobre a minha mãe.

Para mim, esta é a beira do abismo mais íngreme. Se eu conseguir


chegar viva no outro lado dessa verdade, eu sei que haverá um alívio de
proporções épicas me aguardando. As pessoas que me machucaram
repetidamente, das quais escapei ou me afastei, são super importantes na
minha história, mas não são fundamentais para a minha existência.

Me afastar de pessoas tóxicas que eu amo tem sido muito doloroso, mas
assim que eu encontrei coragem (com oração e ajuda profissional, é claro),
eu simplesmente desapeguei e deixei Deus tomar de conta. (Vou
acrescentar, porém, que há uma enorme diferença entre simples e fácil.
Não é nada fácil.) No entanto, não existe uma maneira “artística” de

41
desapegar da minha mãe, e o nosso relacionamento é tudo menos simples.
Como muitos aspectos da minha vida, os momentos que a minha mãe e eu
passamos juntas foram cheios de contradições e realidades conflitantes.
Nunca foi apenas preto e branco – foi todo um arco-íris de emoções.

O nosso relacionamento é como andar numa corda bamba, que de uma


ponta a outra está cheia de orgulho, dor, vergonha, gratidão, ciúme,
admiração e decepção. Um amor complicado amarra o meu coração ao da
minha mãe. Quando eu me tornei mãe do Roc e da Roe, o meu coração
cresceu duas vezes; à medida que o amor puro se expandia na minha vida,
o ato de transportar o fardo da dor do meu passado diminuía. O amor
saudável e poderoso fez isso por mim: iluminou os pontos escuros e revelou
a dor enterrada. A luz nova e clara que emana do amor dos meus filhos
agora percorre cada artéria, cada célula, cada canto escuro e recanto do
meu ser.

Mesmo depois de todo esse tempo, uma parte de mim imagina que em
um dia qualquer a minha mãe se transformará em uma das mães carinhosas
que eu vi na TV quando criança, como a Carol Brady ou a Clair Huxtable;
que ela de repente vai me perguntar: “Querida, como foi o seu dia?” antes
de me dar um relatório sobre o seu cachorro ou pássaro, ou de me pedir para
pagar alguma coisa ou me pedir para fazer algo – que ela se interessará
continuamente e verdadeiramente por mim e pelo que estou fazendo ou
sentindo. Que um dia ela me conhecerá. Que um dia a minha mãe vai me
compreender.

Até um certo ponto, eu sei como a minha mãe se tornou quem ela é. A
mãe dela certamente não a entendia. E o meu avô nunca teve a chance de
conhecê-la; ele morreu enquanto a minha vó estava grávida dela. A minha
mãe foi criada, com mais um irmão e uma irmã, por uma viúva católica e
irlandesa. A minha mãe era conhecida como a “morena” da casa porque o
seu cabelo não era loiro e os seus olhos eram uma mistura de castanho e
verde, não de um azul puro como os do seu irmão e irmã. Olhos azuis eram
um símbolo da pureza dos brancos, e ser 100% “puro” de descendência
irlandesa era fundamental para toda a identidade da minha vó.

A minha mãe cresceu nas décadas de 40 e 50 em Springfield, Illinois.


Springfield é a capital do estado de Illinois, localizada no centro do estado e
no centro do país. Mas Springfield, como centro, também centralizava um
racismo institucional hipócrita. Em 1908, uma mulher branca foi
supostamente estuprada por um homem negro (a mesma acusação
levantada contra o meu pai e inúmeros outros negros inocentes), o que
desencadeou um motim de três dias por cidadãos brancos em que dois

42
homens negros foram linchados e quatro homens brancos foram mortos a
tiros por empresários negros que protegiam as suas propriedades. Na
década de 20, quando a minha vó estava prestes a atingir a maioridade, a
Ku Klux Klan6 tinha uma forte presença na cidade e na prefeitura,
ocupando vários cargos importantes e definindo a bússola moral para a
comunidade. Springfield era uma cidade abertamente envolta em ódio.

Uma das poucas histórias que a minha mãe contou sobre a sua infância
foi quando ela estava no jardim de infância e dividia o seu tapete com um
menino negro na hora do cochilo. Por isso, as freiras de sua escola católica
a envergonharam publicamente. Obviamente, havia uma série de calúnias
horríveis contra os negros quando a minha mãe era jovem, mas ela também
me contou sobre as calúnias bizarras e os xingamentos que eles usavam
para os italianos, judeus e todos os “outros” quando não estavam por perto.
Ela me deixou a par da hierarquia do racismo em sua comunidade branca.
Ironicamente, mesmo entre os seus amados irlandeses, havia um sistema
de castas sociais que dividia a “cortina de renda irlandesa” da “favela
irlandesa”. A cortina de renda irlandesa era “pura”, rica, respeitável e “bem
posicionada” na sociedade (é só a gente lembrar da família Kennedy),
enquanto a favela irlandesa era caracterizada como suja, pobre e ignorante.
Havia uma necessidade essencial e lamentável, neste sistema, de
desprezar os outros. Para a minha vó, todos os “outros” eram inferiores aos
irlandeses. E enquanto aos negros? Bom, os negros sempre estiveram na
base mais baixa da pirâmide social. Não havia ninguém abaixo deles.

A minha mãe não apenas ignorou o código moral de sua cidade natal,
ela também se rebelou contra ele, tornando-se uma ativista no movimento
pelos direitos civis. Pelos padrões da sociedade em que ela vivia e da sua
família, ela era uma excêntrica liberal. Ela se interessava pela vida fora do
seu mundinho branco pequeno e apertado. Ela era intelectualmente curiosa
e atraída pela cultura, especialmente pela música clássica. Ela lembra que
um dia, enquanto ouvia uma estação de música clássica no rádio, ela ouviu
uma ária. Foi o som mais lindo que ela já tinha ouvido, e ela estava
determinada a achar esse som, dentro de si mesma e fora do mundo. Ela
decidiu começar a sua busca na cidade de Nova Iorque, que parecia um
milhão de quilômetros de distância da sua família e do lugar mesquinho que
eles habitavam.

A jovem Patricia tinha grandes sonhos – muitos dos quais ela realizou.

6 Ku Klux Klan: é uma organização terrorista que surgiu nos Estados Unidos, no século
XIX. É conhecida por utilizar uma roupa macabra e por promover atos de violência contra
negros, judeus, católicos e etc.

43
Ela era extremamente talentosa e motivada. Ganhando uma bolsa de
estudos para a prestigiosa Juilliard School for music (escola de música
Juilliard), ela iria cantar com a New York City Opera (ópera da cidade de
Nova Iorque), fazendo a sua estreia no Lincoln Center7. A minha mãe vivia
uma vida empolgante, artística e boêmia na cidade de Nova Iorque. Ela
morava no centro da cidade e namorou vários homens que a minha vó teria
ficado mortificada se soubesse. A mãe dela – pura, católica e irlandesa –
não teria aprovado que ela namorasse alguém que não fosse branco como
a neve. (Claro, por outro lado, os supremacistas brancos de Illinois não
morriam de amores pelos irlandeses ou pelos católicos – os WASPs
[protestantes brancos anglo-saxões], como eram chamados na época,
sempre precisavam de novas pessoas para poder controlar.) Um italiano
teria sido um problema, um judeu, teria sido uma tragédia. A minha avó teria
ficado completamente destruída se soubesse que a minha mãe teve um
caso amoroso com um libanês rico e mais velho chamado François, pouco
antes de se apaixonar e se casar com um homem que a sua mãe não
poderia sequer imaginar, o meu pai, que era um negro lindo, mas também
complicado. Isso, para a minha avó (e para a comunidade dela) era a pior
coisa que a sua filha poderia fazer para ela e para a linhagem da família.
Falar com um homem negro era considerado vergonhoso; fazer amizade
com um, uma afronta; namorar com um, um grande escândalo, mas se
casar com um? Isso era uma abominação.

Foi a humilhação final. O casamento da minha mãe com o meu pai foi
mais do que uma traição para a minha vó; era um crime grave contra a sua
linhagem branca, punível com excomunhão.

Para a minha vó, que cresceu em uma época e lugar onde o KKK
realizava manifestações abertamente e era ativo no governo, se casar com
um homem negro trazia um fardo de vergonha que ela não conseguia
entender. A minha vó foi criada para não beber do mesmo bebedouro que
os negros, para não se sentar na mesma cadeira que os negros ou nadar na
mesma piscina. Ela foi ensinada, e acreditava, que os negros eram sujos e
que a negritude podia ser contagiosa. Afinal, os Estados Unidos são o berço
da “regra de uma gota”, o sistema de classificação racial que afirma que
qualquer pessoa com um ancestral possuindo pelo menos uma gota de
sangue negro é considerada negra.

Na opinião da minha avó, a minha mãe, ao amar o meu pai, estava se


tornando uma “alimentadora de base”, ou seja, que ela estava se

7 Lincoln Center: é um complexo de edifícios localizado na cidade de Nova Iorque e que


funciona como sede de doze companhias artísticas.

44
envolvendo com alguém da mais baixa base social e que iria gerar humanos
inferiores; iria gerar mulatos vira-latas – eu e os meus irmãos. Não é preciso
dizer que a minha avó renegou completamente a minha mãe. Ela não disse
a ninguém mais na família que a sua filha era casada com um homem negro
(e que estava grávida de um filho). Exceto por alguns telefonemas secretos
aqui e ali, a minha mãe perdeu quase que todo o contato que tinha com a
sua mãe. Ela só voltaria para a sua cidade natal muitos anos depois.

Mesmo a pessoa mais talentosa, piedosa e progressiva não consegue


superar facilmente a rejeição total de uma mãe. Ter o amor de uma mãe é
uma necessidade muito primordial. Qualquer lugar macio que a minha mãe
pudesse ter tido para repousar foi endurecido como concreto pela família e
pela educação ignorante baseada no medo da sua própria mãe. Mesmo o
casamento dela com o meu pai e o nascimento de três lindos filhos não
conseguiram curar totalmente a ferida profunda da rejeição materna – nada
consegue. Eu também duvido que amar um homem negro e ter filhos
birraciais seja o cura-tudo para as gerações de crenças impregnadas de
superioridade branca, e a minha mãe e a sua família foram mergulhadas até
a alma nisso.

Muitas vezes eu me pergunto por que a minha mãe desafiou a mãe dela,
a família e a sua linhagem para se casar com o meu pai. Qual foi a real
motivação dela? Será que foi em nome do amor incondicional? Porque a
relação entre eles nunca foi um “we belong together” (fomos feitos um para
o outro). Ela nunca ficou lembrando do passado e me falando do romance
deles, nem havia qualquer evidência disso: nenhuma foto, nenhum poema,
nenhuma carta, nenhum vestígio de um grande amor. (Bem, eles tinham tido
três filhos.) Talvez a minha mãe quisesse manter a sua história e memórias
do meu pai em segredo, embora eu não possa deixar de me perguntar se o
casamento dela não foi, em parte, uma rebelião contra a sua mãe. Ela fez
isso para chamar atenção e criar um drama com tudo isso? Mais de uma
vez ao longo das décadas, eu ouvi a minha mãe pedir o seu café “preto,
como alguns dos meus homens”. Ela costuma fazer isso na minha frente e
na frente de um dos seus jovens netos negros – que vergonha.

Para ser sincera, eu não sei se a minha mãe alguma vez quis se casar
e ter filhos tão nova. Eu consigo entender que talvez ela quisesse criar uma
rede de segurança, uma nova família para si e continuar abrindo caminhos,
deixando a sua casa e família retrógradas para trás. Mas o que eu não
conseguia entender era por que ela tinha abandonado a sua promissora
carreira de cantora para fazer isso. Desde muito cedo eu decidi que eu não
queria o mesmo destino dela; homem nenhum ou uma gravidez não
planejada não iriam me desviar do caminho. Testemunhar os desvios da

45
minha mãe e da minha irmã foi um alerta triste e doloroso. Ver os seus
sonhos serem consumidos pelo fogo acendeu uma chama de advertência na
minha mente.

Em 1977, a minha mãe gravou um disco que ela chamou To start Again
(para começar de novo). Mas naquela época, ela já tinha um casamento
inter-racial problemático, três filhos, um divórcio e uma filha que ainda
morava com ela, eu. Ela achava que uma gravadora iria descobri-la do
nada? Este é um dos muitos erros de cálculo que, quando eu era criança,
eu observei a minha mãe fazer e colocar em um arquivo chamado “O que
não fazer”.

O tempo passou após o divórcio dos meus pais e, um dia, a minha avó
permitiu que a minha mãe a visitasse com a sua neta, mas só a sua neta
mais nova. Eu era uma garotinha de 12 anos e eu não entendia direito por
que ela só havia convidado a mim. Parando para pensar, eu suspeito que
era porque eu era meio loira e muito branca para uma criança birracial. Eu
não levantava muitas suspeitas para o olho não treinado culturalmente. Eu
era muito jovem para perceber como a minha mãe e a mãe dela interagiam,
e eu nunca soube o que aconteceu entre elas naquela época: houve um
pedido de desculpas por parte da mãe da Pat por renegar a sua filha e
também por não permitir que ela entrasse em contato com a sua família?
Ela lidou com o racismo que ela tinha? Houve perdão? Eu não sei. O que
eu me lembro é que ela era rígida e formal. Ela tinha os cabelos totalmente
brancos, que estavam sempre amarrados, mas deixando de lado uma
franja ondulada na testa. Em seu rosto severo, ela usava óculos pretos com
o formato de olhos de gato. A casa dela não era quente e não havia cheiro
no local. Eu me lembro dela entrando no quarto silencioso e sem vida onde
eu dormia enquanto eu estava lá, depois que a minha mãe tinha me
colocado para dormir. Ela se sentou ao lado da minha cama no escuro e,
em um sussurro,

O pão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai-nos as nossas ofensas
assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido

Mateus 6, 11-12

É tudo que eu me lembro daquela visita que eu fiz para a minha avó. Em
uma reviravolta incomum do destino, ela morreu no dia do aniversário da
minha mãe, 15 de fevereiro. Depois disso, estranhamente, a minha mãe
praticamente a santificou. Como adulta, a minha mãe nunca foi católica
praticante, mas por muitos anos ela acendeu uma vela para a sua mãe

46
naquele dia. É estranho como a morte pode fazer as pessoas perdoarem
aqueles que lhes ofenderam e ofenderam aos seus filhos.

Na maior parte da minha infância, éramos apenas a minha mãe e eu. A


gente se mudava constantemente. Depois de uma busca exaustiva, ela
encontrou um lugar para nós perto da praia. Ela queria morar em um
ambiente mais tranquilo, onde pudesse fazer longas caminhadas com o
cachorro e descer a estrada para ir à praia. Nós duas nos mudamos para o
que ela chamava de “casa de campo exótica”, mas depois eu descobri que
todo o bairro chamava a casa de “barraco”. Achei a descrição dos vizinhos
mais precisa.

Era uma estrutura pequena e frágil coberta por um revestimento


ondulado de tijolos falsos que tinham cedido por causa do clima. Lá dentro,
uma camada de tristeza úmida se infiltrava nas tábuas do piso e nas
paredes, que eram cobertas por painéis baratos de “imitação de madeira”
e que combinavam com carpetes imundos e cheios de pulgas. Não importa
a hora do dia, sempre estava escuro lá dentro. Antes de nos mudarmos, o
lugar havia sido abandonado e se tornado um ponto de encontro onde os
adolescentes fumavam, bebiam e bagunçavam. O barraco era acentuado
com uma entrada não pavimentada de entulho e pedras de difícil acesso e
que ficava de frente para uma grande casa vitoriana branca, que dava a
impressão de que, de tão feia que era a casa, ela havia sido expelida pela
grande casa vitoriana. O barraco estava marcado, e nós também. A minha
mãe e eu éramos a excêntrica senhora e a sua filhinha que moravam no
“barraco”. Que... exótico!

O primeiro capítulo da autobiografia da Marilyn Monroe, My Story (a


minha história), é intitulado “Como eu resgatei um piano branco”. Nele, ela
escreve sobre a sua missão de encontrar o piano de cauda de 1937 da sua
mãe.

Gladys Monroe Baker, mãe de Marilyn Monroe (nascida Norma Jeane


Mortenson), entrou e saiu de clínicas psiquiátricas durante toda a sua vida.
Está documentado que ela sofria de esquizofrenia paranóide, uma doença
incurável que dança violentamente com a mente, onde com um passo a
lucidez acontece por breves momentos, então, sem aviso, com um outro
passo de dança mental a ilusão infernal começa novamente. Como
resultado da incapacidade da sua mãe de manter a sanidade, a Marilyn
passou a maior parte da sua infância em orfanatos, depois morando em

47
inúmeros lares adotivos. Durante um dos raros períodos saudáveis da
Gladys, ela e a pequena Norma Jeane viveram juntas por alguns meses em
uma pequena casa branca perto do Hollywood Bowl. O bem mais precioso
em sua modesta residência era um piano de cauda. Quando a doença da
mãe dela mostrou a sua cara feia novamente, isso fez com que ela fosse
arrastada de volta para a escuridão e levada para outra clínica, os poucos
móveis e o piano foram vendidos.

Após a transformação de Norma Jeane em Marilyn Monroe, a estrela de


cinema, ela falou muito pouco sobre a sua infância, sobre a sua mãe com
problemas mentais ou sobre o seu pai desconhecido. E embora a Marilyn
tenha se tornado um ícone radiante, imagino que houvesse uma parte dela
ainda em busca de uma infância ininterrupta, desejando que a sua mãe
ficasse inteira. Eu vejo como o piano deve ter se tornado um símbolo de uma
época em que ela e a sua mãe estiveram juntas em relativa paz e harmonia.
Os pianos são elegantes, místicos e reconfortantes – deles, melodias
simples e composições majestosas podem surgir e encher uma sala de
estar sombria, um bar úmido, uma sala de concertos ou mesmo um barraco
com alegria e glória.

A Marilyn saiu em missão para encontrar o piano de sua mãe.


Continuando... embora ainda ela fosse uma modelo e atriz buscando o seu
lugar ao sol, ela encontrou e comprou o piano em um leilão e o guardou até
poder levá-lo para a sua casa própria. Ela levava o piano para todas as
residências em que morou. Uma de suas últimas casas foi o luxuoso
apartamento em Manhattan que a Marilyn dividiu com o seu terceiro e último
marido, o renomado dramaturgo Arthur Miller, onde ela revestiu o piano
com um verniz branco espesso e brilhante para combinar com a decoração
glamorosa e angelical do apartamento – “um mundo de branco”, como a sua
meia-irmã, a Berniece Miracle, costumava chamar. “Os meus momentos
mais felizes foram ao redor daquele piano quando eu era criança”, disse a
Marilyn. Eu imagino que quando a nossa infância é cheia de insegurança e
medo como foi no caso da Marilyn e da minha, as horas felizes e perdidas
são romantizadas por nós e é algo extremamente valioso. Eu entendi por
que ela tinha procurado, comprado, guardado e cuidado do piano – e foi por
isso que eu comprei o piano em um leilão na Christie’s em 1999. É um
tesouro e minha obra de arte mais cara. E agora, o piano de cauda branco
da Marilyn Monroe é a peça central, a pièce de résistance (a obra-prima),
da minha glamorosa cobertura em Manhattan. A Marilyn foi a minha
primeira visão de uma superstar com quem eu conseguia me identificar, em
um nível quase que espiritual.

Nós não tínhamos muitas coisas quando eu era jovem, mas o que não

48
podia faltar para a minha mãe era um piano. Nós sempre tivemos um piano
e eu passei muitas horas alegres e de aprendizado junto com a minha mãe.
A minha mãe tocava músicas e escalas comigo, e é claro que eu a ouvia
praticar as escalas dramáticas de ópera. Era ao piano onde eu me sentava
e inventava as minhas próprias melodias.

A minha mãe nunca teve muito dinheiro, mas uma de suas maiores
contribuições para o meu desenvolvimento foi me expor a todos os tipos de
pessoas, especialmente músicos. Ela ganhava alguns dólares aqui e ali
dando aulas de canto em nossa casa. A prática dela era uma constante, mas
o que eu mais valorizava eram os ensaios. Músicos talentosos vinham tocar
música no local boêmio da minha mãe “perto da praia”, e eu tocava com
eles. Música ao vivo era a melhor coisa de se morar com a minha mãe. Eu
estava cercada pelo amor à música, mas muito mais importante que isso,
pelo amor à musicalidade – o amor pela arte, o amor pelo processo. Quando
eu era criança, a minha mãe me apresentou ao mundo de sentar com
músicos: improvisar, sentir o vibe da música e cantar.

Eu particularmente me lembro dela cantando o repertório da Carly


Simon, ela tocava a música dela o tempo todo. Se eu pedisse a ela que
tocasse uma música para eu cantar, ela concordava na hora. Ela nunca me
incentivou a cantar ou a praticar, mas ela me encorajava. Ela soube desde
cedo que eu tinha herdado dela um ouvido aguçado para música. Quando
eu tinha cinco anos, ela conseguiu que eu fizesse aulas de piano por um
curto período. Mas em vez de ler a música, eu tocava “Mary Had a Little
Lamb” (a Mary tinha um cordeirinho) de ouvido. “Não use o seu ouvido, não
use o seu ouvido!” a minha professora implorava. Mas eu não sabia como
não usar o meu ouvido. Como a música era um presente de liberdade em
meu mundo de escassez, o único lugar em que eu sentia que eu não tinha
limites, eu resistia à repetição e à disciplina exigidas para aprender a ler
música e a tocar piano. Ouvir e imitar eram coisas fáceis para mim. Esta é
uma das várias ocasiões em que eu gostaria que a minha mãe tivesse me
incentivado a tocar piano, me fazendo sentar e ficar até o fim.

A minha mãe e o seu amigo guitarrista também cantavam músicas


populares dos anos 40 (claro que essa era a época que eu amava, não
apenas pelo glamour, mas porque as melodias eram muito fortes). Ela
particularmente amava Billie Holiday e costumava cantar as suas canções.
Eu me lembro de ouvir a minha mãe cantar “I Can’t Give You Anything But
Love” (Não posso te dar nada além de amor). Eu aprendi a música e a gente
passou a cantar juntas, e eu fazia scat espontaneamente, que eu amava.
Parecia a minha versão infantil de sentir o Espírito Santo.

49
Eu aprendi várias músicas populares de jazz com a minha mãe e com os
seus amigos músicos, e alguns deles perceberam o meu ouvido aguçado e
as minhas habilidades naturais. Por volta dos 12 anos, eu me sentava com
ela e o Clint, um pianista. Ele era moreno e parecia um ursão de pelúcia, e
ele se garantia tocando piano. Ele se sentava e trabalhava comigo e me
tratava como uma cantora de verdade. Quando eu me sentava com ele e
cantava, nós éramos dois músicos trabalhando juntos. Ele me ensinou
clássicos do jazz, e uma das primeiras canções que eu lembro de ter
aprendido foi “Lullaby of Birdland” (canção de ninar de Birdland), que ficou
famosa na voz da grande Ella Fitzgerald. Eu sempre terei um profundo
respeito pela Sra. Fitzgerald e todas as lendas do jazz que estabeleceram
uma base musical tão fértil para músicos de todos os gêneros. Não era uma
música fácil de ser cantada por pessoa de nenhuma idade, mas para mim
aos doze anos, era muito mais do que avançada. Com a sua melodia
complexa, cheia de transições e mudanças vocais, ela foi composta por uma
das vocalistas de jazz mais ágeis de todos os tempos. Aprender e ouvir jazz
ao vivo ajudou a treinar o meu ouvido e a moldar a minha estrutura criativa.
Eu estava aprendendo como sentir, quando modular e quando fazer scat.
Ser apresentada às musicas populares e à disciplina do jazz me deu o
apreço pelas modulações sofisticadas em uma música e como empregá-las
para comunicar emoções. (O Stevie Wonder é o mestre absoluto disso.)

Para mim, as músicas tem que passar emoção. A minha mãe pode não
ter me levado à igreja, mas tocar com músicos de jazz foi uma experiência
espiritual próxima disso. Existe uma energia criativa que flui pelo local. Você
aprende a sentar e a ouvir o que os outros músicos estão fazendo e se
inspira em um riff de guitarra ou no que o pianista está tocando. Quando
você entra nessa vibe musical, é uma sensação indescritível. Para mim, era
sempre uma forma de fuga extraordinária, que eu sempre precisava e
buscava.

Quando eu tinha por volta de onze ou doze anos, a minha mãe me


levava a um restaurante em Long Island para ficar com ela e os outros
músicos. Havia uma sala de jantar no térreo onde o jantar era servido, e no
andar de cima havia jazz ao vivo. Eu estava na sexta série, e eu ficava lá
em cima com os músicos em todas as horas da noite e em qualquer dia da
semana. Não tenho certeza se a minha mãe só queria poder sair à noite e
cantar e não ficar presa no barraco – ops, quero dizer “casa de praia” – com
uma criança, ou se ela estava conscientemente me desenvolvendo como
artista, ou se talvez ela quisesse apresentar às amigas a sua filhinha
caçula? Eu me lembro dela me encorajando enquanto eu cantava. Eu me
sentia mais bem-vinda (e natural) com os músicos de jazz à noite no
restaurante do que com os meus colegas de classe durante o dia – crianças

50
essas que viviam me perguntando: “Qual é a sua etnia?” Crianças essas
que me julgavam pela minha aparência e não tinham ideia de como a minha
vida realmente era. Eu sempre soube que o mundo suburbano de Long
Island não era para mim. Eu era um peixe fora d'água e, embora eu tivesse
sobrevivido, eu sabia que ninguém ali realmente se importava comigo, e eu
certamente sabia que eu não ia ficar por muito tempo.

E a minha mãe não era apenas uma senhora mais velha que me apoiava
– ela era uma musicista treinada na Juilliard. A música era algo que a gente
realmente tinha em comum, e sem forçar ou se tornar uma daquelas mães
de palco autoritárias ou “momagers8” (mãe agentes), ela incutiu em mim o
poder de acreditar em mim mesma. Sempre que eu pensava sobre o que
eu faria “se o meu sonho se tornasse realidade”, ela me interrompia e dizia:
"Não diga ‘e se o meu sonho se tornasse realidade’, diga ‘quando o meu
sonho se tornar realidade’. Acredite que os seus sonhos podem se tornar
realidade, que eles se realizarão.”

Uma das minhas maiores qualidades foi acreditar que eu poderia me


tornar uma artista de sucesso. Na mesma época, a minha mãe me
inscreveu em um concurso de talentos da cidade e eu cantei uma das
minhas músicas favoritas: “Out Here On My Own” (aqui sozinha) da Irene
Cara.

Eu sentia que “Out Here On My Own” era uma descrição perfeita de toda
a minha vida e eu adorava cantar assim – de um modo que parte da minha
alma se revelasse. E eu ganhei o concurso fazendo isso. Naquela idade,
eu era alucinada pelo filme Fame (PT-BR: fama), e a Irene Cara era tudo
para mim. Eu me identificava com o seu visual multicultural (porto-riquenho
e cubano), com o seu cabelo multitexturado e, acima de tudo, com a sua
ambição e com as suas conquistas. Ela ganhou um Oscar de Melhor
Canção Original com a música “Flashdance... What a Feeling” (que ela co-
escreveu), do filme Flashdance (PT-BR: Flashdance – em ritmo de embalo),
fazendo com que ela se tornasse a primeira mulher negra a vencer em uma
categoria que não fosse atuando. (Ela ganhou um Grammy, um Globo de
Ouro e um American Music Award pela música também.) Mas “Out Here
On My Own” era uma música tão pura e que tocava o meu coração, e eu
não conseguia acreditar que eu tinha ganhado um troféu por cantar uma
música que eu amava. Foi a primeira vez em que eu fui reconhecida como
artista. Que sensação!

8 Momager: a matriarca e empresária da família Kardashian-Jenner, normalmente é


chamada de 'momager', pela imprensa local. Uma combinação de mom (mãe) e manager
(agente).

51
A minha mãe não me expôs somente à música. Ela tinha amigos que
me tratavam como família, o que ajudou a compensar todos os lugares
miseráveis em que a gente morou e o quanto eu parecia descabelada.

A minha mãe tinha uma amiga chamada “Sunshine”, que era baixa e
bem gordinha, com um coração caloroso e generoso. Ela amarrava o
cabelo em dois longos rabos de cavalo, como a Carole e a Paula de The
Magic Garden (o jardim mágico – um programa de TV infantil local que eu
adorava, e que era apresentado por duas jovens mulheres hippie com um
esquilo rosa de lado, que cantava canções folclóricas e contava histórias,
nos anos setenta e no início dos anos oitenta). A Sunshine tinha filhos
grandes e mais velhos e nenhuma filha, então ela se interessou por mim,
especialmente pela minha aparência desarrumada e negligenciada. Ela
costumava me trazer roupas fofas e bem femininas que ela mesma fazia.
No meu sexto aniversário, ela me vestiu com uma camisa branca bordada
que combinava com uma saia azul, meia-calça branca e sapatos Mary
Jane. Ela até fez o meu cabelo assentar fazendo rabo de cavalo em mim
(talvez porque ela era judia e tinha o cabelo texturizado, ela acabou tendo
uma ideia do que fazer). A minha coroa de aniversário coube bem direitinho
na minha cabeça. Ela até comprou um bolo de aniversário para mim com a
decoração de um cordeiro (lamb)! Um cordeiro! É uma das poucas vezes
em que eu me lembro de me sentir bonita quando eu era criança. A
Sunshine, amorosamente, se certificou que eu ficasse arrumada e bonita.
Ela sempre foi muito carinhosa e doce comigo. Anos mais tarde, quando eu
ia fazer o ensino fundamental, ela apareceu com algumas roupas para mim
e que eu achei muito infantis. Eu rejeitei de forma muito grosseira, de um
jeito todo cruel que só um pré-adolescente angustiado sabe fazer. Até hoje,
eu lamento por ter sido tão cruel com uma pessoa tão atenciosa e que
cuidou tanto de mim – uma das poucas pessoas que fizeram isso em toda
a minha vida.

Eu tentei ao máximo aceitar todas as escolhas infelizes da minha mãe


em relação aos seus namorados. Eu até tentava impressioná-los. (Alguns
dos nomes foram mudados para proteger os idiotas.) Essa é a história de
um certo homem na vida da minha mãe pouco antes dela conhecer o meu
pai e ele se tornar a peça central da nossa família. Nós sabíamos o nome
dele, François, sabíamos que ele era libanês e sabíamos que ele era rico.
Apesar de ser muito talentosa, a minha mãe, como muitas mulheres da sua
época, acreditava que um homem era a sua fonte de segurança mais
confiável. A minha mãe começou a namorar com o meu pai pouco tempo
depois de ter terminado com o François; até mesmo se cogitou que ela tinha
namorado com os dois ao mesmo tempo, o que levantou a suspeita de que
talvez o Morgan não fosse filho do meu pai. Passada.

52
Depois de se divorciar do meu pai, a minha mãe e o François se
reconectaram, e ela planejou um reencontro épico com “o homem rico que
ela deixou escapar de suas mãos”. A minha mãe deixou tanto a mim quanto
ao Morgan entusiasmados com a fantasia de que um homem rico e exótico
viria nos resgatar dos nossos aposentos decadentes, e que o nosso futuro
estava garantido pelo resto da vida – tudo o que a gente tinha que fazer era
impressioná-lo. Eu poderia fazer isso, eu pensei. Talvez a minha mãe e eu
pudéssemos cantar uma música ao piano? A noite do grande encontro
deles chegou, e enquanto a minha mãe e o François não chegavam em
casa, eu escolhi a melhor roupa que eu tinha para cumprimentá-lo. Eu
estava nervosa, porque a minha mãe queria muito ser resgatada, e eu
também queria morar em um lugar bom e seguro. Tinha muita coisa em
jogo.

Eu estava sozinha em casa quando a minha mãe e o François voltaram


(eu muitas vezes ficava sozinha em casa quando eu era criança). Disposta
a fazer a minha parte para que esse relacionamento desse certo para a
minha mãe, eu corri para a porta. O François entrou antes dela. Ele era um
homem alto e imponente, e estava usando um terno escuro com traços
elegantes e misteriosos. “Olá!” eu cumprimentei alegremente, talvez
fazendo uma reverência para causar uma boa impressão. “Cala a boca!”
ele vociferou. “Onde está o meu filho!?”

A força de suas palavras esmagou todo o entusiasmo que havia em


mim. Ele era assustador. Eu era apenas uma criança e esse homem grande
e estranho chega invadindo a minha casa, me dispensando e gritando
comigo. Eu corri chorando para o quarto da minha mãe. Ela tentou me
acalmar, mas não adiantou. Não tenho certeza se o François alguma vez
viu o Morgan (que era a imagem cuspida e escarrada do nosso pai). Mas
eu nem preciso dizer que nenhum homem rico e heróico nos salvou naquele
dia; nenhum homem nos “salvou” em nenhum dia.

Eu não gostava e nem confiava na maioria dos namorados da minha


mãe. Ela namorou um cara negro e mais velho, chamado Leroy, que tentou
nos “proteger” do Morgan durante um dos seus ataques de violência,
dizendo: “eu peguei a minha arma” e mostrando uma pistola. Imagina só: o
namorado da sua mãe segurando uma arma e ameaçando atirar no filho
adolescente dela, no seu irmão. Infelizmente, eu me senti mais segura
quando ele fez isso; o Morgan tinha se tornado uma presença assustadora
para mim naquela época.

No entanto, nem todos os namorados da minha mãe eram ruins. Nada


e nem ninguém é 100% ruim. Houve um homem gentil na vida da minha

53
mãe chamado Henry. Ele foi o meu favorito. Ele era cerca de dez anos mais
novo que a minha mãe e era horticultor. Ele dirigia uma velha picape
vermelha, equipada para o campo; as suas muitas ferramentas de
jardinagem, tesoura de poda, adubo e outros suprimentos eram tão grandes
que acabavam não cabendo na parte traseira do veículo. Ele era bom no
que fazia. Ele era muito bem educado e cultivava plantas extraordinárias
que eram bem mais altas do que eu (principalmente algumas espécies que
eram ilegais na época). Ele também deixou o seu cabelo crescer, um cabelo
afro que parecia flutuar em torno de sua cabeça. A minha mãe e eu
moramos em alguns lugares diferentes com o Henry, mas por um tempo
nós três ficamos em uma pequena casa em uma grande propriedade, onde
ele era o jardineiro. O lugar me dava a impressão de que eu estava numa
plantação, e a gente vivia, no que se diz hoje, nos aposentos dos
empregados. No entanto, a casa do Henry era muito melhor do que a
maioria das casas que a gente tinha morado e eu sentia uma leve sensação
de estabilidade.

Eu estava na terceira série quando a gente morou lá, e o Henry construiu


um balanço para mim em uma árvore grande e velha que mais parecia para
mim uma mini-montanha feita de lixo. Um dia ele trouxe para casa dois
gatinhos que ele tinha achado, um para mim e outro para ele. Eu gostei
mais do dele; ele era laranja, com um espírito muito especial. Por fim, ele
acabou se tornando meu. Ele cresceu e se tornou grande e mole, e o nome
do meu gato era Morris, um ícone para mim. Eu me sentava e balançava
com ele no meu colo. Nós realmente nos amávamos. Eu confiei nele
quando eu tive um dia muito difícil na escola, o que era frequente. Eu nunca
me dei bem com as crianças, que eram todas brancas e a maioria morava
em grandes propriedades daquele bairro. Eu era a filha da namorada do
jardineiro e eles faziam questão de me falar isso. Eu contava os meus
problemas para o Morris. Mesmo se eu tivesse tido amigos, eu não iria
querer que eles vissem que eu morava perto de um depósito de lixo. Uma
vez, quando eu fiquei triste por ter brigado com a minha mãe, eu saí
correndo de casa, peguei o meu gato e fui direto para o meu cantinho.
Enquanto eu me balançava sobre a colina de lixo com o Morris no colo, com
o cheiro de comida podre pairando sobre o meu rosto, eu prometi a mim
mesma, não importa o que aconteça, eu jamais esquecerei como é ser uma
criança – um momento que recriei anos depois no clipe “Vision of Love”.
(Sem o lixo. Eu queria passar sentimento, não ser sombria.)

Eu realmente gostava do Henry; ele era ariano como eu. A gente


dançava e ele me levantava e girava. Ele me proporcionou momentos de
como poderia ser a vida de uma garotinha despreocupada. O Henry era
gentil e ele pagou pelo meu segundo ano de acampamento de verão em

54
artes cênicas. Eu me lembro da mãe dele, que trabalhava para Estée
Lauder, e era uma cozinheira excepcional. Um dia ela preparou uma pasta
divina, finalizando com um bolo de chocolate alemão, que eu nunca tinha
comido antes. Era um bolo caseiro muito delicioso, quente e que derretia
nas mãos. Mas mesmo com todo esse amor, também havia a parte ruim. O
Henry era um homem negro veterano da guerra do Vietnã que sofria muito
por causa dessas duas coisas. Eu suspeito que ele sofria de transtorno de
estresse pós-traumático (TEPT) e, mesmo eu sendo criança, eu sabia que
ele usava drogas psicodélicas de vez em quando. Eu acredito que ter ido
para a guerra do Vietnã e as consequências que ela lhe causou e o fato de
ser negro foram as causas principais do término do namoro entre ele e a
minha mãe.

Um certo dia, prestes a terminar o meu terceiro ano escolar, eu cheguei


em casa e a minha mãe estava revoltada. Ela anunciou: “Não podemos
mais ficar aqui. Temos que ir embora agora.”

Ela já tinha embalado as nossas coisas e colocado dentro do carro. O


Henry estava sentado em uma cadeira no meio da cozinha. As luzes
estavam apagadas e eu consegui ver a enorme silhueta do seu cabelo afro.
Ele estava segurando uma longa espingarda de cano duplo em uma das
mãos. Olhando para o chão de linóleo branco, ele disse muito calmamente:
“Você não vai embora. Eu não vou deixar vocês irem embora.” Ele
continuou de cabeça baixa e falando baixo e parecia estar em uma espécie
de transe.

“Eu não vou deixar vocês irem embora”, ele disse. “Eu vou cortar vocês
em pedacinhos e vou colocá-las na geladeira e fazer com que vocês fiquem
aqui.” Bem, depois que ele disse aquilo, eu corri para entrar no carro. A
minha mãe ligou o motor.

“Morris!” Eu gritei. “Eu tenho que pegar o Morris; ele ainda está lá
dentro!” Em pânico, eu pulei para fora do carro. Eu estava determinada a
pegar o meu gato. Aquele gato era muito importante para mim; ele era um
amor incondicional para mim.

“Tenha cuidado”, disse a minha mãe, enquanto me levava para entrar


novamente numa casa ocupada por um homem armado que tinha acabado
de ameaçar de nos esquartejar. (O Henry nunca fez nada para me
machucar e talvez ela acreditasse que ele não faria agora, mas mesmo
assim.) Eu tive de passar pela cozinha, com o Henry e a espingarda, para
procurar o Morris nos outros cômodos. Quando eu finalmente o encontrei,
eu o peguei em meus braços, corri para fora de casa e pulei dentro do carro.

55
Quando saímos em alta velocidade, o meu coração estava faltando sair
pela boca de tão forte que batia. “Aleluia, eu peguei o Morris!” Eu exclamei
triunfantemente.

Eu nunca soube o que aconteceu entre ela e o Henry, e nunca mais o vi


depois daquele dia. Eu soube que, muitos anos depois, enquanto ele
andava pela estrada em sua mesma picape vermelha vintage, “Vision of
Love cantada por Mariah Carey”, saiu estourando no seu antigo rádio. Me
disseram que ele abaixou a janela e gritou para o vento: “Ela conseguiu!
Ela conseguiu!” Eu realmente espero que o Henry tenha conseguido
também.

A minha mãe de vez em quando tentava nos proporcionar bons


momentos. Ela economizava um pouco de dinheiro para que a gente
pudesse fazer coisas como ir jantar em Nova Iorque. E foram nessas
excursões que eu desenvolvi o gosto pelas “coisas boas”. Eu me lembro
bem de uma noite em que a gente estava voltando para casa. Eu estava
olhando pela janela de trás para o horizonte de Nova Iorque e eu disse a
mim mesma: é onde eu vou morar quando eu crescer. Eu quero sempre ver
essa paisagem.

Eu sempre soube que os lugares que a gente morou eram horríveis se


comparados com as belas casas das outras pessoas nos subúrbios. Eu
nunca sonhei em me casar para morar em uma grande casa vitoriana
branca, ou mesmo em uma casinha aconchegante como a dos meus tiados.
Mas eu imaginava algo grande. Eu me lembro de assistir o filme Mommy
Dearest (PT-BR: mamãezinha querida) e ficar encantada com a mansão
impecável da Joan Crawford. É esse tipo de casa que eu quero, eu pensei.

Eu até cheguei a acreditar que a minha casa superaria o esplendor da


casa do filme. Mesmo naquela época, eu já me via morando em uma
mansão ou em algo muito maior, porque eu sabia que eu iria realizar os
meus sonhos. E quando eu via o horizonte da cidade de Nova Iorque,
parecendo um gigante cristal de prata incrustado com joias multicoloridas,
eu imaginava que eu iria morar em algum lugar onde eu pudesse apreciar
isso. E eu moro num lugar assim. Eu vejo tudo claramente; eu vejo a cidade
inteira do último andar da minha cobertura no centro de Manhattan. Como
resultado de muito trabalho, de uma garotinha que se balançava atolada no
lixo, eu me tornei uma mulher que canta em uma mansão nas alturas.

Então, sim, a minha mãe me expondo à beleza e à cultura me deu


incentivo e lições ao longo da vida que contribuíram tanto para a minha arte
quanto para o que há de bom em mim. Mas a minha mãe também causava

56
bastante confusão, e traumas e uma profunda tristeza eram consequências
disso. Eu levei uma vida inteira para encontrar a coragem de enfrentar a
dura dualidade de quem é a minha mãe, a beleza e a fera que coexistem
em uma pessoa – e para descobrir que há beleza em todos nós, mas as
pessoas que te amaram e como elas te amaram determinará quanto tempo
se levará para perceber isso.

Me lembrando de algumas coisas agora, eu posso dizer que eu fui muito


negligenciada quando eu era criança. Por um lado, havia certas pessoas
que a minha mãe deixava ficar perto de mim, particularmente o meu irmão
violento, a minha irmã problemática e os namorados dela de
comportamento duvidoso. E muitas vezes eu ficava muito desarrumada,
embora hoje eu acredite que seja muito mais porque a minha mãe era
distraída (por ela ser uma pessoa boêmia) do que uma pessoa ruim. No
entanto, eu percebi que o nosso relacionamento mudou quando eu tinha
cerca de catorze anos. Certa noite, enquanto a gente andava no “Dodge
Dent” juntas, que era como ela chamava a marca do carro dela, a música
“Somebody’s Watching Me” (alguém está me observando), do Rockwell,
começou a tocar no rádio. Foi um grande sucesso internacional da
gravadora Motown Records na época, e eu adorava, principalmente porque
o Michael Jackson cantava a parte do refrão. Nós estávamos no carro
ouvindo a música e dançando também quando a minha mãe começou a
cantar a parte do refrão em que o Michael canta: “I always feel like /
Somebody’s watching me” (Eu sempre sinto / que alguém está me
observando).

Ela cantou o refrão com a sua voz de ópera, e eu virei o meu rosto para
o lado para segurar a risada. Cara, é uma música de R&B dos anos 80,
com o refrão cantado pela voz suave do Michael Jackson, então ouvir o
refrão sendo cantado no estilo da Beverly Sills (uma cantora soprano de
ópera nascida no Brooklyn, popular entre as décadas de 50 a 70) foi muito
engraçado para mim como adolescente.

Ah, mas a minha mãe não achou nada engraçado. Ela baixou o som e
olhou para mim, os seus olhos verde castanhos se estreitaram e ficaram
duros e frios como gelo.

“Qual é a graça?” ela cuspiu. Estragando completamente o momento de


descontração com a sua seriedade. Eu gaguejei: “Hum, bem... a senhora
não cantou certo.” Ela olhou para mim de um jeito que o ar ficou totalmente
pesado. Quase rosnando, ela disse: “Espere um dia se tornar metade da
cantora que eu sou.” O meu coração parou.

57
Ainda hoje, o que ela disse me assombra e me machuca. Eu não sei se
ela queria me diminuir ou foi apenas um reflexo do seu ego ferido falando;
eu só sei que as palavras que saíram da sua boca perfuraram o meu peito
e se enterraram no meu coração.

As palavras que ela disse ainda permaneciam dentro do meu coração


em 1999, quando eu fui reconhecida e respeitada pela minha voz e pelas
minhas composições por dois dos maiores talentos da ópera de todos os
tempos. Eu fui convidada para cantar com o Luciano Pavarotti no
conceituado show “Pavarotti & Friends” (Pavarotti e Amigos), que era um
evento anual de arrecadação de fundos para crianças em países
devastados pela guerra, apresentado pelo grande tenor, o maestro, em sua
cidade natal Modena, Itália. (O show foi dirigido para a TV pelo Spike Lee,
sacou?) Modena é uma cidade antiga conhecida por produzir carros
esportivos sofisticados como Ferraris e Lamborghinis, bem como vinagre
balsâmico – e tenho certeza de que todos os luxos que o maestro desejava
eram importados. Eu levei a minha mãe e o meu maravilhoso sobrinho Mike
comigo. Eu fiquei orgulhosa e feliz por poder convidá-la para uma viagem
glamorosa e apresentá-la a um dos seus ídolos. Em um vestido de tafetá
sem alças de seda rosa claro, a minha mãe me viu dividir um grande palco
ao ar livre na frente de cinquenta mil pessoas com um dos maiores e mais
famosos cantores de ópera de todos os tempos. Não só cantamos juntos,
ele cantou a minha música também: o Pavarotti cantou uma versão italiana
de “Hero” comigo, para o mundo inteiro ver e ouvir. Para a minha mãe ver
e ouvir.

Então, em maio de 2005, eu conheci a incrível soprano Leontyne Price


(a primeira mulher negra a se tornar uma prima donna9 no Metropolitan
Opera e a cantora clássica mais premiada) quando ela estava sendo
homenageada no ilustre Legends Ball (Baile de Lendas) da Oprah, que
celebrou 25 mulheres afro-americanas na arte, entretenimento e direitos
civis. O fim de semana histórico começou na sexta-feira com um almoço
privado em sua casa em Montecito, onde as “lendas” foram saudadas pelas
“jovens”, incluindo Alicia Keys, Angela Bassett, Halle Berry, Mary J. Blige,
Naomi Campbell, Missy Elliott, Tyra Banks, Iman, Janet Jackson , Phylicia
Rashad, Debbie Allen, eu e muitas outras.

E durante o extraordinário fim de semana, nós, as jovens,


homenageamos as lendas por suas grandes contribuições. A minha mãe
costumava se gabar: “Ah, sim, a Leontyne e eu tínhamos o mesmo
professor de canto”, e aqui estava eu saindo com ela (na casa da Oprah

9 Prima Donna: cantora encarregada do papel principal de uma ópera.

58
Winfrey, nada menos que isso)! A madame Price se lembrou da minha mãe
e também reconheceu o meu talento.

Depois do natal daquele mesmo ano, num papel timbrado da cor da


casca de ovo super elegante e espesso, eu recebi uma carta dela:

“No difícil e exigente negócio das artes, você é uma joia de sucesso.
Alcançar o seu nível de sucesso como artista multidimensional é uma
medida notável do seu talento artístico.” Continuando,

Foi um prazer conversar com você durante o fim de semana em que o Legends Ball
ocorreu e dizer pessoalmente o quanto eu admiro você e o seu talento artístico. A sua
criatividade e as suas apresentações são excelentes. Você apresenta as suas
composições com uma profundidade de sentimento que raramente, se é que acontece,
é visto ou ouvido. É uma alegria ver você transformar todos os obstáculos que você
enfrentou em trampolins para o sucesso. A sua devoção à arte e à sua carreira são
louváveis. Você merece ser aplaudida de pé e um sonoro Brava! Brava! Brava!

*Passada*

Acho que, para a minha mãe, eu posso não ter sido nem a metade da
cantora que ela era, mas eu dei o melhor de mim tanto como cantora quanto
como artista.

Foi a primeira vez que eu percebi como palavras equivocadas de uma


mãe podem realmente afetar uma criança. Que diferença uma simples
risada dela teria feito. O que quer que tenha nos conectado antes, um frágil
vínculo de mãe e filha, foi quebrado naquele momento. Houve uma
mudança considerável: ela me fez sentir como se eu estivesse competindo
com ela, como se eu fosse uma ameaça. No lugar do vínculo que a gente
tinha, cresceu um laço diferente, cresceu um laço que nos amarra por causa
do DNA e por causa das obrigações sociais. De forma alguma a minha mãe
destruiu os meus sonhos de ser bem-sucedida naquele dia; a minha fé já
era muito forte naquela época.

Saber que pessoas que você ama tem inveja de você profissionalmente
faz parte do sucesso, mas quando a pessoa é a sua mãe e a inveja é
revelada em uma idade tão tenra, é particularmente doloroso. Eu estava
passando por dificuldades naquela época, e ela expor a sua insegurança
para mim daquela forma, naquele momento, me deixou muito mal. Eu já
tinha corrido tanto perigo de vida e por tanto tempo. Embora tenha sido um
momento sutil e breve, este foi o primeiro grande golpe de muitos que viriam
em que as pessoas próximas a mim tentariam me colocar para baixo, me
colocar no meu lugar, me subestimar ou se aproveitar de mim. Mas ela,

59
particularmente, foi a que mais me machucou, porque ela era a mais
importante. Ela era a minha mãe.

60
CHÁ DE DENTE-DE-LEÃO

Uma flor me ensinou a orar


Mas conforme eu crescia, a flor mudava
Ela começou a se agitar com o vento
Como pétalas de ouro que se espalham

– “Petals”

Ela chamava a si mesma de dente-de-leão – uma flor selvagem amarela


brilhante com pequenas pétalas em forma de dente que dá o primeiro sinal de
que a primavera se aproxima. Depois que o seu florescimento termina, as
pétalas secam e a cabeça se transforma em uma bola de penugens rendadas
de poeira carregando as sementes. A lenda diz que se você fechar os olhos,
fizer um pedido e soprar as pétalas no ar, o seu pedido dará uma volta pelo
mundo e se tornará realidade. Os ingleses às vezes as chamam de margaridas
irlandesas. E o chá feito da raiz e das folhas é amplamente considerado como
tendo propriedades de cura. Mas essas flores silvestres também podem ser
uma ameaça, envenenando flores preciosas e a grama em crescimento – ervas
daninhas que devem ser arrancadas e descartadas.

Quando eu era pequena, a minha irmã mais velha parecia viver ao vento.
Ela sempre estava em algum lugar distante. Memórias de infância sobre ela
existem em minha mente como flashes de relâmpagos e trovões. Ela era
excitante, mas imprevisível – as suas rajadas torrenciais sempre traziam
consigo a destruição inevitável.

O afastamento entre a minha mãe, o meu pai, a sua primeira filha e eu é


muito grande. Ao contrário dela, enquanto eu crescia, eu nunca passei um
tempo considerável como parte de uma família inter-racial inteira. A maioria das
minhas experiências foi com um dos pais de cada vez – eu com a minha mãe
ou então eu com o meu pai. Eu não me lembro deles como um casal feliz. É
bizarro até imaginar que eles já foram casados, não apenas por causa da etnia
deles, mas por serem diferentes como pessoas. Mas antes de eu nascer, a
família Carey era formada por um pai negro, uma mãe branca e um menino e
uma menina mistos. Os quatro desciam a rua e as pessoas sabiam. Este
quarteto rebelde dos Carey experimentou a espetacular ignorância e a ira de
uma sociedade lamentavelmente despreparada para recebê-los ou aceitá-los;
Loving v. Virginia, a decisão da Suprema Corte que derrubou a lei que proíbe
o casamento inter-racial nos Estados Unidos, só viria a acontecer três anos
após o casamento da minha mãe e do meu pai. Como resultado da hostilidade

61
da sua comunidade e país, o Morgan e a Alison foram instruídos pelos nossos
pais a se referirem a eles como “mãe” e “pai”, na esperança, imagino, de que a
formalidade pudesse fazer com que o status deles fosse respeitado. Os meus
pais pareciam pensar que se os vizinhos ou outros curiosos ouvissem a sua
filha e o seu filho dizerem: “Bom dia, mãe” ou “Olá, pai”, eles não os achariam
nojentos.

O Morgan e a Alison eram crianças lindas e muito próximas quando eram


jovens. A Alison tinha a pele de um pudim de caramelo cremoso, com cabelos
cheios de cachos grossos, profundos e escuros e olhos que combinavam. Ela
era extremamente inteligente e curiosa e adorava aprender. Me disseram que
ela tirava boas notas na escola, que ela frequentava boas escolas e também
que adorava música. Mas ela viveu de antemão o desconforto e a animosidade
dirigidos a ela e à sua família mista excêntrica. Ela viu os seus vizinhos jogarem
carne crua com cacos de vidro para os cachorros da família comer e ela viu o
carro da família explodir. Ela viu coisas dentro da família também, coisas que
uma criança jamais deveria ver e que eu nunca saberei. Eu sei que o que ela
passou prejudicou e arruinou a sua infância.

Ela estava totalmente ciente de quando a unidade familiar se desfez e os


nossos pais se viraram um contra o outro; ela absorveu toda a dor de uma
família se desestruturando. Ela também viu outra filha entrar no clã, quebrando
a simetria e mudando o seu status de filha única e caçula. Eu era a filha caçula
agora. Quando a minha mãe e o meu pai não conseguiam mais viver juntos
sem se torturar emocionalmente, eles se divorciaram para sobreviver
separados. Nós três, os filhos, seríamos atormentados pela dor, ressentimento
e pelo ciúme pelo resto da vida.

A Alison e o Morgan acreditavam que a minha vida era mais fácil do que a
deles. O nosso pai era muito rígido com eles. Ele não foi rígido comigo porque
três ou quatro anos era a idade que eu tinha quando todos nós morávamos
juntos. Durante uma de suas inúmeras brigas, eu me lembro vagamente da
minha mãe gritando com ele algo como: “Esta aqui é minha! Você não vai
encostar nessa daqui.” Eu era a caçula dela. Ela costumava dizer que “não
tinha forças” para desafiar a agressividade do meu pai quando os meus irmãos
estavam crescendo.

Eu só tenho uma lembrança que é todos nós jantando juntos. Foi uma
espécie de “jantar para fazer as pazes” – os meus pais tentando mais uma vez
ver se a gente conseguiria se estruturar como família. Todos nós estávamos
sentados em volta da mesa e eu comecei a cantar.

O meu pai disse: “crianças tem que ser vistas, não ouvidas”.

62
A artista dentro de mim interpretou isso como uma deixa, então eu me
levantei da mesa de jantar, dei alguns passos até a área da sala de estar (que
estava bem à vista e bem ao alcance da voz), subi em cima da mesa de centro
e continuei a cantar a plenos pulmões. A Alison e o Morgan baixaram a cabeça,
se abaixando diante da ira do nosso pai, que eles tinham certeza de que
inevitavelmente ricochetearia pela sala. Mas a minha mãe olhou para ele e ele
não disse nada. A minha irmã e o meu irmão ficaram pasmos. Eu não fui
atingida, punida, nem gritaram comigo ou mesmo me pararam. Eles nunca
teriam ousado desafiar o nosso pai. Não é à toa que eles me odiavam.

Não é preciso dizer que o jantar não nos salvou. O divórcio era inevitável.
A minha mãe e o meu pai tomaram a decisão final de terminar antes que tudo
desmoronasse. Eu lembro que me levaram à casa dos nossos vizinhos e eles
me deram pipoca enquanto a minha família estava na casa ao lado discutindo
com quem ficaria cada membro da família Carey. Depois de vários encontros
violentos envolvendo a polícia, por ordem do tribunal, o meu pai e o meu irmão
não puderam morar juntos. Em um dado momento, o Morgan foi levado ao
Centro Psiquiátrico Infantil de Sagamore, um centro de cuidados para crianças
com graves problemas emocionais e famílias em crise. O Morgan era uma crise
por si só. Eu também soube que um psiquiatra chegou à conclusão que um
fator determinante e considerável para os problemas comportamentais do
Morgan era a Alison, que tinha o talento de instigar e manipular o Morgan até
ele perder o controle. A Alison é muito esperta. Então o Morgan teve que morar
com a minha mãe, e ela deixou claro para o meu pai que ele não ficaria comigo.
Isso deixou a Alison dispersa.

Eu já ouvi a Alison dizer que ela sentiu como se a minha mãe a tivesse
jogado fora, que a nossa mãe claramente amava ao Morgan e a mim mais do
que a ela. Eu também ouvi a minha mãe dizer que a Alison escolheu morar com
o nosso pai porque ela se sentia mal e não queria que ele ficasse sozinho.
Provavelmente há alguma verdade em ambas as perspectivas. Eu era muito
jovem para realmente entender.

Eu realmente não sei como era a vida para a minha irmã morando com o
nosso pai, apenas os dois, traumatizados e com raiva. Deve ter sido
extremamente sufocante – um conflito constante de sentimentos de abandono
e ressentimento em relação à minha mãe sob o teto deles. O local não era
propício para se achar uma solução, eles não tinham nenhuma chance de se
curarem. Manter a ordem e a obediência era como o meu pai tentava entender
o caos da sociedade e os escombros que a sua estrutura familiar havia se
tornado.

63
A criança agora sob os cuidados exclusivos do meu pai era uma
adolescente amarga e traumatizada, e ele não sabia como lidar com a
disfunção e a dor dela. Por fim, o meu pai e a Alison formaram um vínculo,
unidos em seu desdém pela minha mãe. Eu acredito que eles também se
uniram devido à inevitável visibilidade de serem negros.

Como era de se esperar, a Alison buscou em meninos e no sexo uma


maneira de preencher o vazio da rejeição do tamanho de uma família em seu
coração. Aos quinze anos, ela conheceu um belo “militar” negro de dezenove
anos, e a Alison engravidou. A nossa mãe queria que ela fizesse um aborto. O
nosso pai disse que ela poderia ter o bebê caso ela se casasse. O jovem estava
servindo nas Filipinas e, com a permissão do nosso pai, a Alison foi até ele e
eles se casaram lá. Antes de ela ir embora, eu me lembro de estar sentada na
cama com ela em seu quarto na casa do nosso pai. O que eu me lembro do
quarto dela é que na parede dela havia uma prateleira de livros e uma prateleira
de bonecas chiques – umas bonecas com um tipo de vestido quinceañera10
de renda grande e pomposo. Eu olhava para aquelas bonecas, longe do meu
alcance – só de enfeite, não para brincar.

Eu estava olhando para as bonecas quando ela apontou para a barriga e


disse: “Tem um bebê aqui dentro.” Um bebê? Onde? Na barriga dela? Eu era
muito jovem e não entendia o que ela queria dizer. Eu não entendia muito a
Alison na época.

Eu nunca vou esquecer a combinação bizarra de despedida de solteira e


chá revelação na casa da minha mãe. Colocaram uma menininha no bolo –
uma boneca, não uma que fosse parecida com uma mulher adulta, mas uma
bonequinha com cabelo castanho escuro como o da minha irmã. A coisa toda
era tão confusa para mim. Eu era uma garotinha, e eu me perguntava, isso é
um chá revelação para o bebê ou uma festa de despedida para a minha irmã?
Eu não sabia dizer se era uma ocasião para celebrar ou chorar. A minha mãe
andava de um lado para o outro e estava super irritada. A minha irmã
adolescente estava com a barriga grande e ficava apontando para ela e me
dizendo: “Tem um bebê aqui; olha, tem um bebê aqui.” E tinha um bolo estranho
com uma bonequinha em cima dele. Como uma garotinha poderia entender
tudo isso?

E então, por muito tempo, o meu pensamento era: “Ok, então eu acho que
aos quinze anos é quando as pessoas têm filhos e se casam”.

10 Quinceañera: é uma celebração do décimo quinto aniversário de uma adolescente em


algumas áreas da América Latina, que é celebrado de forma bastante diferente de outros
aniversários. A palavra quinceañera refere-se à menina que tem 15 anos de idade.

64
Isso distorceu a minha realidade. Mas também me focou. Eu prometi a mim
mesma que isso não iria acontecer comigo. O meu senso de autoestima, ou
melhor, o meu senso de autopreservação surgiu naquele chá de bon voyage /
chá de bebê / festa de despedida. Eu jurei que eu jamais seria promíscua. Essa
promessa de viver uma vida diferente me tornou uma pessoa muito recatada.
Eu descobri naquela época – de repente que eu havia me tornado uma tia antes
dos oito anos de idade – que o caminho que a Alison trilhou eu não trilharia.
Depois que a última fatia de bolo da festa de despedida / chá revelação acabou,
a minha irmã também sumiu, por vários anos.

Eu nunca vou entender o que aconteceu com ela nas Filipinas. Mas eu sei
que quando ela deixou a casa do meu pai, o resto da sua frágil infância foi
deixada para trás.

Depois de alguns anos nas Filipinas, a Alison voltou para Long Island. Eu
tinha cerca de doze anos e ela vinte. O que quer que tenha acontecido com ela
lá, ou em Long Island, ou em um quarto dos fundos em algum lugar, tinha
causado danos a ela. Aquela garota super inteligente e linda com cachos
escuros que era a minha irmã mais velha endureceu e parecia haver uma
pessoa irreconhecível no lugar. Algo, ou muitas coisas, devem ter acontecido
com ela para fazer com que ela usasse o seu corpo para conseguir dinheiro e
drogas, como ela fez por anos. Naquela época, eu não sabia de muita coisa,
mas também havia muita coisa que eu nunca deveria ter descoberto,
certamente não tão jovem. Os anos entre nós poderiam muito bem ter sido
séculos.

Quando a Alison voltou, ela vagava de um lugar para o outro e ficava com
vários homens, às vezes aparecendo do nada na casa da minha mãe entre os
muitos relacionamentos aleatórios com homens que ela mantinha e depois
descartava. Ela chegou a ficar com um homem mais velho – eu imaginei que
ele tivesse cerca de sessenta anos. Ele era meio careca e tinha cabelos
grisalhos. Ele era educado com a minha mãe e às vezes enchia a nossa
geladeira de comida, então eu acho que ela confiava nele? Uma noite no
barraco, a Alison e a minha mãe entraram em uma de suas inúmeras
discussões épicas e, por alguma razão desconhecida, a Alison me levou com
ela para a casa desse senhor mais velho. Eu não lembro de muita coisa da
casa dele e nem daquela noite, porque quando nós chegamos, a Alison me
sentou em um sofá marrom claro e me entregou uma pequena pílula de cor
azul gelo, que parecia um pedaço de giz com uma dobra entalhada no meio, e
um copo d’água.

“Aqui, toma isso”, disse ela.

65
Eu tomei a pílula. Em poucos minutos (eu acho) eu estava em uma
escuridão pesada e assustadora, como se eu tivesse ido parar num lugar
abaixo do sono e da consciência, e que eu não conseguia sair. Não sei quanto
tempo fiquei desmaiada. Eu me senti como se eu tivesse sido absorvida pelo
sofá (a única razão pela qual eu me lembro da cor). Foi angustiante.

Aos 12 anos, eu provavelmente pesava 40 quilos ou menos que isso, e a


Alison me deu um comprimido inteiro de valium11. Não sei por que a minha
irmã me drogou. Não sei por que a minha mãe me deixou ir com ela e aquele
homem. Talvez os dois me quisessem fora do caminho naquela noite, mas eu
corri perigo de vida nas mãos dela. Esta pode ter sido a primeira vez naquele
ano que ela poderia ter me machucado seriamente, mas certamente não foi a
última.

Embora por volta dos seus 20 e poucos anos a Alison já tivesse se casado,
dado à luz, se divorciado, viajado milhares de quilômetros de distância e feito
coisas terríveis, ela ainda podia ser boba e espontânea. O pior ainda não tinha
acontecido entre nós, então eu ficava genuinamente feliz pelas visitas malucas
que ela fazia à casa da minha mãe. Em seus dias bons, ela era como uma luz
que iluminava a nossa pequena habitação, que era muitas vezes sombria. Ela
parecia madura e tinha um tipo de glamour vazio. Ela passou a se interessar
por mim como uma pré-adolescente agora, em vez de uma garotinha. Ela
prestou atenção à minha aparência desarrumada, tomando a iniciativa de
corrigir as minhas tentativas desastrosas de ficar bonita, o que para uma
criança de 12 anos significa tudo. Depois que eu acidentalmente pintei o meu
cabelo com todos os tipos de tons de um feio laranja, ela me levou a um salão
para pintar o meu cabelo e deixá-lo com uma só cor. Ela me levou a um outro
lugar e que deixou as minhas sobrancelhas lindas. Ela me levou para comprar
o meu primeiro sutiã. Ela e eu buscávamos seriamente ser normais. Nós
estávamos tentando ser irmãs – ou assim eu pensei.

Mesmo sendo jovem, eu sabia que a minha irmã estava fazendo coisas que
não eram boas. Tipo assim, ela tinha um bipe, e apenas traficantes de drogas,
rappers e médicos tinham bipes naquela época. As unhas dela eram lindas –
pintadas com um esmalte rosa brilhante, e às vezes decoradas com strass.
Uma vez, quando ela estava me deixando na frente da casa da minha mãe, ela
enfiou a ponta da unha rosa e afiada dela em um pó de cristal branco e segurou
perto do meu rosto, dizendo: “Experimente, experimente um pouco; quem se
importa?”

11 Valium: é um sedativo e também exerce um efeito contra ansiedade, contra convulsões


e é um relaxante muscular.

66
Eu sabia que aquilo era cocaína e eu fiquei morrendo de medo. Graças a
Deus, eu não cheirei. Eu disfarcei e respondi calmamente: “Não, obrigada!
Tchau; até logo.” Estremeço ao pensar no que poderia ter acontecido se eu
tivesse caído na armadilha dela ali e depois naquela casa. Não sei o que teria
acontecido se eu tivesse cheirado cocaína antes de ver a minha mãe, ou
cheirado alguma vez na minha vida.

Era tudo uma armação. A Alison começou a me trazer as suas amigas, e


eu comecei a querer sair com ela em segredo de novo – embora com todo o
glamour e a empolgação inicial, foi uma época muito assustadora na minha
vida. Mesmo que tenha sido há muito tempo, ainda tenho pesadelos com isso.
A Alison realmente não escolheu ter esse tipo de vida, e sei que ela também
passou por um trauma. Parecia que ela havia se afastado completamente da
luz.

Um dia, ela informou que era hora de eu conhecer o seu incrível namorado,
o John, e as outras garotas com quem ela andava, sobre as quais ela me
contava histórias. O John era alto, com olhos verdes, um negro grande e fofo e
super carismático. A Christine, uma garota branca fugitiva de dezessete anos,
uma mulher mais velha chamada Denise – “mais velha” significa que ela talvez
tivesse vinte e oito anos – e a minha irmã, então com vinte e poucos anos,
todas moravam em uma casa com o John. Eu olhei para a Christine; ela tinha
um ar mundano, mas também parecia uma garotinha. A sua pele pálida era
cheia de sardas bronzeadas e ela tinha cabelos loiros médios que caíam
suavemente sobre os ombros, que eram longos e finos como o resto do seu
corpo. Ela poderia participar de um filme adolescente, mas em vez disso ela
estava ali, naquela casa. Ela estava destruída por dentro.

A casa do John era mais legal, mais iluminada e mais limpa do que a minha.
Eles tinham um sofá novinho em folha. Tinha uma televisão e eu podia assistir
qualquer programa que eu quisesse. Tinha também todas as guloseimas que
eu poderia querer. Eles tinham até sucos da marca Juicy Juice. Nós não
podíamos pagar por nada disso lá em casa. Algumas vezes a minha irmã
chegava na casa da minha mãe e enchia a geladeira com as coisas que eu
gostava. Era isso que me deixava meio confusa com a nossa relação. Às vezes
parecia que ela se importava, mas os motivos dela sempre eram incertos. Ela
estava sendo uma boa irmã mais velha ou ela estava criando um desejo em
mim pelo que eu sabia que eu poderia ter o tempo todo na casa do John? Era
uma manipulação disfarçada de amor.

A minha irmã me disse para não contar a ninguém que eu estava indo para
a casa onde ela morava com o John, especialmente o nosso irmão. Ela me
disse que o nosso irmão não gostava dele porque o John o havia vencido no

67
jogo de gamão. Sendo tão jovem e ingênua na época, eu acreditava que a
animosidade entre eles era por causa de um jogo de tabuleiro, não por causa
de prostituição e envolvimento com drogas. Portanto, não havia ninguém que
soubesse, ninguém para me proteger. Famílias desestruturadas são presas
ideais para os abusadores, os pequeninos expostos são vulneráveis a serem
pegos. Agora, claro, está claro para mim que a casa de diversões era um
bordel. Acho que a minha irmã era uma espécie de prostituta, caçadora de
talentos. Mas na época, eu não tinha ideia; afinal, eu era apenas uma menina
de 12 anos. Me conquistar era muito fácil – literalmente como dar um doce a
uma criança, mas em vez de um doce era uma lavagem de cabelo, um sutiã e
uma caixa de suco da Juicy Juice.

O John, a minha irmã e eu íamos de carro para a cidade juntos. Eu me


lembro de uma vez que a gente foi a um lugar e que tocou no rádio uma música
que ele adorava. Ele cantava a música bem alto, enquanto a minha irmã e eu
ríamos da sua voz esganiçada. Eles me deixaram fumar no banco de trás do
carro. Eu me sentia bem e livre.

A gente ia ao IHOP12 para comprar panquecas. Eles me levaram para o


parque de diversões da Adventureland e eu joguei PacMan. Nesses momentos,
era como se eu quase me sentisse amada por ser a irmã mais nova. Eu estava
me divertindo muito com todas essas aventuras e eu pensei, finalmente eu sei
o que é ter uma irmã mais velha e que vai cuidar de mim para sempre. E eu
gosto desse cara simples e alegre, o John. Era disso que eu sentia falta. Eu
estava começando a sentir algo parecido com estabilidade, uma sensação de
que eu tinha algo que parecia ser uma família normal e que estava indo em
direção a um lugar a qual eu pertencia.

Mas coisas confusas e curiosas começaram a acontecer rapidamente.

Quanto mais eu me aproximava da minha irmã, mais claramente eu


conseguia perceber os seus traumas. Ela secretamente conseguiu arranjar
uma linha telefônica só para mim, e que só ela é quem ligava. Ela tinha uns
ataques horríveis de histeria induzida por drogas e ela me ligava tarde da noite,
no meio de uma crise. Eu a convencia a descer do parapeito, depois eu tentava
dormir de novo, para levantar cedo de manhã e terminar a sétima série.
Ninguém na escola sabia que com frequência, apenas algumas horas antes,
eu havia convencido a minha irmã mais velha a não cometer suicídio. Se matar
tornou-se uma ameaça comum que ela compartilhava comigo na madrugada

12 IHOP: é uma cadeia multinacional americana de restaurantes de panquecas


especializadas em alimentos para o café da manhã.

68
antes de eu ir para o ponto de ônibus para pegar o ônibus da escola.

Então as ligações pararam por um tempo. Finalmente, um dia, a Alison


telefonou e disse que ela e o John estavam vindo me buscar. Eu fiquei animada
ao pensar em nós três juntos novamente, passeando, rindo, fumando, cantando
e se divertindo. Mas o John apareceu sozinho.

Começamos a dirigir, mas o rádio estava desligado e ninguém falou nada.


Não foi nada divertido e eu senti que algo não estava certo.

Eu finalmente perguntei: “Onde está a minha irmã? Quando vamos buscá-


la?”

O John manteve os olhos voltados para a frente e me garantiu: “Ah, ela vai
chegar aqui mais tarde.” Eu estava sentada no banco da frente e podia ver
claramente uma arma em cima da coxa dele.

O John, a sua arma e eu fizemos duas paradas: em um jogo de baralho e


em um cinema ao ar livre. Os lugares onde homens adultos jogam tem uma
certa aparência, uma certa sensação e um cheiro característico. Estava úmido
e bagunçado. O ar estava com um cheiro forte de bebida barata, fumaça de
cigarro de mentol estragado e outras perversões que palavras não conseguem
expressar. Não havia nada de bonito ali. Era difícil para enxergar alguma coisa
e até respirar.

Não sei exatamente quantos homens haviam ali; não sei quantas armas,
quanto dinheiro ou quantos pensamentos vis estavam na mesa – mas eu sei
que eram todos homens e somente eu de menina. Eu me sentei em um canto
do chão pegajoso de onde dava para ver a porta e fiquei encolhida. Eu fiquei
quieta e mantive os olhos baixos enquanto aqueles homens contavam piadas,
falavam palavrões, falavam de comer alguma coisa, falavam de seus medos e
fantasiavam perto de mim. De vez em quando, eu percebia que um deles me
olhava maliciosamente ou então eu ouvia uma referência obscena ao meu
respeito em uma conversa.

Eu não me lembro como do chão da sala de jogos de baralho eu fui parar


no banco da frente do carro dele. O que eu me lembro é de me sentir suja por
causa do chão pegajoso e das palavras obscenas dos homens. Eu sabia que
a minha irmã não viria me limpar dessa vez. Eu senti uma sensação de pânico
na garganta. Para onde eu vou? Por que eu estou sozinha com o namorado da
minha irmã? Por que ele me levou até aqueles homens nojentos? Por que não
podemos simplesmente ir ao IHOP? Onde está a minha irmã? Onde ela está?
Eu comecei a orar.

69
A nossa próxima parada foi no cinema ao ar livre, onde o John quase que
imediatamente me abraçou. O meu corpo ficou rígido. Os meus olhos estavam
fixos na arma dele. O John se aproximou de mim e me deu um beijo forçado.
Eu estava com náuseas e medo; eu não conseguia me mexer. Pelo canto do
olho, eu notei um homem branco e idoso estacionar ao nosso lado, olhando
diretamente para o carro do John.

A expressão no rosto do homem era uma mistura de repulsa e


reconhecimento de que algo estava errado. Ele viu claramente um homem
adulto – o John, com o seu cabelo afro redondo – e uma garotinha, pequena e
loira. Ele viu o carro azul claro e a pele marrom clara do John. Ele viu os
detalhes, e mesmo que ele não detectasse a minha angústia, ele sabia que
aquele local não era onde uma garotinha gostaria de estar. O John saiu do
cinema ao ar livre lentamente e me levou para casa em silêncio.

Eu guardei o rosto daquele homem na memória. Eu o vejo claramente na


minha mente e o que aconteceu naquela época terrível. Eu acredito que ele foi
um anjo enviado por Deus.

No meu quarto, depois de alguns dias do ocorrido, o telefone começou a


tocar novamente, mas desta vez eu não atendia. Eu voltei a fingir que eu tinha
uma vida normal na sétima série. Eu queria ser criança de novo. Às vezes,
todas as crianças da minha vizinhança brincavam de pega-pega à noite. A
maioria morava em casas legais com os seus pais, e moravam com irmãs que
não as sobrecarregavam com pensamentos suicidas ou as envolviam com
cafetões. Eu desejava fazer parte de tudo aquilo; poder brincar e fazer
palhaçadas com outras crianças iguais a mim em uma típica noite de verão
num bairro comum de Long Island. Eu só queria fugir do meu drama brincando
de pega-pega.

Eu e mais algumas crianças frequentemente brincávamos em uma área


não muito longe da praia, que tinha uma espécie de rotatória. Nós
costumávamos ficar naquele local e às vezes a gente acendia uma fogueira,
fazia vozes engraçadas e cantava. Uma certa noite, eu estava brincando de
pega-pega com um grupo de crianças, que saiu correndo para todos os lados,
quando de repente eu vi um carro vindo pela estrada. Eu imediatamente
reconheci o carro como sendo o carro do John. Estava se arrastando, muito
devagar, como se o motorista estivesse procurando por algo ou alguém. Em
pânico, eu instintivamente me abaixei atrás de uma casa, fingindo me esconder
de quem quer que fosse “esse alguém” que ele procurava. Não havia como eu
contar aos meus amigos que eu era “esse alguém” que um cafetão com uma
arma estava procurando.

70
O John finalmente foi embora. Embora eu tivesse escapado dele por pouco
novamente, o medo que eu passei a ter de homens demorou por muito tempo.
Quando eu cheguei em casa, eu desliguei o telefone da parede e parei de
confiar na minha irmã mais velha para sempre.

Eu não tinha ninguém para contar o que havia acontecido. Eu não podia
contar para a minha mãe. Eu não tinha amigos íntimos de verdade. Eu nunca
havia realmente me enturmado. Mesmo se eu contasse, como eu poderia
explicar isso a uma criança de uma família normal que jantava às seis horas,
ia para a cama às nove e meia e que se metia em encrenca quando não
escovava os dentes? Criança nenhuma seria capaz de entender isso. Se
espera de uma irmã mais velha que ela te proteja – não que ela te ofereça a
um cafetão. Portanto, eu não contei a ninguém nem confiava mais em ninguém.

Mas, quando se é criança, você ainda deseja ter uma irmã mais velha, e os
dentes-de-leão ainda são flores quando florescem.

Uma visita da minha irmã, entre todas as visitas e lembranças, foi a que
mais me marcou.

Nós tentamos tomar chá. Tomar chá era uma ocasião especial na casa da
minha mãe, mas não era nada apropriado. Não havia uma chaleira alegre e
sibilante; a gente fervia a água em uma pequena panela surrada em um fogão
velho na cozinha minúscula, insípida, encardida e cor de fuligem. Xícaras e
pires que combinassem certamente não existiam em lugar nenhum; nós
tínhamos xícaras e canecas que não combinavam, do tipo que se encontra em
caixas marcadas com “grátis” nos brechós ou nas vendas de garagem de Long
Island. O sabor “café da manhã inglês” era o sabor principal de chá que a gente
tomava; cada uma de nós bebeu uma xícara com um saquinho de chá. Eu
segurava uma caneca de cerâmica esmaltada grossa de cor marrom e que
estava lascada na borda. Eu estava segurando o chá preto fumegante e
perfumado com as duas mãos quando o telefone tocou.

“Oi, Alfred”, ouvimos a nossa mãe responder. Era o nosso pai.

Nós duas ficamos um pouco chocadas. O meu pai raramente ligava para a
casa da minha mãe e, se ligava, era quase sempre para nos repreender por
alguma coisa. A Alison e eu trocamos um rápido olhar – quem tinha feito o quê
agora? De repente, a minha mãe olhou em minha direção e eu percebi que eles
estavam falando de mim. Eu balancei a minha cabeça com um “não” e fiz um
gesto de que eu não iria falar no telefone. A Alison e eu estávamos prestes a
tomar chá, talvez até um raro momento de descontração, e eu sabia que eu

71
teria que levar a sério se eu tivesse que falar com o nosso pai ao telefone. E
sabe-se lá o que a Alison poderia ter feito e que eu teria que ficar sabendo.

Mas a nossa mãe não nos acobertou. “Sim, ela está aqui; espera um
pouco”, disse ela, segurando o telefone e gesticulando para eu atender.
Qualquer “momento de descontração entre irmãs” que a Alison e eu
estivéssemos tentando criar foi por água abaixo. Endireitei o rosto, me levantei
a contragosto e peguei o telefone. Então eu segurei o telefone, estiquei o fio e
balancei o telefone na cara da Alison para que ela atendesse.

“Nãããão, atende você”, disse ela. Uma conversa boba começou entre nós
por alguns momentos – um jogo de quem ficaria com o fardo de falar com o
nosso pai. Foi quase divertido.

Eu finalmente coloquei o fone no ouvido. “Oi, pai. Eu estou bem,” eu disse,


reprimindo a vontade de rir. Enquanto eu escutava as sutilezas mecânicas da
conversa, a minha irmã começou a gesticular loucamente, balançando a
cabeça e cortando a garganta com a mão, sinalizando para eu não deixar
transparecer que ela estava ali. Enquanto eu tentava ao máximo manter a
conversa com o nosso pai, eu fazia caretas idiotas para ela, me segurando para
não cair na gargalhada. A minha irmã podia ser bem teatral e, naquele
momento, eu a achei extremamente hilária. Eu achava que a gente estava
brincando. Por fim, eu percebi que era a vez dela tentar falar sério com o nosso
pai enquanto eu tentava fazê-la rir, então eu disse: “Adivinha só – a Alison está
aqui! Quer falar com ela?” Rindo, eu fiz sinal para ela pegar o telefone.

Mas ela não estava olhando para mim. Ela estava olhando para a sua
caneca de chá ainda fumegante em sua mão, e quando ela ergueu o rosto, os
seus olhos estavam cheios de raiva, sem o menor traço de brincadeira de uns
poucos minutos atrás. Antes que eu percebesse o que estava acontecendo, ela
gritou “Não!” e, num piscar de olhos, jogou o chá bem quente em cima de mim.

O que eu me lembro depois disso foi de ser despida até a cintura e de um


médico remover com uma pinça grande os pedaços restantes do meu top
listrado de alça diagonal branco e turquesa, que estava preso na pele do meu
ombro. O médico teve que cortar a minha camisa com um instrumento, pois
algumas das fibras começaram a se fundir com a minha pele. (Eu amava esse
top – uma das poucas peças bonitas que eu tinha, e agora estava destruído,
preso nas minhas costas.)

As minhas costas estavam cheias de queimaduras de terceiro grau. Não


tinha como ver as minhas costas direito, pois ela ficou com diferentes tons de
marrom por causa das queimaduras horríveis que eu recebi pelas mãos da

72
minha irmã. A horrível sensação física foi tão intensa que eu acabei
desmaiando. Depois disso, as minhas costas ficaram dormentes e não podiam
ser tocadas sem me causar uma dor terrível. Demorou anos até que eu
pudesse aceitar um simples tapinha nas costas, já que a maior parte da minha
pele teve que se renovar e se reparar completamente.

A lesão mais profunda, porém, foi do trauma emocional. Os sentimentos


não são como a pele; não há células novas vindo para substituir as destruídas.
Essas cicatrizes permanecem invisíveis, não são manifestadas e nem curadas.
O dano completamente irreversível para mim foi quando a minha irmã mais
velha me queimou falando mal de mim, não pela queimadura do chá. Ela me
queimou de propósito – ela queimou as minhas costas e traiu a minha
confiança. Qualquer esperança que eu tivesse até aquele momento de ter uma
irmã mais velha se tornou uma terra desmatada pelo fogo.

Eu sei que a minha irmã estava profundamente ferida. Ela é a pessoa mais
brilhante e traumatizada que já conheci. Talvez eu nunca entenda o que a
machucou tanto para que ela viesse a machucar tantas outras pessoas, mas
para mim, ela foi a própria vítima e quem mais se prejudicou com os seus
próprios atos. O meu ponto de vista é que ela escolheu fixar residência
permanente na “terra dos coitadinhos”. O futuro que ela tinha pela frente foi
desperdiçado a preço de banana, em vez de ser redimido por meio de um longo
e difícil processo de recuperação e reconstrução de si mesma.

A Alison tentou me queimar para os outros de muitas maneiras e mais vezes


do que posso contar. Eu muitas vezes tentei ser como um corpo de bombeiros
para ela, financiando tratamentos e pagando estadias em clínicas de
reabilitação premium. Mas mesmo com todos os recursos oferecidos, não há
como resgatar alguém que não percebe que está se queimando ao brincar com
fogo. As cicatrizes que carrego da minha irmã não são apenas um lembrete,
são lições. Elas me ensinaram que talvez os nossos mundos sejam muito
diferentes para coexistirem, o dela feito de fogo e o meu de luz.

Eu sempre esperei e desejei que a Alison melhorasse, para que nós


pudéssemos nos tornar melhores. Eu entendo que ela foi extremamente
machucada emocionalmente e teve que descontar a sua dor eterna em alguém.
Ela escolheu a mim. Ao longo dos anos, tanto a minha irmã quanto o meu irmão
me colocaram na berlinda, contaram mentiras ao meu respeito para qualquer
jornal de fofoca ou site lixo que quisesse comprar ou ouvir. Eles me atacam há
décadas. Mas quando eu tinha 12 anos, a minha irmã me drogou com valium,
me ofereceu cocaína na unha do dedo mindinho, me causou queimaduras de
terceiro grau e tentou me vender para um cafetão. Algo em mim ficou
aprisionado depois de todo aquele trauma. É por isso que eu costumo dizer:

73
“Eu tenho eternamente doze anos.” Eu ainda estou lutando contra o que eu
passei naquela época.

E eu sinto a sua falta, dente-de-leão


E até te amo
E eu gostaria que houvesse uma maneira
Para eu confiar em você
Mas eu sempre me machuco
Quando eu tento te tocar

– “Petals”

74
DESEMBARAÇADOS E PENTEADOS

Na fotografia, os raios de sol brilhantes me iluminam como um holofote, e o


cachorro quente que eu estou segurando tem uma grande e feliz dentada que
eu dei nele. O meu cabelo tem uma variedade de mechas douradas, siena
crua13, louro de trigo e limão doce, iluminados pelo sol. Ondas suaves e
grossas do meu cabelo são sopradas em camadas para longe do meu rosto
enquanto alguns cachos caem dos meus ombros. Há uma ternura no meu
olhar, com uma leve seriedade nos cantos dos olhos.

Esta foto é uma das minhas favoritas da minha infância. Nela, pareço uma
típica aluna da primeira série nas férias de verão. Pareço pertencer a alguém
que sabe cuidar de mim. Pareço bem cuidada. Mas eu não fui.

Eu fui muito negligenciada na minha infância. Havia muitas coisas sobre


mim que a minha mãe não sabia como cuidar ou manter – mas a mais óbvia, a
mais simbólica e a mais visível era o meu cabelo.

A raiz do meu cabelo era indomável. Ninguém conseguia pentear o meu


cabelo. Ninguém sabia como. Nós não tínhamos condicionador (ou “creme
amaciante”, como se dizia na época) na casa da minha mãe. Não havia óleo
perfumado, pentes de dentes largos ou escovas de cerdas duras. Não havia
nenhum ritual dominical para ir ao salão lavar o meu cabelo e fazer tranças
nele; certamente, o meu couro cabeludo não era hidratado. Nunca pagaram um
salão para mim. Eu nunca senti o prazer de ir ao salão para arrumar o meu
cabelo e vê-lo bonito.

Como resultado, o meu cabelo costumava ficar super embaraçado. E


ninguém que convivia comigo conseguia entender por que que eu me sentia
humilhada por ser uma garotinha não branca com cabelo despenteado. Eu não
sabia expressar, mas eu carregava o fardo de ter um cabelo assim. O meu
cabelo mal cuidado era um aviso, sinalizando que eu era diferente de todas as
meninas brancas – e das meninas negras também. Os meus cachos cheios de
nós, desalinhados e danificados me faziam sentir inferior, indigna de receber a
atenção adequada.

Não havia como ir ao salão, dahling. Eu não me lembro da minha mãe indo

13 Siena crua: uma espécie de terra ferruginosa usada como pigmento em pinturas,
normalmente de cor marrom-amarelada.

75
uma vez a um salão. Ela vivenciava totalmente a filosofia de beleza boêmia e
descomplicada da década de 50 e 60. Para ela, passar um delineador já
indicava que um rosto estava maquiado – uma pequena asa de gato, por
exemplo. Se ela quisesse parecer muito chique – um toque de rímel, um toque
de blush, um batom e voilà! Rosto perfeito. O cabelo dela era fabuloso, em
todos os sentidos. Mesmo que tivesse se passado pela cabeça dela em ir ao
salão fazer tratamento de beleza, para ela ou para mim, a gente nunca poderia
pagar. E, além disso, não havia salões naquela parte de Long Island que
pudessem dar um jeito nos meus cabelos alinhados e compreendessem o
quanto o meu cabelo precisava de cuidados. Naquela época não havia
profissionais que trabalhassem com o meu tipo de cabelo em lugar nenhum,
realmente, nem havia produtos especializados. Eu vivia no meio de dois
mundos: nem produtos Afro Sheen, para negras com cabelo crespo, e nem
produtos Breck shampoo, para garotas loiras de cabelos lisos, serviam para o
meu cabelo embaraçado.

As duas representações constantes de beleza feminina que eu via


diariamente eram a minha mãe e comerciais de TV. Eu admirava e desejava
profundamente a perfeição escura e lisa dos cabelos longos e brilhosos da
minha mãe. O contraste entre a aparência do cabelo da minha mãe quando ela
acordava de manhã e do meu era profundo. Ela balançava a cabeça, e os seus
cabelos grossos e lisos despencavam como um metro de crepe de seda
pesada, distribuídos elegantemente sobre os seus ombros. Eu, por outro lado,
tinha madeixas quebradiças confusas e suadas, explodindo em uma confusão
de nós, ondas e cachos por toda a minha cabeça.

E eis o tipo de cabelo que eu via na TV: um tipo de cabelo magnífico,


brilhante como a luz do sol, balançando em câmera lenta ao vento enquanto se
corre descalça por campos floridos. Eu ficava encantada com esses
comerciais, especialmente com os do xampu Clairol Herbal Essence. Era como
se a própria Eva estivesse no Jardim do Éden, engarrafando o espesso néctar
verde esmeralda feito de delícias terrestres de ervas e flores silvestres. Eu
acreditava que esse xampu me daria o cabelo celestial, balançado por rajadas
de asas de anjo, que eu via no comercial. Eu queria muito aquele xampu. Eu
queria muito aquele cabelo angelical esvoaçante. (Por causa desses
comerciais, comerciais da Olivia Newton-John, da marca The Boss, da Diana
Ross, eu ainda sou obcecada por cabelos esvoaçantes, como se dá para notar
pelas máquinas de vento usadas em quase todas as minhas sessões de fotos.)

Jovem e culturalmente isolada, eu não tinha ideia de como cuidar do meu


cabelo, nem de como lidar com a vergonha que isso me trazia. Muitas vezes
eu me pergunto se a minha mãe alguma vez percebeu o descuido que o meu
cabelo deixava aparente. Será que ela estava muito preocupada com os seus

76
próprios fardos para notar? Será que ela não conseguia sentir a secura e os
nós e a juba dos emaranhados nodosos na minha cabeça? Será que ela não
podia me sentar e escovar e pentear o meu cabelo por duas horas, como a
Marcia Brady fazia no seriado The Brady Brunch (PT-BR: a família sol-lá-si-
dó)? Talvez em sua ideologia boêmia e amante dos anos 60 ela pensasse que
eu parecia livre, como uma adorável criança hippie. Talvez ela não soubesse
que eu me sentia suja.

Ter um pai negro e uma mãe branca é complicado, mas quando se é uma
garotinha com mãe branca, em grande parte isolada de outras mulheres e
meninas negras, pode ser terrivelmente solitário. E, claro, eu não tinha modelos
birraciais para me espelhar ou outros tipos de referência. Eu entendo porque a
minha mãe não sabia como cuidar do meu cabelo. Quando eu era bebê, era,
bem, cabelo de bebê, principalmente uniforme, com cachos macios. Conforme
eu fui crescendo, o meu cabelo ficou mais complexo, com diversas texturas
surgindo aparentemente do nada. Ela não sabia o que estava acontecendo. Ela
ficou confusa e do nada passou a cortar uma franja horrorosa no meu cabelo
(acreditar que uma franja se comportaria em um cabelo birracial é corajoso).

Era um desastre e eu não sabia o que fazer. Aos sete anos, eu realmente
pensava que se ela simplesmente lavasse o meu cabelo com o xampu Herbal
Essence, uma fada do cabelo viria à noite, e eu acordaria e puf! Eu teria um
cabelo perfeito, como o da minha mãe ou como os das garotas dos comerciais.

Eu fiz quinhentas horas de treinamento num curso de beleza para saber


que até o cabelo da Marcia Brady não ficaria esvoaçante apenas com xampu.
São necessários profissionais, produtos e produção, dahling – condicionadores
em abundância, difusores de cabelo, cortes certos, pentes especiais, mega
hair, câmeras e, claro, máquinas de vento. Dá muito trabalho ter um cabelo que
não dá trabalho.

O que eu realmente precisava era de qualquer mulher negra, ou de qualquer


pessoa que tivesse algum tipo de conhecimento, creme e pente! Mas mesmo
isso não era tão simples.

Uma vez, as meias irmãs do meu pai meio que tomaram uma iniciativa,
determinadas a “fazer algo para domar a juba daquela criança”. A coisa tinha
ficado séria. Eu estava na segunda série quando o meu pai me levou para a
casa do meu avô e da Nana Ruby no Queens.

O humor era uma ferramenta que eu usava para lidar, desarmar e me


defender. Eu também usava o humor para expressar o meu ponto de vista
quando eu não tinha controle. Era uma ferramenta que eu comecei a afiar bem

77
cedo e que, até hoje, utilizo com frequência. No banco de trás do carro, durante
a longa viagem para visitar a família do meu pai, eu ouvi a Alison, sentada na
frente, resmungando com ele sobre como eu estava absorvendo as
peculiaridades e excentricidades da minha mãe (particularmente aquelas
associadas ao privilégio branco). Eu acho que ela pensava que eu estivesse
no mundo, “fingindo ser branca” com a nossa mãe branca (como se uma
criança pudesse fazer essa diferença).

E então, como se eu não estivesse lá, ela começou um discurso inflamado.


Eu continuei a olhar silenciosamente pela janela para os bairros em ruínas
pelos quais a gente estava passando para chegar de Long Island à Jamaica,
Queens. Finalmente, eu não aguentei mais. Agindo (eu acho) muito parecida
com a nossa mãe, especialmente para uma criança de seis anos, eu gemi
sarcasticamente usando o tom característico lento, baixo, de diva de ópera da
minha mãe: “Eu vejo que a gente vai pegar o caminho mais longo!” Ao que a
Alison virou a cabeça em direção ao meu pai com uma expressão irritada no
rosto de “Tá vendo?”. Ele enrijeceu, agarrou o volante com um pouco mais de
força e manteve os olhos à frente. Para surtir efeito, eu não desviei o meu olhar
entediado para fora da janela. Ninguém se divertiu com a minha pequena
imitação. Eu tentei.

A doce Nana Ruby foi a segunda esposa do pai do meu pai, com quem ele
teve muitos filhos, meio tias e tios para mim, que posteriormente formaram um
grupo grande de primos, alguns dos quais tinham mais ou menos a minha
idade. O meu pai e o pai dele, o Bob Carey, tinham uma relação complicada. A
mãe do Bob era da Venezuela e acredita-se que o seu pai era negro –
misturado com algum gene branco não documentado, já que ele também tinha
uma cor de pele mais clara para o que era então chamado de “espectro negro”.

Até eu ter cerca de seis anos, fazia anos que o meu pai não falava com o
seu pai. Ele era filho único e tinha uma mãe diferente dos outros filhos do meu
avô; a minha vó Addie, mãe do meu pai, era tão calorosa e acolhedora quanto
a Nana Ruby e a sua casa – e pelo que eu pude ver, a Nana enchia o meu pai
de amor – mesmo assim, ela não era mãe dele, e talvez ele se sentisse como
um peixe fora d’água com eles. Eu acho que o meu pai se esforçou para fazer
as pazes com o meu avô, tanto para o bem dos próprios filhos quanto para o
dele próprio. Ele deve ter percebido como eu me sentia isolada, morando
apenas com a minha mãe em uma comunidade totalmente branca que estava
se tornando cada vez mais hostil para mim. Eu precisava saber o que era
família.

E eu serei eternamente grata por isso, porque aquela casa era um lugar
aconchegante e repleta de vida familiar. Eu adorava ir para lá. Toda a

78
vizinhança amava o meu avô. Ele era um cara normal, que gostava de se
divertir e tinha uma risada cordial, que usava meias 3/4 com os seus chinelos
estilo rider. Ele tinha uma pequena vinícola no seu quintal no Queens. Ele
cultivava uvas verdes com as quais ele fazia vinho doce caseiro, e que ele
armazenava no porão. A Nana Ruby e as minhas tias sempre tinham algo
cozinhando na minúscula cozinha – frango, verduras –, mas o prato básico de
destaque era arroz com feijão. Eu comia pratos cheios de arroz com feijão.
Ouvia-se o clamor de ruídos reconfortantes: panelas batendo, música soul ao
fundo, o som da TV, conversas, risos, portas abrindo e fechando, pés correndo
para cima e para baixo nas escadas. Era um local alegre. Havia pessoas
somente papeando, se conectando um com o outro. Passar um tempo lá foi o
sentimento mais próximo que eu tive de ter uma grande família, uma família
normal, uma família de verdade.

Os meus primos favoritos vinham do Bronx e, cara, como a gente brincava!


A gente era muito criativo e travesso. Às vezes, a gente pendurava balões
d’água para fora da janela do segundo andar e a gente jogava em quem
estivesse passando por baixo. Então, a gente sumia de vista e ficava
segurando o riso. E, claro, eu adorava tudo que envolvesse arte. O que eu mais
gostava era de encenar a “Sra. Wiggins” do seriado The Carol Burnett Show.
Como esperado, eu insistia para fazer o papel principal. Eu imitava o jeito dela
andar perfeitamente. Eu colocava um travesseiro na minha bunda, dava uma
empinada e eu agia como se eu estivesse usando uma saia lápis justa. Eu
andava na ponta dos pés (talvez seja por isso que eu ainda ando na ponta dos
pés), dando pequenos passos. Eu fingia estar mascando chiclete e eu também
fingia estar lixando as minhas unhas. Além disso, eu imitava a voz nasalada da
personagem com perfeição. Eu me especializei em vozes de personagens
muito cedo.

“Oh, Sra. Uh-Whiggins!” um dos meus primos falava com um sotaque sueco
tolo e forçado. Eu encarnava a personagem e a gente começava a improvisar.
O que eu mais adorava eram as gargalhadas com os meus primos. Eu amava
o som da minha risada junto com a risada das outras crianças, que eram mais
ou menos parecidas comigo.

Dentro de casa com os meus primos, eu me sentia como se eu fosse da


família, mas na rua com as crianças do bairro a história era bem diferente. A
história é sempre diferente comigo. Mesmo que os meus primos não morassem
naquele quarteirão predominantemente negro e hispânico no Queens, eles
eram conhecidos porque o nosso avô era “o cara” do bairro. Quando a gente
brincava na rua, eles me apresentavam às outras crianças como sendo prima
deles, e algumas crianças inevitavelmente diziam: “Ela não é sua prima. Ela é
branca.”

79
“Sim, ela é nossa prima!” eles respondiam de volta. Quem era a minha mãe,
quem era o meu pai, a quem eu pertencia, estava sempre em jogo. Mas sair
com os meus primos não era tão difícil. Eu fazia parte de um grupo. Eu fazia
parte deles, e eles me defendiam. Sim, ela é. Simples assim. E foi muito
importante. Os meus primos negros eram os únicos que eu conhecia quando
eu era pequena. Como a família por parte da minha mãe, o lado branco, a havia
deserdado, eu não tinha como me relacionar com nenhum deles quando eu era
criança.

Os meus primos eram bem unidos porque as suas mães eram muito unidas.
Uma tia em particular era a mais jovem e tinha um corpão – ela era
simplesmente linda. Ela parecia pronta para arrasar na pista de dança do
programa de TV Soul Train. Ela vivia sempre muito bem maquiada, com os
lábios cheios de gloss brilhando como cristal. Ela usava roupas chiques e da
moda, e o seu cabelo estava sempre muito impecável, penteado para trás, para
que todos vissem o seu rosto. Ela criava moda o tempo todo, de forma sexy e
coordenada, quase tão fabulosa quanto a Thelma do seriado Good Times (mas
com um pouco mais de corpo). Esta minha tia sexy vendia maquiagem em
balcão de loja de departamentos – agora isso era muito show para mim. Certa
vez, ela fez uma avaliação facial de brincadeira em mim e na minha prima
favorita. Enquanto ela examinava os nossos rostinhos, ela disse a Cee Cee:
“Os seus lábios são bons”. Então ela se virou para mim com um olhar perplexo
e fez uma pausa. Eu estava pensando, e me preocupando, o que há de errado
com o meu rosto? Comigo?

“Mariah, os seus lábios não são carnudos o suficiente”, disse ela com um
suspiro.

Eu não sabia para que os meus lábios não eram carnudos o suficiente, mas
eu aceitei totalmente a análise dela como um fato. Alguns anos depois, eu tinha
cerca de 12 anos e eu estava passeando em uma loja de departamentos em
Long Island com uma amiga branca, onde eles maquiavam pessoas grátis em
um dos balcões. A minha amiga, pelos padrões locais, era bonita: grandes
olhos azuis, nariz fino e lábios muito finos. Eu, sem dúvida, usava uma roupa
qualquer, e sabe-se lá como o meu cabelo estava naquele dia. Claramente
aparentando ter a idade que a gente tinha, nós nos sentamos para fazer um
tratamento facial. Talvez a vendedora tenha pensado que a gente tivesse
dinheiro para comprar a maquiagem, ou ela estava entediada, ou simplesmente
ela ficou com pena de nós. Seja qual for o caso, ela começou o processo.

Assim como a minha tia fez, ela estudou os contornos e os ângulos dos
nossos rostos e me relatou: “Os seus lábios são muito carnudos na parte
superior.” Peraê, eu pensei. Eu achava que eu tivesse um lábio superior fino –

80
mas não tão fino quanto o da minha amiga branca, cujo tamanho de lábio era
o “padrão” na época. Eu senti vontade de dizer: “Na verdade, eu realmente
quero que os meus lábios sejam maiores” – e que é verdade, desde o dia que
a minha tia me avaliou – mas eu achei melhor não dizer nada. Assim, eu recebi
duas opiniões profissionais diferentes sobre os meus lábios quando eu era
criança; eram muito carnudos para um padrão de beleza de pessoas brancas
e não carnudos o bastante para um padrão de beleza de pessoas negras. Em
quem eu devo acreditar? Era como se as minhas feições não fossem bem
afeiçoadas. E não havia ninguém para me dizer: “Mariah, não há nada de
errado com você.” Ponto final.

E agora vivemos em um mundo onde mulheres brancas e negras estão


enchendo as suas bundas e lábios como balões de água. Eu acho que eu
deveria ter colocado Botox nos meus lábios há muito tempo, mas é tarde
demais. O mundo inteiro já sabe como são os meus lábios verdadeiros, então
para que me estressar? Por que eu faria isso agora, quando eu simplesmente
posso acentuá-los com delineador de lábios, dahling?

Mas eu estou me desviando do assunto. Naquele dia na casa do vovô e da


Nana Ruby, quando eu tinha sete anos, havia chegado a hora do grande dia
dos meus primos. As minhas tias decidiram que era hora de me arrumar.
Algumas das minhas tias estavam reunidas no andar de cima no quarto da
Nana Ruby e me chamaram. Os meus primos e eu subimos as escadas em
direção ao quarto principal, que ficava à direita do banheiro. Eu passei muitos
momentos explorando aquele pequeno banheiro, fascinada com todos os
hidratantes e óleos guardados lá dentro. Havia uma infinidade de cremes e
loções para a pele, e curativos e óleos para os cabelos. Imagine: loção para a
pele e óleo para cabelo! Nesse banheiro, todos os armários e espaços livres
eram preenchidos com loções e produtos misteriosos.

Eu raramente entrava no quarto principal, mas o quarto, também, era


pequeno, apertado e confortável. Ele estava úmido e cheirava a loja de doces.
Uma cama grande, coberta com uma colcha estofada estampada branca e
marrom brilhante, com babados na bainha, ocupava a maior parte do quarto.
Havia um espelho de corpo inteiro preso na parte de trás da porta e uma gaveta
de cômoda baixa em que as minhas tias tinham tudo arrumado. Uma chapinha
quente entrou em cena. Sobre a sua superfície escaldante havia algum objeto
estranho que parecia uma ferramenta de jardim com dentes, com um cabo de
madeira escuro como um martelo. Embora a parte de metal fosse enegrecida,
vestígios de sua cor dourada original podiam ser vistos embaixo. Esse
misterioso objeto em forma de garfo e martelo pousava ameaçadoramente na
superfície da chapinha, ficando cada vez mais quente. Quando eu cruzei a
soleira para entrar no quarto, eu me senti como se eu tivesse entrado em um

81
mundo paralelo, uma câmara secreta – uma câmara para embelezar meninas
negras.

As minhas tias fizeram sinal para que eu me sentasse no lado da cama. Eu


não sabia que tipo de ritual estava à frente, mas eu estava animada, com
certeza. Quando eu me sentei na beira da cama, com os pés balançando, eu
pude sentir muitas mãos explorando o jardim selvagem de nós, cachos e
pontas lisas do meu cabelo. O meu coração estava acelerado. Eu me senti
como uma princesa há muito tempo perdida, sentada em seus aposentos,
esperando que este pudesse ser o momento da coroação, quando finalmente
dariam um jeito no meu cabelo e eu seria transformada e apresentada ao
mundo com um novo poder e graça.

Finalmente, eu pensei, que talvez o meu cabelo tivesse jeito. Que ele,
depois de transformado, ficasse com cachos elegantes e brilhantes, e eu ficaria
parecida com as minhas lindas primas e amigas negras que se reuniam no
Queens. Ou que talvez ele ficasse liso e reto como os cabelos das garotinhas
brancas com quem eu cresci em Long Island. De qualquer forma, eu fiquei feliz
porque o meu cabelo finalmente seria cuidado por alguém que sabia o que
fazer.

Elas começaram primeiro na parte de trás da minha cabeça, com alguns


fios de cabelo sendo puxados e separados, e os nós sendo desfeitos. O que
eu senti depois foi algo que eu nunca esquecerei. Primeiro, eu senti uma forte
sensação de coisa queimada e puxões perto do meu pescoço, seguida
imediatamente por um som assustador de chiado e de coisa queimando e um
cheiro estranho e ruim, como um animal de pelúcia sujo pegando fogo. Junto
com muita fumaça, um leve pânico começou a invadir o quarto. Eu não
conseguia entender muito o que estava sendo dito, mas eu certamente ouvi:
“Que merda!” e “Pare, pare!” várias vezes. E então parou. Repentinamente. A
empolgação, o ritual e a tentativa de dar um jeito na minha juba pararam. Eu
fiquei imóvel e em silêncio, uma pequena mecha de cabelo na minha nuca
ainda fumegando.

As minhas tias pediram desculpas. “Desculpe, minha linda, o pente quente


é forte demais para o seu cabelo”, explicaram as minhas tias. Desculpe, minha
linda, e assim tudo terminou. Não haveria ritos de passagem na sociedade de
cabelos negros naquele dia. Eu não me tornei uma garotinha apresentável para
o Harlem, Queens ou Long Island. Eu ainda era uma criança marcada e de
cabelos rebeldes – só que agora com um pedaço de cabelo áspero,
chamuscado e irregular (e visivelmente mais curto) na parte de trás. Eu estava
longe de ter um cabelo domado.

82
Em raras ocasiões, a minha mãe, o meu irmão e eu íamos de carro para
Jones Beach como família. (A proximidade da praia era uma das poucas
vantagens de morar na ilha de Long Island.) Em uma manhã de verão, nós três,
e um dos amigos do meu irmão, embarcamos na lata velha da minha mãe e
pegamos a estrada para a praia. Era um dia claro e brilhante; dava para ver o
oceano no céu. Era um dia perfeito para ir à praia. A minha mãe, usando um
cafetã de algodão azul claro com listras verdes finas, estava dirigindo. Todas
as janelas estavam abertas, dando ao carro uma falsa sensação de
conversível; as mangas de sino da minha mãe balançavam levemente ao
vento. Ela usava os seus óculos escuros grandes, que era a cara dela, e o
cabelo dela estava esvoaçante como de costume. O meu irmão estava sentado
ao lado dela, sem camisa, e o seu cabelo afro grande e fofo balançava
suavemente.

Eu me sentei no banco de trás ao lado do amigo do meu irmão, olhando


silenciosamente pela janela aberta, deixando o ar quente e salgado tocar o meu
rosto. Eu estava tentando ser indiferente, não deixar transparecer que eu
estava super a fim desse garoto com cara de estrela adolescente. O cabelo
sedoso dele era da cor de ruivo dourado, com mechas naturais perfeitas, com
delicadas camadas repartidas ao meio. Cada fio em seu devido lugar. Todos
estavam em silêncio e desfrutando um raro momento de felicidade.

Aos poucos, porém, eu percebi que o meu cabelo começou a se mexer.


Mas não era do vento. Em vez disso, eu senti uma mão pegando no meu
cabelo. Havia dedos tocando a juba emaranhada que era o meu cabelo. Não
ousei me mover ou falar. Mas o garoto estava pegando no meu cabelo
gentilmente! De forma habilidosa, ele começou a pentear o meu cabelo nas
partes menores, mais apertadas e emaranhadas das pontas com o grande
pente de plástico preto que ele sempre mantinha guardado no bolso de trás.
Ele estava usando o mesmo pente que ele usava para pentear os seus fios de
ouro perfeitos em meu cabelo desgrenhado! Ele penteava do couro cabeludo
até a ponta em pequenas mechas. À medida que ele desembaraçava, o peso
da minha juba cedia e balançava um pouco.

Ao longo da viagem, sem uma única palavra trocada entre nós, ele removeu
todos os nós e emaranhados do meu cabelo. Quando chegamos à praia, o meu
cabelo não era mais um fardo. Estava solto. Eu corri direto para o mar – ah,
como eu amo o mar, algo que eu herdei da minha mãe – e enquanto eu corria
eu pude sentir o meu cabelo, flutuando e balançando ao vento pela primeira
vez. Aleluia! O meu cabelo estava realmente esvoaçante como nos comerciais!

Eu mergulhei na primeira onda que eu vi e andei de volta até a beira da


praia. Quando eu me levantei e toquei o meu cabelo, não era mais o

83
emaranhado ao qual eu estava acostumada. Em vez disso, eu toquei em
cachos definidos e alongados! Pela primeira vez, o meu cabelo estava bonito.
Eu me senti bonita. Eu me senti suave e leve, como se a vergonha que eu
carregava tivesse sido arrancada de mim e levada embora.

Enquanto a água estava na altura da cintura, me deleitando com a confiança


recém-descoberta e trazida pelos meus cachos definidos, uma onda enorme
surgiu do nada, caindo e me atingindo nas costas. Os meus pés foram erguidos
da areia e eu fiquei de cabeça para baixo. O meu corpo minúsculo foi jogado
como uma boneca de pano nas ondas fortes que repentinamente se formaram.
Eu não tinha nenhum senso de equilíbrio ou orientação, mas eu sabia que eu
estava sendo puxada para baixo, rodopiando na água escura e agitada
misturada com espuma branca salgada e areia que batia no meu corpo como
luvas de boxe feitas de lixa. Mesmo se eu pudesse nadar para cima e soubesse
como chegar lá, eu sabia que eu não era forte o suficiente para superar as
fortes correntes, então eu relaxei o meu corpo e deixei a onda me levar. Eu me
rendi.

Pelo que eu acredito ser a graça de Deus, o mar decidiu me devolver à


beira-mar. Fiquei imóvel na areia úmida, sem fôlego e salgada da água do mar.
Quando eu percebi que eu estava viva, eu me levantei para procurar a minha
mãe. Tanto a minha mãe quanto o meu irmão estavam deitados em um cobertor
verde oliva à distância, usando óculos escuros e se bronzeando
despreocupadamente. Ignorada. Eu soltei um berro, que evoluiu para um choro
histérico, finalmente chamando a atenção da minha mãe. Mais um encontro
que eu quase tive com a morte.

Para acalmar os meus nervos abalados, alguém me levou até o calçadão,


para a barraca de cachorro quente. Eu estava um caco – mas o meu cabelo
não. Ele ainda estava com cachos ondulados. O meu cabelo tinha ficado
perfeito na praia. Naquele dia eu quase morri, mas o meu cabelo estava
arrasando.

84
O MELHOR AMIGO DE UMA GAROTA

Desde o momento em que eu a vi, eu me identifiquei com ela e passei a


admirá-la. Eu a idolatrava. Ela era como uma boneca viva, mas não era nem
um bebê e nem uma Barbie; embora ela fosse uma mulher elegante e em carne
e osso, ela parecia pura e impecável, como se fosse feita de porcelana
delicada. Eu nunca tinha visto ninguém como ela – uma pessoa tão radiante,
glamorosa, vulnerável, mas ao mesmo tempo poderosa. Ela era sobrenatural.
Eu fiquei parada olhando, fascinada e sem reação diante da tela brilhante onde
ela morava.

Uma noite, eu estava andando sem rumo pelo corredor em uma das muitas
casas em que a gente morou. Enquanto eu passava pelo quartinho escuro da
minha mãe, eu entrei como quem não quer nada. Eu não me lembro se a vi ou
a ouvi primeiro, mas eu sei que algo me levou para aquele quarto. As cores
desbotadas da velha TV em frente à cama eram a única coisa que iluminava o
quarto, onde a minha mãe estava deitada de lado, assistindo a um especial
sobre a vida e a morte da Marilyn Monroe.

Eu empurrei suavemente a porta do quarto, entrando na cena icônica do


filme Gentlemen Prefer Blondes (PT-BR: os homens preferem as loiras) em que
a Marilyn canta “Diamonds Are a Girl’s Best Friend” (os diamantes são os
melhores amigos de uma garota). Ela era a pessoa mais linda que eu já tinha
visto.

A sua energia era como a de uma fada, mas ela parecia uma deusa, envolta
em um luxuoso vestido de seda rosa choque e luvas de ópera combinando,
com diamantes de todos os tamanhos pendurados em suas orelhas e em volta
de seu pescoço e pulsos. As únicas partes da pele dela que estavam expostas
eram o rosto, os ombros e os braços até o cotovelo, mas eu me lembro que a
pele dela parecia incrível e sedosa, brilhando como tecido de seda. O cabelo
dela estava apenas alguns tons mais claro, deslumbrante como fios de ouro.
Ela tinha um corpão, com quadris redondos e curvilíneos, uma cintura pequena
e justa, seios fartos e bem definidos e braços receptivos a abraços. Ela tinha
presença, como uma dançarina, mas os seus pés não pareciam se mover. Em
vez disso, dezenas de pessoas dançavam em volta dela: bajulando e
abanando, se ajoelhando e se curvando diante dela, a erguendo acima de suas
cabeças como faziam com a Cleópatra. Talvez ela fosse uma rainha, eu pensei.
A rainha brilhante das estrelas de cinema.

85
Eu nunca tinha ouvido falar sobre a Marilyn Monroe antes daquele
momento. Mas eu me identifiquei na mesma hora. Não era algo típico para uma
garota da terceira série, talvez, mas a minha infância foi tudo menos típica. A
minha mãe apoiava com muito amor o meu fascínio pela Marilyn. Enquanto a
maioria das garotas da minha idade adornava as paredes com fotos de Holly
Hobbie – bonecas de pano com sardas e tranças de fios louros usando uma
touca com estampa de morango – eu tinha um pôster da Marilyn Monroe
vestida como uma vedete sensual, usando um bustiê de contas pretas, meia
arrastão e sapatos de couro preto. Eu olhava para a Marilyn antes de dormir e
ela era a primeira coisa que eu via ao acordar.

Depois, a minha mãe comprou para mim o livro Marilyn: A Biography (PT-
Br: Marilyn), escrito pelo Norman Mailer. Embora eu fosse jovem demais para
ler o livro, como a própria Marilyn, eu lia bastante. Eu me debrucei sobre as
fotos grandes e brilhantes dela, analisando todos os seus diferentes estados
de espírito e aparência. Ela era uma camaleoa – em algumas fotos ela era
incrivelmente bonita e glamorosa, em outras ela parecia destruída e prestes a
desaparecer. O cabelo dela também mudava de formato: cachos, rabos de
cavalo, coques deslumbrantes, bobs com ondas profundas. Eu até detectei
cachos emaranhados e embaraçados semelhantes aos meus sob os seus
perfeitos cabelos ondulados e loiros. Havia também algo de especial no corpo
dela, que parecia ter uma cor branca diferente para mim. Ela não tinha somente
um corpo de violão, ela tinha também uma sensualidade muito particular, de
penetrar a alma.

Eu lia muito sobre a Marilyn, teorias da conspiração sobre a sua morte e de


como tinha sido a sua infância. Quanto mais eu lia, mais eu me conectava com
ela e entendia porque eu me sentia atraída por ela. Ela teve uma infância muito
difícil, mudando de um lar adotivo para o outro. Parecia com a minha história:
não fincar raízes em nenhum lugar, se sentir desprotegida e excluída. Eu
entendia intimamente as dificuldades que ela passou com a pobreza e a sua
família. No final das contas, o que eu amei na Marilyn foi a sua capacidade de
vir do nada – de não pertencer a ninguém – e se tornar em um grande ícone.
Eu me agarrei a isso. Eu acreditava nisso.

Eu soube que o nome da Marilyn pode até ter sido a inspiração que a minha
mãe teve para me dar o meu nome. As primeiras quatro letras são iguais: MARI.
No entanto, o meu pai dizia que o meu nome vem de Black Maria / Mariah, o
terrível camburão da polícia usado para transportar pessoas para a prisão no
Reino Unido. Tem também outra história, que o meu nome foi inspirado em
uma música de sucesso dos anos 50, “They Call the Wind Maria” (eles chamam
o vento de Maria), da peça Paint Your Wagon, uma comédia musical da
Broadway sobre a corrida do ouro na Califórnia. (Ambas as referências usam a

86
pronúncia suave, com a segunda sílaba pronunciada mais ou menos como
raiya do seriado japonês Jiraiya.) Talvez seja uma combinação de todos os três
nomes: uma estrela dos anos 50, uma canção de uma comédia musical e um
camburão da polícia.

Seja qual for a origem do meu nome, eu não gostava dele quando eu era
mais jovem. Ninguém tinha um nome igual ao meu, e quando se é criança, isso
não é legal. Eu sempre desejei ter um nome normal como Jennifer ou Heather.
Não havia adesivos bonitos, chaveiros ou mini placas de carro feitos com o
meu nome. Mas a pior parte era que quase ninguém sabia pronunciá-lo. Eu
sempre tinha medo de ver um professor substituto, fazendo a lista de chamada,
e me chamar de Maria ou Maya. Eu só vim conhecer outra Mariah quando eu
tinha dezoito anos; ela era uma garota negra legal e a gente se solidarizava
com bom humor pelos erros de pronúncia do nosso nome na nossa infância.
Não tinha como imaginar que apenas alguns anos depois, por minha causa,
muitas pessoas estariam dando o nome de Mariah para as suas filhas.

De todas as supostas inspirações para o meu nome, a conexão com a


Marilyn Monroe é a que mais tem a ver comigo – autocriada e controlada,
confiante e vulnerável, feminina e infantil, glamorosa e humilde, adorada e
sozinha. A Marilyn é uma fonte de inspiração para mim, e Deus, como eu
precisava disso.

Quando eu estava na oitava série, havia um bando de garotas bonitas, a


maioria irlandesas, com quem eu queria muito fazer amizade. Naquela época,
naquela cidade, a maioria dessas meninas era considerada o auge da perfeição
física: pele sedosa, cabelos sedosos e olhos azuis. Elas costumavam ter um
lema: “somente com olhos azuis!” Elas não eram garotas legais.

E eu me sentia totalmente inferior perto delas. Comparada com elas (e na


oitava série, comparar é o único método de análise) a minha pele era seca, o
meu cabelo era indomável. Elas me chamavam de Urso Fozzie (dos Muppets)
por causa do meu cabelo rebelde, e por mais que eu tentasse, eu nunca
conseguia deixá-lo baixo para ficar parecido com o delas, e os meus olhos
obviamente não eram azuis. (Eu gostava dos meus olhos escuros, mas eu
nunca me defendi diante do lema estranho delas.) Eu claramente era diferente
do grupo delas, mas elas me deixaram fazer parte. Talvez porque eu fosse a
palhaça da turma, sempre contando piada ou zoando alguém e fazendo todo
mundo rir. Mesmo que eu estivesse no grupo delas apenas como
entretenimento, eu me sentia feliz por fazer parte do espetáculo.

A garota daquele grupo que era a minha melhor amiga (e eu uso essa

87
palavra generosamente) também era a mais bonita. A gente era meio que
amiga da onça. Eu falava para ela que eu estava a fim de um menino na escola
e, sabendo muito bem que eu nunca tomava iniciativa com nenhum, ela e os
seus grandes olhos azuis iam atrás do garoto e ela quase sempre ficava com
ele. Eu acredito que ela fazia isso apenas para me deixar pra baixo, para que
eu ficasse sabendo que era ela quem mandava. Mas o que ela não sabia é que
eu nunca ia atrás dos meninos com medo de levar um fora e com medo que
eles descobrissem que parte de mim era negra e que todo o resto era pobre.
Ela também não sabia que eu não queria me envolver com garotos estúpidos
e atrapalhar os meus sonhos ou, pior, engravidar como a minha irmã. Ela nem
me conhecia. Nenhuma delas me conhecia.

Alguns dos pais das meninas conheciam a minha mãe, no entanto, eles
tinham um mínimo de respeito por ela porque ela também era irlandesa e uma
cantora de ópera profissional – e ópera era elegante. O drama adulto funciona
de maneira diferente do drama entre os adolescentes, mas eles costumam ser
parecidos. Espalhou-se o boato de que o pai irlandês da garota mais bonita
estava batendo na sua mãe. A minha mãe, que pode ser realmente justa
quando ela quer, assumiu a responsabilidade de escrever uma carta para ele.
Nessa carta, tenho quase certeza de que ela revelou que havia sido casada
com um homem negro e que ele era o pai dos seus filhos (é claro, eu só vim
saber dessa carta muito tempo depois).

Como eu disse, essas garotas não eram legais, mas eu acabei sendo
convidada para ir com algumas delas, incluindo a mais bonita, para uma festa
de pijama em Southampton. Uma delas tinha uma tia rica, chamada Bárbara,
com uma casa chique perto da praia. Ir para a cidade super chique de
Southampton? Participar de uma festa de pijama com as garotas mais
populares? Claro que eu queria ir. Nós entramos em um dos carros grandes
deles e iniciamos a viagem de duas horas ao longo da adorável orla atlântica
de Long Island até o pequeno vilarejo onde os ricos passam verão.

A casa era grande, arejada e arrumada. Tinha até uma sala toda branca
que ninguém tinha permissão para entrar. Eu fiquei pasma quando chegamos,
tão ocupada comparando e desejando que eu não tinha percebido que as
meninas haviam se agrupado perto de uma porta.

Elas me chamaram: “Vamos, Mariah. Vamos entrar.”

Sem dúvida, eu fui aonde elas estavam indo. Elas me levaram a um local
que parecia ser uma sala de jogos ou um esconderijo (eu sabia que pessoas
ricas tinham esconderijos). Era um cômodo menor nos fundos da casa, talvez
um quarto de hóspedes. Uma delas fechou a porta com um clique e, de repente,

88
o clima ficou pesado, rápido. Eu achei que talvez elas tivessem trazido bebida
escondido ou algo assim. Mas não havia empolgação e muito menos a energia
típica entre garotas que estão aprontando alguma coisa. Em vez disso, todas
as meninas estavam olhando para mim. De repente, no silêncio pesado, a irmã
da menina mais bonita falou para todo mundo ouvir:

“Você é uma macaca!”

A minha cabeça começou a girar quando eu percebi que ela estava se


referindo a mim. Apontando para mim. Esse era o meu segredo, a minha
vergonha. Eu fiquei sem reação.

As outras fizeram o mesmo rapidamente. “Você é uma macaca!” todas elas


gritaram. Todas juntas, em uníssono, gritavam: “Você é uma macaca!” sem
parar. Eu pensava que nunca ia ter fim.

O veneno e o ódio com que essas garotas repetiam esse novo lema criado
por elas era tão forte que literalmente me fez sair do meu corpo. Eu não tinha
ideia de como lidar com o que estava acontecendo. Todas elas estavam contra
mim. Elas haviam planejado isso. Elas me enganaram e me fizeram acreditar
que elas realmente gostavam de mim. Elas me atraíram para bem longe de
casa. Elas me isolaram. Elas armaram uma emboscada para mim. Por fim, elas
me traíram. Eu comecei a chorar histericamente. Eu fiquei desorientada e
apavorada, e eu pensei que talvez, se eu continuasse a chorar, certamente um
adulto viria em meu socorro. Mas ninguém apareceu.

Depois de algum tempo, eu ouvi outra voz choramingando.

“Por que vocês estão fazendo isso?” a pequena e corajosa voz perguntou.
Era a loira mais velha.

A irmã feia da mais bonita respondeu: “Porque ela é uma macaca.”

Eu não me lembro de mais nada daquele dia. Eu não me lembro da carona


de volta para casa. Não me lembro de ter contado para a minha mãe quando
eu voltei. Como é que se conta para uma mãe, que é branca da cabeça aos
pés, que as suas “amigas” brancas simplesmente arrastaram você para uma
casa enorme e toda branca em Southampton, passando por um quarto
intocável pintado todo de branco, apenas para te encurralar e te chamar da
coisa mais nojenta criada pelos brancos? Macaca.

Eu também tive medo da minha mãe fazer um barraco enorme e tornar a


minha vida na escola ainda mais difícil. Eu não sabia o que dizer e nem como

89
lidar com nada disso. Certamente não foi a primeira vez que eu fui humilhada
pelos meus colegas de escola. Eu fui escolhida no ônibus escolar, dentre
muitos outros alunos, para ser cuspida. Eu me metia em brigas. Eu revidava
muitas vezes; a minha língua era afiada e eu tinha resposta na ponta da língua.
Às vezes era eu quem começava as brigas. Mas para essa situação eu não
consegui me defender. Eu não estava apenas em desvantagem e isolada, eu
tinha sido traída. Não era uma briga de garotas malvadas no pátio da escola.
Foi um ataque cruel e violento premeditado por garotas que eu achava que
eram minhas amigas. Eu nunca falei sobre isso. Eu guardei para mim. Eu
precisava encontrar uma maneira de sobreviver àquelas meninas, àquela
cidade, à minha família e à minha dor.

Ela sorri através de mil lágrimas


E nutre medos adolescentes
Ela sonha com tudo
Que ela nunca pode ser
Ela vagueia na insegurança
E esconde uma parte dela dentro de si mesma
Não diga que ela não valoriza tudo isso
Estou bem ciente de tudo que eu tenho
Não pense que eu estou desiludida
Por favor entenda
Parece que eu sempre fui
Alguém do lado de fora
Bem, aqui estou eu para que todos eles me façam sangrar
Só que eles não podem tirar o meu coração de mim
E nem podem me fazer ajoelhar
Pois nunca saberão quem eu sou de verdade

– “Looking In”

“A Mariah só tem três camisas e ela fica revezando!”

Essas palavras cruéis explodiram diante da muvuca de alunos da sétima


série andando pelo corredor como uma bomba fedorenta. Todas as pisadas,
barulho de armários, algazarra de conversas e risadas se transformaram em
um bicho-papão escarnecedor gigante feito de crianças, sentado no meio do
corredor apontando para mim. O meu estômago embrulhou e o meu rosto ficou
vermelho de vergonha. Eu achei que fosse vomitar ali mesmo no chão
ladrilhado.

O ensino fundamental é um esporte de contato e eu era muito habilidosa

90
com a minha própria língua afiada. Muitas crianças sofrem com apelidos
maldosos ou “engraçados” dados a eles por seus colegas por causa de sua
aparência ou por algum acontecimento embaraçoso, mas ser provocado por
ser pobre parecia um tipo diferente de crueldade.

Eu fiquei muito magoada, mas eu não deixei transparecer. Eu não vomitei


na frente de todo mundo. Não dei a ninguém a satisfação de me ver
enfraquecida. Eu não demonstrei emoção e esperei pacientemente que o
bicho-papão desaparecesse, pois a muvuca tinha que se dissipar e as crianças
tinham que retornar às salas de aula. Eu entendi que depois disso não haveria
resgate e nem tentativa de pertencer a algum grupo. Eu sobreviveria do lado
de fora com três camisas e nenhum amigo na esperança de que
inevitavelmente eu acabasse me mudando novamente.

No nosso bairro de classe média, eu ficava extremamente constrangida de


viver com um guarda-roupa surrado em uma pequena casa em ruínas;
entretanto, na época em que eu entrei no ensino fundamental, eu havia
desenvolvido algumas novas habilidades de sobrevivência. Naquela idade, eu
não podia escolher o local onde eu iria morar, mas eu podia fazer algo em
relação às minhas roupas. Uma das poucas vantagens de me mudar tantas
vezes era que eu tinha um novo grupo de crianças para tentar me encaixar.
Uma vez, eu consegui reunir algumas amigas e pude convencê-las de que a
gente deveria ter um sistema de troca de roupas, onde nós trocaríamos as
nossas peças mais modernas e as usaríamos de forma diferente. Isso deu a
ilusão de que eu tinha um guarda-roupa mais amplo e atualizado do que eu
poderia pagar.

A roupa mais legal que eu tinha era uma jaqueta do time da escola de lã
vermelha extragrande e couro preto com AVIREX em letras grandes
estampadas nas costas. Era muito importante que eu tivesse uma roupa de
marca, então eu me certificava de usar um tipo de roupa assim e que fosse
adaptável a uma variedade de looks. Eu fiz o melhor que eu pude para ficar
parecida com as adolescentes bonitas e típicas do subúrbio, para me encaixar
com todas as outras garotas de Long Island.

Na época que eu estava na décima série, eu estava “ficando” com o cara


mais alto e mais assustador da cidade. Ele tinha um metro e oitenta e cinco e
tinha bíceps mais grossos do que as minhas duas coxas. Ele tinha vinte e
poucos anos, tinha um carro e ninguém mexia com ele. E essa é a principal
razão pela qual eu estava com ele. Ele era protetor, um campo de força. O
garoto anterior com quem eu tinha ficado era instável; nós até começamos a
brigar fisicamente na frente de um grupo de garotas que ficaram por perto para

91
assistir. Depois que nós terminamos, ele começou a me perseguir e a me
assediar – um verdadeiro manipulador. O Sr. 1 metro e oitenta e cinco
centímetros de altura o viu me xingando e o levantou do chão e o jogou em
cima de cinco carros estacionados – bem feito! Ele realmente era muito legal
além de ser muito forte. Mas o ensino médio pode ser traiçoeiro, especialmente
para uma excluída como eu, então ficar com o cara mais valentão da cidade
tinha as suas vantagens.

Algo que eu nunca entendi era que tinha um grupo de garotas que estava
numa vibe de usar roupas de banda de rock tingidas (Grateful Dead) dos anos
60. Era o final dos anos oitenta e as tendências de rua eram tão recentes que
eu realmente não entendia o que elas estavam fazendo. Por que elas estavam
voltando a um visual retrô tão sem sentido? Além disso, elas eram agressivas
e valentonas, nada de hippies, nada de fãs da banda de rock Grateful Dead ou
amantes da paz. Sendo a espertinha que eu era, eu as chamei de “Povo da
Paz”. Espalhou-se o boato de que eu estava zombando delas e elas ficaram
putas. Começaram a circular rumores de que eu ia levar uma surra. Mas o Sr.
1 metro e 85 de altura era famoso; todo mundo tinha medo dele, então fazer
alguma coisa comigo não era tão simples assim.

Certa manhã, depois de ir à Bagel Station, como de costume, para comprar


um bagel com bacon, queijo e café, eu estava a caminho do “pátio” para
terminar o meu café e fumar um Newport antes da aula. O pátio era uma grande
praça de tijolos fora do refeitório da escola onde as crianças costumavam sair,
fumar e tentar chamar a atenção. Várias centenas de metros antes de eu
chegar lá, de repente, um semicírculo de cerca de uma dúzia de garotas
brancas se fechou ao meu redor, e todas estavam empolgadas para brigar.

Elas estavam gritando ao mesmo tempo, e a garota mais valente de todas


saiu da matilha e avançou em minha direção. Eu fiquei assustada, mas eu tentei
não mostrar o quanto eu estava assustada. O bagel no meu estômago havia
se transformado em combustível de foguete e estava explodindo na minha
barriga, e a minha cabeça estava girando tentando inventar algo para dizer para
neutralizar ou atrapalhar a situação, porque certamente eu não ia brigar. Eu
posso parecer durona e ter uma língua afiada, mas eu nunca quis realmente
brigar com ninguém. Eu usei a minha inteligência para sobreviver (além disso,
eu era a corredora mais rápida da escola, exceto por um menino). O grupo das
garotas tinha chegado perto o suficiente para que o calor de sua fúria
chamuscasse os pelos dos meus braços. Eu tinha que dizer algo, então eu abri
a minha boca e comecei a gritar – não faço ideia do quê. O que eu nunca
esquecerei é ver a coragem delas murchar na mesma hora enquanto cada uma
recuava lentamente e rapidamente se dispersava. Por um rápido instante, eu
pensei que eu tivesse causado medo nelas, mas então eu senti uma energia

92
poderosa atrás de mim. Eu me virei e o que eu vi parecia uma versão
adolescente de um Protesto das Panteras Negras14, havia uma multidão de
garotas negras de todos os tons, de todos os estilos, tamanhos que eu
conhecia na escola. “Ah, conta com a gente,” uma delas disse e assim tudo
terminou.

Não houve debate se eu era “negra” ou não, ou se eu “parecia branca” –


aquelas garotas duronas apenas me disseram que, quando chegasse o
momento, elas iriam estar ali por mim.

Anos mais tarde, após o lançamento de “Vision of Love”, a minha música


tocava em todas as estações de rádio e eu aparecia na TV. A minha mãe ainda
morava em Long Island, e eu perguntei a ela se a gente poderia passar pela
casa onde a garota mais bonita e as suas irmãs moravam. Eu parei o carro,
desci e apenas olhei para a estrutura modesta, um símbolo do que eu tinha
sobrevivido. A minha mãe, usando um casaco de pele que eu tinha dado a ela,
saiu também. O pai da família (aquele que batia na mãe) veio até a porta e, em
seu sotaque forte e vibrante de Long Island, gritou: “Ah, olha só, a Pat agora
mora em Hollywood!” O resto da família saiu de casa em fila. A garota mais
bonita ficou pasma. Ela não conseguia acreditar que tinha acontecido.

A cadela mulata vira-lata que morava no barraco miserável da rua havia se


tornado uma estrela.

O irmão que berrava: “Você é uma perdedora!”

Aquela família, aquela casa, aquela cidade, aquela época, aquele dia – de
repente, tudo parecia nada para mim. Não era nada em lugar nenhum, e eu
tinha caído fora.

Quando eu me virei para entrar no carro, eu ouvi a loira gritando: “Mariah,


eu estou tão feliz por você; eu estou tão feliz por você!” E ela se tornou a irmã
mais bonita de todas.

Sim, eu fui machucada


Cresci confusa
Fui pobre

14 Protesto das Panteras Negras: foi um partido político que surgiu nos Estados Unidos,
na década de 1960, no contexto da luta da população afro-americana pelos seus direitos
civis. Fundado por universitários negros, surgiu como um movimento de combate à violência
policial contra negros nos Estados Unidos e transformou-se em um partido político com um
projeto revolucionário de combate à desigualdade contra os afro-americanos.

93
Eu vi a vida de muitos lados
Fui estigmatizada
Às vezes fui negra, às vezes fui branca
Me senti inferior por dentro
Até que a minha graça salvadora brilhou sobre mim
Até que a minha graça salvadora me libertou
Me dando paz

– “My Saving Grace”

94
2° PARTE

SING. SING.
UM PRELÚDIO PARA SING SING15
Chegando ao limite
Inconsciente, eu quase
Que caía
Uma parte de mim
Nunca será capaz
De se sentir estável

– “Close My Eyes”

Ainda hoje é difícil explicar, expressar com palavras como eu existia no meu
relacionamento com o Tommy Mottola. Não é que não haja palavras, é apenas
que elas ainda ficam entaladas nas minhas entranhas ou desaparecem na
densidade da minha ansiedade. A energia do Tommy era intensa, mais do que
controladora; para mim, era como se o ar ficasse pesado com ela. Mesmo antes
de ele entrar na sala, eu conseguia sentir a mudança no ar e a minha respiração
ficava ofegante. Ele me envolvia como uma névoa. A sua presença parecia
densa e opressiva. Ele era como a umidade – inevitável.

Nunca, quando eu estava com ele, eu senti que eu podia respirar fácil e
plenamente. A sua presença era dominante e trazia consigo uma inquietação
indescritível. No início do nosso relacionamento, eu pisava em ovos. Depois, a
sensação que eu tinha era a de pisar em espinhos e, por fim, em um campo
minado. Eu nunca sabia quando ou o que o faria explodir, e a ansiedade era
incessante. Nos oito anos que nós estivemos juntos, eu não me lembro de ter
passado dez minutos com ele e ter me sentido confortável – de ter a sensação
de que eu poderia ser eu mesma. Eu sentia que a minha essência era sufocada
constantemente. Eu parecia estar desaparecendo aos poucos.

Parecia que ele estava cortando a minha circulação, me mantendo longe


dos meus amigos e da pouca “família” que eu tinha. Eu não podia falar com
ninguém que não estivesse sob o controle do Tommy. Eu não podia sair ou
fazer nada com ninguém. Eu não conseguia me mover livremente na minha
própria casa.

Muitas noites, eu me deitava de lado na nossa enorme cama, sob a qual eu


deixava a minha bolsa cheia de coisas essenciais para o caso de ter que fugir
rapidamente – a minha bolsa “de emergência”. Eu tinha que esperar ele dormir.

15 Sing Sing: o Centro Correcional de Sing Sing é uma prisão de segurança máxima
administrada pelo Departamento de Correções e Supervisão Comunitária do Estado de
Nova Iorque.

96
Mantendo os meus olhos fixos nele, eu ia aos poucos e muito lentamente até a
beira da cama e rapidamente girava os meus quadris e pernas para poder pisar
no chão. Nunca desviando o olhar, eu andava na ponta dos pés para trás em
direção à porta, que parecia um quarteirão inteiro de distância. Com muito
cuidado, eu saía pela porta. Era uma grande vitória quando eu conseguia sair
do quarto! Eu descia suavemente a grande escadaria de madeira escura como
um ladrão roubando um pouco de paz de espírito, então eu ia para algum lugar
na mansão. Muitas vezes, eu só queria ir para a cozinha para fazer um lanche,
ou sentar à mesa e escrever algumas letras de música. Mas toda vez, assim
que eu começava a me acostumar com o silêncio e a calmaria da escuridão e
a recuperar o fôlego – Bipe! Bipe! O interfone tocava.

Eu pulava e a pergunta “o que você está fazendo?” saía no alto-falante, e


eu ofegava e mais uma vez eu perdia o ar. Tudo que eu fazia, onde quer que
eu fosse, era monitorado – minuto a minuto, dia após dia, ano após ano.

Era como se uma parte de quem eu sou estivesse sendo esmagada. Ele
tentava destruir tudo que ele não criava ou sentia que ele não conseguia
controlar. Eu criei uma garota divertida e livre nos meus clipes para que eu
pudesse assistir a uma versão de mim que parecia estar viva, para que eu
pudesse viver indiretamente através dela – a garota que eu fingia ser, a garota
que eu gostaria de ser. Eu assistia aos meus clipes como prova de que eu era
real.

Eu estava vivendo o meu sonho, mas eu não podia sair de casa. Solitária e
presa, eu fui mantida em cativeiro nesse relacionamento. Aprisionar e controlar
alguém pode acontecer de muitas formas, mas o objetivo é sempre o mesmo –
destruir a vontade da pessoa presa, matar qualquer sensação de valor próprio
nela e apagar a memória da sua própria alma. Eu ainda não tenho certeza do
impacto que isso causou em mim, do quanto eu fui destruída permanentemente
ou aprisionada – talvez, entre outras coisas, a minha capacidade de confiar
totalmente nas pessoas ou de descansar totalmente. Mas, felizmente, eu fui
conseguindo sair aos poucos, através das letras das minhas canções.

Eu não falei sobre o pior


Eu deixei tudo se dissipar
E eu tentei esquecer
Quando eu fechei os meus olhos

Eu cantei sobre algumas coisas que eu não podia falar abertamente.


Embora eu tente, eu não consigo esquecer. Às vezes, sem aviso, sou
assombrada por um pesadelo ou flashes de sufocamento. Às vezes eu ainda
sinto o peso. Às vezes eu fico sem ar.

97
AMANDO SOZINHA

Quando eu estava na sétima série, foi a primeira vez que eu gravei num
estúdio profissional. Eu fiz backing vocal em algumas músicas originais,
incluindo uma versão da clássica música de R&B “Feel the Fire” (sinta o fogo),
originalmente escrita e gravada pelo Peabo Bryson. A gravação aconteceu em
um pequeno estúdio caseiro, mas era um trabalho de verdade, e eu era paga
por isso. Foi também quando eu comecei a aprender como criar nuanças e
texturas em arranjos vocais e de como usar a minha voz para fazer camadas,
como um pintor. Foi quando o meu romance com o estúdio começou. Foi um
momento importante que deu início à minha jornada, o meu desejo de sucesso.

Um teste levava a outro. Era como se eu fosse um peixinho em uma poça.


O cenário musical de Long Island era bem pequeno, e o boca a boca era o
método de se fazer marketing. Na época, eu tinha catorze ou quinze anos, e
eu estava compondo canções e gravando backing vocals e jingles para as
empresas locais. Eu fazia backing vocals regularmente para uns caras que
pareciam os caras do filme de comédia Wayne's World (PT-BR: quanto mais
idiota melhor). Eles curtiam riffs de guitarra altos e pesados e outras coisas,
enquanto eu ouvia (ou melhor, eu estava obcecada com) as estações de rádio
que tocavam música urbana contemporânea, principalmente R&B, hip-hop e
música dance. Eu amava escutar rádio. Embora os nossos gostos fossem
claramente muito diferentes, eu gostava do trabalho mesmo assim. Eu gravava
demos para músicas e comerciais, e aprendia a adaptar a minha voz à tarefa,
não importava qual fosse ela. O estúdio era o meu habitat natural. Como estar
no oceano, quando eu estava lá, eu me sentia leve e todas as minhas
preocupações desapareciam. Eu me concentrava apenas nas músicas e,
mesmo que eu não gostasse delas, eu respeitava o trabalho de produção de
cada uma. Um dia, enquanto a gente trabalhava em uma das miscelâneas de
uma música, eu disse a eles que eu também era compositora. Eu achei que se
a gente estava trabalhando naquelas cafonices deles, por que a gente não
poderia trabalhar nas minhas músicas?

Tecnicamente, eu vinha fazendo composições antes mesmo de ser


adolescente. Eu escrevia poemas e rascunhos de canções no meu diário. De
vez em quando, eu ficava sozinha em casa, ou quando a minha mãe estava
dormindo, eu tinha um momento de leveza na pequena e escura sala de estar,
sentada no banquinho de madeira do piano vertical Yamaha marrom
incrivelmente conservado da minha mãe. Eu colocava o meu diário no suporte

98
para partitura e ficava balançando os meus pés. Eu cantarolava um pouco uma
melodia, depois procurava o tom mais apropriado para a minha voz. Então,
muito baixinho – quase sussurrando – eu cantava algumas palavras com a
melodia.

Eu confiava na música que eu ouvia na minha cabeça. Eu a achava


parecida com as canções populares que eu ouvia nas rádios. As minhas
canções não imitavam o estilo ou som do que eu ouvia; em vez disso, eu
sempre procurava o som certo, o som que tivesse a minha cara. E eu acreditava
que o meu som se encaixava, ou até mesmo era melhor do que o som que as
estações de rádio tocavam. Eu realmente acreditava nisso. Eu sabia que o que
eu estava ouvindo era avançado para a minha idade, mas felizmente eu estava
trabalhando com dois caras que me ajudaram muito e que aceitaram trabalhar
com uma artista tão jovem. Então foi lá na casa da mãe deles, em um estúdio
triste e caindo aos pedaços, que eu escrevi e produzi uma das minhas demos
favoritas, “To Begin” (eu ainda amo, mas infelizmente esta demo é uma das
muitas fitas da pequena Mariah que se perderam). Eu estava confiante de que
eu tinha uma música irada.

Eles disseram: “Por que estamos dando ouvidos a essa garotinha?”


Sinceramente, eu não acho que eles tenham entendido a arte, os gêneros e os
sons com que eu estava trabalhando. Eles realmente eram caras esquisitos do
tipo hippie de bandas de garagem. Na verdade, eu era mesmo uma criança,
mas eu também sabia qual era o estilo do momento – e eles não estavam nem
perto disso. A disciplina de trabalhar com eles foi boa para mim. Mas por volta
dos meus quinze anos, eu percebi que eles já tinham dado o que tinha de dar.

Um dos meus primeiros trabalhos foi com dois caras bem malandros que
faziam demos. Eles gostaram do meu som porque eu tinha uma vibe de cantora
adolescente que era popular na época, principalmente por causa do sucesso
da Madonna. Mas eu era adolescente na época, e eu cantava em tons altos
naturalmente. Eu sabia imitar a popular técnica de estúdio da Madonna, mas
usando somente a minha voz.

Eu fiz o teste cantando uma das canções que eles escreveram e eles me
contrataram na hora. Então, esses caras malandros começaram a me pagar
para cantar demos. Este foi o início oficial da minha carreira profissional – e de
uma série interminável de mais malandros que passariam pela minha vida. Eu
havia entrado no território traiçoeiro da “indústria da música”. Embora a minha
jornada estivesse apenas começando, eu logo seria iniciada na dinâmica
complicada que as artistas femininas têm de suportar. Como agora eu sei, a
maioria não consegue sobreviver.

99
Eu sentia algo estranho desde o início, porque eu realmente não sabia dizer
se esses caras eram pervertidos ou não, mas eu acreditava que nada de ruim
aconteceria porque os dois tinham esposas que estavam por perto o tempo
todo. Ingenuamente, eu imaginei que essas mulheres iriam assumir papéis de
irmã mais velha comigo. Elas eram adultas e eu ainda era quase uma criança,
mas infelizmente, a minha idade e o meu talento causavam confusão. Mesmo
eu sendo uma adolescente magricela (tipo, o meu corpo era praticamente como
o da Olívia Palito naquela época), uma das esposas tinha ciúmes de mim. Ela
estava sempre por perto, andando em shorts curtos, me olhando torto. Eu não
entendia o que estava acontecendo. Eu era muito jovem para entender e
também eu estava lá para trabalhar. Talvez os meus próprios shorts curtos
fossem inadequados de se usar perto daqueles homens mais velhos. Eu não
sabia. Eu era apenas uma criança sentindo o primeiro sabor de independência
e, além disso, alguns pares de shorts e tops baratos eram tudo que eu tinha.
Eu estava no meio de um fogo cruzado de shorts curtos sem nem saber.

Eu continuei gravando demos de músicas para esses dois caras, para


ganhar um pouco de dinheiro. Mas, novamente, assim como com os caras da
banda de garagem, nós estávamos trabalhando com as canções deles, embora
eu acreditasse que as minhas canções fossem melhores. E novamente, eu
perguntei se eles aceitariam que eu escrevesse algumas canções. Inicialmente,
eles recusaram. Foi totalmente frustrante: aqui estava eu cantando músicas
estranhas e cafonas novamente. Essas pessoas não ouvem rádio? Eu me
perguntava. Eles não sabem o que é popular? Eu analisava as músicas que
tocavam nas estações de rádio cuidadosamente, prestando atenção quais
músicas tocavam sem parar. Eu sabia que as músicas que eles estavam
escrevendo não eram boas. Apesar de não gostar delas, eu cantava porque
era o meu trabalho e eu precisava muito do dinheiro. Mas agora que eu tinha a
experiência de fazer demos, eu sabia que eu precisava gravar as minhas
próprias músicas e rapidamente.

Um tempo depois, eu consegui fazer um acordo com um dos caras que


tinha um estúdio: eu faria demos para ele se ele me deixasse trabalhar por
conta própria. Eu levei uma das músicas que eu tinha começado a compor no
piano da minha mãe no barraco, chamada “Alone in Love” (amando sozinha).
Eu me sentei sozinha em um cômodo e comecei a fazer as minhas primeiras
fitas demos. Demos com as minhas próprias músicas.

Caí na sua lábia


Mas agora eu estou perdida no escuro
Ateou fogo em mim
Mas agora o que restou foi só uma faísca
Sozinha, você me deixou muito confusa

100
E me sinto perdida dentro de um labirinto
Eu acho que eu estou amando sozinha

– “Alone In Love”

Eu peguei o jeito. Eu experimentava com diferentes tipos de músicas. Eu


gravei músicas dance, indo direto ao assunto, eu gravei músicas de todos os
estilos. Eu aprendi a produzir sob pressão. Eu estava no estúdio, gravando.
“Alone in Love” foi uma das primeiras músicas da minha fita demo. Uma versão
da música acabou fazendo parte do meu primeiro CD e continua sendo uma
das minhas favoritas.

Você me assombra em meus sonhos


Eu estou chamando o seu nome
Eu vejo você desaparecer
O seu amor não é o mesmo
Eu descobri o seu estilo
De se afastar rapidamente
Você ficou comigo por um tempo
E planejou desde o início
Amando sozinha

Eu estava na décima primeira série.

Eu me lembro muito bem de uma noite – em que eu vi o dia amanhecer.


Tons de rosa da madrugada apontando no céu noturno de um roxo profundo,
e eu não sabia onde é que eu estava, novamente. Em algum lugar da rodovia
Taconic Parkway, ou talvez na rodovia Cross Bronx Expressway do bairro do
Bronx? Agarrando o volante de plástico duro do carro Cutlass Supreme velho
e caindo aos pedaços da minha mãe, eu tentei manter o foco na estrada e não
me estressar com o ponteiro do medidor de combustível que ficava apontando
que o tanque estava quase vazio.

Todos os dias eram uma luta, eu tentando encontrar o caminho de casa


depois do trabalho apenas para dormir algumas horas antes de ir para a escola.
Eu havia decidido cair fora do cenário musical de Long Island recentemente. O
meu irmão (que também estava tentando ficar famoso na indústria da música,
como empresário ou produtor – não tenho certeza do quê) me apresentou a
alguns músicos e engenheiros de estúdio da cidade de Nova Iorque. Eu
comecei a me deslocar para a cidade para gravar à noite e então dava meia-
volta e seguia para a Ilha para ir para a escola na manhã seguinte. Foi aí que

101
começou a minha primeira vida dupla (mais ou menos).

Pouquíssimos colegas meus da escola sabiam o que eu estava fazendo.


Eles não sabiam que eu estava dirigindo sozinha em rodovias, me perdendo à
meia-noite, desabando na cama e me arrastando para ir à escola. Eles não
sabiam porque eu chegava atrasada todos os dias. Eu não falava sobre isso
porque eu sabia que pareceria maluco – e a maioria das pessoas não tinha a
capacidade de realmente acreditar com a mesma intensidade que eu. Além
disso, as pessoas que eu conhecia não precisavam acreditar. Elas estavam
ganhando carros novos, Camaros e Mustangs, como presente de aniversário
de dezesseis anos. Os seus caminhos estavam traçados há muito tempo e já
tinham um futuro certo pela frente. A maioria tinha certeza de que iria para a
faculdade. Elas já tinham uma vida planejada e garantida.

Eu me lembro de uma vez que um dos atletas mais populares da escola me


perguntou o que eu ia fazer depois de terminar o ensino médio. Eu
normalmente não contava os meus sonhos a nenhuma das pessoas ao meu
redor, mas, nesse caso, eu contei. Eu disse a ele que eu seria cantora e
compositora. A resposta dele foi: “Aham, Cláudia, senta lá; daqui a cinco anos
você vai estar trabalhando na HoJo’s.” (HoJo's era a abreviação de Howard
Johnson's, a rede de hotéis e restaurantes que ainda era muito popular na
época.) A piada foi totalmente intencional.

Acontece que em menos de três anos, com um vestido preto simples, com
os cabelos cacheados e com frio na barriga, eu caminhei por um estádio lotado
em meio ao barulho ensurdecedor de dezenas de milhares de vozes. Uma voz
alta e clara interrompeu a algazarra: “Senhoras e senhores, por favor, deem as
boas-vindas à cantora da gravadora Columbia, Mariah Carey, que cantará a
música 'America the Beautiful'”. O toque de piano foi gravado pelo Richard T.
Eu segurei o pequeno microfone e cantei a música com tudo que eu tinha. Atingi
uma nota muito alta em “sea to shining sea” (de um mar ao outro), e o estádio
me ovacionou.

Quando eu terminei, o locutor disse: “O palácio agora tem uma rainha, e os


arrepios continuarão”. Era o primeiro jogo das finais da NBA, entre Detroit e
Portland. Eu sabia que o atleta que fez a piadinha comigo de que eu iria
trabalhar na HoJo's (sem querer desmerecer ninguém que trabalhe com isso,
porque eu já passei por essa situação), e todos que me desprezaram, e milhões
de americanos estavam assistindo. Nenhum dos jogadores, nenhum dos
torcedores sabia quem eu era quando eu entrei, mas eles se lembrariam de
mim quando eu saísse. Uma vitória.

Outro grande momento inovador de alta visibilidade: “Vision of Love” ficou

102
em 1° lugar nas paradas de R&B antes de chegar ao topo das paradas pop, e
então a minha estreia na televisão nacional foi no programa do Arsenio Hall. O
Arsênio era mais do que um apresentador; ele tinha mais do que um programa
noturno; o programa dele era um evento cultural, uma verdadeira experiência
com a cultura negra – ou melhor, era um programa de entretenimento popular
visto pelas comunidades negras. Todos assistiram e falaram sobre a minha
apresentação em toda parte. Eu sempre serei grata e terei muito orgulho por
ter pisado no palco do Arsênio, pois foi lá que a maioria dos americanos
conseguiu ver o meu rosto, soube o meu nome e ouviu a minha música pela
primeira vez.

Na minha adolescência, viver em um constante estado de exaustão e


alegria tornou-se o meu novo normal. Mas com cada quilômetro percorrido e
cada amanhecer cumprido, eu estava cada vez mais determinada. A minha
ambição cresceu até o nível de devoção. E as bênçãos conquistadas com
dificuldade estavam começando a acontecer. O meu irmão conseguiu me
conectar com um produtor e escritor de renome chamado Gavin Christopher.
Gavin escreveu grandes sucessos para a banda Rufus (a banda para a qual
Chaka Khan cantou) e produziu canções para o rapper Grandmaster Flash e o
cantor e DJ Afrika Bambaataa. Nos demos bem na mesma hora e começamos
a trabalhar juntos para produzir uma das minhas primeiras demos profissionais.
Eu também conheci a namorada dele, a Clarissa, outra cantora, e nos demos
bem também. Eu gostava dos dois e eu podia sentir os sinais de uma nova vida
em Nova Iorque surgindo diante de mim.

Conhecer pessoas importantes na cidade de Nova Iorque certamente era


crucial para a minha carreira, mas sair da casa da minha mãe não era mais
apenas um desejo, era uma necessidade. Quando eu era mais jovem, eu não
tinha como controlar as nossas constantes mudanças de um lugar para o outro
e as escolhas super ruins da minha mãe em relação aos homens. No meu
último ano do ensino médio, ela começou a namorar um cara que eu
desprezava. Ele era mesquinho e manipulador. No Dia de Ação de Graças,
todos nós saímos para jantar, e ele realmente insistiu que eu e o meu sobrinho
Shawn (que estava no ensino médio), o primeiro filho da Alison, pagássemos a
nossa parte do jantar. Ele dividiu a conta igualmente entre as pessoas
presentes e exigiu que nós pagássemos a nossa parte. Então, depois que eu
dei a ele os míseros e amarrotados dólares que eu tinha no bolso, que era
quase todo o dinheiro que eu tinha, o Shawn e eu saímos e fomos ao cinema
assistir o filme De volta ao futuro II. Não, graças a ele.

Quando a minha mãe decidiu se casar com ele, eu sabia que era a deixa
para eu me mudar. Eu acho que ela pensou que ia ficar rica se ela se casasse
com aquele cara porque ele tinha um barco na marina West Seventy-Ninth

103
Street Boat Basin. Mas era onde ele morava antes de morar no nosso barraco
e, acredite, o barco dele parecia mais com um rebocador do que com um iate.

Por fim, ela acabou com esse casamento abominável. O divórcio demorou
vários anos e muitos honorários de advogado, que obviamente foi eu quem
paguei após o sucesso do meu primeiro CD. Então o idiota acabou me
processando pelos direitos de uma boneca Mariah Carey fictícia (se eu tivesse
ganhado um dólar por cada caloteiro que me processou, eu estaria... bem,
foram muitos). Mas eu era o contrário de rica quando eu saí da casa da minha
mãe. Eu não tinha um centavo e tinha dezessete anos. Era o final dos anos 80
e eu morava completamente sozinha na cidade de Nova Iorque.

O destino é uma coisa bizarra. Quando eu tinha cerca de sete anos, a gente
morava em um apartamento apertado em cima de uma delicatéssen, e eu
adorava ouvir o som das rádios que entrava pelas nossas janelas. Eu me
lembro de rebolar, fazer pose e cantar com a Odyssey: “Oh, oh, oh, você é um
nova-iorquino da gema / Você já deveria saber o placar.” Eu não sabia o que
era “saber o placar”, mas foi a partir daí que eu fiquei com vontade de sentir
essa vibe fabulosa de Nova Iorque. Demorou mais de dez anos, mas finalmente
aconteceu.

Para mim, Nova Iorque parecia ter uma agitação perceptível e uma
elegância inalcançável. É uma cidade que nunca dorme: pessoas e mais
pessoas andando para lá e para cá, ninguém com aparência semelhante, mas
todos com movimentos sincronizados. A cidade era uma loucura de motoboys
de um lado para o outro e incontáveis táxis amarelos ziguezagueando pelas
ruas como um enxame de abelhas agitadas. Tinha sempre algo acontecendo
onde quer que você olhasse – enormes outdoors, letreiros de néon piscando,
pichações por todos os lugares, em vagões de metrô, torres d’água e vans. Era
como uma grande galeria de arte em movimento. As avenidas principais eram
grandes e lotadas passarelas cheias de modelos ecléticos, magnatas dos
negócios, traficantes de rua e trabalhadores de todos os tipos, todos desfilando
e sem nenhum ficar analisando uns aos outros. Todos tinham um lugar para ir
e algo para fazer. Era um planeta de concreto e cristal louco e magnífico
povoado de desajustados, mágicos, sonhadores e traficantes – e eu caí de
paraquedas bem no meio. Mona, eu nasci para isso.

104
FAÇA ACONTECER

Depois de me mudar da casa da minha mãe, eu passei a morar no


apartamento vazio do Morgan em cima do restaurante Charlie Mom Chinese
Cuisine no bairro Greenwich Village, enquanto ele estava na Itália tentando
uma carreira de modelo (e sabe Deus o que mais). Eu alimentava os dois gatos
dele, o Ninja e o Thompkins, e eu fazia o melhor que eu podia para conseguir
comer. A primeira decisão de cada dia era se eu deveria comprar um bagel na
H&H ou pagar a passagem de metrô.

Eu sobrevivia com um dólar por dia e eu tinha que fazer uma escolha – ou
eu tomava café da manhã ou eu pagava o transporte. Os bagels da H&H eram
sublimes: macios, quentes e rechonchudos até a perfeição, um tipo clássico de
café da manhã de Nova Iorque que mantinha o meu estômago satisfeito até as
três horas (H&H significava Helmer e Hector, os dois proprietários porto-
riquenhos, que provavelmente faziam o melhor e mais legítimo bagel do
mundo). Mas, novamente, se locomover é muito importante, e o metrô de Nova
Iorque era a rota mais barulhenta e agitada, mas a mais direta para qualquer
lugar da cidade. A ficha do metrô era um pouco maior do que uma moeda, um
disco de ouro sujo com “NYC” (New York City) estampado no meio e um recorte
distinto em Y fino. Essa era a moeda do povo e que poderia levar você a
qualquer lugar, a qualquer momento. Mas se eu pudesse andar até onde eu
precisava ir, o café da manhã vencia.

Eu encontrei um emprego na mesma hora. Eu não tinha escolha. Então eu


fiz o que qualquer outro sonhador sem nenhum tostão faz quando chega a
Nova Iorque. Eu peguei o jornal gratuito de verdadeiros nova-iorquinos, o
Village Voice, e verifiquei os anúncios de emprego. Eu aceitei o que tinha
disponível – e o que tinha disponível era um trabalho num bar de esportes na
rua Seventy-Seventh (77) com a Broadway, sabiamente chamado de Sports on
Broadway.

Eu comecei a trabalhar como garçonete, mas, como a gerência logo


descobriu, eu ainda era menor de idade e eu não podia servir bebidas
legalmente, então eu fui transferida para o caixa. Rapaz, que desastre! Eu era
esforçada, mas eu tinha passado a maior parte do meu tempo trabalhando em

105
estúdios de gravação, e trabalhar no caixa não é como fazer backing vocals.
Eu não estava pegando o jeito rápido. E este era um estabelecimento de bairro
com frequentadores assíduos e garçonetes práticas, como a personagem Flo
do programa de TV Alice que dizia “Kiss My Grits16”, mas Nova Iorque é difícil.
As garçonetes me odiavam por bagunçar o dinheiro delas!

Por fim, me transferiram para o guarda-volumes. Simples. Mas enquanto eu


estava aproveitando ao máximo o meu trabalho, estavam se aproveitando de
mim também: eu não podia ficar com as gorjetas, que é o lado bom de ser uma
atendente de guarda-volumes. Eu ganhava um dólar por cada casaco. Eu sabia
que não era justo, mas eu também sabia que era temporário. Quando chegou
o verão, o guarda-volumes se transformou em um estande de mercadorias e
eu me tornei a garota propaganda da “Sports on Broadway”. O estande ficava
bem na porta da frente, então a primeira coisa que os homens viam era a mim
com um sorriso de boas-vindas, usando uma camiseta branca com a palavra
“Esportes” estampada nos meus seios. Graças a Deus que tudo era muito
simples: o uniforme era a camiseta e a calça jeans do bar, e como eu só tinha
uma calça jeans, era uma coisa a menos que eu tinha que me preocupar em
comprar.

Não mais do que três curtos anos atrás


Eu estava abandonada e sozinha
Sem um centavo no bolso
Muito jovem e com tanto medo
Sem sapatos adequados nos meus pés
Às vezes eu não conseguia nem comer
Eu muitas vezes chorava até dormir
Mas eu ainda tinha que continuar

– “Make It Happen”

Eu também tinha apenas um par de sapatos, e os sapatos eram bem

16 Kiss my grits: é uma expressão muito utilizada no sul dos EUA, era um bordão de uma
personagem de um programa de TV dos anos 70 chamado Alice. Esse programa era
humorístico (estilo Zorra Total e A Praça é Nossa), e como a história se passava em uma
lanchonete, eles faziam piadas envolvendo comida. Grits em inglês possui praticamente o
mesmo significado (e pronúncia) de Grütz. Grits no sul dos EUA é como se chama um tipo
de mingau de aveia (oatmeal). “Kiss my grits” substitui a expressão “kiss my ass” (beija a
minha bunda, mas com o sentido de “vai se fuder”).

106
menores que os meus pés. Tinham sido da minha mãe – lamentáveis botas de
tornozelo de couro preto com cordões. Eles eram básicos e úteis, e acabou
dando certo. Em algum momento, a parte superior do sapato despregou da
sola de borracha, e a aba ficava batendo no impiedoso chão da cidade com as
minhas pisadas rumo ao meu destino. O inchaço dos meus pés por ficar o dia
todo em pé com sapatos muito pequenos certamente contribuiu para o
desgaste deles. Os dias de neve eram os piores; o gelo entrava dentro da aba,
derretia e vazava pelas minhas meias finas, e a sensação pegajosa de couro
úmido e barato me deixava arrepiada. E naquele ano, Nova Iorque teve uma
grande tempestade de neve, digna de nota! Mas eu tentava me recompor, o
máximo que eu podia, e eu abria um sorriso, buscando mostrar serviço e
torcendo para que ninguém olhasse para os meus pés. Passei anos e anos
passando por humilhação, mas eu não estava mais na escola; eu estava
morando em Nova Iorque. Eu acreditava no fundo do meu coração que um dia
eu iria conseguir comprar alguns dos sapatos mais chiques e bem ajustados
que se poderia imaginar.

Eu tinha muita fé, mas eu também fui abençoada com muitos sinais e atos
de bondade de pessoas que passaram pelo meu caminho. Como o Charles, o
cozinheiro do Sports, que me fritava um cheeseburguer gorduroso e que dava
para mim escondido com um copo de Sambuca17. Não era nada glamoroso,
mas pelo menos eu fazia uma refeição, eu tinha uma roupa e alguns dólares.
Cada dia que eu sobrevivia, eu sabia que eu estava mais perto de realizar o
meu sonho. Eu me ajoelhava todas as noites e agradecia a Deus por mais um
dia em que eu não tinha desistido ou por não ter levado uma rasteira de
ninguém.

Eu sei que a vida pode ser tão difícil


E você sente vontade de desistir
Mas você deve ser forte
Querido, tenha paciência
Você nunca encontrará as respostas
Se você desperdiçar a sua vida
Eu costumava me sentir como você.
Mesmo assim, eu tinha que continuar.

– “Make It Happen”

17 Sambuca: é um licor de Sambucus nigra e anis típico da região de Roma, na Itália.

107
Trabalhar no Sports Bar era um meio, mas o estúdio era o fim. Tudo girava
ao redor da minha fita demo. Um dia, enquanto eu estava comendo no andar
de baixo no restaurante chinês, saboreando com vontade os pedaços baratos
da única refeição do dia, eu notei um rosto familiar. Era a Clarissa, e agora ex-
namorada do amigo produtor do meu irmão, o Gavin Christopher. Nos
abraçamos como velhas amigas. Eu disse a ela que eu havia me mudado
oficialmente para Nova Iorque. Quando eu dei a ela um resumo do caos da
minha vida, como um anjo, ela me convidou para ir morar com ela.

Embora ela tenha se identificado como uma “artista buscando fazer um pé


de meia”, felizmente para mim, a Clarissa não estava passando por tanta
dificuldade assim. Ela morava com um casal gay em um enorme prédio clássico
do bairro Upper West Side na rua Eighty-Fifth (85) entre o Central Park West e
a avenida Columbus. Eu suspeitei que ela fosse uma daquelas pessoas que
tinha um fundo fiduciário esperando por ela assim que superasse a sua fase
de artista faminta. A minha música era a minha vida. A música sempre foi o
meu único plano.

Embora o apartamento que eu morava agora fosse muito melhor do que o


meu antigo, morar com a Clarissa ainda tinha os seus desafios. Ela tinha um
quarto (com uma porta de verdade, que dava para fechar) onde havia uma
cama tipo beliche com equipamento de gravação embaixo dela. O quarto dela
ficava ao lado da sala de visitas maior. Já o meu quarto era uma estrutura
caindo aos pedaços, semelhante a um sótão construído acima da cozinha na
área comum que dividíamos com o casal. Para chegar ao meu recanto de
dormir, eu tinha que subir no balcão da cozinha e me içar até o minúsculo local.
A gente quase tinha que andar agachado lá dentro e tinha espaço apenas para
um colchão de solteiro, com um único travesseiro e um cobertor (um presente
de inauguração para a “casa nova” que a minha mãe tinha me dado). O espaço
era tão pequeno e o teto tão baixo que eu não conseguia me ajoelhar
totalmente na cama sem bater com a cabeça (então eu tinha que orar deitada).
O meu recanto era “decorado” com os únicos vestígios da minha vida em Long
Island: as minhas anotações e os meus diários, o meu pôster da Marilyn
Monroe e um punhado de livros sobre a Marilyn. Eu ainda a admirava.

Me reencontrar com a Clarissa foi uma grande bênção. Ela me ajudou a


encontrar trabalho e me sustentou quando eu não conseguia pagar a minha
parte do aluguel do mês, que custava quinhentos dólares – uma fortuna para

108
mim na época. Ocasionalmente, ela me levava para comer fora. Nós até
escrevemos algumas músicas em seu mini estúdio. Ela conheceu algumas
pessoas na cena musical quando ela namorava com o Gavin e às vezes ela
me apresentava a outros músicos que também moravam no Upper West Side.
Nessas ocasiões especiais, ela até me emprestava um vestidinho preto para
usar (não muito diferente do que eu usei na capa do meu primeiro CD).
Certamente eu não tinha nada adequado para vestir para essas ocasiões
sociais.

Como tudo naquela época, nada durou muito tempo. Um dia, algumas
pessoas malucas passaram a morar conosco e isso fez com que a Clarissa e
eu fugíssemos para salvar as nossas vidas (eu realmente não consigo entrar
nos detalhes do que diabo foi aquilo) e nós tínhamos que seguir em frente e
nos mudar dali. Nós passamos a morar com a minha amiga Josefin (eu a
conheci quando ela teve um relacionamento aberto com o meu irmão). Ela
estava morando com algumas outras garotas da Suécia. Então eram cinco
garotas desconhecidas morando em um apartamento qualquer em cima de um
clube chamado Rascals, na rua East Fourteenth. Eu dormia em um colchão no
chão, mas agora eu estava morando no “centro da cidade”, no coração da cena
artística de Nova Iorque do final dos anos 80. Era empolgante, embora
precário, e os meus olhos estavam sempre voltados para cima. Eu consegui
obter um pouco de estabilidade e adquirido muito mais fé. Eu sabia mais do
que nunca que eu iria realizar o meu sonho.

Uma vez eu estava perdida


Mas agora eu me encontrei
Eu coloquei os meus pés em chão sólido
Obrigado, Senhor
Se você acredita nisso com todo o seu ser
Mantenha-se firme
E não desista
Você consegue! Faça acontecer

– “Make It Happen”

Depois de alguns meses, as outras garotas da Suécia se mudaram e ficou


morando somente a Josefin e eu. Ela me ajudou a arranjar empregos
estranhos, mas eu também estava começando a conseguir mais trabalho como
backing vocal. Para este trabalho, eu escolhi o meu look de jovem cantora: um

109
vestidinho preto de malha, meia-calça preta e meias grossas e frouxas sobre
um par de tênis Reebok Freestyle branco (os sapatos pretos de segunda mão
da minha mãe tinham finalmente ficado só o bagaço). Antes, a Clarissa havia
me incentivado a pedir a minha mãe que comprasse sapatos novos para mim.
A minha mãe então pediu ao Morgan, que, ela me relatou, que ele tinha dito:
“Ela tem que aprender a se virar sozinha”. Eu era uma adolescente que morava
sozinha em Nova Iorque, mas beleza. Por fim, e colocando a maior dificuldade,
o Morgan comprou um par de Reeboks brancos para mim (por que não pretos,
eu me perguntei, que combina com tudo – mas graças a Deus que eu tinha
sapatos que serviam e que não tinham uma entrada de ar involuntária nas
solas). Eu usava essa roupa em quase todos os testes; era como um uniforme.

O Gavin e eu estávamos trabalhando em uma música juntos. Enquanto a


gente estava gravando, ele me apresentou a um produtor de Nova Iorque, o
Ben Margulies, que foi contratado como baterista para a gravação da nossa
música chamada “Just Can't Hold It Back” (não consigo aguentar). O Ben tinha
o seu próprio estúdio e eu trabalhava com ele de vez em quando durante os
meus dias de transição entre estudante e cantora, quando eu ainda morava em
Long Island. O estúdio dele ficava em Chelsea, na rua 19 entre a sexta e a
sétima avenidas. Localizado nos fundos da fábrica de armários do pai dele, o
estúdio era do tamanho de uma despensa. Poderia ter sido um galinheiro e eu
não teria me importado – e sinceramente não estava longe disso. Mas o
importante era que o local era quase um estúdio de gravação de verdade, o
lugar onde eu pertencia. Para mim, o estúdio é parte santuário, parte
playground e parte laboratório. Eu adorava ficar lá escrevendo, fazendo riffs,
cantando, sonhando e correndo riscos.

O Ben e eu trabalhamos incessantemente ao longo de um ano ou mais. Às


vezes o parceiro dele, o Chris, se juntava a nós, para ajudar com a
programação. Eu estava tendo muitas ideias e a gente continuava gravando,
mas eu ainda sentia que eles não estavam indo rápido o suficiente. Eu já estava
familiarizada com todo o processo. Eu estava criando todas as letras e
melodias e eu ficava frustrada porque parecia que estava tudo muito devagar.
Talvez porque eu tinha apenas dezessete anos e eu era extremamente
impaciente, mas eu sentia que eu estava envolvida de forma diferente, como
se eu estivesse em uma trajetória diferente da deles. A música era a minha
vida – muito do que eu acreditava, a minha sobrevivência, estava interligada
com as minhas canções. Havia uma urgência no ar, do momento e da minha
parte. O meu tempo era agora, e eu conseguia sentir isso. Eu sentia como se
eu fosse esbarrar em algo ou alguém muito em breve, e eu não ia deixar nada

110
e nem ninguém me atrasar.

O Ben e eu estávamos animados com as músicas em que nós estávamos


trabalhando, mas no final das contas, o nosso modo de pensar e as nossas
ambições eram incompatíveis. Acho que ele pensou que a gente formaria uma
dupla, como o Eurythmics, com ele cantando junto comigo, tipo como o Dave
Stewart com a Annie Lennox. Eu disse logo, “Hm, boa sorte; podemos apenas
nos concentrar em gravar as minhas canções, por favor?”

Conseguimos gravar uma fita demo completa que eu achei que realmente
mostrava as minhas composições e a minha voz. O que eu me lembro mais
vividamente sobre aquela época no estúdio é que eu ficava sentada sozinha
no chão, no canto, escrevendo letras e melodias, ou olhando pela janela
sonhando com o dia em que eu realizaria o meu sonho. Olha, o Ben era muito
comprometido e eu passei muito tempo trabalhando com ele, e fizemos muita
coisa. Mas eu tinha uma visão, mesmo naquela época, de que a minha carreira
iria muito além do que ele ou a maioria das pessoas ao meu redor conseguiam
imaginar.

O Ben sugeriu que houvesse um certo tipo de “garantia”, por meio de um


acordo formal, então ele fotocopiou um contrato do livro All You Need To Know
About The Music Business (tudo o que você precisa saber sobre o mercado
musical) – co-escrito pelo Don Passman, que, ironicamente, muitos anos
depois se tornaria o meu advogado. Sem pai, advogado, empresário ou mesmo
um bom amigo, eu assinei. Eu tinha talvez dezoito anos de idade. Obviamente,
eu não sabia muito sobre contratos e negócios na época, mas o que eu sabia
era que havia valor nas minhas letras e nas minhas músicas. (Eu me lembro
de ter visto um documentário sobre os Beatles quando eu era criança e de ficar
chocada por eles não terem a propriedade dos direitos autorais das músicas
que eles escreveram – os Beatles!) Então, eu sabia que eu não devia dar todos
os meus direitos. Algumas letras de músicas como “Alone in Love” eu comecei
a escrever no início do ensino médio.

Começamos a marcar reuniões com gravadoras e as coisas começaram a


andar rápido. Recebemos uma oferta inicial de uma grande gravadora para
usar a música “All in Your Mind” em um filme. Eu lembro que eles me
ofereceram cinco mil dólares por ela.

Se aproxime
Você parece tão distante

111
Há algo que eu sei que você precisa dizer
Eu sinto o que você está sentindo
Quando eu olho em seus olhos
O teu silêncio sussurrando mal-entendidos
Há tanta coisa que você precisa perceber
Você sentirá o que eu sinto
Se olhar nos meus olhos
Ei, querido
Eu sei que você acha que o meu amor está escapulindo
Mas, amor, é tudo coisa da sua cabeça

– “All In Your Mind”

Eu recusei, embora naquela época, cinco mil dólares parecessem um


milhão (que foi o quanto eu ganhei pelo primeiro contrato de edição musical de
verdade). Graças a Deus eu tinha assistido o documentário dos Beatles e
estava fresco na minha mente. Eu não vendi porque eu acreditava que as
minhas músicas vinham de algum lugar especial dentro de mim, e que vendê-
las seria vender um pedaço de mim.

O negócio da música é projetado para confundir e controlar o artista. Um


tempo depois, executivos experientes me disseram que o Ben tinha tirado a
sorte grande. Eu estava tentando ser leal a alguém que acreditou em mim em
um momento decisivo, mas na minha ingenuidade, eu não percebi ao que eu
tinha assinado e me submetido. Eu fui informada, e o que me lembro, é que ele
ganhava 50 % pela divulgação de todas as canções em que nós trabalhamos
juntos para o meu primeiro CD. OK, beleza. Mas, além disso, ele recebia 50 %
dos meus direitos autorais como artista pelo primeiro CD, 40% pelo segundo
CD, 30% pelo terceiro e assim por diante. Foi assim de 1990 até cerca de 1999.
Mesmo que o Ben não tenha escrito uma só palavra ou nota comigo depois do
primeiro CD. Por lealdade a ele e pelo trabalho árduo que colocamos juntos
naquele pequeno estúdio, eu nunca olhei para trás e tentei reivindicar nada.

Então, sim, uma fotocópia: essa é a origem sem cerimônia do meu primeiro
“acordo oficial”. Que boas-vindas ao mundo da música! Que eu estava tão
ansiosa para fazer parte, mas logo eu passei a acreditar que essa fotocópia só
continha a minha primeira assinatura porque agiram de má fé – algo que seria
difícil de desfazer. Mas que certamente não seria a última tentativa. Papeladas
cheias de má intenção ainda estavam por vir.

112
É necessário escolher as batalhas com sabedoria, e eu não ia perder o meu
tempo com alguém que eu já havia deixado para trás. A minha trajetória já
havia começado. Eu só tenho a agradecer e eu desejo tudo de bom para ele.

Pelo menos nós gravamos a fita demo.

Essa fita demo ficava guardada no meu Walkman, que ficava no meu
quadril, e a música registrada na minha mente. Além das rádios, eu só escutava
as músicas que nós gravamos. E as propostas das principais gravadoras me
deram a confiança de que algo iria acontecer. Eu só tinha que manter a fé e
continuar trabalhando. Eu não parei. Eu continuei indo a mais gravações de
estúdio, fazendo mais conexões e conseguindo mais trabalho como backing
vocal. Eu comecei a fazer backing vocal para o músico e produtor T.M.
Stevens, que havia escrito canções com o Narada Michael Walden e que
tocava baixo para o James Brown, para a Cyndi Lauper, para o Joe Cocker e
para outros artistas importantes. Foi por meio dele que eu tive a sorte de
conhecer a incrível Cindy Mizelle em um teste de gravação.

Desde o primeiro trabalho como backing vocal aos 12 anos de idade, eu


ganhei respeito pelas habilidades e talentos específicos necessários para isso.
Eu gostava de ouvir especificamente a parte de backing vocal nas músicas que
tocavam no rádio. Eu analisava o encarte e as capas dos CDs para saber quem
estava fazendo os vocais de backing vocal (especialmente em músicas dance,
pois eu acredito que as vozes dos backing vocals são a base dessas músicas).
Eu me familiarizei com todos esses cantores excepcionais, como a Audrey
Wheeler e a Lisa Fischer... e a Cindy. Para mim, ela era uma das melhores. A
Cindy Mizelle era a backing vocal. Ela cantou com os vocalistas mais talentosos
de todos os tempos – a Barbra Streisand, a Whitney Houston, o Luther
Vandross e os Rolling Stones. Ela era uma cantora de verdade. A Cindy era
esse tipo de cantora para mim. Eu a admirava muito.

Eu lembro que no início da gravação, nós estávamos no microfone, fazendo


uma parte que eu estava com dificuldade de acertar. A Cindy é tão
perfeccionista (como eu sou agora), mas ela tinha paciência comigo. Quando
você está começando a aprender a fazer backing vocal – tons e estilos
diferentes – não é fácil. Os produtores gostaram do meu timbre, mas eu tive
que aprender como realmente fazer tudo com perfeição, fazer tudo exatamente
do jeito que eles queriam. A prática leva à perfeição. A Cindy tinha que gravar
praticamente todos os dias; ela se garantia demais. Quando eu comecei a
cantar ao lado dela, eu tive que me esforçar muito para acompanhar. Agora, a

113
parte de backing vocal é um dos meus elementos favoritos na construção de
uma música. Eu amo as texturas e as camadas e como elas dão um toque a
mais na música; as partes de backing vocal ficam entranhadas na nossa pele.

Uma vez, enquanto a Cindy e eu estávamos gravando e paradas muito


próximas uma da outra ao microfone, ela conseguiu ouvir o meu estômago
roncar. Ela olhou para baixo e viu os sapatos tristes que eu estava usando, ela
examinou a minha roupa amarrotada e então olhou para mim com pena e
empatia. Eu estava empolgada demais para ficar constrangida – naquele
momento da minha vida, a minha ambição era mais forte do que a minha
vergonha. Qual era o problema de eu chegar um pouco faminta e um pouco
maltrapilha? Eu finalmente estava cantando como meio de vida, ao lado de
uma profissional incomparável.

A Cindy me deu o número dela naquela noite e me disse que se eu


precisasse de alguma coisa, eu poderia ligar para ela. Eu não sabia o que fazer
com isso. Ela cantava com cantores consagrados em todo o mundo – para que
que eu iria ligar para ela? O que eu diria? Eu não liguei, e quando eu a vi de
novo, ela me questionou por que. Não era fácil pedir ajuda. Eu não queria
incomodá-la ou sobrecarregá-la, eu expliquei. A Cindy me olhou nos olhos e
disse: “Mariah, você precisa me ligar.”

De repente, eu caí em mim. Ah, eu entendi. Era para eu ter ligado para ela.
Eu não tinha entendido de imediato que isso fazia parte do processo: a
iniciação, a orientação, o estímulo, a entrada em uma sociedade de cantoras
irmãs. Esses rituais eram todos novos para mim. E eu não estava familiarizada
com o fato de ser bem-vinda em uma família de artistas – em uma família de
qualquer tipo.

Depois que eu entrei no círculo interno dos cantores de backing vocal de


elite, as recomendações começaram a aparecer. Os backing vocals são
contratados boca a boca – um cantor recomenda outro, e cantores bons
gostam de trabalhar juntos. Se o time for forte, a gravação será forte, e se as
gravações forem fortes, o dinheiro é bom e estável. Eu fazia parte agora da
comunidade unida e talentosa de músicos que trabalham na cidade de Nova
Iorque. Embora eu fosse indiscutivelmente a mais jovem do time, eu também
costumava sair com alguns deles fora do horário de trabalho, principalmente
no bairro Upper West Side de Manhattan. Eu não curtia beber ou ficar com
ninguém de jeito nenhum; pegar o jeito da coisa, para mim, estava relacionado
com fazer conexões – o meu foco era no trabalho. Valeu a pena.

114
Eu recebi uma proposta para fazer uma gravação de algumas músicas para
um grupo chamado Maggie's Dream. Quando eu cheguei ao local, me disseram
que eu iria cantar junto com um cantor. E eis que um jovem artista, sexy,
sereno, cor de amêndoa torrada entra no recinto – ele realmente era a definição
da palavra artista. O cabelo espesso e escuro dele estava nas fases iniciais de
dreads. Ele tinha uma barba perfeita por fazer, com um cavanhaque no queixo.
Ele estava vestido como uma estrela de rock casual: uma jaqueta de
motociclista vintage de couro preto pesado, jeans preto e camiseta preta. Ele
tinha uma argola no nariz e o cheiro do perfume dele me fez imaginar que era
daquele jeito que os antigos egípcios cheirariam. O rosto dele era gentil e fino,
com um sorriso de garoto. Ele atendia pelo nome de Romeo Blue. Os seus
amigos o chamavam de Lenny. E cerca de um ano depois, o mundo o
conheceria como Lenny Kravitz.

A banda Maggie's Dream tinha um baterista chamado Tony, que também


era baterista da banda de uma cantora chamada Brenda K. Starr. A Brenda
tinha lançado uma música de R&B de grande sucesso chamada “I Still Believe”
(eu ainda acredito), que a gravadora estava tentando regravar. Abriu-se uma
vaga para cantores de backing vocal, e o Tony me encaixou no teste. Eu fiquei
empolgada porque a música que a Brenda tinha lançado fazia muito sucesso
e tocava toda hora nas estações de rádio – e vocês sabem o quanto eu amava
escutar rádio. No teste, nos pediram para cantar a música da Brenda bem na
frente da mesa onde ela estava sentada. Eu dei tudo de mim.

Eu cantei o melhor que eu pude. Fiz todos os tipos de runs e soltei a voz na
parte final da música. Quando eu terminei, eu fiquei totalmente imóvel, voltando
para o planeta Terra com o coração na mão. A Brenda me lançou um olhar
longo e sem muita expressão, e de repente ela deu um sorriso maroto. Com o
seu sotaque nasal parecido com o dos ingleses, ela disse: “Você está tentando
roubar o meu emprego?” Eu não me mexi. Mas a risadinha dela se transformou
em uma gargalhada calorosa. Eu não sabia que não era para cantar melhor do
que o cantor ou cantora que tem a missão de te contratar!

“A Mariah é a minha nova melhor amiga”, disse ela, quebrando o meu


êxtase. Peraê. Ela sabia o meu nome! Eu não conseguia acreditar que alguém
que tinha uma música de sucesso nas rádios agora sabia o meu nome. Logo
após o teste, a Brenda teve que ir para algum lugar para se apresentar, mas
assim que ela voltou, eu fui contratada. Ela ficava dizendo: “Eu contei a todo
mundo sobre essa menina Mariah!”

115
A Brenda era uma mistura apimentada, no verdadeiro sentido da palavra.
Ela cresceu nos projetos habitacionais da rua Ninetieth (90) e da avenida
Amsterdam, e a cultura dos projetos cresceu dentro dela. Ela me disse que a
mãe dela era porto-riquenha e havaiana e que o pai dela, o Harvey Kaplan, era
judeu e fazia parte de uma banda chamada Spiral Starecase. Eles tinham uma
música de sucesso: “More Today Than Yesterday” (mais hoje do que ontem).
A Brenda era um pouco mais velha e mais experiente nas ruas do que eu e
tinha um senso de humor bobo e fácil. Foi fácil fazer amizade com ela.

A minha vida como cantora profissional estava passando rapidamente,


mas, ao mesmo tempo, eu ainda era uma adolescente. Uma vez eu estava
saindo com os caras da banda Maggie’s Dream, e um deles começou a me
provocar porque eu era virgem. (Aparentemente, a Clarissa havia dito para eles
que eu era.) Todos estavam rindo, mas eu não entendia por que era engraçado.
Eu era jovem. Eu sempre fui a mais jovem e claramente a mais sonhadora,
então eu tive que sofrer com algumas das gozações mais grosseiras dos
músicos adultos.

Eu posso ter sido jovem e ingênua, mas a Brenda sabia que as minhas
canções eram boas e que estavam à frente do seu tempo. Quando ela escutou
a minha fita demo, ela disse: “Oooh, Mariah, eu quero gravar as suas músicas
no meu próximo CD.” Ela tinha uma música que ainda estava tocando bastante
no rádio na época, e toda vez que a gente estava juntas e que eu ouvia tocar,
era incrível. Eu não conseguia acreditar que eu estava trabalhando com ela e
que ela era a minha amiga, sem falar que ela tinha me dado a maior
oportunidade da minha vida até aquele momento.

Mesmo assim, eu disse: “eu sei que eu não tenho nada de muito certo na
minha vida ainda, mas eu sinto muito, eu tenho que manter essas músicas. Eu
escrevi essas músicas para mim.”

Eu posso ter me sentido insegura por causa de dinheiro, por causa das
minhas roupas, por causa da minha família e uma série de outras coisas, mas
eu sabia que as minhas canções eram valiosas. Eu me sentia muito feliz por
finalmente estar na companhia de jovens artistas e músicos, alguns até
passando por uma certa dificuldade, mas a verdade é que eu sempre acreditei
que o meu sonho ia se tornar realidade. A Brenda nunca mais me pressionou
a usar as minhas músicas depois disso.

Cantar como backing vocal com a Brenda durante a turnê com a sua música

116
de sucesso foi muito divertido. Uma vez, nós fomos a Los Angeles para
participar de um show de uma estação de rádio popular. Foi a primeira vez que
eu estive em LA e uma das poucas vezes em que eu tinha entrado em um
avião. Agora, eu estava embarcando em um avião como cantora profissional,
indo fazer um grande show ao ar livre patrocinado por uma rádio de Los
Angeles! Para mim, um artista que tinha uma música tocando nas rádios era
famoso. Para o show, a Brenda tinha que cantar “I Still Believe”, comigo como
uma das cantoras de backing vocal. O Will Smith também estava lá, para cantar
“Parents Just Don't Understand” (os pais não entendem).

O Jeffrey Osborne (do grupo LTD) também estava lá; ele cantou a música
“You Should Be Mine (The Woo Woo Song)” (você deveria ser minha e assim
por diante) como parte do seu repertório. Eu estava na plateia, assistindo.
Jeffrey, o veterano entre nós, começou a cantar o refrão da sua música com a
sua voz experiente e suave: “And you woo-woo-woo” (e assim por diante), ele
começou. A multidão se juntou a ele. Depois de algumas vezes, ele ofereceu
o microfone para a plateia.

“Passe para ela! Passe para ela!” a Brenda murmurou, sacudindo o dedo
para mim parecendo o rabo de um cachorrinho feliz.

Eu peguei o microfone e dei ao “woo-woo” um toque especial estilo Mariah,


com todos os tipos de acrobacias vocais, e no final, eu cantei o último “woo”
com o meu whistle register (registro de assobio), e a multidão inteira explodiu
em aplausos super fervorosos. Esse foi o dia em que o Will Smith e eu nos
tornamos amigos.

O Will e eu éramos muito jovens, a nossa aparência não negava. Em cima


da minha característica franja, eu amarrei a parte superior do meu cabelo
rebelde e crespo com um elástico amarelo, o cabelo se espalhou como uma
vassoura de palha desgastada, já que antes, a água e a natureza foram os
produtos que tinham entrado em ação com a genética birracial das minhas
madeixas. Eu estava usando um vestido regata rosa chiclete que eu tinha
pedido emprestado da Josefin. O Will era alto e magro, vestido como se
esperasse que um jogo de basquete pudesse acontecer a qualquer momento.
Ele era incrivelmente simpático e engraçado, do mesmo modo que o seu amigo
Charlie Mack. Imediatamente eu percebi que ele não era apenas super
talentoso, mas também inteligente e super focado. Eu amava a música dele,
“Parents Just Don’t Understand” (Os pais não entendem), e eu fiquei muito
impressionada com o que ele conseguiu conquistar.

117
O Will e eu às vezes íamos para o clube Rascals, embaixo do apartamento
que eu dividia com a Josefin. Ele era um amigo descomplicado. Nós dois
éramos absolutamente ambiciosos e ainda tínhamos uma curiosidade e
admiração meio que infantis pelo mundo. O nosso relacionamento sempre foi
platônico e nunca ficou estranho.

Depois de me ouvir cantar, o Will acreditou no meu talento. Ele me levou


até a gravadora Def Jam Recordings, a gravadora de hip-hop de maior sucesso
da época, onde ele tinha sido contratado. Enquanto a gente estava a caminho
da Def Jam, vimos um homem branco, alto e magro se aproximando de nós.
Ele se destacava na multidão porque ele meio que andava dançando, com
fones de ouvido que tocavam a música tão alta, que dava para ouvir: “It takes
two to make a thing go right” (são necessárias duas pessoas para que algo dê
certo)!

Depois, eu descobri que era o Lyor Cohen, responsável por gerenciar o


Run-DMC e o LL Cool J e por contratar o Eric B. & Rakim, o DJ Jazzy Jeff e o
Fresh Prince (o Will). Foi uma cena curiosa para mim: um homem adulto
musculoso, vestido de maneira bem descolada, cantando em voz alta: “I wanna
rock right now” (eu quero detonar agora!) Eu pensei, como é que ele conhece
essa música?

Os escritórios da Def Jam tinham uma vibração muito “centro da cidade”.


Esta era a gravadora de muitos artistas maneiros de hip-hop, então obviamente
havia um milhão de garotas entrando e saindo. A maioria das pessoas
provavelmente achou que eu fosse uma fã andando de braço dado com o Fresh
Prince. O Will nunca tinha ouvido a minha fita demo; ele só tinha me ouvido
cantar no show, mas isso foi o suficiente para ele, eu acho. No andar de cima,
nos encontramos com um executivo assistente que queria que eu cantasse.
Mais uma vez, eu posso ter parecido um pouco maltrapilha e jovem, mas eu
era esperta o suficiente para entender: eu não iria cantar para qualquer pessoa.
Eu agradeci ao Will pela confiança, mas eu estava de olho em uma grande
gravadora que possuía artistas mais alinhados com as minhas ambições como
cantora e compositora – algum lugar de renome, como a Warner ou a Columbia
Records. Eu sabia que o meu lugar era em alguma dessas gravadoras e eu
acreditava que era onde eu iria parar.

A minha fé e foco eram fortes, mas o meu trabalho árduo também era
perceptível, como um possível acordo com a gravadora Atlantic Records.
Durante esse tempo, as grandes gravadoras estavam colhendo os benefícios

118
das suas estrelas adolescentes – as Tiffanys e Debbie Gibsons da vida. Mas
continuando, o Doug Morris, o chefe da gravadora Atlantic, respondeu à minha
demo dizendo: “nós já temos a nossa filha adolescente”, referindo-se a Debbie
Gibson.

Com certeza ele não entendeu. Por falar nisso, a maioria das gravadoras
realmente não me entendem. Elas realmente não sabiam onde eu me
encaixava como cantora. Elas não entendiam o meu som; a fita demo tinha
canções que não se encaixavam perfeitamente em um gênero específico.
Embora muito jovem, eu definitivamente não era uma adolescente de música
pop. Havia um pouco de soul, R&B e gospel nas minhas músicas, e eu tinha
um entendimento sobre o hip-hop. A minha fita demo era mais diversificada do
que a indústria musical da época.

Então, é claro, sempre havia o elefante loiro e birracial da sala. Os


executivos da Motown supostamente reagiram à minha fita demo dizendo: “Ah,
não, não queremos lidar com uma situação parecida com a da Teena Marie
novamente” – isso queria dizer que eles não queriam forçar o público em geral
a se perguntar se eu era negra ou branca ou seja lá o quê. Eles não sabiam
como me comercializar. A maioria dos executivos de gravadoras simplesmente
não sabia como trabalhar com as minhas músicas. Eles não tinham certeza se
estilos musicais diferentes poderiam ser usados ao mesmo tempo. Mas, para
constar, aTeena Marie nunca se importou em se aventurar em estilos diferentes
de música. E a minha intenção não era somente me aventurar em estilos
diferentes.

Eu queria ir muito mais além.

119
CHERCHEZ LA FEMME
(PROCURE A MULHER)

Certa noite, a Brenda anunciou: “eu vou te levar a uma festa, e você vai
conhecer um grande executivo de uma gravadora, o Jerry Greenberg, e vai ser
ótimo”.

Claro, por que não? Eu pensei. Eu estava me sentindo confiante o bastante


na minha profissão para ir com ela para uma festa da indústria. Eu estava
fazendo gravações e também um acordo estava em andamento com a Warners
para que uma das minhas canções fosse usada em um filme. Eu não estava
apostando todas as minhas fichas nessa festa. Embora ela tivesse um coração
generoso, a Brenda também podia ser muito brincalhona, então às vezes eu
não levava muito a sério o que ela me dizia.

A gente ia se arrumar na casa dela na Nova Jérsei, já que ela tinha todas
as roupas, maquiagens e acessórios por fazer turnê e por ter dinheiro. Ela
deveria me buscar no meu apartamento. Eu esperei no pequeno hall de entrada
do meu prédio, sentada no chão de ladrilhos, por mais de uma hora (vejam
bem, não havia mensagens de texto naquela época). Finalmente, ela
apareceu, acelerada, cheia de energia e pronta para a festa. A empolgação
dela era contagiante.

Começamos o nosso ritual de preparação no grande banheiro da casa dela.


A Brenda tinha todos os tipos de mousse18, spray de cabelo, pentes e
pranchas para enrolar cabelo que você possa imaginar. Com a sua
descendência judaica e porto-riquenha mista, dava para eu me virar com o que
ela tinha. Eu tentei criar cachos longos e uniformes enrolando mechas do meu
cabelo com a haste da prancha. Eu dei um toque final alisando a minha franja.
Eu peguei emprestado dela um vestidinho preto (ô novidade!). Eu tinha levado
as minhas próprias meias-calças pretas um pouco transparentes, mas os
sapatos dela não serviram em mim; eram muito pequenos. Então, eu calcei o

18 Mousse: é um tipo de espuma que serve para dar formato, textura e volume para o
cabelo, ajudando na modelagem. Além disso, ele também é muito usado para fixar
penteados.

120
meu tênis preto da marca Vans com as minhas meias macias com nervuras.
Eu finalizei o meu visual com a minha única peça – a minha jaqueta Avirex que
eu usava no colégio.

Eu fiz o melhor que eu pude com o meu visual, mas tudo bem. A Brenda
me disse que a festa era para comemorar uma nova gravadora, mas como,
naquela época, eu me interessava pelas grandes gravadoras com os seus
chefões e grandes artistas, eu não tinha grandes expectativas com quem
estaria presente. Três empresários conhecidos da indústria se uniram para
fundar a sua própria gravadora, a WTG Records. “WTG” significa Walter,
Tommy e Gerald. Parecia um negócio de pneus para mim; eu realmente não
os conhecia ainda. Mas a Brenda conhecia o Jerry (Gerald Greenberg), que
ela me disse ser bastante influente na indústria (em 1974, aos trinta e dois
anos, ele se tornou o mais jovem presidente da gravadora Atlantic Records).
Quando ela me disse isso, a festa começou a ficar um pouco mais interessante.

Agora eu entendi por que a Brenda queria que eu trouxesse a minha fita
demo comigo (não que eu já tenha ido a qualquer lugar sem ela) – ela ia me
levar para a festa para conhecer o chefão da Atlantic Records. Quando nós
chegamos à festa, eu estava cercada por “pessoas da indústria”, embora eu
ainda não tivesse ideia do que isso significava. Enquanto eu caminhava, eu
observava o local. Uma artista feminina era conduzida pelo local como cavalos
de feira de exposição. Ela era muito loira, muito bonita, muito branca, e muito
arrumada e penteada, com uma multidão de pessoas da gravadora a cercando.
Havia grandes fotos dela ampliadas por toda a sala. Eu tinha a impressão que
o que era esperado de nós era ficar deslumbrado na presença dela. Mas eu
não estava nem aí. Eu só estava pensando, quem é ela, por que eu deveria
me empolgar? Para mim, ela era somente alguém que as pessoas estavam
conduzindo de um lugar para o outro. Francamente, eu não fiquei
impressionada com o que eu vi.

A Brenda e eu nos sentamos a uma mesa. Estávamos tentando nos divertir


em um local cheio de executivos, mas tudo que eu conseguia pensar era que
eu poderia estar no estúdio gravando alguma música ou algo assim. Era onde
eu sempre queria estar. Levantamos para ir ao banheiro, abrindo caminho no
meio da multidão para chegar à escada que levava aos banheiros.

Enquanto nós subíamos as escadas, eu o vi.

121
Ele não era um tipo de pessoa que eu normalmente teria notado: não era
alto e nem baixo, nem estiloso e nem cafona. Eu tenho certeza que ele estava
usando terno. Eu teria me esquecido totalmente dele se não fosse pelos seus
olhos. Os nossos olhos se encontraram, e uma energia instantaneamente
percorreu entre nós, como um choque elétrico leve. Ele tinha um olhar
penetrante.

Ele olhou para dentro de mim, não para mim. Eu fiquei um pouco
desconcertada – não de um jeito ruim, mas também não foi amor à primeira
vista. Eu continuei subindo as escadas, desta vez em um ritmo mais lento,
enquanto eu me recompunha ao que acabara de acontecer. Quando eu fechei
a porta do banheiro, a sensação estranha ainda pulsava dentro de mim. O que
tinha acontecido? Eu não sabia quem era ele, mas eu o reconheci de alguma
forma. Eu sabia que não era da TV ou algo parecido. Não era o rosto dele; era
outra coisa. Eu reconheci a energia dele e acho que ele reconheceu a minha.

A Brenda estava toda animada. “Você percebeu como o Tommy Mottola


olhou para você? Eu percebi!” ela disse, com os olhos arregalados.

“Quem é Tommy Mottola?” Eu perguntei.

“Mulher.” Ela olhou para mim com curiosidade, super séria.

“'Quem é Tommy Mottola?'!” Ela começou a cantar um refrão familiar:


“Tommy Mottola vive na estrada (…) Você não sabe quem é; você não conhece
essa música?” Eu balancei a minha cabeça. Ela cantou um pouco mais: “Oh,
oh, oh, oh, oh Cherchez, Cherchez –”

Eu caí em mim. “Ah! Sim, eu conheço essa música!” Eu comecei a cantar


junto com ela: “Oh, oh, oh, oh, oh, cherchez, cherchez.” Era a música
“Cherchez la Femme / Se Si Bon,” cantada pela Dr. Buzzard’s Original
Savannah Band.

Eu disse a ela que eu gostava dessa música quando eu era pequena.

A Brenda disse: “Ele é o Tommy que a música se refere. Ele é um dos


maiores executivos de gravadora, se não o maior. A Brenda e eu fomos até o
local onde todos os executivos estavam.

122
Eu fiquei parada pensando, se ele era tão importante, o que ele queria de
mim? A festa estava repleta de garotas mais bonitas, com maquiagem
profissional e calçados bem melhores. O Tommy perguntou a Brenda: “Quem
é a sua amiga?” – a frase mais intensa que eu já ouvi.

A Brenda dirigiu a resposta ao Jerry. “Ela tem dezoito anos; o nome dela é
Mariah. Você tem que ouvir isso aqui!” Assim que ela foi entregar a minha fita
demo para o Jerry, o Tommy interceptou a mão dela no meio do caminho. Ele
pegou a fita, se levantou, saiu da mesa e foi embora da festa. Foi bizarro e
desconcertante. Eu fiquei tipo, que merda é essa?

Essa fita demo era importante. Tinha algumas das minhas melhores
canções – “All in Your Mind”, “Someday” e “Alone in Love”. Esse tal de Tommy
tinha acabado de levar embora todo o trabalho investido (e dinheiro!) que eu
tive? Eu não fiquei feito boba pensando, Iupiii, eu acabei de entregar a minha
fita demo para um grande executivo de gravadora. Eu estava mais focada no
fato de que eu tinha uma cópia a menos da minha fita demo. Eu sei que esse
tal de Tommy nunca vai ouvir a minha fita, eu pensei.

É de conhecimento geral que o Tommy saiu da festa para entrar em sua


limusine, onde daria para ele ouvir a minha fita demo naquele mesmo instante.
Eu não sabia por que ele havia saído da festa tão de repente. Mas depois que
ele foi embora, eu também já estava querendo ir embora. E foi o que eu fiz.

Por fim, o Tommy voltou à minha procura, ao que parece, não acreditando
que a voz que ele tinha acabado de ouvir era da mesma garota da escada, a
garota de aparência inocente que estava usando tênis Vans e meias macias
com nervuras. Todas aquelas garotas bem vestidas de salto alto tentaram ao
máximo chamar a atenção do W, T ou G – e o T voltou procurando por mim.

O Tommy já era o presidente da Sony Music, então achar o meu número


de telefone não foi nada difícil. Ele me ligou e deixou uma mensagem na minha
secretária eletrônica.

A Josefin e eu gostávamos de fazer palhaçada e de fazer imitações de


vozes na secretária eletrônica. Eu voltava do estúdio às cinco da manhã e nós
gravávamos mensagens malucas. Uma que o Tommy ouviu, eu estava
imitando o sotaque sueco dela: “Se você é o Super-Homem, nós precisamos
de ajuda aqui! Os rabos dos nossos gatos estão cheios de moscas. Não tem
água quente” – seguido por risos histéricos. Era engraçado para nós, mas

123
também era verdade. As condições do nosso apartamento eram precárias.
Havia papel mata-moscas grudentos pendurado no teto e nas paredes, e os
nossos gatos se esfregavam nele. Também não tinha água quente; era uma
bagunça. Mas nós éramos duas garotas jovens e bobas e a gente zoava com
a nossa situação.

A primeira vez que o Tommy ligou, ele desligou. Mas ele não desistiu. Ele
ligou de volta e desta vez deixou uma mensagem curta e séria: “Tommy
Mottola. CBS. Sony Records.” Ele deixou um número. “Me ligue de volta.”

Eu não conseguia acreditar. Eu liguei imediatamente para a Brenda, que


confirmou que, de fato, o escritório do Tommy havia ligado para o empresário
dela e que ele queria me contratar. Esta foi a primeira do que seria uma série
estranha e fantástica de histórias de Cinderela na minha vida. Mas eu não fiquei
caminhando nas nuvens! Confiem e acreditem em mim, o Tommy Mottola não
era nenhum príncipe encantado.

124
PRINCESA. PRISIONEIRA.

Uma vez, eu fui uma prisioneira


Perdida dentro de mim
Com o mundo ao meu redor

– “I Am Free”

Era uma vez, eu morava em uma casa muito grande chamada Mansão Dos
Contos De Fadas. E nela havia grandes diamantes e grandes armários cheios
dos vestidos mais espetaculares e de chinelos cravejados com joias. Mas
também dentro dela havia um grande vazio, maior do que todas as outras
coisas lá dentro, que quase me engoliu por inteira. Não era um lugar para a
Cinderela.

Se houvesse um conto de fadas que pudesse descrever a minha vida, seria


“Os Três Porquinhos”. A minha infância foi cheia de casas frágeis e instáveis,
uma após a outra, onde inevitavelmente o lobo mau, o meu irmão problemático,
bufava, baforava e derrubava tudo. Eu nunca me senti segura. Eu nunca estava
segura. A raiva dele era imprevisível; eu nunca sabia quando ela viria, ou quem
ou o que nos devoraria. O que eu sabia era que eu me sentia completamente
sozinha, totalmente exposta, nas florestas selvagens do mundo. Eu sabia que,
se algum dia eu encontrasse um lugar seguro, eu teria de fazê-lo sozinha.

Eu me lembro da primeira vez que eu senti que eu estava em um lugar


seguro. Eu morava sozinha na cidade de Nova Iorque, em uma quitinete de um
só quarto no décimo andar com uma vista espetacular. O edifício se chamava
Chelsea Court. Eu adorava o nome do prédio, pois dava a impressão de ser
muito chique. Dava para ver o Empire State Building da janela do meu
apartamento. O meu pequeno apartamento – o primeiro que eu possuí.

Eu tinha acabado de receber o meu primeiro adiantamento salarial de


cantora. Foram cinco mil dólares, um número que eu nunca esquecerei. Cinco
mil dólares era mais dinheiro que eu jamais tinha visto de uma só vez, sem
falar que era só meu e que eu poderia gastar como eu quisesse. Assim que eu
recebi o adiantamento, eu aluguei o meu próprio apartamento. Eu poderia

125
finalmente pagar o meu próprio aluguel! Chega de morar em cantos e recantos,
de dormir no chão ou de dividir banheiros minúsculos com quatro ou cinco
outras garotas.

A primeira coisa que eu fiz foi comprar o meu próprio sofá pequeno com
todas as quatro pernas. Às vezes, eu passava a mão no tecido do braço do
meu novo pequeno sofá como se ele fosse um bebê. Foi uma etapa importante
para mim. De um colchão no chão, eu passei a dormir na minha própria cama.
Eu tinha uma pequena cozinha. Eu tinha dois gatos, o Thompkins e o Ninja. Eu
tinha um pouco de paz. Estava sendo um momento todo especial, e eu sentia
vontade de jogar a minha boina framboesa no ar e fazer uma pirueta na
rua com a minha trouxa de roupa suja19 – porque eu tinha sobrevivido. Eu
sobrevivi ao perigo. Eu sobrevivi à fome. Eu sobrevivi à incerteza e à
instabilidade, e agora aqui estava eu, cada vez mais perto do meu destino. Eu
era independente na cidade de Nova Iorque, no meu próprio apartamento cheio
de móveis que eu havia comprado, trabalhando no meu próprio CD, com todas
as canções que eu mesma tinha escrito. Eu poderia receber os meus amigos
agora. Foi a minha primeira sensação de autonomia, e foi divino. Mas que não
duraria por muito tempo.

No começo, o Tommy me protegia. Mesmo que eu estivesse respirando um


pouco mais fácil, com algumas pausas no início e um caminho livre para o
sucesso, os traumas e as inseguranças da minha infância – e a pressão do
meu irmão e de outras pessoas tentando tirar vantagem de mim – ainda me
perseguiam, assombrando cada passo que eu dava. Por causa do medo, eu
nunca parei de olhar para trás. O Tommy me protegia de todas as pessoas que
pensavam que eu devia algo a eles ou que queriam me usar. Isso significava
que o Tommy também me protegia da minha própria família.

Eu tinha dezenove anos e já havia vivido uma vida inteira de caos,


sobrevivendo apenas por causa da minha própria determinação inabalável.

19 E eu sentia vontade de jogar a minha boina framboesa no ar e fazer uma pirueta na


rua com a minha trouxa de roupa suja: Alusão à cena icônica do famoso seriado “The
Mary Tyler Moore Show”. A série revolucionou a forma como a mulher é retratada pelas
comédias americanas, apresentando Mary como uma mulher gentil, preocupada com a
sociedade, uma profissional dedicada e independente. Ela não era uma virgem à procura do
príncipe encantado, mas uma mulher madura que busca um relacionamento, sem que este
determine quem ela é. Foi uma época em que o feminismo começou a ganhar força.

126
Então este homem poderoso de repente chegou junto, abrindo os mares para
dar lugar ao meu sonho. Ele realmente acreditava em mim.

Com todo o respeito, o Tommy Mottola foi uma pílula difícil que eu tinha que
engolir em um período crucial da minha vida. E muito respeito é devido a ele.
Ele foi um executivo visionário da indústria da música que, destemida e
ferozmente, transformava as suas visões em realidade. Ele acreditou em mim,
ferozmente.

“Você é a pessoa mais talentosa que eu já conheci”, ele me dizia. “Você


pode ser tão importante quanto o Michael Jackson”.

A maneira como ele falou parecia música aos meus ouvidos: Michael.
Jackson. Aqui estava um homem responsável pelo sucesso dos maiores
artistas da indústria e ele via em mim o mesmo potencial que o artista mais
influente da história moderna. Respeito.

E não foi uma lábia de vendedor ou um discurso barato. Ele tinha sido
sincero. A gente não brincava quando se tratava de trabalho. A minha carreira
como artista era a coisa mais importante para mim – era a única coisa. Isso
validou a minha própria existência, e o Tommy entendeu a intensidade do meu
comprometimento. Eu estava falando sério e eu também era ambiciosa. Ele
sabia que os meus vocais eram únicos e fortes, mas ele ficou mais
impressionado com a forma como eu criava as músicas: a estrutura das minhas
melodias, da minha música. Eu me tornei uma nova estrela no momento em
que ele foi promovido ao cargo mais alto de uma nova gravadora, então ele
tinha o poder de abrir os caminhos para a minha ascensão ao céu. Ele estava
disposto a mover céus e terras para me tornar bem-sucedida. Eu reconhecia e
respeitava esse poder. Apesar de estar envolvido com alguns dos maiores
nomes da indústria da música, o Tommy me disse que eu era a pessoa mais
talentosa que ele já tinha conhecido. Ele estava falando sério e eu realmente
acreditei nele.

Logo depois de nos conhecermos, o Tommy começou a se insinuar para


mim. No início, era um pouco estranho e parecia coisa de adolescente, por
exemplo, ele me mandava ursinhos de pelúcia Gund super caros. No entanto,
os gestos persistentes e a atenção constante dele também me deram uma
sensação de segurança. O Tommy confiava no seu taco de uma maneira que
eu nunca tinha visto antes. Ele me impressionava e eu o via como uma pessoa
realmente empoderada, o que me deixou atraída. Por baixo do brilho, no

127
entanto, eu tinha a impressão de que ele possuía uma energia mais sombria –
e que seria um preço a pagar pela sua proteção. Mas, aos dezenove anos, eu
estava disposta a pagar. Para mim, O Tommy era uma forte combinação de
figura paterna, manipulador, parceiro de negócios, confidente e companheiro.
Nunca houve uma atração sexual ou atração física forte, pelo menos não para
mim, mas na época, eu precisava de segurança e estabilidade – uma sensação
de lar – mais do que de um namorado. O Tommy entendeu isso e providenciou.
Eu dei a ele o meu trabalho e a minha confiança. Eu dei a ele a minha convicção
e a combinação do meu código moral.

A relação era intensa e abrangente – afinal de contas, a gente já trabalhava


juntos, e era assim que a gente passava a maior parte do tempo. Quando nós
não estávamos trabalhando, a gente jantava em churrascarias chiques ou
restaurantes italianos famosos ou participávamos de eventos da indústria
juntos. Eu passava cada vez menos tempo no meu apartamento em Chelsea
e eu comecei a passar a maioria das noites com ele.

Logo, o Tommy começou a me pressionar para que eu me mudasse do meu


apartamento e, indo contra todos os meus instintos, eu acabei me mudando.
Mal sabia eu, que a mudança marcaria o início de uma marcha lenta e
constante direto à minha prisão. Mal sabia eu, que ceder às exigências do
Tommy, gradualmente me faria perder a minha privacidade e identidade.

Nos fins de semana, nós íamos para a casa de campo do Tommy em


Hillsdale, Nova Iorque, que depois de um tempo eu passei a chamá-la
“afetuosamente” de “Hillsjail20”. Na noite em que eu recebi o meu primeiro
adiantamento de divulgação de um milhão de dólares (dá para comprar muitos
bagels H&H com um milhão de dólares!), o Tommy dirigiu até a estrada Taconic
Parkway e parou diante de um lindo terreno. Ele parou o carro e me pediu para
sair. Eu olhei para o imenso terreno, tremendo de frio com a brisa de outono –
era realmente impressionante.

“Vamos construir uma casa aqui!” O Tommy anunciou. Eu sabia o que isso
queria dizer: seria onde nós construiríamos a nossa casa. Eu não fazia ideia
de onde eu estava me metendo.

20 Hillsjail: a casa de campo do Tommy ficava localizada em Hillsdale, que é um distrito


localizado em Nova Jérsei. A tradução de Hillsdale ao pé da letra é “vale de colinas”; a
Mariah fez um trocadilho com o nome e passou a chamar a casa de campo do Tommy de
“Hillsjail”, que tem a tradução literal de “prisão das colinas”.

128
Naquela época, ali estava longe de ser uma Hillsjail. Era impressionante e
majestosa: cinquenta acres de terra verde fértil perto de uma reserva natural
em Bedford, Nova Iorque. O local ficava bem no meio de duas propriedades,
uma propriedade pertencia ao Ralph Lauren e a outra a um bilionário muito
conhecido, uma área que era garantida de ser segura. Mas, como eu logo viria
a descobrir, o conceito de segurança estava prestes a se voltar contra mim.

Eu nunca quis sair de Nova Iorque, mas era isso que a gente estava
fazendo. Fora do estúdio de gravação, eu me perguntava, quando é que eu
voltaria para a minha amada Manhattan? Com certeza, construir uma casa
nova seria um empreendimento monumental, mas que me deixou fascinada,
criativa e emocionalmente.

Depois de uma infância sendo arrancada e jogada em todos os tipos de


moradias precárias, eu finalmente tinha a chance de construir a minha própria
casa, desde o alicerce. Eu fiquei empolgada e envolvida com isso.

Eu insisti em me envolver em todos os aspectos do design e também em


pagar metade de todos os custos. Eu queria que a casa tivesse a minha cara.
Eu me lembrava vividamente da minha mãe sendo humilhada por um
namorado dela gritando: “Saia da minha casa!” Eu dizia a mim mesma que
nenhum homem jamais faria isso comigo. Jamais.

Muito do que eu via a minha mãe e a minha irmã mais velha fazer era o que
eu não iria fazer quando eu crescesse. Eu recebi pouquíssima orientação do
que fazer como mulher, embora eu tivesse sido forçada a me comportar como
adulta quando eu ainda era muito jovem. O Tommy era vinte e um anos mais
velho do que eu; ele tinha idade para ser o meu pai. Ele também era o chefe
da minha gravadora. Não havia nenhuma mulher sábia ao meu redor para me
dizer que a dinâmica de poder no nosso relacionamento estava longe de ser
meio a meio, então talvez eu deveria ter pensado duas vezes antes de me
comprometer pagar pela metade dos custos de uma propriedade tão cara. Para
piorar, nós ainda não éramos casados.

Mas eu era jovem e eu entrei de cabeça com o Tommy. Eu me sentia


orgulhosa por ganhar o meu próprio dinheiro (embora eu não soubesse
quanto). Eu havia recebido recentemente um enorme cheque com os direitos
autorais das vendas do meu CD de estreia, então eu achava que eu estava

129
com a vida ganha. Construir uma casa dos sonhos com o Tommy não parecia
um risco. Eu estava vendendo milhões de CDs na época. Mas eu não sabia
que a nossa mansão dos sonhos custaria um preço abissal de trinta milhões
de dólares. E no final das contas, o meu tempo naquela casa com o Tommy
acabaria me custando muito mais caro do que dinheiro.

Eu adorava o processo de construção da nossa grande mansão em


Bedford. Uma nova paixão nasceu dentro de mim com isso. Eu finalmente
conseguiria realizar o meu sonho de infância, sonho esse que eu passei a ter
depois de assistir alguns filmes antigos de Hollywood. Ironicamente, eu fui
muito influenciada pelo filme How To Marry A Millionaire (PT-BR: Como Agarrar
Um Milionário), estrelando a Betty Grable, a Lauren Bacall e a Marilyn Monroe
(é claro). As imagens de janelas em arco palacianas e os pisos brilhantes e
glamorosos ficaram gravados na minha imaginação quando eu era garota. Eu
me certifiquei de que cada cômodo da nossa casa fosse impecável e espaçoso,
ventilado e iluminado. Nós trabalhamos de perto com os designers e arquitetos;
repassando cada detalhe juntos. Eu aprendi muito sobre os diferentes estilos
de molduras e azulejos. Eu me tornei uma especialista em castiçais – castiçais,
dahling! Eu também aprendi muito sobre tipos de materiais e eu costumava
visitar várias pedreiras. Embora em nenhum momento eu goste de um visual
rústico, eu tenho uma preferência por mármore tombado como piso para a
minha cozinha. Eu era muito peculiar e confiante sobre o que eu gostava.

Por mais ingênua que eu fosse na época, eu decidi que eu iria construir
uma casa maravilhosa. Eu não tinha como reclamar já que no passado eu não
tinha quase nada: “Ah, coitadinha de mim; eu tenho que construir uma
mansão!” Eu entrei de cabeça. Afinal de contas, eu sinceramente achava que
eu ficaria com o Tommy para sempre e que a casa que a gente estava
construindo juntos seria tão atemporal, eterna e espetacular quanto a música
que nós estávamos criando – que do mesmo modo, é claro, eu também era a
força criativa por trás.

E ficou espetacular. Tinha até um salão de baile. Eu tinha vinte e poucos


anos, e eu já tinha o meu próprio salão de baile! Eu construí um closet enorme
inspirado no closet da Coco Chanel, semelhante ao que ele tinha em seu
apartamento da rue Cambon, número 31, em Paris; cheio de espelhos
opulentos e uma escada em espiral que levava à uma seção de sapatos. Eu
tinha ganhado tantos sapatos em todas as minhas sessões de fotos e
gravações de clipe, que eu tive que construir paredes inteiras de prateleiras
para eles. Era impressionante pensar que, poucos anos antes, eu estava

130
andando com os sapatos minúsculos e caindo aos pedaços da minha mãe,
com neve entrando pelas rachaduras das solas. Eu guardei aqueles sapatos
horríveis por um tempo, com a intenção de pintá-los de bronze, como se
fossem sapatinhos de bebê, para nunca esquecer o que eu tinha passado
(como se isso fosse possível). Em tão pouco tempo, de acessórios velhos de
segunda mão, eu passei a ter a minha própria mansão, repleta de paredes
feitas sob medida para uma coleção inteira de calçados. A minha fé e os meus
fãs me abençoaram com riquezas inimagináveis. Eu me sentia imensamente
grata. Mas, apesar dessa grande conquista, eu ainda tinha que perceber que,
na realidade, eu só tinha inspirado o design e investido metade do dinheiro
para construir a minha própria prisão.

O magnífico complexo que eu construí em Bedford ficava a pouco mais de


16 quilômetros do vilarejo de Ossining, outra cidade pitoresca e arborizada de
Westchester, onde a mais famosa prisão de segurança máxima do estado de
Nova Iorque e possivelmente do país ficava localizada: o centro correcional de
Sing Sing. Um complexo de pedra sombria e tijolo num terreno de 130 acres,
rodeado de grandes ulmeiros, a prisão Sing Sing está formidavelmente
localizada na margem oriental do rio Hudson. Os arcos semelhantes a uma
montanha-russa da Ponte Tappan Zee podem ser vistos da guarita. No outono,
a paisagem é deslumbrante; as árvores ficam repletas de folhas de uma forte
cor laranja, ouro e vermelha.

Cerca de duas mil pessoas estão confinadas na prisão de Sing Sing. Os


termos populares para quem está preso – foi para “o interior” ou “subiu o rio”
ou foi para a “Casa Grande” – foram inventados em Sing Sing.

Por mais nobre que seja a propriedade, por mais grandiosa que seja a
construção, se ela tiver sido projetada para monitorar o movimento e conter o
espírito humano, ela servirá apenas para diminuir e desmoralizar os que estão
lá dentro. A ironia de eu morar perto da famosa prisão e a ironia do nome
peculiar da mesma não passaram despercebidas por mim: Por piada, eu me
referia à propriedade de Bedford como Sing Sing. Ela era cheia de seguranças
armados, câmeras de segurança na maioria dos quartos e o Tommy era quem
controlava.

131
Enquanto eu estava construindo a minha Sing Sing, eu achei que seria legal
se a minha mãe e os meus sobrinhos, o Mike e o Shawn, morassem perto de
mim. Eu adorava o processo de projetar e de criar uma linda casa. Embora eu
tivesse pouca liberdade em Sing Sing, o Tommy me apoiou na compra de uma
casa nas proximidades para a minha mãe. Era só do que a gente conversava,
e ele finalmente entendeu como era importante para eu tentar criar algo estável
para a minha família. Eu descobri depois que ele secretamente dava ordens
para os seguranças me seguirem sempre que eu ia dar uma olhada em casas
ou ia fazer alguma coisa, mas eu fiquei grata pela pequena demonstração de
ignorância.

A criança em mim, no fundo, ainda sonhava com uma família que não fosse
desestruturada. Eu tinha começado a realizar os meus sonhos de carreira e eu
pensava que talvez eu pudesse comprar uma casa para a minha família – um
local em comum onde todos seriam sempre bem-vindos – e a minha mãe seria
a chefe da casa. Eu me empolguei com a ideia de comprar uma casa que a
minha mãe gostasse e eu finalmente poderia me dar ao luxo de fazer isso com
grande estilo. Encontrar a casa perfeita para ela era o meu novo projeto. Assim
como eu queria que cada cômodo da minha casa refletisse a minha
personalidade, eu estava disposta a comprar uma casa em que cada detalhe
refletisse a personalidade da minha mãe. Eu queria que ela amasse a sua nova
casa.

Nós contratamos amigos do Tommy, que eram corretores de imóveis, para


me ajudar a encontrar um lugar próximo. Eles me mostraram várias casas
lindas, mas eu estava esperando encontrar a casa perfeita para ela. O meu tipo
de casa tinha mais a ver com as casas antigas de Hollywood, já o tipo de casa
dela tinha mais a ver com o estilo antigo de “casa de Woodstock”.

Depois de muito procurar por uma casa que estivesse em um raio de


distância de vinte minutos da nossa propriedade, nós finalmente encontramos
uma propriedade super arborizada com uma casa afastada da estrada. Não
estava bem cuidada, o que era típico daquela região do Upper Westchester;
em vez disso, a paisagem foi deixada ao natural de propósito. Os seis acres
verdes estavam cheios de esplêndidos carvalhos antigos. E a casa combinava
perfeitamente com a natureza ao seu redor. O interior era espaçoso e
aconchegante, com tons quentes de madeira e luz suave entrando pelas
janelas graciosas. Uma vez lá dentro, não dava para ouvir ou ver o mundo do
lado de fora.

132
Eu tinha encontrado em um bosque o único chalé-dos-sonhos-de-uma-
cantora-de-ópera-hippie em Westchester! Era perfeito e eu sabia exatamente
como reformar e lhe dar uma nova vida. Eu assumi a empreitada como se eu
fosse uma designer de interiores em um daqueles programas de reforma. Fui
eu quem escolhi e comprei todos os móveis novos em folha, todas as
decorações e acessórios. Eu escolhi cada detalhe, das luminárias às cores das
tintas, tudo baseado na “paleta de cores e gostos da Pat”. Vasos de flores de
madeira com românticas flores silvestres foram pendurados do lado de fora. Eu
mandei imprimir fotos dos familiares irlandeses da minha mãe e também de
brasões irlandeses, que depois foram montados, emoldurados e pendurados
na parede ao longo da escada. Eu consegui manter isso em segredo dela.

O maior desafio foi levar o piano dela sem que ela notasse. Eu sabia que
era importante que o piano que estivesse na sala de estar, fosse o seu velho
piano vertical Yamaha de madeira clara, não um modelo novo brilhante. O
piano dela guardava memórias em suas teclas; era um símbolo porque era um
objeto estável e com um grande significado que ela forneceu durante a minha
infância turbulenta. Eu inventei uma história de que eu iria levar o piano para
afinar ou algo assim antes de ir para o armazém; eu até pedi que ela assinasse
documentos falsos de mudança para que o piano pudesse ser levado embora
sem suspeita. O velho piano dela seria a peça de resistência do seu chalé no
bosque de Westchester.

Um dos detalhes que me atraíram à propriedade foi uma placa de madeira


que tinha as palavras “chalé no bosque”. Os vendedores não queriam se
desfazer dela, mas eu lutei com unhas e dentes porque eu sabia que a minha
mãe iria amar. Eu me alegrava em fazer planos, em manter segredo e trabalhar
para que tudo desse certo. Quando eu era criança, eu sempre quis ter uma
casa onde eu não sentiria vergonha de levar os meus amigos. Criar um lugar
onde a minha mãe pudesse viver confortavelmente e toda a família pudesse
se reunir foi tão especial – foi até um processo de cura para mim. Foi como
preparar um natal espetacular para a minha mãe e a minha família.

Eu estava muito contente quando chegou a hora de apresentar a casa que


eu havia comprado para a minha mãe. Eu me senti orgulhosa pelo trabalho que
eu tinha feito. Para mim, a casa também era como que um testemunho da
minha capacidade de realizar os meus desejos de infância, a prova de que o
trauma e o perigo que eu enfrentei não tinham destruído a minha esperança. A
minha mãe pensou que ela estivesse indo para a Sing Sing para um dos nossos
jantares ocasionais. Quando eu cheguei na casa dela, eu disse que eu

133
precisava passar pela casa da amiga do Tommy, a Carole, que ficava perto.
Quando os portões de ferro forjado que eu havia mandado colocar se abriram
como braços de boas-vindas dos pilares de pedra e entramos na propriedade,
eu senti a minha mãe ficar quieta, então eu a ouvi respirar fundo. As árvores
fazem isso: te fazem parar para respirar. Ela saiu do carro como se o ar fresco
a estivesse fazendo diminuir de velocidade.

Ela olhou para a bela casa. Eu a observei apreciar a beleza dos vasos de
flores. E, quando a Carole abriu a porta da frente, o aroma forte de café e de
pãezinhos de canela quentes chegaram até nós. (Eu tinha combinado para que
os pães fossem preparados e estivessem assados quando a gente chegasse,
pois eu queria que esses detalhes preparassem o clima.) A minha mãe parou
na porta e disse suavemente: “Oh, Carole, a sua casa é linda. Entrando no
clima da brincadeira, a Carole se ofereceu para mostrar o local a ela e eu a
segui. Quando nós chegamos à escada, a minha mãe parou nas fotos, mas eu
percebi que ela não tinha notado nada. Então, eu a acordei do transe. “Mãe,
olha quem está nas fotos.” Ela ficou confusa ao notar que era a família dela
que estava na parede da “casa da Carole”. Em voz baixa, ela respondeu: “Eu...
não estou entendendo.”

“Isso é tudo para você. É aqui que você vai morar agora”, eu disse. Ela ficou
sem palavras. E eu nunca me senti tão orgulhosa na vida.

O Mike, que eu amo muito, ainda era bem pequeno na época. Ele saiu
correndo pela casa e foi para o quintal, correndo pela grama macia, gritando
de alegria. Ele era um garoto cheio de pura alegria (e ainda é uma grande fonte
de alegria para mim). Ele se sentia livre. Um menino brincando na brisa da
tarde sem nenhuma sujeira por perto, apenas sentindo-se livre. O círculo da
gente se balançando sobre montanhas de lixo ou de sermos jogados fora como
lixo havia sido encerrado – ou assim eu pensei.

Junto com o salão de baile e os closets de sapatos de alta costura da Sing


Sing, eu construí um estúdio de gravação fantástico e de última geração. Ao
lado do estúdio havia uma enorme piscina de mármore branco em estilo
romano dentro de um grande salão. Nestes dois lugares eu encontrava consolo
e paz espiritual. Foi um alívio temporário e uma possibilidade de me sentir leve
– no estúdio de gravação e na piscina. Mas o estúdio, a piscina e eu ainda
estávamos confinados, trancados dentro dos limites da fortaleza de Sing Sing.

134
Em circunstâncias normais, a possibilidade de ter o meu próprio estúdio –
feito sob medida com as minhas especificações exatas e à minha disposição a
qualquer momento – teria sido libertadora. No início da minha carreira, eu
estava à mercê de outras pessoas para conseguir gravar num estúdio, eu me
sentia grata por estar em pequenos espaços sombrios, cantando músicas que
eu não gostava, barganhando, fazendo o que fosse necessário para gravar as
minhas músicas. E agora, eu tinha o meu próprio estúdio de gravação lindo e
totalmente equipado. Eu imaginava que eu poderia gravar músicas e chamar
os artistas para trabalhar comigo quando eu quisesse, como o Prince fazia. A
Sing Sing não era como a Paisley Park, a propriedade do Prince, mas era
fabulosa e era minha. Bem, metade era minha. Havia um estúdio com
equipamentos de gravação sofisticados, mas também equipamentos de
segurança muito sofisticados espalhados pela casa – aparelhos de escuta,
câmeras de detecção de movimento – gravando cada passo que eu dava.

135
UMA FAMÍLIA

Então, quando você sentir que não há mais esperança


Olhe para dentro de si e seja forte
E você finalmente verá a verdade
Que há um herói dentro de você

– “Hero”

Era meados de julho de 1993, e eu estava indo para a cidade de


Schenectady, Nova Iorque, para gravar um especial de Ação de Graças para
a NBC. Foi o primeiro evento a dar início à promoção do meu terceiro CD de
estúdio a ser lançado em breve, o Music Box. O primeiro single, “Dreamlover”,
seria lançado em uma semana, e o CD completo seria lançado no último dia
de agosto. Schenectady, uma típica cidade industrial da zona leste de Nova
Iorque, era composta em grande parte por imigrantes do Leste Europeu e
negros que tinham vindo do Sul para trabalhar na fábrica de algodão da cidade.
É uma linha reta para o norte ao longo do rio Hudson da casa de campo do
Tommy, a Hillsjail.

O show seria gravado no Proctors Theatre, uma antiga casa de


Vaudeville21 coberta com um tapete vermelho, folhas de ouro em abundância,
colunas da cidade grega de Corinto, lustres e sofás do rei francês Luís XV no
camarote – por toda a extensão de nove metros. Mesmo sendo um belo teatro
clássico, não seria o local que eu teria escolhido, com certeza; nem a maioria
dos jovens de 20 anos no início dos anos 90. Mas eu tomava poucas decisões
na época. Fora do estúdio de gravação, todos os aspectos da minha vida eram
decididos por um conselho naquela época, com o Tommy como presidente
desse conselho. (Curiosamente, eu nunca era convidada para as reuniões.)

Quando chegamos ao centro da cidade, as ruas pareciam cada vez mais


vazias e eu comecei a notar muitos policiais. Várias ruas foram bloqueadas
perto do teatro, patrulhadas por grupos de homens em uniformes escuros,

21 Vaudeville: um tipo de entretenimento teatral dos anos 1800 ao início dos anos de 1900
que incluía música, dança e piadas.

136
equipados com armas semiautomáticas e usando sapatos brilhantes. A
limusine diminuiu a velocidade enquanto eu olhava pela janela, com as ruas
estranhamente silenciosas. Uma ansiedade familiar estava aumentando dentro
de mim, que eu lutei muito para conter. Eu tinha que me preparar mentalmente
para cantar novas canções para um público novo, um show que seria
televisionado para milhões de pessoas por uma grande emissora de TV. Eu
sabia que eu não podia deixar a minha ansiedade se transformar em medo.
Com a exceção dos policiais – quem chamou todos esses policiais? Eu tinha
os meus próprios seguranças comigo; na verdade, eu sempre andava com
seguranças ao meu lado – a rua atrás do teatro, onde ficava a porta dos
bastidores, estava deserta.

Antes de ser rapidamente levada para o meu camarim dourado, eu vi


rapidamente uma multidão de pessoas atrás das barreiras. Embora agora eu
tivesse um momento para me acomodar, eu ainda me sentia ansiosa. Eu
acabei perguntando por que as ruas estavam bloqueadas e cheias de policiais.
O que estava acontecendo no centro de Schenectady neste dia quente de
solstício de verão?

“Mariah”, eles me disseram, “é por sua causa. É porque você veio fazer o
show aqui.”

Aparentemente, multidões de fãs lotavam as ruas, na esperança de me ver.


No início, eu não consegui digerir totalmente essa resposta. O que eles
queriam dizer? As barreiras, os esquadrões da polícia, as ruas esvaziadas
eram por causa de mim? O meu primeiro CD, Mariah Carey, tinha sido lançado
três anos antes de ficar e permanecer em 1° lugar na parada Billboard 200 por
11 semanas consecutivas, permanecendo na lista por 113 semanas no total,
com 4 singles em 1º lugar consecutivamente. Eu tinha ganhado o Grammy de
Melhor Artista Revelação e de Melhor Performance Vocal Pop Feminina, e
recebi indicações para Canção do Ano e CD do Ano por “Vision of Love”, que
eu cantei nos programas The Arsenio Hall Show, Good Morning America, The
Tonight Show, e The Oprah Winfrey Show. O CD vendeu 9 milhões de cópias
apenas nos Estados Unidos e ainda estava vendendo em todo o mundo
(chegando à marca de mais de quinze milhões de cópias). O meu segundo CD,
Emotions, tinha sido lançado apenas um ano antes. Eu particularmente adorei
trabalhar com o David Cole (um dos membros do fabuloso grupo musical C+C
Music Factory). Ele era um garoto de igreja que amava música dance (como
dá para ver em “Make It Happen”). Como produtor, ele me incentivou como
cantora, porque ele era cantor também. Eu lancei um EP com versões ao vivo

137
de músicas dos meus dois primeiros CDs para o show extremamente popular
do MTV Unplugged. Incluía uma nova versão da música de sucesso dos
Jackson Five, “I’ll Be There”, apresentando o meu backing vocal e amigo Trey
Lorenz. A música ficou em 1º lugar logo após o show, se tornando o meu 5º
single em 1º lugar e, pela segunda vez, “I’ll Be There” ocupou o seu lugar de
destaque. Eu cantei “Emotions” no MTV Video Music Awards e no Soul Train
Music Awards. E aqui estava eu de novo, prestes a cantar em um outro palco,
e de alguma forma eu não fazia ideia que eu era famosa.

Durante quatro anos inteiros da minha vida, eu passei compondo, cantando,


produzindo e fazendo sessões de fotos, gravando clipes, participando de
reuniões de imprensa e fazendo turnês promocionais. Todos os prêmios e
elogios que eu recebi foram entregues em ambientes altamente coordenados
da indústria. Parecia apenas fazer parte do trabalho. Se eu tivesse algum
tempo “livre”, eu ficava isolada em uma velha casa de campo no Vale do
Hudson. O Tommy planejava tudo. Eu tinha vinte e poucos anos.

Como eu nunca ficava sozinha, eu não tinha a compreensão do impacto


que a minha música e eu estávamos causando no mundo exterior. Eu nunca
tinha tempo para pensar ou refletir. Agora eu acredito que isso foi totalmente
intencional. O Tommy sabia que seria mais fácil de me controlar se eu não
soubesse o quanto eu era popular?

Me disseram que na era do CD Music Box, como um presente para mim, o


meu então maquiador Billy B e cabeleireiro Syd Curry me fizeram um gentil
álbum de recortes, no qual eles reuniram pequenos recados de amor e
admiração de outros artistas ou celebridades com quem eles trabalharam ou
viram em suas viagens. O Joey Lawrence (se lembram do Joey do seriado
Blossom?), que era um galã na época, aparentemente me enviou uma
mensagem muito fofa. Bem, o Tommy viu esse álbum de recortes cheio de
amor e carinho, o rasgou e o queimou na lareira antes que eu pudesse ver –
um ato infantil de crueldade, especialmente para com o Billy e o Syd, que com
todo o carinho e esforço quiseram me provar como eu era famosa mesmo
dentre os famosos.

Sem gerenciamento ou proteção dos pais ou da família, eu era fácil de


manipular, mas a dinâmica do meu relacionamento com o Tommy era
complexa. De muitas maneiras, o Tommy me protegeu da minha família
desestruturada, mas ele foi ao extremo: ele me controlava e vigiava. No
entanto, o controle dele também significou que, nos primeiros anos da minha

138
carreira, todo o meu foco, toda a minha energia e toda a minha paixão foram
usados na composição, na produção e no ato de cantar das minhas músicas.
O Tommy e a sua influência opressora em tudo o que eu fazia pareciam um
preço justo a pagar por conseguir trabalhar com que eu sempre havia sonhado.
Ele controlava a minha vida, mas eu controlava a minha música. Foi só naquele
momento em Schenectady que eu comecei a perceber o quanto eu era popular.
Eu tinha fãs! E que logo se tornariam uma outra fonte de força para mim.

No camarim, onde eu me sentei em uma cadeira, primeiro alisaram o meu


cabelo, depois enrolaram e por último passaram spray de fixação nele, eu
comecei a assimilar a grandiosidade do que eu acabara de saber. A polícia não
estava por perto por causa de algum incidente violento ou perigoso – eles
estavam lá para abrir o caminho para mim. A minha família pode não ter me
dado segurança, o meu relacionamento pode não ter me dado segurança, mas
perceber que havia uma multidão de pessoas lá fora expressando o seu amor
por mim me deu um novo tipo de confiança. Porque o Tommy nunca me
permitiu experimentar os privilégios glamorosos concedidos aos jovens, ricos
e famosos, a fama que eu descobri ter foi definida exclusivamente através da
minha relação com os meus fãs e como eles se relacionavam com as minhas
músicas. Eu decidi naquele dia que eu me dedicaria a eles para sempre.

O especial de Ação de Graças foi chamado Here Is Mariah Carey (aqui está
a Mariah Carey), e eu ia cantar três novas canções do CD Music Box:
“Dreamlover”, “Anytime You Need a Friend” e “Hero”, juntamente com alguns
dos meus sucessos anteriores – “Emotions”, “Make It Happen” e, claro, “Vision
of Love”. Eu sempre compus as minhas músicas com muita sinceridade,
usando as minhas próprias experiências de vida e sonhos como inspiração. Eu
também sempre soltava a voz. Eu também ia cantar “Hero” pela 1º vez. É
sempre um risco cantar músicas novas em um show ao vivo se as pessoas não
tiveram a oportunidade de ouvir antes nas estações de rádio. Embora eu tenha
escrito “Hero”, originalmente ela não faria parte do meu repertório.

Me pediram para escrever uma música para o filme Hero (PT-BR: herói por
acidente), estrelado por Dustin Hoffman e Geena Davis. O Tommy concordou
com a proposta de eu escrever uma música para o filme, e que seria cantada
pela Gloria Estefan, contratada pela gravadora Epic Records (a Sony,
gravadora do Tommy, era a matriz). Eu sabia que o Luther Vandross também
estava compondo uma música para a trilha sonora, então eu estaria em ótima
companhia. Eu estava no estúdio chamado Right Track, ou Hit Factory – um

139
dos maiores estúdios que eu já tinha investido. Eu estava lá naquele dia com
o Walter Afanasieff.

O enredo do filme foi explicado a todos no estúdio em cinco minutos: um


piloto andando por aí e resgatando pessoas. Foi tudo o que eu consegui
absorver. Pouco depois, eu me levantei para ir ao banheiro, uma das poucas
atividades que eu fazia sem a companhia de alguém da folha de pagamento
do Tommy. Eu passei um tempo na cabine do banheiro para desfrutar um
pouco de momento de paz. Aproveitando o meu tempo, eu lentamente
caminhei pelo corredor para retornar ao estúdio. Enquanto eu caminhava, uma
melodia e algumas palavras vieram claramente à minha mente. Assim que eu
voltei para a sala, me sentei ao piano e disse ao Walter: “Essa é a melodia”.
Eu cantarolei a melodia e partes da letra. Enquanto o Walter tentava encontrar
os acordes básicos, eu comecei a cantar, “e então um herói aparece.” Eu o
direcionei através do que eu tinha ouvido tão vividamente na minha cabeça.

A música “Hero” foi criada para um filme comercial, para ser cantada por
uma cantora com um estilo e alcance vocal muito diferentes do meu.
Honestamente, embora eu achasse que a mensagem e a melodia fossem
bastante genéricas, eu também achava que ela preenchia os requisitos. Nós
gravamos uma demo, que eu achei um pouco melosa.

Mas o Tommy ouviu o potencial para a música se tornar um clássico. Ele


insistiu não apenas que a gente ficasse com a música, mas que ela também
fizesse parte do meu novo CD. Eu fiquei tipo, OK! Que bom que ele gostou. Eu
melhorei a música e fiz alterações na letra para deixá-la mais com a minha
cara. Para isso, eu fui ao âmago das minhas memórias para relembrar o
momento em que a Nana Reese me disse para acreditar nos meus sonhos. Eu
dei o meu melhor para conseguir fazer isso e só sei que a música teria sido um
presente para qualquer cantor.

Na época do show de Schenectady, “Hero” havia perdido a sua simplicidade


e passou a ter uma certa complexidade. A ansiedade inicial que eu senti de ter
que cantá-la ao vivo pela primeira vez na frente do público foi se desfazendo
enquanto eu pensava em todas as pessoas que ficaram na fila e que lotaram
o teatro para me ver naquela noite. Eu percebi que a música realmente não
pertencia à Gloria Estefan, a um filme, ao Tommy ou a mim. “Hero” pertencia
aos meus fãs, e eu iria cantar a música para eles com tudo que eu tinha.

140
O especial de Ação de Graças incluiu crianças do centro da cidade de uma
organização comunitária local. Eu vi as crianças nos bastidores, com muito
medo, mas que tinham um futuro pela frente, e nelas, eu vi a mim mesma. Eu
cantaria essa música para eles também. O show começou com o meu último
sucesso, “Emotions” – uma música alto astral e repleta de agudos, que são a
minha marca registrada. Enquanto eu cantava “Emotions”, e através das várias
pausas e retomadas necessárias (cantar ao vivo para uma gravação de TV dá
muito trabalho), eu pude realmente olhar para as pessoas na multidão. Aqui
estava eu em Schenectady, tendo contato com pessoas de verdade – não
pessoas pagas para preencher assentos ou figurantes vestidos com roupas da
moda, mas fãs autênticos, principalmente jovens com uma ambição e adoração
inconfundíveis no olhar. Eu via a essência deles, e a essência deles era a
mesma que a minha. Eu fechei os olhos e fiz uma oração. Quando os primeiros
acordes da introdução do piano tocaram, eu comecei a cantarolar com o
coração. Quando eu abri a minha boca, “Hero” foi lançada ao mundo.

Alguns de nós precisam ser resgatados, mas todos querem ser vistos. Eu
cantei “Hero” diretamente para os rostos que eu conseguia ver do palco. Eu vi
lágrimas brotarem dos seus olhos e a esperança crescer em seus corações.
Qualquer cinismo que eu tivesse sobre “Hero”, foi embora depois daquela noite.
Mas o Tommy também havia notado o tamanho do impacto.

Mais tarde naquele ano, em 10 de dezembro de 1993, quando eu cantei


“Hero” no Madison Square Garden, eu anunciei que todos os lucros das vendas
nos Estados Unidos seriam doados às famílias das vítimas do tiroteio na
estação ferroviária de Long Island, que acontecera três dias antes. Em um trem
– uma rota que eu havia viajado antes – um homem sacou uma pistola de 9
mm e começou a atirar, matando seis pessoas e ferindo dezenove. Três
homens corajosos, Kevin Blum, Mark McEntee e Michael O'Connor, o
dominaram, evitando assim mais mortes. Eles foram heróis, então eu dediquei
“Hero” a eles naquela noite. Apenas dez dias após os ataques de 11 de
setembro, eu cantei a música como parte do programa America: A Tribute To
Heroes (América: um tributo aos heróis). E em 20 de janeiro de 2009, eu tive a
inacreditável e incomparável honra de cantar “Hero” no Baile de Inauguração
do primeiro presidente americano negro dos Estados Unidos da América. Até
hoje, “Hero” é uma das minhas músicas mais tocadas. O Music Box foi
certificado com um disco de diamante nos Estados Unidos e é um dos CDs
mais vendidos de todos os tempos.

141
E aqui estou revirando os olhos com desdém ao fazer esse comentário:
algumas pessoas alegaram que a música “Hero” é um plágio e vieram
reivindicar direitos autorais. Eu fui três vezes ao tribunal e três vezes os casos
foram arquivados. Na primeira vez, o pobre idiota que alegou isso teve que
pagar uma multa. No início, eu me senti uma vítima, sabendo como a música
era pura para mim, mas depois de um tempo eu quase que passei a esperar
mentiras e ações judiciais por causa do meu sucesso – de estranhos e da
minha própria família e amigos. E eles não vão parar.

A gravação naquela noite em Schenectady levou várias horas. Um


programa de televisão tem muitas necessidades técnicas – várias câmeras,
filmagem de perto, filmagem de longe e de corte, mudanças de figurino,
retoques de cabelo e maquiagem, extras, reações do público – é uma
produção. Quando nós finalmente terminamos, eu agradeci a todas as
crianças, ao coral, à orquestra e à equipe. Então, assim que eu saí do palco,
eu fui levada rapidamente para fora pela porta dos bastidores, que parecia levar
não para a rua, mas direto para a limusine.

Eu sentei no banco de trás, com uma sensação de exaustão e alegria. Ao


sair na rua, eu percebi que onde antes havia vazio e uma dispersão de
barreiras, agora havia milhares de pessoas encostadas sobre as frágeis
divisórias de metal, gritando o meu nome e “Nós te amamos!” Eu notei os
policiais também, parados ali, imperturbáveis, no meio da energia e excitação
pulsantes. Uma coisa era ser informada, mas outra bem diferente era ver com
os meus próprios olhos, ouvir com os meus próprios ouvidos e sentir em minha
alma a reação das pessoas comigo e com a minha música. O que eu senti
naquela noite em Schenectady não era idolatria, era amor. Era um tipo de amor
que toma forma através de uma conexão sincera e de reconhecimento. Eu
fiquei hipnotizada enquanto eu olhava pela janela, vendo todas essas pessoas
me encherem de tanto amor. Não eram apenas fãs, mas uma família.

À medida que a multidão desaparecia de vista e nos aproximávamos dos


arredores da cidade e da rodovia, a minha euforia começou a passar. E quando
as rodas tocaram o asfalto da rodovia Taconic Parkway, o clima no carro havia
retornado à melancolia de sempre. Na maioria das noites de quinta-feira, o
Tommy e eu gostávamos de pegar o trecho sul desta rodovia, deixando a
glamorosa Manhattan para trás para passar o fim de semana em Hillsdale.
Enquanto as luzes e os arranha-céus diminuíam no espelho retrovisor e a

142
atração magnética da cidade diminuía, uma parte da minha força vital também
diminuía.

Quando o rádio do carro, que ficava sintonizado na Hot 97 (o slogan da


época era: “hip-hop e R&B em chamas”), começou a falhar, silenciado pela
estática, eu sabia que a minha vida como cantora e compositora, ganhadora
de Grammys e de vinte e poucos anos, estava acabada. Todo fim de semana,
o Tommy desligava o rádio que era a minha salvação e fazia um momento de
silêncio antes de colocar um dos seus amados CDs do Frank Sinatra. Que
metáfora trágica, ouvir o Tommy cantarolar “My Way” (meu jeito) enquanto nos
levava de volta ao meu cativeiro.

Eu era condicionada a falar de trabalho ou ficar em silêncio no nosso triste


trajeto. No entanto, na maioria das vezes, eu ficava apenas olhando pela janela
para o grande rio Hudson, me preparando para o meu primeiro papel mais
importante: uma futura esposa satisfeita. Este era o único papel de atriz que o
Tommy encorajava. Fazer aulas de teatro ou aceitar papéis em filmes ou na
TV estavam fora de cogitação.

Na viagem de volta de Schenectady, eu não me lembro do Tommy e eu


conversando sobre o que tinha acabado de acontecer. Talvez ele soubesse
que eu vi a pureza e o amor dos fãs – que eu tinha descoberto como o amor
deles não podia ser controlado. São os fãs que criam um fenômeno, não os
executivos das gravadoras. O Tommy era inteligente. Ele sabia. Mas eu não
sei se ele percebeu que depois daquele momento, eu finalmente percebi
também.

Chegamos à casa de campo e tudo que eu queria fazer era relaxar na


banheira. Cantar é uma produção. Você se monta toda, você cria estratégias,
gerencia, se adapta e muda de forma. Rituais são necessários (às vezes na
forma de maus hábitos) para voltar a ser você mesma. O meu ritual como artista
era molhar o meu corpo. A aquisição de uma grande banheira de frente para
uma caríssima janela panorâmica foi uma das poucas contribuições que eu fiz
para Hillsjail. O banheiro era o meu refúgio, já que colocar uma câmera ou
interfone ali seria um pouco demais, até para o Tommy. O ladrilho de mármore
frio enviou uma sensação calmante aos meus pés descalços, que tinham ficado
inclinados por causa do salto alto a noite toda. Eu preguiçosamente tirei a
minha roupa, grata porque o som da água era a única coisa que eu ouvia. Eu
ajustei o brilho das lâmpadas do teto e acendi cerimoniosamente algumas velas
brancas. A água estava aconchegante e eu me rendi. Como se eu estivesse

143
sendo batizada, eu mergulhei a minha cabeça e permaneci no silêncio quente
e escuro. Eu gentilmente me levantei, inclinei a minha cabeça para trás e apoiei
os meus braços ao longo da borda da enorme banheira, as pálpebras ainda
fechadas, desfrutando cada momento desta calma solidão. Lentamente, eu
abri os meus olhos e vi uma lua cheia radiante, brilhando num céu claro, preto
azulado. Eu suavemente comecei a cantar: “Da, da, da, da, da...”

Imagens da cena que eu tinha acabado de vivenciar – fãs adoráveis


gritando e chorando – passaram pela minha mente, se misturando com as
dolorosas lembranças do meu irmão gritando e a minha mãe chorando, de mim
mesma como uma garotinha solitária usando um vestido esfarrapado. Eu
estava boiando em uma banheira que era maior do que o tamanho da sala de
estar da casa que eu morava cinco anos atrás, em um cômodo maior do que
todas as salas de estar em todos os treze lugares em que eu morei com a
minha mãe quando eu era criança. A enormidade, complexidade e instabilidade
da estrada que eu havia percorrido para poder chegar até ali me atingiram em
cheio. Foi a primeira vez que eu me senti segura o suficiente para voltar no
tempo e ver a Mariah de outrora, a pequenina, e reconhecer o que ela havia
sobrevivido. E de repente, a primeira estrofe e refrão de “Close My Eyes” veio
a mim:

Eu era uma criança marcada


Com o peso do mundo
Que eu carregava dentro de mim
A vida era uma estrada sinuosa
E eu aprendi muitas coisas
que os pequenos não deveriam saber
Mas eu fechei os meus olhos
Firmei os meus pés no chão
Levantei a minha cabeça para o céu
E os tempos passaram
Mas eu ainda me sinto como uma criança
Enquanto eu olho para a lua
Talvez eu tenha crescido
Um pouco cedo

Eu levaria anos para terminar essa música – anos de angústia e


sobrevivência.

144
O MEU CASAMENTO BAFÔNICO COM
A SONY (E A MINHA LUA DE MEL UÓ)

Para anunciar o nosso noivado, o Tommy e eu levamos a minha mãe para


um jantar chique no centro de Manhattan. Enquanto a gente saía do
restaurante após a refeição, a cidade estava toda enfeitada com luzes
brilhantes e outdoors piscando, e eu mostrei a ela o anel de noivado, uma
aliança de ouro tricolor Cartier com um diamante impecável de tamanho
modesto. Era uma aliança discreta, mas também era um Cartier. A minha mãe
olhou para o anel delicado e deslumbrante no meu dedo fino (e muito jovem) e
disse baixinho: “Você merece”.

E isso foi tudo. Ela entrou na limusine que estava esperando por ela e foi
embora. Eu nunca soube realmente o que ela quis dizer com a fala dela. Mas
foi só isso que aconteceu. Não houve nenhum conselho feminino ou risos de
alegria – que, honestamente, eu não esperava, mas eu achava que a ocasião
exigia mais do que uma frase de efeito.

Muitas pessoas sensatas questionam por que eu me casei com o Tommy.


Mas nenhum deles questionou a decisão mais do que eu. Eu sabia que eu ia
perder a minha força como pessoa, e eu já estava me sentindo totalmente
sufocada emocionalmente no relacionamento. Nós estávamos igualmente
unidos um ao outro por meio da música e dos negócios. No entanto, a dinâmica
de poder pessoal entre nós nunca foi igual. Ele me convenceu de que tudo
seria melhor se a gente se casasse, que as coisas seriam diferentes. Mas o
que eu realmente esperava era que ele mudasse – que se eu desse a ele o
que ele tanto queria, esse casamento que eu acreditava que ele queria porque
era uma legitimação pessoal, ou para acabar com o falatório sobre ele estar
tendo um caso com uma artista da gravadora, isso o mudaria. Eu nunca tive
certeza por que ele queria tanto se casar. Eu rezava para que, ao fazer isso,
ele se acalmasse e controlasse menos a minha vida. Eu esperava que talvez
ele confiasse em sua “esposa” e a deixasse respirar.

Eu tinha vinte e poucos anos, apenas alguns anos longe do barraco, e o


conceito de uma vida que incluía tanto a realização pessoal quanto a
profissional era incompreensível para mim. Eu realmente acreditava que eu

145
não era digna tanto da felicidade pessoal quanto do sucesso profissional. Eu
estava acostumada a fazer todas as escolhas da minha vida com base na
sobrevivência.

Naquela época, eu não escolhia qual roupa glamorosa usar todas as


manhãs; eu escolhia qual mecanismo de sobrevivência eu precisava para me
armar naquele dia. Mais do que a minha felicidade pessoal, eu precisava da
minha carreira como artista para sobreviver. A felicidade era secundária. A
felicidade era um bônus passageiro. Eu me casei com o Tommy porque eu
pensava que era a única maneira de eu sobreviver nesse relacionamento. Eu
via o poder que ele colocava por trás da minha música, e ele viu o poder que a
minha música poderia dar a ele. O nosso sagrado matrimônio foi construído
sobre a criatividade e a vulnerabilidade. Eu respeitava o Tommy como parceiro.
Se ao menos ele soubesse como dar o respeito que eu merecia como pessoa.

No primeiro casamento de verdade que eu participei, eu era a noiva. Eu


nunca sonhava em me casar quando eu era jovem. Eu realmente não queria.
No colégio, as meninas fantasiavam com vestidos grandes e pomposos e
casamentos em Long Island, enquanto eu visualizava o sonho de me tornar
uma atriz e musicista de sucesso. Isso era tudo que importava para mim, então
foi muito irônico que eu acabei tendo um dos casamentos mais luxuosos da
década em Nova Iorque em um dos vestidos mais volumosos e chamativos da
década.

Além da ambição, o Tommy e eu éramos completamente diferentes, e a


parte negra da minha etnia o deixava confuso. A partir do momento em que o
Tommy me contratou, ele tentou apagar o meu “lado urbano” (tradução: lado
negro). E não era diferente quando se tratava de música. As músicas da minha
primeira fita demo, que fariam parte do meu primeiro CD de sucesso, tinham
muito mais soul e eram muito mais naturais e modernas originalmente. Assim
como ele fez com a minha aparência, o Tommy modificou as canções para a
Sony, tentando torná-las mais genéricas, mais “universais”, mais ambíguas. Eu
sempre tinha a sensação que ele queria me transformar no que ele entendia –
uma artista “comercial” (ou seja, branca). Por exemplo, ele não queria que eu
alisasse o meu cabelo. Eu acho que, para ele, o meu cabelo liso não ficava
natural, que parecia ter sido alisado. Ele achava que o meu cabelo liso me fazia
parecer muito “urbana” (tradução: negra) ou muito R&B, como a Faith Evans.
Em vez disso, ele insistia que eu sempre mantivesse o meu cabelo cacheado,

146
com os cachos soltos e saltitantes, que eu acho que ele pensava que me fazia
parecer quase como que uma garota italiana (embora, ironicamente, os meus
cachos sejam resultado direto do meu DNA negro, alinhados com a ajuda de
uma boa “varinha modeladora” para acabar com o frizz no cabelo).

Os meus cachos certamente se cruzaram com a cultura italiana antes de


eu conhecer o Tommy. (Eu morei em mais de uma dúzia de lugares em Long
Island.) Na décima primeira série, eu estudei num curso técnico de beleza. Eu
ia para lá principalmente para passar o tempo antes de me tornar uma estrela
(o meu único objetivo de carreira). Era mais criativo, divertido e prático do que
o ensino médio normal. Eu sempre me esforçava para conseguir ficar
apresentável – não havia nenhuma ferramenta ou produto na minha casa para
eu usar, e eu certamente não tinha um grupo de amigas para me ajudar a lidar
com a puberdade. Eu tinha um verdadeiro fascínio em aprender a usar técnicas
mais refinadas de beleza. Além disso, quando eu estava crescendo, eu era
uma grande fã do filme Grease (PT-BR: Grease – nos tempos da brilhantina);
eu achava que eu poderia ter o meu próprio momento Pink Ladies22 do filme.
E eu meio que tive.

A minha turma no curso de beleza era composta principalmente por garotas


italianas. Havia garotas malvadas, garotas tímidas, garotas normais, e havia
“as garotas”. Elas eram um grupo de cerca de três ou quatro fabulosas garotas,
que comparativamente, de todas as garotas que eu já tinha visto em Long
Island, eram as mais glamorosas – ou melhor, eram as que pareciam estar se
divertindo de verdade. Mas elas não brincavam em serviço em relação à
aparência delas.

Sutileza, para essas meninas, era perda de tempo e sabor. Elas pareciam
um camarão de tão bronzeadas. Os seus cabelos cheios de luzes eram
penteados ao extremo, ao ponto de ficarem lambidos, cada cacho, afro puff23
e franja fixados em seu devido lugar com spray. A maquiagem delas era
brilhante, chamativa e perfeitamente aplicada. Elas faziam as unhas e tinham
as unhas compridas. Algumas até tinham arte nas unhas: uma fileira de
minúsculas tachas de ouro ou as iniciais de seus nomes em cristais em um
perfeito, forte e brilhante “francês” de cor branca – arrasou.

22 Pink Ladies: são garotas que estudam na escola Rydell High School e que gostam de
usar jaquetas cor de rosa e são super estilosas e bem arrumadas.
23 Afro Puff: é um penteado parecido com o coque abacaxi, e que funciona melhor com
cabelos crespos.

147
Todas nós tínhamos que usar um jaleco muito sem graça da cor marrom e
com botões, tínhamos também que usar calças brancas e sapatos de
enfermeira brancos horríveis e grossos. Mas essas garotas não escondiam que
queriam chamar a atenção. Elas usavam os jalecos desabotoados, deixando à
mostra as suas leggings e as suas regatas brancas masculinas com nervuras
e os sutiãs rendados que elas usavam por baixo. E, claro, elas usavam joias
também: correntes de elos de ouro grossas e finas em estilos planos, espinha
de peixe e corda com chifres italianos, cruzes e pingentes com as suas iniciais
pendurados um em cima do outro em seus pescoços, argolas em suas orelhas
e ouro delicado e anéis de diamante em cada dedo.

Elas eram tão adultas para mim. Elas obviamente já transavam –


obviamente não apenas porque elas se comportavam daquele jeito, mas
porque elas faziam questão que todos soubessem. Elas falavam fácil e
abertamente sobre sexo (o que era secretamente escandaloso para mim). Elas
se chamavam de “Guidettes” e eu não fazia ideia o que isso queria dizer, mas
eu achava legal que elas tivessem um nome, como um grupo musical ou algo
assim.

Elas chegavam no curso de beleza em carros chamativos, ouvindo a


estação de rádio WBLS nas alturas, que tocava música urbana – ah, se elas
soubessem que o povão chamava a rádio de “Estação de Libertação dos
Negros”. É claro que eu conhecia todas as músicas e é claro que eu sabia
cantar todas também – como “Somebody Else’s Guy” (o cara de outra pessoa)
da Jocelyn Brown (eu gostava bastante de cantar os vocais longos e lentos do
início) ou “Ain’t Nothin’ Goin On But the Rent” (não há nada para se preocupar,
só com o aluguel) da Gwen Guthrie. As meninas adoravam, mas a minha
professora odiava, porque em vez de aprender técnicas de como deixar o
cabelo solto, eu ficava soltando a voz.

Foram a minha voz e as minhas inúmeras piadas que conquistaram essas


princesas adolescentes exibidas, porque eu era de uma outra escola e eu não
tinha um visual legal na época – o meu look não era condizente com o look das
garotas desse grupo e com o de nenhum outro grupo. Nós arrumávamos os
cabelos umas das outras. Curiosamente, nenhuma delas nunca me questionou
sobre a textura mista do meu cabelo, se os meus lábios eram carnudos ou
deixavam de ser ou sobre qualquer uma das minhas características. Eu aprendi
muito com essas meninas. Elas me ajudaram a dar mais volume e vigor ao
meu cabelo e mais brilho aos meus lábios.

148
Nós tínhamos mais em comum do que se poderia imaginar. Sempre houve
uma relação secreta e ilegal entre o hip-hop e a máfia na cultura pop. Nós
amávamos especialmente o estilo e a vibe de filmes como The Godfather (PT-
BR: o poderoso chefão) e Scarface. Um tempo depois, eu recriei a cena da
banheira de hidromassagem com o Jay-Z para o clipe de “Heartbreaker”. Esse
clipe sempre será um dos meus favoritos. Eu adorava homenagear a Elvira, a
personagem da Michelle Pfeiffer, a esposa torturada e prisioneira, que tinha
uma casa espetacular e roupas de grife sensuais (muito parecida comigo).

Embora eu tenha tentado, eu me dei conta que eu acabaria abandonando


a escola de beleza. A maioria das meninas da minha turma era muito focada e
tinha talento para a área. O destino delas era cuidar de cabelos. Graças a
Deus, o destino tinha algo reservado para mim no futuro, porque eu certamente
nunca seria coroada rainha fazendo penteados.

Eu nunca poderia ter imaginado, que apenas alguns anos depois de ter feito
quinhentas horas de aula sobre beleza com as Guidettes, eu estaria me
casando com um dos homens mais poderosos da indústria da música – um
italiano, nada menos que isso. Eu não estava querendo me relacionar com
ninguém. Certamente eu não estava procurando por marido. E eu
definitivamente não tinha a intenção de me casar com o Tommy, mas
aconteceu mesmo assim. E que acontecimento! Assim que eu aceitei me casar,
eu pensei, ei, podemos muito bem fazer disso um grande evento – um
ESPETÁCULO! Como acontece com qualquer projeto ou produção em que eu
me envolvo, eu queria que o meu casamento transmitisse o máximo de
otimismo e que fosse bafônico. O Tommy também ficou entusiasmado com a
pompa e com a situação em potencial que a gente poderia criar. Ele se
concentrou na curadoria do público mais influente e impressionante – ou seja,
na lista de convidados – possível.

É claro que a família ou a mãe da noiva não teriam condições de comandar


o show aqui. Deus sabe que essa tarefa estava além de qualquer coisa que a
minha mãe pudesse compreender. Além disso, esse casamento foi planejado
para ser um espetáculo da indústria do entretenimento; mesmo uma mãe ou
irmã com conhecimento de causa não conseguiria administrar a produção que
nós iríamos fazer. A esposa de um dos colegas do Tommy, que era uma mulher
de meia idade com boas relações sociais, ficou responsável por coordenar a
produção. Ela me ajudou com todos os detalhes mais importantes, como por
exemplo, o vestido.

149
O vestido era um espetáculo por si só. A minha coordenadora de produção
era amiga de uma das estilistas femininas mais conhecidas da época, cuja
especialidade era noivas. A impressão que eu tinha era a de que a quantidade
de tempo que eu passava no mostruário fazendo ajustes era a mesma que eu
passava dentro de um estúdio gravando um CD inteiro. Eu tinha que provar a
roupa pelo menos umas dez vezes – uma loucura para uma garota que, não
muito tempo atrás, tinha apenas três camisas para vestir.

É claro que eu me inspirei na Princesa Diana. Quem não se inspirou nela?


Ela era uma inspiração! Eu adorei o casamento dela, e realmente foi o meu
único ponto de referência de como um casamento deveria ser. Eu não cresci
folheando revistas de noivas e, além disso, a realeza sabe como fazer um bom
casamento – obviamente. No final, quase todos os elementos ou símbolos de
princesa imagináveis poderiam ser encontrados naquele vestido. O tecido de
seda creme era tão fino que parecia brilhar. O decote em forma de coração
caía graciosamente sobre o ombro antes de florescer em mangas de pufe
exageradas. O espartilho estruturado era detalhadamente incrustado com
cristais e contas explodindo em uma enorme saia de vestido de baile, e
camadas e mais camadas de crinolinas flutuantes. Mas a característica mais
marcante era a incrível cauda de quase 9 metros, que exigia uma equipe só
para carregá-la. Fixado a uma tiara de diamantes, havia um véu igualmente
longo. O Syd Curry enrolou os meus cachos para que parecessem com os da
Rapunzel, e o Billy B me maquiou, apresentando 2 estilos: o de ingênua
glamorosa e o de rainha do baile. A Cinderela do barraco chegou longe. O
buquê era inesquecível: uma cascata de rosas e orquídeas, cravejada de várias
flores brancas e romanticamente entrelaçadas com videiras de hera. Uma
pequena trupe de meninas jogava pétalas brancas aos meus pés.

O Tommy também não decepcionou na sua missão – os convidados eram


impressionantes. A lista de convidados incluía pesos pesados como a Barbra
Streisand, o Bruce Springsteen, o Billy Joel e a Christie Brinkley – até mesmo
o Ozzy Osbourne e o Dick Clark! Como se não bastasse, o padrinho dele foi o
Robert De Niro! Embora a Josefin e a Clarissa, as minhas amigas de longa
data, fossem as minhas damas de honra, elas não conseguiram me confortar.
Ninguém conseguiria. Eu estava morrendo de medo.

Eu quase não me lembro da cerimônia na majestosa Igreja de Saint Thomas


(São Tomás) (afinal, precisávamos de um local que acomodasse o
comprimento da cauda do vestido).

150
Eu lembro que a nossa música era “You and I (We Can Conquer the World)”
(Você e eu – nós podemos conquistar o mundo) do Stevie Wonder, porque foi
eu quem escolhi, é claro. Eu me lembro do meu rosto tremendo
involuntariamente no altar. Mas no momento em que as portas da igreja se
abriram para a Quinta Avenida, eu ouvi o barulho de gritos e vi a multidão de
fãs inundando cada centímetro da calçada até onde a vista alcançava, os
flashes das câmeras estourando como fogos de artifício. Eu desci as escadas
e sorri para eles. Para mim, o meu casamento não foi dedicado para todas
aquelas pessoas ricas e famosas que eu mal conhecia.

Não foi dedicado para a minha família distante e desestruturada (embora


eu me lembre com carinho do meu avô, que sofria de demência na época,
gritando o meu nome com amor como se estivesse no quarteirão: “Mariah!
Mariah!”) Para mim, o espetáculo do casamento foi dedicado principalmente
para os meus fãs, e nós dedicamos a eles um momento incrível totalmente
merecido.

A recepção cheia de pessoas famosas aconteceu no Metropolitan Club (eu


gostei do local porque tinha as iniciais “MC” espalhadas em todos os lugares,
mas isso não foi mencionado para o TM) e que eu mal consigo me lembrar. Eu
estava exausta. Deu muito trabalho planejar tudo e depois ter que vivenciar o
que tinha sido planejado.

Na noite anterior, eu estava numa festa de pijama só para meninas no Mark


Hotel. Dava para ver claramente que eu estava num dilema. As minhas amigas
sabiam que eu não acreditava realmente na instituição do casamento, mas aqui
estava eu pronta para dar um grande show com um homem que já mostrava
sinais de perigo, profissional e pessoalmente. Ele se tornaria o meu familiar
mais próximo; o relacionamento sufocante que eu já tinha com ele só viria a
piorar e se tornaria mais desequilibrado ainda.

“Você não precisa se casar com ele”, todas elas disseram. Mas eu
realmente acreditava que eu precisava. Não havia saída. Eu não sabia mais o
que fazer. Eu havia aprendido a suportar a decepção e seguir em frente, a tirar
o melhor proveito das coisas e continuar trabalhando. Certamente eu sabia
como conviver com o medo. Eu não conhecia uma vida sem medo.

O Tommy e eu finalmente nos casamos. No dia seguinte, a gente viajou


para o Havaí. Não tem como, em sã consciência, descrever o que nós fizemos
na nossa “lua de mel”. Foi uó. Não foi como um sonho. De. Jeito. Nenhum. Nós

151
nos hospedamos na casa de alguém, que já era algo sem graça. Eu realmente
não me importei muito, já que o meu relacionamento com o Tommy nunca foi
amoroso, mas mesmo assim, era tecnicamente a nossa “lua de mel” ...

Ainda bem que a casa ficava na praia, e estar perto do mar é sempre um
conforto para mim. No dia seguinte, eu fui ao banheiro colocar um maiô quando
eu ouvi o Tommy falando alto no viva-voz. Deu para notar que ele estava
discutindo. Ótimo.

“Qual é o problema?” Eu perguntei. Ele estava falando ao telefone com o


seu publicitário muito poderoso, que estava enlouquecido, gritando e xingando
porque ele não queria que as fotos do nosso casamento tivessem ido parar na
capa da revista People, como nós havíamos planejado. O publicitário estava
dizendo ao Tommy que aquilo não era apropriado para a imagem dele como
executivo. Para a imagem dele? Tipo, qual seria o sentido de organizar toda
aquela grandiosidade só para publicar uma pequena foto de rodapé, como o
publicitário estava querendo? Eu expressei a minha opinião a ele e ao Tommy.
O publicitário explodiu.

“Você está falando sério?!” ele gritou comigo.

O Tommy não me defendeu. Então, aqui estava eu, com os meus vinte e
poucos anos, na minha lua de mel com um homem de cinquenta anos gritando
e me xingando ao telefone enquanto o meu marido quarentão não dizia nada
e nem fez porra nenhuma. E ainda por cima, eu estava certa! É claro que as
fotos do nosso casamento eram para ter sido colocadas na capa da revista. Foi
planejado dessa forma – o show business era assim!

Enquanto os dois homens furiosos gritavam um com o outro e comigo como


crianças, eu comecei a chorar e fugi daquela casa. Eu simplesmente comecei
a correr sem rumo pela praia, com lágrimas escorrendo pelo meu rosto. Nós
nem tínhamos digerido o bolo do casamento, e aqui estávamos nós de novo,
brigando como sempre, se enfurecendo como sempre, e eu sendo descartada
e humilhada como sempre. Nada mudou ou se acalmou. Eu continuei correndo,
sem saber para onde eu estava indo. Por fim, eu cheguei a um hotel com um
bar à beira-mar. Perfeito, eu pensei, eu preciso de uma bebida.

Mas quando eu me sentei, eu percebi que eu tinha saído de mãos vazias.


Eu não tinha telefone nem bolsa, nem dinheiro, nem cartão, nem carteira de
identidade. Eu não teria nem como beber algo para afogar as mágoas. Com o

152
meu cabelo preso em um coque, usando nada além de um biquíni e uma
canga, eu me sentia como mil jovens solitárias numa praia, não como uma
estrela pop famosa que vendeu milhões de CDs em todo o mundo. Eu
certamente não parecia uma noiva em lua de mel. Se alguém me reconheceu,
me deixou em paz – e ninguém conseguiria imaginar como eu estava me
sentindo sozinha.

Eu pedi para usar o telefone e fiz uma ligação a cobrar para o meu
empresário (lembra quando a gente tinha que memorizar números
importantes?) Eu pedi a ele que desse ao barman um número de cartão de
crédito para que eu pudesse pelo menos comprar uma bebida. Eu pedi um
daiquiri24 doce e gelado para afogar as mágoas. Eu tomei um gole e ouvi as
ondas batendo na costa enquanto eu começava a digerir a realidade da
situação.

Por fim, eu voltei para a praia e fui para casa. Mas eu sabia como ia ser.
Mais uma vez, o Tommy e eu não trocaríamos mais uma palavra depois de
uma DR. O pouco de esperança que eu tinha, que ele mudaria quando a gente
se casasse, foi apagado como as pegadas na areia. Foi a partir daí que eu
comecei a prender a respiração e a resistir à correnteza do Tommy.

24 Daiquiri: é uma bebida alcoólica ou um coquetel feito com rum, suco de limão, e açúcar
ou xarope, de origem cubana.

153
O DIA DE AÇÃO DE GRAÇAS
ESTÁ CANCELADO!

E eu não aproveitei muito a vida, mas eu vou compensar


Embora eu saiba que você realmente gosta de me ver sofrer
Mesmo assim, eu gostaria que a gente pudesse se perdoar
Porque eu sinto a sua falta, Valentine, e eu realmente te amei

– “Petals”

Eu o chamava de T.D. Valentine25. Esse era o seu nome artístico na época


quando ele achava que era músico. Ele amava música, isso é verdade, e ele
encontrou uma maneira de se relacionar por um longo tempo com ela. Como
eu disse, o nosso amor mútuo pela música, pela ambição e pelo poder estava
completamente interligado com o nosso relacionamento pessoal. A música era
o relacionamento, mas por mais que a gente tentasse, isso não tinha como
sustentar um casamento. Eu sinceramente acreditava do fundo do meu
coração que eu ficaria com o Tommy para sempre. Mas a minha sanidade e a
minha alma não se renderam ao meu coração, e o casamento rapidamente
começou a me causar danos em um nível emocional e espiritual.

O boato que rolava era o de que eu, com muito estilo, tinha dado o golpe
do baú em um grande executivo de sucesso e que agora ele estava financiando
o meu estilo de vida de princesa – que eu, belíssima, só ficava sentada em um
trono da minha mansão de trinta milhões de dólares. O casamento certamente
passou essa ilusão, mas não passava disso, uma ilusão. Se a minha vida de
casada parecia ser um conto de fadas, era tudo enganação. A segurança
blindada que o Tommy me cercava contra a minha família se transformou em
uma masmorra blindada.

O controle e o desequilíbrio de poder no nosso relacionamento


aumentaram. O meu empresário era um amigo de infância do Tommy. O seu
segurança preferido era o cara durão que ele idolatrava em seus tempos de
escola (embora eu fosse mais alta do que ele quando eu estava de salto).

25 T.D. Valentine: Thomas Daniel Mottola ou Tommy Mottola

154
Todos que tinham a tarefa de cuidar de mim eram conectados profundamente
com ele. Eu era muito jovem e inexperiente quando o Tommy me conheceu;
ele sabia muito mais sobre muitas coisas, especialmente sobre o mundo da
música. Mas eu sabia algumas coisas que ele também não sabia,
principalmente no que se referia a tendências e cultura popular, o que eu
suspeito que ele se sentia ameaçado com isso. A impressão que eu tinha era
a de que ele se sentia ameaçado por qualquer coisa que ele não conseguia
controlar.

Ele entrava em parafuso só com a ideia de eu fazer algo que ele não
conseguia controlar. Um exemplo básico e ridículo disso: uma vez, havia uma
revista, a Entertainment Weekly, em cima da mesa da nossa cozinha em Sing
Sing. Tinha uma matéria em que o redator sugeria uma nova versão moderna
do filme All About Eve (PT-BR: a malvada) com a participação da Diana Ross
como a Margo Channing e eu como a Eve Harrington – brilhante! Claro, eu
adorava o filme original, não apenas pelo glamour e as performances icônicas,
mas também porque a Marilyn Monroe fez uma pequena e adorável
participação como a Miss Casswell, uma atriz linda e ambiciosa.

O Tommy leu a matéria e ficou puto – comigo! De alguma forma, ele


encontrou uma maneira de me culpar pela fantasia de outra pessoa de me
escalar para um filme (que nem sequer tinha uma cena romântica, pelo amor
de Deus!). Como se ele fosse o meu pai ou algum tipo de guarda autoritário, a
raiva dele impregnava a casa e abalava todo o meu ser. Eu me meti em apuros
(sim, “apuros”, porque eu me sentia tão infantilizada por ele) pela mera
sugestão, feita por alguém, de eu fazer algo além do que ele podia controlar.

A diferença entre os nossos gostos e instintos na música e na cultura pop


era maior do que a diferença entre as nossas idades. No final dos anos oitenta
e durante meados dos anos noventa, a gravadora Uptown Records,
comandada pelo falecido e lendário Andre Harrell, era a gravadora de R&B,
hip-hop e do estilo musical híbrido que se tornaria conhecido como New Jack
Swing. A gravadora Uptown tinha como artistas o Heavy D & the Boyz, o Guy
(com o Teddy Riley), o grupo Jodeci, a Mary J. Blige e o rapper Father MC. O
CD do Father MC era um dos meus favoritos. A Mary J. Blige fez backing vocals
e cantou partes do refrão para ele, com a participação do grupo Jodeci – amo.
Eu os ouvia o tempo todo. O Tommy ficava me observando quando eu os ouvia.
Ele prestava atenção ao tipo de música que eu ouvia porque ele sabia que o
meu ouvido e os meus instintos eram aguçados. Mas eu sabia que ele não
conseguia sentir nada com esse tipo de música. Ele não conseguia

155
compreender totalmente, porque estava à frente do seu tempo. Ele nunca
acreditou realmente no poder cultural duradouro do hip-hop porque ele não
conseguia entendê-lo totalmente. Ele pensava que era uma moda passageira
ou só uma tendência.

Certa noite, o Tommy e eu saímos com um grupo de amigos e grandes


executivos da música; nós fomos para um restaurante italiano lindamente
iluminado, que servia pães focaccia quentinhos, gostosos e crocantes, que era
frequentado por illuminatis da indústria musical. Estávamos todos sentados ao
redor de uma grande mesa. A minha amiga Josefin tinha chegado da Suécia,
e ela e o seu novo marido estavam entre os convidados, então não era
totalmente um jantar de trabalho, mas naquele momento, não havia separação
entre a minha vida profissional, social e pessoal. Até a nossa casa foi
amplamente projetada para conduzir negócios e impressionar parceiros
(embora a principal preocupação dos meus contemporâneos era onde eles
poderiam relaxar e fumar um baseado – de todos os quartos luxuosos
disponíveis, não é nenhuma surpresa, a gente preferia o estúdio). Às vezes,
nós éramos os anfitriões de grandes jantares festivos lá, alguns dos quais eram
divertidos e fabulosos, mas que a gente nunca se sentia à vontade. Não tem
como se sentir à vontade quando se é vigiado, algo que sempre acontecia
comigo.

A música estava vivendo uma era empolgante em meados dos anos 90, e
eu fazia parte de uma geração pioneira de jovens artistas, compositores,
produtores e executivos inovadores. Nós tínhamos a intenção de fazer um novo
tipo de som, baseado em R&B e rap, mas sem restrições de formatos e
fórmulas antigas. A gente brincava com novas tecnologias e misturava
melodias fluidas de maneira irreverente com a estética e a energia mais realista
do hip-hop. A música que nós estávamos fazendo era original e suave ao
mesmo tempo, e nós éramos os únicos que sabíamos como dar um toque
especial nela. Era o nosso som, reflexo do nosso tempo e das nossas
sensibilidades.

O meu ex-empresário também estava conosco no restaurante. Passamos


a falar sobre o Puffy, também conhecido como Sean, também conhecido como
P. Diddy, que havia recentemente saído da gravadora Uptown Records, onde
ele começou como estagiário, se tornando chefe do departamento A&R
(Artistas e Repertório). Agora ele já tinha a sua própria gravadora, a Bad Boy,
e a sua estrela, o Notorious BIG, estava tocando em todas as rádios e
começando a ficar conhecido por toda uma geração. O então chefe da

156
gravadora Epic Records voltou-se para mim e perguntou: “Então, o que você
acha desse cara, o Puffy? Qual é a sua opinião sobre ele? Você gosta da
música dele?”

Ele dirigiu a pergunta para mim porque eu era a pessoa mais jovem da
mesa. Eu também amava e entendia o hip-hop, e era a única artista lá. Além
disso, eu havia trabalhado recentemente com o Puff como produtor. A mesa
ficou quieta quando eu me inclinei e dei a minha avaliação honesta: que o Puff
e a gravadora Bad Boy eram definitivamente o som que iria dominar.

Não muito tempo atrás, na mesa da cozinha da nossa casa, o Tommy havia
falado para mim e para o meu sobrinho Shawn: “Daqui a dois anos, o Puffy vai
engraxar os meus sapatos”. Eu fiquei chocada. Peraê. O que foi que ele disse?
Foi uma das poucas vezes em que eu enfrentei o Tommy, e falei para ele que
o que ele havia dito era totalmente racista. Eu fiquei chateada. O Shawn nunca
tinha me visto bater de frente com ele; ele ficou chocado por eu ter mostrado a
minha raiva e ficou realmente preocupado comigo. Muitas pessoas ficaram
preocupadas na época.

Mas naquela noite no restaurante, o que poderia ter sido uma grande
discussão entre um executivo da indústria e uma artista sobre a cultura global
e o futuro da música pop americana se transformou em uma birra épica do
Tommy. Quando eu estava terminando a minha resposta, eu vi os seus olhos
brilharem com uma raiva tão conhecida por mim. Ele saltou da mesa e
começou a andar, bufando pelo restaurante. Ele ficou tão enfurecido que ele
não conseguia se conter. A mesa inteira ficou em silêncio enquanto nós
olhávamos um para o outro, sem saber o que diabos havia de errado com ele
(desta vez) ou o que nós deveríamos fazer. O restaurante inteiro viu o Tommy
tentando descer de um parapeito que só ele conseguia ver. Finalmente, ele
voltou. Ainda tremendo de raiva, ele bateu o punho na mesa e anunciou: “Eu
só quero que todos saibam que O DIA DE AÇÃO DE GRAÇAS ESTÁ
CANCELADO!” Hmmm, beleza.

Nós estávamos planejando fazer uma celebração com um jantar para o Dia
de Ação de Graças em Sing Sing, mas porque eu ousei dar a minha opinião
sincera e independente, em público, para alguém que ele admirava (e que
havia me perguntado o que eu achava), ele iria acabar com a diversão. Como
se fosse a minha festa de aniversário de dez anos. Mesmo assim, foi super
ridículo e arrogante da parte dele declarar que o feriado nacional estava

157
cancelado. Tipo, quem iria ligar para o Frank Perdue26? Pelo amor de Deus,
quem iria cancelar todos os pedidos feitos à empresa Butterballs27? Que culpa
eu tinha de terem me feito uma pergunta?

O que eu deveria ter feito, ficar parada igual a uma estátua e não responder
ao homem? Que coisa mais ridícula!

O que não era nada engraçado era saber como eu seria punida pela minha
transgressão voltando para casa. Algo aconteceu comigo naquela noite, e eu
decidi que eu não iria levar a culpa por algo que não era a minha culpa,
novamente. Naquela noite, eu não seria trancada na câmara de tortura do
Range Rover do Tommy e mandada de volta para a prisão em Bedford. Eu
tomei a decisão de não ir embora com ele em hipótese alguma. Eu percebi que
eu estava correndo um risco enorme, mas como nós estávamos em um local
público, com uma mesa cheia de testemunhas, eu arrisquei, pensando que ele
não iria causar ainda mais e que eu ficaria segura.

Ele se sentou à mesa remoendo de raiva e olhando para mim. Eu sentei


nervosamente na minha cadeira, a minha perna literalmente tremendo sob a
toalha de mesa de linho branco, mas eu ainda estava super convicta. De
alguma forma, eu o encarei de volta. Naquela noite não. Não tinha nem perigo
de eu voltar para casa com ele naquele estado. Foi um impasse tenso e todos
na mesa ficaram apavorados. Eles ficaram com medo por mim; eles ficaram
com medo por si mesmos. Todo mundo sempre teve medo do Tommy! Mas eu
aguentei firme e, finalmente, o Tommy saiu sozinho. Mesmo que ele e eu
soubéssemos que ainda haveria pessoas me vigiando e contando tudo para
ele, a minha postura foi monumental. Por respeito à nossa privacidade, o chef
e o proprietário concordaram em me deixar sair discretamente pela cozinha. A
Josefin e eu fomos para uma pequena boate (que foi um enorme passo para
mim) para descarregar as energias ruins e tomar alguns coquetéis, depois nós
fomos para um hotel para ter uma decente noite de sono. Foi o meu primeiro
gole de liberdade – e como eu estava sedenta por mais.

26 Frank Perdue: nascido em Salisbury, Maryland, foi por muitos anos o presidente e CEO
da Perdue Farms, agora uma das maiores empresas produtoras de frango nos Estados
Unidos.
27 Butterballs: é uma marca de peru e outros produtos de aves produzidos pela Butterball
LLC. A empresa fabrica produtos alimentícios nos Estados Unidos e internacionalmente -
especializada em perus, carnes curadas, assados crus e produtos especiais, como sopas e
saladas, sanduíches e entradas.

158
Porque é a minha noite
Sem estresse, sem brigas
Estou deixando tudo para trás...
Sem lágrimas, sem tempo para chorar
Apenas aproveitando a vida ao máximo

– “It’s Like That”

A noite em que o Tommy “cancelou” o Dia de Ação de Graças foi a primeira


vez que eu me defendi e confrontei às suas ordens. Ele nunca me permitiu ter
a minha própria voz; esboçar o mínimo de contrariedade ou pensamento
independente parecia ameaçá-lo, fazendo com que ele se sentisse menos
homem. O controle dele estava fora de controle. Eu era a voz da gravadora,
quem obtinha todos os tipos de lucros e benefícios para ele, mas mesmo assim,
usar a minha voz para expressar as minhas opiniões numa mesa de jantar era
terminantemente proibido. Mas eu jamais permitiria ser cancelada.

159
FANTASIA

Embora o Tommy nunca abrisse mão do controle da minha vida, em uma


certa altura do campeonato ele começou a fazer concessões no que dizia
respeito à produção da música. Ele sempre me respeitou como compositora;
ele era um homem da música e sabia quando uma letra de música ou uma
estrutura melódica era boa. No entanto, eu não estava apenas sendo melhor
do que alguns dos produtores com quem ele me fazia trabalhar, mas eu
também estava sendo melhor do que a indústria da música. Eu sempre lutei
contra a tentativa deles de me encaixarem em um estilo tipicamente comercial
de “adulto contemporâneo”. O Tommy e os seus produtores só sabiam
trabalhar com o estilo adulto contemporâneo, e eu sabia trabalhar com isso
também. Eu sei compor grandes sucessos pop como “Hero”. Eu sei compor
músicas no estilo da Broadway. O que a ocasião exigir, eu consigo desenrolar.
Mas eu queria ir mais além com a minha música, eu queria um som mais
moderno. Eles insistiam em tentar fazer do meu som algo como água com
açúcar enquanto eu buscava fazer um som mais para o povão. Eu queria criar
um som mais dinâmico e ampliar o meu horizonte. E, é claro, tinha toda uma
dimensão racial e cultural relacionada com o hip-hop – era uma forma de arte
negra. Ao contrário do jazz (que o Tommy apreciava) ou da música gospel, o
hip-hop era radical, realista e sem frescuras. O intuito do hip-hop não era o de
fazer homens brancos de meia idade se sentirem descolados. O hip-hop não
precisava realmente desse tipo de pessoa para fazer sucesso, e eu acho que
eles se sentiam ameaçados porque o poder deles corria risco. Mas enfim,
mesmo com tudo isso, o Tommy não podia negar as evidências. As minhas
músicas estavam fazendo sucesso. Então ele parou de se intrometer nos
samples, nos artistas e nos produtores com quem eu queria trabalhar.

Eu sabia que o hip-hop dava um toque mais jovem e excitante a quase


qualquer outro som, se feito corretamente. Eu sabia que o Puff seria o parceiro
de produção ideal para o “Fantasy Remix” que eu estava desejando. Eu fiquei
muito feliz com o resultado que o produtor Dave “Jam” Hall e eu tínhamos
alcançado no single. Eu escolhi o sample de “Genius of Love” do Tom Tom
Club para usar na música. Era uma música perfeita, divertida e animada, mas
eu sabia que dava para explorar ainda mais. Nós usamos também o sample do
Tom Tom Club no remix, mas dessa vez deixando a batida ficar mais em

160
evidência. O Puff vibrou com a minha ideia de cantar junto com o Ol 'Dirty
Bastard do grupo de hip-hop Wu-Tang Clan – ele era o verdadeiro gênio do
amor28.

Os executivos do “necrotério corporativo” não gostavam nem um pouco do


ODB. Eles achavam que ele era totalmente maluco e que os meus fãs iriam
ficar chocados caso eu trabalhasse com ele. O Tommy chamava o rap de
poluição sonora, mas ele não fazia ideia que o ODB estava prestes a “poluir o
som” da música “Fantasy”. Eles não sabiam o quão diversos eram os meus fãs,
e não sabiam também do impacto global do Wu-Tang Clan (principalmente com
o CD de estreia deles “Enter the Wu-Tang (36 Chambers)!” – fala sério!). O
Wu-Tang era um movimento, um tipo de grupo que aparece uma vez na vida,
e o ODB era um membro extra especial. Eu realmente acreditava que ele faria
algo incrível com o remix. O Puff teve a ideia e foi atrás para dar certo. Tinha
também algumas pessoas legais do departamento A&R (Artistas e Repertórios)
que me ajudaram a trabalhar em segredo em uma das maiores colaborações
com um artista de rap de todos os tempos.

Claro, a gravação com o ODB aconteceu tarde da noite, e depois eu fui


abordada pelo Tommy e levada de volta para Sing Sing para dormir. Eu tomei
um banho assim que eu cheguei, algo que era como uma espécie de ritual
batismal ao contrário, que de jovem artista internacional, eu passava a ser uma
esposa enclausurada em Westchester. Eu vesti uma camisola de seda branca,
andei na ponta dos pés pelo carpete de lã branca do quarto principal e subi na
nossa opulenta cama, equipada com lençóis egípcios brancos de 1.000 fios e
o que parecia ser uma centena de travesseiros de plumas brancas.

O Tommy já estava deitado e ele estava usando o seu pijama de algodão


branco. O seu lado da cama parecia estar a um milhão de quilômetros de
distância. A indiferença se tornou rotina. De repente, o telefone tocou. Eu atendi
e comecei a gritar de empolgação. Alguém do estúdio ligou para relatar que o
ODB havia terminado de gravar. “Espera, espera”, eu disse, “eu vou te colocar
no viva-voz”. Eu ativei a função viva-voz para o Tommy ouvir:

28 Ele era o verdadeiro gênio do amor: a música “Fantasy Remix” descreve como a
Mariah se sentiu ao ver um cara que ela estava a fim. A gente sabe que o cara era do tipo
mau caráter, porque ela pergunta a mesma coisa várias vezes “o que você vai fazer quando
sair da prisão”? A música original, “Genius of Love” (gênio do amor), também fala do
namorado mau caráter de uma garota e que também tinha acabado de sair da prisão. A
Mariah faz uma comparação e diz que o ODB era o verdadeiro gênio do amor, ou seja, ele
era a perfeita descrição do cara bad boy citado nas duas músicas.

161
Ei, Nova Iorque está na área?
O Brooklyn está na área?
O subúrbio está na área?
Shaolin29 está na área?
O distrito do Bronx está na área?
Sacramento está na área?
Atlanta, Georgia estão na área?
A Costa Oeste está na área?
Japão, você está na área?
Pessoal, vocês estão na área?
Vamos juntos nessa
Baby, vamos todos juntos!

Urru! Eu não conseguia me conter. Acho que eu até pulei na cama! E a


música continuou: “Eu e a Mariah nos conhecemos desde que nos entendemos
como gente! Old Dirt Dog não mente. Fazendo da música “Fantasy” a sensação
do momento!”

Ol 'Dirty Bastard é o cara! O ar puritano do nosso quarto branco ficou


impregnado com o linguajar de favela e as rimas malucas e brilhantes do ODB,
a minha música finalmente tinha ficado do jeito que eu queria! E ele não parava
– todos os seus improvisos loucos me faziam rir bastante. Eu fiquei extasiada.
Eu não parava de gritar e de rir de alegria. Mas então eu olhei para o Tommy.
A cabeça dele estava inclinada para o lado com uma expressão de confusão
que ele não conseguia conter.

“Que porra é essa?” ele deixou escapar. “Eu sei fazer isso. Dê o fora daqui
com essa porcaria.” Pois é. Foi isso o que ele disse sobre uma das coisas mais
originais e incríveis que eu já tinha ouvido! Eu acho que ele ficou em estado de
choque, ou talvez ele realmente achava que ele conseguia fazer melhor e que
todos nós estávamos ficando loucos. Era como se a nave estelar
Empreendimento tivesse me levado para uma outra galáxia, muito, muito longe
do Tommy. A música era o nosso único vínculo verdadeiro, e agora estávamos
a anos-luz de distância.

Eu simplesmente fiquei alucinada com a música “Fantasy Remix”. Foi uma


das minhas primeiras canções que eu ouvia sem parar antes mesmo de ser

29 Shaolin: um dos cinco distritos da cidade de Nova Iorque. Um apelido dado à Ilha de
Staten pelo grupo de hip-hop Wu-Tang Clan.

162
tocada nas estações de rádio. Eu a ouvia voltando para casa em Bedford
(tenho certeza que o Tommy amava isso – só que não). Eu parecia estar
compensando toda a diversão que eu havia perdido na minha infância. Ela me
fazia sentir feliz. A energia do ODB era algo com que todos podiam se
identificar – era como se ele fosse uma espécie de tiozão inconveniente e
divertido que fica bêbado em todas as celebrações, no jantar de natal, no
churrasco, no Dia de Ação de Graças. O ODB e o Puff realmente me ajudaram
a criar um clássico atemporal ao qual todos os tipos de pessoas se conectam.
O remix foi responsável por introduzir gírias e passar sensações que fariam
parte das nossas vidas para sempre. O Donny e a Marie Osmond voltaram à
memória popular depois que ele explodiu com as suas rimas “eu sou um pouco
country, eu sou um pouco rock'n'roll!” Como ele conseguiu fazer isso e cantar
desse jeito? Genial. E agora, quando eu canto “Fantasy Remix” usando os
vocais do ODB em algum show, parece que ele está dizendo “eu sou um pouco
Roc e Roe” –eu sempre fico emocionada.

Gravar o clipe de “Fantasy” também foi muito importante para mim. Eu


queria que o clipe fosse divertido e descontraído. Na minha opinião (que muitas
vezes não levavam em consideração), quase todos os meus clipes não ficaram
legais. O Tommy nunca permitiu que eu trabalhasse com os diretores que eu
queria, os que estavam bombando na época, como o Herb Ritts, ou os estilistas
descolados, que dariam um toque especial ao meu visual; eram pessoas
criativas que ele não conseguia controlar completamente. Os meus clipes
tinham de seguir um certo padrão comercial, mas este clipe, bom, não tinha
como seguir a mesma linha de raciocínio. A necessidade é a mãe da invenção,
certo? Então, já que eu não podia trabalhar com quem eu quisesse, eu mesma
decidi dirigir o clipe. Era um conceito simples: jovem, divertido e descontraído.
Foi filmado no Playland Park de Westchester no Rye, Nova Iorque. Todos
podem se identificar com a alegria e o abandono de um parque de diversões,
a sensação de jogar as mãos para o alto na montanha-russa. Era esse tipo de
pura diversão que eu queria que o meu clipe tivesse. Elementos simples, como
crianças bonitas andando de patins, cores vivas, mini shorts e um palhaço. O
clipe se resume a alguns rapazes descolados dançando break à noite. Essa foi
a versão do clipe “Fantasy”. Para o clipe de “Fantay Remix”, eu queria que o
ODB fizesse no clipe a mesma coisa que ele fez quando gravou a música: que
ele incorporasse no clipe elementos cômicos e elementos do povão.

O dia das filmagens do clipe com o ODB estava nublado e o local reservado
para ele ficar era bem simples, perto do calçadão. Eu entrei no camarim dele
para lhe dar um presente pessoalmente – um frasco de prata com as suas

163
iniciais gravadas. Nós conversamos sobre o conceito – o que, de novo, era
bem simples, porque eu não queria que nada viesse a ofuscar a performance
dele (como se fosse possível de acontecer). Eu compartilhei com ele a ideia de
amarrar um palhaço no poste e que ele mostrasse os seus dentes de ouro. Ele
aceitou a coisa toda, mas ele não gostou muito do figurino e queria usar uma
peruca.

“Eu quero uma peruca”, dizia ele, “Igual a peruca dos artistas dos anos 60.
Como a do Al Green. Eu sou como o Al Green desta geração”.

“Oooooh, devo discordar, mas você é definitivamente incrível”, eu respondi


respeitosamente. Ele já estava agindo como um tiozão inconveniente –
completamente bêbado. Eu pedi ao estilista para ir ao shopping com ele para
que ele comprasse exatamente o que ele estava querendo. Vejam bem, nós
estávamos em Westchester (o clipe era meu, mas eu ainda estava no território
do Tommy).

Quando eles voltaram, depois de uma ou duas horas, o estilista estava um


caco. Aparentemente, o ODB ficou cantando, gritando, zoando e bebendo
durante o tempo todo que estiveram no shopping! Mas o visual dele estava
perfeito, as suas roupas largas e frouxas eram perfeitas para ele dançar e para
os seus movimentos excêntricos e maravilhosos. Ele usou as mangas e o
capuz como acessórios. Ficou perfeito. E a cena em que ele mostra o seu
peitoral usando uma peruca de cabelos lisos em forma de cogumelo, com
óculos escuros pontudos – ele ficou mais parecido com o Ike Turner do que
com o Al Green, mas isso não importa, foi inesquecível! Ele foi ele mesmo no
clipe e foi perfeito. Eu sei que o ODB passou por sérios problemas, mas ele só
trouxe alegria para a música de “Fantasy Remix” e para o clipe também e para
o meu mundo.

Descanse em paz, ODB.

“Fantasy” foi um grande sucesso. Foi o primeiro single de uma artista


feminina a estrear em primeiro lugar na Billboard Hot 100 na história e a
segunda artista a alcançar tal feito (o primeiro foi o Michael Jackson com
“You're Not Alone”). O single ocupou o primeiro lugar por oito semanas
consecutivas e permaneceu nas paradas por um total de vinte e três semanas.
Foi o meu nono single a ficar em 1º lugar. Até os críticos gostaram de “Fantasy”
e do remix (alguns realmente gostaram) – o CD Daydream inteiro se saiu

164
incrivelmente bem: premiado com um disco de diamante. O CD teve alguns
singles realmente especiais e memoráveis, como “Always Be My Baby” e, claro,
“One Sweet Day”, cujas letras e música eu co-escrevi com o Boyz II Men,
inspirado pelo falecimento do meu incrível amigo e colaborador David Cole e o
empresário de turnê deles, ambos morreram cedo demais. “One Sweet Day”
ocupou por dezesseis semanas consecutivas o 1º lugar na Billboard Hot 100,
um recorde mantido por 23 anos.

Eu estava escalada para interpretar “Fantasy” e fazer algumas outras


participações no vigésimo terceiro American Music Awards anual, onde eu fui
indicada em várias categorias. Foi uma noite muito importante para mim, mas
ganhar os prêmios de Melhor Artista Pop Feminina e Melhor Artista Feminina
de R&B não foi o momento mais memorável para mim.

Quando eu não estava no palco ou esperando nos bastidores, eu estava


sentada na primeira fila ao lado do Tommy. Nós dois estávamos super bem
vestidos e apreensivos (a foto da capa do Daydream tirada pelo fotógrafo
Steven Meisel, que era indiscutivelmente o mais importante na indústria da
moda na época, definiu o visual do estilo chique o-preto-é-o-novo-preto para o
aspecto promocional do CD). Ironicamente, a minha roupa para essa
apresentação estava passando uma pseudo vibe de “Mariah Militante”, com
calças de couro pretas, um sobretudo de couro preto e uma blusa de gola alta
preta (eu tenho certeza que o Tommy gostou porque a única coisa que aparecia
era o meu rosto). Talvez tenha sido uma premonição do que estava por vir.

Porque “Fantasy” não era a única música que eu teria que cantar naquela
noite, tinha um trailer para mim atrás do Shrine Auditorium para que eu pudesse
trocar o meu figurino e coisas do tipo. Eu estava indo para o trailer para trocar
de roupa. Havia segurança em toda parte, então eu não precisava ser seguida
durante a curta caminhada até onde todos os trailers dos artistas estavam
estacionados atrás da casa de eventos.

Quando eu saí correndo para poder voltar ao palco, eu notei um Rolls-


Royce branco se aproximando silenciosamente e lentamente. Assim que os
dedos dos meus pés tocaram o asfalto, o veículo elegante e reluzente parou
suavemente bem na frente da minha porta. Foi como se o próprio tempo tivesse
parado. A janela escurecida do passageiro começou a baixar.

Ele estava sozinho, recostado no banco do motorista, de modo que o braço


que segurava o volante de couro estava quase reto. Ele apoiou a cabeça para

165
trás apenas o suficiente para que os seus lindos cílios não projetassem uma
sombra e obscurecessem os seus olhos escuros alertas e surpreendentes que
olhavam para os meus.

“Ei, Mariah,” ele disse suavemente, o meu nome saiu dos seus lábios como
fumaça. Então aquele sorriso espetacular me desarmou. Em um instante, a
janela voltou a subir e o rapper Tupac foi embora.

Se não fosse por um assistente de produção ou alguém me chamando de


volta ao palco, de volta à Terra, eu poderia ter ficado lá atordoada por horas.
Eu terminei de cantar e fui me sentar no meu assento duro ao lado do Tommy.
O meu coração disparou nervosamente, mas ele não percebeu. Ninguém
percebeu. O Tupac tinha acabado de me secar com os olhos.

Embora eu estivesse gravando Daydream, partes da minha vida ainda eram


um pesadelo. Eu estava compondo e cantando músicas animadas como
“Always Be My Baby” e baladas arrebatadoras como “One Sweet Day”. Eu me
sentia completamente inspirada por ter corrido um risco juntamente com outras
pessoas ao colaborar com o ODB no remix de “Fantasy”. Eu estava me
aventurando musicalmente, mas eu também estava muito puta. Sempre foi um
desafio para eu reconhecer e expressar a minha raiva. A minha vida pessoal
foi sufocante durante a era Daydream, e eu precisava desesperadamente de
liberação.

A música e o humor têm sido desde sempre as minhas duas grandes formas
de liberação – eles me ajudaram a sobreviver a todas as angústias da minha
vida. Então, enquanto todos os membros da minha banda ainda estavam
comigo e enquanto eu dispunha de tempo de estúdio na gravadora Hit Factory
para a gravação do CD, eu criei uma artista alter ego e uma banda paródia tipo
a Ziggy Stardust30. A minha personagem era uma menina gótica melancólica
de cabelos escuros (uma versão dela, a Bianca, apareceu alguns anos depois
no clipe de “Heartbreaker”) que escreveu e cantou canções ridículas de
sofrência. Ao final de cada gravação, eu ia para um canto e, sem pensar muito,

30 Ziggy Stardust: a personagem foi inspirada no cantor britânico de rock Vince Taylor,
que o David Bowie conheceu após o Taylor ter um surto e acreditar que era um cruzamento
entre um deus e um alienígena, mas o Taylor foi somente parte do modelo da personagem.

166
eu escrevia rapidamente algumas letras. Em cinco minutos eu fazia uma
música:

Eu sou!
vinagre e água
Eu sou!
A filha feia de alguém
Estou vadeando na água
E eu souuu!
Como uma bolha aberta
Eu sou!
A irmã do Jack, o estripador
Eu sou!
Apenas uma vagabunda solitária

Eu mostrei a minha pequena canção de rock alternativo para a banda e


cantarolei um riff bobo de guitarra. Eles aprenderam a música e a gente gravou
na mesma hora. Era irreverente, original e urgente, e a banda entrou na onda.
Na verdade, eu comecei a amar algumas das canções. Eu me comprometia
totalmente com a minha personagem. Eu fingia ser uma dessas cantoras
brancas com um estilo mais leve e descontraído de punk e grunge que eram
populares na época. Me refiro àquelas que não estavam nem aí com os seus
sentimentos e imagem. Elas podiam estar com raiva, angustiadas e
desarrumadas, usando sapatos velhos, saias de baixo amarrotadas e
sobrancelhas por fazer, enquanto que cada movimento que eu fazia era super
calculado e bem cuidado. Eu queria me libertar, me soltar e expressar a minha
profunda tristeza – mas eu também queria rir.

Eu ficava super ansiosa para personificar o meu alter ego e começar a


gravar com a minha banda após as gravações do CD Daydream toda noite. O
Tommy passava a maior parte do tempo na Itália naquela época, então eu tinha
um pouco de espaço e ar para me divertir e para continuar com essa bizarrice.
A banda adorava, e nós acabamos fazendo músicas dignas de serem gravadas
em um CD, que a gente mixou e tudo mais. A minha brincadeira de “liberação
da raiva” acabou se tornando uma coisa meio que um rock alternativo
estranhamente bom, satírico e underground. Quando o Tommy e algumas
outras pessoas da gravadora ouviram, eles não conseguiam acreditar que nós
tínhamos feito tudo aquilo durante a gravação do Daydream. Eu até pedi ao
departamento de arte da gravadora para projetar uma capa que eu havia
concebido. Eu escrevi o título com batom rosa sobre uma foto Polaroid que o

167
Tommy tinha tirado de uma barata gigante morta na Itália. Eu pedi a eles para
adicionar uma paleta de maquiagem de sombra de olhos esmagada. Eles
delinearam e ficou perfeitamente ousado e com aparência grunge de verdade.
Pessoalmente, eu fiquei muito satisfeita em gravar esse CD “alternativo”. Eu
gravei um sarcástico CD hardcore de bater cabeça que ninguém jamais
permitiria que eu fizesse. A minha assistente e eu costumávamos ouvir esse
CD nas alturas no carro andando pelas ruas secundárias de Westchester,
cantando com toda a força dos nossos pulmões, me dando um breve momento
de poder externar a minha raiva e de ser irreverente e livre.

Havia uma música no CD chamada “Crave” (anseio) (que eu acabei


mudando o nome para “Demented” (demente)). O Tommy sabia que eu tinha
talento para reconhecer talentos, então ele criou uma mini gravadora para mim
que eu dei o nome de Crave, inspirada pela música.

A primeira contratação da gravadora Crave foi um grupo de hip-hop


chamado Negro League (eles tiveram participações especiais no clipe “The
Roof”). O nome do grupo deles se chamava assim em homenagem a famosos
jogadores negros de beisebol como o Satchel Paige e o Cool Papa Bell, que
tiveram que formar a sua própria liga por causa da segregação. Eles eram
jovens, divertidos e todos eles eram bonitos. Eu simplesmente adorava entrar
em uma festa com eles – eles gritavam “NEGROS! NEGROS!” Não tem nada
de ambíguo nisso, dahling.

Um tempo depois, quando ficou claro para o Tommy que o casamento não
daria certo, a gravadora Crave rapidamente tornou-se extinta, e o CD
alternativo convenientemente desapareceu. Porém, houve um pequeno e doce
benefício residual da Crave e do grupo de hip-hop Negro League. Eu convidei
um dos meus amigos do grupo para ser o meu par romântico – ele ficaria sem
camisa, andaria de moto comigo e lamberia os lábios em algumas cenas do
clipe “Sweetheart” do Jermaine. Eu o chamava de “Flask31” (que era parecido
com o nome dele) porque ele ficou super nervoso no voo para Bilbao, na
Espanha, e que acabou bebendo muito e ficando embriagado. Mas a ressaca
dele funcionou bem no clipe, enfatizando ainda mais os seus olhos
encantadores. Nós namoramos por um curto período de tempo, logo após um

31 Flask: frasco é a tradução literal e a Mariah deu esse apelido a ele porque ele estava
super bêbado no clipe. Bebidas alcóolicas são colocadas dentro de um frasco ou recipiente.
O nome real dele é Flip Mahlotix.

168
término muito difícil, que eu já já vou falar sobre isso. Ele era divertido, bonito
e perfeito para sarar as minhas feridas.

169
EM UMA NOITE DE VERÃO, NÓS
FUGIMOS POR ALGUNS INSTANTES…

Em consequência do sucesso do remix de “Fantasy” com Ol 'Dirty Bastard,


eu agora tinha uma certa autonomia que tornava um pouco mais fácil trabalhar
com pessoas fora da jurisdição do Tommy. Eu estava começando a buscar o
que eu pensava ser os colaboradores certos, com os quais eu poderia alcançar
o som que eu vinha ouvindo há algum tempo, que incluía inserir o hip-hop e
trabalhar com uma diversidade de rappers. No entanto, a velha guarda da A&R
(Artes e Repertórios) e dos executivos musicais das grandes gravadoras não
sabiam como controlar ou conter o hip-hop e olhavam para mim de lado em
busca de sugestões.

O rap estava ganhando muito dinheiro muito rápido, então os executivos


espertos correram para tentar se beneficiar. E o Tommy não foi exceção. Ele
era inteligente. Embora ele sempre tivesse um estilo contemporâneo pop /
adulto mais tradicional em mente para mim, ele não podia negar que a indústria
e o público estavam mudando. Era de conhecimento geral que o Tommy não
gostava particularmente de rap ou de rappers, mas ele era um homem de
negócios astuto e, apesar da sua resistência inicial, ele entendeu que eu
acompanhava de perto essa mudança cultural. Eu estava determinada para
que o meu próximo single tivesse o som que eu estava ouvindo na minha
cabeça o dia todo, a música com a qual eu vinha sonhando. Então eu comecei
a trabalhar no CD Butterfly.

Eu tinha chegado a um ponto em que já confiavam nas pessoas com quem


eu escolhia trabalhar, não os músicos de sempre. Um dos mais talentosos era
o Jermaine Dupri, um produtor gracioso e briguento de Atlanta com ouvido e
instinto brilhantes. Como eu, o Jermaine entrou no jogo cedo. Ele era bastante
ambicioso e super talentoso; aos dezenove anos, ele havia descoberto,
desenvolvido, escrito e produzido sucessos de multiplatina para o Kris Kross e
garantido um contrato de parceria para uma gravadora, a So So Def
Recordings, com a Sony e a Columbia.

Eu me inspirei bastante no trabalho que ele fez em “Just Kickin’ It” (somente
relaxando) com o novo grupo de garotas também de Atlanta – Xscape. Foi
intencionalmente “subproduzido”; as músicas que ele escolhia não eram super
editadas no estúdio – exatamente o que eu estava procurando. Assim que eu
ouvi essa música, eu senti que a gente deveria trabalhar juntos. O Jermaine –
170
também conhecido como JD, também conhecido como Jermash (é assim que
eu o chamo) – e eu instantaneamente nos encaixamos criativamente. Como
produtores, nós dois tínhamos uma disciplina intensa no estúdio, mas também
podíamos abordar a música com abandono, sem medo de tentar coisas novas.
A gente conseguia se concentrar e fluir juntos. Era uma relação rara e nós
sabíamos disso.

A nossa primeira colaboração foi com “Always Be My Baby,” no Daydream.


Foi a primeira música que escrevemos juntos, mas foi como se nós já
tivéssemos feito isso um milhão de vezes antes. Sentamos no estúdio e
começamos a trabalhar como um pintor diante de uma tela em branco –
sonoramente orgânico. Com o talentoso Manuel Seal nos teclados, nós criamos
essa música clássica e maneira, mas cativante.

Para deixar a gravadora feliz, eu tinha que criar várias versões de um single,
incluindo uma que fosse mais agitada e simples, sem todos os improvisos e
“inflexões urbanas”. Para eu me sentir feliz e para eu me certificar que uma
música que eu gostava estava apropriada para os frequentadores de boate
(que sempre me davam vida nova), eu dediquei um tempo para fazer remixes,
às vezes vários de uma mesma música. Frequentemente, eu escrevia e
cantava tudo novamente em vez de usar partes do original – especialmente
quando eu trabalhava com o David Morales. A gente refazia uma música
completamente, muitas vezes trabalhando até tarde da noite, que é quando eu
podia ter um tempo só para mim. O David vinha ao estúdio e eu deixava claro
que ele poderia fazer o que ele quisesse com a música. Eu bebia algumas taças
de vinho e aí a gente ia aonde quer que o espírito nos levasse – quase sempre
músicas dançantes de alta energia com grandes vocais totalmente novos. Foi
uma maneira pela qual eu encontrei liberação enquanto eu ficava confinada em
Sing Sing.

Eu tive uma ideia de remixar “Always Be My Baby” e eu pedi ao JD para


trazer o grupo de meninas da Xscape e uma grande e empolgada jovem rapper
de Chicago chamada Da Brat que tinha um álbum de sucesso, “Funkdafied”
(super maluco), que o JD havia produzido, para o meu estúdio. Sabendo como
o JD e eu trabalhamos bem juntos, eu imaginei que a gente poderia fazer um
remix e gravar um clipe legal em estilo documentário, tudo no mesmo dia. Foi
um lance eficiente. Era super importante garantir que a música fizesse sucesso;
você tinha que ser estratégico em suas escolhas criativas. Nós escolhemos
“Tell Me If You Still Care” da SOS Band como sample, supondo que seria
aceitável para um público crossover, e com o rap da Da Brat na música, isso
poderia atrair o público de hip-hop.

171
O JD aceitou. Eu sabia como teria que ser o som do remix, com partes de
backing vocal no estilo Supremes. Eu tive que cantar tudo de novo porque a
música estava em um tom diferente. Mas porque o Jermaine era tão adepto do
estúdio e tão em sintonia com todos os nossos estilos, eu sabia que ele daria
um jeito da coisa acontecer. O dia de gravação foi marcado – a So So Def viria
para Sing Sing.

Conforme você se aproxima do terreno da Sing Sing, um posto de


segurança fica à direita, ocultado por árvores. Dentro, havia várias telas
conectadas a todas as câmeras em toda a casa e na propriedade. O JD subiu
o longo caminho de acesso em direção à enorme casa que se erguia como um
castelo coberta por uma espessa neve fofa e brilhante. Ele não estava
preparado para tamanha grandeza. Eu não percebia a magnitude que eu vivia
até olhar para o rosto do JD quando ele saiu do carro e notar o seu olhar. A
dimensão e opulência da mansão sugeriam não apenas “estrela da música”,
mas uma outra estratosfera. Sing Sing era imensa. Era a representação física
do poder e influência combinados do Tommy e de mim, um casal poderoso da
indústria musical. E naquela época, nós éramos o casal mais poderoso da
indústria da música. Quando ele chegou à enorme porta da frente, o Jermaine
parecia o Richard Pryor na fantasia musical The Wiz (PT-BR: o mágico
inesquecível). Honestamente, todos nós parecíamos um grupo de crianças
brincando em um reino de conto de fadas. Mas, na verdade, era mais como um
dia de visita à “Casa Grande”. A alegria foi temporária.

Foi revigorante e um alívio muito bem-vindo receber um grupo de novos


artistas na minha casa para criar algo que a gente amaria e respeitaria. Artistas
que tinham a minha faixa etária e que trabalhavam no mesmo ramo que eu,
mergulhados na música e na cultura hip-hop – e estávamos prontos para
produzir uma música de sucesso. Apesar de sermos todos muito jovens,
coletivamente, a gente valia centenas de milhões de dólares em vendas de
CDs. Mas depois que se passava pelos portões de Sing Sing, isso não queria
dizer muita coisa. Agora estávamos todos sob vigilância. O JD, as meninas da
Xscape e a Da Brat notaram a presença excessiva de guarda-costas e
seguranças, mas não ficou imediatamente claro para eles exatamente quem
ou o que eles estavam protegendo.

O Jermaine era tão focado e sério que ele foi direto para o estúdio para
entrar no clima e se organizar. Ele se sentou ao painel, no comando total, como
o capitão de uma nave espacial. Enquanto ele trabalhava na batida, as garotas
do Xscape e eu vibrávamos e conversávamos sobre como a parte de backing
vocal seria gravada. Foi provavelmente a primeira vez que eu recebi cinco
172
mulheres praticamente da mesma idade que eu na minha casa. O grupo
Xscape era composto pela Kandi Burruss, Tameka “Tiny” Cottle, Tamika e pela
LaTocha Scott. Com os seus sofisticados penteados de Atlanta, lábios
brilhantes e roupas esportivas extragrandes, elas eram super estilosas e
transmitiam totalmente o visual glamouroso, mas descontraído, das mulheres
do hip-hop durante aqueles anos. O som e o estilo delas eram exatamente a
vibe certa para a música remix e para o clipe. Eu queria que todos nós
parecêssemos leves e genuínos, não manipulados pelos “executivos de
desenvolvimento artístico”.

Do estúdio dava para ver as enormes janelas francesas, que levavam à


área da piscina coberta com os seus tetos altos de museu. Em dias de sol, o
reflexo das nuvens flutuava na superfície da água a partir da piscina externa,
que ficava além das paredes. Da piscina externa dava para ver o lago e, de lá,
em uma noite limpa, dava para ver as luzes cintilantes de Manhattan à
distância. Nós ficamos na sala de mármore com a piscina, jogando baralho,
bebendo, contando piadas – quase como amigas de verdade.

Mas falemos da Da Brat agora. A energia dela era irresistível; a gente se


deu muito bem na mesma hora. Eu era muito reservada assim que eu conhecia
alguém naquela época. Eu tinha ficado tímida e levava muito tempo para
confiar (e ainda levo muito tempo), mas a Brat quebrou a parede do meu
passado de medo, no primeiro dia. Nós tínhamos espíritos semelhantes e como
os de uma criança, mas apenas a Brat exibia destemidamente a sua alma de
menina, enquanto eu escondia a minha desesperadamente. Muito esforço,
estratégia e dinheiro foram usados para criar a minha fachada de princesa
clássica, mas a Brat, com todo o seu espírito adolescente irreverente, usando
um grande casaco fofo e pequenas tranças e fivelas, pôs um fim a essa farsa.
Naquela época, a minha vida era tão controlada pelo Tommy e os seus
comparsas que eu quase não conseguia mais enxergar. Mas a Brat, com a sua
espontaneidade, ousadia e por ser fodona, percebeu a menininha no meu
interior imediatamente e a sacudiu para acordar.

A Brat era da zona oeste de Chicago e ficou claramente hipnotizada pela


extravagância de Sing Sing. Ela não se sentiu nem um pouco intimidada; ela
caminhou direto pela porta e disse, “Caralho!” Eu fiz um tour com ela pela casa.
Ela nunca tentou conter a sua admiração enquanto a gente ia de cômodo em
cômodo. Mas nós não estávamos sozinhas – os seguranças nos seguiam como
uma sombra aonde quer que a gente fosse. Quando a gente ia para algum
lugar, eles iam também. Naqueles últimos quatro anos, eu vinha trabalhado
constantemente e em um nível muito intenso. Eu tinha muitas decisões a tomar,
muitas pessoas na folha de pagamento contando comigo e me procurando por
respostas. Se eu tinha algum tempo “livre”, eu passava com o Tommy ou com
173
pessoas da idade dele, pessoas que estavam na folha de pagamento dele.
Fazia muito tempo que eu não me divertia de verdade e a Da Brat era uma
pessoa que não precisava de ninguém para poder se divertir.

Eu só queria desopilar, mas eu sabia que nós estávamos sendo observados


e ouvidos. Havia câmeras e dispositivos de gravação em toda a casa. Eu não
tinha certeza de onde todos eles tinham sido colocados – mas eu sabia de pelo
menos um lugar onde não havia nada.

A nossa próxima parada da tour foi o quarto principal. A Brat era tão
engraçada; ela deu um grito quando viu a tela gigante da televisão subir, como
se fosse um truque de mágica, de um rack aos pés da nossa cama sofisticada.
A Brat não era uma garota feminina – ela estava usando jeans extragrandes,
uma camisa polo e botas Timberland – mas eu fiz um grande alarde querendo
mostrar a ela o meu closet inspirado na Coco Chanel e eu insisti que ela visse
a minha enorme coleção de sapatos chiques. Eu sabia que se eu a levasse até
o cômodo dos sapatos, os seguranças não nos veriam; fui eu quem tinha
projetado e eu tinha certeza de que não havia câmeras ou aparelhos de escuta
entre os meus sapatos Manolos. Eu falava em voz alta sobre sapatos de salto
agulha enquanto eu fechava lentamente a porta.

Sentamos no chão do meu cômodo de sapatos e relaxamos um pouco. Nós


duas somos arianas, nós duas somos muito bobas, e nós duas acreditamos em
um Deus incrível. Eu estava me divertindo muito com a Brat, mas eu sabia que
a gente não poderia ficar escondidas por muito tempo; certamente os
seguranças ficariam desconfiados e exporiam o meu único cômodo seguro da
casa.

Eu nunca sabia quem poderia estar ouvindo, então eu sussurrei para a Brat:
“vamos comer batatas fritas?” Em qualquer outra realidade, isso teria sido uma
sugestão trivial, mas na minha, estava prestes a se tornar uma travessura em
grande escala.

Quando nós saímos do cômodo, eu coloquei o dedo na boca e apontei para


a parede, dando a ela o sinal para ficar quieta e me seguir. Eu inventei na hora
que eu iria mostrar a ela o resto da propriedade, aí eu disse que eu queria
mostrar a ela os carros rapidamente. Nós fomos para a garagem. Dentro havia
uma frota de carros. Vários deles eram meus, a maioria dos quais eu nunca
dirigi, em parte porque sempre havia um motorista dirigindo para mim. Eu
apontei para a Mercedes conversível preta e disse a Brat para entrar
rapidamente. Eu sempre deixava as chaves dentro do carro, então, em questão
de segundos, eu liguei o motor. Eu engatei a marcha e contornamos o beco
sem saída, depois descemos rapidamente o caminho de acesso à garagem e
174
saímos para a estrada aberta. De repente, lá estava eu: voando pela rua no
meu carro esportivo, com a minha nova e irada amiga, rindo super alto sob o
forte sol da tarde de inverno. Foi emocionante. A Brat e eu fugimos da Casa
Grande!

Enquanto nós 2 vivíamos o nosso momento Thelma e Louise32 longe da


casa, a fuga de Alcatraz não estava correndo tão bem quanto esperado na
Mansão dos Contos de Fada. Eu entendia que possuir seguranças era
necessário, mas será que era necessário que todos eles fossem brancos,
tivessem olhos azuis e carregassem armas semiautomáticas? Eles estavam
enlouquecendo. Antes de pegarmos a rua para chegar no Burger King, o
telefone da Brat começou a tocar. Eu conseguia ouvir o JD gritando do outro
lado da linha: “Ei, Brat, podem voltar; eles estão ficando loucos!”

A Brat riu ao telefone e respondeu: “Não sou eu quem está dirigindo; é a


Mariah quem está!” Mas o JD estava claramente aborrecido.

“Isso não é engraçado, porra,” ele disse. “o Tommy está ficando maluco; ele
fez todo mundo procurar por vocês; eles estão armados da cabeça aos pés!”

A Brat respondeu: “Caramba, nós só vamos comprar batatas fritas, JD! Se


a Mariah quer comer batatas fritas, é isso que nós vamos fazer!” Ela desligou
o celular e fomos para o Burger King.

Por cerca de vinte minutos, enquanto a Brat e eu ficamos sentadas no carro


comendo batatas fritas e contando piadas, eu me deliciei com a simples
emoção de ser jovem. Eu nunca esquecerei disso. O Jermaine deve ter ligado
a cada cinco minutos, implorando para que a gente voltasse. De zangado e
aborrecido, ele passou a ficar nervoso e a ter medo. A Brat rapidamente
percebeu o quanto a nossa fuga momentânea tinha sido séria. Toda vez que o
celular tocava, ela me olhava com crescente preocupação e tristeza. A gente
só estava a um quilômetro de distância, e as pessoas estavam entrando em
pânico.

Ela disse algo como: “Isso não está certo. Você tem que se impor, Mariah.
O Jermaine, as meninas do Xscape – todos nós estamos aqui por sua causa.
Você vendeu milhões de CDs, garota. Você mora em um tremendo palácio.
Você tem tudo, mas se você não tem liberdade de ir à porra do Burger King

32 Thelma e Louise: o filme conta a história de duas mulheres, Thelma, interpretada por
Gina Davis e Louise, interpretada por Susan Sarandon, que, cansadas da vida que levavam,
decidem fugir e iniciar uma viagem inesperada e cheia de surpresas. Este filme, lançado nos
EUA em 1991, tem a direção de Ridley Scott, e foi vencedor do Oscar de Melhor Roteiro
Original e do Globo de Ouro de Melhor Roteiro.
175
quando quiser, você não tem nada. Você precisa cair o fora de lá.” Ela não
estava rindo desta vez. Se a Da Brat, uma rapper de dezenove anos do West
Side, teme por você, é porque a situação deve ser terrível, dahling.

Quando chegamos à propriedade, havia mais de dez seguranças do lado


de fora, preparando dois grandes SUVs pretos para fazer uma busca. Eles me
pararam do lado de fora antes que eu pudesse dirigir até a garagem, como se
eu fosse uma fugitiva cruzando a fronteira. Eu fui prontamente levada de volta
para casa e de volta ao estúdio – de volta à minha torre, à minha prisão.

O JD estava visivelmente abalado. A minha travessura e pequena fuga


tiveram consequências reais para ele. Eu não tinha levado o meu celular, então
os seguranças não tinham como entrar em contato comigo. Eles iam pagar caro
ao Tommy por não terem me vigiado como deveriam. Enquanto o Jermaine
estava no estúdio, se concentrando em definir o ritmo da música, os
seguranças invadiram o estúdio e o interrogaram, com as suas armas em
punho em plena luz do dia. Suponho que eles acharam que, como o Jermaine
era o produtor, e a Brat era artista dele, então ele estava no comando, ele era
o responsável. Gritaram com ele: “Onde ela está? Diga-nos onde ela está!”
Claro que ele não fazia ideia de onde a gente estava. Ele estava trabalhando.
Ele estava no meu estúdio. Esta foi a primeira vez que ele foi na minha casa.
Ele tinha apenas vinte e três anos.

Depois que o Tommy se certificou que eu tinha retornado em segurança, a


situação se acalmou. A Brat enrolou um baseado enorme, mas só Deus sabe
que ela não podia fumar perto de mim, então ela ficou segurando o baseado
durante toda a filmagem, como um objeto de conforto, e começou a fazer as
suas rimas de rap para o remix. Os nervos dela estavam à flor da pele agora
também. Além disso, ela provavelmente se sentiu culpada por termos causado
tanto drama enquanto ela fazia a sua primeira grande colaboração de rap
comigo. Mas quando o microfone ligou e a câmera começou a filmar, a Da Brat
arrasou. A performance dela foi alegre e irada, onde ela brincava com
referências inteligentes e ritmos sofisticados dentro do espaço da música:

Quem é que toca a sua caixa de música


E destrói a sua estrutura
Você tem fantasias quando me vê como a sua namorada dos sonhos
Eu fodo com as suas emoções desconectadas porque
Você está sonhando acordado

– “Always Be My Baby (Remix)”

176
Conseguimos: um remix, um clipe e uma fuga da prisão, tudo em um só dia.
Vocês nunca ficariam sabendo pelo clipe que eu dirigi que nós estávamos
cercados por seguranças armados. A tensão foi eliminada na edição, eu era
mestre nisso.

177
EFEITOS COLATERAIS

Eu era uma menina, você era “o homem”


Eu era muito jovem para entender
Eu fui ingênua
Eu apenas acreditei em
Tudo que você me dizia
Você disse que era forte, que ia me proteger
Então eu descobri que você era fraco
E que ficava me mantendo sob controle
Porque você tinha medo que eu me tornasse muito
Mais do que você pudesse suportar
Brilhando como um lustre
Que decorava cada canto da casa
Dentro do inferno particular que nós construímos
E eu lidava com isso como uma criança
Eu gostaria de poder voar para longe
Mas em vez disso, eu segurei as minhas lágrimas
Porque eu sabia que se eu começasse, eu choraria pelo resto
da minha vida com você
Eu finalmente criei forças para ir embora, eu não me arrependo
mas eu ainda vivo com os efeitos colaterais

– “Side Effects”

Quando o Tommy sugeriu que nós fizéssemos terapia de casal, eu fiquei


surpresa. Como esperado, ele me disse que teria que ser com a terapeuta
dele, por quem ele era acompanhado há anos. No entanto, foi um enorme
passo para nós dois. As nossas carreiras e, consequentemente, o nosso
casamento, estavam constantemente no centro das atenções. Mas
ninguém jamais havia presenciado o horror que era o nosso
relacionamento. Eu não tinha ninguém em quem eu pudesse confiar para
falar sobre como eu estava vivendo – ou melhor: sobre como eu não estava
vivendo. Eu acreditava que eu estava carregando este fardo porque eu
sabia compor, cantar e produzir as minhas canções e porque eu tinha me
tornado famosa e ganhado muito dinheiro além do que se pode imaginar,
eu não merecia ter felicidade pessoal também. Eu realmente acreditava que
tudo de bom na minha vida tinha um preço, e que o controle do Tommy era
o preço que eu tinha que pagar pelo meu sucesso.

178
Sinceramente, eu só queria ter cinco minutos de paz – eu só queria ter
a oportunidade de poder descer as escadas, de ir até a minha própria
cozinha para poder comer alguma coisa sem ser ameaçada pelo interfone:
“O que você fazendo?” Além disso, eu não confiava em ninguém – até então
eu não mantinha contato com a minha família, e todos ao meu redor
estavam ligados ao Tommy e tinham medo dele. Eu sabia que qualquer
coisa que eu dissesse não iria causar nenhum tipo de efeito, e eu acabaria
sofrendo nas mãos dele.

Umas manchas semelhantes a urticária começaram a surgir na minha


pele. Eu fui ao dermatologista, que me garantiu que a minha pele, que até
então nunca tinha tido manchas, estava tendo uma reação devido a um
estresse muito grande. Me sugeriram que eu mudasse a minha alimentação
e que eu passasse a ter uma nova rotina de limpeza para ajudar a aliviar
os sintomas. Quando eu disse ao Tommy o diagnóstico do médico (não era
um bom negócio que a sua artista recordista de vendas deixasse de
trabalhar), ele deu um grito, “Estresse?! E que porra é essa que está te
deixando estressada?” Ai ai, será que eu preciso mesmo dizer?

A terapia veio em boa hora. A nossa terapeuta era uma senhora judia e
gentil; ela tinha os cabelos curtos de cor âmbar e com olhos atentos. Ela
tinha um consultório aconchegante em uma casa clássica de Westchester.
Eu gostei dela mais do que eu imaginei, porque eu achava que ela ia “tomar
partido pelo Tommy”, mas ela era super imparcial e uma verdadeira
profissional. E ele a respeitava. (O que era bastante importante). Naquele
momento da minha vida, eu não me relacionava muito com outros
profissionais cujos meios de vida não estivessem ligados às minhas vendas
de discos. Eu não me sentia dominada pela ansiedade em pouquíssimos
lugares: primeiro, eu não ficava ansiosa no estúdio de gravação e agora
tinha também o consultório da nossa terapeuta.

Embora eu me sentisse “segura” em certos lugares, a simples presença


do Tommy deixava o ar pesado. Às vezes eu ficava gravando no estúdio,
compondo e trabalhando com alguns produtores ou outros artistas, e ele
vinha me pegar às 18h ou 19h, como se eu fosse uma “garota de escritório”
que trabalha das nove da manhã às cinco da tarde e não uma cantora que
tem o seu próprio processo criativo e que não se pode cronometrar. (Sem
falar que eu sou uma artista que colabora com vários rappers e produtores
de hip-hop, muitos dos quais – assim como eu – não têm noção de tempo,
especialmente o turno da manhã.) Assim que ele entrava, a tensão era
tanta, que o processo criativo não fluía mais; todas as risadas cessavam, e
todos nós encolhíamos um pouco para dar espaço pela pressão que o
acompanhava. E embora eu não possa dizer que eu tenha me sentido
179
completamente segura ou igual a ele no consultório da terapeuta (ou em
qualquer outro lugar), era o mais próximo que a gente tinha de um espaço
neutro onde o Tommy e eu poderíamos tentar nos comunicar.

Foi uma grande descoberta eu saber que ela ouvia a nós dois de forma
objetiva. E ela acreditava em mim. Fazia anos que o Tommy era
acompanhado por ela, algo semelhante às cenas do seriado “Sopranos” em
que o personagem Tony Soprano é acompanhado pela psiquiatra Jennifer
Melfi, exceto que a nossa terapeuta era mais uma figura materna do que
uma acadêmica sexy. Ela pode ter sido a única pessoa a ter visualizado
algo na psiquê dele e que poderia compreender completamente as
condições repressivas e paranóicas que me foram impostas enquanto
estávamos casados e morando sob o mesmo teto. Ela foi a primeira a
reconhecer e a mencionar o abuso em que eu vivia. Eu já sabia que o meu
espírito estava sendo destruído, mas foi ela quem identificou os danos que
estavam me afetando emocionalmente.

Depois de fazer algumas sessões, ela pedia ao Tommy que fosse se


sentar e me esperar dentro do carro, para que ela e eu pudéssemos relaxar
e falar honestamente. Uma vez, enquanto estávamos sozinhas, eu
perguntei a ela, aliás, eu estava implorando: “Por que ele não me deixa ir
ao spa ou ao cinema, ou me deixa fazer qualquer coisa? Eu não fiz nada
de errado!”

Ela fez uma pausa e disse, com o seu sotaque seco e prático de Nova
Iorque, “Querida, não é normal. Por que você está agindo como se
estivesse lidando com uma situação normal? Simplesmente não é normal!”

Mas eu não tinha nenhuma referência para saber o que era normal ou
não. O nosso casamento já parecia um prédio prestes a desabar muito
antes da gente fazer terapia.

Depois de oito anos de relacionamento, a minha vida havia se tornado


igual a um suspense psicológico. Tinha chegado ao ponto em que a própria
presença do Tommy mais parecia uma ocupação militar. Andar na ponta
dos pés e tentar me proteger fazia parte da minha rotina. Eu nunca pensava
que eu seria forte o suficiente para me separar do Tommy. Eu pensava que
eu simplesmente teria que ficar lidando com isso. Eu rezava para que ele
percebesse como ele estava me sufocando, e que ele fizesse um esforço
para mudar. Alguns dias eu só tinha vontade de ser como o Peter Pan e
sair voando para bem longe dali. Na maioria das vezes, eu tentava aceitar
180
o que quer que ele fizesse comigo, por mais absurdo que fosse, na
esperança de que ele se tornasse menos rígido. Ser casada com ele
realmente era o equivalente a ter um pai severo que age na base do medo
e que controla tudo o que você faz. Eu tinha esperança de que ele iria
relaxar e de que deixaria eu ser quem eu sou, só assim a gente teria uma
chance. Era a nossa única chance.

Eu escrevi na música Butterfly o que eu esperava que o Tommy pudesse


enxergar, e dizer, para mim:

Cegamente eu imaginava que


Eu poderia te manter presa
Agora eu entendo que para te ter
Eu devo abrir as minhas mãos
E observar você voar
Abra as suas asas e se prepare para voar
Porque você se tornou uma borboleta
Oh, voe desamparadamente para o sol
Se você tiver que voltar para mim
Isso significa que fomos feitos um para o outro
Então abra as suas asas e voe
Borboleta

Na mesma hora, a terapeuta do Tommy se posicionou ao meu favor e


disse que eu deveria ter mais independência. Ela apoiou a ideia de que eu
precisava criar alguns limites para mim e me encorajou a ir a lugares por
conta própria. Parecia um milagre – eu nunca tinha tido um aliado antes.
Ela recomendou que a gente fizesse coisas por etapas, como se fosse uma
liberdade condicional. Mas, ao contrário da liberdade condicional, o objetivo
não era para eu ser reintegrada à sociedade, mas para moderar o
comportamento do Tommy, já que ele era tão extremo. Ele tinha controle
sobre mim como artista. Ele tinha controle sobre a minha vida pessoal. Ele
tinha controle sobre todos na minha vida profissional. E embora eu fosse a
maior artista da gravadora, ele ainda era a pessoa mais poderosa da minha
vida e, aparentemente, na vida de todo mundo. Todo mundo morria de
medo do Tommy – os executivos, a gerência, os advogados, outros artistas
– todo mundo.

Após uma feroz negociação com a terapeuta, nós concordamos que o


primeiro passo para a independência era que eu finalmente pudesse fazer
aulas de teatro. Há anos que eu queria fazer aulas de teatro. A música é
como um monólogo, então eu sabia que já era um começo e que eu poderia
usar um leque de emoções e experiências de vida como complemento. Mas
181
eu anseava em aprender algum ofício, como forma de explorar,
desenvolver e disciplinar uma outra paixão que amadurecia dentro de mim.
Tal como aconteceu com a música, desde muito cedo eu era obcecada por
filmes e muitas vezes memorizava falas como uma fuga. Atuar era um
sonho e algo que eu sentia que eu precisava fazer. O Tommy “concordou”
que eu fizesse aulas particulares de teatro – como era de se esperar,
novamente, com um professor que ele conhecesse e aprovasse. Como a
terapeuta, a professora de teatro era muito qualificada e já tinha trabalhado
com atores incríveis de nível internacional.

A professora de teatro era uma mulher roliça que parecia gostar


bastante dos seus seios fartos e do seu corpo carnudo. Ela se movia
livremente. Ela se movia pelos cantos com uma indumentária no estilo da
cantora Stevie Nicks e fazia grandes gestos com os seus braços, mesmo
quando conversava casualmente. Ela era em parte hippie mãe natureza,
em parte princesa privilegiada, em parte aspirante a guru, e eu gostei dela.

Ela ensinava em seu apartamento boêmio e luxuoso no Upper West


Side, em Nova Iorque. Assim como ela, o espaço era eclético e acolhedor.
O espaço dela tinha cheiro de incenso Nag Champa, e o que mais me
impressionou era porque a gente se acalmava na mesma hora, e naquela
época, eu não me acalmava tão facilmente.

Em nossa primeira sessão, ela me pediu para que eu deitasse em um


tapete no chão e fechasse os meus olhos para fazer alguns exercícios
básicos de relaxamento e de respiração profunda. Sentada numa cadeira,
ela me instruia a respirar profundamente e que eu tentasse relaxar.
“Relaaaaaaaaxe.” (Falar é fácil, difícil é fazer, senhora.)

“Feche os seus olhos. Respire. Respire.” Eu não estava conseguindo,


mas eu ouvia e tentava seguir as instruções dela. “Relaxe, Mariah. Relaxe
os seus músculos; respire e relaxe o seu corpo.” Foi então que eu percebi
que os meus ombros estavam chegando perto das minhas orelhas de tão
tensa que eu estava. Mesmo deitada no chão, eu estava em uma postura
tensa, como uma resposta de luta ou fuga33 – principalmente de luta; eu
estive me protegendo por muito tempo.

"Respire. Respire. Entre em contato com você mesma,” ela dizia


calmamente. Entrar em contato comigo mesma? Eu não sabia o que ela

33 Resposta de luta ou fuga: É uma reação do organismo ao perigo ou ameaça onde o


nosso organismo se prepara para lutar ou fugir. Ambas as reações são legítimas e buscam
a autoproteção, estando intimamente ligadas ao instinto natural de sobrevivência.
182
quis dizer com isso.

Sentindo que eu estava resistindo, ela disse: “Vá para um lugar onde
você se sente segura”.

Nada.

“Você tem um lugar onde você se sente segura, Mariah? Vá para lá.
Pode ser um lugar que tenha a ver com a sua infância.”

Nada.

“Imagine que você é uma criança e que tem seis anos. Vá para lá”

Eu estava na delicatessen. Não é seguro.

“Talvez você esteja um pouco mais velha. Vá para lá”

Eu voltei ao barraco. Não é seguro.

Ela continuou insistindo, achando que certamente deveria haver um


lugar. “Pode ser uma situação mais recente. Vá para um lugar seguro.”

Eu não estava sentindo nada em lugar nenhum. Eu só conseguia sentir


o chão duro e liso encostando nas minhas costas enquanto eu procurava
algum lugar no meu próprio vazio. Eu estava procurando por um lugar na
minha mente e esperando que eu tivesse uma visão reconfortante. Não
havia nada. Só havia um grande vazio. Eu abri os meus olhos e olhei para
o teto. De repente, eu fiquei com frio e me senti sozinha. Eu percebi que
não havia lugar nenhum, dentro ou fora, onde eu me sentia segura.

Em seguida, a minha professora de teatro perguntou: “Como você está,


Mariah?” Uma onda de tristeza percorreu o meu corpo e eu comecei a
chorar sem parar. Todo o meu ser estava ofegante, e eu soluçava; eu não
tinha certeza se algum dia eu conseguiria parar de chorar

Por fim, a tempestade de lágrimas diminuiu. Eu acho que eu nunca


chorei tão abertamente assim durante todo o meu relacionamento com o
Tommy. Chorar com ele teria exigido muita exposição do que eu estava
sentindo, e o custo emocional seria muito alto. Ele certamente me puniria
se eu chorasse. Era ele quem chorava durante algumas das nossas piores
brigas. E eu acabava consolando ele, abandonando completamente as
minhas necessidades, a minha dor. Era uma manipulação cruel.
183
Não me diga que você se sente mal por ter me machucado
Quantas vezes eu tenho que ceder?
Quantas batalhas você tem que ganhar?
Oh, não implore por perdão hoje à noite
Hoje à noite, porque eu não aguento mais

–“Everything Fades Away”

No entanto, o exercício que me fez chorar me deu um alívio, embora


tenha sido muito pouco. Por tanto tempo eu vinha guardando esse
sentimento. Eu comecei a respirar, um pouco.

A minha professora de teatro pairou sobre mim, e eu conseguia sentir o


cheiro de óleos essenciais, patchouli talvez, saindo dos seus poros. Ela
colocou as mãos nos meus ombros e começou a empurrá-los suavemente
para baixo em direção às minhas costelas.

“Deixe de lado a postura de luta e comece a respirar,” ela sussurrou. Eu


não tinha percebido que o meu corpo tinha ficado tão tenso. A minha crise
nervosa a encorajou; eu havia liberado alguns dos meus sentimentos
reprimidos. Agora ela disse que queria que eu “soltasse o meu corpo”. Eu
cambaleei um pouco quando eu me levantei para poder vê-la demonstrar o
exercício. Ela fechou os olhos e começou a girar os ombros de um lado
para o outro, deixando a cabeça cair para trás e girando a cabeça junto com
os ombros. Então ela começou a girar o quadril dela. Ela ergueu os braços
e começou a agitá-los iguais aos bonecos infláveis que a gente vê em lava
jatos. “Soltando o corpo!” ela cantava. “Vamos, solta o corpo, Mariah.” Eu
estava observando ela fazer a sua dança errática e extática e eu
simplesmente não conseguia dar um passo na fé. Assim como eu não
consegui dançar para a minha vó Addie, para provar que eu era negra, eu
sabia que eu era muito negra para fazer uma dança interpretativa com ela,
mesmo que fosse em uma aula particular.

O que eu consigo me lembrar com mais clareza foi quando a minha


professora de teatro me disse que eu tinha dificuldade em acessar a minha
raiva. Eu me lembrei de algo que a minha terapeuta tinha me dito uma vez:
muitas vezes a tristeza é a raiva internalizada. É claro que eu guardava tudo
dentro de mim – de que outra forma eu teria sobrevivido? Eu percebi que
eu não conseguia expressar raiva porque não me permitiam fazer isso.
Com quem eu estaria segura se eu mostrasse que eu estava com raiva?
Não com o meu irmão, certamente não com a minha irmã, nem com o
Tommy, nem com a minha mãe, nem com ninguém. Não havia uma pessoa
segura e nenhum lugar seguro em minha vida. Isso nunca havia existido.
184
A menina-mulher desmoronando por dentro
Estava prestes a desistir
Ainda bem que eu acordei a tempo

–“Close My Eyes”

As investidas do Tommy eram extremas. Após inúmeras discussões


dolorosas e dramáticas, e após eu começar uma genuína busca por paz de
espírito, o Tommy e eu começamos a cogitar a possibilidade de nos
separarmos temporariamente na terapia. Foram necessários muito esforço
e análise interior. Eu estava bastante traumatizada. Os problemas
emocionais que eu tinha com o Tommy eram sem fim e eu ainda não fazia
ideia das consequências desses traumas, mas era extremamente
importante que a gente pudesse chegar num ponto em que a dor pudesse
ser aliviada. Ele tentava me aprisionar de diversas formas e eu realmente
não sabia como eu conseguiria escapar dele enquanto ele estivesse vivo. Ele
era bastante vingativo quando queria e o seu poder de influência era de
longo alcance. Eu sentia realmente estar correndo perigo. Com um pouco
de apoio e montando algumas peças, consegui ver claramente que morar
com ele estava me matando aos poucos. Eu precisava de um lugar em que
eu pudesse respirar.

Eu tinha certeza de que eu precisava escapar da fúria do Tommy para


que eu pudesse acessar à minha, e eu precisaria de ajuda para isso e de
bolar uma estratégia. Porque quando a gente fazia terapia, não tinha que
ser eu a única a “trazer esse assunto à tona”. Foi a nossa terapeuta quem
falou para o Tommy que ele ia acabar me perdendo para sempre se não
tentasse me dar um pouco de espaço. Foi decidido, então, que dar um
tempo no relacionamento era o paliativo necessário. Ela estava tentando
convencê-lo a me deixar sair com outras pessoas, por tudo que há de mais
sagrado.

Depois de muito espernear e de muita confusão, o Tommy acabou


aceitando o conselho da terapeuta e aceitou também tomar algumas
medidas para ver se a gente conseguiria continuar a viver juntos. Me lembro
dela, com seu jeito maternal, dizendo: “Isso não é justo, Tommy, a Mariah
tem que começar a sair sozinha. Você a está sufocando.” Eu estava prestes
a morrer sufocada e eu precisava respirar. Eu não estava pedindo muito,
eu só queria passar um pouco de tempo com os meus amigos. A minha
vitalidade estava sendo sugada aos poucos, e se continuasse, o
relacionamento iria acabar destruindo o pouco que havia sobrado da minha
alma.
185
O prédio que a minha professora de teatro morava era conectado ao
prédio vizinho por um corredor. Dava para acessar o prédio vizinho
entrando pela porta da frente do prédio dela, o que me fazia lembrar da
abertura do seriado de comédia dos anos 60 Get Smart (PT-BR: Agente 86).
A gente não precisava sair de um prédio para entrar no outro, e para isso,
a gente só tinha que passar por uma porta que ficava na lateral e andar por
um corredor de concreto, atravessando um beco fechado nos fundos.

Então, em segredo, eu acabei alugando um pequeno apartamento no


prédio ao lado do dela. Junto com a administração do prédio, e usando um
nome falso, eu consegui dar um jeito de trazerem coisas para mim. Eu
mobiliei o apartamento somente com um sofá-cama para que eu pudesse
dormir – sozinha. Eu falava para o Tommy que eu tinha ficado cansada
com as aulas de teatro e que eu ia dormir no apartamento da minha
professora, mas em vez disso, eu ia para o meu próprio apartamento e saía
de manhã pela porta do prédio dela. Malandragem, eu sei, mas eu tinha
chegado no meu limite! Tinha sempre alguém me vigiando. Foi um instinto
básico de sobrevivência.

Um tempo depois, o meu lugar de refúgio acabou se tornando o meu


escritório pessoal e o meu estúdio particular. Mandei colocar espelhos
numa simples parede, e foi lá que eu aprendi as melhores técnicas da minha
carreira de como usar bem o meu corpo, com a incomparável Debbie Allen.
A Debbie entrou em contato comigo, disse que amava as minhas músicas
e que gostaria de trabalhar comigo. A Debbie foi um presente enviado por
Deus... e quanto talento! Ela analisava cada movimento do meu corpo e me
ensinava como me alongar e outras técnicas de fácil entendimento de como
me soltar. Ela trabalhava comigo na coreografia das apresentações e criou
passos que davam certo para mim, como por exemplo, dançarinos
executando seus passos ao meu redor como forma de apoio. E era disso que
há muito tempo eu estava precisando – de uma pessoa que tivesse
paciência comigo enquanto eu descobria o meu próprio corpo.

Fazia tempo que eu me sentia totalmente desconectada com o meu corpo


e eu só conseguia me soltar completamente ouvindo música. Eu não fazia
ideia que eu mexia tanto as minhas mãos quando cantava até assistir as
minhas primeiras apresentações de TV! E foi também a maravilhosa Kiki
Shepard quem me fez perceber que eu realmente não sabia andar de salto
alto. Ela me puxou para um canto e me fez subir e descer as escadas ao
lado do palco do teatro Apollo até eu aprender. Arrasou.

Anjos da guarda existem de verdade – e com certeza a Debbie Allen foi


um anjo para mim.
186
A terapeuta arquitetou um plano para que eu pudesse sair socialmente
pela primeira vez sem o Tommy. Isso foi super importante. Mas que foi algo
novo para mim também, porque de uma infância complicada e conturbada,
eu fui parar numa indústria de música traiçoeira e num casamento tóxico e
problemático. E eu mal tinha vinte e poucos anos na época. Mas eu estava
finalmente começando a sentir um tipo diferente de coragem – coragem
essa que eu teria não apenas para proteger as minhas músicas, mas
também a minha própria vida.

O Tommy foi taxativo em seu parecer de que eu não poderia atuar; acho
que ele tinha medo de eu conhecer atores ou diretores atraentes ou algo
assim em estúdios glamorosos de filmagem. O fato de ele ter aceitado eu fazer
aulas de teatro (porque ele achava que os professores eram leais a ele) me
deixou um tanto animada. A influência que ele tinha no mundo da música
não era a mesma em Hollywood. Eu fazer aulas de teatro em Nova Iorque
talvez não fosse tão ameaçador para ele assim já que ele conhecia bem a
cidade e tinha olhos em todos os lugares. Mas eu sair com os meus amigos,
pessoas da minha idade, só para me divertir? Ele via isso como uma grande
ameaça. O que talvez fosse mais assustador para ele era eu ser vista sem
a sua presença e, Deus me livre, fotografada sem ele. Seria horrível demais
para ele que as pessoas vissem a sua Cinderela sozinha num baile sem o seu
príncipe encantado para lhe salvar.

Controlar a percepção do que o público via era de extrema importância


para o Tommy e, antes das redes sociais e dos smartphones, era bastante
fácil de fazer. Então, o que foi concordado entre nós era que a gente sempre
iria para grandes eventos juntos, para que fôssemos vistos e também para
que o momento ficasse registrado. Depois disso, cada um tomava o seu rumo
e eu estaria livre para sair com os meus amigos. É provável que o Tommy
tinha muito mais medo de perder a influência que tinha sobre mim, algo que
lhe era bastante valioso, do que mesmo me perder por causa de alguma
infidelidade ou traição minha (apesar disso nunca ter se passado pela
minha cabeça). Embora ele não gostasse, ele sabia que um acordo tinha
sido feito, e no mundo dele, não se quebram acordos. Os passos rumo ao
meu primeiro voo de liberdade, como uma borboleta que sai do casulo, faziam
parte desse acordo.

O nosso relacionamento mais parecia com uma relação entre pais e


filhos onde a independência é conquistada aos poucos. Eu tinha vinte e
poucos anos na época, mas era o Tommy, visivelmente mais velho do que
eu, que precisava ser ensinado a se comportar como adulto sobre o
assunto. Era tudo tão estranho, mas mesmo assim a gente tentou dar um
aspecto de normalidade à coisa toda, amore.
187
O HOMEM DA CIDADE DE KALAMAZOO

A operação Mariah – passos rumo ao voo de liberdade – era bastante


limitada: primeiro, o Tommy e eu participávamos das festas de gala da Fresh
Air Fund juntos, que havíamos feito nos anos anteriores (onde eu tentava me
enturmar). Depois disso, eu saía para jantar com um grupo de amigos (onde
eu realmente me enturmava). Sair com o Tommy tinha se tornado uma
encenação tão cansativa que era como se eu fosse servida continuamente
com coquetéis de pura ansiedade e tédio.

Ainda bem que naquela noite eu fiquei sabendo que, um dos meus
amigos, o Wanya Morris do Boyz II Men, também participaria da festa de
gala, então eu não teria que ficar encenando praticamente o tempo todo.
Me alegrei pelo fato de que, do outro lado de onde a sessão de fotos estava
acontecendo, do outro lado de onde ficavam os pratos caríssimos de mil
dólares e do outro lado das futilidades, haveria uma real possibilidade para
eu me divertir – não seria nada parecido com o silêncio sufocante de quando
eu voltava para a casa no Condado de Westchester junto com o Tommy.
Eu conseguiria aguentar a situação. Eu estava usando um vestido de
alcinha vermelho e comprido de malha fosca da Ralph Lauren e fui até o
tapete vermelho, segurando no braço do Tommy.

Todas as nossas fotos daquela noite foram tiradas em ângulos


diferentes, eu com o corpo duro e com um sorriso estranho estampado no
rosto. Eu não tinha motivos para sorrir. Sinceramente, eu tinha medo de
sorrir na maioria das fotos, pois quando eu era pequena, me disseram que
o meu nariz era muito largo, e se eu sorrisse, dava a impressão de ele ser
maior. Depois da minha insegurança se revelar em cada foto tirada, um
drinque com a executiva de desenvolvimento de carreira artística da Sony
ocorreu logo em seguida – uma senhora gordinha e imponente que me
disse assim que nos conhecemos, antes do meu primeiro CD ser lançado:
“Este é o lado bonito do seu rosto. Apenas deixe que esse lado do seu rosto
seja fotografado.” (Ela estava se referindo ao lado do meu rosto que não tem
o sinal de beleza. Muita audácia desse povo, né?)

Eu era muito jovem e não tão confiante assim para desafiar a opinião
dela, então acabei acatando o que ela falou. Eu internalizei muitas das
críticas destrutivas e cruéis que as pessoas mais velhas me fizeram quando
eu era mais jovem; algumas dessas críticas estão tão profundamente
enraizadas no meu psiquê que eu nunca conseguirei me livrar delas

188
inteiramente. Até hoje eu, inconscientemente, só mostro o “lado bonito” do
meu rosto caso tenha uma câmera por perto; fazer o quê?

Festas de gala eram eventos típicos de jantar beneficente repletas de


celebridades onde eu só ficava sentada, com a barriga encolhida e
prendendo a respiração até que acabassem. O Tommy e eu conseguimos
fingir a noite toda sem incidentes. Nós dois tínhamos bastante prática nisso.
E a festa finalmente acabou: eu havia cumprido com a minha parte do
acordo e agora eu poderia ir para onde eu quisesse! E esse acordo era uma
grande coisa para mim! Eu não podia ir a nenhum lugar sem ele. Eu não
conseguia acreditar! Eu agora podia rir e me divertir, como uma pessoa
normal, sem olhares feios para o meu lado e sem reprovações. Eu me sentia
como a Cinderela ao avesso; as festas chiques é que eram o pesadelo em
vez dos afazeres domésticos.

Nos anos 90, o Giorgio Armani estava no auge da sua carreira de moda.
O Armani era o estilista de luxo preferido de todas as celebridades. O
Tommy, é claro, usava Armani e estava sempre tentando se manter no
estilo. E eu ocasionalmente também usava Armani. Havia várias pessoas
legais e influentes que trabalhavam para o estilista e que saíam com os
clientes legais que ele tinha. Depois da festa de gala, o nosso plano era ir
a um jantar em um restaurante que algumas pessoas da equipe do Armani
havia organizado. A minha assistente e eu fomos, e o Wanya se encontrou
com a gente lá. Era um evento badalado no centro da cidade.

O local estava um pouco escuro: eu e mais vinte pessoas nos sentamos


no fundão encostados numa parede gigantesca de janelas, em torno de
uma grande mesa de jantar cheia de lindas garrafas de vinho e velas. O
ambiente estava bem animado, com conversas divertidas e risadas. Além
disso, tinha música tocando ao fundo, com o Wanya de vez em quando
fazendo riffs34. Era uma noite comum para todos que estavam ali, mas para
mim era uma novidade sair com pessoas da minha idade e ouvir músicas
da minha época.

Embora eu ainda estivesse sendo vigiada, nunca me senti tão leve na


vida. Eu me sentia jovem e totalmente livre. Era bem comum para jantares
desse tipo a entrada e saída sem parar de convidados, então, quando o
Derek Jeter e o seu amigo entraram e se sentaram à minha frente na mesa,

34 Riff: é uma progressão de acordes, intervalos ou notas musicais, que são repetidas no
contexto de uma música, formando a base ou acompanhamento. Riffs, geralmente, formam
a base harmónica de músicas de Jazz, Blues e Rock.
189
eles não chamaram a minha atenção. Eu os achei ambíguos. Depois de
olhar brevemente para eles, pensei: Quem são esses caras? A minha
atenção se voltou para os convidados mais interessantes do jantar.

Caras sarados do tipo atleta nunca me atraíram, nem mesmo no colégio,


que é onde os atletas são mais populares. O Derek e o seu amigo não eram
exceção à minha regra. O terno Armani que ele usava não escondia a sua
origem humilde de Kalamazoo35. Ele não tinha a vibe elegante de Nova
Iorque com a qual eu estava tão acostumada. Eu não estou falando mal de
ninguém, mas cara, ele estava usando sapatos de bico fino. As celebridades
seguem certos padrões, e os comparando com artistas de hip-hop e de
R&B, modelos, fashionistas e garotos descolados de todos os tipos que
estavam na mesa, eles pareciam com dois caipiras.

O restaurante estava monótono, mas a nossa mesa estava bombando, e


em algum momento passamos a falar de “pessoas que são negras, mas que
não dá para perceber” – negros que podem se passar por brancos, mas de
forma bem sutil. Eu fiquei fascinada. Começamos a conversar sobre quem a
gente achava que era secretamente negro ou então quem poderia ter algum
tipo de característica negra, como eles conseguiriam ou não se identificar e
como muitas vezes eram identificados incorretamente. Eu nunca tive
nenhuma conversa aberta sobre aparência birracial ou multirracial. Os meus
pais não sabiam expressar isso direito e o Tommy nunca quis falar sobre a
minha identidade birracial; se ele não sentia vergonha, com certeza não quis
dar importância. Eu não conseguia acreditar: era a minha primeira noite sem
ele, e de repente lá estava eu em uma conversa sobre raça e identidade
com pessoas jovens, inteligentes e criativas!

Em um dado momento, a pergunta foi feita para mim. Um dos rapazes


ligado ao Armani disse que não sabia dizer se eu era negra ou não (a propósito,
não tinha nada de negro nele). O Wanya não conseguiu engolir essa. A voz
dele se elevou em um tom estridente: “Não, cara, peraê! Todo mundo sabe
disso; como é que você não sabe?” Eu estava rindo, mas também estava super
interessada.

Como se fosse uma deixa, uma outra pessoa da equipe do Armani se


intrometeu: “Derek, a sua mãe é irlandesa e o seu pai é negro, né? Então, o
que você acha de tudo isso?”

De repente, era como se a imagem em preto e branco do filme O mágico

35 Kalamazoo: é uma cidade localizada no estado americano de Michigan, no Condado de


Kalamazoo.
190
de Oz tivesse ganhado cor naquela hora. Era como se eu estivesse num
momento novo e num local diferente; uma noite nova e um mundo novo
surgiram diante de mim. Quando eu ouvi “mãe irlandesa e pai negro”, eu
ergui a cabeça sem querer e me virei para o Derek. Os nossos olhos se
encontraram. A grande tristeza reprimida e guardada dentro de mim diante
do grande desprazer de ter que ouvir alguém dizer que eu não era nem
branca ou negra o suficiente, com o sentido de “você não é boa o suficiente”,
veio à tona e começou a desaparecer, dando lugar a um desejo de conexão.

Era como se de repente eu pudesse vê-lo. O Derek não parecia mais


um caipira; ele estava parecido com um príncipe encantado agora. O
primeiro momento de conexão entre a gente foi tão profundo. Eu já tinha
escrito sobre vários momentos românticos em minhas canções, mas ainda
assim eu me sentia muito triste. Por fim, era como se eu estivesse vivendo um
sonho de verdade. Eu olhei para os olhos dele – enormes pérolas de jade
cintilantes flutuando em uma piscina marrom dourada. Era como se não
houvesse mais ninguém no restaurante ou no universo. Começamos a
conversar do outro lado da mesa; o nosso papo era leve, empolgante e
extremamente sedutor. Eu não conseguia me lembrar da última vez, se é
que houve uma, em que eu senti um frio na barriga conversando com um
homem.

A nossa conversa foi boa e fluiu naturalmente durante o resto da noite.


Por fim, eu percebi que todos já tinham notado que a gente estava a fim um
do outro, mas eu não tava nem aí. Eu estava curtindo a noite e
experimentando o sabor da liberdade, a adrenalina e o fascínio da coisa
toda. Eu sabia que eu estava sendo vigiada, mas que se foda. O Derek era
jovem, de etnia mista, ambicioso e tinha o emprego dos seus sonhos, assim
como eu! No meio de todas as pessoas, luzes e música, parecia que nós
éramos os únicos no mundo. Por mais que o que houvesse entre nós fosse
apenas uma faísca, mas ainda assim estava prestes a pegar fogo.

Por mais ousado que fosse, eu deixei que o Derek me acompanhasse


até o carro, onde um motorista – também conhecido como agente do
Tommy, é claro – estava me esperando. Eu me senti viva naquele momento
em que eu estava com ele. Eu nunca vou me esquecer de como eu me
senti quando eu estava andando ao lado dele naquela noite; olhando para
cima para poder vê-lo melhor por causa da sua altura e a maneira como o
seu corpo atlético se movia. Eu me senti pequena ao lado dele. Foi uma
experiência muito diferente. Essa caminhada de dois minutos na calçada
foi mais empolgante para mim do que andar ensaiado em mil tapetes
vermelhos. Foi um momento genuíno. Eu andava solta pelas ruas de Nova
Iorque, a brisa abafada da madrugada soprando em meu cabelo e deixando
191
a delicada malha do vestido marcada no meu corpo. Eu me senti bem, de
verdade. Eu me senti livre.

192
SEM AMARELAR
Sozinha e
Disposta a acreditar
Que já é bom o bastante ser
O que você realmente é
Mas no seu coração
Permanece sempre a incerteza de que
Você sempre estará em algum lugar
Do lado de fora

–“Outside”

Sabendo que nós estávamos sendo vigiados, a minha assistente


discretamente pegou informações de contato com o amigo do Derek. Por
muito tempo, o meu relacionamento com o Tommy me fez sentir desolada e
sozinha. Mas finalmente eu vi uma luz no fim do túnel, porque eu tinha
acabado de conhecer alguém assim como eu. Quando eu era criança, eu
rezava para que eu pudesse encontrar alguém que me entendesse pelo que
eu era e que não se sentisse superior a mim.

O nosso primeiro encontro teve um certo ar de inocência, o que corroborava


com o romance puro que eu descrevia nas minhas músicas. O nosso encontro
também parecia com as cenas dos filmes que eu adorava. Mas embora eu
estivesse me sentindo assim, eu sabia que o Derek não tinha caído do céu para
ficar comigo. O meu empresário sabia que o Derek realmente estava a fim de
me conhecer; uma vez ele veio até mim e me implorou para autografar uma
foto para ele, dizendo que era com o intuito de conseguir ingressos para a série
mundial de beisebol. Ao me pedir o autógrafo, ele me deu uma indireta: “é para
esse cara aqui que está super a fim de ficar com você” – eu tinha me esquecido
totalmente disso. Na noite que nos conhecemos, ele me disse que “Anytime
You Need a Friend” era a sua música favorita e que ele sempre a ouvia antes
de jogar.
Sempre que precisar de uma amiga
Eu vou estar aqui
Você nunca ficará sozinho novamente
Então não tenha medo
Mesmo que você esteja a quilômetros de distância
Eu vou estar do seu lado
Então, não se sinta só
O amor fará com que tudo fique bem
Se você acreditar em mim

193
Eu te amarei para sempre
Pegue a minha mão
E me leve até o seu coração
Eu vou te apoiar para sempre
Eu não vou te abandonar
Eu jamais vou te abandonar

De todas as minhas canções, AYNAF era a que tinha um significado


todo especial, porque eu estava me sentindo completamente sozinha,
estava longe dos meus amigos e com muito medo. A minha fé em Deus foi
o que me manteve viva – eu compus essa música refletindo no que Deus
nos diria quando estivéssemos com medo.

Quando as sombras estiverem à espreita


E o seu espírito diminuindo
Apenas se lembre que
Você não está sozinho
E o amor será o seu guia
De volta para casa

–“Anytime you need a friend”

AYNAF é uma música edificante, com uma mensagem de fé e


espiritualidade, e por isso ela também me fazia me sentir mais segura e
conectada com o Derek. Ele também me falou que era meu fã – e os fãs
eram as únicas pessoas em quem eu realmente confiava.

Passamos a nos comunicar em segredo, mandando mensagens curtas


e fofas de texto um para o outro sempre que dava certo e combinando de
conversar. Nem preciso dizer que eu morria de medo de falar com ele
quando o Tommy estava por perto. Mas eu criava situações para falar com
o Derek. Caso eu e o Tommy estivéssemos no estúdio ou jantando, eu fingia
que eu tinha que usar o banheiro. A minha assistente também estava
envolvida no esquema. Para eu poder conversar com ele, a gente criava
alguma coisa de última hora e saíamos juntas no carro dela. Às vezes a
gente ia para a casa dela e eu me sentava em sua modesta sala de estar e
ficava falando aos cochichos com ele – para você ver o quanto eu tinha medo
do Tommy. A gente falava pouco ao telefone. Eu estava morrendo de medo,
mas também estava com a adrenalina a mil. Enquanto que o romance e a
atração entre a gente eram intensos, já as nossas conversas eram bem
leves e descontraídas. Eu não estava nem aí; já era alguma coisa.
Esquematizar toda uma situação para que eu pudesse entrar em contato
com o Derek parecia como se alguém tivesse contrabandeado uma lâmina
194
de serra para a minha cela de prisão. Cada vez que a gente conversava, era
como se eu tivesse serrado um pouco mais as barras da cela que me
mantinham prisioneira.

Cada passo que a gente dava, por menor que fosse, tinha um só
propósito: a liberdade. Eu estava bastante acostumada a trabalhar sem
parar, mesmo que preocupada com o que podia acontecer, eu tentava não me
desesperar; para uma mulher jovem como eu, a vida passou a fazer sentido
quando eu me senti como uma garotinha boba e apaixonada novamente.
Apesar de todas as trevas, eu percebi que ainda havia alguns caprichos
reservados para mim e para o meu próprio coração. Eu até comecei a
assistir jogos de beisebol no estúdio quando ele estava jogando. Para a
fantasia se tornar ainda mais perfeita, o Derek jogava na mesma posição
que o grande Joe DiMaggio (o famoso marido do segundo casamento da
Marilyn Monroe) no time da Yankees36, o que aumentou ainda mais a minha
admiração por ele já que eu tinha todo um fascínio pela vida da Marilyn. Eu
literalmente conheci a pessoa que eu sempre tinha imaginado. Eu estava
vivendo a história de amor que eu tanto falava nas minhas músicas.

Um encontro foi finalmente marcado depois de semanas a fio


conversando em segredo. Infelizmente, eu ainda estava casada, mas eu
não tinha intenção de quebrar os meus votos de casamento. O plano era de
eu me encontrar com ele às escondidas em uma pizzaria perto de onde ele
morava, e sairíamos furtivamente depois para o apartamento dele. Eu estava
tremendo de medo por estar me arriscando, mas eu tinha que vê-lo; eu tinha
que me sentir viva de alguma forma. Eu me lembro do cuidado que eu tive
para escolher a minha roupa. Eu queria usar algo sexy, é claro, mas que
também tivesse um ar jovial e que fosse elegante e chique. O conjunto que
eu escolhi era da cor de chocolate quente: uma minissaia de couro
acolchoado de cor castanha da Chanel, um top bandeau castanho-
avermelhado de malha fina e com um casaco de lã combinando. Eu também
estava usando uma meia-calça marrom com nervuras da Wolford por baixo,
junto com uma elegante bota de bico redondo de cor moca da Prada. Eu
amava essas botas da Prada. Então, texturas com sabores de cacau eram
as cores do meu look. Estávamos no mês de novembro, e o inverno começa
a despontar em Nova Iorque, porém, o meu look para a noite ainda revivia a
estação de outono. E finalmente, eu estava usando um boné de beisebol
marrom sobre os meus cachos volumosos, com a aba puxada para baixo

36 Yankees: é um time de beisebol da Major League sediado no Bronx, na cidade de Nova


Iorque. Mais conhecidos apenas como "Yankees", estão na Divisão Leste da Liga Americana
e tem a distinção de ser uma das franquias mais documentadas do esporte profissional
norte-americano ao longo dos seus mais de 100 anos de história.
195
para esconder o meu rosto.

Eu estava com tanto medo (na verdade, eu estava apavorada). Eu


estava correndo um risco muito grande. Eu nunca tinha tentado fazer nada
tão perigoso assim antes e eu já tinha visto de antemão que o Tommy podia
destruir quem ele quisesse. E ele com certeza tentou me destruir. Pelo que
eu me lembro, a operação secreta ocorreria assim: A minha assistente e eu
diríamos ao meu motorista (também conhecido como espião do Tommy, e
que era eu quem pagava) que a gente ia jantar numa pizzaria. Nós
entraríamos juntas e, quando o Derek entrasse, a gente ia dar um jeito de
se livrar do meu motorista. O Derek morava perto, então a gente ia poder ter
um pouco de privacidade para relaxarmos em algum lugar. A minha
assistente seria a distração para que eu e o Derek pudéssemos sair juntos.

Eu estava super nervosa. Além de estar morrendo de medo de sofrer a


ira do Tommy, eu estava nervosa de não saber como agir. Apesar de eu já
ter viajado para muitos lugares do mundo, eu era bem inexperiente em
encontros amorosos. Mas só de pensar em estar perto do Derek já era uma
experiência libertadora.

A minha assistente e eu nos sentamos nos banquinhos perto do balcão


para ficar olhando para a grande vitrine da loja, e nós duas com a adrenalina
a mil. O Derek entrou – usando um moletom básico e um boné de beisebol,
é claro. O meu coração estava batendo muito forte. A gente finalmente
estava perto um do outro, mas a malandragem estava por vir: a gente tinha
que escapar da pizzaria sem que o espião nos visse. Eu acredito que a
minha assistente foi até o carro fingindo que ia pegar algo. Quando ela se
aproximou da janela do motorista, o Derek e eu baixamos as abas dos
nossos bonés, saímos rapidamente pela porta, viramos a esquina e fomos
parar numa pequena rua de trás. Escondida debaixo do braço dele, eu senti
um grande alívio e adrenalina. Andamos por mais algumas ruelas sinuosas
até chegar no prédio dele.

Eu estava extremamente ansiosa e uma timidez, que eu estava tentando


esconder a todo custo, tomou conta de mim assim que nós entramos no
apartamento dele e fechamos a porta. Será que eu já havia ficado sozinha
num apartamento com algum homem na vida – ou em qualquer lugar –
antes? Eu não tinha certeza. Tudo era novidade para mim. Será que o
espião ia descobrir que eu havia sumido e ia acabar estragando a nossa
operação secreta? O frio que eu estava sentindo na minha barriga estava
mais gelado que o Polo Norte.

Eu tirei o meu boné, soltei os meus cachos, respirei fundo e tentei me


196
acalmar e me orientar, focando no que eu via pela frente. Não me lembro
de muitos detalhes. Não era um apartamento tão impressionante, apenas
prático e limpo. Eu fiquei parada e um pouco sem jeito na sala de estar, mas
ainda super apaixonada e assustada. O Derek disse que havia um terraço
no prédio e me perguntou se eu queria subir até lá. Eu aceitei.

Ele saiu da sala e voltou com uma garrafa gelada de Moët. “Eu guardei
esse champanhe porque achei que um dia você pudesse vir me visitar.” Eu
sorri e disse: “Sim, uma bebida cai bem.” (E foi realmente a garrafa de “Moe-
ay” que me fez me soltar.) Nós subimos até o terraço, rimos, conversamos
baixinho, tomamos goles de champanhe gelado e curtimos o corpo um do
outro com abraços.

A lua de outono estava brilhante e uma névoa quente e pesada cobria a


noite. Naquele breve momento, eu estava me sentindo nas nuvens, sozinha
nas alturas com um homem que parecia ter saído dos meus sonhos.
Sussurramos algumas coisas um para o outro, rimos um pouco mais e então
nos deixamos envolver pelo calor do momento. Nos aproximamos, um
centímetro de cada vez, até nos entrelaçarmos num beijo picante, lento e
inebriante. Eu senti toda tristeza ir embora e um grande alívio me invadiu.

E, naquele instante, começou a chover. Continuamos nos beijando


mesmo assim; dois corpos colados envolvidos num longo abraço. A chuva veio
tão de repente, mas nada importava naquele momento, nem mesmo tudo o
que a gente tinha passado para que aquele encontro dos sonhos
acontecesse. Eu estava tão envolvida que nem me lembrei da minha saia
de couro da Chanel ou das minhas botas da Prada durante a chuva. E
graças a Deus que eu não tinha alisado o meu cabelo, porque se eu tivesse,
eu teria quebrado o clima e corrido para proteger o meu cabelo escovado
da chuva.

O que quebrou o clima não foi a chuva, e sim o medo. Quanto tempo
fazia que a gente tava ali? Será que o Tommy já sabia? Eu tinha que ir
embora! Eu disse à minha assistente que a gente já estava a caminho. O
Derek me levou às pressas até a pizzaria, onde a minha assistente estava
nos esperando com desespero no olhar. Ela saiu correndo quando me viu e
pulamos dentro da limusine. A gente se sentou no banco de trás com falta
de ar, colocando a mão na boca para abafar as risadas. É claro que o
motorista percebeu que eu estava encharcada, mas eu não dei a mínima! Eu
não tava nem aí se ele fosse, sem dúvida, me dedurar por causa da minha
desobediência. Eu tinha fugido para viver um momento real que era todo
meu. Eu deixei um pouco da tristeza lá naquele terraço e não voltaria lá para
pegar de volta.
197
Assim que o motorista deixou a minha assistente em casa, eu fiquei
sentada sozinha no banco de couro da parte de trás da limusine, e
entendiada por estar voltando para a prisão que eu morava. Eu estava com o
pensamento acelerado e o coração batendo forte. Será que tudo isso aconteceu
mesmo? Será que eu fiz o que fiz? O Tommy vai ficar muito puto! Eu liguei o
rádio para me ajudar a me acalmar. Eu comecei a ouvir uma batida de ghetto
irada do caralho, e o trecho da música era:

Com medo de morrer, com medo de olhar, eles amarelaram


Porque essa coisa de ser criminoso quando dá certo não existe

Eu amarelei, com certeza, quando nós paramos diante do alto e


imponente portão de ferro forjado que levava à minha mansão. Ele estava
com um ar ameaçador na chuva torrencial – e diante do que eu tinha
acabado de fazer. O Tommy era para estar viajando, mas assim que eu pisei
o meu pé lá dentro, eu não sabia o que esperar.

Eu entrei lentamente na minha linda penitenciária; estava tudo em


silêncio, e não tão assustador assim. Que bênção! Ele não estava lá, então
pelo menos eu não tinha que inventar uma história do por que eu estava
completamente molhada. Exausta, me sentei na grande escadaria, tirei as
minhas botas e fui na ponta dos pés até o banheiro. Nem me preocupei em
acender as luzes. Eu queria ficar em silêncio diante do mármore rosa suave
que me cercava. Eu queria me deleitar com a poesia dos reflexos sombrios
do opulento lustre de cristal balançando na escuridão. Eu tirei o meu top
bandeau encharcado, que estava grudado na minha pele, e tirei a minha
saia de couro úmida. Eu me sentei na beira da enorme banheira para que eu
pudesse tirar a minha resistente meia-calça de lã fina. Tomei um banho
quente rápido, deixando a água levar com ela um pouco da minha
ansiedade. Usando um roupão felpudo branco, fui até o espelho e dei uma
olhada. Fiquei me encarando. Os meus olhos pareciam um pouco mais
brilhantes. Me lembrei da Mariah de antes de todo o terror se espreitar. Eu
vi um pouco de entusiasmo, um pouco de esperança, um pouco de coragem.
Eu vi o brilho de uma promessa de liberdade.

Depois de uma noite tão sexy, arriscada e perigosa, o enorme quarto


todo pintado de branco e a enorme cama de cor branca pareciam mais
estranhas do que nunca. Eu puxei o fofo edredom de penas de ganso
branco até o meu pescoço e fechei os olhos. Me deu vontade de voltar para
o terraço na mesma hora para reviver os bons momentos que eu tinha tido
lá. Involuntariamente, a minha cabeça começou a balançar suavemente no
travesseiro e eu comecei a ouvir a mesma batida que eu tinha ouvido no
carro antes, a música “Shook Ones, Parte II” do Mobb Deep. Ela começou a
198
tocar bem alto na minha cabeça agora e eu comecei a sussurrar:

Quando sinto vontade


Imagino que você está me acariciando
E eu volto no tempo
Para reviver o esplendor de nós dois juntos
No telhado naquela noite chuvosa

Eu acabei dormindo.

No dia seguinte, eu liguei para o Poke e o Tone da dupla musical


Trackmasters. Obtivemos o direito de usar o sample da música “Shook
Ones, Parte II” e começamos a trabalhar com ela. “The Roof (Back in Time)”
foi a minha primeira “música-documentário” completa.

Ainda não estava chovendo


Mas com certeza estava um pouco nublado
Naquela noite quente de novembro
E o meu coração estava batendo forte
A minha consciência ecoando e
Me implorando para ir embora
Mas eu tinha que ver o seu rosto para me sentir viva
E então você entrou na sala casualmente
E eu estava morrendo de tesão por você
A minha apreensão foi embora
Eu só queria que você provasse da minha tristeza
Enquanto me beijava no escuro. Quando sinto vontade…
E assim terminamos de beber o Moët e
Eu comecei a me soltar
E eu fiquei sem forças quando você me pegou nos seus braços
Eu estava tão envolvida no momento
Que eu não conseguia imaginar ter que ir embora naquele momento
Então eu deixei a cautela de lado
E comecei a ouvir os desejos do meu coração
E então você suavemente beijou os meus lábios
E sentimentos que eu havia escondido
Vieram à tona depois de tanto tempo
E por um instante eu esqueci que a tristeza e a dor existiam
E me uni junto a você enquanto chovia

– “The Roof”

Foi exatamente assim que aconteceu.


199
O ÚLTIMO SHOW EM SING SING

Com a chuva torrencial no telhado, a semente adormecida da minha


identidade foi regada e um pouco da umidade do Tommy se dissipou. Eu
me sentia confiante o bastante para desafiá-lo agora. Olha, tanto eu quanto
ele sabíamos que, antes mesmo de eu pegar a estrada e ir embora, já
tínhamos chegado ao fim da viagem há muito tempo no nosso
relacionamento. Comecei a sair aos poucos e, em resposta, o Tommy
começou a fazer tentativas desesperadas de última hora para que eu
ficasse. Ele comprou para mim um lindo, mas inútil jaguar carnival
conversível de cor vermelha com a parte de dentro em couro creme e com
a capota combinando. O carro ficava na garagem da nossa mansão de trinta
milhões de dólares – mais uma coisa cara para adicionar à pilha de sucata
luxuosa que era o nosso casamento.

Certa noite, eu estava trabalhando com dois homens com quem eu tinha
uma certa relação criativa e profissional, e que tinham uma lealdade meio
que mafiosa com o Tommy. Esses três homens, que eu havia contribuído
consideravelmente para que se tornassem ricos e importantes, e eu
estávamos sentados na cozinha, prestes a fazer uma refeição. Mesmo que
todos ali fossem “amigos” reunidos numa mesa, de frente para uma grande
e rústica lareira com a frase triste e irônica de “o casarão dos contos de
fada” gravada na lareira de pedra calcária (eu a chamei assim, no meu
desespero em acreditar que talvez o meu desejo e vontade transformassem
o meu pesadelo num conto de fadas), o ar do local era tudo menos receptivo.
O ar da casa estava frio, silencioso e repleto de dor e confusão,
evidenciando que algo em mim havia mudado. Acho que o Tommy estava
constrangido por ter perdido a sua “mulher” e o controle da situação na
frente dos seus “capangas”. Constrangimento de qualquer tipo o deixava
puto de raiva.

Ele começou a falar de forma estranha e assustadora sobre o belo carro


que ele tinha acabado de me dar e sobre a nossa propriedade espetacular
(que foi projetada e financiada parcialmente por mim), e de como, apesar
de tudo isso, eu estava querendo me separar dele. Fiquei sentada em
silêncio, olhando para a mesa, quando o Tommy se aproximou e pegou a
faca de manteiga que estava na minha frente. Ele encostou o lado plano da
faca na minha bochecha direita e começou a apertar.
200
Todos os músculos do meu rosto se contraíram. O meu corpo inteiro
enrijeceu; os meus pulmões paralisaram. O Tommy continuou apertando a
faca no meu rosto. Os seus capangas viram tudo de camarote e nada
disseram. Depois do que pareceu uma eternidade, ele lentamente arrastou
a faca fina e fria no meu rosto. Eu estava com muita raiva pela grande
humilhação diante dessa atitude cruel e covarde que eu tinha passado na
minha cozinha, na frente dos meus “colegas”.

Esse foi o último show dele comigo como prisioneira em Sing Sing.

Eu considerava muitas pessoas realmente minhas amigas


Mas se viraram contra mim por causa de dinheiro
e me apunhalaram pelas costas
Embora a faca que eles usavam estivesse me cortando aos poucos
Simplesmente viraram as costas para mim e foram para casa dormir

–“Petals”

Eu me tranquei no banheiro, que agora parecia um mausoléu, e me


sentei na beira fria da banheira; tentando reunir coragem para ir embora de
vez. Então, algumas palavras começaram a vibrar suavemente na minha
cabeça: “Não tenha medo de voar. Abra as suas asas. Abra a porta.” Eu
comecei a cantarolar a melodia, que no futuro seria a música “Fly Away
(Butterfly Reprise)”. E então eu desci a grande escadaria pela última vez. Eu
tinha certeza que eu ia acabar morrendo naquela casa que eu tinha
construído em Bedford e que o meu fantasma a assombraria para sempre.
Eu já conseguia imaginar o que ia acontecer: uma atração turística mórbida,
mas que ainda seria causa de celebração, “O Famoso Fantasma da
Mansão da Mariah”, semelhante à adorável Graceland, mansão do Elvis
Presley, em que daria para me ouvir cantar agudos pelos corredores
durante a noite.

Quando eu finalmente fui embora da minha prisão em Sing Sing, só


levando comigo as minhas roupas e fotos pessoais, a única coisa que eu
realmente queria da casa era a bela lareira entalhada à mão. Um mestre
artesão do Leste Europeu a esculpiu primorosamente de acordo com as
minhas orientações de design muito específicas. Ao ir embora, eu passei os
meus dedos por suas curvas suaves e complexas no meu último adeus. Só
então eu percebi que havia uma borboleta dentro do coração que estava no
centro da estrutura. Eu não pedi para que o artesão esculpisse isso, mas as
asas abertas da borboleta eram o sinal que eu estava precisando quando
eu saí pela porta.

201
Os desastres naturais acabaram destruindo todas as paredes que
sustentavam grande parte da minha profunda tristeza. Poucos anos depois
de eu ir embora de Sing Sing, a casa foi destruída totalmente pelo fogo. E a
casa de campo do Tommy em Hillsdale também foi completamente
destruída por um tornado. Eu estava na minha cobertura em Manhattan
quando recebi uma ligação de uma mulher que era a ex-proprietária da
minha antiga casa. Ela havia removido a lareira e guardado em algum lugar,
porque ela achou que talvez eu pudesse querer a lareira por ser um objeto
muito pessoal. Eu fui buscar e mandei pintar a lareira com um novo verniz
branco, assim como a Marilyn fez com o piano que era da sua mãe. Essa
lareira está agora no meu quarto mais pessoal da minha casa, junto com as
fotos da minha família e outras coisas preciosas para mim. Eu não ia deixar
que o meu espírito morresse.

202
ASSIM COMO MEL

O encontro com o Derek foi o empurrão que eu precisava para ingressar


na Terra Prometida. Eu tinha a prova de que eu poderia ter algo lindo longe
do inferno que era o meu casamento. Os dias de tirania do Tommy sobre
mim estavam com os seus dias contados. O Derek não fazia parte do mundo
do Tommy, portanto, ele não tinha como destruí-lo. A possibilidade de eu
mesma ser destruída também chegava ao fim.

“The Roof” (o telhado), como música e clipe, descrevia com precisão a


imagem da paixão avassaladora que eu estava sentindo. Era importante
para mim, não por ser algo imoral, mas porque qualquer tipo de intimidade
com outra pessoa não era algo que eu já tivesse experimentado antes. Era
uma sensação incrível, e eu estava querendo muito repetir o encontro e
fantasiar aonde tudo ia parar.

A noite do nosso encontro não saía da minha cabeça, tanto é que eu


acreditava que era parte do meu destino. Eu achava que eu tinha finalmente
encontrado a minha alma gêmea. Eu não pensava em outra coisa. O meu
ser anseava em ver o Derek – ou, mais precisamente, sentir o que eu sentia
quando eu estava perto dele.

No processo de criação do clipe de “The Roof (Back in Time),” eu queria


que o clipe expressasse como eu havia me sentido na noite do nosso
encontro – super ansiosa e com muito tesão. Eu queria que o clipe fosse
sexy e gravado da maneira mais natural possível. Usamos na música “back in
time” elementos clássicos de hip-hop dos anos 80, que não era algo comum
de se usar em 1998. O figurinista teve que vasculhar brechós e lojas de
fantasias para achar agasalhos da Adidas, bonés da Kangol e calças jeans
do Sergio Valente; e Serge Normant, o cabeleireiro, trabalhou horas extras
para deixar o meu cabelo em camadas e com as pontas modeladas, estilo
Farrah Fawcett. O Mobb Deep, membros do grupo de rap Negro League e
dançarinos legítimos de breakdance participaram do clipe. Eu sabia que era
um clipe muito legal, tanto para o mercado urbano quanto para o mercado
pop.

Mas sempre que eu dava um passo à frente, havia uma reação contrária.
O “show” que era o meu casamento poderia ter acabado, mas o pós-show
– o “comes e bebes”, a desmontagem do palco – precisava ser planejado
com cuidado. Houve uma grande agitação. A minha vida estava totalmente
interligada com a do Tommy; eu precisava de tempo e conselhos de como

203
me sair de forma amigável (o máximo possível). Então eu me mudei para
um hotel no Upper East Side, zona nobre de Nova Iorque, e continuei
fazendo terapia.

A noite do terraço ainda continuava viva na minha memória e eu não


estava disposta a reviver os momentos de desespero de outrora. Uma nova
parte em mim estava viva e eu tinha a intenção de continuar nutrindo isso.
Eu soube através de algumas pessoas ligadas ao Armani que o Derek ia
viajar para Porto Rico. Quando o Tommy e eu fizemos mais uma sessão de
terapia juntos, eu anunciei para ele que eu estava precisando viajar. Eu
deixei claro para o Tommy que já era hora de ele honrar a parte dele do
nosso novo acordo: a gente podia ficar com outras pessoas e não era para
ele se intrometer em mais nada. Eu já estava saindo sozinha, eu já estava
indo para o estúdio sem que ele tivesse que ir me pegar, eu já estava
fazendo aulas de teatro e dormindo na casa da minha professora (só que
não), e já estava mais do que na hora de eu poder viajar sozinha. (Ok, talvez
eu tenha me sentido um pouco mal por ter mentido na última situação, mas
tudo é válido quando se tem que sobreviver.) Eu fiz parecer tudo muito
normal: talvez eu e a minha assistente, ou talvez eu e uma outra amiga
minha, fôssemos viajar e passar o fim de semana fora, em algum lugar onde
eu pudesse nadar no oceano, relaxar ao sol e compor (tendo em mente que
eu nunca fiz algo assim quando eu morava na minha prisão em Sing Sing,
nunca) – algum lugar perto e bonito, como o Porto Rico. A minha assistente
ficou super a fim de ir. Ela ainda era jovem, e eu estou falando de um
romance mantido no sigilo, então é claro que a gente estava empolgada e
sem pensar nas consequências.

Nós nos hospedamos no El Conquistador Resort, um lindo conjunto de


pousadas em um hotel espanhol-caribenho clássico em uma exuberante
ilha particular. O resort ficava localizado em umas colinas verdes dentro de
uma praia fechada. Decidimos ir à popular discoteca Egipto, localizada na
parte antiga da cidade de San Juan, a quase uma hora de distância de onde
a gente estava hospedada. A discoteca parecia um templo egípcio, como
se tivesse saído de uma cena da tragédia de Antônio e Cleópatra, e
finalmente o Derek chegou. A gente não tinha combinado de se encontrar, mas
é claro que eu sabia que ele ia aparecer por lá. Eu sabia tanto que ele ia
estar por lá na discoteca que eu pedi à minha assistente que reservasse
uma pousada em um outro resort, o El San Juan Hotel, que ficava perto de
lá. Ficamos pouco tempo na discoteca e eu falei para ele que eu tinha
reservado um lugar para nós no sigilo.

Então lá ia a gente de novo, saindo de fininho para despistar os meus


seguranças. Saímos pela porta dos fundos da discoteca e caminhamos por
204
um caminho, que parecia um labirinto, cheio de palmeiras e arbustos
floridos até a minha pousada, envolvidos pelo ar noturno abafado.
Chegamos no meu quarto e o frio na minha barriga logo começou. Ficar
sozinha com alguém por quem eu me sentia atraída era novidade para mim.
E, novamente, deixei a cautela de lado e me joguei nos braços do Derek e
fui curtir o momento. Passamos a noite nos abraçando, envolvidos em um
único e longo beijo. Foi o momento mais sexy da minha vida – mas sem
sexo envolvido.

Eu sabia que os meus seguranças tinham nos visto sair do meu quarto
pela manhã, mas finalmente senti algo mais forte do que o medo da
vingança do Tommy. Eu não conseguia imaginar viver sem esse sentimento.
O desejo se tornou a minha razão de viver, o meu tudo. Eu não conseguia
dormir no avião quando eu estava voltando para Nova Iorque, mas a inspiração
para compor aconteceu. Eu comecei a escrever:

Eu estou pensando em você


Sem conseguir dormir e me sentindo só esta noite
Se é errado te amar
Então o meu coração não me permitirá estar certa
Porque eu me afoguei em você
E não vou sobreviver
Sem você ao meu lado

–“My All”

Viajar para o Porto Rico foi uma quebra de paradigma. Depois da viagem,
eu travei uma estratégia de novamente dar um golpe certeiro no meu coração:
eu coloquei em uma música tudo o que eu estava sentindo naquele momento.
Eu estava correndo um risco gigantesco, porque eu sabia que o Tommy ia
perceber que eu estava me relacionando com alguém (embora, tecnicamente,
eu ainda não estivesse transando ainda). Além disso, algo estava sendo
revelado. A empolgação impulsionou em mim um novo nível de criatividade e
um novo propósito foi despertado. Eu estava ouvindo melodias diferentes e
tinha experiências novas e reais para poder usar nas minhas músicas agora.
Então eu decidi fazer algo perigoso, mas ao mesmo tempo bonito – e todos
ficaram com medo pelo que eu tinha feito:

Eu daria tudo para ter


Só mais uma noite com você
Eu arriscaria a minha vida para sentir
O seu corpo perto do meu
Porque não dá mais para continuar
205
Vivendo só da memória da nossa música
Eu daria tudo pelo seu amor esta noite

Eu sabia que eu ia pagar muito caro por isso. Eu sinceramente achava


que eu estava correndo o risco de morrer, mas ao mesmo tempo eu sentia
que não valia a pena viver se eu não pudesse ter novamente o que eu tinha
tido naquela noite. “My All” foi a minha música de amor mais real, mais
ousada e mais intensa que eu já escrevi. A música transmitia a sensualidade
da música espanhola, com toques de brisa quente e êxtase de desejo, além
da terrível dor que eu me lembro tão bem que foi a gente ter que se separar.

Amor, você consegue me sentir?


Imaginando que eu estou olhando nos seus olhos
Eu posso te ver claramente
Vividamente gravado na minha mente
E mesmo assim você está tão longe, como uma estrela distante
Estou fazendo um pedido para que se torne realidade
Eu daria tudo de mim para ter
Só mais uma noite com você

–“My All”

Essa música retrata a questão entre a vida e a morte, e eu não queria


que ela se perdesse num sentimentalismo piegas. Eu precisava que ela se
mantivesse forte e simples. Eu também queria que os vocais fossem a peça
central, o ponto forte de tudo, com um ritmo simples acompanhando. Eu
coloquei toda a minha alma e emoção em My All e a cantei como se não
houvesse amanhã.

Eu mostrei My All pela primeira vez para o Tommy e o Don Ienner, o


então presidente do grupo de gravadoras da Columbia, no Range Rover, a
caminho de um restaurante no interior do estado de Nova Iorque. O Don
sabia que ia fazer muito sucesso. Já o Tommy sabia que a música não era
sobre ele. Um novo lugar dentro de mim como artista, que antes estava
guardado debaixo de sete chaves, estava totalmente exposto agora. E “My
All” foi um sucesso, ganhando um disco de platina. Um tempo depois, o
Jermaine (Dupri), o The-Dream e o Floyd “Money” Mayweather, três caras
de confiança, me disseram que “My All” é a música favorita deles. Como
compositores que são, eles sabem que o amor é vida e não há nada mais
real do que amar.

Eu já tinha começado a gravar o meu CD Butterfly antes mesmo de começar


206
a me encontrar com o Derek, mas os encontros que a gente teve inspiraram
parte da crescente maturidade e complexidade das minhas composições e de
quem eu sou. As narrativas e as melodias vinham de um lugar todo novo. Eu
estava ouvindo melodias na minha cabeça de uma forma mais estratificada,
natural e sofisticada. Eu estava me sentindo mais livre e menos apreensiva
para abrir as minhas asas da criatividade. Eu criava o tipo de música que eu
queria e comecei a procurar novos produtores para que pudessem dar a minha
música um toque de leveza e sensualidade. Comecei a trabalhar em
“Breakdown” com o Stevie J, um dos caras responsáveis pelo sucesso da
gravadora Bad Boy, e o Puffy. Eu reuni o Stevie, o Puffy e o Q-Tip – um dos
caras mais legais e criativos que há – para o que se tornaria o single principal
do meu CD, “Honey”. Eu comecei a compor a letra e a fazer a melodia em Porto
Rico. O Q-Tip fez um sample incrível da música “Body Rock”, cantado pelo The
Treacherous Three. Eu disse a eles que eu também queria incluir o hit de 1984
“Hey! DJ,” cantado pelo World’s Famous Supreme Team: “Ei! DJ, toque a
música / Me faça dançar (dançar) a noite toda37”. Mal sabiam eles que eu
estava mandando uma indireta para o Derek Jeter. “Honey” era uma música
que retratava um desejo muito grande que eu estava sentindo pelo DJ (Derek
Jeter).

Oh, eu não consigo me esquivar de você, querido


Porque é evidente que estou a fim de você
E é muito difícil para mim ter que partir tão repentinamente
Porque você é o único com quem quero fazer amor
E assim como mel

–“Honey”

Quando eu mostrei “Honey” para o Tommy, ele brincou: “Bom, fico feliz
que você esteja tão inspirada”. Quanta amargura! Eu disse, “O quê? Agora
você vai ficar com raiva de mim? Por que você não ficou com raiva das
músicas 'Fantasy' ou 'Dreamlover'?” É óbvio que eu também não estava
falando do Tommy nessas músicas! Eu não estava falando dele, ou de
qualquer outra pessoa, praticamente em nenhuma das minhas músicas
românticas. Antes de conhecer o Derek, tudo que era retratado era
imaginário. Mas eu tenho certeza que o Tommy sabia que as músicas
escritas para o CD Butterfly não eram mais sobre amantes idealizados ou
fictícios – essas canções, embora fossem poeticamente embelezadas,
estavam cheias de detalhes específicos e de uma sensualidade vivida na

37 Hey! DJ: (A Mariah brincou com as iniciais da música do World’s Famous Supreme Team,
DJ (Disc Jockey), com as iniciais do nome do Derek Jeter, que também é DJ, e assim
convidando o Derek, ou o DJ como ela chama, para dançar com ela a noite toda).
207
prática.

O Tommy e a gravadora também não estavam gostando do meu novo


estilo de música. E mais uma vez, eu ouvi um sonoro “esse estilo está
urbano demais”, e que obviamente queria dizer que “isso é música de
negro” – e é claro que eu jamais poderia retratar algo assim na minha
carreira.

A primeira vez que eu senti liberdade de usar a minha criatividade para


gravar um clipe foi com a música “Honey”. O gênero do clipe era tipo uma
comédia contendo ação e suspense, e isso foi possível graças a um
orçamento insano de dois milhões de dólares. O clipe me permitiu realmente
explorar o meu humor sensacionalista e melodramático, com Frank Sivero
como o mafioso de cabelo maluco. Johnny Brennan do Jerky Boys também
participou – “Honey pie, sweetie pie, cutie pants38” (Torta de mel, torta de
doce, calças lindas). Eu adorava os Jerky Boys; eles eram tão bobos. Qual
é, eu não estava tentando ridicularizar o Tommy – eu só estava brincando
com estereótipos cinematográficos, justapondo o personagem do Johnny com
o do Eddie Griffin. A minha fala em espanhol — “Lo siento, pero no te
entiendo”– foi dita com uma piscadela.

O que eu fiz no clipe “Honey” é o que eu sempre quis fazer. Eu pude


explorar, sem as restrições da minha gravadora, tanto as influências de
moda quanto as influências criativas que eu tinha tido. O meu look foi
inspirado na Ursula Andress dos filmes de 007 dos anos 70. Eu queria
parecer glamorosa, perigosa e durona, como uma Bond girl. E finalmente
tive a liberdade de entrar em contato com a equipe certa para conseguir os
looks. A ideia de sair da piscina usando um biquíni bege para exaltar as
minhas curvas foi minha. Eu também pude finalmente trabalhar com um
diretor jovem, negro e atraente, Paul Hunter, que entendia todas as minhas
piadas e referências de James Bond, mas que também garantiu que o clipe
tivesse um visual contemporâneo e estiloso. Toda a equipe passava uma
energia jovem, divertida e intensa. “Honey”, quando comparado com outros
clipes, era bem diferente já que todos os outros clipes foram gravados no
interior do estado de Nova Iorque, onde tudo tinha que ser feito em um raio
de 32 quilômetros de Sing Sing. A mensagem do vídeo de “Honey” era a
de que eu estava me libertando – embora ninguém entendesse a
insanidade, a toxicidade e os abusos em que eu vivia. As pessoas não
faziam ideia.

38 Honey pie, sweetie pie, cutie pants: é uma forma de se dirigir a uma mulher bonita,
equivalente a “gostosa, gatinha”.
208
Enquanto filmávamos o clipe em Porto Rico, muitas vezes eu via o meu
empresário à distância na beira da praia, sem sapatos, calças cáqui
enroladas até o tornozelo, andando pela praia com o celular grudado na
orelha – falando com o Tommy o tempo todo. Mesmo que a gente já
estivesse tecnicamente separados naquele momento, eu ainda era a
melhor artista da Sony. Além disso, saber de tudo que eu fazia era um
hábito difícil para o Tommy quebrar. O meu empresário estava relatando
tudo, mas não nos mínimos detalhes. O Tommy teria ficado maluco se
soubesse que eu estava me divertindo tanto.

Por mais que eu amasse “Honey”, eu fiquei super desapontada porque


o Biggie (o Notorious BIG) nunca chegou a participar da versão remix. A
rouquidão e a sedosidade da minha voz mais a voz arranhada do ODB
foram as texturas vocais usadas na versão remix de “Fantasy”. O Puffy e
eu estávamos conversando de fazer uma versão remix de “Honey”
semelhante à versão remix de “Fantasy”, com o mesmo fluxo rítmico. Eu
não conhecia o Biggie pessoalmente, mas havia um boato que eu tinha uma
rixa com ele por causa de uma música dele “Dreams of Fucking an R’n’B
Bitch” (sonhos de transar com uma vadia do R’n’B):

A Jasmine Guy era linda


A Mariah Carey é meio assustadora
Peraê, e a minha querida Mary?

Eu era meio assustadora? Como assim? Ah, vai se fuder. Se ele


soubesse das situações verdadeiramente assustadoras pelas quais eu já
tinha passado. O Puffy ligou para ele um dia enquanto estávamos
trabalhando no estúdio e me colocou no telefone. O Biggie sendo quem ele
é – metade anjo, metade demônio – disse: “Não, cara, sabe como é, sem
faltar com respeito”, garantindo que a música não era para ser levada a
sério. Então ficamos de boa. Na ligação, conversamos sobre música e
estilos, e até brincamos um pouco. Foi uma conversa descontraída e
criativa. Ele estava confiante no que queria fazer em “Honey”, e eu não tinha
dúvidas de que ele iria arrasar quando viesse ao estúdio; o Biggie sempre
arrasava. Tragicamente, ele morreu antes de podermos marcar uma data
para a gravação em estúdio. A música “Honey (Bad Boy Remix)” com o
Mase e o Lox foi um sucesso, mas eu gostaria que o Biggie pudesse ter
participado desse remix. Sinto saudade dele.

Produzir as músicas para o CD Butterfly foi o que me ajudou a superar


aquele período da minha vida. Eu estava escrevendo sobre tudo que estava
realmente acontecendo. Foi o início de um outro processo de cura para
mim. Depois de ter me separado do Tommy, depois da minha viagem ao
209
Porto Rico, depois que músicas iradas começaram a ser produzidas, depois
de toda a dor que provocamos um no outro, depois de toda a normalidade
louca que nós fingíamos ter e depois que o aperto sufocante do Tommy
sobre mim perdeu a sua força, ele sabia que não havia mais nada do
casamento.

Eu contratei uma nova advogada, alguém fora do círculo de poder do


Tommy. Eu pedi para ela redigir os papéis. O Tommy assinou e eu
embarquei em um jatinho para a República Dominicana, onde divórcios de
mútuo consentimento para estrangeiros são processados com rapidez. Eu
fui para Santo Domingo, falei com um juiz, peguei os meus papéis da
liberdade, voltei para o jatinho e fui direto para Tampa, onde o Derek
treinava durante a primavera! Eu finalmente estava me sentindo como uma
borboleta.
Não tenha medo de voar... abra as suas asas
Abra a porta ... Há muito mais coisas no seu interior

Eu não tive medo de voar esse voo. Eu estava muito vulnerável e sem
nenhum disfarce mais. Eu havia fechado e aberto uma porta. Eu sabia que
eu tinha muito que viver ainda e muito trabalho pela frente – e na época eu
achava que eu seria feliz para sempre com o Derek Jeter. A minha vida
romântica até então tinha sido tão sombria, por que não acreditar em um
conto de fadas? Eu mal podia esperar para me jogar nos braços dele com
os papéis do divórcio em mãos. Finalmente!

Nenhum de nós queria desvalorizar o nosso romance traindo o meu


casamento com o Tommy. Sei que muitas mulheres teriam transado
naquele terraço enquanto chovia, ou então teriam transado na pousada na
praia. Teria sido justificado – eram situações tão sedutoras, e o meu
casamento horrível estava em ruínas na melhor das hipóteses – mas não
teria sido certo. Eu queria esperar o momento certo. A minha vida inteira eu
desejei gostar de um homem de verdade. Valeu a pena esperar para que
acontecesse do jeito que eu queria.

Eu já tinha sofrido tantas experiências ruins com homens; eu realmente


não sabia como era escolher e ser escolhida à minha maneira. Eu nunca
fui louca por sexo – nem mesmo na minha noite de núpcias, e em ocasião
nenhuma. Toda a paixão que eu tinha, eu usava nas minhas músicas. Desta
vez, o Tommy acertou; eu estava inspirada. Era tudo tão sensual – tudo tão
novo, tudo tão fofo, até mesmo a pele lisa do Derek, que parecia ter sido
mergulhada em mel. Era assim que os sentimentos tinham que ser. Os
meses que antecederam o nosso encontro criaram um desejo tão intenso
que eu jamais poderia ter imaginado. Era tudo tão inebriante, tão excitante
210
e eu estava me sentindo tão vulnerável. Eu estava sentindo um fogo que eu
não sabia que existia dentro de mim.

O Derek me confessou na época que estava “por dentro” de que eu


estaria no jantar onde a gente se conheceu. Ele aparentemente falou para
várias pessoas que estava a fim de me conhecer, inclusive para alguns
contatos que ele tinha e que eram ligados ao Armani. Ele revelou que ele e
um amigo dele tinham pôsteres pendurados nas paredes do quarto: o pôster
do amigo dele era da Alyssa Milano e o pôster dele... Bom, precisa dizer? É
claro que era um pôster meu. Aparentemente, muitas pessoas sabiam que
ele era meu fã, muito antes de nos conhecermos.

“Eu tinha um plano”, ele me disse. “Eu queria ir para Nova Iorque para
entrar no time do Yankees. Eu ia te conhecer para então te tomar do Tony
da gravadora Sony” – ele chamava o Tommy de Tony – “e então a gente ia
se casar”. Eu sorri de orelha a orelha. “OK. Eu gostei desse plano.” Só que
ele não me roubou do Tommy – eu que me libertei.

Não havia nada de promíscuo no meu relacionamento com o Derek. Mesmo


na noite quando a gente transou, quando eu dormi na casa dele em Tampa,
até mesmo a irmã dele estava lá. Então foi algo totalmente sem maldade
alguma. Eu me lembro quando eu acordei no dia seguinte, pensando toda
empolgada, eu vou preparar o café da manhã para ele! Exatamente como nos
filmes. Desci na ponta dos pés até a cozinha com o cabelo todo despenteado
depois de uma noite de paixão, usando a camiseta enorme dele dos Yankees.

Eu estava tentando achar na geladeira três ovos e nada mais. A irmã


dele me viu procurando os ovos e nós duas rimos dos meus planos
frustrados de fazer algo como nos filmes de comédia romântica. Ela era
gentil e eu me dei bem com ela na mesma hora. Eu não conhecia muitas
mulheres jovens de etnia mista. Ela era linda, com um coração enorme e
uma risada honesta.

A família inteira dele me deixou comovida. Durante toda a minha vida, eu


vivia culpando as questões raciais pelos problemas que a minha família tinha,
mas conhecer a família Jeter pôs um fim a esse mito. O desmantelo da
minha família era mais profundo do que cor de pele. Esta família parecia
com a minha em aspecto de questões raciais, mas ao mesmo tempo tão
diferentes da realidade da minha família – eles eram próximos e amorosos.
Eles interagiam um com o outro como se realmente se conhecessem e se
importassem um com o outro. Eles eram pessoas de confiança, pessoas
íntegras. Eles se abraçavam. E ainda foram gentis comigo, todos eles. Foi
um grande exemplo para mim: um pai negro e uma mãe branca convivendo
211
em harmonia e agindo como pais de verdade. Uma irmã e um irmão
orgulhosos um do outro, não inimigos. Eis a prova de que uma família que
se parecia com a minha podia sim ser estruturada. Talvez a noção, de que
uma família mista podia ser perfeitamente estruturada, foi o grande legado
que o Derek me deu no nosso curto relacionamento. A imagem da família
Jeter me deu esperança.

Mas Tampa era apenas um paraíso de fim de semana, e eu tinha que


voltar para Nova Iorque e focar mais no CD Butterfly. Eu tinha que me
preparar também para a turnê, que, na época, seria a minha maior turnê.
Duas amigas minhas, que vieram se encontrar comigo, estavam animadas
para que a gente pudesse comemorar a minha separação do Tommy e
fomos todas juntas para Nova Iorque num jatinho. Foi difícil ter que deixar
para trás o que parecia um sonho, mas eu também estava ansiosa para
voltar ao trabalho. O Derek me deu de presente de despedida uma pequena
pulseira de ouro para colocar no tornozelo e um cachorro de pelúcia gigante.
Muito fofo. Eu só tinha trazido comigo algumas saias curtas que eu tinha
usado na República Dominicana, então o Derek me deu um dos seus
moletons para que eu usasse no avião.

Chegamos no aeroporto particular onde o jatinho e as minhas amigas


estavam me esperando. O Derek abriu a porta do carro para mim, e ao sair,
eu senti o sol da Flórida; com as bochechas coradas, com os lábios
carnudos, e com os cabelos ainda despenteados depois de alguns
amassos pela manhã. Usando o meu enorme óculos escuros da Chanel, o
meu corpo parecendo minúsculo por causa das enormes calças de moletom
do Derek, com as barras da calça enroladas para cima e com os cós da
cintura enrolados para baixo, deixando os meus tornozelos e o meu umbigo
à mostra. Eu puxei as mangas da jaqueta para cima também, a parte de
baixo da jaqueta balançando ao vento e roçando no top curto que eu estava
usando por baixo. Tentando me equilibrar com os meus saltos mule de 15
centímetros, eu lutava para carregar o enorme bicho de pelúcia em um braço e
a minha bolsa hobo da Louis Vuitton no outro.

Quando eu me aproximei das minhas amigas, pude ouvi-las gritar


“nhaíííííííí!” Elas disseram que eu estava desfilando pela pista parecendo
um cowboy usando sapatilhas de balé. Bebemos champanhe e brindamos
pela aquisição dos papéis da liberdade e, por fim, fomos vacinadas com
vitamina D. Rimos durante todo o voo para Nova Iorque.

O Derek foi a segunda pessoa que eu transei na vida (por coincidência,


ele vestia a camisa número 2 no Yankees). Assim como a posição dele no

212
time39, o nosso relacionamento foi super importante na minha vida. Foi uma
transição fundamental para mim, e talvez um sonho que tenha se tornado
realidade, ou que talvez tenha sido só uma conquista para ele. Eu não sei.
No final das contas, logo ficou claro que o nosso relacionamento não ia dar
certo. Por um lado, há um grande abismo entre atletas e artistas e,
honestamente, é difícil para duas estrelas de qualquer ramo darem certo.

O tempo que eu passei com o Derek foi um sonho doce e curto, mas
ainda assim o seu impacto perdurou. Eu me lembrava disso de vez em
quando mesmo depois de tanto tempo. Certa vez, eu estava me sentindo
super triste ao relatar o nosso breve caso de amor para uma amiga.
Tentando imitar a voz da Joan Crawford da melhor maneira possível
enquanto eu falava, eu lamentei: “A mãe dele me amava! A irmã dele me
amava! O pai dele me amava! Poderia ter sido perfeito!” A energia
percorrendo o meu corpo naquela hora foi tão grande, que a taça de
champanhe que eu estava segurando se estilhaçou completamente. E foi
essa intensidade que eu usei na música “Crybaby”.

Tarde da noite como uma criança


Vagando sozinha na casa do meu novo amigo
Na ponta dos pés, para que ele não saiba
Eu ainda choro, amor, por você e por mim
Eu não consigo dormir
Estive acordada a semana toda
Não consigo parar de pensar em nós dois
E tudo que nós costumávamos ser
Poderia ter sido tão perfeito
Veja, eu choro sem parar
Oh, eu preciso dormir um pouco

–“Crybaby”

Sejamos francos, como artista, eu sou rainha de pegar as sobras e fazer


muitas refeições. Eu tirei vantagem e extraí do pouco tempo que eu passei
com o Derek muito mais do que valia. O meu sexto álbum de estúdio, o
Butterfly, foi lançado para o mundo e, desde então, já vendeu mais de 10
milhões de cópias.

Embora o nosso relacionamento tenha sido apenas um breve momento,


o Derek serviu a um propósito essencial em minha vida. Ele foi o responsável

39 A posição dele no time: o Derek ocupava a posição shortstop, ou interbases, que é uma
das mais importantes no beisebol e por isso que ele usava a camisa número 2.
213
por eu ter saído do controle incapacitante do Tommy e por eu entrar em
contato com a minha sensualidade. E a intimidade da nossa experiência
racial em comum foi importantíssima — me conectar com uma família
saudável que se parecia com a minha foi muito inspirador. O Derek
apareceu no lugar certo, na hora certa e para o propósito certo.

O Derek foi um amor NA minha vida, não o amor DA minha vida. Talvez
fosse a ideia do que eu imaginava que ele era, em vez da realidade, que
me atraiu por ele. Por fim, eu atribuo o término do nosso namoro ao fato de
que a gente não conseguiu corresponder às fantasias um do outro. Não dá
para competir com a fantasia. Simplesmente não dá. É tipo como a Marilyn
costumava dizer: “Vão para a cama com a Marilyn Monroe, mas acordam
com a Norma Jeane”.

A lição é aprendida sempre do jeito mais difícil. Nenhum “Dreamlover”


(namorado dos sonhos) virá me resgatar e nenhum príncipe encantado ou
Joe DiMaggio virão para roubar o meu coração. Fui conquistada por um
jogador de beisebol, mas só Deus Todo-Poderoso é o meu tudo.

214
VISITANDO O PRESIDENTE

Eu precisava conseguir o que eu queria, e eu queria liberdade. Eu precisava


não apenas me libertar do meu casamento com o Tommy, mas também da
Sony, já que eles estavam intimamente ligados.

Os executivos da Sony costumavam me chamar de “a franquia”


(loucura, né?), então, quando eu estava prestes a sair da gravadora, eles
dificultaram as coisas para mim. O vai e vem das negociações com os
advogados sobre quais obrigações eu deveria cumprir era simplesmente
sem fim. A gente concordou que um CD, que não tinha nome ainda, deveria
ser lançado (CD esse que acabou se chamando Rainbow).

Eles queriam também que um CD com os meus maiores sucessos fosse


lançado. Eu hesitei em relação a isso porque eu achava que estava cedo
demais, pois parecia que eles estavam tentando me estabelecer como uma
artista somente dos anos 90.

Não importava com quem eu falasse na gravadora, o Tommy ainda era


o mandachuva. Não havia ninguém acima dele na Sony Music – tudo tinha
que passar por ele. Quando eu comecei a cogitar a possibilidade de sair da
gravadora, fui impedida de todas as maneiras. O Tommy queria se vingar
de mim e usava o seu poder para me manter como refém. Quando as coisas
ainda não estavam indo bem, eu senti que não tinha outro jeito a não ser
fazer uma visita ao Norio Ohga, presidente e diretor da Sony Corporation.
Eu nunca tinha feito nada assim. O Tommy era o maior chefe que eu já
havia enfrentado até então. Ir acima dele parecia uma ideia descabida e
perigosa, e certamente foi o último recurso que eu usei ao meu favor. Eu
não tinha escolha: era a minha liberdade, a minha carreira e a minha vida
que estavam em jogo.

Eu sabia que eu era a artista de maior sucesso no Japão que a Sony


tinha na época, então eu achei que eu poderia ao menos conseguir uma
reunião. A minha assistente executiva organizou a viagem para nós duas –
e para mais ninguém, nem mesmo para a minha advogada.

Eu liguei antes e disse: “Eu vou para o Japão e eu gostaria de falar com
o Sr. Ohga.” Enquanto isso, o pessoal da Sony estava provavelmente
ocupado trabalhando na próxima grande tecnologia global a ser lançada ou
algo assim. Na época, eu não achava que o que eles ganhavam com o

215
negócio da música fosse insignificante se comparado com o resto. Eu só
pensava que devia haver alguém acima do Tommy. Tinha que haver alguma
saída e eu estava disposta a fazer qualquer coisa. Então, eu decidi fazer as
malas, voar para o outro lado do mundo e falar cara a cara com o homem
que realmente comandava as coisas.

A assistente do Sr. Ohga era uma mulher que me tratava com bastante
gentileza e que me ajudou durante toda a viagem. Continuamos amigas por
muitos anos depois. O Sr. Ohga falava inglês, mas sempre havia um
intérprete presente. Eu estive várias vezes no Japão e estava um tanto
familiarizada com as diferenças culturais, principalmente no que se refere
a tratar todos com respeito para não ser desrespeitada. O que era mais
difícil de lidar eram as expectativas culturais quanto aos papéis de gênero.
O Sr. Ohga era muito antiquado e tenho certeza de que ser confrontado por
uma jovem foi assustador para ele, mesmo que a jovem fosse a artista mais
bem-sucedida da sua gravadora. E, sinceramente, eu nem acho que ele
sabia que eu era birracial, e não fazia ideia também que uma jovem negra
estava indo ao seu escritório, para pedir liberdade. Foi uma atitude corajosa,
mas eu tinha as vendas dos meus produtos para me apoiar. Naquela época,
streaming não existia. As vendas eram de objetos físicos, coisas que as
pessoas tinham que sair e comprar – 100 milhões de álbuns, DVDs, CDs,
fitas VHS! As pessoas compravam produtos e pôsteres. Afinal, eu era “a
franquia”. Até hoje eu não sei quanto a Sony faturou comigo. Me disseram
que é algo na casa dos bilhões.

O escritório do Sr. Ohga era sério e elegante assim como ele próprio. O
escritório dele também era mal iluminado, e tinha como peça central, uma
grande mesa tradicional envernizada de preto. O Sr. Ohga era formal e
bastante focado. Eu não me preparei como deveria para a sua extrema
formalidade, sinceramente. Eu não havia consultado nenhuma equipe de
preparação ou mesmo consultores. Então não houve nenhuma preparação,
mas eu tinha um propósito claro. A minha intenção na reunião era que
decidíssemos uma estratégia para eu poder sair da Sony. Precisaríamos
definir os termos de um acordo e eu queria ter certeza de que haveria
suporte de marketing da Sony para o trabalho que eu iria entregar. Apesar
de querer muito sair da Sony, eu sabia que os meus fãs mereciam receber
de mim um tipo de música da mais alta qualidade, nada menos que isso.
Eu queria que a Sony soubesse que eu iria trabalhar bastante e que eu iria
promover o meu trabalho incansavelmente. Eu queria ser vista e ouvida; eu
queria que percebessem a minha presença, que percebessem que eu estava
prestando atenção, que percebessem que eu estava falando sério e que eu
estava disposta a expressar as minhas opiniões.

216
Eu precisava ter certeza de que, se eu cumprisse com a minha parte da
negociação com esses novos CDs, eles não me passariam a perna com
sabotagens. Se eu fosse colocar o meu coração e a minha alma neste
trabalho, eu precisava que eles me dessem a sua palavra de que fariam
todo o possível para apoiar o projeto, como costumavam fazer. Foi uma
reunião breve, mas que teve um impacto duradouro.

O próprio Tommy uma vez foi falar direto com os executivos japoneses
para derrubar o Walter Yetnikoff, um ex-mentor, e que depois virou o seu
rival. Esses homens poderosos não eram apenas bem conhecidos por
esses tipos de negociações cruéis, mas eram também incentivados a se
defenderem. Embora eu não fosse um artista masculino e não tivesse o
apoio dos meus pais ou dos meus advogados na sala, eu estava mais forte
agora e não iria permitir que brincassem com a minha cara nunca mais.

Posso ter parecido mandona, mas eu também fiquei super triste com
todo o processo. Eu queria continuar na Sony, mas eu não sabia como a
situação ia ficar depois que o meu casamento com o Tommy chegasse ao
fim. No fundo, eu esperava que ele fosse despedido para que eu pudesse
ficar. Não foi a primeira vez que ele causou problemas – o George Michael
o processou, e também o Michael Jackson lançou uma campanha contra a
exploração de artistas negros, explicitamente dirigida ao Tommy, com o
reverendo Al Sharpton na sede do Harlem da National Action Network (Rede
de Ação Nacional).

O Sr. Ohga pode não ter concordado em despedir o Tommy no dia


seguinte, mas quando eu fui ao Japão, as pessoas perceberam. Elas agora
estavam ouvindo. A minha música teve um impacto naquela cultura, naquele
país e naquela empresa. Ir para o Japão foi difícil para mim, mas mudou a
minha vida. Eu tomei uma atitude, por mim e para mim. Eu fiz com que isso
se tornasse realidade e logo eu estaria livre.

Embora eu esperasse ter mais tempo e uma reunião mais detalhada, no


final das contas, eu só tinha que agradecer porque o Sr. Ohga me respeitou
o suficiente e aceitou fazer uma reunião comigo, e acabamos fazendo um
acordo; é por isso que, anos depois, eu consegui retornar à empresa com o
CD Caution, que curiosamente é o meu CD mais aclamado pela crítica.
Quando eu voltei para casa para lidar com os outros chefes que estavam
nos EUA, chegamos a um acordo final que incluía quatro CDs. Esses quatro
CDs deveriam ser entregues nos próximos cinco anos: #1's, Rainbow,
Greatest Hits e The remixes. O CD #1’s, cujo conceito e proposta foram dados
por mim à Columbia, seria o primeiro a ser lançado, em 1998.

217
Eu não queria só relançar músicas antigas, então, além dos treze
sucessos que tinham ficado em 1° lugar na época, eu coloquei mais quatro
músicas novas no CD. O Brian McKnight e eu gravamos um dueto
totalmente novo de “Whenever You Call”, do CD Butterfly. Eu também fiz um
dueto com o Jermaine, uma versão de “Sweetheart” da Rainy Davis. Eu fiz
uma versão de “I Still Believe”. E por último, mas certamente não menos
importante, o CD #1's incluía a música “When You Believe”, um dueto que
eu fiz com a Whitney Houston para o filme O Príncipe do Egito.

Foi interessante gravar essa música. O Jeffrey Katzenberg, da


DreamWorks, me mostrou a música e perguntou se eu gostaria de gravá-
la para a trilha sonora de um filme de animação. A trilha sonora estava
repleta de influências de R&B e gospel e contava com a participação de K-
Ci & JoJo e do Boyz II Men. Depois de assistir o filme, eu sabia que era algo
especial do qual eu gostaria de fazer parte (o filme arrecadou U$ 218
milhões de dólares em todo o mundo, considerado o longa-metragem de
animação não pertencente aos estúdios Disney de maior sucesso da
época). Mas, principalmente, eu estava empolgada com a possibilidade de
trabalhar com a Whitney!

Foi um momento épico para o pop quando a Whitney e eu fizemos um


dueto juntas, mas eu fiquei mais feliz porque nós acabamos foi nos divertindo
muito. Todos queriam que a gente tivesse uma rivalidade, como se fosse
um “campo de batalha entre divas” – algo patético e doentio que é difundido
na indústria da música e em Hollywood, que quer que as mulheres fiquem
competindo por vendas, como lutadoras sentimentais de UFC. Essa narrativa
apenas apoia o estereótipo de que todas as mulheres são fúteis e de que
não controlam os seus sentimentos, e de que podem ser totalmente
manipuladas pelos homens da indústria.

É óbvio que a Whitney era formidável. Quem não foi inspirado pela carreira
dela, por quem ela era como artista e também pela sua incomparável voz?!
Mas nós duas éramos muito diferentes. Eu amava (e ainda amo) fazer
arranjos de backing vocal e harmonizar com camadas da minha própria voz
nas minhas músicas, compor, produzir e estar por trás dos bastidores. Ela
meio que já nasceu assim, como uma princesa real da voz. Para nós, não
havia competição. Nós nos complementávamos. Os nossos corações
estavam ancorados no Senhor de verdade, embora fosse surreal a maioria
das coisas que acontecia ao nosso redor. Depois que a grande indiferença
entre nós (criada por forças externas) teve um fim, nós desenvolvemos um
verdadeiro carinho uma pela outra. Ela tinha um senso de humor
maravilhoso. Ela começou a falar igual a mim e passou a me chamar de
“lamb” – era pura diversão.
218
O Bobby Brown estava sempre por perto e eu não sabia dos detalhes
do que estava acontecendo, mas não era da minha conta. Só sei que a
gente se divertiu e riu muito. Gravar o clipe também foi muito divertido;
passamos muitos momentos incríveis juntas. Todos os dias que a gente
passou juntas foram especiais, e sempre vou guardar com carinho a
lembrança daquela época e de todo o seu legado. “When You Believe” é um
testemunho do poder da fé e, para mim, da irmandade aqui na Terra como
no Céu.

O CD Rainbow foi lançado no ano seguinte e que era um CD muito


diferente do CD de coletânea do #1's. Era muito mais complexo. Por razões
óbvias, teve muita pressão para que fosse concluído o quanto antes, então
eu compus as músicas e gravei o CD Rainbow num período de três meses.
Eu estava desesperada para que eu pudesse trabalhar sem nenhuma
distração. O meu amigo de longa data, Randy Jackson, sugeriu que eu
procurasse um estúdio muito bom de gravação que ficava isolado na ilha de
Capri (que eu amo mais do que qualquer lugar no mundo). Neste paraíso
localizado em antigas montanhas de calcário e acima do Golfo de Nápoles,
eu tinha um lindo e pequeno apartamento bastante iluminado pela luz do sol
todas as manhã e com bastante privacidade também. Eu me sentava em um
cômodo do estúdio cheio de velas e deixava a criatividade fluir; eu passava
horas apenas compondo e gravando vocais das minhas músicas. Eu
geralmente escrevia sozinha, mas às vezes eu escrevia com o
incomparável Terry Lewis, que eu amo como compositor, e enquanto isso o
Jimmy Jam com a sua brilhante musicalidade fazia todo o resto. (Juntos,
eles são responsáveis por 41 dos sucessos que já ficaram na categoria top
10 dos EUA.) Sem eles, o CD não teria ficado tão bom. Nós três
trabalhamos juntos do início ao fim na música “Can't Take That Away
(Mariah's Theme)”, porém, eu mostrei a música também para a Diane
Warren, que tocou no piano enquanto eu cantava a letra e a melodia da
primeira estrofe. Nós escrevemos a segunda estrofe juntas. A música falava
sobre a situação profissional e pessoal que eu estava passando:

Eles podem dizer o que quiserem


Podem tentar me derrubar, mas eu não vou permitir
Que ninguém tenha sucesso tentando me diminuir
E eles podem se esforçar para que eu me sinta
Como se eu não valesse nada
Mas eu me recuso a vacilar no que acredito
Ou perder a fé nos meus sonhos

Porque há
Há uma luz em mim
219
que brilha intensamente
Eles podem tentar
Mas não conseguirão tirar isso de mim

–“Can’t Take That Away (Mariah’s theme)”

Desde criança, eu tenho que recorrer à “luz em mim / Que brilha


intensamente” para conseguir superar as coisas, para conseguir sobreviver.
Então era uma música que falava sobre muitas coisas, mas quando eu a
escrevi, veio na mente tudo o que estava acontecendo comigo na época, fala
sobre o Tommy e os longos anos que passei sob o seu controle. Esse era o
meu tema - “Eles podem tentar / Mas não conseguirão tirar isso de mim / De
mim, não, não, não”.

O clipe (produzido e financiado por mim), embora não seja o mais


sofisticado em termos de efeitos especiais e valores de produção, foi
inovador. Nós filmamos o clipe no Japão, e na época, não era comum a
participação de fãs e o uso de conteúdo gerado por usuários. Foi importante
colocar os meus fãs como peça central do clipe porque assim eu saberia
qual era a opinião deles sobre o que eu estava compondo a respeito da
minha vida para eles. Coletamos bastante materiais: filmagens de pessoas
comuns, filmagens de pessoas reais que haviam superado dificuldades e
conseguido realizar coisas extraordinárias. O clipe também incluía
medalhistas de esporte como a Venus e a Serena Williams, mas
principalmente pessoas que faziam parte da minha vida e que eu amava
muito, como o meu sobrinho Shawn, que, apesar de ser filho de uma mãe
adolescente problemática, se formou em direito na Harvard, e a avó da Da
Brat. O clipe estava repleto de muita emoção e de momentos de vitória –
histórias reais e genuínas. Eu queria expressar a ideia de que tudo é
possível de se concretizar. Eu queria que o clipe fosse uma homenagem a
todos os fãs que me ajudaram a superar tudo.

A música não fez sucesso porque foi pouco promovida pela gravadora
– e foi o período em que as sabotagens tiveram início. Mas a música era
importante para o fãs, era também importante para as pessoas que
precisavam ouvir. E isso é o que importa. Até hoje, eu ainda ouço CTTA de
vez em quando. Eu ainda preciso ouvir.

“Petals” era outra música importante no CD Rainbow. Ela foi e ainda


continua sendo parte de uma expressão dolorosa para mim. Fala sobre a
minha vida, a minha família, o meu crescimento. Foi uma forma tanto de
agradecer quanto de me despedir das influências tóxicas em minha vida.
220
Muitas vezes me perguntei se alguma vez já existiu uma família perfeita
Sempre desejei ter união familiar e sempre busquei estabilidade

–“Petals”

De certa forma, “Petals” narrava parte da minha história de vida através


de capturas de tela das experiências que me tocaram e mudaram. Com
essa música, eu desejava perdoar e imaginar um outro tipo de vida no futuro
– um tipo de vida com menos dor e com mais cura. Então eu compus a
música para liberar um pouco da dor. Mas ainda há momentos em que a
dor me sufoca e que eu não consigo cantar a música.

Duas músicas do CD Rainbow ficaram em 1º lugar – “Heartbreaker” (a


minha décima quarta música em 1º lugar, com o Jay-Z) e “Thank God I
Found You” (a minha décima quinta música em 1º lugar, com a colaboração
do Joe e do 98 Degrees, e com a colaboração do Nas na versão remix). Eu
sentia que era importante reunir os artistas que estavam bombando na
época, e o Usher, o Snoop Dogg, o Jay-Z, a Da Brat, a Missy Elliott, o
Mystikal e o Master P também fizeram parte do CD.

Depois de trabalhar no estúdio de Minneapolis do Jimmy e do Terry, eu


voltei para Nova Iorque para gravar “Heartbreaker” com o DJ Clue. O Jay-
Z fez uma participação também na música, e ela se tornou o sucesso que
todos nós conhecemos e amamos. Fizemos a versão remix de
“Heartbreaker” entre Nova Iorque e Los Angeles. O DJ Clue foi responsável
por colocar vários artistas maneiros, como o Joe e o Nas na versão remix
de “Thank God I Found You (Make It Last).” O CD Rainbow encerrou o
século XX e, para mim, foi a ponte que me conectou com a liberdade. Mas,
como dizem, a liberdade não é de graça.

Foi um período conturbado gravar o CD, mas também foi gratificante.


Naquela época, eu tinha uma ideia concreta de como criar uma música a
partir de um ritmo e preferências específicas. Eu costumava criar diferentes
partes de uma música em diferentes lugares. Eu realmente amo o processo
de compor junto com alguém, mas a parte de cantar os vocais é um
processo mais íntimo para mim. Enquanto eu componho, eu gosto de
gravar um vocal de referência com a melodia antes, às vezes sem a letra
da música ou então com partes dela, aí depois disso eu pego esse vocal
de referência, termino a letra, finalizo os vocais, dou uma melhorada e
completo com a parte do backing vocal. Eu gosto de cantar a minha parte
solo quando não tem ninguém por perto, apenas eu e o meu engenheiro de
som. Se eu soubesse fazer o que um engenheiro de som faz, eu faria igual
221
ao Prince: gravaria tudo completamente sozinha. Eu prefiro não ter que
considerar a opinião das outras pessoas no desenvolvimento dos vocais.
Eu gosto de um espaço calmo onde eu possa trabalhar e ficar focada; eu
preciso ouvir os meus pensamentos e ver a visão na minha cabeça. Eu
preciso brincar com a música, fazer algumas mudanças quando necessário
e é claro que eu preciso cantá-la algumas vezes. Onde é que precisa subir
o tom? Onde não precisa? O ato de gravar música é uma espécie de ciência
espiritual se comparado com uma apresentação vocal ao vivo. A melhor
situação para mim é quando eu posso ir com calma para poder vivenciar a
música.

O CD Greatest Hits foi lançado pela Columbia em 2001. Era um CD duplo,


que incluía hits comerciais de sucesso e algumas músicas favoritas para
mim e para os fãs como “Underneath the Stars” e o meu dueto com o lendário
Luther Vandross, uma nova versão de “Endless Love”. O meu último CD para
a Columbia, que marcaria o fim do meu contrato com a Sony, foi o The
remixes. Quando ele foi lançado, em 2003, o Tommy havia saído da
Columbia / Sony, então eu pude contribuir de forma mais criativa no CD e
investir mais.

O conceito para a coletânea foi inédito: era um CD duplo como o the


Greatest Hits, só que no primeiro CD estavam todas as músicas eletrônicas
(club mixes), e no segundo estavam todas as colaborações e remixes de
hip-hop, de “Honey” a “Loverboy (Remix)” a “Breakdown”, apresentando
Bone Thugs-N-Harmony. Incluía até o remix So So Def de “All I Want for
Christmas” com o Lil’ Bow Wow (ele ainda era pequeno na época) e a minha
música de sucesso com o Busta Rhymes e o Flipmode Squad, “I Know
What You Want”.

Mas antes desses dois últimos CDs, eu fechei um novo acordo para poder
ganhar a minha liberdade. Depois de participar de reuniões com todas as
grandes gravadoras, eu acabei escolhendo a mais eclética, a gravadora
Virgin, que era muito cordial com os artistas (o Lenny Kravitz e a Janet
Jackson faziam parte de lá). Eu acreditava que, se eu tivesse dinheiro e
apoio de marketing suficientes, nós faríamos sucesso. Com um contrato
novo e histórico, eu estava prestes a embarcar no projeto que ia mudar a
minha vida— o Glitter.

222
3° PARTE

ALL THAT GLITTERS


(TUDO QUE RELUZ)

A SAGA GLITTER
FIRECRACKER

“Ele sabe que a gente acabou de fazer merda com a Mariah...


e ele está tentando fuder com a Mariah.”

–Irv Gotti

A produção do Glitter foi atrapalhada por uma série de coisas: puro azar,
mau planejamento e sabotagem.

No início, a trilha sonora e o filme se chamavam All That Glitters (tudo que
reluz), e embora eu tenha começado a trabalhar no projeto em 1997, a gente
teve que adiar tudo por vários anos para que eu pudesse cumprir obrigações
mais urgentes com a gravadora Columbia. Embora eu possuísse um certo
controle na criação da trilha sonora, já se tratando do filme, eu praticamente
não tinha nenhum tipo de controle. O conceito inicial que eu tinha criado para
a história do filme foi quase que totalmente mudado. Eu comecei a trabalhar no
roteiro com a minha professora de teatro e com a Kate Lanier, que havia escrito
What’s Love Got to Do with It (PT-BR: Tina - A Verdadeira História de Tina
Turner). Ela é uma escritora tão talentosa, que eu acabei realmente confiando
nela. Mas a cada dia que passava, a gente recebia mais e mais observações
do que deveria ser mudado.

O Tommy não conseguia abrir mão do controle, principalmente agora


que eu estava fazendo o que eu sempre havia sonhado fazer, e o que ele
mais temia: atuar. O filme Glitter estava sendo produzido pela Columbia
Pictures, que pertencia à Sony, e que por sua vez estava ligada ao Tommy.
O presidente da Columbia Pictures na época se referia a ele enquanto
trabalhávamos como “o elefante branco na sala” – um problema óbvio que se
vê, mas que ninguém comenta ou toca no assunto. Qualquer tipo de inovação,
qualquer tipo de coisa que pudesse ter tornado o filme para maiores de 18
anos ou classificado o filme com alguma faixa etária específica, foi
rapidamente vetado. Nada podia ser muito real, muito ousado, muito sexy
ou muito realista. Deveria ter sido um roteiro muito mais intenso e totalmente
mais realista (qual é, a gente está falando dos anos oitenta!), mas acabou
se tornando algo muito água com açúcar.

Por causa das idas e vindas sem fim e do controle sufocante do Tommy,
o roteiro mudava todos os dias. Ninguém sabia o que estava acontecendo
de um momento para o outro. Além de um roteiro muito diferente, eu
também queria que o Terrence Howard fosse o ator principal (eu imaginava

224
ele sendo o ator principal muito antes do filme Hustle and Flow (PT-BR: Ritmo
de um sonho), que isso fique claro. Mas as forças externas rejeitaram a ideia
de um romance entre o Terrence e eu. Eu desconfiava que era porque ele é
mais negro do que eu (embora ele também seja birracial!) e os poderosos não
entendiam como isso daria certo, se é que me entendem. Então eu fiquei super
chateada. Não estou desconsiderando o Max Beesley, por favor, ele foi
ótimo no papel.

Além da falta de controle criativo, eu me sentia, por N motivos, muito


inibida quando eu atuava e isso era por causa da minha professora de
teatro, que na época, eu acredito, estava investindo muito na minha
carreira. Eu não quero falar mal dela, mas ela me impediu de dar o meu
melhor quando passou a projetar as suas próprias frustrações pessoais no
filme. Ouvi dizer que isso acontece com frequência em colaborações; a
situação que eu passei com a minha professora de teatro ficou muito
parecida com a situação que a Marilyn passou com a sua professora de
teatro, a Paula Strasberg. Com todo o respeito, era uma verdadeira guerra
de egos (tenho certeza de que ela concordaria comigo agora). O que eu
queria era que os figurantes e as outras pessoas no set – dos atores à
equipe – soubessem que eu estava falando sério, que eu estava pronta
para aprender e pronta para trabalhar tanto quanto eles. Embora todo o
processo não tenha sido ótimo, eu senti que atuei bem algumas vezes (se
o filme tivesse sido editado de forma diferente, isso seria percebido mais
facilmente). Eu não estava chateada, porque era tudo muito novo para mim,
mas eu acredito que deslizes ocorreram a todo momento.

Mas eu conseguia ver uma luz no fim deste túnel cheio de glitter. O Frank
Sinatra disse uma vez que a Dani Janssen foi uma das “primeiras garotas
da Broadway” de Hollywood, e eu adoro essas garotas da Broadway,
especialmente as que sabem dar uma boa festa. As festas do Oscar
promovidas pela Dani Diamonds (esse era o nome artístico dela) são
lendárias – e eu não ando falando a palavra lendária à toa por aí. A maioria
dos convidados, para participar da festa, precisa ter ganhado um Oscar ou
ter sido nomeado para ganhar um. Os convidados dela são todos artistas
de renome – O Sidney Poitier, o John Travolta, o Quincy Jones, a Oprah, a
Babs (a Barbra Streisand) e assim por diante. E a cada ano uma nova safra
de novos vencedores do Oscar se unem aos ícones em sua enorme coleção
de artistas bem-sucedidos. Uma vez, eu tive a sorte de receber um convite
surpreendente e muito especial (naturalmente, a Dani e eu nos demos
muito bem). Um dos atores mais badalados da época, ganhador de dois
Oscars (o código da Dani de não “fazer contatos profissionais” ou de não
ficar falando os nomes dos famosos que você já conheceu é levado muito
a sério, então eu não vou dizer o nome dele), veio até mim e falou sobre o
225
meu trabalho no filme Glitter, “eu sei que as pessoas te detonam por causa
disso. Isso já aconteceu comigo. Você estava retratando algumas coisas
que eram muito genuínas e eu acho que você deveria continuar fazendo
isso. Não permita que ninguém te diga que você não pode mais abordar
esse tipo de assunto.” Ele me fez sentir muito melhor por causa do imenso
respeito que eu tenho por ele como ator. E ainda bem que eu não desisti –
porque alguns anos depois, uma coisa realmente preciosa40 cruzou o meu
caminho.

Grande parte das coisas que deram errado no filme Glitter foi por causa
do Tommy. Ele estava muito puto por causa do nosso divórcio e também
porque eu tinha saído da Sony, e ele acabou usando toda a sua influência
e contato com pessoas poderosas para se vingar de mim. E todos ao meu
redor sabiam o que estava acontecendo, inclusive a minha nova gravadora.
O Tommy e os seus comparsas chegaram ao cúmulo de tirar itens
promocionais, como os meus porta cartazes de pedestal, das lojas de CDs.
Era uma luta sem fim. Ele não queria que ficasse parecendo que eu estava
conseguindo fazer sucesso por conta própria, aí por causa disso, ele acabou
conseguindo interferir na trilha sonora do Glitter. Fazia tempo que eu estava
trabalhando nisso, com pessoas como o Eric Benét e a Da Brat, que também
participaram do filme. O Terry Lewis mexeu os pauzinhos e assim a gente
pôde trabalhar com a música original “I Didn't Mean to Turn You On”. Já que
ela tinha sido produzida pelo Terry e pelo Jimmy Jam, tudo se tornou mais
fácil, é claro! E poder gravar a música “All My Life” escrita pelo Rick James
(que exigia um terno branco, uma limusine branca e outros tipos de
acessórios de cor branca para comparecer no estúdio) foi de um valor
inestimável.

Tudo parecia um sonho. E de muitas maneiras, aconteceu exatamente do


jeito que eu tinha sonhado há tantos anos. Não me levem a mal; longe de mim
querer comparar o meu filme Glitter com o filme Cat on a Hot Tin Roof (PT-BR:
Gata em Teto de Zinco Quente) de 1958 ou algo assim, mas eu não acho que
o Glitter merecia ter sido massacrado do jeito que foi. Ele poderia ter ficado
legal se os conceitos iniciais tivessem sido executados, mas que antes mesmo
de ser finalizado, foi uma trabalheira só tentar concluir o projeto. Mas, como
sempre, eu mantive a fé. Eu dizia a mim mesma na época: tudo vai dar certo,
eu vou conseguir superar tudo, não importa o que aconteça! Eu buscava
manter a esperança dizendo: isso só está difícil agora! E assim eu ia ficando
cada vez mais forte. E embora houvesse escuridão, foi através dessa escuridão
que eu aprendi a construir a minha própria luz.

40 Preciosa: filme preciosa – uma história de esperança.


226
O Tommy ficou furioso quando eu quebrei as amarras que ele usava para
me manipular. Era impossível para ele me ver fazer muito sucesso depois
de eu ter me separado dele e depois de eu ter saído da Sony. Ele não ia
permitir que nem eu ou o meu filme Glitter brilhasse; em vez disso, ele tinha
a intenção de nos eliminar. Ele não se daria por satisfeito a não ser que eu
flopasse terrivelmente. Ele costumava sempre dizer: “Você faz o que tem
que fazer, e eu finalizo com a minha magia.” Ele teria acabado comigo antes
mesmo de eu dizer que ele não tinha magia nenhuma. Se a trilha sonora do
Glitter tivesse feito muito sucesso, ele teria que admitir que ele não era
onipotente, que ele não era insubstituível, que a Mariah Carey não foi feita
sozinha por ele. Para aumentar ainda mais a sua raiva, o Tommy ficou
sabendo que eu tinha acabado de assinar o contrato mais caro com uma
gravadora até o momento (e a minha família ficou sabendo também, mas
depois falo mais sobre isso). E além disso, eu estava gravando um filme,
algo que ele proíbia terminantemente quando a gente estava juntos; isso
queria dizer que a minha carreira estava se expandindo e por causa disso
ele se sentia como se estivesse encolhendo. Ele já havia sido humilhado
publicamente quando eu me separei dele e ainda ter que me aguentar
fazendo sucesso sem ele? Isso era demais para o ego frágil dele suportar.
Qual seria o impacto do meu sucesso para o seu grande império baseado
na intimidação? Como ele reagiria caso outros artistas soubessem que eu
estava fazendo sucesso sem ele? Eu acreditava plenamente que o Tommy
estava comprometido de eu não viver uma vida que ele não pudesse
controlar, que ele só se daria por satisfeito quando acabasse totalmente
comigo.

Eu consegui escapar de um homem e de um casamento que quase


acabaram comigo. Eu fui uma dentre os muitos artistas que botaram a boca
no trombone sobre o Tommy e os seus lacaios por trabalharem contra os
interesses da empresa por causa de vingança.

Enquanto isso, na nova gravadora, estava a maior confusão porque


“Loverboy”, o primeiro single da trilha sonora do Glitter, tinha ficado apenas
em 2º lugar nas paradas de sucesso, não em 1º lugar. Eu não entendia por
que eles entraram em pânico por um single de uma trilha sonora de um
filme que nem tinha sido lançado ainda ter ficado em 2° lugar. Mas basta
dizer, que prestes a iniciar as filmagens do Glitter, a minha vida e o meu
trabalho estavam novamente sob muita pressão e grande controle.

E eis que sou sabotada. Eu havia escrito a letra de “Loverboy”; a melodia


era maneira e tinha um ritmo contagiante. O super produtor Clark Kent e eu
escolhemos o sample de “Firecracker”, da Yellow Magic Orchestra, e as
poucas pessoas que trabalhavam na produção do filme tinham adorado.
227
Isso não passou despercebido pelos executivos (e espiões) da Sony. Foi
eu quem escolhi a música e quem pagou também para que ela pudesse ser
usada no filme. Depois de ouvirem a minha nova música, e usando o mesmo
sample que eu usei, os canalhas da Sony fizeram um single às pressas para
uma outra artista feminina da sua gravadora (alguém que eu não conheço).
Eles usaram o sample de “Firecracker” e lançaram a música antes de
“Loverboy”. Ja Rule e eu escrevemos uma música juntos também, e logo
em seguida, o Tommy liga para o empresário do Ja Rule, o Irv Gotti, pedindo
para que eles dois trabalhassem juntos num dueto para o mesmo CD da
artista feminina – e por causa disso eu tive que correr e refazer a música,
pois eles tinham novamente copiado o meu conceito. O Irv até mesmo já
comentou sobre isso, em uma entrevista para o programa Desus & Mero:
“Ele sabe que a gente acabou de fazer merda com a Mariah... e ele está
tentando fuder com a Mariah.” Foi pura sabotagem, simples assim!

Olha, eu fui bem treinada na arte de transformar situações de merda em


adubo, mas o Tommy sabia que fuder com as minhas escolhas artísticas
era golpe baixo. Mas eu não ia deixar que ele me impedisse. Eu mudei
imediatamente a minha estratégia – de uma batida com influência mais
techno, que era a ideia original do projeto, eu passei a usar um sample da
música “Candy” do Cameo, que possui um estilo mais ligado ao funk (não
tem como não acertar usando as músicas do Cameo), e o Clark Kent
produziu tudo novamente. Depois que nós dois fomos roubados, ele salvou
a situação usando uma música diferente e tão legal quanto (com alguns
resquícios de “Firecracker”, que é a minha parte favorita da música). Sem
rodeios, a Da Brat mandou o seu recado no remix de “Loverboy”.

Me odeie o quanto quiser


Você não consegue fazer o que eu faço
As vadias ficam me imitando diariamente
Me odeie o quanto quiser
Você não conseguirá ser quem eu sou
As vadias ficam me imitando, baby

–“Loverboy (Remix)”

Até o Larry Blackmon (usando trancinhas) participou do meu clipe, que é


um clipe bem colorido, sexy e alegre. O clipe de “Loverboy” foi filmado por um
grande amigo meu, o incrível David LaChapelle. E nós nos divertimos muito
apesar de tudo.

Mas os bons momentos estavam prestes a ficar bem ruins.

228
MORTA, PORÉM VIVA

Depois de me separar do Tommy, eu passei a morar em hotéis e em


muitos outros lugares antes de finalmente possuir a minha própria casa. Eu
quase que comprava o enorme e elegante apartamento de cobertura da
Barbra Streisand, parte de um impressionante edifício de arte deco, localizado
na parte oeste do Central Park em Nova Iorque. Ela é bem conhecida por ter
uma paixão por design; a casa dela tinha uma decoração impecável e tinha
a ver com tudo que eu amava. Depois de tudo que eu passei para poder
construir a minha ex-casa, teria sido um alívio morar num local já pronto
para uso. Mas, infelizmente, eu não fui aprovada pelo conselho
conservador do condomínio, pois tiveram medo que muitos rappers e outras
pessoas desse estilo, vulgo negros, ficassem circulando pelas
dependências. Eu finalmente encontrei um prédio perfeito localizado no
centro, em Tribeca, e me mudei para o tipo de casa que eu sempre sonhava
quando eu era criança. Ter o meu próprio apartamento gigantesco e estiloso
de cobertura na cidade de Nova Iorque foi algo emocionante, mas que
também me deixou bastante desorientada. Eu finalmente possuía o meu
próprio espaço, mas muitas vezes eu não sabia onde as minhas coisas
estavam ou onde elas deveriam ficar. E eu não tinha tempo de organizar
nada porque eu estava trabalhando sem parar. Eu era conhecida na
indústria por ser uma pessoa bastante produtiva. Eu trabalhava
praticamente sem parar no estúdio e do mesmo modo eu trabalhava
promovendo e fazendo marketing. Eu me envolvia em todos os processos, e
todas as pessoas que trabalhavam comigo sabiam disso.

Trabalhar em um novo projeto numa nova gravadora estava exigindo


tudo de mim, e eu estava dando o máximo que eu podia. Havia toda essa
gente nova na gravadora e a minha equipe de gerenciamento pessoal não
foi devidamente reestruturada para atender às novas demandas. E,
honestamente, todas as mudanças e os altíssimos riscos envolvidos
estavam acabando com eles. A minha agenda era desgastante. Eu
participava de sessão de fotos ou de algum evento até as 3h da manhã,
depois eu participava de uma conferência de imprensa às 5h. Não havia
descanso. Em nenhum momento do meu dia havia D-E-S-C-A-N-S-O, e na
época, eu não sabia como contestar. Quando se trabalha sem parar, deve
haver alguns cuidados com a pessoa envolvida no processo: uma alimentação
saudável, exercícios físicos, descanso vocal, mas o mais importante de
todos, ter tempo para dormir. (Eu sabia disso, mesmo que eu só tenha
passado a me cuidar de verdade uma década depois).

229
Claro, o momento do lançamento da trilha sonora não poderia ter sido
pior– algo que ninguém poderia ter previsto. As pessoas não foram ao
cinema assistir o meu filme. Eu ainda acredito que o Glitter estava à frente
do seu tempo. As pessoas talvez não estivessem preparadas para lidar com
os anos 80 no início dos anos 2000, mas eu sabia que ia ser incrível. E
acabou sendo! E eu ainda amo a trilha sonora. Eu fico tão feliz e grata,
porque quase duas décadas depois, os lambs e eu finalmente conseguimos
#JustiçaParaoGlitter quando ele ficou em 1° lugar em 2018. Também fico
feliz por poder cantar essas músicas agora. Os fãs deram ao filme Glitter
um novo brilho, um novo resplendor – a vida que ele merecia.

O verão de 2001 chegava ao fim. Os poucos críticos que compareceram


à pré-estreia do Glitter quase que unanimemente detonaram o filme. A
ansiedade causada pela má avaliação do Glitter e a reação da gravadora
em relação ao single ter ficado apenas em 2º lugar, estavam tomando de
conta do meu psiquê aos poucos. Sinceramente, talvez o único artista, além
de mim, que eu tenha visto ser pressionado para entregar resultados
maiores e além do seu próprio sucesso fenomenal foi o Michael Jackson.
Assim como ele, e sem sombra de dúvidas, eu também costumava fazer
muito sucesso. Foi ideia minha lançar um CD completo chamado #1’s! Mas
ainda assim, ficar em 2º lugar só com uma música (não com um CD de estúdio)
em uma nova gravadora, não parecia tão ruim assim para mim, se querem
saber.

E ainda assim o estresse só aumentava. Ficou parecendo que a


gravadora não tinha uma estratégia promocional forte e eu ainda não tinha
uma equipe coordenada para me gerir. Eu não via ninguém perto de mim que
pudesse assumir o controle da situação do que estava se tornando “algo
único”. A preocupação parecia ser maior do que o planejamento e a
tentativa de solucionar os problemas; internamente, o projeto estava uma
bagunça. Então, os meus instintos criativos de sobrevivência entraram em
ação. Eu sentia que eu precisava fazer alguma coisa – alguém tinha que
fazer alguma coisa.

O pouco tempo de sono que eu tinha para dormir, por causa da minha
agenda corrida, era totalmente atrapalhado pela minha grande ansiedade
na época. Eu não conseguia dormir. Eu não conseguia encontrar as minhas
coisas. Eu não conseguia fazer ninguém se recompor.

Então eu mesma tomei a iniciativa. É certo que já estava tudo muito


confuso e já era tarde demais, mas eu tinha que fazer alguma coisa. De
última hora, eu inventei uma pequena jogada publicitária para poder gerar
interesse pela música “Loverboy”: eu fiz uma participação surpresa no
230
programa TRL (Total Request Live) da MTV, ou seja, a coisa toda foi só
uma encenação.

Para engajar o público com a vibe de verão do clipe de “Loverboy”, eu


achei que seria muito legal se eu colocasse isso em cena. Correndo por
puro pânico e empolgação, eu apareci no set usando um rabo de cavalo
ousado, empurrando um carrinho de sorvete cheio de picolés e vestindo
uma camiseta grande com “Loverboy” estampado na frente, mas a surpresa
ainda não tinha acabado: eu estava usando por baixo um look dos anos 80 por
causa do filme Glitter. Foi algo totalmente inocente e bobo que eu fiz, e nem
um pouco ensaiado. Eu improvisei o meu diálogo, como costumo fazer, e
eu esperava que o Carson Daly não ficasse com vergonha, improvissasse
junto comigo e envolvesse o público (que é o que a gente espera de um
apresentador). Mas ele não entrou na brincadeira. (Eu sei que devem ter dito
para ele parecer surpreso, mas não foi o que aconteceu.)

Parecia que eu estava ali sozinha. Então eu pensei, ok, eu vou fazer um
truquezinho aqui com a minha roupa para sentir a energia do público. Eu tirei,
totalmente sem jeito, a enorme camisa que eu estava usando para ficar de short
e regata no programa. Eu estava usando por baixo um short dourado e brilhante
muito sexy e uma regata da “Supergirl”. Mas o Carson, agindo horrorizado,
disse em resposta: “a Mariah Carey está fazendo striptease no TRL nesse
momento!” (Ah, só agora você decide agir?) É claro que eu não estava fazendo
striptease – eu estava mostrando o look de Loverboy. Beleza, eu admito que
o que eu fiz foi bobo e que foi um momento de vergonha alheia. Mas em vez de
improvisar, o Carson olhava para mim como se eu fosse louca. A minha
adrenalina estava a mil, e o Carson ainda me pergunta: “O que você está
fazendo?” É sério isso?!

Eu nervosamente respondi: “De vez em quando, alguém precisa fazer


terapia, e hoje esse é o momento para mim”.

A verdade é que os meus fãs fazem parte da minha terapia. Algumas


pessoas fazem terapia indo às compras, outras fazem terapia comendo
chocolate; mas os meus fãs são a minha terapia, porque é indo diretamente
a eles que eu sempre obtenho a energia e a inspiração que eu preciso. Eu
estabeleci uma relação independente com os meus fãs antes mesmo da
existência das mídias sociais. Eu usava o meu site para falar pessoalmente
com eles; eu deixava mensagens de voz e dizia o que eu estava fazendo e
como eu estava me sentindo de verdade.

Eu me comunicava com os meus fãs abertamente e do mesmo modo


eles se comunicavam comigo. Então, os meus fãs me entenderam quando
231
eu deixei a célebre e triste mensagem para eles dizendo que eu ia fazer
uma pausa – eu estava surtando e me sentindo sozinha em um barco em
Porto Rico no momento em que mandei a mensagem. A forma como a
minha mensagem foi noticiada na imprensa era de como se eu tivesse tido
um colapso nervoso e de que eu, no meu desespero, estivesse pedindo
socorro. Naquela época, as pessoas não entendiam e se perguntavam por
que eu falava diretamente com os meus fãs. A mídia não tinha noção do
vínculo que eu tinha com os meus fãs. Nenhuma noção mesmo!

Os meus fãs realmente se preocupam, eles tomam nota de tudo que eu


faço e assumem tudo para si. A imprensa não entendia por que os meus
fãs se autodenominaram “Lambs”. Os fãs ficaram ligados quando eu e o
Trey Lorenz ficávamos brincando um com outro dum jeito típico e todo
afetado de ser de Hollywood; a gente falava coisas como: “Seja um Lamb e
me traga uma taça de vinho.” A gente se chamava de “lamb” como um termo
carinhoso o tempo todo – e foi assim que surgiu o termo Lamb para se referir
aos meus fãs (os verdadeiros fãs, os realmente dedicados)! Mas agora nós
estamos usando o termo Lambily! Os meus fãs salvaram a minha vida e
continuam dando sentido à minha vida todos os dias. Então, honestamente,
eu não dou a mínima se os publicitários ou a imprensa pensaram que eu
fosse louca por levar picolés ao programa TRL ou por mandar mensagens
aos meus fãs. Os Lambs são tudo para mim, e todas as músicas, todos os
shows, todos os clipes, todas as postagens, todas as celebrações, e tudo o
que eu faço como artista é para eles.

O. Programa. Do. TRL. Foi. Uma. Jogada. Publicitária. Que. Não. Deu.
Certo. E sejamos claros e lógicos que eu, Mariah Carey, ou qualquer outra
pessoa não poderia realmente invadir qualquer programa da MTV, e muito
menos carregando um carrinho de sorvete. Talvez o Carson Daly não
soubesse que eu ia “invadir” o programa, mas os produtores tiveram que
agendar a minha visita – coordenadores, publicitários, seguranças, a equipe
inteira sabia que eu estava indo para lá. Foi uma jogada publicitária que
parecia ser uma boa ideia na época. Qualquer ideia parecia boa naquela
época. Parecia que eu era uma comediante de stand-up que tentava ser
engraçada, mas que não conseguia. Todos os artistas cometem erros, mas
ficou parecendo que o que eu fiz desencadeou uma reação em cadeia
colocando um alvo nas minhas costas. Os tabloides e os programas de
fofoca em geral agiram como se eu realmente tivesse feito striptease e
dançado no colo do Carson ao vivo na TV (que agora virou uma rotina entre
as celebridades de reality shows e rappers – ah, como os padrões
mudaram)!

A imprensa detonou tanto a mim quanto o meu truque bobo de


232
publicidade no TRL. Foi a primeira vez que eu me senti no olho do furacão
por causa de uma desaprovação popular, foi a primeira vez que eu senti
como se o monstro da mídia tivesse despertado; monstro esse que é um
vampiro perverso que ganha força por se alimentar das fraquezas dos
vulneráveis. A minha performance fracassada se transformou em uma
grande e desagradável história sem fim. Alguns meios de comunicação
convencionais parecem esfomeados por todo tipo de energia negativa e
medo. Eles colocam uma máscara para disfarçar a dor e a apresentam
como uma notícia de entretenimento. Era visível isso e eu me sentia muito
vulnerável. E quando a Cinderela da Sony levou uma rasteira, nenhum
cavaleiro ou homem do rei foi em meu socorro para esclarecer as coisas,
para me dar a mão ou mesmo me ajudar a me recompor. Em vez disso, eles
botaram lenha na fogueira e querendo botar ainda mais – ainda mais lenha na
fogueira, querendo me causar mais vergonha, querendo me destruir ainda
mais e me ridicularizar. O monstro da mídia só se satisfaz quando você é
completamente destruído.

Isso tudo estava acontecendo antes do fenômeno das mídias sociais.


Não existia um meio de como responder à altura mensagens desaforadas
como tem hoje no Twitter. Não existiam termos de encorajamento como
“Acaba com eles, Rainha!” Nem mesmo existiu uma demonstração de amor
coordenada, como que em um flashmob41, da minha lambily, que é super
leal, para me defender. Porém, devo ressaltar que milhares de fãs e de lambs
realmente me mostraram amor e apoio por meio de cartas e comentários
no meu site, mas o mundo “de fora” não tomou nota disso. Não existia
YouTube e nem Instagram. (Embora um aliado surpreendente também veio
em minha defesa: o empresário de hip-hop Suge Knight (que era bastante
poderoso na época), em uma entrevista na estação de rádio Hot 97. Ele
disse: “Todo mundo precisa deixar a Mariah em paz, ou vão se ver comigo”.
Confiem em mim, ninguém naquela época queria ter problemas com o Suge.

Hoje é fácil coordenar um momento promocional ou mudar a narrativa


através das redes sociais. Era extremamente difícil fazer parte da cultura pop
naquela época. Era uma coisa de outro mundo participar de grandes programas
de TV e fazer o que desse na telha; praticamente tudo o que se fazia como
artista era controlado pelo “necrotério corporativo” (como eu carinhosamente
os chamo). Agora, quando uma celebridade paga um mico e isso se torna viral,
a mídia geralmente fala sobre o assunto por 24 horas e depois muda de

41 Flashmob: um grande grupo de pessoas que se junta repentinamente em um local


público para fazer alguma ação e que rapidamente sai do local. Geralmente, esse tipo de
ação é organizado, combinado, coordenado, etc., por meio de redes sociais, e-mails ou
outros meios parecidos.
233
assunto. Naquela época, se você fizesse algo, a imprensa ficava falando
eternamente disso. Foi o que aconteceu comigo quando eu participei do TRL.

Eu fui caçada ferozmente pela imprensa. E nós sabemos que, cinco


anos antes, a princesa Diana foi perseguida do mesmo modo e o que
acabou ocasionando a sua morte. Eu analisei como a imprensa tinha
perseguido a princesa Diana como hienas. Certa vez, eu tive um momento
breve, mas inesquecível com a Lady Di, quando os nossos olhares se
cruzaram em uma festa da Vogue. Ela estava usando um vestido
deslumbrante da cor de safira e algumas joias da mesma cor azul no
pescoço. E o olhar dela demonstrava o grande terror de nunca poder ficar
sozinha. Nós duas parecíamos dois animais acuados, porém, usando
vestidos da alta costura. Eu me via como ela e sentia que tínhamos algo
em comum. Nós entendíamos como é sempre estar rodeadas de pessoas,
isso não implica que todos querem te machucar, mas sim que todos estão
atrás de alguma coisa. Todas as pessoas querem se beneficiar de alguma
forma. Eu não sabia que ela ia ser perseguida e que ia morrer logo após o
nosso encontro. E é óbvio que eu também não sabia que eu iria passar por
uma situação de perigo semelhante à dela. Os caçadores estavam se
aproximando.

Com o calor de agosto, o meu sono agitado rapidamente se deteriorou


e eu acabei ficando sem conseguir dormir. Do mesmo modo que eu não
conseguia mais dormir, eu também não conseguia mais comer direito. O
pânico gerado em torno de “Loverboy” na gravadora era real, e eles estavam
desesperados para que eu gravasse um clipe para o meu segundo single
imediatamente. A gente tinha acabado de passar vários dias exaustivos
filmando o clipe de “Loverboy” no escaldante deserto da Califórnia, em
condições adversas, sem água ou necessidades básicas. Não havia área
coberta para eu ficar e poder me proteger da luz do sol entre as pausas, o
que não só contribuiu para eu ficar da cor de camarão, mas também
contribuiu para que eu perdesse tempo, porque a minha maquiagem derretia
e precisava ser retocada. Eu posso ter parecido super animada no clipe,
mas filmar o clipe de “Loverboy” foi tecnicamente extenuante, e a gravadora
queria que eu pegasse um avião imediatamente, voltasse para Nova Iorque
e começasse a gravar outro clipe para “Never Too Far” no dia seguinte!

Eu estava completamente exausta, vermelha como camarão e só o


caco, e certamente não estava em condições de gravar outro clipe. Eu
deveria ter tido, no mínimo, uma pausa de três ou quatro dias entre as
filmagens. Além disso, houve toda uma performance glamorosa da música

234
no filme, que eles poderiam e deveriam ter usado como clipe (no final das
contas acabaram fazendo isso). Mas a gravadora não estava me ouvindo.

Não importava que eu estivesse completamente exausta – o que


importava era que eles tinham gastado mais de 100 milhões de dólares na
“Mariah Carey”. Eles queriam que todos os seus produtos ligados ao Glitter
estivessem à venda naquele momento. Não havia ninguém por perto para
intervir, para ajudar e orientar a gravadora de como eles poderiam
acompanhar os projetos e a minha produtividade. Ninguém tinha a força ou
o poder para dizer não às exigências irracionais em meu nome, e a pressão
aumentava constantemente. Eu estava exausta. E a parte mais difícil era o
prazer diabólico que os tablóides estavam tendo do meu momento de
fraqueza. Era um circo sem fim. Eu me lembro de assistir a um programa de
entretenimento após o desastre que aconteceu no TRL onde eles estavam
falando sobre mim no pretérito perfeito. Era tão surreal, parecia que eu
estava assistindo a um programa “Em Memória” da Mariah Carey, como se
eu tivesse morrido. E tudo que eu realmente queria era só poder descansar
em paz.

Isso, além de lidar com o Tommy e a minha família, foi demais. Eu


estava muito mais do que cansada. Eu precisava dormir com urgência. O
sono, essa necessidade humana básica, esse conforto simples, tornou-se
impossível de obter. Eu tentei me refugiar no vazio da minha enorme
cobertura nova, mas a gravadora e a “diretoria” estavam me ligando
constantemente, tentando me convencer a gravar o clipe. Eu simplesmente
não conseguia fazer isso. Eu estava trabalhando há anos sem parar. Era
algo totalmente fora do meu normal não comparecer, mas eu realmente
estava um caco. Eu não conseguia pensar. E eles não queriam me ouvir. O
telefone não parava de tocar. Não importava em que local eu estivesse –
nenhum dos quais era familiar ou reconfortante para mim ainda – eu podia
ouvir o telefone tocando sem parar. Peraê. O Tommy sabia onde eu estava?
O Tommy estava tentando me torturar também? Os seus lacaios estavam
me seguindo de novo? Eu estava ficando com medo.

Eu precisava encontrar um lugar seguro. Eu tinha que conseguir dormir. Em


quem eu podia confiar? Ninguém que estivesse trabalhando para mim poderia
me ajudar a encontrar um lugar para eu ir. Tudo que eu estava pedindo era um
pouco de tempo. Todas essas pessoas na minha folha de pagamento, e
ninguém tentou fazer nada para que eu tivesse um dia de folga. Eu estava
tentando dizer a eles que eu só precisava de alguns dias para dormir, de um
pouco de tempo para descansar, me recuperar e obter um pouco do sono da
beleza.

235
Em desespero, eu fui para um hotel perto da minha cobertura. Eu pensava
que se eu pudesse conseguir um quarto, fechar as cortinas, me deitar debaixo
das cobertas e dormir de verdade, as coisas poderiam ficar bem.

Eu tinha vivido em hotéis por longos períodos de tempo e me confortava


saber que as pessoas não nos incomodam. E eu já tinha ficado nesse hotel
em particular várias vezes antes, enquanto a minha cobertura estava sendo
reformada. Nunca me ocorreu instruir a recepção a não entrar em contato
com o meu empresário ou contar a ninguém que eu estava lá. Por que eu
teria que fazer isso? Eu entrei aos tropeços no meu quarto e prontamente
pendurei a placa de “Não perturbe” na maçaneta. Embora eu tivesse
acabado de sair da minha cobertura espetacular e nova em folha para me
hospedar em um modesto quarto de hotel, eu comecei a me sentir aliviada.
Eu preparei um banho, afundei lentamente na água morna e perfumada e
fiquei escutando o Evangelho através da música “Yet I will Trust In Him”
(Ainda Assim, Vou Confiar N’Ele) cantada pelo grupo Men of Standard,
esperando que um pouco do trauma passasse. Eu comecei a me acalmar.
O incidente do programa TRL ainda estava pesando muito sobre mim. Eu
sentia que o mundo inteiro estava pensando que eu tinha ficado maluca.
Eu me enrolei no roupão do hotel e me deitei na cama. Mas antes que eu
pudesse fechar os olhos, eu ouvi uma batida na porta. E logo em seguida
um barulho bem alto na porta!

Eu dei um pulo e fui até a porta, pronta para xingar quem quer que não
tivesse lido a placa. Abri a porta e vi uma multidão de pessoas – o pessoal
da administração, o Morgan e até a minha mãe!

“Que porra é essa?” Eu gritei. “Eu tenho que DORMIR!” Eu estava em


pânico. Eu estava histérica. Conseguiram me achar. Eu comecei a gritar –
eu gritava sem parar. Eu não conseguia falar. Um grupo inteiro tinha chegado
para me arrastar de volta ao trabalho. Tudo que eu queria era somente
alguns dias de folga. Então eu gritei.

De repente, o Morgan agarrou os meus braços e me puxou em direção a


ele. Eu fiquei imóvel. Ele olhou para mim e disse calmamente: “tudo isso é por
causa dos aniversários na casa do Roy Boy.”

Eu voltei ao normal na mesma hora. “Aniversários na casa do Roy Boy”


era uma piada interna que a gente fazia sobre o nosso pai, porque ele
sempre confundia as datas dos nossos aniversários. O Morgan me acalmou
usando a nossa linguagem familiar inocente: as piadas e os dizeres tolos
que só nós sabíamos, era a maneira que a gente usava o humor para lidar
com as coisas. Eram essas palavras que existiam antes de tudo isso, antes
236
de todos esses estranhos. Naquele momento, eu acreditava que o Morgan
tivesse entendido como eu me sentia, que ele até tinha se preocupado com
o meu bem-estar. A frase “aniversários na casa do Roy Boy” me levou de
volta à época quando eu sentia que o Morgan poderia ser um verdadeiro
membro da família para mim. Era pessoal e engraçado, e eu estava
angustiada. Era como se ele tivesse me dado o código secreto de “eu estou
aqui”, aparecendo como um farol na tempestade. Emocionalmente, eu
estava totalmente aberta – e o Morgan, como uma cobra, deslizou para
dentro.

Eu tinha sido expulsa da minha casa e de um hotel. Havia uma equipe


inteira de pessoas me caçando para me fazer voltar ao trabalho, inclusive a
minha mãe. Eu estava mais do que desesperada e eu ainda precisava
dormir. O meu contrato com a gravadora era uma coleira que custava mais
de 100 milhões de libras em volta do pescoço de todos.

Eu precisava encontrar alguém sem nenhum interesse comercial ou


investimento em mim – alguém que me conhecesse e se importasse comigo,
que pudesse me ajudar ou me esconder. Me lembrei na mesma hora da
Maryann Tatum, também conhecida como Tots. Ela trabalhava comigo
como backing vocal desde o CD Butterfly, e nos tornamos praticamente
irmãs depois que a irmã dela morreu. Ela era uma das minhas poucas
amigas que eu achava que sabia como lidar com situações realmente
extremas (e esta certamente era uma!). Ela era uma pessoa de confiança
e tinha uma família estruturada. A Tots era uma dentre os nove filhos que
cresceram nos projetos de habitação pública de baixo custo em Brownsville,
Brooklyn. E embora a sua mãe tenha tido que lidar com a criação de nove
filhos sozinha, ela sempre foi íntegra, sempre com a cabeça no lugar. A
Tots era doce e temente a Deus, mas também sabia se virar bem nas ruas.
Eu achava que ela poderia me ajudar a fugir de todas as pessoas que
estavam vindo atrás de mim e poderia me ajudar também a dormir um
pouco.

Decidimos que eu poderia ficar no apartamento dela no Brooklyn porque


ninguém jamais pensaria em me procurar lá. Quando eu consegui me
recompor e fugir para o Brooklyn, eu estava bastante ansiosa. Eu sabia que
não era só a gravadora que estava procurando por mim, mas quem sabe se
o Tommy também não estava me seguindo? Não teria sido a primeira vez.
(A matéria “Tommy Boy” de 1996 do Robert Sam Anson na revista Vanity
Fair relatou apenas algumas das suas práticas fraudulentas, mas ela também
ajudou e muito a justificar as minhas alegações sobre o seu controle e vigilância
maníacos.) E os tabloides estavam na minha cola e salivando pelo menor
passo em falso que eu desse (e eles ainda continuam assim).
237
Eu peguei um táxi até o apartamento da Tots. Certamente era um bom
lugar para ficar escondida, mas não para dormir. Era apertado e não era tão
confortável assim para mim, além isso, a minha angústia e exaustão
estavam me deixando nervosa. Eu sugeri a Tots e a sua sobrinha Nini que
todas nós fôssemos dar uma caminhada para me ajudar a relaxar.

Ela disse “mana, te acalma. Você ainda sabe que é a Mariah Carey, né?”

Eu acho que eu não poderia simplesmente sair perambulando pelas


ruas do Brooklyn. Eu precisava de um disfarce. A Nini fez tranças no meu
cabelo e eu vesti a camiseta dela do CD Butterfly da Mariah Carey, uma
calça de moletom e usei um boné de beisebol com a aba puxada para baixo.
Escondidas à vista de todos, nós três passeamos pelas ruas do Brooklyn
na tentativa de recuperar um pouco dos nervos. Ninguém me notou
confortavelmente acompanhada por duas garotas negras no diversificado
bairro do Brooklyn.

A Tots me garantiu que eu não tinha nada com que me preocupar,


brincando: “Eles provavelmente estão achando que você é uma linda garota
porto-riquenha que foi a um show da Mariah Carey”.

Nós rimos um pouco, sentimos um pouco de conforto e demos uma


fugidinha – mas eu ainda sentia como se eu estivesse sendo monitorada.
Eu não conseguia encontrar nenhum alívio. Eu não conseguia me lembrar
da última vez que eu tinha dormido ou feito uma refeição.

O tempo estava desabando sobre mim, os dias e os eventos se


misturavam. O meu empresário e a gravadora de alguma forma descobriram
que eu estava no Brooklyn com a Tots. Eles ligaram e pediram que ela me
convencesse a concordar em gravar o clipe. A minha instabilidade
emocional, como resultado de eu não conseguir dormir, estava começando
a se apoderar de mim. Eu me sentia encurralada e confusa. O Morgan foi
novamente incubido de ir me buscar, já que a “comitiva” de pessoas que
tinha estado no hotel acreditava que ele era o único em quem eu confiava.
Ninguém sabia disso, mas para mim, confiar no Morgan era algo perigoso.

Eu nunca sabia o que esperar do Morgan; ele tinha sido tão imprevisível,
instável e violento por tanto tempo. E, no entanto, a minha mãe confiava
mais nele. Ele se tornou o homem forte, o seu protetor, quase que uma
figura paterna para ela – uma posição que nunca deveria ser preenchida por
um filho. E embora ele tivesse me assustado tantas vezes quando eu era
criança, eu também o via como um homem forte e inteligente. O Morgan era
238
muito inteligente e expressivo e havia desenvolvido muitas habilidades
duvidosas com o intuito de sobreviver.

Ele morava no centro da cidade de Nova Iorque no final dos anos 80. Ele
trabalhou em alguns dos bares e boates mais badalados. Ele era
extremamente bonito e às vezes trabalhava como modelo. Ele era bem
conhecido e todos gostavam dele. Ele discretamente fornecia brindes com
o pozinho branco (cocaína) às pessoas bonitas nas festas. Ele era
diabolicamente carismático.

No início da minha carreira, o Morgan tinha a missão de ser conhecido


como a pessoa que me “descobriu”. (Seymour Stein, fundador da gravadora
Sire Records e quem contratou a Madonna, na verdade teve uma
oportunidade de tornar isso realidade, já que ele foi um dos primeiros a
escutar a minha fita demo. Infelizmente, ele disse: “Ela é muito jovem” –
mas isso já é um outro assunto). O Morgan conhecia vários mafiosos da
indústria da música, mas ele também me apresentou a algumas pessoas
importantes do mundo da moda, como o lendário cabeleireiro Oribe, já
falecido. Em alguns lugares, eu era até conhecida como a “irmã mais nova
do Morgan”, embora ele não me visse como a sua irmã mais nova há muito
tempo. Eu era a porta de entrada dele para a riqueza e a fama.

Eu já falei muitas vezes publicamente que o Morgan foi o responsável


pela gravação da minha primeira fita demo profissional, porque eu só
consegui gravar a fita por que ele me emprestou cinco mil dólares para
pagar pelo serviço, e eu ainda sou muito grata por isso. Vale ressaltar que
eu já reembolsei esse valor de cinco mil dólares inúmeras vezes. E eu
continuaria a reembolsar mais ainda se necessário.

Eu nunca pensei que o empréstimo de 5000 dólares me fizesse ficar em


dívida com ele para sempre ou que desse a ele o direito de se intrometer
na minha carreira. Eu era muito jovem, mas eu sabia que eu não devia me
envolver e nem fazer negócio com nenhum dos músicos de índole duvidosa
que o meu irmão queria que eu trabalhasse. Eu sabia com certeza, que para
mim, fazer negócio com o Morgan tinha sérias implicações. Tinha que ser sem
compromisso.

Menos de um mês depois de assinar o meu primeiro contrato com a


Columbia, a minha mãe e o Morgan propuseram uma reunião de família no
barraco em que a gente morava – talvez para comemorar? Quem sabe?!
Eu realmente não gostei da ideia de ter que voltar lá. A vergonha e o medo
que eu tinha aguentado por ter que morar naquele lugar ainda estavam
entranhados na minha pele. Mesmo a minha razão me falando o contrário,
239
eu acabei concordando.

O barraco continuava tão desolado como sempre. Dava para sentir que
o ar da minúscula sala de estar estava carregado de ansiedade e
manipulação. O painel de “madeira” estava tão desbotado e desgastado,
que mais parecia um papelão de embalagem de camisa masculina. Cortinas
baratas e encardidas de renda branca de poliéster estavam penduradas nas
janelas escuras; o duto de ventilação no chão expelia uma camada de
fuligem cinzenta que subia do aro até o meio daqueles painéis deploráveis
de respeitabilidade irlandesa. A minha mãe e o Morgan se sentaram juntos
no sofá de veludo cotelê de cor azul sem vida. Eu me sentei na frente deles
em uma poltrona reclinável desgastada de cor bege. A negligência era a cor
de destaque geral.

A minha mãe estava sem expressão, de vez em quando ela olhava para
o Morgan como se pedisse aprovação. Ele claramente ia ser o “anfitrião”
desta reunião suspeita na nossa ex-casa. Dava para sentir que ele estava
tramando o tempo todo. O seu olhar era feroz e penetrante. Dava para sentir
que ele estava tenso, mas ele havia aperfeiçoado a arte de disfarçar bem
as suas emoções e as suas intenções.

O Morgan foi direto ao assunto e falou muito claramente sobre a


possibilidade do segundo marido da nossa mãe ser um canalha calculista e
de como eles estavam preocupados com isso porque eu estava prestes a
me tornar famosa, ele provavelmente seria um “problema”. Ele começou a
me alertar que o segundo marido da minha mãe conhecia todos os podres
da nossa família e que ele poderia nos ameaçar de contar tudo para a
imprensa. Que ele poderia contar ao mundo que a Alison era uma prostituta
viciada em drogas e que tinha HIV. O que? A minha mãe ficou em silêncio.
Eu me lembro do Morgan dizendo que eu precisava de proteção – que eu
precisava ter cuidado, que esse cara poderia acabar com a minha carreira
antes mesmo de começar – e que ele ia “dar um jeito nisso”. Ele ia dar um
jeito nele.

Em menos de dez minutos no barraco, lá estava eu revivendo o clima


familiar de medo criado pelo meu irmão. É óbvio que eu não precisava ser
convencida de que o segundo marido da minha mãe era uma pessoa horrível,
mas eu não conseguia entender por que a minha mãe e o meu irmão me
trouxeram de volta à nossa ex-casa para falar comigo sobre algumas supostas
ameaças do marido terrível dela. Eu tinha acabado de assinar o meu primeiro
contrato com uma gravadora! Eu tinha acabado de cair fora desse drama
familiar louco e assustador. Do que mesmo eles estavam falando? Por que
mesmo eles estavam fazendo aquilo? Por que mesmo eu estava ali?
240
O ar do local estava ficando cada vez mais assustador e claustrofóbico.
Eu me lembro do Morgan dizendo com o seu jeito sinistro e frio: “Eu tenho
um plano que pode fazer ele calar a boca. Você não precisa saber os
detalhes, mas acredite em mim, eu sei como calar a porra da boca dele.” Ele
continuou dizendo que tudo que ele precisava era de cinco mil dólares.
Como eu suspeitava.

Eu olhei para a minha mãe, na esperança de obter algum


esclarecimento. Ela apenas continuou olhando para o Morgan, que
obviamente a convenceu a deixá-lo comandar o show. Ele continuou a me
lembrar como o marido dela era mau e vingativo (e de fato ele era – ele quis
se aproveitar de mim desde o momento em que me conheceu) e que a
imprensa iria me envergonhar e destruir a minha carreira. O sentido da
minha vida era ser uma artista e eu tinha acabado de assinar um contrato
com a gravadora Columbia. Talvez tudo pudesse ser tirado em um
segundo? E ele disse de novo – por “apenas cinco mil dólares”, ele poderia
me proteger e se livrar da ameaça. “São apenas cinco mil dólares. Ninguém
jamais vai ficar sabendo.” Cinco mil dólares para quê? Para fazer o quê?
Um pânico nauseante começou a tomar conta de mim.

O Morgan tinha um longo histórico de violência, de se envolver com


pessoas desonestas e situações duvidosas, e não tinha como saber o que
ele faria por dinheiro. Em 1980, ele se envolveu em um escândalo de
assassinato no condado de Suffolk. Um homem chamado John William
Maddox foi assassinado pela sua própria esposa, a Virginia Carole Maddox.
O filho deles era conhecido do Morgan. Antes de atirar no pescoço do
marido com um rifle, ela propôs pagar 30 mil dólares ao Morgan para que
ele matasse o marido dela. Ele aceitou um adiantamento de US$ 1.200
dólares, mas não executou o serviço. De acordo com os registros do
tribunal, o fato dela ter aliciado o Morgan (ele foi obrigado a testemunhar
perante um grande júri) foi a principal evidência para refutar a sua alegação
de legítima defesa e que fez com que ela fosse condenada por assassinato.

Eu mal tinha começado a fazer a terceira série quando o Morgan se


envolveu em um complô para assassinar um homem por dinheiro. Eu me
lembro dele e da minha mãe conversando sobre isso e eu tenho uma vaga
lembrança de ter visto retratos falados de tribunais em casa. O Morgan
denunciou, então por isso ele não passou um tempo na cadeia por ter aceitado
pagamento.

“Vamos lá, são apenas cinco mil dólares, ninguém jamais vai ficar
sabendo”, continuava soando em meus ouvidos. Eu me levantei de um salto
e comecei a andar os cinco ou menos passos entre a pequena sala de estar
241
e a cozinha ainda menor; ambos pareciam encolher um centímetro a cada
segundo que passava. “Você não precisa fazer nada além de me dar o
dinheiro”, ele disse novamente. Eu estava tentando processar o que estava
acontecendo ali . Eu nem acho que eu tinha recebido o meu primeiro
cheque adiantado ainda e o meu irmão e a minha mãe já estavam tentando
tirar dinheiro de mim?! E para quê? Para fuder com o marido da minha
mãe?! Que porra é essa?

Tragicamente, eu não fiquei surpresa pelo Morgan já estar querendo me


manipular, mas o que me chocou e surpreendeu foi que a minha mãe estava
entrando na onda dele. Ela permaneceu calada o tempo inteiro enquanto o
Morgan vomitava teorias da conspiração sobre chantagem, teorias de que
nós seríamos expostos e humilhados, e chocada principalmente porque ela
ficou calada ouvindo o seu filho tramar contra o marido dela por dinheiro.
Ela estava realmente disposta a colocar todos os seus filhos em grave
perigo emocional, espiritual (e possivelmente legal) assim? Ou, tão terrível
quanto, ela estava tramando junto com o Morgan de como extorquir
dinheiro de mim? Talvez ela tenha ficado impotente diante do feitiço dele.

Eu não estava preparada para as implicações que tudo isso estava


tendo para mim e para a minha posição nesta família e neste mundo. De
modo algum eu jamais me envolveria em algo que pudesse machucar
alguém, até mesmo um idiota desprezível como o segundo marido da minha
mãe. Eu recusei categoricamente até mesmo cogitar o plano doentio deles.
No entanto, o que realmente estava me deixando para baixo é que eu sabia
que se eu desse ao Morgan os primeiros cinco mil dólares e se ele
cometesse algum tipo de crime, ele com certeza iria me chantagear. Essa
seria a primeira de muitas chantagens que ele faria para ganhar dinheiro de
mim para sempre.

Quão delirante da minha parte acreditar que a minha mãe e o meu irmão
iriam brindar à minha felicidade porque o meu único sonho tinha se tornado
realidade. Em vez disso, eles quiseram me ver para arrancar as minhas
entranhas. Eu fiquei chocada e triste. Não me lembro exatamente do que eu
disse, mas eu me lembro de andar em pequenos círculos, aquela sensação
de mal-estar agora no meu coração e chegando até os meus olhos, e eu
estava balançando a minha cabeça – “Não, Não”… e algo invisível dentro
de mim despertou, e eu me afastei deles.

Saí cambaleando do barraco, sabendo, que sem sombras de dúvidas, eu


era totalmente diferente deles. O meu pai estava afastado da gente. A minha
irmã me apunhalou e me traiu. E agora eu sentia que eu não tinha um irmão
e nem mesmo uma mãe mais. Completamente sozinha.
242
Ainda machucada, ainda pisando em ovos
A mesma criança assustada escondendo-se para se proteger
(Eu não acredito que eu ainda preciso me proteger de você)
Mas você não pode me manipular como antes
Leia 1 João 4, 4
E desejo-lhe tudo de bom ...

–“I Wish You Well”

Portanto, pelos padrões “normais”, uma gravadora pedir ajuda à família


para se comunicar com uma artista não tinha nada de errado. Mas eles não
sabiam as coisas ruins que a minha família poderia fazer.

“Vós, filhinhos, sois de Deus, e os vencestes, porque o que está em vós


é maior do que aquele que está no mundo.”

1 João 4, 4

Dizer que eu estava no limite quando o Morgan chegou no apartamento


da Tots seria generoso. Eu estava exausta e faminta, todos os cuidados me
foram retirados. Olhando em meus olhos baixos de cansaço, ele me tentou:
“Ei, que tal a gente fazer uma boa viagem até a casa da Pat?”

Embora eu nunca tivesse feito uma boa viagem para a casa da minha
mãe, estando só os cacos, o meu irmão apresentou um argumento
convincente. Ninguém, afirmou ele, ousaria me incomodar na casa da
minha mãe. A voz dele soava doce como mel, e eu estava muito esgotada
para ficar em estado de alerta. Se eu estivesse raciocinando direito, eu
saberia que a minha mãe e o meu irmão seriam as últimas pessoas com
quem eu deveria ficar quando eu me sentisse vulnerável.

Mesmo que ela gostasse de mim, naquele momento, a minha mãe não
sabia nada sobre mim, e não sabia de nada que eu estava passando no
momento. Ela não fazia nenhuma ideia do fardo e da responsabilidade de
ser uma artista que gera tanto dinheiro e energia: Ter tantas pessoas
dependendo de você, contando com você e te pressionando a trabalhar
sem parar. Que você cante e sorria, se vista e dê uma rodadinha, voe e
componha e trabalhe o tempo todo! Ela não tinha noção da humilhação que
eu estava passando por causa que o monstro voraz da mídia estava se
alimentando de mim. Ela não conseguia imaginar o quanto eu me sentia
ferida e caçada. A minha mãe nunca reconheceu o meu medo. Na verdade,
era ela quem muitas vezes causava o medo em mim.
243
Mas agora, eu ia ficar numa casa com eles. Qualquer casa em que a
minha mãe estivesse nunca seria um porto seguro, especialmente se o
Morgan estivesse presente, mas eu estava frágil demais para poder resistir.
Na minha confusão, realmente fazia sentido que eu fosse para o interior
para ficar hospedada na casa que eu tinha comprado para ela, uma casa
que eu conhecia tão bem, que era silenciosa e confortável e haveria espaço
de sobra para todos. Totalmente desarmada, eu concordei em ir. Mas se eu
fosse, eu acabei decidindo que todos nós deveríamos ir. Segurança em
números, eu pensei. Então o Morgan, a Tots e eu saímos para um passeio
pelo interior do estado de Nova Iorque. Passando pela ponte e pelo bosque,
aqui vamos nós para a casa da minha mãe.

244
DESGRAÇA E PÊLO DE CACHORRO

A minha mãe ainda não tinha chegado em casa depois de ir para a


cidade com a equipe da gravadora no hotel, e eu fiquei aliviada. Isso
significava que eu não correria o risco de ser provocada por ela e pelo
Morgan juntos e, especialmente, eu não queria usar a pouca energia que me
restava para tentar explicar a ela por que eu só precisava dormir.
Felizmente, eu também tinha a minha amiga Tots para me proteger. Ao nos
aproximarmos da casa, eu comecei a relaxar um pouco. Eu pensei, esta é a
casa que eu comprei para a minha mãe e para a minha família morarem e
encontrarem conforto. Agora era eu quem precisava disso mais do que tudo.
Eu havia projetado um quarto de hóspedes para qualquer pessoa da família
que precisasse de um lugar para ficar, que eu sabia que certamente eu
poderia usar agora. Eu já conseguia imaginar o seu calor convidativo em
minha cabeça. Tudo o que eu queria fazer era comer um pouco, subir,
fechar a porta e dormir antes que a minha mãe chegasse em casa.

Enquanto entrávamos em casa, eu tentava esconder o quanto eu estava


destruída, especialmente na frente do meu sobrinho Mike, que ainda
morava lá. Ele era apenas uma criança e já havia passado por tanta coisa
por causa da sua mãe viciada. Eu queria poupá-lo da história traumática
que pulsava dentro de mim, dentro de todos nós. Mas eu também estava
começando a entrar em pânico, percebendo que agora eu estava isolada da
cidade e da minha própria casa. O meu motorista não estava comigo, quem
estava comigo era o Morgan, e a minha mãe estava prestes a chegar a
qualquer minuto. Eles conseguem ser venenosos e manipuladores juntos.
Eu me sentia como se eu estivesse numa realidade paralela, longe daquela
casa e de volta para o nosso antigo barraco. Eu estava inserida no mundo
deles agora. O passado e o presente pareciam o mesmo – totalmente
inseguro.

A casa tinha cheiro de desgraça e pêlos de cachorro. Eu examinava a


desordem e a bagunça. (Eu nunca gostei da maneira como a minha mãe
cuidava da casa; por isso que eu sempre contratava diaristas para limpar a
casa dela.) Assim como o meu pai, eu sempre gostei das coisas muito
limpas. A bagunça me causa ansiedade. Eu comecei a colocar as coisas
em ordem, uma atividade que normalmente faço para voltar ao foco. Eu
pensava que se eu pudesse trazer alguma ordem ao caos da casa, mesmo
que fosse pouca, eu poderia voltar a raciocinar como antes. Mas não estava
dando certo.

245
Eu não sou uma menininha indefesa, eu disse a mim mesma. Esta linda
casa era eu quem tinha comprado, criado e administrado como adulta. Eu não
era uma garotinha em um barraco qualquer. Eu posso colocar ordem nisso.
Mas Deus, eu estava tão cansada. Talvez, eu pensei, por alguma lacuna de
tempo e espaço, nós realmente estivéssemos de volta ao barraco. Eu precisava
dormir. Desesperadamente. E eu estava faminta. A minha mente voltou a
disparar.

Fui à cozinha para ver se eu conseguia comer alguma coisa. Normalmente,


ao visitar a minha mãe, eu levava todas as provisões necessárias, incluindo
pratos e talheres descartáveis, para garantir que todos tivessem o suficiente
para comer e que fosse fácil de limpar. Na cozinha, eu encontrei a pia com uma
pilha alta de pratos sujos. Eu sabia que ajudaria a voltar ao meu normal se eu
me concentrasse em uma tarefa simples. Lavar os pratos – isso funcionaria. Eu
vou fazer isso. Vou lavar a louça, eu pensei. Vou comer em um prato limpo e
depois vou dormir.

Ao tentar abrir a torneira, de repente eu me lembrei. Seis dias. Faz seis dias
que eu não durmo mais de duas horas. As minhas mãos começaram a tremer
enquanto eu tentava iniciar a tarefa que eu havia estabelecido para mim
mesma. Tudo que eu podia ouvir era o meu coração batendo forte dentro do
meu peito. O que eu estou fazendo? Lavando a louça. Certo. Depois do que
pareceu uma eternidade, finalmente eu lavei um prato e coloquei na prateleira.
Em seguida, peguei uma tigela cheia de espuma, mas a senti escorregar pelos
meus dedos e se despedaçar no chão. Eu tentei de novo: eu tinha conseguido
lavar um prato. Eu derrubei outro prato. Agora eu tinha que juntar o prato
quebrado e secar a água do chão. O som da água da torneira aberta, o som de
pratos batendo e o som das pessoas conversando giraram de uma vez. Eu
estava tentando freneticamente limpar tudo e sair de cena antes que a minha
mãe chegasse em casa. Eu me abaixei para juntar o prato do chão, a luz
diminuiu e os sons começaram a diminuir. Todo o espaço ao meu redor se
estreitou e eu comecei a cair. Eu apaguei por uma fração de segundos, mas eu
consegui me recuperar antes de desmaiar completamente.

Deu certo. As ondas de ansiedade se foram, mas também se foram o


pouco da energia e da vontade que me restavam. Mas olha só, se eu não
conseguisse dormir naturalmente, desmaiar resolveria o problema. Com a
ajuda da Tots, eu subi cambaleando as escadas em direção ao quarto de
hóspedes, apanhando tufos de pêlo de cachorro nos degraus ao longo do
caminho (eu mal estava consciente, mas os meus padrões ainda estavam
acordados). Eu mais parecia uma refugiada exausta, e eu achava que
refúgio era exatamente o que eu tinha encontrado. Eu desabei na cama
aconchegante, me rendendo à sua maciez. Tudo escureceu tão
246
rapidamente e de forma tão esperada, e eu me afundei nela. Finalmente,
paz.

“Mariah! O que você está fazendo? Eles estão procurando por você!”
Uma voz forte e dramática me puxou violentamente para fora da piscina de
silêncio em que eu estava flutuando. Perdida e balbuciando, voltei à
consciência para encontrar a minha mãe pairando sobre mim. A minha
própria mãe tinha me acordado do primeiro sono que eu tinha conseguido
ter em quase uma semana! Para piorar as coisas, ela estava me acordando
para me dizer que a gravadora estava procurando por mim para que eu
voltasse ao trabalho – como se, em vez de ser a minha mãe e a pessoa
que cuida de mim, ela era uma espécie de agente da máquina que
repetidamente colocava o meu potencial de ganhar dinheiro acima do meu
bem-estar.

Essa foi a gota d'água. Eu realmente perdi o controle. Algo dentro de mim
subiu rapidamente e saiu pela minha garganta; e estava babando de raiva.

“Bem, eu fiz o melhor que eu pude! ‘Eu fiz o melhor que eu pude!’ É tudo
o que você sabe dizer!” Eu rugi para ela, imitando os seus tons exagerados.
Ela sempre se justificava, não foi uma ou duas vezes, mas durante toda a
minha vida. Depois de seis dias sendo caçada – seis dias me escondendo,
seis dias de muita ansiedade e de quase morrer; seis dias sem descanso;
seis dias de trauma – eu finalmente consegui dormir na casa que Eu tinha
comprado, apenas para ser acordada pela minha própria mãe. A minha
mãe, que já havia descansado tanto naquela casa, casa essa que eu tinha
comprado com o suor do meu trabalho!

Eu não esperava um abraço ou um beijo na testa, canja de galinha feita


em casa ou biscoitos assados. Eu não esperava um banho quente. Eu não
esperava uma massagem, chá quente ou uma história para dormir. Eu não
esperava nenhum conforto que uma criança doente pudesse receber de
uma mãe saudável. Eu sabia que a minha mãe não tinha capacidade para
esse tipo de resposta maternal; afinal, era eu quem cuidava das coisas. Eu
cuidava dela, e de tudo mais. Eu não esperava que ela fizesse nada para me
ajudar a me sentir melhor, mas certamente eu não esperava que ela fosse me
acordar! A raiva tomou conta de mim. Eu não conseguia ver, eu não conseguia
ouvir, eu não conseguia sentir o meu corpo.

Como uma resposta de sobrevivência, eu mergulhei na profundidade do


meu sarcasmo e zombei dela, perversamente. Usar do humor em situações
de estresse ou trauma extremo era um mecanismo de defesa que eu havia
desenvolvido quando eu era criança.
247
“Bem, eu fiz o melhor que eu pude! Eu fiz o melhor que eu pude!” Eu a
imitava e zombava com a cara dela sem parar. Eu estava querendo que ela
acordasse, usando as suas próprias palavras contra ela, para que ela
entendesse que eu ter que passar por aquilo era cruel e um absurdo. Eu
sabia que eu estava errada, mas eu tinha feito de tudo para que a situação
não tivesse chegado naquele ponto.

Eu gritei: “EU SÓ QUERO DORMIR!” Todos os meus medos, toda a


minha mágoa, todas as impressões que eu tinha dela guardadas dentro de
mim – toda a minha raiva estavam sendo revelados com cada palavra que
eu jogava nela.

“Bem! Eu! Fiz! O! Melhor! Que! Eu! Pude!” Eu gritei.

Ninguém, especialmente a minha mãe, jamais me viu com tanta raiva.


Ao longo da minha infância, sempre eram o Morgan e a Alison que tinham
acessos de histeria. Eles gritavam sem parar e jogavam garrafas de
condimento uns nos outros. Eles brigavam. Eles xingavam e ameaçavam a
minha mãe ou a deixavam desacordada. O meu irmão e o meu pai se
esmurravam. Mas agora era a minha vez de perder o controle. Eu não era
violenta ou de ficar xingando, mas ainda assim eu estava colocando tudo
para fora, por mim.

Eu estava histérica e com muita raiva, mas ainda assim eu estava


pensando no meu sobrinho Mike. Eu não queria continuar o ciclo doentio
que todos nós tínhamos passado. Eu estava parada na frente da porta dele,
colocando o meu corpo entre a minha mãe, entre a minha gritaria e a
inocência dele. Antes de chegarmos, eu pedi a Tots para cuidar do Mike; eu
confiava nela por causa das incontáveis sobrinhas e sobrinhos que ela
cuidou ao longo dos anos. Eu nunca sabia o que poderia acontecer com a
minha família, então ela ficou atrás da porta tentando confortá-lo. Eu estava
gritando: “Isso tem que parar! Temos que quebrar o ciclo!”

Todo o medo e fúria que eu tinha guardado dentro de mim agora eram
direcionados à minha mãe. Ela estava no centro do ciclo que eu queria mais do
que tudo quebrar. A minha mãe estava finalmente experimentando o sabor da
minha fúria, que era algo que ela não estava preparada para entender ou tentar
digerir. Ela não conseguia nem mesmo entender a piada – pelo contrário, ela
se sentiu ameaçada e envergonhada por isso. Ela deixou a sua perplexidade
de lado; então ela ficou super fria e me lançou um olhar que dizia: Sério? Você
ousa zombar de mim? Você ousa me ameaçar? Você não faz ideia com quem
está se metendo.

248
Quando a minha mãe fica com medo, ela se sente totalmente segura
com a evidência histórica de que os brancos sempre serão protegidos – e
ela costuma ligar para a polícia. Em várias ocasiões, ela chamou a polícia
para o meu irmão, para a minha irmã e até mesmo para os filhos da minha
irmã. A minha mãe chamava a polícia mesmo quando ela não estava
correndo perigo. Certa vez, eu levei a minha família para passar o natal em
Aspen. Isso aconteceu um ano após eu ter ido embora da minha ex-casa e
eu decidi que eu queria criar a minha própria tradição de natal, então eu levei
todo mundo da família Carey. Para mim, o natal é sinônimo de família. Eu
aluguei uma casa para que eu pudesse decorar e comer coisas feitas em
casa e para que nós pudéssemos cantar canções de natal a plenos
pulmões se assim a gente quisesse, e eu aluguei um hotel fabuloso para a
minha família ficar hospedada.

Em um certo momento, estávamos todos juntos em casa e o Morgan


começou a ficar super embriagado. Quando ele sumiu por alguns instantes,
a minha mãe começou a agir de forma dramática como de costume.

“Onde está o Morgan?” ela gritou. “Eu não consigo encontrar o Morgan!”
Vejam bem, o Morgan era um homem adulto de trinta e poucos anos, mas a
minha mãe ainda estava em pânico autoinduzido. “Não consigo encontrar
o Morgan!” Ela ligou para o quarto de hotel dele várias vezes, mas não
houve resposta. Então, o que ela fez? Ela chamou a polícia. A minha mãe
ligou para a polícia de Aspen, Colorado, para encontrar o meu irmão
moreno, que às vezes traficava drogas, que já tinha sido fichado pelo
sistema e que estava bêbado. Os policiais foram ao hotel e foi aquele drama.
Ela pediu para que eles arrombassem a porta do hotel, e o Morgan estava
deitado nu com a bunda para cima, desmaiado em cima da cama. A notícia
se espalhou como um incêndio por toda a cidade, e essa, senhoras e
senhores, foi a última vez que o Morgan e a minha mãe chamadora de
policiais foram convidados para passar o natal comigo em Aspen. Eu
realmente não desejo muita coisa para o natal, mas com certeza policiais
não fazem parte da lista de coisas que eu desejo.

E então, naquela noite em Westchester, ela chamou a polícia para mim


também.

A polícia chegou rapidamente, como costuma acontecer em bairros brancos


e ricos. A minha mãe abriu a porta. Eu ouvi um policial perguntar: “Algum
problema, senhora?”

“Sim, estamos tendo um problema”, respondeu ela, dando as boas-vindas


aos dois brancos policiais que entravam na casa. Eu consegui perceber que
249
eles meio que me reconheceram, embora o meu estado emocional estivesse
tão abalado quanto a minha aparência. Eu tinha conseguido dormir pela
primeira vez em quase uma semana. Mesmo com toda a confusão emocional,
eu rapidamente prendi o meu cabelo em um coque. Eu estava usando uma
meia-calça e uma camiseta (é o que se faz quando estamos em casa, quando
estamos tentando descansar). Eu tinha me recuperado um pouco, porque é
isso que se faz quando há policiais envolvidos. Mas eu não estava usando a
minha máscara de artista, que é como quase todo mundo me conhece (exceto
os Lambs, é claro). Sem toda a pompa e glamour, eu parecia perturbada, talvez
eu parecesse um pouco ansiosa ou indisposta também.

Embora os policiais estivessem tecnicamente na minha casa, a atenção


deles estava voltada para a minha mãe. Ela olhou para eles de forma estranha
e como se indicasse alguma coisa, que mais parecia um aperto de mão de uma
sociedade secreta, algum tipo de código policial alertando que uma mulher
branca estava em perigo. Ela havia sido desafiada e eu ousei ser agressiva. Eu
estava sendo agressiva com ela. Eu a assustei. E eles entenderam o sinal dela
em alto e bom som. Eles tinham sido treinados dessa maneira. Esse código
fazia parte da cultura dela. Este era o mundo, o povo e a linguagem dela. Ela
tinha o controle da situação. Até mesmo a Mariah Carey não poderia competir
com uma mulher branca desconhecida e em perigo. Se eu tivesse tido apenas
um ou dois dias para descansar, eu teria acordado e ficado pronta para gravar
o clipe. Mas em vez disso, aqui estava eu, de pé na casa da minha mãe (na
verdade, na minha) com os policiais.

O que foi mais assustador era que eu estava exausta demais para me
lembrar da minha amiga. A energia negativa da minha mãe, do Morgan e dos
policiais –todos ali – bloqueavam a minha luz. Eu precisava ver a Tots. Ela tinha
uma grande fé em Deus também, e se eu não pudesse sentir a Deus naquele
momento, eu pensei que talvez eu pudesse sentir a Deus através dela. Eu
acreditava que ela poderia, de alguma forma, me manter segura de uma
maneira espiritual e fraterna. Eu estava buscando o apoio dela, mas ela
também estava com muito medo dos policiais. E ela tem culpa? É totalmente
compreensível. Ela era a única pessoa 100 por cento negra na casa. Depois
de se manter longe de problemas com a polícia durante anos nos projetos
residenciais de Brownsville, como ela poderia explicar para a sua mãe que ela
tinha sido presa em um subúrbio rico e que estava em alguma prisão no interior
do estado? Só Deus sabe o que eles teriam feito com ela lá dentro (isso foi
muito antes do #VidasNegrasImportam e do ativismo através do celular,
embora mesmo um movimento assim não consegue impedir a maior parte da
brutalidade). Então, a Tots estava tentando ao máximo manter a si mesma e
ao Mike longe da confusão e fora de vista. Contra dois policiais brancos e uma
mulher branca, no condado de Upper Westchester, a Tots sabia que ela estava
250
em desvantagem e totalmente derrotada.

Dada a sua longa e turbulenta história com as autoridades, o Morgan estava


escondido no pequeno escritório que chamamos de “sala irlandesa”. Ninguém
tentou explicar à polícia que foi apenas uma briga de família – que tudo estava
bem e que eu estava sobrecarregada de trabalho e que tinha perdido a
paciência. Eu precisava de cuidados, não de policiais. Mas ninguém me
defendeu. A única coisa que os policiais viram foi uma mulher branca assustada
em uma casa grande e cheia de pessoas não brancas.

Traída, humilhada e aflita por reviver a negligência e os traumas da minha


infância, eu finalmente abri mão. Não que eu ainda tivesse força para fazer
alguma coisa, mas eu sabia que eu não devia confrontar a polícia. Eu estava
acabada. Ironicamente, eu fiquei aliviada pela polícia ter que me tirar daquela
casa cheia de trauma e traição. O meu irmão tinha me trazido de volta para o
mesmo abismo tenebroso em que ele, a minha irmã e a minha mãe viviam
quando eu era criança. A minha mãe não me deixou dormir e ainda me
entregou às autoridades. Não havia mais nada a fazer a não ser me render. Eu
concordei ser levada da minha própria casa pela polícia, mas com uma
condição – que me deixassem calçar os meus sapatos. A minha família pode
ter tirado o meu amor próprio, a minha confiança e o resto da minha energia,
mas eles não iriam mais ser honrados por mim também.

Eu calcei o meu salto alto (mules, provavelmente) bem rápido, eu arrumei


o meu rabo de cavalo, passei brilho labial e me sentei no banco de trás da
viatura. Ser escoltada por policiais certamente não era um consolo, mas eu fui
derrotada e eu precisava escapar por todos os meios necessários. As
almofadas firmes do assento e a proteção à prova de balas dentro do carro
proporcionavam uma sensação distorcida de segurança. O meu corpo deu
indicações de que ainda precisava descansar. O Morgan se sentou no banco
de trás ao meu lado.

Eu olhei para ele, sentindo um grande vazio, incapaz de aceitar o que a


minha família tinha acabado de fazer comigo. Eu não conseguia acreditar. Eu
tinha que externar a minha dor, colocar a culpa em um vilão diferente. Eu tentei
me lembrar como tudo havia começado – quando as coisas começaram a dar
errado?

Atordoada, eu sussurrei: “Isso é tudo culpa do Tommy Mottola.”

Os olhos do Morgan se estreitaram e ele sorriu de forma sinistra novamente.

“É isso mesmo.” Ele assentiu. “É isso mesmo.”


251
E na escuridão da noite, pegamos a estrada.

252
COLAPSO NERVOSO

Naquela noite, eu não “tive um colapso nervoso”. Ocasionaram um colapso


nervoso em mim – e que foi ocasionado pelas mesmas pessoas que deveriam
ter evitado isso a todo custo. Eu conhecia um lugar que os moradores da região
chamavam de “spa”, e que ficava bem perto, e então eu perguntei aos policiais
se eles não poderiam me levar até lá. Eles aceitaram. Eu não conhecia os
serviços ou a reputação do lugar, mas eu imaginei que pelo menos eu
conseguiria dormir um pouco, que eu conseguiria comer algo saudável e que
talvez eu tivesse algum atendimento médico. Depois de tudo o que eu passei,
eu estava muito preocupada com a minha condição física. Eu sentia que eu
precisava me curar do grande trauma que eu tinha acabado de passar. O meu
corpo estava respondendo, mas a minha mente, as minhas emoções e o meu
espírito não estavam, e agora eu percebo que eles estavam tentando se
proteger.

Eu me lembro de sair da viatura e andar de um lado para o outro no


estacionamento, sabendo que aquele lugar não era para mim, mas que a casa
da minha família não era lugar para mim também. Eu não sabia qual era o meu
lugar. Depois de uma batalha longa e meio confusa, o Morgan me convenceu
a entrar. Eu não conseguia sentir nada. Eu assinei a papelada de admissão
acreditando que eu poderia sair na hora que eu quisesse. Eu não fazia ideia do
que eu realmente tinha assinado. Depois de falar com alguns dos funcionários,
o Morgan me deixou lá. O tamanho, a cor e o cheiro do lugar, os nomes, os
rostos das pessoas – não me lembro muito bem dos detalhes. Eu fui levada a
um pequeno cômodo no final de um corredor. Eu percebi que não tinha janelas,
embora provavelmente houvesse. Havia uma única porta e uma única cama no
quarto. Eu me deitei na cama e me enrolei bem com os lençóis.

O terror veio logo em seguida.

Eu conseguia ouvir o ruído entediante de um esfregão pesado tocando e


espirrando água no chão à distância, e as vozes abafadas e misturadas de
meninas conversando e rindo. De vez em quando, eu as ouvia claramente dizer
“Mariah Carey”. O esfregão e as vozes estavam se aproximando e ficando cada
vez mais altos, parando diante da minha porta. A risada delas ecoava na minha
cabeça. Eu me enrolei ainda mais, fechei os olhos e tentei desaparecer. Eu não
me senti aliviada. Eu estava com muito medo e me sentindo completamente
sozinha. Eu não conseguia rezar. O medo era o meu único companheiro. O

253
gemido de pessoas assustadas em seus cômodos nunca parava enquanto a
noite tortuosa passava e a manhã se aproximava.

Amanheceu o dia. Eu estava longe de me sentir descansada ou lúcida, mas


eu não estava mais totalmente sob os efeitos dos remédios. Eu sabia que eu
precisava de cura, paz, terapia, comida, descanso e de restauração. Eu
precisava de cuidados, e a decisão precipitada de ir para o lugar mais próximo
possível claramente não tinha sido uma boa ideia. Eu passei a ter pensamentos
de pânico: Onde está a minha bolsa? Onde estão todas as minhas coisas? O
que diabos eu estou fazendo neste lugar terrível e tendo que usar um banheiro
que muitas pessoas usam também? Como eu faço para sair daqui?

Claramente não era um spa; não havia nada terapêutico ou restaurador


naquele lugar. O local mais parecia uma prisão. Cheio de jovens confusos,
incontroláveis e perturbados, era tipo um centro de detenção juvenil de luxo. A
comida era nojenta. A minha mente estava acelerada. A minha mãe realmente
chamou a polícia para mim? Ela realmente me humilhou? Ela realmente me
colocou para fora da casa que eu tinha comprado? Eu realmente estava ali
naquele lugar, em alguma instituição disfarçada de “spa”?

O mais assustador é que eu não tinha controle sobre a minha situação. Eu


não tinha o meu carro, as minhas coisas e nenhum dinheiro. O meu pager não
estava comigo para que eu pudesse me comunicar com as pessoas que se
importavam comigo de verdade. Só tinha um único orelhão e ele era usado por
todos. Quando ninguém estava olhando, eu tentava ligar para algumas
pessoas, mas sem sucesso. Não havia privacidade. Eu transitava por lá como
uma Mariah Carey murcha, despida da sua máscara profissional e da sua
influência, totalmente exposta a Deus sabe o quê.

Embora eu não me lembre muito bem como eu costumava interagir com a


equipe e os outros pacientes, eu me lembro claramente de ser levada a um
pequeno escritório vazio que parecia uma sala de interrogatório da polícia,
onde um administrador branco mais velho e careca fazia algumas perguntas
sem nexo. Eu ainda estava super confusa e era difícil compreender o mal-
entendido que tinha acontecido comigo naquela casa na noite anterior,
juntamente com a intensidade e a severidade de todas as obrigações de
trabalho que eu tinha pela frente. Eu falava sobre ter que gravar um clipe, sobre
os preparativos para a estreia do filme Glitter, e sobre todas as pessoas que
dependem de mim. Eu me sentia super ansiosa e frustrada por este homem
não entender o que estava em jogo. Além dele não dar a mínima, ele ainda era
hostil.

254
“Parece que você precisa de uma dose de humildade”, foi a resposta
arrogante que ele me deu a tudo que eu tinha dito a ele. Ah, como ele gostou
de vomitar essa frase. Foi uma tomada de poder tão óbvia e lamentável. Eu
quase podia vê-lo bufando, acreditando que ele havia derrotado a diva. Não
são só os tabloides que se deleitam em ver as estrelas caídas no chão. Eu
estava indefesa – apunhalada nas costas pelo meu ex-marido e apunhalada no
coração pelo meu irmão e minha mãe. E todos eles me deixaram sangrando
dentro daquela espelunca.

Eu tentei ir embora, mas, para o meu horror, eu descobri que eu não


conseguia. Eu não sei o que o meu irmão disse aos funcionários de lá, mas as
pessoas estavam me tratando como se eu estivesse fora de controle e tivesse
enlouquecido (e a maioria parecia estar gostando). Demorou vários dias de
burocracia e papelada para eu poder sair.

Eu sabia que o Morgan e a minha mãe estavam se comunicando e eu


acredito fortemente que eles orquestraram tudo. Eu voltei para a cena de onde
crime algum havia acontecido, a casa da minha mãe (correção: minha casa).
“Coincidentemente”, havia paparazzis esperando por mim no bosque ao redor
da casa da minha mãe para me cumprimentar. A capa do jornal New York Post
do dia seguinte tinha uma foto minha estampada, tirada com uma lente de longa
distância, de pijama, com óculos escuros e um coque bagunçado, bebendo
suco com um canudo. A legenda enorme da foto dizia: “Notícia Exclusiva!
Mariah: As primeiras fotos.”

A minha mãe ficou entusiasmada. Ela exclamou: “Olha, a sua reportagem


está parecida com a da Marilyn!” (Só que não.) A capa do jornal Daily News até
mencionou o nome dela: “O colapso nervoso da Mariah! A desesperada ligação
da mãe para o 911 enquanto a diva desmoronava.” Quando eu voltei para casa
para pegar as minhas coisas com o meu produtor de turnês, a minha mãe, em
um vestido sem graça, estava sentada no chão da varanda no meio da chuva,
jogando valetes com baralho, no que parecia ser um transe. Isso meio que
assustou o meu produtor de turnês. Que ironia patética.

A alegria dela com a reportagem do tabloide não foi nenhuma surpresa para
mim. Embora eu fosse a filha que não quebrava as regras (ou leis, ou garrafas),
a minha mãe não parecia ter a capacidade de ficar totalmente feliz por mim à
medida que eu amadurecia e me tornava uma artista talentosa. Às vezes eu
me perguntava se ela não conseguia tolerar o meu sucesso. Muitas vezes eu
senti que ela tinha ciúmes de mim e que o seu sorriso parecia forçado, embora
eu ainda a incluísse em muitos dos principais eventos da minha vida.

255
Uma das maiores honras da minha carreira foi receber o Prêmio Congresso.
Eu sonhava em receber Grammys e Oscars por cantar ou atuar, mas ser
homenageada pelo meu país pelos serviços prestados foi um destaque além
dos meus sonhos – e eu sonho alto. Eu recebi o Prêmio Horizon de 1999,
concedido por trabalhos de caridade voltados para a promoção do
desenvolvimento pessoal de jovens, pelo meu trabalho com o Camp Mariah,
através do Fresh Air Fund. Eu nunca me envolvi muito politicamente e, na
época, eu realmente não entendia totalmente o significado do prêmio e do
evento. É uma das duas únicas medalhas legisladas por ato parlamentar (a
outra é a Medalha de Honra). Eu estava sendo homenageada junto com o ex-
secretário de Estado Colin Powell.

Fomos recebidos como dignitários e houve um jantar formal muito elegante


antes da cerimônia. A minha mãe e eu estávamos na companhia de 2
importantes políticos, o ator Tom Selleck estava sentado na mesa conosco
também; o ex-líder da maioria republicana no Senado, o Trent Lott, do
Mississippi, e o ex-líder da minoria democrata na Câmara, o Dick Gephardt
(que concorreu à presidência algumas vezes). Este é um dos poucos eventos
em que ambos os partidos políticos colocam as diferenças de lado e
orgulhosamente participam de igual para igual como americanos. Nesta noite,
numa sala cheia de políticos, entende-se que ninguém discute política (até eu
sei disso). Eu me sentia orgulhosa, porque uma garotinha que cresceu se
sentindo excluída, agora tinha um lugar de honra em uma das mesas mais
cobiçadas do mundo.

Eu financiei um banho de loja para a minha mãe: cabelo, unhas, maquiagem


profissional. Eu comprei para ela um vestido novo e chique – o pacote
completo. Esta era uma ocasião para um visual impecável e para nos
comportar da melhor maneira.

Bem…

Ela tomou alguns coquetéis na curta viagem de avião de Nova Iorque a


Washington, DC, e continuou a beber durante o jantar. Quando as bebidas
começaram a surtir efeito, a sua compostura foi embora. Ela começou a
expressar teatralmente as suas opiniões políticas, que não se pode fazer de
jeito nenhum em um evento distinto como este, mesmo a pessoa estando
completamente sóbria. As opiniões dela se transformaram em insultos, que se
transformaram em um pequeno discurso, mas ainda assim perturbador. A única
coisa que todos sabiam que não era para fazer era o que a minha mãe estava
agora totalmente comprometida em realizar. Eu fiquei morrendo de vergonha.

256
O meu segurança se inclinou e sussurrou: “Nós temos que tirá-la daqui.” Eu
concordei. Eles a tiraram da sala de jantar e a esconderam no meu camarim
perto do palco para a cerimônia da premiação – aparentemente bem a tempo,
porque me disseram que, quando ela entrou na sala, ela começou a gritar: “Eu
odeio a Mariah! Eu odeio a minha filha!” Quando eu consegui escapar da mesa
de jantar para ir ver como ela estava, ela estava completamente bêbada.

Eu voltei para o meu assento e fingi alegremente como se tudo estivesse


bem (Deus sabe que eu tenho muita prática nisso). Eu fui acompanhada até o
palco por duas lindas jovens negras do Fresh Air Fund, que, felizmente, me
apoiaram no propósito da noite. Eu consegui terminar o meu discurso e aceitar
o prêmio. Quando eu saí do palco, ficou claro que nós tínhamos que tirar a
minha mãe furiosa e bêbada do local e rápido, já que ela agora estava tendo
um ataque de fúria. Os meus seguranças trabalharam rapidamente para
colocá-la no carro, para levá-la para o aeroporto e para colocá-la dentro do
avião. No voo, ainda usando o vestido de grife que eu tinha comprado para ela,
ela se esquivou para o assento da primeira classe, continuando a beber e a
resmungar, “o Morgan é o único que amo. O Morgan é o único que me ama.”
Os seguranças levaram a minha mãe para casa em segurança e a colocaram
na cama. Sozinha na parte de trás de uma limusine, usando um vestido preto
de seda, abraçando o prêmio que eu tinha recebido do meu país, eu chorava.

Ela pode ter perdido a noção e sem saber o que ela fez ou disse. Mas eu
tive que processar a tristeza, o constrangimento e a dor da experiência. Na
manhã seguinte, eu fiquei preocupada que a embriaguez dela fosse divulgada
pela imprensa. Mas isso não aconteceu. Eu a tinha protegido. Eu não sei quem
a viu, mas, felizmente, o vexame que ela deu no Congresso não apareceu nos
tabloides.

Ela não ligou para se desculpar. Ela não disse nada.

Ser a Mariah Carey dá trabalho – e o meu trabalho era voltar para ele. Eu
sabia que haveria olhos e lentes em todos os lugares. Eu precisava de alguém
para iluminar o caminho e me tirar da escuridão que aquele lugar havia se
tornado. Naquela época, eu confiava apenas em pouquíssimas pessoas.
Portanto, antes que eu pudesse cair o fora da escuridão do chalé da minha
mãe, eu recorri ao meu amigo de confiança e maquiador Kristofer Buckle para
me apoiar. Ele me encorajou, retocou a minha maquiagem me fazendo ganhar
confiança e caminhou comigo de modo com que eu me sentisse iluminada.

Eu estava magoada, mas eu voltei para a minha cobertura em Manhattan.


Eu precisava consertar muitas coisas e de um bom tempo para me recuperar.
257
Eu ainda me sentia muito frágil, muito preocupada com a condição do meu
muito novo e importante contrato com a gravadora Virgin, e com o pouquíssimo
tempo que restava para o lançamento do Glitter. As reportagens sobre o meu
“colapso nervoso” deixaram todo mundo logicamente abalados – não menos
do que eu. Eu não havia recuperado a minha força emocional ou espiritual. Eu
ainda estava revivendo bastante o pesadelo e o Morgan era quem estava
controlando tudo. Mas eu não o via como um manipulador ainda. Eu
erroneamente ainda confiava muito nele. Ele tinha me tirado da minha crise de
gritos no hotel, dizendo “aniversários no Roy Boy”. Ele não apareceu quando
os policiais chegaram a Westchester. Ele havia me levado para o “spa”.
Portanto, eu não o associei com as inúmeras catástrofes que haviam ocorrido.
Ele parecia, na melhor das hipóteses, um aliado, na pior, um espectador
inocente. Eu precisava de alguém. E eu precisava acreditar que nem todo
mundo estava contra mim.

O pedestal que eu tinha erguido para o meu irmão quando eu era criança
há muito tempo havia desmoronado, mas eu continuei tentando construir um
novo pedestal para ele em cima dos escombros. Embora eu não pudesse ver
na época, nós dois claramente estávamos despedaçados. Se eu tivesse sido
perspicaz, ou se alguém da minha folha de pagamento tivesse desconfiado, eu
teria tido uma equipe de especialistas e profissionais contratados para me
avaliar e me tratar na minha casa. Eu tinha os meios para poder passar alguns
dias em um spa de verdade, onde pelo menos eu pudesse descansar um
pouco, pudesse comer algo saudável, e talvez tivesse alguns tratamentos
corporais – todas as coisas que eu poderia ter tido se eu não tivesse ido àquele
“spa” infernal. Eu também queria a oportunidade de arejar a minha cabeça e
me proteger (também da gravadora) de manchetes mais pesadas.

O Morgan recomendou que eu fosse para Los Angeles, onde ele estava
morando atualmente, argumentando que havia spas de verdade lá (o que é
verdade) e nenhum jornal de Nova Iorque por lá (também verdade). Um spa
em Los Angeles parecia uma boa ideia na época. Eu deixei o Morgan organizar
tudo (não foi uma boa ideia, algo que eu jamais deveria ter feito ou deveria
fazer novamente, mas eu estava desesperada).

Quando nós chegamos a Los Angeles, a minha ansiedade e desorientação


foram intensificadas pela tragédia da morte repentina e horrível da Aaliyah.
Poucos dias antes, ela disse à imprensa: “eu sei que este trabalho pode ser
difícil, pode ser estressante. Eu envio todo o meu amor para a Mariah Carey.
Eu espero que ela melhore logo.” Toda a indústria da música ficou abalada com
a morte dela, mas a comunidade de R&B e hip-hop ficou arrasada. Ela era
realmente a nossa princesinha.

258
Estava acontecendo tanta coisa e eu não conseguia entender o tanto que
estavam tentando me prejudicar. O Morgan entrou em contato com um cara
qualquer que ele disse que nos ajudaria. Eu me lembro de dirigir pela rodovia
pelo que pareceu uma eternidade. Finalmente paramos em um lugar que não
parecia em nada com um spa, mas sim com uma clínica de desintoxicação. Eu
ainda me sentia exausta, então, embora eu não tivesse gostado, eu não resisti.
O Morgan chegou a dizer: “Vamos; vai ser divertido.” Não foi nada divertido.
Foi um dos momentos mais angustiantes da minha vida – e eu tinha passado
por muitos desses momentos.

Mais uma vez, eu não tinha controle da situação. Eu não podia falar por mim
mesma e, quando eu podia, eu era ignorada e dominada.

A clínica em Los Angeles acabou sendo um centro de desintoxicação e


reabilitação barra-pesada. A primeira coisa que aconteceu comigo foi que eles
administraram fármacos – narcóticos pesados e fortes. Eram pílulas gigantes
da cor de Pepto-Bismol. No início, eu me recusei a tomar, mas eu não tinha
ânimo para lutar totalmente. Eu me sentia muito fraca. Eu achei que talvez eu
conseguisse dormir um pouco (onde estava o Ambien42 quando uma garota
precisava dele?). Por fim, eu dormi, mas irregularmente. Os fármacos me
impediam de ter qualquer tipo de energia e vontade de lutar. Eles colocaram o
meu grande e brilhante Deus mais ainda na escuridão. Os medicamentos me
deixavam lenta, inchada e submissa.

Eu ficava num estado de confusão a maior parte do tempo.

Terrivelmente vestida com a roupa feiosa da clínica, eu estava exausta e a


minha alma estava pesada. O meu rosto estava fragilizado sem ter tido
nenhuma proteção por muitos dias. Essa é uma das funções da maquiagem –
mesmo dando uma aparência natural, ela pode servir como pintura de guerra,
um campo de força invisível. Muitas vezes é assim para mim. A maquiagem
protege os meus poros e a minha pele de rugas e linhas de expressão
causadas por pessoas irritantes. Mas eu não tinha acesso a esse tipo de
proteção naquele lugar.

Certa manhã, eu estava em meu quarto sombrio, me sentindo sonolenta,


quando um atendente entrou e me levou para a área comum. Estava lotado de
funcionários e detentos – ops, pacientes – e todos olhavam para a grande
televisão em silêncio. Na tela mostrava o que parecia ser a vista da janela da
cozinha da minha cobertura em Nova Iorque no céu. Mas a imagem estava

42 Ambien: é a mesma coisa que o fármaco zolpidem. É utilizado para o tratamento a curto
prazo da insônia.
259
emoldurada por nuvens de fumaça cinzas como giz. Bolas de fogo alaranjadas
e vermelhas disparavam do topo das reluzentes Torres Gêmeas prateadas,
como meteoros em um céu azul vibrante. Então, os prédios imponentes e
monumentais desmoronaram por dentro. Um de cada vez, eles caíram em uma
câmera terrivelmente lenta. Os efeitos das drogas que eu estava tomando não
eram páreo para o choque que eu estava sentindo. Naquele instante, eu
acordei do meu torpor enquanto eu observava o meu majestoso horizonte se
desintegrar. A minha cidade natal estava em chamas e desmoronando, e eu
estava a milhares de quilômetros de distância, trancada dentro do desalento de
uma clínica de desintoxicação – sob efeitos de remédio, devastada e sozinha.

Eu estava travada, os olhos focados no horror que se revelava diante de


mim, quando alguém da equipe me deu um tapinha no ombro. Eles me
disseram que estava sendo relatado que terroristas haviam atacado o World
Trade Center e que agora eles iriam me liberar. Eu estava livre para ir embora.
Milagrosamente, parecia, eu não precisava mais de contenção ou de sedativos.
Eu não estava mais louca e fora de controle.

Então, eu magicamente fui liberada para ir embora, porque terroristas


tinham atacado os Estados Unidos e uma “diva maluca” não era mais
interessante? (Oi?!!) Mas eu não questionei. Parecia que o mundo estava
chegando ao fim para todos nós. E se fosse o fim, eu queria dar o fora de lá.
Entre ficar lá, ir embora e o caos e o terror dos ataques que tinham ocorrido
perto da minha casa, eu nem percebi que era o dia em que a trilha sonora do
Glitter tinha sido agendada para ser lançada.

A coincidência da minha súbita saída da “clínica de reabilitação” e o


lançamento da trilha sonora do Glitter e os ataques de 11 de setembro foi
assustador. Vocês sabem como, em um filme de terror de ficção científica, o
apocalipse acontece e então há um sobrevivente solitário vagando pela
devastação? Era como eu me sentia naquele dia quente e nublado em Los
Angeles. No dia 11 de setembro de 2001, eu fui liberada da clínica de
desintoxicação totalmente intoxicada. A cidade de Los Angeles continuava
inabalável, mas eu estava abalada. Eu me sentia sozinha, desconectada e fora
de mim mesma. Eu fui para um hotel e foi a primeira vez que, em semanas, eu
consegui descansar de verdade e sem interrupções. Com o pouco de força que
o descanso proporcionou, eu pude finalmente ir a um spa de verdade, porque
eu ainda tinha que me preparar “o máximo possível” para a estreia do filme
Glitter, que aconteceria em apenas dez dias.

Ainda estava um pouco confuso, mas eu segui em frente. Eu fiz luzes no


cabelo, depois cortei e finalmente alisei. Eu usei um top de um ombro só, como
faço no pôster do Glitter, mas tinha uma bandeira americana deslumbrante na
260
frente, em homenagem às vítimas e aos heróis. Eu combinei o top com um
jeans simples de cintura baixa, levantei a cabeça e fui para o tapete vermelho
do Village Theatre em Westwood com um sorriso. Fui abençoada por ter muitas
crianças e jovens na estreia, pois eram o público-alvo. O Glitter não foi feito
para telespectadores sérios e apreciadores de galerias de arte; era um filme
imperfeito e divertido para ser assistido com o acompanhamento dos pais.

As vendas de bilheteria do Glitter foram um fracasso, em grande parte


porque o país ainda estava se recuperando dos ataques de 11 de setembro. A
tragédia ainda era recente, e ninguém estava pronto para a descontração leve
que o Glitter proporcionava. Por respeito ao nosso luto coletivo, se poderia
pensar que a mídia não ficaria tão obcecada por mim também, mas a obsessão
parecia piorar cada vez mais.

Depois da estreia do Glitter, eu fiquei em Los Angeles para me preparar


para o concerto America: A Tribute to Heroes (América: um tributo aos heróis),
para homenagear as milhares de pessoas que morreram nos ataques.
Organizado pelo George Clooney, seria a minha primeira apresentação desde
que saí daquele pesadelo de família, policiais e clínicas. As maiores estrelas
do entretenimento – Tom Hanks, Goldie Hawn, Bruce Springsteen, Stevie
Wonder, Muhammad Ali, Pearl Jam, Paul Simon, Billy Joel, Robert De Niro e
outros – se juntaram, unidos como americanos. Eu cantei “Hero”, enquanto os
americanos – os socorristas e tantas outras pessoas corajosas e
desconhecidas – mostravam ao mundo como os verdadeiros heróis realmente
se parecem. Eu nunca imaginei quando eu escrevi essa música que ela teria
um significado tão grande em um momento tão horrível da história.

Eu estava ansiosa para voltar para Nova Iorque. Foi inspirador como a
cidade imediatamente começou a trabalhar se recompondo após os ataques, e
eu também estava ansiosa para recompor a minha vida. Eu não tinha
permissão de voltar para a minha cobertura ainda, porque grande parte da
Baixa Manhattan ainda estava fechada por razões de segurança. Enquanto
isso, eu fiquei hospedada em um hotel e impedi a minha família e outras
pessoas de chegarem até a mim. Eu estava acordando do pesadelo que eles
criaram e eu precisava ajudar a mim mesma sozinha; eu queria
desesperadamente voltar a ficar bem.

Eu escolhi um terapeuta no interior do estado de Nova Iorque. Ele era super


inteligente, mas também incrivelmente sensível. As percepções dele não eram
apenas perspicazes, mas reconfortantes – ele me passava a vibe de um Buda
branco moderno. Sob os seus cuidados profissionais, eu fui capaz de começar
a desfazer a provação desmoralizante e desumana pela qual eu acabara de
passar. Perder o meu poder e ser colocada em clínicas assustadoras e
261
inadequadas pela minha mãe e pelo meu irmão enquanto a imprensa destruía
a minha reputação foi quase o fim para mim.

O meu terapeuta deu nome à doença física que eu vinha passando por
tantos anos – todo o desconforto de ser humilhada por crianças e professores,
todas as alergias que explodiram por toda parte da minha pele, todas as fortes
dores de estresse nas costas e ombros causados pelo Tommy, a tontura e a
aversão do terror causados pelo meu irmão, todo o sofrimento psicológico que
eu suportei e que devastou o meu corpo tinham um nome – somatização. Ter
um nome profissional altamente respeitado, validou que o que eu estava
passando fisicamente era real. De repente, tudo pareceu muito real.

A minha carreira era tudo para mim e, por causa da minha mãe, do meu
irmão e do Tommy, eu quase a perdi. Honestamente, parecia que eles quase
tinham me matado. Foi por um triz, mas eles não mataram a mim ou ao meu
espírito. Eles não destruíram permanentemente a minha mente ou a minha
alma. Mas só Deus sabe como eles tentaram.

Não há nada mais poderoso do que sobreviver a uma viagem ao inferno e


voltar para casa iluminada pela luz da restauração. O trajeto para eu voltar a
ser eu mesma e retornar para Deus não foi nada fácil, mas eu estava de pé e
seguindo em frente. Ninguém, eu decidi, jamais iria me impedir ou tomar o
controle da minha vida novamente. Jamais.

Na terapia, eu me sentia segura de externar as minhas emoções, que por


causa do instinto de sobrevivência, estavam sufocadas por um frígido aperto.
Eu estava puta de raiva. Eu sustentava todo mundo ao meu redor, e eles
tiveram a audácia de me jogar em clínicas de reabilitação, de me medicar e de
tentar assumir o controle da minha vida. Quando eu contei ao meu terapeuta o
que tinha acontecido, ele me garantiu que obviamente eu não era louca. No
máximo, ele disse, eu tive um “ataque de diva”. É de se espantar que eu não
tenha sofrido danos emocionais permanentes, considerando o que eu passei;
no entanto, eu provavelmente sempre vou ter que lidar com estresse pós-
traumático. Ele também afirmou que eu tinha toda a razão de me sentir furiosa.
Ele muito francamente sugeriu que eu examinasse o papel que o dinheiro tinha
desempenhado na experiência com a minha família. Eu estava tão envolvida
na minha história de infância, na traição, no amor que eu já havia sentido por
todos os envolvidos, que eu fiquei cega para os motivos. Não foi coincidência
que a minha mãe e o meu irmão estivessem trabalhando ao lado da gravadora,
em vez de me proteger e de defender o meu bem-estar, e que eles passaram
simplesmente a alegar que eu estava instável e querendo me internar
imediatamente após eu ter assinado o contrato mais caro de gravadora de uma
artista solo da história. Eu aceitava ser a galinha dos ovos de ouro para as
262
gravadoras; afinal, eu era “a franquia”. É a alma do negócio – pode ser sujo,
mas eu não tinha ilusões de que o mundo da música era, antes de mais nada,
um negócio cruel. Mas embora eu não tivesse fechado um acordo com a minha
mãe ou com os meus irmãos, eles ficaram felizes de me levar para o
matadouro, assim como as gravadoras e a mídia.

Eu sabia há muito tempo que, para a minha família, eu tinha sido um “caixa
eletrônico de peruca” (apelido que eu dei a mim mesma). Eu dei a eles muito
dinheiro, especialmente para a minha mãe, e ainda não era suficiente. Eles
tentaram me destruir para assumir o controle total. O terapeuta fez uma
sugestão óbvia: se eles pudessem provar que eu era instável, certamente eles
acreditavam que eles seriam os executores dos meus negócios. Ele me pediu
para olhar para eles objetivamente –como eles viam o mundo, como eles nunca
tiveram um trabalho estável e legítimo, mas ainda sentiam que o mundo lhes
devia algo. Todos nós tínhamos passado por muita merda na nossa família,
mas, mesmo assim, nós tínhamos opiniões fundamentalmente diferentes. Eu
não achava que o mundo me devesse nada. Eu simplesmente acreditava que
eu iria conquistar o meu lugar no mundo, à minha maneira. Enquanto eu
trabalhava até a exaustão extrema, eles observaram e esperaram que eu
caísse, como abutres, para que então pudessem controlar a fortuna que eu
tinha negociado, construído e ganhado por direito.

Anos depois, o padrão ainda continuou, como de costume. A minha família


não mudou. Uma das definições de insanidade, costuma-se dizer, é fazer as
mesmas coisas continuamente e esperar resultados diferentes. A minha versão
de insanidade era permitir que a mesma coisa fosse feita comigo,
repetidamente, pelas mesmas pessoas.

“Por favor, mude o seu elenco de personagens.” Esse foi o pedido simples
e profundo que o meu terapeuta acabou fazendo. Embora eu não pudesse
mudar os personagens da minha mãe, do meu irmão e da minha irmã, eu tinha
o poder de mudar como eu os definiria em minha vida. Portanto, para a minha
sanidade e paz de espírito, o meu terapeuta me incentivou a literalmente
renomear e reestruturar a minha família. A minha mãe se tornou a “Pat” para
mim, o Morgan, o “meu ex-irmão” e a Alison, a “minha ex-irmã”. Eu tive que
parar de esperar que um dia eles se tornassem milagrosamente a mãe, o irmão
e a irmã mais velhos que eu fantasiava. Eu tive que parar de me colocar à
disposição para não acabar sendo magoada por eles de novo. Tem sido
benéfico. Eu não tenho dúvidas de que é emocional e fisicamente mais seguro
para eu não ter nenhum contato com o meu ex-irmão e a minha ex-irmã. A
situação com a Pat, por outro lado, é mais complicada. Eu reservei um espaço

263
no meu coração e na minha vida para ela – mas com limites. Criar limites com
a mulher que me deu à luz não é fácil; é um projeto em andamento.

Depois de estar em pedaços, eu recebi uma bênção. O problema e o trauma


que eu suportei não foram apenas emocionais, mas também espirituais. Por
isso, eu busquei a cura para a minha alma. Eu sabia que eu precisava reviver
e renovar o meu relacionamento com Deus. Sou eternamente grata por ter
conhecido o meu pastor, o Bispo Clarence Keaton, quando o fiz. Eu o conheci
através da Tots. Nós costumávamos frequentar a igreja juntas no True Worship
Church Worldwide Ministries (ministérios mundiais da igreja de adoração
verdadeira), bem em frente aos projetos residenciais da Louis Pink Houses na
zona leste de Nova Iorque. A Tots e eu fomos rebatizadas lá juntas. Nessa
igreja, eu me tornei uma estudante da Bíblia, fazendo um curso intensivo de
três anos. Nós estudamos do Antigo ao Novo Testamento. Eu fazia anotações
e acolhia as palavras de cura.

O Bispo Keaton costumava ser um velhaco; ele vivia uma vida muito
diferente antes de se tornar pastor. Ele já havia conquistado o respeito no
bairro, em uma época que não era incomum desviar de balas em plena luz do
dia, então ele era protegido e as pessoas não mexiam com ele. Seguranças
foram fornecidos pela igreja para mim, e a congregação respeitava a minha
privacidade – o Bispo cuidava disso. Eu encontrei coletividade na igreja e uma
família no meu Bispo, que me tratou como uma filha. Ele costumava vir falar
comigo, mesmo quando estava passando por problemas de saúde no final da
vida.

Foi uma honra consolidar o legado do Bispo Keaton como um grande


professor espiritual na minha vida e no mundo, com a participação dele em
duas das minhas canções, “I Wish You Well” e “Fly Like a Bird”. Ele e o coral
da igreja True Worship se juntaram a mim no programa de TV Good Morning
America para cantar “Fly Like a Bird,” antes de ele alçar voo em 3 de julho de
2009.

Ter uma família em Deus trouxe luz para a minha vida novamente. A Pat
não conseguia entender. Ela me deixou uma mensagem maliciosa no meu
celular Blackberry: “O que está acontecendo com você? E todos esses amigos
de igreja e essa sua vida de oração?” Ninguém da minha família biológica
entendia o sentido de se preocupar tanto com Deus. Mas eu tinha que fazer
isso. Voltar para Deus foi a única maneira de sobreviver a todas as minhas idas
para o inferno. Eu acredito que o meu ex-irmão e a minha ex-irmã tenham
estado em um inferno em suas vidas; eles ainda podem estar presos lá. Eles
264
escolheram as drogas, as mentiras e os tramas como modo de sobreviver, mas
isso só pareceu afundá-los mais ainda na lama e torná-los mais ressentidos
comigo. E eu ainda oro por eles.

Talvez quando vocês estão me amaldiçoando


Vocês não se sentem tão incompletos
Mas todos nós cometemos erros
Sentimos culpa e odiamos a nós mesmos
Eu sei que vocês já passaram por isso muitas vezes
Talvez vocês ainda me amem
Quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeira pedra, irmãos
Mas então quem permanecerá de pé?
Nem vocês, nem eu, leiam Filipenses 4, 9
Então, eu desejo o melhor para vocês

– “I Wish You Well”

Aos poucos, eu superava o tempo sombrio pelo qual a minha família tinha
me colocado. E depois de toda essa putaria, “Loverboy” acabou sendo o single
mais vendido de 2001 nos Estados Unidos. Eu sou real43.

43 Eu sou real: Na música I’m Real, a Jennifer Lopez diz ao seu namorado que mesmo ela
sendo uma estrela glamorosa, ela continua sendo uma garota normal e autêntica, então ele
não precisa tentar impressioná-la. A Mariah cita a música da Jennifer Lopez como uma
alfinetada para a própria para dizer que ela é que é autêntica. Ela não precisou sabotar
ninguém para que “Loverboy” se tornasse o single mais vendido de 2001.
265
4° PARTE

EMANCIPAÇÃO
A MINHA PRIMA VINNY

Depois do fiasco do filme Glitter, a gravadora Virgin ficou com medo e quis
baratear o meu contrato. Eles achavam que não era justificável gastar tanto
dinheiro em uma pessoa tão “instável”. A mulher que me contratou foi demitida
e duas novas pessoas da Inglaterra foram contratadas para substituí-la. Eu me
lembro do primeiro dia em que nos sentamos para ter uma conversa –
basicamente, eles foram horríveis pra caralho. Eles queriam mudar o meu
contrato, e foi naquela hora que eu percebi que eu tinha que sair de lá.

Eu me sentia nas nuvens por ter sido contratada pela gravadora Virgin,
porque eu estava desesperada para sair da Sony. A Virgin não era tão grande,
ela era mais uma mini gravadora, e eu sabia o quanto eles tinham cuidado da
carreira do Lenny Kravitz e da Janet Jackson. Eles me ofereceram um bom
contrato, em parte, por não serem tão espertos e influentes quanto às outras
gravadoras; eles não sabiam todos os macetes que a Sony e as outras grandes
gravadoras sabiam. Eles eram ecléticos e me viam como uma estrela grande e
brilhante. Inicialmente, eu escolhi a Virgin em vez de uma gravadora maior e
mais cruel por causa do valor do contrato que eles tinham me oferecido, mas
quando eles quiseram “ajustar” o contrato, usando aquelas 2 pessoas recém-
contratadas para intermediar, eu não tinha motivos para ficar. Eles ofereceram
um contrato revisado em que me pagariam muito menos e que teriam mais
controle. Eu recusei.

Em vez disso, o presidente executivo da gravadora Universal Music, o


genial Doug Morris, e o executivo visionário de música hip-hop Lyor Cohen (nós
dois progredimos muito desde a época que o conheci na rua com o Will Smith,
cantando “It Takes Two” do Rob Base e do DJ EZ Rock), vieram até a minha
cobertura. Nós três sentamos na sala de estar perto do piano branco da Marilyn
e, tomando champanhe, o Doug proclamou: “Quer saber, Mariah? Deixa com
a gente. Nós vamos te contratar. É, eu acho que nós realmente vamos te
contratar.” Eu me senti segura e relevante. Eles teriam que pagar um bom
dinheiro para anular o meu contrato com a Virgin, mas eles estavam dispostos.
Eu pensei, que se foda todo mundo; eu estou de boa, eu ainda estou aqui. Tipo,
dois dos maiores executivos musicais do mundo estavam sentados no meu
sofá, sem intermediários. Ia dar tudo certo. Depois de todo o trauma que eu
experimentei, a fé e a confiança que o Doug depositou em mim, e a sua visão
entusiasmada para o futuro, me renovaram. E eu aceitei! Eu não pretendia
deixar a minha imagem morrer nos anos 90, como o Tommy havia profetizado.
Eu sempre soube que eu poderia fazer ainda muito mais sucesso do que ele

267
supunha. Eu tinha muito mais músicas para mostrar. Pronta para começar de
novo, eu assinei o meu novo contrato.

O primeiro CD que eu gravei na Universal foi o Charmbracelet. Gravar o


Charmbracelet foi uma oportunidade para eu me restaurar e recuperar após o
desastre do Glitter. Esperar pela liberdade no final da ponte do meu arco-íris
era uma espécie de paraíso, um oásis. Literalmente – eu gravei a maioria das
músicas do CD nas Bahamas e na Ilha de Capri (uma fuga semi-secreta e retro
glamourosa como a velha Hollywood da Itália). Nas Bahamas, cantamos várias
músicas ao vivo com o Kenneth Crouch (da lendária família gospel Crouch), o
Randy Jackson e um monte de outros artistas talentosos, inclusive com o
produtor 7 Aurelius, que fazia músicas de grande sucesso com a Ashanti na
época. Eu estava de volta ao meu lugar ideal, gravando vocais leves e soprosos
com batidas pesadas de hip-hop. Todos nós estávamos nas lindas Bahamas,
somente escrevendo músicas.

Eu adorava cantar músicas ao vivo. Fico feliz por ter conseguido vivenciar
isso, porque eu precisava de um momento para mudar os ares. O Jermaine e
eu gravamos “The One” juntos. Eu queria que “The One” fosse o single
principal, mas o Doug escolheu “Through the Rain”. Era uma balada séria, e o
Doug achou que daria certo porque era uma espécie de história triste, o tipo de
momento Oprah Winfrey triunfante de que eu precisava depois do fiasco do
Glitter. Era uma música boa, mas não funcionou tão bem quanto o esperado.
A gravadora investiu muito no gênero “adulto contemporâneo”, o que eu
conseguia fazer dormindo. Mas, pessoalmente, eu sempre preferi trabalhar
com o gênero “urbano contemporâneo”, seja lá o que isso queira dizer.

Eu voltei para Capri, para o lindo estúdio no topo de uma colina. Foi tão
bom: sem carros, sem poluição, o ar e a energia são muito limpos. Eu não tinha
filhos na época, mas as crianças podiam correr livremente por lá porque era
muito seguro. Só dá para chegar lá de balsa, por isso era o esconderijo perfeito
para eu me esconder e gravar. As pessoas vinham me visitar. O Lyor levou o
Cam'ron, que passou um dia lá comigo, para gravar “Boy (I Need You)”. O Cam
levou um pouco de maconha roxa escondida e a fumou num cachimbo (eu não
trago diretamente – por causa das cordas vocais, dahling). Ficamos totalmente
de boa e assistimos o filme History of the World Part I (História do Mundo: Parte
I) – um dos meus filmes favoritos de todos os tempos – e rimos pra caramba.

Uma das músicas que eu amo no CD Charmbracelet é “Subtle Invitation”.


Essa música é um ótimo exemplo de, como muitas vezes, eu uso certos
momentos que acontecem na minha vida e lhes dou um significado maior, para
que as pessoas ao redor do mundo se identifiquem com a minha música
através das diferentes experiências que estejam passando e situações e
268
posições diferentes que estejam vivenciando. Embora a música seja sobre uma
aventura breve e passageira, não era uma música falando de remorso. Era para
qualquer pessoa que tivesse passado pela experiência de perder um amor,
mas deixando as portas abertas.

Entenda que é difícil dizer a alguém


Que você ainda está um pouco apegado
Ao sonho de se apaixonar mais uma vez
Quando não resta dúvidas que eles já estão em outra
Então eu me sentei e escrevi estas poucas palavras
Na chance de você ouvir
E se você por acaso estiver escutando em algum lugar
Saiba que eu ainda estou aqui...
Caso realmente precise de mim, meu bem
apenas estenda a mão e me toque

– “Subtle Invitation”

Outra música importante para mim foi “My Saving Grace”:

Eu amei muito, machuquei muito


Fui bastante enganada durante a minha vida
Passei muitos anos com muito medo
Sem saber quando teria um fim
Até que um dia a minha graça salvadora brilhou sobre mim
Até que um dia a minha graça salvadora me libertou

Me dando paz
Me dando força
Quando eu tinha perdido quase tudo
Me segurando sempre que eu caía
Eu ainda existo porque você me protege
Eu encontrei a minha graça salvadora em você

– “My Saving Grace”

O CD Charmbracelet foi um dos favoritos dos fãs. Os Lambs sempre


quiseram fazer “Justiça para o Charmbracelet,” e foi realmente um CD muito
bom. O CD contava com a presença do Jay-Z e do Freeway na música “You
Got Me”, tem também o Cam'ron cantando na música “Boy” e o Westside
Connection na música “Irresistible”. O Joe e a Kelly Price cantaram comigo no
remix de “Through the Rain”. O CD foi como virar a página para começar um
novo capítulo na minha vida. A Universal me apoiou e ficou ao meu lado; não
269
parecia a zona de batalha hostil que era a Sony durante o reinado do Tommy.
Comercialmente, o Charmbracelet não fez muito sucesso, mas o Doug não
desistiu de mim – e graças a Deus, porque a emancipação estava na linha do
horizonte.

Foi por volta de 2003, depois que o Charmbracelet foi lançado.

Eu me lembro dessa época como um raro momento em que eu me sentia


livre e bastante desapegada. Eu meio que estava ficando com um cara, mas
só ficando, nada mais. Eu só queria me divertir. Naquela noite estavam
reunidos o Cam'ron, o Jim Jones, o Juelz Santana e a Tots – e eu. A gente
tinha passado a noite fora – em boates, tomando coquetéis, esse tipo de coisa
– e acabamos indo todos para a minha casa, para a sala marroquina. Muitas
coisas acontecem na sala marroquina. Quando eu viajei pela primeira vez ao
Marrocos, eu realmente me conectei com o país. Eu me inspirei no sabor de
tudo, nas cores, nos tecidos, nas texturas, nos cheiros, na exuberância, no
exotismo, no glamour de todas as coisas. Era tudo tão misterioso e sensual.
Os restaurantes, as casas, os hotéis, todos foram projetados de maneira
fantástica, todos ultra confortáveis, mas dramáticos. Tem que ser dramatique –
Dramatique! – para que eu goste, dahling.

Eu queria recriar o mesmo sentimento rico e glamoroso em minha casa –


criar um lugar lindo onde eu pudesse evadir facilmente. Almofadas de seda por
toda parte, tufos de couro, mesinhas enfeitadas, redes, lanternas
ornamentadas. Eu usei acessórios fabulosos do norte da África para fazer o
meu próprio oásis urbano, a cereja exótica do bolo da minha amada cobertura.

Era o auge da fabulosa era da moda do gueto, e a gente curtia – todos os


garotos usando diamantes e jeans em abundância. (O Cam'ron provavelmente
estava usando um conjunto de couro rosa claro extravagantemente peludo. Ele
estava na fase cor de rosa.) Eu tenho certeza de que eu estava usando um
escandaloso mini vestido de algum estilista. Então, estávamos todos bem
arrumados e esparramados em um monte de almofadas. Era quase madrugada
e na visão de alta resolução da parede de janelas, o céu noturno estava
mudando como um anel de humor para tons de roxo e rosa. Toda a aura da
sala estava roxa; afinal, o Dipset (conhecido formalmente como o super grupo
de rap os Diplomatas) adora tudo que é roxo.

De repente, o Cam irrompeu: “Vamos para o subúrbio!”

A gente ainda estava de porre, então parecia uma boa ideia. O Cam'ron é
do Harlem, então a gente confiou que ele sabia quais locais dava para curtir
270
até tarde, tarde da noite até amanhecer. Eu e o Cam entramos no seu
Lamborghini, que era roxo, é claro. Todos os outros, trocando as pernas, se
dirigiram aos seus próprios carros exóticos. O meu guarda-costas, meio alto,
nos seguia em um grande SUV preto. Lá estávamos nós, um pequeno comboio
de rappers e donzelas em carros inimaginavelmente caros, indo em direção à
zona leste através da sonolenta rua do Canal Street, que logo ficaria lotada de
ambulantes chineses e senegaleses montando as suas barracas ao ar livre de
bolsas e relógios de luxo falsificados. Mas um pouco antes das 6 horas da
manhã, além de um varredor de rua ou de um caminhão de lixo casual, éramos
apenas nós, acelerando pela rua larga, sendo jovens e fabulosos,
interrompendo o silêncio da parte perigosa da cidade.

Estávamos indo para a avenida Franklin Delano Roosevelt Drive, que se


estende por toda a parte leste de Manhattan. A FDR não tem semáforos, então
eu sabia que o Cam e os meninos estavam prontos para cantar pneu.

Naquela época – e até hoje, com certeza – era fatal ser um jovem negro em
um carro esporte exótico acelerando na rodovia, especialmente no lado leste
de Manhattan. Mas a gente tinha bebido todas em uma noite de futilidade e
fumado uns becks, curtindo o frescor da manhã. Estávamos nos sentindo
jovens, sexy e livres; o medo de ser presos (ou de morrer, por falar nisso) não
existia. Estávamos atrás de diversão e liberdade, e acabamos encontrando,
mesmo que apenas por alguns quilômetros em um trecho da rodovia da cidade
de Nova Iorque.

Como se pode imaginar, grande parte da minha vida foi monitorada e


determinada por outras pessoas e, neste momento de alegria, eu senti vontade
de despistar o meu segurança. O Cam aceitou na mesma hora o desafio,
mudou de marcha e acelerou. Foi como ter sido disparada de um canhão, e o
grande veículo preto com o grande guarda-costas malvado instantaneamente
se tornou uma pequena partícula no espelho retrovisor. Rindo o tempo todo,
parecia que a gente tinha acabado de vivenciar a versão hip-hop barra-pesada
do filme The little Rascals (PT-BR: os batutinhas), eu no papel da Darla, é claro.
Muitas vezes eu sentia como se eu tivesse que me esforçar para me divertir,
para manter viva a criança dentro de mim. Mas eu me lembrei daquela
promessa que uma vez eu fiz a mim mesma, de que eu nunca esqueceria de
como é ser criança. Eu nunca deixaria a garotinha dentro de mim morrer.

Quando descemos a avenida FDR e pegamos a rua 135, o sol havia


nascido. Bom dia, Harlem! Quando paramos no semáforo da esquina da
Avenida Lenox, próximo ao Hospital do Harlem, eu percebi que a gente estava
em algum lugar perto da igreja da minha tia avó Nana Reese. Eu só sabia disso
271
por causa das histórias que me contavam e por uma única fotografia, mas eu
imaginei que se alguém pudesse me ajudar a encontrar essa igreja de porão
feita de tijolos, seria o Cam. E foi exatamente isso que ele fez.

Não era mais uma foto em uma moldura – eu estava realmente lá. Eu pude
tocar nos tijolos que foram uma vez da minha família, no lugar onde moravam,
oravam, cantavam, choravam, louvavam, casavam, morriam e recebiam o
Espírito Santo: essa era a igreja que eles congregavam.

Eu sei muito sobre os parentes dos meus pais através de momentos


congelados em molduras douradas. As fotos da minha família são sagradas –
elas colocam os meus pés no chão, me lembrando das minhas origens e das
pessoas que entraram e passaram pela minha vida. Essas fotos são mantidas
em um pequeno cômodo particular perto do meu camarim espelhado e de
mármore no estilo Hollywood. Atrás das intermináveis fileiras de saltos altos,
de mini vestidos, de vestidos de baile que vão até o chão, de bugigangas
brilhantes, de broches e bolsas, por trás de toda aquela opulência de closet, há
uma porta escondida que leva ao meu pequeno santuário – a minha igreja
pessoal com a história da minha família. Cada foto é uma história, prova de que
eu estou conectada a todas essas outras pessoas, todas diferentes e
lindamente complicadas. Elas são cuidadosamente e estrategicamente
guardadas; eu quero reunir todos os membros da minha família, mantê-los
perto de mim por meio de fotos. Eu geralmente entro nesse cômodo sozinha,
para olhar as fotos e ficar com elas. Nesse cômodo, eu analiso a minha família
linda, desestruturada e fodida e guardo os seus rostos em meu coração.

A foto que me veio à memória naquele dia na rua 131 é da minha tia avó, a
pastora Nana Reese. Parece que foi tirada na década de 50. Ela era pequena
e elegante, belamente encostada na parede de tijolos desgastada: com uma
pele marrom brilhante, olhos fundos, cabelo preto bem penteado, sem joias,
mas com um buquê de flores perto do seu ombro. Ela estava usando uma
túnica branca esvoaçante de pastora, meias brancas transparentes e sapatos
de bico quadrado estilo senhora evangélica. Ela segurava uma grande bolsa-
carteira – não uma bolsa, vejam bem, uma bolsa-carteira – com um pano
enrolado na alça, pois caso o Espírito Santo se manifestasse e ficasse quente
durante o culto, ela teria como enxugar a testa suada. Encostada na parede
com os pés, em letras maiúsculas e minúsculas não tão bonitas escritas à mão
todas do mesmo tamanho, tem uma placa escrita com giz branco com um
simples letreiro: ESCOLA DA BÍBLIA, PREGAÇÃO, YPHA e CULTO À NOITE,
com os horários discriminados. A Nana Reese mal tinha um metro e meio de
altura; a sua cabeça nem chegava à moldura do peitoril da janela. No entanto,

272
ela parecia uma gigante na foto e em sua comunidade, de túnica branca e
pronta para pregar o Evangelho à congregação.

A minha prima Vinny, sendo Lavinia o seu nome real, foi criada pela Nana
Reese, e a Vinny a chamava de “mãinha”. Foi através da minha prima Vinny
que eu soube grande parte das histórias daquela época e daquela parte da
minha família. Ambas as irmãs, a Nana Reese e a tia da Vinny, a Addie, que é
a minha avó, cada uma tinha um filho – o filho da Addie se chamava Roy, que
é o meu pai, o único que sobreviveu. Ninguém nunca falou do filho da Nana
Reese, mas a história, de acordo com a minha prima Vinny, é que ele morreu
bem cedo porque ele era “uma criança tísica”. Que diagnóstico mais tosco, né?
Chamar uma criança que morreu de tuberculose de tísica.

“A mãinha disse que ele era desobediente, não colocava o casaco, aí ele
acabou morrendo”, a Vinny me disse. A Nana Reese era uma cristã
fundamentalista. Quando criança, a Vinny morava em um dos apartamentos
acima da igreja. A Nana Reese e o seu marido, o bom reverendo Roscoe
Reese, eram donos da casa-galpão que abrigava a igreja e os donos da casa
vizinha, enquanto a minha avó Addie possuía outras duas casas descendo o
quarteirão. O culto acontecia no andar térreo e era no estilo pentecostal onde
o fiel fica berrando e rolando no chão, mas, como a Vinny diz, a verdadeira cura
acontecia no porão da igreja, no porão do galpão. Ela lembra, quando criança,
de testemunhar uma mulher que foi ver o pastor um dia: “A perna dela estava
rompida, parecia carne moída”, a Vinny afirma. “A mãinha colocou teias de
aranha em cima da perna daquela senhora e orou por ela, e quando a senhora
voltou a si, a sua perna estava curada. Absolutamente perfeita.” Enquanto eu
crescia, eu ouvi falar que muitos milagres aconteceram naquele porão. A Nana
Reese tinha um dom dado por Deus.

A mãe do meu pai, a Addie, e a Nana Reese eram próximas como irmãs,
mas diferentes no temperamento. Enquanto a Nana era doce, a Addie era
obstinada e determinada em seus caminhos. Ela e a minha mãe não iam com
a cara uma da outra, para não dizer pior. Eu me lembro de uma vez em que a
minha mãe a expulsou da nossa casa. Por causa dos conflitos deles, a minha
mãe me manteve longe dessa parte da família do meu pai, e o que eu vim saber
sobre eles se baseia principalmente em histórias espetaculares e
contraditórias. Eu me apeguei firmemente às cenas de violência e às fotos
preciosas que a minha avó deixou para o seu filho, o Roy. Eu fiquei com as
fotos quando o meu pai morreu. Eu as amo e protejo.

Então lá estava eu, naquela manhã ensolarada, em frente à casa de número


73, na rua 131, zona oeste, posando para uma foto, exatamente como a
273
pastora, a minha tia avó, sangue do meu sangue, tinha feito cinquenta anos
atrás. Obviamente eu não usava uma túnica de coral; eu provavelmente estava
usando um vestido do tamanho do pano que a Nana Reese usava para enxugar
o suor – com os seios em evidência e com pernas de causar inveja, e diamantes
brilhando. E o homem com a câmera era um dos rappers mais estilosos e
chamativos do mundo, encostado em um automóvel de cem mil dólares
enquanto tirava a foto.

Essa digna e decadente casa de tijolos diante de mim foi o local onde a
minha mãe e o meu pai se casaram. O casamento deles foi outro drama, outra
história que me contaram em partes que não combinavam. A maioria da minha
família pode pelo menos concordar em uma coisa: a minha mãe desmaiou
durante a cerimônia. Exatamente por que ela desmaiou ainda está em debate.
A minha prima Vinny estava lá e, embora eu fosse uma criança na época, ela
se lembra claramente de como a minha mãe estava linda naquele dia. Ela
descreve o vestido dela como um “lindo azul brilhante”, talvez de cetim, e foi
usando esse vestido azul de noiva que a minha mãe desabou no chão, o seu
novo noivo tendo que dar um tapa em seu rosto para reanimá-la. Uma vez me
disseram que a minha mãe perdeu a consciência depois de ver um grande rato
correndo pelo chão durante a cerimônia, mas depois eu fiquei sabendo que ela
estava grávida na época. O que quer que tenha acontecido, o drama ocorrido
caiu como uma luva para o casamento de uma cantora de ópera dramática num
porão de uma igreja do Harlem.

Quando nós saímos do quarteirão, eu fiquei imaginando que tipo de irmãs


fortes, fiéis e desenroladas a Reese e a Addie deveriam ter sido naquela época.
Essas duas mulheres negras – com pouco estudo – eram donas de quatro
casas de tijolos no Harlem. Além da igreja na rua 131, a Nana Reese também
era proprietária de uma igreja de tijolos em Wilmington, Carolina do Norte, tão
grande, que tinha a sua própria piscina batismal. O tamanho e o vigor do local
(na época, era o único prédio feito de tijolos na comunidade negra de
Wilmington) também o tornavam um santuário dentro do bairro: era o lugar
onde todos os negros se reuniam e buscavam refúgio dos tornados que
regularmente assolavam a costa.

A Nana Reese e a igreja eram uma presença constante em sua cidade de


muitas maneiras. Todas as manhãs, o coral, chamado Voices of Deliverance
(vozes da libertação), cantava na rádio local. Ela era uma líder tão influente na
comunidade, que era uma ameaça para alguns, principalmente nos dias de
segregação e violência no Sul com as leis de Jim Crow44. Um dia, a Nana

44 As leis de Jim Crow: foram leis estaduais e locais que impunham a segregação racial
no sul dos Estados Unidos.
274
Reese foi visitada por alguns homens brancos uniformizados: um policial e um
chefe dos bombeiros. A minha prima Vinny se lembra dos seus corpos grandes
e imponentes elevando-se acima do pequeno corpo de um metro e meio da
Nana Reese. Imediatamente após essa “reunião”, e sem dizer uma palavra, ela
arrumou as crianças e deixou a sua igreja de tijolos para trás e a congregação
que ela serviu fielmente por tanto tempo, para nunca mais voltar.

Eu pensava nessas mulheres enquanto eu posava para a minha foto, pouco


antes de voltar para o banco do passageiro de um carro que custou mais
dinheiro do que elas jamais ganharam em suas vidas inteiras. As minhas sábias
anciãs, que construíram algo sem ter nada. Elas tiveram uma visão além das
leis de Jim Crow, além da terceira série, além do medo. Eu me pergunto se elas
alguma vez visualizaram o que estava reservado para a filha caçula do seu filho
Roy?

Grande parte da pressão do que tinha me acontecido na época do Glitter


havia sido dissipada: eu tinha um novo contrato com uma gravadora. Havia
pessoas que ficaram entusiasmadas e contentes com o meu retorno. Eu
achava que aquela época tinha sido o meu fim, mas em vez disso eu fiz foi
ganhar nova vida. Eu aproveitei a oportunidade para me refugiar, descansar e
renovar o meu propósito. E se o CD Rainbow foi a ponte em direção à
segurança, o Charmbracelet foi um casulo, um lugar de abrigo, cura e
crescimento que me possibilitaram florescer novamente.

275
O ELVIS LATINO

Certa vez, eu levei alguns amigos íntimos escolhidos a dedo para passar o
natal comigo em Aspen. Sem que eu soubesse, o corretor de imóveis que
cuidou do aluguel da minha casa em Aspen se reuniu com um colega de
trabalho para marcar um encontro às cegas para mim. Era um esquema
simples: eles disseram ao homem misterioso que eu realmente queria conhecê-
lo, e eles me disseram que ele queria me conhecer. Ele acabou por ser o mega
star internacional Luis Miguel, o “Elvis latino”.

O nosso primeiro encontro foi em um restaurante, e dificilmente foi um


encontro, para mim. Eu fiquei tipo, quem é esse cara? Ele bebia muito e o seu
cabelo estava super assanhado. Mas uma pequena parte de mim ficou
intrigada. Ele tinha um apelo apaixonante inegável; eu podia ver o potencial de
aventura nele. Embora ele precisasse pentear o cabelo primeiro. (Eu fiz isso
nele e no Tommy, por falar nisso – penteie o cabelo, saiba como; entenderam,
né? Curso profissionalizante para se tornar cabeleireiro. Quinhentas horas!)

Depois que nós dois bebemos e jantamos, com um clima bem


constrangedor entre a gente, eu ainda não conseguia me livrar dele. Fui ao
quarto do meu sobrinho Shawn e eu disse a ele: “Shawn, você precisa vir me
ajudar a dispensar esse cara”. Eu tinha acabado de conhecer esse homem, e
ele estava bêbado demais! Eu pensei comigo mesma, isso não vai a lugar
nenhum; não vai dar certo. Então o Shawn inventou uma desculpa e eu
consegui me sair.

No dia seguinte, o assistente do Luis apareceu na minha porta com um


espetacular colar de diamantes Bulgari (os diamantes não são os meus
melhores amigos, mas chegam perto). Fiquei surpresa – e sim, impressionada
– mas no fundo eu também pensei, ele mantém um monte de colares de
diamantes por perto para o caso de conhecer uma garota? Eu sei que eles têm
joalherias em Aspen, mas eu também precisava ser cautelosa: ele namorou a
Daisy Fuentes, a Salma Hayek – todas essas mulheres latinas incrivelmente
belas e famosas. Eu logo descobri que esse era o jeito dele; ele era um amante
latino autêntico e exagerado, de verdade.

O Luis era provocante e extravagante. Nós dois somos arianos e a vibe


entre nós era intensa. Ele era incrivelmente romântico e espontâneo. A gente
embarcava em aventuras: dávamos uma folga aos nossos seguranças e íamos

276
dar uma volta, ou pegávamos a estrada e íamos para a Cidade do México. Ele
tinha uma casa fenomenal em uma praia intocada em Acapulco, com flamingos
rosa de verdade! A mansão dele era majestosa, com dramáticas portas de
madeira entalhada, varandas e sacadas em todos os lugares. Uma banda
completa de mariachi costumava tocar para nós enquanto a gente jantava ao
ar livre em uma noite quente mexicana. Uma das coisas que eu mais gostava
de fazer era pular da varanda do quarto principal com o meu amado cachorro,
o Jack, na piscina cintilante abaixo. (Eu e o Jack éramos os únicos que não
falavam espanhol, o que nem sempre era fácil.) Os seus funcionários eram
muito dedicados; ele era como um deus para eles. O Luis era amado e querido
por todo o seu povo.

Uma vez eu zoei com a cara dele por não ter uma banheira de
hidromassagem (eu tenho uma cobertura com uma banheira de
hidromassagem quente / podemos assistir TV enquanto enchemos a banheira
com bolhas). Então, o que ele fez? Ele me surpreendeu no natal com uma
banheira de hidromassagem inteira estilo planetário onde dava para nadar!
Fizemos uma festa de ano novo fabulosa por lá, para a entrada do ano 2000,
com a gruta da banheira de hidromassagem como atração principal. O Luis não
poupava despesas em suas demonstrações de carinho. Uma vez, ele encheu
um jatinho particular inteiro com rosas vermelhas para me surpreender. Os
seus dramáticos gestos românticos falavam com a garotinha com a idade
eterna de 12 anos que havia em mim, porque os seus gestos eram realmente
algo que só se via nos filmes.

Foi tudo grandioso e empolgante, mas estava longe de ser perfeito. Por um
lado, o nosso relacionamento foi caracterizado por choques culturais. Apesar
de sermos jovens e bem-sucedidos, ele era muito mais paradão do que eu. Os
nossos amigos eram totalmente diferentes. Os dele eram mais conservadores,
sérios, certinhos e monótonos, enquanto ao meu redor estavam a Brat, a Tots,
o Trey e muitos outros com a mesma vibe. O que era mais difícil eram as
diferenças culturais entre nós quando se tratava de raça. Ele insistia em dizer
que não me via como negra. A gente sempre discutia por causa disso e eu
tentava explicar: “Não, quando se tem um pai negro, isso faz de você uma
pessoa negra, então você vai ter que aceitar isso em mim.” Mas na cabeça
dele, eu não era negra porque a minha cor de pele não era escura. Para ele,
era algo que se tinha que ver externamente. Era muito difícil explicar que, para
os americanos, é muito mais complicado. Eu acho que para ele, quanto mais
fácil, melhor.

Embora nós tenhamos sido um casal intenso, é sempre difícil viver e amar
sob os holofotes. Ele pode ter sido o Elvis do mundo de língua espanhola, mas
quando ele vinha para os Estados Unidos, sem ofensa, mas no geral eu era a
277
“estrela do show”. Ele passou por muita coisa e perdeu a mãe muito jovem.
Pelo que me disseram, o pai dele era muito difícil e controlador. Eu tentei dar o
meu melhor para apoiá-lo emocionalmente, mas eu estava passando pelas
minhas próprias dificuldades e eu cheguei ao ponto de não conseguir mais lidar
com a situação. Nós não estávamos mais ajudando um ao outro a se curar. No
seu melhor, o Luis era generoso, espontâneo e apaixonado, mas no seu pior,
ele era instável e ansioso, e tinha uma nuvem negra pairando sobre a sua
cabeça.

Depois de três anos, eu sabia que era hora de nos separarmos. Nós
passamos por bons momentos e eu ainda tenho boas recordações, mas
basicamente, ele não era o tipo de cara para mim.

Como escreveu o grande Cole Porter: “Foi muito divertido / mas há muito
mais em jogo”.

Ok, já são cinco da manhã e eu ainda não consegui dormir


Tomei remédio, mas não está fazendo efeito
Alguém está apegado a mim, não sei se isso é bom ou ruim
Pois ele está perdidamente apaixonado, mas não tanto assim

– “Crybaby”

278
A MINHA EMANCIPAÇÃO

Depois do Charmbracelet, as circunstâncias me forçaram a buscar uma


nova gravadora. Eu disse a mim mesma, vou fazer o que eu quiser a partir de
agora, e com isso eu comecei a trabalhar no meu próximo CD. Eu queria fazer
algo que saísse do meu coração, algo que fosse empoderado. Em 2004, o L.A.
Reid se tornou o presidente executivo da gravadora Island Def Jam Music
Group. Eu fiquei muito animada porque nós sempre quisemos trabalhar juntos.
Ele ouviu um pouco do que eu estava trabalhando – “Stay the Night”, uma
música que escrevi com o Kanye West. Ele disse: “Se é esse tipo de música
que você está fazendo, conte comigo!” Uma noite, o L.A. e eu estávamos
sentados na sala sereia em minha cobertura em Nova Iorque, falando sobre a
essência do CD e de como ele deveria focar em liberdade pessoal, na minha
emancipação. Conversamos sobre o significado de emancipação – até
procuramos a definição no dicionário. Eu disse a ele que “Mimi” era um apelido
que algumas pessoas me chamavam. Então, eu sugeri: “Vamos chamar o CD
de The Emancipation of Mimi.”

O L.A. amava “Always Be My Baby”, música que eu escrevi com o Jermaine.


Mesmo já tendo algumas músicas muito boas para o CD, e eu já tendo
trabalhado com um monte de pessoas incríveis, incluindo o Neptunes, o Kanye,
o Snoop, o Twista e o Nelly, o LA, de forma inspirada, sugeriu que o JD e eu
nos reuníssemos novamente para ver o que poderia acontecer. Eu disse,
“Beleza!” Eu liguei para o Jermaine e disse: “Vamos trabalhar”. Sentamos no
chão do Southside Studios, o incrível oásis criativo do Jermaine, e por volta de
duas semanas nós compusemos “Shake It Off” e “Get Your Number”. Em um
segundo encontro no Southside, nós compusemos “We Belong Together”, “It's
Like That” e por fim, “Don't Forget About Us”, que foi lançada no CD de platina.

Eu vinha trabalhando sem parar, mas pela primeira vez eu tive um


verdadeiro momento de descanso vocal (algo sobre o qual o Luther Vandross
me ensinou o quanto era importante), um momento de clareza e um profundo
senso de controle criativo. Eu inicialmente comecei a escrever nas Bahamas e
gravei alguns vocais lá; o ar do oceano e a atmosfera quente e úmida eram
muito bons para a minha voz. Eles também serviram de inspiração para as
minhas composições. O Jimmy Jam e o Terry Lewis já haviam me apresentado
ao brilhante músico “Big Jim” Wright, uma pessoa extremamente talentosa e
muito especial em minha vida. Em um certo momento, o Jim e eu estávamos
em uma casa nas Bahamas, fazendo composições. Eu queria gravar uma
música que tivesse uma vibe de banda ao vivo dos anos setenta; eu ficava
tentando imaginar o que a Natalie Cole ou mesmo a Aretha teriam feito naquela

279
época. Sabendo que o Big Jim era um músico excepcional, ele e eu
compusemos “Circles” sem muita dificuldade. Depois de gravar, enquanto ele
se aprontava para ir embora – e do mesmo modo que a inspiração para compor
“Hero” tinha vindo a mim enquanto eu me dirigia ao banheiro – do nada eu ouvi
uma melodia na minha cabeça ao subir as escadas.

Eu desci as escadas rapidamente.

“Espera! Espera. Antes de ir embora, deixa eu te mostrar algo”, eu disse ao


Jim. “Voe como um pássaro / voe para o céu,” eu cantei. Eu sabia que a música
teria algo de muito profundo. Eu implorei para ele não ir embora. “Podemos
compor isso agora?” Eu perguntei. Ele amou a melodia e ficou onde estava.
Nós montamos o quebra-cabeça da música juntos e aí eu escrevi a letra:

De alguma forma eu sei que


Há um lugar lá em cima
Sem dor e dificuldade
Livre de todas as atrocidades e sofrimento
Porque eu sinto que o amor incondicional
De alguém que se importa o suficiente comigo
Irá eliminar todos os meus fardos e me libertar
Para voar como um pássaro
E me levar para o céu
Eu preciso de você agora, Senhor
Me carregue para o alto
Não deixe o mundo acabar comigo esta noite
Eu preciso da Sua força ao meu lado
Às vezes, esta vida pode ser tão fria
Eu rezo para que Tu venhas e me leve para casa

– “Fly Like a Bird”

O Big Jim criou uma instrumentação ao vivo sublime em Nova Iorque. Um


tempo depois, no estúdio em Capri, eu gravei os vocais. Eu me isolei no estúdio
por dois dias trabalhando na parte de backing vocal; eu estava focada em uma
música que acabaria se tornando uma das músicas que me faria sair da
escuridão e que me ajudaria a encontrar o meu caminho. Eu trabalhei durante
a noite, então era de madrugada quando a música ficou pronta e eu poderia
ouvi-la com todas as peças do quebra-cabeça montadas. Eu abri as grandes
portas de vidro deslizantes do estúdio, saí para sentir o ar da manhã e olhei
para os picos majestosos das colinas que se projetavam do mar safira
enquanto a música tocava nos alto-falantes nas alturas. O sol estava nascendo
enquanto os vocais de backing vocal atingiam o pico: “Me leve mais alto! Mais
280
alto!” Eu fechei os olhos, sabendo que Deus havia colocado a Sua mão sobre
a música e sobre mim.

Depois, eu levei o Bispo Keaton ao estúdio para abençoar “Fly Like a Bird”
com uma leitura do Salmo 30, 5: “O choro pode durar uma noite, mas a alegria
vem pela manhã.” Essas palavras foram um reflexo de tudo o que eu havia
sobrevivido. Essa passagem da Bíblia realmente significava algo para mim. A
música fala sobre como o mundo é confuso – “Às vezes, esta vida pode ser tão
fria / Eu rezo para que Tu venhas e me leve para casa.” É uma questão tanto
de dificuldade quanto de resiliência: eu não consigo lidar com esta vida sozinha,
mas o Senhor vai me ajudar. Fico muito feliz por ter homenageado o Bispo
Keaton para sempre com uma das minhas canções que é mais importante para
mim.

Dou muito crédito ao L.A. Reid, que então se tornou um amigo, pelo sucesso
do CD The Emancipation of Mimi. Ele e a Universal ainda acreditavam em mim.
O meu CD Butterfly foi um despertar emocional. Já o TEOM foi uma evolução
espiritual; eu depositei grande parte do meu coração e dos meus sentimentos
nele. E são tantos bons momentos. Por exemplo, nem todo mundo sabe o
quanto eu realmente amo “Your Girl” (deveria ter sido um single). É inocente,
mas ao mesmo tempo um pouco ousado. Eu ouvi a batida do DJ Scram Jones
pela primeira vez quando eu estava no estúdio do rapper N.O.R.E. bebendo
algo em um copo de isopor (eu sei que é ruim para o nosso ecossistema, mas
era só o que eles tinham). A vibe da música original passa um pouco mais de
autoconfiança e muito mais emancipação: “I’m gonna make you want to / Get
with me tonight” (Vou fazer você querer / Ficar comigo esta noite.) E há uma
pequena parte com a minha voz falada no meio da música “I Wish You Knew”,
que foi inspirada na Sra. Diana Ross. Existem tantos detalhes íntimos,
especiais, internos, quase impalpáveis que são específicos para mim no
TEOM. Dá para realmente sentir as minhas emoções de forma genuína; não
há baladas dramáticas, super produzidas com o intuito de agradar executivos
de gravadoras. O CD foi simples e super autêntico, sem floreios
desnecessários. Acho que é por isso que tantas pessoas entraram em sintonia
com ele.

Foi no TEOM onde eu comecei a trabalhar com um novo engenheiro, o


Brian Garten (graças ao Pharrell). Quando nós trabalhamos juntos, é perfeito.
Mesmo que não tenha sido televisionado – porque as músicas estavam na
categoria R&B – eu ganhei três Grammys com esse CD. (Eles fizeram a mesma
coisa com o Usher no ano anterior.) Mesmo assim ainda foi uma vitória, porque
eu acredito que o TEOM merecia. Foi uma vitória sobre os filhos da puta que
estavam tentando me prejudicar e me usar – sobre a minha família, o Tommy,
281
as gravadoras, a imprensa e vários outros – e foi uma vitória sobre o meu
próprio trauma e medo.

A turnê The Adventures of Mimi foi muito divertida. Teve alguns


contratempos típicos, mas em grande parte a sensação que eu tinha era de
libertação. TEOM teve tantos sucessos que em cada show a energia
simplesmente transbordava o tempo todo, milhares de pessoas cantando cada
palavra de todas as novas canções do CD, e alguns dos artistas que estavam
bombando na época marcaram presença em aparições surpresa. Foi um
grande sucesso comercial e super prazeroso.

Nós meio que revivemos a época da velha-guarda da gravadora Motown,


onde os artistas faziam as malas e pegavam a estrada em uma pequena frota
de ônibus viajando por todos os Estados Unidos. Fizemos grandes shows em
vinte e cinco cidades (também fizemos sete no Canadá, sete na Ásia e dois na
África). Embora houvesse muitas pessoas na estrada comigo – uma banda
completa, backing vocals, dançarinos e a equipe – eu ficava sozinha. Eu estava
em um grande momento de ascensão e, como sempre, eu era responsável pelo
sustento de todos. Eu precisava ter certeza de que eu estivesse em ótimas
condições; que a minha voz estivesse descansada para que eu pudesse dar o
meu melhor para os meus fãs primeiro, é claro (eu nunca desvalorizo o dinheiro,
esforço e o tempo que se leva para ir a um show), mas também para todas as
pessoas que dependiam de mim para comer. Embora eu fosse muito amigável
com todos (é claro que o Trey e a Tots estavam presentes), depois de cada
show eu geralmente me retirava e ia para o meu ônibus para relaxar e
descansar. Só para poder tomar um banho longo, quente e fumegante e beber
chá com mel. Enquanto o meu grande ônibus prateado era completamente
equipado e aparelhado com todos os tipos de conforto e tudo que eu precisava,
ele não me fazia companhia.

Os outros artistas e a equipe pareciam realmente vivenciar uma vibe mais


parecida com a de uma turnê em seus ônibus – repleta de gargalhadas,
bebidas, jogos de baralho, cigarros, piadas, filmes e música. Quando músicos
e dançarinos viajam juntos por pequenas rodovias durante dias a fio, eles criam
um laço familiar barulhento. E, como a “chefe”, muitas vezes eu não era incluída
nesse laço familiar que eles criavam.

Uma noite, eu decidi desopilar um pouco e fui até o ônibus dos dançarinos,
que era de longe o mais movimentado da nossa frota. Parecia uma festa de
porão, totalmente animada. Eu entrei de fininho na muvuca. Parecia que eu
estava no colégio cabulando aula com amigos e não em minha própria turnê
com ingressos esgotados. Era simples e festivo.

282
Um dançarino se destacava. Eu já o tinha visto antes, mas algo parecia
diferente naquela noite. Ele era brincalhão e certamente era o centro das
atenções com os seus gestos expressivos e risada alegre. Eu sempre o achei
um gatinho, mas naquela noite foi diferente. Havia algo realmente nele que
estava chamando a minha atenção – uma deliciosa mistura de beleza de
homem adulto e charme infantil. Eu decidi ficar no ônibus por mais um tempo.
Era uma viagem de lazer, com certeza.

Já passava da meia-noite, provavelmente prestes a amanhecer. Fazia


horas que todos nós estávamos bebendo, cantando e conversando quando
paramos para ir a um restaurante em uma pequena cidade no meio do nada.
Nós invadimos o pequeno e tranquilo local com cerca de uma dúzia de pessoas,
todas fazendo barulho, rindo e extremamente animadas. As poucas pessoas
que havia lá – talvez um motorista de caminhão, alguns trabalhadores do último
turno – definitivamente não havia nenhum tipo de ânimo lá. Todos eles pararam
de mastigar e beber suas bebidas para olhar para o que provavelmente parecia
ser o Circo UniverSoul, que havia entrado na cidade e armado as suas tendas
no local.

Estávamos todos um pouco alegres por causa da bebida para perceber que
aquele pequeno restaurante monótono havia sido alegrado com o nosso
encanto e sabor. Nós nos esparramamos em várias mesas e nos balcões. O
nome do dançarino era Tanaka. Nós já tínhamos começado a trocar olhares
um com o outro antes mesmo de descer do ônibus. Nos sentamos num balcão
um na frente do outro como alunos da oitava série. Tocamos suavemente as
pernas um do outro sob a mesa, sem ser vistos enquanto o resto da festa
continuava com força total.

O Tanaka e eu rapidamente nos tornamos amigos e, com o tempo, um


relacionamento expressivo foi construído. Ele está sempre presente, a alma da
festa, e quando todos contam com você em busca de algo, isso pode significar
tudo.

Eu agradeço a Deus pela era transformadora que eu tive com TEOM. Eu


precisava fazer um enorme sucesso com o público para que eu finalmente
pudesse me perdoar pelo “pecado contra a humanidade” que foi o Glitter.

Depois do Glitter, muitas pessoas me cancelaram. Mas, como o Jimmy Jam


disse: “Jamais cancelem a Mariah Carey.” E eu digo: “Jamais cancelem
ninguém.” Nunca se sabe de onde virá a força. Eu sempre busco a minha força
na minha fé em Deus – que é a minha principal fonte de força, mas também no
amor dos meus fãs e em todas as pessoas que não deixaram de acreditar em
283
mim. Isso não quer dizer que eu não lute contra o estresse pós-traumático
devido aos inúmeros eventos da minha infância, do meu casamento e dos anos
de escuridão do Glitter. Eu trabalho na minha recuperação emocional
diariamente. Mas é verdadeiramente fascinante como a imprensa se tornou
insignificante ao tentar construir ou destruir a carreira de um artista, ao tentar
moldar as nossas narrativas. Eu ainda sinto que certas pessoas da mídia estão
esperando pacientemente que eu tenha outro colapso espetacular (na verdade,
eu notei agora que algumas pessoas encenam colapsos como forma de
publicidade), mas a diferença é, no mundo de hoje, eles não importam mais.
Agora, todos os artistas têm voz sem filtro e enormes plataformas públicas nas
redes sociais. Os tabloides se tornaram o lixo e o papel de embrulho patético
que eu sempre soube que eles eram. Eles não têm mais poder; eles não podem
caçar e destruir mais nenhum de nós. Os nossos fãs podem vir em nossa
defesa, dar-lhes as contas e criar uma frente unida tão forte que nenhum
apresentador ou comentarista sem graça ou paparazzi voraz podem sequer
começar a competir com a sua influência. Nós somos a mídia. Eu só queria que
a Princesa Di tivesse vivido o suficiente para ter uma conta de Instagram ou
Twitter. Eu gostaria que ela tivesse vivido para ver o povo se tornar a imprensa.
Talvez ela e alguns outros tivessem vivido para contar a sua história. Eu sou
muito grata aos meus fãs por estar viva e por poder contar a minha.

284
O PAI E O PÔR DO SOL

Ao longo dos anos, o meu pai continuou levando uma vida pacata e
disciplinada. Ele trabalhou de forma honrada e constante como engenheiro. Ele
ficou em forma. Ele caminhou e escalou montanhas. Ele comia bem e evitava
doces. Ele bebeu muito pouco álcool. Ele não fumava (antes de eu nascer, ele
largou todos os seus vícios em um dia, e ponto final). O Alfred Roy não era um
homem de luxos. Por isso, quando eu recebi a notícia de que ele havia
adoecido enquanto eu estava gravando o CD Charmbracelet em Capri, eu
fiquei chocada. O meu pai forte e invencível? Foi como um golpe na cabeça,
rápido, certeiro e desorientador. O meu pai ligou e sugeriu que eu fosse. Não
para salvá-lo ou financiar os custos com hospital – ele não precisava e nem me
pediu isso; ele sempre ganhou e economizou o seu próprio dinheiro. O que ele
precisava de mim era a minha presença e de esclarecer as coisas.

Mas eu fico feliz por ter conversado sobre


Todas aquelas coisas de gente grande que a separação traz consigo
Você nunca me falou nada
Você nunca deixou transparecer porque me amava
E obviamente ainda há muito mais a se dizer
Se você estivesse comigo hoje cara a cara

– “Bye Bye”

Eu embarquei num avião e fui imediatamente vê-lo no hospital onde ele


estava sendo tratado por uma dor abdominal relacionada ao câncer. Eu me
lembro que, naquela primeira viagem, ele ainda parecia aquele homem forte,
vibrante e sem idade que eu conhecia. Mas isso mudou rapidamente. O câncer
pode ser um bandido veloz, roubando a vida de seu corpo antes mesmo de
você perceber que ele o invadiu.

Após vários diagnósticos errados, concluiu-se que ele tinha câncer de ducto
biliar, uma forma rara, sem medidas de prevenção ou tratamentos de cura
conhecidos. Esse câncer cresce nos tubos que transportam o fluido digestivo e
conectam o fígado à vesícula biliar. Era mais do que simbólico para mim: um
homem saudável desenvolve um câncer que envenena a parte do seu corpo
que absorve e elimina os resíduos. O meu pai guardou tanta coisa dentro de si
e teve pouca oportunidade de liberar toda a amargura que ele havia consumido.
Agora que ele estava num entra e sai do hospital, do mesmo modo eu ia e
voltava das gravações do meu CD em Capri até ficar de forma definitiva ao lado
da cama do meu pai frágil e enfraquecido em Nova Iorque.

285
Estranho sentir aquele homem orgulhoso e forte
Segurar firmemente na minha mão
Difícil de ver a sua vida interior
Murchar com o passar dos dias
Tentando preservar cada palavra
Ele murmurou no meu ouvido
Observando parte da minha vida desaparecer

– “Sunflowers for Alfred Roy”

Quando eu visitava o meu pai, eu levava comigo enormes buquês de flores


para o hospital (qualquer cômodo de qualquer hospital é o epítome da
desolação). No entanto, à medida que a sua condição piorava, ele desenvolveu
intolerância à fragrância da maioria das flores. Era difícil imaginar que a beleza
que eu achei estar proporcionando para ele o estava deixando mais doente. No
dia dos pais do ano anterior, enquanto o Shawn e eu íamos de carro para a
casa dele, por impulso eu parei numa feirinha e peguei um grande ramo de
girassóis amarelos brilhantes embrulhados em papel para levar para ele. Eu
ainda não conseguia quebrar o hábito de vir ao hospital com flores, então eu
levava girassóis. Eu achei que eles não poderiam deixá-lo doente, por não ter
cheiro, mas eles têm uma presença forte. Os girassóis são o nosso símbolo.

Rapidamente, o seu tratamento contra o câncer se tornou ineficaz. Ficou


claro que não havia mais nada a ser feito para impedir que a terrível doença
devastasse o seu corpo. A sua hora estava quase chegando. Nós sabíamos
que nos restava pouco tempo juntos nesta Terra, então o meu pai e eu
começamos a esclarecer as coisas. A sua doença era uma indicação para
iniciar urgentemente o nosso processo de cura. Esta foi a primeira vez que eu
revelei a ele (ou a qualquer membro da família) as minhas batalhas internas
enquanto eu crescia.

“Quando eu era pequena”, eu expliquei, “era muito difícil para mim, porque
os brancos me faziam sentir vergonha por ser o que eu era. o ódio que eu sentia
por parte de alguns deles era muito real. Eu não tinha os meios e nem a
habilidade para poder lidar com isso. E eu jamais quero que você sinta que foi
por sua causa.”

Eu tentei explicar como eu me sentia sozinha, tentando lidar com uma


situação tão complexa sem orientação. Quando eu estava prestes a começar
o jardim de infância, os meus pais me disseram que eu deveria apenas dizer
que eu era “inter-racial” (era essa a palavra na época, as palavras “birracial” ou
misto não existiam). Mas não era tão simples, especialmente quando a gente
morava em bairros brancos. Teria sido muito menos complicado se a gente
286
tivesse continuado a morar em Brooklyn Heights, onde havia pelo menos um
pouco de diversidade e formas mais progressistas de pensar. Eu não teria me
destacado tanto. As crianças dos bairros em que eu morava nem sabiam o que
significava “interracial”. Eles só sabiam que eram brancos, e não ser branco
era ser diferente – e ser negro era o pior tipo de diferente que poderia existir.

Eu tentei explicar ao meu pai que, enquanto eu crescia, eu não tive um


irmão ou um quartel para me apoiar. Ninguém jamais me ensinou o que é de
praxe para todos os negros: “Se alguém te chamar de macaca, dê um soco na
cara dessa pessoa”. Então, quando eu fui encurralada e chamada de “macaca”
por um grupo de “amigas”, eu não sabia o que fazer. Eu não sabia o que fazer
quando um menino branco ficava esperando eu ficar sozinha dentro do ônibus
escolar para cuspir na minha cara. Eu não sabia por que nenhum dos pais
tomava providências. Eu não sabia que eu também não podia confiar nos pais,
por causa da maneira como eles olhavam para mim. E eu não podia falar com
os professores, porque alguns deles também eram problemáticos. Resumindo,
eu não sabia em quem confiar, que é uma batalha que eu ainda estou travando.

Isso era difícil para uma menina, e eu me sentia tão sozinha – mas nunca
foi culpa dele. Nós dois precisávamos de coisas que não sabíamos dar. Eu
acredito que, no fundo, o meu pai entendeu por que eu tive que mergulhar na
minha música e romper com a minha família – era a minha sobrevivência, a
minha identidade, a minha razão de existir. Eu pedi desculpas por não ter ido
procurá-lo antes. “Eu não sabia o que fazer”, eu confessei, “eu não sabia a
quem ouvir. Eu não sabia se você se importava.”

Pai, obrigado por estender a mão e dizer com amor


Que você sempre teve orgulho de mim
Eu precisava sentir isso tão desesperadamente

– “Sunflowers for Alfred Roy”

O meu pai não queria morrer em um hospital. Tivemos que correr para levá-
lo para a casa da sua namorada Jean, para que ele pudesse viver os seus
últimos dias em um ambiente familiar e confortável. O meu sobrinho Shawn
estava lá para me apoiar e para me ajudar a me preparar. Nós fomos para a
casa dele para pegar alguns pertences pessoais. Eu fiquei impressionada com
a escuridão cinzenta da casa do meu pai. Não era uma bagunça, mas era uma
mudança distinta da qualidade alinhada e brilhante que eu associava a ele.
Acho que é difícil manter um padrão tão alto de organização conforme você fica
mais velho e mais fraco.

287
Ver como a estrutura rígida do seu lar havia suavizado tornou a perspectiva
de sua deterioração ainda mais real para mim. Enquanto examinávamos as
coisas na casa do meu pai, eu descobri uma pilha de recortes de jornais e
revistas. Eu os examinei e percebi que cada um deles era sobre mim – todas
as histórias do meu sucesso e realizações. Ele tinha escrito pequenas notas
nas margens, sublinhado e circulado diferentes partes que ele gostou. Eu não
fazia ideia de que ele estava me acompanhando de longe. Eu não fazia ideia
de que ele se importava com a minha carreira. Acima de tudo, eu não fazia
ideia de que ele tinha orgulho de mim. Os meus olhos se encheram de lágrimas.
Aquele monte de pedaços de papel foi mais válido do que todos os meus
prêmios e os de Quincy Jones juntos.

As minhas tias, a minha prima Vinny, o Shawn e eu colocamos uma cama


de hospital e outras regalias na sala de estar da casa da namorada dele para
tornar o espaço dele o mais confortável e acolhedor possível. Conforme o
câncer se espalhou e a sua medicação passou a ficar mais forte, os seus
desejos começaram a desaparecer, e eu não queria que as nossas memórias
desaparecessem com eles. Eu fiz pequenas coisas. Eu cozinhei o seu molho
de marisco branco apenas para que ele pudesse sentir o cheiro e assim poder
se lembrar das vezes que a gente jantava juntos aos domingos. Para nos
manter conectados aos meus momentos mais felizes, eu ainda faço o linguine
com molho de mariscos brancos do meu pai todas as vésperas de natal.

O seu último desejo era que a minha ex-irmã Alison e eu voltássemos a nos
falar. Ele não sabia que a nossa relação era como ter ido às profundezas do
inferno; ele não sabia que havia cinzas onde antes existia um laço frágil entre
irmãs. Mesmo assim, por pouco tempo, pudemos ficar num mesmo cômodo
por causa dele. Talvez isso tenha sido possível devido à distração da muvuca
constante de médicos e outros membros da família. Por respeito ao meu pai,
as pessoas mantiveram o seu drama escondido. A única vez que as coisas
quase saíram de controle foi quando o meu ex-irmão Morgan foi ao hospital. O
nosso pai se recusou a vê-lo; a dor que eles desencadearam e causaram um
ao outro nesta vida era densa demais para ser desfeita, mesmo no final. O
nosso pai tinha ficado fraco e visivelmente menor naquele momento, e como o
problema entre eles era principalmente por causa de poder, força e
masculinidade, eu acredito que o nosso pai não queria ser visto pelo Morgan
em tal estado de vulnerabilidade. Pai e filho não conseguiam encontrar paz
nesta Terra, mas talvez Deus-Pai pudesse fazer isso por eles, um dia.

Agora você está brilhando como um girassol no céu, bem alto

– “Sunflowers for Alfred Roy”

288
Quase no final, o meu pai não conseguia mais falar, mas ele ainda tentava
manter o controle. Para pedir os seus analgésicos, ele erguia um dedo,
sinalizando que ele só queria tomar um miligrama. Mesmo no leito da morte,
ele tinha medo de se viciar, medo de perder o controle.

Ele tinha muitos conflitos com religião e fé. Sentado ao lado dele na beira
da cama, eu comecei a ler a Bíblia para ele, que ele deixou claro que não
gostava. A sua infância foi imersa na igreja, mas a sua vida foi preenchida com
as contradições dos ensinamentos da Igreja Pentecostal e do Catolicismo.

Ele não fez nenhum pedido de como deveria ser a cerimônia do seu funeral.
Ele frequentou a denominação Unitarista-Universalista por tantos anos que, por
respeito pelo seu sentimento aceito pela congregação não convencional, o
funeral foi realizado na denominação. Mas eu queria que uma experiência
espiritual ocorresse no funeral. Ele se sentiu muitas vezes desvalorizado em
sua vida por ser o único homem negro em muitos lugares, então eu decidi que
ele não seria o único negro presente quando nos despedíssemos dele de vez.
Ele deveria ter uma despedida espiritual. Eu transformei a igreja em um glorioso
jardim de girassóis (que mais tarde eu recriei no clipe “Through the Rain”). A
minha amiga, a talentosa Melonie Daniels, a Tots e eu nos juntamos e criamos
um coral gospel magnífico e completo. Eu queria que o espírito do meu pai
subisse ao som elevado que só um coral gospel consegue cantar. Em suas
vestes majestosas, o grande coral marchava e se movia ritmadamente pelo
corredor e enchia o santuário. Eu fechei os meus olhos e a Tots começou a
cantar:

Se você quiser saber


Para onde eu vou
Para onde eu vou em breve

Se alguém te perguntar
Para onde eu vou
Para onde eu vou em breve

Eu vou subir para o Céu


Eu vou subir para o Céu
Eu vou subir para o Céu
Para ficar com o meu Senhor.

O coral encheu aquele local com o Espírito Santo. Foi um momento


pentecostal típico, e a tranquila congregação Unitarista-Universalista também
sentiu algo diferente. Foi o poder da presença de Deus em vozes ungidas. Dava

289
para sentir todos os espíritos sendo elevados. Eu consegui sentir o espírito do
meu pai sendo libertado.

No fundo, o meu pai confiou na razão para ajudá-lo a existir em um mundo


absurdo. O Alfred Roy Carey se esforçou muito para amar e compreender, em
uma época e lugar em que ele pouco foi amado e compreendido. E eu sei que
ele me amava e que tinha orgulho de mim. E é isso que eu vou guardar comigo.
Eu valorizo os poucos pertences que ele me deixou: os seus sapatos de bebê
cor de bronze, fotos de família, cartas, um cinzeiro, duas esculturas africanas
e a bandeira dos Estados Unidos emitida pelo governo dos Estados Unidos em
homenagem ao serviço prestado por ele. Para um homem que não idolatrava
as coisas, havia uma coisa que ele adorava, e é o que eu mais valorizo: o seu
Porsche Speedster. Este precioso carro passou incontáveis horas sendo
mexido no seu interior, incontáveis horas dos nossos passeios e canções
bobas. De para-choque a para-choque, o seu toque, a sua concentração, o seu
desejo de ordem e elegância estão entranhados em cada centímetro daquele
carro.

Como uma homenagem a ele, eu fiz com que o carro fosse restaurado à
sua glória original. Isso exigiu atenção meticulosa aos detalhes e muita
paciência e investimento. As peças foram transportadas da Alemanha e
finalmente retornou à sua cintilante cor vermelho maçã do amor, com um
acabamento impecável. Demorou anos, mas finalmente está em perfeitas
condições, como o meu pai sempre sonhou que um dia ficaria. Eu o mantenho
principalmente na garagem, mas de vez em quando ele dá uma saidinha de lá.
Em uma das minhas fotos favoritas do Rocky, ele está sentado no banco do
motorista do Porsche do meu pai. No carro esportivo de dois lugares, o meu
filho parece um mini motorista, usando grandes óculos escuros de aviador,
cachos macios e muita confiança. Ele não sabe das estradas difíceis que eu,
ou o avô que ele nunca conheceu, tivemos que viajar para colocá-lo no couro
macio e confortável daquele luxuoso banco de motorista – e ele não é para
saber mesmo. Pelo menos não agora. Ele ainda é um garotinho. Mas eu tenho
meios melhores para guiá-lo e protegê-lo do que os que eu tive no passado.
Quando eu olho para essa foto hoje, eu não posso deixar de pensar que,
embora ele nunca tenha conhecido o seu avô, a expressão no rosto do Rocky
transmite o espírito eterno do Alfred Roy Carey.

290
PRECIOSA – UMA HISTÓRIA DE ESPERANÇA

O romance Push de 1996 chamou a minha atenção imediatamente. É um


dos poucos livros que, ao terminar, eu voltei na mesma hora para a primeira
página para ler novamente. Eu estava na praia com algumas amigas e a minha
amiga Rhonda insistiu para que eu lesse. A voz criada pela genial autora
Sapphire me cativou completamente. Ela deu uma expressão tão singular e
relevante a uma garota e a um mundo que muitas vezes são invisíveis. Era
uma leitura desafiadora e extremamente bonita.

Eu trabalhei pela primeira vez com o Lee Daniels em Tennessee, um filme


que eu atuei em 2008. Ele era o produtor, mas basicamente foi quem acabou
me dirigindo, e ele realmente me entendia. Eu fiquei contente ao saber que ele
havia adquirido os direitos do livro Push, embora nem se passou pela minha
cabeça que eu seria envolvida.

Uma amiga de confiança, a atriz e diretora Karen G, acompanhava algumas


pessoas do elenco na parte de atuação, especialmente as jovens atrizes, e ela
me contou que algo realmente incrível tinha acontecido no set. Certa vez, do
nada, com um dia de antecedência, o Lee me pediu para interpretar a
personagem da assistente social, a Sra. Weiss (um papel que tinha sido
originalmente escalado para a fenomenal Helen Mirren). Eu fiquei muito feliz,
mas com um pouco de medo também. Eu tinha pouco mais de um dia para me
preparar. Eu memorizei as minhas falas e improvisei de forma simples e rápida,
além de desenvolver a história de fundo com a Karen. Eu vagamente baseei a
Sra. Weiss da história com a terapeuta “Querida, não é normal” que o Tommy
e eu costumávamos ir na zona norte de Nova Iorque

Todo o processo de filmagem foi desafiador e brilhante. O Lee acreditava


em mim e eu acreditava nele. Eu acreditava no elenco incrível e, claro, eu
acreditava na genialidade da história. A maior preocupação do Lee era que eu
não ficasse “parecida com a Mariah Carey”. Ele insistiu que eu não usasse
maquiagem e até pediu que fizessem uma prótese de nariz para mim. A gente
acabou não usando no filme, mas o uso da prótese nos ensaios agravou a
rosácea45 em volta do meu nariz, que, ironicamente, combinou bastante com
a personagem (agora, me digam se não é uma mistura peculiar ficar tanto com
queloide quanto com rosácea no nariz?).

45 Rosácea: Nariz alargado. Raramente, a rosácea pode engrossar a pele do nariz, fazendo
com que ele adquira um aspecto grosseiro.
291
Eu lembro que uma vez, no set, o Lee me pegou aplicando um pouco de
blush e gritou: “SEM MAQUIAGEM, Mariah!” Um outro aviso que ele me deu
foi “andar com os pés no chão!” (ai ai, sempre andando na ponta dos pés). Eu
me sentia confiante no meu entendimento da personagem da Sra. Weiss; o
maior desafio era não se emocionar com a atuação incrível e poderosa da
Mo’Nique. A Sra. Weiss tinha que ser indiferente, mas a empatia em mim lutava
contra isso. Houve um momento em que a atuação sublime da Mo'Nique
acertou em cheio o meu coração e uma lágrima teimosa acabou brotando no
meu olho. Eu discretamente enxuguei a lágrima, esperando que não tivesse
sido filmada.

A forma como ela e a Gabby Sidibe deram vida às suas personagens foi
simplesmente excelente e impressionante. Eu adorei participar do filme. O meu
empresário na época me desencorajou de participar, porque foi de última hora
e era um filme de baixo orçamento, mas eu sabia que era uma história atípica
e muito humana. Era também uma forma de praticar e foi artisticamente
enriquecedor para mim. Eu senti muito orgulho de ter participado do projeto.
Depois que o filme Preciosa – Uma História de Esperança foi exibido no
Sundance em 2009 e ganhou tanto o Prêmio por parte do público quanto o
Prêmio do Grande Júri na categoria filmes de drama (e de quebra, mais um
Prêmio Especial do Júri para a Mo'Nique), o Tyler Perry e a Oprah anunciaram
que seriam os produtores, dando ao filme o marketing, o suporte promocional
e o brilho que o filme merecia.

E ficou glamoroso. O festival de Cannes foi o epítome dos tapetes


vermelhos, com milhares de paparazzi internacionais (é claro que a Sra. Weiss
apareceu no filme e a Mariah Carey, a todo vapor, estava lá para prestigiar). A
coletiva de imprensa europeia foi fabulosa, repleta de tapetes vermelhos,
dezenas de vestidos de alta costura e milhares de festas, inclusive uma festa
secreta no iate do Roberto Cavalli. O filme Preciosa ganhava prêmios onde
quer que fosse. A noite mais importante foi a 82ª edição do Oscar. O filme
recebeu seis indicações, incluindo a de melhor filme, a de melhor diretor e a de
melhor atriz, e venceu na categoria de melhor atriz coadjuvante com a
Mo'Nique e na de melhor roteiro adaptado com o Geoffrey Fletcher – fazendo
dele o primeiro afro-americano a vencer nessa categoria.

Eu também ganhei alguns prêmios pelo meu pequeno papel, mas relevante.
Eu ganhei o Prêmio de Performance Revelação no Festival de Cinema
Internacional de Palm Springs, onde o Lee e eu celebramos bastante, usando
os nossos apelidos no palco (eu, “Kitten”, e ele, “Cotton”), rindo e sussurrando
um para o outro. E, ok, talvez a gente estivesse um pouco embriagado também,
mas é porque era um daqueles eventos de premiação com garrafas-em-cima-
de-todas-as-mesas! Mas principalmente, a gente vibrava de emoção.
292
Eu estava radiante. O filme Preciosa não apenas me validou diante do
público como atriz depois do filme Glitter, mas porque o Lee acreditou em mim,
eu consegui acreditar em mim mesma novamente como atriz. Foi uma prova
de que, com o material certo e as pessoas certas (e com a visão certa), eu
poderia investir seriamente na carreira de atriz. O Lee depois me deu um outro
papel inesperado e desafiador: o papel da Hattie Pearl, mãe do Cecil Gaines (o
personagem principal) e uma escrava de campo no filme The Butler (PT-Br: O
Mordomo da Casa Branca). O Lee viu facilmente em mim o que poucos
ousaram ao menos procurar, e nós temos uma relação rara e real. Uma relação
de confiança.

293
DIVAS

Diva (s): Uma distinta e célebre cantora; uma mulher de grande talento no
mundo da ópera (geralmente soprano) e, por extensão, no teatro, no cinema e
na música popular.

A minha definição de diva é a clássica.

A Aretha Franklin é o alto padrão a ser seguido e a minha estrela guia, uma
musicista magistral e cantora incrivelmente talentosa que não deixou que um
gênero a confinasse ou a definisse. Eu escutava às suas músicas e aprendi
tudo com ela. Quando ela estava no final da adolescência, ela migrou do
gênero gospel para o jazz – ou melhor, ela passou a cantar jazz no seu
repertório, porque ela nunca deixou de cantar música gospel. (Um dos meus
CDs favoritos dela ainda é um CD de gospel: Um Senhor, Uma Fé, Um
Batismo.) E mesmo quando ela cantava música popular, as suas
apresentações se destacavam. O soul único de sua voz era expressado em
cada nota musical.

A Aretha tinha uma visão maior de si mesma. O seu CD de estreia tinha as


músicas “I Never Loved a Man (The Way I Love You)” (Eu nunca amei um
homem – Do jeito que eu te amo), “Do Right Woman, Do Right Man” (Mulher
correta, homem correto) e “Respect” (Respeito), a colocando no topo das
paradas de R&B e pop. Em todas as épocas da minha vida alguma música
maravilhosa da Aretha foi como uma espécie de trilha sonora.

Eu ainda acredito que a maioria das pessoas não entende o quão incrível
ela era como pianista e arranjadora. Eu acho que quando se é mulher, com
uma voz incrível, a nossa musicalidade sempre é subestimada. Eu tive a
grande honra de trabalhar com o Big Jim Wright como produtora e diretora
musical. O Big Jim havia trabalhado com a Aretha Franklin, e ele me disse que,
quando a Aretha sentia a presença do Espírito Santo, ela dava um tapinha no
ombro dele, e essa era a deixa de que ele deveria se levantar do piano, onde
ela então se sentava e começava a tocar.

A primeira vez que eu conheci a Sra. Franklin foi no Grammy – o meu


primeiro ano, quando eu fui indicada para cinco prêmios. O que me deixou
nervosa não foi o fato de eu estar no ramo há apenas seis meses e ter que me
apresentar no Grammy para milhões de telespectadores na TV ao vivo, e para

294
todas as grandes estrelas da música que estavam na plateia: eu estava mais
preocupada com o fato de eu ter que cantar na frente dela, que para mim, não
havia cantora que se comparasse. Eu tive que cantar “Vision of Love” na frente
da Aretha Franklin, que estava sentada na primeira fila. Muitas vezes eu tinha
visualizado o sonho de cantar em grandes premiações, mas nunca imaginei
que eu teria que fazer isso na frente do meu ídolo na minha primeira
apresentação. Eu não consegui nem dormir na noite anterior. No dia do ensaio,
eu criei coragem para ir até ela. Ela estava calmamente sentada na primeira
fila, do lado esquerdo. Eu me ajoelhei ao lado do assento dela (porque é o que
se deve fazer diante da presença dela).

“Sra. Franklin, eu só queria te agradecer. O meu nome é Mariah,” eu disse.


Humildemente, eu continuei, “Eu só queria agradecer, por todos os cantores
que você inspirou. Obrigada. É uma honra conhecê-la.”

Anos depois, ela me disse: “Mariah, você sempre teve bons modos e isso é
o que falta à maioria dessas meninas. São os modos. Elas simplesmente não
têm bons modos.” Eu não conseguia imaginar demonstrar menos por alguém
que deu tanto ao mundo. Eu terminei a performance de “Vision of Love” e
ganhei o prêmio de Melhor Artista Revelação e de Melhor Performance Pop
Vocal. Depois, eu analisei cada detalhe da minha performance no Grammy
daquela noite e percebi o que eu não tinha feito. Mas eu cantei diante da
Rainha.

O meu próximo grande encontro com ela foi em 1998, quando eu fui
convidada para me apresentar no Divas Live do canal de TV do VH1, que seria
um concerto em homenagem à Aretha Franklin. Claro que eu disse sim, porque
era para a Aretha, e quando se é convocado para prestar homenagem à
Rainha, se pula de alegria. Quando eu cheguei um dia antes do show para
ensaiar, a Aretha estava mostrando ao produtor para o que veio. O Ken Ehrlich
é um gigante da indústria da música. Ele produziu inúmeros tributos e
premiações, incluindo mais de trinta Grammys (e o meu show #1 to Infinity no
Coliseu do Hotel Caesars Palace, em Las Vegas). Ele e a Aretha tinham
história. Bom: foi ele quem produziu a apresentação de ópera dela no Grammy.
Algo não tão legal: A questão de poder foi motivo de discórdia entre eles, como
um velho casal. As outras cantoras “divas” selecionadas para o show foram a
Céline Dion, a Shania Twain, a Gloria Estefan e a Carole King (por ela ter
escrito a incrível música “[You Make Me Feel Like a] Natural Woman” (você me
faz sentir como uma mulher natural), que a Aretha amou e fez da música um
clássico). O Ken me disse que em várias ocasiões a Aretha disse: “a Mariah é
a única garota com quem eu cantarei esta noite”. É por isso que eu fui a única
a fazer um dueto com ela no show.

295
O clima estava esquentando entre o Ken e a Sra. Franklin porque o ar-
condicionado estava ligado e ela não canta com o ar-condicionado (ou ao ar
livre, no frio congelante).

O Luther Vandross foi o primeiro artista a me alertar sobre os riscos de


cantar no frio. Ele me disse que eu precisava cuidar das minhas cordas vocais,
pois são os músculos e os tendões os responsáveis pela vibração e emissão
do som. Cara, se o frio pode deixar os nossos dedos dormentes, imagine o que
ele não pode fazer com as nossas delicadas cordas vocais! Há uma certa
performance minha no frio de rachar46 em que eu estou usando um collant
deslumbrante e saltos Louboutins de 20 centímetros no cruzamento mais
movimentado do mundo, próximo a um lixo fedorento e pútrido que todos
parecem querer se lembrar, e que eu, honestamente, muitas vezes esqueço. A
sensação que eu tinha era de como se eu fosse uma criança brincando num
parque infantil e entrasse areia dentro do meu olho e eu começasse a chorar
escandalosamente – então depois de se ter passado vinte anos, com um
diploma de Ph.D. nas mãos e uma pessoa muito bem-sucedida, ser
questionada pelos meus colegas de classe em um encontro de ex-alunos: “E
aí, como está o seu olho?”

Eu senti muitas coisas naquele breve momento exposta ao frio de rachar,


mas de uma coisa eu tinha certeza. Eu não fiquei em pedaços. Nem de longe.
Eu tinha passado por coisas muito piores. Os desastres não são todos iguais,
dahhhhling.

Mas a Rainha do Soul, é claro, sabia que não se devia cantar no frio.
Quando eu cheguei para o nosso ensaio, eu estava muito animada e nervosa.
A Aretha me cumprimentou com: “Mariah, eles estão zoando com a nossa cara.
E eu não vou ser zoada. Portanto, nós não vamos ensaiar esta noite”, disse
ela, com naturalidade.

Pera. Quem é que está zoando? Eu queria gritar. Já não basta ter que
cantar com a Aretha Franklin, e agora eu não posso ensaiar com ela?! Eu notei
o Ken andando de um lado para o outro, suando, arrancando cabelo e surtando.
“É típico dela fazer isso”, ele se engasgou. Eu não sei o que sempre acontecia
entre eles dois, mas seria a primeira vez que eu iria cantar com, sem dúvidas,
a maior cantora do planeta, o meu ídolo, e eu não iria ensaiar com ela! Por que
eles simplesmente não desligam a porra do ar? Fiquei com vontade de morrer.

46 Há uma certa performance minha no frio de rachar...: a Mariah culpa o frio pela terrível
performance dela na véspera de ano novo do Rockin’ Eve do Dick Clark.
296
A noite sem ensaio foi um pesadelo, exceto por ela ter me dito que
realmente gostava da música “Dreamlover” e sugeriu que nós a cantássemos
juntas. Senti vontade de morrer de novo. Eu fiquei simplesmente maravilhada
por ela conhecer a minha música, quanto mais querer cantá-la. Anos depois,
ela cantou algumas das minhas canções, como “Hero” no aniversário do pastor
Jesse Jackson e “Touch My Body” na sua turnê, onde ela improvisou até
mesmo nas partes mais ousadas. Ela disse: “Diga a Mariah que eu sou uma
mulher que vai à igreja e não posso cantar essas coisas agora” e o público
cantou o refrão junto com ela. Foi incrível.

Mas de volta ao Divas Live. Eu humildemente perguntei a ela se não tinha


como a gente cantar uma de suas canções. Eu acho que o meu coração não
teria aguentado se a Aretha cantasse uma das minhas canções naquela
ocasião. Em vez disso, eu sugeri “Chain of Fools”. Felizmente, ela concordou.
Chegou o dia do show e eu fui levada ao trailer dela, onde ela estava sentada
com um teclado, para que pudéssemos repassar a música juntas. Nós
conversamos e cantamos a música um pouco, mas honestamente eu senti que
eu estava a ponto de desmaiar, porque foi uma experiência incrível e
assustadora ter essa intimidade com ela e a expectativa de me apresentar com
ela com tão pouco ensaio – e para ela confiar que eu daria conta do recado.

Chegou a hora da nossa apresentação no show. Ela disse ao público que


ela e “a minha mais nova amiga não tiveram como ensaiar, mas ela vem aqui
cantar comigo”. A banda começou a tocar “Chain of Fools,” e eu entrei no palco.
A energia dela era tão poderosa, eu apenas foquei nela e só comecei a cantar
quando ela sinalizou. E eis que a música termina. E no final, eu me curvei com
uma reverência e disse “Um salve para a Rainha do Soul!” De que outra forma
eu poderia sair do palco em um momento daquele? E ela fez um gesto para
mim e disse: “Srta. Carey.” Isso foi o suficiente para a minha alma.

Em todos os tributos há sempre um grande final com um momento “We Are


the World”, quando todos os artistas cantam uma grande canção juntos (nós
amamos todo mundo, mas eu nunca amo essa parte do show, mas enfim).
Todas as outras divas estavam no palco, preparadas para cantar “(You Make
Me Feel Like a) Natural Woman,” uma escolha natural. Todas nós sabíamos
qual era a nossa parte, mas todas nós sabíamos também que a música era da
Aretha. Bem, aparentemente nem todas. Olha, se a Aretha fizesse um riff ou
improvisasse em qualquer lugar, ela tinha todo o direito de fazê-lo como rainha,
mas isso não te dá o direito... repitam comigo, não te dá o direito de querer
desafiá-la. Uma das divas não entendia a cultura da corte e tentou peitar a
Rainha um pouco durante a música. Beleza. Eu nunca teria feito isso.
Parafraseando a Sra. Franklin, “tosco demais.”

297
Mas no final, a Aretha decidiu nos levar à igreja e começou a cantar gospel.
Ela se aproximou de mim e me abraçou, e eu cantei “Jesus!” Porque ela me
deu a deixa. É como no jazz: ela era a líder da banda; e a gente tinha que segui-
la. Só que a diva que havia peitado a Aretha antes tinha ido longe demais (na
minha humilde opinião) e parecia querer cantar mais que a Aretha.
Inacreditável. Eu não conseguia acreditar que alguém pudesse tentar ofuscar
a Aretha Franklin no próprio tributo que era para ela, enquanto cantava sobre
Jesus, ainda por cima. Talvez fosse uma grande lacuna cultural, mas parecia
pura loucura para mim, e eu não queria participar daquilo. Enquanto isso
acontecia, o meu corpo começou a involuntariamente se afastar das outras
Divas e eu me juntei aos backing vocals, a maioria dos quais eu conhecia.
Parecia uma blasfêmia para mim, e eu queria estar bem longe caso caísse um
raio.

Eu fiquei mortificada, mas é claro que a Aretha não se importou. Ela tinha
mais habilidades, soul e talento natural do que todas nós juntas e ao dobro. Ela
se divertiu muito naquela noite e arrasou cantando.

Um tempo depois, eu contei essa história para a Patti LaBelle – a minha


madrinha, que é como eu a chamo. (Um dia ela começou a se chamar de minha
madrinha, depois que eu tive a sublime honra de cantar “Got to Be Real” (você
tem que ser real) com ela em seu especial de TV chamado Live! One Night
Only (Ao vivo! Apenas uma noite). Ela é realmente uma das cantoras mais reais
de todos os tempos.) Ela me deu conselhos bons e experientes e literalmente
segurou a minha mão em algumas situações difíceis. Então, quando eu liguei
para ela e contei sobre o ocorrido, ela disse: “Mariah, se você tivesse
participado dessa palhaçada, eu teria te dado um tapa na cara”.

Tomara que a única lição que todas nós tenhamos aprendido naquele palco
seja: R-E-S-P-E-I-T-O.

A Aretha Franklin sempre terá não apenas respeito da minha parte, mas
também um oceano de gratidão que me regará para sempre.

No ano seguinte depois da “palhaçada”, o VH1 Divas Live me ligou de novo


para fazer uma homenagem à Diana Ross. A Diana, a Donna Summer e eu
deveríamos fazer uma espécie de momento Supremes. Claro que eu adorei a
ideia, porque... estamos falando da Sra. Ross! No entanto, seria um pouco
forçado para mim, porque embora eu estivesse muito familiarizada com os
períodos de diva da discoteca da Sra. Ross e da Sra. Summer – eu cresci
ouvindo os seus sucessos de música dance – a era Supremes exigiria
pesquisa. Eu amava os hinos de música dance da Sra. Ross dos anos 80 como
298
“I'm Coming Out” e grandes baladas como “Endless Love” (ter gravado a
música com o Luther é a prova de que eu realmente a amava); teria como eu
captar essa vibe. Claro que eu conhecia alguns clássicos da era Supremes,
como “Stop! In the Name of Love” (Pare! Em Nome do Amor), mas eu realmente
não sabia qual era o estilo e as características específicas das performances
delas, ou mesmo todas as letras das músicas.

Para me preparar, eu recorri ao meu amigo Trey para saber as origens e a


história da Sra. Ross. Foi quando eu soube que a Sra. Ross e eu nascemos na
mesma semana de março, um dia de diferença uma da outra. (A Aretha
também – quando eu estava com a Sra. Franklin em seu trailer, tentando
aprender “Chain of Fools” muito rapidamente, eu fiz um comentário sarcástico
(respeitosamente, é claro), e ela disse: “Com o senso de humor típico de
ariana.” E a Chaka Khan e a Billie Holiday fazem aniversários nessa semana
também!) Por mais que eu amasse a Diana Ross enquanto crescia, o Trey é o
maior fã da Diana Ross que já existiu. Ele ama a Diana.

O Trey e eu nos tornamos amigos antes do lançamento do meu primeiro


CD. Eu estava gravando em um estúdio, e ele estava fazendo backing vocal ao
lado. Eu ouvi uma voz subindo na estratosfera, e eu tinha que descobrir de
quem era aquela linda voz. A gente fez amizade na mesma hora, não apenas
por causa das suas habilidades vocais dinâmicas que eram tão
complementares às minhas, mas porque o seu jeito era leve e íntegro. O nosso
senso de humor também era parecido – especialmente quando se tratava de
imitar estrelas do cinema e da música retrô e parodiar grandes momentos
musicais. E a Sra. Ross era um reservatório infinito de inspiração; muitos dos
nossos dizeres – os nossos “ismos” – eram inspirados nela. O Trey era um
especialista quando se tratava dos maneirismos e improvisos dela; coisas que
ele aprendeu assistindo a clipes antigos da Motown e da era Supremes ou
pequenas pérolas que ele aprendeu em filmes e fitas. Ele simplesmente
adorava tudo nela. Do mesmo jeito que eu sou com a Marilyn, o Trey é com a
Sra. Ross.

Uma vez eu estava em Londres, onde a Sra. Ross e eu iríamos participar


do programa de TV Top of the Pops (Topo das paradas pop). Na época, e por
muito tempo, o Top of the Pops foi o programa mais importante a lançar uma
música e fazer dela um sucesso internacional. A performance da música pelo
artista no programa era decisiva. Não era um programa de premiação, era uma
vitrine televisionada, e depois de uma aparição, uma música poderia chegar ao
topo das paradas pop. Quase todo o Reino Unido e a maior parte da Europa
assistiam ao programa. Realmente não há um programa equivalente nos EUA.

299
Era um dos poucos lugares onde se tinha como esbarrar com super estrelas
como o Prince ou os Rolling Stones no corredor.

A Sra. Ross foi tão maravilhosa comigo no set, me dizendo: “Eu te amo; os
meus filhos amam você.” Ela foi muito mais do que adorável. Ela até entrou no
meu camarim só para conversar! Imediatamente eu pensei, eu estou aqui de
bobeira com a Diana Ross; eu tenho que ligar para o Trey! E foi o que eu fiz, e
ela deixou para ele uma mensagem realmente fofa com a sua voz musical e
aguda, mas baixa: “Oh, essa mensagem é para o Trey? Essa mensagem é
para você, Trey. Feliz aniversário, querido.”

Quando ele ouviu, ele quase morreu, bem no aniversário dele. Ele salvou
aquela mensagem de voz para sempre. Ele provavelmente ainda tem até hoje.

Para se preparar para o Divas Live Tributo à Sra. Ross / Supremes, o Trey
estava me ensinando com as músicas da Motown, e eu estava entrando na
vibe dela, mas eu não sabia como incluir a Donna Summer ainda. As memórias
que tenho da Donna Summer são bem carinhosas. Eu era muito jovem e eu
participava de um acampamento de férias para crianças com fundos públicos
na cidade de Nova Iorque. Digamos apenas que não era dos acampamentos
mais organizados e os funcionários eram praticamente crianças. Era
predominantemente negro e eu era uma das poucas crianças mestiças ou de
pele clara ali, e a única de cabelos loiros. Mas eu certamente não estava me
divertindo mais. Em vez disso, eu fui como a lenha é para a fogueira da
animosidade. Nenhuma das meninas gostou de mim. Por que elas estão com
raiva de mim? Eu me perguntava. Eu não entendia na época. Não era apenas
a pele clara e o cabelo loiro – se isso não bastasse. O Khalil gostava de mim.
O Khalil era o garoto mais fofo de todo o acampamento. Ele tinha cabelo
castanho escuro e encaracolado, pele cor de caramelo e os olhos verdes. Eu
também era mais alta do que ele, então eu acho que as meninas também
acharam que eu era muito velha para ele (embora nós tivéssemos a mesma
idade).

Mas enfim, o garoto dos sonhos do acampamento dos pesadelos me


achava bonita. Houve uma dança no dia do encerramento, e assim que a
primeira nota da flauta com cânticos de pássaro ao som crescente de
instrumentos de corda e os ooohs melódicos começaram, o Khalil se aproximou
de mim. Ele pegou a minha mão e a música da Donna Summer “Last dance,
last chance for love” (Última dança, última chance para amar) lentamente
começou a encher o lugar. Fomos para a pista de dança e as nossas versões
crianças se moveram como uma valsa até que começou a tocar a parte alegre
e agitada da música, em seguida, nós pulamos no nosso próprio mundo de bola

300
de discoteca, deixando que as garotas enciumadas e hostis do local sumissem
de vista.

Eu guardei dentro de mim essa experiência nada ideal de participar de um


acampamento público. Isso me inspirou a conceber o Camp Mariah, um
acampamento de verão focado na conscientização de carreira. Eu sabia
perfeitamente que havia inúmeras crianças que não tinham acesso aos
recursos de mão beijada, que não tinham uma base estruturada sob os seus
pés, e um teto acima de suas cabeças. A primeira arrecadação de fundos foi
com um concerto de natal na Catedral de Saint John the Divine (São João, o
divino) no Harlem em 1994, onde eu cantei “All I Want for Christmas Is You” ao
vivo pela primeira vez. Foi um dos maiores eventos de arrecadação de fundos
de todos os tempos para o Fresh Air Fund, o parceiro incrível do Camp Mariah.
O Camp Mariah do Fresh Air Fund me permitiu criar o que eu não tinha para
milhares de crianças merecedoras. Tem sido não apenas gratificante, mas uma
experiência que ainda me proporciona cura.

Então, para mim, o sucesso clássico da Sra. Summer foi a trilha sonora do
“Acampamento com o Khalil”, aqueles momentos inocentes de criança (que
não foram muitos). Eu não a tinha conhecido ainda. O Divas Live é um show
ao vivo, mas é gravado na frente de um público no Radio City Music Hall. Havia
uma equipe e pessoas agitadas por toda parte. Todos estavam animados com
a chegada do ícone, a Sra. Ross, e eu estava fazendo bastante sucesso na
cultura pop com o Rainbow, o meu sétimo CD consecutivo a produzir músicas
que ficaram em 1° lugar na Billboard Hot 100 – “Heartbreaker” foi a minha
décima quarta música em 1° lugar. Estávamos fazendo uma inspeção no palco
e nos preparando para passar o som cantando medley de músicas das
Supremes (sem a Sra. Ross). A Donna Summer apareceu silenciosamente,
parecendo tímida e desconfortável. Ninguém falou muito quando ela saiu para
conversar, acho que era sobre o teleprompter, que mostrava a letra de “Baby
Love”. Então, alguém apareceu e mostrou três horríveis vestidos de lantejoulas
verdes. Eles pareciam fantasias baratas, nada parecido com vestidos de alta
costura. Podre.

Quem eles acham que vai usar isso? Eu pensei. Porque eu não vou usar
isso. Eu tinha certeza de que a Sra. Ross também os acharia de muito mau
gosto (para não dizer pior). Eu só sei que em seguida alguém veio nos falar
que a Sra. Summer não se apresentaria conosco. E ela foi embora. Oh ok. Não
tinha como encontrar uma Cindy Birdsong a tempo (ela substituiu a Florence
Ballard nas Supremes). Eu não sei o que fez a Sra. Summer se retirar (se foram
os vestidos, eu certamente não a culpo), mas parecia que o Divas Live deste
ano seria mais uma vez uma viagem alucinante.
301
Então, agora eu tinha que me adaptar à ideia de fazer um dueto com a Sra.
Ross. Claro que foi maravilhoso, mas as abominações verdes? Não Senhora.
Eu não seria frustrada pela má moda naquela noite em particular – não na
frente da Sra. Ross, que é um ícone da moda internacional bem documentado.

Enquanto eu crescia, eu me lembro vividamente de ter visto pôsteres


gigantes em preto e branco da Diana Ross por toda a cidade de Nova Iorque.
Ela usava uma camiseta branca com mangas arregaçadas e jeans surrados; o
cabelo dela estava perfeitamente penteado para trás e amarrado atrás da
orelha, e ela usava pouquíssima maquiagem. Eu achava muito chique – ela era
tão linda. Eu não conseguia prestar atenção em outra coisa, só no olhar dela.
O pôster simplesmente tinha o seu primeiro nome – “Diana” – escrito em
grandes letras minúsculas ao lado. Eu gravei essa imagem na minha mente e,
posteriormente, a usei como inspiração para a capa do meu CD #1’s. A
composição era diferente, mas eu me inspirei na simplicidade e intensidade do
pôster. Desde o início, eu procurei fazer imagens atemporais, não que
estivessem na moda, e a Sra. Ross é uma pioneira na criação de iconografia
de alto glamour clássica e moderna.

Eu disse logo que eu não usaria aquele vestido verde e brilhante horroroso.
Eu nunca saio de casa sem os meus próprios looks, porque nunca se sabe o
que pode acontecer – e algo de muito cafona estava prestes a tomar forma
naquela noite. Eu tinha um plano. Como a Donna Summer havia desistido, eu
ofereci um dos meus looks para a Sra. Ross:

“Bem, eu tenho um vestido. Na verdade, eu tenho dois vestidos iguais, se


você quiser dar uma olhada.”

A Donatella Versace tinha feito para mim dois finos vestidos no estilo de
mini toga de malha metálica – um dourado e um prateado – e eu tinha levado
os dois comigo. (Que noite perfeita para ter opções!)

“Sim, deixa eu dar uma olhada no vestido”, disse a Diana.

A Diana era uma mulher que usava incontáveis vestidos lindos, fazia
declarações de moda em todas as línguas, e eu estava humildemente
oferecendo o meu vestido (fabuloso como era) para ela. Nem precisa dizer que
eu estava nervosa. Eu apresentei os vestidos minúsculos sem costas para ela,
e ela pegou o prateado. Sim.

“Eu prometo não me curvar.” Essas foram as suas primeiras palavras


enquanto ia para o palco na ponta dos pés como uma diva ninfeta com o seu
302
cabelo afro e usando um look metálico prateado. O vestido ficou com a cara
dela. Eu me juntei a ela usando a versão dourada do look e paramos! Em nome
do amor ao povo. A memória que eu tenho dela me ensinando a coreografia da
música está guardada na minha caixa de tesouro dos momentos mais
preciosos de todos os tempos. Eu senti um Amor Supremo.

Recentemente, tenho refletido sobre algo que a Sra. Ross me disse naquela
vez em Londres. Eu tinha vendido dezenas de milhões de CDs e estava indo
com uma grande equipe – maquiador, cabeleireiro, estilista de figurino,
publicitário, empresário e vários assistentes. Enquanto ela mesma se maquiava
perfeitamente (ela fez curso de beleza também!), ela disse: “Mariah, um dia,
você não vai querer ter todas essas pessoas ao seu redor”.

Eu acredito que “esse dia” não esteja longe.

Um último momento de “diva”. Para os VMAs da MTV de 1998, a Whitney


e eu fomos convidadas para abrir o show e apresentar o prêmio de Melhor Clipe
Masculino. Era para ser toda uma cena de “Confronto entre as Divas”, onde a
gente entraria por lados opostos no palco e nos encontraríamos no meio,
apenas para descobrir que a gente estava usando o mesmo vestido – um
vestido de chocolate estilo camisola da Vera Wang. Brincamos levemente:
“Belo vestido” e “Me disseram que era exclusivo.” Então eu disse algo como:
“Ainda bem que eu vim preparada”, tirando a saia longa do vestido com as
minhas próprias mãos, para então revelar um mini vestido assimétrico
enquanto eu falava: “Lide com isso!”

Então a Whitney disse: “Eu posso fazer melhor” e também arrancou a longa
peça do seu vestido, mostrando um vestido novo e diferente. Rimos muito
disso, mas essa brincadeira entre nós quase que não aconteceu. Quando eu
cheguei no local, o meu vestido não tinha chegado ainda. Já que a coisa toda
girava em torno dos vestidos, não era como se eu ou qualquer outra pessoa
pudesse simplesmente arranjar um vestido diferente. Houve pânico!
Aparentemente, o vestido ainda estava no mostruário, então a produção
providenciou uma escolta policial para pegar o vestido, liberar as ruas para que
o vestido chegasse no local a tempo.

A polícia salvou o dia ao ir pegar o meu vestido único para a ocasião. Se ao


menos alguém pudesse ter salvado a nossa única Whitney Houston.

303
UM POUCO SOBRE ALGUNS HOMENS BONS

– Karl –

O Karl Lagerfeld sempre foi muito simpático comigo, o que não acontecia com algumas
das casas de alta costura mais sofisticadas. Nós fizemos uma sessão de fotos de moda
juntos para a revista America – que era uma nova publicação de “luxo urbano” lançada no
início dos anos 2000, quando as palavras “luxo” e “urbano” não eram associadas ainda. A
revista e o Karl estavam dispostos a mostrar um visual mais novo e despojado comigo. O
Karl produziu e fotografou a foto da capa. Ele me fotografou de uma forma íntima e muito
glamorosa, passando um pouco a vibe de Marilyn-Monroe-por-Eve-Arnold. Elas são, até
hoje, algumas das minhas fotografias mais apreciadas. O Karl também foi quem me
fotografou para a capa da revista “V Belong Together” durante o lançamento do CD The
Emancipation of Mimi. O logotipo V gigante foi desenhado com o modelo da minha pulseira
de diamantes Dior – perfeição absoluta (eu amo o Stephen Gan).

Uma vez, o Karl costurou para mim um vestido de alta costura muito
especial para um grande evento. Era simplesmente lindo – um vestido de cetim
preto com um V profundo nas costas. Eu usei o vestido com o cabelo repartido
ao meio, penteado para trás (eu raramente penteio o meu cabelo assim) e
preso com um adorno. Um visual muito clássico de alta costura. Como o vestido
era feito de cetim de seda, que pode refletir as luzes, ele requer iluminação
adequada (na minha opinião, cada situação realmente exige iluminação
adequada). Eu aparentava maior na maioria das fotos ao mostrar os detalhes
nas minhas costas. Os flashes fizeram a minha bunda parecer enorme.
Lembre-se de que estamos falando da época antes dos popozões – falsos ou
autênticos – serem aceitos ou celebrados no mundo pop. Naquela época, não
era para ser popozuda.

A imprensa tradicional dizia “Oh. Meu. Deus. Becky, olha o tamanho da


bunda dela!” Foi muito mais do que frustrante. Eu estava usando um vestido
lindo, com um look clássico de alta costura, e a imprensa teve que criticar o
tamanho da minha bunda e estragar o momento. Eu não estava tão diferente
da época em que eu não tinha dinheiro nem para comprar comida de verdade,
quando eu não tinha curvas para mostrar. Ainda bem que o meu cabeleireiro
da época, o Lou Obligini, tirou uma foto minha com o vestido, sentada com a
minha amiga Rachel, e com a Marilyn Monroe sobreposta do meu outro lado,
alterando os meus sentimentos negativos de início por ter sido fotografada
parecendo curvilínea – e com a ilustração de como a criatividade e a visão
podem mudar percepções, pessoas e pontos de vista. Aquele vestidinho preto
causou um grande impacto, assim como o próprio Sr. Karl Lagerfeld, ambos
únicos para mim.
304
–Mandela–

Quando a Oprah te convida para ir para a África do Sul, você larga tudo e vai. (Quando
a Oprah te convida para ir para qualquer lugar, você simplesmente vai, mas esse momento
foi super importante.) Foi algo bastante extraordinário até mesmo para ela – a inauguração
de sua instituição “Oprah Winfrey Leadership Academy for Girls” (Academia de Liderança
para Garotas da Oprah Winfrey). Foi um privilégio único estar entre as poucas pessoas que
ela convidou (incluindo a Tina Turner, o ator Sidney Poitier, a Mary J. Blige e o Spike Lee),
e então eu fui ainda uma das poucas pessoas que ela selecionou para conhecer
pessoalmente o ilustre e fenomenal Nelson Mandela.

Eu fui levada a uma sala pequena, simples e elegante, onde o Sr. Mandela
estava sentado em uma poltrona cinza usando uma de suas camisas
estampadas que era a sua marca registrada. Ele parecia um rei. Ele parecia
um pai. Eu passei um breve momento com ele, mas que momento incrível e
poderoso. Eu me inclinei para abraçá-lo e, naquele breve abraço, eu senti a
energia da ancestralidade e do futuro, das lutas e do sacrifício, da fé e visão
inabaláveis – do amor revolucionário. O Sr. Mandela sorriu para mim e, em um
instante, eu senti a minha própria compleição mudar.

– Ali –

O Muhammad Ali estava completando sessenta anos e um especial de TV estava sendo


produzido em celebração da sua vida triunfante pela CBS. Era o ano 2002, logo depois que
o Will Smith o interpretou no filme Ali. Me pediram para terminar o programa cantando a
música “Parabéns pra você”. Eu admirava o sr. Ali imensamente desde a infância. Ele foi
uma das poucas pessoas capazes de reunir todos os membros da minha família
desestruturada em um só lugar. Se ele aparecesse na TV, todos nós nos reuníamos; todos
nós concordávamos que o Muhammad Ali era inegavelmente o Melhor Boxeador. Ele foi
muito importante para mim, assim como o Michael Jackson.

Inspirada pela Marilyn quando ela cantou para o presidente Kennedy, eu


mudei um pouco o arranjo do clássico e cantei suave e soprosamente na parte
alta da música: “Parabéns para você / Parabéns para você / Parabéns para o
maior” – depois disso, eu comecei a cantar com um coral em estilo gospel. É
claro que eu fiquei honrada com a oportunidade. No entanto, eu não percebi
que cantar para um ícone, inspirado em outro ícone, pode ter sido um pouco
inapropriado. Olha, eu estava usando um vestido curto e simples de seda cor
de rosa gelo, e dei algumas piscadelas toscas e fiz uma dancinha cafona
durante a apresentação. Eu pensei, é claro, que todos entenderiam a
referência. O que eu não levei em consideração foi que o Sr. Ali era
muçulmano, assim como a sua esposa e as suas filhas. Eu também não sabia,
na época, que as mulheres muçulmanas se vestiam e agiam com recato.

305
O Sr. Ali e a sua esposa estavam sentados em cadeiras especiais ao pé do
palco. Como parte da apresentação, eu deveria descer as escadas e cantar
bem na frente dele. Eles devem ter pensado que eu estava literalmente usando
lingerie. O Sr. Ali estava sendo enquadrado na câmera para que o público
pudesse ver o quanto ele estava animado, aparentemente tentando se levantar
da cadeira com entusiasmo – o que naquele estágio da sua síndrome de
Parkinson não era uma tarefa fácil, mas que também causou uma reação de
alegria do público (bem, na maioria das pessoas). Graças a Deus que, durante
a apresentação, eu não sabia que estava sendo inadequada com a sua família;
nenhum dos produtores chamou a minha atenção para essa pequena, mas
importante, questão de respeito religioso. Tipo assim, eles poderiam apenas ter
dito: “Talvez seja melhor não dançar tanto e você poderia usar um vestido mais
longo – o que acha de usar um vestido com mangas?” Eu não sabia. Eu
realmente espero que a família tenha perdoado a minha ignorância e
inexperiência juvenil.

Lendas e pesos pesados como a Angela Bassett e a Diahann Carroll


estavam lá. No final da minha música, o Will Smith ficou do outro lado dele, e
ele e eu ajudamos o Sr. Ali a subir ao palco para o encerramento. Todos os
apresentadores e cantores se reuniram, e houve uma chuva de confetes, e eu
estava segurando os braços de um dos meus grandes heróis. Em toda a
confusão do momento, ele se inclinou e sussurrou em meu ouvido: “Você é
perigosa”. Vejam bem, ele não estava falando muito naquele momento, mas eu
o ouvi em alto e bom som. Nós dois rimos muito com isso.

O homem – o campeão do povo, que nocauteou alguns dos homens mais


fortes do mundo e derrubou algumas das barreiras raciais mais difíceis – usou
o seu precioso fôlego para brincar comigo e dizer que eu era perigosa. Depois
dessa experiência, proclamando um momento lendário e o elevando a uma
categoria de peso totalmente nova.

– Stevie –

“De que cor são os pisca-piscas da árvore de Natal? Como elas são?” Eu ouvi o Stevie
Wonder perguntar ao seu irmão enquanto o conduzia pelo hotel MGM Grand de Las Vegas.
Nós dois estávamos lá por causa da premiação do Billboard Music Awards. Ele me
presenteou com o prêmio de Artista da Década. De todos os músicos e de todas as músicas
que me inspiraram, o Stevie Wonder era o meu favorito. Como escritor e compositor, ele é
um mergulhador de águas profundas. Ele vai até o fundo da sua alma e traz tesouros tão
vívidos, tão cheios de emoção, que mudam sonoramente a sua estrutura. E como cantor,
ele entrega com total honestidade e coração. Ele é realmente o meu padrão de diamante.

Eu tive o privilégio de trabalhar com ele algumas vezes. Uma vez, ele até
me mostrou algumas músicas novas em que ele estava trabalhando e
306
perguntou a minha opinião. Um dos maiores compositores de todos os tempos
casualmente me permite ouvir as suas músicas de trabalho e se interessa
genuinamente na minha opinião – como musicista. Um momento musical que
eu sempre vou estimar foi um improviso que ele fez na minha música “Make It
Look Good” do CD Me. I am Mariah… The Elusive Chanteuse. Bem no início,
ele diz ou brinca: “Eu te amo, Mariah” tocando a sua gaita! E então dá uma
gargalhada doce, brilhante e que nos proporciona cura, e então a música
começa. Foi como uma pequena bênção antes da refeição. Ele tocou a sua
gaita, que é a sua marca registrada, durante toda a música, como só o Stevie
Wonder consegue.

Eu muitas vezes penso naquele momento em que ele perguntou sobre os


pisca-piscas da árvore de natal. Este homem que foi responsável por
proporcionar tanta alegria às pessoas em todo o mundo, ao longo de gerações,
através do poder de sua incrível contribuição musical – um homem que
iluminou o mundo com a sua presença e as suas canções, um homem que fez
tanto para a humanidade – estava pedindo para que descrevessem para ele
como era um pisca-pisca. Naquele momento, o Sr. Wonder me mostrou como
não desvalorizar as coisas simples da vida e confirmou que uma árvore de natal
pode trazer felicidade, visível e invisível, contanto que seja feita com amor.

Quando eu recebi o prêmio Artista da Década da Billboard, eu declarei:


“Agora eu posso ser quem eu realmente sou”, porque eu havia acabado de
gravar o CD Rainbow e estava trilhando o caminho para a minha emancipação.
Ser reconhecida dessa maneira foi uma grande conquista, mas o que o Stevie
Wonder me transmitiu transcende estatuetas, prêmios e todas as décadas.

– Prince –

O Prince me deu uma Bíblia, encadernada em couro marrom escuro, com letras
douradas em relevo. Eu ainda tenho esse livro sagrado, enviado por um ser de luz, um irmão
e anjo, que veio em meu auxílio nos momentos difíceis inúmeras vezes. O Prince me
defendia como artista. Por volta da época do CD Butterfly, alguns executivos de gravadoras
que não serão citados (porque eu realmente não os conheço) questionaram a minha direção
musical em uma conversa com ele. Naquela época, ele havia alcançado o status de guru
como músico (o que não impedia as gravadoras de tentarem fuder com ele como artista –
quando se trata de dinheiro e poder, nada e ninguém é sagrado, nem mesmo a realeza da
música).

Eles perguntaram a ele: “Por que ela está tentando cantar músicas de
negro?” e “O que ela está fazendo?”

“Eu só acho que isso é problema dela. Pois é disso que ela realmente
gosta”, foi a sua resposta fenomenal. Exatamente isso!

307
O problema é dela. Namastê47, seus trouxas.

Quando eu conheci o Prince, ele me disse que adorava “Honey”. Oh! Meu!
Deus! O Prince conhece a minha música! Eu gritei na minha cabeça. Eu estava
nas nuvens – o maestro da música moderna conhecia a minha música!
Continuamos falando sobre composição e o lado negro da “indústria” em
encontros casuais posteriores em festas ou em boates (o Prince era famoso
por aparecer aleatoriamente, misticamente em uma boate); ele sempre foi
muito atencioso comigo.

Uma noite, ele, o JD e eu passamos a noite inteira conversando sobre o


“estado da indústria” e como, sendo novos líderes, nós poderíamos ganhar
mais independência, agenciamento e apropriação do nosso trabalho. Então,
um dia, eu recebi o convite para visitá-lo em sua propriedade, o Paisley Park.
Eu costumava fantasiar em compor com ele, como o grupo musical Wendy &
Lisa ou a cantora Sheila E. – todos eles músicos incríveis e pouco celebrados.
(Eu realmente queria muito compor e gravar um dueto de baladas ao estilo
“Purple Rain”. Bom, quem não queria, mas eu sei que teria sido muito perfeito.)
Eu me lembro de quando eu cheguei ao complexo de Paisley Park, visto de
fora, parecia uma série comum de grandes estruturas brancas, quase como
uma concessionária de carros grandes. Mas então eu entrei e vi a magnífica
moto roxa da música Purple Rain. Eu sabia que eu tinha entrado em um mundo
completamente novo.

Eu levei um rascunho de uma música que eu estava compondo para o


Prince dar uma olhada. O meu processo de parceria com compositores é
chegar já tendo alguns conceitos – rascunhos líricos ou melódicos – e depois
discutir as ideias. Nós conversamos muito. Eu acho que foi um pequeno teste;
assim, o Prince era um escritor e compositor de verdade – muitas pessoas
afirmam ser compositores, mas dá para perceber quem é ou não. Eu acho que
ele queria ver onde estava a minha cabeça e as minhas habilidades de escrita.
Eu já estava pensando em músicas para a Silk (a girl band que eu tinha no
filme Glitter, que eu levemente me inspirei na girl band do Prince, a Vanity 6).
Eu conversei com ele sobre querer usar “Nasty Girl” (garota assanhada), a
música que ele escreveu para a Vanity 6, como sample para o filme em que eu
estava trabalhando (da mesma forma que eu acabei usando “I Didn't Mean to
Turn You On” (não foi a minha intenção te deixar excitado)). O Prince me
desafiou.

47 Namastê: é um cumprimento e saudação típico do sul da Ásia, que significa “eu saúdo a
você”. Este termo é utilizado principalmente na Índia e no Nepal por hindus, sikhs, jainistas
e budistas.
308
“Essa música é da Vanity 6”, disse ele.

Ele me questionou por que eu não poderia me “inspirar” com a música do


Puff e do Biggie, que dizia “You nasty, boy / You nasty” (Você é assanhado,
garoto / Você é assanhado.) Eu falei para ele que, em vez de apenas músicas-
chicletes, eu me interessava pela estrutura e a batida da música – pela vibe. O
Prince não estava jogando shade; ele estava sendo protetor. Ele estava me
instruindo. Ele me pediu para terminar a música que eu havia começado e que
a gente trabalharia em uma música nova. Eu nunca terminei a música, e nunca
trabalhamos numa música juntos. Eu realmente gostaria que a gente tivesse
trabalhado juntos (regravar “The Beautiful Ones” foi o máximo que eu
consegui). Proteja as suas ideias, proteja a sua música, foi a mensagem que
eu aprendi da minha visita ao Paisley Park.

Quando o fiasco do Glitter estava em pleno andamento, o Prince estendeu


a mão para mim. Ele me ligava com frequência, e o que ele me disse na época
eu sempre irei guardar dentro de mim. Ele era super reservado, e eu não vou
contar os detalhes. Mas eu posso dizer que as suas palavras sábias me
acalmaram. Ele me encorajou, como o irmão mais velho que eu nunca tive. Eu
ouvia as músicas do Prince quase que diariamente (e até hoje – o Roc e a Roe
conseguem identificar todas as suas canções, pelo menos as de classificação
livre!). Eu não sei se ele fazia ideia do quanto ele me ajudou naquele período
ruim da minha vida. Eu senti esperança em uma época desoladora.

O Prince tinha o seu próprio relacionamento singular e maravilhoso com


Deus. Ele compôs o seu próprio conceito de espiritualidade e sexualidade, e
era tão especial e único quanto ele. Mas no final, quando a minha alma estava
carente, o Prince me enviou as Sagradas Escrituras, que são a Palavra de
Deus. O Prince me salvou e fortaleceu a minha alma, quando eu mais
precisava, e por meio de sua música ele continua salvando o dia, todos os dias.

309
OS MEUS BEBÊS

O garoto encontra a garota e olha em seus olhos


O tempo para e dois corações pegam fogo
Lá vão eles, viver uma montanha russa de emoções

– “Love Story”

Eu não assisti a maioria dos seriados icônicos da década de 90. Eu nunca


consegui assistir Seinfeld (agora eu sou aficionada pela web série Comedians
in Cars Getting Coffee (Comediantes em carros tomando café)) e eu não tinha
tempo para – e não tinha contato com – amigos de verdade, quanto mais para
séries. Eu passava o tempo trabalhando, orando e ganhando fama para o nome
“Mariah Carey”. Eu mal assistia a programas infantis quando eu era criança,
então certamente eu não conhecia nenhum programa da Nickelodeon ou as
suas estrelas. Eu não fazia ideia que o seriado All That (tudo isso) era tão bom,
e eu não fazia ideia quem era o Nick Cannon até 2002, quando eu assisti ao
filme Drumline (PT-BR: Ritmo Total), que eu amei. Eu achei que ele era um
ótimo ator (além de tê-lo achado bem gatinho também). E ficou por isso.

Alguns anos depois, a Brat me disse: “Ele te ama. Ele sempre fala sobre
você”, referindo-se ao Nick. Ela era fã do programa de TV Wild’N’Out, um
programa de humor e improvisação com hip-hop que ele apresentava na MTV,
que eu também nunca tinha ouvido falar. O programa Wild’N’Out estreou no
mesmo ano em que o CD The Emancipation of Mimi foi lançado, que foi um CD
bem elogiado – finalmente. Foi um momento de grande sucesso que eu
esperava ter fazia tempo. Eu ouvia uma das muitas canções daquele CD no
rádio trinta vezes por dia! Foi um momento incrível para os meus fãs também.
Era o que eles precisavam. Eles precisavam me ver renascer das cinzas
daquela maneira. Eu realmente acredito, para o bem ou para o mal, que a
Lambily, os fãs e eu, passamos pelas coisas juntos.

“We Belong Together” foi uma canção colossal. Ela liderou o topo das
paradas de sucesso e tocou por todo os Estados Unidos e internacionalmente.
Ela se tornou a minha décima sexta música a ficar em 1º lugar na parada da
Billboard Hot 100 (eu também fui a primeira artista feminina a ter duas músicas
no topo das paradas, com “We Belong Together” em 1º lugar e com “Shake It
Off” em 2º lugar). Ela acabou ficando no top 10 por 23 semanas e se manteve
nas paradas por 43 semanas no total. “We Belong Together”, com mais outras
duas canções, se tornou a terceira música a ficar por mais tempo em 1° lugar
na história das paradas dos EUA (atrás de “One Sweet Day”, a música mais

310
popular dos anos noventa da Billboard). A Billboard listou “We Belong Together”
como a canção da década (canção do quê?) dos anos 2000, e a nona música
mais popular de todos os tempos.

WBT ganhou dois Grammys, dois Soul Train Awards e Canção do Ano no
ASCAP Awards e BMI Awards (entre outros). Ela até ganhou um prêmio
chamado Teen Choice Award – por melhor música romântica. Eu não sabia
que o Nick iria entregar o prêmio para mim (aparentemente, ele insistiu para os
produtores do Teen Choice). O show foi barulhento, intenso e cômico – o
prêmio é uma prancha de surfe. Eu me lembro de ver o Nick pela primeira vez
e de ficar observando o seu curioso visual de marinheiro de tamanho GG, que
consistia em um short branco gigante, uma grande camisa polo azul oceano,
um suéter amarelo limão em volta do seu pescoço, meias até os calcanhares e
tênis. Depois que ele me entregou o prêmio, uma prancha de surfe, eu disse:
“Eu ouvi falar de todas as coisas boas que você tem falado sobre mim”. Com
um sorriso radiante e genuíno e uma chama nos olhos, ele respondeu: “Se você
me der uma chance, eu provarei que tudo é verdade.”

Um momento muito fofo.

Um bom tempo se passou e a Brat não desistia, insistindo que o Nick e eu


pudéssemos nos conhecer melhor. Começamos a conversar ao telefone,
quase diariamente. Então, finalmente, a gente teve o nosso 1º encontro e foi
super divertido. E, na época, eu queria muito me divertir. Eu não queria me
envolver com ninguém novamente. Eu tive que crescer tão rápido,
profissionalmente e especialmente no meu primeiro casamento. (Casar foi algo
que eu jurei nunca mais fazer de novo.)

Eu deixei de fazer muitas coisas quando eu era adolescente, e o Nick, que


tinha um espírito adolescente eterno, era encantadoramente revigorante. Eu
também me sentia segura com ele. Olha, eu estava saindo muito com os caras
do grupo de hip-hop Dipset nesta época e, embora fosse o máximo, a sensação
de estar correndo perigo estava sempre presente, ok? Além disso, não
importava o quanto eles fossem famosos ou atraentes, não importava o quanto
eles soubessem rimar bem, eu seguia uma regra de não “ficar com rappers”.
Eu levava a sério a questão de me proteger para não ser rotulada de “piriguete”.
Era fundamental que eu mantivesse, acima de tudo, o meu autorrespeito, mas
também o meu respeito profissional dentro do maneiro clube masculino de
artistas, produtores e empresários com quem eu colaborava. Eu trabalhei com
alguns dos maiores (e alguns desconhecidos na época) artistas de hip-hop de
todos os tempos. Eu nunca quis que as coisas no estúdio virassem tipo um
barraco de reality show. E os rappers conversam entre si (qual é; eles ganham
dinheiro soltando o verbo!).
311
E como se não bastasse, já havia mesmo uma infinidade de rumores
ridículos sobre eu transar com rappers. Se você não tomar cuidado, toda a sua
vida pode acabar ir parando nas rimas de rap de alguém (“porque ficam falando
da sua vida como numa entrevista com a Wendy”). Depois que a Wendy
Williams começou a fofocar sobre mim nas estações de rádio, o New York Post
decidiu publicar a história e eu acordei com a manchete “escapadas sexuais”,
com a minha foto estampada. Eles ligaram para mim, para o JD, para o Q-Tip
e para alguns dos meus colaboradores de rap e “amigos de balada” – dá para
acreditar? Eu não ia colocar lenha na fogueira. O que importava era que eu
sabia qual era a verdade e que eu estava comprometida em mantê-la.

Para mim, o Nick era produtor, comediante e ator – eu não fazia ideia de
que ele desejava realmente se tornar um rapper. Ele ria muito e me fazia rir.
Nós fazíamos um ao outro rir muito. A gente conversava sobre a vida e sobre
música. Eu só queria ficar perto dele. Uma vez, eu até dei um fora em um
lendário jogador de basquete muito bonito para andar de carro com o Nick para
que ele pudesse ser o primeiro a ouvir o meu novo CD, E = MC². Eu estava
empolgada e eu queria ouvir as músicas junto com ele.

Durante essa época, eu estava finalmente me recompondo. Eu já havia feito


uma limpeza espiritual, eu ia me batizar e eu estava fazendo terapia. Agora eu
ia focar em mim mesma fisicamente falando também. Eu estava malhando
bastante e sendo acompanhada por uma personal trainer incrível, a Patricia. O
primeiro single do novo CD foi “Touch My Body”, então eu tinha que me
preparar e ficar com o corpo em forma.

Eu estava me sentindo mais forte e fazia tempo que eu não me sentia bem
comigo mesma. O meu novo amigo Nick seria escalado para participar do clipe
“Touch My Body”, já que ele era comediante e o clipe teria uma pitada de
humor. (Qual é, pessoal, que outro rumo o clipe poderia seguir com uma letra
como, “Porque se você falar abobrinhas / E se gabar desse encontro secreto /
eu vou caçar você”? Caso contrário, teria sido um filme de perseguição.) Mas
o papel no clipe era para um nerd de computador e, embora o Nick fosse muito
engraçado, ele não parecia nada com um nerd. O Jack McBrayer, no entanto,
foi uma escolha genial, e nos divertimos muito gravando o clipe.

Graças aos meus fãs, que realmente apoiaram a música, sabendo como
ela faria sucesso, “Touch My Body” se tornou o meu décimo oitavo single a ficar
em 1º lugar. Sou eternamente grata aos meus lambs, que são a minha família.
Eu também agradeço a todos da gravadora que acreditaram no CD e em mim.
Era o meu maior single naquele momento; e que parecia ter feito o impossível,
me fazendo ultrapassar o recorde mantido pelo Elvis Presley por tanto tempo,
o recorde de possuir mais singles em 1º lugar de todos os tempos. O Nick
312
acabou sendo escalado para fazer o papel do meu par romântico em um clipe,
“Bye Bye”, que nós filmamos na ilha de Antígua. A química entre nós era
natural, forte e familiar. O conforto e a intimidade gravados no clipe eram reais.
E depois da gravação do clipe, a gente só viria a falar “até mais” um para o
outro depois de um longo tempo.

Eu estava curtindo ficar com o Nick. Nós até brincamos dizendo que iríamos
com calma e que não iríamos apressar nada. Uma vez, ele me enviou um lindo
e gigantesco buquê de flores quando eu estava em Londres. Ao assinar o
cartão, eu li: “de um aluno desistente da Universidade Pace48”, porque as
coisas estavam indo rápido demais. Nós rapidamente nos tornamos muito
amigos, mas mais rapidamente ainda a gente embarcou na montanha russa do
nosso amor em sigilo. A gente compartilhava as nossas individualidades um
com o outro. Nós tínhamos em comum algumas coisas essenciais. Ele era um
cara legal. Ele era uma pessoa de fé. Ele era ambicioso. Ele estava na indústria
do entretenimento há muito tempo, então ele entendia a loucura. Ele prestou
atenção em mim. A dinâmica de poder entre nós parecia igual.

Eu deixei claro para o Nick que eu não estava nem um pouco a fim de me
tornar fisicamente vulnerável novamente. Eu não transaria a menos que
houvesse um compromisso total, o que na época significava casamento.
(Então, obviamente, eu teria que quebrar a promessa que eu tinha feito de
nunca mais me casar.) O Nick respeitava a minha decisão.

Sinceramente, eu pensei que eu nunca teria filhos. O nosso relacionamento


mudou isso. O assunto de ter filhos foi levado muito a sério e isso mudou tudo.
Ter filhos juntos se tornou um propósito para nós. O nosso desejo de ter filhos
se tornou uma força da natureza e por isso nos casamos tão rapidamente.

Naquela época, eram as coisas simples,


Tornozeleiras, placas personalizadas com os
Nossos nomes que você me deu
Balas sweetarts, bombons em formato de anel
Você até me deu um anel em formato de bombom
E você era o meu mundo

– “Candy Bling”

48 De um aluno desistente da Universidade Pace: é uma universidade privada com campi


na cidade de Nova Iorque e no condado de Westchester. Pace se traduz como “calma”, e
como o Nick tinha abandonado os seus estudos na Universidade Pace, isso significa que ele
estava fazendo o contrário do que os dois tinham falado um para o outro na brincadeira, ou
seja, não estavam indo com calma no relacionamento.
313
O mundo inteiro parece ser cor de rosa com tons de lilás quando se vive
uma primavera de emoções, e nós certamente estávamos vivendo um mar de
rosas (e aparentemente nesse mar não tinha espinhos). O pedido de
casamento do Nick para mim tinha uma vibe de romance infantil. Ele estava
sempre comendo chocolates, que a minha identidade de “eternamente com
doze anos” achou totalmente aceitável para um homem adulto. Na noite, o
Empire State Building foi programado para ser iluminado com as minhas cores
características, “rosa com tons de lilás”, em celebração a uma nova iorquina
entrando na história por ter estabelecido um novo recorde com “Touch My
Body”, o Nick e eu estávamos relaxando na sala marroquina, conversando,
rindo e ouvindo música. Com o seu sorriso enorme e brilhante, o Nick me deu
um daqueles enormes bombons em formato de anel; ele estava no meio de
outros bombons dentro de uma lancheira de metal da Hello Kitty. Eu pensei,
ok, isso é muito fofo – eu vou celebrar comendo alguns doces com ele.
Disfarçado como bombom em formato de anel, havia um grande anel de
diamante transparente de esmeraldas, acompanhado por dois diamantes
lapidados com luas, rodeado por diamantes rosa menores – um anel de
verdade! Era deslumbrante e combinava com a situação. Eu usava um vestido
lilás com um cardigã rosa, e demos um passeio de helicóptero sobre a cidade
e nos maravilhamos com as luzes e curtimos o nosso momento. Naquela noite,
o Nick e eu brilhamos muito mais do que o próprio Empire State Building.

O nosso casamento foi quase o oposto do meu primeiro. Foi uma


celebração espiritual total, e não uma produção cinematográfica. Foi bem
íntimo – talvez uma dúzia de pessoas ao todo. O pastor de onde eu congrego,
o Bispo Clarence Keaton, veio do Brooklyn para oficializar. Nos casamos na
minha linda casa em Eleuthera, nas Bahamas. O vestido jersey de seda branca
fosca que eu usei foi feito sob medida para mim pela Nile Cmylo, uma estilista
feminina independente com quem eu havia trabalhado por anos, não por uma
casa de moda de alto nível. Tinha uma silhueta simples e justa, e o meu véu
na altura dos ombros não precisava ser carregado, precisou apenas de alguns
grampos de cabelo. O primeiro filho da minha ex-irmã, o Shawn, a quem
carinhosamente eu me refiro como o meu sobrinho-barra-irmão-barra-tio-barra-
primo-barra-avô, porque ele realmente foi o membro da família de sangue que
esteve sempre ao meu lado em tantas situações, e eu o estimo – caminhou
comigo pelo corredor arenoso cor de salmão. E depois da cerimônia, eu tirei os
meus saltos manolos e rodopiei descalça nos finos grãos rosa, deixando a
bainha do meu vestido cor de nuvem balançar e oscilar nas águas azul aqua.
Nós nos deleitamos no brilho do pôr do sol das Bahamas e no amor genuíno.
Era o nosso momento e de mais ninguém. A gente não exagerou em nada. A
gente não estava nem aí para tirar fotos (embora, ironicamente, fotos nossas
tenham sido estampadas na capa da revista People). Desta vez, eu estava

314
tomando um bom champanhe com bons amigos – chega de lágrimas solitárias
e salgadas em daiquiris tristes e açucarados.

Estava perto da época de natal e eu estava grávida de dez semanas. Foi o


nosso milagre de natal! O Nick e eu estávamos muito animados. Nós
guardamos o nosso segredinho apenas entre nós, mas é claro que eu
planejava revelar esse segredo com grande estilo durante as nossas férias de
natal. Eu até estava projetando enfeites de árvores de natal para anunciar aos
meus amigos e familiares. Mas em um checkup de rotina no consultório do
nosso obstetra, não se ouvia nada na ultrassonografia. O som sagrado e rítmico
do batimento cardíaco do nosso bebê não ecoava mais – e naquele silêncio eu
pude ouvir o meu próprio coração despedaçar. Eu sobrevivi ao meu aborto
espontâneo, mas é algo que eu nunca vou esquecer.

Após a desolação, eu assumi a missão de preparar o meu corpo para


manter e sustentar uma nova vida de maneira saudável. Eu me desliguei
totalmente da indústria da música e em segredo comecei o meu processo de
cura e construção. Foi a primeira vez em toda a minha carreira em que eu
recusei trabalhar só para me concentrar no meu bem-estar (rejeitei grandes
oportunidades de atuar novamente, e depois do filme Preciosa – Uma História
De Esperança, era realmente onde eu iria focar). Eu recorri principalmente às
práticas medicinais não ocidentais, como ervas chinesas e acupuntura. Eu fazia
meditações (e é difícil), e o que fosse necessário. Nada importava, exceto me
preparar da melhor maneira possível para engravidar e continuar grávida.

Todos os meus esforços foram recompensados em dobro – logo em


seguida, fomos abençoados com a gravidez milagrosa de gêmeos! O período
de gestação foi difícil para o meu corpo. Eu engordei mais de 46 kg e fiquei
muito doente. Eu desenvolvi um edema perigoso – estava super inchado e
cheio de fluido tóxico. Eu também desenvolvi diabetes gestacional. Mas a mais
prejudicial de todas as minhas aflições era a solidão. Todos os meus amigos
divertidos das baladas não estavam por perto, porque eu não podia sair pela
cidade, eu não podia tomar taças de vinho e ficar em festas até tarde da noite.
Pelo contrário, eu sentia um desconforto constante. Novamente, eu não tive
uma equipe que soubesse me cercar com os devidos cuidados. Muitas vezes,
eu ficava sozinha. Mas, felizmente, desta vez eu realmente tinha uma sogra
que cuidava bastante de mim e que estava sempre presente. A mãe do Nick, a
Beth, massageava as minhas costas (as dores nas costas eram debilitantes) e
os meus pés, que estavam sob a pressão excruciante de todo o peso. Ela me
ajudava a passar o meu creme muito especial que eu desenvolvi com o meu
dermatologista na minha barriga gigante e super esticada (eu ganhei mais de
46 quilos e não tive uma só estria na barriga!). Ela se sentava comigo e
315
apreciava os seus netos crescendo dentro da minha grande barriga. Uma
gentileza.

O Nick, por outro lado, não compreendia muito bem a enormidade do que
eu estava passando. Certa vez, nós estávamos em uma consulta com o nosso
especialista em gestações de alto risco. Enquanto eu estava fazendo o exame,
com o peso de dois seres humanos e um pequeno lago de fluido enchendo
todo o meu corpo, a memória de conforto de qualquer tipo bem longe da mente,
o meu bondoso e idoso médico, com o seu sotaque forte do Oriente Médio,
olhou para o meu segundo marido mal-humorado e disse: “Pobre Nick; ele está
tão exausto.”

A gravação do CD Merry Christmas II You é o que me fortaleceu durante a


minha difícil gravidez. Eu amei muito gravar o primeiro CD de natal; eu achei
que gravar um outro CD de natal me impediria de sentir tristeza. Eu mergulhei
de cabeça na composição e gravação. Eu queria que este CD fosse mais
diversificado com uma produção mais luxuosa. Eu estava colaborando com
uma gama mais ampla de produtores, como o James Poyser do grupo de hip-
hop the Roots (nós gravamos “When Christmas Comes” como uma música
clássica de R&B, e é uma das minhas músicas favoritas de todos os tempos) e
o produtor musical da Broadway Marc Shaiman (a música “Christmas Time Is
in the Air Again”, no estilo dos anos 50), além dos meus próprios parceiros
favoritos, como o Randy Jackson, o Big Jim Wright e o JD. Os médicos queriam
que eu ficasse em repouso, mas como, me digam, como eu faço para
descansar? Enquanto eu estava ficando acabada por causa da solidão e do
fluido retido no meu corpo, só o fato de estar trabalhando neste CD estava me
alegrando.

Eu gravei a maior parte das músicas em nossa casa em Bel Air, que teve
como proprietária a falecida e lendária Farrah Fawcett. Em meus muitos papéis
criativos quando criança, um dos meus favoritos de todos os tempos era a
detetive particular Jill Munroe do seriado Charlie’s Angels (PT-BR: as panteras).
Não é de espantar que eu era fascinada pelo cabelo dela: a perfeição da cor e
do corte, todos os fios em seu devido lugar. (Eu prestei várias homenagens
durante a minha carreira.) Eu me lembro da minha mãe dizendo para mim que
fizeram “mechas” no cabelo dela, o que a minha mente de seis ou sete anos
ouviu foi “brechas”. E eu sabia que um dia eu iria pintar o meu cabelo igual ao
da Jill de tão aficionada que eu era por ela.

Um dos destaques do CD foi o dueto “O Come All Ye Faithful / Hallelujah


Chorus” (Ó vinde, todos os fiéis / com o refrão aleluia) com a Patricia Carey,
onde eu pude unir ópera e gospel. Nós nos apresentamos no meu especial de
natal da ABC, com uma orquestra inteira e um coral (e comigo muito grávida –
316
três gerações no palco juntas!). Durante essa época eu também gravei a
música “When Do the Bells Ring for Me” (quando os sinos tocam para mim)
com o incomparável Tony Bennett para o CD dele Duets II; o próprio ícone
atemporal veio ao estúdio da minha casa para gravar. Eu espremi o meu corpo
grande e grávido dentro da minha pequena cabine vocal cor de rosa e
instalamos microfones do lado de fora do estúdio para o Sr. Bennett, para que
as nossas vozes ficassem separadas e suaves, mas dava para a gente ficar no
mesmo local, o que era muito importante para o Sr. Bennett. Eu me lembro de
olhar pela minha pequena janela para uma lenda viva cantando comigo em
minha casa – uma grande ocasião. “Eu nunca cantei com um trio antes” foi o
seu comentário espirituoso (já que tecnicamente havia quatro corações
batendo na gravação), uma memória que sempre permanecerá comigo.

Eu promovi e cantei músicas do CD Merry Christmas II You durante uma


gravidez enorme e difícil. Um convite que eu simplesmente não tinha como
recusar era cantar uma música que eu escrevi chamada “One Child” para a
vigésima nona edição do especial anual Christmas in Washington (Natal em
Washington). Foi filmado no majestoso National Building Museum, e eu ia
cantar com um coral cheio de jovens lindos e cheios de esperança. O
presidente Obama, a primeira-dama, a Sasha e a Malia estavam na primeira
fila, bem na minha linha de visão, sorrindo com dignidade. Foi uma honra me
apresentar para a família Obama e, por tabela, para o país novamente. No final
da apresentação, todos os artistas se reuniram no palco e a família Obama se
juntou a nós. Um pouco antes, o Nick havia sugerido que eu contasse o nosso
segredo para a Michelle Obama. Ela e o presidente Obama estavam passando
de pessoa em pessoa, agradecendo a todos nós, e quando ela veio até mim,
eu aproveitei o momento e sussurrei em seu ouvido que eu estava grávida de
gêmeos. Depois que eu cantei “One Child”, a Michelle Obama, a nossa sempre
histórica Primeira-dama, foi a primeira a saber que a gente ia ter dois filhos.
Que bênção.

Eu dei o nome de Monroe e Moroccan para os meus filhos porque eu queria


que eles tivessem as iniciais MC, como eu. O nome da minha amada filha é
obviamente uma homenagem à minha heroína de infância (a ultrassonografia
revelou que ela posava como uma estrela de Hollywood, reclinada em uma
carruagem no útero!). Já o nome Moroccan é por causa que o Nick e eu
amávamos o nome Rakim (porque ele é um dos maiores rappers de todos os
tempos). “Moroccan” era um nome meio híbrido: rimava com Rakim, é um país
lindo e místico onde eu tive uma experiência especial, e é o nome da sala onde
tantos momentos criativos e mágicos aconteceram, inclusive foi onde o Nick
me presenteou com o meu anel em formato de bombom.

317
Era maravilhoso e divertido quando os “meus bebês” eram pequenos.
Juntos, o Nick e eu os enchia de muita alegria, atenção e segurança o máximo
possível. Mas com a alegria em dobro havia também o dobro da
responsabilidade. Dava muito trabalho e nós tínhamos que passar mais tempo
em casa e estarmos disponíveis para eles. Fazer os ajustes necessários para
sermos pais que trabalham no entretenimento afetou o nosso relacionamento,
e o fim do nosso casamento aconteceu rápido, da mesma forma que começou.
Embora a gente tivesse um acordo pré-nupcial, o divórcio demorou dois anos
para se tornar definitivo e custou centenas de milhares de dólares em despesas
jurídicas.

Eu chamo o seu nome, meu bem, inconscientemente


Sempre em algum lugar, mas nunca ao meu lado

– “Faded”

Honestamente, acho que o Nick e eu poderíamos ter resolvido isso entre


nós dois, mas os egos e a emoções se inflamaram (o que pode se traduzir em
muitas horas pagas para o advogado, e que no final das contas foi o que
aconteceu). Foi difícil. Nós dois queríamos ter certeza de que tudo estava bem
para a nossa família. Nós vamos sempre ser uma família, e nós fazemos de
tudo para que dê certo. Nós ainda nos divertimos, lembramos dos velhos
tempos e brincamos. E nós dois temos certeza que o Roc e a Roe são de fato
a nossa luz. Todos os dias eles nos dão uma nova vida.

Muitas vezes me perguntei se alguma vez existiu uma família perfeita

– “Petals”

Eu não me faço mais esse tipo de pergunta. Agora, eu sei com certeza que
nunca houve e provavelmente nunca haverá uma família “perfeita”. Mas eu
finalmente encontrei estabilidade na família que eu criei. Há momentos em que
não consigo acreditar que eu era uma garotinha que morava em barracos, que
sempre se sentiu insegura, pouco cuidada, solitária e eternamente assustada.
Eu queria voltar no tempo para proteger e resgatar aquela garotinha do mundo
precário em que ela estava presa. E agora, fico maravilhada com os meus
próprios filhos maravilhosos, a Monroe e o Moroccan, e o ambiente seguro e
abundante que foi criado para eles. Em vez de terem que se mudar treze vezes,
eles vivem em várias casas lindas, impecáveis e palacianas. Em vez de pregos
expostos nas escadas e carpetes imundos, eles correm livremente por longos
corredores de mármore brilhante, usando meias e gritando de alegria. Em vez
de um sofá de balanço de três pernas, eles assistem filmes numa tela de

318
cinema em um sofá estável e luxuoso feito sob medida com almofadas de
penas de ganso que é maior do que o meu primeiro apartamento.

Os meus filhos estão rodeados pelo meu amor sem fim. Eu nunca fiquei
longe deles por mais de vinte e quatro horas, e quando eu estou trabalhando,
eles são vigiados por uma família amorosa de amigos e profissionais. Eles
jamais foram deixados sozinhos. Eles nunca se perguntaram onde eu estou ou
se o pai deles sabe como é a vida deles. Eles têm inúmeras memórias e
imagens dos seus pais amorosos juntos. Eles nunca correram perigo de vida.
Policiais nunca invadiram a nossa casa. Eles provavelmente têm trezentas
camisas para revezar e doar, e os seus cachos doces e macios são
profundamente compreendidos. Eles não vivem com medo. Eles nunca
precisaram fugir. Eles não tentam destruir um ao outro. Os meus filhos são
felizes e brincam um com o outro, aprendem um com o outro, se divertem, riem
e convivem um com o outro. Aconteça o que acontecer, eles sempre terão um
ao outro. Eles são o Roc e a Roe pelo resto da vida.

De todos os muitos dons com que Deus me abençoou – as minhas canções,


a minha voz, a minha criatividade, a minha força – os meus filhos são a visão
mais bonita que eu já tive. É por desígnio divino que os filhos de uma criança
marcada (que quando criança dizia que nunca ia ter filhos) são
extraordinariamente privilegiados. E embora eu tenha trabalhado bastante por
tanto tempo, ainda é um milagre perceber que tal salto tenha sido dado dentro
da minha família tão confusa. Nós quebramos o ciclo de família desestruturada.

Guiada pela graça de Deus, eu estou me emancipando do cativeiro de todos


os sofrimentos do meu passado – redirecionando o meu legado para plantá-lo
no amor puro. E as bênçãos continuam fluindo. Vinte e cinco anos depois de
escrever uma canção de amor para o natal que surgiu de um profundo desejo
de viver alegria e paz dentro da minha própria família, eu tenho tudo o que eu
sempre quis – culminando com celebrações de feriado familiar grandes, felizes
e festivas.

319
GLOBO DE NEVE DE ALEGRIA

Eu estava de pé com um vestido de lantejoulas vermelho deslumbrante


inspirado no vestido que a Marilyn usou na apresentação de “Two Little Girls
from Little Rock” (duas garotas de Little Rock) no filme Os Homens Preferem
As Loiras, em um palco espetacular e alegremente decorado, em meu show
esgotado de natal de 2019 no Madison Square Garden. O meu rosto brilhava
com a alegria da ocasião, mas principalmente como resultado das mãos
talentosas da minha linda maquiadora de longa data, a Kiki – e do meu
confidente e querido amigo Kristofer Buckle. O Roc e a Roe, usando as suas
próprias roupas pequenas e alegres (eles apresentaram uma versão especial
de “Rudolph the Red-Nosed Reindeer” (Rodolfo, a rena de nariz vermelho)
naquela noite!) estavam de um lado e o Tanaka do outro. Atrás de mim estavam
os meus “irmãos cantores” – o meu irmão Trey e as minhas irmãs Tots e Tekka,
que estiveram comigo em todos os momentos, os bons e os ruins. E na minha
frente, é claro, havia dezenas de milhares da minha incrível, diversificada e
enorme família de fãs amorosos.

Eu olhei para fora e vi inúmeros Lambs fabulosos usando macacões de


lantejoulas e outros trajes chamativos (a arena estava transbordando de
lantejoulas, tachas e cristais!), segurando cartazes e de mãos dadas. Havia
meninas com vestidos prensados de veludo nos ombros largos dos seus pais;
havia idosos carecas ao lado de mulheres jovens com bandanas na cabeça;
havia negros, brancos, indígenas, asiáticos, do Oriente Médio e incontáveis
misturas e variações; gays, heterossexuais, gêneros fluidos, trans, não
binários, pessoas que eram liberais, conservadoras, devotas, agnósticas, com
necessidades especiais e deficientes físicos; pessoas de todas as formas,
matizes, convicções e crenças que você possa imaginar.

E enquanto eu admirava a maravilhosa multidão, como se uma estrela


solitária e brilhante estivesse brilhando bem em cima do seu rosto, eu vi a Liron,
que quando tinha 12 anos, ela escreveu a letra de “Looking In” na porta do seu
quarto em Telavive. Mas agora ela é uma linda mulher e um membro
inestimável da minha equipe interna e uma amiga leal e estimada. Eu vi amigas
e colegas – pessoas com quem eu já trabalhei, ri e chorei em todas as épocas
da minha vida. A minha família universal de fãs, que sempre me apoiaram de
forma incomparável, incessante e incondicional desde o primeiro dia, me
envolveu como um oceano cristalino de amor.

Por muito tempo eu desejei que cinco pessoas entrassem em harmonia na


época de natal, e aqui estava eu rodeada por uma família de milhares de

320
Lambs, fãs e amigos, e todo mundo estava cantando “All I Want for Christmas
Is You” juntos! Eles cantavam junto comigo; eles estavam cantando para mim.
As nossas vozes estavam tão altas e alegres que toda a cidade de Nova Iorque
poderia ter nos escutado e se juntado a nós. Naquele momento, estávamos
todos unidos em nosso próprio universo de espírito natalino. Toneladas de
flocos de confete branco caíram sobre nós do teto. Era como se o mundo inteiro
estivesse comigo em um grande globo de neve de alegria!

No dia seguinte, eu estava totalmente exausta e super animada quando eu


acordei com a notícia da Billboard: “Desejo Realizado: ‘All I Want for Christmas
Is You’ da Mariah Carey fica em primeiro lugar na parada Hot 100 após 25 anos
de espera.”

Espera. O quê?!

Quase no finalzinho do ano de 2019, mais uma canção minha ficou em 1º


lugar, se tornando a minha décima nona canção a fazer tal feito! Os Lambs
fizeram acontecer de novo! Os meus fãs fizeram dela a música com mais
streaming globalmente em um único dia! Eu tinha dado duro e focado com a
minha pequena equipe para dar à música uma grande energia em sua brilhante
bodas de prata, mas ficar em primeiro lugar – fenomenal! Isso é algo que só os
fãs genuínos, não apenas marketing, conseguem fazer.

Depois que o maravilhoso turbilhão de “All I Want for Christmas Is You”


terminou, eu fiz a minha tradicional estada em minha própria terra das
maravilhas de inverno, Aspen. Com a minha família de sangue e a minha
família de amigos escolhida a dedo – o Roc e a Roe, o Tanaka, o Shawn e a
sua esposa, dois dos meus cachorros, Cha Cha e Mutley, a tiracolo, eu estava
pronta para me aninhar e deixar as nossas novas festividades tradicionais
começarem! Os dias estavam brilhantes e revigorantes. Os campos gramados
do lado de fora do nosso chalé aconchegante, mas amplo, estavam cobertos
por uma espessa neve branca e cristalina, como se nuvens brilhantes tivessem
se acomodado para dormir no nosso quintal. Contentes por estar usando
macacões aconchegantes o dia todo, as crianças e eu vestimos os nossos
casacos fofos e botas de esqui por cima dos nossos pijamas e corremos para
a camada de neve fofa para fazer anjos de neve. Com os olhos apontados para
o céu azul brilhante, nós deixamos o cheiro fresco de pinho soprar nos nossos
rostos e fazer cócegas nos nossos narizes.

Por dentro, a linda agitação da família aquecia toda a casa. Com músicas
do estilo Messiah (Messias) do Georg Handel às músicas do Jackson 5, o ar
era preenchido com a trilha sonora infinita de músicas de natal (com risos,
cachorros latindo e crianças correndo como música de fundo). Os corredores,
321
as paredes, e todos os lugares estavam enfeitados e decorados, e o fogo rugia
nas lareiras. Na sala de estar, a enorme árvore estava cheia de pisca-piscas
brancos, bolas de ouro, querubins e borboletas douradas e no topo havia uma
linda estrela de anjo com asas com pontas de ouro e um tecido fino descendo
dela. (Na sala da família há sempre uma árvore de natal de estilo antigo com
grandes pisca-piscas multicoloridos, dando uma vibe de árvore Charlie Brown
mais plena e feliz. Nós decoramos a árvore com enfeites feitos em casa e com
fotos Polaroid uns dos outros; eu também coloco enfeites estimados que os
Lambs de todo o mundo já me enviaram ao longo dos anos.) Guirlandas e
pisca-piscas caíam em cascatas sobre cornijas de lareira e portas, e velas
brancas e flores do natal (poinsetia) estavam por toda parte. As xícaras
estavam cheias de chocolate quente e saborosos licores Schnapps de
caramelo.

No natal, eu tenho tempo para preparar os meus pratos favoritos – o linguine


do meu pai com molho de amêijoa branca (para a véspera de natal, é claro) e
conchas recheadas. O papai noel passa em casa para nos alegrar, e nós
cavalgamos e cantamos em um trenó aberto de dois cavalos! Nós cantamos
canções de natal e brincamos na neve. É real. É barulhento. É divertido. É
alegre. É o meu mundo.

Eu já me sentia muito grata (com chocolate quente e licores Schnapps)


durante a nossa estadia em Aspen, quando uma outra notícia da Billboard
estourou: “A Mariah Carey se torna a primeira artista a ficar em 1º lugar na
Billboard Hot 100 em quatro décadas distintas, graças a ‘All I Want for
Christmas’.” Sim, agradeço aos fãs que amaram a minha pequena canção de
amor de natal tão profundamente – tanto é que ela ficou em primeiro lugar nas
paradas por três semanas, fazendo dela a última música em 1° lugar de 2019
e a primeira música em 1º lugar de 2020, o primeiro ano de uma nova década...
Sério, o que uma década quer dizer mesmo?

Depois de toda agitação, brindes, cantoria e comemorações, as pessoas se


retiraram e foram se acomodar em seus lugares durante a noite. As crianças
estavam aninhadas na sala da família, assistindo a um filme, e todos os outros
estavam contentes em seus quartos. Fui na ponta dos pés em silêncio até a
sala de estar e me sentei perto da lareira. Tudo estava escuro, exceto pelas
estrelas cintilando do lado de fora das grandes janelas, que mostrava um céu
preto azulado e o brilho âmbar quente do fogo da lareira. Eu me deleitei em um
momento doce, silencioso e particular comigo mesma. Eu internalizei tudo.

Eu estou em paz.

Eu me sinto completa.
322
EPÍLOGO

Deus sabe
Que os sonhos são difíceis de seguir
Mas não deixe ninguém
Destruí-los

– “Hero”

Durante uma violenta tempestade, muito jovem, eu tive um vislumbre da


visão de Deus para mim. Quando criança, eu fui despertada para o meu sonho,
e eu acreditava com todo o meu ser no que eu deveria fazer e quem eu deveria
ser, muito antes de qualquer outra pessoa. E acreditar nisso exigia tudo o que
eu tinha. Ao longo do caminho, eu recebi sinais de esperança, mas
principalmente eu enfrentei o caos e a calamidade, decepções e traições
brutais que me fizeram descarrilar. Alguns quase me mataram, ou pior, quase
mataram o meu espírito. A verdade nua e crua era que as pessoas que eu mais
amava eram as que mais me machucavam. As pessoas mais próximas a mim
foram as que quase me impediram de realizar os meus sonhos. Se eu aprendi
alguma coisa nesta vida que valha a pena compartilhar é: proteja os seus
sonhos. Mesmo diante de situações desfavoráveis e desestruturadas, você não
pode deixar ninguém definir, controlar ou tirar a sua visão da sua vida – nem
mesmo a sua mãe, o seu irmão, a sua irmã, o seu pai, o seu cônjuge, o seu
namorado, a sua namorada, o seu amigo falso, o seu chefe, algum valentão,
algum fanático, o seu gerente, o seu parceiro, o seu assistente, algum crítico,
o seu primo, o seu tio, a sua tia, algum colega de classe, algum magnata, algum
predador, alguém influenciador, o seu presidente, algum falso pastor, algum
falso professor, o seu colega de trabalho, algum inimigo com um telefone,
alguém covarde com uma câmera ou alguém covarde com um teclado.49

“Em verdade vos digo: se tiverdes fé, como um grão de mostarda,


direis a esta montanha: Transporta-te daqui para lá,
e ela irá; e nada vos será impossível.”

– Mateus 17, 20

49 Alguém covarde com um teclado: não ficou claro a quem a Mariah se refere. Pode ser
que ela esteja falando do Walter Afanasieff, que se acovardou e escolheu ficar ao lado do
Tommy, e que a palavra teclado aqui signifique “piano”, ou talvez a Mariah esteja se referindo
aos trolls e haters de internet que destilam os seus venenos atrás de uma tela, ou talvez ela
esteja falando dos dois sentidos? Não sei. Só podemos especular.
323
No final das contas, é tudo uma questão de fé para mim. Eu não consigo
definir o que seja, mas foi algo que me definiu.

324
FOTOGRAFIAS

“Madre” Emma Cutright


(Bisavó)

325
Nana Reese na frente da sua igreja com a sua bolsa-carteira
(Tia-avó)

326
Nana Reese com a sua Bíblia

327
Alfred Roy aos quatro anos (pai)

328
A glamorosa Addie (avó)

329
Mãe da minha mãe

330
A Pat em seus dias de ópera

331
Alfred Roy no exército

332
Pequenina

333
Com o papai noel pela primeira vez

334
A minha prima Vinny aos três anos de idade

335
Eu com a Pat em seus finados dias de boemia

336
Com o meu ursinho de pelúcia, o Cuddles, em um
passeio ao Monte Washington com o meu pai

337
Fazendo o papel da Hodel e segurando
as flores que recebi do Alfred Roy

338
“Longe Do Lar Que Eu Amo”

339
Fazendo pose para os meus tiados

340
Desembaraçados e penteados

341
Jogando xadrez com o Alfred Roy

342
Logo no início, você lida...

343
“Lullaby of Birdland” com o Clint ao piano

344
Uma criança marcada

345
A pequenina Mariah e a Pat

346
A Cee Cee, eu e o Chris

347
Nono ano

348
Curso de beleza! 500 horas

349
Olhando dentro de si

350
Com a Josefin, fazendo acontecer em Nova Iorque

351
“A distância”

352
Eu, o Mike e o Shawn. Fazendo gracinha.

353
Com o Shawn no natal em Aspen

354
Nos bastidores em um momento genuíno de
diva com a incomparável Sra. Whitney Houston

355
Os dois vestidos e a Sra. Ross

356
Com Morris, o ícone

357
O

Produtor de teatro Kermit Bloomgarden com


o Arthur Miller e a Marilyn Monroe e o piano

358
Eu “com” a Marilyn

359
Com a rainha

360
“Momento” nos bastidores do World Music Awards em Mônaco

361
Nos bastidores em Taipei na turnê do Butterfly

362
Eu e o Kris sobrevivendo ao fiasco do Glitter

363
Arrasando com o meu vestido Lagerfeld com Rae Rae e Kris

364
Momento “mergulho” com o meu querido amigo Treymond

365
Uma foto sensual digna de pôster tirada no jardim de Franco em Capri

366
No hotel Lanesborough em Londres com o cachorro Bailey

367
Mariah alternativa

368
Com o Luis Miguel, o Elvis latino

369
Bianca depois de anoitecer

370
Opulência e decadência no iate do Roberto Cavalli

371
Um momento de amor adolescente...

372
373
O Presidente Obama fazendo a Roe rir

374
Com o Nelson Mandela

375
O Prince me salvou e fortaleceu a minha alma quando eu mais precisava,
e por meio de sua música, ele continua salvando o dia, todos os dias.

376
Com o meu artista favorito de todos os tempos, Stevie Wonder

377
A Liron e eu rindo

378
O Shawn e eu com girassóis para o Alfred Roy
no nosso último dia dos pais juntos

379
O Roc e a Roe na Itália aprendendo a nadar

380
Alfred Roy no Porsche

381
O meu filho, Rocky, no carro do seu avô, o Alfred Roy

382
383
AGRADECIMENTOS

Este livro não seria possível sem a orientação amorosa de Deus.

Em memória de Lavinia Cole, também conhecida como “prima Vinny”.


Obrigada por guardar a história da nossa família e compartilhá-la comigo. A
sua participação neste livro e em minha vida foi inestimável.

Obrigada à minha família de anjos: Alfred Roy, Addie Mae Cole, Nana
Reese, Madre Emma Cutright e o Bispo. Eu sinto a presença de vocês todos
os dias... me levando para mais perto de Deus.

E para as pessoas, as pessoas preciosas, e que são muitas, que me


alegram e que me direcionam diariamente: eu agradeço a vocês por tudo
que fizeram, até mesmo pelo que não fizeram, para dar um novo sentido à
minha vida. Sou eternamente grata. (E, por favor, me perdoem se eu
esquecer de mencionar alguém. Vocês estão no meu coração.)

Aos meus sobrinhos / irmãos / primos / tios / avôs Shawn e Mike, eu os


amo para sempre.

Ao lindo e talentoso Kristopher Buckle. À amorosa e atenciosa Sra. Ellen


Greene. G.G. “Eu disse boa noite.” Ao fiel e inabalável Al Mack e ao “odeio
ser entediante” Michael Richardson e ao incrível Brian Garten e à sua família
sempre tolerante. O apoio e proteção de todos vocês têm sido vitais para
mim e eu sou eternamente grata.

Sem a profunda compreensão e amizade da Karen G, da Rhonda


Cowan, do Stephen Hill e do Lee Daniels (também conhecido como Cot), eu
não teria conseguido.

Aos meus primos Cee Cee e Chris – a nossa diversão era igual a fazer
comida. Amo vocês como arroz com feijão.

À minha família de quatro patas ao longo dos anos que me amou de


forma incondicional: A Princess, o Duke (peguei as bolas, ha!), o sempre
presente Jackson P. Mutley Gore III (vou sempre te amar), o bom
Reverendo Pow, a Jill. E. Beans, Squeak. E. Beans, o JJ também conhecido
como Jack Jr. Dat Boy, o Mutley!!!!!! A Jackie E. Lambchops, Pipity,
Dolemite, QUEEN CHA CHA a boa menina, a baby e o O.G. Clarence da
Centerport COVQ (cague onde você quiser), meu grande amigo (te amo).

384
E ao Tanaka, que é uma pessoa maravilhosa e única, obrigada pelo
ombro lindo e firme em que posso me apoiar (eu te amo pra caralho).

Jay-Z, obrigada por acreditar em mim e por me conduzir, e ao Sir Jay


Brown, Sr. Hank e a toda equipe da agência de entretenimento Roc Nation.
Rob Light e o pessoal da CAA, Allen Grubman, Joe Brenner, the Stewarts e
toda a minha equipe jurídica, Burt Dexler, Lester Knispel e Rosemary
Mahtawossian da Boulevard Management. Muito obrigada pelos seus
serviços e por defenderem o meu nome.

Ao meu editor muito especial e amigo sempre alegre, Andy Cohen, eu te


amo muito! Ao meu editor, James Melia (dahling!), e a todos da editora Henry
Holt. Obrigada pela paciência, diligência e disposição em todos os
momentos.

E para a Michaela angela Davis, que me ajudou a escrever esse livro, a


irmandade é um lugar forte, precioso, espiritual e poderoso. É onde nós
temos vivido juntas para contar essa história.

À Liron, obrigada por ser tão brilhante, inspiradora e, acima de tudo, uma
verdadeira amiga e uma pessoa tão maravilhosa. Obrigada por me
encorajar a ouvir as minhas músicas, e mais do que tudo, por me fazer
apreciá-la ainda mais – não tenho nem palavras.

E por último, mas em primeiro lugar e sempre, à minha família de fãs, eu


realmente não sei nem o que dizer, mas vou tentar. Muitos não entendem o
quanto o nosso relacionamento é real, mas para mim, é mais que real.
Vocês literalmente dão sentido à minha vida e a salvam constantemente.
Vocês não fazem ideia do quanto eu amo cada carta, cada poema, cada
livro, cada vídeo, pôster e todo tipo de demonstração de carinho que vocês
fazem; obrigada também por cada tatuagem de mim que vocês fizeram.
Obrigada por chorarem comigo, obrigada por chorarem por mim. Obrigada
por torcerem por mim e por me animarem. Este livro é para VOCÊS, a
minha verdade é para vocês, e eu espero que o meu livro seja inspiração
para que todos vivam a sua verdade.

385

Você também pode gostar