Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
III
PLATÃO
Traduções de:
Jose' Cavalcante de Souza (O Banquete)
Jorge Paleikat e João Cruz Costa (Fédon, Sofista, Político)
1972
O Banquete ...................................................................................................... 7
Fedon ............................................................................................................... 61
Sofista .................................................................... 135
Político ..............................................................................................................205
O BANQUETE
Texto, tradução e notas
Para a presente tradução servi-me dos textos deJ. Bumet, da Bibliotheca Oxo-
niensis (Oxford) e de L. Robin, da coleção “Les Belles Lettres”. Como comecei
a trabalhar com o primeiro, serviu-me ele naturalmente de primeiro fundamento,
ao qual apliquei algumas lições do segundo, que é mais recente' e que oferece um
aparato crítico bem mais rico. O confronto dessas duas excelentes edições possi
bilitou-me mesmo a apresentação de um terceiro texto, que representa uma tenta
tiva de aproveitamento do que elas têm de melhor, e que espero poderá ser um
dia aproveitado numa edição bilingue. Na impossibilidade de o fazer agora, julgo
todavia que não será de todo fora de interesse, sobretudo para a apreciação da
tradução, prestar algum esclarecimento sobre a maneira como se preparam as
edições modernas dos textos gregos.
O estabelecimento de um texto grego antigo é um trabalho à primeira vista
altamente maçante, sem dúvida alguma árduo, mas afinal capaz de suscitar pro
fundo interesse e- mesmo empolgar o espírito de quem se disponha a abordá-lo.
Um editor moderno encontra-se em face de várias edições anteriores, de uma
profusão de manuscritos medievais, de alguns papiros e uma quantidade de cita
ções de autores antigos. Tudo isso perfaz a tradição do texto que ele se dispõe a
reapresentar. Numa extensão de dois mil e tantos anos, as vicissitudes da história
Jizeram-na seccionar-se em etapas com desenvolvimento próprio, sob o qual se
dissimulam os sinais de sua continuidade. Assim, ele tem que levar em conta
uma tradição antiga, uma tradição medieval e mesmo, podemos acrescentar,
uma tradição moderna. Cada uma delas reclama um tratamento especial, a se
efetuar todavia sempre em correlação com as demais.
Os documentos que lhe vão servir de base são os da tradição medieval, os
manuscritos. A quantidade destes é considerável para uma boa parte dos autores
gregos, mas seu valor é naturalmente desigual. Impõe-se um trabalho de seleção
e classificação em que se procure o liame perdido da tradição antiga, e em que
portanto o testemunho dos papiros e das citações dos autores antigos podem
muitas vezes ser de grande préstimo. Além desse cotejo precioso com os restos
1 De 1929, enquanto que a de Burnet é de 1901. (N. doT.)
10 _ PLATÃO
tradução nada tenha de excepcional, e que o seu autor, em muitos torneios de fra
ses e em muita escolha de palavra, tenha sido vítima da falta de disciplina e de
tradição que está porventura alegando nesse setor da nossa atividade intelectual.
No entanto, em alguma passagem ele terá talvez acertado, e esse parco resultado
poderá dar uma idéia do que seria uma reação especial nossa a um texto helêni-
co, que conhecemos geralmente através da sensibilidade e da elucubração do
francês, do inglês, do alemão, etc. Nossa língua tem necessariamente uma malea
bilidade especial, uma peculiar distribuição do vocabulário, uma maneira pró
pria de utilizar as imagens e de proceder às abstrações, e todos esses aspectos da
sua capacidade expressiva podem ser poderosamente estimulados pelo verda
deiro desafio que as qualidades de um texto grego muitas vezes representam para
uma tradução. A linguagem filosófica sobretudo, e em particular a linguagem de
Platão, oferece sob esse aspecto um vastíssimo campo para experiências dessa
natureza. Alguns exemplos do Banquete ilustram muito bem esse tipo especial de
dificuldades que o tradutor pode encontrar e para as quais ele acaba muitas vezes
recorrendo às notas explicativas. No entanto, se estas são inevitáveis numa tra
dução moderna, não é absolutamente inevitável que sejam as mesmas em todas
as línguas modernas. Fazer com que se manifestasse nesta tradução justamente a
diferença que acusa a reação própria e o caráter de nossa língua, eis o objetivo
sempre presente do tradutor.
Quanto às pequenas notas explicativas, dão elas naturalmente um rápido
esclarecimento sobre nomes e fatos da civilização helênica aparecidos no con
texto do Banquete, mas o que elas almejam sobretudo é ajudar à compreensão
desta obra platônica, ao mesmo tempo em seus trechos característicos e em seu
conjunto. Alguns anos de ensino de literatura grega levaram-me à curiosa cons
tatação da impaciência e desatenção com que uma inteligência moderna lê um
diálogo platônico. Quem quiser por si mesmo tirar a prova disso, procure a uma
primeira leitura resumir qualquer um desses diálogos, mesmo dos menores, e de
pois confira o seu resumo com uma segunda leitura. Foi a vontade de ajudar o
leitor moderno nesse ponto que inspirou a maioria das notas.
Finalmente devo assinalar que, não obstante a modéstia de conteúdo e de
proporções deste trabalho, eu não teria sido capaz de efetuá-lo sem a constante
orientação do Prof. Aubreton, cujas observações levaram-me a sucessivos reto
ques, particularmente na tradução e na confecção das notas. A ele, por conse
guinte, quero deixar expressos, com a minha admiração, os mais sinceros
agradecimentos.
J. C. de Souza
Apolodoro1 e um Companheiro
Deixai-o! É um hábito seu esse1 5: às dos copos que pelo fio de lã escorre1 7
vezes retira-se onde quer que se encon do mais cheio ao mais vazio. Se é e
tre, e fica parado. Virá logo porém, assim também a sabedoria, muito
segundo creio. Não o incomodeis por aprecio reclinar-me ao teu lado, pois
tanto, mas deixai-o. creio que de ti serei cumulado com
— Pois bem, que assim se faça, se é uma vasta e bela sabedoria. A minha
teu parecer — tornou Agatão. — E seria um tanto ordinária, ou mesmo
vocês, meninos, atendam aos convivas. duvidosa como um sonho, enquanto
Vocês bem servem o que lhes apraz, que a tua é brilhante e muito desenvol
quando ninguém os vigia, o que jamais vida, ela que de tua mocidade tão
fiz; agora portanto, como se também intensamente brilhou, tornando-se an
eu fosse por vocês convidado ao jan- teontem manifesta a mais de trinta mil
c tar, como estes outros, sirvam-nos a gregos que a testemunharam.
fim de que os louvemos. — Es um insolente, ó Sócrates —
— Depois disso — continuou Aris- disse Agatão. — Quanto a isso, logo
todemo — puseram-se a jantar, sem mais decidiremos eu e tu da nossa
que Sócrates entrasse. Agatão muitas sabedoria, tomando Dioniso por
vezes manda chamá-lo, mas o. amigo juiz18; agora porém, primeiro apron
não o deixa. Enfim ele chega, sem ter ta-te para o jantar.
demorado muito como era seu costu
— Depois disso — continuou Aris- m a
me, mas exatamente quando estavam
todemo — reclinou-se Sócrates e jan
no meio da refeição. Agatão, que se
tou como os outros; fizeram então
encontrava reclinado sozinho no últi
libações e, depois dos hinos ao deus e
mo leito1 6, exclama: — Aqui, Sócra-
dos ritos de costume, voltam-se à bebi
d tes! Reclina-te ao meu lado, a fim de
da. Pausânias então começa a falar
que ao teu contato desfrute eu da sábia
mais ou menos assim: — Bem, senho
idéia que te ocorreu em frente de casa.
res, qual o modo mais cômodo de
Pois é evidente que a encontraste, e
bebermos? Eu por mim digo-vos que
que a tens, pois não terias desistido
estou muito indisposto com a bebe
antes.
deira de ontem, e preciso tomar fôlego
Sócrates então senta-se e diz: •—■
— e creio que também a maioria dos
Seria bom, Agatão, se de tal natureza
senhores, pois estáveis lá; vêde então b
fosse a sabedoria que do mais cheio
de que modo poderiamos beber o mais
escorresse ao mais vazio, quando um
comodamente possível.
ao outro nos tocássemos, como a água
Aristófanes disse então: — É bom o
15 É curiosa essa explicação de um hábito so- que dizes, Pausânias, que de qualquer
crático a amigos de Sócrates, tanto mais que, modo arranjemos um meio de facilitar
um pouco abaixo (dl-2), Agatão revela estar
familiarizado com ele. Isso denuncia a ficção
platônica, e em particular a intenção de sugerir 17 Sem dúvida um processo de purificação da
desde já a. capacidade socrática para as longas água. Aristófanes (Vespas, 701-702) refere-se
concentrações de espírito, como a que Alcibía- ao mesmo processo, mas com relação ao óleo.
des contará em seu discurso (220c-d). (N. do T.) (N. do T.)
16 Os divãs do banquete se dispunham em for 18 Patrono dos concursos teatrais e deus do vi
ma de uma ferradura. No extremo esquerdo fi nho, Dioniso é apropriadamente mencionado
cava o anfitrião, que punha à sua direita o hós por Agatão como o árbitro natural da próxima
pede de honra. É o lugar que Agatão oferece a competição entre os convivas, no simpósio pro
Sócrates. (N. doT.) priamente dito. (N. do T.)
O BANQUETE 17
a bebida, pois também eu sou dos que mas bebendo cada um a seu bel-pra
ontem nela se afogaram. zer2 1.
Ouviu-os Erixímaco, o filho de Acú- — Como então — continuou Erixí
meno, e lhes disse: — Tendes razão! maco — é isso que se decide, beber
Mas de um de vós ainda preciso ouvir cada um quanto quiser, sem que nada
como se sente para resistir à bebida; seja forçado, o que sugiro então é que
não é, Agatão? mandemos embora a flautista que aca
— Absolutamente — disse este — bou de chegar, que ela vá flautear para
também eu não me sinto capaz. si mesma, se quiser, ou para as mulhe
c — Uma bela ocasião seria para res lá dentro; quanto a nós, com dis
nós, ao que paréce — continuou Erixí cursos devemos fazer nossa reunião
maco — para mim, para Aristodemo, hoje; e que discursos — eis o que, se
Fedro e os outros, se vós os mais capa vos apraz, desejo propor-vos.
zes de beber desistis agora; nós, com Todos então declaram que lhes 177 a
efeito, somos sempre incapazes; quan apraz e o convidam a fazer a proposi
to a Sócrates, eu o excetuo do que ção. Disse então Erixímaco: — O
digo, que é ele capaz de ambas as coi exórdio de meu discurso é como a
sas e se contentará com o que quer que Melanipa22 de Eurípides; pois não é
fizermos19. Ora, como nenhum dos minha, mas aqui de Fedro a história
presentes parece disposto a beber que vou dizer. Fedro, com efeito,
muito vinho, talvez, se a respeito do frequentemente me diz irritado: —
que é a embriaguez eu dissesse o que Não é estranho, Erixímaco, que para
d ela é, seria menos desagradável. Pois outros deuses haja hinos e peãs, feitos
para mim eis uma evidência que me pelos poetas, enquanto que ao Amor
veio da prática da medicina: é esse um. todavia, um deus tão venerável e tão
mal terrível para os homens, a embria grande, jamais um só dos poetas que
guez; e nem eu próprio desejaria beber tanto se engrandeceram fez sequer um
muito nem a outro eu o aconselharia, encômio23? Se queres, observa tam
sobretudo a quem está com ressaca da bém os bons sofistas: a Hércules e a
véspera. outros eles compõem louvores em
— Na verdade — exclamou a se prosa, como o excelente Pródico2 4 —
guir Fedro de Mirrinote20 — eu costu
mo dar-te atenção, principalmente em 21 Geralmente o uvpmotápyr^ , i.e., o chefe
tudo que dizes de medicina; e agora, se do simpósio, eleito pelos convivas, determinava
o programa da bebida, fixando inclusive o grau
bem decidirem, também estes o farão, de mistura do vinho a ser obrigatoriamente
c Ouvindo isso, concordam todos em ingerido. V. infra 213e, 9-10. (N. do T.)
22 Melanipa, a-Sábia, tragédia perdida de Eurí-
não passar a reunião embriagados, pedes, que também escreveu Melanipa, a Prisio
neira. Erixímaco refere-se ao verso ovk éqòç ò
19 A aaxppoovup socrática, i.e., o domínio dos pvdo<;, épifc prirpòt; iràpa (frag. 487 Wag
apetites e sentidos do corpo, resiste tanto à fa ner) : não é minha a história, mas de minha
diga e à dor como ao prazer (v. infra 220a), mãe. (N. do/T.)
tal como Platãb queria que fossem os guardiães 23 Isto é, uma composição poética, consagrada
da sua cidade ideal. V. República III, 413d-e. exclusivamente ao louvor de um deus ou de um
(N. do T.) herói. Um elogio poético belíssimo, embora no
20 Um dos numerosos demos (no tempo de espírito da tragédia, encontra-se no famoso 3<?
Heródoto 100), i.e., distritos em que se subdi estásimo da Antígona de Sófocles, 783-800.
vidia a população de Ática. (N. doT.) (N. doT.)
18 PLATAO
Amor. E Parmênides diz da sua ori resse de se fazer uma cidade ou uma
gem expedição de amantes e de amados,
não haveria melhor maneira de a cons
tituírem senão afastando-se eles de
bem antes de todos os deuses pensou22 tudo que é feio e porfiando entre si no
em Amor. apreço à honra; e quando lutassem um 179 a
d não sendo um só, é mais acertado pri res3 7 que os jovens, e depois o que
meiro dizer qual o que se deve elogiar. neles amam é mais o corpo que a alma,
Tentarei eu portanto corrigir este e ainda dos mais desprovidos de inteli
senão, e primeiro dizer qual o Amor gência, tendo em mira apenas o efetuar
que se deve elogiar, depois fazer um o ato, sem se preocupar se é decente
elogio digno do deus. Todos, com efei mente ou não; daí resulta então que
to, sabemos que sem Amor não- hâ elès fazem o que lhes ocorre, tanto o c
Afrodite. Se portanto uma só fosse que é bom como o seu contrário. Tra
esta, um só seria o Amor; como porém ta-se com efeito do amor proveniente
são duas, é forçoso que dois sejam da deusa que é mais jovem que a outra
também os Amores. E como não são e que em sua geração participa da
duas deusas? Uma, a mais velha sem fêmea e do macho. O outro porém é o
dúvida, não tem mãe e é filha de da Urânia, que primeiramente não par
ticipa da fêmea mas só do macho — e
Urano3 6, e a ela é que chamamos de
é este o amor aos jovens3 8 — e depois
Urânia, a Celestial; a mais nova, filha
e de Zeus e de Dione, chamamo-la de é a mais velha39, isenta de violência;
Pandêmia, a Popular. É forçoso então daí então é que se voltam ao que é
que também o Amor, coadjuvante de másculo os inspirados, deste amor,
afeiçoando-se ao que é de natureza
uma, se chame corretamente Pandê-
mio, o Popular, e o outro Urânio, o mais forte e que tem mais inteligência.
Celestial. Por conseguinte, é sem dúvi E ainda, no próprio amor aos jovens
da preciso louvar todos os deuses, mas poder-se-iam reconhecer os que estão d
movidos exclusivamente por esse tipo
o dom que a um e a outro coube deve- de amor 40; não amam eles, com efeito,
se procurar dizer. Toda ação, com efei os meninos, mas os que já começam a
to, é assim que se apresenta: em si ter juízo, o que se dá quando lhes vêm
mesma, enquanto simplesmente prati- chegando as barbas. Estão dispostos,
i8i a cada, nem é bela nem feia. Por exem penso eu, os que começam desse
plo, o que agora nós fazemos, beber, ponto, a amar para acompanhar toda a
cantar, conversar, nada disso em si é vida e viver em- comum, e não a enga
belo, mas é na ação, na maneira como nar e, depois de tomar o jovem em sua
é feito, que resulta tal; o que é bela e inocência e ludibriá-lo, partir à procu
corretamente feito fica belo, o que. não ra de outro. Seria preciso haver uma lei
o é fica feio. Assim é que o amar e o proibindo que se amassem os meninos, e
Amor não é todo ele belo e digno de a fim de que não se perdesse na incer
ser louvado, mas apenas o que leva a teza tanto esforço; pois é na verdade
amar belamente. incerto o destino dos meninos, a que
Ora pois, o Amor de Afrodite Pan- ponto do vício ou dá virtude eles che-
b dêmia é realmente popular e faz o que 37 Confrontar com 208 e, onde Sócrates encon
lhe ocorre; é a ele que os homens vul tra o grande sentido do amor normal à mulher,
gares amam. E amam tais pessoas, aqui especiosamente confundido como o tipo
inferior do amor. (N. doT.)
primeiramente não menos as mulhe- 38 Muitos editores consideram esta fráse uma
glosa. (N. doT.)
36 Hesíodo, Teogonia, 188-206. Urano foi mu 39 Na velhice .domina a razão. Daí é que os
tilado por seu filho Zeus, e o esperma do seu amantes desse amor procuram os que já come
membro viril, atirado ao mar, espumou sobre çam a ter juízo . . . (N. do T.)
as águas, donde se formou Afrodite. Em Ho 40 Confrontar com 210a-b. A progressão do
mero, no entanto, essa deusa é filha de Zeus, amor, segundo Diotima, exige que o amante
e de Dione (Ilíada, V, 370). (N. doT.) largue o amor violento de um só. (N. do T.)
22 PLATÃO
gam em seu corpo e sua alma. Ora, se veita aos seus governantes que nasçam
os bons amantes a si mesmos se grandes idéias entre os governados,
impõem voluntariamente esta lei, de nem amizades e associações inabalá
via-se também a estes amantes popula veis, o que justamente, mais do que
res obrigá-los a lei semelhante, assim qualquer outra coisa, costuma o amor
como, com as mulheres de condição inspirar. Por experiência aprenderam
livre41, obrigamo-las na medida do isto os tiranos4 4 desta cidade; pois foi
possível a não manter relações amoro- o amor de Aristogitão e a amizade de
182 a sas. São estes, com efeito, os que justa Harmòdio que, afirmando-se, destruí
mente criaram o descrédito, a ponto de ram-lhes o poder. Assim, onde se esta
alguns ousarem dizer que é vergonhoso beleceu que é feio o aquiescer aos d
o aquiescer aos amantes; e assim o amantes, é por defeito dos que o esta
dizem porque são estes os que eles beleceram que assim fica, graças à
consideram, vendo o seu despropósito ambição dos governantes e à covardia
e desregramento, pois não é sem dúvi dos governados; e onde simplesmente
da quando feito com moderação e se determinou que é belo, foi em conse
norma que um ato, seja qual for, incor quência. da inércia dos que assim
rería em justa censura. estabeleceram. Aqui porém, muito
Aliás, a lei do amor nas demais mais bela que estas é a norma que se
cidades é fácil de entender, pois é sim instituiu e, como eu disse, não é fácil
ples a sua determinação; aqui4 2 porém de entender. A quem, com efeito, tenha
b ela é complexa. Em Élida, com efeito, considerado 4 5 que se diz Ser mais belo
na Lacedemônia, na Beócia, e onde amar claramente que às ocultas, e
não se saiba falar, simplesmente se sobretudo os mais nobres e os melho
estabeleceu que é belo aquiescer aos res, embora mais feios que outros; que
amantes, e ninguém, jovem ou velho, por outro lado o encorajamento dado
diria que é feio, a fim de não terem difi por todos aos amantes é extraordinário
culdades, creio eu, em tentativas de e não como se estivesse a fazer algum
persuadir os jovens com a palavra, ato feio, e se fez ele uma conquista pa
incapazes que são de falar; na Jônia, rece belo o seu ato, se não, parece feio; e
porém, e em muitas outras partes é e ainda, que em sua tentativa de con
tido como feio, por quantos habitam quista deu a lei ao amante a possibili
sob a influência dos bárbaros. Entre os dade de ser louvado na prática de atos
c. bárbaros, com efeito, por causa das i
44 Hípias e Hiparco, filhos de Pisístrato. Numa
tiranias, é uma coisa feia esse amor, primeira conspiração em 514, ao que parece
por -motivos pessoais, Hiparco foi assassinado,
justamente como o da sabedoria e da enquanto Armódio morria na luta e seu' com
ginástica43; é que, imagino, não apro- panheiro Aristogitão era condenado à morte.
Quatro anos depois Hípias perdia o poder, víti
41 Isto é, não escravas. (N. do T.) ma de uma nova conspiração (V. Tucídides, VI,
42 Os manuscritos trazem a expressão “e na 54). (N.doT.)
Lacedemônia” depois de . “aqui”, o que não con 45 Essa subordinada, iniciando um longo perío
corda com a notória tendência dos lacedemô- do, não tem seqüência lógica com a sua princi
nios ao homossexualismo. (N. doT.) pal, formulada em 183c (Poder-se-ia pensar
43 Observar a expressão grega correspondente que. . .). Mesmo à custa da clareza, preferimos
" ( tpiKoaoipia. m ri iptXoyu^vaaía ) e lembrar conservar a mesma articulação ampla e irregu
que os ginásios eram dos locais prediletos de lar, a fim de permitir uma melhor apreciação
Sócrates (cf. a introd. do Cármides, Lísis, La- do estilo do discurso, geralmente apontado
ques/etc.). (N. doT.) como uma paródia de Isócrates. (N. do T.)
O BANQUETE 23
sional. Pois de novo revém a mesma cujo conhecimento nas translações dos
idéia, que aos homens moderados, e astros e nas estações do ano chama-se
para que mais moderados se tomem os astronomia. E ainda mais, não só
que ainda não sejam, deve-se aquiescer todos os sacrifícios, como também os
e e conservar o seu amor, que é o belo, o casos a que preside a arte divinatória
celestial, o Amor da musa Urânia; o — e estes são os que constituem o
outro, o de Polímnia61, é o popular, comércio recíproco dos deuses e dos <=
que com precaução se deve trazer homens — sobre nada mais versam
àqueles a quem se traz, a fim de que se senão sobre a conservação e a cura62
colha o seu prazer sem que nenhuma do Amor. Toda impiedade, com efeito,
intemperança ele suscite, tal como em costuma advir, se ao Amor moderado
nossa arte é uma importante tarefa o não se aquiesce nem se lhe tributa
servir-se convenientemente dos apetites honra e respeito em toda ação, e sim
da arte culinária, de modo a que sem ao outro, tanto no tocante aos pais,
doença se colha o seu prazer. Tanto na vivos e mortos, quanto aos deuses; e
música então, como na medicina e em foi nisso que se assinou à arte divina
todas as outras artes, humanas e divi tória o exame dos amores e sua cura, e
nas, na medida do possível, deve-se assim é que por sua vez é a arte divina
conservar um e outro amor; ambos tória produtora63 de amizade entre
188 a com efeito nelas se encontram. De deuses e homens, graças ao conheci- d
fato, até a constituição das estações do mento de todas as manifestações de
ano está repleta desses dois amores, e amor que, entre os homens, se orien
quando se tomam de um moderado tam para a justiça divina e a piedade.
amor um pelo outro os contrários de Assim, múltiplo e grande, ou me
que há pouco eu falava, o quente e o lhor, universal é o poder que em geral
frio, o seco e o úmido, e adquirem uma tem todo o Amor, mas aquele que em
harmonia e uma mistura razoável, che tomo do que é bom se consuma com
gam trazendo bonança e saúde aos sabedoria e justiça, entre nós como
homens, aos outros animais e às plan entre os deuses, é o que tem o máximo
tas, e nenhuma ofensa fazem; quando
poder e toda felicidade nos prepara,
porém é o Amor casado com a violên
pondo-nos em condições de não só
cia que se toma mais forte nas estações
entre nós mantermos convívio e amiza
b do ano, muitos estragos ele faz, e ofen
de, como também com os que são mais
sas. Tanto as pestes, com efeito, costu
poderosos que nós, os deuses. Em e
mam resultar de tais causas, como
conclusão, talvez também eu, lon-'
também muitas e várias doenças nos
animais como nas plantas; geadas, vando o Amor, muita coisa estou dei
granizos e alforras resultam, com efei xando de lado, não todavia por minha
to, do excesso e da intemperança vontade. Mas se algo omiti, é tua tare
fa, ó Aristófanes, completar; ou se um
mútua de tais manifestações do amor,
outro modo tens em mente de elogiar o
61 Padroeira da poesia lírica. Ao contrário de
Pausânias, Erixímaco associou o amor às Mu deus, elogia-o, uma vez que o teu solu
sas e não a Afrodite, o que está de acordo com ço já o fizeste cessar.”
o caráter que seu discur.so lhe empresta: o de
uma força de aglutinação universal, suscetível 62 A assimilação das outras artes à medicina
de ser tratada pela arte. Em lugar de Afrodite tornou-se tão completa que o Amor é conside
Pandêmia, ele imaginou a Musa da poesia líri rado como uma afecção como as outras doen
ca, a poesia dos sentimentos pessoais e das pai ças. (N. doT.)
xões. (N. do T.) 63 v. supra p. 26', nota 59.
28 PLATAO
189 a Tendo então tomado a palavra, con sacrifícios lhe fariam, não como agora
tinuou Aristodemo, disse Aristófanes: que nada disso há em sua honra, quan
— Bem que cessou! Não todavia, é do mais que tudo deve haver. Ê ele d
verdade, antes de lhe ter eu aplicado o com efeito o deus mais amigo do
espirro, a ponto de me admirar que a homem, protetor e médico desses
boa ordem do corpo requeira tais ruí males, de cuja cura dependería sem dú
dos e comichões como é o espirro; pois vida a maior felicidade para o gênero
logo o soluço parou, quando lhe apli- humano. Tentarei eu portanto iniciar-
quei o espirro. vos 6 5 em seu poder, e vós o ensinareis
E Erixímaco lhe disse: — Meu bom aos outros. Mas é preciso primeiro
b Aristófanes, vê o que fazes. Estás a aprenderdes a natureza humana e as
fazer graça, quando vais falar, e me suas vicissitudes. Com efeito, nossa
forças a vigiar o teu discurso, se por natureza outrora não era a mesma que
ventura vais dizer algo risível, quando a de agora, mas diferente. Em primeiro
tè é permitido falar em paz. lugar, três eram os gêneros da humani
Aristófanes riu e retomou: -—■ Tens dade, não dois como agora, o mascu
razão, Erixímaco! Fique-me o dito lino e o feminino, mas também havia a e
pelo não dito. Mas não me vigies, que mais um terceiro, comum a estes dois,
eu receio, a respeito do que vai ser do qual resta agora um nome, desapa
dito, que seja não engraçado o que vou
recida a coisa; andrógino era então um
dizer — pois isso seria proveitoso e
gênero distinto, tanto na forma como
próprio da nossa musa — mas ridícu-.
no nome comum aos dois, ao mascu
Io64.
— Pois sim! ■—■ disse o outro — lino e ao feminino, enquanto agora
lançada a tua seta, Aristófanes, pensas nada mais é que um nome posto em
em fugir; mas toma cuidado e fala desonra. Depois, inteiriça6 6 era a
c como se fosses prestar contas. Talvez forma de cada homem, com o dorso
todavia, se bem me parecer, eu te redondo, os flancos em círculo; quatro
largarei. mãos ele tinha, e as pernas o mesmo
“Na verdade, Erixímaco, disse Aris tanto das mãos, dois rostos sobre um m a
tófanes, é de outro modo que tenho a pescoço torneado, semelhantes em
intenção de falar, diferente do teu e do tudo; mas a cabeça sobre os dois ros
de Pausânias. Com efeito, parece-me tos opostos um ao outro era uma só, e
os homens absplutamente não terem quatro orelhas, dois sexos, e tudo o
percebido o poder do amor, que se o mais como desses exemplos se poderia
percebessem, os maiores templos e supor. E quanto ao seu andar,-era tam
altares lhe preparariam, e os maiores bém ereto como agora, em qualquer
64 De fato seu discurso é engraçadíssimo. A pre
das duas direções que quisesse; mas .
caução de Aristófanes faz lembrar o tom e a quando se lançavam a uma rápida cor-
função de uma parábase, na comédia antiga,
onde o poeta, pela voz do coro, explica-se a 65 A palavra é própria da linguagem dos Misté
respeito de sua peça. V. Os Cavaleiros, 515- rios. Aristófanes não vai explicar as virtudes do
516, e 541-545, onde se sente a mesma nota de Amor, como os dois oradores precedentes, mas
prudência que aqui. Além desse traço de veros tentará o acesso direto à sua natureza, como
similhança dramática, Platão estaria insinuan numa iniciação. (N. doT.)
do uma alusão à insuficiência da arte de Aris 66 Cf. Empédocles, fr. 62, vs. 4 (Diels).oàÀoç?uetç
tófanes, que não tem domínio de seus próprios pèv npãxra rínoc xdovòç èÇavéreXXov : primeiro,
recursos, dependente que é de uma inspiração. tipos inteiriços surgiram da terra. (N. do
(N. do T.) T.)
O BANQUETE 29
compaixão, Zeus consegue outro expe uma mulher não dirigem muito sua
diente, e lhes muda o sexo para a frente atenção aos homens, mas antes estão
— pois até então eles o tinham para voltadas para as mulheres e as amigui-
c fora, e geravam e reproduziam não um nhas provêm deste tipo. E todos os que
no outro, mas na terra69, como as são corte de um macho perseguem o
cigarras; pondo assim o sexo na frente macho, e enquanto são crianças, como
deles fez com que através dele se cortículos do macho, gostam dos ho
processasse a geração um no outro, o mens e se comprazem em deitar-se ma
macho na fêmea, pelo seguinte, para com os homens e a eles se enlaçar, e
que no enlace, se fosse um homem a são estes os melhores meninos e
encontrar uma mulher, que ao mesmo adolescentes, os de natural mais cora
tempo gerassem e se fosse constituindo joso. Dizem alguns, é verdade, que eles
a raça, mas se fosse um homem com são despudorados, mas estão mentin
um homem, que pelo menos houvesse do; pois não é por despudor que fazem
saciedade em seu convívio e pudessem isso, mas por audácia, coragem e
repousar, voltar ao trabalho e ocupar- masculinidade, porque acolhem o que
d se do resto da vida. Ê então de há. tanto lhes é semelhante. Uma prova disso é
tempo que o amor de um pelo outro que, uma vez amadurecidos, são os
está implantado nos homens, restau únicos que chegam a ser homens para
rador da nossa antiga natureza, em sua a política71, os que são desse tipo. E
tentativa de fazer um só de dois e de quando se tomam homens, são os jo- b
curar a natureza humana. Cada um de vens que eles amam, e a casamentos e
nós portanto é uma téssera comple procriação naturalmente eles não lhes
mentar 7 0 de um homem, porque corta
dão atenção, embora por lei a isso
do como os linguados, de um só em
sejam forçados, mas se contentam em
dois; e procura então cada um o seu
próprio complemento. Por conse passar a vida um com o outro, soltei
ros. Assim é que, em geral, tal tipo tor
guinte, todos os homens que são um
na-se amante e amigo do amante, por
corte do tipo comum, o que então se
que está sempre acolhendo o que lhe é
chamava andrógino, gostam de mulhe
res, e a maioria dos adultérios provém aparentado. Quando então se encontra
com aquele mesmo que é a sua própria
e deste tipo, assim como também todas
metade, tanto o amante do jovem
as- mulheres que gostam de homens e
são adúlteras, é deste tipo que provêm. como qualquer outro, então extraordi- c
Todas as mulheres que são o corte de nárias são as emoções que sentem, de
amizade, intimidade e amor, a ponto
69 No mito do Político (271a), Platão refere-se de não quererem por assim dizer sepa-
a essa geração da terra, e Aristófanes nas Nu
vens (vs. 853) alude sem dúvida a essa idéja. rar-se um do outro nem por um peque
(N. doT.) no momento. E os que continuam um
70 No grego aúpjSoXop (de aupjSáXXety , juntar,
fazer conjunto). Era um cubo ou-um osso que com o outro pela vida afora são estes,
se repartia entre dois hóspedes, como sinal de
um compromisso. Transmitindo-se aos descen 71A sátira mordaz aos homossexuais comple
dentes de ambos, podiam estes conferir os seus ta-se habilmente com a sua identificação com
“símbolos” e ter assim a prova de antigos lia- os políticos. Comparar essa passagem com 184
mes de hospitalidade. (N. doT.) a-7. (N. doT.)
O BANQUETE 31
os quais nem saberíam dizer o que que tanto ao desejo e procura do todo que
rem que lhes venha da parte de um ao se dá o nome de amor. Anteriormente,
outro. A ninguém com efeito parecería como estou dizendo, nós éramos um
que se trata de união sexual72, e que é só, e agora é que, por causa da nossa 193 a
porventura em vista disso que um injustiça, fomos separados pelo deus, e
gosta da companhia do outro assim como o foram os árcades pelos lacede-
com tanto interesse; ao contrário, que mônios 7 4; é de temer então, se não for
d uma coisa quer a alma de cada um, é mos moderados para com os deuses,
evidente, a qual coisa ela não pode que de novo sejamos fendidos em dois,
dizer, mas adivinha o que quer e o in e perambulemos tais quais os que nas
dica por enigmas. Se diante deles, dei esteias estão talhados de perfil, serra
tados no mesmo leito, surgisse Hefes- dos, na linha do nariz, como os ossos
to73 e com seus instrumentos lhes que se fendem7 5. Pois bem, em vista
perguntasse: Que é que quereis, ó dessas eventualidades todo homem
homens, ter um do outro?, e se, diante deve a todos exortar à piedade para
do seu embaraço, de novo lhes pergun com os deuses, a fim de que evitemos
tasse: Porventura é isso que desejais, uma e alcancemos a outra, na medida b
ficardes no mesmo lugar o mais possí em que o Amor nos dirige e comanda.
vel um para o outro, de modo que nem Que ninguém em sua ação se lhe opo
de noite nem de dia vos separeis um do nha — e se opõe todo aquele que aos
c outro? Pois se é isso que desejais, deuses se toma odioso — pois amigos
quero fundir-vos e forjar-vos numa do deus e com ele reconciliados desco
• mesma pessoa, de modo que de dois briremos e conseguiremos o nosso pró
vos tomeis um só e, enquanto viverdes, prio amado, o que agora poucos
como uma só pessoa, possais viver fazem. E que não me suspeite Erixí
ambos em comum, e depois que mor maco, fazendo comédia de meu discur
rerdes, lá no Hades, em vez de dois ser so, que é a Pausânias e Agatão que me
um só, mortos os dois numa morte estou referindo — talvez também estes c
comum; mas vede se é isso o vosso se encontrem no número desses e são
amor, e se vos contentais se conse ambos de natureza máscula — mas eu
guirdes isso. Depois de ouvir essas no entanto estou dizendo a respeito de
palavras, sabemos que nem um só diria todos, homens e mulheres, que é assim
que não, ou demonstraria querer outra que nossa raça se tornaria feliz, se ple
coisa, mas simplesmente pensaria ter namente realizássemos o amor, e o seu
ouvido o que há muito estava desejan próprio amado cada um encontrasse,
do, sim, unir-se e confundir-se com o tomado à sua primitiva natureza. E se
amado e de dois ficarem um só. O mo isso é o melhor, é forçoso que dos
tivo disso é que nossa antiga natureza
era assim e nós éramos um todo; e por- 74 Em 385 os lacedemônios destruíram a cida
de de Mantinéia, na Arcádia, e dispersaram
72 Observar a facilidade com que o discurso seus habitantes por várias povoações (Xenofon-
muda de tom, atingindo aqui um lirismo saudá te, V, 2, 1). É o que os gregos chamavam de
vel que permite a eclosão de uma idéia impor ôioc/ítupóç , o contrário de uma colonização,
tante nessa sucessão dialética dos discursos: a isto é, um ovvoiK.i.anó<; .Notar que o diálogo se
de que o sentimento amoroso não é exclusiva passa em 416 (v. supra p. 14 nota 7). O ana
mente sexual. (N. doT.) cronismo é gritante. (N. doT.)
73 O deus do fogo e da metalurgia, o Vulcano 75 Justamente um dos tipos ( Xtaiiai ) dos “sím
dos latinos. (N. doT.) bolos”, referidos acima, p.30, n .70. (N. do T.)
32 PLATÃO
casos atuais o que mais se lhe avizinha que eu me alvoroce com a idéia de que
é o melhor, e é este o conseguir um o público está em grande expectativa
bem-amado de natureza conforme ao de que eu vá falar bem.
d seu gosto; e se disso fôssemos glorifi -- Desmemoriado eu seria, Agatão
car o deus responsável, merecidamente tomou-lhe Sócrates — se depois de b
glorificaríamos o Amor, que agora nos ver tua -coragem e sobranceria, quando
é de máxima utilidade, levando-nos ao subias ao estrado com os atores e
• que nos é familiar, e que para o futuro encaraste de frente uma tão numerosa
nós dá ás maiores esperanças, se for platéia, no momento em que ias apre
mos piedosos para com òs deuses, de sentar uma peça tua, sem de modo
restabelecer-nos em nossa primitiva algum te teres abalado, fosse eu agora
natureza e, depois de nos curar, fazer- imaginar que tu te alvoroçarias por
nos bem-aventurados e felizes. causa delíós, tão poucos.
Eis, Erixímaco, disse ele, o meu dis — O quê, Sócrates! — exclamou
curso sobre o' Amor, diferente do teu. Agatão; — não me julgas sem dúvida
Conforme eu te pedi, não faças comé tão cheio de teatro que ignore que, a
dia dele, a fim de que possamos ouvir quem tem juízo, poucos sensatos são
e também os restantes, que dirá cada um mais temíveis que uma multidão insen
deles, ou antes cada um dos dois; pois sata !
restam Agatão e Sócrates.” — Realmente eu não faria bem, c
— Bem, eu te obedecerei — tor Agatão — tomou-lhe Sócrates — se a
nou-lhe Erixímaco; ■—• e com efeito teu teu respeito pensasse eu em alguma
discurso foi para mim de um agradável deselegância; ao contrário, bem sei
teor. E se por mim mesmo eu não sou que, se te encontrasses com pessoas
besse* que Sócrates e Agatão são terrí que considerasses sábias, mais te preo
veis nas questões do amor, muito teme cuparias com elas do que com a multi
ría que sehtiSsem falta de argumentos, dão. No entanto, é de temer que estas
pelo muito e Variado "que se disse; de não sejamos nós — pois nós estáva
fato porém eu corifió neles. mos lá e éramos da multidão — mas
a Sócrates então disse: — É que foi se fosse com outros que te encontras
bela, ó Erixímaco7 6, tua competição! ses, com sábios, sem dúvida tu te
Se porém ficasses na situação em-quê envergonharias deles, se pensasses
agora estou,' ou melhor, em que estarei, estar talvez cometendo algum ato que
depois que Agatão tiver falado, bem fosse vergonhoso; senão, que dizes?
grande seria o teu temor, e em tudo por
— É verdade o que dizes — res
tudo estarias como eu agora.
pondeu-lhe. i
— Enfeitiçar é o-que me queres, ó
— E dá multidão não te envergo
Sócrates, disse-lhe Agatão, a fim de
nharias, se pensasses estar fazendo
76 A observação de Sócrates é fina. Comentan algo vergonhoso 7 7 ?
do o discurso de Aristófanes, Erixímaco expres
sava seu receio de que os dois últimos concor 77 Esse breve diálogo, aqui interrompido, tem
rentes tivessem dificuldades “pelo muito e va um duplo efeito dramático: serve de intervalo
riado que se disse’’ (Isto é, não apenas Aristó entre os discursos de dois poetas, tão diferentes
fanes). Sócrates o ajuda então nesse pequeno de método e de espírito, e constitui como um
detalhe e insiste nà sua contribuição. Ao mes prelúdio ao discurso especial de Sócrates, que
mo tempo ele tem uma ótima deixa para diri vai começar, ao contrário dos outros, por um
gir-se à competência de Agatão. (N. doT.) diálogo. (N. doT.)
I
O ÊANQUETE 33
E eis que Fedro, disse Aristodenio, Amor, se é lícito dizê-lo sem incorrer
interrompeu e exclamou: — Meu caro em vingança80, o mais feliz, porque é
Agatão, se responderes a Sócrates, o mais belo deles e o melhor. Ora, ele é
nada mais lhe importará do programa, o mais belõ por ser tal como se segue.
como quer que ande e o que quer que Primeiramerite; é o mais jovem dos
resulte, contanto que ele tenha com deuses, ó Fedro. E uma grande prova b
quem dialogue, sobretudo se é com um do que digo ele próprio fornece, quan
belo. Eu por mim é sem dúvida com do em fuga foge da velhice, que é rápi
prazer que ouço Sócrates a conversar, da evidentemente, è que em tddtí caso;
mas é-me forçoso cuidar do elogio ao mais rápida do que devia, p'ára nós se
Amor e recolher de cada um de vós o encaminha. De sua natureza Amor a
seu discurso; pague 7 8 então cada um o odeia e nem de longe se lhe aprbxima.
que deve ao deus e assim já pode Com os jovens ele está sempre eih seu
conversar. coiivívio e ao seu lado; está certo, com
e — Muito bem, Fedro! — excla efeito, o antigo ditado, que o seme
mou Agatão — nada me impede de lhante sempre do semelhante se aproxi
falar, pois com Sócrates depois eu ma. Ora, eu, embora com Fedro con
poderei ainda conversar muitas vezes. corde em muitos outros pontos, nisso
“Eu então quero primeiro dizer não concordo, em que Amor seja mais
como devo falar, e depois falar. Pare antigo que Crono e Japeto,. mas ao c
ce-me com efeito que todos os que contrário afirmo ser éle o mais novo
antes falaram, não era o deus que elo dos deuses e sempre jovem, e que as
giavam, mas os homens que felici questões entre os deuses, de que falam
tavam pelos bens de que o deus lhes é Hesíodo81 e Parmênides, foi por Ne
195 a causador; qual porém é a sua natureza, cessidade82 e não por Amor que ocor
em virtude da qual ele fez tais dons, reram, se é verdade o que aqueles
ninguém o disse. Ora, a única maneira diziam; não haveria, com efeito, muti
correta de qualquer elogio a qualquer lações nem prisões de uns pelos outros,
um é, no discurso, explicar em virtude e muitas outras violências, se Amor
de que natureza vem a ser causa de tais estivesse entre eles, mas amizade e paz,
efeitos aquele de quem se estiver falan como agora, desde que Amor entre os
do79. Assim então com o Amor, é deuses reina. Por conseguinte, jovem
justo que também nós primeiro o lou ele é, mas além de jovem ele é delica
vemos em sua natureza, tal qual ele é, e do; falta-lhe porém um poeta como era
depois os seus dons. Digo eu então que Homero para mostrar sua delicadeza
de todos os deuses, que são felizes, é o de deus. Homero afirma, com efeito, d
78 Como um bom “simposiarca”, Fedro zela 80 Cf. 180e-3. As palavras e os atos humanos
pelo bom andamento do programa estabelecido. podem suscitar a justiça vingativa (neniesis) dos
V. supra p.17 , n. 21. (N. do T.) deuses. (N. do T.)
79 Sócrates louvará mais adiante a excelência 81 Cf. Teogonia, passim. (N.doT.)
desse princípio, que representa uma etapa deci 82 É talvez idéia de Parmênides. O que este
siva na progressão dos discursos. Com efeito, escreveu sobre os deuses devia estar na parte
embora não vá acertar na definição da natu do seu poema referente às “opiniões” dos mor
reza do Amor, Agatão traz à baila o problema, tais. Segundo Aécio II, 7, 1. (Díeis 28, A, 37),
possibilitando assim a refutação socrática (189 ele punha lustiça e Necessidade hó nleip de Va-
d-204c) e a definição platônica (201c-204a). iãs esferas concêntricas, cómb bausa de mõvi-
(N. do T.) lento e geração. (N.doT.)
34 PLATÃO
que Ate é uma deusa, e delicada — parte a parte há guerra. Quanto à bele
que os seus pés em todo caso são deli za da sua tez, o seu viver entre flores
cados — quando diz: bem o atesta; pois no que não floresce,
seus pés são delicados; pois não como no que ja floresceu, corpo, alma b
[sobre o sólo ou o que quer que seja, não se assenta
se move, mas sobre as cabeças dos o Amor, mas onde houver lugar bem
[homens ela anda83. florido e bem perfumado, aí ele se
Assim, bela me parece a prova com assenta e fica.
que Homero revela a delicadeza da Sobre a beleza do deus já é isso bas
deusa: não anda ela sobre o que é tante, e no entanto ainda muita coisa
e duro, mas sobre o que é mole. Pois a resta; sobre a virtude de Amor devo
mesma prova também nós utilizaremos depois disso falar, principalmente que
a respeito do Amor, de que ele é delica Amor não comete nem sofre injustiça,
do. Não é com efeito sobre a terra que nem de um deus ou contra um deus,
ele anda, nem sobre cabeças, que não nem de um homem ou contra um
são lá tão moles, mas no que há de homem8 5. À força, com efeito, nem ele
mais brando entre os seres é onde ele cede, se algo cede — pois violência c
anda e reside. Nos costumes, nas não toca em Amor — nem, quando
almas de’ deuses e de homens ele fez age, age, pois todo homem de bom
sua morada, e ainda, não indistinta- grado serve em tudo ao Amor, e o que
mente em todas as almas, mas da que de bom grado reconhece uma parte a
encontre com um costume rude ele se outra, dizem “as leis, rainhas da cida
afasta, e na que o tenha delicado ele de”8 6, é justo. Além da justiça, da má
habita. Estando assim sempre em con xima temperança ele compartilha. Ê
tato, nos pés como em tudo, com os com efeito a temperança, reconhecida
que, entre os seres mais brandos, são mente, o domínio sobre prazeres e
os mais brandos, necessariamente é ele desejos; ora, o Amor, nenhum prazer
196 o- o que há de mais delicado. Ê então o lhe é predominante; e se inferiores, se
mais jovem, o mais delicado, e além riam dominados por Amor, e ele os
dessas qualidades, sua constituição é dominaria, e dominando prazeres e
úmida. Pois não seria ele capaz de se desejos seria o Amor, excepcional
amoldar de todo jeito, nem de por toda mente temperante. E também quanto à
alma primeiramente entrar, desperce coragem, ao Amor “nem Ares se lhe
bido, e depois sair, se fosse ele seco8 4. opõe”8 7. Com efeito, a Amor não pega d
De sua constituição acomodada e Ares, mas Amor a Ares — o de Afro
úmida é uma grande prova sua bela dite, segundo a lenda — e é mais forte
compleição, o que excepcionalmente o que pega do que é pegado: domi
todos reconhecem ter o Amor; é que nando assim o mais corajoso de todos,
entre deformidade e amor sempre de
85 Como a seguinte, essa frase, com seus' para-
83 Ilíada, XIX, 92. Ate é a personificação da lelismos exagerados, é típica do maneirismo do
fatalidade. (N. do T.) estilo retórico de Agatão. (N. doT.)
84 Sendo úmido, mole, Amor cede à pressão, 86 Expressão do retórico Alcidamas, aluno de
adapta-se, modela-se; ao contrário, sendo seco, Górgias, citado por Aristóteles, Ret., 1406a.
não se adapta e não adquire forma convenien (N. doT.)
te. O argumento é de uma fantasia extrava 87Frag. de um Tiestes de Sófocles: Hpòç tt/p
gante, de acordo com o caráter requintado de 'ApávKpp oúS' ”Apr?ç àpía-arai (fr. 235 Nau-
Agatão. (N. doT.) ck2). (N. doT.)
O BANQUETE 35
mos que aquele de quem este deus se estranheza e nos enche de familiari
torna mestre acaba célebre e ilustre, dade, promovendo todas as reuniões
enquanto aquele em quem Amor não deste tipo, para mutuamente nos en
toque, acaba obscuro? E quanto à arte contrarmos, tornando-se nosso guia
do arqueiro, à medicina, à adivinha nas festas, nos coros, nos sacrifícios;
ção, inventou-as Apoio guiado pelo de incutindo brandura e excluindo rude
sejo e pelo amor, de modo que também za; pródigo de bem-querer e incapaz de
Apoio seria discípulo do Amor. Assim mal-querer; propício e bom; contem
como também as Musas nas belas-ar- plado pelos sábios e admirado pelos
tes, Hefesto na metalurgia, Atena na deuses; invejado pelos desafortunados
tecelagem, e Zeus na arte “de governar e conquistado pelos afortunados; do
os deuses e os,homens”91. E daí é que luxo, do requinte, do brilho, da’s gra
até as questões dos deuses foram regra ças, do ardor e da paixão, pai; dili
das, quando entre eles surgiu Amor, gente com o que é bom e negligente
88 MouatKÒP S’ òtpa "Epcoç otSáaKei, xav •com o que é mau; no labor, no temor, <
fyiouooç p vo irpiv Eur., Stenobeia (fr. 663 no ardor da paixão, no teor da expres
Nauck2). (N. do T.)
89 O grego tem ttoÍtjctiç , correspondente a são, piloto e combatente, protetor e
TTOinrpç , ação e agente respectivamente de salvador supremo, adorno de todos os
■noiéii' : fazer, produzir. O sentido lato de
noipoiç presta-se assim muito bem às analo deuses e homens, guia belíssimo e
gias que a seguir faz Agatão. Cf. infra 205b-7 excelente, que todo homem deve se-
e ss. (N..doT.) •
90 Também ttoÍijolç . V. nota anterior. (N. do T.) 92 É dessa pequena afirmação que Sócrates par
91 Fragmento de alguma tragédia, não identifi tirá não só para a refutação do poeta como
cada. (N. doT.) para a sua própria definição do Amor.(N. do T.)
36 PLATÃO
guir, celebrando-o èm belos hinos, e quem não se teria perturbado ao ouvi-
compartilhando do canto com ele lo? Eu por mim, considerando que eu
encanta o pensamento de todos os deu mesmo não seria capaz de nem de
ses e homens. perto proferir algo tão belo, de vergo- c
Este, ó Fedro, rematou ele, o dis nha 'quase me retirava e partia, se
curso que de minha parte quero que tivesse algum meio. Com efeito, vi
seja ao deus oferecido, em parte joco- nha-me à mente o discurso de Górgias,
só93, em parte, tanto quanto posso, a ponto de realmente eu sentir o que
discretáhiente sério.” disse Homero9 6: temia que, con
198 a Depois que falou Agatão, continuou
cluindo, Agatão em seu discurso en
Aristodemo, todos os presentes aplau
diram, por ter o jovem falado à altura viasse ao meu a cabeça de Górgias,
do seu talento e da dignidade do deus. terrível orador, e de mim mesmo me
Sócrates então olhou para Erixímaco^e fizesse uma pedra, sem voz. Refleti
lhe disse: — Porventura, ó filhó de então que estava evidentemente sendo
Àcúmeno, parece-te que não téní nada ridículo, quando convosco concordava
de temível o temor9 4 que de há muito em fazer na minha vez, depois de vós,
sinto, e que não foi profético 6 que hâ o elogio ao Amor, dizendo ser terrível d
pouco .eu dizia, que Agatão falaria nas questões de amor, quando na ver
maravilho sãmente, enquanto que eu
dade nada sabia do que se tratava, de
rhè havia de ‘embaraçar? como se devia fazer qualquer elogio.
— Ém parte — respondeu-lhe Eri-
Pois eu achava, por ingenuidade, que
xímaçp — parece-me profético o que
disseste, que Agatão falaria bem; mas se devia dizer a verdade sobre tudo que
quanto, a te embaraçares, não creio. está sendo elogiado, e que isso era
b — E como, ditoso amigo — disse fundamental, da própria verdade se
Sócrates — não vou embaraçar-me, eu escolhendo as mais belas manifesta
e qualquer outro, quando devo falar ções para dispô-las o mais decente
depois de proferido um tão belo e colo mente possível; e muito me orgulhava
rido discurso? Não é que as suas de então, como se eu fosse falar betn,
mais partes não sejam igualmente como se soubesse a verdade em qual
admiráveis; mas o que está no fim, quer elogio. No entanto, está aí, não *
pela beleza dos termos e das frases9 5, era esse o belo elogio ao que quer que
93 Essa advertência de Agatão atenua, em favor
seja, mas o acrescentar o máximo à
do mérito do seu discurso, o significado que coisa, e o mais belamente possível,
comumente se atribui à extravagância dos seus quer ela seja assim quer não; quanto a
argumentos, tais como o que vimos à página 34,
ri. 84.. Éle tem consciência do caráter leve e ser falso, não tinha nenhuma impor
fantasioso dos argumentos com que preencheu tância. Foi com efeito combinado
õ'. esquema sério do seu discurso. (N. do T.)
^Èto grégó aSeèç 5éoç um medo que não é como cada um de nós entendería elo
medo. Como que contagiado pela retórica de giar o Amor, não como cada um o elo
Agatão, Sócrates 'imita suas aliteraçÕes e para
doxos. (N.doT.) giaria. Eis por que, pondo em ação
95 Na segunda parte (197c-e) do discurso de
Agatão, a preciosidade do seu estilo atinge 6 96 Odisséia, XI, 633-635: . . . épè ôè -/Xwpov ôéoç
máximo com aquela longa litania de epítetos. fipet, / pd] poi ropyelriv mi<pahriv ôèwoío
Alguns críticos querem ver na palavra p/ipara neXcòpou / éÇ 'AtÔoç nép-n^eiev àyavr]
(que está traduzida por “frases”, mas que em nepae<póveia ,nrá medo esverdeante me tomava,
Platão significa às vezes “verbos”, em oposição não me enviasse do Hades a augusta Perséfone
a “nomes”), uma ambigüidade de sentido que a cabeça de Górgona, “o monstro terríjvel”.
esconde assim uma irônica alusão à ausência O adjetivo ropyeúrjv ( = Górgona) é homófono
de verbos nesse trecho. (N. do T.) de ropylav (= Górgias). (N.doT.) I
O BANQUETE 37
certo que o Amor seria da beleza, mas discurso que sobre o Amor eu ouvi um
não da feiúra? Concordou. dia, de uma mulher de Mantinéia, Dio-
— Não estâ então admitido que tima, que nesse assunto era entendida e
aquilo de que é carente e que não tem é em muitos outros — foi ela que uma
o que ele ama? vez, porque os atenienses ofereceram
— Sim — disse ele. sacrifícios para conjurar a peste, fez
— Carece então de beleza o Amor, por dez anos1 0 6 recuar a doença, e era
e não a tem? ela que me instruía nas questões de
— É forçoso. amor — o discurso então que me fez
— E então? O que carece de beleza aquela mulher eu tentarei repetir-vos, a
partir do que foi admitido por mim e
e de modo algum a possui, porventura
por Agatão, com meus próprios recur
dizes tu que é belo?
sos e como eu puder. É de fato preciso,
— Não, sem dúvida. Agatão, como tu indicaste, primeiro
— Ainda admites por conseguinte discorrer sobre o próprio Amor, quem
que o Amor é belo, se isso é assim? é ele e qual a sua natureza e depois
E Agatão: — É bem provável, ó Só sobre as suas obras. Parece-me então f
crates, que nada sei do que então que o mais fácil é proceder como
disse103 ? outrora a estrangeira, que discorria
— E no entanto, prosseguiu Sócra
interrogando-me107, pois também eu
tes, bem que foi belo o que disseste, quase que lhe dizia outras tantas coi
Agatão. Mas dize-me ainda uma pe sas tais quais agora me diz Agatão,
quena coisa: o que é bom não te parece que era o Amor um grande deus, e era
que também é belo? do que é belo; e ela me refutava, exata
•— Parece-me, sim. mente com estas palavras, com que eu
— Se portanto o Amor é carente do estou refutando a este, que nem era
que é belo, e o que é bom é belo, tam belo segundo minha palavra, nem bom.
bém do que é bom seria ele carente1 0 4 E eu então: — Que dizes, ó Dioti-
— Eu não poderia, ó Sócrates, ma? Ê feio então o Amor, e mau?
disse Agatão, contradizer-te; mas seja E ela: — Não vais te calar? Acaso
assim como tu dizes. pensas que o que não for belo, é forço
— É à verdade1 0 5, querido Aga so ser feio ?
tão, que não podes contradizer, pois a — Exatamente. 202 a
Sócrates não é nada difícil. — E também se não for sábio é
— E a ti eu te deixarei agora; mas o ignorante? Ou não percebeste que exis- .
103 Agatão reage como um discípulo ou um te algo entre sabedoria e ignorância?
amigo de Sócrates, isto é, confessando franca — Que é?
mente a ignorância que acaba de descobrir em
si. (N. doT.) i°6 Se se trata da peste que assolou Atenas no
104 Essa associação do bom e do belo, bem fa começo da guerra do Peloponeso, Diotima te-
miliar ao grego (ob. o epíteto corrente: KaÀòç ria feito o sacrifício em 440, quando Sócrates
xàvadóç ), e insistentemente defendida na argu entrava na casa dos trinta. (N. doT.)
mentação socrática (v. por exemplo, Górgias, 1°7 É estranho que uma sacerdotisa use o mé
474d-e), será de muita utilidade em 204e. todo de explicação dos sofistas do século V,
(N.doT.) através de perguntas forjadas por ela mesma.
105 Não se trata aqui de refutar a A ou a B. é Esse parece um dos mais fortes indícios de que
o que quer dizer Sócrates; uma vez estabeleci o fato contado por Sócrates é fictício, sobretu
da a veracidade de um argumento, não é mais do se se considera a exata correspondência dos
possível, ou melhor, não é mais questão de diálogos Sócrates-A gatão, Diotima-Sócrates.
contestá-lo. (N.doT.) (N. do T.)
40 PLATÃO.
só toda arte divinatória, como também sem lar, sempre por terra e sem forro,
a dos sacerdotes que se ocupam dos deitando-se ao desabrigo, às portas e
sacrifícios, das iniciações e dos encan- nos caminhos, porque tem a natureza
203 a tamentos, e enfim de toda adivinhação da mãe, sempre convivendo com a pre
e magia. Um deus com um homem não cisão. Segundo o pai, porém, ele é insi-
se mistura, mas é através desse ser que dioso com o que é belo e bom, e cora
se faz todo o convívio e diálogo dos joso, decidido e enérgico, caçador
deuses com os homens, tanto quando terrível, sempre a tecer maquinações,
despertos como quando dormindo; e ávido de sabedoria e cheio de recursos,
aquele que em tais questões é sábio é a filosofar por toda a vida, terrível
um homem de gênio111, enquanto o mago, feiticeiro, sofista112: e nem e
sábio em qualquer outra coisa, arte ou imortal é a sua natureza nem mortal, e
ofício, é um artesão. E esses gênios, é no mesmo dia ora ele germina e vive,
certo, são muitos e diversos, e um deles quando enriquece113; ora morre e de
é justamente o Amor. novo ressuscita, graças à natureza do
— E quem é seu pai ■—■ perguntei- pai; e o que consegue sempre lhe esca
lhe— e sua mãe? pa, de modo que nem empobrece11 4 o
b — Ê um tanto longo de explicar, Amor nem enriquece, assim como tam
disse ela; todavia, eu te direi. Quando bém está no meio da sabedoria e da
nasceu Afrodite, banqueteavam-se os ignorância. Eis com efeito o que se dá. 20^ 0
deuses, e entre os demais se encontrava Nenhum deus filosofa ou deseja ser
também o filho de Prudência, Recurso. sábio — pois já é —11 5, assim como
Depois que acabaram de jantar, veio se alguém mais é sábio, não filosofa.
para esmolar do festim a Pobreza, e Nem também os ignorantes filosofam
ficou pela porta. Ora, Recurso, em ou desejam ser sábios; pois é nisso
briagado com o néctar — pois vinho mesmo que está o difícil da ignorância,
ainda não havia — penetrou o jardim no pensar, quem não é um homem dis
de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza tinto e gentil, nem inteligente, que lhe
então, tramando em sua falta de recur basta assim. Não deseja portanto
so engendrar um filho de Recurso, dei- quem não imagina ser deficiente naqui
lo que não pensa lhe ser preciso.
e ta-se ao seu lado e pronto concebe o
Amor. Eis por que ficou companheiro 112 O epíteto de sofista vem sem dúvida por
associação com os dois anteriores. V. Protágo-
e servo de Afrodite o Amor, gerado em ras, 328d. (N. do T.)
seu natalício, ao mesmo tempo que por 113 No grego euTiopriari (derivado de irópoç
natureza amante do belo, porque tam = recurso). A transposição dessa temporal
para depois de “ressuscita”, feita por Wilamo-
bém Afrodite é bela. E por ser filho o vits e adotada por Robin, não nos parece sufi
Amor de Recurso e de Pobreza foi esta cientemente justificada por razões estilísticas.
Ao contrário do que alegam os seus defenso
a condição em que ele ficou. Primeira res, tal como está o texto dos mss., o período
mente ele é sempre pobre, e longe está mostra-se bem articulado, pela correspondên
cia dessa temporal com a expressão “graças à
de ser delicado e belo, como a maioria natureza do pai” no seguinte esquema: vive
d imagina, mas é duro, seco, descalço e quando enriquece/ morre/ ressuscita graças à
natureza do pai (N._doT.)
111A expressão grega é Saipóftoç ópt?P , isto 114 No grego ánopei (também derivado de
£, homem marcado pelo gênio, pela divindade Tiópoç ). (N. do T.)
( Saípcop ). Nossos correspondentes “genial” ou 115 Cf. no Lísis um argumento semelhante: o
“de gênio” derivam para a idéia de talento. bom, bastando-se a si mesmo, não é amigo
(N. do T.) (isto é, não ama e não deseja) do bom.(N. do T.)
42 PLATÃO
b — Quando então — continuou ela vista do belo, que de uma grande dor
— é sempre isso o amor, de que modo, liberta o que está prenhe. É com efeito,
nos que o perseguem, e em que ação, o Sócrates, dizia-me ela, não do belo o
seu zelo e esforço se chamaria amor, como pensas.
amor1 2 5? Que vem a ser essa ativida — Mas de que é enfim?
de? Podes dizer-me? — Da geração e da parturição no
— Eu não te admiraria então, ó belo.
Diotima, por tua sabedoria, nem te — Seja-—■ disse-lhe eu.
frequentaria para aprender isso — Perfeitamente — continuou. — 207 4
c mas os animais, qual a causa desse seu nascem e outras morrem para nós, e ja
comportamento amoroso? Podes di mais somos os mesmos nas ciências,
zer-me? mas ainda cada uma delas sofre a
De novo eu lhe disse que não sabia; mesma contingência. O que, com efei
e ela me tomõu: — Imaginas então to, se chama exercitar é como se de nós
algum dia te tomares temível nas ques estivesse saindo a ciência; esqueci
tões do amor, se não refletires nesses mento é escape de ciência, e o exercí
fatos? cio, introduzindo uma nova lembrança
— Mas é por isso mesmo, Diotima
— como hâ pouco eu te dizia -— que em lugar da que está saindo, salva a
vim a ti, porque reconhecí que preci ciência, de modo a parecer ela ser a
sava de mestres. Dize-me então não só mesma. É desse modo que tudo o que é
a causa disso, como de tudo o mais mortal se conserva, e não pelo fato de
que concerne ao amor. . absolutamente ser sempre o mesmo,
— Se de fato — continuou -— crês como o que é divino, mas pelo fato de
d que o amor é por natureza amor daqui deixar o que parte e envelhece um
lo que muitas vezes admitimos, mão fi outro ser novo, tal qual ele mesmo era.
ques admirado.,Pois aqui, segundo o E por esse meio, ó Sócrates, que o
mesmo argumento que lá, a natureza mortal participa da imortalidade, no
mortal procura, na medida do ppssível, corpo como em tudo mais1 3 0; o imor
ser sempre e ficar imortal. E ela só tal porém é de outro modo. Não te
pode assim, através da geração, porque admires portanto de que o seu próprio
sempre deixa um outro ser novo em rebento, todo ser por natureza o apre
lugar do velho129; pois é nisso que se cie: é em virtude da imortalidade que a
diz que cada espécie animal vive e é a todo ser esse zelo e esse amor acompa
mesma — assim como de criança o nham.
homem se diz o mesmo até se/tornar Depois de ouvir o seu discurso,
velho; este na verdade, apesar de ja admirado disse-lhe: — Bem, ó doutís
mais ter em si as mesmas coisas, diz-se sima Diotima, essas coisas é verdadei
todavia que é o mesmo, embora sem ramente assim que se passam?
pre se renovando e perdendo alguma E ela, como os sofistas consumados,
coisa, nos cabelos, nas carnes, nos tornou-me: -—- Podes estar certo, ó Só
e ossos, no sangue e em todo o corpo. E crates; o caso é que, mesmo entre os
não é que é só no corpo, mas também homens, se queres atentar à sua ambi
na alma os modos, os costumes, as ção, admirar-te-ias do seu desarrazoa-
opiniões, desejos, prazeres, aflições,
temores, cada um desses afetos jamais 130 Alguns críticos querem ver nessa passagem
uma contradição com a doutrina da imortali
permanece o mesmo em cada um de dade da alma, e consequentemente um indício
nós, mas uns nascem, outros morrem. da anterioridade do Banquete ao Fédon, onde
aquela doutrina é longamente exposta. Na ver
208 a Mas ainda mais estranho do que isso é dade, ela não autoriza a inferência de que a
que até as ciências não é só que umas alma é mortal. Diotima diz que seus afetos e
conhecimentos são passageiros, como os ele
129 Segue até 208b um quadro muito vivo da mentos do corpo, mas não afirma que a alma
visão heraclitiana da realidade. Mas, sob o são esses affetos e conhecimentos. A idéia de vá
fluxo desesperador das coisas, Diotima vê em rias encarnações da alma e a do conhecimento-
sua geração, a sua maneira de continuar, o seu reminiscência, exposta também no Fédon, ilus
modo de participar do ser perene das idéias. tra muito a compatibilidade de uma alma imor
(N. doT.) tal com acidentes transitórios. (N. doT.)
46
PLATAO
mento, a menos que, a respeito do que estes estão todos os poetas criadores e:
te falei, não reflitas, depois de conside todos aqueles artesãos que se diz serem
rares quão estranhamente eles se com inventivos; mas a mais importante,
portam com o amor de se tomarem disse ela, e a mais bela forma de pensa
renomados e de “para sempre uma gló mento é a que trata da organização dos
ria imortal se preservarem”, e como negócios da cidade e da família, e cujo
por isso estão prontos a arrostar todos nome é prudência e justiça134 — des
d. os perigos, ainda mais do que pelos tes por sua vez quando alguém, desde
filhos, a gastar fortuna, a sofrer priva cedo fecundado em sua alma, ser divi
ções, quaisquer que elas sejam, e até a no que é, e chegada a idade oportuna,
sacrificar-se. Pois pensas tu, continuou já está desejando dar à luz e gerar, pro
ela, que Alceste1 31 morreria por Ad cura então-também este, penso eu, à
meto, que Aquiles morreria depois de sua volta o belo em que possa gerar;
Pátroclo, ou o vosso Codro132 morre pois no que é feio ele jamais o fará.
ria antes, em favor da realeza dos Assim é que os corpos belos mais que
filhos, se não imaginassem que eterna os feios ele os acolhe, por estar em
seria a memória da sua própria virtu concepção; e se encontra uma alma
de, que agora nós conservamos? Longe bela, nobre e bem dotada, é total o seu
disso, disse ela; ao contrário, é, segun acolhimento a ambos, e para um
do penso, por uma virtude imortal e homem desses logo ele se enriquece13 5
por tal renome e glória que todos tudo de discursos sobre a virtude, sobre o
fazem, e quanto melhores tanto mais; que deve ser o homem bom e o que
e pois é o imortal que eles amam. Por
deve tratar, e tenta educá-lo. Pois ao
conseguinte, continuou ela, aqueles contato sem dúvida do que é belo e em
que estão fecundados em seu corpo sua companhia, o que de há muito ele
voltam-se de preferência para as mu concebia ei-lo que dá à luz e gera, sem
lheres, e é desse modo que são amoro o esquecer tanto em sua presença
sos, pela procriação conseguindo para quanto ausente, e o que foi gerado, ele
o alimenta justamente com esse belo,
si imortalidade, memória e bem-aven-
de modo que uma comunidade muito
turança por todos os séculos seguintes,
maior que a dos filhos ficam tais indi
209 a ao que pensam; aqueles porém que é víduos mantendo entre si, e uma ami
em sua alma — pois há os que conce zade mais firme, por serem mais belos
bem na alma mais do que no corpo, o e mais imortais os filhos que têm em
que convém à alma conceber e gerar; e comum. E qualquer um aceitaria obter -
o que é que lhes convém senão o pen tais filhos mais que os humanos, de
samento e o mais da virtude133 ? Entre pois de considerar Homero e Hesíodo,
131 £ uma referência ao discurso de Fedro, 179 e admirando com inveja os demais
ss. (N.doT.) bons poetas, pelo tipo de descendentes
132 Rei legendário de Atenas. Informado de
que um oráculo prometera vitória aos dórios, que deixam de si, e que uma imortal
se estes não o matassem, disfarça-se em solda glória e memória lhes garantem, sendo
do e como tal encontra a morte com que sal
vou sua pátria. (N.doT.) 134 Prudência ( aaxppoavv-q ) e justiça são aqui
133 Entender .virtude no sentido amplo de exce formas do pensamento ( ippóvTqoic; ); como no
lência, tal como o grego àperq . Notar a dis Protágoras (361b ss.) elas são, como as de
tinção feita no Banquete entre <ppót7?atç (de mais virtudes, formas ou aspectos de uma
'ppovéoiiai ) = disposição para a sabedoria, ciência ( èTuorriu-n )■• (N.doT.)
pensamento e aopía , isto é, sabedoria (v. 202) 135 No grego eimopét . V. supra p. 41 , n. 113.
que só os deuses possuem. (N. do T.l (N.doT.) :
O BANQUETE 47
eles mesmos o que são; ou se prefe seu dirigente, deve ele amar um só
res13 6, continuou ela, pelos filhos que corpo e então gerar belos discur
Licurgo deixou na Laced,emônia, sal sos139; depois deve ele compreender- b
vadores da Lacedemônia e por assim que a beleza em qualquer corpo é irmã
dizer da Grécia. E honrado entre vós é ’ da que está em qualquer outro, e que,
também Sólon1 3 7 pelas leis que criou, se se deve procurar o belo na forma,
e outros muitos em muitas outras par muita tolice seria não considerar uma
tes, tanto entre os gregos como entre os só e a mesma a beleza em todos os cor
bárbaros, por terem dado à luz muitas pos; e depois de entender isso, deve ele
obras belas e gerado toda espécie de fazer-se amante de todos os belos cor
virtudes; deles é que jâ se fizeram mui pos e largar esse amor violento de um
tos cultos por causa de tais filhos, só, após desprezá-lo e considerá-lo
enquanto que por causa dos humanos mesquinho; depois disso a beleza que
ainda não se fez nenhum. está nas almas deve ele considerar
mais preciosa que a do corpo, de modo
São esses então os casos de amor em
que, mesmo se alguém de uma alma
a- que talvez, ó Sócrates, também tu
gentil tenha todavia um escasso encan
pudesses ser iniciado138; mas, quanto
to, contente-se ele, ame e se interesse, e ?
à sua perfeita contemplação, em vista produza e procure discursos tais que
da qual é que esses graus existem, .tornem melhores os jovens; para que
quando se procede corretamente, não
então seja obrigado a contemplar o
sei se serias capaz; em todo caso, eu te belo nos ofícios e nas leis, e a ver assim
direi, continuou, e nenhum esforço que todo ele tem um parentesco
pouparei; tenta então seguir-me se comum1 40, e julgue enfim de pouca
fores capaz: deve com efeito, começou monta o belo no corpo; depois dos ofí
ela, o que corretamente se encaminha a cios é para as ciências que é preciso
esse fim, começar quando jovem por transportá-lo, a fim de que veja tam
dirigir-se aos belos corpos, e em pri bém a beleza das ciências, e olhando </
meiro lugar, se corretamente o dirige o para ò belo já muito, sem mais amar
como um doméstico a beleza indivi
136 A ordem em que aparecem os exemplos da
poesia e da legislação parece sugerir a preemi- dual de um criançola, de um homem
nência da primeira sobre a segunda: Cf. toda ou de um só costume, não seja ele,
via República, X, 597 e ss., em que Platão, ao
contrário, explica a superioridade da segunda. nessa escravidão, miserável e um mes
(N. doT.) quinho discursador, mas voltado ao
137 Em conferência na Associação dos Estudos
Clássicos do Brasil (Seção de São Paulo), so vasto oceano do belo e, contemplan
bre o autocriticismo em Atenas, o Prof. Aubre- do-o, muitos discursos belos e magní-
ton observou com muito acerto os sentimentos
de laconismo qüe revela essa maneira de um 139 Evidentemente não se trata aqui do amor
ateniense citar depois das leis de Licurgo — físico entre o homem e a mulher, que tem a
salvadores da Grécia ... — as leis do seu con justificação na procriação (208e), e sim de
terrâneo — e também Sólon . . . (N. do T.) uma primeira etapa do amor entre o amante e
138 Feito o exame das diversas formas da ativi o bem-amado, que deve estar condicionado à
dade amorosa (prescrição, poesia, legislação), produção dos belos discursos. Essa etapa ini
Diotima as considera como estágios prelimina cial- corresponde ao que Pausânias, numa pers
res do supremo ato do amor, que é a conquista pectiva menos clara, afirma ser o nobre amor
da ciência do belo em si. Para dar no entanto de Afrodite Urânia. (N. do T.)
a entender o caráter dessa ciência e de sua 140 Assim como, pouco antes, um belo corpo é
aquisição, ela recorre à alegoria da iniciação irmão de um belo corpo, todos estes por sua
aos mistérios. Compafá-la a esse respeito com vez têm a mesma relação com os belos ofícios
o mito da Caverna na República. (N. do T.) e as belas leis. (N. doT.)
48 PLATÃO
ficos ele produza, e reflexões, em ines tudo mais que é belo dele participa, de
gotável amor à sabedoria, até que aí um modo tal que, enquanto nasce e pe
robustecido e crescido1 41 contemple rece tudo mais que é belo, em nada ele
ele uma certa ciência, única, tal que o fica maior ou menor, nem nada sofre.
seu objeto é o belo seguinte. Tenta Quando então alguém, subindo a partir
agora, disse-me ela, prestar-me a máxi do que aqui é belo1 4 4, através do cor
ma atenção possível. Aquele, pois, que reto amor aos jovens, começa a con
até esse ponto tiver sido orientado para templar aquele belo, quase que estaria
as coisas do amor, contemplando
seguida e corretamente o que é belo, já a atingir o ponto final. Eis, com efeito, c
chegando ao ápice dos graus do amor, em que consiste o proceder correta
súbito perceberá algo de maravilhosa mente nos caminhos do amor ou por
mente belo em sua natureza, aquilo outro se deixar conduzir: em começar
mesmo1 42, ó Sócrates, a que tendiam do que aqui é belo e, em vista daquele
todas as penas anteriores, primeira belo, subir sempre, como que servin-
211 a mente sempre sendo, sem nascer nem do-se de degraus, de um só para dois e
perecer, sem crescer nem decrescer, e de dois para todos os belos corpos, e
depois, não de um jeito belo e de outro dos belos corpos para os belos ofícios,
feio, nem ora sim ora não, nem quanto e dos ofícios para as belas ciências até
a isso belo e quanto àquilo feio, nem que das ciências acabe naquela ciên
aqui belo ali feio, como se a uns fosse cia, que de nada mais é senão daquele
belo e a outros feio; nem por outro próprio belo, e conheça enfim o que em
lado aparecer-lhe-á o belo como um si é belo. Nesse ponto da vida, meu d
rosto ou mãos, nem como nada que o caro Sócrates, continuou a estrangeira
corpo tem consigo, nem como algum de Mantinéia, se é que em outro mais,
discurso ou alguma ciência, nem certa poderia o homem viver, a contemplar o x
mente como a existir em algo mais, próprio belo. Se algum dia o vires, não
b como, por exemplo, em animal da terra
é como ouro1 4 5 ou como roupa que
ou do céu, ou em qualquer outra coisa;
ao contrário, aparecer-lhe-á ele ele te parecerá ser, ou como os belos
mesmo, por si mesmo, consigo mesmo, jovens adolescentes, a cuja vista ficas
sendo sempre uniforme1 43, enquanto agora aturdido e disposto, tu como ou
141A abundância é a grandeza dos discursos
tros muitos, contanto que vejam seus
decorrentes da extensão do belo já contempla amados e sempre estejam com eles, a
do ( 7rpòç rroÀà 77Ô7? rò KaÀóf ) é condição para nem comer nem beber, se de algum e
atingir a contemplação do próprio belo.
(N. doT.) modo fosse possível, mas a só contem
142 Observar ro que precede até essa expressão
uma extraordinária técnica de suspense para
plar e estar ao seu lado1 4 6. Que pensa
preparar o deslumbramento do que segue, isto mos então que aconteceria, disse ela,
é, a descrição do belo em si. Desencantados da se a alguém ocorresse contemplar o
magia desse trecho, podemos perceber que ele
é uma resposta àquela litania final do discurso próprio belo, nítido, puro, simples, e
de Agatão (197d-e), mas quão superior em
emoção e grandeza! (N. doT.) 144 O pronome Tãwôe parece-me aqui refe
143 Essas expressões, que aparecem freqüente- rir-se claramente à idéia do belo. Assim, tradu-
mente no Fédon para caracterizar as idéias em zimo-lo especificando: “as coisas belas daqui”.
sua pureza essencial, contrapõem-se a fórmulas A menção explícita râjv koKcüv , um pouco
usadas pouco acima (de um jeito ... de ou abaixo, explica-se pelo fato de que Diotima
tro . . ., ora. . . ora. . . quanto a isso . .. quanto está resumindo sua lição. (N. doT.)
àquilo . . . etc.) para qualificar as coisas deste 145 Como o sofista Hípias o define para Sócra
mundo, e que representam por assim dizer os tes. V. Hípias Maior, 289e. (N. doT.)
marcos da argumentação socrática. (N. doT.) 146 Cf. supra 192d-e. (N. doT.)
O BANQUETE 49
não repleto de carnes, humanas, de coisa1 50, que era a ele que aludira Só
cores e outras muitas ninharias mor crates, quando falava de um certo dito;
tais, mas o próprio divino .belo pudesse e súbito a porta do pátio, percutida,
ele em sua forma única contemplar? produz um grande barulho, como de
212 a Porventura pensas, disse, que é vida vã foliões, e ouve-se a voz de uma flautis
a de um homem a olhar naquela dire ta. Agatão exclama: “Servos! Não *
ção e aquele objeto, com aquilo1 4 7 ireis ver? Se for^algum conhecido, cha-
com que deve, quando o contempla e mai-o; se não, dizei que não estamos
com ele convive? Ou não consideras, bebendo, mas já repousamos”.
disse ela, que somente então, quando Não muito depois ouve-se a voz de
vir o belo com aquilo com que este Alcibíades no pátio, bastante embria
pode ser visto, o.correr-lhe-à produzir gado, e a gritar alto, perguntando onde
não sombras148 de virtude, porque estava Agatão, pedindo que o levassem
não é em sombra que estará tocando, para junto de Agatão. Levam-no então
mas reais virtudes, porque é no real até os convivas a flautista, que o
que estará tocando? tomou sobre si, e alguns outros acom
b Eis o que me dizia Diotima, ó Fedro panhantes, e ele se detém à porta, cin-
e demais presentes, e do que estou gido de uma espécie de coroa tufada de e
convencido; e porque estou conven hera e violetas, coberta a cabeça de
fitas em profusão, e exclama:
cido, tento convencer também; os ou “Senhores! Salve! Um homem em
tros de que para essa aquisição, um completa embriaguez vós o recebereis
colaborador da natureza humana me como companheiro de bebida, ou deve
lhor que o Amor não se encontraria mos partir, tendo apenas coroado Aga
facilmente. Eis por que eu afirmo que tão, pelo qual viemos? Pois eu, na ver
deve todo homem honrar o Amor, e dade, continuou, ontem mesmo não fui
que eu próprio prezo o que lhe con capaz de vir; agora porém eis-me aqui,
cerne e particularmente o cultivo, e aos com estas fitas sobre a cábeça, a fim de
outros exorto, e agora e sempre elogio passá-las da minha para a cabeça do
o poder e a virilidade do Amor na me- mais sábio e do mais belo, se assim
c dida em que sou capaz. Este discurso, devo dizer. Porventura ireis zombar de
ó Fedro, se queres, considera-o profe mim, de minha embriaguez? Ora, eu, 2i3 a
por mais que zombeis, bem sei por
rido como um encômio1 49 ao Amor; tanto que estou dizendo a verdade.
se não, o que quer que e como quer que Mas dizei-me daí mesmo: com o que
te apraza chamá-lo, assim deves fazê- disse, devo entrar ou não? Bebereis co
lo. migo ou não?”
Depois que Sócrates assim falou, Todos então o aclamam e convidam
enquanto que uns se põem a louvá-lo, a entrar e a recostar-se, e Agatão o
Aristófanes tenta dizer alguma chama. Vai ele conduzido pelos ho
147 Isto é, com a inteligência, ou antes, com a mens, e como ao mesmo tempo colhia
própria alma, livre das suas relações com o as fitas para coroar, tendo-as diante b
corpo. V. Fédon, 65b-e. (N.doT.)
148 São as virtudes praticadas pelo comum dos 159 Aristófanes não parece, como os demais
homens, tais como Platão as explica no Fédon, convivas, empolgado com o que foi dito por
68b-69b. (N.doT.) Sócrates, o que bem revela sua pouca predis
149 Porque foi proferido à maneira socrática. posição para captar o conteúdo do discurso de
V. supra 199b. (N. doT.) Alcibíades. (N.doT.)
50 PLATAO
dos olhos não viu Sócrates, e todavia mitido dirigir nem o olhar nem a
senta-se ao pé de Agatão, entre este e x palavra a nenhum belo jovem, senão
Sócrates, que se afastara de modo a este homem, enciumado e invejoso, faz
que ele se acomodasse. Sentando-se ao coisas extraordinárias, insulta-me e
lado de Agatão ele o abraça e o coroa. mal retém suas mãos da violência. Vê
Disse então Agatão: — Descalçai então se também agora não vai ele
Alcibíades, servos, a fim de que seja o fazer alguma coisa, e reconcilia-nos;
terceiro em nosso leito1 51. ou se ele tentar a violência, defende-
— Perfeitamente — tomou Alci me, pois eu da sua fúria e da sua pai
bíades; — mas quem é este nosso ter xão amorosa muito me arreceio.
ceiro companheiro de bebida? E en — Não! — disse Alcibíades —
quanto se volta avista Sócrates, e mal entre mim e ti não há reconciliação.
o viu recua em sobressalto e exclama: Mas pelo que disseste depois eu te
Por Hércules! Isso aqui que é? Tu, ó castigarei; agora porém, Agatão, ex
c Sócrates? Espreitando-me de novo aí clamou ele, passa-me das tuas fitas, a
te deitaste, de súbito aparecendo assim fim de que eu cinja também esta aqui,
como era teu costume, onde eu menos a admirável cabeça deste homem, e
esperava que haverías de estar? E não me censure ele de que a ti eu te
agora, a qüe vieste? E ainda por que coroei, mas a ele, que vence em argu
foi que aqui te recostaste? Pois não foi mentos todos os homens, não só ontem
junto de Aristófanes1 52, ou de qual como tu, mas sempre, nem por isso eu
quer outro que seja ou pretenda ser o coroei. — E ao mesmo tempo ele
engraçado, mas junto do mais belo dos toma das fitas, coroa Sócrates e recos-
que estão aqui dentro que maquinaste ta-se.
te deitar. Depois que se recostou, disse ele: —
E Sócrates: — Agatão, vê se me Bem, senhores! Vós me pareceis em
defendes ! Que o amor deste homem se plena sobriedade. É o que não se deve
me tomou um não pequeno proble permitir entre vós, mas beber; pois foi
ma1 53. Desde aquele tempo, com efei- o que foi combinado entre nós. Como
d to, em que o amei, não mais me é per- chefe então da bebedeira, até que tiver
des suficiehtemente bebido, eu me elejo
151V. supra p. 15 , n. 13, e p. 16 , n. 16. a mim mesmo1 5 4. Eia, Agatão, que a
(N. doT.)
152 Por que essa referência a Aristófanes? Não tragam logo, se houver aí alguma gran
temos nenhuma outra notícia da predileção de de taça. Melhor ainda, não há nenhu
Sócrates pelos cômicos, em particular por Aris
tófanes. Por outro lado é de supor que Alcibía ma precisão: vamos, servo, traze-me
des de pronto percebesse a possibilidade de aquele porta-gelo ! exclamou ele, quan 214 a
Sócrates ter sido convidado pelo próprio Aga
tão, como de fato aconteceu. Assim, suas pala do viu um com capacidade de máís de
vras devem ser entendidas mais como um arti oito “cótilas”1 5 5. Depois de enchê-lo,
fício dramático para chamar a atenção sobre a primeiro ele bebeu, depois mandou Só
incapacidade cm Aristófanes de entender o ver
dadeiro aspecto cômico da atitude de Alcibía crates entornar, ao mesmo tempo que
des para com Sócrates. (N. doT.)
153 Essa observação de Sócrates, como a de 454 Alcibíades sente em sua embriaguez que o
Alcibíades logo a seguir, anuncia à maneira de “simposiarca” (v. supra p. 17 , n. 21) não se
um prelúdio as conclusões que vamos tirar do houve bem em sua função e pretende reparar a
discurso de Alcibíades sobre a irresponsabilida falta. . . (N. doT.)
de de Sócrates no comportamento de Alcibía 155 Uma “cótila” equivalia a pouco mais de
des. ÍN.doT.) um quarto de litro. (N. doT.)
O BANQUETE 51
faz dizer outra, não te admires; não é flautista quer uma flautista ordinária,
fácil, a quem está neste estado, da tua são as únicas que nos fazem possessos
singularidade dar uma conta bem feita e revelam os que sentem falta dos deu
e seguida. ses e das iniciações, porque são divi
“Louvar Sócrates, senhores, é assim nas. Tu porém dele diferes apenas -
que eu tentarei, através de imagens. Ele nesse pequeno ponto, que sem instru
certamente pensará talvez que é para mentos, com simples palavras, fazes o
carregar no ridículo, mas será a ima mesmo. Nós pelo menos, quando d
gem em vista da verdade, não do ridí algum outro ouvimos mesmo que seja
culo. Afirmo eu então que é ele muito um perfeito orador, a falar de outros
b semelhante a esses silenos] 6 0 coloca assuntos, absolutamente por assim
dos nas oficinas dos estatuários, que os dizer ninguém se interessa; quando
artistas representam com um pifre ou porém é a ti que alguém ouve, ou pala
uma flauta, os quais, abertos ao meio, vras tuas referidas por outro, ainda que
vê-se que têm em seu interior estatue seja inteiramente vulgar o que está
tas de deuses. Por outro lado, digo falando, mulher, homem ou adoles
também que ele se assemelha ao sátiro cente, ficamos aturdidos e somos em
Mársias1 6 1. Que na verdade, em teu polgados. Eu pelo menos, senhores, se
aspecto pelo menos és semelhante a não fosse de todo parecer que estou
esses dois seres, ó Sócrates, nem embriagado, eu vos contaria, sob jura
mesmo, tu sem dúvida poderías contes mento, o que é que eu sofri sob o efeito
tar; que porém também no mais tu te dos discursos deste homem, e sofro
assemelhas, é o que depois disso tens ainda agora. Quando com efeito os *
de ouvir. Ês insolente1 6 2! Não? Pois escuto, muito mais do que aos cori-
se não admitires, apresentarei testemu bantes1 6 4 em seus transportes bate-me
nhas. Mas não és flautista? Sim! E o coração, e lágrimas me escorrem sob
muito mais maravilhoso que o sátiro, o efeito dos seus discursos, enquanto
c Este, pelo menos, era através de instru que outros muitíssimos eu vejo que
mentos que, com o poder de sua boca, experimentam o mesmo sentimento; ao
encantava os homens como ainda ouvir Péricles porém, e outros bons
agora o que toca as suas melodias — oradores, eu achava que falavam bem
pois as que Olimpo1 6 3 tocava são de sem dúvida, mas nada de semelhante
Mársias, digo eu, por este ensinadas — eu sentia1 6 5, nem minha alma ficava
as dele então, quer as toque um bom perturbada nem se irritava, como se se
encontrasse em condição servil; mas
160 Também chamados sátiros, os silenos eram
divindades campestres que faziam parte do sé- com este Mársias aqui, muitas foram 216«
qtóto de Dioniso. Eram figurados com cauda e as vezes em que de tal modo me sentia
cascos de boi ou de bode e rosto humano, sin que me parecia não ser possível viver
gularmente feio. (N.doT.)
161 Exímio flautista, Mársias desafiou Apoio em condições como as minhas. E isso,
com sua lira e, vencido, foi esfolado pelo deus. ó Sócrates, não irás dizer que não é
162 A liberdade espiritual de Sócrates dá-lhe
realmente, em muitas circunstâncias, essa apa 164 Sacerdotes de Cibele, da Frigia, que dança
rência. V. Apol. 20e-23c, 30c e ss. e 36b-37. vam freneticamente ao som de flautas, címba-
(N. do T.) les e tamborins. (N.doT.)
163 Em Minos Sócrates cita-o como bem-amado 165 é que não eram estes oradores “homens de
de Mársias. Muitas canções antigas lhe eram gênio”, suscetíveis de uma inspiração divina (v.
atribuídas. (N. do T.) supra 203a). (N.doT.)
O BANQUETE 53
verdade. Ainda agora tenho certeza de Que esta sua atitude não é conforme à
que, se eu quisesse prestar,; ouvidos, dos silenos? E muito mesmo. Pois é
não resistiría, mas experimentaria os aquela com que por fora ele se reveste,
mesmos sentimentos. Pois me força ele como, o sileno esculpido; mas lá den
a admitir que, embora sendo eu mesmo tro, uma vez aberto, de quanta sabedo
deficiente em muitos pontos uinda, de ria, imaginais, companheiros de bebida,
mim mesmo me descuido, mas trato estar ele cheio? Sabei que nem a quem
dos negócios de Atenas166.-A custo é belo tem ele a mínima consideração,
então, como se me afastasse das antes despreza tanto quanto ninguém
sereias, eu cerro os ouvidos eime retiro poderia imaginar, nem tampouco a e
em fuga, a fim de não ficar sentado lá e quem é rico, nem a quem tenha qual
b aos seus pés envelhecer. E senti diante quer outro título de honra, dos que são
deste homem, somente diante dele, o enaltecidos pelo grande número; todos
que ninguém imaginaria haver em esses bens ele julga que nada valem, e
mim, o envergonhar-me de quem quer que nós nada somos — é o que vos
que seja; ora, eu, é diante deste homem digo — e é ironizando e brincando
somente que me envergonho. Com efei com os homens que ele passa toda a
to, tenho certeza de que não posso vida. Uma vez porém que fica sério e
contestar-lhe que não se deve fazer o se abre, não sei se alguém já viu as
que ele manda, mas quando me retiro estátuas lá dentro; eu por mim já uma
sou vencido pelo apreço em que me vez as vi, e tão divinas me pareceram
tem o público. Safo-me então de sua elas, com tanto ouro, com uma beleza
presença e fujo, e quando o vejo enver- tão completa e tão extraordinária que 217 a
c gonho-me pelo que admiti. E muitas eu só tinha que fazer imediatamente o
vezes sem dúvida com prazer o veria que me mandasse Sócrates. Julgando
não existir entre os homens; mas se por porém que ele estava interessado em
outro lado tal coisa ocorresse, bem sei minha beleza, considerei um achado e
que muito maior seria a minha dor, de um maravilhoso lance da fortuna,
modo que não sei o que fazer -com es.se como se me estivesse ao alcance, de
homem. : pois de aquiescer a Sócrates, ouvir
De seus flauteios então, tais foram tudo o que ele sabia; o que, com efeito,
as reações que eu e muitos outros tive eu presumia da beleza de minha juven
mos deste sátiro; mas ouvi-me como tude era extraordinário! Com tais
ele é semelhante àqueles a quem o idéias em meu espírito1 6 8, eu que até
comparei, que poder maravilhoso ele então não costumava sem um acompa
tem. Pois ficai sabendo que ninguém o nhante ficar só com ele, dessa vez,
d conhece; mas eu o revelarei, já que despachando o acompanhante, encon
comecei. Estais vendo, com efeito, trei-me a sós — é preciso, com efeito, b
como Sócrates amorosamente se com 168 Alcibíades passa a contar os seus esforços
porta com os belos jovens, está sempre para conquistar o amor de Sócrates. Tais esfor
ços constituem, como observa P_obin em sua
ao redor deles, fica aturdido e como Introdução, uma verdadeira tentação, isto é,
também ignora tudo e nada sabe1 6 7. uma caricatura da iniciação amorosa tal como
é caracterizada por Diotima. Através dessa
166 Cf. Alcibíades, 109d e 113b. (N. doT.) caricatura, Platão pretende ilustrar a qualidade
167 Como numa cilada para atrair os incautos. superior do cômico obtido com uma verdadeira
Cf. supra 203d. (N. doT.) arte. (N. doT.)
54 PLATÃO
que apliquem aos seus ouvidos portas ser verdade o que dizes a meu respeito,
bem espessas1 7 1. e se há em mim algum poder pelo qual
Como com efeito, senhores, a lâm- tu te poderias tornar melhor; sim, uma
c pada se apagara e os servos estavam irresistível beleza verias em mim, e
fora, decidi que não devia fazer ne totalmente diferente da formosura que
nhum floreado com ele, mas franca há em ti. Se então, ao contemplá-la,
mente dizer-lhe o que eu pensava; e tentas compartilhá-la comigo e trocar
assim o interpelei, depois de sacudi-lo: beleza por beleza, não é em pouco que
— Sócrates, estás dormindo? pensas me levar vantagens, mas ao 219 a
— Absolutamente — respondeu- contrário, em lugar da aparência é a
i- me. realidade do que é belo que tentas
— Sabes então qual é a minha adquirir, e, realmente é “ouro por
decisão? cobre” 1 7 3 que pensas trocar. No en
— Qual é exatamente? — tomou- tanto, ditoso amigo, examina melhor;
me. não te passe despercebido que nada
— Tu me pareces — disse-lhe eu sou. Em verdade, a vis.ão do pensa.-
1 — ser um amante digno de mim, o mento começa a enxergar com agude
único, e te mostras hesitante em decla za quando a dos olhos tende a perder
rar-me. Eu porém é assim que me sua força; tu porém e’stás ainda longe
sinto: inteiramente estúpido eu acho disso.
não te aquiescer não só nisso como E eu, depois de ouvi-lo: — Quanto
também em algum caso em que preci ao que é de minha parte, eis aí; nada
sasses ou de minha fortuna ou dos do que está dito é diferente do que
d meus amigos. A mim, com efeito, nada
penso; tu porém decide de acordo com
- me é mais digno de respeito dó que o o que julgares ser o melhor para ti e
tomar-me eu o melhor possível, e para para mim.
isso creio que nenhum auxiliar me é — Bem, tomou ele, nisso sim, tens
r mais importante do que tu. Assim é razão; daqui por diante, com efeito,
que eu, a um tal homem recusando decidiremos fazer, a respeito disso
meus favores1 7 2, muito mais me -en como do mais, o que a nós dois nos
vergonharia diante da gente ajuizada parecer melhor.
do que se os concedesse, diante da
Eu, então, depois do que vi e disse, e
multidão irrefletida.
E este homem, depois de ouvir-me, que como flechas deixei escapar, ima
i com a perfeita ironia que é.bem sua e ginei-o ferido; e assim que eu me ergui
do seu hábito, retrucou-me: —: Caro sem ter-lhe permitido dizer-me nada
Alcibíades, é bem provável que real- mais, vesti esta minha túnica — pois
t e . mente não sejas um vulgar, se chega a era inverno — estendi-me por sob o
manto deste homem, e abraçado com c
í 171 Alusão a uma fórmula de iniciação órfica: estas duas mãos a este ser verdadeira
<p&éy^ofiat oiç flépiç èonv dúpas S’ èmâea&e, péprjXot..
“Falarei àqueles a quem é permitido; aplicai mente divino e admirável fiquei deita-
portas (aos ouvidos), ó profanos.” (N do'
T.) 173 Híada, VI, 236. Enganado por Zeus, Glauco
172 Alcibíades aplicou literalmente a doutrina troca suas armas de ouro pelas de bronze de
de Pausânias. Cf. supra 184d-185b. (N.doT.) Diomedes (N.doT.)
56 PLATAO
do a noite toda. Nem também isso, ó mos ali companheiros de mesa. Antes
Sócrates, irâs dizer que estou falsean de tudo, nas fadigas, não só a mim me
do. Ora, não obstante tais esforços superava mas a todos os outros —
meus, tanto mais este homem cresceu e quando isolados em algum ponto,
desprezou minha juventude, ludibriou- como é comum numa expedição, éra- 220 a
a, insultou-a e justamente naquilo é mos forçados a jejuar, nada eram os
que eu pensava ser alguma coisa, outros para resistir — e por outro lado
senhores juizes; sois com efeito juizes nas fartas refeições, era o único a ser
da sobranceria de Sócrates1 74 — pois capaz de aproveitá-las em tudo mais,
ficai sabendo, pelos deuses e pelas deu sobretudo quando, embora se recusas
sas, quando me levantei com Sócrates, se, era forçado a beber, que a todos
foi após um sono em nada mais vencia1 7 6; e o que é mais espantoso de
d extraordinário do que se eu tivesse dor tudo é que Sócrates embriagado ne
mido com meu pai ou um irmão mais nhum homem há que o tenha visto. E
velho. disso, parece-me, logo teremos a
Ora bem, depois disso, que disposi
ção de espírito pensais que eu tinha, a prova. Também quanto à resistência
julgar-me vilipendiado, a admirar o ao inverno — terríveis são os invernos
caráter deste homem, sua temperança e ali — entre outras façanhas extraordi- b
coragem, eu que tinha encontrado um nárias que fazia, uma vez, durante uma
homem tal como jamais julgava pode geada das mais terríveis, quando todos
ría encontrar em sabedoria e fortaleza? ou evitavam sair ou, se alguém saía,
Assim, nem eu podia irritar-me e pri era envolto em quanta roupagem estra
var-me de sua companhia, nem sabia nha, e amarrados os pés em feltros e
e como atraí-lo. Bem sabia eu, com efei peles de carneiro, este homem, em tais
to, que ao dinheiro era ele de qualquer circunstâncias, saía com um manto do
modo muito mais invulnerável do que mesmo tipo que ^ntes costumava tra
Ájax ao ferro, e na única coisa em que zer, e descalço sobre o gelo marchava
eu imaginava ele se deixaria prender, mais à vontade que os outros calçados,
ei-lo que me havia escapado. Embara- enquanto que os soldados o olhavam
çava-me então, e escravizado pelo de soslaio, como se o suspeitassem de
homem como ninguém mais por ne estar troçando deles. Quanto a estes
nhum outro, eu rodava à toa. Tudo fatos, ei-los aí:
isso tinha-se sucedido anteriormente; mas também o seguinte, como o c
depois, ocorreu-nos fazer em comum fez
uma expedição em Potidéia1 7 5, e éra- e suportou um bravo 1 7 7
174 Em sua embriaguez, Alcibíades figura mo lá na expedição, certa vez, merece ser
mentaneamente um processo em que a acusa ouvido. Concentrado numa reflexão,
ção de sobranceria dissimula justamente sua
defesa no processo histórico: a recusa de Só logo se detivera desde a madrugada a
crates, um crime de orgulho nessa patuscada, examinar uma idéia, e como esta não
significa de fato sua inocência. (N. doT.) lhe vinha, sem se aborrecer ele se con
175 Em 432, Potidéia, na Calcídica, recusou-se
a pagar, tributo a Atenas e foi pelos atenienses servara de pé, a procurá-la. Já era
sitiada, capitulando em 430. Essa insurreição
foi uma das causas imediatas da Guerra do 176 V. supra p. 17 , n. 19. (N. do T.)
Peloponeso. (N. doT.) 177 Odisséia, IV, 242.(N. doT.)
O BANQUETE 57
meio-dia, os homens estavam obser suas armas de hoplita. Ora, ele se reti
vando, e cheios de admiração/ diziam rava, quando já tinham debandado os
uns aos outros: Sócrates desde a nossos homens, ao lado de Laques;
madrugada estâ de pé ocupado em acerco-me deles e logo que os vejo
süas reflexões-! Por fim, algüns dos exorto-os à coragem, dizendo-lhes que
jônicos1 7 8 quando já era de tarde, de- os não abandonaria. Foi aí que, me
d pois de terem jantado — pois era lhor que em Potidéia, eu observei Só
então o estio — trouxeram para fora crates — pois o meu perigo era menor,
os seus leitos e ao mesmo tempo que por estar eu a cavalo — primeiramente
iam dormir na fresca, observavam-no a quanto ele superava a Laques, em
ver se também a noite ele passaria de domínio de si; e depois, parecia-me, ó
pé. E ele ficou de pé, até que veio a au
Aristófanes, segundo aquela tua ex
rora e o sol se ergueu; a seguir foi
pressão1 8 1, que também lá como aqui
embora, depois de fazer uma prece ao
ele se locomovia “impando-se e olhan
sol. Se quereis saber nos combates —
pois isto é bem justo que se lhe leve em do de través”, calmamente exami
conta — quando se deu a batalha pela nando de um lado e de outro os amigos
qual chegaram mesmo a me condeco e os inimigos, deixando bem claro a
rar os generais, nenhum outro homem todos, mesmo a distância, que se
e me salvou senão este, que não quis alguém tocasse nesse homem, bem
abandonar-me ferido, e até minhas vigorosamente ele se defendería. Eis
armas salvou comigo. Eu então, ó Só por que com segurança se retirava, ele
crates, insisti com os generais1/7 9 para e o seu companheiro; pois quase que,
que te conferissem essa honra, e isso nos que assim se comportam na guer
não vais me censurar nem irás dizer ra, nem se toca, mas é aos que fogem
que estou falseando; todavia, quando em desordem que se persegue.
já os generais consideravam minha Muitas outras virtudes certamente
posição e desejavam conceder-me a podería alguém louvar em Sócrates, e
insigne honra, tu mesmo foste mais admiráveis; todavia, das demais ativi
solícito que os generais para que fosse dades, talvez também a respeito de al
eu e não tu que a recebesse. E também, guns outros se pudesse dizer outro
ó senhores, valia a pena observar Só- tanto; o fato porém de a nenhum
22i a crates, quando de Delião1 8 0 batia em homem assemelhar-se ele, antigo ou
retirada o exército; por acaso fiquei ao moderno, eis o que é digno de toda
seu lado, a cavalo, enquanto elé ia com admiração. Com efeito, qual foi Aqui
178 Robin prefere aqui a lição de Schmidt les, tal poder-se-ia imaginar Brasi-
( rcóv 'iSóvtcüv = dos que o viram) à lição
dos mss. ( rã)v ' ícüvcjv = dos jônicos), sob a das1 8 2e outros, e inversamente, qual
alegação de que não havia tropas da Jônia, e foi Péricles, tal Nestor e Antenor1 8 3
de que a lição dos mss. se compreende dificil
mente como uma especificação da expressão 181 Nas Nuvens, 362: fipew&vet r’ evrcãs; óSóiç
“homens”, usada pouco acima. Essa última ra Kal TcòcpúaÀjUÓj 7rapa|3áXXeiç (N. do T.)
zão absolutamente não convence. (N. doT.) 182 Grande general espartano, vencedor dos ate
179 Essa batalha, travada em 432, precedeu nienses em Anfípolis (422 a.C.), onde morreu.
imediatamente o cerco de Potidéia. (N. doT.) (N. do T.)
180 Cidade da Beócia, na fronteira da Ática. Os 183 Dois grandes conselheiros, o primeiro dos
atenienses foram aí batidos pelos tebanos, co gregos e o segundo dos troianos, durante a
mandados por Pagondas, em 424 a.C. (N. do T.) Guerra de Tróia. (N. do T.)
58 PLATÃO
d' — sem falar de outros — e todos os Eis aí, senhores, o que em Sócrates
demais por esses exemplos se poderia eu louvo; quanto ao que, pelo contrá
comparar; o que porém é este homem rio, lhe recrimino, eu o pus de permeio
aqui, o que há de desconcertante em e disse os insultos que me fez. E na ver- i>
sua pessoa e em suas palavras, nem de dade não foi só comigo que ele os fez,
perto se poderia encontrar um seme mas com Cármides186, o filho de
lhante, quer se procure entre os moder Glauco, com Eutidemo, de Díocles, e
nos, quer entre os antigos, a não ser com muitíssimos outros, os quais ele
que se lhe faça a comparação com os engana fazendo-se de amoroso, en
que eu estou dizendo, não com nenhum quanto é antes na posição de bem-
homem, mas com os silenos e os sáti amado que ele mesmo fica, em vez de
ro?, e não só de sua pessoa como de amante. E é nisso que te previno, ó
suas palavras. Agatão, para não te deixares enganar
Na verdade, foi este sem dúvida um por este homem e, por nossas experiên
ponto em que em minhas palavras eu cias ensinado, te preservares e não
deixei passar, que também os seus dis fazeres como o bobo do provérbio, que
cursos são muito semelhantes aos sile- “só depois de sofrer aprende”1 8 7.
e nos que se entreabrem. A quem qui Depois destas palavras de Alci- c
sesse ouvir os discursos de Sócrates bíades houve risos por sua franqueza,
pareceriam eles inteiramente ridículos que parecia ele ainda estar amoroso de
à primeira vez: tais são os nomes e fra Sócrates. Sócrates então disse-lhe: —
ses de que por fora se revestem eles, Tu me pareces, ó Alcibíades, estar em
como de uma pele de sátiro insolente! teu domínio. Pois de outro modo não
Pois ele fala de bestas de carga, de fer te porias, assim tão destramente fazen
reiros, de sapateiros, de correeiros, e do rodeios, a dissimular o motivo por
sempre parece com as mesmas pala que falaste; como que falando acesso-
vras dizer as mesmas coisas, a ponto riamente tu o deixaste para o fim,
de qualquer inexperiente ou imbecil como se tudo o que disseste não tivesse
222 a zombar de seus discursos1 8 4. Quem sido em vista disso, de me indispor
porém os viu entreabrir-se e em seu com Agatão, na idéia de que eu devo d
interior penetra, primeiramente desco amar-te e a nenhum outro, e que Aga
brirá que, no fundo, são os únicos que tão é por ti que deve ser amado, e por
têm inteligência, e depois, que são o nenhum outro. Mas não me escapaste!
quanto possível divinos, e os que o Ao contrário, esse teu drama de sátiros
maior número contêm de imagens de e de silenos ficou transparente1 8 8. Pois
virtude1 8 5, e o mais possível se orien 186 Tio materno de Platão, um dos membros
do governo dos Trinta, seu nome intitula um
tam, ou melhor, em tudo se orientam dos diálogos menores do filósofo. Quanto a
para o que convém ter em mira, quan Eutidemo, não se trata evidentemente do so
fista ridicularizado no diálogo do mesmo no
do se procura ser um distinto e honra me, mas sem dúvida do jovem que aparece nas
do cidadão. Memoráveis de Xenofonte, IV, 2-6. (N.doT,)
187 Hesíodo, Trabalhos e Dias, 218: naiíòp 5é
184 Cf. Hípias Maior, 288c-d. (N. doT.) re vp-irioç eyva> : “depois de sofrer é que o
185Tal como os silenos esculpidos (215b) têm tolo aprende”. (N.doT.)
em seu interior estátuas divinas. Confrontar 188 No propósito de insistir na feiúra de Sócra
com essa a expressão análoga em 213a-5, mas tes e, consequentemente, afastá-lo de Agatão.
num contexto diferente. (N.doT.) (N. do T.)
O BANQUETE 59
bem, caro Agatão, que nada mais haja tar-se ao lado de Sócrates; súbito
para ele, e faze com que comigo nin porém uns foliões, em numeroso
guém te indisponha. grupo, chegam à porta e, tendo-a
Agatão respondeu: — De fato, ó encontrado aberta com a saída de
Sócrates, é muito provável que estejas alguém, irrompem eles pela frente em
e dizendo a verdade. E a prova é a direção dos convivas, tomando assento
maneira como justamente ele se recos- nos leitos; um tumulto enche todo o
tou aqui no meio, entre mim e ti, para recinto e, sem mais nenhuma ordem,
nos afastar um do outro. Nada mais é-se forçado a beber vinho em demasia.
ele terá então; eu virei para o teu lado Erixímaco, Fedro e alguns outros,
e me recostarei. disse Aristodemo, retiram-se e partem;
— Muito bem — disse Sócrates — a ele porém o sono o pegou, e dormiu <=
reclina-te aqui, logo abaixo de mim. muitíssimo, que estavam longas as noi
•— ó Zeus, que tratamento recebo tes; acordou de dia, quando já canta
ainda desse homem! Acha ele que em vam os galos, e acordado viu que os
tudo deve levar-me a melhor. Mas pelo outros ou dormiam ou estavam ausen
menos, extraordinária criatura, permi tes; Agatão porém, Aristófanes e Só
te que entre nós se acomode Agatão. crates eram os únicos que ainda esta
— Impossível! — tomou-lhe Só vam despertos, e bebiam de uma
crates. — Pois se tu me elogiaste, devo grande taça que passavam da esquerda
eu por minha vez elogiar o que está à para a direita. Sócrates conversava
minha direita. Ora, se abaixo de ti1 8 9 com eles; dos pormenores da conversa
ficar Agatão, não irá ele por acaso disse Aristodemo que não se lembrava
fazer-me um novo elogio, antes de, — pois não assistira ao começo e
pelo contrário, ser por mim elogiado? ainda estava sonolento — em resumo d
223 a Deixa, divino amigo, e não invejes ao porém, disse ele, forçava-os Sócrates a
jovem o meu elogio, pois é grande o admitir que é de um mesmo homem o
meu desejo de elogiá-lo. saber fazer uma comédia e uma tragé
— Evoé! — exclamou Agatão; — dia, e que aquele que com arte é um
Alcibíades, não há meio de aqui eu poeta trágico é também um poeta cô
ficar; ao contrário, antes de tudo, eu mico. Forçados a isso e sem o seguir
mudarei de lugar, a fim de ser por Só com muito rigor eles cochilavam, e pri
crates elogiado. . meiro adormeceu Aristófanes e, quan
— Eis aí — comentou Alcibíades do já se fazia dia, Agatão. Sócrates
— a cena de costume: Sócrates presen então, depois de acomodá-los ao leito,
te, impossível a um outro conquistar os levantou-se e partiu; Aristodemo,
belos! Ainda agora, como ele soube como costumava, acompanhou-o; che
facilmente encontrar uma palavra per- gado ao Liceu1 9 0 ele asseou-se e,
suasiva, com o que este belo se vai pôr como em qualquer outra ocasião, pas
ao seu lado. sou o dia inteiro, depois do que, à
Agatão levanta-se assim para ir dei- tarde, foi repousar em casa.
190 Ginásio dedicado a Apoio, às margens do
189 Isto é, à sua direita, entre ele e Sócrates. Ilisso, mais tarde utilizado por Aristóteles para
Agatão passara para a direita de Sócrates, a sua escola, que ficou com esse nome.
ficando este no meio do divã. (N. do T.) ÍN. doT.)
FÉDON
Introdução
57 a EQUÉCRATES FÉDON
— Estiveste, Fédon, ao lado de Só — Houve no seu caso, Equécrates,
crates, no dia em que ele bebeu o vene uma coincidência fortuita: a do dia que
no na prisão? Ou acaso sabes, por precedeu ao julgamento com a coroa
outrem, o que lâ se passou? ção da popa do navio que os atenienses
FÉDON mandam a Delos.
— Lá estive em pessoa, Equécrates. EQUÉCRATES
EQUÉCRATES — E que navio é este?
— E então, de que coisas falou ele FÉDON
antes de morrer? Qual foi o seu fim? — Segundo conta a tradição, é’ o
Isso eu gostaria de saber, pois atual navio no qual Teseu transportou outro-
mente não há nenhum de meus conci ra os sete moços e as sete moças que
dadãos de Flionte1 que esteja em Ate deviam ser levados para Creta2. Ele os />
nas, e de lá, faz muito tempo, que não
2 A peregrinação a Delos é um simples culto ao
nos vem nenhum estrangeiro capaz de deus Apoio e à deusa Ártemis. A lenda é a
b nos dar informações seguras, a não ser seguinte: Androgeu, filho do afamado rei Mi-
que Sócrates morreu após ter bebido o nos de Creta, visitara Atenas e tomara parte
nos jogos ginásticos; fora superior a todos, des
veneno. Mas, quanto ao mais, ninguém pertando assim a inveja dos atenienses, que o
nada nos soube relatar. mataram. Seu pai, então, para vingar a morte
do filho, declarou guerra aos atenienses, ven
FÉDON cendo-os, e estabelecendo como condição de
58 a — Não sabeis, tampouco, nada paz que os vencidos enviassem periodicamente
7 moços e 7 moças a Creta. Estes jovens iriam
também a respeito das circunstâncias servir de alimento ao monstro Minotauro que
do seu julgamento? vivia no Labirinto de Creta, palácio fabuloso
cuja saída ninguém conseguira encontrar. Por
EQUÉCRATES muito tempo os atenienses continuaram a
— Sim, dele tivemos alguma infor enviar novas vítimas para Creta, até que o he
mação. E uma das coisas, mesmo, que rói Teseu, herdeiro do trono, voluntariamente
entrou no número das vítimas sorteadas, a fim
muito nos surpreendeu foi ter ocorrido de pôr termo a esse sacrifício periódico. Teseu
sua morte muito tempo depois do Ariadne, conquistou em Creta o amor da princesa
que lhe deu um novelo de lã verme
julgamento. Que houve, Fédon? lha e, assim, entrando no Labirinto, atou ele
uma ponta do novelo numa pedra da entrada
1 Em Flionte 'ou Flio, no Peloponeso, um dis e, enquanto avançava, o desenrolava, ficando
cípulo de Filolau, Eurito de Tarento, havia desta forma com o caminho de regresso asse
estabelecido um círculo de pitagóricos, em cuja gurado. Conseguiu assim matar o Minotauro
sede Fédon foi recebido por Equécrates e asso e retornar com seus companheiros salvos pqra
ciados (58d, 102a). (N. doE.) a pátria. (N. do T.)
64 PLATAO
A Narrativa
prisão fosse aberta. Ela não se abria Ihoado, Xantipa7 (tu a conheces !), que
muito cedo; logo, porém, que era fran segurava o filho mais novo, sentada ao
lado do marido. Assim que ela nos viu,
queada, dirigíamo-nos até onde estava
choveram maldições e palavrórios
Sócrates, e muitas vezes, passávamos o
como só as mulheres sabem proferir:
dia todo em sua companhia. Naquele “Vê, Sócrates, esta é a última vez que
dia, como deixáramos ajustado, encon conversam contigo os teus amigos, e tu
tramo-nos ainda mais cedo que de cos com eles!” Sócrates lançou um olhar
tume, porque na véspera, ao sair da na direção de Críton: “Críton, disse,
' prisão pelo entardecer, havíamos sabi faze com que a conduzam para casa!”
do que o navio sagrado retornara de E, enquanto era levada pela gente de
Delos. Por isso ficara assentado que Críton, ela se debatia e gritava.
nos reuniriamos o mais cedo possível
6 Os Onze: um grupo de onze homens esco
no lugar habitual. Ao chegarmos, o lhidos por votação cuidava em Atenas do cár
porteiro, vindo ao nosso encontro (era cere e das execuções. Cf. Arist., Const. Aten.,
ele quem sempre nos àtendia), até 52, 1. (N. doT.)
7 Xantipa deixou a fama sde ser uma senhora
pediu-nos que ficássemos por ali e algo violenta, que atormentou a vida do ma
rido. Segundo Xenofonte, era uma verdadeira
esperássemos, para entrar, que nos megera, mas enterneceu-se por ocasião da mor
houvesse chamado. “É, disse ele, que te de Sócrates. (N. doT.)
O Prazer e a Dor
sas: devido ao grilhão, há pouco sentia sonho está a incitar-me para que eu
dor na minha perna, e já agora sinto persevere na minha ação, que é com
prazer! por música: haverá, com efeito, mais
Cebes interrompeu: — Por Zeus, alta música do que a filosofia, e não é
Sócrates, foi bom me haveres lem- justamente isso o que eu faço? Mas su
d brado isso ! De fato, a propósito dessas cede agora que, depois de meu julga
tuas composições, em que transpuseste mento, a festa do Deus está retardando
para o metro cantado os contos de minha morte. O que é preciso então,
Esopo e o hino a Apoio, várias pessoas pensei, no caso de que o sonho me
já me têm perguntado — e entre elas, tenha prescrito essa espécie comum de
há pouco tempo, Eveno8 — com que composição musical, é que eu não lhe
intenção as compuseste depois de tua desobedeça;' é que eu componha ver
chegada aqui, tu que até agora jamais sos. E, de fato, é muito mais seguro
fizeras coisas desse gênero. Se tens, não me ir sem antes ter satisfeito esse
pois, qualquer interesse em que eu escrúpulo religioso com a composição
possa responder a Eveno quando ele de tais poemas, nem antes de haver *
novamente me interrogar (porque bem prestado obediência ao sonho. E, por
sei que tomará a fazê-lo!), fala: que isso, minha primeira composição foi
deverei dizer-lhe? dedicada ao Deus em cuja honra esta
— Dize-lhe a verdade, Cebes: não va sendo realizado o sacrifício. Depois
foi com a intenção de lhe fazer concor de haver prestado a minha homenagem
rência, e muito menos às suas compo- ao Deus, julguei que um poeta para ser
e sições, que fiz aqueles versos: sei que verdadeiramente um poeta deve empre
isso teria sido difícil! Eu os fiz em vir gar mitos e não raciocínios. Não me
tude de certos sonhos, cuja significa sentindo capaz de compor mitos, por
ção pretendia assim descobrir, e tam isso mesmo tomei por matéria de meus
bém por escrúpulo religioso — versos, na ordem em que me vinham
prevendo, sobretudo, a eventualidade ocorrendo à lembrança, as fábulas ao
de que as repetidas prescrições que me meu alcance, as de Esopo que eu sabia
foram feitas se relacionassem com o de cor. Assim, pois, aí está, Cebes, o
exercício dessa espécie de poesia. Eis que deverás dizer a Eveno. Transmite-
como se passaram as cousas: Várias lhe também a minha saudação, e além
vezes, no curso de minha vida, fui visi disso o conselho, se de fato ele é sábio,
tado por um mesmo sonho; não era de seguir minhas pegadas o mais
através da mesma visão que ele sempre depressa que puder! Quanto a mim, ?
se manifestava, mas o que me dizia era parece que me vou hoje mesmo, uma
invariável: “Sócrates”, dizia-me ele, vez que os atenienses me ordenam.
“deves esforçar-te para compor músi Então Símias disse:
ca!” E, palavra! sempre entendi que o — Que belo convite, Sócrates, para
8 Eveno: poeta grego (N. doT.) Eveno! Já por várias vezes tive oca
68 PLATÃO
sião de encontrar esse homem, e, a jul — Dize-nos pois, Sócrates, por que
gar pela minha experiência, ele sem dú motivo se pode certamente negar que
vida seguirá de boa vontade o teu seja coisa permitida o suicídio? Eu
conselho! mesmo, com efeito (é o que nos
— Ora — tornou Sócrates —, será perguntavas há pouco), já Ouvi Filolau
que Eveno não é filósofo? dizer, no tempo em que se encontrava
— Segundo penso, é — respondeu entre nós, e também a outros, que tal
Símias. coisa não se pode fazer. Mas ninguém
— Então não há de desejar coisa já foi capaz de ensinar-me qualquer
melhor, ele ou quem quer que dê à filo coisa de exato a esse respeito.
sofia a atenção que ela merece. Toda — Vamos — disse Sócrates —, «a
via, é de esperar que Eveno não fará vamos examinar isso. É possível, tal
violência contra si mesmo, pois, segun vez, que eu te possa ensinar alguma
do dizem, isso não é permitido. coisa. Ê provável também que isso te
d Assim falando, desencolheu as per pareça maravilhoso e que te espantes
nas e, desde então, foi sentado dessa ao saber que, para todos os homens, há
forma que continuou a conversar. A uma absoluta necessidade de viver,
esta altura Cebes lhe fez a seguinte necessidade invariável mesmo para
pergunta: aqueles para os quais a morte seria
— Como podes dizer, Sócrates, que preferível à vida. Acharás espantoso
não é «permitido fazer violência contra ainda que não seja permitido àqueles,
si mesmo, e, por outro lado, que o filó para os quais a morte seja um bem
sofo não deseja nada melhor do que preferível à vida, o direito de procura
poder seguir aquele que morre? rem, por si, esse bem e que, para o
— Quê? Então, Cebes, não fostes obterem, necessitem recebê-lo de ou
instruídos a respeito deste gênero de trem.
questões, tu e Símias, que vivestes Cebes sorriu docemente:
tanto tempo em companhia de Filo- — Deus o sabe! — disse no modo
lau9? de falar de seu país1 °.
— Não, nada de claro, Sócrates. . — Poder-se-ia, com efeito — vol-
— Eu, também, o que digo é por veu Sócrates — encontrar nisso, pelo
ouvir dizer, e seguramente nada impe menos considerado sob essa forma,
de que se transmita o que dessa forma qualquer coisa de irracional. Todavia
me foi dado aprender. E, com efeito, não é assim, e, muito provavelmente,
talvez convenha particularmente aos aí não falta razão. A esse respeito há,
e que devem transladar-se para o além a mesmo, uma fórmula que usam os
tarefa de empreender uma investigação adeptos dos Mistérios11: “Ê uma espé-
sobre essa viagem e de relatar, num 10 Cebes e de Tebas, e os tebanos têm a fama de
serem pouco instruídos e falarem um grego algo
mito, o que julgamos ser tal lugar. E provinciano. Cebes, o aluno ardente de Sócra
por que não? Que poderiamos fazer tes, fala em geral a língua da gente letrada,
senão isso durante o tempo que nos se mas neste momento, apaixonado por uma inte
ressante questão filosófica, descura a lingua
para do por do sol? gem e usa o dialeto regional de seu país.
(N. doT.)
9Filolau: filósofo pitagórico. Platão o conhe 11 Platão refere-se aos mistérios órficos, que
cia pessoalmente, e muito o estimou. (N. do T.) mencionara no Menão. (N. doT.)
FÉDON 69
A Purificação
— Assim pois, companheiro — não são por acaso aqueles que, no bom
continuou Sócrates —, se é verdade o sentido do termo, se dedicam à filoso
c qué acabamos de dizer, que imensa fia? O exercício próprio dos filósofos
esperança não existe para aquele que não é precisamente libertar a alma e
se encontra nesta altura de minha afastá-la do corpo?
rota! Lâ no além, se tal deve acontecer — Evidentemente.
em algum lugar, ele irâ possuir com — Não seria, pois, como eu dizia
abundância tudo aquilo que exigiu de ao começar esta nossa conversa, uma
nós a realização de um imenso esforço, coisa ridícula por parte dum homem,
em nossa vida passada. E assim esta que durante toda a vida se houvesse
viagem, esta viagem que ora me foi esforçado por se aproximar o mais
prescrita, é acompanhada de uma feliz possível do estado em que ficamos
esperança; e o mesmo acontece a quem quando estamos mortos, irritar-se con
quer que possa afirmar que seu pensa tra a morte quando esta se lhe apresen- e
mento está pronto e o possa dizer tasse?
, purificado.
— Absolutamente certo---- disse — Por certo que seria ridículo !
Símias. — Assim, pois, Símias, em verdade
— Mas a purificação não é, de fato, estão se exercitando para morrer todos
justamente o que diz uma antiga aqueles que, no bom sentido da pala
tradição?14 Não é apartar o mais pos vra, se dedicam à filosofia, e o próprio
sível a alma do corpo, habituâ-la a evi pensamento de estar morto é para eles,
tá-lo, a concentrar-se sobre si mesma menos que para qualquer outra pessoa,
por um refluxo vindo de todos os pon um motivo de terrores ! Eis como deve
tos do corpo, a viver tanto quanto mos julgá-los. Não seria o supra-sumo
puder, seja nas circunstâncias atuais, da contradição que eles, por uma parte
seja nas que se lhes seguirão, isolada e sentindo-se de todos os modos mistu
d por si mesma, inteiramente 'desligada rados com o corpo, e por outra dese
do corpo e como se houvesse desatado jando que sua alma existisse em si
os laços que a ele a prendiam? mesma e por si mesma, se tomassem
— É exatamente isso. de pânico e de irritação quando sobre
— Ter uma alma, desligada e posta viesse a realização de seus desejos?
à parte do corpo, não é esse o sentido Sim, não seria uma contradição se não
exato da palavra “morte”? se encaminhassem com alegria para o
— Ê exatamente esse o sentido. além onde, uma vez chegados, terão a
— Sim. E os que mais desejam essa esperança de encontrar aquilo por que «
separação^ os únicos que a desejam, em toda a sua vida se mostraram apai
14 Esta tradição é do Orfismo. Veja Çhantepie xonados: a sabedoriaj que era o seu
de la Saussaye, História das Religiões, Cap. amor; e também não seria contradi
XII. Cf. também E. Rohde, op. cit., assim como tório deixarem de sentir alegria ante a
S. Reinach, Orpheus; Zielinski, La Religion
dans la Grèce Antiqué. (N. doT.) esperança de serem libertados da com-
76 PLATÃO
panhia daquilo que os molestava? Mas coragem também convém ou não- con
então ! Os amantes, as mulheres, os fi vém, no seu mais alto grau, àquelès em
lhos não foram capazes, quando mor quem se encontram, pelo contrário, as
tos, de inspirar a muitos o desejo de ir disposições de que eu falava?
voluntariamente para as regiões do — Sem nenhuma dúvida!
Hades, na esperança de lâ os encontra — Não acontece a mesma cousa
rem, de rever õ objeto de seus amores e com a temperança, e até com a tempe
permanecer ao seu lado; ao passo que rança no sentido comum da palavra?
um homem que fosse apaixonado pela Porventura a ausência de veemência
sabedoria, que tivesse ardorosamente nos desejos e uma atitude desdenhosa e
abraçado a esperança de em nenhuma prudente não são próprias unicamente
b parte senão no Hades encontrâ-la sob daqueles que, no mais alto grau, sen- d
uma forma digna de ser desejada, tem desprezo pelo corpo e vivem na
então esse homem haveria de irritar-se filosofia?
no momento de morrer, então esse — Necessariamente.
homem não se rejubilaria de poder — Aliás, basta que tenhas a bonda
dirigir-se para aquelas regiões? Eis o de de refletir um momento apenas
que deve pensar, meus companheiros, sobre a coragem e a temperança do
um filósofo, se realmente é filósofo; resto dos homens, para que percebas
pois nele há de existir a forte convic toda a sua estranheza.
ção de que em parte alguma, a não ser — Que queres dizer, Sócrates?
num outro mundo, poderá encontrar a — Não ignoras que a morte é
pura sabedoria. Ora, se assim é, não considerada por todo o resto dos ho
será o cúmulo da extravagância, como mens como pertencendo ao número
disse .há pouco, que exista o temor da dos grandes males.
morte no espírito de um tal homem? ' — Ah ! bem o sei.
— Seguramente que seria o cúmu -— O temor de males maiores não
lo, por Zeus! leva, por acaso, os que dentre eles têm
— Dize-me, pois — continuou Só mais coragem a enfrentarem a morte,
crates —, não tiveste oportunidade de quando se apresenta a ocasião de
observar várias vezes que quando enfrentá-la?
alguém se irrita no momento de mor — Como não!
rer, não é a sabedoria que alguém — Assim, pois, é por serem medro
ama1 5, mas sim o corpo? E que esse sos e por temerem que são corajosos
c alguém talvez ame ainda as riquezas, todos os homens, com exceção dos
ou as honrarias, quer uma, quer outra filósofos. E, contudo, é absurdo pensar e
dessas coisas, ou quem sabe senão as que o temor e a covardia dêem
duas juntas? coragem!
— Realmente. É como dizes. — Tens toda a razão !
— Assim, Símias, o que chamamos — Vejamos agora os que dentre
15 Platão serve-se de um jogo de palavras: eles são considerados prudentes. Não é
philósophos (o que ama a sabedoria), philosô- uma espécie de desregramento, o prin
matos (o que ama o corpo), philokhrématos
(o que ama as riquezas) e philótimos (o que cípio de .sua temperança? Podemos
ama as honrarias). (N. do E.) afirmar enfaticamente que é impossível
FÉDON 77
serem as cousas assim, mas é um fato, contrário, a verdade nada mais seja do
contudo, que eles se encontram em que uma certa purificação de todas
situação análoga, na sua ridícula tem essas paixões e seja a temperança, a
perança ! Porque é pelo fato de teme justiça, a coragem; e o próprio pensa- c
rem ser privados de outros prazeres mento outra coisa não seja do que um
que cobiçam que se abstêm em face de meio de purificação. Ê possível que
alguns — porque, afinal, há muitos ou aqueles mesmos a quem devemos a
tros que os dominam. Parece errôneo instituição das iniciações não deixem
69 a chamar de desregramento a uma certa de ter o seu mérito, e que a verdade já
continência em face dos prazeres, e de há muito tempo se encontre oculta
todavia é certo que, se esses homens sob aquela linguagem misteriosa. Todo
suportam o jugo de certos prazeres, é aquele que atinja o Hades como profa
porque dessa forma conseguem domi no e sem ter sido iniciado terá como
nar alguns outros. Ora, isto concorda lugar de destinação o Lodaçal, en
com o que acabamos de dizer há quanto aquele que houver sido purifi
pouco. De qualquer modo, é num cado e iniciado morará,-uma vez lá
desregramento que está o princípio de chegado, com os Deuses. Ê que, como
sua temperança! vês, segundo a expressão dos iniciados
— Verossimilmente, com efeito. nos mistérios: “numerosos são os por
— Na verdade, excelente Símias, tadores de tirso, mas poucos os Bacan-
talvez não seja em face da virtude um tes1 6”. Ora, a meu ver, estes últimos
procedimento correto trocar assim pra não são outros senão os de quem a
zeres por prazeres, sofrimentos por filosofia, no sentido correto do termo,
sofrimentos, um receio por um receio, constitui a ocupação. E quanto a mim,
o maior pelo menor, tal como se se tra durante toda a vida e pelo menos na d
tasse duma simples troca de moedas. medida do possível, nada deixei de
Talvez, ao contrário, exista aqui ape fazer para pertencer ao número deles;
nas uma moeda de real valor e em nisso, pelo contrário, pus sem reservas
troca da qual tudo o mais deva ser ofe todos os meus esforços. Entretanto, se
recido: a sabedoria! Sim, talvez seja tudo o que fiz estava certo, se meus
b esse o preço que valem e com que se esforços obtiveram algum êxito, é
compram e se vendem legitimamente coisa que espero saber com certeza
todas essas coisas — coragem, tempe dentro em pouco, no além, se Deus
rança, justiça — a verdadeira virtude, quiser: tal é, pelo menos, minha opi
em suma, acompanhada de sabedoria. nião.
Ê indiferente que a elas se acrescentem “Aqui está, Símias e Cebes, minha
ou se tirem prazeres, temores e tudo o defesa; são estas as razões pelas quais
mais que há de semelhante! Que tudo vos deixo, tanto a vós como a meus
isso seja, doutra parte, isolado da sabe donos daqui, sem sentir dor nem cóle
doria e convertido em objeto de trocas ra, pois que — disso estou convencido *
recíprocas, talvez não passe de aluci 16 Alusão aos mistérios eip que havia cerimô
nação uma tal virtude: virtude real nias de purificação e graus de consagração: o
grau de Bacante é o superior, enquanto que os
mente servil, onde não há nada de são portadores de tirso constituem o grau inferior.
nem de verdadeiro! Talvez, muito ao (N, do T.)
78 PLATÃO
— no outro mundo irei encontrar, não peito dessas coisas. Se, pois, diante de
menos do que aqui, outros bons donos vós fui em minha defesa mais persua-
como outros bons companheiros. O sivo do que diante dos juizes de Ate
vulgo, na verdade, é incrédulo a res nas, bem haja!”
A Sobrevivência da Alma
10 a
Os contrários
inversamente, vai do segundo para o enfim, para estes dois termos, as gera
primeiro? Observemos, com efeito, ções são, uma, “adormecer”, outra,
uma coisa maior e uma coisa menor: “acordar”. Achas que isto basta, ou
não hâ entre as duas crescimento e não?
decrescimento, o que permite afirmar, — Certo que basta!
de uma, que ela cresce, e, da outra, que — Cabe-te agora a vez de dizer
descresce? outro tanto a respeito da vida e da
— Hâ. morte. Não dirás, de início, que
— E a decomposição e a composi “viver” tem por contrário “estar
ção, o resfriamento e o aquecimento, e morto”?
todas as oposições semelhantes, ainda — E o que eu diria.
que às vezes não possuam nomes apro — E, em seguida, que esses estados
priados em nossa língua, não haveriam se engendram mutuamente?
de comportar em todos os casos essa — Diria.
mesma necessidade, tanto de engen — Que é, por conseguinte, o que
drar-se mutuamente como de admitir provém do que está vivo?
em cada termo uma geração dirigida — O que está morto.
para o outro? — E do que está morto, que é que
— Sim, perfeitamente. provém?
— Por conseguinte, que deveremos — Impossível — disse Cebes —
dizer? — continuou Sócrates. — não admitir que é o que está vivo.
c Acaso “viver” não possui um contrá — E, pois, de coisas mortas que «
rio, assim como “estar acordado” tem provêm, Cebes, as que têm vida, e,
por contrário “estar dormindo”? com elas, os seres vivos?
— Ê absolutamente necessário que — É claro.
tenha. — Quer dizer, então, que nossas
— Qual é? almas existem no Hades19.
— “Estar morto”.. — Parece mui verossímil.
— Não é verdade que esses estados — Das duas gerações, enfim, que
se engendram um ao outro, já que são aqui temos, não há pelo menos uma
contrários, e também que a geração que não nos deixe dúvida sobre sua
entre um e outro é dupla, já que são realidade? Por que o termo “morrer”,
dois? penso, está fora de dúvida! Não está?
— Assim é! — Sim, é absolutamente certo.
— Ora pois — continuou Sócrates — Que faremos, então? Não o
— vou mencionar-te um dos dois compensaremos pela geração contrá
pares de contrários, de que há pouco ria? Porque, se não fosse assim, a
falei, e sua dupla geração; e tu depois Natureza seria coxa! Ou, pelo contrá
me indicarás o outro par. Primeiro falo rio, será preciso supor uma geração
eu: dum lado, direi “estar dormindo”, contrária ao “morrer”?
do outro, “estar acordado”; em segui — Isso é, segundo penso, absoluta
da, é de “estar dormindo” que provém mente necessário.
d “estar acordado”, e de “estar acorda 19 Hades. Para Platão este nome tem aqui a
significação de Invisível, o país do Invisível, o
do” que provém “estar dormindo”; reino das sombras. (N. doT.)
FÉDON 81
reais: o reviver, o fato de que os vivos menos dessa maneira, não se consiga
provêm dos mortos, de que as almas convencer-te! Vê se, encarando a ques
dos mortos têm existência, e — insisto tão de outra forma, poderás comparti
<>. neste ponto — de que a sorte das lhar de minha opinião. Porque, o que
almas boas é. melhor, e pior a das parece difícil de ser compreendido é
almas ruins! precisamente de que maneira o que
— Em verdade, Sócrates — tomou chamamos aprender seja apenas recor
então Cebes — é precisamente esse dar.
também o sentido daquele famoso — Incredulidade a respeito disso?
argumento que (suposto seja verda — volveu Símias; — não, não a
deiro) tens o hábito de citar amiúde. tenho ! Sinto apenas necessidade de ser
Aprender, diz ele, não é outra coisa posto nesse estado de que fala o argu
senão recordar22. Se esse argumento é mento, e de que me façam recordar.
de fato verdadeiro, não hâ dúvida que, Na verdade, Cebes contribuiu; um
numa época anterior, tenhamos apren pouco, com a exposição que fez, para
dido aquilo de que no presente nos despertar minhas lembranças e con
73 d recordamos. Ora, tal não poderia. vencer-me. Mas nem por isso, Sócra
acontecer se nossa alma não existisse tes, deixarei de ouvir, com prazer, a
em algum lugar antes de assumir, pela tua explicação.
’ geração, a forma humana. Por conse ‘— Aqui a tens: estamos sem dúvi- c
guinte, ainda por esta razão é veros da de acordo em que para haver recor
símil que a alma seja imortal. dação de alguma coisa num momento
• •— Mas, Cebes — atalhou por sua qualquer é preciso ter sabido antes
vez Símias — de que modo se poderá essa coisa?
provar isso? Faze com que me lembre, — Sim.
pois, de momento, não consigo- recor — E, por conseguinte, sobre o
dar-me muito bem desse argumento. ponto que segue estamos também de
— Temos disso — volveu. Cebes acordo: que o saber, se se vem a pro
— uma prova magnífica: interroga-se duzir em certas circunstâncias, é uma
um homem. Se as perguntas são bem rememoração? Que circunstâncias
conduzidas, por si mesmo ele dirá, de sejam essas, vou dizer-te: se vemos ou
modo exato, como as coisas realmente ouvimos alguma coisa, ou se experi
são. No entanto, esse homem seria mentamos não importa que outra espé
incapaz de assim fazer se sobre .essas cie de sensação, não é somente a coisa
coisas não possuísse um conhecimento em questão que conhecemos, mas
e. um reto juízo! Passa-se depois às temos também a imagem de uma outra
figuras geométricas e a outros meios coisa, que não é objeto do mesmo
b do mesmo gênero, e assim se obtém, saber, mas de um outro. Então, dize-
com toda a certeza possível, que as me, não temos razão em pretender que
coisas de fato assim se passam. aí houve uma recordação, e uma recor
— Entretanto — disse Sócrates — dação daquilo mesmo de que tivemos a
é muito provável, Símias, que, pelo imagem?
— Como assim? • d
22 Cf. Menão, 80 (N. doT.) — Tomemos alguns exemplos. São
FÉDON 83
coisas muito diferentes, penso, conhe sua semelhança com aquilo de que nos
cer um homem e conhecer uma lira? recordamos?
— Efetivamente. — Sim, isso é necessário.
— Ignoras tu que os amantes, à — Examine agora — tornou Só
vista duma lira, duma vestimenta ou de crates — se não é deste modo que isso
qualquer outro objeto de que seus ama se passa: afirmamos sem dúvida que
dos habitualmente se servem, rememo há um igual em si; não me refiro à
ram a própria imagem do amado a igualdade entre um pedaço de pau e
quem esse objeto pertenceu? Ora, aqui outro pedaço de pau, entre uma pedra
tentos o que vem a ser uma recorda e outra pedra, nem a nada, enfim, do
ção. Da mesma forma, também acon mesmo gênero; mas a alguma coisa
tece que, se alguém vê Símias, muitas que, comparada a tudo isso, disso,
vezes isso lhe faz recordar Cebes. E porém se distingue: — o Igual em si
poder-se-iam encontrar milhares de mesmo. Deveremos afirmar que ele >>
exemplos análogos. existe, ou negar?
— Milhares, seguramente, por — Seguramente que devemos afir-
Zeus! — assentiu Símias. mâ-lo, por Zeus! — disse Cebes. —
e — Assim, pois, um caso desse gê Muito bem!
nero constitui uma recordação, princi — E sabemos também o que ele é
palmente quando se trata de coisas que em si mesmo?
o tempo ou a distração já nos tinham — Também.
feito esquecer, não é verdade? — E onde obtemos o conhecimento
— Absolutamente certo. que dele temos? Acaso não foi dessas
— Mas responde-me — continuou coisas de que falamos hâ pouco?
Sócrates: — ao ver o desenho dum Acaso não foram esses pedaços de
cavalo, o desenho de uma lira, pode-se pau, essas pedras, ou outras coisas
recordar um homem? Ao ver um retra semelhantes, cuja igualdade, percebida
to de Símias, recordar-se de Cebes? por nós, nos fez pensar nesse igual que
— Certo que pode. entretanto é distinto delas? Ou dirás
—Ao ver um retrato de Símias, não que ao teu parecer ele não se distingue
é fácil recordar-se do próprio Símias? delas? Pois bem; examina outra vez a
“ — Seguramente que sim! questão, mas sob este outro aspecto:
— Assim — não é verdade? — o não acontece que pedaços de pau ou
ponto de partida da recordação em pedras, sem se modificarem, se apre
todos esses casos é, algumas vezes, um sentem a nós ora como iguais, ora
semelhante, outras vezes também um como desiguais?
dessemelhante? — Acontece, realmente.
— Ê verdade. — Mas então? O Igual em si acaso
— Mas, considerando o caso em te pareceu em alguma ocasião desi
que o ^emçlhante nos sirva de ponto de gual, isto é, a igualdade uma desigual
partida para uma recordação qualquer, dade?
não somos forçosamente levados a — Jamais, Sócrates!
reflexões como esta: falta ou não algu — Logo, a igualdade dessas coisas
ma coisa ao objeto considerado, em não é o mesmo que o Igual em si.
84 PLATÃO
— Mas responde, eis aqui uma mesmo em que adquirimos tais conhe
escolha que estás em condições de cimentos; pois essa é a ocasião que nos
fazer, dizendo-me a seu respeito qual é resta.
a tua opinião: um homem que sabe é — É verdade, meu amigo; mas a
capaz, ou não; de dar razões daquilo então, em que outra ocasião nós os
que sabe? perdemos? É certo que não dispú-
— Necessariamente, Sócrates! nhamos deles quando nascemos, e a
— Crês, além disso, que toda a este respeito estávamos de acordo faz
gente seja capaz de explicar o que são pouco. Assim, ou nós os perdemos no
os seres de que há pouco nos ocupáva- momento mesmo em que os adquiri
mos? mos; ou acaso podes alegar algum
— Ah! Bem o desejaria eu — res outro momento?
pondeu Símias. — Mas receio, pelo — Impossível, Sócrates! A verdade
contrário, que amanhã não haja mais é que, sem o perceber, falei leviana
um só homem no mundo que esteja em mente.
condições de sair-se dignamente dessa — Em consequência, Símias, se
tarefa.2 4 existe, como incessantemente o temos
— Daí resulta pelo menos, Símias, repetido, um Belo, um Bom, e tudo o
que, no teu entender, o conhecimento mais que tem a mesma espécie de reali
das idéias não pertence a todo o dade; se é a essa realidade que relacio
mundo? namos tudo o que nos provém dos sen
— Absolutamente não! tidos, porque descobrimos que ela já e
— Vale então dizer que os homens existia, e que era nossa; se, enfim, à
se recordam daquilo que aprenderam realidade em questão comparamos
num tempo passado? . esses fenômenos — então, em virtude
— Necessariamente. da mesma necessidade que fundamenta
— E que tempo foi esse em que a existência de tudo isso, podemos
nossas -almas adquiriram saber acerca concluir que nossa alma existia já
desses seres? Seguramente, não havia antes do nascimento. Suponhamos, ao
de ser a datar de nosso nascimento contrário, que tudo isso não exista.
humano? Não seria, então, pura perda o que esti
vemos a demonstrar? Não é desta
— Seguramente que não !
forma que se apresenta a situação?
— Seria pois, anteriormente?
Não há acaso uma igual necessidade
— Sim.
de existência, tanto para esse mundo
— As almas, Símias, existiam, por
ideal, como também para nossas
conseguinte, antes de sua existência
almas, mesmo antes de termos nasci
numa forma humana, separadas dos
do, e a não-existência dó primeiro
corpos e dotadas de pensamento?
— A menos, Sócrates, que o ins termo não implica a não-existência do
tante de nosso nascimento seja aquele segundo?
— Não há quem sinta, Sócrates,
•24 Glorificação um tanto exagerada de Sócra mais do que eu — disse Símias — que
tes: amanhã Sócrates estará morto, e após sua a necessidade é idêntica em ambos os
morte não se há de encontrar mais um bom
filósofo. (N. do T.) casos! Que bela base para uma prova,
FÉDON 87
morte o mesmo medo que lhe infun — Ah, é bom ouvir isto! — disse
dem as assombrações. Cebes.
— Mas é preciso então — replicou — Não é uma questão, mais ou c
Sócrates — que lhe façam exorcismos menos como esta, a que temos de
todos os dias, até que as encantações o propor-nos: quais são as coisas que
tenham libertado disso uma vez por são suscetíveis de decomposição? A
todas!2 6 propósito de que espécie de coisas
7« a — Mas, Sócrates, onde poderemos devemos temer esse estado, epara que
encontrar contra esse gênero de terro espécie de seres isso não acontece? De
res um bom exorcista, uma vez que pois disso, teremos ainda de examinar
estás prestes a deixar-nos? qual dos dois é o caso da alma, para
— A Grécia, Cebes, é bem grande finalmente, conforme o resultado que
— respondeu Sócrates — e nela não obtivermos, haurir daí confiança ou
faltarão homens capazes! E, além temor com respeito à nossa alma.
dela, quantas nações bárbaras exis — É verdade.
tem!2627 Dirigi vossa busca por entre — Não é, pois, às coisas compostas
todos esses homens; e na procura de ou àquelas cuja natureza é composta,
um tal exorcista não poupeis trabalhos que cabe corresponder precisamente a
nem bens, repetindo convosco, a cada composição? Mas, se acontece haver
momento, que nada há em que possais alguma coisa não-composta, não é só a
com mais proveito gastar a vossa for ela que convém, mais do que a qual
quer outra coisa, o escapar a esse esta
tuna! Mas, antes disso, é necessário
do de decomposição?29
que procureis entre vós mesmos, pois — Sim — disse Cebes — é o que
b talvez vos seja muito difícil encontrar penso; assim deve ser.
uma pessoa que esteja em melhores — Dize-me então: os seres que
condições do que vós para realizar sempre se conservam imutáveis e sem
essa tarefa!2 8 pre se comportam do mesmo modo,
— Pois bem, assim faremos! — não é altamente verossímil que sejam
disse Cebes. — Agora voltemos à esses precisamente os seres que não se
investigação, no ponto em que a deixa decompõem? Ao contrário, o que ja
mos, a menos que isso te cause mais é o mesmo, o que ora se com
aborrecimento. porta de um modo, ora de outro, é ou
— Muito ao contrário, isso agra não é isso o que chamamos composto?
da-me muito ! Por que havia de ser de — Segundo penso, é.
outro modo? — Passemos, agora, àquilo para
onde nos havia encaminhado a argu
26 Alusão aos costumes populares, que acredi mentação precedente! Essa- essência, d
tavam na possibilidade de expulsar fantasmas de cuja existência falamos em nossas
e assombrações mediante a recitação cantada
de certas fórmulas mágicas. (N. doT.) interrogações e em nossas respostas,
27 Nações bárbaras quer dizer nações estran
geiras, e não nações incultas; Platão não igno 29 Opinião dos filósofos Anaxágoras e Empé-
rava que os egípcios possuíam doutrinas muito docles: o transformar-se resulta da composi
importantes acerca da ciência. (N. doT.) ção de certas substâncias simples; o desapare
28 De fato foram os discípulos de Sócrates, cer nada mais é do que a decomposição ou
que constituíram a mais rica sementeira de desagregação destas substâncias anteriormente
doutrinas e escolas da antiguidade. (N. doT.) unidas num corpo composto. (N. doT.)
FÉDON 89
— E por que não, com efeito? lugar, um lugar que lhe é semelhante,
— Mas a esta altura podes fazer a lugar nobre, lugar puro, lugar invisível,
seguinte reflexão: depois da morte do o verdadeiro país de Hades, para cha
homem, o que nele há de visível, seu má-lo por seu verdadeiro nome30,
corpo, a parte que continua visível, ou, perto do Deus bom e sábio, lá para
por outra, o que chamamos cadáver, a onde minha alma deverá encaminhar-
isto é que convém dissolver-se, desa se dentro em breve, se Deus quiser; .
gregar-se, dissipar-se em fumo, e entre então há de ser essa alma, digo, cujos
tanto nada de tudo isso lhe acontece caracteres e constituição natural aca
imediatamente. Bem ao contrário, ele bamos de ver, então há de ser ela que,
resiste durante um tempo relativa tão depressa se separe do corpo, se
mente lòngo. Sobretudo para um corpo dispersará e aniquilará, assim como
que, ao morrer, está cheio de vida e em pretende o comum dos homens? Não, - e
todo o seu viço, tal duração é de fato muito ao contrário, meu caro Cebes,
muito grande. Ademais, é fato que, se meu caro Símias; muito ao contrário,
for reduzido e embalsamado como as vede o que acontece.
múmias do Egito, sua conservação
será quase perfeita durante uma dura 30 Alusão à filosofia contemporânea de Platão:
ção, por assim dizer, incalculável. os gregos derivavam a palavra .'iSpç
(Hades)_ de .« e i8t?ç encontra
Além disso há, mesmo num corpo em ram nesta palavra a significação de invisível,
putrefação, certas partes, como os explicando simplesmente que Hades, como rei
dos mortos, mora com as almas destes debaixo
ossos, os tendões e outras do mesmo da terra, e é por isso invisível aos homens e
gênero, que são, pode-se dizer, imor aos outros deuses. Mas Platão modifica a acep
ção: Hades é o “invisível verdadeiro”, isto é,
tais. Não é verdade? a substância invariável, eterna e imperceptível
— É. aos sentidos, mas 'captável pelo espírito, que
depois da morte se aparta dos obstáculos da
— Mas então a alma, aquilo que é matéria (corpo) e vê diretamente o Hades,
invisível e que se dirige para um outro isto é, o ser eterno. (N. doT.)
“Suponhamos que seja pura a alma tado que ela tendeu. O que equivale
que se separa do corpo: deste ela nada exatãmente a dizer que ela se ocupa,
leva consigo, pela simples razão que, no bom sentido, com a filosofia, e que,
longe de ter mantido com ele durante a de fato, sem dificuldade se prepara 81 a
vida um contato voluntário, ela conse para morrer. Poder-se-á dizer, pois, de
guiu, evitando-o, concentrar-se em si uma tal conduta, que ela não é um
mesma e sobre si mesma, e também exercício para a morte?”
pela razão de que foi para esse resul . — Sim, realmente é isso.
92 PLATÃO
A função da filosofia
“Pois bem, aí estão, Símias, meu que lhes confere o infortúnio, não é
amigo, e tu, Cebes, os motivos pelos capaz de atemorizá-los, como faz aos
quais os que, no exato sentido da pala que amam o poder e as honras. Por
vra, se ocupam com a filosofia, perma isso, eles permanecem afastados dessa
necendo afastados de todos os desejos espécie de desejos.”
corporais sem exceção, mantendo uma — Aliás, o contrário de tudo isso,
atitude firme e não se entregando às Sócrates, é que lhes ficaria mal! . —
suas solicitações. A perda de seu patri acrescenta Cebes.
mônio, a - pobreza não lhes infunde — De fato, por Zeus! Eis aí por
medo, como à multidão dos amigos que motivo se aparta de todas essas
das riquezas; e, da mesma forma, a pessoas, Cebes, o homem que tem al
existência sem honrarias e sem glória, guma preocupação com sua alma e
94 PLATÃO.
cuja vida não é gasta em mimar o Que não creiam enfim senão no pró
corpo. Seu caminho não se confunde prio testemunho desde que tenham
. com o daqueles que não sabem para examinado bem o que cada coisa é na
onde vão. Acreditando que não deve sua essência e que se persuadam de
agir em sentido contrário à filosofia, que as coisas que são examinadas por b
nem ao que ela proporciona para liber meio de um intermediário qualquer
tar-nos e purificar-nos, esse homem nada possuem de verdadeiro, e perten
volta-se para o lado dela e segue-a na cem ao gênero do sensível e do visível
rota que ela lhe aponta. enquanto que o que elas vêem pelos
— De que modo, Sócrates? seus próprios meios é inteligível e, ao
— Vou dizer-te. É uma coisa bem mesmo tempo, invisível!
conhecida dos amigos do saber, que “Contra essa libertação a alma do
sua alma, quando foi tomada sob os verdadeiro filósofo persuade-se de que
cuidados da filosofia, .se encontrava não se deve opor, e por isso se afasta
completamente acorrentada a um tanto quanto possível dos prazeres,
corpo e como que colada a ele; que o assim como dos desejos, dos incômo
corpo constituía para a alma uma dos e dos terrores. Ela sabe com efeito
espécie de prisão, através da qual'ela que, quando sentimos com intensidade
devia forçosamente encarar as realida um prazer, um incômodo, um terror ou
des, ao invés de fazê-lo por seus pró um desejo, por maior que seja o mal <=
prios meios e através de si mesma; que, que possamos sofrer nesse momento,
enfim, ela estava submersa numa igno entre todos os que se podem imaginar
rância absoluta. E o que é maravilhoso — cair doente, por exemplo,‘ou arrui-
nesta prisão, a filosofia bem o perce nar-se por causa de suas paixões — ela
beu, é que ela é obra do desejo, e quem sabe que não há nenhum desses males
ai ° - concorre para apertar ainda mais as que não seja ultrapassado por aquele
suas cadeias é a própria pessoa! que é o mal supremo; é deste mal que
Assim, digo, o que os amigos do saber sofremos, e não o notamos!”
não ignoram é que, uma vez tomadas — E que mal é esse, Sócrates?
sob seus cuidados as almas cujas con — Ê que em toda alma humana,
dições são estas, a filosofia entra com forçosamente, a intensidade do prazer
doçura a 'explicar-lhes as suas razões, a ou do sofrimento, a propósito disto ou
libertá-las, mostrando-lhes para isso de daquilo, se faz acompanhar da crença
quantas ilusões está inçado o estudo de que o objeto dessa emoção é tudo o
que é feito por intermédio dos olhos, que há de mais real e verdadeiro, em
tanto como o que se faz pelo ouvido e bora tal não aconteça. Esse é o efeito
pelos outros sentidos; persuadindo-as de todas as coisas visíveis, não é?
ainda a que se livrem deles, a que evi — Efetivamente.
tem deles servir-se, pelo menos quando — E não é em tais afetos que no ~d
não houver imperiosa necessidade; mais alto grau a alma fica sujeita às
récomendo-lhes que se concentrem e se cadeias do corpo?
voltem para si, não confiando em nada — De que modo, dize?
mais do que em si mesmas, qualquer — Assim: todo prazer e todo sofri
que seja o objeto de seu pensamento. mento possuem uma espécie de cravo
FÉDON 95
contrario, é isto mesmo o que vos nenhuma ave canta quando sente fome
d embaraça, nada de hesitações! Falai, ou frio, ou quando sente dor; não, nem
dizei, o que vos parecer necessário e, mesmo o rouxinol, a andorinha e a
por vossa vez, tomai-me por auxiliar, poupa, que são precisamente, segundo
se acreditais que vos serâ mais fácil a tradição, os pássaros cujo canto é
sair das dificuldades com o meu um lamento dolorido. Para mim, não é
auxílio! a dor que faz com que eles cantem,
— Pois bem, Sócrates — respon- como não é ela que faz cantar os cis
"deu Símias — vou dizer-te a verdade; nes3 2. Estes, muito ao contrário, pro
já faz um bom tempo que, sentindo vavelmente porque são as aves de
certa dificuldade a propósito do teu Apoio, possuem um dom divinatóriq, e
argumento, cada um de nós está procu é a presciência dos bens existentes no
rando fazer com que o outro se decida Hades que os faz, no dia de sua morte,
e te interrogue; temos, com efeito, cantar de modo tão sublime, como ja
muito desejo de ouvir-te falar, mas mais o fizeram no curso anterior de
receamos também causar-te incômodo sua existência. Ora, eu, quanto a mim,
e angústia, pois levamos em conta a penso ter a mesma missão que os cis
situação penosa em que te encontras! nes; creio que estou consagrado ao
Ouvindo isso, Sócrates teve um leve mesmo Deus, que os cisnes não me
sorriso: — Misericórdia, Símias! superam na faculdade divinatória due
Como me seria difícil e incômodo con- recebi de nosso Soberano33, e que, do
e vencer a outros homens de que não mesmo modo, não sinto mais tristeza
considero penosa a situação em que do que ele ao separar-me desta vida.
atualmente me encontro, uma vez que Essas são as cousas que deveis ter em
não consigo convencer disso nem avós mente quando quiserdes falar e propor
próprios, e que, além disso, tendes a as questões que desejardes, tanto quan
desconfiança de que nesta ocasião eü to o permitirem os Onze3 4 em nome
esteja possuído de uma enorme triste do povo de Atenas.
za, como nunca senti em minha vida — Alegra-me, Sócrates, esse teu
passada! Isso, possivelmente, provém modo de falar! — disse Símias. —
de me julgardes menos bem dotado do
Vou, portanto, expor-te o que está me
que os cisnes para a adivinhação.
embaraçando, e Cebes, depois, dirá
Realmente, quando eles sentem aproxi
por que motivo não aceita o que até
mar-se a hora da morte, o canto que
agora foi dito. Meu ponto de vista, Só
85 o antes cantavam se torna mais fre
quente e mais belo do que nunca, pela crates, a respeito de questões deste gê-
alegria que sentem ao ver aproximar-se 32 Há aqui alusão a uma antiga lenda da Ática,
o momento em que irão para junto do segundo a qual a andorinha e o rouxinol são
Procne e Filomela, filhas do rei Pandião, de
Deus a que servem. Mas os homens, Atenas. (N. doT.)
com o pavor que têm da morte, calu- 33 O cisne é a ave consagrada a Apoio, deus
da adivinhação. Sócrates aqui se compara poe
njam até os cisnes: estes estão, dizem, ticamente ao cisne e considera como seu derra
a lamentar a sua morte, e a dor é que deiro canto a doutrina sobre a imortalidade da
lhes inspira aquele canto supremo. No alma. (N. doT.)
34 Funcionários encarregados da execução dos
entanto, ninguém se lembra de que condenados e de fiscalizar a prisão. (N. do T.)
FÉDON 97
logo destruída como as outras harmo não tenha sido (se pelo menos não é
nias, quer se realizem em sons, quer presunção afirmá-lo) demonstrado de
em outras formas de arte; ao passo que modo plenamente satisfatório. Mas,
o despojo corporal resiste ainda por pretender que depois de nossa morte a
muito tempo, até o dia em que o tenha alma continue a existir, eis uma coisa
d destruído o fogo ou a putrefação. Exa com que não estou de acordo. Por
mina, pois, Sócrates, o que poderiamos certo, a alma ê. uma entidade mais
objetar a essa teoria segundo a qual a vigorosa e durável que o corpo; e isso
alma, sendo a combinação dos elemen não concedo à objeção levantada por
tos de que é feito o corpo, deve ser des- Símias, pois minha convicção é a de
truídá em primeiro lugar quando so que, em todos os pontos, a superiori
brevêm aquilo a que chamamos morte. dade da alma é imensa. “Então por que
Sócrates teve aquele olhar pene motivo, dir-me-ão, permaneces ainda
trante que, em muitas circunstâncias, em dúvida? Não reconheces que, uma
lhe era habitual, e sorriu: — Há algu vez morto o homem, o que continua a
ma verdade, palavra!, no que Símias subsistir é precisamente o que há de
acaba de dizer! Com efeito, se há den mais frágil? E quanto ao que é mais
tre vós alguém que esteja menos atur durável não achas necessário que con
dido do que eu por suas palavras, por tinue a viver durante esse tempo?”
que não lhe responde? Pois é um temí Examina agora se minha linguagem
vel golpe que ele parece ter desfechado encerra alguma verdade, pois eu, natu
contra as minhas provas! Contudo, ralmente, assim como Símias, sinto
necessidade duma imagem para que
e segundo penso, antes de responder-lhe
me possa exprimir. Para mim, com
devemos primeiramente ouvir dos lá
efeito, seria isso o mesmo que dizer
bios de Cebes o que este por sua vez
alguém a respeito da morte dum velho
reprova no meu argumento. Assim
tecelão: “O bom do velho tecelão não
teremos tempo para refletir sobre o que está morto; ele continua a viver em
devemos dizer. Depois disso, ouvidos qualquer parte, e, como prova, aqui
ambos, por-nos-emos acordes com está o vestuário que ele usava, e que ele
eles, se julgarmos que seu canto está próprio tecera, conservado em bom es
bem cantado; senão, será porque o tado e não destruído.” E a quem não
processo do argumento deve ser revisa concordasse, poderia fazer esta per
do. Pois bem, Cebes, avante! Fala, por gunta: “Qual dos dois, em seu gênero,
tua vez, sobre o que te preocupa. é mais durável: o homem ou a veste de
— Para mim — disse então Cebes que se serve e tiraz no corpo?” Então,
— é bem claro que o argumento ainda baseado na resposta de que muito mais
se encontra na mesma situação e conti durável é o homem, imaginaria ter
nua a ser passível das mesmas obje- demonstrado que, com maior razão
87 a ções de há pouco. Que nossa alma ainda, o homem deve permanecer intei
realmente existiu antes de assumir a ro em alguma parte, pois o que4' é
forma que agora possui, isso não sou menos durável do que ele não foi
obrigado a admitir. Nada aí existe que destruído!
vá contra o meu modo de pensar e que “Contudo, segundo penso, as coisas
FÉDON 99
t mim mesmo, disso. Penso, pois, caro dele, pois pensa que aquela nada mais J
amigo, como um egoísta. Se é verdade è do que uma espécie de harmonia.
o que digo, então é bom estar conven Quanto a Cebes, concede, por seu
cido; se, pelo contrário, não há espe lado, que a alma dure mais do que o
rança- para quem morre, eu, pelo corpo, mas, segundo pensa, é bem difí
menos, não terei tomado meus últimos cil saber se a alma, depois de haver
instantes desagradáveis para meus gasto muitos corpos sucessivamente,
amigos, obrigando-os a suportar mi não se dissolve ao sair do último, e se a
nhas lamentações. De resto, não terei morte não consiste justamente nisto,
muito tempo para meditar nisso (o que na destruição da alma, pois que o
seria efetivamente desagradável). Mais corpo, esse, está continuamente des
um pouco e logo tudo estará acabado. truindo-se. Não é isto, Símias e Cebes,
Ássim, preparado com esse espírito, o que devemos examinar?
Símias e Cebes, entro na discussão. Ambos declararam que sim.
Vós, entretanto, se me acreditais, cui- — Ora — tomou Sócrates —, não e
c dai menos de Sócrates que da verdade ! aceitais o conjunto das afirmações que
Concordai comigo, se achardes que fizemos ou que apenas aceitais umas e
digo a verdade; se não, objetai-me. a outras, não?
cada argumento, a fim de que —• ilu — Umas sim, outras não — res
dindo a vós e a mim também, com meu ponderam os dois.
entusiasmo — eu não me vá daqui, — Que pensais a respeito da dou
como a abelha, deixando o ferrão ! 41 trina segundo a qüal instruir-se é ape
“Então, avante! Antes de tudo, nas recordar e, que sendo assim, é
porém, fazei-me recordar bem o que necessário que nossa alma, antes de vir
dissestes, se notardes que não me encadear-se em nosso corpo, tenha vi- 92 a
recordo. Para Símias, salvo erro meu, vido primeiraménte noutro lugar?
o objeto de sua dúvida e dos seus — Quanto a mim — respondeu
temores é o de que a alma, sendo algo Cebes — estou perfeitamente persua
de mais belo e mais divino dó que o dido dissõ, e que não há pensamento
corpo, venha a corromper-se antes ao qual eu mais ligado esteja.
41A abelha, que deixa seu ferrão na ferida, — Eu também — ajuntou Símias
provoca dores. Assim Sócrates, que faria mal e — ficaria muito admirado se viesse a
causaria sofrimentos a seus discípulos se se
fosse, deixando-lhes erros. (N. doT.) mudar de opinião a' esse respeito.
104 PLATAO
Resposta a Símias
“Suporta, coração! Infelicidades, já suma como uma coisa por demais divi
as suportaste bem piores!” 4 4 na para se comparar à harmonia?
— Crês que ele teria dito isso se — Por Zeus! é isso justamente o
houvesse considerado a alma como que penso, Sócrates.
simples harmonia, inteiramente sujeita — Logo, meu excelente amigo, não
às inclinações do corpo, e não como é coisa assisada considerar a alma
algo que rege e governa o corpo, em como uma simples harmonia; pois,
44 O autor recorre aqui a Homero, divino poeta, assim, não ficaríamos de acordo nem
porque este dístico se encaixa perfeitamente na com Homero, divino poeta, nem co- w»
tese que vem desenvolvendo no diálogo; mas em
outras obras Platão o censura, deixando de lhe nosco mesmos.
chamar divino e sem reconhecê-lo como autori
dade com a qual é conveniente “estarmos de — É justamente isso — concedeu
acordo”. (N. do T.) Símias.
Resposta a Cebes
Ora, o essencial do que queres saber é localizar-se num corpo humano marca
isto: desejas que se demonstre que o- início de seu fim, e uma espécie de
nossa alma é indestrutível e imortal; doença; por isso, é num estado de
sem o que, para o filósofo que está pró miséria que deve viver essa existência,
ximo de morrer, a confiança, a convic e, quando a termina por aquilo a que
ção de ir encontrar no além, depois da chamamos morte, deve ela ser des
morte, uma felicidade que jamais teria truída. Ê indiferente, como dizes, saber
alcançado se vivesse doutra forma, se ela se localiza, em corpos uma só qu
essa confiança seria, pensas, desarra- muitas vezes; cada um de nós tem
razão de recear por sua alma. Quem
zoada e tola. Mostrar que a alma ê não tem certeza, nem sabe provar que
forte e semelhante à divindade, e que a alma é imortal, deve temer a morte,
existia antes de nos havermos tornado se não for tolo. É mais ou menos isto, e
homens, pode ser prova, como dizes, caro Cebes, o que dizes? Repito-o
não de que a alma é imortal, mas ape propositadamente, para que não olvi
nas de que ela dura muito, de que sua demos nada e para que acrescentes ou
existência anterior preencheu um tires alguma coisa, se quiseres.
tempo incalculável com uma multidão Então Cebes — Nada tenho, no
enorme de conhecimentos e de ações; o momento, que acrescentar, nem que
que, no entanto, não lhe confere imor tirar. Ê aquilo justamente o que preten
talidade, pois o próprio fato de vir do.
O Problema da Física
A esta altura fez Sócrates uma longa em jninha mocidade senti-me apaixo
pausa, absorto em alguma reflexão. nado .por esse gênero de estudos a que
Depois disse — Não é coisa sem dão o nome de “exame da natureza”;
importância, Cebes, o que procuras. A parecia-me admirável, com efeito, co
causa da geração e da corrupção de nhecer as causas de tudo, saber por
todas as coisas, tal é a questão que que tudo vem à existência, por que pe
96 a devemos examinar com cuidado. Se o rece e por que existe. Muitas vezes
desejares, poderei relatar-te detalhada detive-me seriamente a examinar ques- b
mente as minhas experiências a esse toes como esta:: se, como alguns pre
respeito. E se vires que uma ou outra tendem, os seres vivos se originam de
coisa do que eu disser é útil aproveita- uma putrefação em que tomam parte o
a para reforçar tua tese. frio e o calor; se é o sangue que nos faz
— Sim — disse Cebes — é justa pensar, ou o ar, ou o fogo, ou quem
mente o que eu quero. sabe se nada disso, mas sim o próprio
— Escuta, então, o que vou contar: cérebro, que nos dá as sensações de
FÉDON 109
ouvir, ver e cheirar, das quais resulta é visto ao lado dum pequeno, ele é de
riam por sua vez a memória e a opi uma cabeça50 maior do que o peque- e
nião, ao passo que destas, quando no, e, da mesma forma, um cavalo é
adquirem estabilidade, nasceria o co maior do que outro. E o que é mais evi
nhecimento 4 9. Examinei, inversa- dente: o número “dez” me parecia
c mente, a maneira como tudo isso se maior do que o número “oito”, preci
corrompe, e, também, os fenômenos samente por causa do acréscimo de
que se passam na abóbada celeste e na “dois”, e o tamanho de dois côvados
terra. E acabei por me convencer de me parecia ser maior do que o de um
que em face dessas pesquisas eu era côvado por este ser a metade daquele.
duma inaptidão notável! Vou contar-te — E agora — perguntou Cebes —
uma ocorrência que bem esclarece qual é a tua opinião a esse respeito?
minha situação naquele tempo. Havia — Por Zeus, atualmente estou
coisas acerca das quais eu antes pos muito longe de saber a causa de qual- 9? a
suía um conhecimento certo, ao menos quer dessas coisas! Não sei resolver
na minha opinião, e na dos outros. nem sequer se quando se adiciona uma
Pois bem, essa espécie de estudo che unidade a outra, a unidade à qual foi
gou a produzir em mim uma tal acrescentada a primeira torna-se duas,
cegueira que desaprendí até aquelas ou se é a acrescentada e a outra que
coisas que antes eu imaginava saber, assim se tomam duas pelo ato de adi
como, por exemplo, o conhecimento ção. Fico admirado! Quando as duas
que eu julgava ter das causas que unidades estavam separadas uma da
determinam o crescimento do homem ! outra, cada uma era uma, e não havia
</ Outrora eu acreditava, como é claro dois; logo, porém, que se aproximaram
para todos, que isso acontece em virtu uma da outra, esse encontro tornou-se
de do comer e do beber: adicionando, a causa da formação do dois. Também
pelos alimentos, carne a carne e ossos não entendo por que motivo, quando
aos ossos, e em geral substância seme alguém divide uma unidade, esse ato
lhante a substância semelhante, acon de divisão faz com esta coisa que era
tece que o volume, antes pequeno, uma se transforme pela separação em
aumenta, e assim, o homem pequeno se duas ! Essa coisa que produz duas uni- &
torna grande. Desse modo pensava eu dades é contrária à outra: antes, acres
naquela época. Não achas tu que isso centou-se uma coisa a outra — agora,
era razoável? afasta-se e separa-se uma de outra51.
— Pelo que me parece, sim — res Nem sequer sei por que um é um!
pondeu Cebes. Enfim, e para dizer tudo, não sei abso
— Mas repara no seguinte: naquele lutamente como qualquer coisa tem
tempo, eu também achava razoável origem, desaparece ou existe, segundo
pensar que quando um homem grande este procedimento metodológico. Esco
49 Platão, quer dizer aqui que em sua moci lhí então outro método, pois, de qual
dade se dedicõu ao estudo de todas as teorias quer modo, este não me serve. Ora,
da filosofia naturalista pré-socrática. Não há
dúvida de que ele coloca nos lábios de Sócra 50 O tatnanho da cabeça é usado aqui como
tes a história de sua própria evolução intelec medida. (N. doT.)
tual. Cf. Burnet, Early Greek Philosophy. 51 Crítica aos filósofos eleáticos, que abusam
(N. do T.) às vezes da dialética. (N. doT.)
110 PLATÃO
certo dia ouvi alguém que lia um livro relativas como de suas revoluções e de
de Anaxágoras. Dizia este que “o espí outros movimentos que lhes são pró
rito é o ordenador e a causa de todas prios: Nunca supus que depois de ele
« as coisas”. Isso me causou alegria. haver dito que o Espírito os havia
Pareceu-me que havia, sob certo aspec ordenado, ele pudesse dar-me outra
to, vantagem em considerar o espírito causa além dessa que é a melhor e que . b
como,causa universal. Se assim é, pen é a que serve a cada uma em particular
sei eu, a inteligência ou espírito deve assim como ao conjunto.
ter ordenado tudo e tudo feito da me Grandes eram as minhas esperan
lhor forma. Desse modo, se alguém ças! Pus-me logo a ler, com muita
desejar encontrar a causa de cada atenção e entusiasmo os seus livros.
coisa, segundo a qual nasce, perece ou Lia o mais depressa que podia a fim de
existe, deve encontrar, a respeito, qual conhecer o que era o melhor e o pior.
é a melhor maneira seja de ela existir, Mas, meu grande amigo, bem depressa
seja de sofrer ou produzir qualquer essa maravilhosa esperança se afas
d ação. E pareceu-me ainda que a única tava de mim! À medida que avançava
coisa que o homem deve procurar é e ia estudando mais e mais, notava que
aquilo que é melhor e mais perfeito, esse homem não fazia nenhum uso do
porque desde que ele tenha encontrado espírito nem lhe atribuía papel algum
isso, necessariamente terá encontrado como causa na ordem do universo, c
o que é o pior, visto que são objetos da indo procurar tal causalidade no éter,
mesma ciência. no ar, na água em muitas outras coi
Pensando desta forma, exultei acre sas absurdas ! 52. Parecia-me que ele se
ditando haver encontrado em Anaxá portava como um homem que dissesse
goras o explicador da causa, inteligível que Sócrates faz tudo o que faz porque
para mim, de tudo que existe. Esperava age com seu espírito; mas que, em
que ele iria dizer-me, primeiro, se a seguida, ao tentar descobrir as causas
e terra é plana ou redonda, e, depois de o de tudo o que faço, dissesse que me
ter dito, que à explicação acrescentasse acho sentado aqui porque meu corpo é
a causa e a necessidade desse fato, formado de ossos e tendões, e os ossos
mostrando-me ainda assim como é ela
a melhor. Esperava também que ele, 52 Foi discutido muitas vezes o problema de sa
ber se Platão tinha razão ao descrever histori
dizendo-me que a terra se encontra no camente, desta forma, o pensamento de Anaxá
centro do universo, ajuntasse que, se goras. Os mencionados livros de Anaxágoras só
nos chegaram em reduzidos fragmentos. O que
assim é, é porque é melhor para ela sabemos é que aquele filósofo reconhecia,
estar no centro. Se me explicasse tudo como princípio material, umas partículas míni
mas de matéria — as homeomerias — e ainda,
isso, eu ficaria satisfeito e nem sequer como outro princípio — o espírito — cuja fun
desejaria tomar conhecimento de outra ção para nós não é ainda bem clara, e sobre a
qual, aliás, já havia dúvidas na antiguidade:
espécie de causas. Naturalmente, a alguns explicadores antigos viam nesse espírito
propósito do sol eu estava pronto tam um deus, outros, um ordenador do mundo, e
finalmente outros, como nosso autor e também
bém a receber a mesma espécie de Aristóteles, uma simples primeira força motriz,
“ explicação, e da mesma forrçia para a isto é, um princípio quase material ou mesmo
lua e os outros astros, assim como material. Cf. J. Burnet, Early Greek Philoso-
phy e Carl Joel, Geschichte der Antiken Philo-
também a respeito de suas velocidades sophie. (N. do T.)
FÉDON 111
são sólidos e separados uns dos outros melhor e com inteligência — essa é >>
d por articulações, e os tendões con uma afirmação absurda. Isso importa
traem e distendem os membros, e os ria, nada mais nada menos, em não
músculos circundam os ossos com as distinguir duas coisas bem distintas, e
camqs, e a pele a tudo envolve! Articu em não ver que uma coisa é a verda
lando-se os ossos em suas articulações, deira causa e outra aquilo sem o que a
e estendendo-se e contraindo-se, sou causa nunca seria causa. Todavia, é a
capaz de flexionar os meus membros, e isso que aqueles que erram nas trevas,
por esse motivo é que estou sentado segundo me parece, dão o nome de
aqui, cóm os membros dobrados. Tal causa, usando impropriamente o
homem diria coisas mais ou menos termo 5 ?. .O resultado é que um deles,
semelhantes a propósito, de nossa con tendo envolvido a terra num turbi
versa, e assim é que consideraria como lhão 5 7, pretende que seja o céu o que a
causas dela a voz, o ar, o ouvido e mantém em equilíbrio, ao passo que
muitas outras coisas — mas, em reali para outro ela não passa duma espécie
dade, jamais diria quais são as verda de gamela 58, à qual o ar serve de base
deiras causas disso tudo: estou aqui
e porque os atenienses julgaram melhor 56 Esta frase exprime desprezo pela filosofia
naturalista: “os demais” poderia ser entendido
condenar-me à morte, e por isso pare- aqui como indicando apenas a opinião vulgar,
ceu-me melhor ficar aqui, e mais justo mas o que o autor posteriormente atribui aos
‘demais” são os sistemas filosóficos naturalis
aceitar a punição por eles decretada53. tas. Platão, como quase sempre quando fala nas
Pelo Cão 54. Estou convencido de que teorias naturalistas, acha que não vale a pena
citar os nomes de seus autores, contentando-se
estes tendões e estes ossos já poderiam com dizer “uns”, “alguns” e "outros”. (N. do T.)
99 a há muito tempo se encontrar perto de 57 A palavra díne (turbilhão) é técnica no
Mégara ou entre os Beócios, para onde sistema de Demócrito e Leucipo. Para estes
naturalistas gregos, o princípio de todas as coi
os teria levado uma certa concepção sas são os átomos; corpos minúsculos e indivi
do melhor, se não me tivesse parecido síveis (donde átomos, em grego), eternos e invi
síveis; esses átomos estão a cair no vácuo; os
mais justo e mais belo preferir à fuga e mais pesados caem mais depressa, pelo que se
à evasão a aceitação, devida à Cidade, apartam dos demais. Dão, assim, encontrões
uns nos outros, com a consequente formação
da pena que ela me prescreveu! de turbilhões, produtores de complexos de áto
Dar o nome de causas a tais coi mos, que nada mais são do que os objetos exis
tentes. Esses turbilhões jamais terminam, e con
sas 5 5 seria ridículo. Que se diga que tinuamente os átomos estão a separar-se e a
sem ossos, sem músculos e outras coi reunir-se; é a isto que damos o nome de geração
sas eu não poderia fazer o que me e corrupção. A terra existe e permanece em seu
lugar, porque continuamente está a receber e a
parece, isso é certo. Mas dizer que é perder átomos; e o mesmo vale para os demais
por causa-disso que realizo as minhas corpos. Logo, quando um corpo não recebe
novos átomos em troca dos que vai perdendo,
ações e não pela escolha que faço do dá-se sua destruição. Platão se refere aqui ao
turbilhão do céu para meter a ridículo esta
53 Platão conta que Sócrates, tendo uma opor teoria, que mais tarde iria ter grande impor
tunidade para fugir do cárcere, não se apro tância nas ciências naturais. (N. doT.)
veitou dela porque era sua convicção que um 58 É uma ironia contra Anaxímenes,. mas indi
cidadão deve obedecer sempre às leis e decre cadora das doutrinas deste filósofo. Conforme
tos do Estado, mesmo quando os concidadãos e ele, o princípio de todas as coisas é o ar: tudo
as autoridades legítimas são injustos. (N. do T.) se forma do ar, volta ao ar, e o próprio ar é
54 Pelo Cão: Sócrates jura muitas vezes desta também’ o sustentáculo da terra, a qual tem a
forma, certamente porque o cão sempre foi con forma de um tamborim. O termo propriamente
siderado como símbolo da lealdade. (N. do T.) empregado por Platão é o de “gamela”, com o
55 Isto é: as causas materiais. (N. dõT.) que exprime seu desprezo deste sistema.
112 PLATÃO
A Idéia
assim fazem estragam os olhos por não mais sólida, tudo aquilo que lhe seja
tomarem a precaução de observar a consoante eu o considero como sendo
imagem do sol refletida na água ou em verdadeiro, quer se trate de uma causa
matéria semelhante. Lembrei-me disso ou de outra qualquer coisa, e aquilo
e receei que minha alma viesse a ficar que não lhe é consoante, eu o rejeito
completamente cega se eu continuasse como erro. Vou, porém, explicar com
a olhar com os olhos para os objetos e mais clareza o que estou a dizer, pois
tentasse compreendê-los através de me parece que não o compreendeste
cada um de meus sentidos. Refleti que bem.
devia buscar refúgio nas idéias e pro — Por Zeus, com efeito, que não o
curar nelas a verdade das coisas. É entendo bem! — confirmou Cebes.
possível, todavia, que esta comparação — Quero dizer o seguinte — vol-
não seja perfeitamente exata, pois nem 60 O sensualista é que observa mais em “ima
eu mesmo aceito sem reservas que a gens.”, pois os objetos materiais não passaiíi de
imitações imperfeitas das idéias eternas.
observação ideal dos objetos — que ê (N.doT.)
FÉDON 113
veu Sócrates — e não estou a enunciar faça a sua comunicação com este. O
b- nenhuma novidade, mas apenas a repe modo por que essa participação se efe
tir o que, em outras ocasiões como na tua, não o examino neste momento;
pesquisa passada, tenho me fatigado afirmo, apenas62, que tudo o que é
de dizer 61. Tentarei mostrar-te a espé belo é belo em virtude do Belo em si.
cie de causa que descobri. Volto a uma Acho que é muitíssimo acertado, para - e
teoria que já muitas vezes discuti e por mim e para os demais, resolver assim o
ela começo: suponho que há um belo, problema, e creio não errar adotando
um bom, e um grande em si, e do esta convicção. Por isso digo convicta
mesmo modo as demais coisas. Se con mente, a mim mesmo e aos demais,
cordas . comigo também admites que que o que é belo é belo por meio do
isso existe, tenho muita esperança de, Belo. Acaso não é esta também a tua
por esse modo, explicar-te a causa opinião?
mencionada e chegar a provar que. a — Ê.
alma é imortal.
— E o que é grande é grande por
c- — Naturalmente admito que isso
meio da Grandeza; e o que é maior
existe — confirmou Cebes; — e,
pelo Maior; e o que é menor é Menor
agora, faze depressa o que dizes.
por meio da Pequenez?
— Examina, pois, com cuidado, se
estás de acordo, como eu, com o que se — Indubitavelmente.
deduz dessa teoria! Para mim é evi — Em consequência, jamais esta
dente: quando, além do belo em si, rias de acordo com quem te viesse
existe um outro belo, este é belo por dizer que um é maior do que outro pela
que participa daquele apenas por isso e cabeça, e que o menor é menor pelo
por nenhuma outra causa. O mesmo mesmo motivo; mas continuarias fir
afirmo a propósito de tudo mais. Reco memente a afirmar que tudo aquilo que ioj «
— Eu? Claro que sim! — Cebes riu ignorância e o teu apego à segurança
e disse. que encontraste ao tomar por base a
— E não temerias igualmente dizer tese em questão — tudo isso te inspira
— continuou Sócrates — que o dez é ria uma resposta semelhante. E se
maior do que o oito porque o ultra alguém se apresentasse censurando
passa de dois e considerar isso como essa tese, porventura não o deixarias
causa, ao invés de dizer que é pela em paz e sem resposta, até o momento
quantidade e por causa da quantidade? em que houvesses examinado as conse
E serias capaz de dizer, da mesma quências dela extraídas e verificado se
forma, que um objeto do tamanho de ela concorda consigo mesma ou se
dois côvados é maior do que outro de contradiz? E depois, quando viesse a
um côvado pela metade, em lugar de ocasião de dar as razões desta tese em
dizer que é pela grandeza? Pois, sem si mesma, não o farias da mesma
dúvida, isso não é menos estapafúrdio! forma, tomando desta vez por base
— Efetivamente. uma outra tese, aquela em que encon
— Não te envergonharias de dizer trasses maior valor, até atingires um
que, acrescentando-se a unidade à uni resultado satisfatório? E não é claro c
dade, esse acréscimo, e dividindo-se a que tu, desejando uma doutrina do ser
c unidade, essa separação, são ambos verdadeiro, te absterias de tagarelices e
causas da formação do dois? Não mais discussões a propósito do princí
protestarias aos gritos que não com pio e das suas consequências, assim
preendes como cada coisa se possa for como fazem os que polemizam profis-
mar por outro modo que não seja pela sionalmente? Nada daquilo, com efei
participação na própria substância em to, figura nas pesquisas e preocupações
que essa coisa toma parte? Não dirias, de tais homens: dão-se por superior
neste caso, que não encontras outra mente satisfeitos com a sabedoria que
causa de formar-se o dois a não ser a possuem, embora confundam tudo64.
participação na idéia do dois, e que Tu, porém, se n.a verdade és filósofo, 102 °
deve participar dela o que vem a tor- tenho a certeza de que farás o que
nar-se dois, e também que deve partici digo!
par da idéia de unidade o que se toma — O que dizes é a pura verdade —
unidade? E, em consequência, não responderam ao mesmo tempo Símias
haverias de pôr de lado essas tais sepa e Cebes.
rações e acréscimos e demais artima EQUÉCRATES:: 1
nhas do mesmo gênero, deixando a dis — Por Zeus, caro Fédon, e com
cussão de tais coisas a homens que são 64 Golpe violento contra naturalistas e sofistas:
d mais sábios do que tu? Mas o medo estes desejam apenas discutir por discutir, sem
cogitar de obter a verdade; aqueles podem ter
que tens, como se costuma dizer, da uma convicção pessoal da veracidade de suas
tua própria sombra63, o receio da tua teorias, mas seus métodos são tão deficientes
que não conseguem oferecer mais do que fra
63 Temer a própria sombra: expressão prover cas tolices, não merecendo por isso o nome de
bial que exprime o cúmulo do medo.(N. doT.) filósofos. (N. doT.)
FÉDON 115
d — Não serão, caro Cebes, essas trário da que nelas existe. Volta, aliás,
coisas cuja existência as obriga a con às tuas lembranças (não há mal que; se
ter em si não só sua própria idéia, mas repitam as mesmas coisas!): O cinco
também, e sempre, a idéia contrária a não receberá em si a natureza do par;
uma certa coisa? nem o dez, que lhe é o dobro, a do
— Não compreendo o que dizes. ímpar. Este dez, como tal, não é con
— Quero dizer o que disse hâ trário ao outro, mas apesar disso não
pouco: sabes, com efeito, que o que receberá a idéia do ímpar. E o mesmo
contém a idéia do três necessariamente o que acontece com. o um e meio e com *>
não é só três, mas é também a idéia de os outros números que comportam o
ímpar. “meio”, em face da natureza do intei
— Sim. ro; e o mesmo, também, com o terço e
— E que dele jamais se aproximará as demais frações dessa espécie. Supo
a idéia de par? nho que estás a acompanhar-me e a
— É. participar da minha, opinião?
— Então a idéia de par jamais se — Participo com todas as minhas
aproximará do três? forças —' disse Cebes — e te acompa
— Efetivamente, jamais se aproxi nho.
mará. — Agora — disse Sócrates —
« — Em consequência, o três não recorda-te de nosso ponto de partida e
participa da idéia de par? fala, sem empregar., para responder, as
— Nunca, com efeito. próprias palavras de minha pergunta,
— Com isso, então, diremos que o mas tomando-me por modelo. Expli-
três é ímpar? co-me: ao lado da resposta de que eu
— Necessariamente. em primeiro lugar .falava, a resposta
— Desta forma, pois, é que se certa a que me referia, vejo, à luz do
determina, como disse, a natureza das que agora dissemos, uma outra certe
coisas, que, sem serem contrárias, não za. Podes perguntar-me: que é qüe
admitem a presença de seu contrário: o entrando num corpo o faz quente? Não «
três, por exemplo, sem ser contrário ao te darei aquela resposta certa, mas
par, nunca o aceita, e não o aceita por simples, que é o calor, mas responder-
que sempre tem incluído em si o con te-ei com uma mais hábil, dizendo que
trário do par; e do mesmo modo o dois é o fogo. Perguntas: que é qüe,
inclui o contrário do ímpar, o fogo o entrando num corpo, o toma doente?
do frio, e assim em muitíssimos outros Não direi que é a doença, mas a febre.
105 a exemplos. Pensa agora e dize-me se Da mesma forma, não irei declarar que
não concluirías assim: não é somente o um número se toma ímpar devido à
contrário que não recebe em si o seu imparidade, mas sim devido à unidade,
contrário, mas o mesmo acontece tam e assim por diante. Examina, entre
bém a coisas que, sem serem mutua tanto, se compreendeste bem o que
mente contrárias umas às outras, pos ‘ quero dizer!
suem sempre em si os contrários, e as — Compreendí suficientemente —
quais verossimilmente não receberão respondeu Cebes.
jamais, uma qualidade que seja o con — Então responde-me, se puderes:
FÉDON 119
indestrutível, segue-se que a alma não — não tenho, caro Sócrates, depois
d só é imortal, mas também indestru disso nada mais a ajuntar, nem nada a
tível. Se não, precisamos ir em busca apresentar contra a tua demonstração.
doutra prova. Se há, todavia, alguma coisa que Sí
— Mas não é necessário buscar mias aqui presente, ou alguém mais, te
outra prova! Se o que é imortal, quer nham a dizer, será bom que não silen
dizer, o que é eterno, aceitasse a ciem. Pois haverá outra ocasião, além
destruição, não poderia haver nenhu desta, para a qual possa adiar o desejo
ma outra coisa que deixasse de admi de falar ou de ouvir falar sobre tais
ti-la! 68 questões?69
— Creio, por conseguinte — conti — Tampouco eu — confessou Sí
nuou Sócrates —, que todos estão de mias — jamais poderia duvidar, após
acordo em que Deus e a própria idéia essas demonstrações — mas, apesar
da vida, e o mais que de imortal existe, disso, devido à magnitude da matéria
nunca desaparecem? tratada e por desconfiança em face da b
— Evidentemente, por Zeus! — fraca natureza humana, acho neces
exclamou Cebes. — Todos os homens, sário não confiar na discussão.
e mais ainda os deuses, segundo penso, — Nem só isso, caro Símias —
concordam nisso! exclamou Sócrates. — A justeza de
e — Por conseguinte, o que é imortal tuas palavras se estende também às
é também indestrutível; e a alma, premissas: por mais certas que vos
sendo imortal, não deve ser também pareçam ser, não deixam por isso de
indestrutível? exigir um exame mais profundo70.
— Necessariamente! Sim, com a condição de que as exami
— Logo, quando a morte sobrevêm neis com toda a precisão requerida, a
ao homem, a sua parte mortal natural marcha do raciocínio será seguida por
mente morre — mas a parte imortal
vós, se não me engano, com a maior
foge, rápida, subsistindo sem se des
proficiência de que o homem é capaz!
truir, escapando à morte.
E suponhamos, enfim, que isso se
— Evidentemente!
tenha revelado a vós como certo e evi
— Portanto, meu caro Cebes, a
dente — então, não precisareis procu
alma é antes de tudo uma coisa imortal
rar mais nada!
ia? a e indestrutível, e nossas almas de fato
hão de persistir no Hades! — Ê verdade — assentiu Cebes.
— Quanto a mim — disse Cebes 69 Sócrates tem poucas horas de vida, e quem
quiser algum esclarecimento a propósito da
68 A neve é portadora do frio; logo, aproxi imortalidade da alma deve aproveitar esta oca
mando-se o. calor, a neve se deve retirar ou sião; dentro em breve o mestre não mais estará
cessar de ser neve; mas naturalmente a neve com eles. (N. doT.)
nem sempre pode escapar do calor, e por isso 7° Este último diálogo entre Sócrates e Símias
se destrói sob a sua influência, deixando de ser não é expressão de ceticismo, como se poderia
neve. Isto é também verdadeiro de todas as pensar, mas leal reconhecimento da dificulda
coisas que são portadoras de certas idéias cujo de da matéria em tratamento: o discípulo de
contrário não podem aceitar. Esses corpos po Sócrates, isto é, de Platão, deve sempre revi
dem ser destruídos pelo seu contrário, mas a sar estas argumentações difíceis, para com
alma, como portadora da vida, faz exceção; o preendê-las sempre de modo mais perfeito. Esta
conceito da imortalidade exclui a destruição. filosofia, portanto, não é divertimento, nem
Logo, a única coisa que a alma sofre é reti- pode ser compreendida rapidamente. Exige re
rar-se quando a morte se aproxima. (N. dõT.) flexão. (N. do T.)
FÉDON 121
muito tempo ainda adejando ao redor cida com a de que falas. Teria, pois,
do cadáver e dos mottumentos funerá- muito prazer em te ouvir a esse
b . rios, oferece resistência e sofre, e só se respeito.
deixa levar pelo gênio sob violência e — Pois bem, meu caro Símias.
exigindo grandes esforços. Mas quan Todavia, para explicar como isso é,
do essa alma, afinal, chega ao lugar em evidentemente não necessitamos da
que já se encontram as outras almas, arte de Glauco7 4. Provar, porém, que
cada uma destas imediatamente se isso de fato assim é, eis uma tarefa que
afasta e a evita, pois sabem que ela de muito ultrapassa a arte de Glauco.
praticou-uma das negras ações seguin Eu talvez não seja, capaz de demons
tes: ou matou injustamente alguém, ou trá-lo, e, mesmo que fosse, parece-me
praticou qualquer crime desse gênero, que ainda assim a minha própria vida,
ou qualquer obra que seja própria caro Símias, não seria suficiente para
dessa espécie de almas. Por isso, nin fazê-lo, tendo em vista a extensão do
guém deseja ter sua amizade e ser seu assunto. Quanto a explicar-vos, entre- •«
companheiro, nem servir-lhe de guia. tanto, as minhas opiniões a respeito da
c Assim, essa alma erra desnorteada terra e de suas regiões, nada me impe
daqui para lâ, em ignorância absoluta, de de fazê-lo.
durante certo tempo, e em virtude de — Nada mais queremos! — excla
uma necessidade fatal é levada a uma mou Símias.
residência que lhe é conveniente. Inver — Pois bem — continuou Sócra
samente, a alma cuja vida na terra foi tes. — Em primeiro lugar, estou con
pura e sábia lá encontra, por compa vencido de que a terra, sendo redonda
nheiros e guias, os próprios deuses, e e estando colocada, no centro da abó
sua residência será, da mesma forma, a bada celeste, não precisa nem do ar
que lhe é adequada. nem de qualquer outra matéria para
“Ora, a terra possui grande número não cair. Ao contráirio, a uniformidade 109 a
de regiões maravilhosas, e nem pela existente em cada parte do céu, dum
sua constituição nem pela sua grande lado, e, de outro, o próprio equilíbrio
za, ela não é o que admitem as pessoas da terra são suficientes para sustentá-
que têm o costume de falar sobre ela, la. Assim, pois, um objeto que se man
conforme a convicção que alguém me tém em equilíbrio no centro de um con
transmitiu 73.” tinente uniforme não tem motivo
d — Mas que queres dizer, Sócrates? nenhum para inclinar-se mais para lá
— perguntou Símias. — Já tenho ou ou mais para cá e mantém-se efetiva
vido dizer muitas coisas a propósito da mente em sua posição, sem descair
terra, mas, confesso, nenhuma pare- para os lados. Aqui tendes o primeiro
73 Platão apresenta a exposição de uma fantás 74 Glauco: nome de alguns personagens da lenda
tica, teoria cosmográfica, na qual não se mostra grega, que realizaram obras dificílimas. A ex
de acordo com nenhuma das teorias naturalis pressão “obra de Glauco” serve para designar
tas que haviam sido elaboradas até então. uma realização árdua e complicadíssima.
(N. do T>.) (N. do T.)
123
FÉDON
astros são contemplados por esses quando diz: Bem longe, no lugar em
homens, tais como verdadeiramente que sob a terra está o mais fundo dos
são em si mesmos. A esses privilégios abismos, e é a ele que o próprio Home
se junta uma felicidade que lhes é ro em outros trechos, e da mesma
acompanhamento natural. forma muitos outros poetas, dão o
126 PLATÃO
nome de Tártaro81. O fato é que esse rios deste lado que, por sua vez, se
vazio é o lugar para onde convergem encherão. Cheios, os rios correm pelas
ós cursos de todos os rios, e também o vias de passagem e atravessam a terra,
de onde inversamente partem, adqui chegando a lugares que se abrem para
rindo cada um então características o exterior, dando nascimento a mares,
próprias, conforme o terreno que atra a lagos, a outros rios e a fontes. Mas, d
vessa. Quanto à razão pela qual todos daqui, a água desce novamente para o
os rios vão ter a esse lugar e dele saem, interior da terra e, depois de haver feito
está no fato de que a água aí não ora circuitos de grande extensão e em
encontra nem fundo nem base: é, pois, grande número, ora mais curtos e em
natural que aí haja um movimento de mepor número, desemboca no Tártaro;
oscilação e de ondulação, que a faça uns, muito abaixo do lugar de saída;
subir e descer. O ar e o sopro que a ele outros, um pouco menos — mas todos
se prende fazem o mesmo82: ambos sempre abaixo da saída do Tártaro.
acompanham e seguem, com efeito, o Alguns desses rios correm pelo lado
movimento da água, tanto quando este oposto àquele por onde saíram; outros, '
lança para o outro lado da terra como pelo mesmo lado. Alguns deles tam
quando para o nosso lado — mais ou bém descrevem um círculo completo,
menos assim como no processo da enlaçando a tenra uma ou duas vezes,
respiração, quando se inspira e expira, como serpentes, e descem à maior
se forma uma corrente de ar. Do profundidade que é possível, para vol
mesmo modo o sopro, aí entrando e tar ao Tártaro. Ora, o que é possível é «
saindo com as massas d’água, produz que, numa ou noutra direção, a descida
ventos de uma irresistível violência. se faça apenas até o centro, mas nunca
Suponhamos que a água se tenha além; pois a parte da terra que se acha
retirado para as chamadas regiões infe de cada um dos dois lados do centro é,
riores; afluindo então através do solo para cada corrente, a origem de uma
nos lugares onde, como vimos, se ascensão.
opera a descida da sua corrente, ela “Seguramente esses rios são muito
enche os rios do outro lado, do mesmo numerosos, enormes e variados: nessa
modo que nos processos de irrigação. multidão, porém, se podem distinguir
Suponhamos, inversamente, que a quatro mais importantes. O maior de
água fuja desses lugares e se arroje em todos, e aquele cujo curso descreve o
direção ao nosso lado. Serão então os círculo mais exterior, é o rio a que cha
81 Platão neste passo interpreta dados da mito
mam de Oceano83. Face a face com
logia com grande liberdade poética: Tártaro é este, e rolando em sentido oposto,
às vezes sinônimo de Hades, mas em geral a corre o Aqueronte8 4: serpeia por entre
mitologia o considera como uma parte do Ha
des, na qual os maiores criminosos recebem ã desertos, várias vezes corre também
pena merecida. Jamais se disse, porém, que o por baixo da terra, e ao cabo precipi
Tártaro fosse o centro dò sistema hidrográfico
universal. (N. do T.) ta-se no lago Aquerúsia. A este lago é 113 °
82 O Tártaro de Platão é um orifício que per
fura completamente a terra, passando pelo seu .83 Oceano: na lenda, é ele um rio que perfaz
centro. A água corre no Tártaro de uma para um círculo ao redor da terra plana. (N. doT.)
a outra extremidade, mas jamais sai fora desse 84 Aqueronte (ao pé da letra: rio dos lamentos)
canal, porque o centro da terra, comó centro é um fabuloso rio que existe no Hades; a men
de gravidade, a mantém segura. O ar, no Tár cionada lagoa Aquerúsia é também um dado
taro, faz movimentos como a água. (N. doT.l mitológico que Platão utiliza. (N. do T.)
FÉDON 127
que vêm ter as almas dos mortos, as avança, nas proximidades do lago
quais, após aíi permanecerem durante Aquerúsia, mas do lado oposto. Suas-
o tempo que lhes foi prescrito, tempo águas tampouco se misturam com
mais longo para umas, mais breve para outra; também'elas, após o trajeto cir
outras, são outra vez enviadas para cular, finalmente desembocam no Tár
formarem os seres vivos. Um terceiro taro, num ponto oposto ao Periflege
rio nasce a meia distância entre os dois tonte: o nome deste rio, ao dizer dos
primeiros e, perto do ponto em que poetas é Cocito88.
nasceu, vem a desembocar num vasto “Tal é, pois, meus amigos, a distri-
espaço onde arde um fogo imenso; aí, buição natural desses rios. Eis, agora,
então, forma um lago muito maior do os mortos chegados ao lugar para onde
que o nosso mar8 5, fervendo sempre cada um foi conduzido por seu gênio
b água e lama; e daí sai, sujo e cheio de tutelar. Aí, antes do mais, todos são
lama, serpeando por muitas voltas e julgados, tanto os que tiveram uma
passando por muitos lugares, che vida sã e piedosa como os outros. Em
gando a cruzar pela extremidade do seguida, aqueles de quem se verifica
lago Aquerúsia, sem todavia se mistu que tiveram uma existência comum
rar com suas águas, para ir, final são dirigidos ao Aqueronte, e nele, em
mente, após mais alguns coleios repeti qualquer embarcação, se encaminham
dos, lançar-se no Tártaro, num ponto para o lago Aquerúsia. Lá, então, pas
mais abaixo: é a este terceiro rio que se sam a morar e a submeter-se a purifi
dá o nome de Periflegetonte8 6, e dele é cações, quer remindo-se pelas penas
que brota toda lava que se encontra, que sofrem das ações de que se toma
onde quer que ela exista, sobre a face ram culpados, quer obtendo pelas boas
de nossa terra. Fazendo por sua vez ações que praticaram recompensas
face a este, corre o quarto rio: rolam
suas águas primeiramente por uma proporcionadas aos méritos de cada
região de assombrosa horripilância e um89. Outros, porém, que se verifica *
selvageria, completamente revestida de serem incuráveis por causa da gran
uma uniforme coloração azulada — é deza dos pecados que cometeram,
c a região que se denomina região Estí- autores de roubos em templos repeti
87 é então o nome do lago
gia; e Estige85
86 dos e graves90, de muitos homicídios
formado por esse rio. Depois de se 88 Cocito (rio das queixas) é igualmente um
haver lançado nesse lago, onde suas dos fabulosos rios do Hades. Platão esclarece:
águas adquirem temíveis propriedades, “ao dizer dos poetas”. Mas aproveitou dos poe
tas apenas o nome do rio, pois em nenhuma
mergulha pela terra adentro e, descre poesia ele desempenha o papel que Platão lhe
vendo espirais, corre em sentido con empresta. (N.doT.)
89 Os que viveram uma vida comum, consti
trário ao Periflegetonte, ante o qual tuem a maioria: não têm nem grandes vícios,
nem grandes virtudes. Conforme a vida que le
85 Não é bem claro se “nosso mar” indica o varam, recebem punição ou recompensa tempo
Mediterrâneo ou o Egeu, que é o mar propria rária e, ademais, como indica o trecho ante
mente grego. Em todo caso, este lago é bem rior, voltam a inserir-se em novos corpos.
grande. (N.doT.) Platão não descreve as punições nem as recom
86 Periflegetonte (ao pé da letra: rio de cha pensas. (N.doT.)
mas de fogo) é também um rio fabuloso que 90 Os salteadores de templos figuram entre os
corre no Hades. Nosso autor utiliza este rio em maiores criminosos: onde se observa o respeito
sentido naturalista para explicar os vulcões. de Platão à religião tradicional. Sócrates, acusa
(N. do T.) do de inimigo desta religião,, é que expressa tais
87 Estige, na mitologia, é um rio do Hades. pensamentos. Assim, Platão está defendendo seu
Platão o transforma em lago. (N. do T.) caro mestre. (N. do T.)
128 PLATÃO
durante sua vida desprezou os prazeres tanto a mim e aos meus quanto a vós
do corpo e os ornamentos deste, princi mesmos, ainda que não tenhais assu
palmente, pois são, a seu ver, coisas mido esse*compromisso. Suponhamos,
estranhas e nocivas. O homem que, ao pelo contrário, que de vós próprios não
contrário, se dedicou aos prazeres que tomeis cuidado, e que não queirais
têm a instrução por objeto, e que dessa absolutamente viver em conformidade
forma ornou sua alma, não com ador com o que foi dito tanto hoje como em
nos estranhos e nocivos, mas com o outras ocasiões. Então, quaisquer que
que é propriamente seu e mais lhe con possam ser hoje o número e a força de
vém, com a temperança, a justiça, a vossas promessas, nada tereis adianta
coragem, a liberdade, a verdade9 4 — do !
esse aguarda confiante e corajoso o — Poremos todo o nosso coração, c
momento de por-se a caminho do naturalmente — disse Críton — em
as o Hades, quando seu destino o chamar ! conduzir-nos dessa forma. Mas como
“Vós, seguramente — ajuntou Só haveremos de enterrar-te?
crates —, vós, Símias, Cebes, e todos -—- Como quiserdes — respondeu
os outros — será mais tarde, não sei —, isto é, se conseguirdes reter-me a
quando, que vos poreis a caminho. mim, e se eu não vos escapar! —
Quanto a mim, o meu destino neste Então riu-se docemente e, voltando-se
momento me chama, como diria um para nós, disse: — Não há meio, meus
ator de tragédia9 5. amigos, de convencer Críton de que o
“Creio que ainda me sobra algum que eu sou é este Sócrates que se acha
tempo para tomar um banho: parece- presentemente conversando convosco e
me melhor, com efeito, lavar-me antes que regula a ordem de cada um de seus
de tomar o veneno, e não deixar para argumentos! Muito ao contrário, está
as mulheres o trabalho de lavar um persuadido de que eu sou aquele outro
cadáver.” Sócrates cujo cadáver estará daqui a
Depois destas palavras de Sócrates, pouco diante de seu olhos; e ei-lo a
b Críton falou: — Então, que ordens nos perguntar como me deve enterrar! E d
dás, Sócrates, a estes ou a mim, a res .quanto ao que desde há muito venho
peito de teus filhos ou de qualquer repetindo — que depois de tomar o ve
outro assunto? Quanto a nós, essa neno não estarei mais junto de vós,
seria, por amor a ti, nossa tarefa mais mas me encaminharei para a felicidade
que deve ser a dos bem-aventurados —
importante 1
tudo isso, creio, eram para ele vãs
— Justamente, Críton, não cesso de
palavras, meras consolações que eu
falar sobre ela — respondeu — e nada procurava dar-vos, ao mesmo tempo
de novo tenho para vos dizer! Vede: que a mim mesmo ! Sede, pois, meus
cuidai de vós próprios, e de vossa parte fiadores junto a Críton, garantindo-lhe
então toda tarefa será feita com amor, o contrário daquilo que ele afiançou
94 Nesta enumeração de virtudes, a liberdade só aos juizes9 6. Ele jurou que eu ficaria
pode ter o sentido de “libertação de paixões e no meio de vós; vós, porém, afirmai-
vícios”. (N. doT.)
95 Nas tragédias, os heróis despedem-se de seus 96 Alusão ao processo de Sócrates: Críton ga
amigos com frases como esta e em tom dramá rantiu ao tribunal que Sócrates não fugiría.
tico. (N. doT.) (N. doT.)
130 PLATAO
lhe que não ficarei entre vós quando estou sofrendo dores inenarráveis, e
morrer, mas que partirei, que me irei que no decorrer dos funerais diga estar
embora! Este éo único meio de fazer expondo Sócrates, conduzindo-o a se
« com que esta provação seja mais pultura e enterrando-o 1 Nota bem,
suportável a Críton, o meio de evitar meu bravo Críton: a incorreção da lin
que, vendo queimar ou enterrar meu guagem não é somente uma falta
corpo97, se impressione e pense que cometida contra a própria linguagem.
Ela faz mal às almas! Não! É preciso
9? A época clássica dos gregos não conheceu o perder esse temor. Realiza estes fune
costume generalizado dos funerais, tendo insti rais como quiseres e como achares m «
tuído a liberdade de queimar ou enterrar os
cadáveres, como se quisesse. (N.doT.) mais conforme aos usos.
Epílogo
Dito isto, Sócrates pôs-se de pé, e, com eles em presença de Críton, fazen-
para banhar-se, passou a outra peça. do-lhes algumas recomendações. Em
Críton seguiu-o, fazendo-nos sinal que seguida ordenou que se retirassem e
esperássemos. Ficamos, pois, a conver veio para junto de nós.
sar e a examinar tudo quanto se havia Já o sol estava próximo de recolher-
dito. Lamentávamos a imensidade do se, pois Sócrates havia passado muito
infortúnio que sobre nós descera. Ver tempo no outro quarto. Ao voltar do
dadeiramente, era para nós como se banho sentou-se novamente, e a con
perdéssemos um pai, e iríamos passar versa desta vez durou pouco. Apresen
como órfãos o resto de nossa vida! tou-se então o servidor dos Onze, e, em
b Depois de se ter banhado, trouxe pé, diante dele disse:
ram-lhe seus filhos (tinha dois peque — Sócrates, por certo não me darás
nos e um já grande), e as mulheres de a mesma razão de queixa que tenho
casa98 também vieram; entreteve-se contra os outros 1 Esses enchem-se de
98 Esta frase suscitou na antiguidade a seguinte cólera contra mim e me cobrem de
tentativa de explicação: em seguida à guerra
do Peloponeso, em que morreram muitos ho imprecaçÕes quamdo os convido a
mens; os atenienses consentiram que cada cida tomar o veneno, porque tal é a. ordem
dão passasse a ter mais mulheres além da legí dos Magistrados. Tu, como tive muitas
tima esposa; e Sócrates, modeío de patriota,
acrescentou a Xantipa uma nova esposa, da ocasiões de verificar, és o homem mais
qual teve um de seus três filhos. Mirto era o generoso, o mais brando e o melhor de
nome desta última. Mas tudo isso não está bem
provado. Platão, quando aqui fala em mulhe todos aqueles que passaram por este
res de casa, talvez queira significar apenas que
Xantipa compareceu ao cárcere acompanhada lugar. E, muito particularmente hoje,
de parentes ou de escravas. (N.doT.) estou convencido de que não será con-
FÉDON 131
tra mim que sentirás ódio, pois conhe do demais; vai, obedece, e não me
ces os verdadeiros culpados, mas con contraries.
tra eles. Não ignoras o que vim Assim admoestado, Críton fez sinal
anunciar-te, adeus! Procura suportar a um de seus servidores que se manti
da melhor forma o que é necessário ! nham nas proximidades. Este saiu e
<i Ao mesmo tempo pôs-se a chorar e, retornou daí a poucos instantes, con
escondendo a face, retirou-se. Sócrates duzindo consigo aquele que devia
tendo levantado os olhos para ele: administrar o' veneno. Este honxem o
— Adeus! —> disse. — Seguirei o trazia numa taça. Ao vê-lo Sócrates
teu conselho. disse:
Depois, voltando-se para nós: -—• Então, meu caro! Tu que tens
— Quanta gentileza neste homem ! experiência disto, que é preciso que eu
Durante toda a minha permanência faça?
aqui veio várias vezes ver-me, e até •—• Nada mais — respondeu — do
conversar comigo. Excelente homem! que dar umas voltas caminhando, de
E, hoje, quanta generosidade no seu pois, de haver bebido, até que as pernas »
pranto! Pois bem, avante! Obedeça se tornem pesadas, e em seguida ficar
mos-lhe, Críton, e que me tragam o ve deitado. Desse modo o veneno produ
neno se já está preparado; se não, que zirá seu efeito.
o prepare quem o deve preparar !/ Dizendo isso, estendeu a taça a Só
Então disse Críton: crates. Este a empunhou, Equécrates,
e — Mas, Sócrates, o sol se não me conservando toda a sua serenidade,
engano está ainda sobre as montanhas sem um estremecimento, sem uma alte
e não se deitou de todo. Ademais, ouvi ração, nem da cor do rosto, nem dos
dizer que outros beberam o veneno só seus traços. Olhando em direção do
muito tempo depois de haverem rece homem, um pouco por baixo e perscru-
bido a intimação, e após terem comido tadoramente, como era seu costume,
e bebido bem, e alguns, até, só depois assim falou:
de haverem tido contato com as pes — Dize-me, é ou não permitido
soas que desejaram. Vamos! nada de fazer com esta beberagem uma libação
precipitações; ainda há muito tempo ! às divindades?"
Ao que Sócrates respondeu: •—■ Só sei, Sócrates, que trituramos
— Ê muito natural, Críton, que as a cicuta em quantidade suficiente para
pessoas de quem falas tenham feito o produzir seu efeito, nada mais.
que dizes, pensando que ganhavam al — Entendo. Mas pelo menos há de
guma coisa fazendo o que fizeram. ser permitido, e é mesmo um dever,
Mas, quanto a mim, é natural que eú dirigir aos deuses uma oração pelo c
não faça nada disso, pois penso que bom êxito desta mudança de residên-
tomando o veneno um pouco mais
99 Nos banquetes dos gregos era costume que
n7 a .tarde nada ganharei, a não ser, tomar- todos os convivas, antes de tocarem na primeira
me para mim mesmo um objeto de taça, derramassem no chão algumas gotas, em
homenagem aos deuses, e que ao mesmo tempo
riso, agarrando-me dessa forma à vida recitassem uma breve oração. Aqui, Platão quer
e procurando economizá-la quando sublinhar a tranqüilidade de Sócrates: este se
comporta como se estivesse num banquete.
dela nada mais resta! Mas temos fala (N. do T.)
132 PLATÃO
cia, daqui para além. É esta minha então de costas, assim como lhe havia
prece; assim seja! recomendado o homem. Ao mesmo
E em seguida, sem sobressaltos, sem tempo, este, aplicando as mãos aos pés
relutar nem dar mostras de desagrado, e às pérnas, examinava-os por interva
bebeu até o fundo. los. Em seguida, tendo apertado forte
Nesse momento nós, que então mente o pé, perguntou se o sentia. Só
conseguíramos com muito esforço crates disse que não. Depois disso
reter o pranto, ao vermos que estava recomeçou no tornozelo, e, subindo
bebendo,-que jâ havia bebido, não nos aos poucos, nos fez ver que Sócrates
contivemos mais. Foi mais forte do começava a ficar frio e a enrijecesse.
que eu. As lágrimas me jorraram em Continuando a apalpá-lo, declarou-nos
ondas, embora, com a face velada, esti que quando aquilo chegasse até o cora
vesse chorando apenas a minha infeli ção,. Sócrates ir-se-ia1 01. Sócrates já se
cidade — pois, está claro, não podia tinha tornado rijo e frio em quase toda
chorar de pena de Sócrates! Sim, a a região inferior do ventre, quando des
infelicidade de ficar privado de um tal cobriu sua face, que havia velado, e
d companheiro! De resto, incapaz, disse estas palavras, as derradeiras que
muito antes de mim, de conter seus pronunciou:
soluços, Críton se havia levantado — Críton, devemos um galo a
para sair. E Apolodoro1 00, que mesmo Asclépio ; não te esqueças de pagar
antes não cessara um instante de cho essa dívida.
rar, se pôs então, como lhe era natural, — Assim farei — respondeu Crí
• a lançar tais fugidos de dor e de cólera, ton. — Mas vê se não tens mais nada
que todos os que o ouviram sentiram- para dizer-nos.
se comovidos, salvo, é verdade, o pró A pergunta de Críton ficou sem res
prio Sócrates: posta. Ao cabo de breve instante, Só
— Que estais fazendo? — excla crates fez um movimento. O homem
mou. — Que gente incompreensível! então o descobriu. Seu olhar estava
Se mandei as mulheres embora, foi fixo. Vendo isso, Críton lhe cerrou a
sobretudo para evitar semelhante cena, boca e os olhos.
pois, segundo' me ensinaram, é com Tal foi, Equécirates, o fim de nosso
belas palavras que se deve morrer, companheiro. O homem de quem po
e Acalmai-vos, vamos! dominai-vos! demos bendizer que, entre todos os de
Ao ouvir esta linguagem, ficamos seu tempo que nos foi dado conhecer,
envergonhados e contivemos as lágri era o melhor, o mais sábio e o mais
mas. justo.
Quanto á Sócrates, pôs-se a dar
umas voltas no quarto, até que decla 101 A descrição minuciosa do efeito do veneno
está a mostrar que na realidade se trata da ci-
rou sentir pesadas as pernas. Deitou-se cuta, planta muito venenosa; e manifesta, da
mesma forma, a humanidade com que os ate
100 o leitor do Banquete já conhece Apolodoro nienses realizavam suas execuções capitais, pro
como o mais emotivo dos alunos de Sócrates. curando torná-las isentas de sofrimentos e do
(N.doT.) res. (N.doT.)
SOFISTA
Teodoro, Sócrates,
Estrangeiro de Eléia, Teeteto
I
138 PLATÃO
142 PLATAO
bemos esta distinção: que são os obje- parte não será menos ridículo que o da
e tos que servem ao alimento ou ao uso, primeira e, pois que o que ela vende
tanto do corpo como da alma, que se são as ciências, deveremos chamá-la,
vendem e se trocam por dinheiro? necessáriamente, por um nome que
TEETETO tenha correspondência próxima com o
— Que queres dizer com isso? nome de sua própria prática.
ESTRANGEIRO TEETETO
— Que, talvez, falte-nos reconhecer — Certamente.
parte relativa à alma, pois a outra,
ESTRANGEIRO
creio, é-nos clara. — Assim, nesta importação por
TEETETO atacado das ciências, a seção relativa <=
— Sim. às ciências das diversas técnicas terá
» ESTRANGEIRO um nome; e a que cuida, em sua impor
— Podemos dizer que a música em tação, da virtude, um outro nome.
todas as suas formas, levada de cidade
em cidade, aqui comprada para ser TEETETO
-—- Naturalmente.
para lâ transportada e vendida; que a
pintura, a arte dos prestidigitadores em ESTRANGEIRO
— À primeira convém o nome de
seus prodígios, e muitos outros artigos
importação por atacado das técnicas.
destinados à alma, que se transportam
Quanto à outra, procura tu mesmo
e vendem, seja a título de divertimento
encontrar-lhe o nome.
ou de estudos sérios, dão àquele que as
transporta e vende, tanto quanto ao’ TEETETO
vendedor de alimentos e bebidas, direi — Que nome daremos, que não pa
to ao título de negociante? reça falso, a menos que digamos: aí
TEETETO
está o objeto que procuramos, o famo
— O que dizes é a pura verdade. so gênero sofistico.
b ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Àquele que, de cidade em cidade -—- Esse, e nenhum outro. Agora,
vende as ciências por atacado, trocan- vejamos, recapitulando, e repitamos:
db-as por dinheiro, darias o mesmo esta parte da aquisição, da troca, da
nome? troca comercial, da importação, da d
TEETETO importação espiritual, que negocia dis
— Certamente. cursos e ensinos relativos à virtude, eis,
ESTRANGEIRO em seu segundo aspecto, o que é a
— Nesta importação espiritual, sofistica.
uma parte não se chamaria, com'justi TEETETO
ça, arte de exibição? O nome da outra — Perfeitamente.
148 PLATÃO
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Dentre as partes da arte de aqui — Colocando, de um lado, a sim
sição, havia a luta. ples rivalidade, e de outro, o combate.
TEETETO TEETETO
— É exato. — Bem.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Não está, pois, fora de propósito — Poderiamos definir conveniente
dividir a luta em duas partes. mente o combate que se realiza corpo
TEETETO a corpo, como um assalto a força
— Explica de que modo. bruta? .
SOFISTA 149
. TEETETO TEETETO
— Sim. —. E certo; as suas divisões são
ESTRANGEIRO realmente muito pequenas e muito
— Mas, àquele em que se opõem diversas.
argumentos contra argumentos, por ^ESTRANGEIRO
que outro nome chamaríamos, Teeteto, — Mas a contestação conduzida
b além de contestação? com arte, e relativa ao justo em si, ou
TEETETO ao injusto em si, e a outras determina
— Por nenhum outro. ções gerais, não a chamamos, comu
ESTRANGEIRO mente, por erística?
— Ora, o gênero de contestação .TEETETO
deve ser considerado em duas partes. — E de que outra forma have
TEETETO riamos de chamá-la?
— De que ponto de vista? ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO — Ora, na realidade, a erística ou
— Uma vez, opondo-se a um longo bem nos leva a perder ou a ganhar
desenvolvimento outro desenvolvi dinheiro.
mento igualmente longo de argumen TEETETO
tos contrários, mantendo-se uma con — Perfeitamente.
trovérsia pública sobre as questões de ESTRANGEIRO
justiça e de injustiça; é a contestação — Procuremos dizer que nome pró
judiciária. prio se aplica a cada uma delas.
TEETETO TEETETO .
— Sim. — Sim, procuremos.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Mas, se a contestação é privada, — Quando, encantados por esta
fragmentando-se na alternância de per ocupação, sacrificamos os negócios
guntas e respostas, que outro nome lhe pessoais sem darmos, como se diz, pra
damos, comumente, além do de contes zer algum à massa de nossos ouvintes,
tação contraditória? ela se chamará, ao que creio, e tanto
TEETETO quanto posso julgar, simplesmente,
— Nenhum outro. tagarelice.
ESTRANGEIRO TEETETO
— A contradição que tem por obje — E precisamente esse p nome que
to contratos e que, realmente, é contes- se lhe dá.
; tação, mas que procede ao acaso e sem ESTRANGEIRO
arte, deve, é certo, constituir uma — É tua vez, agora. Procura dizer
forma especial, umà vez que a sua que nome se dá à arte oposta que rece
originalidade ressalta claramente de be dinheiro por disputas privadas.
nossa discussão. Mas, os que viveram TEETETO
antes de nós não lhe deram nome — Que hei de dizer, ainda desta
algum, e a procura de um nome que lhe vez, sem risco de erro, senão que nova
seja próprio não merece agora a nossa mente aí está o prestigioso personagem
atenção. e que assim nos aparece, pela quarta
150 PLATÃO
TEETETO TEETETO
— Agora que tu o dizes, é quase — E bem ridículos, certamente.
evidente. ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO — Totalmente ridículos, Teeteto.
— Para a última espécie não tenho Mas, afinal, ao método de argumenta
nome algum que a designe, mas para a ção não importa menos a lavagem com
primeira, a que retém o melhor e rejei esponjas do que os medicamentos,
ta o pior, tenho um nome. atendendo-se a que a ação purificadora
TEETETO de uma arte seja mais ou menos bené
— Dize-o. fica que a de outra. Na realidade, é
ESTRANGEIRO para alcançar a penetração de espírito b
— Toda a separação desta espécie •que, investigando todas as artes, ele se
é, creio, universalmente chamada de esforça em descobrir as suas afinida
purificação. des e as suas dessemelhanças. Assim,
TEETETO deste ponto de vista, todas elas valem
— É precisamente assim que é igualmente para ele. Nenhuma arte,
chamada. desde que atenda à conformidade pro
e ESTRANGEIRO curada, lhe parecerá mais ridícula que
— A dualidade desta forma de outra. Que a arte da estratégia seja
purificação não é visível à primeira uma ilustração mais grandiosa do que
vista? a arte da caça, o que não aconteceria
TEETETO com a arte de matar piolhos, não admi
— Talvez, se refletirmos. Por en te o método de argumentação que,
quanto, não vejo dualidade alguma. naquela primeira arte, apenas vê maior
ESTRANGEIRO pompa. Assim, no caso presente, ele
— Em todo o caso, as múltiplas apenas considera a questão que pro
formas de purificação que se aplicam pões: que nome se deve dar ao con
aos corpos podem ser reunidas sob um junto destas forças purificador as desti
único nome. nadas aos corpos, animados ou
TEETETO inanimados, sem se preocupar em c
— Que formas e que nome? saber que nome seja o mais distinto.
ESTRANGEIRO Bastará separar tudo o que purifica a
— Para os corpos vivos, todas as alma e agrupar, em um novo todo,
purificações internas que se operam, tudo o que purifica outras coisas que
graças a uma exata discriminação, não a alma. O que lhe compete, agora,
227 a pela ginástica e pela medicina, e todas se é que compreendemos os seus
as purificações externas, por ínenos propósitos como método de argumen
característico que lhe seja o nome, e as tação, é discernir, realmente, a purifi
quais a arte do banhista nos prescreve; cação que se dirige ao pensamento e
e para os corpos inanimados, todos os distingui-la de todas as demais.
cuidados próprios do apisoador, ou TEETETO
mais universalmente, próprios à prepa — Sim, compreendo, e concordo
ração do couro, e que se distribuem ém que há duas formas de purificação,
nomes que parecem ridículos. uma das quais tem por objeto a alma e
152 PLATÃO
TEETETO ESTRANGEIRO
— Evidentemente à sua assimetria. — E para o corpo, ao menos, já
ESTRANGEIRO não se encontram duas artes relativas a
— Mas para a alma e para qual estas duas afecções?
quer alma, nós sabemos que toda a TEETETO
ignorância é involuntária. — Quais?
TEETETO ESTRANGEIRO 2;
— Completamente involuntária. — A ginástica para a fealdade, e a
ESTRANGEIRO
medicina para a enfermidade.
— Ora, ignorar é precisamehte o TEETETO
fato de uma alma atirar-se à verdade, e — É o que parece.
d neste próprio impulso para a razão, ESTRANGEIRO
desviar-se: não é outra coisa senão um — Assim, a correção para a falta
contra-senso. de medida, para a injustiça e a covar
dia é, dentre todas as técnicas, a que
TEETETO
— Perfeitamente. melhor se aproxima da Justiça.
TEETETO
ESTRANGEIRO
— Deveremos, pois, afirmar que na — E o que parece, pelo menos se
alma insensata há fealdade e falta de quisermos falar conforme à opinião
humana.
medida.
ESTRANGEIRO
TEETETO
— Parece que sim. —r E ainda: para toda a ignorância
haverá uma arte mais apropriada que o
ESTRANGEIRO ensino?
— Há pois, aparentemente, na
TEETETO
alma, estes dois gêneros de males: e — Nenhuma.
um deles a que o vulgo chama malda
de, é para ela, evidentemente, uma ESTRANGEIRO
— Vejamos, pois: o ensino consti
enfermidade.
tuirá um único gênero ou deveremos .
TEETETO nele distinguir vários gêneros dos quais
— Sim. dois são os principais? Examina a i>
ESTRANGEIRO questão.
— Ao outro, o vulgo chama igno TEETETO
rância; recusando-se entretanto a ad — Ê o que faço.
mitir que este mal, na alma, e apenas ESTRANGEIRO
para ela, seja um vício, — A meu ver, este é o meio mais
e TEETETO, . rápido de resolvê-la.
— Sim, é preciso admitir ainda que TEETETO
há dois gêneros de vício na alma: a — Qual?
covardia, a intemperança e a injustiça ESTRANGEIRO
devem todas ser consideradas como — Ver se a ignorância permite uma
uma enfermidade em nós; e nesta afec- linha mediana de divisão. Se a igno
ção múltipla e diversa que é a ignorân rância for dupla, toma-se claro, real
cia, devemos ver uma fealdade. mente, que no próprio ensino haveria,
154 PLATÃO
espécie de ignorância que qualifica o são com o tom mais terno da admoes-
nome de ignaro. tação. Em seu todo, poder-se-ia muito
TEETETO
justamente chamá-la de admoestação.
— Perfeitamente. TEETETO
ESTRANGEIRO
— É bem assim.
— Mas que nome daremos à parte ESTRANGEIRO
do ensino à qual compete dela liber- — Quanto ao outro método, parece
tar-nos? que alguns chegaram, após amadure
TEETETO cida reflexão, a pensar da seguinte
— A meu ver, estrangeiro, a outra forma: toda ignorância é involuntária,
parte é da competência do ensino das e aquele que se acredita sábio se recu
profissões; mas o ensino de que falas, sará sempre a aprender 'qualquer coisa
aqui chamamos de educação. de que se imagina esperto; e apesar de
ESTRANGEIRO toda a punição que existe na admoesta
— E, na realidade, esse o seu nome, ção, esta forma de punição tem pouca
Teeteto, entre quase todos os helenos. eficácia.
Mas é preciso ainda que examinemos TEETETO ~
se aí existe um todo já indivisível ou se — Eles têm razão.
ele permite alguma divisão na qual ESTRANGEIRO b
são, se armam contra ela, de um novo a acreditar saber justamente o que ela
método. sabíàj mas nada além.
TEETETO TEETETO
— Qual? — Essa é, infalivelmente, a melhor
ESTRANGEIRO disposição e a mais sensata.
— Propõem, ao seu interlocutor, ESTRANGEIRO
questões às quais acreditando respon — Aí estão, pois, muitas razões,
der algo valioso ele não responde nada Teeteto, para afirmarmos que a refuta
de valor; depois, verificando facil ção é o que há de mais importante e de
mente a vaidade de opiniões tão erran mais eficaz na purificação e para acre
tes, eles as aproximam em sua crítica, ditarmos, tambémj que permanecer à
confrontando umas com outras, e por parte desta prova é, ainda que sé trate
meio desse confronto demonstram que do grande Rei, permanecer impürifi- «
a propósito do mesmo objeto, sob os cado das maiores máculas e conservar
mesmos pontos de vista, e nas mesmas a falta de educação e a fealdade onde a
relações, elas são mutuamente contra maior pureza, e a mais perfeita beleza
ditórias. Ao percebê-lo, os interlocu se requer, a quem pretenda possuir a
tores experimentam um descontenta verdadeira beatitude.
mento para consigo mesmos, e TEETETO
disposições mais conciliatórias para — Perfeitamente.
c com outrem. Por este tratamento, tudo ESTRANGEIRO
o que neles havia de opiniões orgulho — Pois bem! Que nome daremos
sas e frágeis lhes é arrebatado, ablação aos que praticam esta arte? Pois eu
em que o ouvinte encontra o maior tenho receio de chamá-los de sofistas. 231 a
TEETETO
encanto e, o paciente, o proveito mais — Que receio ?
duradouro. Há, na realidade, um prin
ESTRANGEIRO
cípio, meu jovem amigo, que inspira — De dar muita honra aos sofistas.
aqueles que praticam este método pur- TEETETO
gativo; o mesmo que diz, ao médico do — E entretanto, há algurqa seme
corpo, que da alimentação que se lhe lhança entre eles e aquele de quem, hâ
dá não poderia o corpo tirar qualquer pouco, falamos.
proveito enquanto os obstáculos inter ESTRANGEIRO
nos não fossem removidos. A propó — Na realidade, tal como entre o
sito da alma formaram o mesmo con- cão e o lobo, como entre o animal mais
d ceito: ela não alcançará, do que se lhe selvagem e o mais doméstico. Ora,
possa ingerir de ciência, benefício para estarmos bem seguros é sobre
algum, até que se tenha submetido à tudo com relação às semelhanças que é
refutação e que por esta refutação, preciso manter-nos em constante guar
causando-lhe vergonha de si mesma, se da: na verdade, é um gênero extrema
tenha desembaraçado das opiniões que mente escorregadio. Mas, por enquan
cerram as vias do ensino e que se tenha to, admitamos que sejam os mesmos,
levado ao estado de manifesta pureza e pois desde que observem uma fronteira
I
156 PLATÃO
ESTRANGEIRO TEETETO
— Primeiramente descansemos e — Sim, e o quarto personagem que
durante esta pausa vejamos o que dis ■ ele nos revelou foi o de um produtor e
semos. Sob quantos aspectos se apre- vendedor destas mesmas ciências.
d sentou a nós o sofista? Creio que, em
ESTRANGEIRO
primeiro lugar, nós descobrimos ser ele
— Tua memória é fiel. Quanto ao.
um caçador interesseiro de jovens
seu quinto papel, eu mesmo procurarei
. ricos.
lembrâ-lo. Na realidade, filiava-se ele à
TEETETO arte da luta, como um atleta do discur
— Sim.
so, reservando, para si, a erística.
ESTRANGEIRO
— Em segundo lugar, um nego- TEETETO
ciànte, por atacado, das ciências relati — Exatamente.
vas à alma. ESTRANGEIRO
TEETETO — O seu sexto aspecto deu margem
— Perfeitamente. à discussão. Entretanto, nós- concor
ESTRANGEIRO - damos em reconhecê-lo, dizendo que é
-—.Em seu terceiro aspecto, e com ele quem purifica as almas das opi
relação às mesmas ciências, não se niões que são um obstáculo às ciên
revelou ele varejista? cias.
SOFISTA 157
b ESTRANGEIRO TEETETO
-—’ Como chegam esses homens a — Èrbem voluntariamente.
incutir na juventude que somente eles,
ESTRANGEIRO
e a propósito de todos os assuntos, são — Ê'Aquè; ao que creio, eles pare
mais sábios que todo o mundo? Rois, cem ter uma sabedoria pessoal sobre
na realidade, se‘como contraditôres todos qs ássuntos que contradizem.
nao tivessem râzão, óu não pareces-
TEETETO
sem, a sua juventude, ter razaò; se, -— Irrecúsavelmente.
mesmo assim, a sua habilidade em dis
cutir não " désse algum brilho à sua ESTRANGEIRO
sabedoria, então seria caso de dizer, — E assim fazem, a propósito de
como tu, que ninguém viria voluntaria tudo, segundo cremos?
mente dar-lhes dinheiro para deles TEETETO
aprender estas duas artes. — Sim.
TEETETO ESTRANGEIRO'
— Certamente. — Dão, então, a seus discípulos a
■ ESTRANGEIRO
impressão de serem oniscientes. 1
— Ora, na verdade, os que os pro TEETETO
curam o fazem voluntariamente.
•\
— Como não!
SOFISTA 159
ESTRANGEIRO • TEETETO
— E sem o ser, na realidade; pois, •—- Que dizes com isso?
como vimos, isso seria impossível. ESTRANGEIRO
TEETETO — Quem se julgasse capaz de pro
— E como não haveria de ser duzir a mim e a ti e a tudo que nasce e
impossível? cresce. . .
ESTRANGEIRO TEETETO 234 a
: ESTRANGEIRO, TEETETO
— Ora, não é neste caso que se — Ê mesmo o que parece.
encontra uma grande parte da pintura ESTRANGEIRO^ |
e da mimética, em seu todo? — É a consciência da dificuldade
TEETETO que te leva a essa afirmação ou estará
— Sem dúvida. sendo levado pelo curso da argumenta
ESTRANGEIRO ção e pela força do hábito, ao afirma
— Mas à arte que, em lugar de uma res, tão prontamente, o que eu afirmo?
cópia, produz um simulacro, não cabe TEETETO
ría, perfeitamente, o nome de arte do — Que queres dizer? Por que essa
simulacro? pergunta? '
— SimJ perfeitamente. ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO
— Ê que, realmente, jovem feliz,
— Aí estão as duas formas que te nos vemos frente a uma questão extre-
anunciei da arte que produz imagens: a mamente difícil; pois, mostrar e pare
arte da cópiã è à arte do simulacro. cer sem ser, dizer algo sem, entretanto,
—- ísso mesmo. dizer com verdade, são maneiras que
trazem grandes dificuldades, tanto
ESTRANGEIRO
— Para o problema que então me hoje, como ontem e sempre. Que modo
deixara perplexo, o de saber em qual encontrar,- na realidade, para dizer ou
destas artes colocar o sofista, ainda pensar que o falso é real sem que, já ao
não vejo, claramente, uma solução. proferi-lo, nos encontremos enredados
d Esse homem é verdadeiramente um na contradição? Na verdade, Teeteto,
assombro e é muito difícil apanhâ-lo a questão é de uma dificuldade extre
completániènte, pois ainda desta vez, ma.
lá está éle, belo e bem refugiado, em TEETETO
uma forma cujo mistério é indecifrável. — Por quê?
TEETETO
mento os não-seres ou o não-ser, sem
— Aí estâ quem haveria de pôr um servir-nos do número?
ponto final às dificuldades da questão. TEETETO
— Explica-te.
™ ESTRANGEIRO
— Não te exaltes demasiadamente ESTRANGEIRO ~ -c
ainda; a questão subsiste, jovem feliz, e — Ao falarmos dos não-seres não
a dificuldade que permanece é a maior tentamos aí aplicar o número plural?
e a primeira de todas. Na realidade, ela TEETETO
reside no próprio princípio. — Indubitavelmente.
ESTRANGEIRO
TEETETO — E ao falar do não-ser, de aplicar,
— Que queres dizer? Explica-te
desta vez, a unidade?
sem tergiversar.
TEETETO
ESTRANGEIRO — Manifestamente.
— Ao ser, creio, pode unir-se
ESTRANGEIRO
algum outro ser. — Ora, afirmamos que não é justo
TEETETO nem correto pretender unir ser e
— Sem dúvida alguma. não-ser.
. ESTRANGEIRO, TEETETO
— Mas poderiamos afirmar como — Ê bem verdade.
possível que um ser jamais se unisse ao ESTRANGEIRO
não-ser? — Compreendes então que não se
TEETETO poderia, legitimamente, nem pronun
— Como afirmá-lo? ciar, nem dizer, nem pensar o não-ser
em si mesmo; que, ao contrário, ele é
ESTRANGEIRO
— Ora, para nós, o número em sua impensável, inefável, impronunciável e
totalidade é o ser. inexprimível?
TEETETO
b TEETETO — Perfeitamente.
— Sim, se hâ algo com direito a
esse título é precisamente ele. ESTRANGEIRO , *
— Estaria eu errado, há pouco, ao
ESTRANGEIRO dizer que iria enunciar a maior das
— Evitemos, pois, até mesmo a ten dificuldades a ele relativas?
tativa de transportar para o não-ser o
TEETETO
que quer que seja do número, plurali — Como? Haverá outra mais
dade ou unidade. grave que ainda nos falte*enunciar?
TEETETO ESTRANGEIRO
— Ao que parece, nós erraríamos — E então, surpreendente jovem,
se assim tentássemos: a razão nos im só do enunciado das" frases preceden
pede de fazê-lo. tes, não percebes em que dificuldade o
ESTRANGEIRO não-ser coloca mesmo a quem o refuta,
— Como então enunciar oralmente de modo que tentar refutá-lo é cair em
ou mesmo apenas conceber em pensa inevitáveis contradições?
SOFISTA 165
fácil a resposta. Facilmente ele voltaria todos eles. Fala agora, e sem permitir-
çpntra nós as nossas fórmulas, e quan lhe vantagem alguma, repele o adver
do. g ghamássemos de produtor de imar sário.
gens ele nos perguntaria o que, afinal TEETETO
de contas, chamamos de imagens. — Que outra definição daríamos à
Devemos, pois, procurar, Teeteto, o imagem, estrangeiro, se não a de um
que se ppderia responder, com acerto, segundo objeto igual, copiado do ver
a este espertalhão. dadeiro?
TEETETO ESTRANGEIRO
— Evidentemente que responde — Teu “segundo objeto igual” sig
remos lembrando as imagens das nifica um objeto verdadeiro, ou, então,
águas e dos espelhos, as imagens pinta que queres dizer com esse “igual”?
das ou gravadas, e todas as demais, da TEETETO
mesma espécie. — De forma alguma um verda
e ESTRANGEIRO deiro, certamente, mas um que com ele
— Bem se vê, Teeteto, que jamais se pareça.
Yiste um sofista. ESTRANGEIRO
TEETETO ■—■ Mas, por verdadeiro, tu entendes
—: Por quê? “um ser real”?
ESTRANGEIRO TEETETO
— Ele te parecerá um homem que — Certamente.
fecha os olhos ou que, absolutamente, ESTRANGEIRO
nao tem olhos. — Então? Por não-verdadeiro tu
TEETETO entendes o contrário do verdadeiro?
— Como assim? TEETETO
ESTRANGEIRQ — Certamente.
-— Quando assim lhe responderes, ESTRANGEIRO
ao lhe falar do que se forma nos espe — O que parece é, pois, para ti, um
lhos ou do que as mãos amoldem, ele não-ser irreal, pois o afirmas não-ver-
se rirá de teu-s exemplos, destinados a dadeiro.
um homem que vê. Fingirá ignorar TEETETO
espelhos, águas e a própria vista e te — Entretanto, há algum ser.
240 a perguntará, unicamente, o que se deve ESTRANGEIRO
concluir de tais exemplos. — Em todo o caso, não um ser
TEETETO verdadeiro, é o que dizes.
— O quê? TEETETO
ESTRANGEIRO — Certamente não; ainda que ser
— O que há de comum entre todos por semelhança seja real.
esses objetos que tu dizes serem múlti ESTRANGEIRO
plos mas que’ hqnras por um único — Assim, pois, o que chamamos
nome, que é o nome de imagem, e que semelhança é realmente um não-ser
entendes como uma unidade sobre irreal?
SOFISTA 167
ESTRANGEIRO TEETETO
— Que, para defender-nos, teremos — Evidentemente, esse é o ponto
de necessariamente discutir a tese de que teremos de debater em nossa
nosso pai Parmênides e demonstrar, discussão.
pela força de nossos argumentos que, ESTRANGEIRO
em certo sentido, o não-ser é; e que, — Como não .haveria de ser evi
por sua vez, o ser, de certa forma, não dente mesmo para um cego, como se
é. diz? Enquanto não houvermos feito *
SOFISTA 169
esta contestação, nem essa demonstra
contestação sempre ultrapassou as mi
ção, não poderemos, de forma alguma, nhas forças e, certamente, ainda ultra
falar nem de discursos falsos nem de passa.
opiniões falsas, nem de imagens, de có
pias, de imitações ou de simulacros, e TEETETO
muito menos de qualquer das artes que — Sim, declaraste.
deles se ocupam, sem cair, inevitavel ESTRANGEIRO
mente, em contradições ridículas. — Temo, depois do que declarei,
TEETETO que me tomes por insensato, vendo-me
— É bem verdade. passar à vontade, de um a outro extre
ESTRANGEIRO mo. Ora, na verdade, é somente para
— Essa é a razão por que é chega teu agrado que nos decidimos a contes
da a hora de atacar a tese de nosso pai tar a tese, no caso de tal contestação
ou se algum escrúpulo nos impede de ■ser possível.
fazê-lo, de renunciar absolutamente à TEETETO
questão. ' — Confia, que, pelo menos eu,
TEETETO nunca te observarei se te lançares
— Isso não; creio que nada deve nessa contestação e nesta demonstra
deter-nos. ção. Se é só o que te preocupa, prosse
ESTRANGEIRO gue sem nada temer.
— Nesse caso, pela terceira vez ESTRANGEIRO
quero pedir-te um pequeno favor. — Então prossigamos. Por onde
TEETETO começaremos uma argumentação tão
— Dize o que é. perigosa? A meu ver, este é o caminho
ESTRANGEIRO, que se impõe.
— Declarei há pouco, creio, e de TEETETO
uma maneira expressa, que uma tal — Qual?
As doutrinas unitárias
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Embora não tenhamos proce — Alguns procuram trazer à terra
dido aqui ao exame de todos os que, tudo o que há no céu e no invisível,
pormenorizadamente, tratam do ser e tomando, num simples aperto de mão,
do não-ser, aceitemos o exame que a rochas e carvalhos. E, na verdade, é
fizemos como suficiente. Há outros em virtude de tudo o que, dessa forma,
que, em suas explicações, têm preten podem alcançar que afirmam obstina
sões diferentes; e devemos examiná- damente que só existe o que oferece
los, igualmente, para convencer-nos, resistência e o que se pode tocar. Defi- b
246 a por um exame completo, que não é nem o corpo e a existência como idên
nada mais fácil dizer o que é o Ser do ticos e logo que outros pretendam atri
que o que é o não-ser. buir o Ser a algo que não tenha corpo,
TEETETO mostram por estes um soberbo des
■—■ E preciso então examiná-los prezo nada mais querendo ouvir.
também. TEETETO
ESTRANGEIRO — E verdade. Os homens de quem
— Na verdade, parece que, entre falas são intratáveis! Eu mesmo já
eles, há um combate de gigantes, tal o encontrei vários deles.
ardor com que disputam, entre siy ESTRANGEIRO
sobre o ser. — Por sua vez, os seus adversários
TEETETO nesta luta se mantêm cuidados amente
— Como assim? em guarda, defendendo-se do alto de
SOFISTA 175
TEETETO ESTRANGEIRO
— Uma vez que, até agora, eles não — A paixão ou a ação resultante de
têm nenhuma definição melhor, aceita um poder que se exerce ao encontro de
rão essa. dois objetos. Talvez tu, Teeteto, desco
ESTRANGEIRO nheças a resposta que dão a esta per
•— Estâ bem. Talvez adiante, tanto gunta, mas eu talvez a saiba, pois, eles
nós como eles mudaremos de opinião. me são familiares.
<■ Por enquanto, fique assim entendido, TEETETO
entre eles e nós. — Qual é, então, essa resposta?
TEETETO ESTRANGEIRO
— Sim, entendido. — Não concordam, absolutamente, c
nhecido é, segundo vós, ação, paixão, de uma e outra poderemos negar que
ou ambas ao mesmo tempo? Ou ainda tenha tais presenças numa alma?
um é paixão, outro ação? Ou então, TEETETO
nem um nem outro não têm qualquer — De que outra forma poderia
relação nem com uma nem com outra? tê-las?
TEETETO ESTRANGEIRO
— Evidentemente nem um nem — Teria, então, inteligência, vida e
outro, nem em relação a uma, nem em alma, e ainda que animado, permane
relação a outra. Do contrário seria cería estático sem mover-se de nenhu
contradizer suas afirmações anteriores. ma maneira?
ESTRANGEIRO TEETETO
— Compreendo. Mas, nisto ao — Seria absurdo !, ao que me pare
menos, concordarão: se se admite que ce.
e. conhecer é agir, a conseqüência inevi ESTRANGEIRO
tável é que o objeto ao ser conhecido — Temos, pois, de conceder o ser
sofre a ação. Pela mesma razão o ser, ao que é movido e ao movimento.
ao ser conhecido pelo ato do conheci TEETETO
mento, e na medida em que é conheci — Como negá-lo?
do, será movido, pois que é passivo, e
isso não pode acontecer ao que está em ESTRANGEIRO
— Do que se segue, Teeteto, que se
repouso.
os seres são imóveis, jião há inteli
TEETETO gência em parte alguma, em nenhum
— É certo.
sujeito e para nenhum objeto.
ESTRANGEIRO
— Mas como? Por Zeus! Deixar- TEETETO
nos-emos, assim, tão facilmente, con — Certamente.,
vencer de que o movimento, a vida, a ESTRANGEIRO
alma, o pensamento não têm, realmen — Por outro lado se admitirmos
te, lugar no seio do ser absoluto; que que tudo está em translação e em
249 a ele nem vive nem pensa e que, solene e movimento excluiremos a própria inte
sagrado, desprovido de inteligência, ligência do número dos seres.,
permanece estático sem poder movi TEETETO
mentar-se? — Como?
TEETETO ESTRANGEIRO
— Na verdade, estrangeiro, esta — Haverá jamais, a teu ver, perma
ríamos aceitando, assim, uma doutrina nência de estado, permanência de
assustadora! modo e permanência de objeto onde .c
ESTRANGEIRO não houver repouso?
— Admitiremos então que ele tem TEETETO
inteligência e não tem vida? — Nunca.
TEETETO ESTRANGEIRO
— Como admiti-lo? — E, faltando estas condições, crês
ESTRANGEIRO que exista a inteligência ou que jamais
— Mas, afirmando nele a presença tenha existido, em alguma parte?
SOFISTA 179
A irredutibilidade do ser
ao movimento e ao repouso
ESTRANGEIRO TEETETO
— E então? Não parece que, a par — Era o que pelo menos eu acredi
tir de agora, encerramos perfeitamente tava, e não sei bem em que estejamos
o ser em nossa definição? assim enganados.
TEETETO
ESTRANGEIRO
— Perfeitamente. — Examina, então, mais clara
ESTRANGEIRO mente, se a propósito de nossas últi
— Oh! assim fosse, Teeteto!, pois mas conclusões, não se teria direito de
ao que creio é precisamente este o propor-nos as mesmas questões que 250 a
momento em que veremos o quanto o propusemos antes aos que definiam o
seu exame é difícil. Todo pelo quente e o frio.
TEETETO
— Em quê, ainda? Que quçres TEETETO
dizer? -—• Que questões? Dize-as de novo.
’ ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— O jovem feliz! Não te apercebes — De bom grado. Ao recordá-las,
de que, embora acreditando discemi-lo procurarei fazê-lo interrogando-te da
claramente, nós agora nos encon mesma forma como então os interro
tramos na ignorância mais profunda a gara; o que nos servirá para, ao mesmo
seu respeito? tempo, progredir um pouco.
180 PLATAO i
TEETETO TEETETO
— Muito bem. — E mais ou menos assim.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Vejamos: o repouso e o movi — Para onde deve dirigir o racio
mento não são, na tua opinião,.absolu cínio quem quiser descobrir uma teoria
tamente contrários um ao outro? bem fundada a esse respeito?
TEETETO , TEETETO
— Sem dúvida. — Para onde? Dize.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO d
— Entretanto tu afirmas que — Creio que em nenhuma parte é
ambos são e tanto um como outro? fácil; pois, se uma coisa não se move,
TEETETO como é possível que não esteja para
— Sim, certamente o afirmo. da? E como deixará de ter movimento
ESTRANGEIRO aquilo que nunca está quieto? Portan
— Dizendo que são, declaras esta to, o ser revelou-se agora como sepa
rem os dois e cada um deles em rado dos dois. Isto é possível?
movimento? TEETETO
TEETETO — É a coisa mais impossível entre
— Nunca. todas.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Mas dizendo que ambos são, — Aqui devemos lembrar isto.
declaras que estão imóveis? TEETETO
TEETETO — O quê?
— Como é isso? ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO^ .— Que encontramos grande difi
— Logo, supões em teu espírito, culdade quando alguém nos perguntou
além dessas duas coisas, uma terceira: com que coisa se relaciona a expressão
o ser. Este. abrange repouso e movi “não-ser”. Recordas?
mento. Não dizes que os. dois são, TEETETO
unindo-os e observando a sua partici — Certamente.
pação na existência? ESTRANGEIRO
TEETETO — Será porventura menor a dificul
— Parece realmente que pressen dade em que ora nos encontramos a
timos uma terceira coisa, o ser, quando propósito do ser?
dizemos que movimento e repouso são. TEETETO
ESTRANGEIRO — A meu ver, estrangeiro, se me
— Logo, o ser não é a reunião de permites dizer, é ainda maior.
repouso e movimento, mas é coisa dife ESTRANGEIRO
rente de ambos. — Nesse caso, paremos nossa ex
TEETETO posição nessa delicada questão. Já,
— Naturalmente. pois, que o ser e o não-ser nos trazem
ESTRANGEIRO iguais dificuldades, podemos dora
— Por sua própria natureza, o ser vante esperar que, no dia mais ou
não está imóvel nem em movimento. menos claro, em que um deles se reve-
SOFISTA 181
lar, o outro se esclarecerá de igual que nos for possível, tomando a ambos
25i a modo. Se nenhum deles se revelar a simultaneamente.
nós, não deixaremos de prosseguir em TEETETO
nossa discussão, da melhor maneira — Muito bem.
«
O problema da predicação e
a comunidade dos gêneros
unir uma a outra quaisquer coisas que imobilizam, e a tese de todos aqueles
sejam, e, considerando-as, ao contrá que, classificando os seres por Formas,
rio, como inaliáveis, como incapazes afirmam-nos etemamente idênticos e
de participação mútua, tratâ-las como imutáveis. Pois todas essas pessoas
tais em nossa linguagem? Ou as unire fazem essa atribuição do ser, quer
mos todas supondo-as capazes de se falando do ser realmente móvel, quer
associarem mutuamente? Ou, enfim, falando do ser realmente imóvel.
diremos que algumas possuem essa TEETETO
capacidade e outras não? Dessas pos- — Certamente.
e sibilidades, Teeteto, à qual poderemos ESTRANGEIRO
afirmar que se orientará a preferência — Além do mais, todos aqueles
dos homens? que ora unificam o todo e ora o divi
TEETETO dem, seja conduzindo à unidade, ou da
— Eu, pelo menos, nada posso res unidade fazendo surgir uma infinidade;
ponder em seu nome, a esse respeito. seja decompondo-o em elementos fini
ESTRANGEIRO tos e em elementos finitos recom
— Por que não resolves estas ques pondo; quer descrevam este duplo
tões uma a uma, procurando as conse devir como uma alternância ou uma
quências a que cada hipótese nos coexistência eterna, não importa: nada
conduz? dizem, desde que nada pode associar-
TEETETO se.
— Tua idéia é excelente. TEETETO
ESTRANGEIRO — Ê certo.
— Suponhamos, pois, pelo menos ESTRANGEIRO
como hipótese, que a primeira afirma — Mas aqueles que, entre todos,
tiva seja, se concordas, a seguinte: exporiam sua tese ao ridículo mais rui
nada possui, com nada, possibilidade doso, são os que não querem, em caso
alguma de comunidade sob qualquer algum, consentir que, pelo efeito dessa
relação que seja. Isto não significa comunidade que um ser suporta com
excluir o movimento e o repouso de outro, qualquer que seja ele, receba
toda participação na existência? outra denominação que não a sua.
252 a TEETETO TEETETO
— Perfeitamente. — Como?
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— E então? Poderá dar-se o caso — É que a propósito de tudo,
de algum deles existir e não possuir vêem-se obrigados a empregar as ex
comunidade com a existência? pressões “ser” “à parte”, “dos outros”,
TEETETO “em si”, e milhares de outras determi
— É impossível. nações. Incapazes de delas se livrarem
ESTRANGEIRO e delas se servindo em seus discursos,
— Eis uma conclusão que, rapida eles não necessitam que outro os refute
mente, inverteu tudo, ao que parece: a mas, como se diz, alojam no seu ínti
tese daqueles' que movem o Todo, a mo, o inimigo e o contraditor; e essa
tese daqueles que, afirmando-o uno, o voz que os critica no seu interior eles a
SOFISTA 183
A dialética e o filósofo
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO d
— Muito bem. Desde que os gêne — Dividir assim por gêneros, e não
ros, como conviemos, são eles também tomar por outra, uma forma que é a
mutuamente suscetíveis de semelhantes mesma, nem pela mesma uma forma
associações, não haverá necessidade que é outra, não é essa, como diriamos,
de uma ciência que nos oriente através a obra da ciência dialética?
do discurso, se quisermos apontar com TEETETO
exatidão quais os gêneros que são — Sim, assim diriamos.
mutuamente concordes e quais os ou-
c tros que não podem suportar-se, e mos ESTRANGEIRO
— Aquele que assim é capaz dis
trar mesmo, se hâ alguns que, estabele
cerne, em olhar penetrante, uma forma
cendo a continuidade através de todos,
única desdobrada em todos os senti
tomam possíveis suas combinações, e
dos, através de uma pluralidade de for
se, ao contrário nas divisões, não há
mas, das quais cada uma permanece
outros que, entre os conjuntos, são os
distinta; e mais: uma pluralidade-de
fatores dessa divisão?
formas diferentes umas das outras
TEETETO envolvidas exteriormente por uma
— Certamente é necessária tal
forma única repartida através de plura
ciência que é, talvez, a suprema ciên
lidade de todos e ligada à unidade;
cia?
finalmente, numerosas formas inteira
ESTRANGEIRO mente isoladas e separadas; e assim
— Que nome, então, daríamos a
sabe discernir, gêneros por gêneros, as
essa ciência, Teeteto? Por Zeus, não
associações que para cada um deles e
estaremos, sem o sabermos, dirigindo-
são possíveis ou impossíveis.
nos para a ciência dos homens livres é
correndo o risco., nós que procuramos TEETETO
o sofista, de haver, antes de encontrá- — Perfeitamente.
lo, descoberto o filósofo? ESTRANGEIRO
TEETETO — Ora, esse dom, o dom dialético,
— Que queres dizer? não atribuirás a nenhum outro, acredi
SOFISTA 185
TEETETO ESTRANGEIRO
— Ê o que é necessário fazer. — Mas certamente nem o movi
ESTRANGEIRO mento nem o repouso não serão o
— Ora, os mais importantes desses “outro” nem o “mesmo”.
gêneros são precisamente aqueles que TEETETO
acabamos de examinar: o próprio ser, — Como assim?
o repouso e o movimento. ESTRANGEIRO
TEETETO — O que quer que atribuamos de
— De longè, os maiores. comum ao movimento e- ao repouso
ESTRANGEIRO não poderá ser nem um nem outro
— Dissemos, por outro lado, que deles.
os dois últimos não podiam associar-se TEETETO
um ao outro. -—- Por quê?
TEETETO ESTRANGEIRO
— É exato. — Porque ao mesmo tempo o mo
ESTRANGEIRO
vimento se imobilizaria, e o repouso se
— Mas o ser se associa a ambos: tornaria móvel. Com efeito, se qual
pois, em suma, os dois são. quer um dentre eles se aplicar a esse
TEETETO par, obrigará o outro a mudar sua pró
— Não hâ dúvida. pria natureza na natureza contrária,
pois o tomará participante de seu b
ESTRANGEIRO
— Então, há três. contrário.
TEETETO TEETETO
— Evidentemente. — Certamente.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Assim, cada um é outro com — Mas ambos participam, quer do
relação aos dois que restam, e o mesmo, quer do outro.
mesmo que ele próprio. TEETETO
' TEETETO
— Sim.
— Sim. ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO — Não digamos, pois, que o movi
— Mas que significado demos a mento é o mesmo ou o outro, nem o
este “mesmo” e a este, “outro”? Serão digamos para o repouso.
estes dois gêneros diferentes dos três TEETETO
primeiros, se bem que sempre necessa — Realmente, não o diremos.
riamente associados a eles? Devere ESTRANGEIRO
mos, então, considerar cinco seres e — Muito bem, deveremos entender
não três, ou este “mesmo” e este o ser e o mesmo como constituindo
255 a “outro” serão, sem que o saibamos, um?
simplesmente outros nomes que damos TEETETO
a qualquer um dos gêneros preceden — Talvez.
tes? ESTRANGEIRO
TEETETO — Mas se o ser e o mesmo não sig
— Talvez. nificam nada de diferente, ao afirmar-
SOFISTA 187
mos que o movimento e o repouso são, vimos perfeitamente que tudo o que é
c diremos que eles são o mesmo, como outro só o é por causa da sua relação
seres que são. necessária a outra coisa.
TEETETO TEETETO
— Entretanto, isso é impossível. — É verdade o que dizes.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Então é impossível que o mesmo — É necessário, pois, considerar a
e o ser não sejam senão um. natureza do “outro” como uma quinta
TEETETO forma, entre as que já estabelecemos.
— Sim, ao que parece. TEETETO
ESTRANGEIRO -—■ Sim.
— Deveremos, pois, às três formas ESTRANGEIRO
precedentes, adicionar “o mesmo” — Diremos, também, que ela se
como quarta forma? estende através de todas as demais.
TEETETO Cada uma delas, com efeito, é outra
— Perfeitamente. além do resto, não em virtude de sua
ESTRANGEIRO própria natureza, mas pelo fato de que
— E então? “O outro” deverá ser ela participa da forma do “outro”.
contado como uma quinta forma? Ou TEETETO
será necessário entender a ele e ao ser — Certamente.
como dois nomes que servem a um gê ESTRANGEIRO
nero único ? — Eis, pois, o que nos é necessário
TEETETO dizer a respeito dessas cinco formas
— Talvez. tomadas uma a uma.
ESTRANGEIRO TEETETO
— Mas concordarás, creio, que — O quê?
dentre os seres uns se expressam por si ESTRANGEIRO
mesmos e outros, unicamente em algu — Em primeiro lugar, o movimen
ma relação. to: ele é absolutamente outro que não o
TEETETO repouso. Não é o que dizemos?
— Evidentemente. TEETETO
rf ESTRANGEIRO — Ê.
— Ora, “o outro” se diz sempre ESTRANGEIRO
relativamente a um outro, não é? -—- Logo, ele não é repouso.
TEETETO TEETETO
— Certamente. — De maneira alguma.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Isso não se daria se o ser e o — Entretanto, ele “é” pelo fato de
“outro” não fossem totalmente diferen participar do ser.
tes. Supondo-se que o “outro” partici TEETETO
passe das duas formas, como acontece — É.
com o ser, poderia acontecer que, a um ESTRANGEIRO
dado momento, houvesse um outro que — E mais: o movimento é outro
não fosse relativo a outra coisa. Ora, já que não o “mesmo”.
188 PLATAO
TEETETO TEETETO
— Seja. — Seria, ao contrário, perfeita
mente correto, se devemos convir que,
ESTRANGEIRO
— Então ele não é “o mesmo”. entre os gêneros, uns se prestam à
associação mútua, outros não.
TEETETO
ESTRANGEIRO
— Certamente não.
— Ora, essa é justamente a de
ESTRANGEIRO monstração à qual havíamos chegado
— Entretanto, vimos que ele é o antes de atingirmos esta, e havíamos
mesmo, pois como conviemos tudo provado que é precisamente essa a sua
participava do mesmo. natureza.
TEETETO TEETETO
— Certamente. — Evidentemente.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Então o movimento é o mesmo, — Retomemos, pois: o movimento
e não o mesmo: é necessário convir é outro que não o “outro”, assim como
nesse ponto sem nos afligirmos, pois, era outro que não o mesmo e que não o
quando dizemos o mesmo e não o repouso?
mesmo, não nos referimos às mesmas TEETETO
relações. Quando afirmamos que ele é — Necessariamente.
b o mesmo é porque, em si mesmo, ele ESTRANGEIRO
participa do mesmo, e quando dizemos — Em certa relação ele não é, pois,
que ele não é o mesmo, é em conse o outrtff e é outro de acordo com o
quência de sua comunidade com “o nosso raciocínio de agora.
outro”, comunidade esta que o separa TEETETO
do “mesmo” e o toma não-mesmo, e — É verdade.
sim outro; de sorte que, neste caso, ESTRANGEIRO
temos o direito de chamâ-lo — Daí o que se segue? Iremos nós,
“não-o-mesmo”. afirmando-o outro que não os três pri
meiros, negar que seja outro que não o
TEETETO quarto, havendo concordado que os
— Perfeitamente. gêneros que estabelecemos e que nos
ESTRANGEIRO propusemos examinar eram cinco?
— Se, pois, de alguma maneira, o TEETETO
próprio movimento participa do repou — E o meio? Não podemos admitir
so, haveria algo de estranho em cha um número menor que aquele que há
mâ-lo estacionário? pouco demonstramos?
SOFISTA 189
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Ê, pois, sem temor que susten-, — Assim, vemos que tantos quan
tamos esta afirmação: o movimento é- tos os outros são, tantas vezes o ser
outro que não o ser. não é; pois, não os sendo, ele é um em
TEETETO si; e por sua vez, os outros, infinitos
— Sim, sem sombra de escrúpulo. em número, não são.
ESTRANGEIRO TEETETO
— Assim, pois, estâ claro que o — Parece ser verdade.
movimento é, realmente, não ser, ainda ESTRANGEIRO
que seja ser na medida em que parti — Aqui, ainda, não há nada, que
cipa do ser? nos deva, preocupar, pois a natureza
TEETETO dos gêneros comporta comunidade
— Absolutamente claro. mútua. Aquele que se recusa a concor
ESTRANGEIRO dar conosco neste ponto, que comece
— Segue-se, pois, necessariamente, por converter à sua causa os argumen
que hâ um ser do não-ser, não somente tos precedentes, antes de procurar
no movimento, mas em toda a série negar as conclusões.
dos gêneros; pois na verdade, em todos TEETETO
e eles a natureza do outro faz cada um — O que pedes é justo.
deles outro que não o ser e, por isso ESTRANGEIRO b
tes como seres pela mesma razão que o samente; o não-ser que buscávamos a
que quer que seja. propósito do sofista.
TEETETO
— Evidentemente. ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO
— Ele não é, pois, como disseste,
— Assim, ao que parece, quando inferior em ser a nenhum outro. É
uma parte da natureza do outro e uma necessário animarmo-nos a proclamar,
b parte da natureza do ser se opõem desde já, que o não-ser é, a título está
mutuamente, esta oposição não é, se vel, possuidor de uma natureza que lhe
assim podemos dizer, menos ser que o é própria do mesmo modo que o gran- <=
próprio ser; pois não é o contrário do de era grande e o belo era belo, e o
ser o que ela exprime; e sim, simples não-grande, não-grande, e o não-belo,
mente, algo dele diferente. não-belo; por essa mesma razão tam
TEETETO bém, o não-ser era e é não-ser, unidade
— Ê claro. integrante no número que constitui a
ESTRANGEIRO
— E, então, que nome lhe daría multidão das formas. Ou a teu ver,
mos? Teeteto, teríamos alguma dúvida?
TEETETO TEETETO
— Claro que o de “não-ser” preci — Nenhuma.
ESTRANGEIRO TEETETO
— Na verdade, meu caro amigo, — Tens razão nesse ponto. Mas
esforçar-se por separar tudo de tudo, não compreendo por que devemos,
não é apenas ofender à harmonia, mas agora, definir em comum o discurso.
ignorar totalmente as musas e a filoso ESTRANGEIRO
fia. — Eis, talvez, algumas razões que
te farão — se me quiseres ouvir —
TEETETO
— Por quê? compreender mais facilmente.
TEETETO
ESTRANGEIRO — Quais?
— É a maneira mais radical de ani
ESTRANGEIRO
quilar Todo discurso, isolar cada coisa — Havíamos descoberto que o
de todo o resto; pois é pela mútua não-ser é um gênero determinado entre
combinação das formas que o discurso os demais, e que se distribui por toda
nasce. série dos gêneros.
TEETETO
TEETETO
— Ê verdade. — É exato.
260 a ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Vês, pois, como era oportuno, — Muito bem; resta-nos agora exa
como o fizemos há pouco, lutar contra minar se ele se associa à opinião e ao
essas pessoas e constrangê-las a acei discurso.
tar a associação mútua. TEETETO
TEETETO — Por quê?
— Oportuno para quê? ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO
— Se ele não se associa, segue-se
— Para assegurar ao discurso lugar necessariamente que tudo é verdadeiro.
no número dos gêneros do ser. Privar- Mas, uma vez que a ele se associe,
mo-nos disso, com efeito, seria, desde então, a opinião falsa e o discurso
logo — perda suprema — privar-nos falso serão possíveis. O fato de serem
da filosofia. Além disso, é-nos necessá não-seres o que se enuncia ou se repre
rio, agora, definirmos a natureza do senta, eis o que constitui a falsidade,
discurso. Se dele fôssemos privados, quer no pensamento, quer no discurso.
recusando-lhe absolutamente o ser, TEETETO
isso significaria negar-nos toda possi — Com efeito.
bilidade de discorrer sobre o que quer ESTRANGEIRO
b que fosse, e dele estaríamos privados — Ora, se há falsidade, há engano.
se concordássemos que absolutamente TEETETO
nada se associa a nada. — Sim.
194 PLATÃO
TEETETO ESTRANGEIRO
— Sim. — Qúãnto aos sujeitos que execu
d ESTRANGEIRO tam essas ações, o sinal vocal que ã.
— Prossigamos, a exemplo do que eles se aplica é um nome.
falamos das formas e das letras, e do TEETETO
mesmo modo refaçamos esta pesquisa, — Perfeitamente.
tomando por objetos os nomes. Este é
ESTRANGEIRO
um ponto de vista, no qual se deixa — Nomes apenas, enunciados de
entrever a solução que procuramos. princípio a fim, jamais formam um dis
TEETETO • curso, assim como verbos enunciados
— Que questão proporás, pois, a sem o acompanhamento de algum
propósito desses nomes? nome.
ESTRANGEIRO
TEETETO
— Se todos concordam, ou ne — Eis o que eu não sabia.
nhum; ou se uns se prestam a um acor
do, e outros não. ESTRANGEIRO b
— Ê que, certamente, tinhas outra
TEETETO coisa em vista, dando-me, há pouco,
— A última hipótese é evidente: teu assentimento; pois o que eu queriá
uns se prestam a ele; outros não. dizer era exatamente isso: enunciados
ESTRANGEIRO numa sequência como esta, eles não
— Eis, talvez, o que entendes por formam um discurso.
isso: aqueles que, ditos em ordem,
e fazem sentido, concordam; os outros, TEÈTETO
-— Em que sequência?
cuja sequência não forma sentido
nenhum, não concordam. ESTRANGEIRO
TEETETO
— Por exemplo, anda, corre,
— Como assim? Que queres dizer? dorme, e todos os demais verbos que
significam ação; mesmo dizendo-os
ESTRANGEIRO
— O que julguei teres no espírito, todos, uns após outros, nem por isso
ao concordares comigo. Possuímos, na formam um discurso.
verdade, para exprimir vocalmente o TEETETO
ser, dois gêneros de sinais. — Naturalmente.
TEETETO ESTRANGEIRO
— Quais? —- E se dissermos ainda: leão,
262 a ESTRANGEIRO !c'ervo ', cavalo, e todos os demais nomes
— Os nomes e os verbos, como os que denominam sujeitos executando
chamamos. ações, há, ainda acjui, uma série dá *
TEETETO qual jamais resultou discurso algum;
— Explica tua distinção. pois, nem nesta, hem na precedente, os
ESTRANGEIRO sons proferidos indicam nem ação,
— O que exprime as ações, nós nem inação, nem o ser, de um ser, ou
chamamos verbo. de um não-ser, pois não unimos verbos
TEETETO aos nomes. Somente unidos haverá ò
— Sim. acordo e, desta primeira combinação
196 PLATÃO
a TEETETO TEETETO
— Sim. — Certamente.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Que qualidade devemos, pois, — Ora, se não se refere a ti, não se
atribuir a um e outro? refere, certamente, a ninguém mais.
TEETETO TEETETO
— Poderemos dizer que um é falso, — Evidentemente.
outro verdadeiro. ' ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO — Não discorrendo sobre pessoa
— Ora, aquele que, dentre os dois, alguma, não seria então, nem mesmo
é verdadeiro, diz, sobre ti, o que é tal um discurso. Na verdade demons
como é. tramos que é impossível haver discurso
TEETETO que não discorra sobre alguma coisa.
— Claro! TEETETO
ESTRANGEIRO — Perfeitamente exato.
— E aquele que é falso diz outra ESTRANGEIRO d
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Não nos desencorajemos, pois, — Dividimos a arte que produz as
com aquilo que resta fazer. Uma vez imagens em duas formas: uma produz
esclarecido este ponto, recordemos a cópia, outra produz o simulacro.
nossas anteriores divisões por formas. TEETETO
— Sim.
TEETETO • ESTRANGEIRO
— Exatamente que divisões? — Quanto ao sofista, embaraça-
SOFISTA 199
mo-nos sem saber em que forma este método, têm as mais próximas afi- 201 a
rados igualmente a produção e a obra pela arte que produz as coisas reais; de
de Deus. É o que sabemos, não é outro, a imagem, devida à arte que
certo? produz imagens.
TEETETO TEETETO
— Sim. — Agora compreendo melhor e
ESTRANGEIRO
estabeleço, para a arte da produção,
— Ao lado de cada uma delas vêm, duas formas, das quais cada uma é
em seguida, colocar-se suas imagens dupla; de um lado, produção divina e
que não são mais suas realidades, e produção humana; de outro, criação
que também devem a sua existência a de coisas, ou criação de certas seme
uma arte divina. lhanças.
TEETETO ESTRANGEIRO
— Que imagens? — Muito bem; mas lembremos que
ESTRANGEIRO esta produção de imagens deveria
— Aquelas que nos vêm no sono e compreender dois gêneros: a produção
todos os simulacros que, durante o dia, de cópias e a produção de simulacros,
se formam, como se diz, espontanea uma vez demonstrado ter o falso um
mente: a sombra que projeta o fogo ser real de falso e assim contado, por
quando as trevas o invadem; e esta direito de sua natureza, como unidade
aparência, ainda, que produz, em su entre os seres.
perfícies brilhantes e polidas, o concur TEETETO
so, num mesmo ponto, de duas luzes: — Foi exatamente esse nosso ra
sua luz própria e uma luz estranha, e ciocínio.
que opõe, à visão habitual, uma sensa ESTRANGEIRO
ção inversa. — Ora, a demonstração foi feita e,
TEETETO por conseguinte, é incontestável nosso
— Eis, pois, as duas obras da pro direito de distinguir essas duas formas.
dução divina: de um lado, a coisa em TEETETO
si mesma; e de outro, a imagem que — Sim.
acompanha cada coisa. ESTRANGEIRO 267 a
mas daqueles que se limitam a imitar. argumentos breves, obrigando seu in
TEETETO terlocutor a se contradizer.
— Certamente. TEETETO
ESTRANGEIRO — O que dizes é bem exato.
— Examinemos, então, o doxô- ESTRANGEIRO
mimo para ver se ele é perfeito como — Que personagem, será, pois,
uma barra de ferro ou se há nele algu para nós, o homem dos discursos lon
ma divisão. gos? Político ou orador popular?
TEETETO TEETETO
— Examinemos. — Orador popular.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Há, realmente, e uma divisão — E como chamaremos ao outro?
268 a bem visível. Dentre estes imitadores há Sábio ou sofista?
o ingênuo, que crê ter ciência do que TEETETO
apenas tem opinião, e, além dele, outro — Sábio, exatamente, é impossível,
que, de tanto haver revolvido os argu pois já afirmamos que ele não sabe
mentos, em si mesmo desperta uma nada. Mas, porque imita ao sábio, ele c
forte desconfiança, uma viva apreen terá um nome que se aproxime deste, e
são de ignorância pessoal, mesmo em já estou quase convencido de que é a
relação a assuntos sobre os quais, seu propósito que devemos dizer: eis,
diante dos outros, ele se dá ares de verdadeiramente, nosso famoso sofista.
sábio. ESTRANGEIRO
TEETETO — Encerraremos aqui a cadeia,
— Um e outro gênero existem, como o fizemos anteriormente, rea
certamente, tal como dizes. tando juntos, de ponta a ponta, retros-
ESTRANGEIRO pectivamente, os elementos de seu
— Assim, a um consideraremos nome.
simples imitador, e a outro como imi TEETETO
tador irônico? — É precisamente o que quero.
TEETETO ESTRANGEIRO
— É razoável. — Assim, esta arte de contradição
ESTRANGEIRO que, pela parte irônica de uma arte fun
— E o gênero ao qual pertence este dada apenas sobre a opinião, faz parte
último, consideraremos único ou da mimética e, pelo gênero que produz
duplo? os simulacros, se prende à arte de criar
TEETETO imagens; esta porção, não divina mas d
— Decide tu mesmo. humana, da arte de produção que, pos
b ESTRANGEIRO suindo o discurso por domínio próprio,
— Ao examinar, percebo clara através dele produz suas ilusões, eis
mente dois gêneros. No primeiro, dis aquilo de que podemos dizer “que é a
tingo o homem capaz de praticar esta raça e o sangue” do autêntico sofista,
ironia em reuniões públicas, em longos afirmando, ao que parece, a pura
discursos, diante de multidões; ao verdade.
passo que o outro, em reuniões parti TEETETO
culares, dividindo seu discurso em — Perfeitamente.
POLÍTICO
Sócrates, Teodoro, Estrangeiro,
Sócrates, o Jovem
estes jovens poderão ser meus parentes Sócrates, ele não teria lugar na mesma
longínquos. Dizes que um deles se pa classificação.
rece comigo, pelos traços fisionômi SÓCRATES, O JOVEM
258 a cos 5; o outro, tendo nome semelhante — Em qual, então?
ao meu, terá comigo certo parentesco. ESTRANGEIRO
E nós devemos sempre procurar reco — Em outra.
nhecer nossos parentes pela maneira SÓCRATES, O JOVEM
por que conversam. Com Teeteto con — Sim, é o que parece.
versei ontem e ouvi, ainda há pouco, o ESTRANGEIRO
que te respondeu; mas do jovem Sócra — E onde poderiamos encontrar o
tes, nada ouvi. É mister, porém, que o caminho pelo qual poderemos chegar à
conheçamos. Interroga-o tu primeiro e compreensão do que é o político? Ê
mais tarde responderá a mim, mister que o encontremos e que o sepa
ESTRANGEIRO remos dos demais, diferenciando-o por
— Muito bem. Ouviste, jovem Só aquilo que lhe é característico, para, a
crates, o que disse Sócrates? seguir, dar aos outros caminhos, que
SÓCRATES, O JOVEM dele se afastam, um caráter único espe
— Sim. cífico a todos, de sorte a finalmente
ESTRANGEIRO permitir ao nosso espírito classificar
— Concordas com o que ele pro todas as ciências em duas espécies.
põe?
SÓCRATES, O JOVEM
SÓCRATES, O JOVEM — Esse trabalho, caro Estrangeiro,
— Com todo o gosto.
parece-me ser teu, e não meu.
b ESTRANGEIRO
— Assim se tu não te recusas, ESTRANGEIRO d
— Entretanto., jovem Sócrates, en
muito menos posso eu recusar-me. De
contrando esse caminho, ele será tanto
pois do sofista, penso que devemos
teu quanto meu.
agora estudar o político. Dize-me,
pois: devemos ou não colocar o polí SÓCRATES, O JOVEM
— Está bem.
tico entre os sábios?
ESTRANGEIRO
• SÓCRATES, O JOVEM —A aritmética assim como outras
— Sim.
ESTRANGEIRO
artes que lhe são semelhantes não são
— Nesse caso devemos classificar separadas da ação e dirigidas apenas
as ciências do mesmo modo como o para o conhecimento?
fazíamos ao estudar a personagem SÓCRATES, O JOVEM
precedente 6 ? — É verdade.
SÓCRATES, O JOVEM ESTRANGEIRO
— Creio que sim. — Entretanto, as artes que se rela
ESTRANGEIRO cionam com a arquitetura ou com
— Mas, ao que me parece, jovem qualquer outra forma de construção
5 Também no diálogo Teeteto assinala-se a se manual estão ligadas originalmente à
melhança fisionômica entre Sócrates e Teeteto. ação e o seu concurso à ciência faz «
(N. do T.)
6 A personagem precedente é o Sofista. (N. com que sejam produzidos corpos que
do T._) antes não existiam.
POLÍTICO 209
ca, com o papel de simples espectador, pesquisa tem por objeto o dirigente e
ou serâ mçlhor decidirmos pela arte não o oposto do dirigente. 261 a
diretiva, pois na realidade ele ordena, SÓCRATES, O JOVEM
como o senhor? — Sim.
SÓCRATES, O JOVEM ESTRANGEIRO
— Não há razão para hesitar. — Ora, muito bem, se o gênero em
ESTRANGEIRO questão está bem separado dos outros
— Devemos agora examinar se por meio desta oposição, do poder pes
também a arte de dirgir permite qual soal e do poder de empréstimo, é mis
quer divisão. Penso que do mesmo ter que o dividamos, por sua vez, se
modo que na arte dos comerciantes se encontrarmos nele possibilidade para
distinguem os produtores dos revende- isso. c
d dores, da mesma foram se diferencia o
SÓCRATES, O JOVEM
gênero real do gênero dos arautos. — Perfeitamente.
SÓCRATES, O JOVEM
ESTRANGEIRO
— Como? — Julgo que há essa possibilidade.
ESTRANGEIRO Acompanha-me e faze comigo essa
— Os comerciantes, comprando as divisão.
mercadorias produzidas por outrem, as
SÓCRATES, O JOVEM
revendem a terceiros. — Qual?
SÓCRATES, O JOVEM
— Claro. ESTRANGEIRO
— Quando pensamos em dirigen
ESTRANGEIRO
— Assim também a família dos tes, no exercício de alguma direção,
arautos recebe as decisões alheias para não vimos também que as suas ordens <>
transmiti-las a terceiros. têm sempre como finalidade alguma
SÓCRATES, O JOVEM
coisa a ser produzida?
— É verdade. SÓCRATES, O JOVEM
ESTRANGEIRO
— Evidentemente.
— E então? Confundiremos a arte ESTRANGEIRO
do rei com a do intérprete, do patrão — Pois bem. Não é difícil dividir-se
e de barco, do adivinho, do arauto e em duas partes tudo o que se produz.
muitas outras semelhantes, que têm em SÓCRATES, O JOVEM
si, realmente, um poder diretivo? Ou — De que maneira?
preferes que, prosseguindo, a nossa ESTRANGEIRO
comparação, forjemos, por analogia, — Uma parte desse todo é formada
um outro nome, pois nenhum existe pelos seres inanimados, e a outra pelos
para designar esse gênero de dirigentes seres animados.
cujo mando deriva deles mesmos? Este SÓCRATES, O JOVEM
característico servirá para a nossa — Sim.
divisão e assim poremos o gênero real ESTRANGEIRO
na classe autodirigente sem nos preo — E desse mesmo modo que a
cuparmos com as demais e darmos a parte diretiva da ciência teórica deve
elas outro nome qualquer, pois a nossa ser dividida.
212 PLATÃO
Quadrúpedes e bípedes..
O concurso das duas majestades
266 a ESTRANGEIRO SÓCRATES, O JOVEM
— Todos os seres mansos e que — Não.
vivem em rebanho jâ estão discrimi ESTRANGEIRO
nados, exceto duas espécies, pois, ao — Ora, o modo de caminhar, pró
que creio, não convém incluir a família prio a um segundo gênero tem um
dos cães no número dos animais que se valor igual à diagonal daquele valor
criam em rebanhos. próprio ao nosso modo de caminhar,
SÓCRATES, O JOVEM pois que, naturalmente, ele vale duas
— Não, mas segundo que princípio vezes dois pés.
dividiremos essas duas espécies? SÓCRATES, O JOVEM
ESTRANGEIRO — Ê certo. Agora começo a com
— Segundo o princípio que distin preender aonde queres chegar.
gue Teeteto de ti, pois que vós ambos ESTRANGEIRO
vos ocupais da geometria. — Mas, caro Sócrates, não vemos
SÓCRATES, O JOVEM ocorrer novamente, nessa divisão, algo «
— Como? ridículo?
ESTRANGEIRO SÓCRATES, O JOVEM
— Pela diagonal, e depois pela dia — O quê?
gonal da diagonal. ESTRANGEIRO
SÓCRATES, O JOVEM — Colocar o gênero humano na
— Como? mesma liça e fazê-lo disputar em velo
b ESTRANGEIRO cidade com o gênero de seres ao
— A natureza do gênero humano mesmo tempo imponente e o mais
nos permitirá um mõdo de caminhar indolente.
diverso daquele que se exprime pelo SÓCRATES, O JOVEM
valor da diagonal, igual á dois pés8. -■— Sim, vejo, é uma coincidência
curiosa.
8 Pé é medida grega. No Menão está substituí
do pelo metro,, a fim de facilitar a leitura do ESTRANGEIRO
diálogo pelo leitor moderno. Encontramos no — Mas como? Não é natural que o
Político idêntico quadrado ao que aparece na
quele livro. A diagonal dessa figura é o lado mais vagaroso venha por úítimo?
de um quadrado cuja área é o duplo da área SÓCRATES, O JOVEM
do primeiro quadrado. A digressão pela mate — Sim.
mática é puramente simbólica. A área do qua
drado cujo lado mede dois pés de quatro pés ESTRANGEIRO
quadrados e sua diagonal é o lado do quadra — Mas não observas também que o
do de área dupla. Por causa desses dois núme
ros — dois e quatro — o autor considera a rei será ainda mais ridículo ao concor
diagonal ,do 1Q quadrado como símbolo do mo rer com seu rebanho e ao medir-se,
do de andar dos seres de dois pés e a do 29
quadrado — cujo lado é a diagonal do 19 — sobre a pista, com o homem mais <*
como símbolo do modo de andar dos quadrú entregue a esta vida indolente9.
pedes. Essas proposições provocam sorrisos
entre os ouvintes, predispondo-os a prestar mais 9 Platão refere-se aqui aos monarcas persas que
atenção. Tal método didático era empregado estão sempre cercados de ajudantes, fâmulos e
pelo autor em suas aulas. (N. do T.) companheiros. (N. doT.)
POLÍTICO 219
mais sem chifres; e, ainda, esta raça de procuramos; a arte que se honra por
animais sem chifres inclui uma parte dois nomes: política e real.
que só poderá ser compreendida por SÓCRATES, O JOVEM
um único termo pela adição necessária — Exatamente.
ESTRANGEIRO
de três nomes: ela se chamará “a arte — Mas. Sócrates, essa pesquisa foi
de criar raças que não se cruzam”. Por realizada por nós assim como acabas
fim, a última subdivisão restante nos de dizer?
c. rebanhos bípedes, será a arte de dirigir SÓCRATES, O JOVEM
os homens. É precisamente o que — Que pesquisa?
Crítica da definição. Os
rivais do político
membros do rebanho, mas também dos que 10 000 outros que pretendam
governantes? sê-lo.
SÓCRATES, O JOVEM SÓCRATES, O JOVEM
— E. não teriam razão de assim — De nenhum modo.
protestar? ESTRANGEIRO
— Não teríamos nós razoes para
ESTRANGEIRO
inquietação quando, ainda há pouco,
— Talvez. Haveremos de ver. Uma
nos assaltou a suspeita de que talvez
coisa, porém, sabemos, e que ninguém
houvéssemos traçado um esboço plau
negará, é que isso também se estende
sível do caráter real mas que, no entan
ao criador de bois. É ele que alimenta
to, não o leváramos até o retrato fiel
o seu rebanho, é ele o médico e só ele
do político, pelo fato de não o distin-
escolhe os coitos: tanto na procriação
guirmos de todos aqueles que à sua
como no nascimento, é o único par
volta se agitam e que reclamam uma
teiro competente. Na medida em que
parte dos seus direitos de pastor? Não
seus animais participam da sedução da
o separamos suficientemente dos. seus
música, nenhum outro é mais capaz de
rivais para mostrá-lo, unicamente, na
acalmá-los e de consolá-los por meio
sua pureza?
de sons. Sabe executar excelentemente
a música de que seu rebanho gosta, SÓCRATES, O JOVEM
— Muito bem.
seja por intermédio de instrumentos,
seja apenas pela voz. O mesmo poder- ESTRANGEIRO
— É o que faremos, caro Sócrates,
se-ia dizer dos demais pastores, ou
se não quisermos levar esta discussão
não?
a um fim que a desmereça.
SÓCRATES, O JOVEM SÓCRATES, O JOVEM
— Claro. — É o que preciso evitar a todo
ESTRANGEIRO custo.
— Mas, então, será tão certa e ESTRANGEIRO
inatacável a nossa teoria sobre o rei? — Partiremos de outro ponto, pros
Nós o consideramos como pastor e seguiremos por outro caminho.
alimentador do rebanho humano, di SÓCRATES, O JOVEM.
zendo que é ele mais importante do — Qual?
222. PLATÃ0
O Recurso ao Mito
agora, deveremos conhecer, pois que é capaz. Eis por que foi animado do
ela nos serâ útil para definir a naturezamovimento de retrocesso circular que
do rei.. dentre todos é o que menos o afasta de
SÓCRATES, O JOVEM seu movimento primitivo. Ser a causa
— Disseste bem. Conta-a, e nela contínua de sua própria rotação não é
não suprimas nada! possível senão ao que rege tudo aquilo
que se move. Esse ser, porém,, não
ESTRANGEIRO
—- Escuta! Este universo, em que pode mover-se, ora num sentido, ora
estamos, algumas vezes é o próprio no sentido contrário. Por estas razões
Deus que lhe dirige o curso e preside à todas não podemos afirmar que o
mundo seja a causa contínua de sua
sua revolução; outras vezes, termina
dos os períodos que lhe foram determi própria rotação nem dizer que toda
nados, ele o deixa seguir; e então, por ela, sem interrupção, é dirigida por um
si mesmo, o Universo retoma o seu • deus nas suas revoluções contrárias e
curso circular, em sentido inverso, em alternadas e muito menos que ela se 270 a
virtude da vida que o anima e da inteli deve a duas divindades cujas vontades
se opõem. Mas, como dizia há pouco,
gência qüe lhe foi dada, desde a sua
a única solução que resta é que umas
origem, por aquele que o criou. Esse
vezes ela seja dirigida por uma ação
movimento de retrocesso faz parte
estranha e divina e assim, recebendo
necessariamente da sua natureza, pelo
uma nova vida, recebe, igualmente de
motivo seguinte.
seu autor, uma nova imortalidade, que
SÓCRATES, O JOVEM outras vezes, abandonado a si mesmo,
— Que motivo?
caminhe em retrocesso durante milha
ESTRANGEIRO res e milhares de períodos, pois que a
— Somente ao que há de mais divi sua grande massa se move num per
no convém conservar sempre as mes feito equilíbrio sobre um eixo extrema
mas qualidades, permanecer no mesmo mente pequeno.
estado e ser sempre o mesmo. A natu SÓCRATES, O JOVEM
reza corpórea não participa dessa — Tudo o. que acabas de dizer pa
ordem. O que chamamos céu e mundo, rece estar bem próximo da verdade.
apesar dos muitos dotes esplêndidos ESTRANGEIRO
que recebeu de seu criador, está preso — Prossigamos no raciocínio e
e à sorte do corpo. Por isso é impossível examinemos a causa, como dissemos,
que fique etemamente alheio à mudan de todos esses prodígios. Ele consiste
ça e, na medida de suas forças, move- no seguinte:
se no mesmo espaço, cofh um movi SÓCRATES, O JOVEM
mento mais idêntico e mais uno de que — Em quê?
224 PLATÃO
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Na rotação do universo que ora — Mas não sabemos, também, que
se faz no sentido atual, ora em sentido é com grande dificuldade que a natu
oposto. reza dos seres vivos suporta mudanças
SÓCRATES, O JOVEM profundas, numerosas e diversas ao
— Como? mesmo tempo?
ESTRANGEIRO SÓCRATES, O JOVEM
— Essa mudança de sentido deve — Sim.
ser considerada como a mais impor ESTRANGEIRO
tante e mais perfeita das variações a — Nessas ocasiões é fatal que a
c que estâ sujeito o universo, o maior e o morte faça as suas maiores devasta
mais completo. ções entre os seres vivos, reduzindo,
SÓCRATES, O JOVEM especialmente, o gênero humano a um
— Isso é claro. número ínfimo de sobreviventes. Ao
ESTRANGEIRO realizar-se a inversão do movimento d
— Logo, deveremos supor que na atual, os que sobrevivem sofrem toda
quela época é que se produziram as espécie de estranhos e insólitos aciden
transformações mais importantes para tes, dos quais o mais grave, que se deve
nós que residimos e vivemos no seu à mudança de sentido do movimento
interior. do universo, é este:
SÓCRATES, O JOVEM SÓCRATES, O JOVEM •
— Ê claro. — Qual?
Os filhos da Terra
Os Pastores Divinos
O mundo abandonado
Assim termina este mito, do qual a tornaram desde logo selvagens, agora
primeira parte servirá à nossa teoria do que também eles se viram sem força e
Rei. Quando o mundo, por um movi sem proteção, o.s homens se tomaram <=
mento reverso, desviou-se para o modo presas desses animais. Nos primeiros
atual de geração, a evolução das ida tempos, não tiveram qualquer indús
des parou uma segunda vez para voltar tria ou arte; e foi desde este momento
num sentido contrário àquele que de grande abandono, em que seus ali
então seguia. Os seres vivos que se ha mentos deixaram de vir-lhes esponta
viam reduzido a quase nada voltaram neamente, e em que não sabiam ainda
a crescer e os corpos recém-nascidos procurá-los, pois que nenhuma necessi
da terra tomaram-se grisalhos, defi- dade os havia, até então, obrigado a
274 a nharam-se e voltaram à terra. E todo o isso, que, segundo as antigas tradições,
resto voltou, da mesma forma em sen nos foram dadas, pelos deuses, lições e
tido contrário, amoldando-se e regu- ensinamentos indispensáveis: o fogo
lando-se à nova evolução do universo; por Prometeu1 2; as artes por Hefes-
e especialmente a gestação, o parto e a to1 3 e sua companheira; as sementes e d
criação imitaram e seguiram o pro as plantas por outras divindades.
cesso geral. Já não era possível que o Assim tudo o de que a vida humana é
animal nascesse do seio da terra, por feita nasceu desses primeiros passos;
um concurso de elementos estranhos; quando os homens, como disse, vi
uma vez que o mundo assim se tomara ram-se privados da vigilância divina,
o seu próprio senhor, sujeito a dirigir a devendo conduzir-se sós e zelar por si
sua evolução, também as suas partes mesmos, tal como o universo, pois
deveriam, por uma lei análoga, conce tudo o que fazemos é imitá-lo e segui-
ber, dar à luz e criar por si mesmas, na lo, alternando, na eternidade do tempo,
í> medida em que pudessem. E assim eis- estas duas maneiras opostas de viver e
nos agora chegados ao ponto a que se nascer. Terminemos aqui o nosso mito, «
dirigia todo este raciocínio. No que se dele nos servindo para medir a falta
refere aos outros animais seriam neces que cometemos ao definir, como o fize
sárias muitas palavras e muito tempo mos anteriormente, o homem real e o
para dizer qual era então a condição político.
de cada espécie e por que influências SÓCRATES, O JOVEM
ela se modificou; mas relativamente — A que falta te referes, e qual a
aos homens, esta exposição será mais sua importância?
breve e mais a propósito. Uma vez pri 12 Prometeu: gigante amigo dos homens. Doou
o fogo aos homens, contra a vontade de Zeus.
vados dos cuidados deste deus que os Nesta versão, porém, o fogo é dádiva feita aos
possuía e os mantinha sob sua guarda, homens pelos próprios deuses. (N.doT.)
cercados de animais dos quais a maior 13 Hefesto: deus dos ferreiros. A companheira
de Hefesto é Atena, protetora dos trabalhos
parte era naturalmente feroz, e que se manuais femininos, como o bordado. (N. do T.)
POLÍTICO 229
sário, pois, um nome que servisse a comum a todos? Falando, pois, da arte
todos, ao mesmo tempo. que se ocupa dos rebanhos, que por
SÓCRATES, O JOVEM eles vela e deles cuida, designando a
— O que dizes é certo, desde que função que compete a todos, haveria
tal nome exista. um termo capaz de servir ao político e
ESTRANGEIRO a todos os seus rivais, e é esse, precisa
— Como não? O cuidado para mente, o fim de nossa pesquisa.
com os rebanhos desde que não se SÓCRATES, O JOVEM
determine como alimentação ou qual — Bem, mas como proceder então 270 a
quer outro cuidado específico, não é à divisão que seguiria?
forma nós, procurando corrigir, sem minado, mas ao qual, entretanto, falta
demora, e de maneira grandiosa o erro o relevo que lhe será dado pela pintura
cometido em nossa exposição anterior, e pela harmonia de cores. E o que me
acreditamos que para o Rei só eram lhor nos convém não é o desenho, nem
dignos os modelos de alta grandeza; e uma representação manual qualquer;
assim tomamos uma parte enorme de são as palavras e o discurso; pois que
uma lenda da qual nos servimos mais se trata de expor um assunto vivo a
do que seria necessário, alongamo-nos espíritos capazes de segui-lo. Para
na demonstração sem havermos, afi outros, seria necessária uma represen
nal, chegado ao fim de nosso mito. Ao tação material.
c contrário do que te parece, o nosso dis SÓCRATES, O JOVEM
curso se assemelha a um quadro muito — É certo. Mas é preciso mostrar
bem desenhado em suas linhas exterio então o que, segundo crês, falta em
res, de sorte a dar a impressão de ter nossa exposição.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Seria difícil, meu caro amigo, — Sim, falarei, pois vejo que estás
tratar satisfatoriamente um assunto pronto a seguir-me. Nós sabemos,
importante sem recorrer a paradigmas. creio, que as crianças, logo que come
Poderiamos quase dizer que cada um çam a aprender a escrita. . .
de nós conhece todas as coisas como SÓCRATES, O JOVEM
sonho, mas que, à luz do despertar, se — Que vais dizer?
apercebe de nada saber.
ESTRANGEIRO
SÓCRATES, O JOVEM — Que elas distinguem suficiente
— Que queres dizer?
mente bem as várias letras, nas sílabas
ESTRANGEIRO mais curtas e mais fáceis, e são capa
— Parece-me ser uma descoberta
zes de, a esse respeito, dar respostas
curiosa que me leva a falar em que
consiste, em nós, a ciência. exatas.
SÓCRATES, O JOVEM SÓCRATES, O J OVEM 278«
— Em quê? — Sem» dúvida.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Precisarei, meu caro, de um — Entretanto', já não as distinguem
outro paradigma para explicar o meu. em outras sílabas, e pensam e falam
SÓCRATES, O JOVEM erradarnente a seu respeito.
— Pois bem, fala. Não há razão SÓCRATES, O JOVEM
para hesitares ao falar comigo. — É certo.
POLÍTICO 233
O paradigma da teçedura
mentas, e, embora lhe concedam maior esclarece nem nada conclui, enquanto
importância, reivindicarão para si uma não houvéssemos afastado todas estas
grande parte. artes rivais?
SÓCRATES, O JOVEM
SÓCRATES, O JOVEM — Tens razão.
— Certamente. ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO — E não será este o momento para
— Segundo elas, as artes que fabri assim fazer, se quisermos que a nossa
cam os instrumentos, com os quais se dissertação prossiga ordenadamente?
exerce a tecedura, hão de pretender,
SÓCRATES, O JOVEM
creia-se, serem, pelo menos, causas — Não hâ por que hesitar.
auxiliares de cada tecido fabricado.
ESTRANGEIRO
SÓCRATES, O JOVEM — Consideremos, pois, em pri
— É certo. meiro lugar, que tudo aquilo que se
ESTRANGEIRO produz é objeto de duas artes.
— A noção de tecedura, desta parte SÓCRATES, O JOVEM
da tecedura que escolhemos, estará — Quais?
talvez essa, distinção te seja lição mamos fios da trama e dizemos que a
oportuna. arte que preside sua colocação tem por
finalidade a fabricação da trama, i 283 a
SÓCRATES, O JOVEM
— Como fazê-lo? SÓCRATES, O JOVEM
— Muito bem.
ESTRANGEIRO
— Do seguinte modo: entre os pro ESTRANGEIRO
dutos da cardadura, existe um que pos — Eis, pois, a parte da teçedura
sui comprimento e largura, a que cha que nos interessava, perfeitamente
mamos roca? compreensível daqui por diante. Quan
do a operação de reunião, que é a parte
SÓCRATES, O JOVEM do trabalho da lã, entrelaçou a urdi
— Sim.
dura e a trama, de maneira a formar
ESTRANGEIRO um tecido, damos, ao conjunto do teci
— Muito bem, pela fiação rotativa
do, o nome de vestimenta de lã, e, à
no fuso, que a transforma num sólido
arte que o produz, o nome de teçedura.
fio, obteremos o fio da urdidura e a
arte que dirige esta operação é a arte SÓCRATES, O JOVEM
— Muito bem.
de fabricar urdidura.
ESTRANGEIRO
SÓCRATES, O JOVEM — Bem, mas então por que não
— Correto. dizer logo: “A teçedura é a arte de b
ESTRANGEIRO entrelaçar a urdidura e a trama” em
— Mas todas as fibras que produ lugar de fazer tantos rodeios e um
zem apenas fios frouxos e que.possuem acervo de distinções inúteis?
justamente a flexibilidade necessária SÓCRATES, O JOVEM
para se entrelaçarem na urdidura e — A meu ver, Estrangeiroqiadahá
resistirem às trações da teçedura, cha de inútil no que dissemos.
ESTRANGEIRO
suas obras.
— Mas, então, aquilo que ultra SÓCRATES, O JOVEM
passa o nível da medida, ou permanece — Ê evidente.
inferior a ele, seja em nossa conversa, ESTRANGEIRO
seja na realidade, não é exatamente, a — Abolir a política não será impe
nosso ver, o que melhor denuncia a dir-nos de continuar nossa análise
diferença entre os bons e os maus? sobre a ciência real?
240 PLATÃO
b certo número de coisas possui algo em traços de semelhança que elas encer
comum, não abandoná-las antes de ram, reunindo-as na essência de um gê
haver distinguido, naquilo que tem em nero. Basta o que fica dito quanto a
comum, todas as diferenças que consti esse problema e quanto às faltas e aos
tuem as espécies; e, com relação às excessos: observemos apenas que aqui
dessemelhanças de toda espécie, que encontramos dois gêneros de medida, c
podemos observar numa multidão, não lembrando-nos dos caracteres que lhes
nos desencorajarmos nem delas nos atribuímos.
separarmos, antes de havermos reuni SÓCRATES, O JOVEM
do, em uma única similitude, todos os — Não os esqueceremos.
A norma verdadeira.
A síntese dialética
pesquisa sobre o político? Ê ela ditada das que dêem aos homens uma intui-
242 PLATÃO
ao político, aplicando a ele nosso nem política; mas não há, por outro
exemplo sobre a teçedura. lado, operação alguma da arte real que
SÓCRATES, O JOVEM lhes possamos atribuir.
— Tens razão. Façamos como SÓCRATES, O JOVEM
dizes. — Não, com efeito.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO ,
— Havíamos, pois, separado o Rei — Realmente é difícil a tarefa que
de todas as artes que possuem o nos propusemos, procurando distinguir
mesmo domínio e, especialmente, de este gênero dos demais., pois não há
todas aquelas relativas aos rebanhos. nada que não se possa com alguma
Restam, entretanto, no interior da razão chamar de instrumento disto ou
cidade, as artes auxiliares e as artes daquilo. Há, entretanto, entre os obje- e
produtoras, e é necessário, antes de tos qué possui a cidade, uma espécie
tudo, separar umas das outras. que é necessário caracterizar de outro
SÓCRATES, O JOVEM modo.
— Muito bem.
SÓCRATES, O JOVEM
ESTRANGEIRO — Como?
— Sabes que é difícil dividi-las em
ESTRANGEIRO
duas? Penso que compreenderemos — Suas propriedades são diferen
c melhor a razão disso, prosseguindo. tes. Pois ela não é fabricada como
SÓCRATES, O JOVEM ~ instrumento, para servir à produção de
— Prossigamos, então. qualquer coisa, mas para conservá-la,
ESTRANGEIRO uma vez produzida.
— Sendo impossível a divisão em
SÓCRATES, O JOVEM
duas, temos que dividi-las membro a — A que te referes?
membro como a uma vítima. Pois é
necessário sempre dividir no menor ESTRANGEIRO ,
número de partes possível. — A esta espécie variada, produ
zida para a preservação dos objetos
SÓCRATES, O JOVEM
— Como faremos neste caso? secos ou úmidos, preparados ao fogo
ou não, à qual damos o nome comum
ESTRANGEIRO
— Como há pouco, com relação a de vasilhame, espécie certamente
todas as artes que fornecem os instru muita rica e que não pertence de wa
mentos à teçedura, e que classificamos maneira alguma à ciência em questão.
como artes auxiliares. SÓCRATES, O JOVEM
— Sem dúvida alguma.
SÓCRATES, O JOVEM
— Sim. ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO — Vejamos agora uma terceira es
— Pois bem, devemos agora fazer pécie de objetos, absolutamente dife
d o mesmo e por mais forte razão. Todas rente das outras: terreste ou aquática,
as artes que fabricam, na cidade, um móvel ou fixa, preciosa ou sem preço
instrumento pequeno ou grande devem possui um nome apenas, pois sua fina
ser classificadas como auxiliares. Sem lidade é simplesmente dar um assento,
elas, com efeito, jamais haverá pólis servindo de sede a alguma coisa.
244 PLATÃO
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Em todo o caso, não hâ perigo — Em seguida, há a classe sacerdo
de que esses assalariados e interessa tal que, segundo afirma a crença públi
dos, que vemos oferecer seus serviços a ca, oferece aos deuses em nosso nome
qualquer que se apresente, possuam ja os sacrifícios que eles desejam, dirigin-
mais uma participação na função real. do-lhes as preces necessárias para que </
SÓCRATES, O JOVEM
nos outorguem seus favores. Ora, creio
— Certamente não. que numa ou noutra dessas funções
ESTRANGEIRO
praticam uma arte útil.
— Que dizer dos homens através SÓCRATES, O JOVEM
dos qúais sempre nos foram prestados — Sim, é o que parece.
certos serviços? ESTRANGEIRO
— Eis-nos, pois, a meu ver, a cami
SÓCRATES, O JOVEM
nho do fim a que nos propusemos, pois
— Que homens e que serviços?
que os sacerdotes e os adivinhos pare
b ESTRANGEIRO
cem ter grande importância e desfru
— Refiro-me aos arautos e a todos
tam de grande prestígio pela grandeza
aqueles que, à força de prestarem ser
de seus empreendimentos. Assim é que
viços, se tomam hábeis letrados; e a
no Egito um rei não pode reinar se não
outros, cuja universal competência
possuir a dignidade sacerdotal e se, por
leva a múltiplos trabalhos junto às
acaso, apoderar-se do governo, perten-
magistraturas. Como os chamaremos?
cendo a uma classe inferior, deverá,
SÓCRATES, O JOVEM finalmente, fazer-se admitir nesta últi
— Como dizias há pouco., servido ma casta. Entre os gregos também, na
res e não chefes possuidores de autori maioria das vezes, é aos mais altos
dade própria nas cidades. magistrados que se confia a tarefa de
ESTRANGEIRO realizar os mais importantes desses
— Creio, entretanto, que não so sacrifícios, e entre vós, aliás, parece
nhei ao afirmar que dentre eles surgi- verificar-se. claramente o que digo, pois
riam os mais declarados pretendentes à são também os magistrados que pela
c política; e seria estranho procurá-los sorte se tomaram reis que se incum
em qualquer outra atividade. bem dos antigos e mais solenes sacrifí
SÓCRATES, O JOVEM cios consagrados pela tradição.
— Certamente. SÓCRATES, O JOVEM
Estrangeiro — Perfeitamente.
— Aproximemo-nos agora daque ESTRANGEIRO ' ™°
les que ainda não foram examinados; e — Muito bem; examinemos esses
dentre eles, em primeiro lugar, dos qüe réis e sacerdotes eleitos^ com seus
se dedicam à arte do adivinho, prati servidores, e além deles, um grupo
cando certamente uma ciência útil, novo e grande de pessoas que agora se
pois passam por intérpretes dos deuses manifesta, uma vez afastados os de
junto aos homens. mais rivais.
SÓCRATES, O JOVEM SÓCRATES, O JOVEM
— Sim. — A que te referes?
POLÍTICO 247
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Certamente a pessoas estranhas. — Sim, pois o que há de estranho
SÓCRATES, O JOVEM resulta de nossa ignorância. Foi, -com
— Qüem são elas? efeito, o que aconteceu a mim mesmo,
ESTRANGEIRO há pouco; eu não -ousava crer que
— Uma raça de tribos numerosas, repehtinamente tinha diante de mim,
ao que parece à primeira vista. São ho reunidas, as pessoas que se agitam em
mens que em grande número se pare- torno à administração pública.
b cem a leões, centauros e outros mons SÓCRATES, O JOVEM
tros dessa espécie e que, em maior — De quem se trata?
número ainda, se assemelham a sátiros ESTRANGEIRO
e outros animais fracos, mas astucio — Do mais mágico de todos os
sos, que rapidamente trocam entre si sofistas, o mais consumado nesta arte,
as aparências exteriores e proprieda difícil de distinguir dos verdadeiros
des. Realmente, Sócrates, parece-me políticos e do verdadeiro homem real;
que sabes agora quem são estes ho mas que, entretanto, é preciso distin
mens. guir, se quisermos bem compreender o
SÓCRATES, O JOVEM que procuramos.
— Explica-te: tens o ar de quem SÓCRATES, O JOVEM
descobriu algo estranho. -— Sim, e é preciso não esmorecer.
e ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Considerando os caracteres que — O -que dissemos de início subsis
essas formas apresentarem, opressão tirá ainda, ou já não estamos mais de
ou liberdade, pobreza e riqueza, legali acordo?
dade ou ilegalidade, podemos dividir SÓCRATES, O JOVEM
em duas cada uma das duas primeiras — A que te referes?
formas. A monarquia apresenta duas ESTRANGEIRO
espécies às quais chamaremos tirania e — Que o governo real depende de
realeza. uma ciência. Creio que o dissemos.
SÓCRATES, O JOVEM SÓCRATES, O JOVEM
— Evidentemente. — Sim.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Em toda a cidade onde a força — E não de qualquer ciência; mas
estâ nas mãos de um pequeno número de uma ciência crítica e diretiva, mais
haverá ou uma aristocracia ou uma do que de qualquer outra.
oligarquia. SÓCRATES, O JOVEM
SÓCRATES, O JOVEM — Sim.
— Perfeitamente.
ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO — Nesta ciência diretiva, havíamos
— Apenas, na democracia, é indife-
distinguido entre a direção das obras
292 a rente que a massa domine aqueles que
inanimadas e a dos seres vivos, e pro
têm- fortuna, com oü sem seu assenti
cedendo sempre por esse modo de divi
mento, ou que as leis sejam estrita
são, chegamos ao ponto ern que esta
mente observadas ou desprezadas; nin
mos, no qual não perdemos de vista a
guém ousa alterar-lhe o nome.
ciência mas não nos tornamos capazes
SÓCRATES, O JOVEM de defini-la com precisão suficiente.
— É verdade.
ESTRANGEIRO SÓCRATES, O JOVEM
— E então? Alguma dessas consti — Ê exato.
tuições serâ exata se definirmos sim ESTRANGEIRO
plesmente por estes termos: “um, al — Ora, parai sermos consequentes
guns, muitos — riqueza ou pobreza — aos nossos princípios, não nos aperce
opressão ou liberdade — leis escritas bemos de que o caráter que deve servir
ou ausência de leis”? para distinguir essas constituições é a
SÓCRATES, O JOVEM presença de uma ciência, e não a
— Nada o impede, realmente. “liberdade” ou a “opressão”, a
b ESTRANGEIRO “pobreza” ou a “riqueza”, “alguns” ou
— Pensa melhor, atendendo a este “muitos”?
ponto de vista. SÓCRATES, O JOVEM
SÓCRATES, O JOVEM — Nem se pode pretender de outra
— Qual? forma.
POLÍTICO 249
A ilegalidade ideal.
A força impondo o bem
coisas humanas, não admite em nenhu mas que prescrevem, ao dirigir essas
ma arte, e em assunto algum, um abso competições, os treinadores que as
luto que valha para todos os casos e conduzem de acordo com regras cientí
para todos os tempos. Creio que esta ficas.
mos de acórdo sobre esse ponto. SÓCRATES, O JOVEM
SÓCRATES, O JOVEM — Que máximas?
— Sem dúvida. ESTRANGEIRO^
ESTRANGEIRO — A eles, não parece necessário
— Ora, em suma, é precisamente considerar os pormenores dos casos
este absoluto que a lei procura, seme- individuais, formulando, para cada
c lhante a um homem obstinado e igno pessoa, prescrições especiais; ao con
rante que não permite que ninguém trário, acreditam que é necessário ver
faça alguma coisa contra sua ordem, e as coisas de um modo geral, estabele
não admite pergunta alguma, mesmo cendo, para a maioria dos casos e das «
em presença de uma situação nova que pessoas, preceitos que sejam úteis para
as suas próprias prescrições não ha o corpo em geral.
viam previsto, e para a qual este ou SÓCRATES, O JOVEM
aquele caso seria melhor. — Muito bem!
SÓCRATES, O JOVEM ESTRANGEIRO
— É verdade: a lei age sobre cada — Essa é a razão por que, na reali
um de nós, exatamente como acabas dade, impõem a um grupo de pessoas
de dizer. as mesmas fadigas, iniciando e paran
ESTRANGEIRO . do ao mesmo tempo a corrida, a luta
— E não é, porventura, impossível, ou qualquer outro exercício corporal.
ao que permanece sempre absoluto, SÓCRATES, O JOVEM
adaptar-se ao que nunca é absoluto? — É verdade.
SÓCRATES, O JOVEM ESTRANGEIRO
— Assim parece. — Acontece o mesmo com o legis
ESTRANGEIRO lador: tendo que prescrever a suas ove
— Por que, pois, é necessário fazer lhas, obrigações de justiça e contratos
d. as leis se elas não são a regra perfeita? recíprocos, jamais seria capaz, pro- 295 □
dos que foram obrigados a transgredir todos os cidadãos, uma justiça perfei
a lei escrita ou costumeira para agir de ta, penetrada de razão e ciência, conse
um modo mais justo, útil e belo, guindo não somente preservá-la, mas
d evitando-se a censura ridícula, não se também, na medida do possível, tor-
excluirá, de todas as afrontas possíveis ná-la melhor?
254 PLATÃO
A legalidade necessária::
os dois perigos
dão, a esse respeito, por inspiração ou tiça, essa pena e essa multa, fosse qual
não de médicos, pilotos ou de simples fosse.
256 PLATAO
As constituições imperfeitas
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Esses códigos não seriam, pois, — Anteriorfnente, entretanto, con
em cada domínio, imitações da verda cordamos em que a massa jamais seria
de executadas o mais perfeitamente capaz de assimilar arte alguma.
possível, sob a inspiração daqueles que SÓCRATES, O JOVEM
sabem? — Continuamos de acordo.
SÓCRATES, O JOVEM ESTRANGEIRO
— Sem dúvida. — Se existe pois uma arte real, a
ESTRANGEIRO massa dos ricos ou do povo jamais se
— Entretanto, se bem nos lembra apropriará dessa ciência política.
mos, havíamos dito que o homem SÓCRATES, O JOVEM
competente, o verdadeiro político, ins- — Não seria possível.
pirar-se-á na maioria dos casos unica
ESTRANGEIRO
mente em sua arte e não se preocupará, — Ê necessário pois que tais simu
de modo algum, com a lei escrita se lhe lacros de constituições, para imitar o
parecer que um novo modo de agir mais perfeitamente possível esta cons
d valerá mais, na prática, do que as pres tituição verdadeira — o governo do -301 a
crições redigidas por ele e promul único competente—procurem, uma vez
gadas para o tempo de sua ausência. estabelecidas suas leis, jamais fazer
SÓCRATES, O JOVEM algo contra as leis escritas e os cos
— Foi, realmente, o que dissemos. tumes nacionais.
ESTRANGEIRO
— Quando o primeiro indivíduo ou SÓCRATES, O JOVEM
— Disseste bem.
a primeira massa, possuindo leis, resol
vem agir contrariamente a elas, acredi ESTRANGEIRO
tando assim agir melhor, não proce --- Quando pois são os ricos que
dem, dentro de seu alcance, da mesma realizam esta imitação, a constituição
forma como o político verdadeiro? se chama uma aristocracia; mas se não
observam as leis, será uma oligarquia.
SÓCRATES, O JOVEM
— Perfeitamente. SÓCRATES, O JOVEM
— Provavelmente.
ESTRANGEIRO
— Agindo, por ignorância, ao pro ESTRANGEIRO
curar imitar a verdade, eles a imitarão ' — Se, porém, governa um chefe
erradamente. Mas se agirem com com- único, de acordo com as leis, imitando
« petência, em lugar de uma imitação, o chefe competente, chamamo-lo rei,
não teremos a própria realidade em sem servir-nos de nomes diferentes
toda a sua verdade? para os casos em que esse monarca,
SÓCRATES, O JOVEM respeitador das leis, seja guiado pela
— Perfeitamente. ciência ou pela opinião.
258 PLATÃO
mentos úteis e bons e, quer sejam estes pelo ímpeto de natureza má, ao ateís
semelhantes ou dessemelhantes, fundi- mo, à imoderação e à injustiça, deles
los todos numa obra que seja perfeita se livrando a ciência real, por senten
mente una por suas propriedades e ças de morte ou exílio e por penas as
estrutura. mais infamantes.
SÓCRATES, O JOVEM SÓCRATES, O JOVEM
— Claro! — Essa é, pelo menos, a doutrina
d ESTRANGEIRO usual.
— Nossa política, a política verda ESTRANGEIRO
deiramente conforme à natureza, ja — Aqueles que permanecem na
mais consentiría em constituir uma ci ignorância e abjeção, ela submeterá ao
dade formada de bons e maus. Ao jugo da escravidão.
contrário, começaria, evidentemente,
SÓCRATES, O JOVEM
por submetê-los à prova do jogo, e, ter — Muito bem.
minada essa prova, confiá-los-ia a edu
cadores competentes e habilitados para ESTRANGEIRO
esse serviço. Reservaria, entretanto, a — Quanto aos demais, suficiente
si o governo e a direção, assim como mente bem nascidos para que uma boa b
faz o tecedor com relação aos cardado- formação possa levá-los às virtudes
res e a todos os demais auxiliares que generosas e para que um método hábil
preparam os materiais que ele urdirá, possa amalgamá-los uns aos outros, se
mantendo-se constantemente junto se inclinarem mais para a energia, pela
* deles para governar e dirigir todos os rigidez de seu caráter, a ciência real
seus movimentos, e determinando a marcará o seu lugar na urdidura; os
cada um as obrigações que julga neces outros que se inclinam mais para a
sárias ao seu próprio trabalho de moderação constituem, pára essa
teçedura. mesma ciência, e prosseguindo em
nossa comparação, o tecido flexível e
SÓCRATES, O JOVEM
— Perfeitamente. brando da trama. Sendo opostas suas
tendências, a política se esforça por
ESTRANGEIRO
— Ora, assim também, ao que me uni-los e entrelaçá-los da seguinte
parece, fará a ciência real com relação maneira.
a todos aqueles que, sob a égide das SÓCRATES, O JOVEM
leis, ministram a instrução e a educa — Que maneira?
ção: reservará a si a autoridade direti ESTRANGEIRO
va, não permitindo treinamento algum — Reúne, em primeiro lugar, se
que não tenda a facilitar sua própria gundo as afinidades, a parte eterna de
POLÍTICO 267
suá alma com um fio divino, e em vida em cidade, ao passo que, privado
seguida, depois dessa parte divina, une das luzes que apontamos, atrairía a si,
a parte animal com fios humanos. > com justiça, a humilhante fama de
SÓCRATES, O JOVEM tolo?
— Que queres novamente dizer? SÓCRATES, O JOVEM *
ESTRANGEIRO — Perfeitamente.
— Se uma opinião realmente ver ESTRANGEIRO
dadeira e firme se estabelece nas — Não será necessário afirmar,
almas, a propósito do belo, do bom, do agora, que este laço jamais unirá de
justo e de seus opostos, digo que algo maneira durável, nem os maus, entre
divino se realizou numa raça demonía si, nem os maus com os bons, e que
ca. ciência alguma jamais pensará seria
SÓCRATES, O JOVEM mente em servir-se de pessoas desta
— Isto, seguramente, convém dizer. espécie?
d ESTRANGEIRO SÓCRATES, O JOVEM
— Ora, não sabemos que somente —- Como pretendê-lo, com efeito?
o político e o sábio legislador têm esse ESTRANGEIRO 310 a
privilégio de, auxiliados pela musa da — Ê somente entre caracteres em
ciência real, poder imprimir tal opinião que a nobreza é inata e mantida pela
nos espíritos formados pela boa educa educação que as leis poderão criar este
ção de que falavamos hâ pouco? laço; é para eles que a arte criou esse
remédio; ela é, como dizíamos, o laço
SÓCRATES, O JOVEM
— Pelo menos é verossímil. verdadeiramente divino que une entre
si as partes da virtude, por mais desse
ESTRANGEIRO
melhantes que sejam, por natureza, e
— Mas, Sócrates, jamais daremos
por mais contrárias que possam ser
os títulos em questão, a quem não
pelas suas tendências.
tenha esse poder.
SÓCRATES, O JOVEM
SÓCRATES, O JOVEM
— Ê verdade.
— Ê justo.
ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO — Quanto aos demais laços pura
— Muito bem. Uma alma enérgica mente humanos, já não é difícil conce
e não se suavizaria quando penetrada bê-los, uma vez criado esse primeiro
assim de verdade, e não se abriria mais laço, nem, havendo-os concebido, rea
espontaneamente às idéias de justiça, lizá-los.
enquanto antes se fechava numa fero SÓCRATES, O JOVEM b
cidade quase bestial? — Como assim, e de que laços se
SÓCRATES, O JOVEM trata?
— Sem dúvida alguma. ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO — Daqueles que se criam, entre
— Mas que dizer do natural mode cidades, pelos casamentos que elas
rado? Estas opiniões não o tomariam autorizam e pela troca de seus jovens;
verdadeiramente sóbrio e prudente, e, entre particulares, pelos casamentos
pelo menos tanto quanto o requer a que contratam. Ora, a maioria con
268 PLATÃO