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E-book
Vol. 1
Conteúdo extraído do livro:

Se Deus é bom, por que o mundo é tão ruim?

Rabino Benjamin Blech


Editora e Livraria Sêfer
2006

Copyright © 2003 by Benjamin Blech

Direitos reservados à
EDITORA E LIVRARIA SÊFER LTDA.
Alameda Barros, 735 CEP 01232-001 São Paulo SP Brasil
Tel. 3826-1366 sefer@sefer.com.br www.sefer.com.br

Este livro é dedicado a todos aqueles que me inspiraram e me ensinaram,


por meio dos seus exemplos, que o sofrimento pode nos aproximar de
Deus, da bondade, da compaixão e de uma maior compreensão de nós
mesmos e de nossas vidas.
B.B.
Introdução

A jovem mulher com o rosto transtornado estava no fim da fila daqueles


que aguardavam para conversar comigo. Parecia que ela queria ser a última. Com
toda a certeza, quando chegasse a sua vez, a sala estaria praticamente vazia.

“Rabino”, ela começou com um suspiro, “eu preciso falar com você.” Todo
o modo de ela se comportar denotava dor, e eu a convidei para se sentar; então
ela descarregou sua história.

Após muitas tentativas para engravidar e depois de muitos fracassos,


ela finalmente dera à luz uma menina. Seus olhos se encheram de lágrimas
enquanto ela descrevia a sua alegria e a dor subsequente ao se dar conta
de que a criança tinha vários defeitos congênitos. Ela veio me falar sobre as
desesperadas tentativas para salvar a vida da criança, que no final das contas
fracassaram. Seu bebê morreu.

“Na ocasião, alguém me deu este livro.” Ela exibiu um exemplar de


Quando Coisas Ruins Acontecem às Pessoas Boas (Editora Nobel), o best-seller de
Harold S. Kushner. “Ele me trouxe muito conforto. Ele me deu a certeza de que
o que aconteceu não foi por minha culpa – que Deus não castigou a mim ou
ao meu bebê.”

Ela fez uma pausa. “Mas agora isso me dá pesadelos.”

Enquanto ela respirava profundamente, antecipei o que estava por vir. Eu


já tinha ouvido isso antes.

“Hoje eu tenho dois filhos saudáveis. Estamos muito contentes. Mas


agora, a cada instante, eu fico esperando que algo terrível aconteça. Se Deus
não dirige o mundo como este livro diz...”, a voz dela embargou e ela sentiu
dificuldade em se recompor. “Rabino, eu não sei no que acreditar. Por favor, me
ajude a entender o sentido de tudo isso!”

Quantas vezes haviam me feito exatamente aquele mesmo pedido! Em


minhas quase 4 décadas como rabino, com certeza nenhum outro problema foi
levado a mim com tanta frequência quanto este: Por que sofremos? Por que
morremos? Por que o meu filho? Por que a minha mãe? Por que eu?

Desde o aparecimento do agora mundialmente famoso livro Quando


Coisas Ruins Acontecem às Pessoas Boas’ um incontável número de pessoas me
pediu para explicar: Deus dirige o mundo ou não? Coisas ruins acontecem
fortuitamente, como sustenta Kushner, ou há um plano e um desígnio para os
eventos de nossas vidas?

Kushner, um rabino do Movimento Conservador, escrevera o livro como


resultado da morte trágica do seu jovem filho. Nele, tentou compreender o
sentido da terrível doença do pequeno menino e do seu próprio sofrimento. Em
sua autorreflexão, ele concluiu que havia sido uma pessoa boa, e nem ele nem
seu filho haviam merecido aquela dor. Isto fez com que ele se confrontasse com
um dilema terrível – se Deus desejara que isto acontecesse, Deus poderia ser
bom? Kushner decidiu que Deus tinha que ser bom. Portanto, argumentou, uma
coisa assim tão terrível só poderia ter acontecido a uma pessoa boa se o bom
Deus tivesse sido impotente para evitá-la. Coisas ruins acontecem às pessoas boas
porque Deus não está no controle do mundo.

Em sua conclusão, Kushner se afastou de uns 3.000 anos de ensinamentos


judaicos. Além disso, ele deixou claro que intitulou intencionalmente o seu livro
de Quando Coisas Ruins Acontecem às Pessoas Boas e não de Por Que Coisas Ruins
Acontecem às Pessoas Boas? Ele tem afirmado frequentemente – em seu livro e
em suas conferências públicas – que somente está interessado no resultado:
Quando acontece, o que você faz? Como você se recupera disto? O porquê é
irrelevante e impossível de responder.

Sem dúvida, muitas pessoas encontraram consolo no livro de Kushner.


Todavia, ao longo dos anos desde a sua publicação – ele ainda é impresso e
largamente lido –, eu conheci um sem-número de indivíduos para quem esta
abordagem está longe de ser satisfatória. Inicialmente, a sua ideia – de que
Deus não dirige o mundo e que as coisas ruins não fazem parte do Seu plano –
pode parecer atraente. Afinal de contas, isto nos permite acreditar que nós não
somos responsáveis por aquilo que nos acontece; não carregamos qualquer
fardo de culpa. Nós certamente não podemos nos culpar por nosso sofrimento,
se até mesmo Deus é incapaz de tornar nossas vidas um pouco melhor.

Mas, no fim, o sentimento de que o mundo está girando descontrolado


nos deixa mais amedrontados do que antes. Nada importa. Não há um plano. O
afortunado vence; o azarado perece. Trata-se de uma visão obscura e anárquica
na qual a maioria das pessoas reconhece intuitivamente que não podem aceitar.
Suas almas lhes falam que isso simplesmente não é verdade.

Não importa o quão cruel a vida possa parecer, as pessoas ainda sabem
de alguma maneira que Deus tem poder ilimitado – caso contrário Ele não
seria Deus. Ele está no controle do mundo. “Então, por quê?” – as pessoas se
questionam legitimamente. Por que o mundo parece tão terrível? Se Deus é
bom, por que a vida é tão ruim?

Felizmente, os antigos ensinamentos judaicos oferecem respostas. Afinal


de contas, parece razoável que o povo mais perseguido do mundo deva ter os
maiores especialistas em lidar com o problema do sofrimento. Os judeus têm
sido afligidos, brutalizados, torturados e insultados ao longo dos tempos. Eles
têm motivos para fazer esta pergunta mais do que qualquer outro povo. E foi
o próprio Deus que ouviu o seu clamor e lhes deu a resposta por meio dos
ensinamentos da Torá, bem como pelos escritos dos profetas e sábios.

Não, as respostas não são simples. Nada tão desconcertante assim pode
ser solucionado com uma explicação superficial. De fato, há muitas respostas,
não apenas uma, e muitas podem se aplicar a diferentes situações. As variáveis
são infinitas; a combinação de possibilidades é quase ilimitada.

Todavia, eu acredito que o que você vai ler fará sentido para qualquer
coração receptivo. Este livro emergiu de uma série de conferências que foram
excepcionalmente bem recebidas. Em uma delas, um homem resumiu seus
sentimentos ao dizer: “O que você fez por mim foi mais do que me fazer
entender minhas dificuldades com maior clareza; você também me deu um
remédio poderoso para minha alma.”
Com toda honestidade, falar deste assunto não foi fácil. Certamente
posso dizer que este foi o mais difícil de todos os temas com o qual eu já lidei
em minhas conferências. Então, quando me sentei para escrever sobre isto,
tive que fazer uma extensa reflexão de alma antes de enfrentar a tarefa. Eu
percebo que, felizmente, fui poupado de maiores tragédias durante a minha
vida. Embora eu tenha tido que lidar com as mortes do meu pai e da minha
mãe, ambos faleceram com idades relativamente avançadas. O resto da minha
família, minha esposa e filhos, são felizes e saudáveis. Algumas pessoas
poderiam dizer: “Você não vivenciou sofrimento de fato. Você realmente não
sabe o que é isso.”

Há um pouco de verdade nisso. Entretanto, não tive a intenção de fazer


deste um livro de autoajuda escrito por um sobrevivente, para aqueles que
sofrem devido à perda de um ente querido ou que estejam enfrentando alguma
doença grave. Em vez disso, escrevi este livro como uma compilação da sabedoria
judaica sobre este assunto. Ao absorver as perspicácias dos grandes sábios do
nosso passado – entre eles incontáveis vítimas de sofrimento incomparável, que
foram, não obstante, capazes de sobrepujar suas provações ao mesmo tempo
que mantiveram sua fé –, eu sinto uma necessidade enorme de transmitir o
que eles têm para nos ensinar. O entendimento deles pode transformar nossas
vidas. Suas observações podem tornar nossa dor suportável. Porque a coisa
mais difícil de aceitar quando somos colocados para baixo por uma tragédia
é que a vida, quando tudo foi dito e feito, não faz sentido. E o que os sábios
de tempos antigos alcançaram com seu brilhantismo foi restabelecer nossa
capacidade de acreditar em um mundo racional, mesmo quando este parece
dolorosamente irracional.

O que eu vou compartilhar com vocês são os frutos de milhares de anos


de debate, reflexão e conflito espiritual.

Dito isto, deixem-me esclarecer as fontes que usei.

Basicamente, o material que eu examino aqui vem do Talmud. O Talmud


é uma grande obra de mais de 60 volumes que expõe o comentário judaico a
respeito do texto principal, a Torá (os Cinco Livros de Moisés), que se acredita
ser a palavra de Deus. Além disso, o Talmud apresenta as lições do Midrash,
uma forma de ensinar profundas lições por meio de histórias, ilustrações e
parábolas.

É muito fácil contar uma história; é uma maneira divertida e atraente


de ensinar. Os estudantes de então podiam compreender verdades de difícil
entendimento por meio da moral das histórias que ouviam. Mais tarde, depois
que a arte de contar histórias caiu em desuso, filósofos judeus – tais como
o famoso Maimônides – passaram a falar em condições mais abstratas. Qual
modo de ensinar está mais correto? – Aquele que transmitir melhor a essência
para o estudante, e cada estudante é diferente. Neste livro faremos uso de
ambos, porque cada um tem seu lugar.

Finalmente, gostaria de destacar que, embora o tema da morte e do


sofrimento possam parecer depressivos, ao longo dos séculos os judeus – por
mais estranho que isso possa parecer – têm considerado isto algo louvável
e inspirador. O judaísmo é uma religião cuja principal oração de luto é um
poema – não de lamento ou de tristeza, mas de louvor a Deus. Os judeus
enlutados recitam uma oração conhecida como Cadish depois da morte de um
ente querido. Ela começa assim: “Que o Seu grande Nome seja exaltado e
santificado no mundo que Ele criou conforme Sua vontade.”

Ao ouvir essa oração em um funeral, um participante não-judeu certa


vez me fez uma relevante observação: “Se os judeus podem louvar a Deus até
mesmo na presença da morte, eles devem saber algo que o resto do mundo
não sabe.”

É verdade. O judaísmo antigo nos ensina como reconhecer o grande


nome de Deus e o Seu amor por nós até mesmo nos momentos mais terríveis.
Este afirma que há respostas ricas e inspiradoras à derradeira questão: Se Deus
é bom, por que a vida é tão ruim?

Junte-se a mim ao iniciarmos a mais importante jornada espiritual que


existe – a busca pela serenidade em face da adversidade. E saiba que na
sabedoria acumulada ao longo das épocas há uma solução, testada pelo tempo,
para transformar desespero em esperança e pesar em fé em um mundo melhor.
PARTE 1
POR QUE COISAS RUINS
ACONTECEM ÀS PESSOAS BOAS?

CAPÍTULO 1
O DILEMA DE JÓ

“Na terra de Uts viveu um homem chamado Jó ...” 1

Assim começa um dos mais famosos relatos bíblicos, a história de um


homem bom e piedoso que, até mesmo quando acometido pela calamidade e
pela tragédia, jamais hesita na sua submissão a Deus.

Quando começa a narrativa, Satã duvida da fé de Jó e diz a Deus que


a devoção deste se deve unicamente às suas bênçãos: Jó é saudável, rico e
feliz, mas se sua fortuna fosse revertida, Satã sugere astutamente, sua fé não
resistiria ao teste. Em resposta, Deus permite que Satã teste Jó, e ele o faz da
forma mais cruel. Jó fica sem dinheiro. Seus filhos morrem. Ele é acometido por
uma doença terrivelmente dolorosa. E ainda assim se recusa a amaldiçoar Deus.
Em vez disso, ele declara: “O Eterno deu e o Eterno tomou. Seja abençoado o
Nome do Eterno.”2

Os amigos advertem Jó para se arrepender dos seus pecados, insistindo


que suas tragédias devem ser um castigo Divino pelos erros por ele cometidos.
Por que outro motivo, eles declaram, poderia ele estar sofrendo deste modo?
“Quem teria perecido sendo inocente?” – eles lhe perguntam. “Ou quando foi
o justo abatido?”3 – mas Jó sabe que nada fez de errado e recusa-se a se
arrepender. Ele suplica a Deus para explicar por que este mal o acometeu.
No fim, Deus recompensa Jó por sua firmeza e restaura sua riqueza em
dobro, sua família e sua saúde. Os amigos de Jó são castigados por terem
aumentado a sua aflição, e a história tem um final feliz com Jó vivendo em
contentamento até os 140 anos.

Mas Jó nunca obtém uma resposta. A única explicação de Deus para o


seu sofrimento foi lhe dirigir uma série de perguntas: “Onde estavas quando
construí as fundações da terra?... Quem pode, com sabedoria, contar as nuvens
do céu, e quem pode fazer verter as botijas do céu?... Queres caçar a presa
para a leoa ou satisfazer o apetite de seus filhotes?... É por tua sabedoria que
se eleva o falcão e abre suas asas, voando para o sul?”4 Em outras palavras,
Deus parece estar dizendo a Jó: “Eu dirijo este mundo vasto e complexo, e você
possivelmente não consegue entender as inúmeras razões pelas quais Eu faço
o que faço.”

E nós ainda continuamos tentando. E é inevitável que surja o nome de


Jó quando lutamos para entender por que Deus permite o mal no mundo, ao
perguntarmos a antiga questão: Por que coisas ruins acontecem às pessoas boas?

Surpreendentemente, esse relato pode muito bem ser uma ficção. Jó


nunca existiu, de acordo com muitos dos Sábios do Talmud.5 Então, por que ele
está na Bíblia?

Embora Jó seja talvez o único herói imaginário entre as personalidades


bíblicas, ele é ao mesmo tempo o mais universal de todos eles. Ele é o pai que,
inexplicavelmente, perde seu trabalho e não tem meios de manter sua família.
Ele é a mãe que acabou de saber que seu filho tem câncer terminal. Ele é o
sobrevivente do Holocausto que ainda acorda gritando no meio da noite. Ele
sou eu, ele é você.

É por isso que o livro de Jó não é de fato a história de uma figura trágica
do passado. O livro de Jó trata de homens e mulheres do século 21 que tentam
compreender as circunstâncias injustas de suas vidas ao mesmo tempo que
lutam para se segurar em suas convicções. Acima de tudo, o livro de Jó lida com
um dilema que, cedo ou tarde, cada um de nós tem que resolver em nossas
vidas. Este dilema é a aparente contradição entre três suposições básicas:
* Deus é justo. Ele julga a todos nós com correção e imparcialidade. Ele
recompensa os bons e pune os maus.

* Deus é Todo-Poderoso. Ele pode fazer qualquer coisa. Nada ocorre no


mundo que não seja pela Sua vontade. De fato, tudo o que acontece faz parte
do Seu plano.

* Jó é um homem bom.

Agora, visto que tudo vai bem para Jó – ele é saudável e rico –, podemos
acreditar simultaneamente nessas três afirmações sem dificuldade. Mas quando
o sofrimento de Jó começa, quando ele perde suas posses, sua família e sua
saúde, passamos a ter um problema: não podemos mais compreender o sentido
das três proposições simultaneamente; agora podemos afirmar quaisquer duas
delas somente se negarmos a terceira.

Se Deus é, ao mesmo tempo, justo e Todo-Poderoso, então a terceira


declaração deve estar errada – Jó não é um homem bom; ele é um pecador
e merece o que está lhe acontecendo. Mas se Jó é bom e, apesar disso, Deus
provoca o seu sofrimento, então Deus não pode ser justo. Ou se Jó é bom e
Deus não é responsável pelo seu sofrimento, então Deus não pode ser Todo-
Poderoso.

A ideia de que as três suposições sejam verdadeiras parece ser impossível.


Então qual delas está errada? Qual das três teremos que sacrificar no altar da
realidade? Eis a questão.

DEUS É JUSTO?
Para muitos, a conclusão mais lógica é que Deus não é justo. Ele é caprichoso,
talvez até mesmo mau. De fato, esta era a visão de mundo que prevalecia nos
tempos antigos, quando os povos adoravam deuses como Chacmool, o deus maia
da fertilidade, ou o deus Nergal, da Mesopotâmia, precursor do nosso Satã. Para
esses deuses eram sacrificados escravos, virgens e, até mesmo, seus filhos –
tudo o que fosse necessário para apaziguar os deuses.
Para alguns, questionar a justiça de Deus assume uma forma um pouco
diferente: embora Deus seja bom, Ele deve ter um oponente que não o é, e
que muitas vezes prevalece. Esta visão conduz inevitavelmente ao dualismo, à
convicção de que há dois deuses – um deus da bondade e outro do mal.

Esta é uma das mais antigas maneiras de entender o Divino e encontrar


uma resposta racional à dificuldade teológica do mal. O zoroastrismo – a religião
predominante em boa parte do Oriente Médio desde a época do Império Persa
até o advento do Islã – aceitava esta visão. Nós ainda vemos vestígios disto
naquelas formas de cristianismo que designam poderes sobrenaturais e quase
Divinos a Satã, o inimigo de Deus. (Em contrapartida, o judaísmo vê Satã como
um servo de Deus cuja função é criar escolhas entre o bem e o mal, de modo
que possamos exercitar o nosso livre-arbítrio.)

O VERDADEIRO SIGNIFICADO DO MONOTEÍSMO


Abrahão, o primeiro monoteísta, ensinou-nos que há um só Deus. Ao
final da sua história em Gênesis, a Bíblia nos diz: “E Abrahão era velho, entrado
em dias, e o Eterno o abençoara em tudo.”6

Será mesmo que Deus o abençoara em todas as coisas? Ele não o colocara
em meio a dez testes difíceis, dos quais o mais desafiador fora o pedido para
sacrificar o seu próprio filho? Será que Abrahão não teve que vagar por todo
o Crescente Fértil, suportar a fome e defender os membros da sua família de
agressores? Ele não acabara de enterrar sua amada esposa Sara, justamente
nos versículos que precedem esta declaração de que fora abençoado “em tudo”?

Mas Abrahão fora abençoado em todas as coisas porque ele entendeu


que um Deus bom só faria coisas para o seu benefício. Ele viu todo teste,
toda dificuldade, como uma oportunidade para seu autodesenvolvimento –
um veículo para a construção do caráter, para o fortalecimento da fé, para se
aproximar de Deus. E foi por isso que ele considerou tudo o que lhe aconteceu
como uma bênção.
Da época de Abrahão em diante, os descendentes e seguidores do
grande patriarca proclamaram a unicidade de Deus. A oração fundamental do
judaísmo declara: Shemá Israel, Adonai Elohênu, Adonai Echad – “Escuta Israel! O
Eterno é nosso Deus, o Eterno é um só!” Um judeu praticante deve repetir essa
oração duas vezes por dia, em todos os dias da sua vida. E estas são as últimas
palavras que ele deve pronunciar, se for possível, no seu leito de morte.

A pergunta é óbvia: Não será este um modo estranho de expressar a


unicidade de Deus? Se Deus é um só, por que Ele tem dois nomes? Por que
ele é chamado de “Eterno” e de “Deus” – Adonai e Elohênu (a forma possessiva
de Elohim)?

Nesta expressão mais básica do monoteísmo é colocada e respondida a


própria luta do homem para entender a aparente contradição entre o bem e o
mal. Deus é um só, mas Ele tem dois atributos diferentes. Da mesma maneira
que eu sou uma só pessoa, embora seja conhecido em momentos diferentes
como rabino Benjamin ou papai, dependendo do papel que eu esteja exercendo
– do mesmo modo, Deus é alternadamente conhecido como Adonai e Elohim,
dependendo da Sua função e da natureza do Seu relacionamento naquele
momento em particular.

Há momentos em que Ele se apresenta para nós como um pai amoroso


e nos transmite bondade e misericórdia; o nome Dele é então Adonai, que
carrega em si o Seu atributo de bondade. Em hebraico, costumamos dizer:
Baruch Hashem! – “Graças ao Nome (do Eterno)”, porque este é o nome que dá
ênfase à Sua misericórdia.

Mas há outros momentos em que Ele Se apresenta para nós como um rígido
juiz, determinando a sentença de acordo com a Sua lei e nos punindo por nossas
infrações. Então o Seu nome é Elohim, disciplinador rígido e legislador implacável
do universo. É por isso que, com toda razão, quando estamos angustiados e
fazemos nossas preces, nós as endereçamos a Adonai, e não a Elohim.

No entanto, embora nós O descrevamos por Seus dois atributos, sabemos


que, na verdade, ambos são aspectos de um mesmo Criador amoroso. Aquele
que aparece como um rígido disciplinador está agindo somente com a motivação
de um pai amável e atencioso. Em outras palavras (parafraseando): “Escuta
Israel: Adonai e Elohênu é, de fato, Adonai Echad, um único Deus!”

Portanto, a doutrina mais básica do judaísmo determina que, dentre as


nossas três suposições, não podemos rejeitar a primeira. Deus é justo, ético e
bom. A sua própria essência é Adonai, inclusive quando Ele parece ser Elohim;
a aspereza aparente é apenas uma camuflagem para o amor e a preocupação
de Deus.

DEUS É TODO-PODEROSO?
Sigamos, então, para a segunda suposição; talvez seja esta que esteja
errada. Talvez Deus não seja Todo-Poderoso. Em Quando Coisas Ruins Acontecem
às Pessoas Boas, Harold Kushner assume esta posição. Ele discute que preferiria
“diminuir” Deus ao dizer que Ele é impotente para evitar que coisas ruins
aconteçam em vez de pensar mal de Deus por Ele causar sofrimento. Este seria,
então, o menor dos males. Inundações, incêndios e furacões não são “atos de
Deus”, como as companhias de seguros costumam chamá-los, mas eventos
fortuitos. Deus está chorando conosco porque Ele é incapaz de aliviar a nossa
dor. Não há nada que Ele possa fazer! O mundo como Ele criou funciona por
si mesmo. A natureza é fortuita e cega. Bactérias e vírus não fazem qualquer
escolha moral sobre quem eles infectarão. Os cromossomos se transformam ao
acaso, levando ao nascimento de uma criança deformada. Máquinas falham e
aviões caem sem motivo nem razão. Deus foi a “Primeira Causa”; mas, após
a Criação, Ele não opta mais – ou nem mesmo tem capacidade para interferir.

O judaísmo tradicional rejeita vigorosamente essa visão. Às vezes Deus


pode limitar deliberadamente o Seu poder de ação para nos conceder o livre-
arbítrio, mas Ele nunca é fraco ou impotente. O poder de Deus e o envolvimento
pessoal e direto Dele no mundo estão expressos já no primeiro dos Dez
Mandamentos: “Eu sou o Eterno, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da
casa dos escravos” (Êxodo 20:2). Deus não Se identifica como o Criador dos
céus e da terra, que colocou o mundo em movimento e então o deixou para
desenvolver-se aleatoriamente. Deus Se anuncia como o planejador das Dez
Pragas que destruíram a resolução egípcia de escravizar os israelitas. A fim de
libertar o Seu povo, Ele derrotou o mais poderoso império da Terra.

Mas Deus Se comunica ainda mais claramente do que nas palavras


explícitas do Decálogo. Em primeiro lugar, nos 19 capítulos que precedem os
Dez Mandamentos, a Bíblia relaciona com riqueza de detalhes o sofrimento dos
israelitas no Egito e a sua milagrosa salvação. Essa lembrança adicional de que
Deus foi o redentor deles parece desnecessária. Além disso, parece redundante
dizer “da terra do Egito” e, em seguida, “da casa dos escravos”, como se
precisássemos de maior esclarecimento. Os Dez Mandamentos são considerados
o resumo mais conciso do judaísmo; então por que “terra” e “casa”?

Por meio dessa dupla expressão, o primeiro dos Dez Mandamentos nos
ensina, na realidade, uma ideia absolutamente importante sobre o modo pelo
qual Deus está envolvido no mundo. Há aqueles que poderiam estar dispostos
a admitir que Deus tem um papel na história, mas consideram impossível
acreditar que a Sua preocupação se estende além das nações, a fim de incluir
cada indivíduo. Na opinião deles, Deus está disposto a se ocupar das “grandes
tarefas”, como o destino de um povo inteiro, mas certamente não com o que
acontece a cada família em particular. Teologicamente, eles não têm problema
em aceitar Deus como Aquele que levaria todos os judeus para fora da “terra
do Egito”; o que eles têm dificuldade em acreditar é que Deus estivesse tão
envolvido em detalhes a ponto de se preocupar também com cada “casa dos
escravos”. Terra, sim; mas casa, não. O Êxodo demonstrou que Deus não
apenas salvou o povo judeu, mas também cada judeu e judia. É por isso que,
depois de deixarem o Egito juntos, como uma nação, os judeus receberam a
ordem para marcar os batentes das portas de suas casas. Foi dito a eles para
sacrificar um cordeiro – um deus egípcio – a fim de provar a rejeição deles pela
idolatria. Eles tiveram que levar o sangue daquele cordeiro e espalhá-lo nos
batentes das suas portas a fim de reconhecer publicamente o seu compromisso
e a sua confiança em Deus. Se eles fizessem isso, Deus prometera que cuidaria
de cada moradia e faria com que o anjo da morte “passasse por cima” das casas
daqueles que escolhessem se identificar com Ele.
Sim, Deus conhecia cada endereço, cada residente. Naquela imensa
demonstração do Seu poder para mudar a história, Ele também demonstrou a
forma mais íntima de Sua preocupação. Deus não apenas interveio para salvar
um povo, mas para salvar 600.000 indivíduos – todos, e cada um deles, um
precioso microcosmo do mundo inteiro e um filho amado do Seu Criador.

Para comemorar esse fato incrível, até hoje em dia os judeus celebram
a festa de Pêssach (a Páscoa judaica). Em um jantar denominado de Sêder
(“Ordem”), a história da libertação dos israelitas é lida e revivida. O que os pais
tentam ensinar aos seus filhos é que, para todo evento da vida, seja grande ou
pequeno, há uma razão, porque o “princípio da ordem Divina” governa tudo o
que acontece.

Portanto, nós também não podemos rejeitar a segunda das três


suposições: Deus é Todo-Poderoso. Ele é o autor da história – e a Sua máxima
Divina não é “que cada um cuide dos seus problemas”.

JÓ É BOM?
Como você pode ver, resta apenas uma suposição para explicar o enigma
da aflição de Jó: afinal de contas, ele devia ser uma pessoa ruim. Você deve se
lembrar que os amigos de Jó também chegaram a essa mesma conclusão. É o
mesmo tipo de lógica que, notadamente, encontrou eco depois do Holocausto
por aqueles que assinam embaixo do que eu denomino “revisionismo teológico
do Holocausto”. Francamente, essa é uma abordagem considerada, por mim,
até mais perigosa e desprezível do que a visão que afirma que o Holocausto não
aconteceu. Esta última é facilmente refutável; a primeira condena aqueles que
não tiveram qualquer oportunidade para responder por si mesmos.

Afirmar que as vítimas mereceram o seu destino me deixa constrangido.


Aquelas 6 milhões de pessoas não só foram torturadas e assassinadas, e não
só tiveram tudo o que lhes era precioso destruído e profanado como, agora,
após suas mortes, suas memórias são profanadas por aqueles que dizem:
“Eles devem ter merecido isto.” É possível que 6 milhões de homens, mulheres
e crianças tenham merecido um destino assim? Eles eram assim tão ruins?
Inclusive as crianças?

UMA EXPLICAÇÃO ALTERNATIVA


Será possível que todas as três suposições estejam corretas, e que exista
um outro modo de resolver o dilema que Jó nos apresenta?

A resposta é... sim.

CAPÍTULO 2
REPREENSÃO E CULPA

A fim de encontrarmos a solução para o dilema de Jó, devemos nos voltar


para a antiga sabedoria do Talmud.

Ao colocarmos a questão “se uma pessoa sofre, isso significa que ela
merece sofrer?”, nós obtemos imediatamente duas respostas aparentemente
contraditórias.

No Tratado Baba-Metsia,7 ao fazer uma exposição a respeito do dano


que pode ser infligido com palavras, o Talmud explica o que a Bíblia quer dizer
quando condena o pecado de “oprimir um estrangeiro”, e oferece este exemplo:
“Se alguém é visitado pelo sofrimento, afligido por uma doença ou enterrou
seus filhos, não se deve falar com ele do modo como os companheiros de Jó
falaram com ele: ‘... Lembra, eu te peço. Quem teria perecido sendo inocente?’”

O Talmud condena claramente os amigos de Jó que lhe disseram que


ele devia ter cometido algum crime para merecer seu sofrimento. Os rabinos
classificaram o comportamento deles na categoria daqueles que oprimem os
outros com palavras.
Mas, no Tratado Berachot,8 o Talmud ensina: “Se alguém vê que um
sofrimento doloroso o acomete, deve examinar a sua conduta, pois está dito:
‘Porque Eu te dou uma boa instrução; não abandones Meu ensinamento’.” Em
outras palavras, Deus nos dá “ensinamentos” na vida cuja mensagem devemos
interpretar. Nosso sofrimento pode bem ser uma consequência das nossas
transgressões.

Portanto, o que devemos fazer com essas duas passagens talmúdicas


aparentemente contraditórias? Será que o sofrimento é uma consequência
merecida da transgressão, ou as duas coisas não têm qualquer conexão entre si?

Na primeira fonte somos advertidos a não chegar à mesma conclusão dos


amigos de Jó, de que alguém que sofre está sendo punido por algo que fez de
errado. Por outro lado, na segunda passagem é dito a nós que, se um indivíduo
é visitado por uma tragédia, ele mesmo deve tentar entender o que fez de
errado. Como podemos reconciliar essas declarações diametralmente opostas?

Na verdade, não há aqui uma contradição de fato. Em ambos os exemplos,


o sofrimento pode ou não ser em consequência das ações da pessoa. Mas há
uma diferença básica entre usar a tragédia para encontrar o erro dos outros e
fazer com que a tragédia nos ilumine com respeito às nossas próprias falhas.

O Talmud diz claramente que nenhum indivíduo pode julgar qualquer


outro e deduzir, diante da mera presença do sofrimento, que isto é o castigo de
Deus pela transgressão; isso pode ou não ser verdade. Alguém pode sofrer e,
ainda assim, ser uma boa pessoa. Até mesmo um indivíduo piedoso conhece
a dor, e até o devoto sofre uma enfermidade. Há toda uma série de razões
que poderiam explicar isto, como iremos descobrir, e nenhuma delas reflete a
respeito da virtude da pessoa que está sofrendo. Não devemos ousar condenar
e difamar um ser humano decente.

Mas se você é aquele indivíduo que está sofrendo, você tem a obrigação
de se perguntar: O que eu posso ter feito para merecer isto? O que eu poderia
ter feito para evitar isto? É possível que o meu sofrimento seja um castigo de
Deus? Ou é possível que o meu sofrimento seja talvez uma mensagem, um
alerta diante do qual eu tenha que reagir?
Dito de maneira simples, o Talmud nos ensina a reagir ao sofrimento
de duas maneiras diferentes, dependendo se estamos olhando para os outros
ou para nós mesmos. A resposta adequada para o sofrimento dos outros é
a compaixão; somos proibidos de condenar. A reação correta para o nosso
próprio sofrimento é a introspecção; talvez Deus esteja simplesmente usando
um método doloroso para nos transmitir uma importante verdade.

E como podemos saber se o nosso próprio sofrimento é um castigo


Divino ou uma advertência Divina? Quando Deus intervier, quando Ele estiver
lhe enviando uma mensagem, você saberá. Como? Há um modo seguro de
saber – Deus é muito específico e não deixa dúvidas sobre o Seu significado se
você simplesmente pensar um pouco.

ALTO E CLARO
Darei alguns exemplos muito simples de mensagens inconfundíveis de
Deus que envolvem pessoas que conheço.

Uma jovem mulher queria estudar em Israel, mas o custo da viagem –


1.450 dólares – estava além das possibilidades dos seus pais. O pai rezou pela
ajuda de Deus, porque pensava que esta era uma coisa importante para a sua
filha. Então ele teve a ideia de retirar algumas tranqueiras que estavam atrás
de uma loja de sua propriedade e vendê-las. Talvez, ele esperava, isto pudesse
levantar uma parte do dinheiro necessário. Ao final da venda, ele totalizou o
valor que havia obtido – exatamente 1.450 dólares! Era impressionante demais
para ser uma coincidência. Obviamente, Deus aprovou a sua decisão e fez com
que isso pudesse ser percebido.

Na família de um amigo meu, o avô tinha por tradição financiar todos os


bar-mitsvás dos seus netos. Quando o filho do meu amigo estava se preparando
para celebrar a sua entrada no mundo adulto, o avô, é claro, quis cobrir os
custos, como era seu costume. Meu amigo discutiu com ele, mas o avô não
renunciou a isso. Infelizmente, alguns poucos meses antes de o bar-mitsvá se
realizar, o avô morreu. Meu amigo estava com dificuldades para pagar pelo bar-
mitsvá do seu filho, mas, ao se aproximar a data, comprou um bilhete de loteria
e ganhou. O impressionante é que, quando recebeu a conta do serviço de bufê
no valor total de 2.365 dólares, ele verificou que os seus ganhos com a loteria,
deduzidos os impostos, eram exatamente também de 2.365 dólares. “Afinal de
contas, as orações do avô foram atendidas”, ele disse. “Ele pagou as despesas
do bar-mitsvá!”

Mais uma vez, a correlação era muito exata para ser simplesmente
aleatória. Como você pode ver, há momentos em que Deus deseja que
reconheçamos claramente que Ele está intervindo em nossas vidas. Para isso,
Ele utiliza o que eu chamaria de “a precisão da impossibilidade estatística”.
Aquilo que é muito forçado para ser coincidência não deve ser outra coisa senão
a intervenção Divina. Como diz esta profunda observação, “a coincidência é
simplesmente o modo que Deus escolheu para permanecer anônimo”.

Embora eu estivesse atento a esse conceito, não estava preparado para


o momento em que isso aconteceria de forma tão clara comigo.

Em uma viagem para a Europa Oriental, a fim de visitar os lugares onde


viveram meus antepassados e os campos de concentração onde muitos da minha
família pereceram, eu passei uma manhã de Shabat em uma sinagoga de Varsóvia.
O costume é conceder a algumas pessoas da congregação a grande honra de
subir para ler a Torá e recitar as bênçãos apropriadas. Eu não me identifiquei
como rabino, mas por alguma razão, dentre todos os turistas e residentes locais,
eles me selecionaram como um dos sete que receberiam essa honra.

Também é um costume das pessoas a quem é concedida essa honra


fazer publicamente uma doação para a sinagoga. Assim que concluí minhas
bênçãos e estava bastante emocionado pela percepção do lugar onde eu
estava e de quantos grandes líderes judeus devem ter me precedido nesse
mesmo local, senti a necessidade de fazer uma contribuição muito generosa.
Entretanto, eu hesitei, porque não queria passar a imagem de um rico turista
americano, envergonhando todas as demais pessoas que haviam sido honradas
e cujas contribuições estavam limitadas por suas condições financeiras menos
privilegiadas. Em meio ao meu conflito interno entre esses desejos contraditórios,
decidi que uma doação de 36 dólares seria o mais correto a fazer – o suficiente
para ser significativa como uma doação e sem ser exorbitante como uma
expressão do meu próprio ego. Pouco tempo depois de anunciada a doação,
ouviu-se um sonoro suspiro dos congregantes. Parecia que 36 dólares eram
uma verdadeira fortuna, se convertidos ao valor corrente dos zlotis poloneses.
O presidente se aproximou rapidamente de mim, perguntou-me onde eu estava
hospedado e, se eu concordasse, um comitê viria ao meu hotel imediatamente
após o final do Shabat para receber a tão generosa doação. É claro que
concordei, e cinco minutos após o término do Shabat, com o aparecimento
de três estrelas no céu, o comitê surgiu no saguão do hotel e me pediu para
efetivar minha doação. Eu lhes dei o dinheiro com alegria e me senti muito
gratificado pelo mérito de ser capaz de realizar uma boa ação, uma mitsvá.

Minha esposa e eu quisemos então saber o que havia para se fazer por
algumas horas de um sábado à noite em Varsóvia. O gerente do hotel nos disse
que havia um cassino nas redondezas e que essa era a única atividade que
estava à nossa disposição.

Inexperiente para jogar, parei logo na primeira máquina caça-níqueis


e, num impulso, depositei uma moeda. O que aconteceu em seguida foi
inacreditável. Luzes piscaram, sinos tocaram, as pessoas ao redor da sala
pararam o que estavam fazendo para ver o que havia acontecido. Levantei-me
surpreso ao ver o tanto de fichas que saía de dentro da máquina. Parece que eu
ganhara o prêmio principal, e tive que ser ágil em encher baldes e baldes com
meus ganhos. Concluí imediatamente que devia ter usado toda a minha cota de
sorte para aquela noite; então fui trocar as fichas por dinheiro.

O caixa colocou todas as fichas na máquina de contar e finalmente


retornou com o total. O valor total da soma que me foi passado pela mulher
do caixa era estarrecedor, e por um momento pensei que eu me tornara quase
um milionário. O que eu tinha esquecido era que o montante que ela contara
estava em moeda corrente polonesa, em zlotis. Ansiosamente, eu lhe perguntei:
“Quanto é isso em dólares americanos?”

Após um rápido cálculo, ela respondeu: “Ah, algo em torno de 36 dólares.”


Durante anos eu havia rezado para que tudo o que doássemos finalmente
retornasse a nós. Mas, desta vez, Deus fez isso de maneira tão exageradamente
clara que minha contribuição foi recompensada por seu equivalente exato.
Eu tinha ouvido relatos semelhantes de outras pessoas e sempre os tinha
considerado difíceis de acreditar. Agora eu soube em primeira mão que Deus
pode ser encontrado não apenas em sinagogas e templos religiosos, mas até
mesmo em Las Vegas, Atlantic City e num cassino de Varsóvia!

O PRINCÍPIO DA MEDIDA POR MEDIDA


Vamos supor agora que não se trate de um evento feliz como nos exemplos
anteriores. Há ocasiões em que, em vez da sorte, prevalece o infortúnio, e a
mão de Deus está claramente por trás disto. Quando é que uma mensagem
dolorosa de Deus é uma punição direta por erros cometidos?

O princípio é o mesmo: a correlação será precisa. Você será facilmente


capaz de relacionar o “castigo” com o “crime”; eles estarão claramente unidos
por conteúdo e contexto.

A Torá nos dá vários destes exemplos. Talvez o mais famoso ocorra no


livro do Êxodo. Como você deve se lembrar, os egípcios, em sua perseguição
aos israelitas, afogaram milhares de bebês judeus. Então, quando os israelitas
fugiram e o Mar Vermelho se abriu para lhes conceder uma passagem segura,
foram os perseguidores egípcios que se afogaram. Não há como negar a
conexão. Esta foi uma mensagem específica de Deus de que essa punição e
o crime que a provocou foram, sem dúvida, identificados pelo modo como os
egípcios foram destruídos.

Outro exemplo da Torá vem de uma história de Jacob, o último dos


Patriarcas. A fim de obter a bênção da primogenitura de seu pai Isaac – uma
bênção que ele sentia merecer e que já comprara anteriormente de seu irmão
Esaú –, Jacob enganou seu pai, que estava cego. Algum tempo depois, após
trabalhar para o seu tio Labão durante sete anos para ganhar a mão da sua
amada prima Rachel, ele se tornou vítima de um ato de enganação. Labão
trocou a noiva à última hora e substituiu Rachel por sua filha mais velha, Lea.
Aquele que enganara outros agora foi enganado. O destino – ou melhor, “o
dedo de Deus” – assegurou a retribuição por um erro, ainda que cometido por
uma pessoa, em outros casos, inocente.

No Talmud, esse princípio é conhecido como “medida por medida”,


significando que, de acordo com a justiça de Deus, a punição sempre
corresponde ao crime cometido.

É este o conceito que se faz presente com muita frequência em nossas


próprias vidas; basta que sejamos sábios o bastante para reconhecê-lo e
escutar sua mensagem. Há pouco tempo, um homem veio até mim com um
olhar constrangido em seu rosto. Duas semanas antes, eu abordara esse rico
homem de negócios para lhe pedir uma contribuição de 460 dólares a fim
de ajudar em uma situação que era literalmente uma emergência de vida ou
morte, mas ele me negou auxílio. Agora ele me confidenciou: “Rabino, quando
eu lhe disse não, eu sabia que estava errado. Um dia depois, alguns inspetores
vieram ao meu local de trabalho – algo que nunca me acontecera antes – e
me cobraram um total de 460 dólares por infrações que, depois, mostraram-se
equivocadamente atribuídas a mim. Imagino que Deus só quis me mostrar que
eu não merecia mais aquele dinheiro. Eu só queria tê-lo entregado a você.”

Portanto, podemos confiar no princípio de “medida por medida” sempre


que este nos for transmitido por meio de um sinal claro. Quando sofremos, isto
pode, ou não, ser consequência de um erro cometido, mas ninguém mais tem
o direito de fazer esse julgamento. Todavia, o próprio sofredor deve fazer uma
reflexão e verificar se há alguma correlação. Será que Deus está lhe enviando
uma mensagem específica, inconfundível? Se o castigo corresponde ao crime, a
dor é um chamado para o arrependimento!

ADVERTÊNCIA: TENHA CUIDADO!


Preciso aqui acrescentar algumas palavras de precaução. Não reaja
exageradamente na sua autoavaliação. A culpa judaica é o tema central de
muitas piadas, mas não há nada de engraçado quando a culpa irracional
provoca danos irreparáveis. A culpa fora de proporção em relação ao “crime”
não faz parte dos ensinamentos judaicos. No entanto, algumas pessoas – por
terem sido mal instruídas; por terem adquirido, de alguma maneira, uma ideia
confusa de Deus; por acreditarem que Deus, não importa como, fere-os “na
própria carne” – assumem equivocadamente um nível de culpa que é ilógico
e seriamente prejudicial. Ao confundirem suas pequenas falhas com crimes
capitais, elas se condenam a uma tortura autoimposta que vai muito além de
qualquer coisa que fosse decretada por um Deus compassivo.

Uma mulher que conheço, quando estudante universitária, era


sexualmente promíscua, mas não sentia qualquer culpa por isso na época.
Entre seus pares, durante a cultura hippie do “amor livre”, o sexo casual era
um comportamento normal. Após amadurecer, ela deixou aquele estilo de
vida para trás e tornou-se religiosamente comprometida. Quando, em uma
reunião social na sinagoga, ela conheceu o homem dos seus sonhos, não sentiu
necessidade de confessar a ele suas indiscrições da juventude. Após dois anos
de um casamento feliz, seu marido morreu num acidente de automóvel. O seu
pesar não teve limites. Ao procurar uma razão para a tragédia que a atingiu, ela
se convenceu de que Deus “matou” o marido dela a fim de castigá-la por seu
passado ilícito. Por fim, ela sofreu um colapso nervoso.

Obviamente, o modo como ela assumiu a sua culpa foi completamente


irracional. Como isso poderia, por mais que se possa imaginar, ser considerado
“medida por medida”? Infelizmente, reações extremas de culpa como esta são
comuns. Por isso, quero ser muito enfático: pessoas como essa mulher não
podem estar mais erradas! Se a sua perda foi de fato um castigo, esta, com
toda certeza, não correspondeu ao crime. Todavia, as pessoas que pensam
como ela se destroem, destroem suas famílias, seus companheiros e seus filhos
por causa de um nível de culpa que assumem sem qualquer fundamento. Já é
suficientemente ruim sofrer a tragédia inicial. Muito pior é criar outra tragédia
para si mesmo ao pensar que “eu devo ter merecido isso”, quando isto claramente
pode não ser verdade. Culpar-se a esse nível faz com que uma pessoa se sinta
totalmente não merecedora – não merecedora da vida, de ajudar o próximo,
de fazer qualquer coisa, de existir. Uma pessoa assim decidiu que, das nossas
três suposições, a terceira é a que está errada. “Eu não sou uma boa pessoa.
Um Deus justo e Todo-Poderoso me puniu por meus pecados.” No entanto,
já demonstramos que isto não era verdade no caso de Jó; e isto, com muita
certeza, nem sempre é verdadeiro no caso do sofrimento das pessoas.

Defender o contrário disso é ser culpado de acusar falsamente a si mesmo,


e esse ato de sustentar falso testemunho, seja contra si mesmo ou contra o seu
próximo, é expressamente proibido pelo nono dos Dez Mandamentos. Além do
mais, isto também envolve sustentar falso testemunho contra Deus, porque um
Deus justo estabelece a Sua punição – quando Ele faz isso – com justiça, de
acordo com o princípio de “medida por medida”.

RESUMO
Vejamos como estamos longe de responder à pergunta “Por que as
pessoas boas sofrem?”:

Devemos acreditar que Deus é bom e justo, e que Ele é Todo-Poderoso.


Acreditar no contrário é não ter mais um Deus para quem possamos rezar. Por
que rezar para um Deus que é impotente para responder? Poucos de nós, que
acreditamos em Deus, aceitaríamos essa visão.

Ao vermos outras pessoas sofrendo, devemos conter nosso julgamento.


Temos que lhes dar o benefício da dúvida, porque não sabemos por que isto
está lhes acontecendo. Mas se somos nós que estamos sofrendo, estamos
obrigados a nos ocupar de uma sincera introspecção: será que essa dor pode
ser uma mensagem de Deus?

Às vezes Deus nos envia uma mensagem dolorosa para o nosso próprio
bem, de forma que possamos viver nossas vidas de um modo melhor. Se você
encosta numa chama, o que acontece? Você sente uma dolorosa sensação de
queimado e afasta a sua mão antes que algum dano sério ocorra. Sofrer pode
ser esse tipo de mensagem. Mas você deve confiar que, se isto é assim, haverá
uma pista na mensagem. Você será capaz de perceber alguma ligação entre o
que lhe aconteceu e algo que fez de errado e que lhe faz sentir-se muito mal.
Por exemplo, se há alguns anos você enganou um cliente ou sócio nos negócios
e amanhã alguma pessoa lhe enganar, você terá uma correlação clara. Essa é
uma pista.

Porém, se não houver essa conexão, ou se o sofrimento parecer


completamente fora de proporção em relação a qualquer coisa que você possa
ter feito na vida, então não – eu repito, não – jogue a culpa sobre si mesmo.
Há muitas outras razões pelas quais você pode estar sofrendo, como veremos
nos próximos capítulos.

Notas

1. Jó 1:1 – 2. Jó 1:21 – 3. Jó 4:7 – 4. Jó 38–40 – 5. Baba Batra 15a – 6. Gênesis 24:1 – 7. Baba
Metsia 58b – 8. Berachot 5a.

No próximo volume da série de e-books


Se Deus é Bom Por Que o Mundo é tão Ruim?

Capítulo 3: O Princípio da Maior Prioridade

Capítulo 4. A Resposta de Deus

Não perca!
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CAPÍTULO 3
O PRINCÍPIO DA MAIOR
PRIORIDADE

“No princípio, ao criar Deus os céus e a terra, a terra era sem forma e
vazia, e havia escuridão sobre a face do abismo, e o espírito de Deus
pairava sobre a face das águas.”9

Estas são as sentenças de abertura da Bíblia que seguem adiante para nos
contar o dramático relato de como nós viemos à existência. Deve-se destacar
que, desde o início, nós recebemos uma pista muito importante de como Deus
irá relacionar a Sua Criação à nossa dor e sofrimento. A pista está numa palavra
hebraica incomum: merachéfet, que significa “pairava” e que só aparece duas
vezes em toda a Bíblia – aqui e no próprio fim do Pentateuco, no livro de
Deuteronômio.10 Ali, ao descrever aos israelitas o relacionamento de Deus com
Seu povo, Moisés compara Deus a uma águia que paira sobre seus filhotes.

O famoso comentarista bíblico Rashi esclarece a comparação ao explicar:


“A águia não pressiona o seu filhote, mas paira, tocando-o sem tocá-los.” Caso
a águia pousasse sobre seus filhotes, ela os sufocaria.

Na nossa sociedade, todos nós já testemunhamos a tragédia do amor


materno transformado em amor sufocante. Existem pais cujo amor esmaga o
filho, sufocando qualquer aspecto da sua iniciativa e liberdade, fazendo com
que ele se torne inteiramente dependente de seus pais pelo resto da sua vida.

Há uma velha piada que ilustra muito bem esse extremo da super
proteção: uma mulher salta de uma limusine diante de uma sofisticada loja de
departamentos, enquanto o motorista desce para carregar o seu filho de 10 anos
no colo. Um homem que passa na rua faz o seguinte comentário: “Puxa, que
tragédia, o garoto não pode andar.” A mãe escuta e responde, muito nervosa:
“O que você quer dizer com ‘não pode andar’? Ele pode, sim, mas não precisa!”

Para aprender a andar, uma criança precisa cair e se machucar. Depois


de muito tentar e após alguns inchaços e contusões, ela finalmente conseguirá
se manter em pé e dar um passo. Porém, a mãe descrita na piada era incapaz
de suportar ver seu filho sofrer. Por isso ela fez de tudo para que ele jamais
precisasse se sustentar sobre seus pés.

Obviamente, todas as mães e pais passam um longo tempo a assistir a


seus filhos aprendendo a andar. Você vê a criança se erguer, dar um passo e...
bum... ela cai e provoca uma horrível mancha roxa na perna. Diante disso, qual
é a sua vontade? Você quer agarrar a criança e lhe dizer: “Não faça isso de
novo!” Mas ela só aprenderá a andar se você deixá-la cair.

Pois esta foi a decisão adotada por Deus logo no início da Criação. Ele
permite que nós caiamos a fim de que possamos aprender a andar. Ele paira
sobre nós, protege-nos e não nos sufoca. Ele está ali, dirigindo, guiando,
auxiliando, mas não controlando.

Amar alguém significa permitir que aquela pessoa seja ela mesma. O
nome para esse aspecto do amor de Deus – a dádiva que Ele concedeu ao ser
humano para que possamos ser nós mesmos – é livre-arbítrio.

Se a humanidade não tivesse livre-arbítrio, nós ainda estaríamos no


Jardim do Éden, porque não teríamos escolhido desobedecer o mandamento
Divino de não comer da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Mas sem essa
liberdade de escolha, nossas vidas teriam sido um espetáculo de marionetes,
dirigido, coordenado e produzido pelo próprio Deus. Porém Ele não quis que
as coisas fossem desse jeito; então, em vez disso, concedeu ao ser humano o
livre-arbítrio e, logo que isso aconteceu, o ser humano tomou seus problemas
em suas mãos.

A primeira coisa que ele fez foi comer da árvore proibida, cujo preço foi
a mortalidade; esta, por sua vez, levou à dor e ao sofrimento.
Será que Deus desejava que o ser humano permanecesse no Jardim do
Éden e desfrutasse da felicidade reinante ali? A resposta é sim. Ele afirmou
claramente aos primeiros seres humanos o que aconteceria se eles comessem
da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, mas eles optaram por exercitar
o seu livre-arbítrio e cruzar uma passagem que trouxe consigo algumas
consequências muito graves.

Portanto, nós aprendemos de um dos primeiros relatos da Bíblia que,


às vezes, há coisas que ocorrem no mundo que Deus não quer ver acontecer,
mas que, não obstante, Ele permite que aconteçam. Se Deus fosse interferir o
tempo inteiro, Ele estaria nos sufocando e nos negando o livre-arbítrio.

LIBERDADE PARA MATAR


O próprio fato de Deus ter nos dado o mandamento de “Não matarás”
demonstra que temos a escolha de fazer isso ou não. Deus nos diz: “Não faça
isso, porque as consequências de um ato assim serão muito graves”, mas nós
ainda podemos fazer isso se quisermos.

Agora, se uma pessoa opta por assassinar outro ser humano, ela pode
ser bem-sucedida; todavia, é bem possível e provável que Deus não deseje que
a vítima morra: isto tem um peso muito importante para entendermos por que
coisas ruins acontecem às pessoas boas, como veremos logo.

Nós aprendemos no Livro do Êxodo11 a diferença entre assassinato


premeditado e morte acidental. A punição para o primeiro é a morte; a pena
para a última é o exílio para uma “cidade de refúgio” onde o culpado deveria
viver e estudar entre pessoas devotas antes de retornar ao lar.

O homem que comete assassinato está exercendo claramente o seu livre-


arbítrio, mas aquele que mata acidentalmente não está. De fato, a frase em
hebraico que é traduzida por “acidentalmente” diz literalmente: “Deus levou
isso à sua mão”. Somente a morte causada por acidente é da vontade de Deus;
o assassinato intencional não é.
Leve em conta que o sujeito que mata acidentalmente pode não ser uma
pessoa assim tão boa, e é por isso que Deus o escolheu para esse propósito.
É isso o que o Rei David nos ensina de um “antigo provérbio”: “Dos iníquos
procede a iniquidade” (1 Samuel 24:13), que os rabinos do Midrash12 explicam
com este relato esclarecedor:

Havia dois homens, um que cometeu assassinato e outro que matou


alguém por acidente. Não houve testemunhas, portanto nenhum deles teve
que sofrer as consequências dos seus atos – pelo menos por um período.
Passado um certo tempo, Deus fez com que os dois homens se encontrassem
em uma hospedaria. Ali, o homem que matara por acidente subiu numa escada
enquanto o assassino estava sentado debaixo dela. O homem no topo da escada
desequilibrou-se e caiu, matando o assassino que estava embaixo. Assim, Deus
puniu o assassino, e aquele que matou por acidente foi enviado à “cidade de
refúgio”, como aliás já deveria ter ocorrido anteriormente.

O que aprendemos é que não há como escapar das consequências das


nossas ações, ainda que, por algum tempo, tentemos seguir nossas vidas contra
a vontade de Deus por meio da nossa liberdade de escolha.

Agora temos uma resposta parcial para a nossa questão (e enfatizo a


palavra “parcial”, porque esta é uma questão tão complexa que devemos trafegar
por ela passo a passo): se não é da vontade de Deus, por que os homens
morrem? Porque se Deus tivesse que evitar que cada um fizesse algo que
pudesse levar um inocente a sofrer, isto significaria que Ele teria que proteger
as pessoas boas às custas do princípio do livre-arbítrio. Dada a escolha, Deus
opta por não ter escolha.

A isto eu chamo de “princípio da maior prioridade”. A prioridade de Deus


é que o ser humano tenha livre-arbítrio. Mas isso não quer dizer que, em última
instância, os desejos de Deus devam ser contrariados ou que a injustiça deva
prevalecer no mundo, porque Deus tem uma maneira de fazer com que tudo
se encaixe no fim. Todavia, isso pode sugerir que, a fim de exercer o seu livre-
arbítrio, o homem fará coisas desagradáveis aos olhos de Deus. Mais do que
isso, o ser humano fará coisas que provocarão dor em Deus.
O Talmud nos conta que há momentos em que Deus “chora”, “tem
esperança”, “aguarda ansiosamente”, “sofre”. Quando os Sábios do Talmud
usam essas palavras, eles estão naturalmente falando por meio de metáforas, a
fim de transmitir a ideia de que muitas vezes nossas ações não estão de acordo
com os desejos de Deus. Deus não disputa partidas conosco; Ele nos deu leis
para vivermos de acordo com elas, com consequências claramente explicitadas.
Mas, quando as escolhas de algumas pessoas provocam dor em outras, Deus,
que nos ama a todos, sofre conosco. Além disso, assim como a mãe se retorce
ao ver seu filho cair e se machucar, mas deixa isso acontecer porque sabe que
esta é a única maneira de a criança aprender a andar, Deus paira sobre nós,
observando ansiosamente, mas sem interferir nos momentos em que devemos
exercer o nosso livre-arbítrio.

A JUSTIÇA DE DEUS
No capítulo de abertura deste livro, nós nos recusamos a rejeitar a
posição de que Deus é justo e Todo-Poderoso. Então agora devemos perguntar:
Se Deus opta por limitar o Seu poder para que o ser humano possa exercitar o
seu livre-arbítrio, então como a justiça atua?

Eu conheço um caso em que um rabino e sua esposa foram envolvidos em


um gravíssimo acidente de automóvel provocado por um motorista embriagado.
Além de o rabino e sua esposa terem sido seriamente feridos, muitas outras pessoas
também foram afetadas indiretamente. Sua esposa quebrou um braço, o nariz e
sofreu uma fratura na coluna vertebral, o que fez com que fosse hospitalizada por
semanas. Ao longo da sua longa recuperação, muitas pessoas que dependiam do
seu amor e cuidado, incluindo seus pais idosos, também sofreram.

O rabino seguiu a nossa regra inicial de avaliar se esse doloroso


acontecimento poderia ser uma mensagem de Deus, mas foi incapaz de
encontrar qualquer correlação. Então concluiu que, se Deus quisesse puni-lo
por alguma má ação cometida, Ele certamente não teria feito tantas outras
pessoas sofrerem. Deus não quis que o seu carro sofresse um acidente, mas
Ele não interferiu nas escolhas do motorista embriagado.
Ainda assim o rabino reconheceu a presença de Deus na cena. Algum
tempo depois, ele escreveu a respeito do fato: “Deus estava nos corações
daqueles maravilhosos desconhecidos que interromperam suas viagens para
virem em auxílio de dois viajantes feridos que não conheciam. Deus estava
na determinação dos paramédicos que se dedicaram a ajudar outras pessoas
inclusive quando suas próprias vidas estavam em risco. Deus estava na sala de
emergência, atuando por meio de mentes treinadas, mãos habilidosas e palavras
de consolo. Deus estava nos corações das pessoas generosas que construíram o
hospital. E Deus estava nas orações das pessoas que se preocuparam conosco.”

Você pode dizer que tudo isso é muito bonito, mas, se o rabino não
mereceu esse sofrimento e Deus está chateado e triste por isso ter acontecido,
será que Ele não tem alguma obrigação de fazer com que a justiça seja feita?
Ou Ele pode simplesmente ignorar o que aconteceu?

A resposta, obviamente, é que Deus deve estar envolvido de algum modo.


Deus “deve” isso ao rabino; Ele tem a obrigação de retificar o dano imerecido
sofrido pela vítima nessa situação.

Do meu ponto de vista, todos nós temos uma espécie de conta bancária
com Deus. De vez em quando devem ser feitas algumas retiradas. Algumas
vezes não queremos fazê-las, mas elas são feitas e, então, Deus passa a dever
a nós.

Você pode dizer para Deus: “Eu teria preferido não estar naquele acidente
de carro. Eu não precisava desta perna quebrada bem agora, para impedir o
bom trabalho que estou fazendo.”

E Deus poderia responder: “Você está certo; você não precisa disso, nem
merece. Eu não queria que isso lhe acontecesse. Mas uma vez que aconteceu,
serei justo com você; farei as pazes contigo o mais rapidamente possível.
Para começar, farei com que entenda algo a respeito das demais pessoas que
talvez você jamais tenha entendido até este momento. Irei lhe ensinar novas
perspectivas a respeito da vida em decorrência desse acidente de carro, de
modo que, no final, você diga que o que lhe aconteceu foi uma bênção.”
Receber telefonemas de solidariedade e preocupação, ver de uma hora
para outra pessoas simples fazerem coisas extraordinárias por você, ganhar
consciência da bondade dos indivíduos, tudo isso vale alguma coisa. Não estou
dizendo que elas justificam coisa alguma, mas Deus é justo – quando Ele lhe
deve, Ele lhe paga. A retribuição virá integralmente, e você pode contar com isso!

EXCEÇÕES À REGRA
Deus decidiu que devemos ter livre-arbítrio. Mas vamos supor que, por
meio do exercício do livre-arbítrio de uma única pessoa, todos nós deixemos
de existir. Um homem enlouquecido aperta o botão que pode detonar um
holocausto nuclear e destruir o planeta. Deus iria interferir?

Eu tenho certeza de que sim. Deus não teria outra escolha, porque Ele Se
comprometeu, de forma irrevogável, com a nossa sobrevivência.

Esta é uma das lições mais importantes do livro bíblico de Ester. Deus
prometeu a Abrahão e a Moisés13 que o povo judeu seria uma “nação eterna” e
jamais seria destruído. No entanto, durante a época do Império Persa surgiu um
ministro muito poderoso, Hamán, que odiava os judeus e decidira destruí-los.
Além disso, parecia que, além do seu livre-arbítrio, ele também tinha os meios
para ser bem-sucedido nessa tarefa.

Se Deus tivesse permitido que Hamán exercesse o seu livre-arbítrio,


Ele teria que compensar o povo judeu em algum momento posterior. Todavia,
uma vez que o crime pretendido não corresponde apenas a um assassinato,
mas a um genocídio, não restaria mais povo judeu para ser compensado. Isso
simplesmente não poderia acontecer, pois entra em conflito com a própria
promessa de Deus, que deve ter prioridade.

Assim, o milagre de Purim tinha que acontecer – e é muito interessante


perceber como Deus fez com que acontecesse. A rainha Ester transformou-
se no próprio instrumento para a salvação do povo judeu. No início, ela não
estava certa de que estivesse preparada para os perigos da missão, até o seu
tio Mordechai lhe dizer: “Porque, se de todo te calares agora, de outra parte se
levantarão para os judeus socorro e livramento...”14 Então, inclusive Ester teve a
chance de exercer o seu livre-arbítrio, de participar ou não da salvação Divina.
Se ela tivesse decidido não participar, Deus teria encontrado outra pessoa ou
outro método. Mas Ester, obviamente, participou, e além do plano de Hamán
fracassar, ele próprio acabou sendo morto.

De modo semelhante, Hitler foi outro agente livre que pretendia destruir
todos os judeus. Seu plano quase foi bem-sucedido. Ele assassinou seis
milhões, mas fracassou em levar a cabo a sua “Solução Final”. Não faltam
relatos de resgates milagrosos durante a guerra, e Yaffa Eliach recolheu quase
uma centena deles em seu livro Hassidic Tales of the Holocaust (Relatos Chassídicos
do Holocausto). Estes foram os beneficiários da intervenção Divina, necessária
para que Deus evitasse a negação da Sua promessa para os Patriarcas.

Um dos relatos mais impressionantes conta a respeito de uma terrível


manhã no campo de Janowska, quando os internos judeus, extenuados pelo
trabalho pesado, pela fome e pelas doenças, foram reunidos ao redor de uma
enorme cova, que viria a ser, em breve, a sua sepultura comum. Divertindo-
se de modo cruel, os nazistas disseram-lhes que, se alguém fosse capaz de
saltar por cima da cova – uma tarefa impossível –, a vida dessa pessoa seria
poupada. Um rapaz que estava de pé ao lado de um velho rabino sugeriu que
eles deveriam desafiar os nazistas e se recusar a saltar. Mas o rabino disse:
“Não, nós devemos saltar.” E então eles fecharam os olhos e saltaram.

Quando abriram os olhos novamente, estavam do outro lado da cova,


sãos e salvos. A única forma possível de terem feito isso teria sido voando.
“Diga-me, rabino, como você fez isso?”, perguntou o jovem impressionado.

“Eu imaginei que me apoiava sobre os casacos do meu pai, do meu avô
e do meu bisavô, de abençoadas memórias”, respondeu o rabino. E então ele
perguntou ao rapaz: “Conte-me, meu amigo, como você alcançou o outro lado
da cova?”

O rapaz sorriu: “Eu me apoiei em você.”


É verdade, Deus não salvou a todos do Holocausto. Ele não fez milagres
o tempo inteiro, nem para todas as pessoas. Mas cada um que morreu fez uma
retirada da sua conta bancária, e Deus deve a essas pessoas nada menos do
que suas vidas. Como é possível que elas sejam pagas? Veremos em breve.

EM RESUMO
No início deste livro decidimos que a afirmação de que Deus é Todo-
Poderoso é verdadeira. Deus dirige o mundo. E não nos desviamos dessa
posição neste capítulo. Se um tijolo cai do alto de uma construção e mata
um pedestre; se um terremoto destrói um edifício e pessoas são mortas; se
ocorre algum acidente, devemos assumir que foi o desejo de Deus que fez
essas coisas ocorrerem.

Mas Ele também decidiu, logo no início da Criação, que iria “pairar”
sobre os seres humanos. Ele nos levaria a sermos nós mesmos. Sempre que a
liberdade de escolha de um ser humano está envolvida, Deus, necessariamente,
adota a política de não Se intrometer.

É por isso que, em circunstâncias normais, Deus não interfere. Contudo,


sempre é possível ocorrer um milagre. Deus é Todo-Poderoso e, quando uma
prioridade maior se sobrepõe à dádiva humana do livre-arbítrio, Ele não hesita
em fazer o que deve ser feito. Os milagres são a resposta de Deus às situações
em que o livre-arbítrio se torna perigoso, ameaçando destruir o grande plano
Divino para o universo.

Há inúmeras situações em que as pessoas caminham em direção a um


colapso nervoso por não encontrarem resposta à pergunta “Por que Deus fez
isso comigo?”. Elas se convencem de que Deus as descartou e que suas vidas
não são mais dignas de serem vividas. Essas pessoas estão equivocadas. Às
vezes, a tragédia que se abateu sobre elas nada teve a ver com Deus; foi
uma falha de algum indivíduo que, ao exercer o seu livre-arbítrio, fez com que
elas sofressem. E se elas são inocentes – se ao examinarem o seu passado
puderem afirmar que não há correlação entre o ocorrido e alguma falha em
seu passado –, então elas se encaixam na seguinte situação de consolo: Deus
não queria que isso acontecesse, e agora fará algo de bom para compensar
o prejuízo.

Na maior parte do tempo, a maior prioridade de Deus é preservar o


nosso livre-arbítrio. Mas existem ocasiões em que há, para Ele, uma prioridade
ainda maior: a Sua promessa feita no passado e o Seu comprometimento com
o futuro. Nesses casos, o livre-arbítrio do ser humano pode e deve ser limitado.

Se a história humana estiver envolvida em grande escala, ou a


sobrevivência do mundo, ou ainda a sobrevivência do povo judeu; se uma
pessoa justa com quem Deus conta para alguma parte do Seu plano Divino
estiver correndo riscos, então Deus irá interferir. Ele abrirá o Mar Vermelho, fará
o sol parar e, inclusive, levará as pessoas a saltarem por cima de montanhas.

Mas, em condições normais, o livre-arbítrio pode prejudicar muitas


pessoas inocentes. Você pode sofrer uma perda pela qual o próprio Deus vai
chorar, mas saiba que Ele assume a obrigação de lhe compensar pela cruel
injustiça por Ele permitida. E se você perguntar como Deus fará isso, saiba
que para Ele nada é impossível.

Para aqueles que acreditam que Deus é impotente, a reza é uma ilusão.
Por que rezar quando, afinal de contas, Deus não pode mudar as coisas?
Mas para aqueles de nós que acreditamos em um Deus Todo-Poderoso, a
reza oferece uma fonte de esperança. Milagres são possíveis, e pode-se rezar
por um milagre. Ainda que esteja envolvido o livre-arbítrio de um indivíduo,
situação em que Deus normalmente não interfere, Ele pode fazer um milagre
quando este for absolutamente necessário – e você tem permissão para rezar
uma prece dizendo que está em uma situação absolutamente necessária. Se
você já sofreu alguma perda, pode lembrar Deus de que Ele tem uma dívida
a ser paga. Ele pode quitá-la com você. Eu não sei exatamente como, mas
Ele fará alguma coisa; Deus lhe deve isso. Reze para Ele lhe ajudar. Não O
condene. Reze para Ele lhe auxiliar na situação em que você se encontra.

Como você pode ver até agora, há muitas razões pelas quais coisas
ruins acontecem às pessoas boas. Cada situação é única e complexa. Estamos
examinando um aspecto por vez – expondo pacientemente pequenos pedaços
deste grande mosaico – mas ainda precisamos apreciar o quadro como um todo...

CAPÍTULO 4
A RESPOSTA DE DEUS

Acabamos de ver que muito do que nos incomoda a respeito dos caminhos
de Deus deve ser, na verdade, creditado às ações do ser humano. Mas o que
fazer quando o mal parece vir diretamente de Deus?

O que pensar quando o médico lhe informa que o seu filho tem um câncer
incurável? Ninguém machucou o seu filho. Esse mal parece vir Daquele que,
supostamente, só faz o bem. Se uma pessoa má feriu o seu filho, você talvez
seja incapaz de perdoá-lo, mas no mínimo saberá onde colocar a culpa – na
maldade humana. Mas se Deus fere o seu filho, isto é difícil demais de suportar.

Entretanto, crianças pequenas e inocentes sofrem todos os dias e,


invariavelmente, somos levados a perguntar: “Como um Deus bom pode ser
tão cruel?”

O que nos perturba também perturbou o maior líder judeu de todos os


tempos: Moisés. Ele ousou fazer essa pergunta Àquele que sabe as respostas.
E essa sabedoria eterna é compartilhada conosco no livro do Êxodo. É aqui,
segundo nos conta o Talmud, que a Bíblia levanta pela primeira vez o problema
de por que os justos sofrem.

À primeira vista a passagem pode parecer cifrada:

“E disse (Moisés a Deus): Mostra-me, rogo, a Tua glória. E disse (Deus): ‘Eu farei
passar todo o Meu bem diante de ti, e chamarei em Nome do Eterno diante de
ti; e farei misericórdia quando Eu quiser fazer misericórdia e Me compadecerei
quando Eu quiser Me compadecer.’ E disse: ‘Não poderás ver Meu rosto, pois
não poderá ver-Me o homem e viver.’ E o Eterno disse: ‘Eis aqui um lugar junto a
Mim, e te porás de pé sobre o penhasco. E será, quando passar a Minha glória,
que te porei na fenda do penhasco e te protegerei à Minha maneira, até que Eu
tenha passado. E depois retirarei a Minha glória, e verás Minhas costas, e o Meu
rosto não será visto.’” 15

A maioria das pessoas que leem isso literalmente assume que Moisés
deseja conhecer a aparência de Deus; em resposta, Ele não mostra o Seu
rosto, mas permite que Moisés dê uma olhada na parte de trás dos Seus
poderosos ombros.

É claro que isso é um absurdo.

O Talmud16 nos conta que Moisés não estava pedindo para “ver” Deus;
ele era mais inteligente do que isso. Moisés sabia que Deus não tinha corpo
nem forma que contivesse matéria; portanto, não podia ser visto com olhos
humanos. Em vez disso, Moisés estava pedindo para “ver” a “glória” de Deus,
a fim de poder compreender o plano Divino. Na verdade, Moisés está dizendo
a Deus: “Deus, eu Te amo, honro e respeito de todas as formas. Mas há coisas
sobre Ti que eu não entendo. Quando vejo uma criança com paralisia infantil,
um bebê com leucemia, um menininho sofrendo com tanta dor, e eu sei que
ele morrerá em breve, não entendo o que Tu estás fazendo. E eu adoraria
compreender plenamente os Teus caminhos, de modo que eu pudesse Te dar
toda honra que Tu mereces.”

É muito significativo que essa passagem apareça logo após a absolvição


dos israelitas por Deus pelo terrível pecado do bezerro de ouro. Deus retirou
os israelitas da escravidão do Egito; Ele falara com eles no Monte Sinai; e
então, quando Moisés subiu a montanha, os israelitas retribuíram toda essa
bondade com a rejeição a Deus e a construção de um ídolo. Todavia, após
se arrependerem do seu grande pecado, Deus não apenas os perdoou, como
também respondeu descrevendo a Sua essência como plena de misericórdia e
compaixão.

É este o momento que Moisés escolhe para fazer o seu pedido, como se
dissesse: “Se isso é verdade, então me explique como a Tua glória está refletida
no sofrimento das crianças e na alegria dos maldosos? Tu podes me conceder
a dádiva de entender o sentido destas coisas?”

Em resumo, Moisés queria saber por que coisas ruins acontecem às


pessoas boas.

A resposta de Deus contém o que Moisés – bem como todos nós, ao


lermos essas palavras milhares de anos depois – tem o direito de saber.

Então olhemos muito cuidadosamente, ponto por ponto, para o que Deus
está nos dizendo.

O QUADRO INTEIRO
“Eu farei passar todo o Meu bem diante de ti, e chamarei em Nome do Eterno
diante de ti.”

Conforme já aprendemos anteriormente, os nomes pelos quais Deus


Se identifica são extremamente importantes. Aqui Ele usa o singular nome de
quatro letras conhecido como Tetragrama, cuja pronúncia está proibida; em
geral é traduzido como o Eterno (Adonai). Conforme destacado anteriormente,
esse nome significa bondade e compaixão, em contraste com o nome Elohim,
que se refere a Deus como um juiz severo, porém justo. Portanto, é o nome do
Eterno misericordioso que Deus deseja proclamar para Moisés.

É dito a nós que “toda” a bondade de Deus será testemunha da qualidade


misericordiosa do Todo-Poderoso. E, consequentemente, iremos mudar a nossa
percepção de dor e sofrimento assim que a virmos “toda”. Levar em conta
somente metade do relato pode nos levar a pensar que Deus é cruel, mas
uma perspectiva mais completa nos levará a concluir que, na verdade, todo
julgamento estrito é necessariamente um ato de amor.

Assim que formos capazes de compreender todo o quadro, veremos o


sofrimento como uma manifestação do aspecto compassivo de Deus.

“E farei misericórdia quando Eu quiser fazer misericórdia e Me compadecerei


quando Eu quiser Me compadecer.”
Será que Deus está dizendo: “Eu farei o que Eu quiser, independente do
que é justo?” Não, Ele não está dizendo isso, mas: “Eu farei misericórdia com
aquele com quem Eu for misericordioso, e não com quem você acha que eu
deveria ser misericordioso. Eu Me compadecerei de quem Eu tiver compaixão,
e não de quem você acha que Eu deveria ter compaixão.”

O Talmud ensina17 que no mundo vindouro tudo irá virar de cabeça para
baixo. Ali, aqueles que estão por baixo estarão por cima e vice-versa. A questão
é que, em geral, nossos julgamentos a respeito de quem é um santo e de quem
é um pecador estão longe da verdade. A maneira pela qual o universo terreno
oferece honras é literalmente caótica. Somente na vida vindoura poderemos ver
quem é verdadeiramente merecedor.

O Baal Shem Tov, fundador do movimento chassídico no século 18,


explicou o que isso significa por meio desta história maravilhosa:

Em uma determinada casa moravam dois judeus e suas respectivas


famílias. Um era um sábio muito estudioso; o outro era um trabalhador pobre.
Dia após dia o sábio acordava, levantava-se ao amanhecer e ia até a sinagoga
onde, primeiramente, estudava uma página do Talmud. Então, enquanto os
piedosos anciões iam chegando, ele aguardava um pouco, dirigia seu coração
para os céus e proferia as orações matutinas calma e lentamente, estendendo
sua reza até quase o meio-dia.

Seu vizinho, o trabalhador pobre, também se levantava cedo e ia trabalhar


até o meio-dia. Seu trabalho era tão duro que forçava, ao mesmo tempo, o
corpo e a alma, sem que lhe restasse tempo para ir à sinagoga a fim de rezar
com a congregação no horário apropriado.

Ao meio-dia, o sábio deixava a sinagoga e voltava para casa, preenchido


pela sensação de autossatisfação: ele se ocupara com a Torá e com as orações,
e realizara escrupulosamente a vontade do seu Criador. No seu caminho de
volta da sinagoga, encontrava o seu vizinho, o trabalhador pobre, correndo
para a sinagoga, onde recitaria as orações matutinas às pressas, angustiado e
chateado por estar tão atrasado. Eles passavam um pelo outro.
Quando o trabalhador pobre passava por seu vizinho na rua, soltava
um gemido pesaroso, triste porque o outro já terminara prazerosamente o
seu estudo e oração antes que ele tivesse sequer começado: “Ai meu Deus,
aqui estou, chegando ao shul (sinagoga). Ele já terminou. Eu não estou agindo
corretamente. Ai, ai, ai!” Enquanto isso, os lábios do sábio balbuciavam ironias
e no seu íntimo ele pensava: “Mestre do Universo, veja a diferença entre esta
criatura e eu. Ambos nos levantamos pela manhã. Eu me levanto para a Torá
e a reza, mas ele...”

E assim passavam os dias, as semanas, os meses e os anos. As vidas


de cada um daqueles dois homens corriam de modos diferentes: uma, na
liberdade da Torá e da oração; a outra, na escravidão de trabalhar e ganhar
o necessário para sobreviver. Quando, de tempos em tempos, seus caminhos
se cruzavam, o sábio sorria maliciosamente, enquanto o trabalhador gemia
pesaroso.

Como acontece com todos os homens, a morte finalmente alcançou o


sábio e, pouco depois, o seu vizinho, o trabalhador. O primeiro foi chamado
diante do tribunal celestial para prestar contas dos seus atos. “O que você fez
com os dias dos seus anos?”, perguntou a voz vinda do alto.

“Eu sou muito grato”, respondeu o sábio com voz firme, na qual podia
ser detectado mais do que um certo orgulho, “porque ao longo de todos os
meus dias eu servi ao meu Criador, estudando muito a Torá e rezando de
coração puro.”

“Mas”, comentou o acusador celestial, “ele sempre zombou do seu vizinho,


o trabalhador pobre, quando eles se encontravam próximos à sinagoga.” Ouviu-
se a voz do alto dizer: “Tragam a balança!”

De um lado foi colocada toda a Torá que ele estudara e todas as orações
que rezara, enquanto do outro foram colocados os sorrisos irônicos diários
exibidos quando ele encontrava o seu vizinho. Na comparação, o peso dos
sorrisos levou a escala da balança para a marca de “culpado”.
Assim que o caso do sábio foi encerrado, o trabalhador pobre foi levado
diante do tribunal celestial. “O que você fez com a sua vida?”, perguntou a voz
vinda do alto.

“Eu trabalhei duro por toda a minha vida a fim de suprir as necessidades da
minha esposa e dos meus filhos. Não tive tempo para rezar com a congregação
no horário apropriado, tampouco tive tempo livre para estudar mais a Torá,
porque havia bocas famintas para alimentar em casa”, respondeu o trabalhador,
com vergonha e pesar.

“Mas”, comentou o defensor celestial, “a cada dia, ao encontrar o sábio,


seu vizinho, soltava um gemido do fundo da sua alma. Ele sentia que não havia
cumprido as suas obrigações com o Eterno.”

Mais uma vez foi trazida a balança e o peso do gemido do trabalhador


pobre levou a escala para a marca de “inocente”.

Isso foi feito pelo famoso talmudista e filósofo do século 12, Moisés
Maimônides, no Mishnê Torá.18 Nessa sua obra-prima legal, ele conclui que, aos
olhos de Deus, as boas ações e os erros são julgados qualitativamente, e não
quantitativamente.

Um pecado terrível pode comprometer toda uma vida de boas ações,


ou uma boa ação especial pode anular muitos pecados. Somente Deus sabe
verdadeiramente o que está no coração de cada pessoa, bem como o real valor
das nossas ações.

Então, quando Deus diz a Moisés: “(Eu) Me compadecerei quando Eu quiser


Me compadecer”, Ele está dizendo: “Eu sei melhor do que você quem é justo e
quem é maldoso, quem é merecedor e quem não é. Nem ouse imaginar que
você é capaz de julgar melhor do que Eu.”

“E o Eterno disse: ‘Não poderás ver Meu rosto, pois não poderá ver-Me o homem
e viver.’” Afinal de contas, o que isso quer dizer?

Moisés quer “ver” Deus, compreender os Seus caminhos. Mas Deus lhe
diz: “Enquanto você estiver vivo, jamais poderá Me ‘ver’ plenamente.” O quadro
inteiro é invisível à nossa limitada perspectiva terrena.
Imagine-se com o seu nariz quase encostando numa pintura impressionista.
Em um lugar você vê manchas do mais empolgante azul-celeste; em outro
canto há uma grande mancha preta; em outro, uma mancha branca. Somente
se você der uma dúzia de passos para trás é que verá o que a pintura descreve
– trata-se do quadro “Lírios”, de Van Gogh.

Isto vale também quando se busca compreender o plano de Deus.


Às vezes vemos as partes coloridas; às vezes, as partes negras; mas jamais
poderemos nos afastar o suficiente para observarmos o quadro por inteiro.
Afastar-se o suficiente é dar um passo para dentro do mundo vindouro.

A nossa existência aqui na Terra e a nossa compreensão do real significado


de nossas vidas é muito limitado. Esta é a mensagem de Deus para Moisés, a
mesma que Ele deu a Jó quando esse sofredor pediu para entender o que
estava lhe acontecendo. Deus diz: “Os fatos à sua disposição na arena da vida
são insuficientes para o tipo de conhecimento que você busca possuir.”

EM PARCERIA COM DEUS


“E o Eterno disse: ‘Eis aqui um lugar junto a Mim, e te porás de pé sobre o
penhasco.’”

A fim de ajudar Moisés a encontrar as razões para a presença do mal na


Terra, Deus lhe diz para permanecer “ao Meu lado”. Essa frase ecoa uma ideia
semelhante do Gênesis, quando no princípio o ser humano é criado à imagem
de Deus. Ao homem é dado o papel de completar a obra de Deus, conforme
a sua capacidade. Ele é informado de que é um parceiro ao lado de Deus nas
alturas, e não um observador passivo lá embaixo.

Por que foi dito a Moisés para se colocar sobre um penhasco (rocha)?
Porque a palavra em hebraico para rocha, tsur, vem da mesma raiz do verbo
formar, confeccionar ou moldar. A rocha faz alusão ao propósito humano sobre
a Terra: assim como Deus é um criador, o homem também o é. Na realidade,
o ser humano é parceiro de Deus na Criação, no aperfeiçoamento do mundo.
A fim de dar ao homem uma oportunidade para exercer sua função, Deus
propositadamente deixou o mundo por terminar; este foi criado incompleto.
É este o significado de Deus descansar ao final do sexto dia. Com certeza Ele
não estava cansado. “Deus descansou” significa que Ele parou no meio da
obra. Por quê? Para que o ser humano tivesse a oportunidade de participar do
aperfeiçoamento do mundo. Deus permite o surgimento de doenças para que
o ser humano exerça o seu papel de inventar curas. Deus permite que exista
a fome para que o homem invente novas tecnologias agrícolas. Deus permite
que haja seca para que o homem participe, levando o mundo a um patamar
mais próximo do ideal, por meio da invenção de novos métodos de irrigação, da
construção de represas e de projetos de dessalinização.

Portanto, o mal no mundo indica tão-somente o trabalho que ainda


devemos fazer. O mal é uma manifestação de um mundo que ainda está
incompleto, aguardando o homem fazer a sua parte e terminar a obra.

“E será, quando passar a Minha glória, que te porei na fenda do penhasco


e te protegerei à Minha maneira, até que Eu tenha passado. E depois retirarei a
Minha glória, e verás Minhas costas, e o Meu rosto não será visto.”

Aqui nos é dada a parte mais importante da resposta. Ao dizer a Moisés


que ele não poderá ver a Sua face, mas somente Suas costas, Deus está
dizendo que será impossível para Moisés compreender os eventos enquanto
eles estiverem acontecendo. Mas posteriormente, em retrospecto, será possível
entender o que já ocorreu.

Enquanto você estiver se confrontando com uma crise, enquanto estiver


no olho do furacão, você será incapaz de entender o propósito ou a lógica de
Deus. Mas uma vez que a crise passar, então, ao olhar para trás, será possível
começar a entender os desígnios de Deus.

Todos nós podemos relembrar eventos de nossas vidas que pareciam


terríveis quando nós os vivenciamos, mas que a posteriori, algum tempo depois,
passaram a ser vistos como bons. Um homem está apressado para chegar
ao aeroporto. O pneu do seu carro estoura e ele se desespera, pois sabe que
perderá o voo. Ele está chateado com a sua má sorte; naquele momento,
isto parece ser algo terrível. Ele conserta o pneu, guia como um louco para
o aeroporto, mas não há jeito – o avião parte sem ele. Uma hora depois ele
fica sabendo que o avião caiu e explodiu. Portanto, o pneu furado que ele
amaldiçoara há uma hora transformou-se numa bênção.

Sempre que há um acidente aéreo, lemos depois nos jornais a respeito


de pessoas que quase estiveram naquele voo, mas que, por alguma razão, não
subiram a bordo. Quando o vôo 800 da TWA caiu, foi amplamente divulgado
o relato de uma mulher que quebrou sua perna e teve que adiar suas férias
em Paris, planejadas com muita antecedência. Ela estava terrivelmente
desapontada, mas agora sempre agradece a Deus por sua perna quebrada.

Há um relato memorável contado no Talmud19 que ensina o princípio de


que “isto também é para o bem”.

Ao viajar montado num burro em direção a uma pequena aldeia,


o renomado sábio do século 1, Rabi Akiva, não encontrou acomodação em
nenhum alojamento. Ele não se importou com isso, assumindo que deveria
haver um propósito Divino para suas dificuldades. Ele acampou nos bosques do
lado de fora da cidade, feliz por ao menos ter levado consigo a sua lamparina
para leitura e o seu galo para despertá-lo pela manhã. Mas, pouco tempo
depois, foi visitado por mais calamidades – seu burro fugiu, seu galo morreu e
sua lamparina estragou. Mas, sendo ele Rabi Akiva, aceitou pacientemente a
sua sorte.

Na manhã seguinte, ao voltar para a cidade, descobriu que uma horda de


assassinos havia massacrado toda a população. De repente, ele compreendeu
todas as dificuldades que sofrera: “Se eu tivesse conseguido um alojamento
para dormir, teria sido morto. Se a minha lamparina estivesse acesa, eles
poderiam ter me visto. O galo poderia ter cacarejado e o burro, zurrado. Agora
eu sei: tudo o que me aconteceu foi para o bem!”
A ILUSÃO DO BOM E DO RUIM
Quando perguntamos: “Por que coisas ruins acontecem às pessoas boas?”,
estamos quase sempre assumindo posições equivocadas. O que percebemos
como “coisas ruins” pode ser, na verdade, o melhor que poderia ter ocorrido.

Em uma pesquisa, a maioria das pessoas diria que a pobreza, a feiura e


a falta de poder são ruins, enquanto a riqueza, a beleza e o poder são bons.

Mas pergunte a Marilyn Monroe. Ela tinha muito dinheiro, era lindíssima
e sua fama lhe trouxe um poder incrível. No entanto, todas essas coisas só lhe
trouxeram miséria e, no final, ela cometeu suicídio.

Por isso não tenha tanta certeza do que é bom e do que é ruim; você não
conhece a história por inteiro. Em geral, você está vendo só uma parte, e pode
levar anos antes que todo o quadro seja conhecido.

Eu conheço um homem multimilionário que perdeu seu primeiro emprego


como balconista dos correios. Incapaz de arranjar outro emprego, ele foi forçado
a iniciar o seu próprio negócio. Hoje ele diz: “Eu só consegui isso porque fui
demitido.”

Eu conheço a história de um rapaz, estudante universitário, que estava


tão desiludido pelo rompimento de uma relação afetiva com uma garota que
passou a pensar em suicídio. Ele tinha certeza de que este havia sido o pior
trauma dos seus poucos anos de vida. Eu passei uma noite inteira com ele,
conversando e consolando-o.

Vinte anos depois encontrei-me novamente com esse homem.

“Lembra-se de mim?”, ele gritou.

“É claro que sim. Você me deve uma noite de sono”, respondi.

“Eu voltei para lhe contar o final daquela história”, ele me disse. E
compartilhou comigo o que lhe havia acontecido desde aquela época. Sua vida
havia sido preenchida de bênçãos: ele se casou, tinha uma bela esposa e filhos, e
estava muito feliz. Durante esse tempo, a garota que, segundo ele, acabara com a
sua vida, tornou-se uma alcoólatra e, por fim, casou-se e se divorciou três vezes.
No final das contas, ainda que mais tarde, ele percebeu que, graças
ao “trágico” rompimento daquela relação afetiva, ele pôde vivenciar coisas
muito melhores.

É claro que, quando pensava em suicídio e eu tentava dizer-lhe que tudo


mudaria para melhor, ele fora incapaz de ouvir e muito menos entender por que
era melhor que as coisas fossem assim.

O Zôhar, a principal obra da Cabalá, o corpo do misticismo judaico,


comenta que, quando Deus criou o mundo, Ele declarou que este era tov meód,
“muito bom”. Não obstante, quando observamos o mundo, estudamos história e
assistimos ao noticiário pela televisão, descobrimos o quanto é difícil concordar
com esse julgamento Divino.

O Zôhar destaca que Deus nos dá uma pista disso no nome que Ele
escolheu para o primeiro ser humano – Adão. Em hebraico, Adão (Adam) é
escrito com as mesmas consoantes da palavra meód (muito) – mem, alef, dálet
–, mas em uma ordem diferente: alef, dálet, mem. Mais adiante, o Zôhar diz
que Adam é um acrônimo, uma sigla para três pilares da história humana.
Alef, a primeira letra do alfabeto hebraico, representa o início da história da
humanidade, com Adam. Dálet, a letra inicial do nome do Rei David, representa
o auge da história judaica. Mem é a letra inicial de Mashíach (Messias), que
levará o mundo ao seu tão esperado estado de plenitude.

Quando finalmente alcançarmos esse estágio da história aludido pelo


mem, os dias do Mashíach, seremos capazes de olhar para tudo o que já
aconteceu ao longo do curso da história desde o alef de Adão; através do dálet
de David; e, juntamente com Deus, também seremos capazes de proclamar que
o mundo é mais do que bom: é muito bom – tov meód.

Do mesmo modo, o filósofo Soren Kierkegaard afirma tão veementemente:


“A vida só pode ser entendida ao se olhar para trás, mas deve ser vivida olhando-
se para frente.”
EM RESUMO
O diálogo bíblico entre Deus e Moisés nos ensina a nos precavermos
diante de situações, parciais ou equivocadas, que nos levam a questionar a
bondade de Deus.

De fato, Moisés diz a Deus: “Deus, eu quero Te honrar inteiramente,


mas sofro a interferência da minha falta de compreensão com relação aos Teus
desígnios. Como eu posso Te honrar completamente quando vejo coisas ruins
acontecendo às pessoas boas e coisas boas acontecendo às pessoas ruins?”

Deus responde: “Ei, espere aí. Eu questiono duas das tuas premissas.”

“Quais premissas?”

“Em primeiro lugar, não seja tão apressado em chamar algumas pessoas
de boas e outras de ruins, porque você não tem certeza disso. Em segundo
lugar, você está convicto das suas definições? Você tem certeza de que sabe do
que está falando? Você não é otimista; e não é otimista porque não pode ver a
Minha face. Você só poderá vê-la em retrospecto, quando uma coisa tida como
terrível irá se transformar na melhor coisa que poderia acontecer. Às vezes
levará anos para você perceber isso. Algumas vezes você jamais perceberá,
pelo menos não nos seus dias na Terra.”

Contudo, o que perturba muita gente são as diversas vezes em que


inclusive a dádiva do retrospecto parece não nos esclarecer muita coisa.
Olhar retrospectivamente para a vida de alguém pode ser esclarecedor, mas
muitas vezes pode ainda nos deixar com muitas questões sem res-posta. O
que podemos fazer? Isso significa que terminaremos nossas vidas na Terra
com problemas que jamais serão resolvidos, feridas jamais curadas, crueldades
jamais explicadas, injustiças jamais corrigidas?

É fácil dizer: “Certo, ele perdeu o seu emprego, mas encontrará outro do
qual gostará muito mais – portanto, perder o emprego não foi assim tão ruim.”
Mas quando acompanhamos uma pessoa morrendo lentamente de câncer,
sofrendo a cada respiração, não é fácil – de fato, é quase impossível – dizer:
“Isto também é para o bem.”
Uma esposa me diz: “Meu marido ficou doente, permaneceu doente pelo
resto dos seus dias, e então morreu. O que há de bom nisso? Não me diga para
esperar pelo fim da história; eu já sei o fim da história: ele morreu.”

No entanto, Deus nos diz: “O homem não pode Me ver e viver.” Não
podemos ter acesso a todo o quadro antes da hora da morte. A morte é o portal
para o além – e essa mesma descrição nos recorda que há algo mais após a
nossa passagem pela Terra. Deus parece estar dizendo que o que ainda não
está claro durante a nossa existência finita será passível de compreensão assim
que formos abençoados com a perspectiva Divina da eternidade.

Os enlutados por seus entes queridos podem ter dificuldades em


perceber na morte alguma luz positiva; para eles, a morte representa uma
perda irreparável. Mas para os falecidos a morte não é um problema, mas uma
solução. Para a pessoa envolvida, a morte é o início de todas as respostas,
como veremos a seguir.

Notas

9. Gênesis 1:1-2 – 10. Deuteronômio 32:11 – 11 Êxodo 21:12-13 – 12. Conforme citado por Rashi;
Macot 10b – 13. Gênesis 17:7 e Levítico 26:44-45 – 14. Ester 4:14 – 15. Êxodo 33:18-23 – 16.
Berachot 7a – 17. Pessachim 50a – 18. Hilchot Teshuvá, capítulo 3, lei 2 – 19. Berachot 60b.

No próximo volume da série de e-books


Se Deus é Bom Por Que o Mundo é tão Ruim?

Parte 2 – POR QUE MORREMOS?


Capítulo 5. O Preço do Paraíso
Capítulo 6. O Enigma da Morte
Capítulo 7. A Vida Após a Morte

Não perca!
PARTE 2
POR QUE MORREMOS?

CAPÍTULO 5
O PREÇO DO PARAÍSO

Morte. Esta palavra tornou-se conhecida por causar medo nos corações
dos seres humanos.

A maioria de nós compartilha da esperança do Rei David no livro dos Salmos:


“Não morrerei! Viverei e hei de relatar os feitos do Eterno.” Concordamos com
a bem-humorada sátira de Woody Allen: “Eu não quero alcançar a imortalidade
por meio da minha obra; eu quero alcançá-la não morrendo.”

Mas sabemos que isso é impossível. Assim como Josué sentenciou sobre
o seu leito de morte, a morte é “o caminho de toda a terra”. Desde o momento
do nascimento nós nos aproximamos cada vez mais da morte. De fato, o mesmo
Deus que é o Autor da vida é Aquele que decreta o destino universal da morte.

Os judeus rezam pela vida. Nós agradecemos a Deus por nos dar a vida.
Começamos cada dia com uma oração que expressa nossa gratidão ao Todo-
Poderoso por “devolver nossas almas” de modo que possamos continuar a
desfrutar da Terra. E então, cedo ou tarde, Deus leva cada um de nós deste
mundo. Se a vida é boa, por que Deus criou a morte? E se a morte é ideal, por
que sofrer com a vida?

A fim de solucionar esse paradoxo, nós nos voltaremos mais uma vez
para a sabedoria do Talmud.

Alguns debates do Talmud se estendem por muitas páginas, até que


chegam a uma decisão final. Isto porque os Sábios concluíram que, nas
épocas posteriores, as pessoas poderiam se alongar ainda mais, sugerir outros
argumentos e dizer: “Aposto como você nunca pensou em olhar para isso por
este prisma!” Por isso, os Sábios quiseram mostrar que todas as opiniões foram
expressas, consideradas e avaliadas, antes de serem rejeitadas.

Mas. neste caso, a decisão final parece ter sido estabelecida de antemão.
O Talmud – em contradição com suas regras gerais de argumentação – faz uma
tentativa ousada de estabelecer a resposta a essa questão logo no início. Começa
com uma declaração dramática em resposta à questão posta pela realidade da
morte. Por que pessoas boas morrem? O Talmud diz: “Elas não morrem.”

É isso o que encontramos no Tratado Shabat:20 “Rav Ami disse: Eu faço


a seguinte declaração: não há morte sem pecado, porque assim foi escrito
pelo profeta Ezequiel: ‘A alma que peca deve morrer.’21 Não há sofrimento sem
transgressão, pois assim está escrito nos Salmos: ‘Eu os golpearei com uma
pedra por seus pecados, e com pestilências por suas transgressões.’22”

Esta é uma declaração muito forte. Rav Ami está dizendo explicitamente
que a morte é resultado do pecado. As pessoas morrem somente porque elas
não são dignas da vida. Ele parece sugerir que qualquer um que morre deve ter
cometido algum crime terrível, punível com a morte.

O PREÇO DO PECADO
Para que essa declaração faça sentido, devemos levar em conta o primeiro
pecado e a primeira sentença de morte da história. Como isso aconteceu?

A Bíblia nos conta que os primeiros seres humanos foram criados e


estabelecidos em um belo jardim. Havia muitas árvores naquele jardim das
quais Adão e Eva podiam desfrutar e cujos frutos podiam consumir. Mas havia
duas árvores que tinham um significado especial: uma era a Árvore da Vida; a
outra era a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, cujos frutos eles estavam
proibidos de comer, senão morreriam. Isto fez com que ela se tornasse a Árvore
da Morte.
A natureza humana é tal que se alguém lhe diz: “Veja, você pode ter
tudo, menos uma coisa”, esta “uma coisa” se torna objeto de todos os seus
desejos. E foi assim, é claro, que as coisas aconteceram ali também.

Perceba que, no relato, Deus diz: “De toda árvore do jardim podes comer.”
Ele diz claramente: “toda”. É somente da Árvore do Conhecimento que Adão
e Eva não podem comer. Essa passagem nos conta, indiretamente, algo muito
interessante. Se inicialmente os seres humanos tinham permissão para comer
de todas as árvores, inclusive da Árvore da Vida, então isso deve significar que
Deus pretendia originalmente que eles vivessem para sempre. Somente quando
eles pecaram foi que houve consequências, entre as quais o decreto de que a
Árvore da Vida estaria agora fora das fronteiras do Jardim do Éden.

A história nos conta que, se Adão e Eva não tivessem pecado, nem eles
nem o mundo teriam conhecido a morte. Graças às suas transgressões, todos
nós nos tornamos mortais.

Mas eu tenho dificuldade em aceitar essa ideia. Eu posso entender


que Adão e Eva tenham sido sujeitados à morte por haverem cometido essa
transgressão. Mas o que isso tem a ver com todos os demais seres humanos e
seus descendentes? O que isso tem a ver conosco? Por que temos que morrer
se a intenção original era que vivêssemos para sempre? Se esse homem e
sua esposa pecaram, somente eles deveriam perder os respectivos passaportes
para a eternidade. Mas por que Deus também os tirou de todos os demais?

Algumas tradições religiosas respondem a essa questão ensinando que


o pecado original é transmitido como uma mancha sobre a alma. Todos nós
compartilhamos do pecado do nosso antepassado comum, Adão. Todos nós
somos culpados por seu crime.

O judaísmo discorda veementemente disso. Este sustenta inequivocamente


que, ao chegar a este mundo, a alma é pura. E esse é o motivo pelo qual,
obviamente, Rav Ami estava tão incomodado ao tentar explicar o problema da
morte. Se o plano original de Deus – o ideal em termos de relacionamento entre
Deus e o ser humano – é a vida eterna, então o único que deveria morrer seria
aquele que tivesse feito algo para nunca mais merecer a permissão para comer
da Árvore da Vida. Assim, para Adão, essa permissão estava negada, mas para
todos os outros, não haveria proibição a menos que... a menos que o quê?

A única explicação para a morte das gerações futuras, de acordo com Rav
Ami, é que cada um de nós, de um modo ou de outro, repete o pecado de Adão
ao desobedecer aos mandamentos de Deus.

VIDA SEM CULPA


Mas imagine que exista alguém que jamais cometeu um pecado ao longo
de toda a sua vida. Se seguirmos a lógica de Rav Ami, a conclusão é que essa
pessoa viverá para sempre!

E, naturalmente, os Sábios do Talmud condenaram imediatamente a


posição de Rav Ami. Eles apresentaram um sofisticado conto do Midrash no qual
os anjos se queixam com Deus de que Moisés e seu irmão Aarão obedeceram
a todos os mandamentos e, mesmo assim, morreram.

Em resposta, Rav Ami argumenta que este relato midráshico está


baseado numa premissa falsa. Moisés e Aarão não eram inocentes. Ao longo
de suas vidas, eles, na verdade, foram contra a vontade do Todo-Poderoso, e é
exatamente por isso que tiveram que morrer. No Livro de Números,23 Deus diz
a eles: “Porquanto não crestes em Mim... por isso não trareis esta congregação
à terra que lhes dei.” Faltou a Moisés e Aarão fé o bastante. Se, todavia, eles
não tivessem cometido esse pecado, se eles tivessem sido perfeitos, talvez não
tivessem morrido, insiste Rav Ami.

Mas os Sábios do Talmud não se convencem facilmente. Eles citam outro


relato do Midrash, que afirma que apenas quatro pessoas na história do mundo
morreram em consequência das maquinações da serpente (ou seja, como
resultado da maldição proferida sobre a humanidade após a serpente seduzir
Adão e Eva) e não por suas próprias culpas. Essas quatro pessoas morreram
apesar de não terem feito nada para receber a sentença de morte, ou seja,
apesar de serem totalmente inocentes: Benjamim, o filho caçula de Jacob;
Amram, o pai de Moisés; Jessé, o pai de David; e Kilav, o filho de David.24
A conclusão que podemos tirar das vidas desses quatro parece ser que
você pode morrer ainda que você seja perfeito, ainda que jamais tenha cometido
um pecado. A morte vem tanto para os inocentes quanto para os culpados.
Todos morrem.

Esta é, claramente, uma contradição irrefutável à visão de Rav Ami.


Mesmo os inocentes devem morrer – os puros e santos não estão alheios ao
decreto universal da morte. Adão e Eva trouxeram a mortalidade para o mundo,
e agora, este é o legado perpétuo de todos os seus descendentes.

Mas nós não dissemos anteriormente que o judaísmo rejeita a teoria


do pecado original, da culpa herdada? Então como lidamos com tudo isso? O
profeta Ezequiel não disse: “O filho não levará sobre si a iniquidade do pai, nem
o pai levará sobre si a iniquidade do seu filho”?25 Onde está a justiça de Deus
quando os perfeitos morrem?

A resposta é profunda em sua própria simplicidade. Em um mundo


perfeito, no Jardim do Éden, Adão e Eva deveriam ter vivido para sempre. Mas
uma vez que o mundo está corrompido e não há mais um paraíso, graças às
pessoas que nele vivem, então todos devem morrer, especialmente as pessoas
boas: este mundo imperfeito simplesmente não é bom o bastante para as
pessoas perfeitas.

As pessoas sem erros devem agora morrer a fim de poderem entrar no


Paraíso, o local que chamamos de Céu. Para eles, nas palavras de Sir Walter
Scott, “a morte não é o último sono; é o último despertar.” E é por isso que
podemos agora ter a morte sem pecado, não como uma punição, mas como
uma merecida recompensa.

O ENIGMA DA VIDA
Mas espere um instante: ainda está faltando alguma coisa. Acabamos
de concluir que as pessoas boas morrem porque este mundo ruim não é
suficientemente bom para elas – os bons merecem um Jardim do Éden e, uma
vez que este mundo não é o paraíso, eles não deveriam estar aqui. Mas se
isto for mesmo verdade, então não deveríamos estar perguntando por que as
pessoas boas morrem, mas, sim, por que elas vivem? Se elas não pertencem à
Terra, por que, afinal, elas estão aqui?

Para compreendermos a resposta, precisamos conhecer outro conceito


básico do judaísmo. Diferente de outras religiões, o judaísmo acredita que
começamos com uma alma pura e que todo o propósito da vida é mantê-la
nessa condição. Infelizmente, todas as pessoas cometem alguma transgressão
e mancham a alma que receberam. Por essa razão, quando uma pessoa morre
e a alma alcança a próxima dimensão, ela precisa passar por um processo de
purificação – em outras palavras, ela precisa ser “lavada a seco” de alguma
maneira, a fim de retornar à sua pureza original, livre das manchas nela
deixadas por seu dono aqui na Terra.

Mas a questão óbvia é: por que, afinal de contas, preocupar-se com a


viagem aqui na Terra? Por que viver, se isso só irá manchar a alma? Se existe
um outro mundo e se este proporciona uma existência ideal, por que não pegar
a rota do paraíso desde o início? A derradeira questão teológica sobre a vida
deve ser: será que esta viagem é realmente necessária?

A resposta é um princípio conhecido em hebraico como lachmó dekissufa,


que significa literalmente “pão da vergonha”, referente ao pão ganho sem
merecimento, um pagamento que vem por piedade ao invés de ser obtido
como recompensa por um esforço. Hoje em dia, uma palavra em português
com significado semelhante talvez seja “ócio”, quando aplicado às pessoas
capacitadas ao trabalho que preferem se manter da “caridade alheia”. Esse é o
caminho do parasita, que traz consigo o codinome da vergonha.

Aceitar o ócio sem ao menos tentar trabalhar é enganoso – e isso é


verdade tanto para os nossos negócios aqui na Terra quanto aos olhos de Deus.

É verdade: teoricamente você poderia estar no paraíso sem antes trilhar


o seu caminho pela vida. Bastaria que Deus, em Sua infinita bondade, lhe
desse um bilhete de primeira-classe com todas as despesas pagas para o Céu,
sem questionamentos. Mas então você perceberia que recebeu um presente
totalmente imerecido.
O judaísmo não vê com bons olhos o conceito de uma pessoa desocupada.
O judaísmo diz que devemos alcançar o Céu à moda antiga – precisamos
conquistá-lo. Para os judeus, a única maneira pela qual a recompensa da
existência ideal faz sentido é se a pessoa trabalha por isso. Em contrapartida, o
ócio diminui o próprio valor do recipiente dessa alma.

Então é assim que o quadro inteiro faz sentido. Você vem para a Terra
com uma alma pura. Sua missão é fazer tudo o que estiver ao seu alcance para
manter essa pureza. Desse modo você terá orgulho de saber que conquistou o
seu lugar no Céu.

Conta-se uma história inspiradora a respeito do reverenciado rabino


Eliáhu, o Gaon de Vilna, do século 18, que foi encontrado chorando amargamente
sobre o seu leito de morte. Seus discípulos não conseguiam entender. Eles o
conheciam como uma pessoa inteiramente justa que, com toda certeza, iria
diretamente para o Céu. Eles haviam estudado no Talmud: “Melhor uma hora
no mundo vindouro do que todos os anos nesta Terra.” Então não conseguiam
entender o motivo pelo qual o seu Rebe, o seu reverenciado mestre, estava
chorando e parecia relutante em partir. “Por que choras, se deixarás este lugar
para ires ao Céu?”, eles perguntaram.

O Gaon de Vilna respondeu: “Como posso não chorar ao deixar um


mundo onde, com um pouco de esforço, ainda posso cumprir uma mitsvá?” Ele
quis dizer, é claro, que há uma coisa neste mundo que não há no outro: uma
oportunidade infinita de crescimento. No Céu, as coisas são estáticas; tudo já
está feito.

Um belo conto chassídico aborda muito bem esse tema:

Um homem muito rico, que fora miserável ao longo de toda a sua vida e
nunca fizera qualquer caridade, morre e chega ao mundo vindouro.

Enquanto aguarda na fila, ele ouve as pessoas à sua frente sendo


questionadas: “Quanto você doou para a caridade?” Quando chega a sua vez e
também lhe fazem a mesma pergunta, ele responde: “Bem, para ser honesto
com você, eu não fiz muita caridade, mas meu talão de cheques está bem aqui
comigo. Estou disposto a assinar um cheque de qualquer valor, o quanto você
quiser. Sou um homem rico com um patrimônio enorme – nenhuma quantia
será problema.”

A resposta vem em seguida: “Eu lamento muito, mas aqui no Céu não
aceitamos cheques, apenas recibos.”

Naturalmente, a questão é que, após a morte, não há mais nada que você
possa fazer. As suas oportunidades de fazer boas ações estão todas vencidas. E
é por isso que o Rebe estava chorando no seu leito de morte.

A vida é boa – inclusive para uma pessoa perfeita que não necessita estar
aqui – porque ela nos permite merecer a nossa recompensa, o nosso lugar no
paraíso.

Mas, enquanto respondemos a esta questão, as demais perguntas ainda


permanecem sem resposta. Por que algumas pessoas recebem menos tempo
aqui do que outras? Se o tempo na Terra é tão importante, por que ele é
distribuído de forma tão desigual?

Há uma série de possibilidades, e cada uma delas representa uma


importante categoria do pensamento judaico com respeito à morte. Veremos
sete respostas possíveis no capítulo seguinte, e começarei com a resposta dada
quando a morte entrou no mundo pela primeira vez. Voltemos a nossa atenção
para a história de Caim, quando ele assassina o seu irmão Abel.

CAPÍTULO 6
O ENIGMA DA MORTE

Sim, algumas pessoas morrem por causa dos seus pecados, como
vimos no capítulo 5. Mas – e eu enfatizarei isso ao máximo – esta não é,
de forma alguma, a razão exclusiva para a morte. Devemos nos lembrar do
simples silogismo de que “A pode causar B” é completamente diferente de “b
sempre é causado por a”. Então, o fato de todas as pessoas que cometem
crimes terríveis serem punidas com a morte, segundo nos conta a Bíblia, não
significa que todas as pessoas que morrem cometeram transgressões e estão
sendo punidas por isso.

Todos nós conhecemos a identidade da primeira pessoa que morreu


sobre a Terra, e sabemos que ela era inocente. O modo como a sua morte
aconteceu está registrado na Bíblia, no livro de Gênesis. Ele é o segundo filho
de Adão e Eva, Abel, assassinado por seu irmão mais velho, Caim.

Há quatro pessoas na Terra, e de repente uma é eliminada. Será que


Deus queria ver Abel morto? Será que Deus queria apenas três pessoas sobre
a Terra? Será que o fato de Abel ter morrido significa que foi Deus quem
decretou isso?

A resposta é um retumbante não!

A primeira morte é um crime cometido por um assassino que agiu por


seu livre-arbítrio. Isto aconteceu porque Deus não iria impedi-lo; ele poderia,
é claro, mas isso significaria – conforme já explicamos – que toda ação sobre
a Terra deveria ser sancionada por Deus, o que tornaria o livre-arbítrio do ser
humano sem sentido.

Então, embora a primeira morte não devesse ter ocorrido, ela ocorreu.
Todavia, Deus é justo; por isso, sabemos que Ele deve igualar a contagem e, de
algum modo, promover indenizações.

Mas eis que surge uma questão: como? Como Deus pode indenizar Abel?
Afinal de contas, Abel está morto.

Está claro que este não pode ser o final da história. Antes de tentarmos
imaginar a sua conclusão, devemos entender o seu início. Então examinemos
todos os elementos, um a um.

Em primeiro lugar, devemos assumir que Abel era um homem bom. De


fato, a Bíblia deixa isso claro. Deus aceitara a sua oferenda, enquanto rejeitara
a do seu irmão. Deus o amava. Então por que ele morreu?
Se alguém lhe perguntar como você pode explicar essa morte, a resposta
é: porque Deus não tomou a sua vida – Caim o fez. No capítulo 3, explicamos
que há coisas ruins que acontecem nesta Terra que não são resultado direto
da vontade de Deus. Elas acontecem porque alguém faz algo errado. E quando
essas coisas acontecem, Deus, no final das contas, deve reagir.

Eu conheço uma pessoa cujo pai foi assaltado e assassinado. Ele era
um homem piedoso, respeitado, o exemplo de um santo homem. Rezar era a
sua paixão; a caridade, o seu prazer; os atos de bondade, o seu dia-a-dia; e
o estudo dos textos bíblicos consumia muitas das horas em que permanecia
acordado. Contudo, outro ser humano, que agiu de forma desumana, levou a
sua vida. Mais uma vez alguém repetiu o crime de Caim, e um Deus justo agora
é responsável por corrigir esse erro terrível. Como Ele fará isso?

Deus deve punir Caim e indenizar Abel. A conclusão dessa história, que
descreve como Deus age nessas circunstâncias, ensina-nos bastante a respeito
do conceito Divino de justiça e misericórdia.

A JUSTIÇA PARA CAIM


Até onde Caim sabe, Deus decreta: “Errante e fugitivo serás na Terra.”
Por que esta é uma punição justa para um assassino? Como isto se relaciona
com o conceito que apresentamos anteriormente, de que a punição de Deus
segue o princípio de “medida por medida”? Será que a vida de Caim não deveria
ser pedida em troca?

Uma explicação comum entre os comentaristas da Bíblia é que, quando


você mata alguém, você torna essa pessoa desabrigada; o corpo servia como
uma espécie de casa para a alma, e agora a alma está vagando sem o corpo.
Portanto, é por isso que a punição de Caim corres-ponde ao princípio de “medida
por medida” – ele deve vagar pela Terra sem um lar que possa chamar de seu,
ou seja, equivalente à condenação que perpetrou ao seu irmão.

Outra explicação vê a sentença de Caim como uma espécie de exílio.


Em outro trecho da Bíblia,26 ficamos sabendo que, quando um israelita provoca
acidentalmente a morte de outro, ele é exilado da sua casa para uma cidade
de refúgio, onde deverá passar por um processo de reabilitação espiritual. O
assassinato de Abel por Caim poderia ser visto como não-intencional, porque
ele não poderia sequer imaginar quão permanente seria o resultado das suas
ações. Afinal de contas, ele era uma das primeiras pessoas sobre a Terra e
não testemunhara as consequências de um ato como o seu. Caim não poderia
conhecer por experiência própria que ele, ao ferir Abel, poderia terminar por
lhe tirar a vida.

Mas há mais dados necessários para compreendermos essa história,


porque a sentença de Deus para Caim envolve dois aspectos: primeiro, Caim
deve vagar sobre a face da Terra; segundo, Deus lhe diz que, no fim, ele será
assassinado por um de seus descendentes.

Por que uma sentença em duas fases? Porque Caim cometeu um crime
em duas fases. Este foi, é claro, o assassinato do seu irmão. Mas também foi
uma recusa em assumir a responsabilidade por suas ações. Quando Caim disse
a Deus: “Sou eu o guardião do meu irmão?”, ele se “divorciou” do seu irmão,
como se Abel nada tivesse a ver com ele, como se fosse separado dele.

Uma parte da sua punição – vagar pelo mundo – tinha o objetivo de


fazê-lo vivenciar o que significa estar sozinho, não pertencer a ninguém. E, é
claro, a segunda parte da sua punição era que ele seria assassinado porque
era um assassino.

Não importa o modo como você observa a situação, a sentença de Deus


foi, de fato, de acordo com o princípio de “medida por medida”, e o crime em
duas fases recebeu uma punição em duas fases.

A JUSTIÇA PARA ABEL


Mas como Deus pode fazer justiça ao pobre Abel, que foi morto na flor
da idade?

Aparentemente, Deus tem duas formas de solucionar o problema.


Primeiro, uma solução simples. Embora Abel, como todos nós, tivesse
uma tarefa a cumprir aqui na Terra, ele não teve a oportunidade de realizá-la.
Por ter sido uma vítima que, imerecidamente, sofreu nas mãos do seu irmão,
ele deve ser imediatamente admitido no Céu. Abel ganha passe livre em virtude
de lhe ter sido negada a chance de conquistar esse direito na Terra.

Segundo, a solução mais complicada, que aprendemos da tradição


judaica mística, a Cabalá, é denominada guilgul neshamot, a transmigração de
almas ou reencarnação.

A Cabalá ensina que todo aquele cuja vida foi tomada de um modo que
não estava de acordo com o plano de Deus, qualquer um que deveria ter tido
uma vida mais longa mas não teve, ainda tem direito aos seus anos de vida
decretados Divinamente. Assim, o que acontece a Abel? Ele renasce; ele obtém
uma nova chance.

Algum tempo depois, diz o Zôhar, a obra-prima do misticismo judaico,


nasceu uma criança com a alma de Abel, embora tenha sido chamada por
outro nome.

Isso teve que acontecer porque Abel não estava preparado para ser Abel.
Por isso ele teve que receber outra oportunidade para cumprir a sua missão no
mundo e, assim, conquistar o seu lugar no paraíso.

Como ilustração, a Cabalá identifica para nós inclusive algumas das


transmigrações, explicando quais pessoas reconhecemos dos relatos bíblicos
que se tornaram outras em vidas posteriores. Assim, a Cabalá nos conta que
Abel retornou como Moisés. Caim também retornou uma segunda vez, como
Aarão, o irmão de Moisés.

Nessa segunda vida ambos tiveram a chance de completar suas vidas


incompletas. Abel, que não pode realizar plenamente o seu potencial sagrado
e morreu em pureza, poderia agora liderar os israelitas para fora do exílio,
receber os Dez Mandamentos no Monte Sinai e se tornar o homem que se
encontrou com Deus “face a face”. E Caim, que antes fora irônico, dizendo “Sou
eu o guardião do meu irmão?”, tornou-se exatamente isso: a fim de expiar o
seu crime anterior, tornou-se o guardião do seu irmão, acompanhando Moisés
até o palácio do Faraó e servindo como seu porta-voz. A fim de cumprir um
ticun completo – a correção do seu crime de ódio implacável –, Caim, o primeiro
assassino, tornou-se Aarão, que viria a ser conhecido como “aquele que ama e
persegue a paz”.27

Portanto, a Cabalá nos conta que, em uma situação em que a morte


é provocada por outro ser humano, e não por um decreto Divino, Deus Se
compromete a corrigir ambos os erros: Ele tem que fazer alguma coisa por
aquele que foi responsável pelo crime, e tem que fazer algo por aquele que foi
a vítima. Isto é problema de Deus; Ele cuidará de resolvê-lo.

O que discutimos até agora foi um tipo de morte – a morte nas mãos de
outra pessoa. E talvez, em nossa indagação para entender como Deus pode ser
bom, justo e Todo-Poderoso e ainda assim permitir que pessoas boas morram,
este seja o cenário mais simples para se solucionar a questão. Deus não é o
responsável pelo que houve, mas Ele irá corrigir o erro. Mas, e se Deus for o
responsável – como no caso em que uma pessoa morre prematuramente de
causas naturais ou quando uma criança morre de alguma enfermidade? E então?

MISSÃO CUMPRIDA
O Talmud nos conta a seguinte história:28 um estudante estava
caminhando ao lado do seu rabino, e ele estava muito triste. Triste com Deus.
Parece que um colega seu, um estudante de Torá brilhante, que mal passara
dos 20 anos, ficou muito doente e morreu. Então, o estudante diz ao rabino:
“Eu não posso entender isso. Ele era um bom homem. Não me diga que ele
morreu prematuramente porque cometeu algum pecado grave. Eu não acredito
que ele tenha feito isso. Então, por que Deus o levou com essa idade?”

O rabino, como que ignorando a sua questão, aponta ao longe, onde


há um homem caminhando. “Veja que coisa terrível”, diz o rabino. “Olhe para
aquele trabalhador com suas malas voltando para casa. É pouco mais de meio-
dia e ele já está voltando para casa.” O estudante diz: “Eu não entendo. O
que há de terrível nisso? O homem terminou a sua tarefa e está voltando para
casa.” Então o rabino diz ao estudante: “Que os seus próprios ouvidos ouçam o
que a sua boca está dizendo. O homem terminou a sua tarefa e está voltando
para casa!”

Aprendemos dessa história que a morte pode significar “missão cumprida”.


Uma pessoa que cumpriu o seu propósito na vida – independente do que tenha
sido; isso é entre ela e Deus –, pode voltar para casa agora. Por um lado, a
morte é um fim, mas, por outro, como Sêneca disse de modo tão belo, “o dia
que tememos como o nosso último é, na verdade, o aniversário da eternidade.”

Os Sábios desenvolvem extensamente essa ideia e nos oferecem muitas


fontes bíblicas como prova dessa verdade.

É um princípio bem estabelecido do Talmud que toda pessoa vem


para a Terra por uma razão especial. Não há duas impressões digitais iguais,
tampouco duas pessoas semelhantes. Cada um de nós é diferente do resto do
mundo inteiro – caso contrário, não precisaríamos ter sido criados. Os Sábios
nos ensinam que cada indivíduo é único porque cada um de nós tem uma
missão especial na vida. Se não fosse para nós existirmos – e esta é uma ideia
complexa a se considerar –, o mundo não poderia existir. O destino do mundo
teria sido diferente hoje em dia sem cada indivíduo que já viveu. Cada pessoa é
uma parte essencial do tecido que Deus tece para alcançar Seus objetivos finais
para a história da humanidade.

Alguns dos grandes rabinos do passado tentaram imaginar a missão


deles em vida ao olharem para os seus talentos e concluírem que seus dons
especiais deveriam servir como instrumentos para alcançar o que Deus queria
deles. Eles passariam suas vidas desenvolvendo seus talentos singulares a fim
de lhes permitir cumprir suas missões determinadas por Deus, de modo que,
provavelmente na época das suas mortes, eles pudessem estar aptos a dizer:
“missão cumprida”.
A VIDA INTERROMPIDA PREMATURAMENTE
No entanto, está claro que algumas pessoas morreram antes do seu
tempo – suas tarefas foram interrompidas e ficaram por terminar.

Aprendemos do Talmud29 que Abrahão morreu antes do tempo que


lhe fora previsto; ele deveria ter vivido mais do que viveu. Abrahão morreu
quando Jacob e Esaú, seus netos gêmeos, alcançaram a idade de 13 anos. Que
destino aparentemente cruel para a vida de uma figura tão santa, o patriarca
da nossa fé! No mesmo instante em que cada um dos seus netos se tornou
um bar-mitsvá, Abrahão é levado deste mundo – lembre-se, antes do tempo
que lhe fora determinado –, incapaz de acompanhar o progresso deles ou de
desfrutar o naches, a satisfação espiritual, que eles lhe trariam na sua velhice!
Que incompreensível, que decreto severo... a menos que, naturalmente, você
esteja ciente do restante da história.

Depois que Esaú alcançou essa idade, ele se afastou completamente


dos valores da sua família. Tornou-se um caçador, um matador não apenas de
animais, mas das pessoas que roubou e das mulheres que estuprou. Como teria
sido difícil para o seu avô testemunhar tudo isso! Imagine Abrahão lamentando:
“Por que eu tive que viver para ver isso?” De fato, ele não teve que viver tanto!
Deus o poupou de ver que seu neto se tornara um homem cruel. Fazia um
tempo que a vida para Abrahão já não era mais uma bênção; então Deus,
misericordiosamente, levou-o antes do seu tempo.

Eu não posso ajudar, mas posso refletir acerca dos judeus que morreram
em 1939 na Europa Oriental. Não há dúvida de que os seus entes queridos
lamentaram e tentaram imaginar por que esta ou aquela pessoa morreu antes
do seu tempo. Somente ao olharmos em retrospecto é que podemos entender
que os falecidos foram poupados de ver a aniquilação de suas famílias e
comunidades. E talvez eles tenham sido poupados de uma forma diferente de
morte, uma morte horrível, sem um pingo de dignidade.

É muito interessante notar que há um outro aspecto para essa linha


de raciocínio. Nós aprendemos da Bíblia que houve outra pessoa que morreu
prematuramente. Enoque, o pai de Noé, morreu bem antes de outros da sua
geração. Naquela época, a expectativa de vida ultrapassava os 900 anos, mas
Enoque morreu quando tinha apenas a idade de 365. (Obviamente, não sabemos
como eram contados aqueles anos quando avaliados à luz do nosso período
médio de vida. Talvez, antes do Dilúvio, como sugerem alguns comentaristas, o
ciclo solar na Terra fosse diferente e a contagem dos anos fosse outra que não
a nossa. Talvez Deus estivesse relutante em aplicar a mortalidade, embora Adão
e Eva já tivessem morrido no mundo. Talvez as pessoas tivessem que viver mais
a fim de aumentar a população na Terra. Enfim, não sabemos.)

Não importa como entendamos isso, Enoque morreu muito mais jovem
do que seus contemporâneos. A Bíblia nos conta: “E Enoque andou com Deus
e desapareceu, porque Deus o tomou.”30 Perguntam os Sábios: O que isso
significa? “Desapareceu” parece implicar uma partida repentina e inesperada.
E por que nos dizer “porque Deus o tomou”? Não é esta a definição de morte
para qualquer um, e não apenas para ele? Deus toma a todos nós quando Ele
decreta a nossa morte!

Rashi (acrônimo do nome de Rabi Salomão bar Issac, do século 12),


aceito universalmente como o principal comentarista bíblico, oferece a resposta.
Enoque era uma pessoa boa, mas Deus sabia que ele poderia ser facilmente
induzido a se voltar para maus caminhos. Deus temia pelo futuro de Enoque.
Uma vida inteira de boa conduta estava ameaçada por aterradoras possibilidades
que Deus percebeu que, em breve, seriam apresentadas a Enoque. É por isso
que Deus rapidamente o levou. Ele viu o que ele fizera até então e afirmou a
respeito desse homem: “Eu o pouparei do próximo desafio, que ele será incapaz
de enfrentar.” Então Deus o removeu antes do seu tempo para salvá-lo – não de
ver o mal, como fora com Abrahão, mas para salvá-lo de ser mal.

Eu conheço uma mulher cujo filho foi morto em um trágico acidente.


Ele estava sempre metido em problemas com a lei e estava afastado da sua
família por algum tempo. Sua mãe chorou a perda do seu filho, questionando a
si mesma e a Deus. Como aquela morte poderia ter sido evitada? Por que Deus
o levou antes de lhe dar uma chance para se reconciliar com a sua família?
Entretanto, quando ela foi retirar os pertences do seu filho do apartamento
dele, a sua culpa e seus questionamentos desapareceram imediatamente. A
casa do filho estava repleta de uma coleção de revólveres, bombas e armas.
Dos escritos que ele deixou, ficou claro à mãe que ele estava planejando uma
ação terrível que teria resultado na morte de muitas pessoas. Deus, em Sua
misericórdia, levou-o deste mundo antes que ele pudesse completar o seu plano
criminoso. Sua mãe agradeceu a Deus por poupá-la de um pesar muito maior
que certamente ocorreria se ele ainda estivesse vivo.

O FIM DO SOFRIMENTO
Em quais outras instâncias a morte pode ser vista como uma bênção?
Quando esta encerra uma enfermidade prolongada, acompanhada por um
sofrimento terrível. Um pouco mais adiante daremos diversas explicações para o
sofrimento e veremos como um Deus bom, justo e Todo-Poderoso pode permitir
que pessoas boas sofram. Mas por ora consideraremos aquelas situações –
com as quais todos nós estamos familiarizados – em que uma família respira
aliviada quando uma pessoa idosa, vítima de câncer, finalmente encontra alívio
na morte.

A respeito disso, o Talmud oferece uma história esclarecedora:31 Rabi


Yehoshua, um homem muito santo, foi acometido por algo que ele considerou
ser o mal da morte, e um dia ele rezou fervorosamente para que este mal
fosse removido deste mundo. Em pouco tempo, em um sonho, suas preces
foram atendidas. Ele se viu lutando com o anjo da morte e tornou-se vitorioso;
venceu a batalha e retirou a espada do anjo. Então ele viu, em seu sonho, o
que aconteceria em seguida. O anjo da morte tentava fazer o seu trabalho,
mas, sem sua espada, tornara-se impotente. Ao ver isso, Rabi Yehoshua ficou
muito feliz, quando, de repente, ouviu um gemido. Esse gemido foi se tornando
cada vez mais intenso até que se tornou um choro que estremeceu as próprias
fundações da Terra. O Talmud diz que Rabi Yehoshua perguntou a Deus: “O
que foi aquele barulho?” Deus respondeu: “O som que você ouve é o mundo
lamentando a falta que faz o anjo da morte. Você pensa que o anjo da morte é
apenas o anjo da destruição; saiba que ele também é o anjo da misericórdia.”
O Talmud explica que a morte leva o sofrimento ao fim. Desse ponto de
vista, a morte é uma bênção, e a Terra seria muito pior sem ela.

MORTE E NASCIMENTO
O Midrash nos oferece um outro ponto de vista do que seria a vida sem
a morte. Vejamos:

Shimon lamentava excessivamente por seu falecido amigo. Ele estava


inconsolável em seu pesar. Certa noite, em uma visão, ele ouviu uma voz Divina
lhe dizendo: “Shimon, por que você está tão pesaroso? A morte não é um
incidente inevitável no ciclo da vida? Você pretende mudar o plano do universo
e tornar o homem imortal?” Shimon reuniu coragem e respondeu: “Por que não,
ó Eterno? Deus tudo pode! Por que deve haver um fim a vidas tão maravilhosas
quanto a do meu amigo e outras como a dele?”

E a voz Divina respondeu: “Então você rejeita o serviço da morte para a


economia da vida? Então muito bem. Iremos lhe colocar em um mundo onde a
imortalidade prevalece e veja se você gosta dele.”

De repente, Shimon encontrou-se observando um vasto campo; era uma


vista de tirar o fôlego. Ele compreendeu que toda aquela grandiosidade diante
dele duraria para sempre. Nada daquilo pereceria; tudo permaneceria como
sempre fora: nenhuma flor morreria sobre a sua haste; nenhum botão cairia
dos arbustos.

O verão passou e chegou o outono, mas nenhuma folha caiu, nenhuma


árvore perdeu a sua folhagem. O mundo, em sua beleza, havia recebido uma
espécie de condição permanente, e jamais saía do mesmo estado. Por fim, a vida
parecia estar livre do desgaste do tempo e das circunstâncias, mas aos poucos
Shimon sentiu que estava faltando algo. Nada morria nesse mundo, tampouco
nascia algo. Ele havia sido poupado das crueldades do envelhecimento, mas
perdera as maravilhosas novidades decorrentes da juventude. Seus olhos
já estavam cansados da beleza das flores, que era sempre a mesma. Ele
desejava muito testemunhar a glória de novas flores desabrochando. Shimon
estava pronto para renunciar à dádiva da imortalidade quando repentinamente
acordou; ele estava sonhando.

Em seguida, refletiu por um tempo sobre a sua estranha experiência, e


então disse: “Ó Eterno, eu Te agradeço por Tu teres criado seres mortais, de
carne e osso. Alguém morreu para que eu pudesse nascer, e estou desejando
morrer para que haja continuidade e surja uma nova vida no Teu mundo. Tu és
o Juiz justo!”

Após um funeral judaico, pede-se aos enlutados para que comam um ovo
cozido, símbolo da vida, mas que também serve para recordar o ciclo da vida.
Alguns morrem e alguns nascem, e para que possa haver nascimentos, nós
precisamos ter mortes.

Esta pode ser uma razão suficiente para aceitarmos a morte. Um nível
mais elevado de compreensão nos permite ir ainda mais longe. Em certo sentido,
a morte também pode servir como um momento de celebração.

A CELEBRAÇÃO DA MORTE
Em outro Midrash,32 ouvimos falar de um filósofo que estava diante da
orla marítima quando um novo navio estava partindo. Todos estavam muito
excitados e felizes com a cerimônia de partida. À distância, outro navio se
aproximava, voltando de uma longa e perigosa viagem. O filósofo disse: “Que
gente tola. Vocês não estão fazendo o oposto do que deveriam estar fazendo?
Aqui todos vocês estão excitados e felizes com esse novo navio, e não sabem
o que acontecerá com ele; vocês não têm ideia do que ele vai ter que passar.
Há outro navio que enfrentou as tempestades do mar. Ele está retornando
carregado de tesouros; é um navio que já se mostrou bem-sucedido. É para ele
que vocês deveriam voltar a sua atenção; era o seu retorno que vocês deveriam
estar celebrando.”

É por isso que nós não lembramos os aniversários no judaísmo, mas


comemoramos yahrzeits, aniversários da morte dos nossos entes queridos. Este
é um momento reservado para olhar para trás e, em retrospecto, relembrar o
que o falecido realizou. É nessas horas que podemos nos alegrar com o fato de
nossos entes queridos terem chegado a um plano onde ele ou ela podem ser
recompensados por suas conquistas.

A morte é uma viagem para outro destino. Conhecer mais sobre o que
nos espera é remover o medo do desconhecido. No próximo capítulo iremos
compartilhar a notável sabedoria do judaísmo sobre o que nos acontece depois
que morremos.

CAPÍTULO 7
A VIDA APÓS A MORTE

Sim, existe vida após a morte.

Nenhuma discussão sobre a morte pode ousar ignorar uma das principais
convicções judaicas que, hoje em dia, surpreendentemente, vem ganhando
novos adeptos em virtude dos atuais avanços da medicina.

Nos últimos anos temos visto uma enxurrada de filmes populares baseados
no tema de as almas sobreviverem após a morte: Para Além do Horizonte (What
Dreams May Come), com Robin Williams; Ghost,com Whoopi Goldberg; Voltar
a Morrer (Dead Again), com Kenneth Branagh e Emma Thompson; e, é claro,
o imensamente bem-sucedido O Sexto Sentido, com Bruce Willis. E quem não
se lembra da cena final de um dos filmes de maior bilheteria em todos os
tempos, Titanic, quando a heroína, agonizante, é cumprimentada do outro lado
por pessoas que morreram antes dela?

As últimas décadas têm visto a cultura popular abraçar uma ideia que, no
passado, só encontrou aceitação nos círculos místicos e paranormais. Ninguém
jamais poderia sonhar que livros como Conversando com os Espíritos (Editora
Sextante) e Em Busca da Espiritualidade (idem), escritos na década de 1990,
alcançariam o topo da lista de mais vendidos do The New York Times, ou que o
livro de Brian Weiss, Muitas Vidas, Muitos Mestres (idem), escrito na década de
1970, se tornaria um best-seller internacional traduzido para mais de 30 línguas.

O que tem levado a essa obsessão contemporânea por uma ideia que
antigamente estava reservada ao campo da religião? O que incitou o mundo
secular a se tornar repentinamente tão receptivo ao conceito de uma alma
imortal? Com quase toda certeza, a resposta repousa em uma incrível inovação
médica dos anos 1970 que passou a ter um papel significativo nas vidas de
milhares de pessoas.

Até então, a morte era um ilustre desconhecido. O Hamlet de William


Shakespeare expressava uma verdade que parecia válida para todas as épocas:
a morte, ele observava, é o “país não descoberto... de cujo destino nenhum
viajante retorna.” Sem o benefício do testemunho pessoal de alguém que de
fato completara a viagem, não havia modo de saber o que nos estava reservado
após a morte. A ideia da vida eterna podia ser contrária à nossa convicção,
mas certamente não podia contar com qualquer confirmação científica válida.
A ideia de que uma alma consciente sobrevive após a morte tinha tanto apoio
racional quanto as manifestações de um médium durante uma sessão espírita.

E então, graças a técnicas cada vez mais sofisticadas de ressuscitação, as


pessoas morreram – e então voltaram para nos contar como era isso!

Com certeza, aqueles que retornaram obviamente não morreram no


sentido absoluto do termo. Pessoas que realizaram uma inovadora pesquisa
nesse campo, como os doutores Elisabeth Kubler-Ross e Raymond Moody,
propuseram o nome EQM – “Experiência de Quase-Morte” – para descrever o
fenômeno. Mas os sobreviventes da EQM foram, na realidade, bem mais longe
do que apenas “quase” morrer. O que nos permite pensar neles como tendo
estado mais próximos do “outro lado” do que daquilo que chamamos de vida
é o fato de que estavam clinicamente mortos; seus cérebros não mostravam
nenhum sinal de atividade; seus corações haviam deixado de bater, e não havia
como registrar sensações, recordar visões e ouvir sons. Contudo, essas pessoas
foram capazes de “recordar” o que aconteceu nos quartos onde seus corpos
repousavam, de descrever quem veio e partiu depois que elas foram declaradas
mortas, e até mesmo repetir conversas que ocorreram na presença dos seus
corpos “mortos” em detalhes precisos e acurados.

Com qual parte dos seus cérebros inativos elas se lembraram, e como
possivelmente puderam ver e ouvir? Seus corpos físicos não eram mais capazes
de executar essas tarefas. Não surpreende que quase todos os que passaram
por uma experiência de quase-morte – independente de que antes fossem
religiosos ou céticos radicais, agnósticos ou ateus – tenham alcançado uma
crença inabalável em uma alma não-física que sobrevive à morte do corpo.

Os teólogos consideram uma ironia que, inadvertidamente, a profissão


médica tenha obtido sucesso onde inúmeras gerações de líderes religiosos antes
falharam. A medicina moderna nos deu, afinal, evidências para a existência da
alma humana. A mesma tecnologia projetada para manter o corpo vivo a todo
custo revelou que o corpo é secundário em relação a um sentido superior do
indivíduo; seres humanos são mais do que corpos físicos. Nós temos aspectos
de realidade não-físicos, invisíveis, que sobrevivem aos nossos “recipientes
mortais”. Finalmente viemos a entender o que quase certamente é o que a
Bíblia diz ao nos contar que somos criados “à imagem de Deus”.

O QUE ACONTECE APÓS A MORTE?


À medida que cada vez mais pessoas passaram a relatar suas experiências
de quase-morte, a mídia passou a dar maior atenção ao assunto. Programas
de televisão, artigos de revista e relatos em jornais deram a esse fenômeno
uma ampla cobertura. Além de tornar o tema mais popular e digno de crédito,
isso permitiu àqueles que haviam sido testemunhas pessoais de um caso
sentirem-se mais confortáveis em relatar o que lhes havia acontecido. Muitos
admitiram que o medo de serem ridicularizados fizera com que antes deixassem
de compartilhar suas experiências com outros, embora considerassem suas
viagens para o além e por vidas passadas as mais intensas, importantes e
significativas de suas vidas.
Com a divulgação internacional após a publicação, no fim dos anos 1970,
do livro de Raymond Moody Vida Depois da Vida (Editora Nórdica), celebridades
como Elizabeth Taylor e Marie Osmond sentiram-se livres para falar sobre seus
próprios encontros pessoais com a morte.

O aspecto provavelmente mais interessante das experiências de quase-


morte é a semelhança quase universal entre elas. Sem qualquer referência a
religião, raça, estado social, idade ou sistema de valores individuais envolvidos,
quase todos – senão todos – aqueles que foram declarados clinicamente mortos
passaram pelos seguintes estágios resumidos por Moody neste exemplo fictício:

Um homem está morrendo e, assim que ele alcança o ponto de


maior aflição física, ouve o seu médico declará-lo morto. Ele começa a
ouvir um barulho incômodo, um toque ou zumbido alto, e ao mesmo
tempo se sente movendo-se rapidamente ao longo de um túnel comprido
e escuro. Depois disso ele de repente se encontra fora do seu corpo
físico, mas ainda em contato direto com o meio ambiente físico, quando
vê o seu próprio corpo à distância, como um espectador. Ele assiste
à tentativa de ressuscitação desde este ponto de vista privilegiado e
incomum, em estado de transtorno emocional.

Depois de um tempo ele se recolhe e fica mais acostumado com


a sua estranha condição. Ele percebe que ainda tem um corpo, mas
de uma natureza muito diferente e com forças bem diversas das do
corpo que deixou para trás. Logo, outras coisas começam a acontecer.
Outros vêm ao seu encontro para ajudá-lo. Ele reconhece os espíritos de
parentes e amigos que já morreram, e um espírito amoroso e caloroso
de um tipo que ele jamais encontrara antes – um ser de luz – aparece
diante dele. Este ser lhe pede, de maneira não-verbal, para que ele
avalie sua vida, e o auxilia nesta tarefa ao lhe mostrar uma retrospectiva
panorâmica instantânea dos principais eventos da sua vida. Em algum
momento ele se vê alcançando alguma espécie de barreira ou fronteira,
que aparentemente representa o limite entre a vida terrena e a vida
vindoura. Contudo, ele considera que precisa retornar à Terra, que a
hora da sua morte ainda não chegou. Neste ponto ele resiste, pois está
envolvido por sua experiência na vida vindoura e não quer retornar.
Ele está tomado por sentimentos intensos de alegria, amor e paz. No
entanto, apesar da sua atitude, ele de algum modo se recompõe com
seu corpo físico e revive.

Mais adiante ele tenta contar aos outros, mas tem dificuldades em
fazê-lo. Em primeiro lugar, não consegue encontrar palavras humanas
adequadas para descrever estes episódios sobrenaturais. Ele também
imagina que os outros irão zombar dele; então deixa de falar sobre isso
com outras pessoas. Além disso, a experiência afeta profundamente
a sua vida, especialmente seus pontos de vista sobre a morte e seu
relacionamento com a vida.

Ninguém que passou por esta experiência, ao retornar à vida,


sentiu novamente medo da morte.

A mente ocidental tem dificuldade em lidar com esses temas tão


identificados com o espiritual. A ciência é rápida em rejeitar o que ela rotula
como “evidência anedótica”. Por muitos anos foi negada aceitação acadêmica aos
pioneiros no campo da Experiência de Quase-Morte (EQM), como Moody, Kubler-
Ross e uma série de outros, mas a riqueza de material acumulado nas pesquisas
passou a reverter o processo, inclusive nas principais revistas acadêmicas.

O Dr. Melvin Morse, um pediatra de Seattle, fez um longo trabalho


com crianças que sofreram ataques cardíacos e sobreviveram e concluiu,
convincentemente, que suas experiências de quase-morte não foram
induzidas por drogas, não foram causadas psicologicamente por medo nem
condicionadas culturalmente.

Ele descreveu o caso de uma paciente de 9 anos de idade, Kate, que foi
ressuscitada depois de se afogar. Ao retornar à vida, ela descreveu detalhes
físicos do que ocorrera no hospital enquanto estava inconsciente. Ela contou
como um guia a levou por um túnel onde ela conheceu o seu avô falecido. Foi
quando um ser de luz apareceu e lhe perguntou se ela queria voltar para a sua
mãe; ela respondeu afirmativamente, e a próxima coisa de que ela se deu conta
foi que acordou na sua cama de hospital.
Kate acrescentou convictamente que, durante a sua EQM, ela viajou fora
do corpo para a casa dela. Lá viu o seu irmão brincando com um boneco G. I.
Joe em um jipe e sua irmã brincando com uma boneca Barbie. Ela descreveu as
roupas que seus pais estavam usando, onde o seu pai estava sentado na sala
de estar e o que a sua mãe estava cozinhando. Cada uma das suas observações
foi confirmada.

O American Journal of Diseases of Children (Revista Americana de Patalogias


Infantis), uma prestigiosa e reconhecida publicação médica, publicou os
resultados de Morse em 1986. Naturalmente, muitos médicos renomados
expressaram suas reservas. A profissão médica ainda não está preparada
para dizer “amém” para uma explicação da morte que se deve mais a Deus
do que a Galeno. Mas é certamente digno de nota que a aceitação secular da
ideia da alma fez mais progressos nas últimas décadas do que em todos os
milênios anteriores.

A SOBREVIVÊNCIA APÓS A MORTE


O que torna a sobrevivência após a morte tão difícil de imaginar é a nossa
incapacidade de vislumbrar qualquer tipo de existência tão diferente daquela
que entendemos por vida. Nós nem sequer temos as palavras certas para falar
sobre almas e o seu potencial para sentimentos, comunicação, consciência e
movimento. É por isso que aqueles que duvidam consideram isso tão difícil de
acreditar. Eles perguntam: Como podemos acreditar em algo que possivelmente
ninguém é capaz de descrever?

A tradição judaica nos transmitiu, já desde há muito tempo, uma bela


parábola para nos ajudar a lidar com a ideia de um mundo depois deste. Esta
requer uma mente um tanto imaginativa, mas tem o poder de nos abrir para
a possibilidade de outro campo de existência por meio da analogia com um
ponto de vista da vida diferente em relação àqueles com os quais já estamos
familiarizados.
Assim diz a parábola: tente imaginar irmãos gêmeos antes do nascimento
descansando tranquilamente no útero da mãe deles. Suas bocas fechadas,
alimentados sem esforço da parte deles por meio de um tubo que entra
por seus umbigos; aquecidos pelos fluidos do saco embrionário, sentem-se
completamente em paz e seguros. Eles possivelmente não podem conceber um
modo de vida melhor, mais confortável ou diferente.

Se você quiser, permita agora que eles recebam o dom da consciência.


Assuma que eles estão atentos ao seu meio ambiente e começam a levar em
conta o seu futuro. Eles reconhecem as mudanças que ocorrem ao seu redor,
sentem-se descendo e começam a debater o que irá lhes acontecer.

Cada um dos irmãos tem um ponto de vista diferente. Um é otimista por


natureza, enquanto o outro é um pessimista. O primeiro é um que acredita; o
segundo é um cético.

O que acredita tem certeza de que outra vida os espera depois que eles
forem expelidos do seu lar atual. Ele fala com segurança: “Eu não posso acreditar
que Deus nos colocou aqui durante nove meses, cuidou de nós, alimentou-nos,
permitiu que crescêssemos e nos desenvolvêssemos sem qualquer propósito.
Deve haver algum plano maior que ainda desconhecemos. Nossa presença aqui
pode ter sido apenas uma preparação para uma vida mais gloriosa a seguir. É
impossível pensar que tudo o que podemos esperar daqui em diante seja um
total esquecimento.”

Porém, o seu irmão é muito mais realista. Ele menospreza pensamentos


tendenciosos e expectativas insuportáveis. Para ele, a fé – como diria Marx –
não é mais do que o “ópio para as massas”. Ele diz, desdenhando do seu irmão
gêmeo: “Lá vem você confundir sua esperança com verdade. O fato óbvio é
que tudo o que nos dá vida – o útero onde vivemos, o cordão pelo qual somos
alimentados, a segurança do nosso saco embrionário – é só aqui. Uma vez que
deixarmos este lugar, morreremos.”

O irmão que acredita tenta novamente defender a sua crença. Ele sugere
que, uma vez fora do útero, eles poderão inclusive se mover mais livremente. Ele
fala sobre a possibilidade de outros modos de se obter comida. Ele compartilha o
seu sonho de um tipo de independência que vai além da imaginação deles, mas
infelizmente não tem como expressar isso em palavras. Na falta de qualquer
contato com a vida tal como esta é vivida na Terra, ele é brecado quando seu
irmão põe abaixo suas visões como impossíveis e lhe pede para defendê-las
com exemplos concretos.

Assim, os gêmeos se aproximam do seu predestinado encontro com


o nascimento, separados por opiniões drasticamente diferentes sobre seus
destinos. O que acredita confia que, mais do que sobreviver, estará ainda
melhor fora do que antes. O cético espera o colapso do seu mundo e a vinda
sombria do momento final.

De repente, estoura a bolsa de água dentro do útero. Há um empurra-


empurra. Os gêmeos percebem que estão sendo forçados a sair da casa deles. O
momento traumático chegou. Aquele que acredita é o primeiro a deixar o útero.
O seu irmão gêmeo, ainda ali dentro, escuta atentamente a qualquer pista do
outro lado. Com o coração aflito, ele se dá conta de um choro penetrante vindo
do seu irmão. Então, afinal de contas, eu estava certo, ele diz. Eu acabei de ouvir o
grito de morte do meu pobre irmão. E naquele mesmo momento, uma mãe e um
pai contentes estão se felicitando pelo nascimento do seu primeiro filho, que
acabou de se fazer notar por seus choros de vida.

A parábola é profunda porque nos lembra que espécies diferentes de


existência nunca podem ser precisamente descritas ou imaginadas antes que
nos encontremos com elas. Se tivesse consciência, uma criança por nascer seria
incapaz de imaginar a vida fora do útero. Do mesmo modo, nós aqui na Terra
não podemos compreender o significado de um mundo de almas divorciado
dos nossos corpos. Mas o fato de não sermos realmente capazes de imaginar
isso não faz disto algo menos verdadeiro. Deixar o nosso corpo após a vida
pode muito bem ser o nascimento da alma, assim como deixar o útero é o
nascimento do corpo. Como dizem os sábios de muitas crenças, o mundo é um
caminho de passagem para a alma em direção a um plano mais elevado. E a
morte, na vívida metáfora de Elisabeth Kubler-Ross, está “quebrando o casulo
e emergindo como uma borboleta”.
DESCREVENDO O INDESCRITÍVEL
As experiências de quase-morte mostraram-se extremamente úteis para
pacientes terminais e suas famílias lidarem com o tema da morte. Muitas vezes,
saber de alguém que passou por essa experiência ou inclusive ler a respeito
proporciona uma mudança inspiradora no modo de ver a vida. O grande medo
sempre associado à morte – o horror de enfrentar o desconhecido – torna-
se fortemente mitigado pela fé em uma vida após a morte e no sentimento
reconfortante de que, afinal de contas, morrer pode não ser uma experiência
assim tão terrível.

As descrições daqueles que tiveram uma EQM nos forçam a revisar os


fortes estereótipos negativos que sempre relacionamos à morte. Aqueles que
retornaram do “outro lado” consideram impossível expressar em palavras a
beleza do que vivenciaram. Tudo o que eles podem compartilhar conosco –
como demonstra o seguinte exemplo de Beyond the Light: Files of Near-Death
Experiences (Além da Luz: Documentos de Experiências de Quase-Morte), de Marisa
St. Clair – é uma pequena medida das alegrias que eles desfrutaram, muito
além de qualquer felicidade imaginável nesta Terra:

Eu acredito que morri e fui para o céu, mas não era minha hora, e
por isso fui enviado de volta. Não há palavras para fazer justiça ao que
me aconteceu. Foi até 100 vezes mais excitante do que aguardar pelo
Natal quando você é uma criancinha, mais divertido do que dirigir o carro
mais veloz ou ter a melhor relação sexual.

Eu havia entrado em um mundo que teve uma espécie de sabor de


êxtase. Todas as cores eram mais brilhantes do que qualquer coisa que
você possa imaginar; todas as visões e sons pareciam estar engrenados
de alguma forma. Era como estar mais de um milhão de vezes apaixonado.
Eu conheci um ser que poderia ter sido Deus, e eu estava contente de
estar ao redor dele, mas não era para ser assim.
Eu me lembro do meu coração vir à boca quando ele me falou que
eu tinha que voltar. Eu implorei como nunca para me permitir ficar, mas
de repente, com uma espécie de estalido bem alto, eu estava de volta ao
meu corpo, sentindo-me muito mal. Fiquei em estado miserável por dias,
porque voltara para este mundo pavoroso, pesado, cinzento e torpe,
quando eu bem poderia estar morto.

A ideia de que “estar morto é aterrorizante” parece uma piada, não


parece? Se eu tivesse uma chance agora mesmo, optaria pela morte em
vez da vida, a qualquer momento.

Estas são as palavras de Joe, um homem inglês que teve uma experiência
de quase-morte. Embora sua conclusão soe quase suicida, na verdade não deve
ser vista assim. Juntamente com aqueles que compartilharam a sua experiência,
ele percebeu que a decisão Divina de o enviar de volta significou que ele tinha a
obrigação de cumprir uma missão ainda inacabada. Contudo, o que ele escolheu
expressar foi a certeza da sua convicção recém-descoberta, de que o que lhe
aguardava no fim dos seus dias deveria ser aguardado ansiosamente, em vez
de temivelmente esperado.

O Dr. Melvin Morse escreve que a sua pesquisa o convenceu de que,


ao morrer, nos tornamos “mais vivos, mais plenos e muito mais felizes”. Ele
está certo de que terá a chance, um dia, de ele mesmo verificar o que uma
menininha lhe disse após uma experiência de quase-morte: “O céu é divertido,
você verá!”

Espero que todos nós também sejamos capazes de chegar à mesma


conclusão quando completarmos a nossa jornada final. Então todos os nossos
problemas a respeito da “crueldade” de Deus por provocar a morte desaparecerão
imediatamente diante da percepção de que, nas palavras do ator Robin Williams,
“a morte é a maneira de a natureza dizer: ‘O jantar está servido!’”
Notas

20. Shabat 55a. – 21. Ezequiel 18:20. – 22. Salmos 89:33. – 23. Números 20:12. – 24.

Outras pessoas inocentes também morreram, mas pelas mãos de outras; todavia, somente estes

quatro morreram pelas mãos de Deus, ainda que fossem inteiramente inocentes de pecado. – 25.

Ezequiel 18:20. – 26. Números 35:9. – 27. Ética dos Pais 1:12. – 28. Talmud de Jerusalém, Berachot

2:8. – 29. Baba Batra 16b; Midrash Rabá 63:12. – 30. Gênesis 5:24. – 31. Ketubot 77b. – 32. Midrash

Cohélet Rabá 7:4.

No próximo volume da série de e-books


Se Deus é Bom Por Que o Mundo é tão Ruim?

Capítulo 8: Quando Morre uma Criança

Capítulo 9: As Dádivas do Envelhecimento, da Dor e da Doença

Não perca!
CAPÍTULO 8
QUANDO MORRE UMA CRIANÇA

Já deixamos bem estabelecido que, segundo as fontes judaicas e um


número significativo de autoridades contemporâneas, a morte é uma batida na
porta com a mensagem: “Está na hora de deixar a festa daqui e ir para outro
lugar.” Se podemos concordar que a pessoa agonizante está apenas sendo
chamada para ir a algum outro lugar – para alguma outra festa, que é bem
melhor do que a nossa –, então a morte não é assim um problema tão grande.

Quando fazemos a pergunta: “Qual é o propósito dos anos anteriores


passados nesta Terra? Qual é o propósito da vida?” – concluímos que a resposta
é: aperfeiçoarmo-nos espiritualmente. Nós não queremos estar aqui à toa; não
queremos ir a uma festa sem sermos convidados. Nós queremos merecer o
nosso convite; queremos completar a tarefa que nos foi designada aqui na Terra.

Mas quem somos nós para pensar que uma pessoa visivelmente não
completou a sua missão, quando há aqueles que deixam esta Terra antes que
consigam, possivelmente, alcançar alguma coisa? Quando morrem pessoas
jovens, com toda a certeza não se pode dizer que elas cumpriram seus propósitos
na vida. Se elas morreram em virtude de um ato violento de terceiros, pudemos
explicar que um Deus Todo-Poderoso optou por não interferir no livre-arbítrio do
agente criminoso. Mas como lidar com a morte de uma criancinha, vítima de uma
doença incurável ou de causa desconhecida? O que temos a dizer sobre isso?

UM TESOURO PEDIDO EMPRESTADO


Uma importante reflexão que o Midrash33 nos convida a considerar é a
história do grande rabino do século 2, Meir, e sua esposa Berúria.

Em um Shabat, enquanto o famoso sábio estava na sinagoga, seus dois


filhinhos morreram repentinamente, sem explicação. A mãe deles, aflita, cobriu
seus corpos com mortalhas e fechou a porta do quarto onde eles estavam
deitados. Quando o seu marido voltou para casa e perguntou pelos filhos, ela
lhe pediu para recitar as orações de havdalá que encerram o Shabat. Assim que
ele as concluiu, ela lhe perguntou:

“Como grande rabino e professor, você me dá uma resposta a uma


questão legal?”

“Qual é a sua questão?”, ele perguntou.

“Alguns anos atrás, alguém muito importante me deu duas joias preciosas
para cuidar. Agora ele veio pedi-las de volta. Eu devo devolvê-las ou não?”

Surpreso com a simplicidade da pergunta, o rabino respondeu sem hesitar:

“Como você pode perguntar uma coisa dessa? É claro que, se tiver algo
que é de outra pessoa, você deve lhe devolver!”

Ela então o levou pela mão e o conduziu para o quarto onde os corpos
dos meninos estavam deitados. A mulher removeu as mortalhas, e ele viu os
seus filhos mortos. Imediatamente, começou a chorar. Mas ela lhe disse:

“Meu querido marido, você não disse que nós deveríamos devolver a
propriedade ao seu dono? O bom Deus deu, e o bom Deus levou.”

O Talmud nos lembra de que nossos filhos não são de nossa propriedade.
Eles são criações e presentes de Deus. Às vezes, Ele os pede de volta quando
nós ainda gostaríamos de mantê-los conosco.

Todavia, qualquer pai ou mãe que perdeu um filho e conhece a dor


dilacerante de uma perda assim ainda deve imaginar por que essa experiência
recaiu sobre eles. Por que eles tinham que ter sido escolhidos para um
sofrimento assim?

Obviamente, estamos de volta ao dilema original de Jó – Deus é bom?


Um Deus bom faria algo assim tão cruel? No entanto, Berúria permaneceu firme
em sua fé. Ela chamou Deus de “bom Deus”; usou o nome que recorre ao Todo-
Poderoso no Seu modo de bondade e compaixão.

Como ela foi capaz de fazer isso? Porque entendeu que o mesmo Deus
que agora levou essas vidas havia sido magnânimo em conceder um presente
assim tão precioso anteriormente. Quando Deus deu, todos reconheceram
a Sua bondade; agora que Ele levou, será que posso condenar Aquele que
anteriormente se mostrou tão desejoso de me mostrar o que é bom? Não. Este
é um ato incompreensível para mim, mas vem das mãos de Alguém que jamais
me fará mal.

O PROPÓSITO DA VIDA DE UM BEBÊ


Sim, há conforto em saber que, em primeiro lugar, Deus nos deu a dádiva
de um filho, e que é Ele quem pede o seu retorno. Sim, há consolo em acreditar
que um mundo ainda melhor aguarda pela alma de alguém que ascende para
um plano mais elevado de existência. Mas a pergunta que não quer calar é: a
qual propósito pode porventura servir uma vida de tão curta duração? Se todos
nós temos uma missão, qual era a da criança que Deus levou de nós logo após
o nascimento?

A primeira resposta possível que nós examinaremos é, talvez, a mais


difícil de aceitar, e requer o maior cuidado em sua análise.

Quando um bebê morre, não se pode dizer que este sofreu muito. Sua
vida efêmera foi tão breve que ele praticamente não teve ciência da sua vida
ou da sua morte. Nosso problema não tem a ver com a sua dor, mas com o seu
propósito. O que foi que a sua alma veio supostamente cumprir sobre a Terra?

A resposta mais notável pode ser que a missão da criança na Terra foi
cumprida por sua vida e morte imediatas. Sua missão pode ter sido ser o veículo
para – e eu lamento não ter um modo melhor de dizer isso – um reembolso
da dívida dos seus pais com Deus. É claro que Deus não precisa disso; é o
reembolso de uma dívida necessária para auxiliar os pais a crescerem intelectual,
emocional e espiritualmente. Esta pode parecer uma pílula dura de engolir, mas
é para crescer que nós estamos aqui, e quando o crescimento está emperrado,
Deus interfere para empurrar a pessoa para frente. Uma mensagem trágica e
traumática pode bem ser o toque de despertar que as pessoas precisam para
fazê-las reconsiderar seus valores e o seu modo de encarar a vida.
O Midrash34 nos oferece a seguinte parábola: um homem estava devendo
muito ao rei e não tinha meios de lhe reembolsar o dinheiro. O rei enviava
constantemente um mensageiro para cobrar a dívida, mas toda vez o homem
implorava por mais tempo. Finalmente, o rei fez algo estranho: ele fez com
que a mesma soma devida fosse lançada através da janela da casa do homem,
que se regozijou com o inesperado tesouro. Pouco depois, o mensageiro do
rei chegou a fim de, mais uma vez, cobrar a dívida. O homem então teve que
se separar da sua fortuna recém-encontrada a fim de, finalmente, pagar a sua
conta com o rei.

Eis uma história enigmática. O rei fora muito generoso com o homem, mas
este não podia pagar o que devia. Por isso o rei, em sua grande magnificência,
lhe deu um presente anônimo a fim de lhe permitir honrar o pagamento da
sua dívida!

Dentro desse enigma encontramos um conceito que descreve um dos


procedimentos de Deus conosco, servos do Rei dos Reis. Quando um homem
comete uma transgressão pela qual merece a morte, Deus não a cobra de
imediato; Ele espera até que o homem esteja casado e lhe dá uma criança de
presente. Então Deus leva a criança para longe dele. O que aconteceu? Este
homem pagou a sua dívida, e Deus recobrou o que é Dele.

Gershon Winkler35 explica essa ideia de uma maneira poderosa e


comovente: “Na alegoria talmúdica acima, a preocupação do rei não era
alimentar o seu tesouro (afinal de contas, ele tirou do seu próprio tesouro e
deu secretamente ao devedor os meios para este reembolsá-lo).”

O único propósito era que o devedor pagasse a sua conta, pois, enquanto
ela ficasse em aberto, a relação ficaria obstruída. Deus não deseja levar a criança
de uma pessoa embora como uma espécie de oferenda ou apaziguamento; Ele
não precisa de nada disso. Pelo contrário, a intenção Divina é proporcionar aos
pais a oportunidade de rever o seu ponto de referência da realidade. É como se
Deus estivesse dizendo:

“Este mundo não é seu; é Meu. Tudo aquilo que você percebe como
seu veio de Mim, inclusive você. Eu tomei de volta a criança que lhe dei
porque o seu filho é nada mais do que uma extensão de você mesmo.
Eu não preciso levá-lo, tampouco sinto prazer com o seu sofrimento
após tê-lo levado. Em vez disso, só desejo zerar a sua conta, cuja dívida
criou um distanciamento cada vez maior na nossa relação. Agora Eu
levei de volta o que era Meu, e você pagou a sua dívida por meio da sua
angústia. Eu só espero que você utilize a experiência para elevar a sua
perspectiva espiritual.”

UMA MENSAGEM CLARA


A Bíblia e o Midrash são riquíssimos em imagens desse tipo.

Eles nos contam que Judá, que vendera o seu irmão José como escravo,
expiou a dor que causou ao seu pai do seguinte modo: Judá mentiu ao seu pai
ao afirmar que animais selvagens mataram José, o filho mais amado de Jacob.
O pesar do ancião não teve limites.

Ao ver a angústia de Jacob, Deus disse a Judá: “Você não teve nenhum
filho até agora; não entende o tormento de perder um filho. Eu lhe faço este
juramento: você se casará com uma mulher e enterrará o seu filho, e então
você saberá. Então compreenderá a intensa dor que causou ao seu pai.”

Foi assim que Judá vivenciou a justiça de Deus de acordo com o


princípio de medida por medida; ele aprendeu qual fora o nível da ferida que
infligira ao seu pai. Não há como negar que ocorre um processo educativo
pela perda de um filho. Segundo Winkler, “isto faz você rever o foco do seu
senso de realidade.”

As pessoas cujas vidas estavam centradas em valores totalmente falsos


voltam rapidamente à realidade quando têm que enfrentar uma tragédia pela
primeira vez. Um homem me contou que uma perda terrível na sua vida o fez
reavaliar a sua atitude para com a família. Ele disse isso de maneira simples:
“Eu cresci.”

Mike Wallace, famoso pelo programa de TV americano 60 Minutes,


confessou certa vez na televisão que, em toda a sua vida, a morte do seu
filho mostrou ser simplesmente a experiência que mais mudou a sua forma de
pensar. Isto fez com que ele revisse a sua vida, o seu propósito na Terra, as
suas prioridades. Tudo o que ele é hoje, afirmou, se deve à transformação que
experimentou em decorrência dessa tragédia.

Naturalmente, às vezes a reação para a morte de uma criança é


justamente o oposto. Em vez de aprender da experiência, as pessoas podem
crescer amargas, tentar afogar suas tristezas no álcool ou abandonar valores
mantidos até então. Este é um momento em que Deus envia ao indivíduo algo
diretamente correspondente ao seu potencial espiritual, e este pode responder
positiva ou negativamente conforme o seu livre-arbítrio. Contudo, a atitude de
optar por aprender algo que melhora a qualidade da vida do indivíduo após
uma tragédia nos permite ver como podemos emergir de escuridão para a luz;
caso contrário, pode se tornar uma calamidade sem sentido dentro de uma
mensagem significativa.

A MENSAGEM PARA TERCEIROS

As tragédias podem ter significado não apenas para aqueles que sofrem
diretamente as suas consequências. Elas também podem fazer parte de um
plano maior, a fim de inspirar e educar um círculo muito maior de testemunhas.

Qualquer um que observa a aflição de pais que perdem um filho também


é educado por extensão. Como rabino, eu sempre ouço as pessoas que visitam
a casa de um enlutado me dizerem: “De repente me dei conta do quanto tenho
sorte! Preciso correr para casa e beijar meus filhos. Eu considerava minhas
bênçãos como algo garantido; agora percebo como sou um(a) afortunado(a).”

Se você perdeu algo, você não se torna muito mais cuidadoso com
aquilo que tem? Se uma mulher sofre um acidente e então dá à luz uma
criança saudável, ela não agradece o presente recebido? Se uma mãe teve
uma criança que morreu, ela não será ainda mais amorosa com os outros filhos
que terá no futuro?
Ainda que possamos não gostar de ouvir que há um propósito educativo
em uma tragédia tão terrível, a vida prova constantemente que as coisas são
assim. A perda ou a quase-perda nos ajudam a pôr em perspectiva o que temos
e o que avaliamos como importante.

Há algum tempo eu li um artigo escrito por um pai cuja filha fora


diagnosticada com câncer no olho. Um homem religioso, ele escrevera o
artigo como uma espécie de carta aberta à sua comunidade, com o intuito de
responder à pergunta que tanto lhe fora feita desde que a terrível notícia se fez
conhecida: se esse desafio havia abalado a sua fé em Deus. Ele escreveu: “Esta
crise em minha vida, da qual eu tanto aprendi, só reforça a minha crença de
que Deus se importa.” Ele passou a explicar:

Aquelas qualidades que eu antes imaginava serem as mais preciosas


e importantes – a minha inteligência, ambição e criatividade – perderam
completamente a sua importância durante a minha crise, pois foram inúteis
para ajudar Yael [o bebê enfermo] ou até mesmo para me ajudar. Não importava
se eu era culto ou bem informado, ou se meus amigos eram interessantes ou
famosos. Não interessava se eu sabia mais ou menos do que outros, e quem,
eu ou eles, era o mais bem-sucedido. Eu percebi com que frequência estivera
em falta com terceiros por me preocupar com o meu próprio talento, tão menos
importante do que a minha capacidade de cuidar.

Estas lições simples me parecem tão importantes, tão essenciais para


a vida, que eu vim abraçar a minha própria dor com uma espécie de ternura.
Penso que assim eu obtive o que havia de melhor em mim mesmo.

Será que eu poderia ter aprendido estas coisas por conta própria de
um modo menos traumático? Algumas pessoas conseguem, e eu imagino que
também seria capaz, mas não fui. Não estou mais amargo, pelo contrário;
estou mais seguro de que Deus se importa, porque Ele criou um intervalo em
minha vida para se assegurar de que eu aprenderia lições sem as quais eu não
poderia viver. 36
PECADOS DOS PAIS?

Há lições para os pais na morte de um filho. Mas o que podemos falar da


alma da criança? Houve algum valor intrínseco em sua breve vida além do seu
efeito sobre os demais? Será que a sua morte foi alguma espécie de castigo?
Mas ela não viveu o suficiente para transgredir! Será que ela pode ter sido
punida por algum pecado de seus pais?

Sempre me perguntam a respeito de uma sentença enigmática dos 10


Mandamentos que parece implicar que isso é verdade: “Eu sou o Eterno Teu
Deus..., que visito a iniquidade dos pais nos filhos, sobre terceiras e sobre
quartas gerações...” (Êxodo 20:5).

Deixe-me voltar literalmente para esse registro; essa sentença, em geral


mal traduzida e mal compreendida, não significa que a punição pelos pecados
dos pais é transferida para os filhos. Se isso fosse verdade, retornaríamos ao
dilema de Jó, que pergunta como um Deus justo poderia fazer algo assim. Em
muitos lugares da Bíblia37 recebemos a garantia de que isso não é verdade. De
fato, é dito a nós repetida e explicitamente que Deus jamais pune os filhos pelos
pecados dos pais.

A interpretação mais lógica dessa sentença não traduz as palavras


poked avon avot como “que visito as iniquidades dos pais”. É muito melhor – e
de acordo com a implicação positiva que essa palavra costuma ter na Torá –
traduzi-la como “que recordo” ou “que levo em conta as iniquidades dos pais”.
Isto nos ensina que Deus não julga simplesmente os filhos por suas ações sem
levar em conta o péssimo modo como seus pais podem tê-los criado e onde eles
falharam na sua educação. Ao roubarem, os filhos cujos pais foram negligentes
em lhes ensinar honestidade não poderão ser julgados tão severamente quanto
aqueles que foram ensinados a ser honestos, mas, não obstante, roubam. Filhos
que nunca foram ensinados a respeito da santidade do Shabat não podem ser
punidos por falta de cumprimento, pois isto está enraizado mais na ignorância
do que na rebeldia. Deus leva em conta todos os fatores sociais e ambientais
ao decidir a extensão da capacidade do indivíduo.
Mas, para os nossos propósitos aqui, há outra interpretação – mais
profunda e mística – de interesse ainda maior. De acordo com a Cabalá, há
uma enorme importância na última frase, “sobre terceiras e sobre quartas
gerações”. Deus recorda os pecados de um indivíduo até a terceira e quarta
gerações ao enviar exatamente a mesma alma de volta para a Terra – por meio
da reencarnação – para expiar por seus pecados do passado. De fato, esse
processo de retificação pode levar de três a quatro gerações para se completar.

A Cabalá diz que um bebê que morre teve que retornar por um curto
período de tempo para completar alguma tarefa mínima. Os pais cumpriram o
mandamento de “frutificar e multiplicar” e tiveram a oportunidade de expressar
um elevado nível de amor. E o bebê, ainda que sem realizar um ato consciente,
pode ter proporcionado a terceiros uma chance ao lhes dar a oportunidade
de demonstrar amor. Isso pode ter sido tudo o que era necessário para ele
completar o seu último ciclo de expiação. Mais do que isso: assim que morreu,
pode ter recebido créditos da parte de Deus pelas obras meritórias que seus
pais fizeram em seu nome.

Já foram criadas numerosas fundações de combate a enfermidades


e para obras beneficentes em nome de filhos que morreram jovens. O ator
americano Kirk Douglas, por exemplo, construiu um playground para as crianças
carentes árabes de Jerusalém e dedicou-o em memória das criancinhas que
estavam presentes no berçário do Edifício Federal Alfred P. Murrah, na cidade de
Oklahoma, EUA, quando este foi destruído por uma bomba terrorista em 1995.
Douglas afirmou: “Me pareceu adequado dedicar um playground em memória
das crianças de Oklahoma na cidade santa de Jerusalém, onde crianças
convivem com bombas de terroristas.”

Assim, as mortes dessas crianças proporcionaram um bem enorme e


espalharam muito amor; e talvez este tenha sido o motivo pelo qual elas vieram
à Terra por um período tão curto de tempo – aparentemente, só para morrer.

Mas será que esta também é a razão pela qual crianças pequenas sofrem?
Aqui chegamos, finalmente, ao segmento mais difícil da nossa avaliação – as
razões para o sofrimento aparentemente sem motivo. É isso o que veremos no
próximo capítulo.
CAPÍTULO 9
AS DÁDIVAS DO ENVELHECIMENTO,
DA DOR E DA DOENÇA

Peça que as pessoas te digam o que veem de bom na velhice e a única


coisa que elas serão capazes de dizer é que, como falava Maurice Chevalier,
“esta não deixa alternativa”. A realidade é que o envelhecimento acaba com a
nossa juventude, pois traz consigo o fardo das incapacidades, debilita nossas
forças e elimina a beleza física que outrora exibíamos. Para muitas pessoas, se
não a maioria, Edith Wharton estava certa: “Não existe esta coisa de velhice;
há apenas lamento.”

Peça às pessoas que lhe contém o que veem de bom na dor e no


sofrimento, e elas olharão para você como se você estivesse louco. Pode ser
que a famosa observação de William Hazlitt seja um pouco severa demais. Ele
afirmou: “A menor dor no dedinho nos causa mais preocupação e dificuldades
do que a destruição de milhões dos nossos amigos.” Mas a dor certamente
parece algo a ser evitado a todo custo. Júlio César chegou à seguinte conclusão:
“É mais fácil encontrar homens que estejam dispostos a morrer do que outros
que desejem suportar a dor com paciência.”

E, finalmente, peça que as pessoas lhe contém o que elas veem de bom
a respeito de uma doença terminal e elas provavelmente lhe dirão o que muitos
afirmam pedir em suas orações: “Quando for a minha hora de partir, por favor
não permita que ela se prolongue; por favor, me deixe morrer calmamente
durante o meu sono, assim eu posso ser poupado da ansiedade e do medo de
saber que a morte está próxima.”

Em poucas palavras: a velhice, a dor e uma doença terminal prolongada


em geral são consideradas três grandes maldições.

Mas, de acordo com a tradição judaica, cada uma dessas três veio ao
mundo como a resposta de Deus para uma prece humana. Três pessoas muito
importantes, os três Patriarcas, consideraram crucial envelhecer, sofrer e ter
consciência da iminência da morte, e Deus simplesmente não lhes pôde rejeitar
isso. Longe de serem três maldições, envelhecer foi a bênção de Deus para
Abrahão; sofrer foi o presente concedido a Isaac; e uma doença terminal foi a
resposta positiva de Deus ao apelo de Jacob.

Como isso pode ser possível? E qual é a fonte bíblica para um comentário
aparentemente tão absurdo? Para apreciar o que os rabinos disseram, você
precisa conhecer um princípio da análise da Torá.

Para os Sábios do Talmud, uma “primeira” aparição na Bíblia é


incrivelmente significativa. Significa que o que é descrito jamais aconteceu antes.
O Talmud38 destaca as ocasiões em que a Bíblia faz referência, pela primeiríssima
vez, à presença da velhice, do sofrimento e da doença no mundo. O Autor
desse texto – Deus – deseja enviar explicitamente uma forte mensagem. E qual
poderia ser essa mensagem? Que o que é mencionado nesse momento não
existiu antes e só surgiu à luz do contexto da história relatada nesse caso. A
partir daí, o Talmud segue adiante a fim de chegar a três notáveis conclusões.

A velhice aparece pela primeira vez em referência a Abrahão; o sofrimento


aparece pela primeira vez em referência a Isaac; e a doença terminal aparece
pela primeira vez em referência a Jacob.

O Talmud nos chama a atenção para esse fato e então nos oferece um
intrigante Midrash.39 Este relata que cada um dos três Patriarcas – Abrahão, Isaac
e Jacob – pediu um favor para Deus. Em cada um dos casos, Deus atendeu ao
pedido e concedeu um “presente”.

Será que isto está correto? Os três piores castigos para a humanidade
são, na realidade, três presentes? E eles vieram ao mundo porque os sábios
Patriarcas – os mais sábios dos homens, conforme nos ensinaram – pediram?
Nós devemos estar perdendo alguma coisa quando pensamos na velhice, no
sofrimento e na doença como maldições em vez de bênçãos.

Para entendermos o que os Sábios tinham em mente, vejamos as histórias


a seguir.
O PRESENTE DA VELHICE
Abrahão é a primeira pessoa a pedir a velhice a Deus. De acordo com
o Midrash, ele disse a Deus: “Mestre do Universo, se não houver algo como
a velhice, um homem e seu filho entrarão em um lugar e as pessoas ali não
saberão quem merece ser mais honrado; aos olhos de todos, pai e filho parecerão
iguais. Não haverá diferença entre um filho imaturo e o homem maduro que
adquiriu um certo nível de inteligência, experiência e sabedoria. Isso não é
bom. Se o Senhor puder ser tão amável, coroe-nos com a velhice. Coloque um
pouco de branco nos cabelos, faça uma pessoa parecer um pouco mais velha,
mais distinta. Então os demais saberão a quem dirigir maior respeito.”

O Midrash segue adiante e relata que, ao ouvir o pedido de Abrahão,


Deus lhe respondeu: “Você pediu uma coisa boa. E esta começará por você.”

Abrahão reconheceu que há um benefício na velhice. Deus não deu esse


“presente” antes que Abrahão lhe pedisse porque, até então, a humanidade
não havia alcançado o nível de sabedoria necessário para aceitar e entender a
bênção de vivenciar a velhice.

Por isso está escrito na Bíblia em Gênesis:40 “E Abrahão era velho,


entrado em dias.” Essa é a primeira vez que a palavra “velho”, zakên, aparece
no texto bíblico.

Destaco aqui que Abrahão pediu por isso e recebeu o “benefício” de


envelhecer. Ele não pediu, nem recebeu, as incapacidades da velhice; estas
vieram depois. Neste momento estamos nos concentrando nos aspectos positivos
dos cabelos brancos e da testa enrugada. Estes são sinais que permitem ao
mundo reconhecer uma pessoa com experiência e sabedoria – alguém precioso
e especial que está entre nós. Culturas que só respeitam os jovens optam pela
força acima do conhecimento, do poder acima da profundidade.

O que Abrahão trouxe ao mundo como resultado do seu desejo cumprido


é a consciência de que a idade merece ser honrada pelos motivos que a fazem
superior à juventude. Abrahão justamente não queria ser confundido com “um
dos meninos”; ele preferia olhar para a sua idade de modo que as suas opiniões
estivessem de acordo com a sua experiência.

O PRESENTE DO SOFRIMENTO
O Midrash continua: alguns anos depois, Isaac foi o primeiro a pedir o
sofrimento para Deus. Antes de Isaac, os únicos exemplos bíblicos de sofrimento
ocorrem por meio de punições.

Como o Midrash continua a sua exploração dos “primeiros” da Bíblia, ele


interfere na história deste modo: Isaac disse a Deus: “Mestre do Universo, se
uma pessoa estiver para morrer sem sofrer qualquer aflição, ela chegará ao
mundo vindouro com uma dívida enorme para pagar. Afinal de contas, ninguém
é perfeito, e todos terão que expiar de alguma maneira por seus pecados e erros.
Eu tenho medo de chegar diante de Ti sem jamais ter passado por qualquer
sofrimento nesta Terra. Eu peço, permita-me assumir alguns destes [pecados
e erros] agora; assim diminuirá a diferença que eu certamente terei que pagar
depois no mundo vindouro. Por favor, Deus, deixe-me ter alguns deles aqui.”

A esse pedido, Deus responde: “Você pediu uma coisa boa. E esta
começará por você.”

Então pela primeira vez aparece uma aflição – neste caso, a cegueira. E é
por isso que está escrito: “E foi quando envelheceu Isaac e se lhe escureceram
os olhos para ver.”41

O PRESENTE DA DOENÇA TERMINAL

O Midrash então nos conta que, alguns anos depois, Jacob pediu a doença.
Ele disse a Deus: “Mestre do Universo, as pessoas estão morrendo sem serem
advertidas disso antes. A respiração delas lhes é retirada, e elas se vão em um
instante. Elas espirram, e então estão mortas” (você já quis saber por que, em
qualquer idioma e cultura, nós desejamos “saúde” a uma pessoa que espirra?).
“Quando as pessoas morrem de repente, elas não têm a chance de resolver
suas questões pessoais, reconciliar-se com aqueles com os quais agiu mal,
pedir perdão a Deus e aos amigos. Eu quero saber então quando irei morrer
– dois ou três dias antes do meu tempo. Por favor, Deus, dá-me o presente de
uma doença terminal antes que eu seja ceifado pelo anjo da morte.”

A esse pedido, Deus também responde: “Você pediu uma coisa boa. E
esta começará por você.”

Assim, em Gênesis nós encontramos pela primeira vez a palavra para


doença grave, cholê. Um mensageiro vem até José para lhe dizer: “Eis que teu
pai está enfermo.”42 E logo em seguida Jacob morre, mas não antes de ter a
oportunidade de proporcionar um último adeus à sua família.

POR QUE ESTAS TRÊS “BÊNÇÃOS”?


Os Sábios do Talmud também nos ensinam que cada um do três
Patriarcas personificou e serviu como paradigma de uma importante midá,
uma característica de caráter fundamental: Abrahão foi a síntese da bondade;
Isaac simbolizou a força; e Jacob representou a verdade, que é necessária para
determinar o equilíbrio apropriado entre a bondade e a força.

Com isso em mente, nós podemos compreender melhor o significado de


cada um dos seus pedidos para Deus. Em virtude de suas naturezas específicas,
cada um deles pediu exatamente a “bênção particular” que o Midrash revelou
em suas histórias. Precisamente por causa de quem eram, eles puderam,
respectivamente, perceber o valor da velhice do sofrimento e da doença.

A Abrahão, o modelo perfeito de bondade, foi concedida velhice, porque


é esta que permite que a paixão da mocidade esfrie, que um temperamento
inflamado seja acalmado, que a fúria se dissipe. É a velhice que permite à
bondade florescer plenamente e se expressar. O velho já não precisa lutar pelo
seu lugar ao sol. A sabedoria dos anos permite que a bondade reine plena.

Isaac, o símbolo da força, pediu o sofrimento porque, na presença desse,


somos os primeiros a testemunhar o enorme poder dentro de nós. Nós não
nos referimos frequentemente a essa verdade quando dizemos “o que não
mata torna mais forte”? Isaac nunca poderia saber do que era capaz caso não
tivesse sido exposto ao teste supremo de ser oferecido por seu pai como um
sacrifício. Assim, também, muitas pessoas encontram o seu verdadeiro vigor ao
necessitarem deste pela primeira vez, quando a vida os testa de uma maneira
imprevista e precisam avaliar a crise pela qual estão passando.

Jacob, que ficou conhecido pela verdade, um equilíbrio entre a bondade


e a força, pediu uma doença terminal porque quando sabemos que o fim dos
nossos dias na Terra está próximo é que encontramos o melhor equilíbrio.
Os extremos resultam da nossa incapacidade de visualizar todo o quadro,
mas quanto mais estamos próximos da morte mais claramente enxergamos
o real significado dos nossos objetivos, valores, ambições e esforços. Saber
que nossos dias estão contados nos dá a sabedoria implícita que consta do
“princípio do equilíbrio”.

SABER QUANDO A MORTE ESTÁ PRÓXIMA


Dos três “presentes” que normalmente consideramos maldições, o de
Abrahão – a dádiva do envelhecimento – é provavelmente o mais fácil de
entender em um sentido positivo. Nós podemos entender que, apesar dos seus
problemas, o envelhecimento ainda oferece muitas recompensas maravilhosas.
Robert Browning não estava inteiramente errado quando nos aconselhou:
“Envelheça junto comigo, o melhor ainda está por vir.” Afinal de contas, as
rugas podem ser sinais de honra que testemunham a nossa maturidade. Não é
que o jovem não as tenha; eles ainda não as merecem.

O “presente” de Isaac é o que nos causa a maior dificuldade. Não importa


o quanto tentamos racionalizar isto, a dor e o sofrimento ainda parecem muito
cruéis para serem aceitos como uma condição ordenada por Deus. É por isso
que deixaremos uma discussão mais ampla a respeito dessa questão crucial
para a próxima seção deste livro; esta é importante o bastante para merecer
uma análise mais extensa.
O que eu quero esclarecer mais profundamente antes de concluirmos
este capítulo é o “presente” pedido por Jacob. Imagine: Jacob poderia ter
partido deste mundo da mesma maneira como todos os seus contemporâneos.
De acordo com o Midrash, todas as pessoas cujo tempo havia se esgotado de
repente eram tomadas por um espirro... e morriam. Isto me parece incrível:
nenhum momento de preocupação, sem estresse, sem ansiedade. Nem mesmo
a triste cena de uma família sentada ao redor do leito de morte, em prantos,
diante de uma tragédia claramente iminente. O que Jacob poderia estar
pensando? Que benefício ele via no seu desejo por uma doença terminal?

Está claro que Jacob queria isso porque havia um benefício. Qual é o
benefício? Qual é o presente? Em uma palavra, o presente é a consciência –
saber o que realmente irá acontecer.

Quando, como um jovem rabino, eu era chamado para o lado da cama


de uma pessoa que estava morrendo, era comum eu perguntar à família: “O
paciente sabe que vai morrer?” Às vezes a família dizia que sim; às vezes dizia
que não. Entretanto, se eu tinha a oportunidade de falar com aquela pessoa, eu
invariavelmente sabia que ela tinha consciência da verdade, embora preferisse
não discutir isto com a família. Era como se ambos os lados estivessem em
um jogo – a família não queria discutir a morte com a pessoa doente a fim de
não a transtornar, e o paciente não queria discutir isto com a família para não
as amedrontar.

Eu iria ainda mais longe e diria que, quanto mais próxima está a morte,
maior é a consciência de quem está morrendo de que esta é iminente.

Qual é o papel dessa consciência? Por que isso parece ser uma premonição
Divinamente implantada? Em primeiro lugar, ela permite que você “se prepare
para encontrar o seu Criador”. Como você se prepara? É claro que você não
precisa arrumar suas malas, mas esta é uma oportunidade de descarregá-
las, se você quiser. Os Sábios nos ensinam que o arrependimento adequado
e sincero pode desfazer toda uma vida de transgressões, ou seja, existe a
oportunidade de compensar pecados contra Deus e contra outras pessoas que
só elas poderiam perdoar aqui na Terra. Há tempo, nesses últimos momentos
antes da morte, para retificar muitas coisas que poderiam ter passado sem
correção caso a pessoa tivesse morrido de repente. Portanto, a consciência
exerce um benefício significativo para uma pessoa à beira da morte; além disso,
há também benefícios significativos para os que permanecem vivos.

No caso de Jacob, todos os seus filhos são chamados para estarem ao


lado da cama do pai, e ele abençoa cada um deles. A forma de proferir as
bênçãos é estranha. Jacob não diz: “Você terá uma vida boa” ou “Você irá
realizar isto ou aquilo”. As bênçãos de Jacob são, na verdade, exortações; são
instruções; em alguns casos, até mesmo críticas. À primeira vista poderia se
perguntar: por que então elas são chamadas de bênçãos? Jacob está criticando
seus filhos!

Mas a verdade é que ele está fazendo isso pelo próprio bem deles, em
benefício do interesse deles. Ele só está mostrando as falhas de caráter deles,
de modo que eles compreendam melhor as suas deficiências. Ele diz a cada um:
“Este é o seu desafio na Terra, e é nisto que você precisa trabalhar.”

Por que ele não fez isso antes? – poderia se perguntar. É possível que ele
não estivesse pronto para dizer isso até então, mas também pode haver um
significado mais profundo aqui: talvez os seus filhos não estivessem prontos
para ouvir.

Por diversas vezes as pessoas me dizem: “Meu pai disse isso para mim no
último dia dele...”, ou “Minha mãe me pediu que fizesse isto e isto...” Será que
existe alguém que não faria algo que um pai lhe pedisse para fazer no derradeiro
fim da sua vida? Esses pedidos carregam um tremendo peso e validade.

Um congregante da minha sinagoga, que só aparecia nas Grandes


Festas, de repente passou a aparecer todo Shabat para os serviços religiosos.
Eu não pude me segurar, então lhe perguntei o que causou esse despertar
espiritual. Ele me disse: “Rabino, em seu leito de morte, meu pai me disse:
‘Significaria muito para mim se você encontrasse o seu caminho de volta para
a sinagoga’. Assim, aparecer aqui a cada semana é o mínimo que eu posso
fazer por sua memória.”
Outro homem que conheço, um indivíduo muito rico que não era
conhecido por fazer filantropia, de repente beneficiou diversas instituições
importantes com doações consideráveis. Por quê? “Porque, antes de morrer,
minha mãe me implorou para ajudar os outros com parte dos grandes
presentes que Deus me deu.”

O Talmud43 ensina que é uma mitsvá, um mandamento, cumprir os


desejos de uma pessoa à beira da morte. Considera-se que as palavras da
pessoa que está morrendo carregam uma força muito maior. Há exceções, é
claro – um pai que está morrendo não pode ordenar seu filho a pecar ou a se
casar com alguém contra a sua vontade. Mas, em geral, à pessoa que está para
morrer é dada por Deus a autoridade de deixar uma marca indelével naqueles
que passam os últimos momentos com ela.

É verdade, naturalmente, que os benefícios dos quais falamos podem


vir acompanhados de uma doença terminal de curta duração. Com certeza, um
último benefício que pode ocorrer como resultado de um adeus antecipado só
pode ser alcançado no caso de uma enfermidade que dure dias, em vez de meses
ou anos. Como podemos lidar com o sofrimento que parece jamais terminar?

É o “presente” de Isaac que mais perturbou a humanidade. A dor e


o sofrimento não são passíveis de uma explicação simples. Isaac pode não
somente ter compreendido, mas inclusive ido tão longe a ponto de desejar
o que é quase que universalmente temido. Todavia, nós ainda vemos a sua
cegueira como uma maldição; consideramos isso quase impossível de aceitar.
Sim, diferente de Isaac, somos tentados a nos voltar para Deus, implorarmos
para que Ele receba esse “presente” de volta e nos restabeleça para um
mundo sem sofrimento. Mais do que tudo, a nossa convicção em um Deus
bom é desafiada pelos gritos de dor no mundo. É com isso que iremos lidar
nas páginas seguintes.
Notas

33. Midrash Mishlê 31. – 34. Midrash Ialcut Shimoni, Êxodo, número 398. – 35. Winkler,

Guershon. The Soul of the Matter (A Alma da Matéria). Brooklyn, NY, Judaica Press, 1982. – 36.

Braverman, Rabino Nachum. Jewish Journal, 14/02/1995. – 37. Deuteronômio 24:16; Jeremias

31:29; Ezequiel 18:2; 2 Crônicas 25:4. – 38. Baba Metsia 87a, San’hedrin 107a. – 39. Midrash Rabá

65:9. – 40. Gênesis 24:1. – 41. Gênesis 27:1. – 42. Gênesis 48:1. – 43. Taanit 21a, Guitin 14b.

No próximo volume da série de e-books


Se Deus é Bom Por Que o Mundo é tão Ruim?

PARTE 3: POR QUE SOFREMOS?


Capítulo 10. Compreendendo o Sentido do Sofrimento
Capítulo 11. O Teste de Abrahão

Não perca!
PARTE 3
POR QUE SOFREMOS?

CAPÍTULO 10

COMPREENDENDO O SENTIDO DO
SOFRIMENTO

Eis uma verdade amarga: nós só morremos uma vez, mas podemos
sofrer indefinidamente.

A morte pode ser defendida, como dizia o rabino chassídico Mendel de


Kotzk, porque “a morte é apenas uma questão de ir de um espaço para outro
e, no final, para o espaço mais bonito”. Porém, o sofrimento parece carecer de
justificativa. Será que Deus não ouve quando gritamos de dor? Ou será que Ele
não se preocupa? Será possível que nós sintamos compaixão ao presenciarmos
a angústia de nossos amigos, enquanto o Deus Todo-Misericordioso pode
desviar o olhar e ignorar as preces dos aflitos?

Mais do que qualquer outra coisa, o sofrimento abala a nossa fé.

Em geral é constrangedor ouvir o tom melancólico nas vozes de algumas


pessoas quando estas expressam as suas angústias. Talvez ainda mais
perturbador do que a própria dor seja a sua aparente ausência de razão. “Eu
só quero que Deus me diga que existe um motivo, que há um sentido, que isto
não é em vão”, as pessoas se queixam para mim.

Nietzsche estava certo: “O que realmente eleva a indignação de uma


pessoa em relação ao sofrimento não é o sofrimento em si, mas sua falta
de sentido.”
Uma pessoa pode suportar quase qualquer coisa se ela souber que é por
uma razão. Nós podemos suportar a dor de uma cirurgia se o médico nos disser:
“Seja forte agora. Isso vai doer por algum tempo, mas eu irei remover aquele
tumor e, depois que você se recuperar, verá o quanto a sua vida estará melhor
daí em diante.” Então podemos responder: “Certo, se houver um benefício em
tudo isso, eu suportarei esta dor. Irei travar os dentes e direi: ‘Estou ganhando
algo por isso’.”

Mas se a dor não tiver algum propósito, se o sofrimento nos alcançar


conforme algum tipo de seleção aleatória, então este só pode nos levar para
mais perto do desespero.

Ao vivermos em um mundo cheio de doenças incuráveis e de enfermidades


como os vários tipos de câncer, nós sabemos, de fato, que o sofrimento não
pode ser eliminado, mas também sentimos intuitivamente que este pode se
tornar tolerável por meio da anestesia da compreensão.

Para começarmos a entender o propósito da dor e do sofrimento segundo


as explicações do judaísmo, nós nos voltaremos uma vez mais para as páginas
do Talmud.

Neste capítulo e nos próximos, examinaremos algumas das mais vigorosas


respostas da tradição judaica para o complexo problema do sofrimento humano.
Ao revisarmos essas diferentes respostas, devemos levar em conta que nossas
mentes são necessariamente limitadas quando se trata de captar verdades de
caráter infinito. Além disso, jamais haverá apenas uma explicação capaz de
resolver todas as nossas dificuldades. Se as nossas próprias ações são férteis de
múltiplas camadas de significado, será que podemos esperar menos de Deus?

Por isso, em nossa busca por respostas, não devemos reconhecer somente
uma possibilidade, mas, em vez disso, um conjunto de possibilidades. Entre estas
haverá algumas soluções que seremos capazes de compreender imediatamente.
Outras, porém, serão mais complexas, compostas de subcamadas de significados
profundos; também estas teremos que compreender plenamente.
O PRINCÍPIO DA REPREENSÃO

“Meu filho, não desprezes a disciplina do Eterno


e não repilas Suas advertências,
pois Ele admoesta a quem ama
assim como um pai acalma seu filho.” 44

Essa famosa citação do livro de Provérbios de Salomão nos dá a primeira


resposta para a nossa pergunta: por que os bons sofrem? Eu chamo isto de
“princípio da repreensão”.

O princípio da repreensão postula que Deus inflige sobre nós algumas


formas de dor por amor, com a finalidade de nos disciplinar, para o nosso
próprio bem. E levando-se em conta que poderíamos tender a responder a
essa explicação para o sofrimento com: “Deus, faça-me um favor, não seja tão
bom comigo”, há uma evidência considerável nos textos bíblicos e talmúdicos
de que, às vezes, é justamente este o propósito que Deus parece ter em mente
quando a dor nos alcança.

Antes de qualquer coisa, deixe-me dizer que não estou argumentando


aqui que um pai deve disciplinar seu filho proporcionando-lhe um câncer ou
AIDS. Há claramente alguns degraus de sofrimento que estão fora desse
princípio. Dito isso, vejamos onde este pode se aplicar.

Note que o versículo supracitado do livro de Provérbios começa com


“Meu filho”. Isso é muito importante porque dá o tom para a mensagem
que se segue. O conselho não é o de professor ou de um estranho, mas de
alguém muito mais íntimo – um pai. “Pois Ele admoesta a quem ama assim
como um pai...”

Naturalmente, os filhos que ouvem seus pais dizerem “Eu estou fazendo
isto para o seu próprio bem” tendem a não acreditar nisso. Quando você é
jovem e carente de sabedoria, tende a pensar que deveriam lhe permitir fazer
tudo o que você quer fazer – estar fora de casa depois da meia-noite; ir a uma
festa regada a bebida alcoólica – mas seus pais dizem: “Não, para o seu próprio
bem você ficará em seu quarto e fará a sua lição de casa.”

Você discute e faz cara feia, chora, fica nervoso, bate à porta. Mas
quando os outros jovens se envolvem em um acidente automobilístico porque
estavam bebendo, ou quando todo aquele dever de casa resultou em uma
admissão para a Universidade de Yale, bem, finalmente você percebe como
tudo isso lhe beneficiou.

Na época em que seus pais lhe corrigiam, você não gostava porque lhe
faltava maturidade para observar o quadro como um todo. Aquilo então lhe
parecia arbitrário e cruel, do mesmo modo como lhe parece agora a atitude de
Deus lhe corrigir!

De maneira semelhante, quando uma criancinha de 3 anos, a quem foi


dito para nunca atravessar a rua sem a companhia de um adulto, corre para o
meio do trânsito, o pai não inicia imediatamente um discurso de meia hora a
respeito do perigo de se andar entre automóveis em alta velocidade; os pais
batem na criança na esperança de passarem uma mensagem dura e clara:
“Nunca mais faça isso!”

É cruel? Sim, qualquer forma de castigo corporal carrega em si algum


grau de crueldade, e é por isso que é controverso. Entretanto, alguns estudos
demonstram que não há modo melhor de se enviar uma mensagem. Depois
você pode argumentar com a criança e lhe explicar: “Dói mais em mim do que
em você.” A criança, de fato, não acreditará em você – a sua afirmação lhe
parecerá ilógica –, mas você sabe que é verdade. E, obviamente, essa é a uma
frase que foi transmitida de geração em geração – aquilo que os filhos rejeitam
como um ato absurdo de seus pais se torna a sua própria máxima quando eles
mesmos se defrontam com a tarefa de criar seus filhos!

Nós podemos traduzir essa ideia, essa sábia imagem, para o nosso
relacionamento com Deus. Digamos que Deus é o pai e nós somos a criança de
3 anos. Nós reagimos a uma dolorosa experiência em nossas vidas dizendo a
Deus, nosso pai: “Isso não faz sentido. Por que você está fazendo isso comigo?”
Ele responde: “Veja, vou tentar lhe explicar isso, mas você provavelmente não
entenderá devido à sua idade. Mas algum dia, quando crescer um pouco, você
entenderá que isso foi para o seu próprio bem.”

A imagem do relacionamento entre pai e filho – um pai sábio e


absolutamente culto e uma criancinha que ainda não tem capacidade de
discernimento – é o que a Bíblia quer transmitir em seu ensinamento de que “o
Eterno corrige a quem ama, como faz o pai que o faz em favor do filho”.

Agora, quando perguntamos “Por que o mau prospera e o íntegro sofre?”,


podemos responder com a compreensão que obtivemos desse versículo: sim, é
precisamente porque eles são amados por Deus que eles sofrem.

Em sua famosa obra O Guia dos Perplexos, Maimônides argumenta que,


quanto mais próximo você estiver de Deus, quanto mais contato tiver com Ele,
mais repreensões provavelmente ocorrerão. Quando Deus percebe o seu amor por
Ele, devolve isso exatamente na mesma medida. É então que Ele busca te orientar
em cada passo seu. Através da Sua medida extra de preocupação e do Seu amor
cuidadoso, Ele lhe repreende de forma que você possa ser o melhor que puder.

Uma pessoa que não se interessa por Deus achará que Ele também não
se interessa por ela. Deus deixa só, mas, embora isso em princípio possa soar
bem, no fim termina com uma sensação muito ruim. Um adolescente considera
bom não ser supervisionado por seus pais. Ele pode faltar às aulas na escola
a qualquer hora, ficar acordado à noite inteira, experimentar drogas, álcool ou
algo pior. Não parece algo muito bom àquele adolescente quando ele termina
sendo um desempregado, um alcoólatra ou um prisioneiro. Alguns podem ter
se machucado um pouco quando receberam uma orientação amorosa ou uma
medida corretiva de um pai, mas será que, no final das contas, isso não valeu
a pena?

Enquanto escrevo isto, tenho diante de mim um anúncio forte e chamativo


de uma campanha antidrogas. Trata-se de um quadro de página inteira de
um adolescente aparentemente nervoso, sobre o qual está escrito, em letras
garrafais, as palavras LARGA no começo do parágrafo e DO MEU PÉ no fim. Em
letras menores estão expressos os pensamentos do rapaz, em que ele parece
gritar a sua queixa:
Sim, parece que eu odeio meus pais, mas eu na verdade só estou demonstrando
o que um terapeuta chamaria de “afirmar a minha identidade”, de modo que
eu possa crescer para me tornar um indivíduo bem ajustado. É claro que eu
digo que quero liberdade, mas sem a supervisão dos pais eu me torno muito
mais passível de fumar maconha e me entupir disso. Espero que meus pais não
tentem agir como meus amigos. O que eu preciso mesmo é de pais.

Que diferença entre o que os filhos dizem que querem e o que eles sabem,
lá no fundo, de que precisam. Pais que nunca disciplinaram um filho, na verdade,
não se preocupam muito se este se mete em encrencas – e filhos sensíveis
percebem isso. Nós também precisamos ser suficientemente inteligentes para
captar essa mesma verdade quando esta vier do nosso Pai no Céu.

Ann Landers ficou famosa por dizer: “Você deveria estar feliz por ter um
pai que lhe castiga, porque isso mostra que ele se preocupa contigo.” Salomão,
no livro de Provérbios,45 diz: “O que poupa seu filho de castigos o odeia.”

Nós também recebemos essa mensagem diretamente do livro de


Deuteronômio:46 “E saberás em teu coração que, como um homem castiga seu
filho, assim te castiga o Eterno, teu Deus.”

É verdade, nós não deveríamos tentar aplicar esse princípio em casos


em que o sofrimento é severo demais. Isso não serve para explicar por que a
sua tia Marta contraiu câncer terminal. Contudo, esta é uma explicação possível
para o sofrimento, e certamente tem relevância em muitas situações.

Uma jovem mulher que conheço chegou por si mesma a esta conclusão
após uma experiência em que ela teve que administrar um tratamento médico
ao seu gato de estimação. Nas palavras dela: “O gato adquirira um abscesso
na sua bochecha que precisou ser drenado por um veterinário. Então, a fim
de impedir que a infecção se espalhasse, o veterinário me disse para reabrir a
ferida uma vez por dia durante vários dias e lavar com uma solução antibiótica
todo pus que pudesse ter se formado por cima. O procedimento era muito
doloroso para o gato. Naturalmente, ele lutava em meus braços para escapar
do tratamento. Eu me sentia muito mal, porque essa pobre criatura dificilmente
podia entender como os antibióticos funcionam e que isto era bom para ele,
pois evitaria uma calamidade muito maior. E eu de repente me dei conta de
que é assim que ocorre entre Deus e nós. Nós somos incapazes de entender o
‘remédio’ de Deus, que pode causar dor ao ser administrado, muito mais do que
nesse gato. Nós somos tão ignorantes quanto ele e, mesmo que isso nos fosse
explicado, nós não entenderíamos. A única coisa que podemos fazer é confiar
em Deus de que isso é bom para nós.”

DO AMARGO VEM O DOCE


Há diversas variações do princípio da repreensão, e cada uma delas nos
ensina, de diferentes modos, que o sofrimento não foi enviado por Deus como
uma punição, mas como uma lição. Se prestarmos atenção, descobriremos que,
no final das contas, houve muito benefício na dor. O primeiro exemplo que
quero dar pode ser chamado de “do amargo vem o doce”, e é derivado de uma
história bíblica sobre as águas amargas de Mará.47

Logo depois que os israelitas escaparam da escravidão do Egito e cruzaram


o Mar Vermelho, eles chegaram a uma fonte em um local cujo nome era Mará,
que em hebraico significa “amargo”. Após viajarem por três dias através do
deserto sem água, eles estavam compreensivelmente muito sedentos, mas não
podiam beber dessa fonte porque a água era – adivinhe – amarga.

Eles ficaram obviamente transtornados. Até aquele momento eles


pensavam que Deus estava ao lado deles e que, de agora em diante, a vida
caminharia com facilidade – os mares se abririam sempre que surgissem as
dificuldades –, mas de repente surge o desafio. O que esse local amargo poderia
estar fazendo no meio da tranquila trilha da vida?

Obviamente, Deus colocou esse obstáculo no caminho deles para lhes


ensinar – e a nós também, ao lermos isso milhares de anos depois – uma lição
muito importante. Então examinemos com cuidado o que significa exatamente
o relato bíblico.
Eis o que aconteceu em seguida: Em resposta às angustiantes queixas
dos israelitas, Deus disse a Moisés para pegar um galho de uma árvore próxima
que era, ela mesma, amarga. Então Deus afirmou que ali estava a cura: “Pegue
[o galho] da árvore amarga e lance-o nas águas amargas.” E, acredite se quiser,
as águas ficaram doces.

O que foi ensinado aos judeus em Mará? Primeiro, a realidade da vida: não
é só porque você acredita em Deus que você nunca sofrerá dificuldades. Como
se diz, a vida não é um prato de cerejas. E esta foi uma lição particularmente
apropriada, pois veio imediatamente após o incrível milagre da divisão do Mar
Vermelho. Só porque eles foram os beneficiários de uma bênção sobrenatural
não significava que, dali em diante, suas vidas teriam sempre um final de conto
de fadas. Problemas são o preço que pagamos pelo direito de viver na Terra.

Mas há uma mensagem ainda mais importante que nos foi dada por Deus
no local das águas amargas: há um segredo para transformar a amargura da
vida; há uma maneira de transformar águas amargas em água doce. Por incrível
que pareça, trata-se de usar a própria amargura para transformar o ruim em bom!

Impossível, você diz? Quase no final da história de Mará, a Bíblia


acrescenta, de maneira aparentemente incongruente: “Porque eu sou o
Eterno que te cura.” Agora leve em conta a notável coincidência de que o
próprio princípio de “do amargo vem o doce” se tornou, séculos depois, a
base de uma inovação na compreensão da medicina e do processo de cura
por parte do ser humano.

Sem dúvida, uma das maiores realizações da medicina foi a invenção das
vacinas. Por volta de 1796, os médicos ficaram naturalmente intimidados quando
Edward Jenner propôs pela primeira vez injetar uma pequena quantia de uma
cultura de vírus – que causava varíola no gado – em um homem saudável, a fim
de imunizá-lo contra a varíola. Introduzir no corpo de um paciente saudável a
mesma doença que estamos tentando eliminar? A ideia parecia absurda. Usar
o amargo para curar? Quem já ouviu falar de um absurdo assim? Os críticos de
Jenner o ridicularizaram. Mas é claro que aquela mesma proposta já havia sido
feita antes; ela partira de ninguém menos do que o próprio Deus. O amargo foi
introduzido na água e a tornou doce. A varíola introduzida no corpo produziu os
poderosos anticorpos que, no final das contas, derrotariam a doença. O conceito
de vacinação funcionou; nascia um campo inteiramente novo da medicina. E
deve ser por isso que Deus, ao final da história de Mará, refere-se a Si Mesmo
como um médico. Afinal de contas, Ele acabara de demonstrar o que levaria
alguns milhares de anos mais para um grande médico descobrir.

Hoje nós entendemos que a injeção da vacina – “o amargo” – em uma


pessoa provoca uma reação do sistema imunológico, fazendo com que este se
fortaleça. Assim, quando surge uma epidemia, o sistema imunológico tem os
meios para atacar e derrotar a doença. Do amargo vem o doce. Contudo, o que
os rabinos extraíram dessa história foi ainda mais do que uma inovação médica.
Exatamente o mesmo princípio – do amargo vem o doce – encontra aplicação
em todos os campos da vida. A amargura que costumamos vivenciar, as dores e
sofrimentos da nossa existência diária, podem muito bem ser as “vacinas” que
nos protegem de complicações mais sérias. Os problemas constroem os nossos
sistemas imunológicos espirituais. As dificuldades superadas nos fazem muito
mais fortes. Nós não crescemos dos nossos momentos doces, mas dos nossos
passos para trás.

Conta-se o seguinte a respeito de um encontro entre o famoso sábio do


século 20 conhecido como Chafêts Chayim e um ex-estudante:

“Como está tudo?”, perguntou o rabino.

“Ruim”, respondeu o estudante.

“Não diga que está ruim,” preveniu o Chafêts Chayim. “Diga que está
amargo.”

O estudante ficou perplexo, pois não entendera a diferença.

“Rabino, seja como for, eu estou dizendo a mesma coisa.”

“Não, meu filho, de jeito algum”, respondeu o grande rabino. “Ruim está
longe de ser o mesmo que amargo. Um remédio pode ser amargo, mas jamais
é ruim!”
O sabor amargo é uma sensação temporária. Óleo de rícino é amargo.
Remédio é amargo, mas não dizemos que este é ruim porque reconhecemos
que algo pode ser momentaneamente amargo, mas ter efeitos benéficos
duradouros.

O gosto amargo do remédio de Deus, os sofrimentos que podemos ter


que suportar hoje, podem muito bem provocar o efeito da nossa cura amanhã.

A LUTA POR FORÇA


Outra variante do princípio da repreensão carrega a ideia de usar a dor
para produzir força mais adiante. Para ilustrar, eu usarei mais dois exemplos
da natureza.

O primeiro vem da vida de John Audubon, o grande naturalista e


ornitólogo. Um dia, ele observou uma bela borboleta tremendo de tão
angustiada, incapaz de se separar do seu casulo. Comovido pela dor da
criatura, ele abriu delicadamente o casulo e a libertou. Esta voou alguns
metros adiante e caiu morta. Ele aprendeu depois que a natureza havia
pressionado a borboleta dentro do casulo, onde ela era forçada a tremer até
que os músculos das suas asas estivessem suficientemente fortes para voar.
Ao libertá-la antes do tempo, ao “tornar as coisas mais fáceis para a pobre
borboleta”, ele a sentenciou à morte.

A natureza nos ensina uma grande lição: experiências dolorosas nos


fortalecem para desafios ainda maiores que estão por vir na vida.

A outra história inspirada na natureza envolve outro tipo de criatura que


se desenvolve em um casulo – a traça. Leroy B. Grant demonstrou que, assim
como a borboleta, a traça precisa lutar para emergir do seu casulo; todavia,
através dessa luta, a traça, ainda no casulo, expele diversos venenos do seu
corpo. Sem a luta, ela morreria.

Grant concluiu que, “quando as pessoas lutam pelo que querem, elas se
tornam mais fortes e melhores; mas se as coisas vêm fácil, elas ficam fracas e
algo nelas parece morrer”.
Todos nós já vimos crianças crescerem e se tornarem adultos atenciosos e
independentes porque tiveram que lutar por tudo o que conquistaram. Aqueles
que não nasceram servidos por uma colher de prata na boca conseguiram
alcançar o que crianças privilegiadas jamais poderiam realizar. Conta-se que
o ator judeu americano Kirk Douglas afirmou: “Meus filhos nunca tiveram a
minha vantagem de terem nascido em uma pobreza miserável.” A adversidade
nos faz mais fortes, e isto tem uma dimensão pedagógica: ela nos deixa melhor
preparados e nos torna pessoas melhores.

Um poema de Robert Browning Hamilton, de maneira muito bela, vai


direto ao ponto:

I walked a mile with Pleasure, she chattered all the way.


But never a thing do I recall of what she had to say.
I walked a mile with Sorrow and never a word said she,
But oh, the things I learned from her when Sorrow spoke to me.

[Eu caminhei uma milha ao lado do Prazer;


ele tagarelou por todo o percurso.
Mas não houve nada que eu perguntasse
que ele tivesse o que dizer.
Eu caminhei uma milha ao lado da Tristeza,
e ela não disse uma palavra.
Mas ah, as coisas que eu aprendi
quando a Tristeza falou comigo...]
CAPÍTULO 11
O TESTE DE ABRAHÃO

Iniciamos este livro com uma discussão sobre o livro de Jó. Examinamos
se poderia existir lógica na equação de que Deus é bom, justo e Todo-
Poderoso enquanto, ao mesmo tempo, coisas ruins acontecem às pessoas
boas. Tentamos demonstrar como é possível responder a essa pergunta
afirmativamente.

Mas esta discussão não estaria completa sem o exame de outra famosa
história bíblica que levanta questões semelhantes à sua maneira – a história
de Abrahão e a exigência de Deus para que ele sacrificasse o seu filho Isaac.

Esta é a história de um homem que – em um mundo dominado pela


idolatria e o politeísmo – chega à conclusão de que há somente um Deus. É por
isso que ele é o pai do monoteísmo tal como conhecemos hoje em dia. Ele é um
homem maravilhoso – a essência da bondade amorosa.

No entanto, Deus lhe aplica uma escolha terrível: sacrificar o seu filho ou
desobedecer a seu Deus.

Hoje olhamos para a sua história e dizemos: “Bom, no final tudo acabou
bem.” Mas você pode se imaginar no lugar de Abrahão, sem ter como saber
como será o desfecho final? Você pode imaginá-lo no topo da montanha,
sentindo que a obediência a Deus se traduz em estar disposto a matar o próprio
filho, o qual este mesmo Deus lhe prometera na sua velhice que seria o pai das
futuras gerações?

Abrahão sofreu, não pode haver dúvida a respeito disso.

Acrescente-se a isso o fato de o fiel Abrahão ter dois irmãos, e que


ambos tinham muitos filhos; ele não tinha nenhum. Abrahão vivera e tornara-
se um homem velho, e não tinha herdeiros. Finalmente, quando estava com
100 anos e sua esposa com 90, Deus lhe prometeu uma criança – um filho – e
cumpriu o prometido. Mas justamente quando ele finalmente tinha uma chance
de desfrutar do seu filho e planejar o futuro deste, Deus lhe apareceu com esse
pedido inusitado.

Nós chamamos isto de teste. Mas quem precisa de testes assim? Por que
ele precisa ser testado? Do que se trata tudo isso?

Será que Deus estava tentando ver o que Abrahão faria? Certamente Ele,
que é Onisciente, tinha uma ótima ideia do que estava por vir; então por que
colocou Abrahão no meio desse horror?

Alguns dos melhores filósofos e teólogos judeus, entre eles os grandes


Maimônides (Rabi Moshé ben Maimon, 1135-1204) e Nachmânides (Rabi Moshé
ben Nachman, 1194-1270), avaliaram essa história. Eles foram dois mestres de
interpretação bíblica da Idade Média, e cada um abordou o problema de um
ângulo diferente. Mas quem está correto, Maimônides ou Nachmânides? Eu
acredito que a verdadeira resposta é uma combinação de ambos.

É interessante notar que, quando os eruditos modernos analisaram o


que ambos disseram e compararam suas opiniões aos textos mais antigos do
Midrash, descobriram que as visões de Maimônides e de Nachmânides já haviam
sido oferecidas – não em termos filosóficos, mas em uma linguagem midráshica
– por meio de histórias e parábolas.

Os modos pelos quais Nachmânides e Maimônides explicam o teste


de Abrahão – um teste acompanhado por dor incalculável – oferecem outros
dois conceitos pelos quais podemos lidar com os nossos próprios momentos
de sofrimento. Eu os chamo respectivamente de “princípio da realização”
(conforme explicado por Nachmânides) e “princípio da educação” (conforme
explicado por Maimônides).

O PRINCÍPIO DA REALIZAÇÃO
Nachmânides argumenta que o ser humano tem liberdade de escolha;
cabe a ele fazer algo ou se abster de fazê-lo. Deus sabe qual será a decisão do
indivíduo quando este se confrontar com uma escolha difícil, mas isso não significa
que podemos deixar de participar do processo de decisão. O conhecimento de
Deus não cria a realidade; apenas a prevê. Para que o indivíduo alcance grandeza
espiritual, não basta para Deus saber que o homem poderia, teoricamente,
passar em um teste. Até que uma demonstração de fé seja executada de fato,
esta permanece sendo somente algo potencial. Deus não nos julga pelo que
poderíamos nos tornar; Ele nos dá a oportunidade de pôr em prática nossas
características de caráter e de demonstrar pleno comprometimento. Portanto,
Deus não pode nos recompensar por nossas intenções, mas por nossas ações.
É por isso que Ele costuma nos submeter a testes, do mesmo modo como os
professores fazem com seus alunos. Uma boa professora pode prever como
seus alunos se sairão com um grande grau de precisão. Ela sabe quais deles
se aplicarão, estudarão o material e irão se sair bem, e quais não. Então, por
que ela aplica os testes? Para que os estudantes sejam motivados a estudar e
alcançar um nível maior de conhecimento, a fim de realizar tudo aquilo que são
capazes de se tornar.

Abrahão tinha uma tremenda força espiritual. Não havia dúvida de que ele
era capaz de tamanha abnegação. Deus conhecia a sua grandeza; ao submetê-
lo ao teste, Deus lhe permitiu que ele provasse isto de maneira convincente.

O sacrifício de Isaac – que é denominado, mais precisamente, de


“amarração” de Isaac, uma vez que nunca houve qualquer sacrifício – foi a
última de dez avaliações às quais Deus submeteu Abrahão. Essa história é a
mais famosa porque é a última e a mais dura.

É muito interessante saber que, em hebraico, a palavra nês, que significa


teste, também tem outros três significados: (1) ser enaltecido ou elevado; (2)
uma bandeira hasteada no alto; ou (3) milagre.

Como todos eles estão relacionados? O que os faz compartilhar a mesma


palavra? Um teste é o mesmo que uma bandeira hasteada no alto; ao passar no
seu teste, Abrahão foi elevado; ele se tornou o que uma bandeira representa: um
símbolo de grandeza capaz de inspirar outras pessoas. E quando alguém passa
por um teste assim e é tão elevado, isto realmente é um milagre – o milagre de
seres humanos elevando-se ao nível do seu potencial. Como é maravilhoso ver
que podemos realizar aquilo que ninguém sonhara estar no reino do possível!
Eu conheço uma mulher que acreditava estar próxima de Deus. Ela
costumava participar de vários seminários da Nova Era de expansão da mente e
era aficionada por explorar o sentido da espiritualidade. Um dia, quando estava
em profunda oração, ela disse: “Deus, Tu sabes que eu faria qualquer coisa por
Ti. Só não me teste por meio dos meus filhos.”

Alguns dias depois ela soube que seu filho adulto havia sido diagnosticado
com leucemia. Ele finalmente morreu, e ela mergulhou em uma depressão
terrível, após o que passou a reavaliar a si mesma, a sua fé e a sua relação
com Deus. Desse horroroso período de aflição ela emergiu mais forte, mais
autenticamente religiosa e, como ela própria afirma, uma pessoa melhor.

É claro que ela não deveria ter desafiado Deus, mas, uma vez que abriu
a porta para uma realidade à qual ela acreditava que nunca poderia superar, de
alguma forma tornou-se necessário que o teste de fato acontecesse.

Por sua própria dureza, experiências desse tipo nos permitem pôr em
prática capacidades que, caso contrário, seriam conhecidas somente por Deus,
mas não por nós.

O famoso filósofo holandês Soren Kierkegaard argumentou que não foi


pedido a Abrahão para sacrificar o seu filho, mas, sim, para sacrificar a sua
inteligência, uma vez que toda a ideia de sacrificar o seu filho não fazia sentido.
Anteriormente, Deus dissera a Abrahão: “Você terá um futuro junto ao seu filho.
Teus descendentes serão mais numerosos do que as estrelas”; e então Deus lhe
diz para matar o filho. O teste era se Abrahão poderia obedecer a uma ordem
de Deus mesmo quando esta fosse irracional e contrária a tudo o que Deus lhe
havia dito antes. Era a sua fé plena no seu Deus que estava sendo testada.

Ele precisava demonstrar que pretendia levar adiante aquele ato ilógico
porque acreditava em Deus. Abrahão não poderia ter sido quem ele foi se não
tivesse consentido com isso.

Dizer que Deus sabia de antemão que Abrahão passaria no teste não
prova nada. Sim, Deus sabia que, uma vez que Abrahão encarasse o desafio de
pôr em prática o seu potencial, ele passaria. Mas seria falso dizer que, já que
Deus sabia de antemão do desfecho, Ele não deveria ter submetido Abrahão ao
teste. A menos que Abrahão realmente passasse no teste, ele não poderia ter
realizado o melhor de si.

Foi o teste que deu a Abrahão a oportunidade de pôr em prática o sentido


da fé e o conceito de sacrificar tudo por suas convicções. Ele demonstrou a
ideia de que há momentos em que devemos seguir a Deus mesmo quando isso
parece ilógico. Eu até posso imaginar Deus dizendo a Si Mesmo: “Eu sei que ele
passará no teste, e é por isso que o estou submetendo a isso. Estou lhe dando
o teste exatamente porque Eu sei que ele passará.”

Então Nachmânides conclui que, até Abrahão realmente vivenciar esses


desafios e passar por eles, a sua capacidade de demonstrar fé e lealdade
era apenas “potencial”; suas qualidades ainda não haviam sido forjadas na
verdadeira essência do seu caráter.

A METÁFORA DOS RECIPIENTES


Ao tratar da mesma questão, o Midrash48 oferece a seguinte analogia a
respeito de um ceramista:

“A fim de testar um recipiente para o seu forno, um ceramista bate


nele em diversos pontos para ver se solta algum som característico, indicando
que está livre de rachaduras ou outros defeitos. Mas se um recipiente está
obviamente quebrado ou inclusive apresenta uma rachadura definida, não há
necessidade de testá-lo; ele está claramente com defeito.

Então, por analogia, se os Céus submetem alguém a um teste, isso indica


que essa pessoa já alcançou muito. Ela parece estar inteira, moralmente forte.
Porém, as pessoas más jamais são testadas como foram Abrahão e Jó. Com o
defeito moral ou a fraqueza destas, qualquer teste só traria outra queda moral.
Os Céus não têm qualquer intenção de fazer isso.

A mensagem parece estar muito clara. O ceramista precisa verificar a


sua mercadoria; mas se esta estiver obviamente defeituosa, não há necessidade
de testá-la, porque o resultado é conhecido – o recipiente irá quebrar. Um
recipiente que pode ser forte ou ter falhas ocultas deve ser testado. Se não
quebrar, pode então ser garantido como um recipiente confiável.”

O Midrash está nos ensinando que as pessoas boas são mais capazes
de suportar todo o rigor dos testes de Deus do que as más, porque para estas
o resultado do teste já é conhecido; para elas um teste é desnecessário. As
pessoas corretas, contudo, têm a chance de se elevar diante da ocasião e
atingir o seu potencial.

Eu me lembro de Helen Keller, uma mulher notável que inspirou milhões


de pessoas. Deus sabia que Helen Keller poderia lidar com o desafio a ela
apresentado. Graças às suas deficiências, que ela superou com tamanha calma,
Helen Keller se tornou uma pessoa maior do que seria caso tivesse nascido para
trilhar um percurso fácil.

Ela foi submetida a muitos testes em sua vida, mas aprendeu a falar,
foi para Radcliffe, graduou-se com honra e se tornou uma famosa escritora
e conferencista. Os seus testes foram degraus em direção a um nível mais
elevado de existência, e ela descobriu a sua sabedoria para escrever: “O caráter
não pode ser desenvolvido com facilidade e quietude. Somente por meio da
experiência dos testes e do sofrimento é que a alma pode ser fortalecida; a
ambição, inspirada; e o sucesso, alcançado.”

Certamente a alma de Helen Keller elevou-se como resultado das


suas aflições. Após ter sido submetida a diversos testes, ela pôde olhar
retrospectivamente para a sua vida e concluir: “Muitas pessoas têm uma ideia
errada do que constitui a verdadeira felicidade. Esta não é alcançada por meio
da autossatisfação, mas pela fidelidade a um propósito dignificante.”

A vida nos oferece a oportunidade de ver muitos outros exemplos


semelhantes. Vem se tornando comum ver uma pessoa portadora de deficiência
competindo em um esporte desafiador – pessoas com pernas amputadas
correndo em maratonas ou esquiando, pessoas em cadeiras de rodas que
jogam basquete, pessoas surdas que atuam como atores.
Deixe-me compartilhar com você um exemplo comovente: uma vez por
ano é realizada uma maratona de 26 milhas (aproximadamente 42 km) na
cidade de Nova York, com a participação de muitas dezenas de milhares de
pessoas. Multidões comparecem para vibrar com o vencedor. Eu quero contar
a história do “perdedor” – a pessoa que, em 1998, chegou exausta em último,
muitas horas depois que todos os demais já haviam completado a corrida.

O nome dela é Zoe Koplowitz. Ela tinha 46 anos e sofria de uma doença
degenerativa – esclerose múltipla; ela já sofria dessa enfermidade há mais de
20 anos. Zoe caminhava apoiada sobre duas muletas, em um passo lento e
doloroso de cada vez. Ela caminhou durante 27 horas e 34 minutos e completou
a maratona. Zoe chegou em último lugar, mas chegou. Ela cruzou a linha final
arrastando a sua perna esquerda.

Por que ela fez isto? Eis a sua resposta:

“Quando você nasce, Deus lhe dá uma televisão programada com uma
centena de canais. 99 deles exibem programas maravilhosos; em um deles só
tem estática. Todas as pessoas, sem exceção, têm esse canal com estática; a
única diferença é o tipo de estática que você recebeu nesse canal. E você tem
uma escolha: você pode se sentar diante desse canal pelo resto da sua vida e
ficar olhando para a estática, ou você pode se levantar e mudar de canal. O meu
compromisso na vida é mudar o canal sempre que possível.”

Nós podemos superar nossas deficiências físicas e emocionais. Nós


podemos mudar o canal, do mesmo modo como tantos que nos mostraram que
isso é possível. E eles são exemplos típicos de seres humanos mais fortes e
melhores, graças às vivências às quais foram submetidos.

O PRINCÍPIO DA EDUCAÇÃO
Ouçamos agora o que um outro importante filósofo e teólogo judeu tem
a nos dizer a respeito do teste de Abrahão. Maimônides faz uma leitura um
pouco diferente do teste do sacrifício de Isaac. Não que ele discorde totalmente
da análise de Nachmânides; ele apenas dá à história – e a esse ponto – uma
outra ênfase.

Maimônides vê o propósito do teste como algo educativo para o restante


da humanidade. Deus testou Abrahão – sabendo que o Patriarca iria estar à
altura do teste – para demonstrar ao resto do mundo as possibilidades da
perfeição humana, a elevação espiritual que o corpo físico é capaz de alcançar.

É como se o ceramista estivesse testando o seu recipiente na loja a fim


de impressionar e convencer os demais da alta qualidade da sua mercadoria.

Essa revelação Divina – usando Abrahão como recipiente – foi significativa


não apenas para os seus contemporâneos, mas em benefício de todas as
gerações futuras. Deus sabia que milhões de pessoas um dia iriam ler essa
história na Bíblia e seriam inspiradas por ela.

Deus queria que Abrahão passasse por esse teste tremendamente difícil de
modo que essa história permanecesse como prova do poder da fé. E quem sabe
se isso não ajudou inúmeros descendentes de Abrahão a sobreviver aos seus
próprios testes de fé quando, durante as Cruzadas, pogroms ou no Holocausto,
os judeus foram confrontados com o sacrifício dos seus próprios filhos.

Exemplos de incrível obediência a Deus são o que torna possível às


pessoas seguirem adiante por seus próprios caminhos.

Portanto, Maimônides na verdade está dizendo que Deus precisava


de personagens inspiradores para o Seu livro. Ele precisava que os originais
realizassem essas grandes coisas – superando todas as dificuldades – para que,
então, nós pudéssemos aprender com eles.

Naturalmente, Abrahão não poderia ter sabido, tampouco suspeitado


disso, ou o teste teria sido uma fraude. Do mesmo modo, alguém hoje em dia
pode ser submetido a um teste Divino sem jamais imaginar o tremendo impacto
que o seu sucesso poderá exercer nas demais pessoas!

Por exemplo, uma mulher que inesperadamente perdeu o seu marido e


entrou em profunda depressão pelo potencial perdido de seu matrimônio não
percebe como a tristeza dela pode trazer benefício para outras pessoas. Mais
tarde, talvez quando as pessoas lhe disserem: “Você foi uma grande inspiração
para mim – o modo como você lidou com a morte do seu marido com tanta
dignidade...”, ela poderá perceber que a sua perda foi, de diversas maneiras,
um ganho espiritual, não só para ela, mas também para muitos outros. É isso o
que significa “ser usado a serviço de Deus”.

De acordo com Maimônides, Deus quer nos mostrar do que é feito o


Seu povo especial. É como se Deus estivesse dizendo: “Eu tenho alguns jarros
que são tão fortes que você dificilmente acreditaria se os visse com os seus
próprios olhos. Veja, Eu vou martelar aquele jarro, e mesmo assim ele não
se quebrará. Você precisa admirar a qualidade excepcional destes recipientes
extraordinários.”

Por que lhe é ensinada essa demonstração? Para que você, também,
possa ser um recipiente assim. Preste muita atenção e veja do que os seres
humanos são capazes. A fé pode tornar um recipiente de barro tão resistente
quanto um de ferro.

Nesta linha, eu posso ajudar ainda além, ao pensar em meu pai, de


abençoada memória. Ele passou por muitos testes e tribulações em sua vida,
mas eu nunca o ouvi reclamar. Ele teve que fugir da Europa ocupada pelo
nazismo; teve que aprender outro idioma já em idade avançada e começar tudo
de novo na América.

A vida para a sua geração de imigrantes não era fácil, mas ele superou
todas as dificuldades. Fez sacrifícios, sofreu, contudo nunca perdeu a sua fé em
Deus. Eu sempre imagino se teria sido capaz de suportar o que ele suportou.

Até hoje, uma de minhas memórias mais vívidas de meu pai é quando eu
o visitava durante a época da sua última doença. Ele me pedia para que eu me
abaixasse para mais perto dele, para que ele pudesse me sussurrar algo. Meu
pai sabia que logo estaria deixando este mundo, e foi isso o que ele escolheu
para me deixar marcado: “Meu querido Benjamin, eu preciso lhe dizer que não
entendo por que Deus me considerou merecedor para me abençoar tanto ao
longo dos dias da minha vida.”
Eu ainda sou incapaz de compreender a profundidade da piedade que
lhe permitiu refletir sobre o seu passado – um passado preenchido de tanta
dor – e percebê-lo apenas sob a perspectiva de uma grande bondade do Todo-
Poderoso. Será que ele esqueceu todo o sofrimento? A sua mente o enganara
no fim da vida? Eu penso que não. De forma alguma. Era a sua natureza
religiosa que sempre enfatizara o bem além do mal e que, até o dia de hoje, eu
tento muito imitar.

A história do teste de Abrahão poderia ser reescrita com alguma forma


de relato diferente, substituindo alguns nomes por pessoas nossas conhecidas
– o nome do meu pai, o meu nome, o seu nome, qualquer um de nós que foi
submetido a teste durante a vida. E, verdade seja dita, quem não é?

Deus nos testa o tempo inteiro, e se compreendermos isso corretamente,


isso com certeza é um cumprimento Divino: significa que Deus sente que
nós podemos lidar com as dificuldades. As pessoas que fracassam são muito
parecidas com estudantes inteligentes nos exames finais. Alguns alcançam
100%; outros, 75%, mas tinham visivelmente o potencial para alcançar os
100%. Outros ainda – com o mesmo potencial – não passam no teste.

Por quê? Aquela foi a sua escolha. Eles exercitaram o seu livre-arbítrio
para fracassar no teste. Mas isso não significa que eles não deveriam ter
passado. Deus sabia que eles eram capazes; mas eles decidiram não o fazer. E,
na maior parte das vezes, essas pessoas ficam chateadas com Deus por seus
próprios fracassos.

Há um modo melhor de agir, se nós aprendemos a pensar nos


vários momentos de nossas vidas, quando precisamos encarar os desafios
da adversidade como nossos testes pessoais – testes que servem como
instrumentos Divinos para encorajar nosso crescimento espiritual, bem como
grandes oportunidades para que nos tornemos um modelo de conduta heroica
para aqueles que nos são mais próximos e queridos.
Notas
44. Provérbios 3:11-12. – 45. Provérbios 13:24. – 46. Deuteronômio 8:5. – 47.
Êxodo 15:22-26. – 48. Midrash Rabá, Gênesis 32:3.

No próximo volume da série de e-books


Se Deus é Bom Por Que o Mundo é tão Ruim?

Capítulo 12. O Fator de Equilíbrio

Capítulo 13. Não é Deste Mundo

Capítulo 14. A Punição de Moisés

Não perca!
CAPÍTULO 12
O FATOR DE EQUILÍBRIO

Um dos grandes reis dos israelitas foi Ezequias [Chizkiáhu], um homem


santo que ensinou os caminhos de Deus à nação. Mas por algum motivo seus
ensinamentos escaparam ao seu próprio filho, Menashê, que o sucedeu como
rei aos 12 anos de idade; não demorou muito e tornou-se um adorador de
ídolos. Todo o esforço que o seu pai teve com ele quando criança não o levou
para a trilha correta.

Entretanto, alguma coisa mudou Menashê.

No meio de uma batalha, seus inimigos assírios o capturaram, e essa


reviravolta provocou uma transformação incrível.

Em poucas palavras, foi o sofrimento que fez com que Menashê se


voltasse para Deus. Por quê? Porque submetido a essa nova circunstância,
simplesmente não havia mais ninguém para quem se voltar. E então, quando o
jovem arrogante estava de joelhos, finalmente humilde diante de Deus, o Todo-
Poderoso ouviu suas orações e o fez retornar ao seu reino, em Jerusalém, onde
ele novamente passou a reverenciar o Deus único.

Essa história nos leva a outra resposta de por que as pessoas sofrem. Eu
chamo isso de “princípio da humildade”.

O PRINCÍPIO DA HUMILDADE

O conceito de uma necessidade de humildade como razão para o


sofrimento é apresentado no Talmud49 de um modo muito interessante.

Segundo essa história, o grande Rabi Eliezer está doente, sofrendo


terrivelmente. Os visitantes vêm consolá-lo ao lado da sua cama e entre eles
estão quatro Sábios da época: Rabi Tarfon, Rabi Yehoshua, Rabi Elazar ben
Azariá e Rabi Akiva.

Rabi Tarfon lhe diz: “Tu és mais precioso do que a chuva, porque esta
é só para este mundo, mas tu, Rabi Eliezer, és para este mundo e o próximo.”

Com essa frase poética, ele parece dizer de fato a Rabi Eliezer: “Não se
preocupe. É possível que Deus não possa te levar, porque, assim como a terra
seca necessita das chuvas, as pessoas que precisam dos teus ensinamentos
não podem ficar sem ti. Por isso Deus não te fará morrer mais do que Ele
interromperá a chuva, que é essencial à vida.” Ou ele poderia estar dizendo
a Rabi Eliezer: “Não se preocupe, porque teus ensinamentos viverão além de
ti, pois tu és como as chuvas que, posteriormente, fazem com que os frutos
cresçam.”

Então Rabi Yehoshua afirma: “Tu és mais valioso para Israel do que o
sol. O sol é somente para este mundo, enquanto tu és para este mundo e para
o próximo.”

Rabi Yehoshua parece ter encontrado outra frase poética para ecoar as
palavras de Rabi Tarfon.

Então Rabi Elazar ben Azaria diz: “Tu és para nós mais importante do que
um pai e uma mãe. Os pais são para este mundo; eles trazem um filho para cá,
mas tu és para este mundo e para o próximo.”

Novamente uma frase igualmente poética, embora essa comparação


tenha sido mais pessoal do que a anterior.

Enquanto consolavam seu amigo, Rabi Tarfon, Rabi Yehoshua e Rabi


Elazar ben Azaria pareciam também verbalizar a Deus o quanto ele era
importante para eles. Eles estavam dizendo: “Deus, veja como estamos nos
sentindo. Veja como precisamos deste homem!”

Mas então vem a declaração final do mestre, Rabi Akiva. Ele simplesmente
diz: “Sofrer é precioso.”

Os demais enfatizaram a Rabi Eliezer que o seu sofrimento teria um fim


breve, pois ele significava muito para eles. Eles estavam, de fato, negando o
que estava acontecendo.

Por outro lado, Rabi Akiva não apenas aceitou o que estava acontecendo,
como elevou a situação para outro patamar, ao encontrar um aspecto positivo
para isto. O sofrimento é valioso, precioso.

Com isso, Rabi Eliezer se reanima. Ele pede para se sentar a fim de
ouvir melhor, e pergunta: “Akiva, como você sabe disso? Onde, na Bíblia, você
encontra uma afirmação assim?”

E Rabi Akiva50 cita a história de Menashê como sua fonte. Ele conclui que
aprendemos dessa narrativa como o sofrimento pode ser precioso. O sofrimento
é uma experiência educacional. Ele entra em cena quando um indivíduo não
aprende uma determinada lição, pois as coisas vão muito bem. Quando se está
no topo do mundo e fechado para ouvir a Deus, o sofrimento traz uma mensagem
de humildade, exatamente porque é uma experiência constrangedora.

Contudo, o Talmud não sugere, nem eu, que Rabi Eliezer precisava
aprender sobre humildade. Tudo o que ele precisava ouvir era que havia uma
mensagem no sofrimento e que ele deveria perguntar a Deus que mensagem
era essa. Rabi Akiva estava simplesmente apresentando um conceito:

* O sofrimento tem um propósito.

* Quando Menashê sofreu, ele aprendeu uma lição que precisava


aprender, que para ele foi a humildade.

* A lição pelo sofrimento é o que a torna preciosa.

* Rabi Eliezer tinha a obrigação de voltar-se para dentro de si mesmo


e descobrir o que Deus estava tentando lhe dizer por meio desse
sofrimento.

Todos nós estamos familiarizados com pessoas como Menashê, pessoas


com pais inteligentes, mas que nunca adquiriram sabedoria por si mesmas. Eles
são filhos que têm de tudo – e por isso não admiram nada.
Eu conheço um jovem que cresceu com um pai que era extremamente
bem-sucedido, um self-made man (um homem que se fez sozinho). O pai, que
trabalhara por muitas horas desde a sua juventude e construíra um negócio
de muitos milhões de dólares, não queria que seu filho sofresse as mesmas
carências que ele suportara. Ao se lembrar como ele andava e pegava ônibus
todos os dias, o pai deu ao seu filho, no seu 16º aniversário, um carro – e não
era um carro qualquer, mas um Jaguar “top” de linha. O que se seguiu depois
disso infelizmente é muito comum: faltar às aulas no colégio para passeios a
lazer, exibir-se para os amigos em todo lugar com o seu carro (o que deixava
pouco tempo para os deveres de casa), o aborrecimento com as aulas, que
não se comparavam à excitação das suas “excursões bancadas pelo cartão de
crédito”. Não demorou muito para que o filho se envolvesse em problemas com
a lei. Eis a história de Menashê se repetindo. Não é fácil se tornar um rei aos
12 anos, com o mundo aos seus pés e sem ninguém que ouse lhe contradizer.
Como você aprende a ser humilde?

Menashê aprendeu isso no cativeiro, e o mesmo aconteceu com o jovem.


Ele precisou ser preso e passar alguns dias na cadeia para ser chacoalhado. O
jovem percebeu que havia situações nas quais nem mesmo o dinheiro do seu
pai poderia salvá-lo. Custou um pouco de sofrimento na juventude para ensinar
uma lição pela qual esse jovem algum dia será imensamente grato.

Há muitos exemplos atuais que me vêm à mente. Há pessoas que estão


sentadas no topo do mundo, que esqueceram tudo – seus amigos, de onde elas
vieram, que Deus dirige o mundo. Elas esquecem que também são humanas.
Nós conhecemos pessoas assim, e algumas vezes desejamos que algo lhes
aconteça para colocá-las um pouquinho no seu devido lugar.

Então o sofrimento – de acordo com esta ideia, que é somente uma de


várias abordagens que devemos ter em mente – cumpre esse papel. Ele serve
como uma vivência educativa enviada por Deus para trazer a pessoa de volta a
uma realidade com a qual ela perdeu contato quando as coisas iam bem demais.

Na Bíblia temos a história recorrente de Amalêc e seu povo, a quintessência


da perversa nação de antissemitas, cuja existência parece sempre lembrar os
israelitas quem eles são e quem é Deus. Amalêc sempre surge na cena quando
os israelitas se afastam da sua aliança com Deus, esquecem qual deve ser a sua
missão neste mundo e começam a disputar entre si.

A Bíblia ensina que Amalêc – e o sofrimento que ele infligiu – existiu a


fim de ajudar Deus a solucionar um problema. Sempre que Amalêc atacou,
os judeus lembraram-se de Deus e se uniram para combater um inimigo
comum. O Talmud51 diz que 48 profetas e 7 profetisas – alertando a nação
para se arrepender e rezar para Deus – foram incapazes de realizar o que 1
Hamán (um descendente de Amalêc que pretendia assassinar todos os judeus)
estava preparado para fazer em uma noite. Todos esses profetas estavam ali,
dedicando suas vidas a pregar a destruição: “Por favor, judeus, ouçam e sejam
bons, sejam bons, sejam bons!” De nada adiantou. Mas, uma vez que Hamán
representou a ameaça do extermínio, de repente o povo judeu, com um fervor
incomum, mergulhou profundamente em oração.

C.S. Lewis afirmou: “A dor é o megafone de Deus para acordar um mundo


surdo.” Quando tivermos fé o bastante para acreditar que Deus está falando
conosco por meio da nossa dor, seremos sábios o bastante para compreender
a mensagem; e o nosso sofrimento, agora imbuído de sentido, será muito mais
fácil de suportar.

O PRINCÍPIO DA EXPIAÇÃO
Passemos agora para outra ideia fascinante oferecida pelos Sábios.
A fim de compreendermos este princípio, examinaremos uma outra história
do Talmud.52

Rabi Abáhu está cuidando do seu pai, que sofre o desgaste da velhice,
possivelmente consequência de um ataque cardíaco. O pai de Rabi Abáhu
pede-lhe um copo de água, e, como um filho obediente, ele parte prontamente
para buscar. Mas, quando retorna com a água, encontra seu pai adormecido.
Então, parado diante deste, ele tem dúvidas sobre o que fazer. Seu pai poderia
se levantar a qualquer momento e querer a água; Abáhu não queria que ele
tivesse que lhe pedir novamente. Enquanto permanece ali, sem saber se deve
esperar ou partir, sua mente repentinamente foca numa passagem do livro de
Salmos. Ele pensa sobre o seu significado e descobre um novo sentido em suas
palavras. Rabi Abáhu nunca compreendera a verdadeira ideia do Salmo 79 até
aquele momento, mas agora via a conexão entre o sofrimento do seu pai e uma
parte obscura da passagem.

O Salmo 79 começa assim:

“Ó Deus, as nações... profanaram o Teu sagrado santuário; elas


converteram Jerusalém em montes de escombros.”

É um salmo extremamente triste escrito por Assáf, que descreve a


destruição do Templo. Diferente de muitos dos salmos, que são inspirados na
natureza e são denominados “canções de ascensão”, esse salmo é pesaroso.
No entanto, se você pegar qualquer livro de Salmos, encontrará uma canção
(mizmor) de Assáf. Era isso o que incomodava Rabi Abáhu. Por que uma canção?
Uma canção é, por natureza, alegre e edificante. Este é um poema sobre uma
tragédia; por que então não foi chamado de lamentação?

E então lhe veio à mente que o compositor, Assáf, viu algo de positivo
a respeito da destruição do Templo, há muito considerado a pior tragédia que
já recaiu sobre o povo judeu. Mas como isso poderia ser algo positivo? Bem,
pensou Rabi Abáhu, como Deus estava irado com as transgressões do Seu
povo, Ele optou por destruir um edifício de pedra e madeira quando Ele bem
que poderia, facilmente, ter destruído, em vez disso, a nação israelita. Isso
deu tanto consolo a Assáf que ele nomeou a sua composição de “canção” e
não de “lamentação”.

Assim que essa reflexão reluziu em sua mente, Rabi Abáhu relacionou-a
a uma passagem do livro de Lamentações53 que fala do pesar do povo judeu por
causa da destruição do Templo: “O Eterno fez passar a Sua fúria; Ele derramou
a Sua ardente ira; e Ele acendeu fogo em Tsión que consumiu a Sua fundação.”

Isto também sugere que aconteceu uma coisa boa. Há um aspecto


positivo na destruição do Templo. É verdade que os inimigos dos israelitas
vieram e destruíram o seu santuário mais sagrado, o símbolo da sua relação
singular com Deus; mas poderia ter sido pior. “O Eterno fez passar a Sua fúria.”
Ao permitir que isso ocorresse, Deus considerou como encerrada a necessidade
da ira; o pagamento pelo pecado estava feito, e agora poderia se considerar
que havia sido feita justiça. O povo judeu podia continuar a viver.

Contudo, não nos esqueçamos de que Rabi Abáhu estava fazendo essas
reflexões enquanto permanecia com um copo de água diante do seu velho pai.
Ele observava as consequências de um ataque cardíaco no rosto do seu pai; ele
estudava o modo como o sofrimento minara um ser humano outrora vibrante.

Rabi Abáhu pensava: Por que isso aconteceu? Como pode ser? E então
percebeu que também isso é uma forma de expiação. Pode ser que, assim como
um templo de pedra e madeira fora arrasado, do mesmo modo um corpo mortal
de carne e osso fora afligido. No entanto, o ser humano ainda permanece vivo;
ele foi poupado. Poderia ter sido pior.

Há um famoso ditado iídiche que diz: “Oy, zol zein a capúre!“ (Que isto seja
por expiação!). Pode ser que estivesse reservado algo pior, mas felizmente essa
coisa ainda mais terrível não aconteceu.

Antigamente essa expressão era usada quando as pessoas sobreviviam a


uma experiência horrível: alguém teve um ataque cardíaco; uma pessoa sofreu
uma perda financeira severa. Dizia-se: “Que isso seja para expiação.” Que com
isso ele tenha saldado suas dívidas e agora possa começar novamente do zero.

Tenho visto pessoas passando por ciclos como este. Tudo sai errado e
parece que eles estão vivendo em uma área de desastres. Então de repente
ocorre uma reviravolta e as coisas passam a dar certo novamente. Então se
imagina: pode ser que aquilo tenha sido uma expiação, que agora está completa.

Eu conheço um homem cujo filho estava gravemente enfermo. O


prognóstico era grave. Então, como que para aumentar o seu sofrimento,
ocorreu a quebra da bolsa de valores (isto foi em 1987) e ele perdeu uma
fortuna. Contudo, imediatamente depois disso seu filho se recuperou, para a
enorme surpresa dos médicos. A sua perda financeira foi uma óbvia expiação,
uma capará, por algo que poderia ter sido uma perda muito maior.

Esta é a essência do princípio da expiação. Uma vez que você tem que
pagar suas dívidas de um modo ou de outro, então talvez alguns dos modos
pelos quais você as paga – e que podem parecer aparentemente muito cruéis
– podem ser encarados como algo que serve ao propósito da compensação por
erros cometidos.

Por isso, quando uma pessoa perde o seu emprego ou fica doente – só
Deus sabe por quê –, isto pode estar compensando alguma falha. Nós, em
geral, perdemos de vista o que ainda temos quando sofremos uma perda ou
vivenciamos um “ato de Deus” aparentemente terrível. E talvez a razão pela
qual ainda tenhamos permissão, pelas escalas Divinas da justiça, de manter
nossas bênçãos é que pagamos por elas com a moeda do sofrimento.

CAPÍTULO 13
NÃO É DESTE MUNDO

Naturalmente, ainda há mais. Nenhuma das explicações individuais


pretende solucionar todas as nossas vivências semelhantes às de Jó. Contudo,
cada uma delas se aplica a uma situação e para algumas pessoas.

As respostas que iremos levar em conta neste capítulo têm uma coisa
interessante em comum. Para a compreensão delas, é necessária a crença em –
ou pelo menos um reconhecimento de – outra dimensão, um universo espiritual
que existe, mesmo que sejamos incapazes de visualizá-lo, paralelamente ao
universo que conhecemos: o assim denominado Olam Habá, o próximo mundo
ou o mundo vindouro.

Eu coloco a primeira das respostas nesta categoria de “princípio do intercâmbio”.


Esse princípio declara que é melhor você ser punido por suas transgressões neste
mundo e recompensado por suas boas ações no mundo vindouro.
O Talmud54 ilustra esta ideia ao recontar um notável incidente:

Novamente o nosso amigo Rabi Eliezer está doente, mas desta vez são
seus alunos que vêm visitar. Ele lhes diz: “Há uma ira feroz no mundo.” E eles
se derramam em lágrimas. Mas justamente nesse momento o legendário Rabi
Akiva entra e começa a sorrir.

“Por que você sorri?” – eles o indagam.

“Por que vocês lamentam?” – ele responde, no modo tipicamente judaico


de responder a uma pergunta com outra pergunta.

“Este homem santo está morrendo. Nós não deveríamos lamentar?”

“É por essa mesma razão que eu me regozijo. Eu pensava que ele havia
recebido todas as suas recompensas neste mundo, nada deixando para o
próximo. Mas agora que eu o vejo com dor, alegro-me em saber que a sua
recompensa lhe foi acumulada para o mundo vindouro.”

Então Rabi Eliezer pergunta: “Akiva, eu não entendo por que isso está
acontecendo comigo. O que será que eu fiz de errado?”

E Rabi Akiva responde: “Você mesmo nos ensinou que não há um único
homem sobre a Terra que só faz o bem e não comete pecados.”

Essa história está plena de significado. Rabi Eliezer sofre de uma


enfermidade. Ele tenta entender por que isso está acontecendo com ele, e
a única coisa que lhe ocorre como uma explicação é que há uma ira feroz no
mundo. Ele parece dizer que o motivo para isso é que o resto do mundo merece
o castigo de Deus e que ele simplesmente foi pego em meio à tempestade da
ira Divina.

Mas Rabi Akiva mostra que isso não pode ser verdade: “Você, Rabi Eliezer,
não pode ser completamente bom, assim como o resto do mundo não pode ser
completamente ruim. A realidade do mundo é mais profunda.”

Eu devo concordar. Tenho visto toda espécie de combinações estranhas


entre as pessoas. Eu já vi seres humanos desprezíveis e, para ser honesto,
preciso dizer que até mesmo eles tinham virtudes. Um conhecido meu é um
terror nos negócios. Seus empregados se encolhem diante dele, derramam
lágrimas e se queixam de que ele lhes causa úlceras. Mas em casa ele é um
marido paciente e um pai dedicado. A casa e o local de trabalho são literalmente
mundos diferentes para ele: em casa ele é um santo; no trabalho, um monstro.

Nós temos no livro de Deuteronômio a confirmação desta visão de que


ninguém é totalmente bom ou totalmente ruim:55 “Mas Ele (Deus) paga aos
que O odeiam diante das suas faces, fazendo-os perecer; não tardará aos que
O odeiam, que diante das suas faces (Ele) os pagará.” Até mesmo os inimigos
de Deus merecem pagamento. Não, não punição, mas pagamento – a palavra
bíblica para recompensa! Por quê? Porque é simplesmente inconcebível que
até mesmo aqueles que consideramos maus não tenham pelo menos algumas
virtudes redentoras, alguns momentos em que executaram atos de bondade.
Eles também devem ser pagos por suas boas ações. A única coisa que Deus
opta por fazer de diferente com eles é alterar o prazo para a recompensa e para
a punição.

Qualquer recompensa que um homem mau deve supostamente receber


por ter sido ocasionalmente bom, ele receberá “diante da sua face”, quer dizer,
durante a sua vida neste mundo. O fato de os maus prosperarem, de acordo com
esta análise, não é um problema, mas, sim, uma solução. É um modo de fazer
com que as pessoas más sejam recompensadas por seus bons comportamentos
aqui, em vez de no mundo vindouro, onde receberão apenas punição.

Por outro lado, para as pessoas boas o sistema opera exatamente na


ordem oposta. Para quaisquer pecados que estas possam ter cometido – “não
há sobre a Terra alguém tão correto que só faça o bem” –, elas sofrem aqui
na Terra. Isso é o que as suas almas preferem, de modo que possam ir para o
mundo vindouro sem qualquer mancha. As recompensas dos céus são muito
melhores do que suas punições; a dor na Terra é muito melhor do que seus
prazeres fúteis.

Na verdade, é por isso que Rabi Akiva diz: “Eu costumava ficar preocupado
com você, meu mestre. Eu via que tudo lhe ia bem. Nada de ruim jamais lhe
aconteceu. Então eu temia que todo o mal iria lhe acontecer ali (no mundo
vindouro). Mas, agora que eu vejo você receber uma dose de sofrimento, eu
digo: graças a Deus.”

O conceito de intercâmbio sustenta que vai tudo bem com os maus na


Terra porque eles estão usufruindo da “conta bancária” deles aqui por tudo de
bom que fizeram. Enquanto isso, na outra dimensão, é mantida uma conta de
débito relativa às suas más ações, e no local do julgamento eterno eles terão
que pagá-la. Por outro lado, as pessoas boas sofrem na Terra porque elas
pagam por suas falhas à medida que vivem, e acumulam os méritos das suas
boas ações no mundo vindouro.

Em outras palavras, se você não receber isso aqui, receberá ali.

Os maus recebem a recompensa aqui porque serão punidos no outro


mundo. Para os bons ocorrerá justamente o contrário. Na verdade, se uma
pessoa boa parece estar recebendo recompensas demais aqui, então ela deve
se preocupar. Isso é exatamente o que Rabi Akiva pensava: Ai meu Deus, meu
mestre está vivendo bem demais. Ele estava preocupado porque compreendia
esse princípio do intercâmbio.

Há sutilezas no tocante a esse tema que esclarecerão mais adiante o local


apropriado para a recompensa – se Deus opta por reembolsar pelo desempenho
das boas ações aqui e agora ou no mundo vindouro. Por exemplo, digamos que
temos uma pessoa boa que tenta cumprir o mandamento de fazer caridade,
mas ele não faz isso de coração aberto. Ele não está sendo realmente sincero;
só está interessado no reconhecimento que uma doação para caridade lhe trará.
Ele quer uma grande placa na porta. Deus recompensa esse tipo de falsa boa
ação – uma ação carente de verdade – em um mundo que carece de verdade,
com pagamentos que carecem de verdade. Então, sim, a pessoa recebe o seu
reconhecimento, a recompensa, a placa na porta. E é tudo. Enquanto isso, a
pessoa que doa de coração puro, não esperando nada, doa de verdade. E é por
isso que a sua recompensa estará no mundo da verdade, no mundo vindouro.

O que é mais importante é que Deus sabe quem é quem. Ele olha dentro
da alma de cada ser humano, e Ele sabe quem saberá valorizar cada tipo de
recompensa. Deus não apenas reembolsa atos de bondade e castiga atos de
transgressão; Ele escolhe até mesmo o local para a recompensa ou castigo,
conforme os nossos próprios desejos espirituais.

Há uma lei na Bíblia56 que diz que você deve pagar o salário ao trabalhador
imediatamente após ele completar a sua tarefa.

Há apenas uma exceção: se ele não quiser ser pago imediatamente por
entender que, se adiar o pagamento, a sua recompensa será maior. Do mesmo
modo, Deus também paga de acordo com o desejo dos Seus “trabalhadores”; o
entendimento da pessoa determina o método de pagamento da parte de Deus.
O homem mau – por ver apenas o que está diante dele – prefere receber a sua
recompensa aqui e agora, e é isso o que Deus faz por ele. O homem íntegro
prefere não a receber aqui, e Deus também o atende.

EXCEÇÕES AO PRINCÍPIO DO INTERCÂMBIO


Mas se as coisas só funcionassem assim, nós suspeitaríamos que qualquer
um que vivesse confortavelmente seria uma pessoa má! Por isso Maimônides
esclareceu que há exceções à regra.

No Livro de Deuteronômio57 encontramos uma passagem sugerindo


fortemente que a recompensa para as pessoas boas que obedecem às ordens
de Deus de fato vem nesta Terra:

“E se obedecerdes aos Meus mandamentos que hoje vos ordeno – de


amar ao Eterno, vosso Deus, e servi-Lo com todo o vosso coração e com toda a
vossa alma – então (Eu, o Eterno) darei chuva à tua terra a seu tempo, a chuva
precoce e a chuva tardia; e colherás o teu grão, o teu mosto e o teu azeite. E
darei erva no teu campo para teus animais; e comerás e te fartarás.”

Maimônides esclarece que nessa passagem Deus não está falando de


recompensa, mas de sustento. Ao obedecer às ordens de Deus, uma pessoa
boa será sustentada e mantida a fim de continuar as suas boas obras porque
ele é um parceiro de Deus na realização das coisas por Ele desejadas. Em
outras palavras, Deus irá usá-lo em vez de recompensá-lo.
Tomemos por exemplo uma pessoa que se ocupa da boa obra de saciar a
fome do mundo. Essa pessoa é parceira de Deus, e por isso Deus cuida dela. É como
se Deus estivesse dizendo a uma pessoa boa: “Mantenha a boa obra. Eu enviarei
os fundos e tudo o mais que você precisar, porque você a está administrando bem.”
Quando uma pessoa faz um bom trabalho, Deus lhe envia coisas periodicamente
com o intuito de preservar uma parceria mutuamente benéfica.

Isso explica, de acordo com Maimônides, por que as pessoas boas às vezes
são prósperas e têm dinheiro: é porque Deus percebe que elas administram
corretamente o seu patrimônio. A riqueza destas não é tanto a sua recompensa,
mas, sim, algo colocado sob seus cuidados para salvaguarda e redistribuição.

Mas Maimônides também nos dá outra razão para explicar aquilo que
nós agora (notavelmente) consideramos um problema: o sucesso dos íntegros.
Ele mostra que os Dez Mandamentos foram entregues em duas tábuas de
pedra porque representam duas categorias de lei: a primeira contém leis que
governam o relacionamento entre o homem e Deus; a segunda resume leis que
governam o relacionamento entre o homem e seu semelhante. Maimônides
considera muito interessante o fato de o sistema de recompensa e punição de
Deus diferir desse modo.

Os mandamentos que os indivíduos respeitam ou violam em relação a


Deus estão relacionados ao céu, por assim dizer, e são recompensados no mundo
vindouro. Os demais mandamentos, que tratam das nossas interações com as
pessoas, são recompensados neste mundo e no mundo vindouro. O Talmud58
declara: “Estas são as coisas pelas quais um homem come os frutos neste
mundo, mas cujo principal permanece intacto para ele no mundo vindouro, e
estas são: honrar pai e mãe, praticar a beneficência, comparecer cedo à casa
de estudos pela manhã e à noite, dar hospitalidade aos forasteiros, visitar os
doentes, prover [os bens necessários] para uma noiva, acompanhar um féretro,
aprofundar-se na oração, propugnar pela paz entre os homens.”

A terminologia aqui é muito interessante – note a metáfora dos frutos.


Imagine uma árvore frutífera. Imagine uma macieira carregada de maçãs. O
seu fruto é apenas uma parte da árvore, mas a árvore é muito mais do que o
seu fruto. De fato, a macieira tem a capacidade de produzir maçãs regularmente
de ano em ano, e de produzir centenas, milhares delas.

Este mundo é somente a primeira recompensa, assim como o fruto é o


produto de uma árvore cujas raízes carregam dentro de si o poder de produzir
muito mais. Se você ajudar as pessoas aqui, medida por medida, deverá também
haver alguma recompensa por aqui. Contudo, isso é apenas uma expressão
menor de uma recompensa imensamente maior à sua espera – uma raiz que
produzirá continuamente no mundo vindouro.

Agora tomemos um exemplo da vida real e apliquemos esse princípio.


Sara visita os doentes, honra os seus pais, doa em caridade. As suas boas ações
serão recompensadas aqui, de acordo com o princípio de medida por medida,
sobre o qual discutimos no capítulo 2 – porque ela está aperfeiçoando este
mundo. Ela verá os frutos da sua bondade.

Mas Sara também é parceira de Deus em algumas das suas boas obras.
Ela ajuda Deus a fazer essas coisas que Ele deseja que aconteçam neste mundo.
Por causa disso, Deus a ajuda a continuar concedendo a ela saúde e os meios
para seguir adiante. Naturalmente, mais tarde, no mundo vindouro, ela pode
esperar uma recompensa muito mais agradável e farta.

O PRINCÍPIO DA VALORIZAÇÃO
Sigamos agora para o segundo princípio deste capítulo. Este tem sua
fonte na história do Jardim de Éden. Ali, o primeiro homem e a primeira mulher
viviam uma vida confortável, tranquila e... bem... era simplesmente o paraíso.
Mas como crianças que têm tudo e, por isso, não gostam de nada, Adão e Eva
não percebiam tudo de bom que tinham. Assim, com o seu livre-arbítrio, eles
fizeram uma escolha consciente de desobedecer a Deus e foram forçados a
deixar o Jardim de Éden. Essa saída veio acompanhada de um modo de vida
árduo: “Com o suor do teu rosto comerás pão”,59 Deus falou para Adão; “Com
dor darás à luz filhos”,60 Deus disse a Eva.
Agora todo o objetivo da vida na Terra transformou-se em descobrir
um meio de retornar ao lugar do qual eles foram expulsos. É como se Deus
tivesse dito: “Certo, a primeira vez vocês tiveram isso com facilidade, mas não
souberam apreciar; agora vocês terão que conquistar isso.”

Idealmente, um ser humano deveria ter tudo prontamente acessível. A


vida deveria ser tão fácil que, sempre que quisesse, você poderia arrancar uma
fruta da árvore e comer. E você deveria poder ter filhos sem dor, e tudo o que
você desejasse deveria vir a você num estalar de dedos. Era para ser assim –
mas Adão e Eva fizeram a escolha deles, e nós estamos presos a isso. Contudo,
há um lado positivo na dor e no sofrimento que vem com as ações durante a
vida. Com o trabalho duro com que adquirimos o que necessitamos vem uma
capacidade de valorização e de entendimento – de fato, a compreensão de
todas as coisas boas e más.

E para adquirir aquele conhecimento especial, para alcançar aquele lugar


especial, nós temos que batalhar.

Ao expor essa ideia, o Talmud 61 nos oferece esta notável declaração: “Há
três coisas que só podem ser adquiridas por meio de sofrimento: a compreensão
da Torá, a Terra de Israel e o mundo vindouro.”

Primeiro é preciso trabalhar para aprender as lições da Bíblia. E isto não


nos vem dado em uma travessa de prata; até mesmo Moisés teve que fazer isso.
Ele recebeu os Dez Mandamentos diretamente de Deus, mas ele os quebrou;
e então teve que cinzelar todo um segundo conjunto por si mesmo. Todo ser
humano precisa “cinzelar” o sentido da vida por si mesmo; toda pessoa precisa
estudar a Bíblia para aprender o que Deus quer dela.

A segunda coisa que só pode ser adquirida com dificuldade é a Terra de


Israel. A Terra Prometida não pode ser conquistada simplesmente por meio de
uma promessa; é exigido o esforço humano. A redenção não é simplesmente
um presente; deve-se lutar por ela e conquistá-la. E o único modo de conseguir
isso é por meio do esforço, lutar por isso. E por quê? Porque só quando você
trabalhar pela terra é que você irá de fato valorizá-la.
A terceira coisa da série – o olam habá, o mundo vindouro – pode ser
compreendida de dois modos: pode representar o próximo mundo, para onde
iremos quando morrermos, e também pode indicar à Era Messiânica, quando
haverá paz na Terra, e “o leão se deitará ao lado do cordeiro”.62 Ambos, o
mundo vindouro e a próxima era, exigem algo de nós. Eles não são promessas
Divinas incondicionais, mas fazem parte de um pacto. A nossa parte do acordo é
esforçar-se ao máximo; a parte de Deus da promessa é que os nossos esforços
demonstrarão ser frutíferos. Mas novamente, se Deus fosse fazer tudo isso por
nós, sem “o suor do nosso rosto”, nós de fato jamais apreciaríamos isso – assim
como nós não tivemos o bom senso de apreciar o paraíso.

Há ainda outra história no Talmud que ensina este conceito.63 À primeira


vista soa como um conto de fadas para crianças, pois diz que quando você está
no útero, um anjo vive ali com você e lhe ensina tudo o que você quiser saber
sobre a vida – toda a Torá. Mas, justamente quando você está pronto para
nascer, o anjo lhe toca acima dos lábios – é por isso que você tem uma covinha
ali – e você esquece tudo o que aprendeu.

Agora, que tipo de história é esta? Por que lhe seriam ensinados todos os
segredos da vida, somente para lhe fazer esquecê-los?

Do seu modo singular, o Talmud destaca que nada lhe é dado; para tudo
é necessário lutar. Mas isso não significa, afinal de contas, que um combate
assim tão duro será à toa. Quando você luta para alcançar algo, você não
precisa aprender isso a partir do zero; basta relembrá-lo. Contudo, você precisa
lutar por si mesmo a fim de valorizar o que você conquistou. Assim como o
Moisés de antigamente, você precisa esculpir nas tábuas, por assim dizer, por
meio do seu próprio esforço. Então tudo o que aprender você guardará como a
obra das suas próprias mãos, o produto do seu próprio trabalho.

Eu continuo usando exemplos simples, mas todos tocam em um ponto.


Os cozinheiros que fizeram algo “do nada” sentem-se muito mais orgulhosos
da sua realização do que se o fizessem a partir de uma mistura comprada em
uma loja. Os jardineiros de fim de semana ficam orgulhosos ao apontarem para
a sua plantação de tomates e afirmarem: “Eu cultivei aquele tomate.” Para
eles, possivelmente não há em lugar algum do mundo tomate mais saboroso.
Eles também precisaram de um pouquinho de Deus, mas o tomate é deles.
Que sentimento de realização, simplesmente porque eles puseram o suor deles
nisso! Preste atenção nesta frase: eles puseram “o suor deles nisso”. Ecoa a
frase de Gênesis: “Com o suor do teu rosto comerás pão”.

No Jardim do Éden tudo crescia por si mesmo. Era tudo, como diz a
expressão, “sem suor”. Mas sem suor jamais poderia haver um jardineiro capaz
de dizer: “Eu cultivei isso sozinho. Este é o meu tomate!”

E isso funciona para tudo o que adquirimos por meio de trabalho duro.
Você não pode apreciar nada de fato se não trabalhou para isso nem adquiriu
algo por meio de seu próprio esforço. Só então você poderá dizer: “Isto é meu.
Esta é a minha ideia. A minha terra. O meu lugar no mundo vindouro.”

Então é por isso que toda a história humana, desde Adão e Eva, ocorreu
fora do Jardim do Éden. Somente quando não estávamos mais no paraíso é
que nos tornamos capazes de construir um – e apreciá-lo quando finalmente
o adquirirmos.

CAPÍTULO 14
A PUNIÇÃO DE MOISÉS
Nas palavras da Bíblia, Moisés foi o maior de todos os profetas que já
existiu em todos os tempos. A Torá encerra com um testemunho à sua estatura:

“E jamais se levantou em Israel profeta algum como Moisés, a quem o


Eterno aparecera cara a cara, no tocante a todos os sinais e os milagres que o
Eterno o enviara a fazer na terra do Egito, ao Faraó, a todos os seus servos e a
toda a sua terra, e no tocante a toda a mão forte e a todos os grandes milagres
no temível deserto, que Moisés fizera aos olhos de todo o Israel.” 64

E apesar disso...

Esse mesmo indivíduo incrível teve negada a sua entrada na Terra


Prometida. Moisés dedicou a vida inteira a esse empreendimento; enfrentou 40
anos de trabalho árduo e de conflitos no deserto enquanto liderava os teimosos
israelitas, que para ele eram uma fonte constante de estresse e de problemas.
E então, justamente quando os levou à fronteira conforme as ordens de Deus,
foi-lhe dito: “Você não merece realizar o sonho da sua vida.”

Moisés suplica a Deus, que só cede o suficiente para lhe permitir ver a
Terra Prometida de longe.

Ao olharmos para isso superficialmente, parece um castigo cruel e extremo.

Por que Deus trataria Moisés com tanta severidade? Como Deus poderia
negar ao maior líder do povo judeu o direito de completar a sua missão?

A resposta da tradição judaica é que, mesmo que Moisés tenha sido


grandioso, ainda assim ele transgrediu contra Deus. Foi-lhe dito para falar com
uma rocha da qual fluiria água. Em vez disso, ao reagir com frustração devido
às queixas constantes dos israelitas, ele bateu na rocha com o seu cajado. Ao
bater em vez de falar, ele não cumpriu literalmente o mandamento de Deus!

Será que isso pode ter sido motivo para um castigo tão severo? Afinal
de contas, ele bateu numa rocha, não em um ser humano; não feriu ninguém.
Qual foi o grande problema?

A resposta dos rabinos é muito instrutiva: pode não ter sido um grande
problema em termos do pecado, mas foi um grande problema no que diz
respeito ao pecador.

Os franceses têm um termo para isso: noblesse oblige, literalmente “a


nobreza obriga”; significa que ter um comportamento honrado, acima e além
do que é esperado do cidadão comum, é uma obrigação das pessoas nascidas
em famílias importantes ou que ocupam um cargo elevado.

A maior parte do mundo provavelmente diria o contrário – quanto mais


alto você vai, mais está acima da lei, pode ignorar as regras, escapar de certas
situações. Mas, de acordo com a Bíblia, quanto mais alto você vai, mais se
espera de você, por duas razões: você deve ter mais ciência das coisas, e
supõe-se que seja um exemplo para os demais.
Quando alguém como Moisés se descontrola emocionalmente e golpeia
a rocha, ele desempenha um papel muito pobre: imagine o impacto naqueles
que testemunharam esse ocorrido. Como líder, Moisés não tem permissão para
o mesmo tipo de falhas que nós. Para ele, o padrão simplesmente não é um
grau intermediário; Moisés precisa alcançar uma marca perfeita.

Como dele se espera mais e melhor, suas ações são julgadas por um
padrão diferente.

Isto nos conduz a outro conceito pelo qual podemos compreender melhor
alguns casos de sofrimento humano. Eu chamo isso de “princípio de quem
somos nós”.

Este afirma simplesmente que o sofrimento que as pessoas suportam


a fim de pagar por suas transgressões é estabelecido de acordo com o seu
momento de vida. Quanto mais merecedor você é, quanto mais elevado é o
nível espiritual a que você aspira, mais você é examinado por Deus e mais
elevado é o padrão pelo qual suas ações são julgadas.

Há uma expressão em hebraico: tsadikim medacdec imahem kechut


hasseará, que significa literalmente: “Os justos, (Deus) os examina como (ao
detalhe de) um fio de cabelo.”

O INEXPLICÁVEL
Agora que nós cobrimos toda uma coleção de reflexões a respeito dos
motivos pelos quais as pessoas sofrem, devemos examinar ainda mais uma
declaração talmúdica que parece contrariar tudo o que consideramos. Esta é
encontrada na Ética dos Pais.65 Lemos aqui a seguinte declaração em nome de
Rabi Ianai: “Não está em nossas mãos compreender por que os maus ficam à
vontade ou por que os bons sofrem.”

Esta é, de fato, uma declaração enigmática. Será que Rabi Ianai ignora
todas as explicações encontradas no Talmud que lidam com essa mesma
dificuldade? Ele considera erradas todas aquelas reflexões? Será que ele está
dizendo que não há como solucionar o problema?
Não.

Mas, antes que eu explique, permita-me lhe contar um pouco mais a


respeito de Rabi Ianai, para que possamos compreender melhor a sua linha de
raciocínio.

Eis um homem que, no seu testamento, especificou que não queria


ser enterrado com roupas totalmente pretas nem totalmente brancas. Ele se
recordava, obviamente, de uma tradição segundo a qual, na hora da redenção
final e da ressurreição dos mortos, estes ressurgirão nas roupas com as quais
foram enterrados – metaforicamente, os bons ressurgirão em roupas brancas
e os maus, vestidos de preto. Obviamente, todos queriam ser enterrados com
roupas brancas a fim de ressurgirem entre os bons.

Mas Rabi Ianai não queria dizer de si mesmo que era totalmente íntegro;
ele sabia que não era perfeito. Pela mesma razão, ele tampouco faria um
julgamento desse tipo a respeito das outras pessoas.

Comentaristas talmúdicos indicam que as palavras de Rabi Ianai têm


vários significados; a sua declaração é mais enigmática do que poderia parecer
à primeira vista. Por que ele diz, “não está em nossas mãos compreender”,
quando poderia ter dito mais claramente “não temos o poder de compreender”?
Evidentemente, Rabi Ianai pretendia especificar que esses enigmas são
abstratos – eles não são coisas que podemos segurar com as nossas mãos,
revirá-los e examiná-los à vontade. Mais adiante, por que ele diz “Os maus
ficam à vontade”, quando poderia ter dito “Os maus prosperam”? Novamente,
ele não recorre ao material, à realidade visível da vida. Ele está falando dos
bens incorpóreos da vida – como ficar à vontade, em paz. Aquilo que ele quis
nos dizer está além da nossa capacidade de compreender.

Será que um dia seremos capazes de entender as vidas dos Kennedys,


que com toda a sua riqueza não puderam comprar felicidade? Será que
compreenderemos as vidas das várias Marilyn Monroes, que apesar da sua fama
não puderam comprar paz de espírito? Nós temos aprendido frequentemente
que a prosperidade material não garante satisfação; alcançar o topo do mundo
não traz consigo a felicidade automática. Sim, entender isso está além da
nossa compreensão. “Não está em nossas mãos.” Rabi Ianai acrescentou um
componente poderoso a tudo o que discutimos até aqui. Ele nos pede para
olharmos além dos modos superficiais por meio dos quais consideramos o
sucesso – modos que nos fazem questionar a administração do mundo por parte
de Deus porque, aos nossos olhos, os maus estão “prosperando” e os justos
estão “sofrendo”. Inclua na balança do julgamento a resposta psicológica e
mental das reações das pessoas com relação ao que lhes cabe e você chegará a
uma conclusão inteiramente diferente. Os miseráveis podem ter paz de espírito;
os príncipes podem viver suas vidas em tensão e ansiedade. Pergunte quem de
fato está melhor e a resposta será exa-tamente o que Rabi Ianai diz: “Não está
em nossas mãos compreender!”

APENAS A FÉ TEM A RESPOSTA


O que Rabi Ianai também pode estar tentando nos ensinar é que essa
pergunta é de uma magnitude tão enorme que não temos o poder de explicar
completamente os motivos pelos quais os íntegros sofrem e os maus prosperam.

No fim das contas, Rabi Ianai nos adverte que este é um tema que
devemos abordar com uma certa dose de humildade intelectual e espiritual.
Nós não poderemos solucionar todos os enigmas. Quando Jó foi incapaz
de compreender por que aquelas coisas terríveis lhe haviam ocorrido, Deus
finalmente lhe falou: “Está além de ti entender os Meus modos.”

Se você já tentou alguma vez explicar uma complicada lei da física para
uma criança a quem falta a capacidade racional necessária para captar conceitos
básicos, você então pode imaginar a situação em que Deus Se encontra: Ele
simplesmente não pode explicar a Teoria da Relatividade de Einstein para
crianças do jardim de infância.

Se nós temos tanta dificuldade para esclarecer ideias difíceis para crianças,
maior ainda é a impossibilidade de Deus de elucidar conceitos complexos para
nós, dada a distância entre as compreensões humana e Divina, próxima à
medida do infinito.
Isso também consta da inteligente advertência de Rabi Ianai: “Não está
em nossas mãos.” Afinal de contas, nós ainda somos apenas seres humanos.
Nossos julgamentos são falíveis.

Portanto, a linha de base é que, com todas as nossas respostas, nós


ainda precisamos da fé para podermos manter nossas convicções.

Bem, então você perguntará: “Se é assim, por que nos incomodamos
em discutir todas as demais respostas? Para que interessa encontrar razões
quando o que nos resta ainda é a fé? Se concordarmos com Rabi Ianai de que
a enormidade do problema está além de nós, por que todos os demais rabinos
não jogam a toalha e desistem da sua busca pelo sentido de tudo isso?”

A resposta deveria ser óbvia:

Há uma diferença entre fé cega e fé racional. Rabi Ianai não discordou


fundamentalmente de todos os demais sábios talmúdicos que o precederam. Ele
não estava tentando criticar todos os rabinos que haviam oferecido conclusões
brilhantes ao quebra-cabeça teológico da aparente injustiça de Deus. Para ele,
estava totalmente fora de cogitação insinuar que todos os demais estavam
errados e somente a abordagem dele estava correta. E se esta fosse realmente
a sua intenção, o Talmud teria relacionado o comentário dele junto com todas
as objeções daqueles que discordaram.

Não, eu tenho certeza de que Rabi Ianai era um apoiador de cada uma
das ideias que nós apresentamos tão diligentemente nos capítulos anteriores,
com o objetivo de analisar, sondar e buscar modos para pelo menos começar
a entender as ações de Deus e nos mover da fé cega – uma fé que pode
tropeçar a qualquer momento, pois carece da luz de qualquer razão – para
uma fé racional, arraigada na conclusão de um questionamento intelectual.
A fé racional concorda que nós não temos todas as respostas; ela reconhece
basicamente que nós não nos envergonhamos de perguntar. A fé racional não
toma simplesmente a sua decisão apesar do mal deste mundo; ela opta por
Deus porque as razões para a crença em Deus, baseada na Sua bondade,
excedem de longe as razões de rejeitá-Lo em decorrência das coisas que não
entendemos.
Rabi Ianai merece um lugar em nossos estudos – mas só no fim, depois
de abrir os nossos olhos aos diversos modos pelos quais fomos capazes de
perceber que pode haver respostas – ou pelo menos respostas parciais – para
os problemas que tanto nos deixam perplexos. Sim, as perguntas permanecem.
Para elas, confiaremos na fé para obtermos as respostas. Mas a nossa fé – na
verdade a fé que Rabi Ianai nos pede que mantenhamos – é a fé de uma
criança que só compreende vagamente para onde está indo, mas que tem
certeza absoluta de que o seu Pai a ama, mesmo quando Ele solta a sua mão
por um instante.

Com isso em mente, nós iremos agora abordar o mais difícil de todos os
enigmas do mal em toda a história. Como podemos manter a nossa fé após
o Holocausto?

Notas
49. San’hedrin 101a. – 50. Rabi Akiva cita primeiro uma passagem de 2 Reis, capítulo 21, e

depois faz um comentário a respeito. – 51. Meguilá 14a. – 52. Kidushin 31b. – 53. Lamentações 4:11.

– 54. San’hedrin 101a. – 55. Deuteronômio 7:10. – 56. Deuteronômio 4:15. – 57. Deuteronômio

11:13-15. – 58. Shabat 127a. – 59. Gênesis 3:19. – 60. Gênesis 3:16. – 61. Berachot 5a. – 62. Isaías

11:6: “O lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo se deitará ao lado do cabrito; o bezerro, o

filhote do leão e o animal adulto andarão juntos, e uma criança os conduzirá.” – 63. Nidá 16b. – 64.

Deuteronômio 34:10-12. – 65. Mishná 4:19.

No próximo e último volume da série de e-books


Se Deus é Bom Por Que o Mundo é tão Ruim?

Capítulo 15. A Fé Após o Holocausto


Capítulo 16. Um Encontro com um Místico
Posfácio & Sobre o Autor

Não perca!
CAPÍTULO 15
A FÉ APÓS O HOLOCAUSTO

”Rabino, como o senhor entende o sentido do Holocausto?”

Esta é uma questão da qual tenho medo, mas que não posso evitar. Não
são apenas as plateias que ouvem as minhas conferências que perguntam isto;
eu duvido que se tenha passado um dia em que eu também não me perguntei
o mesmo.

Perdi boa parte da minha família durante aquela época terrível, quando
Deus parecia estar ausente. Meus pais felizmente fugiram para a segurança da
América, junto com meu irmão, minha irmã e eu. Mas 6 milhões não tiveram a
mesma sorte. Eles eram velhos e jovens, homens e mulheres, crianças de colo.
Eu conheço pessoalmente o sentido de sentir-se “culpado por sobreviver”. Por
que eu – e não eles? Por que eu estava entre os afortunados sobreviventes, e
por que eles pereceram? Não posso acreditar que sou mais merecedor do que
eles. Eu li as suas histórias; sei que entre as vítimas havia piedosos, devotos,
religiosos e sábios. Lamentei quando li sobre os seus destinos. E gostaria de
saber: Por que Deus também não lamentou? E se Ele o fez, como Ele pôde ter deixado
de interromper a carnificina e de vingar o sangue dos Seus filhos?

Algumas pessoas acreditam que o Holocausto não é um desafio


religioso maior do que quaisquer das situações pessoais de sofrimento sofridas
por qualquer pessoa. Eliezer Berkovits,66 por exemplo, argumenta, de uma
perspectiva teológica, que o genocídio de 6 milhões de pessoas não difere da
situação de uma criança que sofre sem necessidade ou de uma pessoa que
passa pela angústia de uma perda pessoal. O problema teológico, ele diz, é o
mesmo – a injustiça; a quantidade não faria diferença alguma. A questão é:
como um Deus bom e justo permite que ocorra na Terra algo injusto? O dilema
de Jó e o dilema do Holocausto é o mesmo.

No entanto, muitos outros discordam. E eu sou um deles. O Holocausto,


como um crime, permanece como algo sui generis – em uma categoria só
para si mesmo. Sua crueldade, sua extensão, seus números e seu objetivo de
aniquilação total do povo judeu – nada disso tem paralelos. O silêncio de Deus
enquanto Hitler e seus comparsas davam seguimento à “Solução Final” é único
como conduta Divina além da compreensão.

A extensão do mal perpetrado e seu impacto sobre as vítimas, bem como


sobre o mundo como um todo, não podem ser subestimados.

Anne Frank comoveu os corações do mundo; mas ela era somente uma.
Multiplique isso por 6 milhões, e sua mente terá vertigens. Nós provavelmente
somos incapazes de compreender. Some ao número de 6 milhões aqueles aos
quais chamamos de “sobreviventes”, mas que jamais sobreviverão aos seus
pesadelos diários e às suas lembranças constantes do inferno. Mais do que
terem sobrevivido, eles seguiram vivendo para sempre assustados pelo mal que
vai muito além da imaginação humana.

Por isso eu sustento que tratar o genocídio em paralelo com a dor de um


simples indivíduo é minimizar e desvalorizar o Holocausto. Não há termo de
comparação entre ambos; fazer isso é simplesmente ofensivo.

Eu sofro sempre que vejo a terminologia do Holocausto reduzida à


linguagem do cotidiano. Lemos frequentemente a respeito de povos oprimidos
sofrendo diversos graus de dificuldade, e a palavra “Holocausto” é utilizada como
se o termo implicasse em nada mais do que privação econômica ou sofrimento
físico. A coisa chegou a tal ponto que temos ambientalistas descrevendo o
desaparecimento das florestas tropicais como um Holocausto Ecológico e
grupos de “Salve as Baleias” advertindo para a possível extinção desses animais
aquáticos como um Holocausto Oceânico.

Sem dúvida, outros grupos de pessoas têm sofrido terrivelmente e eu


de modo algum pretendo minimizar a sua dor. Os croatas foram vítimas de
campanhas de limpeza étnica pelos sérvios. Os armênios sofreram um massacre
genocida perpetrado pelos turcos. Pol Pot foi amplamente bem-sucedido em
exterminar a intelligentsia do Camboja. Mas nenhum desses eventos pode se
aproximar do mal perpetrado durante o Holocausto.
Atualmente, nós lemos inclusive sobre o Holocausto Palestino, uma ideia
popularizada por grupos palestinos para tentar acusar o Estado de Israel de tratá-
los do mesmo modo como os nazistas trataram os judeus. Ainda que levemos
em conta os piores crimes cometidos por judeus contra palestinos – tais como
o massacre de 29 muçulmanos por Baruch Goldstein na Gruta dos Patriarcas –,
não há nada que chegue nem perto dos crimes da Alemanha nazista, que tinha
um regime governamental nacional (e mais tarde internacional) para exterminar
um povo inteiro da face da Terra. Esse regime incluía a tortura, a fome e,
finalmente, o massacre de crianças e adultos.

Eu não quero me estender sobre o tema, mas penso que a visão que
prevalece entre os historiadores no mundo inteiro é que, dentro do amplo
espectro de experiências do mal ao longo de toda a história, o Holocausto
permanece algo separado, à parte, distinto e único. Não há nada como isso
em termos de outros genocídios ou massacres do passado, nem mesmo em
comparação com sofrimentos judaicos tais como a Inquisição na Espanha ou
os pogroms na Rússia. O Holocausto foi a contribuição singular do homem
“civilizado” do século 20.

É com respeito ao Holocausto que a nossa questão se torna, entre todas,


a mais urgente, a mais enigmática e a mais relevante: onde estava Deus?

AS PERGUNTAS DENTRO DA PERGUNTA


Os teólogos têm destacado que, na verdade, há três perguntas dentro
dessa pergunta. Devemos considerar onde Deus estava antes, durante e depois
do Holocausto. Vamos destrinchar isso:

1. Qual era o papel de Deus antes do evento? Ou seja, Ele participou da


decisão que levou isso a ocorrer?

2. Onde estava Deus durante o Holocausto? Em outras palavras, será que


Ele estava no meio dos horrores e do terrível sofrimento? Em caso positivo,
qual foi a Sua reação? Se os pais e mães que testemunharam o assassinato
brutal dos seus filhos enlouqueceram, então a nossa pergunta é: “Deus, Tu
és o nosso Pai. Tu és a nossa Mãe. Como Tu podes assistir a tudo isso e não
fazer alguma coisa?”

3. E, finalmente, qual foi o papel de Deus após o Holocausto? Após a


realização de um mal em uma escala assim tão grande, será que os judeus
podem continuar a seguir os mandamentos de Deus como se nada tivesse
acontecido para sacudir a sua fé?

Atualmente, mais de meio século após o evento, muitos têm se confrontado


com essas questões. Alguns pensadores religiosos, como o rabino reformista
Richard Rubenstein, decidiram que, depois de Auschwitz, não poderiam mais
manter a sua fé. Juntamente com muitos sobreviventes, a crença deles foi
irrevogavelmente destruída.

Contudo, eu também conheço pessoas que suportaram esses horrores,


testemunharam o pior do mal humano em primeira mão e saíram disso com
uma fé ainda mais forte em Deus do que antes.

Elie Wiesel, laureado com o Prêmio Nobel da Paz, um cronista do


Holocausto que passou por seu próprio período público de questionamento,
permanece sendo um homem profundamente religioso. Embora ainda
perturbado pelo silêncio inexplicável de Deus, Wiesel se recusa a renunciar à
sua conexão com o Todo-Poderoso. Em vez disso, ele opta por se identificar
com os sobreviventes cuja história imortalizou.

Há uma cena que Wiesel capturou ao concluir uma conferência muito


famosa sobre o Holocausto. Sua exposição descreve de forma dinâmica os
sentimentos contraditórios daqueles que sobreviveram quase milagrosamente.
Wiesel fala sobre o que os judeus tiveram que suportar. Em seguida, ele relata
o que aconteceu no dia em que o seu campo de concentração foi liberado.
O exército americano chegou e libertou os sobreviventes. Naquele momento,
cada um respondeu à liberdade de um modo diferente. Alguns logo buscaram
encontrar os alemães para matá-los, por vingança. Outros se apressaram para
encontrar comida a fim de saciar a fome que, por tanto tempo, definiu suas
existências. Outros ainda foram logo saquear e roubar. Eles sentiam que algo
lhes era devido; tudo lhes havia sido literalmente roubado da vida, e eles saíram
para agarrar o que podiam a fim de compensar o que fora levado deles.

Wiesel descreve as pessoas correndo em diferentes direções. Então ele


acrescenta:

Mas ali permaneceu um grupo, um grupo grande, que se reuniu sem


contar um para o outro o que iriam fazer – isso era tão automático – ; estas
pessoas começaram a rezar, a recitar o Cadish, a oração de luto, que é, de fato,
um hino de louvor a Deus.

Esta era a oração de luto por aqueles que não estavam saindo dali – pelos
maridos, mães, pais, pelas crianças, por aqueles que haviam sido assassinados,
pelo judaísmo alemão, pelo judaísmo húngaro, pelo judaísmo polonês, uma
oração por 6 milhões de mortos.

Claramente, depois de todos os horrores, aquelas pessoas ainda


encontraram força para rezar por aqueles que eles perderam e para louvar a Deus.

Então Wiesel fez uma longa pausa. Formou-se um silêncio mortal na sala.
Finalmente, ele disse: “Na minha opinião, Deus não mereceu aquele Cadish.” E
encerrou o assunto.

Esta foi uma acusação grave e pública. E apesar disso, Wiesel ainda estuda
o Talmud, ainda coloca tefilin. Ele não perdeu a sua fé. E esta é provavelmente
a parte mais notável da história – tanto para Wiesel como para o povo judeu.
Não importa quão severamente podemos enxergar a conduta de Deus, nós não
estamos dispostos a cortar a nossa relação com Ele.

“NÓS SÓ PODEMOS PERGUNTAR”


Como Wiesel solucionou sua discussão com Deus? Como ele encontrou
a capacidade de continuar adorando um Deus que parecia tê-lo abandonado?
Qual foi a sua resposta ao problema do silêncio de Deus diante de um sofrimento
tão incrível?
Wiesel oferece uma resposta notável.

Depois do Holocausto, ele escreve, cada um de nós tem 6 milhões


de perguntas a fazer para Deus. Mas nós não as fazemos com o objetivo
de encontrar justificativas para as Suas ações; nós não questionamos para
ouvir explicações. Justamente o contrário, declara Wiesel: argumentos que
justifiquem Deus diante do mal não só são inadequados, como são diabólicos.
As respostas, ele afirma, não podem vir do homem, mas apenas do próprio
Deus. O que cabe a nós, então? Não explicar, mas só perguntar!

Em seu best-seller A Noite, Wiesel relembra que esta é a lição que Moshe,
o Bedel, lhe ensinou quando ele era um jovem na cidade de Sighet: “O homem
cresce diante de Deus pelas perguntas que faz a Ele. Este é o verdadeiro diálogo.
O homem questiona Deus, e Deus responde; mas nós não entendemos as Suas
respostas. Nós não podemos entendê-las porque elas vêm das profundidades
da alma e ficam ali até a morte.”

É nesta linha que Wiesel incluiu a seguinte oração em Os Seis Dias de


Destruição: “Deus, nós não exigimos respostas. Mas se esta é a última página da
crônica humana, assegure-nos que nós tivemos o direito de perguntar.”

Na verdade, há aqueles como Wiesel que encontram conforto suficiente


simplesmente em verbalizar seus questionamentos. As respostas são mais do
que irrelevantes; elas são impossíveis. A fé terá que aguentar todo o peso
da confusão.

Para eles não há como proceder. Nós nos encontramos com o silêncio de
Deus dentro de nós mesmos. E é em silêncio que suportamos a nossa dor –
continuamos a rezar.

Mas para muitos outros isso simplesmente não é suficiente. Afinal de


contas, nós desenvolvemos diversos modelos para explicar o sofrimento em
épocas anteriores. Será que nenhum deles pode ser aplicado também a esse
evento histórico? Será que todas as reflexões do passado são inaplicáveis para
o Holocausto? Nos mais de 50 anos desde que estamos tentando reconciliar a
fé com os fatos da “Solução Final”, temos ouvido várias explicações possíveis.
Sigamos cuidadosamente os seus argumentos e vejamos se podemos concordar
com alguns deles – ou talvez chegar a algumas conclusões próprias.

Mas antes disso precisamos apresentar uma palavra de precaução.

PALAVRAS TALMÚDICAS DE PRECAUÇÃO

Obviamente, o Talmud foi escrito muitos séculos antes do Holocausto.


Mas o Talmud67 pode nos proporcionar um modelo para abordar a questão do
Holocausto a partir da sua discussão acerca da tentativa de genocídio do povo
judeu na época do Império Persa. Naquela época, conforme relatado no livro de
Ester, o perverso Hamán convenceu o Rei Assuero [Achashverósh] a emitir um
edito condenando todos os judeus à morte.

Ao estudarem esse relato 400 anos após o evento, os discípulos do Rabi


Shimon bar Yochai perguntaram: “Por que os ‘inimigos judeus’ mereciam a
destruição naquela geração de Ester?” Note que, embora centenas de anos
tenham passado, o assunto ainda era tão sensível que eles não ousam perguntar
“Por que o povo judeu merecia a destruição na geração de Ester?”, embora fosse
isso o que eles quisessem dizer.

Em vez disso, fazem a pergunta obliquamente, por meio de um


eufemismo: “Por que os inimigos judeus...?” Mas, naturalmente, o que eles
realmente queriam saber era “por que os judeus quase morreram na época de
Hamán? O que eles possivelmente podem ter feito para merecer esse destino?”

O Talmud registra a discussão a seguir.

Primeiro, o mestre deles, Rabi Shimon bar Yochai, lhes diz: “Deixe-me
ouvir o que vocês têm a dizer.”

Agora os discípulos começam a especular. Talvez seja porque eles (os


judeus) participaram do banquete de um homem perverso. O livro de Ester
começa com a descrição de um luxuoso banquete preparado pelo rei para
as pessoas da sua capital em Shushán. Todos foram convidados, e os judeus
participaram. Talvez este seja o crime deles: eles comeram nada menos que
comida não-casher e gostaram. Talvez eles tenham tido um período bom demais
no exílio, festejando quando deveriam estar lamentando a perda da sua terra.

Mas o rabino não aceita nada disso. Ele diz: “Se eles realmente tivessem
cometido esse crime, então deveriam ter morrido.” Contudo – ele enfatiza –, o
resultado foi bem diferente; eles não morreram. Além disso, para contestar essa
teoria, o decreto de morte foi emitido contra todos os judeus, e não apenas
contra os pecadores que cometeram o que vocês usam como justificativa para
o potencial genocídio.

Após deixar os discípulos ponderarem sobre isso, ele em seguida oferece


esta explicação: “O decreto de morte foi resultado da idolatria.” E ele continua:
“Os judeus se curvaram a ídolos, mas só aparentemente. Quando eles se
curvavam diante de um ídolo, eles realmente não acreditavam em seus corações
que estavam se curvando diante de um deus. Eles se curvavam por fora, mas
não por dentro. O pecado estava somente na superfície. Por isso o Santíssimo,
bendito seja, só permitiu uma ameaça à sobrevivência deles, que na superfície
parecia perigosa, mas que, na realidade, jamais foi consumada.”

A sua explicação corrobora um princípio que já consideramos antes neste


livro – medida por medida. O ato deles de idolatria só estava na aparência. Por
isso o decreto de morte também ficou somente na aparência: foi emitido, mas
não levado adiante.

O que eu considero digno de nota nesta discussão é a clara contenção


dos rabinos em sua abordagem para o tópico. Rabi Shimon bar Yochai, que tinha
o que ele considerava uma possível solução, primeiro quis ensinar aos seus
discípulos como é difícil encontrar as respostas certas e como deve-se tomar
cuidado em sugerir uma resposta teologicamente satisfatória. E lembremo-nos
que isto ocorreu mais de 400 anos após o evento!

Eu sou incapaz de enfatizar isso o bastante – 400 anos após o quase


extermínio do povo judeu, os Sábios do Talmud tiveram muito tempo para lidar
adequadamente com o tema. Eles abordaram o assunto obliquamente e tiveram
que lutar por respostas. Mas nós estamos tentando entender um genocídio que
aconteceu, e estamos tentando fazê-lo menos de 100 anos depois do evento. O
desafio é mais do que formidável.

Mas nós não ousamos evitá-lo. Como eu já deixei claro, para os teólogos,
ou para qualquer um que luta para manter a fé em um Deus zeloso, o Holocausto
representa o derradeiro desafio. Como diz Frederick Buechner:

É impossível pensar no Holocausto. É impossível não pensar nele.


Qualquer um que afirma acreditar em um Deus Todo-Poderoso e Todo-Amoroso
sem levar em conta essa evidência devastadora de que Deus é indiferente
ou impotente, ou que de fato não existe um Deus, está brincando. Se o amor
realmente está no centro de tudo, como estas coisas podem acontecer? O que
significam estas coisas?

Então enfrentemos o desafio.

Há diversas abordagens muito interessantes que têm sido levadas em


conta para tentar responder a esta grande pergunta: “Onde Deus estava
antes, durante e depois do Holocausto?” Podemos categorizar essas tentativas
para tentar entender o Holocausto de acordo com cinco modelos arquetípicos
retirados do tesouro do pensamento e da sabedoria judaica. Pretendo, junto
com você, analisar o que eu acredito que podemos concordar e o que devemos
rejeitar nestas cinco formas de lidar com as ações de Deus.

O HOLOCAUSTO COMO UMA PUNIÇÃO


O nosso primeiro modelo – Modelo A – é Adão. Eu chamo esse modelo de
“fórmula do pecado e punição”. Adão, que pecou ao violar uma ordem de Deus,
é expulso do Jardim do Éden e punido. Esse é um padrão clássico que aparece
frequentemente na Torá: o homem faz algo errado e sofre as consequências.

Para alguns, este parece ser o modo mais óbvio de compreender o


Holocausto. Assim como Adão, as vítimas do genocídio devem ter feito algo
errado. O que torna essa abordagem tão improvável – e, melhor dito, censurável
– é a sua tendência em aceitar a possibilidade de que algum pecado pode vir a
ser suficientemente mau para permitir que Deus aceite o Holocausto.
Será que pode ter havido um pecado tão enorme a ponto de justificar
uma punição que causou a morte de 6 milhões de judeus, reunidos desde
países diferentes, para serem assassinados só porque compartilhavam de
uma característica – serem judeus? Mesmo que este tivesse sido um pecado
tão odioso, será concebível que todos os judeus eram igualmente culpáveis?
E de fato, ainda que fôssemos identificar um pecado assim entre todos os
judeus daquele tempo, o que dizer dos bebês e das crianças pequenas? Por
que os inocentes seriam punidos – se é que eles foram punidos – juntamente
com os culpados?

Para aqueles que ainda desejam adotar o modelo de Holocausto


como punição, a única resposta para estas últimas objeções aparentemente
irrefutáveis é que a ira de Deus se manifesta quando um número suficiente de
pessoas da comunidade peca. Então os perversos são punidos com os culpados
– todos são alcançados em uma rede de destruição. Francamente, eu não posso
assinar embaixo de uma visão assim. Eu não posso acreditar que Abrahão
estava errado quando perguntou retoricamente a Deus, em seus argumentos
em favor das pessoas de Sodoma e Gomorra: “Destruirás também o justo com
o mau? Talvez haja 50 justos dentro da cidade... Aquele que é o Juiz de toda a
terra não fará justiça?” (Gênesis 18:23-25)

No entanto, se colocarmos essa estrutura de lado, permanece a primeira


questão e a mais direta: qual pecado possivelmente pode ter sido tão imenso a
ponto de convencer Deus a voltar as Suas costas para o Seu povo?

É digno de nota que duas proeminentes figuras rabínicas da geração


passada ousaram sugerir uma resposta. Cada um identificou um pecado
diferente. E o mais estranho de tudo é que suas opiniões são diametralmente
opostas entre si.

O rabino Ioel Teitlelbaum de Satmar, conhecido como “Rebe de Satmar”,


era o porta-voz principal de que o Sionismo é o grande pecado coletivo dos
judeus no século 20. Nas suas palavras, “a tentativa de acelerar a redenção
final por meio da imigração em massa para a Terra de Israel antes da vinda do
Messias é o pecado que trouxe esta tragédia”.68
Você pode perguntar: o que possivelmente pode ter levado um rabino a
uma conclusão tão estranha? Ele reivindica que o seu argumento está baseado
na máxima talmúdica69 de que o povo judeu fez dois juramentos diante de Deus
ao entrarem no segundo exílio:

1. Que Israel não “subiria como um muro” (conquistar Israel por meio de
uma força maciça);

2. Que eles não se rebelariam contra as nações do mundo (obedeceriam


aos governos no exílio).

O Rebe de Satmar declara que o Sionismo é a negação judaica desses


juramentos sagrados e merece o castigo mais severo porque viola um
compromisso nacional para esperar pela redenção Divina.

Mas o que o Rebe de Satmar, bem como seus discípulos (conhecidos


como Neturê Karta), ignoram é a conclusão exatamente dessa mesma passagem.
Na realidade houve um terceiro juramento, um juramento que Deus impôs no
mundo não judaico no qual os judeus viveram em seus exílios. Deus fez os não-
judeus jurarem não oprimir Israel nem tentar exterminá-los. E os juramentos
eram interdependentes; eles só se conectam se houver a mútua observância de
suas exigências por parte dos dois lados do acordo contratual.

Mesmo que essa passagem talmúdica seja adotada literalmente – uma


interpretação que muitos sábios questionam –, a sua exigência para que os
judeus “não subam como um muro” tornou-se discutível devido à opressão que
os judeus sofreram nas mãos das nações onde foram exilados.

Mais sério ainda – como modo de objeção a essa abordagem – é a


consideração de que o desejo de o povo judeu retornar à sua antiga pátria
possivelmente pudesse constituir um pecado de maior proporção. A maioria
dos pensadores judeus, fundamentados em uma série de fontes tradicionais,
discorda da posição de que os judeus deveriam sentar e esperar que Deus nos
entregue a terra sem o nosso envolvimento. Exatamente o contrário. Deus nos
fez parceiros na obra da redenção. O Messias é o presente de Deus para um
mundo que demonstra trabalhar ativamente pela sua rápida chegada.
Jogar a culpa pelo Holocausto sobre os sionistas parece mais do que
estranho; para muitos, inclusive eu, é até mesmo blasfêmia.

Talvez então não seja surpreendente que dentro do mesmo modelo de


“Holocausto como punição” nós encontremos uma explicação diametralmente
oposta à do Rebe de Satmar. Há alguns que expressaram a convicção de que as
vítimas do Holocausto foram, na verdade, punidas por Deus – não porque elas
eram sionistas, mas precisamente porque não apoiaram o Sionismo.

Essa abordagem está mais vividamente articulada no livro Em Habanim


Semechá (Feliz é a Mãe de Filhos), do rabino Yissochor Solomon Pechtal, um livro
muito lido após o Holocausto.

O rabino Pechtal escreve que aqueles que não assinaram embaixo da


ideia do Sionismo e se recusaram a se instalar no que então era a Palestina
pereceram. Aqueles que voluntariamente optaram por preservar a Diáspora
em vez de aproveitar a oportunidade de morar na Terra Prometida tornaram-se
vítimas da perversidade dos nazistas.

Segundo a sua explicação, Deus se lembrou do povo de Israel, e o chamou


para deixar o seu exílio e emigrar para a Terra de Israel. Isto aconteceu no início
do século 20, quando o Império Britânico conquistou o Império Otomano e a
Palestina tornou-se disponível para ocupação pelo povo judeu. Então muitos
judeus retornaram para a sua pátria, mas não foi só isso. Aqueles que o fizeram
sobreviveram ao Holocausto; aqueles que imigraram não morreram. O crime é
visto como um não-atendimento ao chamado de Deus; a punição, o extermínio
nas mãos dos nazistas.

Em contrapartida ao argumento do Rebe de Satmar, que foi disseminado


alguns anos depois do Holocausto, o livro do rabino Pechtal foi escrito e
impresso na Hungria enquanto o Holocausto ocorria com toda a sua fúria. O
autor escreveu com pleno conhecimento do que estava acontecendo. O seu
argumento está fundamentado por numerosas citações de fontes do Midrash,
como também pela análise histórica das oportunidades de retorno à Terra de
Israel, cuja perda foi fatal.
Deste modo, temos conclusões completamente diferentes de dois sábios
instruídos em que cada um deles vê o Holocausto em termos de pecado e
punição. É fascinante notar que ambos eram húngaros, cresceram na mesma
cultura, instruíram-se nos mesmos textos e foram educados em yeshivot
semelhantes. Apesar disso, como vimos, as suas opiniões diferiam radicalmente.

E isto é o motivo pelo qual nenhuma dessas explicações – na verdade,


todo o modelo de pecado e punição – me convence. Se Deus quisesse punir as
pessoas por um pecado cometido – se Ele quisesse proclamar, “Eu mostrarei a
vocês! Vocês nunca mais farão isso!” –, a Sua mensagem teria sido tão confusa?
Se o propósito de Deus era nos provar o erro das nossas condutas, será possível
que teria se comunicado de um modo que nos deixa tão confusos quanto ao
seu significado?

Eu devo acreditar que a Sua mensagem como punição teria seguido o


padrão Divino utilizado ao longo da Bíblia. Teria vindo em voz alta e clara.
Não teria permitido interpretações diametralmente opostas. Punição sem um
propósito claro não faz sentido.

Some-se a tudo isso, talvez, o ponto mais revelador: será concebível –


qualquer que seja a visão do Sionismo por Deus, pró ou contra –, que um erro
de julgamento por parte dos judeus os torne vítimas legítimas da brutalidade
alemã e do genocídio?

É interessante notar que exista ainda uma terceira explicação que usa a
ideia de pecado e punição como modelo. Os sábios que apoiam essa linha de
pensamento não veem o pecado como relacionado ao Sionismo; em vez disso,
relacionam-no com o crescimento progressivo da assimilação. Eles apontam para
o fato de que a Alemanha pós-Iluminismo era um ímã para os judeus deixarem
a sua tradição religiosa e iniciar um processo de alienação e de negação do
judaísmo. Assim, os proponentes dessa visão dizem que Deus reagiu de acordo
com o princípio de medida por medida. Como os judeus abandonaram Deus,
Ele os abandonou. No mesmo lugar onde os judeus juraram ser “mais alemães
que os alemães” e proclamaram ser “não judeus, mas alemães de fé mosaica”,
Deus permaneceu em silêncio quando os alemães se voltaram contra os judeus.
Embora esse argumento siga o mesmo modelo pecado/punição, é
formulado de maneira diferente dos outros. De acordo com essa abordagem,
o Holocausto como plano para um fim da sobrevivência judaica cumpriu
simplesmente a mesma meta a que os judeus alemães aspiravam para
si mesmos. Se o Holocausto não tivesse provocado a aniquilação física dos
judeus, eles iriam, em todo caso, sofrer a aniquilação espiritual. Os judeus
teriam desaparecido de todo modo por meio da assimilação, ou seja, por suas
próprias mãos. Deus “nocauteou-os”, como se diz, para garantir que morreriam
como judeus em vez de viverem como não-judeus assimilados.

Estranhamente, esse argumento teve boa aceitação não apenas entre


pensadores religiosos, mas também entre seculares, dentre os quais o mais
proeminente era Isaac Tabenkin, um socialista convicto. Ao falar no 26o
Congresso Sionista, ele disse: “Eu temia um Holocausto. Eu sabia que haveria
um. Eu temia ainda mais a assimilação. Há alguma coisa pior do que a destruição
dos judeus? A assimilação faz parte da destruição dos judeus. Um judeu que foi
morto não se assimilou.”

Esse argumento falha porque um número incontável daqueles que


pereceram não havia tentado se assimilar. Eles eram religiosos, e judeus, como
sempre. Obviamente, os proponentes dessa visão respondem que, uma vez que o
fogo se alastra, este se espalha sem controle. O Holocausto começou na Alemanha
como o modo de Deus lidar com a assimilação. Em seguida, alastrou-se.

Eu não posso aceitar esse argumento, pois sugere que Deus não é Todo-
Poderoso. Sugere que as coisas podem fugir ao Seu controle. O argumento
não passa no teste crucial que esboçamos no início deste livro, que não
permite a aceitação das ideias essenciais que definem a nossa fé: que Deus
é justo e onipotente.

Richard Rubinstein, em sua ousada obra After Auschwitz: Radical Theology


and Contemporary Judaism (Depois de Auschwitz: Teologia Radical e Judaísmo
Contemporâneo), abriu caminho para a ideia herética de que “Deus está morto”
depois do Holocausto precisamente porque ele considerou como fato consumado
o modelo de pecado/punição:
“Eu acredito que o único e maior desafio para o judaísmo moderno
emerge da questão de Deus e dos campos da morte: como os judeus podem
acreditar em um Deus onipotente e misericordioso depois de Auschwitz? A
teologia judaica tradicional sustenta que Deus é o derradeiro e onipotente ator
no drama histórico. Tem se interpretado cada grande catástrofe na história
judaica como uma punição de Deus para um Israel pecador. Eu sou incapaz de
enxergar como esta posição pode se sustentar sem levar em conta Hitler e a
S.S. como instrumentos da vontade de Deus. A ideia é simplesmente obscena
demais para ser aceita por mim.”

Este é mais um motivo pelo qual eu não posso assinar embaixo do modelo
de pecado/punição. Este é, na sua essência, um modelo que transfere a culpa
dos perpetradores para as pessoas que pereceram. Transforma os vilões em
agentes de Deus. Justifica o injustificável. Eu concordo que essa abordagem
é obscena. Contudo, Rubinstein erra ao assumir que esse modelo é o único
caminho pelo qual a teologia judaica explica as catástrofes. Na verdade, há
outras alternativas.

O HOLOCAUSTO COMO UMA EXPRESSÃO DE


LIVRE- ARBÍTRIO
O segundo modelo – Modelo B – tem a sua fonte no relato de Caim
e Abel. Caim, o primeiro assassino da história, perpetrou um ato contrário à
vontade de Deus. De fato, Deus ficou irado com o que ocorreu. Todavia, como
vemos claramente no relato, Deus permitiu que isso ocorresse. Caim exerceu o
seu livre-arbítrio. Assim sendo, Deus não tem culpa na morte de Abel; foi Caim
quem matou Abel, não Deus.

É óbvio que Deus não queria Abel morto, mas, se tivesse interferido
para salvar Abel, Ele teria privado Caim do seu livre-arbítrio. Isto, conforme já
explicamos, não foi uma opção, porque Deus valoriza mais o livre-arbítrio do
homem do que os Seus próprios desejos. É isso o que possibilita a Caim ser
bem-sucedido e ao mal se tornar realidade.
De acordo com esse modelo, os nazistas eram Caim.

Nesse ponto de vista, o Holocausto não é uma questão que deva ser
endereçada a Deus. Esta é uma acusação que deveria ser direcionada ao homem.

Abraham Joshua Heschel defende duramente esta posição:70

“O nosso mundo não parece diferente de uma cova de serpentes. Nós


não afundamos na cova em 1939 ou tampouco em 1933. Nós caímos nela
há gerações. As serpentes injetaram o seu veneno nas veias de sangue da
humanidade, paralisando-nos gradativamente, adormecendo nervo por nervo,
entorpecendo nossas mentes, escurecendo nossa visão. O início da guerra não
foi uma surpresa; este veio como uma consequência há muito tempo esperada
para um desastre espiritual. O homem agiu errado. O homem agiu mal. O
homem agiu muito, muito mal. O homem agiu completamente mal. Os seres
humanos cometeram o Holocausto.”

Culpar Deus é adotar a mesma postura adotada por Caim quando seu
crime foi descoberto. Caim perguntou: “Por acaso sou eu o guardião do meu
irmão?” (Gênesis 4:9). À primeira vista, as palavras parecem absurdas. Caim
simplesmente matou. Certamente ele considerou que Deus também estava
consciente disso. Como ele ousa perguntar se está obrigado a ser o guardião
do seu irmão? Ainda que estivesse isento dessa tarefa, ele não tinha o direito
de assassinar seu irmão!

Há um Midrash71 que nos ajuda a compreender essas palavras de Caim.

Eis o que Caim realmente quis dizer quando falou “Por acaso sou eu o
guardião do meu irmão?”:

“Deus, Tu és o guardião de todas as criaturas. Tu és onipotente. Tu


podes fazer tudo o que queres. Se Tu realmente quisesses que meu irmão não
morresse, estava em Tuas mãos impedir-me. Sou eu o guardião do meu irmão?
Não, Tu és. Não me culpe. Se Tu permitiste que isso ocorresse, Tu deves ter
concordado. Tu és tão culpado quanto eu – se não mais.”

Então o Midrash segue adiante e compara o relacionamento entre Caim e


Deus ao de um ladrão e um vigia por meio da seguinte parábola:
Um ladrão roubou alguns utensílios durante a noite. Pela manhã, o guarda
o confronta: “Por que você roubou os utensílios?” E o ladrão responde: “Eu sou
um ladrão; este é o meu negócio; eu apenas exercitei minha habilidade. Você
é um guarda. Seu dever é manter a guarda nos portões. Por que você não
exerceu a sua habilidade?”

Então era isso o que Caim estava dizendo a Deus. “Tu me criaste como eu
sou – um ser humano com uma inclinação para o mal. Eu agi de acordo. E Tu,
o Guardião de todas as criaturas, me permitiste matar. Eu não sou o guardião
do meu irmão; Tu és!”

O texto bíblico nem se preocupa em responder a essa acusação contra


Deus. As palavras de Caim só podem vir de um olhar criminoso a fim de
desculpar as suas ações do modo clássico – inverter a culpa. Pode até parecer
que tenha alguma lógica nisso, mas o caso de Caim está baseado em uma
suposição totalmente falsa. O fracasso de Deus em brecar o mal não equivale
a concordar com este. A acusação de Caim contra Deus foi a derradeira chutspá
(audácia): transformar o presente de Deus do livre-arbítrio em um argumento
pela anuência de Deus para assassinar.

O que Caim esqueceu é a premissa do livre-arbítrio. Permitir que o


homem escolha força uma medida de passividade da parte de Deus. Mas isso
não significa que o mau não será considerado responsável em última instância.
O pecado é possível, mas não permissível. E Deus? O que Ele fará? Deus
proferirá o julgamento. Ele decretará que Caim se torne um errante sobre a
face da Terra. E, na testa de Caim, Deus colocará um sinal que o marca a ferro
como um assassino. Pode não acontecer imediatamente, mas no final a justiça
triunfará. De acordo com essa abordagem, o Holocausto foi a vitória temporária
do mal não por causa da perversidade de Deus, mas devido à Sua graça – a Sua
bondade em conceder aos seres humanos a dádiva que lhes permite tornarem-
se anjos ou demônios.

Mais do que isso, talvez, o Holocausto afirmou uma verdade fundamental


que torna o judaísmo ainda mais relevante. Este provou o fracasso do homem
sem os ensinamentos espirituais de Deus. O que o mundo testemunhou nos anos
1940 foi quão baixo se pode afundar quando se abandona a ética e a lei,
bem como a consciência moral que tem sido a maior dádiva dos judeus à
Humanidade. Longe de deslegitimar Deus, o Holocausto deixou claro que, sem
Ele e os Seus ensinamentos, a Terra não pode sobreviver.

Esta é uma abordagem que eu considero um tanto forçada. Se o


primeiro modelo de pecado/punição se mostrou inaceitável, a teoria do livre-
arbítrio tem muito para ser recomendada. Contudo, é difícil aceitá-la como
uma explicação plena para o Holocausto, dada a extensão dos seus horrores.
Será que o livre-arbítrio exige a completa abdicação de Deus? Como então
explicamos a intervenção Divina ao longo do curso da história? Será que estes
momentos não demonstraram que há crimes suficientemente merecedores da
Sua intervenção? Será possível que Deus fez um voto perpétuo de passividade?
E se houve tempos em que Deus esteve bastante irado, muito transtornado,
suficientemente pasmo para anular as consequências do livre-arbítrio, será que
os horrores do Holocausto não autorizaram o mesmo tipo de resposta?

Talvez ainda um terceiro modelo para os caminhos de Deus possa nos


ajudar a lidar com a nossa dificuldade.

O HOLOCAUSTO COMO TESTE


O terceiro modelo – o Modelo C – está baseado na história de Abrahão.
A Bíblia ensina que Abrahão teve que enfrentar 10 testes, sendo que o último a
lhe ser pedido foi para que sacrificasse o seu filho Isaac. Parece incompreensível
que Deus pedisse para um homem oferecer o seu próprio filho como prova da
sua fé. No entanto, mais uma vez, será que os testes não são – por sua própria
natureza – incompreensíveis? Se Abrahão soubesse que era um teste, o pedido
Divino não teria representado um desafio de devoção.

Alguns dizem que, talvez, a história do sacrifício de Isaac por Abrahão


represente uma antecipação do evento do século 20, que do mesmo modo exigiu
um teste supremo da nossa fé diante da impossibilidade de se compreender o
Holocausto. Sim, terrível e amedrontador, mas quanto mais difícil o teste, maior
a recompensa. A história de Abrahão demonstra que os testes bem que podem
fazer parte da experiência religiosa. É possível que o Holocausto tenha sido
uma situação de Akedá coletiva, forçando-nos, como povo, a sermos testados
exatamente do mesmo modo que o nosso patriarca?

À primeira vista, a ideia parece possuir algum mérito, mas há uma


diferença óbvia entre os dois eventos. No relato de Abrahão, no momento
crítico, quando ele ergueu a sua espada para completar o teste, a Torá nos
conta que Deus enviou um anjo para dizer: “Pare!”

No Holocausto não houve anjo algum. Não houve uma ordem de Deus
para parar. Em vez disso, a espada erguida desceu, e o sangue de 6 milhões
fluiu para a Terra.

As diferenças entre a realidade e o modelo afastam quaisquer possíveis


semelhanças. Simplesmente não faz sentido. Desde a perspectiva de Abrahão,
o modelo não se aplica porque então os nazistas teriam de ser comparados a
esse homem religioso que obedeceu à voz de Deus! E tampouco se aplica desde
a perspectiva de Isaac que, embora estivesse disposto a renunciar à sua vida,
não morreu no final.

Os testes devem supostamente servir a um propósito. Espera-se que


sejam construtivos, não destrutivos. Isso torna quase impossível acre-ditar que
o Holocausto possa ser explicado pelo modelo do teste de Abrahão.

Portanto, passemos para o próximo modelo.

O HOLOCAUSTO COMO UM PRÉ-REQUISITO


MESSIÂNICO
Este modelo – o Modelo D – baseia-se nas visões messiânicas dos profetas.

É a partir dos escritos bíblicos de muitos dos porta-vozes de Deus que


falam do “fim dos dias” que nós ouvimos falar de um conceito conhecido como
chevlê ledá, “as dores de parto” para o nascimento do Messias. Os profetas
Zacarias, Malaquias, Joel e outros predisseram que o tempo que precede
imediatamente a redenção final seria pleno de morte e destruição em uma
escala quase inimaginável. A descrição deles é tão assustadora que o Talmud72
fala de sábios que declararam esperar pela vinda do Messias, mas que eles
mesmos não vivessem para testemunhar a sua chegada. “Nós naturalmente
amaríamos fazer parte da era messiânica”, eles explicaram, “mas não podemos
suportar a ideia de ter que testemunhar os dias que precederão imediatamente
a sua vinda.”

No século 16, o rabino Iehudá Loew, mais conhecido como “Maharal de


Praga”, escreveu longamente acerca dos tipos de eventos que anunciarão a
vinda do Messias com base nessas predições. O Maharal advertiu que haveria
um período de crise – uma crise em diversos níveis. Contudo, ele concluiu, a
salvação surgirá precisamente como resultado dessa crise. Nas palavras do
Maharal, “Do meio do nada, nascerá a vida.”

Suas palavras pressagiam tanto o Holocausto como também o nascimento


de Israel, que ocorreu logo em seguida. A sua elaboração das predições bíblicas
é dolorosa em sua descrição dos horrores que foram tão precisamente cumpridos
durante o Holocausto. O que tornam suas palavras ainda mais notáveis é a
percepção de que, assim como os profetas já indicavam, a tragédia provou
ser, de fato, a precursora do retorno milagroso do povo judeu à sua terra após
quase dois mil anos de exílio.

A comparação com uma mulher dando à luz – os gritos de dor seguidos


de uma imensa alegria – provou ser uma metáfora apropriada. Se houvesse
opção, nós também poderíamos concordar com os rabinos do Talmud que
rezaram para não estarem vivos na geração que precede a redenção. Contudo,
como Elie Wiesel afirma de forma tão bela, “Nós somos a mais amaldiçoada de
todas as gerações, e somos a mais abençoada de todas as gerações. Nós somos
a geração de Jó, mas também somos a geração de Jerusalém.”

Como devemos explicar essa estranha ligação? O que cria a conexão


entre a dor sem paralelos e a alegria ilimitada? Por que os profetas viram a
iminência de um Holocausto antes de um retorno à nossa pátria nacional?

A resposta está longe de ser clara.


Alguns, como o famoso sábio, o rabino Yonathan Eibeshutz, tentou
entender isso por via de analogia:

Da mesma maneira que a noite precede o dia e o mundo atual precede


o mundo vindouro, assim, também, só é compreensível que a redenção seja
precedida pela escuridão. Toda nova existência anuncia o fim da existência
anterior. Esta é a razão do vazio antes do surgimento do Messias, até que toda
a existência anterior se dissolva. Só então a existência pode recomeçar. Esta é
a razão pela qual os Sábios do Talmud ensinam:73

“Rabi Yochanan disse que na geração na qual o filho de David [isto é,


o Messias] vier, o número de mestres da Torá diminuirá, e os olhos daqueles
que ficarem irão se tornar fracos de pesar e de gemidos, e grandes sofrimentos
e decretos severos serão renovados; tão logo um deixe de vigorar, um novo
será promulgado. [Está escrito mais adiante,] Rabi Yehuda diz que na geração
em que vier o filho de David, o local de reunião [dos mestres da Torá] será
[usado] para prostituição, a Galileia será destruída, Gavlán tornar-se-á
deserta, e o povo da Galileia perambulará de cidade em cidade e não será
consolado; a sabedoria dos Sábios irá decrescer, aqueles que temem o pecado
serão menosprezados, a face da geração se assemelhará à face de um cão, e a
verdade será difícil de suportar...”

Os sofrimentos terríveis que nós vivenciamos na Europa durante a


Segunda Guerra Mundial podem ter servido como parte do cumprimento
dessa previsão tão medonha. O Holocausto representou um aspecto do “vazio”
antes do “renascimento” do povo judeu na Terra de Israel. A “coincidência”
do calendário que colocou o Holocausto em tanta proximidade com a criação
do Estado de Israel é certamente algo que chama a nossa atenção. Deve-se
considerar isso uma mensagem Divina.

Será que isto pode servir como uma fonte de consolo? Isto basta para
nos dar uma medida de consolação para as nossas dolorosas perdas? Enquanto
para muitos a ideia de “dores do parto para o nascimento do Messias” falha
em oferecer uma razão aceitável, nós devemos notar que durante o próprio
Holocausto havia rabinos que tranquilizaram seus discípulos enquanto estes
marchavam em direção à morte, dizendo-lhes para que pensassem no sofrimento
deles como os sacrifícios que acelerariam a chegada do Redentor.

A mais insuportável de todas as mortes é a morte vista como sem sentido.


Acreditar que morrer serve a um propósito é mais do que preenchê-la de um
sentido, mas também de santidade. É isto o que este modelo foi capaz de
proporcionar para algumas vítimas. Eles podem não ter entendido o “porquê”
dos seus sacrifícios, mas acreditaram no seu significado, o que lhes permitiu
seguir em direção às suas mortes com dignidade.

Será que essa abordagem nos basta ao nos debatermos com as


dificuldades teológicas do Holocausto? Se esta não nos satisfaz como resposta,
permite-nos ao menos reconhecer que o incompreensível era, não obstante,
parte de um plano Divino revelado há milhares de anos para os profetas.
Isto transforma a tragédia em um degrau para a bênção derradeira – e que
certamente traz consigo uma medida de consolação.

O HOLOCAUSTO COMO ALGO INEXPLICÁVEL


E, finalmente, completamos o ciclo ao retornarmos ao modelo de Jó – o
Modelo E.

Nesse modelo reconhecemos a aparente falta de justiça na conduta


de Deus. Mas, como o livro de Jó nos ensina, independentemente de quanto
esforço o homem fizer para compreender os caminhos de Deus, ele não terá
sucesso. Jó nunca obtém uma resposta para suas perguntas. A resposta de
Deus – como percebemos nos capítulos 1 e 14 – é apenas uma sequência
de perguntas que enfatizam o quanto os seres humanos são completamente
limitados em contraste com o Seu temível poder:

“Onde estavas quando construí as fundações da terra?... Quem


pode, com sabedoria, contar as nuvens do céu, e quem pode fazer verter
as botijas do céu?... Queres caçar a presa para a leoa ou satisfazer o
apetite de seus filhotes?... É por tua sabedoria que se eleva o falcão e
abre suas asas, voando para o sul?”74
Em outras palavras, Deus diz a Jó: “Eu dirijo este mundo vasto e complexo,
e você possivelmente não consegue entender as inúmeras razões pelas quais
Eu faço o que faço.”

E assim Jó, ao ouvir tudo isso, conclui: “Reconheço minha deficiência. O


que Te posso responder? Cerro minha boca com a mão.”

Estranhamente, Jó é confortado por essa não-resposta à sua pergunta,


e ele concorda em não mais questionar. No final, depois de todas as suas
dolorosas experiências, essa é a atitude de Jó.

Você poderia dizer que esta é uma conduta evasiva. Como pode haver
algum consolo nessa não-resposta? Ou você pode olhar para isto desde uma
perspectiva mais elevada e aceitar como resposta por meio de uma submissão a
uma inteligência superior que dirige o mundo de uma maneira que não podemos
compreender.

Por exemplo, se alguém diz: “Meu médico certamente está equivocado


porque eu não entendo a sua prescrição”, você responderia: “Isso é absurdo! A
sua afirmação não faz sentido porque você está indo a um especialista com um
conhecimento que você não possui.”

Como diz Maimônides, às vezes o tratamento do médico pode ser a


amputação de um membro, algo que parece muito cruel para uma pessoa
comum que não tem qualquer conhecimento dos procedimentos da medicina
moderna. Contudo, o médico não poderia explicar ao paciente por que e
como a gangrena se espalha; falta-lhes uma linguagem em comum. O melhor
que o médico poderia dizer seria: “Por estranho que possa parecer, isto é
bom para você.”

Do mesmo modo, as coisas terríveis que acontecem são, de algum


modo estranho que não entendemos, em favor do nosso maior interesse. E só
uma inteligência superior sabe o motivo. Como diz a Bíblia: “As coisas ocultas
pertencem ao Eterno, nosso Deus.”75

A relevância dessa ideia para o Holocausto ficou esclarecida há alguns


anos para mim em uma das experiências mais incríveis da minha vida. Quero
compartilhar isto com você no próximo capítulo, na esperança de que isto
fortaleça a sua fé diante do inexplicável, assim como fortaleceu a minha.

CAPÍTULO 16
UM ENCONTRO COM UM MÍSTICO

A oportunidade de um encontro com um místico mudou minha vida.

Há alguns anos eu estava em Israel em uma excursão congregacional


quando um amigo compartilhou comigo algumas histórias notáveis a respeito
de um mestre religioso da cidade de Safed. Aqueles que o conheciam bem
estavam seguros de que ele era um daqueles conhecidos na tradição judaica
como “os 36 homens justos” – aqueles 36 homens santos por cujo mérito o
mundo inteiro é mantido.

Eu não podia ousar esperar que teria a oportunidade de realmente


encontrá-lo, mas o acaso e o destino Divino nos reuniram de alguma maneira.
Os detalhes do nosso encontro foram tão incríveis que eu preciso acreditar
que o próprio Deus o promoveu. O que eu aprendi após passarmos horas
memoráveis juntos alterou definitivamente o modo como agora eu entendo a
Bíblia, a religião e, de fato, a própria vida.

Por que ele confiou em mim eu ainda não sei. Ele é um homem
completamente imune às tentações da fama e da riqueza. Ele compartilhou
comigo um “segredo” místico sob duas condições: que eu não o revelasse
publicamente até que ele me informasse o momento adequado; e que eu nunca
– jamais! – divulgasse a sua identidade e perturbasse o seu propósito vitalício
de anonimato.

Durante anos eu mantive o “segredo” comigo. Isso me permitiu ver coisas


que ninguém mais via. Todavia, eu não podia dizer uma palavra por causa da
minha promessa.
E então, num certo ano, ele ligou para mim e simplesmente me disse:
“Agora é o momento.” Eu não tenho qualquer ideia do que mudou. Talvez seja
porque o mundo atualmente está mais afinado ao místico e mais receptivo
aos seus ensinamentos profundos. Talvez seja porque as pessoas já foram
apresentadas ao conceito de códigos da Bíblia e não serão cínicas demais diante
de uma abordagem de algum modo comparável a isto. Ou talvez seja porque
há algo que esse segredo pode nos ensinar atualmente que o mundo precisa
desesperadamente para o seu esclarecimento, para a sua inspiração e para a
sua própria sobrevivência.

Deixe-me então compartilhar isto com você exatamente do modo que


eu o ouvi.

Nós havíamos falado de milagres. Ele me falou que aqueles eventos


milagrosos não terminaram com os relatos bíblicos. Eles são contínuos, ao longo
de toda a história, inclusive nos tempos modernos. Ele disse que, por exemplo,
a criação do Estado de Israel aconteceu como uma expressão da vontade de
Deus exatamente quando foi previsto para acontecer, segundo a Bíblia.

“Previsto exatamente quando foi suposto?”, eu perguntei. “Eu não me


recordo da promessa de retorno para a terra identificada com um ano específico.”

Ele respondeu: “Então talvez esteja na hora de eu lhe revelar o segredo


das sentenças.”

Eu não tinha qualquer ideia do que ele queria dizer. Sentenças? A qual
segredo ele possivelmente estava se referindo? “Deixe-me lhe mostrar uma
coisa”, ele me falou. E então ele me confiou uma reflexão que havia recebido
dos seus mestres que literalmente me deixou sem fôlego.

“O ano em que o Estado de Israel nasceu foi, no calendário secular,


1948. Segundo o nosso modo tradicional de contar, a data era 5708. Saiba que
os versículos dos cinco livros de Moisés, a Torá, correspondem aos anos da
história. Todo evento importante de todos os tempos deve ter alguma alusão a
isto, direta ou indiretamente, no versículo conectado a ele pelo número. Você
sabe”, ele me perguntou, “qual é o versículo número 5.708 da Bíblia?”
É claro que eu não tinha ideia.

Então ele me contou, e em seguida eu verifiquei isto após uma prolongada


contagem. É Deuteronômio 30:3:

“E o Eterno, teu Deus, te trará com Ele de Teu cativeiro, e Se compadecerá


de ti, e te fará voltar, juntando-te dentre todas as nações para onde o Eterno,
teu Deus, te espalhou.”

Era impressionante! E parecia bom demais para ser verdade. Talvez fosse
apenas uma notável coincidência, um desses acidentes que são mais divertidos
do que instrutivos. Mas com certeza era algo intrigante: o versículo que fala do
retorno à terra após séculos de exílio é, de fato, a sentença bíblica cujo número
é o mesmo do ano no qual esse evento improvável ocorreu!

Então eu encontrei coragem para fazer a seguinte pergunta: “Você quer


dizer”, perguntei hesitante, “que isto não é simplesmente um exemplo isolado?
Este é um princípio que se relaciona igualmente a outros eventos importantes, e
eu poderia encontrar uma referência comparável, por exemplo, ao Holocausto,
do mesmo modo como fiz com relação ao momento da redenção nacional?”

“Por que você não tenta?”, ele respondeu com um sorriso. E assim eu
contei os versículos para trás, tomando nota do número, bem como do ano
correspondente. O capítulo anterior – capítulo 29 – era aquele cujas sentenças
correspondiam aos anos do Holocausto, desde meados dos anos 1930 até o fim
da Segunda Guerra Mundial em 5705/1945.

Com a respiração suspensa, li as frases que saltavam diante de mim:

“... todas as maldições da aliança... as pragas daquela terra e as suas


doenças, com que o Eterno a terá afligido... toda a terra foi abrasada com
enxofre e sal... como foi a destruição de Sodoma e Gomorra... vendo isto, dirão
todas as nações: ‘Por que o Eterno fez assim a esta terra?’ ” (Deuteronômio
29:20-23)

Era verdade! As sentenças estavam relacionadas aos anos do Holocausto


e descreviam os horrores e aflições daqueles tempos terríveis – como se
tivessem sido escritas no mesmo momento em que os eventos ocorreram.
Mas havia uma revelação ainda mais surpreendente que surgiu por meio
dessa leitura. O versículo que corresponde ao ano 5705/1945 me atordoou
com sua mensagem poderosa. Obviamente, trata-se da sentença que serve
como a palavra final da Torá a respeito do Holocausto e o seu significado. É
o resumo de Deus bem como a Sua “explicação”. E o que têm a nos dizer as
palavras as quais estamos tão ansiosos para ouvir? Escute cuidadosamente o
texto porque eu acredito que este é o melhor e o mais apropriado julgamento
que os seres humanos possivelmente podem oferecer ao considerarmos os
eventos daqueles dias:

“As coisas ocultas pertencem ao Eterno, nosso Deus. Porém, as reveladas


nos pertencem a nós e a nossos filhos para sempre, para cumprir todas as
palavras desta Torá.” 76

Quando tudo está dito e feito, Deus é mais sábio do que nós. Ele entende
mais do que nós. Nas profundas palavras do sábio do século 11, Bachya ibn
Pacuda: “Se nós pudéssemos entender Deus, nós seríamos Deus.” Às vezes
podemos captar alguns dos Seus modos. Ao buscarmos razões e explicações,
podemos ocasionalmente compreender algumas verdades que iluminam o
modo misericordioso como Deus guia nossas vidas. Nestes momentos nós
somos subjugados pela Sua grandeza. E nestes momentos de confusão, quando
somos incapazes de compreender como Deus possivelmente pode parecer
tão imune ao nosso sofrimento, nós nos certificamos de que o amor de Deus
por nós é a constante que nunca, jamais, mudará. A resposta bíblica para o
Holocausto deve ser nossa resposta às nossas angústias cotidianas: “As coisas
ocultas pertencem ao Eterno, nosso Deus.”

A nossa fé é mais forte do que os nossos infortúnios. A nossa crença


pode sobreviver a perguntas que só têm respostas parciais. A História não pode
validar o julgamento otimista de Anne Frank de que, “apesar de tudo, eu ainda
acredito que as pessoas são realmente boas no coração”. Contudo, eu não
tenho dúvida de que Deus é realmente bom no coração, e Suas “coisas ocultas”
são os métodos Divinos que Ele usa para nos levar de volta ao paraíso que Ele
originalmente criou para nós.
POSFÁCIO

Este é um livro sobre perguntas. Perguntas que ousam sugerir que os


caminhos de Deus podem nem sempre ser justos. Perguntas que ameaçam
nossas convicções religiosas. Perguntas que colocam em risco o nosso
relacionamento com o Criador.

Nós estudamos respostas de algumas das maiores mentes do passado.


Nós aprendemos que nem todas as respostas são universalmente aplicáveis ou
tampouco satisfatórias. Algumas das reflexões certamente ecoam mais do que
outras. Algumas ideias terão feito sentido para muitos, outras para poucos ou
para ninguém. À medida que nos movemos de tema em tema, você terá sido
o juiz mais importante das verdades que falaram ao seu coração e ajudaram a
aliviar a sua dor.

Após anos aconselhando pessoas que sofrem, eu vim avaliar a extensa


gama de respostas às diversas abordagens que ajudaram as pessoas a “passar
por isso”. O que é significativo para um pode ser simplesmente um “discurso
religioso” para outro. O que é profundo para uma pessoa pode parecer superficial
para outra. É por isso que passamos por tantas possibilidades diferentes. Minha
esperança neste livro – assim como quando eu falo pessoalmente com as
pessoas – é que você encontre pelo menos um pensamento que lhe atinja com
a força de um raio e que você o reconheça imediatamente como a sua verdade.

Os leitores que leram o manuscrito me disseram que houve pelo menos


uma, se não muitas mais, destas reflexões esclarecedoras que fizeram com que
uma ideia saltasse diretamente da página para os seus corações. Como foi dito
por um rabino chassídico, você sempre reconhecerá a verdade que se aplica à
sua situação pelo modo poderoso como essa lhe atingir ao encontrar-se com ela.

Mas eu não me iludo em pensar que você terá encontrado nestas


páginas as respostas para todas as suas perguntas. Você tampouco deve se
desesperar ou ficar desapontado se ainda estiver preocupado com alguns dos
modos de Deus.
Eis uma verdade que eu lhe peço para que se lembre:

Ter perguntas não faz de você uma pessoa não-religiosa. Duvidar não é
o mesmo que negar. É permitido, sim, às pessoas perguntarem, serem céticas
– até mesmo questionarem o próprio Deus. E isso não as faz menos piedosas,
mas exatamente o contrário: isto afirma ainda mais a sua fé.

Duro de acreditar? Deixe-me provar isto.

A fé e a dúvida podem coexistir? Será que ser religioso exige a


suspensão da razão e da lógica? Será que uma pessoa religiosa é alguém que
já tem todas as respostas e jamais pode admitir estar confusa por algumas
das ações de Deus?

Algumas pessoas poderiam pensar que a resposta é óbvia. Confiar em


Deus, elas lhe dirão, implica obediência inquestionável. A santidade exige
silêncio. A convicção requer aceitação cega.

Mas elas estão erradas. E Henry David Thoreau tinha razão quando
disse sucintamente: “A fé mantém muitas dúvidas na sua conta. Se eu não
pudesse duvidar, eu não acreditaria.” Se você acha que a observação dele não
é verdadeira, tudo o que você tem a fazer é ler a Bíblia. Alguns dos maiores
homens compreenderam intuitivamente que, se Deus dotou o ser humano
de razão, então, esta dádiva Divina seguramente não pode ser pecadora.
Questionar Deus não é um crime; é justamente uma expressão poderosa da
nossa consciência de que, ao termos sido criados à imagem de Deus, temos a
obrigação de nos esforçarmos para compreender o nosso Criador.

ABRAHÃO, O PRIMEIRO MONOTEÍSTA


Abrahão foi o primeiro judeu. Ele foi o primeiro a ensinar ao mundo
inteiro o conceito de monoteísmo. Por causa disso, Deus optou por aparecer
a Abrahão como amigo e confidente. O relacionamento era tão íntimo que,
quando Deus decidiu que não tinha escolha a não ser destruir as cidades de
Sodoma e Gomorra, Ele tornou as Suas intenções conhecidas ao Seu servo.
“O clamor de Sodoma e Gomorra aumentou, e seu pecado se agravou
muito” (Gênesis 18:20), declarou Deus. Por essa razão eles teriam que ser
destruídos. E porque Abrahão agora Lhe era tão querido, Deus decidiu que não
poderia esconder os Seus planos do seu discípulo. Então Abrahão soube o que
estava prestes a acontecer.

O que aconteceu em seguida é duro de acreditar. Abrahão confronta


Deus. Abrahão discute com Deus. Abrahão questiona Deus: “Destruirás também
o justo com o mau? Talvez haja 50 justos dentro da cidade... Longe de Ti de
fazer tal coisa, de matar o justo com o mau... longe de Ti! Aquele que é o juiz
de toda a terra não fará justiça?” (Gênesis 18:23-25)

E como Deus responde a essa crítica? Por mais incrível que pareça, Deus
cede! Tudo bem, Ele diz, “se houver 50 justos dentro da cidade, perdoarei ao
lugar todo, por causa deles”. Mas Abrahão ainda não está satisfeito: “Talvez
faltem, dos 50 justos, cinco; ainda destruirás todos eles simplesmente pela
falta de cinco?” Deus também aceita isso. Mas a discussão ainda não terminara:
“E se só houver 40? Ou 30? Ou 20, ou 10?” Deus também aceita esse pedido.
Ele não levará o Seu plano a cabo se existirem pelo menos 10 pessoas justas.
Abrahão vence!

Como é possível entendermos essa história? Será que Abrahão é mais


inteligente do que o Deus que o criou? É claro que não. Certamente não é isto
o que diz o texto. O que a Bíblia está nos ensinando, de acordo com quase
todos os comentaristas, é que Deus se orgulhou de um ser humano que teve
a coragem de expressar as suas convicções. Talvez este tenha sido um teste
ainda maior do que aquele no qual Abrahão recebeu a ordem para levar o seu
filho como uma oferenda. O desafio para Abrahão foi definir, para ele, bem
como para todos os seus descendentes, o lugar apropriado para a compaixão
humana na presença do julgamento Divino. Sim, Deus decretou, mas esta foi
a Sua maneira de determinar como Abrahão responderia. Tivesse Abrahão
aceitado passivamente, colocando toda a sua fé em Deus, Ele teria perdido
a Sua fé em Abrahão! O que a Bíblia nos ensina nessa história inspiradora é
que Deus prefere pessoas de caráter a piedosos obedientes. As pessoas que
têm a coragem de questionar são mais santas do que aquelas que acreditam
que Deus nos deu a dádiva da inteligência, mas deseja que nós de fato nunca
a usemos!

Abrahão não se tornou um herege quando expressou suas dúvidas a


respeito da justiça dos caminhos de Deus. Ele sabia, obviamente, que Deus
daria a palavra final. Tudo o que ele queria era também ter a permissão para
expressar a sua opinião. E isso não era só o que Abrahão queria; explicitamente,
este também era o desejo de Deus.

MOISÉS PERGUNTOU POR QUÊ


Moisés foi o maior herói da Bíblia. Ele alcançou um nível de profecia sem
paralelos com qualquer outro antes ou depois dele. Os versículos finais dos
cinco livros de Moisés deixam claro o quanto ele foi único: “E jamais se levantou
em Israel profeta algum como Moisés, a quem o Eterno aparecera cara a cara”
(Deuteronômio 34:10). Se alguém merece ser chamado de amigo de Deus, este
certamente foi o homem cuja face literalmente brilhou como uma tocha de luz.

Mas Moisés também entendeu que até mesmo uma grande amizade com
o Todo-Poderoso não o impedia de fazer críticas quando necessário. Depois que
os judeus pecaram com o bezerro de ouro, Deus falou para Moisés o quanto
Ele estava irado: “Eis que é um povo insubordinável”, Ele disse, “e [Eu] os
consumirei” (Êxodo 32:9-10). Mas Moisés teve coragem de dizer a Deus que ele
não concordava. Moisés fez perguntas; todas elas começavam com “por quê”:
“Por que, Eterno, se acenderá o Teu furor contra Teu povo, que tiraste da terra
do Egito com grande força e com mão forte? Por que hão de falar os egípcios,
dizendo: ‘Para mal os tirou, para matá-los nos montes e para os consumir de
sobre a superfície da terra’?” (Êxodo 32:11-12). Em uma linguagem simples,
Moisés dizia praticamente o seguinte: “Deus, Tu estás certo de que realmente
sabes o que estás fazendo?”

Ousado, não? Você pensaria que isto poderia ser contado como um
pecado para Moisés. Você poderia esperar que Deus respondesse com ira
por tanta impertinência humana. Em vez disso, a Bíblia conclui essa história
contando-nos que “o Eterno arrependeu-Se do mal que falou em fazer a Seu
povo” (Êxodo 32:14). Mais uma vez, o homem vence Deus. O Eterno permite
que um ser humano seja vitorioso. E em vez de irar-Se com o Seu servo, nós
podemos quase imaginar Deus sorrindo. Moisés, exatamente como Abrahão
antes dele, percebeu que questionar Deus não é um ato de chutspá (audácia)
teológica. Trata-se nada menos do que uma afirmação de dignidade humana,
uma demonstração válida e louvável de coragem espiritual até mesmo na
presença do Todo-Poderoso.

Longe de ser diminuído por sua explosão aparentemente desres-peitosa,


Moisés cresce na estima do leitor, bem como na de Deus.

Moisés amava tanto Deus que não podia aguentar ficar calado quando
a reputação de Deus como misericordioso parecia ameaçada. Afinal de contas,
perguntas nem sempre equivalem a críticas. Às vezes, elas são somente outra
maneira de pedir esclarecimentos. A frase “Por que você está fazendo isso?” não
precisa ser entendida como uma condenação. Os amigos têm direito de reagir,
de ficarem confusos e de expressarem suas dúvidas. E isso é verdade, como
essa história deixa claro, até mesmo quando um dos amigos é o próprio Deus.

JÓ E TODOS OS OUTROS INOCENTES QUE


SOFREM

Nós sabemos tudo a respeito de Jó e seus problemas. Nós nos lembramos


de como Jó foi apresentado no início do livro que leva seu nome, sendo
considerado não apenas um homem de virtude e devoção exemplares, mas
também uma pessoa abençoada de uma maneira apropriada a um indivíduo da
sua santidade. Nós testemunhamos a sua queda com pesar e empatia.

Nós percebemos que Jó é qualquer ser humano. Ele é a vítima que sofre
injustamente e não pode acreditar que Deus permita o seu sofrimento. Nós
nos lembramos dos amigos de Jó que tentaram convencê-lo de que ele estava
sofrendo porque devia ter feito algo que justificasse isso. Mas Jó sabia que
isso não era verdade. Não havia como ele pudesse aceitar que o seu horrendo
sofrimento era uma punição por crimes que ele certamente não cometera.

Ao longo de 42 capítulos, a Bíblia nos conta como Jó resistiu. Ele era


um homem rico que perdera todo o seu patrimônio. Ele era o patriarca de
uma bonita família, agora deixado sem descendentes. Coberto da cabeça aos
dedos dos pés com bolhas infeccionadas que nunca paravam de coçar, o seu
corpo febril frouxamente suspenso em seu esqueleto, os seus olhos afundados
na cabeça e as suas costelas salientes sob a pele, Jó é o paradigma de todos
aqueles perplexos pelo seu sofrimento injusto, confusos pela aparente ausência
de compaixão e de preocupação da parte de Deus por Seus filhos.

A esposa de Jó sugeriu a solução de desespero extremo: “Amaldiçoe


Deus e morra!” Em outras palavras, ela falou para o seu marido: “Por que não
acabar com isso? É inútil. Não há futuro.” A voz dela era de pessimismo não-
mitigado. Talvez ela tenha sido a primeira defensora da eutanásia. Quando a
vida não oferece alternativas para fazer-se digna de ser vivida e a fé fracassa
em alcançar uma resposta positiva, o suicídio é a única resposta lógica.

Em vez disso, Jó se agarra à vida. Ele se recusou a amaldiçoar Deus. Mas


isso não fez com que ele parasse de questionar. Inquirir Deus não é o mesmo que
negá-Lo, mas exatamente o contrário. O próprio ato de questionar implica que
a comunicação com alguém em quem confiamos está presente e que nós temos
certeza de que há razão suficiente para dialogar com ele. Os ateus não questionam
Deus porque para eles não há com quem falar. Pelo contrário, Jó sabia que não
importava o quanto ele sofrera, ele não estava só. Para Jó, questionar Deus
era afirmar a Sua existência. É claro que Jó chorou. É óbvio que ele protestou,
lamentou, até mesmo amaldiçoou o dia em que nasceu. Mas há uma coisa que
ele jamais faria: ele nunca cruzaria a linha e amaldiçoaria Deus, como sugeriu
a sua esposa. Diante de toda a sua adversidade, ele permaneceu firme em sua
única esperança – o mesmo Deus responsável pela sua terrível situação.

Jó estava frustrado, mas não perdeu a sua fé. Jó sentiu a necessidade de


apresentar o seu caso diante de Deus porque ele confiava que sua queixa seria
aceita. E quando Deus finalmente decidiu responder, Ele deixou claro que, da
Sua perspectiva, as dúvidas de Jó eram mais piedosas do que as crenças dos
seus amigos. Deus aplaudiu as perguntas de Jó.

Esta é a mensagem do livro de Jó, dirigida a todo aquele que sofre. Abra
o seu coração para Deus. Jogue para Ele a sua aflição, a sua raiva, a sua dúvida,
a sua amargura, o seu sentimento de traição e a sua decepção. Deus é grande o
bastante para suportar tudo isso e ainda mais. A única coisa que você não pode
fazer a Deus, o único crime para o qual você será considerado um pecador, não
é questioná-Lo, mas ignorá-Lo.

E é isso que o poeta Alfred Lord Tennyson compreendeu tão bem quando
escreveu: “Existe mais fé na dúvida honesta, acredite-me, do que em metade
das religiões.”

É esta a garantia que podemos levar das vidas dos gigantes espirituais
que nos precederam. Quando nos sentimos abandonados por Deus, nós não
devemos considerar blasfêmia repetir as palavras do Rei David no seu livro
de Salmos:

“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? Por que deixaste tão
distante minha salvação e ignoraste meu gemido angustiado? De dia clamo e à
noite não silencio, e Tu não me escutas.” 77

“Deus, onde Tu estás?” é um grito que funde amor com frustração,


aceitação com confusão. Isto não diminui a nossa fé; afirma a nossa relação e,
ao mesmo tempo, atesta a nossa proximidade. É somente por amarmos Deus
tanto quanto amamos que podemos nos sentir suficientemente próximos para
Lhe fazer perguntas!

E é por isso que estou certo de que Deus não pensará nada menos de
nós se nos juntarmos à companhia de questionadores que incluem Abrahão e
Moisés, Jó e o Rei David. Quem sabe? Pode ser que lidar honestamente com as
nossas dúvidas nos permita fortalecer a nossa fé.
É por isso que jamais devemos ter medo de perguntar. Sintamo-nos sempre
próximos o suficiente de Deus para questionar. Mas encontremos também força
nessas respostas que nos marcam com suas verdades. E vivamos nossas vidas
com a garantia confiante de que o mesmo Deus que é a fonte de todas as nossas
bênçãos também nos permitirá superar nossos sofrimentos e tristezas.

Notas
66. Berkovits, Eliezer. God, Man & History (Deus, o Homem e a História). Middle Village, NY,

Jonathan David Pub., 1979. – 67. Meguilá 12a. – 68. Kuntres Dibrot Kodesh 216-217. – 69. Ketubot

11a. – 70. Heschel, Abraham Joshua, and Susannah Heschel (Ed.). Moral Grandeur and Spiritual

Audacity: Essays (Grandiosidade Moral e Audácia Espiritual: Ensaios). New York, NY, Noonday Press,

1997. – 71. Midrash Hagadol, Bereshit 4:9. – 72. San’hedrin 98b. – 73. San’hedrin 96b, 97a. – 74. Jó

38-40. – 75. Deuteronômio 29:28. – 76. Deuteronômio 29:28. – 77. Salmos 22:2-3

SOBRE O AUTOR

Benjamin Blech é um educador, líder religioso, escritor e palestrante


reconhecido internacionalmente. Ele é o autor de sete livros best-sellers, muito
aclamados, cujas vendas somam mais de 150 mil exemplares, incluindo três que
fazem parte da popularíssima série Idiot’s Guide (no Brasil, um deles foi publicado
pela Editora Sêfer sob o título “O Mais Completo Guia sobre Judaísmo”).
Muitas das suas obras vêm sendo traduzidas para outras línguas. Understanding
Judaism: The Basics of Deed and Creed (Compreendendo o Judaísmo: o Básico das
Ações e Crenças) foi escolhido pela Union of Orthodox Jewish Congregations (União
das Congregações Judaicas Ortodoxas, EUA) simplesmente como o melhor
livro sobre judaísmo dos dias atuais. Acompanhado de um vídeo, filmado pelos
produtores de “20/20” [programa de TV americano – N.T.] e apresentado pelo
próprio Blech, atualmente vem sendo utilizado como base para grupos de
estudos em inúmeras sinagogas e universidades ao redor dos Estados Unidos.
Em uma pesquisa americana (do site jewsweek.com), Blech ficou em 16o
na lista dos 50 judeus mais influentes dos EUA. Vencedor do American Educator
of the Year Award (Prêmio de Educador Americano do Ano), o rabino Blech é
professor-associado de Talmud na Yeshiva University desde 1966.

Blech é rabino emérito da Young Israel of Oceanside, Nova York, onde serviu
por 37 anos. Décima geração de uma família de rabinos, ele já formou milhares
de relações entre professor e estudante com seu estilo caloroso e cuidadoso.
Blech é conhecido por sua capacidade de apresentar ideias complexas de
maneira simples e envolvente. Foi presidente do National Council of Young
Israel Rabbis (Conselho Nacional de Rabinos da ‘Young Israel’), bem como da
International League for the Repatriation of Russian Jewry (Liga Internacional pela
Repatriação dos Judeus Russos), e também diretor do New York Board of Rabbis
(Diretoria de Rabinos de Nova York) e do Rabbinical Council of America (Conselho
Rabínico da América).

Blech realiza com frequência palestras em comunidades judaicas


distantes, como Austrália, África do Sul, Nova Zelândia, Bangcoc, Singapura,
Hong Kong, Tóquio e Israel. Mais próximo de casa, ele vem atuando como
Professor-Residente em centenas de sinagogas ao longo dos Estados Unidos e
Canadá e atua em favor de inúmeras causas judaicas. Suas palestras gravadas
têm alcance internacional e estão entre as mais populares entre milhares de
disponíveis na Internet no site Aish Hatorah (www.aish.com).

Blech costuma aparecer em rede nacional de televisão (incluindo o talk


show de Oprah), teve um popular programa semanal de rádio em Nova York e
já escreveu para Newsweek, The New York Times e Newsday, sem contar um largo e
variado número de publicações acadêmicas.

Blech é um palestrante incomum, eloquente e talentoso, bem como um


renomado teólogo contemporâneo e conferencista religioso que tem causado
um grande impacto na vida de milhares de pessoas a quem ele se dirige. Seu
web site é www.benjaminblech.com.

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