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OFICINA DE LIVROS

ISAAC BABEL

A Cavalaria Vermelha

Tradução:
RONIWALTER JATOBA

Horizonte Editora Oficina de Livros


São Paulo 1989 Belo Horizonte
Editoração/produção gráfica: Bertelli Consultoria Editorial

Composição: Linotipadora Expressa Ltda. - Tel. (OH) 292.2305


Capa: Marcelo Bicalho
[a edição: abril 1989
Primeira reimpressão: junho 1989

N.º de catálogo: 0009

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Horizonte Editora
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SUMÁRIO

Nota do tradutor, 7
O caminho do Sbruch, 9
A igreja de Novograd, 11
A carta, 15
O chefe da estrebaria, 19
Pan Apolek, 23
O sol da Itália, 31
Guedali, 35
Meu primeiro ganso, 39
O rabino, 43
O caminho para Brodi, 47
Informe sobre a tachanka, 49
A morte de Dolguchov, 53
O comandante da Segunda Brigada, 57
Sachka Cristo, 59
A história de Matvei Pavlichenko, 65
O cemitério de Kozin, 71
Prischepa, 73
História de um cavalo, 75
Konkin, 79
Berestechko, 83
O sal, 87
Noite, 91
Afonka Bida, 95
São Valentim, 103
Trunov, o comandante de esquadrão, 107
Os Ivans, 115
História de um cavalo (continuação), 123
A viúva, 125
Zamostie, 131
A traição, 135
Chesniki, 139
Depois do combate, 143
A canção, 149
O filho do rabino, 1553
Argamak, 157
NOTA DO TRADUTOR

A literatura russa do século passado, que inclui nomes como


Gogol, Dostoievski, Tchekov e Tolstoi, abriu minha cabeça para
um mundo mais amplo no começo dos anos sessenta, quando, ado-
lescente, vivia no sertão baiano. A prosa pós-Revolução de Outu-
bro de 1917, no entanto, só vim a conhecer na década seguinte,
a de setenta, já morando em São Paulo, Se escapei de muita apo-
logia e pouca literatura com o chamado realismo socialista, deixei
de entrar em contato, na juventude, com obras geniais como Clim
Sampguine, de Gorki, O Dom Silencioso, de Sholokov, e, princi-
palmente, este 4 Cavalaria Vermelha, de Isaac Babel.
Babel nasceu em Odessa, em 1894, Era filho de um comer-
ciante judeu e, desde cedo, começou a escrever suas primeiras
histórias. Aos 21 anos, foi para São Petersburgo, onde conheceu
Máximo Gorki e, graças a ele, teve alguns de seus trabalhos pu-
blicados em revistas literárias. Após a Revolução de 1917, serviu
no Exército Vermelho e, em 1920, assumiu o posto de comissário
político no 1.º Exército de Cavalaria, a famosa Cavalaria Ver-
melha. A guerra civil de 1918-1922, na Polônia, inspirou os
contos deste seu primeiro livro, publicado em 1926. A Cavalaria
Vermelha (Konarmiya) obteve grande sucesso, mas o tom irônico,
a ambiguidade, a violência cossaca que impregna os textos, o
respeito dos personagens por Trotsky não agradaram aos críticos
oficiais da era stalinista. O próprio Semion Budionni, heróica
figura do livro e comandante-em-chefe do 1.º Exército, abominou
as narrativas de Babel, enquanto um intelectual serviçal definiu-as
como “poesia de banditismo”. Até mesmo Babel, em 1928, rene-
gou o seu magnífico trabalho junto a um grupo de escritores. Era
o espírito de sobrevivência em ação: anos depois, por suspeita de
trotskismo, foi preso e enviado para um campo de concentração,
onde morreu em 1941,
Estes contos de A Cavalaria Vermelha, chamados por Otto
Maria Carpeaux de “fragmentos de uma epopéia despedaçada”,
foram traduzidos da edição soviética em espanhol (Editorial Pro-
gresso, 1974); para melhor resultado da tradução, cotejamos a
mesma ainda com outras traduções em português (Editora Inicia-
tivas Culturais, 1976, e Editora Civilização Brasileira, 1969). Da
edição brasileira de A Cavalaria Vermelha recuperamos pequenos
trechos suprimidos nas edições soviéticas mencionadas, sobretudo
quando os personagens de Babel referem-se a Trotsky. Em 1974,
data da versão em espanhol, Moscou já divulgava a obra do escri-
tor judeu-russo, mas a simples menção de um dos líderes da revo-
lução russa, perseguido e morto por Stálin, permanecia ainda sob.
vigilância dos zelosos censores soviéticos.
Espero ter sido fiel aos relatos vigorosos de Babel. Suas his-
tórias trazem, sem dúvida, a marca de um autor que captou com
emoção as contradições e os conflitos de um povo em busca de
objetivos sublimes. Provavelmente, dentre as obras que agora co-
nheço do período, este é o mais notável livro de contos saído da
experiência vivida na Rússia revolucionária.
Roniwalter Jatobá
março de 1989
O CAMINHO DO SBRUCH

B em cedo, o comandante da Sexta Divisão comunicou que, ao


amanhecer, Novograd-Volinski fora tomada. O Estado-Maior
partiu de Krapivno, enquanto nosso comboio — uma ruidosa reta-
guarda — seguiu a estrada de Brest a Varsóvia, construída por
Nicolau | à custa dos ossos dos camponeses.
À nossa volta floresciam campos vermelhos de papoulas, a
brisa da tarde brincava sobre campos de centeio amarelecido e,
no horizonte, erguia-se alto o virginal trigo mourisco, como a
muralha de um mosteiro longínquo. O plácido Volin ziguezaguea-
va, afastava-se de nós, sinuoso, e perdia-se nos bosques de faias,
envolvido numa névoa cor de pérola e entre colinas floridas. De-
pois, serpeava lentamente entre plantações de lúpulo, Um sol ala-
ranjado descia no horizonte, parecendo uma cabeça decepada;
uma luz suave filtrava-se entre as nuvens, os estandartes do poente
ondeavam sobre nossas cabeças. No frescor da tarde era forte o
cheiro do sangue dos cavalos mortos na véspera.
Mais à frente, as águas turvas do Sbruch rugiam, retorcen-
do-se espumantes, nas cataratas. Ás pontes estavam destruídas.
Atravessamos o rio em seu trecho mais raso. Sobre a água pou-
sava uma lua majestosa. Os cavalos afundavam até as ancas, sono-
ros jatos de água deslizavam entre as pernas de centenas de ani-
mais. Um de nós caiu e blasfemou em voz alta a mãe de Deus.
O rio cobriu-se de manchas escuras — os carros — e de ruídos
surdos, murmúrios e canções que se erguiam acima das resplan-
decentes sinuosidades do Sbruch.
Bem tarde da noite chegamos a Novograd. No alojamento
que me foi destinado encontrei uma mulher grávida e dois judeus
de pele vermelha e pescoço fino; um terceiro dormia junto à
parede, coberto dos pés à cabeça. No quarto que me deram encon-
trei armários abertos e revirados, peças de roupa de mulher espa-

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lhadas pelo chão, excremento humano e pedaços de louças secre-
tas que os judeus usam apenas uma vez por ano, na Páscoa,
— Limpe isso — disse eu à mulher. — Como pode viver
no meio de tanta sujeira?
Os dois judeus se ergueram, saltitando com seus sapatos de
solado de feltro, e arrumaram o quarto. Andavam em silêncio,
sem fazer ruído, à maneira de macacos ou de japoneses numa
exibição de circo. Estenderam no chão um colchão esburacado;
deitei-me junto à parede, perto do judeu que já estava dormindo.
O silêncio envolveu tudo e apenas a lua, com sua auréola
resplandecente, vagueava lá fora.
Estendi as pernas entorpecidas e adormeci. Sonhei com o
comandante da Sexta Divisão: montando um pesado animal, per-
seguia o comandante da Brigada, alvejando-o duas vezes. As balas
atravessavam a cabeça do comandante e os seus olhos caíam ao
chão. “Por que fez a Brigada dar meia-volta?” — gritava Savitski,
o comandante da Sexta Divisão, ao morto. Naquele momento des-
pertei, porque a mulher grávida apalpava-me o rosto com os dedos.
— Senhor — disse — está sonhando e gritando, agita-se de
um lado para outro, Vou colocar seu colchão noutro quarto, pois
o senhor está empurrando meu pai.
Ergueu-se, as pernas finas, a barriga redonda, e levantou a
manta que cobria o homem adormecido. Ali jazia um velho, morto,
deitado de costas. Tinha a garganta cortada e o rosto partido ao
meio; a barba, suja de sangue azulado, formava uma grande man-
cha parecendo chumbo.
— Senhor — disse a mulher, sacudindo o colchão —, os
poloneses cortaram-lhe o pescoço. Ele suplicava: “Matem-me no
pátio para que minha filha não me veja morrer”. Mas não o aten-
deram, e ele morreu neste quarto, pensando em mim. Ágora —
continuou com terrível força — eu quero saber onde encontrar
um pai igual ao meu!

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A IGREJA DE NOVOGRAD

Os saí à procura do comissário do Exército; que se Instalara


“na casa de um padre católico foragido. Na cozinha, fui rece-
bido por pani* Elisa, governanta do jesuíta. Serviu-me um chá cor
de âmbar e bolos; os bolos tinham um cheiro de crucifixo, eram
cobertos por uma calda fina e exalavam o perfume violento do
Vaticano. ;
Junto à casa, na igreja, clamavam os sinos, tangidos por um
sineiro enlouquecido. Era uma noite cheia das estrelas de julho.
Sacudindo seus longos cabelos encaracolados, pami Elisa conti-
nuava a servir-me bolos; eu me deliciava com o manjar dos je-
suítas.
A velha polonesa tratava-me de pan *. No portal, velhos de
cabelos brancos e orelhas ossificadas postavam-se como num
desfile, e mais adiante, na penumbra, cintilava a batina de um
monge. O padre tinha fugido, mas deixara ali pan Romualdo, o
seu assistente. Romualdo, um eunuco gigantesco de voz anasalada,
nos tratava de “camaradas”. Com o seu dedo amarelado percorria
o mapa indicando os pontos devastados pelos poloneses; tomado
de súbito entusiasmo, enumerava as feridas de seu país. Uma lem-
brança suave recaia sobre a memória de Romualdo, que nos traiu
sem compaixão e foi fuzilado. Naquela noite, porém, sua estreita
batina farfalhava em cada porta entreaberta, varria tumultuosa-
mente todos os corredores. Ele parecia sorrir para todos os que
quisessem beber vodca. Naquela noite, a sombra do padre desli-
zava atrás de mim, sem tréguas. Se não tivesse sido espião, esse
Romualdo teria chegado a bispo.
Bebemos vodca juntos. O eflúvio de uma vida desconhecida
palpitava sob as ruínas da casa do padre, e sua insinuante ten-
tação me amolecia. Oh, peguenos crucifixos como talismãs de
* Senhora, em polonês. [Nota da edição soviética.)
* Senhor. [Nota da edição soviética.)

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cortesãs, pergaminhos de bulas papais, e cetim de cartas [emi-
ninas, que apodrecem na seda azul dos sutiãs! Vejo-te ainda,
padre traidor, com a tua batina cor de lilás, tuas mãos gordas
e tua alma tão terna e implacável como a de um gato; vejo as
chagas do teu deus destilando esperma, o aromático veneno em-
briagador de virgens,
Bebemos vodca, enquanto esperávamos o comissário que não
voltou do Estado-Maior. Romualdo acomodou-sé num canto e
adormeceu. Tinha o sono agitado. Além da janela, o jardim bri-
lhava sob um céu negro e violento. Rosas sedentas mexiam-se nas
trevas. Relâmpagos esverdeados cintilavam entre as copas das
árvores, Um cadáver desnudo jazia largado na colina e os raios
da lua jorravam sobre suas pernas finas e abertas.
Eis a Polônia, eis a orgulhosa miséria de Rezeczpospolita! ?
E eu, um violento intruso, estendido num colchão ordinário, na
igreja abandonada pelo seu sacerdote, coloco sob a cabeça algu-
mas folhas impressas com louvores ao Excelentíssimo e Iustris-
simo chefe de Estado, Jósef Pilsudski.
Hordas de indigentes vaguciam pelas tuas antigas cidades, oh,
Polônia. Acima delas ressoa, bem alto, o canto de união de todos
os servos. Ai de ti, Polônia, Rezeczpospolita, ai de ti, príncipe
Radziwill, ai de ti, príncipe Saniega, efêmeros insurgidos!
E o meu comissário não aparecia! Procurei-o no Estado-Maior,
no jardim, na igreja. As portas da igreja estavam abertas. Entrei
e encontrei no caminho duas caveiras cintilantes sobre a tampa
de um antigo ataúde. Aterrorizado, precipiteime para a cripta.
Uma escada de carvalho conduzia dali ao altar. Vi uma grande
quantidade de luzes movendo-se em torno. Distingui o comissário,
o chefe da Seção Especial e cossacos com velas acesas nas mãos.
Responderam ao meu débil grito e tiraram-me da cripta.
Os crânios eram apenas pedaços de esculturas do túmulo da
igreja € já não me assustavam; todos continuamos a busca — pois
era uma busca —, iniciada após a descoberta de equipamentos
militares, na casa do padre.
Agitando os punhos adornados com divisas que representa-
vam cabeças de cavalos, tilitando as esporas, murmurando uns

% Nome tradicional da Polônia, [Nota da edição soviética.]

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para os outros, perambulamos pelo templo, levando nas mãos velas
gotejantes. As virgens Maria, ornadas de pedras preciosas, vigia-
vam o nosso caminho com as suas rosadas pupilas como as dos
ratos. As velas bruxulcavam em nossas mãos e sombras retangu-
lares retorciam-se sobre as estátuas de São Pedro, São Francisco,
São Vicente e sobre suas faces rosadas e encaracoladas barbas
pintadas de carmim.
Continuamos a busca pela igreja: sombras de estátuas salta-
vam diante de nossos olhos, icones partiam-se ao meio e se abriam,
revelando passagens subterrâneas e bolorentas. Era um templo
antigo e cheio de mistério; em suas paredes resplandescentes en-
cerravam passagens secretas, nichos e portas que se moviam,
abrindo-se silenciosamente. ,
Oh! O padre maluco, que pendurava sutiãs de suas paro-
quianas nos pregos da cruz do Salvador! Atrás das portas cen-
trais encontramos um baú com moedas de ouro, um saco de algo-
dão contendo cédulas e estojos de jóias parisienses com incrustra-
ções de esmeraldas.
Mais tarde, na casa do comissário, contamos o dinheiro. Pilhas
de moedas de ouro, o chão atapetado de notas, um vento impe-
tuoso soprando sobre as chamas das velas, um ar assustado nos
olhos de pani Elisa, a ruidosa gargalhada de Romualdo e o inces-
sante clamor dos sinos, tangidos pelo pan Robatski, o sineiro
louco.
— Vamos — disse a mim mesmo —, fujamos dessas virgens
Maria que piscam os olhos, enganadas por soldados rasos!

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A CARTA

É is aqui a carta que me ditou Kurdiakov, rapaz do nosso grupo


especial. Não merece ser esquecida. Escrevi-a sem melhorá-la
em nada e reproduzo-a palavra por palavra, de acordo com o ori-
ginal:
Querida mãe Evdokia Flodorovna, É
Nas primeiras linhas desta carta apressome a informá-la
que, graças a Deus, estou vivo e com saúde, é o mesmo lhe
desejo. Ao mesmo tempo, saúdo humildemente a todos [...]
(Segue-se a enumeração de parentes, padrinhos, compadres e
outros. Passemos pois so segundo parágrafo.)
Querida mãe Evdokia Fiodorovna, apresso-me em contar-
lhe que estou na Cavalaria Vermelha do camarada Budionni
e aqui se encontra também o seu compadre Nikon Vassilich,
que atualmente é um herói vermelho. Eu estou com ele no
departamento político, onde distribuo livros e jornais: o
Jzvestia, do Comitê Central Executivo de Moscou, o Pravda,
de Moscou, e o nosso implacável diário O Cavalariano Ver-
melho, que todo combatente da linha de frente quer ler, para
depois, com ânimo heróico, arrasar os infames nobres polos
neses, por isso vivo em companhia de Nikon Vassilich.
Querida mãe Evdokia Fiodorovna, mande-me tudo o que
puder arranjar, de acordo com as suas forças e possibilidades.
Rogo-lhe que mate o porquinho pintado e envie-me para
o departamento político do camarada Budionni, dirigido a
Vassili Kurdiakov. Todos os dias, deito-me sem comer é sem
cobertor, e aqui faz muito frio. Escreva-me contando alguma
coisa sobre o meu Stepa, se ainda vive ou não. Peço-lhe que
cuide dele e escreva-me dando notícias. Ele continua a tro-
peçar? Diga-me também sobre a sarna nas patas dianteiras.
Desapareceu ou não? Peço-lhe, querida mãe Evdokia Fiodo-
rovna, que não se esqueça de lavar as patas dianteiras com
o sabão que deixei atrás das santas imagens, e se papai
gastou o sabão, compre outro em Krasnodar, que Deus a
premiará. Posso dizer-lhe também que aqui é muito pobre,
que os camponeses fogem com seus cavalos É se escondem
das nossas Águias Vermelhas nas florestas, e que o trigo é

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muito escasso, tão terrivelmente miúdo que até nos faz rir.
Também plantam cevada e centeio. O lúpulo é cultivado em
estacas, de forma que cresce muito bem disposto. Fazem com
ele uma vodca caseira.
Nas linhas seguintes desta carta apresso-me em lhe contar
sobre papai, que matou meu irmão Fiodor Timofeievich Kur-
diakov, o que faz agora um ano. A nossa Brigada Vermelha
avançava sob o comando do camarada Pavlichenko em dire-
ção à cidade de Rostov, quando houve uma traição em
nossas fileiras. Naquela altura, papai estava no comando de
uma companhia do general Denikin. As pessoas que o viram
asseguram que cle usava medalhas como se fazia no antigo
regime. Em conseglência desta traição, fomos todos presos,
e papai descobriu meu irmão Fiodor Timofeievich. Então,
papai começou a bater nele, dizendo: “Cão vermelho, filho
de cadela” e muitas outras coisas mais, e foi batendo nele
até anoitecer, é Fiodor Timofeievich morreu. Na ocasião,
escrevi-lhe uma carta, dizendo que o nosso Fiodor jazia sem
uma cruz em sua sepultura. Mas papai apanhoume com a
carta e disse: “Você são filhos da mesma mãe, são filhos
da mesma puta; eu lhe fiz filhos, continuarei a fazer-lhe
filhos, minha vida está perdida, mas em nome da justiça
exterminarei minha própria semente”... e outras coisas se-
melhantes. Suportei o castigo, como o Salvador Jesus Cristo,
Mas depressa escapei de papai e consegui alcançar a minha
unidade, a do camarada Pavlichenko. Aí nossa tropa recebeu
ordem de ir para a cidade de Voroneje, para reorganização,
e lá recebemos reforços e também cavalos, munição, revól.
veres € tudo que era necessário. Sobre Voroneje, querida
mãe Evdokia Fiodorovna, posso dizer-lhe que é uma magni-
fica cidade, bem maior que Krasnodar. O povo dali é muito
bonito é o rio É bom para se tomar banho. Davam-nos um
quilo de pão por dia. duzentos gramas de came e bastante
açúcar, de forma que quando nos levantáyamos podíamos
tomar chá doce, o mesmo à noite, e nos esqueciamos da
fome; mas, para almoçar, eu ia à casa do meu irmão Simeon
Timofeievich, onde havia tortas ou carne de ganso, c depois
deitava-me para descansar. Naqueles dias, todo o regimento
queria Simeon como comandante, devido à sua coragem, c
veio até mesmo uma ordem para isso: o camarada Budionni
mandou dar a ele dois cavalos, roupas decentes, um carro
para seu uso e a condecoração da Bandeira Vermelha. E eu
estava com ele na qualidade de irmão. Hoje em dia, se
qualquer vizinho começar a criar dificuldades, Simcon Timo-
feievich poderia muito bem cortar-lhe a cabeça. Então come-
camos a perseguir o general Denikin, matamos milhares de
seus homens e os jogamos no Mar Negro. Mas papai não

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aparecia em lugar nenhum, e Simeon o procurava por toda
parte, porque estava muito furioso com o caso do irmão
Fiodor. Mas, querida mãe, você conhece papai e seu espírito
de porco, Sabe o que ele fez? Tingiu descaradamente de
preto a barba vermelha é estava morando na cidade de
Maikop, onde vivia em trajes civis, de modo que nenhum
dos habitantes sabia que ele era um polícia do antigo regime.
Mas a verdade sempre tem pernas curtas: O seu compadre
Nikon Vassilich o viu numa casa da cidade e escreveu uma
carta a Simeon Timofeievich. Então, eu, Siméon é os cama-
radas que se ofereceram montamos nossos cavalos e percor-
remos as duzentas verstas! até lá.
Sabe o que vimos na cidade de Maikop? Vimos que a
retaguarda não tinha o mesmo espírito da frente e que por
todos os lados havia traição, e que estava cheia de judeus
como no antigo regime. Simeon fez aqueles sujos judeus pas-
sarem um mau bocado, porque não queriam soltar papai,
que estava num cárcere. Diziam que tinha chegado uma
ordem do camarada Trotsky, para que não se matasse os
prisioneiros, e que eles próprios o julgariam, que não nos
preocupássemos, pois receberiam o que mereciam, Mas Simeon
Timoleievich, valendo-se de sua autoridade, demonstrou que
era comandante de um regimento, que recebera do camarada
Budionni a condecoração da Bandeira Vermelha e ameaçou
matar a todos que disputassem a pessoas de papai é não
quisessem entregá-lo. Assim que Simeon agarrou papai, come-
çou a açoitá-lo, enfileirando os soldados no pátio, segundo
a ordem militar. Então Simeon jogou água sobre a barba de
papal e a pintura começou a soltar-se dos pélos. E Simecon
perguntou-lhe:
— Sentese bem em minhas mãos, papai?
— Não — respondeu papai — não estou bem.
Então Simeon disse:
— E Fiodor estava bem em suas mãos, quando você o
matou?
— Não — disse papai — Fiodor passou mal.
Então Simeon perguntou:
— E você pensava, papai, que também iria passar mal?
Ai Simeon voltou-se para nós e disse:
— Penso que se caísse em suas mãos ele não teria
piedade. E agora, papai, vamos matálo,.., j
Então papai começou a insultar Simcon, xingando à
sun mãe e a mãe de Deus, é dando socos em Simcon. Então
Simeon me mandou embora, de modo que não é possível,

1 Medida itincrária russa que equivale a 1.067 metros. (N.T).


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querida mãe Evdokia Fiodorovna, contar como mataram pa-
pai, pois fui obrigado a sair do pátio.
Depois disso aquartelamos na cidade de Novorossisk.
Desta cidade posso dizer que depois dela não há terra algu-
ma, apenas água, o mar Negro. Ficamos ali até o mês de
maio, quando partimos para a frente polonesa, onde estamos
fazendo os nobres poloneses passarem por maus bocados.
Seu filho, sempre afetuoso,
Vassili Timofeievich Kurdiakov.
Mamãe, tome conta de Stepa, Deus lhe pagará.

Eis a carta de Kurdiakov, sem ter alterado uma única pala-


vra. Quando terminei de escrevêla, o jovem apanhou a folha
escrita e colocou-a no peito, contra a pele nua.
— Kurdiakov — perguntei-lhe — seu pai era mau?
— Meu pai era o diabo — respondeu sobriamente.
— E sua mãe, é melhor?
— Mamãe é muito boa. Se quiser ver, eis aqui nossa família.
Estendeu-me uma amassada fotografia. Nela via-se Timofei
Kurdiakov, um polícia rural de ombros largos, com o boné do
uniforme e a barba repartida ao meio — uma figura imóvel de
pômulos salientes e um olhar descolorido c inexpressivo. Ao seu
lado, numa cadeira de bambu, usando um casaco sobre o vestido,
estava sentada uma minúscula camponesa de feições claras e rosto
de traços tímidos. Junto à parede, diante do cenário do fotógrafo
provinciano, entre flores e pombos, erguiam-se dois rapazes mons-
truosamente altos, rostos largos e olhos esbugalhados, perfilados
como soldados num desfile: eram os dois irmãos Kurdiakov, Fio-
dor e Simeon.

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O CHEFE DA ESTREBARIA

A aldeia estava cheia de gemidos. A cavalaria pisava as plan-


tações e procurava substituir os cavalos. Em troca de seus
animais esgotados, os cossacos confiscavam os cavalos da lavoura.
Ninguém tinha culpa, pois sem cavalos não há exército.
Mas isso não consolava os camponeses, que se agrupavam in-
sistentes diante do edifício do Estado-Maior. Puxavam com cordas
seus animais, que resistiam e caiam por causa da sua debilidade.
Privados do seu sustento, os camponeses sentiam-se invadi-
dos por uma coragem nascida da amargura e, mesmo sabendo
que não iria durar muito, se apressavam a clamar, revoltados,
contra as autoridades, Deus e o seu miserável destino.
Ch., o comandante do Estado-Maior, completamente unifor-
mizado, estava de pé nos degraus da frente do edifício. Com a
mão em pala sobre as pálpebras, ouvia atentamente as queixas.
A sua atenção, no entanto, não era mais do que uma encenação.
Como todo trabalhador disciplinado e estafado, sabia interromper
completamente o trabalho mental nos momentos vazios da exis-
tência. Durante esses curtos momentos, o nosso comandante ga-
nhava nova energia. Era o que acontecia agora, no caso dos cam-
poneses.
Ao acompanhamento daquele rumor incoerente e desespe-
rado, Ch., indiferente, tomava nota das pulsações mais suaves de
seu cérebro, que pressagiam lucidez e energia de pensamento.
Sentindo afinal o ritmo certo, louvaria a última lágrima de um
camponês, gritaria autoritariamente e voltaria ao Quartel-General,
para trabalhar.
Desta vez não precisou agir. Galopando um fogoso cavalo
anglo-árabe, Diakov chegou junto aos degraus do edifício. Ex-
atleta de circo é atual chefe da estrebaria, Diakov era um homem
de rosto vermelho e bigodes grisalhos; vestia agora um capote
preto e largas calças vermelhas de listras prateadas.

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— Que a bênção do Pai do Céu caia sobre esses patifes
honestos! — gritou, detendo o cavalo.
Nesse instante, apareceu um cavalo de aspecto miscrável, um
dos animais que haviam sido trocados pelos cossacos.
— Veja, camarada comandante — murmurou um camponês,
batendo nas calças —, veja o que nos deram. Está vendo o que nos
deram? Experimenta ficar com ele...
— Por esse cavalo — respondeu Diakov com palavras bem
articuladas e cheias de autoridade —, por esse cavalo, meu hon-
rado amigo, você terá o direito de receber quinze mil rublos das
autoridades da estrebaria. E, se o cavalo fosse um pouco mais
disposto, neste caso receberia vinte mil. Mas dizer que o cavalo
cai não significa nada. Quando um cavalo cai e se ergue nova-
mente, neste caso, é uma montaria. No caso contrário, se o cavalo
não se levanta é porque não é uma montaria. Veja como vou fazer
esse bonito cavalinho se erguer para mim. ,
— Oh, meu Deus! Mãe santissima! — gritou o camponês,
agitando os braços. —- Como poderá erguer-se esse pobrezinho?
Vai morrer, o coitado!
— Você está ofendendo o animal — replicou Diakov, pro-
fundamente convicto. — Você está blaslemando, rapaz.
E, com muita destreza, tirou da sela o seu bem-formado
corpo de atleta. Endireitando as pernas perfeitas, calças presas
nos tornozelos por pequenas correias, avançou ágil como um artis-
ta de circo até o animal agonizante.
O animal fixou seus profundos e úmidos olhos em Diakov,
lambeu a palma de sua mão vermelha, numa espécie de súplica
imperceptível. De imediato, o cansado animal sentiu a enérgica
força que emanava do vigoroso Romeu. Sacudindo a cabeça, escor-
regando nas cambaleantes pernas e sentindo as impacientes chico-
tadas em seu ventre, o animal ergucu-se lentamente, com muito
cuidado. Vimos então a mão delicada de Diakov, rodeada de uma
ampla e ondeante manga, acariciar as crinas sujas, e ouvimos o
estalido do chicote de encontro aos flancos ensanguentados. Com
o corpo todo trêmulo, o cavalo firmou-se nas pernas, mantendo
os seus olhos, cheios de amor e medo, fixados no rosto de Diakov.
— Compreende que é um animal de montaria? — disse Dia-
kov ao camponês. — E você se queixava dele, querido amigo —
acrescentou suavemente.

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Atirando as rédeas à ordenança, o chefe da estrebaria subiu
de um salto os quatro degraus e, agitando o seu capote teatral,
desapareceu no edifício do Estado-Maior.

21
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PAN APOLEK

maravilhosa e sábia vida de pan Apolek subiu-me à cabeça


como vinho velho. Em Novograd, entre as ruínas de uma
cidade rapidamente devastada, o destino atirou-me aos pés de um
Evangelho que permanecia oculto aos olhos do mundo. Rodeado
pelo bondoso resplendor daquela atmosfera, fiz então o voto de
seguir o exemplo de Apolek. E à nova promessa ofereci em sacri-
fício a doçura de um rancor meditado, o amargo ódio que eu sentia
pelos patifes humanos, o fogo de uma vingança silenciosa e em-
briagadora.
Na casa do fugitivo padre de Novograd, pendia um icone no
alto da parede, Tinha uma inscrição: “A morte de João Batista”.
Sem vacilar, notei semelhanças com um homem que vira noutro
“tempo.
Recordo-me: entre as retas e claras paredes reinava o silêncio
pesado de uma manhã de verão. Na base da imagem, batia um
raio de sol e nele enxameavam partículas luminosas de pó, A
figura de João me aparecia descendo das profundezas azuis do
nicho. Uma capa preta envolvia o corpo implacável e repulsivo.
Gotas de sangue cintilavam nas amplas pregas da capa. A cabeça
aparecia obliquamente separada do pescoço. Estava sobre um
prato de cerâmica, sustentada pelos dedos amarelos e fortes de
um soldado. Julguei conhecer o rosto e senti ali um mistério. No
prato de cerâmica descansava uma cabeça, cópia fiel da cabeça de
pan Romualdo, o assistente do padre foragido. Da sua boca saía
uma pequena serpente, escamosa e resplandecente. A cabeça pe-
quena é vivida, de suave cor-de-rosa, fazia sobressair intensamente
o fundo escuro da capa.
Fiquei admirado com a arte e a imaginação do pintor. Mais
surpreendente ainda foi a descoberta que fiz na manhã seguinte:
a figura da virgem Maria, de faces rosadas, sobre o amplo leito
de pani Elisa, a governanta do padre. Em ambas as telas perce-

23
A bi a

bia-se a marca do mesmo pincel! O rosto redonda da virgem era


o retrato de pani Elisa. E foi então que decifrei o enigma dos
ícones de Novograd. A solução estava na cozinha de pani Elisa
onde, na sombra trangúila das tardes, reuniam-se os antigos feu-
dais poloneses, liderados pelo pintor. Mas seria um visionário esse
pan Apolek, que tinha povoado de anjos os arredores de Novo-
grad e promovido a santo Yanek, o convertido coxo?
Apolek chegou ali num sufocante dia de verão, há trinta
anos. Os dois amigos, Apolek e Gottfried, foram direto para a
taverna de Schmerel, na estrada principal de Rovno, a duas vers-
tas dos limites da cidade. Apolek levava na mão direita uma caixa
de tintas e, com a esquerda, conduzia o cego, tocador de acordeão.
O ruído ritmado das suas botas alemãs, ferradas com pregos,
soava a paz e esperança. Do pescoço fino de Apolek pendia um
cachecol amarelo-canário e três peninhas cor de chocolate esta-
vam espetadas no chapéu tirolês do cego.
Os recém-chegados colocaram a caixa de tintas e o acordeão
no parapeito da janela. O pintor desenrolou o cachecol, intermi-
nável como a fita de um mágico de feira. Depois, foi ao pátio,
despiu-se e banhou com água fria o corpo pequeno, róseo e fraco.
A mulher de Schmerel serviu aos viajantes vodca, uvas e um prato
de bolinhos de carne. Saciada a fome, Gottfried colocou o acor-
deão sobre os joelhos ponteagudos. Suspirou, inclinou a cabeça
para trás e moveu os finos dedos. As canções de Heidelberg res-
soaram entre as paredes do lar judeu. Apolek acompanhou o cego
com sua voz trêmula. Parecia que o órgão da igreja de Santa
Indegilda fora trazido para a casa de Schmerel, e que as musas
se haviam colocado ao lado de Gottfried, envoltas em cachecóis
de cores variadas e calçando botas alemãs ferradas.
Os hóspedes tocaram e cantaram até o pôr-do-sol, depois
guardaram a caixa de tintas e o acordeão em sacos de linho. Fi-
nalmente, Apolek entregou um papel a Braina, a mulher do taver-
neiro, dizendo:
— Respeitável pani Braina, aceite este retrato de um pintor
andarilho, batizado com o nome de Apolinário, como prova de
minha humilde gratidão e testemunho da magnificência de sua
hospitalidade. Se Nosso Senhor Jesus Critos prolongar meus dias
e fortalecer minha arte, voltarei para copiar em cores o retrato.

24
As pérolas ficarão bem em seus cabelos, e colocarei um colar de
esmeraldas em seu colo.
Na pequena folha de papel, a lápis vermelho — vermelho
e branco com argila —, estava esboçado o rosto sorridente de pani
Braina, rodeado de cabelos encaracolados.
— Meu dinheiro! — gritou o taverneiro, ao ver o retrato
da mulher.
Agarrou um pau e saiu em perseguição aos hóspedes. En-
quanto corria, no entanto, Schmerel lembrou-se do corpo frágil
de Apolek, gotejante de água, à luz do sol do pequeno pátio, e
o doce som do acordeão. Perturbado, o dono da taverna abando-
nou o pau e voltou para casa,
Na manhã seguinte, Apolek apresentou ao padre de Novo-
grad um diploma da Academia de Munique e estendeu diante dele
doze quadros, representando temas bíblicos, em pintura a óleo,
sobre finas folhas de cipreste. O padre viu, sobre sua mesa, man-
tos de púrpura ardente, o brilho de campos cor de esmeralda e os
multicoloridos matizes das planícies da Palestina.
Os santos de pan Apolek — toda aquela assembléia de alvo-
roçados e ingênuos anciãos de barba grisalha e rosto rosado —
apareciam vestidos em torrentes de seda e em meio às fortes
tonalidades do crepúsculo. Nesse mesmo dia, Apolek foi encarre-
gado de pintar a nova igreja é enquanto tomava licor beneditino,
o padre disse ao pintor:
— Santa mãe de Deus, querido pan Apolek, de que região
maravilhosa nos trouxe o senhor tão radiosa bênção?
Apolek trabalhou com afinco e, no final de um mês, encheu
a nova igreja de rebanhos e crepúsculos. Bois de pele acinzen-
tada lavravam a terra, sob a canga. Cães de nariz rosado corriam
à frente dos rebanhos e crianças rechonchudas repousavam em
berços suspensos de esbeltos troncos de palmeiras. Os hábitos
marrons de padres franciscanos rodeavam um berço. Pintou uma
multidão de doutores da Igreja, representados com suas cabeças
calvas e rugas vermelhas, semelhantes a feridas sangrentas. No
meio do grupo sobressaía o rosto pequeno, astucioso e sorridente
de Leão XIII, enquanto o padre de Novograd passava com uma
das mãos as contas de um entalhado rosário chinês e com a outra
benzia Jesus recém-nascido.
F

25
iii a pi a

Durante cinco meses, Apolek, preso ao seu banco de ma-


deira, arrastou-se ao longo das paredes, ao redor da cúpula e
pelo coro.
— Você dá preferência aos rostos conhecidos, caro pan Apo-
lek — disse-lhe um dia o padre, reconhecendo-se na pintura e
ao ver pan Romualdo na cabeça decepada de João Batista. O
velho padre sorriu e mandou dar um cálice de conhaque ao pin:
tor, que trabalhava sob a cúpula.
Depois, Apolek terminou a Última Ceia e o apedrejamento
de Maria Madalena.
Um domingo, descobriu os afrescos e os eminentes cidadãos,
convidados pelo padre, reconheceram no apóstolo Paulo, Yanek,
o coxo convertido e, em Maria Madalena, a jovem judia Elka,
filha de pais desconhecidos e mãe de muitos filhos abandonados.
Os eminentes cidadãos mandaram cobrir as sacrílegas pinturas.
O padre ameaçou o blasfemo, mas Apolek não ocultou suas pin-
turas.
Assim começou uma luta inaudita entre a poderosa corpo-
ração da Igreja Católica, de um lado e, do outro, o descuidado
pintor de imagens. A luta durou três décadas, e por pouco o aca-
so não fez o andarilho em fundador de uma nova heresia, E teria
sido o mais talentoso e refinado dos combatentes com os quais a
Igreja teve de lutar, em sua sinuosa e agitada história. Era um
combatente que teria percorrido o mundo, num estado de beatí-
fica embriaguez, levando dentro da blusa dois ratinhos brancos
e nos bolsos uma coleção de pincéis finíssimos.
— Quinze zlotys* por uma Virgem Maria, vinte e cinco por
uma Sagrada Família e cinquenta pela Ultima Ceia, representan-
do todos os parentes do freguês. O inimigo do meu cliente pode
ser representado como Judas Iscariotes e, neste caso, serão mais
dez zlotys — anunciava Apolek aos habitantes da região, depois
de ter sido expulso da igreja em construção.
Não foram poucas as encomendas. No final de um ano, quan-
do chegou a Comissão do bispo de Jitomir — chamada pelas
furiosas mensagens do padre de Novograd —, os representantes
da Igreja encontraram, nas mais pobres e fétidas cabanas, os mons-
truosos retratos da família, sacrílegos, ingênuos e pitorescos. Ima-

1 Moeda polonesa, [Nota da editora.)

26
gens de São José, os cabelos separados ao meio, Cristos de rostos
enfeitados, virgens Maria de joelhos calejados e já mãe de muitos
filhos, todos esses ícones, rodeados de coroas feitas com flores
de papel, pendiam dos cantos reservados às santas imagens.
— Santificaram vocês em vida — clamava o vigário de
Dubno e Novoconstantinov, em resposta à multidão que defendia
Apolek. — Rodeou-os com os inefáveis atributos da santidade. E
vocês caíram várias vezes no pecado da desobediência, destilado-
res clandestinos de aguardente, usurários impiedosos, moedeiros
falsos, que vendem a inocência de suas próprias filhas!
— Senhor — disse Vitold, um coxo que comprava objetos
roubados e cra o zelador do cemitério —, onde está a verdade
aos olhos do nosso misericordioso pan Deus? Quem poderá comu-
nicar essa verdade ao povo ignorante? E não há por acaso mais
verdade nas pinturas de pan Apolek, que satisfaz a nossa vai-
dade, do que em vossas palavras cheias de censura e cólera aris-
tocrática?
Os gritos da multidão puseram o vigário em fuga. O senti-
mento popular, nos arredores, ameaçava a segurança dos ministros
da Igreja. O artista nomeado para substituir Apolek não ousou
apagar as imagens de Elka e Yanck, que ainda hoje podem ser
vistas na ala lateral da igreja de Novograd: Yanek, como o após-
tolo Paulo, o coxo de ar tímido e barba emaranhada, e a pecadora
Madalena, de corpo mesquinho e contorcido, expressão vaga e
faces cavas.
A luta contra o padre durou três décadas, Depois, a invasão
cossaca expulsou o velho monge do seu perfumado santuário de
pedra, enquanto Apolek — oh altos e baixos da sorte — instala-
vase na cozinha de pani Elisa, E eu, hóspede passageiro, aqui
estou bebendo pelas tardes o vinho de suas palavras.
De que falava? Sobre os tempos românticos da nobreza polo-
nesa, sobre a fúria do fanatismo feminino, sobre o artista Lucca
Della Robbia' e sobre a família do carpinteiro de Belém.
— Tenho algo a contar ao pan escritor... — disse-me Apo-
lek, antes da ceia, com ar misterioso.
— Sim, ouvirei com atenção.

! Lucca Della Robbia (Florença, 1400-1482), escultor e ceramista italiano.


Participou dos trabalhos de decoração da catedral de Florença. [Nota
da edição portuguesa.)

27
di o O

Mas o bedel da igreja, o severo e grisalho, o ossudo e orelhu-


do pan Robacki estava sentado demasiado perto. Desenrolava
diante de nós descoloridas telas de silêncio e de hostilidade.
— Quero dizer-lhe — disse baixinho o pintor — que Jesus,
o filho de Maria, era casado com Débora, uma moça de Jerusa-
lém, de origem obscura.
— O quê, homem! — gritou desesperado pan Robacki. —
Este homem não morrerá de morte natural. Será morto pelo povo.
— Depois da ceia — disse Apolek, ainda mais baixo —,
depois da ceia, se convém ao pan escritor.
Convinha-me. Excitado pelo começo da história de Apolek,
ando de um lado para outro, na cozinha, à espera da hora com-
binada. Além da janela, a noite cresce, como uma coluna negra;
aqui também o jardim, escuro mas vivo, parece petrificado. Sob
a lua, a estrada que leva à igreja flutua numa onda leitosa, lumi-
nosa. Um fulgor sombrio cobre a terra e de árvores pendem cola-
res de frutos cintilantes. O cheiro das açucenas era forte e puro
como o álcool. Esse fresco veneno impregnava a gordurosa atmos-
fera da cozinha, erguendo-se sobre as emanações resinosas da
madeira de abeto espalhada pelo chão,
Vestindo calças de riscas rosadas, com uma gravata verme-
lha, Apolek movia-se no seu canto com a beleza de um animal
gracioso. A sua mesa estava manchada de tintas e cola. O velho
trabalhava com movimentos ágeis e repetidos. Do seu canto, che-
gava um som suavíssimo e melódico, produzido pelo velho Gott-
fried com os seus dedos trêmulos. O cego estava sentado, imóvel,
debaixo do reflexo amarelo da lamparina. Com a sua calva fronte
inclinada, escutava a infindável música de sua cegueira e os
murmúrios de Apolek, seu eterno amigo.
— O que dizem os padres e os evangelistas Marcos e Mateus
não é a verdade. Mas a verdade pode ser revelada, pan escritor.
Aliás, pintarei por cinquenta marcos o retrato do pan, reprodu-
zindo a imagem do bem-aventurado São Francisco, sobre um fundo
verde e celestial. São Francisco era um santo muito simples, e se
o pan escritor tem uma noiva na Rússia, precisa saber que as mu-
lheres gostam de São Francisco. Embora nem todas, é verdade.
Foi então que, naquele canto de onde emanava o cheiro dos
abetos, começou a história do casamento de Jesus com Débora.

28
Segundo o pintor, a moça tinha um noivo, um jovem israelita que
negociava com presas de elefantes. Mas a noite nupcial de Dé-
bora terminou em confusão e lágrimas. A moça apavorou-se, ao
ver o marido aproximar-se do leito. Um soluço distendeulhe a
garganta, e ela vomitou tudo o que comera no banquete. E a ver-
gonha caiu sobre a moça, seus pais e parentes. O noivo saiu, com
escárnio, e levou os convidados, Então Jesus, vendo a mulher
desejar o marido e temê-lo ao mesmo tempo, assumiu o papel de
noivo e, cheio de compaixão, uniu-se a Débora, que jazia sobre
seu próprio vômito. E ela se reanimou, Levantou-se e dirigiu-se
aos outros, triunfante de alegria, como uma mulher que se orgu-
lha de sua queda. Somente Jesus permanecia distante. Um suor
de morte cobria-lhe o corpo. Sem que ninguém visse, ele saiu da
sala do banquete e dirigiu-se ao deserto, a leste da Judéia, onde
João o esperava. E Débora teve o seu primeiro filho...
— Onde viveu ele? — perguntei.
— Os padres o esconderam — respondeu Apolek, com ar
importante, passando a ponta do dedo frio sobre seu nariz de
bêbado.
— Pan pintor — gritou de repente Robacki, surgindo da
penumbra e tremendo até as orelhas —, o que está dizendo? Isso
são coisas absurdas!
— É a verdade, a pura verdade — disse Apolek, segurando
em Gottfried. — É a verdade.
Arrastou O cego para porta, mas ao chegar na soleira parou
e fez um sinal para que cu me aproximasse,
— Um São Francisco — murmurou piscando os olhos —
com um pássaro pousado sobre os ombros, um pombo, um pin-
tassilgo, o que mais agrade ao pan escritor.
E desapareceu com o cego, seu eterno amigo.
— Que loucura! — disse Robacki. — Este homem não
morrerá de morte natural.
Pan Robacki abriu amplamente a boca e bocejou como um
gato. Eu dei boa-noite e fui dormir na casa saqueada dos meus
hospedeiros judeus. Sobre a cidade vagava uma lua desamparada.
Caminhei a seu lado, reconfortando-me com sonhos irrealizáveis
e canções pouco harmoniosas.
O SOL DA ITÁLIA

Ore estive novamente na casa de pani Elisa, onde aqueci-me


ao fogo dos verdes galhos de abetos. Permaneci junto do
fogão crepitante, vivo e ardente, e voltei para casa já bem tarde
da noite. Abaixo, na ravina, o silencioso Sbruch rolava as suas
águas escuras e serenas,
A cidade destruída — colunas quebradas, arcos afundados
no chão que lembravam dedos arqueados de velhas malvadas —
parecia flutuar no ar, tão fascinante e irreal como num sonho.
O brilho nu da lua derramava-se sobre ela com uma força ines-
gotável. Os escombros úmidos das ruínas cintilavam como o már-
more das frisas de ópera. E eu, com o espírito perturbador, espe-
rava ver um Romeu sair entre as nuvens, um Romeu vestido de
soldado, cantando o amor e, ao mesmo tempo, um eletricista fan-
tasmagórico, nos bastidores, premia com o dedo o interruptor da
luz lunar.
Os caminhos azulados estendiam-se junto a mim, como ondas
de leite esguichando de muitos seios. Ao voltar para casa, receava
encontrar Sidorov, meu vizinho, que todas as noite derramava
sobre mim a garra peluda da sua melancolia. Por sorte, naquela
noite bem iluminada pelos raios leitosos do luar, Sidorov não
disse uma palavra. Rodeado de livros, escrevia. Sobre a mesa
brilhava uma vela encurvada, a fogueira maligna dos sonhado-
res. Sentei-me um tanto afastado, cochilando, e os sonhos saltita-
vam em minha volta como gatinhos. Já bem tarde da noite, fui
despertado por uma ordenança que viera dizer a Sidorov para
comparecer ao Estado-Maior. Saíram juntos. Logo dirigime à
mesa onde ele estivera escrevendo e folheei os livros. Havia ali
um manual de língua italiana, uma fotografia do Fórum romano
e um mapa de Roma. O mapa estava marcado com múltiplos
pontos e cruzes. Inclinei-me sobre uma folha de papel, escrita
numa caligrafia serrada e, com os dedos crispados e o coração

31
pi a E

batendo, li a carta. Sidorov, o assassino arrepá...ido, fez em pe-


daços as róseas imagens de minha imaginação e arrastou-me pelos
labirintos de sua secreta loucura. A carta começava na segunda
página. Não ousei procurar a primeira,
[...] seu pulmão foi atingido, c a mente está um pouco
transtornada. Mas, como diz Sergei, não é idiota para perder
o juízo de todo. Seja como for, deixemos de brincadeira e
voltemos à ordem do dia, querida Vitória.
Durante três meses participei da campanha contra Makno:
uma esgotadora pilhagem e mada mais. Apenas Volin continua
no seu posto, Volin enverga as vestes sacerdotais e passa do
anarquismo ao gênero Lênin, É horrível! O padrezinho o
escuta, acariciando seus cabelos empocirados e eriçados, e
solia entre dentes estrágados o seu risinho de mujique. Já
nem sei se há em tudo isso o grão apodrecido do anarquismo
nem se teremos de limpar os prósperos narizes; falo de
vocês, os bem-sucedidos, os membros de fabricação caseira
do Comitê Central made in Karkov, a sua improvisada capital,
Os seus jovens arrivistas não gostam de lembrar os pecados
de sua juventude anarquista e riem deles do alto de sua
sabedoria governamental... que vão para o inferno!
Depois fui parar em Moscou. Como cheguei até ali? Os
rapazes ofenderam alguém em questões de inspeção e outras,
Eu, o nervoso, saí em sua defesa. Deram-me uma lição, e havia
motivo para isso. Os ferimentos não tinham importância, mas
em Moscou, querida Vitória, quase enlouqueci de infelicidade.
Todos os dias as enfermeiras me davam mingau de sêmola,
Cheias de respeito, serviam-me num grande prato e acabei
odiando aquelas papas de guerra, esses alimentos fora do
plano, essa Moscou planificada. No Soviete encontrei um
grupo de anarquistas — jovens idiotas ou velhos senis.
Dirigime ao Kremlin, com um verdadeiro plano de trabalho.
Deram-me palmadinhas nos ombros e prometeram o posto de
primeiro assistente, se eu mudasse. Mas não mudei. E o que
veio depois? O front, a Cavalaria Vermelha, as tropas chei-
rando a sangue fresco e a despojos humanos.
Salve-me, Vitória. A burocracia governamental está me
enlouquecendo, o tédio me embriaga. Se não me ajudar, vou
morrer à margem de qualquer plano, é quem gostaria de ver
um soldado morrer de maneira tão desorganizada? Não será
certamente você, querida Vitória, a noiva que nunca chegará
a esposa. Já está aí o sentimentalismo... que diabo!
Mas falemos de coisas sérios. Estou aborrecido no exér-
cito. Por causa do meu ferimento não posso montar a cavalo,
quer dizer, não posso lutar, Use de sua influência, Vitória,

32
para que me enviem à Itália. Estou estudando o idioma e
em dois meses já poderei falálo. Na Itália há fogo sob as
cinzas. Muitas coisas estão preparadas ali. Basta uns dois
tiros e um deles será meu. É preciso enviar o rei para junto
dos seus antepessados. É algo muito importante. Ele é um
sujeito formidável, representa para as galerias e tira foto
grafias para as revistas de família, ao lado de socialistas
domesticados,
Não fale de disparo nem de rei no Comitê Central, nem
no Ministério do Exterior. Eles se limitariam a dar palma-
dinhas amigáveis e murmurariam: “É um romântico”. Diga
simplesmente: “Está doente, bêbado de depressão e anseia
pelo sol da Itália e pelos plátanos! Mereço isso ou não? É
só para me curar. Se não for possível, mandem-me para a
Tcheka, em Odessa. É muito razoável...
Quanta estupidez injusta estou lhe escrevendo, querida
Vitória... A lMúália está em meu coração como uma aluci-
nação. A idéia desse país, que nunca vi, é para mim tão
doce quanto um nome de mulher, como o seu, Vitória...

Li a carta, depois acomodei-me na minha cama suja e des-


feita, mas o sono não chegava. Do outro lado da parede a judia
grávida chorava sentidamente e seu marido respondia com um
murmúrio de gemidos. Recordavam seus bens roubados e enfure-
ciam-se um contra o outro pela falta de energia. Ao alvorecer,
Sidorov voltou. A vela bruxulcava sobre a mesa, findando, Ele
apanhou outro pedaço numa bota e, extremamente meditativo,
pregou-o no cóto que se apagava. O nosso quarto estava escuro,
lúgubre: nele pairava o odor úmido da noite. Apenas a janela,
inundada de luar, resplandecia como uma libertação.
Meu enfadonho vizinho aproximou-se da mesa e escondeu a
carta. Sentou-se e, inclinado, abriu o atlas da cidade de Roma.
O volume de magnífica capa dourada estava diante de seu rosto
azeitonado. Acima de seus ombros encurvados reluziam as ruínas
do Capitólio e do Coliseu, iluminadas pelo entardecer. Uma foto-
grafia da família real inseria-se entre as páginas acetinadas. No
pedaço de papel, arrancado de um calendário, apareciam o afável
e minúsculo rei Vítor Emmanuel, sua mulher de cabelos negros, o
príncipe herdeiro, Humberto, e toda uma ninhada de princesas.
E a noite estava ali cheia de sons monótonos e longínquos.
Na úmida escuridão há um quadrado de luz e nele uma máscara
iluminada: o rosto espectral de Sidorov, meditativo, à luz da
chama amarela da vela.

33
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GUEDALI

| | ma densa tristeza de recordações desce sobre mim na véspera


do Sabá. Outrora, em tardes assim, o meu avô costumava
afagar, com sua barba amarela, os volumes de Ibn Ezra. Minha
avó, com uma touca de rendas, tirava sortes com os dedos nodosos
sobre a luz das velas do Sabá, enquanto chorava docemente. Na-
quelas tardes, meu coração infantil sentia-se frágil como um bar-
quinho sobre ondas turbulentas. Oh, os desagradáveis Talmudes de
minha infância. Oh, densa melancolia das memórias.
Eu percorro Jitomir procurando uma tímida estrela, Na ve-
lha sinagoga, junto às suas paredes amarelas e indiferentes, passo
por velhos judeus, com barbas de profetas, os magros peitos en-
voltos em farrapos, que vendem giz, pavios e anil,
Diante de mim, o mercado e a morte do mercado. Foi-se a
alma da abundância. Cadeados mudos pendiam sobre as lojas,
e o pavimento de granito estava limpo como o crânio de um de-
funto. Minha tímida estrela bruxuleava e esmorecia,
Mas a sorte chegou um pouco mais tarde, justamente antes
do pôr-do-sol. A loja de Guedali estava escondida, longe, numa
fileira de lojas hermeticamente fechadas. Onde estaria a tua bon-
dosa sombra naquela tarde, oh, Dickens? Naquela pequena loja
de antigiiidades terias visto sandálias douradas junto a cabos de
navios, a velha bússola e a águia dissecada, uma Winchester de
caça com a data 1810 e uma frigideira quebrada.
O velho Guedali, com óculos enfumaçados, o longo fraque
verde arrastando até o chão, passeava entre seus tesouros, no róseo
vazio da tarde, Esfregava as mãos pequenas e brancas, puxava a
barba grisalha e, balançando a cabeça, escutava vozes misteriosas
que voavam até o céu.
A loja era semelhante à caixinha de um menino curioso, que
sonha ser professor de botânica. Ali não faltavam os botões nem
a borboleta morta. O pequeno proprietário chamava Guedali. To-

5
dos tinham abandonado o mercado, mas Guedali ficara. Serpen-
teava por aquele labirinto de globos, crânios e flores mortas.
Sentamos, pois, sobre barris de cerveja, Guedali enrolando
e desenrolando sua fina barba. Seu chapéu alto movia-se sobre
nós, como uma pequena torre negra. Um ar quente perpassava
pela loja. O céu mudava de cor. De uma garrafa virada emanava
um vago cheiro de putrefação.
— Nós dizemos “sim” à Revolução, mas nem por isso tere-
mos de dizer “não” ao Sabá — começou Guedali, enquanto me
olhava com seus olhos embaçados. — “Sim”, grito pela Revolu-
ção, “sim”, vou gritando, mas a Revolução esconde-se de mim
e não me envia senão tiros...
— Em olho fechado não entra sol — respondi ao velho —,
mas nós abriremos os olhos fechados...
— Um polonês fechou-me os olhos — murmurou o velho.
— Os poloneses são cães malvados, agarram os judeus e arran-
cam-lhes a barba, os patifes! E agora estão sendo abatidos, os
cães malvados. É maravilhoso, é a Revolução. Mas, depois, os que
derrotaram os poloneses me dizem: “Entregue o seu gramofone ao
Estado, Guedali...” “Mas eu gosto de música, pani”, eu digo à
Revolução. “Você não sabe do que gosta, Guedali, ce vou dar
quatro tiros para que fique sabendo. Não posso deixar de dar os
tiros porque sou a Revolução”.
— Não pode deixar de disparar, Guedali — digo ao velho
—, porque é a Revolução.
— Porém, meu amável pan, os poloneses disparam porque
são a Contra-Revolução. Vocês disparam porque são a Revolução.
Mas a Revolução é alegria. E a alegria não gosta de ver órfãos em
casa. Os homens bons fazem boas obras. A Revolução é a obra de
homens bons, Mas os bons homens não matam. Portanto, são os
maus que fazem a Revolução. Mas os poloneses também são maus.
Nesse caso, quem poderá dizer a Guedali qual é a Revolução e
qual é a Contra-Revolução? Noutro tempo estudei o Talmude,
gosto dos comentários de Rashi e dos livros de Maimônides. Tam-
bém em Jitomir há pessoas doutas. E aqui estamos, todos nós,
pessoas doutas, prostradas e clamando em voz alta: “Ai de nós,
onde está a Revolução portadora de alegria?”
O velho ficou em silêncio. Vimos a primeira estrela despon-
tar através da Via Láctea.

36
— O Sabá começou — declarou Guedali, solenemente. —
Nós judeus temos que ir à sinagoga... escuta, pan camarada —
disse, levantando-se, seu chapéu alto oscilando na cabeça como
uma pequena torre negra. — Tragam algumas pessoas boas a Jito-
mir. Oh, aqui há falta delas, ai, e que escassez! Tragam as pes-
soas boas e nós entregaremos todos os gramofones. Não somos
ignorantes. A Internacional? Sabemos o que é a Internacional.
E quero uma Internacional de gente boa. Gostaria que todas as
almas fossem colocadas sob a sua tutela e recebessem rações de
primeira categoria. Portanto, coma e goze os prazeres da vida.
Camarada pan, sabe com que é que se come a Internacional...
— Come-se com pólvora — respondi ao velho — e tempe-
rada com sangue da melhor qualidade,
Então, o nascente Sabá surgiu, saindo do azul sombrio.
— Guedali — cu disse —, hoje é sexta-feira e começou o
entardecer. Onde poderei encontrar biscoitos judeus e um copo
de chá com um pouco deste Deus satisfeito dentro?
— Não se pode conseguir isso — respondeu Guedali colo-
cando o cadeado em sua loja. — Não se pode. Aqui ao lado existe
uma taverna é havia gente boa nela. Mas agora já não se come
ali, apenas se chora.
Abotoou os três botões de seu fraque verde. Passou pela
roupa o espanador de penas de galo, molhou com água as palmas
macias das mãos e partiu; minúsculo, solitário, sonhador, com o
seu chapéu de copa alta e com um enorme livro de orações de-
baixo do braço.
Chegava o Sabá. Guedali — fundador de uma Internacional
quimérica — tinha ido à sinagoga, para rezar.

37
MEU PRIMEIRO GANSO

Grit o comandante da Sexta Divisão, levantou-se ao ver-me


entrar. Admirei a beleza do seu gigantesco corpo. Ergueu-se
e, com suas calças de montar cor de púrpura, o gorro carmesim
caído de lado e as condecorações que pendiam do seu peito, passou
pela casa, como um raio que corta o céu. Cheirava a perfume e
ao suave frescor de sabonete. Suas pernas longas estavam envoltas
até os joelhos em reluzentes botas de montar.
O comandante sorriu para mim, bateu com o chicote sobre
a mesa € puxou para si uma ordem que o comandante do Estado-
Maior acabara de ditar. Era um comuniçado dirigido a Ivan
Chesnokov, ordenando-lhe que avançasse com o regimento em
direção a Chugunov-Dobrivodka e, fazendo contato com o inimi-
go, o aniquilasse.
“Por esse gniquilamento” — escrevia o comandante da Divi-
são, manchando toda a folha — “é inteiramente responsável este
mesmo Chesnokov, que pode até incorrer em pena capital e, se for
necessário, ser liquidado no local, e disso Chesnokov, que vem
trabalhando comigo no front há vários meses, não pode ter q
menor dúvida”.
O comandante assinou a ordem, entregou-a a uma ordenança
e ergueu para mim os seus olhos cinzentos, que brilhavam de
alegria.
Entreguei-lhe um documento com a minha transferência para
o Estado-Maior da Divisão.
— Cumpra-se a ordem — disse o comandante — Cumpra-se
a ordem e inscreva-se na lista de todos os prazeres !. Sabe ler e
escrever?

1 Jogo de palavras entre prodovolstvie = viveres, e udovolstivie = prazeres.


[Nota da edição soviética.]

39
di Ri cid

— Sim, sei ler e escrever — respondi, invejando o vigor e a


saúde daquela juventude. — Estudei Direito na Universidade de
Petersburgo,
— Você é um menino bonito — disse rindo — com os seus
óculos no nariz. Que falta de organização! Enviaram-no sem per-
guntar nada a ninguém, e aqui degolam você com óculos e tudo.
Fica, então, conosco?
— Fico — respondi, e fui para a aldeia com o intendente
procurar alojamento,
O intendente levou minha mala no ombro. Diante de nós
estendia-se a rua da aldeia. O sol poente, redondo e amarelo
como uma abóbora, refletia no céu os seus últimos raios rósecos.
Aproximamos de uma casa cercada de flores. O intendente
parou e disse subitamente com um sorriso culposo:
— Temos aqui um bom homem de óculos e não há meio
de melhorá-lo. Com as suas qualidades, vão deixá-lo louco. Mas
desonre uma moça, a moça mais pura, e você verá os rapazes
dando palmadinhas no seu ombro,
Hesitou, com a minha pequena mala no ombro, depois apro-
ximou-se de mim, mas em seguida dirigiu-se rapidamente para a
casa. Havia ali cossacos sentados sobre o feno, barbeando-se uns
aos outros.
— Prestem atenção, soldados — disse colocando a mala no
chão. — A ordem do camarada Savitski é para que recebam este
homem no alojamento, sem fazer brincadeiras, pois se trata de
alguém que estudou, e sabe muito,
E, com o rosto muito vermelho, partiu sem olhar para trás.
Levei a mão à pala do boné e saudei os cossacos. Um jovem de
longos cabelos louros e sedosos, e com o belo rosto dos cossacos
de Riazan, pegou minha mala e atirou-a pela porta afora. Depois,
voltou para mim as suas nádegas e, com grande habilidade, come-
çou a emitir uns ruídos insultosos,
— Canhão... dois, um, zero! — gritou o cossaco mais ve-
lho, rindo às gargalhadas. — Fogo!
O jovem esgotou a sua pouco complicada arte e afastou-se.
Então, engatinhando pelo chão, comecei a recolher meus manus-
critos e as peças de roupa que haviam caído da mala. Juntei tudo
e levei para o outro extremo do pátio. Próximo à casa, num fogão
de tijolos, havia um caldeirão com carne de porco cozinhando.

40
O vapor da vasilha lembrava a casa paterna, ao longe, no meio
do povoado e, em minha mente, a fome se confundia com uma
desesperadora solidão. Cobri de [eno a minha destroçada mala,
para servir-me de travesseiro, deitei-me no chão e comecei a ler
no Pravda o discurso de Lênin, no Il Congresso da Komintern,
Os raios do sol caiam sobre mim, detrás das colinas denteadas,
os cossacos pisavam nas minhas pernas ao passar, € O rapaz não
parava com as suas brincadeiras. A minha leitura predileta en-
contrava um caminho semeado de espinhos e eu não podia con-
centrar-me. Então coloquei de lado o jornal e aproximei-me da
hospedeira que fiava no degrau da porta.
— Preciso comer — disse.
A velha ergueu para mim os olhos nublados e depois voltou
a baixá-los de novo.
— Camarada — disse — com tudo o que está acontecendo,
agora, tenho vontade de me enforcar.
— Vai se matar em nome de Deus Nosso Senhor... —
murmurei, empurrando a velha. —— Estou é com [ome, mas
como vou meter isso na sua cabeça...
Voltando-me, vi uma espada abandonada no chão. Não longe
dali, um ganso, de ar severo, andava pelo pátio e limpava imper-
turbavelmente as penas. Aproximei-me e atirei-o ao chão, À ca
beça do ganso estalou debaixo da minha bota; e começou a san-
grar. O pescoço branco estendeu-se no esterco e as asas estreme-
ciam ainda.
— Enforcarei Deus Nosso Senhor! — exclamei, enfiando
a espada na ave e erguendo-a. — Prepare esse ganso para mim,
mulher.
Com os olhos anuviados, a velha apanhou a ave morta, en-
volveu-a no avental, dirigindo-se à cozinha.
— Camarada — disse depois —, sinto vontade de me enfor-
car. — E fechqu a porta.
No pátio, os cossacos já estavam sentados em volta do cal-
deirão. Imóveis, rígidos, pareciam sacerdotes pagãos num sacri-
fício.
— Este rapaz parece boa gente — disse um, piscando os
olhos e introduzindo a colher na sopa de couve.
Os cossacos começaram a comer com toda a reservada ele-
gância de camponeses que se respeitam mutuamente. Limpei a

41
espada com areia, fui ao portão e voltei a entrar na casa, cheio
de impaciência. Já a lua pendia sobre o pátio como um brinco
vulgar.
— Venha cá — disse de repente Surovkov, o maior dos
cossacos. — Sente-se aqui e coma conosco até que seu ganso fique
pronto. — Deu-me uma colher, que guardava na bota, Tomamos
a sopa de couve e comemos a carne e o toucinho de porco.
— O que dizem os jornais? — perguntou o jovem de cabe-
los louros e sedosos,
— Lênin escreve no jornal — disse eu, exibindo o Pravda.
— Lênin diz que nos falta tudo.
E, com voz alta, triunfante, li para os cossacos o discurso
de Lênin,
A noite envolveu-me com sua umidade crepuscular, apli-
cando sua mão maternal sobre minha fronte ardente. Lia e entu-
siasmava-me, mas em meio ao meu entusiasmo seguia com aten-
ção a misteriosa curva da reta leninista.
— A verdade atinge a todos — disse Surovkov, quando ter-
minei a leitura. — A dificuldade é saber apontá-la no meio da
confusão. Mas ele vai e apanha-a com tanta segurança como uma
ave pega no bico um grão de milho.
Essa foi a observação de Surovkov, o chefe de pelotão do
Estado-Maior, sobre Lênin. Depois, fomos deitar no celeiro. Dor-
mimos ali os seis, fornecendo calor uns aos outros, com as per-
nas entrelaçadas, debaixo daquele teto esburacado, que deixava
entrever as estrelas. Sonhei: no sonho via mulheres, mas meu co-
ração manchado com o sangue derramado do ganso estava cheio
de compaixão.

42
O RABINO

66 udo é mortal. Apenas a mãe é destinada à vida eterna. E


quando uma mãe já não é deste mundo, deixa uma recor-
dação que nunca ninguém ousou macular. A recordação da mãe
alimenta a nossa compaixão como o oceano, o incomensurável ocea-
no, alimenta os rios que cruzam a Terra por todos os lados”.
Estas palavras são de Guedali. Ele as pronunciou com grande
solenidade. A tarde morria, envolvendo-o com a névoa rósea de
sua melancolia.
“As janelas e as portas da apaixonada mansão do hassidis-
mo ! foram arrancadas, mas é imortal como a alma de uma mãe.
Com os olhos cheios de lágrimas, o hassidismo ainda permanece
de pé nas encruzilhadas dos ventos da História”,
Assim falou Guedali. E, depois de rezar na sinagoga, levou-.
me à casa do rabino Motale, o último da dinastia Chernobisk.
Subi com Guedali pela rua principal. Brancas igrejas cinti-
lavam à distância, iguais campos de algodão. Numa esquina ge-
mia a roda de uma carreta de canhão. Duas ucranianas, grávidas,
saíram de um portão, fazendo tilintar seus colares, e sentaram-se
num banco. No meio dos alaranjados combates do pôr-do-sol acen-
deu uma tímida estrela e uma grande paz, a paz do Sabá, desceu
sobre os tetos retorcidos do gueto de Jitomir.
— É aqui — sussurrou Guedali, apontando para uma gran-
de casa com a fachada em ruinas.
Entramos na casa ladrilhada e vazia como um necrotério. O
rabino Motale estava sentado junto a uma mesa, rodeado de pos-
sessos e falsários. Tinha à cabeça um gorro de marta zebelina e

1 Do hebraico, hassidim ou assidim, homem piedoso. Movimento místico de


judeus fundado na Polônia por volta de 1740, por Israel Baal Sem Tov
(1700-1760). Oposto ao formalismo religioso, às práticas ascéticas e ao
intelectualismo dos rabinos, exaltava a fé interior, as forças morais e a
alegria de viver [Nota da edição soviética]
E

43
trajava uma bata branca apertada e amarrada à cintura com um
cordão. De olhos fechados, enterrava os dedos na barba ama-
relada.
— De onde vem o judeu? — perguntou, levantando os
olhos.
— De Odessa — respondi.
— Piedosa cidade — disse o rabino —, a estrela de nosso
“exílio, a fonte involuntária de nossas calamidades. Qual é a
ocupação do judeu?
— Ponho em versos as aventuras de Hersch de Ostropol.
— Um trabalho importante — murmurou o rabino, cerrando
as pálpebras. — O lobo uiva quando está com fome, qualquer
idiota tem motivo para o desânimo, apenas o sábio rompe com
um riso o véu da existência. Que estudou o judeu?
— A Bíblia.
— Que procura o judeu?
— Um pouco de alegria.
— Reb* Mordje — disse o mestre, agitando a barba —,
deixe que o jovem ocupe um lugar à mesa, deixe-o comer com
os outros judeus nesta noite de Sabá, deixe-o ficar alegre por estar
vivo, e não morto, deixe-o bater palmas quando seus vizinhos
dançarem, deixe-o beber vinho se lhe servirem vinho.
E aproximou-se de mim Mordje, um antigo palhaço de pál-
pebras voltadas para fora, senil e amargo, do tamanho de um
menino de dez anos.
— Oh, meu querido e jovem amigo! — disse o andrajoso
reb Mordje, piscando os olhos. — Oh, quantos ricos imbecis co-
nheci em Odessa! E quantos sábios pobres não conhecerei em
Odessa. Sente-se à mesa, jovem, e beba o vinho que não lhe será
servido.
Sentamos todos — possessos, falsários, mentirosos —, uns
ao lado dos outros. Num canto, alguns judeus, com ar de pesca-
dores e apóstolos, gemiam sobre seus livros de orações. Guedali,
com seu fraque verde, cochilava junto à parede, parecendo um
pássaro de cores brilhantes. De repente, vi um jovem ao lado de
Guedali, um jovem com o rosto de Spinoza, a fronte potentede

2 Rabino. [Nota da edição soviética.]

dd
Spinoza, e o rosto lânguido de uma freira. Fumava e tremia co-
mo um preso recapturado que é levado de volta à cela.
O andrajoso reb Mordje aproximou-se furtivamente por de-
trás dele, arrancou-lhe o cigarro da boca e voltou correndo para
o meu lado.
— É o filho do rabino Elias — disse com voz rouca, apro-
ximando maisde meu rosto os olhos injetados de sangue. — É
o filho amaldiçoado, o último filho, o filho rebelde.
Mordje ameaçou o jovem com o punho e cuspiu-lhe no
rosto.
— Abençoado seja o Senhor — ecoou a voz do rabino Mo-
tale, que começou a partir o pão com seus dedos simiescos, —
Abençoado seja o Deus de Israel, que nos escolheu entre todos
os povos da Terra,
O rabino abençoou o alimento e sentamos para comer. Além
da janela, cavalos relinchavam, cossacos gritavam e abriam-se as
mandíbulas selvagens da guerra. E em meio ao silêncio e à ora-
ção, o filho do rabino fumava um cigarro atrás do outro. Quando
terminou a ceia, fui o primeiro a levantar-me,
— Meu querido e jovem amigo — murmurou Mordje atrás
de mim, puxando-me pelo cinto —, se não existisse ninguém no
mundo, senão ricos malvados e mendigos necessitados, como vive-
riam os homens bons?
Dei ao velho algum dinheiro e saí para a rua. Despedi-me
de Guedali e fui para a estação. Ali, no trem da Seção de Propa-
ganda do Primeiro Batalhão de Cavalaria, aguardava-me o res-
plendor de centenas de luzes, o brilho mágico do posto de radio-
telegrafia, o trabalho obstinado das máquinas tipográficas e meu
artigo, ainda por terminar, para O Cavalariano Vermelho.

45
O CAMINHO PARA BRODI

Feio pena das abelhas, martirizadas pelas tropas. Já não há


abelhas em Volin. Nós profanamos suas colméias, destruin-
do-as com enxofre e pólvora. Trapos chamuscados lançaram seu
cheiro mortal nas sagradas repúblicas das abelhas. Moribundas,
elas voam agora lentamente, num leve zumbido que mal se ouve,
Nós, que não tínhamos pão, fomos buscar o mel com nossas espa-
das. Já não há abelhas em Volin.
A crônica de nossas atrocidades rotineiras oprime-me sem
* trégua, como uma doença do coração.
Ontem foi o primeiro dia do combate próximo a Brodi. Está-
vamos perdidos, mas nem eu nem meu amigo Afonka Bida tínha-
mos idéia qual o caminho certo. Os cavalos haviam recebido a
ração diária, de manhã. O centeio era alto, o sol maravilhoso, a
alma não merecia aqueles céus alados e resplandecentes, a alma
tinha sede de lentas dores.
— As mulheres das aldeias cossacas contam histórias das
abelhas e das suas qualidades — disse meu amigo, o comandante
do pelotão. — Se os homens ofenderam Cristo ou não, chegare-
mos a saber, um dia. Mas as mulheres das aldeias contam que
quando Cristo sofreu na cruz, todas as espécies de mosquitos se
aproximavam dele para atormentálo. Então ele olhava os mos-
quitos e desanimava. Mas também uma abelha voava ao redor de
Cristo. “Pica-o” — gritou um mosquito à abelha, “Pica-o, e nós
nos responsabilizamos”. “Não posso”, disse a abelha, voando aci-
ma da cabeça de Cristo, “não posso. É um trabalhador como
nós”. É necessário compreender as abelhas — concluiu Afonka, o
comandante do meu pelotão —. Talvez as abelhas sobrevivam.
Também estamos lutando por elas.
E, com um gesto de abandono e resignação, Afonka começou
a cantar. Era uma canção do cavalo baio. Os oito cossacos —
o pelotão de Afonka — acompanharam em coro o comandante.

47
PERSA A

— Um cavalo baio, chamado Djigit, pertencia a um capitão


que se embriagou com vodca no dia da decapitação de João Ba-
tista. — Assim cantava Afonka, com voz arrastada, esticando-a
como uma corda de instrumento musical. — Djigit era um cavalo
ficl e o capitão, nos dias festivos, não tinha limites para os seus
desejos. No dia da decapitação de João, ele tinha cinco garrafas.
Depois de beber a quarta, montou em seu cavalo e dirigiu o ani-
mal para o céu. A subida foi difícil, mas Djigit cra um cavalo
fiel. Chegaram ao céu e o capitão foi beber a quinta garrafa,
No entanto, a última garrafa tinha ficado na terra. Então, ele
chorou, vendo a inutilidade de seus esforços. O homem chorava,
e Djigit abanava as orelhas, observando o seu dono.
Assim cantava Afonka. A canção flutuava como fumaça, e
nós avançávamos ao encontro do crepúsculo, Os rios espumosos
corriam pelos tapetes bordados das paisagens campestres. O silên-
cio tornava-se rósco. À terra estendia-se coberta com o brilho dos
trigais, macia como o dorso de um gato. Ao pé da montanha, via-se
Klekotov, com seus muros de argila, Do outro lado do morro,
aguardava-nos a vista de uma Brodi tranquila e cadavérica. Mas
em Klekotov um tiro estrondou diante de nós. Dois oficiais polo-
neses surgiram atrás de uma cabana. Os seus cavalos estavam
amarrados debaixo de uma árvore, Diligentemente, uma brigada
inimiga aproximava-se do pé da montanha, As balas ziguezaguea-
vam como fios, ao longo da estrada,
— Recuar! — ordenou Afonka.
Galopamos.
Oh, Brodi! Os restos de tuas paixões destruídas balejavam-
me com seu veneno impossivel de curar. Eu já sentia o frio mor-
tal de olhos cheios de lágrimas peladas, Mas estou aqui, levado
nos solavancos de um galope, e cada vez mais me afasto das pe-
dras lisas das tuas sinagogas.

48
INFORME SOBRE A TACHANKA

Estado-Maior enviou-me um cocheiro ou, como é costume


dizer entre nós, um “vagoneiro”. Seu apelido era Grischuk.
Tinha trinta e nove anos.
Grischuk passou cinco anos num campo de prisioneiros, na
Alemanha. Há alguns meses, fugiu, atravessou a Lituânia, o nor-
deste da Rússia e chegou a Volin; em Belev foi detido pela mais
desorganizada comissão de alistamento que se possa imaginar e
devolvido ao serviço militar, Faltavam apenas 50 verstas para
Grischuk chegar a Kremenetzki, seu distrito natal, onde tinha mu-
lher e filhos. Há cinco anos e dois meses que ele não ia lá, mas,
como dizia, a comissão de alistamento converteu-o em um vago-
neiro e eu deixei de ser um pária entre os cossacos.
Eu era dono de uma tachanka ', com o seu cocheiro e tudo.
Uma tachanka! Uma palavra convertida na base do triângulo so-
bre o qual repousam nossos costumes: matar, tachanka, sangue.
A antiga e vulgar carruagem do papa e de seus letrados asses-
sores entrou, por um capricho da guerra civil, no curso dos acon-
tecimentos e converteu-se num poderoso e formidável instrumento
militar; criou uma nova estratégia e uma nova tática, engedrando
heróis e gênios da tachanka. Um deles foi Makno, que fez da ta-
chanka o eixo da sua misteriosa e astuta estratégia. Makno elimi-
nou a infantaria, a artilharia e até mesmo a cavalaria, substituindo
essas massas incômodas por trezentas metralhadoras parafusadas
em outras tantas carruagens. Assim fez Makno, multiforme como
a própria natureza. Carroças de feno, em formação de combate,
conquistavam cidades. Um cortejo nupcial, aproximando-se do
Quartel-General de um distrito, abre fogo cerrado, enquanto um
pequeno “papa”, magro, erguendo sobre ele a bandeira negra do
anarquismo, ordena às autoridades que lhe entregue os burgueses
e aos proletários, vinho e música.
! Carruagem. [Nota da edição soviética]

49
Um exército de tachankas, pois, tem possibilidade de mano-
bra jamais sonhadas.
Budionni provou isso tão bem quanto Makno. Destruir um
exército desses a golpe de espadas é dificil, tomá-lo de assalto,
absurdo. A metralhadora oculta sob montes de feno e o carro
guardado no celeiro deixam de ser uma unidade militar. Esses
pontos ocultos, que se podem imaginar mas não perceber, formam
um conjunto análogo ao que era, não há muito, uma aldeia ucra-
niana: brutal, rebelde e em pé de guerra. Empregando um exér-
cito assim, com o equipamento escondido em cada canto, Makno
precisava apenas de uma hora para entrar em combate e menos
tempo para desmobilizá-lo.
Aqui, na cavalaria regular de Budionni, a tachanka não pre-
domina de forma tão exclusiva. Contudo, todas as nossas metra-
lhadoras são ocultas apenas em carroças. A fantasia cossaca faz
uma distinção entre os dois tipos de tachanka: o colonial e o
oficial.
Na carruagem oficial, este inseguro veículo construído sem
amor nem imaginação, míseros funcionários do governo, infelizes
de nariz avermelhado, morrendo de sono, viajavam aos solavan-
cos pelas estepes de Kuban, cheias de trigo, para abrir inquéritos
policiais ou passar atestado de óbito. Por outro lado, a tachanka
colonial veio das terras ribeirinhas do Volga, de Samara, dos Urais,
ferozes colônias alemãs. Numa iachanka colonial, sobre os espa-
cosos assentos de castanheiros, estendem-se adornos caseiros, re-
presentando as flores vermelhas que os alemães tanto apreciam.
O fundo é sólido, fortalecido por tiras de ferro. Viaja-se sobre
molas suaves e, nessas noites, solavancando pela estrada destruí-
da de Volin, eu posso sentir o calor de numerosas gerações.
Conheci o entusiasmo da primeira posse, Todos os dias, de-
pois do café da manhã, atrelamos a minha tachanka: Grischuk
trazia os cavalos do estábulo. Eles melhoravam dia a dia e era
com orgulho que eu observava um brilho fosco nos seus flancos
bem escovados. Friccionávamos suas pernas inchadas, aparávamos
suas crinas, jogávamos sobre seus lombos os arreios cossacos —
uma intricada rede de finas correias — e saíamos a trote. Gris-
chuk sentava-se ao meu lado, na boléia, O meu assento era coberto
de estopa de cânhamo, sobre o feno perfumado e repousante. As
altas rodas gemem sobre os grãos de areia branca. Manchas rubras

50
de papoulas adornam a terra, igrejas em ruínas reluzem sobre as
encostas. Dominando a estrada, dentro de um nicho destroçado
por uma bala de canhão, via-se uma estátua de Santa Úrsula, os
braços nus e roliços. Um letreiro antigo, numa escrita desigual,
estava preso a uma corrente quebrada, sobre o pedestal enegre-
cido: “Glória a Jesus e à sua divina Mãe”.
Coladas aos pés de nobres propriedades, viam-se aldeias ju-
dias, sem vida. Num muro de tijolo, cintila um fatídico pavão —
aparição desapaixonada daquele espaço azul, Encoberta por ca-
danas dispersas, a sinagoga permanece acachapada sobre o solo
estéril, apagada, sem portas, arredondada como o chapéu de um
hassidista.
Judeus magros vagueiam melancólicos pelas encruzilhadas. E
vem à memória a imagem dos judeus do Sul, corpulentos, festivos,
borbulhantes de vinho barato. Mas não têm comparação possível
com a amarga altivez destas costas ossudas e trágicas barbas ama-
reladas; nessas faces apaixonadas, cinzeladas na angústia, há ca-
rência de gordura é viva pulsação. Os judeus de Volin e da Ga-
lícia têm um andar desengoçado, movem-se de maneira desgra-
ciosa, mas a sua capacidade de suportar a aflição está cheia de
sombria grandeza, e o seu oculto desprezo pela nobreza da Polô-
nia é ilimitado. Ao vê-los, compreendi a candente história daquela
região: os relatos sobre talmudistas arrendatários de tavernas, ra-
binos fazendo usura e moças violadas por soldados poloneses,
moças pelas quais os magnatas da Polônia se batiam em duelos
de pistola.

51
A MORTE DE DOLGUCHOV

combate se aproximava da cidade, Ao meio-dia, Korochaiev,


envolto numa capa negra, passou aceleradamente por nós.
Era o comandante da Quarta Divisão, agora rebaixado, que lutava
sozinho e procurava a morte. Gritou-me sem se deter.
— Nossas comunicações estão cortadas, Radzivili e Brodi
estão em chamas!
E partiu a galope, a capa ondeando ao vento, negro da cabeça
aos pés, as pupilas como carvões ardentes.
Na planície lisa como uma tábua, reorganizavam-se as briga-
das. O sol abria caminho através de uma névoa púrpura. Nas
trincheiras, os feridos faziam uma pequena refeição. Deitadas na
relva, algumas enfermeiras cantavam a meia voz. Os exploradores
de Afonka percorriam o campo em busca de mortos e de equipa-
mentos. O próprio Afonka passou a dois passos de mim e disse:
— Estão nos esmagando, tão certo como dois e dois são
quatro. Imagino que o comandante da Divisão será substituído.
Os soldados suspeitam...
Os poloneses haviam alcançado a floresta, a cerca de três
verstas de nós, e colocado suas metralhadoras muito perto, As
balas silvavam num tom lamentoso, até se tornar insuportável.
Batiam e penetravam no chão, impacientes. Vitiagaichenko, o
comandante da Divisão, dormia em pleno sol. Soltou um grito,
despertou, montou no cavalo e dirigiu-se rumo à vanguarda do
esquadrão. Tinha o rosto amarrotado e cheio de vergões verme-
lhos, devido à posição incômoda do sono em que dormira. Os
seus bolsos estavam cheios de ameixas.
— Filhos de uma cadela! — exclamou furioso, e cuspiu, ex-
pelindo um caroço de ameixa. — Timochka, a bandeira!
— Vamos atacar? — perguntou Timochka, tirando a haste
do estribo e desenrolando o estandarte com a estrela e uma frase
sobre a Terceira Internacional.

53
CC nidaiiiadd dd sai cid saasciata

— Vamos ver isso agora — disse Vitiagaichenko. De repen-


te, começou a gritar com violência. — A cavalo, meninas. Esqua-
drões, em forma!
Os corneteiros tocaram a ordem, os esquadrões formaram-se
em coluna. Da trincheira saiu um ferido e, cobrindo o sol no
rosto com a mão, disse ao comandante da Divisão:
— Taras Grigorievich, falo em nome dos outros também
Parece que vamos ser deixados aqui?
— Cuidem de si mesmos — resmungou Vitiagaichenko, fa-
zendo voltar o cavalo.
— Tenho a impressão de que não vamos resistir — disse
o ferido.
— Não me chateic. Pode ser que eu não os abandone,
E ordenou que os soldados se preparassem. Nesse momento,
ouviu-se o tom lamentoso e feminino de meu amigo Afonka Bida.
— Não nos faça sair correndo, Taras Grigorievich. São cinco
verstas até chegar até a eles. Como vai combater com esses cavalos
cansados? Não há razão de tanta pressa, que diabo!
— A passo! — comandou Vitiagaichenko, sem erquer os
olhos.
O regimento partiu.
— Se as dúvidas sobre o comandante da Divisão são funda-
das — murmurou Afonka, atrasando-se um pouco —, então, sim,
irão substituí-lo.
As lágrimas brotavam de seus olhos. Olhei Afonka, cheio
de surpresa. Ele rodou o animal, segurou seu boné, suspirou, sol-
tou o grito de guerra dos cossacos e partiu em disparada.
Grischuk e eu ficamos com a nossa estúpida tachanka até o
anoitecer, fugindo entre dois muros de fogo. O Estado-Maior desa-
parecera e as outras unidades não queriam saber de nós. O regi-
mento entrou em Brodi, mas foi repelido num contra-ataque. Nós
nos dirigimos para o cemitério da cidade; por detrás dos túmulos
surgiram soldados de uma patrulha polonesa, que dispararam
contra nós. Grischuk fez meia-volta. Rangiam as quatro rodas da
tachanka.
— Grischuk! — exclamei, em meio ao ruído do vento e ao
silvar das balas,
— Uma emboscada — respondeu ele, tristemente.

54
— Estamos perdidos — gritei, acometido pelo medo da
morte —, é o nosso fim, meu amigo.
— Para que as mulheres têm tanto trabalho? — continuava
ele, a lamentar-se. — Para que namoros, noivados, casamentos e
amigos para festejar as bodas?
Um rastro rosado iluminou o céu, mas logo sumiu. A Via
Láctea apareceu entre as estrelas.
— Tenho vontade de rir — disse Grischuk amargamente,
enquanto apontava com o chicote um homem sentado à beira da
estrada —, tenho vontade de rir ao lembrar de todo o trabalho
das mulheres...
O homem sentado ali era Dolguchov, um telefonista. Olhava
fixamente para nós e tinha as pernas abertas.
— Estou morrendo — disse quando nos aproximamos. —
Compreendem?
— Compreendo — respondeu Grischuk, detendo os cavalos.
— Vão ter de gastar uma bala comigo — disse Dolguchov.
Estava sentado no chão com as costas apoiadas numa árvore.
Sem tirar os olhos de mim, ergueu lentamente a camisa. Tinha o
ventre destroçado, as entranhas pendiam-lhe sobre os joelhos, as
batidas do coração eram visíveis.
— Os poloneses vão voltar e fazer seus truques sujos. Aqui
está a minha documentação. Escreva para minha mãe, dizendo
como isso aconteceu.
— Não — respondi esporeando o cavalo.
Dolguchov estendeu sobre a terra as palmas das mãos azula-
das e contemplou-as com incredulidade.
— Fugindo, hem? — murmurou, inclinando-se mais. — In-
fame!
O suor escorria-me por todo o corpo. As metralhadoras esta-
lavam cada vez mais rápidas, com histérica insistência. Aureolado
pelos raios do sol crepuscular, Afonka Bida aproximou-se de nós,
galopando.
— Já nos divertimos um pouco — gritou alegremente. E de
repente: — O que é isso aí?
Mostrei-lhe Dolguchov e afasteiime um pouco.
Os dois conversaram ligeiramente, não ouvi nada. Dolgu-
chov entregou a sua documentação ao comandante do pelotão;

55
Afonka guardou-a em sua bota. Depois, disparou, atingindo Dol-
guchov na boca.
— Afonka — disse eu com um sorriso forçado, aproximan-
do-me do cossaco —, eu não pude.
— Vá embora — disse Afonka, empalidecendo —, senão o
mato. Vocês, patifes de óculos, têm tanta compaixão dos tipos
como nós quanto um gato de um rato.
E levantou o rifle.
Voltei o cavalo, parti lentamente, sentindo nas costas O frio
da morte.
— Vamos — gritou-me Grischuk atrás de Afonka. E agarrou
o braço dele: — Não faça tolice.
— Porco, patife — gritou Bida. — Não vai escapar de mim.
Grischuk alcançou-me na curva da estrada, Afonka não apa-
receu; tinha partido em outra direção.
— Veja só, Grischuk — disse eu. — Perdi hoje Afonka, o
meu melhor amigo.
Grischuk tirou da boléia uma maçã enrugada,
— Coma — disse. — Coma, por favor.

56
O COMANDANTE DA SEGUNDA BRIGADA

Bem: que vestia calças vermelhas com fios prateados,


estava debaixo de uma árvore. O comandante da Segunda
Brigada fora morto havia pouco e, em seu lugar, o comandante do
Exército promovera Kolesnikov,
O novo comandante de brigada fora chamado à presença de
Budionni. O comandante do Exército esperava-o, de pé, sob a
árvore. Kolesnikov chegou com Almasov, o seu comissário.
— Os canalhas estão quase em cima de nós — disse o co-
mandante do Exército com o seu deslumbrante sorriso. — Vencer
ou morrer. Não há outra saída. Compreende?
— Sim — respondeu Kolesnikov, abrindo bem os olhos.
— Tente fugir e cu mando te fuzilar — disse o comandante.
Sorriu e voltou os olhos para o chefe da Seção Especial.
— Às ordens — disse o chefe da Seção Especial,
— Vamos fazer rodar aqueles patifes, roda!! — gritou de
longe um cossaco.
Budionni deu uma meia-volta impetuosa sobre os saltos da
bota e saudou o novo comandante de brigada. Este fechou os cinco
dedos vermelhos, juvenis e gordos, levou-os ao alto do boné e,
coberto de suor, afastou-se pelo atalho entre os dois campos. Os
soldados o esperavam a cerca de meia versta de distância. Ele
seguiu cabisbaixo, as longas pernas arqueadas movendo-se com
lentidão, banhado pela chama do crepúsculo, tão irreal quanto
uma morte iminente.
Logo, sobre a terra que se estendia ao longe, sobre a amarela
nudez dos campos sulcados pelo arado, não vimos mais que os
ombros estreitos de Kolesnikov, seus braços em movimento e a
cabeça curvada sob o boné cinzento.

iJogo de palavras entre koleso (roda) e Kolesnikov. [Nota da edição


soviética. )

57
Uma ordenança aproximou-se dele com o cavalo. Kolesnikov
saltou para a sela e, sem se voltar, galopou até a sua brigada. Os
esquadrões o esperavam num atalho, junto à estrada de Brodi.
Trazido pelo vento, um hurra chegou até nós.
Focalizei o binóculo e vi o comandante da brigada balan-
cando-se no cavalo, em meio de densas nuvens de poeira.
— Kolesnikov já conduz a sua brigada — informou um vi-
gia, trepado na árvore.
— Bom — respondeu Budionni, acendendo um cigarro e
fechando os olhos.
Apagou-se o hurra e o canhoneiro estrondava. Um disperso
tiro de canhão acertou a mata. Ouvimos o majestoso silêncio do
combate com espadas.
— O rapaz é valente — disse o comandante do Exército.
— Procura a glória, e espero que a alcançará,
Budionni pediu os cavalos e dirigiu-se para o local do com-
bate. O Estado-Maior o acompanhou.
Naquela mesma tarde, uma hora depois da vitória sobre os
poloneses, tornei a ver Kolesnikov. Cavalgava à frente de sua
brigada, sozinho, com ar sonhador, Tinha o braço direito enfai-
xado. Atrás um cossaco carregava a bandeira desfraldada. O
esquadrão da frente cantava preguiçosamente canções obscenas.
A brigada alongava-se, empoeirada e infindável, como uma fila
de carros de camponeses a caminho da feira. Por último, os ban-
dos fatigados.
Naquela tarde, pude observar na admirável figura de Koles-
nikov a majestosa indiferença de um khãn* tártaro, e reconheci
nele a habilidade do famoso Kniga, a tenacidade de Pavlichenko
e o espírito cativante de Savitski.

2 Principe. [Nota da edição soviética.]

58
SACHKA CRISTO

(ui Sachka, mas foi apelidado de Cristo pela sua do-


çura. Era o pastor comunal na sua aldeia e nunca fizera
nenhum trabalho pesado desde os quatorze anos, quando contraiu
uma doença maligna. Tudo aconteceu assim:
Tarakanich, padrasto de Sachka, fora passar o inverno em
Grosni, onde ingressou numa cooperativa, formada com êxito por
alguns camponeses de Riazan. Tarakanich trabalhava em carpin-
taria e achou que a tarefa era lucrativa. Como não dava conta
de todo o trabalho, escreveu para casa, pedindo que mandassem
o rapaz para trabalhar como ajudante. Durante o inverno a aldeia
nada perderia com a ausência de Sachka. O rapaz trabalhou uma
semana com o padrasto. No sábado, os dois deixaram o trabalho
e sentaram-se para tomar chá. Era outubro, mas o ar estava
morno. Abriram a janela e colocaram o samovar ao fogo, Sob a
janela vagueava uma mendiga, que bateu no umbral e disse;
— Bom dia, camponeses forasteiros. Vejam a minha situação.
— Que situação? — perguntou Tarakanich, e acrescentou:
— Entra, aleijadinha.
A mendiga demorou um pouco na rua e, depois, entrou na
casa. Aproximou-se da mesa, fazendo uma reverência, Tarakanich
puxou-lhe o lenço da cabeça e enfiou os dedos em seus cabelos
grisalhos, emaranhados e cheios de poeira,
— Ai! O que é isso, camponês grosseirão — disse, agarran-
do-se à cama. — Com você vai ser um número de circo. Por favor,
não despreze uma velha como eu — murmurou, deitando-se sobre
a cama.
Tarakanich deitou-se com ela, À mendiga jogava a cabeça
para trás e ria.
— Chove sobre a velha — dizia rindo. — Que colheita
poderei dar?

59
Enquanto falava, notou a presença de Sachka, que bebia o
seu chá, à mesa, sem erguer os olhos.
— É seu filho? — perguntou a Tarakanich.
— É como se fosse — respondeu ele. — É de minha mulher.
— Que olhar o menino me lança — disse a velha. — Anda,
vem agui.
Sachka foi e contraiu a doença maligna. Mas naquele mo-
mento ninguém pensava em doença. Tarakanich deu à mulher
uns ossos que sobraram do jantar e uma moeda de prata muito
brilhante, de cinco copeques.
— Esfregue-a com areia, velha beata, e ela ficará mais relu-
zente — disse Tarakanich. — Se você a emprestar a Deus Nosso
Senhor, numa noite escura, ela substituirá o brilho da lua.
A mendiga colocou o lenço na cabeça, apanhou os ossos €
foi embora. Duas semanas depois, tudo tornou-se evidente para
os camponeses. Os dois sofreram muito com a doença maligna e
passaram o inverno como puderam, tratando-se com ervas. Quan-
do chegou a primavera voltaram à aldeia, ao trabalho no campo.
A aldeia ficava a nove verstas da estrada de ferro. Taraka-
nich e Sachka seguiram pelos campos. O solo estava coberto pela
umidade de abril. Nas árvores cheias de musgos cintilavam tons
de esmeralda e verdes choupos formavam na terra bonitos dese-
nhos. Do chão subia um cheiro acre, como o de esposa de sol-
dado ao amanhecer. Os primeiros rebanhos desciam das colinas
e os potrinhos cambalhotavam de encontro às vastidões azuis do
horizonte.
Tarakanich e Sachka caminhavam por trilhas que mal se
percebiam.
— Deixe-me ser pastor comunal, Tarakanich — disse Sachka.
— Por que isso? À
— Estou convencido de que os pastores têm uma vida mára-
vilhosa.
— Não deixo.
— Pelo amor de Deus, Tarakanich, deixe-me ir — suplicou
Sachka. — Todos os santos foram pastores,
— Santo Sachka! — exclamou o padrasto, rindo às garga-
lhadas.
Dobraram a curva junto à ponte Krasni, atravessaram a mata
e pastos, e avistaram a cruz da igreja do povoado.

so
As mulheres trabalhavam ainda nas hortas, enquanto os cos-
sacos, sentados entre moitas de lilazes, bebiam vodca é cantavam,
A casa de Tarakanich ficava ainda a meia versta de distância.
— Permita-me Deus que tudo esteja correndo bem — disse
ele, benzendo-se.
Os dois chegaram à cabana e olharam por uma janela. Não
havia ninguém na cabana. A mãe de Sachka estava no estábulo,
ordenhando a vaca. Eles foram para lá e entraram sem fazer ruí-
do. Tarakanich pôs-se a rir e gritou bem próximo a sua mulher:
— Motia, princesa, digne-se preparar a refeição para seus
hóspedes. :
A mulher se voltou e atirou-se nos braços de Tarakanich,
muito angustiada.
— Como você é feia e pouco atrativa — disse Tarakanich,
apertando-a carinhosamente. — Vamos ver as crianças?
— As crianças foram embora — respondeu Motia, muito pá-
lida, € começou a correr para o pátio, Mas acabou caindo ao chão.
— Aliochenka — gritou, desvairada —, os nossos filhos se
foram, saíram com os pés para a frente!
A mulher voltou ao estábulo, tremendo, e fugiu novamente,
Deu voltas pelo pátio. Depois, regressou, atirou-se nos braços de
Tarakanich é escondeu a cabeça em seu peito.
Tarakanich soltou-se dela, agitou as mãos num gesto de de-
sespero, e saiu para falar com os vizinhos. Contaram-lhe que Deus
tinha levado o menino e a menina, uma semana atrás, com tifo.
Motia lhe escrevera, mas certamente ele não recebera a carta.
Tarakanich voltou à cabana. À mulher estava acendendo o fogão.
— Ficou livre de todos para sempre, não é, Motia?
Sentou-se à mesa e foi ficando cada vez mais triste. Ali comeu
carne e bebeu vodca. Cochilava à mesa, despertava e voltava a
cochilar. Não foi visitar o seu pedaço de terra. Motia preparou
a cama para ela e o marido. A cama de Sachka era num canto
afastado. Depois a mulher apagou a lamparina com um sopro €
deitou-se ao lado de Tarakanich.
Sachka revolvia-se sobre o feno, em seu canto, com os olhos
abertos. Não conseguia dormir e, como num sonho, via a cabana,
uma estrela através da janela, um canto da mesa e as rédeas do
cavalo embaixo da cama de sua mãe, A visão o fascinava e o
rapaz, regozijando-se com o sonho, entregou-se a ele. Via em ima-

61
ginação duas cordas entrançadas com fios grossos, em tons pratea-
dos, pendentes do céu; na ponta delas tinha um berço de pau-
rosa, com desenhos imitando flores. O berço balançava bem alto
e, no céu, as cordas tremulavam, cintilantes. Sachka imaginava
estar no berço, sentindo a carícia do vento, tocando sua pele como
música vinda dos campos. Um arco-íris brilhava sobre o trigo
verde.
Encantado por sonhar acordado, Sachka fechava os olhos
para não ver as rédeas do cavalo sob a cama de sua mãe. Depois,
ouviu um som de respiração ofegante. Compreendeu que Tara-
kanich queria copular com sua mãe.
— Tarakanich — disse, em voz alta —, preciso falar com
VOCÊ,
— A esta hora? — replicou Tarakanich, irritado. — Dor-
me, idiota!
— Juro por Deus que preciso lhe falar — insistiu Sachka.
— Venha comigo ao pátio.
Lá fora, sob estrelas cintilantes, Sachka disse ao padrasto:
— Não use minha mãe, Tarakanich, porque você está doente.
— Você conhece a minha natureza, não é? — disse Tara-
kanich.
— Sim, conheço muito bem a sua natureza, mas vê o corpo
de minha mãe. Ela tem as pernas limpas e o peito também limpo.
Não a use, Tarakanich. Estamos doentes.
— Rapaz — disse o padrasto —, lembre-se do meu gênio
e evite derramamento de sangue. Tome uma moeda de vinte co-
peques e vá dormir que você se sentirá aliviado.
— Vinte copeques não me servem para nada — resmungou
Sachka. — Deixa-me ser o pastor do rebanho da aldeia.
— Não concordo com isso.
— Deixa-me ser pastor, senão contarei a mamãe o que se
passa com a gente. Por que ela haveria de sofrer com o corpo que
tem?
Tarakanich afastou-se, entrou no estábulo e voltou com um
machado.
— Escuta, santo, em poucas palavras... vou cortar sua ca-
beça.

62
— Não vai me dar uma machadada por causa de uma mu-
lher — disse o rapaz com a voz bem baixa, e curvou-se diante do
padastro, — Lamento tudo, deixa-me ser pastor.
— (O diabo que o carregue! — exclamou Tarakanich, ati-
rando o machado no chão, — Anda, vai ser pastor.
Voltou à cabana e passou a noite com a sua mulher.
Na manhã seguinte, Sachka foi oferecer seus serviços aos
cossacos e desde então passou a viver como pastor da aldeia. Ficou
conhecido na região por sua bondade e simplicidade e os cossacos
o chamavam Sachka Cristo. Trabalhou como pastor até que
começou o recrutamento. Os velhos camponeses iam ao pasto para
conversar com ele; as mulheres recorriam a Sachka para esquecer
da brutalidade diária dos camponeses e, devido à sua bondade e
à sua doença, nunca se zangavam com ele.
No primeiro ano de guerra, Sachka foi convocado para o
serviço militar. Passou quatro anos no front e voltou à aldeia
quando era dominada pelos Brancos. Isso levou Sachka a dirigir-
se a Platov, onde se organizava um destacamento contra eles.
Semion Mikailovich Budionni, um ex-sargento de cavalaria, co-
mandava o destacamento e com ele estavam seus três irmãos:
Emelian, Lukian ce Denis. Sachka dirigiu-se ao acampamento de
Platov e ali decidiu-se o seu destino, Serviu no regimento de Bu-
diomni, em sua brigada, em sua divisão e no Primeiro Exército de
Cavalaria. Marchou para libertar a heróica Tsaritsin, reuniu-se ao
Décimo Exército de Voroshilov, lutou em Voroneje e Kastorna e
na ponte Gueneralski, em Donetz. Na campanha polonesa serviu
como carroceiro, porque fora ferido e declarado inapto para o
serviço ativo.
Foi assim que tudo aconteceu e apenas recentemente cu viera
a conhecer Sachka Cristo. Não havia muito tempo, eu tinha
passado a minha pequena mala para o seu carro. A partir daí
temos nos encontrado muitas vezes ao alvorecer e também visto,
juntos, o pôr-do-sol. E quando os caprichos da guerra nos reu-
niam, sentávamo-nos à tarde, num banco, ou [fazíamos chá, na
mata, numa chaleira preta de fuligem, ou dormiamos lado a lado
nos campos recém-ceilados, depois de termos atado os pés dos
cavalos esfomeados.
A HISTÓRIA DE MATVEI PAVLICHENKO

(meros, camaradas, irmãos do meu coração! Ouçam, em


nome da humanidade, a história do general vermelho Matvei
Pavlichenko. Esse general foi pastor de rebanhos, um pastor da
fazenda Lidino, propriedade do senhor Nikitinski, e cuidou dos
porcos do patrão até que a vida lhe colocou marcas de chicote nas
costas e, com essas marcas, Matvei passou a cuidar do gado vacum,
Quem sabe, meus irmãos, se o nosso Matvei tivesse nascido na ÁAus-
trália, talvez tivesse chegado até os elefantes. Sim, Matvei teria
cuidado de elefantes, embora não seja minha culpa se não existem
elefantes no distrito de Stavropol. Confesso sinceramente que em
toda a nossa vasta região, não há animal maior que o boi, Mas um
pobre coitado não gosta de bois, que não divertem os russos. Que
nos dêem um cavalo, a nós, pobrezinhos, um cavalo que seja forte
e veloz.
Pois bem, eu cuidava do gado, rodeado de vacas por todos
os lados. O leite impregnava-me todo, ficava cheirando a leite
como se fosse um úbere aberto, os jovens touros andavam ao
redor de mim, touros cinzentos, cor de rato, À liberdade do espaço
aberto me rodeava, a erva crescia em todos os cantos do campo.
O céu sobre mim parecia uma imensa sanfona, Os céus, meus
irmãos, são muito azuis no distrito de Stavropol. Assim, cuidava
do gado e, como não tinha mais nada para fazer, imitava os ventos
com um caniço. Até que, um dia, um velho aproximou-se de mim
e disse:
— Matvei, vai falar com Nastia.
— Para quê? — perguntei. — Quer zombar de mim?
— Vá — disse —, ela quer vê-lo.
E eu fui.
— Nastia — eu disse, muito vermelho —, você quer falar
comigo?

65
Mas ela não me ouviu e começou a correr até não poder
mais. Corri atrás de Nastia e chegamos ao pasto comunal estafa-
dos, mortos de cansaço.
— Matvei — disse Nastia —, há três domingos, quando abriu
a
a temporada de pesca de primavera e os pescadores foram para
margem do rio, você foi com eles, pensativo . Por que estava cabis-
baixo, Matvei? Tinha algum pensamento oprimindo o seu coração?
— Nastia — respondi —, nada tenho para lhe dizer. Minha
cabeça não é uma espingarda, não tem alça nem mira, mas meu
coração conhece você. Só que está vazio de tudo, talvez um pouco
impregnado de leite e você sabe como é terrível o cheiro de leite.
Nastia ficou encantada com minhas palavras.
— ela disse, começando a rir muito alto, um riso
— Juro
ruidoso que ecoava através da estepe —, juro que você namora
as moças.
Por algum tempo continuamos a falar uma porção de boba-
E come-
gens e, num breve espaço de tempo, estávamos casados.
çamos a viver juntos à nossa mancira, sem reservas. Todas as
noites, era um amor sem fim e, mesmo no inverno, estávamos
quentes; durante todas as compridas noites juntávamos Os nossos
corpos nus, Vivíamos bem, como dois diabinhos, até que o velho
se apresentou a mim pela segunda vez.
— Matvei — disse —, o patrão anda atrás de sua mulher
por todos os cantos. E vai conquistá-la. Isso vai.
E eu disse:
— Não, perdoa, meu velho, mas vou matá-lo aqui mesmo.

O velho, evidentemente, afastou-se de mim com extrema rapi-


dez. Naquele dia, percorri vinte verstas a pé, andei um bocado e,
naquele dia mesmo, à tarde, cheguei a Lidino, na casa do meu
patrão Nikitinski. Ele estava na sala € examinava três selas de
montar: uma inglesa, uma de dragão e outra cossaca. Plantei-me
à sua porta, como uma estátua; fiquei ali por uma hora inteira,
inutilmente. Depois de algum tempo, ele olhou em minha direção.
— Que quer? — perguntou.
— Quero minha conta.
— Tem alguma coisa contra mim?
— Não, mas quero minha conta.

66
Ele desviou o olhar, passando-o da estrada para a entrada
da casa, e estendeu no chão uma manta vermelha, mais vermelha
que as bandeiras do czar. Andou sobre ela e, depois, começou a
pular.
— Você pode fazer o que quiser — disse-me, enquanto
tirava o pó grudado nas calças —, embora suas mães, cristãs orto-
doxas, tivessem toda a liberdade debaixo da minha bota. Você
pode querer a sua conta, mas não me deve também alguma coisa,
amigo Matvei?
— Ah! Ah! — gargalhei. — O senhor é engraçado. Real-
mente, que Deus me castigue se você não é engraçadíssimo. Por
acaso devo alguma coisa? Parece-me que é o patrão quem me
deve pelo meu trabalho,
— Trabalho?
E o patrão jogou-se sobre mim, lançou-me ao chão e enquanto
batia nas minhas orelhas recitava pelo Pai, pelo Filho e pelo
Espírito Santo.
— Teu trabalho? Já esqueceu a canga de bois que você des-
truiu? Onde está a minha canga?
— Vou devolver sua canga — respondi ao patrão e, vol-
tando para ele os meus olhos francos, ajoelhei-me à seus pés, O
mais rebaixado possível. — Não me sobrecarregue com dividas,
velho, espere um pouco.
E o que aconteceu depois, companheiros de Stavropol, cama-
radas, camponeses meus? Pois o patrão ficou cinco anos me per-
seguindo pelas dívidas, cinco anos perdidos para mim, até que
chegou o ano de 1918. Chegou, montando briosos garanhões, ca-
valos de Kabardin, conduzindo um grande comboio de carroças
e toda a espécie de canções. Oh, o meu amado ano de 1918! Por
que não festejar contigo, meu coração, o ano de 1918? Fomos
libertos pelas tuas canções, bebemos o teu vinho, fizemos as tuas
leis e restam apenas os teus cronistas. Oh, meu amado ano! Mas
não foram os escritores que galoparam sobre Kuban e lançaram
os generais a um passo de distância. Matvei jazia então em seu
sangue, em Prikumski, a apenas cinco verstas da fazenda do
Lidino. E fui para lá, sozinho, sem o destacamento, e entrei
na casa de mansinho, pacificamente. As autoridades locais esta-
vam na sala e Nikitinski servia-lhes chá, fazendo queixa das

67
a a |

s. Assim que me viu, sua face ficou alterada. Tirei o meu


chapéu de Kuban diante dele.
— Bom-dia — disse às autoridades —, os meus cumprimen-
tos. Patrão, receba esta visita, ou será de outro modo?
— Vai ser tudo direito e na santa paz — falou um deles.
Era um fiscal, notei logo pela maneira de falar, — Vai ser tudo
direito e na santa paz, camarada Pavlichenko. Mas parece que
vem galopando de muito longe. A lama e a raiva cobrem teu
rosto. Somos as autoridades locais e tememos esse ar. Por que
assim?
— Porque vocês — repliquei — são autoridades insensíveis,
sem sangue nas veias. E porque no meu rosto há uma chama que
arde há cinco anos: ardia nas trincheiras, ardia diante de uma
mulher e continuará a arder até o Dia do Juízo. Sim, Dia do
Juízo — disse com expressão alegre, olhando para Nikitinski.
Mas ele não tinha olhos, apenas duas bolas reviradas, as pálpe-
bras pareciam ter desaparecido, e cle voltava para mim as órbitas
vidradas, com ar alegre mas horrendo, |
— Matiucha! — disse ele —, leve em conta que noutro |
tempo fomos amigos e que minha esposa está aqui presente. Na-
dejda Vasilievna, que ficou louca por causa dos tempos em que
vivemos, sempre era bondosa com você, não era, Matiucha? E
|
você a respeitava mais do que ninguém, será possível que não quer
|
vê-la agora que perdeu o juízo?
— Está bem — eu disse e fomos os dois para a outra sala,
onde ele começou a acariciar-me as mãos, primeiro a direita é
depois a esquerda.
— Matiucha — perguntou — meu destino está com você,
não é?
— Não — respondi. — Deixemos de conversa. Deus afas-
tou-se de nós, os escravos. Nosso destino não é melhor que o de
um caracol, nem nossa vida vale um copeque. Deixemos de con-
versa e escuta, se quiser, a carta de Lênin.
— Uma carta para mim, para Nikitinski?
— Sim.
Tirei o meu livro de ordens de serviço, abri-o numa página
em branco e comecei a ler, embora seja analfabeto: “Em nome

1 Diminutivo carinhoso de Matvei. [Nota da edição portuguesa.)

o8
do povo e para estabelecer as bases de uma vida mais nobre para
o futuro, ordeno a Matvei Pavlichenko, que tire a vida a algumas
pessoas, segundo o seu critério”. É esta — concluo — a carta
que Lênin escreveu para você.
E ele:
— Não, não, Matiucha. Embora a vida não valha nada e no
Santo Império Apostólico Russo o sangue esteja tão barato, você
terá tudo que lhe é devido. Não seria melhor que eu lhe mostre
certa tábua do assoalho?
— Mostre — eu disse —, talvez assim seja melhor.
Começamos a andar pela casa e descemos até a adega. Ali,
ele puxou um tijolo da parede e tirou uma caixinha cheia de
anéis, colares, condecorações e ícones com adornos de pérolas.
Entregou tudo para mim e caiu numa espécie de estupor.
— Tudo isso é seu — disse. — Agora você é o dono de
todas as relíquias dos Nikitinski, Matvei, mas volte para o seu
covil, em Prikumsk.
Então agarrei-o pelo corpo, pela garganta e pelos cabelos.
— E o que faço com a minha vida? Que fazer com a minha
vida de agora em diante?
Naquele instante, Nikitinski começou a rir muito alto e não
tentou mais libertar-se.'
— Consciência de chacal — disse, sem resistir. — Eu lhe
falo como o faria com um funcionário do Império Russo, mas
vocês, patifes, foram amamentados por uma loba. Mate-me aqui
mesmo, filho de uma cadela.
Mas eu não lhe dei nenhum tiro, de nenhuma maneira eu
pensei em matá-lo. Limiteime a arrastá-lo escada acima, até a
sala. Ali estava Nadejda Vasilievna, louca, com um sabre desem-
bainhado na mão, andando a esmo e, de vez em quando, olhando-
se no espelho. Quando arrastei Nikitinski até a sala, ela correu
e foi sentar-se numa poltrona. Tinha na cabeça um turbante de
veludo ornado de plumas. Já sentada, cumprimentou-me militar-
mente com o sabre. Então espanquei o meu patrão, Nikitinski;
espanquei-o durante uma hora ou talvez mais ainda. E foi aí que
conheci completamente o que é a vida, Com um tiro, declaro,
apenas conseguimos nos livrar de uma pessoa: é um favor para

69
ela e muito fácil para nós. Com um tiro não atingimos a alma,
nem o lugar que ela ocupa e se manifesta. Mas eu não me poupo
e, às vezes, tenho espancado um inimigo por uma hora ou mais,
porque quero conhecer a vida tal como ela é...

70
O CEMITÉRIO DE KOZIN

LA
É o cemitério de uma pequena aldeia judia. É a Assíria e a
misteriosa putrefação do Oriente nos campos de Volin,
cobertos de ervas daninhas.
Pedras tumulares cinzentas, esculpidas, com inscrições de três
séculos. Altos relevos talhados no granito: imagens de peixes e de
ovelhas pintadas sobre um crânio; retratos de rabinos com gorros
de peliça, rabinos com estreitas cinturas cingidas por cintos de
couro. Abaixo de rostos sem olhos, a linha ondulada das barbas
encaracoladas esculpidas em pedra. Num lado, debaixo de uma
sombrosa árvore atingida por um raio, a cripta do rabino Azrael,
morto pelos cossacos de Bogdan Jmelnitzki. Quatro gerações jazem
nesta cripta, uma abóbada tão baixa quanto a casa de um carre-
gador de água, e as lápides, enverdecidas lápides cheias de heras,
cantam sobre elas uma prece de beduino:
Azrael, filho de Ananias, porta-voz de Jeová.
Elias, filho de Azrael, o cérebro que combateu corpo a corpo
com o esquecimento.
Volf, filho de Elias, principe raptado à Torá no seu décimo
nono aniversário,
Judas, filho de Volf, rabino de Cracóvia e Praga.
Oh, morte, oh, cobiçosa, oh, dvida ladra, por que não tens
compaixão de mós, ao menos uma vez?

71
PRISCHEPA

Ds: a Lechniuv, onde estava aquartelado o Estado-


Maior da Divisão. O meu companheiro de viagem conti-
nuava a ser Prischepa, um jovem cossaco de Kuban, desordeiro
“incansável, que foi expulso do Partido Comunista, futuro esfarra-
pado, despreocupado sifilítico, mentiroso, alegre erradio. Vestia um
casaco circassiano, de fino tecido carmesim, com um capuz abo-
toado e caído sobre os ombros. No caminho contou-me a sua
história.
Há um ano, Prischepa conseguiu escapar dos Brancos. Como
represália, estes prenderam seus pais, fuzilando-os na seção de
contra-espionagem. A casa da família foi saqueada pelos vizinhos.
Quando os Brancos foram expulsos de Kuban, Prischepa voltou à
sua aldeia natal.
Ao amanhecer, quando os camponeses ainda adormecidos
suspiravam no mormaço sufocante, Prischepa engatou um carro
nos cavalos e saiu pela aldeia recolhendo os objetos: o seu gra-
mofone, os cântaros de madeira para o kvas ' e as toalhas borda-
das por sua mãe. Saiu pelas ruas vestindo uma capa negra e,
preso ao cinto, um punhal curvo. O carro rodava atrás dele.
Prischepa foi de vizinho em vizinho, deixando atrás de si o
rastro de suas pegadas sangrentas. Nas casas onde o cossaco
encontrava objetos de sua mãe, um cachimbo de seu pai, apu-
nhalou mulheres velhas, pendurou cães cobre poços e emporca-
lhou ícones com excrementos de animais. Os aldeões seguiam com
o olhar o caminho de Prischepa, fumando seus cachimbos. Os
jovens cossacos dispersaram-se pela estepe e de lá faziam a conta
das vítimas. À conta subia, a aldeia permanecia em silêncio.

1 Bebida fermentada, de pão de centeio. [Nota da edição soviética.)

73
Quando terminou tudo, Prischepa voltou à casa vazia de seus
pais. Colocou os objetos recuperados na ordem das lembranças de
sua infância e mandou buscar vodca. Fechou-se em casa e, durante
dois dias e noites, bebeu, cantou, chorou e destruiu os objetos.
Na terceira noite, a aldeia viu fumaça sobre a casa de Pris-
chepa. Chamuscado, com a roupa rasgada, ele saiu cambaleante,
tirou uma vaca do estábulo, colocou o revólver na boca do animal
e disparou. A terra girava sob seus pés. Um círculo azul de chamas
saía pela chaminé e dissolviase no ar. O novilho abandonado
mugia no estábulo. O incêndio resplandecia como uma fogueira
de domingo. Então Prischepa desamarrou seu cavalo, subiu à sela,
atirou no fogo uma mecha de seus cabelos e desapareceu.

74
HISTÓRIA DE UM CAVALO

Sist o comandante da nossa Divisão, tomou de Jlebnikov,


o comandante do Primeiro Esquadrão, o seu cavalo branco.
Era um animal vistoso, mas de linhas duras, e não me parecia de
boa raça. Em troca, Jlebnikov recebeu uma égua negra, de trote
regular e de boa raça. Ele, no entanto, fez pouco caso do animal
e vivia sedento de vingança, esperando a sua hora, que um dia
chegou.
Depois dos fracassados combates de julho, quando Savitski foi
substituído e enviado de volta à reserva, Jlebnikov escreveu ao
Estado-Maior, solicitando que o seu cavalo lhe fosse devolvido. O
comandante do Estado-Maior anotou no seu pedido o seguinte
despacho: “Devolver o cavalo em questão ao seu primeiro dono”.
Entusiasmado, Jlebnikov cavalgou cem verstas para encontrar
Savitski, que vivia em Radzivillov, uma cidadezinha maltratada e
parecida com uma grande dama que tivesse baixado de posição
social,
O comandante demitido vivia sozinho, ignorado pelos bajula-
dores do Estado-Maior, que filavam o frango assado e os sorrisos
do comandante do Exército e, com espírito de lacaios, voltavam as
costas ao célebre comandante de Divisão.
Banhado em perfume e com ares de Pedro, o Grande,
Savitski compartilhava o seu ostracismo com uma mulher cossaca,
Pavla, que ele havia tirado a uma ordenança judeu, e com vinte
cavalos de raça que considerava como sua propriedade.
O sol brilhava forte no pátio e ele próprio parecia ofuscado
pelos seus raios. Potrozinhos mamavam sofregamente em robustas
éguas, e os trabalhadores, com as costas úmidas de suor, jogavam
aveia em manjedouras descoloridas. Dominado pela certeza do seu
direito e impelido pela sede de vingança, Jlebnikov seguiu direta-
mente ao pátio cercado. f

75
— Conhece-me? — perguntou a Savitski, que estava deitado
sobre um monte de feno.
— Parece-me já tê-lo visto — respondeu Savitski, bocejando,
— Então tome esta resolução do Estado-Maior — disse Jleb-
nikov, com firmeza. — E peço-lhe, camarada da reserva, que veja
em mim um mensageiro oficial.
— Por que não? — murmurou Savitski, num tom concilia-
dor.
Apanhou a folha de papel e começou a ler, com lentidão
exagerada. Depois, de repente, chamou a mulher cossaca,- que
penteava o cabelo à sombra, debaixo do beiral do telhado.
— Pavla — disse —, toda a manhã penteando-se? Deus seja
louvado, por que não prepara o samovar?
A mulher abandonou o pente, segurou os cabelos com a mão
e lançou-os por sobre os ombros.
— Você tem me atormentado o dia inteiro, Constantin Vasi-
liev — disse, com um sorriso preguiçoso e imperioso. — Ora
você precisa disso, ora daquilo...
" Com os seus saltos muito altos aproximou-se do comandante.
Seus grandes seios balançavam e lembravam um animal preso num
saco.
— Você tem me atormentado o dia inteiro — repetia, rindo,
e desabotoou a camisa do comandante.
— Ora preciso disso, ora daquilo — disse Savitski, também
rindo, e rodeou com os braços os ombros largos de Pavla. — Ainda
estou vivo, Jlebnikov! — exclamou, apertando Pavia. — Minhas
pernas ainda andam, meus cavalos continuam a galopar, as minhas
mãos ainda podem te alcançar e meu revólver está quente pelo
calor do meu corpo.
Tirou o revólver que trazia sobre o ventre nu e aproximou-se
do comandante do Primeiro Esquadrão. Rapidamente, Jlebnikov se
voltou fazendo soar as esporas e saiu do pátio, como uma orde-
nança que acaba de receber o encargo de uma mensagem. E fez
de novo as cem verstas a cavalo, para procurar o comandante do
Estado-Maior, que repreendeu Jlebnikov logo que chegou à sua
presença.

76
— Seu caso já foi resolvido — disse o comandante do
Estado-Maior. — O cavalo foi devolvido e agora tenho mais o
que fazer.
Não quis ouvir Jlebnikov e, por fim, mandou de volta ao
Primeiro Esquadrão o seu comandante gazeador. Jlebnikov esteve
ausente durante toda uma semana. Nesse tempo, fomos enviados
para um acampamento nas florestas de Dubenski. Ali, levantamos
nossas barracas. e vivíamos com certo conforto. Lembro-me que
Jlebnikov retornou num domingo de manhã, dia doze. Pediu-me
uma resma de papel e tinta. Os cossacos aplainaram um tronco
de árvore, para servir de mesa. Ele colocou ali o seu revólver e o
papel, e escreveu até o anoitecer, cobrindo folhas e mais folhas
com sua letra garranchenta e borrada.
— É mesmo um Karl Marx — brincou o comissário do
Esquadrão. — O que tanto escreve aí, alma bendita?
— Exponho diversas idéias de acordo com o juramento
— respondeu Jlebnikov, e entregou ao comissário uma declaração
demitindo-se do Partido Comunista,

O Partido Comunista foi fundado, segundo suponho, para


promover alegria e para estabelecer uma justiça sólida, ilimi-
tada, e devia levar em consideração também os humildes.
Passo agora a referir-me à questão do cavalo branco que
tomei de camponeses, famosos pelo seu espírito contra-revo-
lucionário; o dito cavalo tinha um aspecto feio e muitos de
meus camaradas riram dele. Mas eu tive força suficiente
para resistir a todas as zombarias e, rangendo os dentes pela
causa comum, tratei do cavalo até chegar a mudança dese-
jada, porque eu, camaradas, adoro os cavalos brancos e neles
apliquei as forças que me restaram depois das guerras impe-
rialista e civil: é esses animais sentem a minha mão da
mesma forma que eu posso sentir suas necessidades, que
eles não podem expressar, mas essa égua negra não me serve
para nada, não gosto dela, nem a suporio; são coisas que os
camaradas podem confirmar, mesmo que não ocorra uma
desgraça. Agora, como o Partido não me pode restituir o
que me pertence, de acordo com a resolução enviada, não
me resta outra saida senão escrever esta declaração com
lágrimas nos olhos, coisa muito imprópria a um soldado, mas
a verdade é que as lágrimas correm sem cessar, dilacerando-
me o coração, fazendo-o sangrar...

77
Tudo isso e muito mais foi escrito no relatório de Jlebnikov,
que passou o dia inteiro escrevendo e enchendo resmas de papel.
O comissário e eu lutamos para decifrá-lo até o final.
— Que imbecil! — disse-lhe o comissário, rasgando as folhas
de papel. — Venha ver-me depois da ceia, para conversarmos.
— Não preciso da sua conversa — respondeu Jlebnikov,
trêmulo. — Afasteiime do senhor, comissário.
E ali ficou, tremendo, com as mãos nas costuras das calças,
olhando para todos os lados, como se tivesse escolhendo o caminho
para empreender a sua fuga. O comissário aproximou-se dele, bem
próximo, mas não teve tempo de segurá-lo. Jlebnikov arrancou e
correu para longe.
— Afastei-me do senhor — gritou desvairado e, subindo na
sua mesa, começou a despedaçar o uniforme e arranhar o peito.
— Mata-me, Savitski! — gritou novamente, caindo ao chão.
— Mata-me de uma vez.
Com a ajuda dos cossacos, arrastamos [lebnikov para a sua
barraca, fizemos e enrolamos um cigarro para ele. Fumou, mas
tremia da cabeça aos pés. Só no final da tarde o nosso comandante
se acalmou. Não voltou mais a falar de sua absurda declaração,
mas, uma semana depois, foi a Rovno para ser examinado pela
comissão médica. E, visto que recebera seis ferimentos, foi des-
mobilizado como incapacitado para o serviço,
Assim perdemos Jlebnikov. Isso entristeceu-me, porque ele
era uma pessoa de trato suave, com um caráter semelhante ao meu,
e o único homem do Esquadrão que possuía um samovar. Nos
dias de calmaria tomávamos juntos chá quente é éramos sacudi-
dos por idênticas paixões. Ambos considerávamos o mundo como
um prado em maio, um prado por onde passam mulheres e
cavalos.

18
KONKIN

[Bs os poloneses perto de Belaia Tserkov. Nós os ex-


pulsamos e fizemos um serviço tão bem-feito que até as
árvores se curvavam. Pela manha, cles fizeram-me um ferimento,
mas mesmo assim conseguia mover-me. À tarde caia, recordo-me,
eu tinha perdido contato com o comandante da Brigada e apenas
um grupo de cinco cossacos me acompanhava. À nossa volta, os
soldados combatiam corpo a corpo, como cães e gatos. Meu corpo
ec o cavalo gotejavam de suor. Vocês sabem o que é isso.
Spirka Zabuti e eu nos afastamos mais da floresta quando,
de repente, a apenas trezentos metros de distância, notamos uma
poeira que talvez proviesse de um Estado-Maior ou de um comboio
militar. Se fosse o Estado-Maior, nem tudo estava perdido; se fosse
um comboio, melhor ainda. Os uniformes dos rapazes estavam em
farrapos e suas camisas mal cobriam as nádegas.
— Zabuti — disse eu a Spirka —, seja lá o que for, vamos
lutar com eles. Podemos ir... É o Estado-Maior inimigo que bate
em retirada.
— Não me recuso — respondeu Spirka —, mas acontece que
somos dois e eles oito.
— Coragem, Spirka, vá. De qualquer forma, vou manchar de
sangue as suas vestimentas. Morreremos por roer um osso duro €
pela Revolução Mundial.
E atacamos. Eram oito poloneses. Dois nós colocamos fora
de combate, com nossos rifles. O terceiro foi alcançado por Spirka
e liquidado. Eu tomei como objetivo um deles. Era um chefão com
rosto vermelho e relógio de ouro. Encurralei-o contra uma casa,
cercada de macieiras e cerejeiras.
O cavalo do chefão era garboso, mas parecia cansado. Então
o pan general apontou uma Mauser e fez um buraco na minha
perna.

79
— Está bem — pensei —, este É meu e vou acertá-lo aqui
mesmo,
Esporeei o meu animal, aproximei-me mais e disparei duas
balas no cavalinho. Fiquei com dá do animal, porque aquele cavalo
era um bolchevista, vermelho e luzidio como uma moeda de cobre.
Tinha pensado: vou levá-lo vivo para Lênin; mas tal não aconteceu
assim. Matei o cavalo, que caiu de costas, como uma noiva na
noite de núpcias, e o general voou da sela. Pulou de lado e atirou
novamente, abrindo de novo uma corrente de ar no meu corpo.
Assim, eu já tinha três distintivos ganhos em combate com o
inimigo.
— Jesus! — pensei. — Ele é capaz de me matar por acaso.
Galopei em sua direção. O general já desembainhara a espa-
da. As lágrimas rolavam pelas suas faces, lágrimas brancas, verda-
deiro leite humano.
— Por sua causa vou ganhar a Ordem da Bandeira Vermelha
—. gritei, — Renda-se logo, excelência, antes que eu o mate.
— Não posso, pan — respondeu o velho. — Degola-me.
Naquele instante, surgiu Spirka, não sei de onde, ensopado
de suor e com os olhos esbugalhados.
— Vasia — gritou-me —, você não imagina quantos liquidei!
Quanto ao general cheio de condecorações, gostaria de matá-lo
também.
— Vá para o inferno — disse eu, cheio de cólera. — As
condecorações me custaram sangue.
Com o meu animal empurrei o general até o estábulo da casa
onde havia feno ou algo parecido. Ali estava escuro, fresco e
silencioso.
— Pan — disse eu —, fique calmo. Agora, mãos ao alto €
vamos conversar um pouco.
O general se afastou, com as costas em direção à parede, e
esfregou a fronte com os dedos vermelhos.
— Não, degola-me. Só entrego minha espada a Budionni.
Como trazer Budionni até aqui?
— Pan — gritei-lhe, rangendo os dentes e chorando —,
confie em minha palavra de proletário: sou um alto comandante.
Não procure dragonas em mim, mas tenho título. O meu título

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é o de músico ventríloquo de sal?» n; 21 de de Nizhni, à margem
do Volga.
O diabo apoderou-se de mim, Os olhos do general piscavam
como faróis. Um mar vermelho abriu-se à minha frente. Vi que o
velho não acreditara nas minhas palavras e a ofensa ardeu-me
como sal em ferida. Então fechei a boca, comprimi o ventre e
blasfemei no estilo antigo, à nossa maneira, como soldado, como
fazia em Nizhni, e demonstrei ao polonês que era ventriloquo.
O velho empalideceu, levou a mão ao coração e sentou-se no
chão.
— — Acredita agora em Vasia, o comissário da invencível Ter-
ceira Brigada de Cavalaria?
— Comissário? — gritou.
— Sim, comissário — afirmei.
— Comunista?
— Comunista,
— Na hora de minha morte — disse o velho —, quando
exalo o meu último suspiro, diga-me, cossaco, é comunista ou está
mentindo?
— Sou comunista — respondi.
O velho sentou-se no chão, beijou um amuleto, partiu a
espada ao meio e seus olhos se acenderam, como dois faróis bri-
lhando na escura estepe.
— Perdoe-me — disse ele —, não posso render-me a um
comunista. — E cumprimentou-me, estendendo a mão: — Perdoe-
me e mate-me como um verdadeiro soldado,
Essa história nos foi contada um dia, durante uma parada,
à sua maneira cômica, por Konkin, o comissário político da Bri-
gada de Cavalaria N, três vezes Cavaleiro da Ordem da Bandeira
Vermelha.
— E qual foi o acordo que chegou com o general, Vasia?
— Acordo com ele? Acontece que era um homem cheio de
dignidade. Supliquei por tudo, mas ele não cedeu. Então tomei-
lhe os documentos, a Mauser e a sela dele continua debaixo do
meu corpo. Depois vi que o meu sangue gotejava com mais força,
vinha uma sonolência terrível e cu não estava com mais ânimo
para preocupar-me com ele.
— Quer dizer que você libertou o velho de seus sofrimentos?
— Sim, cometi tal pecado,

81
BERESTECHKO

Mesmos de Jotin para Berestechko. Os soldados cochila-


n vam nas selas. Ouvia-se uma canção monótona como a
correnteza de um riacho com pouca água. Corpos grotescos jaziam
sobre túmulos imemoriais. Camponeses de camisas brancas tiravam
seus bonés, respeitosamente, à nossa passagem. O capote caucasia-
no de Pavlichenko, nosso comandante de Divisão, ondeava sobre
a grande planície como sombria bandeira. Seu capuz acolchoado
estava caído para trás, sobre o capote, seu sabre curto pendia de
um lado.
Passamos junto a túmulos cossacos, bem próximo ao posto de
vigia de Bogdan Jmelnitski. Por detrás da lápide de um túmulo
surgiu um velho com uma guitarra ucraniana e cantou, com uma
voz aguda e infantil, a passada glória cossaca. Escutamos a canção
em silêncio, depois, com os estandartes desfraldados, arremessamos
sobre Berestechko, ao som dos acordes de uma trovejante marcha.
Os habitantes tinham reforçado suas portas com barras de ferro,
e o silêncio, o silêncio todo-poderoso, estabelecera seu trono na
cidadezinha.
Fiquei alojado na casa de uma viúva de cabelos ruivos, que
impregnava tudo com a dor de sua viuvez. Lavei-me da sujeira do
caminho e sai à rua. Nos postes pendiam avisos, comunicando
que o comissário da Divisão, Vinogradov, leria uma informação,
naquela noite, sobre o segundo Congresso da Komintern. Bem em
frente à minha janela, um grupo de cossacos queria [uzilar um
velho judeu de barba prateada, acusado de espionagem. O velho
gemia e fazia esforços para se libertar. Então Kudria, da seção de
metralhadoras, agarrou-lhe a cabeça, prendendo-a debaixo do bra-
ço. O judeu parou de gritar e abriu as pernas. Com a mão direita,
Kudria puxou a adaga e, com muito cuidado para não se manchar
de sangue, cortou o pescoço do velho. Depois, bateu à janela mais
próxima.

83
— Se isso interessa a alguém — disse —, saibam que podem
recolhê-lo. Não é proibido.
Os cossacos dobraram na esquina e eu os segui; percorri as
ruas de Berestechko. A maioria dos habitantes é de judeus, porque
os russos da cidade, de profissão curtidores, estabeleceram-se nos
arredores, onde vivem decentemente, em pequenas casas de portas
verdes. Em vez de vodca, esses russos bebiam cerveja; cultivavam
fumo em jardinzinhos e fumavam, como os camponeses de Galícia,
em cachimbos grandes e curvos.
Em Berestechko, a antiga ordem ia sendo esquecida, mas
ainda era sólida. Os rebentos de três séculos ainda brotavam em
Volin com a tépida decadência da sua antiguidade. Os judeus
prendiam com os fios da usura o camponês russo ao pan polonês,
e o colono tcheco à fábrica de Lodz. Eram contrabandistas, os
melhores da fronteira, e quase sempre defensores da sua fé. O
hassidismo mantinha em sufocante cativeiro a população de taver-
neiros, mascates e corredores. Crianças de longas túnicas ainda
trilhavam o caminho secular que conduzia à escola hassídica e as
mulheres velhas ainda levavam as noivas ao rabino, fazendo
veementes preces pela fertilidade.
Os judeus viviam em Berestechko em casas espaçosas, pinta-
das de branco ou de um azul celeste aguado. A miséria dessa
arquitetura é apoiada em séculos de tradição. Atrás das casas,
há sempre um armazém de dois, às vezes três pavimentos. Ali
nunca entrava o sol, e esses locais, indescritivelmente lúgubres,
valem pelos nossos pátios. Entradas secretas conduziam a porões
e estábulos. Durante a guerra, os judeus escapavam das balas e da
pilhagem nestas catacumbas. A depressão e o horror enchiam as
catacumbas de acre pestilência e da terrível acidez dos excre-
mentos humanos.
Berestechko exalava um odor infecto; os habitantes cheiravam
a arenque podre. O povo fedia, à espera de uma nova era; em
lugar de seres humanos, perambulavam por suas ruas espectros
das desgraças fronteiriças. Cansado de tudo isso, deixei a cidade
no final do dia. Subi numa montanha e penetrei no castelo sa-
queado dos condes Ratsiborsk, os últimos proprietários de Beres-
techko.

84
A calma do crepúsculo tornava azul a relva do castelo. A lua,
verde como um lagarto, caía sobre um tanque. De uma janela, eu
via a fazenda dos condes: o prado, plantações de lúpulo, escure-
cidos pelo início do anoitecer.
Bem antes, vivera ali uma velha condessa de noventa anos,
com o seu filho, a quem ela atormentava porque não dera herdeiro
à linhagem que se extinguia. Os camponeses me contaram que a
velha batia sempre no filho com um chicote de cocheiro.
Na praça, abaixo, reunia-se o povo em um comício. Chega-
vam camponeses, judeus, curtidores dos arredores. Sobre eles des-
ceu a entusiasta voz de Vinogradov, e o tilintar de suas esporas.
Falou sobre o segundo Congresso da Komintern, enquanto eu
vagueava em torno dos muros, onde ninfas de olhos arrancados
formavam um tétrico corredor. Depois, num canto, sobre o solo
amassado por inúmeros pés, encontrei um fragmento de carta,
amarelecido pelo tempo. Numa tinta descolorida, dizia:
“Berestechko, 1820. Paul, mon bien aimé, on dit que Vempe-
reur Napoléon est mort, est-ce vrai? Moi, je me sens bien, les
couches ont été faciles, notre petit héros achêve sept semaines
L...J"o

* “Berestechko, 1820. Meu querido Paulo, diz-se que o imperador Napoleão


morreu, é verdade? Eu me sinto bem, o parto foi fácil, o nosso pequeno
herói completa sete semanas [...]".

85
O SAL

O aro camarada editor:


Quero descrever-lhe aqui a falta de consciência das mu-
lheres, que não estão nos ajudando em nada. Tenho esperança de
que, ao percorrer os fronts da guerra civil, não deixe de lado a
antiga estação ferroviária de Fastov, que fica muito longe de tudo,
num distrito qualquer. Naturalmente, eu estive lá, bebi cerveja e
vodca. Sobre a referida estação, contam muitas histórias, mas, con-
forme se diz em nosso ambiente simples, não se pode espalhar
maledicências. Por isso, descrevo-lhe apenas o que vi com meus
próprios olhos.
Há sete dias, numa noite maravilhosa e tranquila, o nosso
trem da Cavalaria do Exército parou ali, carregado de soldados.
Todos nós ardíamos em desejos de contribuir para a causa comum
e nos dirigimos a Berdichev. Observamos, no entanto, que o trem
não se movia mais. Por que aquela parada? O que teria acontecido?
Com efeito, o caso era sério e da maior importância para a causa
comum, porque os aficcionados do mercado negro, os nossos piores
inimigos, entre os quais se encontra um grande contingente de mu-
lheres, tiveram a ousadia de interferir com as autoridades ferroviá-
rias. Sem medo, subiam para o telhado dos vagões, enfiavam ara-
mes pelos tetos metálicos, agitavam e todos tinham sal nas mãos,
retirados de sacos com mais de noventa quilos. Mas o triunfo do
capitalismo não durou muito tempo. A iniciativa dos soldados, que
haviam descido dos vagões, permitiu às autoridades respirar ali-
viadas. Apenas as mulheres permaneceram ali, com seus sacos.
Movidos pela compaixão, os soldados alojaram algumas delas nos
carros, deixando outras de fora. No nosso vagão, o do segundo
destacamento, acolhemos duas jovens, mas, ao primeiro sinal de
partida, chegou uma mulher gorda e bonita, com uma criança nos
braços. Disse:

87
— Deixem-me subir, jovens cossacos. Durante toda a guerra,
tenho penado muito nessas estações. E eu com esta criança nos
braços! Preciso encontrar meu marido, mas é difícil viajar nas
estradas de ferro. Posso, jovens cossacos?
— Na verdade, mulher — eu disse —, o seu destino depende
da decisão que tomar o nosso destacamento.
Voltando-me para os rapazes, expliquei que a mulher pedia
autorização para ir encontrar-se com o marido e que levava uma
criança nos braços. Qual é a decisão? Deixamos subir ou não?
— Deixe-a subir — gritaram os homens —, quando se soltar
das nossas mãos já não terá vontade de encontrar-se com o marido.
— [sso não — disse aos homens, com bastante cortesia. —
Com o meu respeito, membros do pelotão, espanta-me ouvir tama-
nha grosseria. Lembrem-se de suas vidas, de que também foram
crianças nos braços de suas mães, € assim compreenderão que não
devem falar assim desta maneira.
Os cossacos discutiram entre si e, depois de acharem conve-
niente o que eu dissera, começaram a abrir caminho para a mulher
subir no vagão, o que ela fez cheia de agradecimento. E todos os
cossacos, conscientes das coisas verdadeiras que eu havia dito, a
instalaram no vagão, procurando acomodá-la da melhor maneira
possível,
— Sente-se aqui, minha boa mulher, e acaricie o seu bebê
como fazem todas as mães. Ninguém lhe tocará, e você chegará
junto de seu marido sã e salva, tal como é o seu desejo. E espe-
ramos que dê ao mundo outros homens, que nos substituam, por-
que os velhos ficam cada vez mais velhos e parece que há poucos
bebês por aí. Sabemos o que é o sofrimento, minha boa mulher,
pois tanto no serviço ativo como durante o alistamento passamos
fome e frio. Mas sente-se aqui, e não precisa temer nada.
Um terceiro apito, o último sinal, e o trem partiu. A noite
agradável estendeu-se sobre nós como uma tenda de campanha.
Nela brilhavam as estrelas. Os soldados recordavam as noites de
Kuban, com suas estrelas verdes. O pensamento voava rápido como
um pássaro, e as rodas do trem rolavam nos trilhos, fazendo seu
ruído monótono.
Ao amanhecer, quando a guarda do batalhão tocou a alvorada
em seus tambores vermelhos, alguns soldados se aproximaram de
mim, porque viram que eu não tinha dormido e estava muito abotr-
recido.
— Balmashov — perguntaram-me os cossacos —, por que
você está tão aborrecido e não pegou nem um chochilo durante a
noite?
— Meus respeitos, soldados. Peço desculpas, mas permitam-
me dizer uma palavrinha âquela cidada.
Tremendo todo o corpo, levantei do banco, porque o sono
estava tão longe como um lobo que foge de uma matilha de cães
ferozes. Aproximei-me da mulher, tireilhe a criança dos braços,
puxei as fraldas e... o que descubro é um bom saco de sal,
— Eis aqui um bebê interessante, camaradas, que não mama,
não molha as fraldas, nem acorda a gente com seu choro.
— Perdoem-me, meus bons cossacos — interrompe a mulher
a nossa conversa, com muita calma. — Não fui eu quem os en-
ganou, mas sim as minhas desgraças.
— Balmashov perdoa todas as suas desgraças — respondi. —
Isso não custa nada a Balmashov, e ele vende ao preço que compra.
Mas olhe bem estes cossacos, minha boa mulher, que te levaram
à categoria de mãe e trabalhadora da república. Olhe essas duas
moças que choram agora pelo que lhes fizeram esta noite. Pense
nas nossas esposas lá nos trigais de Koban, que consomem suas
forças sem maridos, e eles também sozinhos, que por dura neces-
sidade violam as jovens que passam pela sua vida. Mas você não
foi tocada, mulher indigna, embora merecesse. Pense na Rússia,
esmagada de dor e miséria.
E ela disse-me:
— Agora que perdi o meu sal, não tenho medo de dizer a ver-
dade. Vocês não pensam na Rússia, vocês querem apenas salvar
esses sujos judeus, Lênin e Trotsky.
— Não tratamos agora de judeus, cidadã nociva. Os judeus
nada têm a ver com isso. A propósito, não falo de Lênin, mas
Trotsky é o filho revoltado de um governador de Tambov e pas-
sou-se para os trabalhadores, embora pertencesse a outra classe.
Lênin e Trotsky trabalham duro para nos conduzir ao caminho de
uma vida livre, mas você, repugnante cidadã, é mais contra-revolu-
cionária do que o general branco que nos ameaça com o seu sabre
afiado montado num cavalo de mil rublos. Este general pode ser

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visto em qualquer caminho, e os trabalhadores podem ter o sonho
ou intenção de matá-lo, mas você, desonesta cidadã, com seus ardi-
losos bebês, que não pedem pão nem correm ao vento, sim, gente
como você não podemos ver nem descobrir, e por isso vai por aí
fazendo todo o mal que pode, de que é capaz.
Confesso que teria atirado a cidadã para fora do trem em plena
marcha, mas ela, com muita grosseria, apenas sentou-se, espalhou
as saias e começou a dizer desaforos. E eu, vendo aquela mulher
ilesa, seguindo seu caminho, e a Rússia em seu redor, os campos
sem espigas, as moças violadas, os muitos camaradas que iam para
o front e os poucos que voltavam, tive o ímpeto de saltar do trem
e pôr um fim à minha vida, ou mesmo matá-la. Mas os cossacos
ficaram com pena de mim e disseram:
— Dá-lhe um tiro.
Eu tirei o meu fiel rifle, preso à parede do vagão, e apaguei
aquela vergonha da face da terra dos trabalhadores e da república.
E nós, os soldados do segundo pelotão, juramos, caro cama-
rada editor e caros camaradas da redação, atuar implacavelmente
contra todos os traidores que nos arrastam para o abismo, que
querem mudar a correnteza do rio e cobrir a Rússia de cadáveres
e ervas mortas.
Em nome de todos os soldados do segundo pelotão,
Nikita Balmashov
Soldado da Revolução

90
NOITE

O; regulamentos do Partido Comunista Russo! Por entre a


massa azeda das histórias russas, estendestes impetuosos fios.
Transformastes três corações solitários, com todas as paixões dos
Jesus de Riazan, em colaboradores de nosso jornal, O Cavalariano
Vermelho. Fizestes isso para que pudessem produzir um irreve-
rente diário, cheio de valor e humor.
Galin, com sua catarata no olho, Slinkin, o tuberculoso, e
Sichev, o dos intestinos corroídos, vão e vêm pela estéril poeira
da retaguarda, semeando a rebeldia e o fogo de seus paníletos atra-
vés da formação de nossos robustos jovens cossacos desmobilizados
do front, de rveservistas malandros inscritos como tradutores de
polonês, e de moças que, para repousarem, Moscou envia à Seção
Política.
O jornal — uma mecha de dinamite no Exército — ficava
pronto somente ao anoitecer. Quando ia desaparecendo no céu o
farol piscante de um sol provinciano, as luzes da tipografia alçavam
vôo e cintilavam incontroláveis com a potência das máquinas im-
pressoras. Nessa hora, Galin descia do carro para espairecer e estre-
mecer em seus ataques de amor não correspondido por Irina, a
lavadeira do nosso comboio.
— Da última vez — dizia Galin, o de ombros estreitos, pálido
e zarolho —, da última vez, Irina, escrevemos sobre o fuzilamento
de Nicolau, o Sanguinário, executado pelo proletariado de Ekate-
rinburgo. Hoje tratamos de outros tiranos que morreram como cães.
Pedro III foi estrangulado por Orlov, o amante de sua mulher.
Paulo foi despedaçado por seus cortesãos com a ajuda de seu pró-
prio filho. Nicolau Palkin envenenou-se, seu filho caiu no primeiro
de março, seu neto morreu de beber. Você precisa conhecer essas
coisas, Irina,
E, erguendo um olho cheio de adoração por Irina, Galin ia
revolvendo incansavelmente os túmulos dos falecidos imperadores.

91
Encurvado, ele recebia em cheio o reflexo da lua, que emergia nas
alturas como uma espiã insolente; as máquinas tipográficas solta-
vam suas batidas nas imediações, e a estação de rádio resplandecia
com sua luminosidade pura. Encostando-se no ombro do cozinheiro
Vasili, Irina escutava abafados e desvairados murmúrios de amor,
enquanto que lá em cima as estrelas se arrastavam pelo escuro
mar de sargaços do céu. A lavadeira cochilava; fez o sinal da cruz
sobre os lábios gordos, e olhava Galin, boquiaberta.
Ao lado de Irina, bocejava o suave Vasili que, como todos os
cozinheiros, desprezava a humanidade. Os cozinheiros estão sempre
em contato íntimo com a carne de animais mortos e com a avidez
dos vivos; por isso, em política, procuram coisas que nada têm a
ver com eles. Assim era também Vasili. Puxando-as calças para
cima, perguntou a Galin pela genealogia dos diferentes reis, infor-
mou-se sobre os dotes das filhas do czar. Depois, bocejando, disse:
— A noite avança, Irina. Amanhã será outro dia. Anda, va-
mos esmigalhar as pulgas.
E fecharam a porta da cozinha, deixando Galin a sós com a
lua alta, atenta como uma insolente espiã. Olhando para a lua, junto
de um tanque adormecido, estava eu sentado, de óculos, com fu-
rúnculos no pescoço e ataduras nos pés. Com os meus confusos €
poéticos pensamentos, ia dirigindo a luta de classe, quando Galin
se aproximou, com sua reluzente catarata no olho.
— Galin — eu disse, cheio de saudade e solidão —, estou
doente. Parece-me que chegou o meu fim e estou cansado de viver
na Cavalaria.
— Você é um fraco — respondeu Galin, e o relógio que levava
pendurado no pescoço marcava uma hora da manhã. — Você é um
fraco, e estamos condenados a suportar os fracos. Nós tiramos a
casca do fruto e, em breve, vocês o terão, Então já podem tirar o
dedo do nariz e cantar a nova vida em prosa extraordinária. Mas,
por enquanto, fiquem quietos e não nos aborreçam com os seus
lamentos.
Aproximou-se de mim mais um pouco, arrumou os gordurosos
curativos dos meus ferimentos supurados e deixou cair a cabeça
sobre o seu peito de pombo. A noite nos confortava das nossas
misérias, soprava uma suave brisa como se nos abanassem as saias
maternas, e a vegetação, abaixo, reluzia de frescor e umidade.

“92
As máquinas do nosso carro de imprensa soltaram um longo
chiado e silenciaram. O amanhecer traçou uma linha cintilante no
horizonte. A porta da cozinha rangeu e ficou entreaberta. Quatro
pés de gordos calcanhares apareceram no frescor da manhã, e pude-
mos ver as curvas amorosas de Irina e o dedão de Vasili, com a
sua unha torta e enegrecida.
—. Vasiliok ! — murmurou a mulher, com a lânguida voz da
intimidade —, saia da minha cama, seu bobo.
Mas Vasili apenas encolheu a perna e encostou-se mais.
— O Exército de Cavalaria — disse-me então Galin — é
uma experiência social promovida pelo Comitê Central do nosso
Partido. A Revolução trouxe ao primeiro plano a bravura cossaca,
repleta de muitas dificuldades ainda, mas as manobras do Comitê
Central irão extirpá-las com mão de ferro.
Galin falou ainda sobre a educação política do Primeiro Exér-
cito de Cavalaria. Falou durante longo tempo, com voz baixa mas
com absoluta clareza. Sobre a catarata, sua pálpebra palpitava.

1 Diminutivo carinhoso de Vasili. [Nota do tradutor.)

95
aà o

AFONKA BIDA

ombatíamos perto de Leshniuv. Por todos os lados, aparecia a


frente da cavalaria inimiga. A pressão da estratégia polonesa
estava consolidada e distendia-se entre nós como um som prolon-
gado e maligno. Os inimigos nos rodeavam. Pela primeira vez em
toda a campanha, sentíamos às costas a agudeza infernal dos ata-
ques de flanco e das incursões pela retaguarda — o poder da mes-
ma arma que já nos servira tão bem.
O front de Leshniuv era mantido pela infantaria. Os pálidos
e descalços camponeses, arregimentados em Volínia, espalhavam-
se ao longo de trincheiras irregularmente cavadas. Essa infantaria
fora arrancada, bem recentemente, de seus arados, para formar uma
reserva de infantaria no Exército de Cavalaria. Os camponeses vie-
ram com boa vontade e eram aplicados no combate. Até mesmo os
homens de Budionni estavam atônitos com a fúria implacável dos
mujiques. Seu ódio aos latifundiários poloneses era tecido com ma-
terial invisível, mas de boa qualidade.
Na segunda fase da guerra, quando a nossa gritaria deixou de
causar efeito na imaginação do inimigo e os ataques da cavalaria
contra as trincheiras se tornaram impossíveis, a infantaria de fabri-
cação caseira tinha prestado uma ajuda inestimável a nós. Porém,
era grande a nossa indigência. Havia apenas um rifle para cada
três homens e os cartuchos não correspondiam às armas. Assim, foi
preciso abandonar a ajuda dessas milícias e enviar os homens de |
volta para suas casas.
Mas voltemos ao combate em Leshniuv. A infantaria estava
entrincheirada a três verstas da cidadezinha. Um jovem de ombros
arqueados, com óculos, a espada pendente de lado, andava próximo
às linhas de frente. Parecia pouco à vontade e movia-se mancando
como se as botas o apertassem. Esse comandante de mujiques, es-
colhido e amado por eles, era um jovem judeu de vistas curtas,
rosto lânguido e expressão séria de talmudista. No combate, deu

95
provas de prudente coragem e sangue-frio muito parecidos com o
ar distraído de um sonhador.
Eram três horas de um longo dia de julho. No ar resplandecia
a trama de um tórrido calor. De repente, além das colinas, cinti-
lou o colorido festivo de uniformes e crinas de cavalos entrançadas
com fitas. O jovem oficial deu o sinal de alerta. Arrastando ruido-
samente seus calçados rústicos, amarrados com correias sobre o
peito do pé, os camponeses correram para suas posições e apon-
taram as armas. No entanto, o alarme era falso. Para as estradas de
Leshniuv marchavam os coloridos esquadrões de Masliakov ?. Os
seus magros, mas briosos cavalos, iam a bom passo. Sobre paus
dourados e ornados de borlas de veludo, flutuavam magníficas ban-
deiras em meio a densas nuvens de poeira. Os soldados cavalga-
vam com ar majestoso, brutal e ao mesmo tempo frio. A infantaria
esfarrapada saiu de suas trincheiras e contemplou admirada a ele-
gância daquela lenta marcha.
A frente do regimento, sobre uma elevação da estepe, caval-
gava o comandante da Brigada, Masliakov, com seu rosto vermelho
de bêbado e a podridão de sua seiva gordurosa. A sua imensa bar-
riga repousava sobre o arção da sela como um grande gato ador-
mecido. Ao notar a presença da infantaria, o rosto de Masliakov
iluminou-se de alegria e fez um sinal para o comandante do pelo-
tão, Afonka Bida, chamado por nós de Makno pela sua semelhança
com o famoso guerrilheiro, Os dois cochicharam por um instante.
Depois, Afonka voltou-se para o primeiro esquadrão e, inclinan-
do-se, ordenou sem levantar a voz: “Avançar!” Os cossacos pas-
saram a trote, um esquadrão após o outro. Esporearam os animais
e galoparam rumo às trincheiras, de onde os homens da infantaria
contemplavam, maravilhados, o espetáculo.
— Prontos para o combate! — gritou Afonka, com voz me-
lancólica e parecendo vir de muito longe.
Masliakov, tossindo e ofegante ao respirar, afastou-se para um
lado, cheio de satisfação. Os cossacos se arremessaram ao ataque.
A própria infantaria começou a correr, mas era tarde. Os chicotes
dos cossacos já encostavam em suas puídas roupas ucranianas. Os

1 Masliakov, comandante da Primeira Brigada da Quarta Divisão. Guerri-


lheiro incorrigível, pouco depois traiu os sovietes. [Nota do autor.)

96
cavaleiros iam e vinham pelo campo, volteando os chicotes com
admirável destreza.
— Por que fazem isso? — perguntei a Afonka.
— Para a gente se divertir — respondeu-me, agitando-se na
sela para alcançar um jovem que se ocultara entre os arbustos.
— Para rirmos! — gritou, açoitando o assustado rapaz.
A diversão terminou quando Masliakov, brando e majestoso,
levantou a sua mão gorducha.
— Cuidado com as distrações, soldados! — gritou Afonka,
endireitando com arrogância o corpo magro. — Agora, vão catar
pulgas.
Os cossacos riam, enquanto formavam-se novamente em filei-
ras. À infantaria tinha sumido. As trincheiras estavam vazias. Ape-
nas o judeu curvo permanecia no mesmo lugar, atento, observando
com altivez os cossacos.
O tiroteio não cessava na direção de Leshniuv. Os poloneses
nos cercavam. Através de binóculos, podiam-se ver as figuras iso-
ladas; exploradores montados galopavam, saindo da cidadezinha,
oscilando-se nas selas como bonequinhas que persistem em perma-
necer de pé.
Masliakov formou os esquadrões ordem de batalha, de am-
bos os lados da estrada. Sobre Leshniuv o sol tornou-se resplande-
cente, indescritivelmente vazio, como sempre acontece nas horas de
perigo. O judeu lançou a cabeça para trás, soprou um apito de
metal, num som forte e triste, e a infantaria, a castigada infantaria,
voltou às suas posições.
As balas chegavam até onde nos encontrávamos. O Estado-
Maior colocou-se num local varrido pelas metralhadoras; nós nos
precipitamos para as matas e começamos a abrir caminho entre a
espessa vegetação, existente à direita da estrada. Os galhos atingi-
dos pelas balas estalavam sobre nossas cabeças. Quando saímos da
mata, os cossacos já não estavam ali. Por ordem do comandante
da Divisão tinham-se retirado para Brodi. Permaneciam apenas os
camponeses, que se defendiam com espaçosos tiros de rifle, e Afonka
Bida, que ficara para trás e agora procurava alcançar o seu desta-
camento.
Afonka cavalgava pela borda da estrada, olhando ao redor e
farejando o ar. Por um instante, o tiroteio diminuiu e, aproveitando

97
a trégua, o cossaco partiu a galope. Mas, subitamente, uma bala
atingiu o pescoço do seu cavalo. O animal ainda percorreu uma
centena de passos e, chegando bem junto de nós, dobrou as patas
dianteiras é caiu,
Afonka tirou lentamente o pé machucado do estribo e, acoco-
rando-se, tocou na ferida com o seu dedo bronzeado. Depois, en-
direitou-se e percorreu com um olhar de dor o horizonte cintilante.
— Adeus, Stepan — disse em voz baixa, afastando-se do mo-
ribundo animal, fazendo uma profunda reverência. — Como po-
derei voltar sem você à nossa pacífica aldeia? Que vou fazer com
esta sela que foi feita para você? Adeus, Stepan — repetiu, mais
alto. Depois, como um ratinho aprisionado, começou a gritar €
chorar. Os seus gritos nos chegavam aos ouvidos, e nós o vimos
fazendo reverências como uma mulher presa de um ataque histé-
rico, na igreja. — Não, não me submeterei a esta sorte de cão —
gritou, tirando as mãos que cobriam o seu rosto lívido. — Não,
agora vou matar sem compaixão esses malditos poloneses. Juro
que vou tirar o último suspiro de seus corações. Juro na frente dos
meus soldados. Stepan, na frente dos meus queridos camaradas.
Afonka calou-se e encostou o rosto ao ferimento do animal.
Revirando os olhos profundos, arroxeados e brilhantes, o cavalo
parecia ouvir os gemidos de Afonka. Agitava levemente o focinho
no chão, enquanto dois fios de sangue, como dois regatos de rubis,
corriam pelo seu peito formado de músculos brancos.
Afonka permanecia deitado, imóvel. Então, Masliakov, abrindo
caminho com suas pernas gordas, aproximou-se, colocou o revólver
numa orelha do animal e disparou. Afonka deu um salto e voltou
para Masliakov o seu rosto marcado de varíola.
— Tire os arreios, Afonka — disse Masliakov afetuosamente
— e volte para a sua unidade.
Da colina, acompanhamos a trajetória de Afonka para o seu
esquadrão, dobrado sob o peso da sela e com o rosto vermelho,
semelhante a um pedaço recém-cortado de carne. Seguia sozinho,
absolutamente sozinho, no meio da ardorosa e poeirenta desolação
dos campos.
Já bem mais tarde, encontrei Afonka num dos carros de trans-
porte. Dormia ao lado de seus pertences: a espada, o capote e moe-
das de ouro esburacadas. Tinha o cabelo empapado de sangue coa-

98
gulado, a boca imóvel e contorcida, e repousava sobre a borda da
sela como um crucificado. Junto às suas pernas estavam os arreios
do cavalo morto, o engenhoso e rebuscado aparato do animal cos-
saco: peitoral com borlas negras, correias de couro flexível crave-
jadas de pedrarias, mantas de tecido leve e brida prateada.
A escuridão, cada vez mais densa, estendia-se sobre nós. Nu-
ma fila interminável, o comboio rodava pela estrada de Brodi. As
inocentes estrelas piscavam pela Via-Láctea e as luzes de distantes
aldeias cintilavam na fria profundeza da noite. Orlov, o assistente
do comandante de esquadrão, e Bitsenko, um soldado de grandes
bigodes, estavam no mesmo carro de Afonka e comentavam a sua
dor.
— Era o cavalo que ele trouxe de casa — disse Bitzenko. —
Onde encontrar outro igual?
— Um cavalo é um amigo — declarou Orlov.
— Um cavalo é um pai — disse Bitzenko, suspirando. — Salva
a vida muitas vezes. Bida está perdido sem o seu cavalo.
Na manhã seguinte, Afonka desapareceu. Os combates em
Brodi começaram e terminaram. À derrota cedeu lugar a transitória
vitória, assistimos à mudança de comandantes de Divisão, mas
Afonka não aparecia. Apenas os rumores de descontentamento que
corriam pelas aldeias, e a furiosa e sangrenta trajetória dos des-
mandos de Afonka nos indicavam o seu violento caminho.
— Está procurando um cavalo — diziam no esquadrão acer-
ca do comandante, e nas inúmeras tardes errantes ouvi muitas his-
tórias sobre sua caçada desenfreada e feroz.
Soldados de outras unidades tinham encontrado Afonka a de-
zenas de verstas de nossas posições. Estava emboscado à espera
de cavaleiros poloneses isolados ou então percorria as matas à
procura de rebanhos de cavalos ocultos pelos camponeses. Afonka
incendiava aldeias e fuzilava os seus alcaides poloneses por espio-
nagem. Aos nossos ouvidos chegavam ecos desse combate feroz
e isolado, ecos do audaz ataque de um lobo solitário contra a co-
munidade.
Passou outra semana. A amarga cólera daqueles dias foi, pou-
co a pouco, eliminando da nossa vida cotidiana as histórias sobre
a sinistra coragem de Afonka. E começamos a esquecer “Makno”.
Depois, correu o boato de que fora apunhalado na floresta, pelos

99
ii
oi d
camponeses da Galícia. No dia em que entramos em Berestechko,
Emelian Budiak, do primeiro esquadrão, foi pedir ao comandante
de Divisão a sela e à manta amarela de Afonka. Ele queria apa-
recer no desfile com uma sela nova, mas não teve ocasião para
isso.
Entramos em Berestechko a 6 de agosto. O gorro cossaco e o
capote vermelho de nosso novo chefe apareciam à frente, e Levka,
um lacaio, conduzia uma égua negra atrás do comandante. Uma
marcha guerreira, cheia de ameaças, percorria as ruas miseráveis
e ornamentadas. Vielas antigas, casas de vigas carcomidas e osci-
lantes dominavam a cidadezinha, cuja medula era também corroída
pelo tempo e exalava sobre nós sombrias emanações de decadência.
Os contrabandistas e os beatos haviam-se escondido em suas caba-
nas amplas e lúgubres. Apenas pan Liudomirski, o sineiro, vestindo
seu fraque verde, saiu para nos receber junto à igreja.
Atravessamos o rio & penetramos nos arredores da cidadezinha.
Aproximávamos da casa do padre quando Afonka surgiu dobrando
uma esquina, montado num enorme cavalo cinzento.
— Meus cumprimentos — disse com voz jocosa e, afastando
os soldados, ocupou o seu lugar nas fileiras.
Masliakov olhou fixamente a rua descolorida e, com voz rou-
ca, perguntou sem se voltar:
— De quem é este cavalo?
— É meu — respondeu Afonka, enrolando um cigarro que
umedeceu com um breve movimento da língua.
Os cossacos se aproximaram dele, saudando-o um após o ou-
tro. No lugar do seu olho esquerdo, arrancado, abria-se um vazio
sangrento, cercado de um repugnante e monstruoso inchaço de cor
rosada.
Na manhã seguinte, Afonka Bida embriagou-se. Na igreja, des-
truiu o relicário de São Valentim e tentou tocar o órgão. Vestia
uma jaqueta feita com um pedaço de tapete azul celeste com um
lírio bordado nas costas. O cabelo, empapado de suor, estava pen-
teado para a frente e cobria o olho vazado,
Depois do almoço, Afonka selou o cavalo e saiu disparando
o rifle contra as janelas do castelo dos condes Ratsikorsk. Ali, os
cossacos formaram um semicírculo à sua volta, agarravam as ré-

100
deas, conferiam os cascos e tentavam descobrir a idade do animal
pelos dentes.
— Belo animal — disse Orlov, o assistente do comandante
do Esquadrão,
— Um cavalo de grande utilidade — confirmou Bitsenko,
o de grandes bigodes.

101
SÃO VALENTIM

Os à tarde nossa divisão ocupou Berestechko. O Estado-


Maior instalou-se na casa do padre Tusinkevich. Disfarçado
de mulher, Tusinkevich tinha fugido de Berestechko antes da entra-
da de nossas tropas. Tudo o que sei sobre esse sacerdote é que se
ocupava das coisas de Deus em Berestechko, há quarenta e cinco
anos, e era um bom padre. Quando os habitantes queriam fazer
compreender isso, diziam que até os judeus gostavam dele. Foi no
seu tempo que reformaram a velha igreja. A restauração ficou
pronta para o terceiro centenário do templo. O bispo de Jitomir
compareceu às celebrações. Prelados com batinas de seda celebra-
ram a missa em frente à igreja. Figuras gordas e seráficas pare-
ciam sinos sobre a grama úmida de orvalho. Das aldeias da região
chegou uma submissa multidão. Os camponeses, ajoelhados, bei»
javam mãos e, naquele dia, flamejavam maravilhosas nuvens no
céu. As bandeiras celestiais ondeavam em honra do antigo templo.
O próprio bispo beijou Tusinkevich na fronte chamando-o pai de
Berestechko, pater Berestechkae.
Soube dessa história pela manhã, no Estado-Maior, quando
examinava o relatório de uma das nossas colunas de patrulha, que
fazia reconhecimento em Lvov, no distrito de Radzijov. Enquanto
lia os papéis, as ordenanças falavam atrás de mim da nossa inter-
minável saudade de casa. Os escriturários, amolecidos pela vigília,
copiavam as ordens da Divisão, comiam pepinos e cochilavam.
Era meio-dia quando terminei e fiquei livre. Aproximei-me da
janela e vi a igreja de Berestechko, majestosa e branca. Resplan-
decia sob a suave luz do sol, como uma torré de porcelana. Os
reflexos do meio-dia cintilavam sobre as suas paredes brilhantes.
A sua frente de linha convexa começava junto à coloração verde
das cúpulas e descia suavemente até abaixo. Na pedra branca da
fachada apareciam quase impercetivelmente fios rosados; no alto
havia colunas delgadas como círios.

103
Depois, fiquei admirado com o som do órgão e, justamente
nesse instante, uma mulher velha, com os cabelos amarelos desar-
ranjados, apareceu na porta do Estado-Maior. Andava como um
cão que tivesse uma pata quebrada, cambaleando, quase caindo.
Os seus olhos, entranhados da branca umidade da cegueira, esta-
vam cheios de lágrimas. Os sons do órgão, ora lentos, penosos,
ora ágeis, leves, chegavam até nós. Subiam com dificuldades e
suas reverberações ressoavam longa e plangentemente. A velha
enxugou as lágrimas com seus cabelos amarelos, sentou-se no chão
e começou a beijar as minhas botas à altura dos joelhos.
O órgão parou de tocar, mas depois recomeçou ruidosamente
com notas graves. Agarrei a mulher pelo braço e olhei em volta.
Os escriturários batiam suas máquinas, as ordenanças roncavam
cada vez mais alto, as suas esporas cortavam o feltro e o veludo.
dos sofás. A mulher continuava a beijar minhas botas e abraçava-as
como se fosse um bebê. Arrastei-a para a saída € fechei a porta. A
igreja ergueu-se diante de nós, num brilho ofuscante. Parecia um
“cenário de teatro. As portas laterais estavam abertas e crânios de
cavalos jaziam sobre túmulos dos oficiais poloneses.
Chegamos ao pátio, atravessamos um sombrio corredor e en-
tramos numa sala de forma quadrada, ao lado do altar. Ali estava
Sacha, a enfermeira do 31.º Regimento. À jovem remexia em
sedas que haviam sido jogadas no chão, O odor cadavérico de
antigos brocados e de flores murchas, a sufocante decomposição,
entravam em seu nariz, fazendo-lhe cócegas e dificultando sua
respiração. Alguns cossacos entraram na sala, rindo às gargalha-
das. Agarraram Sacha pelos braços e a jogaram sobre o monte de
roupas e livros. O corpo de Sacha, saudável e cheiroso como a
carne de vaca recém-abatida, ficou despido: as saias levantadas re-
velaram suas pernas de amazona, pernas bem torneadas e como
fundidas em ferro. Kurdiukov, um jovem bastante brincalhão, mon-
tou sobre ela, como num cavalo, e sacudia-se como se estivesse
na sela, fingindo satisfazer a sua lascívia. Sacha o empurrou ao
chão e correu para a porta. Só então atravessamos pelo altar e
penetramos no templo.
A igreja estava inundada de luz, entrecortada de réstias que
dançavam pelas etéreas colunas — uma espécie de alegre folguedo.
Como poderia esquecer o quadro pintado por Apolek, que pendia
do lado direito do altar? Nele estavam representados doze rosados

104
padres, balançando um berço de fitas rendadas, no qual repousava
um gorducho menino Jesus: os dedos dos pés muito separados, o
corpinho envolvido no quente suor da manhã. Deitado, o menino
tinha pregas nas costas carnudas, e os doze apóstolos, com a tiara
de cardeais, curvam-se sobre o berço, com suas faces tão barbea-
das a ponto de parecerem azuis, e os mantos de cores flamejantes
moldando a saliência dos ventres. Os olhos dos apóstolos brilha-
vam de sabedoria, decisão e alegria. Nos cantos dos lábios via-se
um leve sorriso e, em suas papadas, pequenas verrugas, tão ver-
melhas como rabanetes em maio.
O templo de Berestechko tinha a sua maneira peculiar e sedu-
tora de encarar os sofrimentos mortais dos filhos da humanidade.
Os santos iam para o cadafalso com pose de tenores italianos, e
os cabelos negros dos carrascos eram lustrosos como a barba de
Holofernes. Sobre a própria porta do santuário, vi a imagem sa-
crilega de João Batista, obra também do pincel herético e inspirado
de Apolek. Na imagem, o que se tornava formoso era a ambígua e
reticente beleza do mártir, ilustrada com o propósito de que con-
cubinas de reis perdessem suas honras já meio perdida e seus
suntuosos modos de vida.
A princípio, não vi sinais de destruição no templo ou então
os estragos me pareceram insignificantes. Apenas o santuário de
São Valentim estava quebrado: pedaços de algodão apodrecido se
misturavam com dois ridículos ossos do santo que, mais do que
outra coisa, pareciam ossos de galinha. Afonka Bida continuava
a tocar órgão. Estado bêbado, desvairado e coberto de cicatrizes,
pois só na véspera havia voltado com o cavalo que tomara aos
camponeses. Teimosamente, Afonka tentava tocar uma marcha e
alguém, com voz sonolenta, procurava dissuadi-lo. “Deixa isso,
Afonka, vamos comer”. Mas o cossaco não deixava o órgão: as
canções eram inúmeras e variadas. Cada som era uma canção e
todas as notas musicais eram independentes umas das outras.
Cada canção, com a sua pesada sonoridade, durava um segundo
e dava lugar a outra. Eu ouvia e olhava à minha volta, e os vesti-
gios de destruição do templo me pareciam insignificantes. Não
pensava assim pan Liudomirski, sineiro da igreja e marido da
velha cega.
Liudomirski surgiu não sei de onde. Entrou no templo com
passo firme e cabeça baixa. O velho não ousava cobrir as relíquias

105
espalhadas pelo chão, pois não é permitido a uma pessoa humilde
tocar as coisas sagradas. O sineiro caiu de joelhos sobre as azula-
das lajes do pavimento, ergueu a cabeça e seu nariz surgiu como
uma bandeira cobrindo um cadáver. Naquele momento, a cortina
de veludo do altar abriu-se para um lado, revelando um nicho.
Em suas profundezas, sobre o seu fundo celeste coberto de nuvens,
moveu-se a figura de um homem barbado, vestindo um capote cor
de laranja, de pés descalços, boca dilacerada e sangrando. Um
grito rouco feriu nossos ouvidos. O homem do capote alaranjado
estava sendo perseguido com ódio e alcançado pelo perseguidor.
Dobrou o braço para evitar um golpe iminente, e desse braço o
sangue corria, num jorro purpúreo. Um rapazinho cossaco que
estava de pé ao meu lado soltou um grito, baixou a cabeça e
começou a correr, embora não houvesse motivo para a fuga, pois
a figura do nicho era apenas a imagem de Jesus Cristo, a mais
extraordinária imagem de Deus jamais vista na minha vida.
O Jesus Cristo de pan Liudomirski era um judeu de cabelos
encaracolados, barba em madeixas, fronte estreita e enrugada. Os
seus cabelos esparsos eram pintados de carmim e, sobre os olhos
fechados de dor, dobravam-se sobrancelhas finas e ruivas.
A boca dilacerada e aberta parecia um lábio equino. O capote
era cingido por um cinto valioso e, deibaixo da túnica, apontavam
pequenos pés de porcelana, pintados, descalços e perfurados por
cravos de prata.
Pan Liudomirski, com seu fraque verde, de pé ao lado da
imagem, ergueu a mão enrugada e nos amaldiçoou. Os cossacos
estavam de olhos arregalados. Com voz trovejante, o sineiro da
igreja de São Valentim nos lançou uma maldição no mais puro
latim. Depois, voltou-nos as costas, caiu de joelhos e abraçou as
pernas do Salvador.
Ao chegar ao Estado-Maior escrevi um relatório ao coman-
dante da Divisão sobre a ofensa ao sentimento religioso da po-
pulação local. Logo veio a ordem para fechar a igreja e que os
culpados fossem submetidos a investigação e postos à disposição
do Tribunal Militar.

106
TRUNOV, O COMANDANTE DE ESQUADRÃO

À o meio-dia levamos para Sokal o corpo crivado de balas de


- Trunov, nosso comandante de Esquadrão, morto pela manhã
em combate contra a aviação inimiga. Todos os projéteis tinham
acertado o seu rosto: as faces estavam cheias de buracos e a língua
dilacerada. Lavamos o rosto do cadáver do melhor modo que po-
díamos, para que o aspecto fosse menos horrível, colocamos uma
sela caucasiana na cabeccira do ataúde e cavamos-lhe uma cova
num lugar de honra: no jardim público, junto à catedral, no cen-
tro da cidade. Nosso esquadrão de cavalaria, o Estado-Maior do
Regimento e o comandante da Divisão compareceram e, quando o
relógio da catedral bateu duas horas, o nosso antigo canhão dis-
parou o seu primciro tiro. Com suas três velhas polegadas saudou
o comandante morto, depois que levamos o ataúde para a cova.
A tampa do caixão estava aberta e a pura luz do sol da tarde
iluminou o grande cadáver desde a boca cheia de dentes quebra-
dos até as botas polidas, que juntavam os saltos como se estivesse
perfilado durante a instrução.
— Soldados — disse Pugachov, o comandante do Regimen-
to, olhando o defunto e colocando-se à beira da cova. — Solda-
dos — repetiu, em posição de sentido, trêmulo. — Enterramos
Pacha Trunov, herói mundial. Rendamos a Pacha as últimas ho-
menagens.
Erguendo para o céu os olhos marcados pela insônia, Puga-
chov pronunciou, em voz muito alta, um discurso sobre os homens
que tombaram no Primeiro Exército de Cavalaria e sobre esta
orgulhosa organização que batia com o martelo da história na
bigorna dos tempos futuros. Pugachov discursava com voz poten-
te, enquanto apertava o cabo do curvo sabre caucasiano e removia
a terra com suas aguçadas botas, com esporas de prata.
Após o discurso, a banda tocou a Internacional e os cossacos
despediram-se de Pacha Trunov. Todo o esquadrão montou a cava-

107
lo, disparou uma salva de tiros e o nosso canhão troou pela
segunda vez. Enviamos três cossacos para buscar uma coroa. Par-
tiram em disparada, levantando-se das selas e fazendo exercícios
de equitação. Trouxeram uma grande quantidade de flores roxas.
Pugachov espalhou-as pelo caixão e nos aproximamos para o últi-
mo beijo. Toquei com os lábios a sua fronte serena, rodeada pela
sela, e fui para a cidade, para a gótica Sokal, abandonada no meio
da poeira azul e da melancolia da Galícia.
Uma grande praça estendia-se à esquerda do jardim, uma
praça circulada por antiquissimas sinagogas. Ali, judeus de longas
túnicas esfarrapadas empurravam uns aos outros. Um grupo — os
ortodoxos — exaltava os ensinamentos de Adasi, rabino de Belz.
Por isso era atacado pelos hassidistas da doutrina moderna, os
discípulos de Judá, o rabino de Gussiatin. Os judeus discutiam
sobre a Cabala e citavam na disputa o nome de Elias, rabino de
Vilna, que expulsou os hassidistas.
Esquecendo a guerra e as salvas de tiros no jardim público,
os hassidistas até mesmo difamavam o nome de Elias, o sumo
sacerdote de Vilna. Pesaroso com a morte de Trunov, eu me juntei
a eles, discutindo também em voz alta, para aliviar o sofrimento,
até que notei diante de mim um galiciano magro e alto como Dom
Quixote. Vestia uma túnica de linho branco que lhe chegava até
os pés. Era uma roupa própria para ser sepultado ou receber a
comunhão. Levava, presa a uma corda, uma pequena vaca mal-
tratada. Sobre o corpo longo de galiciano, assentava-se uma cabe-
ça pequena, pelada e inquieta como a de uma serpente, que mexia-
se bambolente sob um chapéu de abas largas, de palha comum.
A coitada da vaca seguia à direita do galiciano. E o homem a
conduzia com ar majestoso, recortado pelas sombras dos compri-
dos chifres da vaca, formadas pelo ardente brilho do sol da tarde.
Com passos solenes atravessou a praça e entrou num beco
tortuoso e invadido por vapores espessos e nauscantes. Em pe-
quenas casas enegrecidas, nas miseráveis cozinhas, judias seme-
lhantes a velhas negras de seios fartos cuidavam de suas tarefas.
O galiciano passou por elas e parou no final do beco, em frente
à fachada de uma casa em ruínas.
Ali, junto a uma retorcida coluna branca, um ferreiro cigano
ferrava cavalos. Batia nos cascos com o martelo, sacudindo seus
cabelos engordurados, assobiava e sorria. Alguns cossacos perma-

108
neciam à sua volta com os seus cavalos. O galiciano aproximou-se
do ferreiro e, sem dizer uma palavra, entregou-lhe cerca de uma
dúzia de batatas cozidas, e deu meia-volta sem olhar para nin-
guém. Eu ia segui-lo, mas fui detido por um cossaco, que aguarda-
va a hora de ferrar o seu animal, Era Soliverstov. Tinha deixado
a guerrilha de Makno há algum tempo e agora servia no 33.º Re-
gimento de Cavalaria.
— Liutov — disse, segurando minha mão —, por que anda
atrás de todo mundo? Tem o diabo no corpo, Liutov! Por que
brigou com Trunovy hoje de manhã?
Guiado por estúpidos boatos, Soliverstov acusou-me aos gri-
tos de que naquela manhã eu tinha dado uma surra em Trunov, o
comandante do meu esquadrão, Fez uma série de críticas e cen-
surou-me violentamente diante de todos os cossacos. Mas não
havia nem um pingo de verdade na sua história, Realmente, eu
havia discutido com Trunov, porque ele sempre arrumava uma
interminável bagunça com os prisioneiros. Sim, discutimos, mas
agora ele estava morto, ninguém poderia julgá-lo, e não seria eu
que iria fazer o papel de juiz. Eis como surgiu a nossa discussão:
Naquele dia, tinhamos feito dez prisioneiros na estação de
Zabodi, ao amanhecer. Quando os capturamos, vestiam apenas
as roupas de baixo. Um monte de uniforme estava espalhado no
chão, junto aos poloneses. Era um truque usado para impedir que
distinguíssemos pelas roupas os oficiais e os soldados. Eles pró-
prios tinham tirado os uniformes, mas desta vez Trunov decidiu
descobrir a verdade.
— Que saiam os oficiais — ordenou aproximando-se dos pri-
sioneiros e sacando o revólver.
Naquela manhã, Trunov já tinha sido ferido. Da sua cabeça,
envolta num farrapo, o sangue escorria como a chuva de um
palheiro.
— Oficiais, confessem! — gritou, e começou a empurrar os
poloneses com a culatra da arma.
Naquele momento, saiu do grupo um velho magro com enor-
mes e descarnados ossos nas costas, faces amareladas e grandes
bigodes.
— Abaixo a guerra! — disse o velho com um entusiasmo
incompreensível. — Todos os oficiais fogem. Abaixo a guerra!

109
E o velho polonês estendeu suas mãos azuladas para o co-
mandante do esquadrão.
— Veja, cinco dedos — disse, soluçando e contorcendo a
enorme e flácida mão —, com esses cinco dedos alimentava minha
família.
O velho sufocou-se, cambaleou e, irrompendo em lágrimas,
caiu de joelhos aos pés de Trunov, mas este o afastou com o
revólver.
— Os seus oficiais são uns canalhas — gritou o comandan-
te — Os seus oficiais atiraram aqui os uniformes. Mas vou fazê-los
provar cada um deles.
Imediatamente, o comandante retirou do monte de roupas um
boné com borda e enfiou-o na cabeça do velho.
— Serve direitinho — murmurou Trunov, aproximando-se
mais —, serve direitinho... — E cravou o seu sabre na garganta
do prisioneiro.
O velho caiu, batendo as pernas. Da sua garganta jorrou um
sangue espumoso, cor de coral, Então aproximou-se dele Andrei-
usha Vosmilictov, com seus brincos reluzentes é o seu rústico pes-
coço de camponês. Desabotoou a roupa do velho, sacudiu o corpo
de leve e começou a tirar as calças do moribundo. Depois jogou-as
sobre a sela, apanhou mais dois uniformes do monte de roupas, e
saiu montado, agitando o chicote. Naquele instante, o sol saiu das
nuvens e iluminou forte o cavalo de Andreiusha, o seu alegre
trote e o agitar descuidado de sua cauda curta, Andreiusha foi
seguindo o atalho em direção à mata onde estava o nosso comboio
de carros. Os condutores gritavam, assobiavam e faziam sinais a
Vosmilietov, como a um surdo-mudo.
O cossaco já tinha percorrido metade do caminho quando
Trunov, de repente, caiu de joelhos e gritou-lhe com voz rouca.
— Andreiusha! — gritou o comandante com os olhos fixos
no chão — Andresiusha, a nossa República Soviética ainda vive.
É ainda cedo para começar a repartila, Traga essas roupas,
Andreiusha.
Mas Andreiusha Vosmilietov nem sequer voltou a cabeça.
Continuou no seu admirável trote de cossaco, e o seu cavalo
sacudia a cauda, com petulância, como se estivesse acenando para
nós.

no
— Traição — murmurou Trunov, enraivecido. — Traição!
— repetiu.
Tirou apressadamente o rifle do ombro, disparou, mas errou
o alvo devido a pressa. Mas, desta vez, Andreiusha deteve-se.
Voltou o cavalo e saltou da sela como uma camponesa. O seu
rosto estava vermelho e irritado, e sacudia as pernas.
— Ouve, compatriota — gritou, aproximando-se de nós e,
em seguida, acalmando-se com o som profundo e forte da sua
própria voz. — Tenho vontade de matá-lo, maldito cossaco. Quan-
do você apanha uma dúzia de poloneses, faz todo esse escândalo.
Eu já liquidei mais de cem sem necessidade de lhe chamar. Se
você é um trabalhador, cumpra seu dever.
E atirando da sela as calças e os dois uniformes, Andreiusha
voltou as costas ao comandante do Esquadrão e saiu resmungando.
Depois, veio ajudar-me a fazer uma lista dos prisioneiros. Não
saía do meu lado, respirando ruidosamente, Os prisioneiros fu-
giam aos seus gritos, porém ele os perseguia e os apanhava em
fortes braçadas, como um caçador abraça os juncos para ver me-
lhor a nuvem de pássaros selvagens que se aproximam do rio, ao
amanhecer.
Lidando com os vencidos, esgotei o meu repertório de pala-
vrões, mas, mesmo assim, consegui anotar os nomes de oito, o
número de suas unidades e espécie de armas que traziam. Depois
passei ao nono, um jovem que parecia um atleta alemão, de circo
de boa qualidade, um alemão muito branco, vestindo um colete
de malha, camisa fina e cuecas de lã muito macia, Voltou-se para
mim, os mamilos sobressaiam-lhe sob a camisa, lançou para trás
os seus cabelos loiros e suados e disse-me o nome de sua unidade.
Aí, Andreiusha agarrou-o pela cueca e perguntou com severidade:
— Onde arranjou essa cueca?
— Foi mamãe quem a fez para mim — respondeu, trêmulo.
— Então tem uma mãe fabricante — disse Andreiusha, sem-
pre examinando e tocando, com as pontas dos dedos, as unhas
bem cuidadas do polonês. — Sua mãe é uma verdadeira artesã.
Sujeitos como nós nunca usamos trajes como esse.
Apalpou mais uma vez a macia cueca de lã e pegou pelo
braço o nono prisioneiro, para conduzilo para junto dos outros,
cujos nomes eu já havia anotado. Naquele momento, vi Trunov
rastejando na colina. O sangue jorrava da cabeça do comandante,

111
como a chuva de um palheiro, e a suja atadura se soltara e pendia
do ferimento, Trunov se arrastava e levava nas mãos uma carabi-
na, uma arma japonesa de grande calibre. A uma distância de
vinte passos, ele disparou e acertou a cabeça do jovem e os miolos
do polonês espalharam-se sobre as minhas mãos. Depois, tirou o
cartucho vazio é aproximou-se de mim.
— Risca um — disse apontando para a lista.
— Não vou riscar nada — respondi. — Parece, Trunov, que
as ordens de Trotsky não foram feitas para você.
— Risca um — repetiu o comandante, tocando com o dedo
sujo a folha de papel.
— Não risco — gritei com todas as minhas forças. — Eles
eram dez e restam oito. O Estado-Maior não vai ter nenhuma
consideração com você, Trunov.
— Você acha que o Estado-Maior vai dar atenção à nossa
vida de cachorro — respondeu Trunoy, e começou a avançar sobre
mim, sujo, furioso e negro de fumaça. Depois, deteve-se, ergueu
a cabeça ensanguentada para o céu e murmurou com amargo
queixume:
— Zumbindo, zumbindo sempre. Aí vem mais outro, zum-
bindo.
E o comandante do Esquadrão apontou-nos quatro pontos
no céu, quatro bombardeiros que sobrevoavam as nuvens, seme-
lhantes a cisnes. Eram as aeronaves da esquadrilha aérea do major
Fount Le Roy, grandes aviões blindados.
— A cavalo — gritaram os comandantes de destacamento,
ao verem os bombardeiros.
Conduziram os esquadrões a trote até a floresta. Trunov, po-
rém, não foi com o seu. Permaneceu no prédio da estação, junto
à parede, imóvel. Andreiusha Vosmilietov e dois jovens operado-
res de metralhadora, de pés descalços e calças de montar cor de
carmim, ficaram juntos dele muito aflitos.
— Caiam fora, rapazes — disse-lhe Trunov, o sangue escor-
rendo do rosto, — Levem esta mensagem a Pugachov.
Numa folha de papel enviesada Trunov escreveu com uma
enorme caligrafia de camponês:
“Como vou morrer no dia de hoje, creio que é meu dever
fazer dois disparos, talvez com a possibilidade de abater o inimigo.

12
Ao mesmo tempo, passo o comando a Semion Golov, comandante
do pelotão”.
Dobrou o papel, sentou-se no chão e, com esforço, tirou as
botas.
— Tomem, façam uso delas — disse entregando as botas e
a mensagem aos dois artilheiros. — Usem, são botas novas.
— Boa sorte, comandante — murmuraram os artilheiros, ro-
dando para lá e para cá e retardando o momento da partida.
— Boa sorte para vocês também — disse Trunov e caminhou
para as metralhadoras colocadas num montículo junto à guarita
da estação. Ali esperava-o Andreiusha Vosmilietov, o ladrão de
roupas usadas.
— De qualquer forma... — começou a falar Trunov, mas
ergueu a metralhadora em direção ao inimigo. — Vai ficar junto
de mim, Andrei?
— Meu Senhor Jesus Cristo — respondeu Andreiusha, assus-
tado. Depois, soltou um soluço, empalideceu e começou a rir. —
A Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo!
E começou a apontar a segunda metralhadora para os aviões.
Naquele momento, os aparelhos voavam em circulos cada vez
mais próximos da estação. Zumbiam assustadoramente nas alturas,
depois desciam, soltando bombas. Raios do sol pousavam e brilha-
vam sobre suas asas.
Entretanto, nós, do quarto esquadrão, estávamos na floresta.
Ali aguardávamos o combate desigual entre Trunov e o major do
serviço americano, Fount Le Roy. O major e seus três bombar-
deiros demonstraram grande habilidade no combate. Desceram a
uma altura de trezentos metros e, com as metralhadoras, atiraram
primeiro em Andreiusha e depois em Trunov. Os cintos de balas
descarregados por nossos homens não causaram qualquer dano aos
americanos e eles afastaram-se sem notar a presença do esquadrão
oculto na floresta. Assim, depois de esperar meia hora, pudemos
ir buscar os cadáveres. O corpo de Andreiusha foi recolhido por
dois parentes seus, que faziam parte do nosso esquadrão. Trunov,
o nosso falecido comandante, foi levado por nós para a gótica
Sokal e sepultado num lugar de honra: no jardim público, num
canteiro de flores, no centro da cidade.

113
OS IVANS

O diácono Ivan Agguey já havia desertado duas vezes do front


e, por isso, foi enviado ao batalhão disciplinar de Moscou.
O comandante-chefe, Serguei Sergueievich Kamemev, passou em
revista esse batalhão, em Mozhaisk, antes de enviá-lo ao jront.
— Não servem para nada — disse o comandante. — Que
voltem todos a Moscou para limpar latrinas.
Um ou outro dos homens de uma companhia era recrutado
entre esses indesejáveis, e entre eles se encontrava o diácono.
Quando chegou ao front polonês, deu a entender que era surdo; €
Barsutski, o médico militar, depois de examiná-lo durante uma
semana, não conseguiu vencer a sua teimosia,
— O diabo que leve esse surdo — disse Barsutski a Soichen-
ko, o enfermeiro. — Vá ao comboio e traga-me um carro. Vamos
mandar o diácono a Rovno, para um exame apropriado.
Soichenko foi ao departamento de transportes e conseguiu
três carros. O condutor do primeiro era Ivan Akinfiev.
— [van — disse-lhe Soichenko —, você vai levar o surdo a
Rovno.
— Perfeitamente — respondeu Akinfiev.
— E traga-me um recibo quando voltar.
— De acordo — disse Akinfiev. — Mas qual é a causa da
surdez?
— É um mal de quem defende mais a sua pele do que a dos
outros — respondeu Soichenko, o enfermeiro. — Essa É a única
causa. Finge para fugir ao serviço. Mas ouve muito bem.
— Pois vou levá-lo até lá — disse Akinfiev, e seguiu os outros
carros.
Três carros estavam reunidos diante do posto de pronto-
socorro. No primeiro, instalou-se uma enfermeira, que ia voltar à
retaguarda; o segundo foi destinado a um cossaco atacado de
nefrite c Ivan Agguev acomodou-se no terceiro.

115
Assim que tudo ficou pronto, Soichenko chamou o médico.
— Já vai embora o nosso covardão — disse. — Entreguei-o
no carro do Tribunal Militar e pedi o recibo. Vão sair de um
momento para outro.
Barsutski olhou pela janela, viu os carros e o cossaco de rosto
vermelho e sem boné. Precipitou-se para fora de casa.
— Ei! — gritou para Akinfiev. — Não vá matá-lo. É preciso
mudar o diácono para outro carro.
— Para onde vai levá-lo? — perguntaram alguns cossacos
que estavam próximos, e riram. — O nosso Ivan irá descobri-lo
em qualquer parte.
Akinfiev estava de pé juntos aos cavalos, chicote na mão.
Tirou o boné e disse cortesmente:
— Bom dia, camarada médico.
— Bom dia, amigo — respondeu Barsutski, — Sabemos que
você é uma fera. É preciso mudar o diácono para outro carro.
— Gostaria de saber — disse então o cossaco, com o lábio
superior tremendo e palpitando sobre os dentes cintilantes. —
Gostaria de saber se lhe parece direito, num momento em que O
inimigo nos ataca de modo indescritível, dá golpes baixos, ata nos-
sas pernas como fardos e se enrosca nas mãos como serpentes,
agirmos com benevolência nessa hora fatal?
— Vejam o Ivan, bancando o comissário — gritou Korotkov,
o condutor do primeiro carro.
— Que é que há? — perguntou o médico, voltando-se, —
Que quer dizer com isso? Todos nós bancamos o comissário, Mas
é necessário fazer tudo de acordo com os regulamentos.
— Mas é que o nosso surdo ouve muito bem — protestou
Akinfiev, enrolando o chicote em seus dedos gorduchos. Depois,
começou a rir e piscou o olho para o diácono, que estava sentado
no seu carro, os ombros caídos e a cabeça trêmula.
— Bem, vão com Deus — gritou o médico, desesperado. —
Mas a responsabilidade é toda sua, Ivan.
— Estou de acordo e responsabilizo-me — replicou Akinfiev,
baixando a cabeça. — Fique à vontade — disse ao diácono, sem
se voltar. — Fique à vontade — repetiu o cossaco, segurando as
rédeas.
Os carros se colocaram em fila, um atrás do outro, e partiram
a galope pela estrada principal. À frente, Korotkov. Akinfiev, por

116
último, assobiava e agitava as rédeas. Assim seguiram por quinze
verstas. Ao anoitecer, porém, mudaram de rumo, devido a um
súbito ataque inimigo.
Naquele dia, 22 de julho, os poloneses desmantelaram nossa
retaguarda com rápidas manobras, precipitaram-se velozmente so-
bre a cidadezinha de Kozin e capturaram muitos soldados da
Décima Primeira Divisão. Os esquadrões da Sexta Divisão acorre-
ram para a área de Kozin, num contra-ataque. As fulminantes
manobras das unidades desarticularam o movimento dos carros
de transporte. Os carros do Tribunal Revolucionário ficaram qua-
renta e oito horas extraviados, vagando pelos ferventes campos
de combate, e apenas na terceira noite sairam pela estrada, por
onde se retirava o Estado-Maior da retaguarda. Foi nessa estrada
que eu os encontrei, à meia-noite.
Cheio de desespero, aproximei-me deles depois do combate
de Jotin, onde foi morto meu cavalo. Ao perdê-lo, subi numa
ambulância e fiquei recolhendo feridos até o anoitecer. Depois,
expulsaram do carro os homens ilesos e eu fiquei sozinho, junto
a um galpão em ruínas. À noite avançava sobre mim em grande
velocidade. O clamor dos carros de transporte enchia o universo.
Na terra, cortada de gemidos, as estradas se desfaziam. As estrelas
saíram rompendo o frio ventre da noite, aldeias perdidas acende-
ram suas luzes sobre o horizonte. Carregando minha sela nas
costas, comecei a andar por um atalho devastado, no campo, e
numa curva parei para satisfazer uma necessidade. Já aliviado,
quando abotoava minhas calças, senti uns salpicos na mão. Acendi
minha pequena lanterna, voltei-me e vi no chão o corpo de um
polonês empapado na minha urina. Um livrinho de notas e um
fragmento da proclamação de Pilsudski estavam ao lado do cadá-
ver. Na agenda estavam anotadas despesas pessoais, a enumeração
de peças representadas no teatro de Cracóvia e a data de aniver-
sário de uma mulher chamada Maria Luisa. Com a proclamação do
marechal Pilsudski, limpei a minha urina da cabeça do meu des-
conhecido irmão e prossegui encurvado ao peso da sela.
Naquele momento, ouvi um rangido de rodas.
— Alto! — gritei, — Quem está aí?
A noite avançava sobre mim a grandes passos, os incêndios
de combates distantes retorciam-se no horizonte,

117
— Os carros do Tribunal Revolucionário — respondeu uma
voz vinda das trevas.
Corri para a frente e colidi com um carro.
— Mataram meu cavalo — gritei, muito alto, — Ele se cha-
mava Lavrik.
Ninguém respondeu. Subi para o carro, coloquei a sela de-
baixo da minha cabeça e adormeci. Dormi até o amanhecer, re-
confortado pelo calor do feno em fermentação e o corpo de Ivan
Akinfiev, meu ocasional companheiro de carro. O cossaco acordou
depois de mim.
— Está amanhecendo, graças a Deus — ele disse. Tirou um
revólver de um caixote e disparou junto ao ouvido do diácono,
que estava sentado à sua frente e guiava os cavalos do carro.
Sobre sua enorme cabeça calva levantou vôo um tufo de cabelo
grisalho. Akinfiev atirou novamente junto ao outro ouvido e guar-
dou o revólver no coldre.
— Bom dia, Ivan — disse ao diácono, enquanto calçava as
botas .— Vamos comer alguma coisa?
— Escute — gritei —, o que é que você fez?
— O que faço ainda é pouco — respondeu Akinfiev, tirando
a comida. — Há três dias que ele finge comigo.
Então Korotkov, que eu conhecia do 31º Regimento, con-
tou, lá do primeiro carro, toda a história do diácono. Akinfiev
escutou atentamente, segurando a orelha, e depois tirou de baixo
da sela uma perna de boi assada. Estava coberta com uma estópa
e oculta pelo feno.
O diácono deslizou para junto de nós e cortou com um pe-
queno canivete a carne esverdeada. Deu a todos uma fatia. Termi-
nada a pequena refeição, Akinfiev guardou a perna de boi num
saco e ocultou-o sob o feno.
— Ivan — disse ele a Agguev — anda, com os diabos. De
qualquer modo temos que fazer uma parada, os cavalos estão
cansados.
Tirou do bolso um vidro de remédio e uma seringa de Tarnov,
que entregou ao diácono. Desceram do carro e afastaram-se cerca
de vinte passos, entrando num campo.
— Enfermeira — gritou Korotkov, do primeiro carro —, vire
os olhos para longe ou as exuberâncias de Akinfiev podem cegá-la.

118
— Eu já ia virá-los para você e para a sua cara de cavalo —
resmungou a mulher, voltando-se.
Akinfiev abaixou então as calças. O diácono ajoelhou-se atrás
dele e aplicou-lhe a injeção. Depois limpou a seringa com um
farrapo e olhou-a contra a luz. Akinfiev levantou as calças e, apro-
veitando o momento, colocou-se atrás do diácono e fez outro dis-
paro bem junto ao ouvido de Agguev.
— Para você, Ivan — disse, abotoando as calças.
O diácono deixou o frasco sobre a relva e levantou-se. Seu
cabelo suave esvoaçava,
— Eu vou prestar contas ao mais alto dos tribunais — dis-
se —, mas você, Ivan, não tem autoridade sobre mim.
— Hoje em dia somos juízes de todos — interveio o condu-
tor do segundo carro, um corcunda muito vivaz. — E condenamos
à morte com a maior facilidade.
— Seria muito melhor — disse Agguev, endireitando-se. —
Mata-me, Ivan.
— Não diga besteira, diácono — disse Korotkov, aproximan-
do-se dele. — Precisa compreender com que espécie de homem
você viaja. Se fosse outro, já teria torcido o seu pescoço, como a
um pato, sem nenhuma hesitação. Mas o que ele quer é chegar à
verdade e dar-lhe uma lição, padre sem batina.
— Seria muito melhor — repetiu o diácono, teimosamente,
aproximando-se. — Mata-me, Ivan.
— É você quem vai matar a si mesmo, desgraçado — repli-
cou Akinfiev, que ficou pálido e gaguejava. — Você mesmo vai
cavar a sua sepultura e enterrar-se nela.
Agitou os braços, rasgou o colarinho da camisa e caiu ao solo
num acesso de dor.
— Ai, pedaço do meu coração! — começou a gritar, desvai-
rado, jogando areia no rosto. — Ai, amargo pedaço do meu cora-
ção, poder soviético da minha alma.
— lvan — disse Korotkov, aproximando-se dele e pousando
com ternura a mão no seu ombro —, não fique tão desesperado,
meu amigo. Não se preocupe, vamos partir, Ivan.
Korotkov encheu a boca de água e borrifou Akinfiev. Depois
levou-o para o carro. O diácono voltou a sentar-se no lugar do
condutor e partimos.

119
Faltavam apenas duas verstas até a cidadezinha de Verbi.
Naquela manhã inúmeros carros de transporte tinham-se reunido
ali. Na cidade, amontoavam-se a 11º, a 14º e a 4.º divisões, Os
judeus, vestindo suas jaquetas e com ombros curvos, apareciam
nas portas de suas casas como pássaros sem plumas. Os cossacos
iam de casa em casa, recolhendo toalhas e comiam ameixas verdes.
Assim que chegamos, Akinfiev meteu-se no meio do feno e ador-
meceu. Eu peguei uma manta no carro e fui procurar um lugar
onde houvesse sombra. Mas os campos, de ambos os lados da
estrada, estavam cheios de excrementos. Um camponês barbudo,
portando óculos de aros de cobre e chapéu tirolês, lia um jornal,
a um canto. Olhou para mim e disse:
— Nós nos chamamos de seres humanos, mas sujamos tudo
pior do que os chacais. À terra está envergonhada.
E, ficando de costas, voltou a ler os jornal com os seus enor-
mes óculos.
Virei-me então para a mata, à esquerda, e vi o diácono que
vinha na minha direção.
— Aonde vai? — gritou-lhe Korotkov, do primeiro carro.
— Estirar um pouco as pernas — balbuciou o diácono e,
segurando a minha mão, beijou-a. — O senhor é um homem mui-
to bom — murmurou com trejeitos, trêmulo e respiração ofegante.
— Peço-lhe, senhor, que quando tiver um momento de folga escre-
va para a cidade de Kasinov, para que a minha mulher possa
chorar por mim.
— Você é surdo ou não é? — perguntei-lhe à queima-roupa.
— Perdão, senhor, o que disse? — interrogou, aproximando
o ouvido em minha direção.
— Você é surdo, Agguev, ou não é?
— Sim, sim, sou surdo — afirmou, apressadamente. — Há
três dias eu tinha um ouvido perfeito, mas o camarado Akinfiev
destroçou-o com seus disparos. Ele tinha a obrigação de me entre-
gar em Rovno, mas suponho que agora é possível que não mé
entregue. -
E, caindo de joelhos, o diácono rastejou, de cabeça baixa,
entre os carros. Depois, ficou de pé, saiu no meio das rédeas dos
cavalos e aproximou-se de Korotkov. Este lhe deu um pouco de
fumo, ambos enrolaram cigarros e os acenderam um para o outro.

120
— Assim está melhor — disse Korotkov, afastando-se e dan-
do um lugar a Agguev,
O diácono sentou-se e ficaram em silêncio.
Então Akinfiev acordou, Desenrolou a perna de boi e, com
um canivete, cortou a carne e entregou um pedaço para cada um.
À vista daquela carne podre, senti uma náusea súbita, desespero
e recusei a minha parte.
— Adeus, rapazes — eu disse. — Sigam em paz.
— Adeus — respondeu Korotkov.
Tirei a sela do carro e fui embora, podendo ouvir ainda os
murmúrios incessantes de Ivan Akinfiev.
— Ivan — dizia ele — você cometeu um grande erro, Ivan.
O meu nome devia ter causado horror, mas mesmo assim você
entrou no meu carro. Se tivesse saltado dele antes de tropeçar
comigo, poderia andar por aí à vontade, Mas agora você vai ver.
Quanto a isso, tenha certeza como dois e dois são quatro. Espere,
Ivan, e verá o que farei com você.

121
HISTÓRIA DE UM CAVALO
(continuação )

á quatro meses, Savitski, na época comandante de nossa di-


visão, tomou um cavalo branco de Jlebnikov, comandante
do Primeiro Esquadrão. Jlebnikov deixou o Exército, e hoje Savits-
ki recebeu dele a seguinte carta.
De Jlebnikov a Savitski:

Já não posso guardar nenhum rancor do exército de Budionni.


Aceito e compreendo meus sofrimentos nesse exército e guardo
a sua lembrança em meu coração, mais puro do que as coisas
sagradas. Quanto a você, camarada Savitski, herói universal,
as massas trabalhadoras da região de Vitebski, onde sou agora
o presidente do Comitê Revolucionário do Distrito, enviam
uma saudação proletária: “Viva a Revolução Mundial!” e
esperam que conduza o cavalo branco durante muitos anos,
seguindo estradas suaves, para o bem e a liberdade de todos
os que amamos e das repúblicas irmãs, nas quais precisamos
observar cuidadosamente as autoridades locais e as unidades
de distrito em tudo do ponto de vista da administração pú-
blica.

De Savitski a Jlebnikov:

Fiel camarada Jlebnikov,


A carta que me escreveu é de grande valor para a causa
comum, especialmente depois da sua estupidez, quando cego
pelo egoismo, deixou o nosso Partido Comunista Bolchevique.
O nosso Partido Comunista, camarada Jlebnikov, é uma férrea
organização de combatentes que dão o seu sangue nas pri-
meiras fileiras, c isto não é brincadeira: quando do ferro sai
sangue, camarada, trata-se de vencer ou morrer. O mesmo se
deve dizer a respeito da causa comum, cujo alvorecer não
espero contemplar, pois os combates são duros, e tenho de
trocar de comando a cada quinze dias. Há um mês venho
lutando na retaguarda, defendendo o invencível Primeiro

123
Exército de Cavalaria, e encontro-me cercado do fogo da
artilharia e da aviação inimigas. Tardi, Lijmannikov, Liko-
chenki, Guleivoi e Trunov estão mortos e não monto mais O
cavalo branço. Assim, de acordo com a sorte que muda
sempre na guerra, não espere ver mais o seu querido coman-
dante de Divisão, Savitski. Quem sabe, camarada Iebnikov,
nos encontremos, para falar com franqueza, no Reino de
Deus, embora corra por aí um boato de que o velho lá do
Céu não tem reino algum, c sim um verdadeiro bordel. E
como isso já existe na Terra, posso apostar que não nos
tornaremos a ver. Adeus, pois, camarada Jlebnikov.

124
A VIÚVA

peter o comandante do Regimento, estava agonizante num


carro-ambulância. Aos seus pés permanecia sentada uma
mulher, A noite, iluminada pelos reflexos dos bombardeios, incli-
nava-se sobre o moribundo. Levka, o condutor do carro do coman-
dante, esquentava a comida numa panela, e suas suíças pendiam
sobre o fogo. Os cavalos amarrados faziam estalar os arbustos no
meio do mato. Levka mexia a panela com um graveto e dizia a
Sheveliov, estendido no carro aberto:
— Pois eu, camarada, trabalhei na cidade de Tiumrek, fa-
zendo acrobacias a cavalo, e fui também campeão de peso-pena.
Uma pequena cidade, claro, torna-se aborrecida para as mulheres
e, assim que me viam, me rodeavam: “Lev Gravrilich, que tal
uma refeição à la carte? Não recuse, pois não se arrependerá do
tempo perdido”. Fui com uma delas a um restaurante. Pedimos
duas porções de vitela e meia garrafa de vinho, sentamo-nos em
silêncio e começamos a beber. Mas eis que se aproxima um certo
cavalheiro, bem vestido e com ar muito respeitável, mas notei que
era uma pessoa provocadora, além de estar bêbado.
— Perdão — disse ele —, qual é a sua nacionalidade?
— Por qual motivo pergunta a minha nacionalidade, meu
senhor, principalmente agora que estou na companhia de uma
senhora,
E ele:
— Que espécie de atleta você é? Na luta francesa, um tipo
como você fica logo em nocaute. Vamos, diga qual a sua naciona-
lidade.
Mas, apesar de tudo, eu não estava disposto a me bater com
ele.
— Por que você, não sei o seu nome, não o conheço — eu
disse —, está procurando complicações? O que pode resultar é
que um de nós venha esticar as botas aqui mesmo ou, em outras

125
palavras, entregar a alma a Deus. Sim, entregar a alma a Deus —
repetiu Levka, muito agitado, erguendo as mãos para o céu, en-
quanto a noite o envolvia, como um nimbo. Um vento incessan-
te — a fresca brisa noturna — enchia de sons a noite e embalava
as almas. As estrelas brilhavam na escuridão como alianças de
casamento e cintilavam nos cabelos de Levka.
— Lev — murmurou de repente Sheveliov com os lábios já
azulados —, vem cá. O que houver aqui em ouro será de Sacha —
ordenou o ferido. — Os anéis, os arreios, tudo é para ela. Vivemos
juntos da melhor maneira que pudemos... quero recompensá-la.
Minha farda, calças e a condecoração por heroísmo, envia tudo
para minha mãe, no Terek. Mande tudo com uma carta e nela
escreva o seguinte: “O comandante envia suas saudações. Não
chore. A casa lhe pertence, velha senhora, assim poderá continuar
vivendo. Se alguém lhe causar dificuldades, vá até Budionni e
diga: 'Sou a mãe de Sheveliov'”. O meu cavalo Abramka dou de
presente ao regimento, para que minha alma descanse em paz”.
— Sim, entendi que é para entregar o cavalo ao regimento —
murmurou Levka, agitando os braços ao redor. — Sacha — gri-
tou à mulher —, ouviu o que ele disse? Agora declare diante dele:
vai dar ou não à velha senhora aquilo que ela tem direito?
— A mãe dele que vá para o inferno — respondeu Sacha, e
saiu correndo em direção à floresta, com as mãos estendidas, como
uma pessoa cega.
Levka, no entanto, alcançou-a e agarrou-a pelo pescoço,
— Vai entregar ou não a parte da desvalida? Vamos, diga
diante dele.
— Entrego, sim. Deixe-me em paz.
Tendo forçado a promessa de Sacha, Levka tirou a panela
do fogo e começou a colocar um pouco de sopa na boca entreaberta
do moribundo. A sopa de couve escorria pelo rosto de Sheveliov
e a colher batia contra os seus dentes cintilantes. Enquanto isso,
as balas zuniam cada vez mais alto, com um som melancólico no
denso espaço da noite.
— (Os canalhas disparam com os rifles — disse Levka.
— Patites aristocratas — replicou Sheveliov. — São as me-
tralhadoras que estão abrindo um buraco no nosso flanco direito.
Fechou os olhos c, com a dignidade majestosa de um herói
subindo ao cadafalso, escutava os sons do combate com as suas

126
grandes e azuladas orelhas. Ao seu lado, Levka mastigava a carne
da sopa. Terminando de comer, lambeu os lábios e levou Sacha
para bem longe do carro.
— Sacha — disse, firmemente, gesticulando muito —, como
se estivesse diante de Deus, digo-lhe: estamos todos cheios de
pecados. Fique sabendo que só se vive e só se morre uma Vez.
Por amor a Deus, Sacha, entregue os bens da velha senhora. Os
seus dias podem terminar logo, Sacha, mas os dias de Deus não
têm fim.
Sentaram-se no chão. Apontando atrás das nuvens, uma lua
preguiçosa iluminou os joelhos de Sacha.
— Vocês estão conversando — ouvia-se o murmúrio de She-
veliov — e entretanto, veja bem, o inimigo acossa a 19.º Divisão.
Levka continuava a conversar com Sacha. A lua nevoenta
errava pelo céu, como uma mendiga. Flutuava no ar o som lon-
gínguo do tiroteio. Os caules nus dos arbustos rumorejavam sobre
a terra inquieta e as estrelas de agosto caíam sobre a relva,
Depois, Sacha voltou para o lado do comandante e começou
a tirar os curativos do ferido, erguendo uma pequena lanterna
sobre a ferida gangrenada.
— Amanhã você vai estar morto — disse, enxugando o suor
frio do corpo de Sheveliov. — Amanhã estará morto, porque leva
a morte em suas entranhas.
Naquele momento, uma compacta e forte explosão abateu-se
sobre a terra. As quatro novas brigadas enviadas pelo comando
unido inimigo tinham lançado o seu primeiro projétil sobre Bush,
rompendo nossas comunicações e enchendo de fogo a linha divi-
sória do rio Bug. Grandes incêndios levantaram-se no horizonte
e pesadas bombas voaram entre as chamas,
Bush ardia e Levka fugiu pelo bosque no bamboleante car-
ro do comandante da Sexta Divisão. Puxava as rédeas dos animais,
tropeçava e o carro batia nos tocos de árvores com as rodas la-
queadas. O carro-ambulância de Sheveliov seguia atrás, dirigido
cuidadosamente por Sacha, com os cavalos quase soltando-se dos
arreios.
Assim chegaram aos limites da floresta, onde estava o posto
de emergência. Levka desatrelou os animais e foi pedir uma manta
ao médico militar. Tomou a estrada da floresta, totalmente blo-
queada de carros. Viu corpos de soldados debaixo dos carros,

127
cujos casacos de peles de ovelhas brilhavam à luz do alvorecer.
Com as botas largadas no chão, eles dormiam, as pupilas voltadas
para o céu e as bocas contorcidas.
O encarregado do posto médico tinha uma manta. Levka
voltou para junto de Sheveliov, beijou-o na fronte e cobriu-o da
cabeça aos pés. Então Sacha aproximou-se e atou um lenço debaixo
do queixo do morto.
— Sheveliov — exclamou — meu Jesus Cristo! — e deitou-
se ao lado do morto, ocultando-o com seu enorme corpo.
— Sofre muito — disse Levka. — Ninguém poderá dizer
que não viveram bem um com o outro. Agora ela terá de procurar
outro em todo o esquadrão. É muito duro.
E dirigiu-se a Bush, onde estava acampado o Estado-Maior
da Sexta Divisão de Cavalaria.
Ali, a dez verstas da cidade, lutávamos contra os cossacos de
Sanikov. Os traidores estavam sob o comando do capitão Yakovlev,
que havia passado para os poloneses. Combatiam valorosamente.
O comandante da Divisão estava com as tropas há quase
quarenta e oito horas. Como não o encontrou no Estado-Maior,
Levka voltou para seu próprio alojamento. Limpou os cavalos,
lavou as rodas do carro e deitou-se para dormir num celeiro abarro-
tado de feno recém-ceifado, de um violento perfume. Dormiu bas-
tante; depois, foi comer. Sua hospedeira lhe deu batatas cozidas
regadas com leite coalhado. Levka já se encontrava à mesa quan-
do soaram na rua o clamor de trombetas fúnebres e o ruído dos
cascos de cavalos. O esquadrão passava pela tortuosa rua galicia-
na, com estandartes e clarins. O corpo de Sheveliov, colocado
sobre a carreta de artilharia, estava coberto de bandeiras. Sacha
cavalgava atrás do féretro no cavalo de Sheveliov; uma canção
cossaca ressoava das últimas fileiras.
O esquadrão passou pela rua principal e voltou-se em direção
ao rio. Então Levka, descalço e sem boné, começou a correr atrás
do destacâmento e segurou pela rédea o cavalo do comandante.
Nem o comandante, que se deteve na encruzilhada para ren-
der honras ao comandante morto, nem os soldados ouviram o que
Levka dizia ao comandante do Esquadrão.
— As calças... — mas o vento dispersava a maior parte
das palavras — ...a mãe no Terek.

128
Ouviamos os seus gritos desconexos. Sem escutá-lo, o coman-
dante do Esquadrão fez, com um arranco, ele soltar a rédea, €
apontou para Sacha. A mulher balançou a cabeça e prosseguiu.
Então Levka saltou na garupa do cavalo de Sacha, puxou-lhe a
cabeça para trás e deu-lhe um soco no rosto. Sacha enxugou O
sangue com a saia e continuou seu caminho. Levka desceu do
animal, lançou para trás o tufo de cabelos e atou um lenço ver-
melho na cintura, enquanto as lamentosas trombetas conduziam
o esquadrão à frente, seguindo a margem cintilante do Bug.
Logo Levka voltou para junto de nós e, com olhos brilhantes,
gritou:
— Dei a ela o que merecia. “Vou mandar tudo para a mãe
dele, quando convier”, ela me disse. “Quanto à sua memória, basta
eu para a recordar”. Está bem, não esqueça, não esqueça, maldita
víbora, se esquecer vou fazê-la lembrar dele novamente, e se esque-
cer ainda outra vez, continuarei a fazê-la lembrar...

129
ZAMOSTIE

comandante da Divisão e seu Estado-Maior estavam acam-


pados num campo de trigo recém-ceifado, a três verstas de
£amostie. As tropas tinham a missão de atacar a cidade naquela
noite. A ordem era para que pernoitássemos em Zamostie, e o
comandante esperava informações sobre a vitória.
Chovia. Sobre a terra encharcada soprava o vento e caíam
as trevas. Nuvens negras mergulhavam as estrelas na escuridão.
Exaustos, nossos cavalos resfolegavam e moviam inquietos as patas,
no negrume da noite. Não havia nada para lhes dar. Atei as ré-
deas do cavalo na minha perna, envolvi-me no capote e deitei-me
numa valeta cheia de água. A terra empapada ofereceu-me a suave
carícia do túmulo. O cavalo puxou as rédeas e arrastou-me pela
perna. Tinha encontrado uma moita de relva e começou a pastar.
Então, adormeci e sonhei com um celeiro coberto de feno.
Acima, o rumor da debulha. Espigas de trigo dourado voavam pelo
céu, o sol de julho inclinava-se sobre a aldeia, com uma luz
radiosa. Eu estava estendido num leito, em silêncio, e a carícia
do feno em minha nuca fazia-se enlouquecer de desejos. Depois,
a porta do celeiro abriu-se com um rangido e uma mulher, vestida
a rigor, aproximou-se de mim. Tirou o seio da renda negra do
sutiã e ofereceu-o com muito cuidado, como uma ama-de-leite.
Abraçou-me bem forte e um suave calor revolveu as profundezas
de minha alma, enquanto gotas de suor — vivo e excitante — fer-
viam entre nossos corpos.
— Margot — queria cu gritar —, a terra arrastame pela
corda de suas calamidades, como um cão peçonhento. Mas, apesar
de tudo, eu a vi, Margot.
Queria gritar tudo isso, mas a minha boca, petrificada por
súbito frio, não se abria.
Então, a mulher se afastava de mim e caía de joelhos.
— Jesus! — dizia. — Recebe a alma de teu falecido servo.

151
Depois colocava duas velhas moedas de cinco copeques so-
bre minhas pálpebras e enchia de feno aromático a boca aberta.
Em vão meu grito forcejava para sair da boca fechada, as pupilas
desfalecidas giravam lentamente debaixo das peças de cobre, e eu
não podia afastar os meus braços... despertei.
Um camponês de barba emaranhada estava diante de mim,
com um rifle na mão. O céu contornava a barra negra do lombo
do cavalo, e minha perna agitava-se, amarrada pelo nó corrediço
das rédeas.
— Você adormeceu, camarada — disse o camponês, e sorriu
«com olhos insones. — Seu cavalo o arrastou por quase meia versta.
Desfiz o nó das rédeas e levantei-me. O sangue escorria-me
pelo rosto, arranhado pela vegetação espinhosa da estepe.
Ali, a dois passos, encontrava-se a nossa linha de frente. Eu
podia ver as chaminés de Zamostie, as luzes furtivas dos recantos
do seu gueto, o posto da sentinela com sua lanterna quebrada.
O frio orvalho da manhã caía sobre nós, como ondas de clorofór-
mio, e foguetes verdes ziguezagucavam sobre o acampamento po-
lonês. Explodiam no ar, desabrochavam como rosas sob a lua €
apagavam-se.
E, no meio do silêncio, pude ouvir o som longínquo de um
gemido. A sombra de um assassinato secreto nos rodeava.
— Estão matando alguém — disse eu. — Quem será?
— Os poloneses, loucos de medo — respondeu o camponês
— estão assassinando os judeus.
O camponês passou o rifle da mão direita para a esquerda.
A sua barba pendia para um lado enquanto me olhava afetuosa-
mente. Ele disse:
— Como são longas essas noites na linha de frente. Parecem
que não têm fim. Temos vontade de conversar com outra pessoa,
mas onde encontrar alguém?
O homem fez-me acender um cigarro na ponta do seu.
— Os judeus levam a culpa por tudo — disse — quer de um
lado quer de outro. Depois da guerra, ficará um número muito
reduzido deles. Quantos judeus há no mundo?
— Dez milhões — respondi, e comecei a arrear o cavalo.
— Restarão apenas duzentos mil! — exclamou o camponês,
tocando-me no braço, como se receasse que eu fosse embora. Mas
subi no animal e galopei ao encontro do Estado-Maior.

152
O comandante da Divisão preparava-se para partir. Às orde-
nanças estavam diante dele em posição de sentido, mas cochilavam
em pé. Os esquadrões, desmontados, deslizavam pelas colinas en-
charcadas de chuva.
— Os malditos estão apertando o cerco — murmurou o co-
mandante, e partiu a cavalo.
Nós o seguimos pela estrada que levava a Sitanets.
Voltou a chover forte. Ao longo da estrada boiavam ratos
mortos. O outono tinha emboscado o nosso coração e as árvores,
como cadáveres nus, eretos, balançavam-se nas encruzilhadas,
Chegamos a Sitanets pela manhã. Eu estava em companhia
de Volkov, o intendente do Estado-Maior. Ele encontrou uma casa
livre para nós, nos arredores da cidade.
— Vinho — disse eu à hospedeira —, vinho, carne e pão!
A velha estava sentada no chão, dando comida a um vitelo
escondido sob a cama.
— Não tenho nada — respondeu com indiferença — e já
nem me lembro da época em que tive alguma coisa.
Sentei-me à mesa, tirei o revólver e adormeci. Um quarto de
hora depois abri os olhos e vi Volkov inclinado sobre o parapeito
da janela. Escrevia uma carta à sua noiva.
“Cara Valia, lembra-se de mim?”
Li a primeira linha, depois tirei o fósforo do bolso e ateei
fogo a um monte de palha que havia no chão. A chama cresceu e
arremessou-se em minha direção, A velha deitou-se sobre o fogo
E apagou-o com o próprio corpo.
— Que está fazendo, pan? — gritou, afastando-se, horrori-
zada.
Volkov virou-se, fixou nela um olhar vago e novamente se
ocupou da sua carta.
— Vou queimá-la, velha — murmurei, caindo de sono. —
Vou queimar você e o seu vitelo roubado.
— Espera! — gritou a mulher, com voz aguda,
Correu em direção ao corredor de entrada e logo voltou com
uma jarra de leite e pão.
Não tínhamos comido ainda nem a metade do que a velha
trouxera quando soaram disparos no pátio. Muitos tiros. Continua-
ram a estalar durante muito tempo até nos aborrecer. Acabamos
de tomar o leite, e Volkov saiu para ver o que estava acontecendo.

133
EC
is a id

— Selei o seu cavalo — disse-me, através da janela. — O


meu foi crivado de balas. Os poloneses estão colocando suas me-
tralhadoras a cem passos daqui.
Restava apenas um cavalo para os dois. Eu montei na sela;
Volkov na garupa. O animal levou-nos com dificuldade até Sita-
neis.
Os carros de transporte partiam, ruidosamente, afundando
na lama. A manhã evaporava-se como clorofórmio sobre a mesa
de hospital.
— Você é casado, Liutov? — perguntou de repente Volkov,
na garupa do cavalo.
— A minha mulher me abandonou — respondi e, meio ador-
mecido por alguns instantes, sonhei que estava dormindo numa
cama.
Silêncio.
Nosso cavalo tropeçou.
— Essa égua vai cair exausta antes de percorrer duas verstas
— disse Volkov,
Silêncio.
— Perdemos a campanha — murmurou Volkov, e pôs-se a
roncar.
— Sim — respondi.

134
,

A TRAIÇÃO

amarada juiz Burdenko:


Respondendo à sua pergunta, informo-lhe que o meu número
no Partido é o 2.400, emitido em nome de Nikita Balmachev pelo
Comitê do Partido de Krasnodar. A minha vida até 1914, posso
classificá-la de doméstica, pois trabalhei com meus pais no cultivo
do trigo. Da agricultura passei às fileiras dos imperialistas para
defender o cidadão Poincaré e os carrascos da Revolução Alemã,
Ebert-Noske', que pareciam dormir e viram em seus sonhos uma
maneira de socorrer a minha aldeia natal, Santo Ivan, no distrito
de Kuban. Assim eu me arrastava até que o camarada Lênin e o
camarada Trotsky fizeram mudar de rumo a minha enfurecida
baioneta, indicando outros intestinos e vísceras mais predestinados
e merecedores de atenção. Desde então tenho o número 2.400 gra-
vado na ponta da minha vigilante baioneta e para mim foi o má-
ximo do absurdo ouvir um absurdo como o que você conta acerca
do incrível hospital de N., camarada juiz Burdenko. No citado
hospital eu não atirei nem ataquei ninguém, e isso não seria possi-
vel. Nós, três homens feridos, ou seja, o soldado Golovitsin, o
soldado Kustov e eu, estávamos exaltados, febris, mas não atira-
mos contra o hospital. Apenas gritamos no meio do pátio, vesti-
dos com nossas batas de enfermos, no meio da população civil,
de nacionalidade judia. Quanto ao estrago de três vidros, quebra-
dos por nós com o revólver de um oficial, digo-lhe francamente
que esses vidros não serviam ao seu objetivo, pois ficavam no
depósito, onde não serviam para nada. E quando o doutor Yavein
ouviu as nossas amargas salvas de tiros, apenas riu com diversos

| Fricdrich-Ebert (1871-1925), lider dircitista da socialdemocracia alemã.


Pactuou secretamente com os altos comandos militares para esmagar à
revolução, Presidente da Alemanha de 1919 a 1925: Gustav Noske (1868-
1946), lider da direita social-democrata alemã. Ministro da Guerra de
1919 a 1920. [Nota da edição portuguesa.)

135
sorrisos da janela do hospital, o que podem confirmar os já citados
judeus da cidade de Kozin. Sobre o doutor Yavein, digo mais, ca-
marada juiz: quando ele viu os três feridos, ou seja, Golovitsin,
Kustov e eu, em busca de tratamento, zombou de nós. Logo nas
primeiras palavras, declarou com muita grosseria: “Vão imediata-
mente tomar um banho, tirar as roupas e as armas. Tenho muito
medo de contágio. Já, já, para o depósito”. Então, vendo diante
de si uma fera, pois aquilo era uma fera e não um ser humano,
Kustov mostrou sua perna partida e perguntou que espécie de con-
tágio poderia haver num afiado sabre de Kuban, a não ser para
os inimigos da Revolução, e interessou-se também em saber o que
era o depósito e se o encarregado ali era um combatente do Parti-
do. Então, o doutor Yavein percebeu que nós éramos capazes de
compreender o que era uma traição. Voltou as costas e sem dizer
mais uma palavra, mas sempre sorrindo, mandou-nos a uma enfer-
maria, onde entramos coxeando, arrastando as pernas feridas, com
os braços mutilados, e ajudando-nos uns aos outros, pois somos
da mesma aldeia de Santo Ivan, os três, ou seja, Golovitsin, Kustov
e eu; somos da mesma terra, com o mesmo destino, de modo que
o que tem a perna partida ajuda o camarada com o braço e o que
perdeu o braço apóia-se no ombro do companheiro. Assim, de
acordo com ordem recebida, entramos na enfermaria, onde esperá-
vamos encontrar um trabalho de educação e lealdade à Causa, mas
o que imagina que vimos ao entrar na enfermaria? Vimos soldados
do Exército Vermelho, todos da infantaria, sentados em camas
bem arrumadas jogando xadrez, e enfermeiras, altas, alinhadas e
elegantes, exibindo-se nas janelas. Ao ver aquilo, paramos como
se tivéssemos atingidos por um raio.
— Por acaso terminou a guerra, rapazes? — perguntei aos
feridos.
— Creio que sim — responderam, enquanto moviam as pe-
ças do jogo, feitas com migalhas de pão.
— Então terminaram muito cedo — eu disse — e isso quan-
do o inimigo está a quinze verstas da cidade e quando O Cavala-
riano Vermelho diz que a nossa situação internacional é terrível e
que o horizonte está carregado de nuvens.
Mas as minhas palavras resvalaram sobre a heróica infantaria
como esterco de ovelhas sob rodas dos carros de transporte, e o
resultado de tudo foi que as enfermeiras nos levaram para as camas

136
e começaram a insistir para que entregássemos as nossas armas,
como se já tivéssemos sido vencidos. E tudo isso transtornou Kustov
a tal ponto que começou a mexer no ferimento no ombro esquer-
do, o ferimento sobre seu coração de soldado e proletário. Ao
ver o desespero do soldado, as enfermeiras calaram-se, mas por
curto espaço de tempo. Logo recomeçaram as suas zombarias,
próprias das massas sem partido, e começaram a pedir aos outros
soldados para que viessem tirar nossas roupas, enquanto cochilá-
vamos, ou para que nos obrigassem, como tarefa cultural, a re-
presentar uma peça de teatro vestidos de mulher, o que não é
decente.
Essas irmãs são de caridade diabólica! Para tirar nossas rou-
pas, tentaram mais de uma vez nos adormecer com soporíferos,
por isso, resolvemos descansar com um olho aberto, vigiando por
turnos, e quando tínhamos de ir à privada, para a menor necessi-
dade, íamos sempre de uniforme completo, inclusive o revólver.
Assim, depois de termos sofrido durante uma semana, começamos
a ter delírios e visões até que, finalmente, no amanhecer do dia
da acusação, 4 de agosto, notamos a nossa transformação: vestia-
mos batas numeradas como presidiários, sem armas e sem as
roupas tecidas por nossas mães, frágeis mulheres de Kuban. Vi-
mos que lá fora brilhava um sol maravilhoso e que a infantaria
das trincheiras, no meio da qual três soldados vermelhos haviam
passado por tantos sofrimentos, zombava de nós com apoio das
desalmadas enfermeiras, que nos tinham dado pós na noite ante-
rior e que agora sacudiam seus peitos jovens e nos traziam cho-
colate em pratos como se fosse para tomar banho, Quando começou
a brincadeira, os soldados da infantaria batiam com suas muletas
no chão, fazendo um barulho ensurdecedor e nos beliscavam nas
costas, como se fôssemos mulheres livres, parecendo que queriam
dizer que o Primeiro Exército de Cavalaria de Budionni já estava
fora de combate. Não está não, camaradas de cabelos encaracola-
dos, comilões, donos de barrigas desreguladas que à noite soltavam
gases iguais a metralhadoras — a Cavalaria não está fora de com-
bate. Pedimos licença por um momento, como se fosse para ir à
privada, saímos e nos precipitamos para o pátio. Os três, ali, exci-
tados e febris, com os ferimentos abertos. Depois, nos dirigimos
ao cidadão Boiderman, presidente do Comitê Revolucionário local,
sem o qual, camarada juiz Burdenko, é muito possível que não

137
tivesse havido esse mal-entendido do tiroteio. Embora não tenha-
mos nada a dizer precisamente contra o cidadão Boiderman, o fato
é que ao entrar no seu gabinete notamos que se tratava de um
senhor já entrado nos anos, com capote, de nacionalidade judia
e sentado atrás de uma mesa cheia de papéis, uma bagunça que
causava horror. O cidadão Boiderman olhava de um lado para
outro e era evidente que não sabia o que fazer com aqueles papéis,
estava farto deles, sobretudo quando soldados desconhecidos, em-
bora dignos, dirigiam-se ao Comitê Revolucionário com olhares
sinistros, em busca de favores, ao mesmo tempo, operários locais
vinham denunciar-lhe os contra-revolucionários das aldeias da ime-
diações e vinham, em seguida, operários locais que desejavam ca-
sar-se no Comitê Revolucionário local, com a maior rapidez. Tam-
bém nós expusemos com voz forte o caso de traição no hospital,
mas o cidadão Boiderman limitou-se a nos olhar fixamente, voltan-
do depois a vista para lá e para cá e a nos dar palmadinhas nas
costas, o que é sinal de falta de autoridade e até indigno de um
representante do governo, Não fez passar nenhuma resolução e
apenas disse: “Camaradas combatentes, se têm algum afeto pelo
Poder Soviético, abandonem o prédio”. Nisso não podíamos estar
de acordo, quer dizer, em abandonar o local, mas insistimos para
que ele fizesse um relatório detalhado do caso e, como ele não fez
nada, perdemos a cabeça e foi aí que saímos para a praça em
frente ao hospital, desarmamos a polícia, composta apenas por um
homem da cavalaria, e destruímos, com lágrimas nos olhos, os
mesquinhos vidros do já citado depósito, Perante esse fato inad-
missível, o doutor Yavein não fez mais do que zombarias, e isso
num momento em que o camarada Kustov estava tão doente que
morreu quatro dias depois!
Em sua breve vida de soldado vermelho, o camarada Kustov
sempre teve uma preocupação sem limites com a traição, que
algumas vezes nos espia pela janela, outras zomba do inculto
proletário, mas o proletariado, camarada juiz, sabe que isso ofen-
de e dói muito, e que a alma queima por isso e rasga com fogo
a prisão do corpo.
A traição, digo-lhe camarada juiz Burdenko, zomba de nós
através das janelas, a traição entra descalça em nossa casa, a trai-
ção tira as botas para que não chiem as tábuas do soalho da casa
assaltada.

138
CHESNIKI

Sexta Divisão estava concentrada na floresta, nos arredores


da aldeia de Chesniki, e esperava o sinal de ataque. Mas,
Pavlichenko, comandante da Divisão, aguardava a chegada da Se-
gunda Brigada e não dava o sinal. Então, Vorochilov aproximou-se
de Pavlichenko e, colocando a cabeça do cavalo no seu peito,
disse:
— Vamos em frente, camarada, estamos perdendo tempo.
— A Segunda Brigada — respondeu Pavlichenko com voz
apagada — dirige-se para o lugar assinalado, de acordo com as
ordens.
— Vamos em frente, comandante — disse ainda Vorochilov,
puxando as rédeas do animal,
Pavlichenko deu um passo para trás.
— Tenha consciência — gritou torcendo os dedos úmidos —,
tenha consciência e não me apresse, camarada Vorochilov,
— Como não ter pressa? — murmurou Klim Vorochilov,
membro do Conselho Revolucionário Militar, e fechou os olhos.
Montado em seu cavalo, Vorochilov movia os lábios em si-
lêncio. Um cossaco com sandálias de corda, que levava um cânta-
ro, olhou-o perplexo. Esquadrões a galope enchiam a floresta de
ruído, como o sopro forte do vento, e quebravam os galhos dos
arbustos com a força peitoral dos animais. Vorochilov passava a
sua Mauser sobre as crinas do seu cavalo.
— Comandante-chefe — gritou, voltando-se para Budionni
— faça um discurso para animar os soldados. Os poloneses estão
ali sobre a colina, como um quadro, zombando de nós.
Realmente, os poloneses podiam ser vistos com o binóculo.
Os membros do Estado-Maior montaram a cavalo e os cossacos
começaram a correr de todos os lados.
Ivan Akinfiev, antigo cocheiro do Tribunal Revolucionário,
passou ao meu lado e tocou-me com o estribo.

159
— Você no front, Ivan? — perguntei, — E cada vez mais
magro.
— Vá para o diabo — respondeu Akinfiev, que montava um
pouco de lado. — Deixa-me ouvir o que esse homem está dizendo.
Seguiu em frente, passou no meio dos soldados e ficou junto
de Budionni. Este estremeceu, mas falou tranquilamente:
— As coisas vão mal, rapazes, é preciso pôr mais energia
nisso.
— A caminho de Varsóvia — gritou o cossaco das sandálias
de cordas e do cântaro, revirando os olhos e brandindo no ar o
seu sabre.
— A caminho de Varsóvia — gritou também Vorochilov,
fazendo seu cavalo erguer as patas dianteiras e, depois, precipitan-
do-se para o centro dos esquadrões.
— Soldados e comandantes — gritou Budionni, apaixonada-
mente. — Em Moscou, na antiquíssima capital, vive e luta um
poder inteiramente novo. O governo operário e camponês, o pri-
meiro do mundo, exorta-nos, a nós, soldados e comandantes, que
ataquemos o inimigo e alcancemos a vitória.
— Sabres em posição de combate! — clamou Pavlichenko,
cuja voz parecia vir de muito longe. Postado atrás do comandante,
seus lábios grossos e rubros espumavam. O capote curto e verme-
lho do comandante estava em farrapos, e seu rosto gordo, mutila-
do, era repulsivo. Com a folha de sua enorme espada saudou
Vorochilov.
— De acordo com o dever que impõe o juramento revolucio-
nário — disse o comandante da Sexta Divisão com a voz rouca,
olhando à sua volta —, comunico ao Conselho Revolucionário
Militar do Primeiro Exército de Cavalaria que a invencível Se-
gunda Brigada de Cavalaria aproxima-se a trote do lugar combi-
nado.
—Avante — clamou Vorochilov, fazendo um gesto com a
mão. Puxou as rédeas, e Budionni cavalgou ao seu lado. Ambos
montavam grandes éguas castanhas e seguiam, juntos, com idênti-
cos uniformes brancos e calças de listas prateadas. Os soldados
precipitaram-se atrás deles com um coro de gritos de guerra e O
pálido aço dos sabres cintilou na pouca generosidade do sol outo-
nal. Não senti unanimidade no clamor cossaco e, à espera do

140
ataque, dirigime para as profundezas da floresta, onde estavam
estacionados os carros de provisões.
Ali, jazia ferido, delirando, um oficial do Exército Vermelho.
Stepka Duplischev, um rixento garoto cossaco, escovava os pêlos
de; Huracan, um cavalo puro-sangue que pertencia ao comandante
da Divisão e era descendente de Liuliucha, a égua famosa por
seus recordes em Rostov. Sempre delirando, o ferido recordava,
em palavras entrecortadas, de sua infância na cidade de Shue, de
uma vaca c algo parecido com plantações de linho, ao passo que
Duplischev, sobrepondo a voz aos murmúrios lamentosos do outro,
entoava a canção cujo tema era a gorda mulher do general e uma
ordenança. Cantava cada vez mais alto, agitando com força a
escova no lombo do animal, Mas foi interrompido por Sacha, a
gorducha Sacha, namorada de todos os soldados dos esquadrões,
que se aproximou do rapaz e desceu da sua égua.
— Como é, vamos fazer o negócio?
— Vá embora —- respondeu Duplischevy e voltando-lhe as
costas, pôs-se a entrelaçar algumas fitas nas crinas de Huracan.
— Você mantém a palavra — indagou Sacha — ou não
passa de um pau-mandado?
— Vá embora — repetiu Stepka, — Claro que sou dono da
minha palavra.
Entrelaçou todas as fitas nas crinas do garanhão e, de re-
pente, gritou-me com desespero:
— Veja você, Kiril Vasilich, preste um pouco de atenção €
veja a que ponto Sacha me persegue. Há um mês inteiro venho
suportando tudo. Para qualquer lado que me volte, ela está aí.
Para qualquer lugar que eu vá, ela é a barreira em meu caminho.
Quer porque quer usar o garanhão. E isso quando o comandante
me lembra diariamente: “Com um reprodutor assim, muita gente
virá com agrados para pedir-lhe o animal, mas não deixe que ele
cubra éguas antes dos quatro anos”.
— Duvido que você aos quatorze anos tenha coberto uma fê-
mea, garoto desgraçado — murmurou Sacha, voltando-lhe as cos-
tas. — Mas mesmo aos quinze anos não servirá para nada. Cala-te
boca...
Dirigiu-se à sua égua, apertou a cilha da sela e montou. As es-
poras tilintavam-lhe nos sapatos, as meias estavam salpicadas de
lama e pedaços de feno, e seus seios enormes pendiam até a cintura.

141
— E eu vim até aqui com um rublo — disse Sacha, como se
falasse para si mesma, colocando um pé no estribo. — Trouxe-o,
mas parece que vou levá-lo de volta.
A mulher pegou duas moedas de cinquenta copeques, novi-
nhas, colocou-as sobre a palma da mão aberta e voltou a guardá-
las no seio.
— Vamos fechar o negócio, então? — resolveu afinal Du-
plischev, com os olhos fixos nas moedas e já conduzindo o gara-
nhão para próximo da mulher.
Sacha escolheu um terreno inclinado e deixou ali a sua égue
— Parece que você é a única pessoa do mundo que tem um
bom reprodutor — disse ela a Stepka, enquanto conduzia Hura-
can. — Acontece que a minha égua está no Exército e há dois
que não é acasalada. Por isso, pensei, agora é uma rara oportuni-
dade de conseguir dela um cavalo de boa raça.
Sacha esperou terminar o cruzamento dos animais e, depois,
levou a égua para um lado.
— Bem, agora você está saciada, menina = murmurou, bei-
jando o focinho úmido da égua, do qual pingava finos fios de
saliva. Depois, encostou-se ao lombo do animal é começou a pres-
tar atenção ao ruído que percorria a floresta.
— É a Segunda Brigada que passa a galope — disse Sacha,
com ar severo, e voltou-se para mim, — É hora de ir embora,
Liutich.
— Quer a Segunda Brigada passe ou não, quero o meu di-
nheiro — gritou Duplischev, já bem nervoso.
— Você pensou que eu ia pagar por isso, rapazinho? —
retrucou Sacha, montando a égua.
Montei a cavalo e segui atrás dela, a galope. Atrás de nós,
soavam os gritos de Duplischev, juntamente com o longínquo es-
talido de um tiro.
— Esperem um pouco! — clamava o jovem cossaco, cor-
rendo pela floresta o mais rápido que podia.
O vento saltava entre os ramos, como uma lebre apavorada.
A Segunda Brigada passava célere entre os carvalhos galicianos en-
quanto a poeira trangúila do bombardeio se elevava sobre a terra
como a fumaça da chaminé de uma pacífica casa. E, ao sinal do
comandante da Divisão, partimos para o ataque, o inesquecível
ataque a Chesniki.

142
DEPOIS DO COMBATE

A história de minha disputa com Akinfiev é a seguinte:


No dia 31 aconteceu o ataque a Chesniki. Os esqua-
drões estavam concentrados na floresta próxima à aldeia e, às seis
horas da tarde, lançaram-se contra o inimigo, que nos esperava
numa colina, a três verstas de distância da estrada. Galopamos as
três verstas em animais extremamente exaustos e, ao subir a colina,
vimos à frente uma muralha espectral de uniformes negros e rostos
pálidos. Eram os cossacos que haviam desertado no início da cam-
panha polonesa e, agora, formavam uma brigada, organizada pelo
ex-capitão cossaco Yakolev. Depois de formar um quadrado com
seus cavaleiros, o capitão esperava por nós com a espada desem-
bainhada. Um dente de ouro reluzia em sua boca; a barba negra
descansava sobre o peito, como um icone sobre um morto. As
metralhadoras inimigas fizeram fogo a vinte passos de distância
e homens das nossas fileiras tombaram feridos. Passando por cima
deles, colidimos com o inimigo, mas a sua formação quadrada não
cedeu. Então, fugimos.
Assim, os homens de Yakolev conseguiram uma rápida vitória
sobre a Sexta Divisão. Venceram porque foram firmes ante os
esquadrões atacantes. Daquela vez, o capitão cantou vitória, e
fomos nós que fugimos, sem manchar as espadas no sangue infame
de traidores.
Cinco mil homens — toda a nossa divisão — precipitaram-se
colina abaixo, sem ninguém a persegui-los. O inimigo permaneceu
lá em cima, não acreditando na facilidade da vitória e, por isso,
ficou indeciso quanto a nos perseguir. Por essa razão conservamos
a vida e conseguimos chegar até o vale, onde encontramos Vino-
gradov, chefe da Seção Política da Sexta Divisão. Montado num
cavalo fogoso, ele arremetia para lá e para cá, tentando fazer
voltar à luta os cossacos fugitivos.

143
— Liutov — gritou ao notar minha presença —, faça os
homens dar meia-volta, custe o que custar.
Vinogradov batia com a culatra da Mauser no pescoço do
inquieto cavalo, gritava e ordenava aos homens que voltassem.
Afastei-me dele e galopei em direção a Gulimov, um quirguiz,
que ia passando não longe dali.
— Para cima, Gulimov — disse-lhe, — Dê meia-volta.
— Dê meia-volta no pescoço da sua égua — respondeu Gu-
limov, olhando para trás, furtivamente.
De repente, apontou sua arma, disparou, chamuscando de
leve o meu cabelo, acima da orelha.
— Volte você — gritou, agarrando-me pelo ombro com a
mão, enquanto tentava tirar o sabre com a outra. Mas a lâmina
estava muito ajustada à bainha e o quirguiz tremia e espreitava,
apertando meu ombro e com os olhos cada vez mais próximos
do meu rosto.
— O seu cavalo vai na frente — disse com a voz quase
inaudível —, depois o meu irá atrás.
Com a lâmina do sabre que, afinal, conseguira puxar da
bainha, bateu levemente no meu peito. À proximidade da morte,
sua proximidade opressiva, dava-me vertigem. Com a palma da
mão, afastei o rosto do quirguiz, que me pareceu tão quente como
uma pedra ao sol, e arranhei-o com a maior violência possível.
Um sangue quente moveu-se sob minhas unhas. Afastei-me de
Gulimov, cansado como ao fim de uma longa caminhada. Meu
cavalo, meu martirizado cavalo, seguia a passo. Cavalguei sem
enxergar o caminho, sem voltar-me, até que encontrei Vorobiev,
» comandante do Primeiro Esquadrão. Vorobiev procurava os
seus intendentes e não os encontrava. Juntos atingimos a aldeia
de Chesniki e nos sentamos numa mesa da taverna com Akinfiev,
o ex-cocheiro do Tribunal Revolucionário. Sacha, enfermeira do
31º Regimento de Cavalaria, passou por ali, e dois comandantes
sentaram-se também ao redor da mesa. Os dois comandantes
pareciam sonolentos e ficaram meditativos, em silêncio. Um deles,
que fora seriamente ferido, balançava descontroladamente a cabe-
ça e piscava um dos olhos. Sacha saiu para comunicar ao hospital

144
o estado do homem ferido, mas depois voltou para junto de nós,
puxando o seu cavalo pelas rédeas. O animal teimava em não
andar e escorregava no barro molhado,
— Para onde vai? — perguntou Vorobiev. — Sente-se aqui
conosco.
— [sso não — respondeu Sacha, batendo na barriga do
cavalo. — Não vou sentar-me com vocês.
— Por que não? — indagou Vorobiev, rindo. — Decidiu
agora não tomar mais chá com os soldados?
— Pelo menos com você, não! — replicou a mulher. —
Decidi nunca mais tomar chá com você, Vorobiev, porque hoje
o vi com os seus heróis e vi também a sua indignidade, coman-
dante.
— Então por que não disparou alguns tiros? — perguntou
Vorobiev.
— Atirar? — disse Sacha, furiosa, arrancando da manga
do uniforme a braçadeira dos serviços de saúde. — Era com isso
que devia disparar?
Naquele momento voltou-se para nós Akinfiev, o ex-cocheiro
do Tribunal Revolucionário, com o qual eu tinha uma conta
antiga a acertar.
-— Você não tinha nada com que disparar, Sacha — disse
ele, apaziguando a enfermeira. — E por isso ninguém pode cen-
surá-la. Mas desejo culpar aqueles que se apavoram na hora do
combate e se esquecem de pôr balas no revólver. Você esteve no
ataque — gritou-me subitamente, com um tremor espasmódico no
rosto —, você foi atacar e não pôs balas no revólver. Por quê?
— Deixa-me em paz, Ivan — eu disse a Akinfiev, mas ele
não parava de falar c ia aproximando cada vez mais de mim o
seu corpo todo retorcido, epiléptico, atrofiado.
— Os poloneses correm atrás de você, mas você não corre
atrás deles — chateava o cossaco, contorcendo-se e agitando o
quadril quebrado. — Por quê?
— Está certo, os poloneses correm atrás de mim e cu não
corro atrás deles — respondi, com deboche.

145
acid

— Então porque você é um Molokan *, um desses bebedores


de leite — murmurou Akinfiev, dando um passo para trás.
— Está bem, então é porque sou um Molokan — respondi,
elevando ainda mais a voz. — E o que é que você tem com isso,
Ivan?
— O que me importa é que você reconheça isso — gritou
Ivan, desvairadamente triunfante —, porque eu tenho uma lei
escrita para os Molokan: podem ser fuzilados, pois adoram a
Deus.
As pessoas juntavam-se ao redor do cossaco, que gritava,
clamando contra os Molokan, sem fazer uma pausa para respirar.
Comecei a afastar-me de perto dele; mas agarrou-me e deu-me um
murro nas costas.
— Você não municiou seu revólver — murmurou Akinfiev, |
baixinho, em meu ouvido, e tentou rasgar-me a boca com seus
enormes dedos. — Você adora a Deus, traidor!
Ele continuava a puxar-me a boca. Finalmente, empurrei o
epiléptico e dei-lhe um murro no rosto. Akinfiev caiu ao chão,
de lado, e do seu rosto começou a escorrer sangue.
Então Sacha aproximou-se dele com seus grandes seios bam-
boleantes. Molhou com água o rosto de Ivan e tirou de sua boca
enegrecida um longo dente amolecido, que balançava ali como
um beduíno sobre um camelo no deserto.
— Os galos não têm outra preocupação a não ser brigar e
despedaçarem-se uns aos outros — disse Sacha. — E o que passou
hoje me faz desejar ir embora e esconder o rosto.
Falou isso com amargura e saiu levando consigo o ferido
Akinfiev. E eu me afastei, cansado, em direção à aldeia de
Chesniki, escorregando na estrada, sob a incessante chuva gali-
ciana.
A aldeia estava inundada e inchada, e o barro vermelho-san-
gue emanava de suas lúgubres feridas. Reluziu a primeira estrela
da noite e ocultou-se entre as nuvens. À chuva açoitou os campos,
depois começou a cair devagar. A noite levantou o seu vôo para

1 Membro de uma seita cristã russa, cujos adeptos fazem uso do leite na
Quaresma, renegam a ordem sacerdotal ec são iconoclastas e pacifistas.
[Nota da edição soviética]

146
o RES q o TE

o céu, como um bando de pássaros, e as trevas arquearam sobre


mim a sua úmida coroa. Eu estava cansado. Curvado sobre a
fúnebre coroa, prossegui o meu caminho, enquanto suplicava ao
destino que me concedesse a mais simples das habilidades: a capa-
cidade de matar um homem.

147
A CANÇÃO

uando nos alojamos na aldeia de Budiatichi, o destino levou-


Õ, me à casa de uma amargurada hospedeira. Era viúva e
pobre. Muitas vezes arrombei as fechaduras de sua despensa, sem
encontrar alimento algum.
Restava apenas recorrer à astúcia, Um dia, voltando mais
cedo para casa, antes do anoitecer, vi a mulher fechando a porta
do forno, que ainda estava quente. A casa cheirava a sopa de
couve, e talvez houvesse carne. Senti o cheiro de carne no caldo
grosso da minha hospedeira e pus o revólver sobre a mesa, mas
a velha negou obstinadamente. Seu rosto e dedos enegrecidos
tinham um tremor espasmódico. Mal-humorada, a mulher me
olhava com ódio e espanto. Contudo, nada disso a salvaria. Eu a
teria machucado, com o revólver, se não fosse impedido por
Sachka Koniaiev, ou Sachka Cristo.
Ele entrou na cabana com o seu acordeão sob o braço, os
pés bem-feitos calçados em botas acalcanhadas.
— Vamos cantar — disse Sachka, erguendo para mim seus
olhos azul-gelo muito sonhadores. — YWamos cantar — repetiu,
sentando-se no banco e dedilhando a introdução de uma canção.
O melancólico prelúdio parecia chegar de muito longe. De
repente, o cossaco interrompeu os acordes, com um ar de profunda
tristeza nos olhos azuis. Voltou-se de costas e, sabendo muito
bem o que me agradaria, começou uma canção de Kuban.
“Estrela dos campos” — cantou —, “estrela dos campos,
que paira sobre a casa do meu pai, e a acariciante mão de minha
mãe...”
Eu gostava daquela canção. Sachka sabia disso, pois ambos
a tínhamos escutado pela primeira vez em 1919, na desembocadura
do rio Don, na aldeia de Kagalnitskaia.

149
— Si dd a

Um caçador que exercia grande atividade em áreas proibidas,


lá, nos ensinara a canção. É grande a desova naquelas águas, e
os pássaros chegam ali em grandes bandos. Nas ramificações do
rio, os peixes reproduziam com indescritível abundância que eles
podiam ser tirados com pás ou até apanhados com a mão, €
quando se colocava um remo dentro da água, ele era erguido e
carregado pelos peixes. Vimos isso com nossos próprios olhos e
nunca mais esquecemos as águas proibidas de Kagalnitskaia. Todas
as autoridades proibiam ali a caça, € com razão, mas no ano de
1919 havia nas ramificações do Don uma guerra cruel, e o
caçador Yakov, que infringia a lei abertamente, dera o acordeão
a Sachka Cristo, o cantor de nosso esquadrão, para que não o
denunciássemos. Ensinou a Sachka as suas canções e muitas delas
eram de estilo antigo e cheias do mais profundo sentimento. Por
isso, perdoamos o astuto caçador, já que suas canções eram neces-
sárias: ninguém podia prever o fim da guerra e apenas Sachka
era capaz de cobrir nosso penoso caminho de sons e lágrimas.
Percorríamos trilhas manchadas de sangue e, acima delas, ressoa-
vam as canções, Assim foi nas imaturas campanhas em Kuban,
assim foi nos Urais e nos combates do Cáucaso, e assim acontece
nos dias de agora. As canções eram indispensáveis, ninguém podia
prever o fim da guerra e Sachka Cristo, não tinha ficado maduro
para morrer.
Naquela noite, quando não consegui a sopa de couve de
nossa hospedeira, Sachka acalmou-me com sua voz doce, mansa €
embaladora.
“Estrela dos campos” — cantou —, “estrela dos campos, que
paira sobre a casa de meu pai, e a acariciante mão de minha
mãe...”
Eu o ouvia, estendido num canto da cabana, sobre uma cama
desconfortável e apodrecida. O sonho quebrantava-me os ossos,
sacudia o feno envelhecido debaixo do meu corpo e, através de
suas imagens, eu mal podia distinguir a velha mulher, que sus-
tentava com a mão os seus ralos cabelos. Curvando a cabeça
cheia de feridas, permanecia imóvel, encostada à parede, sem se
mexer, até que Sachka terminou a canção.
Ele terminou de tocar e colocou o acordeão de lado. Bocejou,
riu, como se despertasse de um sono belo e profundo. Depois,

150
notando o fogão apagado da cabana, levantou-se do banco e foi
buscar um balde de água.
— Está vendo, meu querido — disse-lhe a mulher, esfregando
as costas na porta e apontando para mim —, o seu comandante
chegou aqui faz pouco tempo e começou a gritar comigo, bateu
com os pés no chão, rebentou os cadeados da despensa e ameaçou-
me com uma arma. É um pecado, Deus sabe, apontar uma arma
contra mim: sou uma mulher sozinha.
Esfregou-se novamente de encontro à porta e depois foi aga-
salhar o filho com algumas peles. O filho roncava sob um icone,
numa grande cama coberta de farrapos. Era um pequeno débil
mental de cabeça branca e inchada, e pés tão grandes como os
de um camponês adulto. A mãe limpou-lhe o nariz e voltou à
mesa.
— Senhora — disse-lhe então Sachka, tocando-lhe no ombro
—, se aceitar as minhas amabilidades, estou disposto a satisfazê-la.
Mas a mulher nem parecia ouvi-lo:
-— Nunca vejo sopa de couve — disse ela, segurando o
caldeirão vazio —, a sopa de couve não existe mais. Aqui só apa-
recem pessoas que me apontam armas, e quando surge um sujeito
decente, com o qual a gente pode divertir-se um pouco, sinto-me
tão cansada de tudo que já nem o pecado me alegra.
Resmungava suas queixas melancólicas, enquanto afastava
mais para junto da parede o garoto. Sachka deitou-se com ela na
cama de farrapos; eu tentei dormir e comecei a inventar imagens
de sonhos para adormecer com pensamentos agradáveis.

151
O FILHO DO RABINO

ocê lembra de Jitomir, Vasili? Você lembra do rio Teterev,


Vasili, e daquela noite em que o Sabá, o novo Sabá, desli-
zava ao longo do crepúsculo, esmagando as estrelas com tacões
vermelhos?
As finas pontas da lua crescente banhavam-se nas águas escu-
ras do Teterev. O estranho velho Guedali, fundador da IV Inter-
nacional, conduziu-nos à casa do rabino Motale Bratslavski para as
orações da noite. O estranho Guedali fazia balançar as penas de
galo de seu chapéu alto em meio à névoa rósea do anoitecer. Às
chamas velozes das velas bruxuleavam na sala do rabino. Judeus
de ombros largos, inclinados sobre seus livros de orações, gemiam
baixinho, e o velho bufão dos sábios da dinastia Chernobisk fazia
tilintar moedas de cobre em sua algibeira furada.
Lembra daquela noite, Vasili? Por detrás da janela, cavalos
relinchavam e cossacos gritavam. A selvageria da guerra abria as
mandíbulas além da janela, e o rabino Motale Bratslavski orava
junto à parede do oriente, apertando os dedos em sua túnica. Depois
descerraram-se a cortina da Arca e vimos, à luz fúnebre das velas,
os rolos da Torá envolvidos em capas de veludo púrpuro e seda
azul. Curvado sobre a Torá, o inanimado, submisso e belo rosto de
Elias, o filho do rabino, o último príncipe da dinastia.
Pois bem, Vasili, dois dias depois os regimentos do 12.º Exér-
cito tinham aberto o front de Kovel. Na cidade resoou desdenho-
samente o bombardeio dos vencedores. Nossas tropas vacilaram e
entraram em pânico. O trem da Seção Política começou a arrastar-
se sobre a morta espinha dorsal dos seus trilhos. E uma Rússia
monstruosa e inconcebível pisoteava com sapatos de líber os dois
lados dos vagões, como uma multidão de percevejos enxameando
nas roupas. Uma massa de camponeses com tifo carregavam pelos
caminhos o conhecido peso da morte de um soldado. Saltavam nos
degraus do nosso trem e caíam derrubados com golpes de coronhas

153
SE

de rifles. Resmungavam, lastimavam-se, debatiam-se e iam embora,


silenciosos. Após uma dúzia de verstas, quando não havia mais ba-
tatas para atirar neles, joguei uma pilha de panfletos de Trotsky,
mas apenas um homem estendeu a sua mão débil e suja para apa-
nhar o folheto. Reconheci Elias, o filho do rabino de Jitomir. Reco-
nheci-o imediatamente, Vasili. E foi tão angustiante ver um prín-
cipe que perdera as calças e avançava curvado sob a mochila de
soldado, a tal ponto que desobedecemos o regulamento e o fize-
mos subir ao vagão. Os seus joelhos nus, fracos como os de uma
velha, bateram no aço enferrujado dos degraus. Duas datilógrafas
de seios grandes, trajando blusas à marinheira, arrastaram pelo
chão o corpo do moribundo.
Nós o colocamos num canto do vagão, e um cossaco de calças
largas e vermelhas arranjou-lhe algumas roupas. As duas moças
ficaram por ali, com suas pernas tortas de mulheres que não ser-
viam para nada, e olhavam bobamente seus Órgãos genitais, o seu
membro mirrado e enrugado, coberto de pêlos encaracolados, de
um semita desfalecido. E eu que o vira numa de minhas noites
erradias, comecei a colocar na valise os objetos espalhados do sol-
dado Bratslavski, do Exército Vermelho.
| Tudo misturado, disperso: os panfletos de um agitador, ca-
dernos de anotações de um poeta judeu, retratos de Lênin e Mai-
mônides, a férrea cabeça de Lênin ao lado dos retratos em seda
de Maimônides. Uma madeixa de cabelos femininos estava dentro
de um livro, As Resoluções do Sexto Congresso do Partido; nas
margens dos panfletos comunistas apertavam-se tortuosas linhas de
antigos versos hebraicos. Como uma chuva triste e lenta caíam so-
bre mim páginas do “Cântico dos Cânticos”, misturadas aos cartu- |
chos do revólver. A melancólica chuva do anoitecer lavava o meu
cabelo, e eu disse ao jovem que agonizava naquele canto sobre
um colchão esfarrapado:
— Há quatro meses, numa sexta-feira, Guedali, o velho nego-
ciante de roupas, levou-me à casa de seu pai, o rabino Motale. Mas
naquela época você não pertencia ao Partido, Bratslavski...
— Sim, eu pertencia ao Partido — respondeu o jovem, arra-
nhando o peito, tremendo de febre. — Mas não podia abandonar
minha mãe.
— E agora, Elias?

154
Po RS
— Numa revolução a mãe é um episódio — murmurou, com
a voz cada vez mais baixa. — Chegou a minha letra, a letra B, e
a Organização me enviou ao front...
— E você chegou a Kovel, Elias?
— Sim, cheguei a Kovel! — gritou com desespero. — Os
kulaks * abriram o front ao inimigo. Tomei o comando de um regi-
mento recém-formado, mas já era tarde. Faltou-me artilharia. ..
Morreu antes de chegar a Rovno. Morreu, o último príncipe,
entre suas poesias, retratos e panfletos. Nós o sepultamos numa es-
tação qualquer, esquecida. E eu, que mal posso conter neste corpo
envelhecido as tempestades de minha imaginação, estava ao lado
do meu irmão quando ele exalou o último suspiro.

1 Grandes proprietários de terra. [Nota da edição soviética]

155
ARGAMAK

ecidi transferir-me para as forças ativas. O comandante da


Divisão ficou carrancudo ao ouvir semelhante coisa.
|
— Onde é que você quer se meter? Vai ficar imóvel, abesta-
lhado e imediatamente eles abrem a sua barriga.
Insisti. O que é pior: escolhi a Divisão mais combativa, a Sex-
ta. Mandaram-me ao Quarto Esquadrão do 23.º Regimento de Cava-
laria, comandado por um ferreiro da fábrica de Briansk, Baulin, um
simples rapazola. Para infundir autoridade, deixara crescer a barba:
um tufo de pêlos cor de cinza aparecia-lhe no queixo. Aos vinte e
dois anos, Baulin não conhecia qualquer vaidade. Essa qualidade,
característica de milhares de Baulins, constituiu um elemento im-
portante para a vitória da Revolução. Baulin era firme, parco de
palavras e obstinado. O seu caminho na vida estava decidido, e ele
não tinha dúvidas de qualquer espécie de que este era o caminho
certo. Suportava facilmente as privações. Sabia dormir sentado, dor-
mir apertando uma mão com a outra e despertar assim, de modo
que a passagem da inconsciência do sono para o despertar era im-
perceptível.
Sob o comando de Baulin era impossível esperar contempla-
ções. O meu serviço começou com uma rara € feliz sorte: deram-me
um cavalo, Não havia cavalos, quer na reserva de montaria, quer
nas mãos dos camponeses. O acaso me ajudou. O cossaco Tijo-
molov executou, sem autorização, dois oficiais prisioneiros. Rece-
bera ordem para escoltá-los até o Estado-Maior da Brigada, pois
eles podiam proporcionar valiosas informações. Mas Tijomolov
não os levou ao seu destino. Decidiu-se então que o cossaco fosse
submetido ao Tribunal Revolucionário, mas depois mudou-se de
idéia. O comandante Baulin impôs um castigo mais terrível do que
o próprio Tribunal teria infligido: tomou a Tijomolov o seu ca-
valo, chamado Argamak, e enviou o cossaco para os carros de
transportes.

157
Os tormentos que suportei de Argamak quase ultrapassaram
os limites da resistência humana. Tijomolov tinha trazido o cavalo
de sua casa, às margens do rio Terek. O animal estava treinado
para o trote e o peculiar galope cossaco: seco, furioso, abrupto.
O passo de Argamak era longo, largo e persistente. Com aquele
passo diabólico fazia-me sair das fileiras, scparava-me do esquadrão
e, como não tinha sentido de orientação, vagava durante dias in-
teiros à procura de minha unidade, caía em posições inimigas, pas-
sava a noite em barrancos, juntava-me a regimentos estranhos e
era asperadamente repelido. À minha experiência de equitação li-
mitava-se ao período em que servira durante a guerra na Alema-
nha, numa divisão de artilharia adida ao 15.º Regimento de Infan-
taria. Ora, isso significava ficar sentado no carro de munições e,
raras vezes, viajamos no engate da carroça junto aos animais. Eu
não tivera, portanto, uma oportunidade de acostumar-me ao duro
e bamboleante trote de Argamak. Tijomolov tinha legado ao ca-
valo todos os demônios de sua própria queda. Eu dançava como
um saco no longo e magro lombo do animal, Fiz um verdadeiro
estrago no seu espinhaço. Apareceram nele chagas, roídas por mos-
cas de cor metálica. Listas de sangue negro coagulado rodeavam-
lhe o ventre. E, devido a uma má formação, Argamak começou a
roçar uma pata na outra; as traseiras, que inchavam nas juntas,
atingiram proporções elefantíacas. Argamak enfraqueceu. Os seus
olhos ficaram injetados do sangue próprio dos cavalos atormenta-
dos, o sangue da histeria e da teimosia. Não queria ser selado.
— Você estragou esse animal, “quatro-olhos” — dizia-me o
comandante do pelotão.
Na minha presença, os cossacos mantinham silêncio, mas por
detrás preparavam-se para saltar sobre mim, como fazem 05 ani-
mais de rapina, em sonolenta e pérfida imobilidade. Já nem pediam
que escrevesse cartas para eles.
O Exército de Cavalaria conquistou Novograd-Volinski. Tive-
mos que percorrer até setenta ou oitenta verstas por dia. Estáva-
mos nos aproximando de Rovno. O descanso diário era insignifi-
cante. Todas as noites eu tinha o mesmo sonho: cavalgava Argamak
a trote, às margens da estrada ardem fogueiras, os cossacos fazem
a sua comida. Passo entre eles esperando que levantem os olhos
para mim. Alguns cumprimentam-me, outros não prestam atenção,
não se preocupam comigo. Que significava isso? A indiferença sig-

158
nificava que não havia nada de especial na minha maneira de mon-
tar, que cavalgava como todo mundo e não havia sentido para me
olhar. Eu seguia pela estrada e sentiame feliz. Desperto, não sa-
ciava a minha sede de paz e felicidade, por isso vivia sonhando.
Não havia sinal de Tijomolov. Porém ele me vigiava de al-
gum lugar, dos extremos da formação militar, nas lentas filas de
carros cheios de artigos de toda a sorte.
O comandante do pelotão disse-me uma vez:
— Ele vive nos perguntando como você vai indo.
— Que importância tenho eu para ele?
— Parece que sim.
— Por acaso ele pensa que o ofendi?
— E não foi mesmo?
O ódio de Tijomolov alcançava-me através de matas e rios.
Eu sentia isso na pele e encolhia-me todo. Os olhos injetados de
sangue estavam fixos no meu caminho.
— Por que me arranjou um inimigo? — perguntei a Baulin,
O comandante do esquadrão seguiu em frente, bocejando.
— O problema não é meu — respondeu, sem se voltar —,
mas seu.
No lombo de Argamak, as pisaduras saravam, mas voltavam a
abrir-se. Eu colocava até três mantas debaixo da sela, mas não
adiantava nada, as feridas não cicatrizavam. O que mais me angus-
tiava era a sensação de que montava uma chaga aberta,
Um cossaco de nosso pelotão, chamado Bisiukov, era da mes-
ma região de Tijomolov e conhecera seu pai, no Terek.
— Você sabia que o pai dele cria cavalos por prazer? — per-
guntou-me um dia. — Era um perfeito cavaleiro, embora fosse um
homem gordíssimo. Quando chegava a cavalgada, ele ia imediata-
mente escolher um animal. Traziam-lhe um. Ele ficava olhando para
o cavalo, afastava-lhe muito as pernas, observava bem. Que pensa
você que ele ia fazer? Apenas isso: brandia o seu enorme punho,
desfechando um violento golpe entre os olhos do animal, e aca-
bou-se o cavalo. “Por que liquidou o animal, Kalistrar?” “É a mi-
nha maneira de procurar um bom animal”, dizia ele. “Esse cavalo
não me serve. Não é do meu tipo. Quando procuro um bom cavalo
não brinco em serviço.” Era um excelente cavaleiro, isso não se
pode negar.

159
E Argamak, que o pai de Tijomolov deixou com vida e esco-
lhera, veio parar em minhas mãos. Que podia eu fazer? Inventava
um grande número de planos, mas, afinal, foi a guerra que me
salvou.
O Exército de Cavalaria atacou Rovno. À cidade foi tomada
e permanecemos nela dois dias. Na noite seguinte, os poloneses nos
expulsaram. Travaram combate para proteger as suas unidades em
retirada e a manobra obteve sucesso. O inimigo tirou vantagem de
uma violenta tempestade de verão, uma chuva cortante que caía
sobre a terra em torrentes de água negra. Evacuamos a cidade por
vinte e quatro horas. Nesse combate noturno, caiu Dundich, o mais
bravo dos homens. Tijomolov também tomou parte na batalha.
Os poloneses tomaram de assalto o seu comboio. O lugar era plano,
sem nenhuma proteção. Ele colocou os seus carros numa formação
de combate que somente ele conhecia. Certamente, os romanos de-
viam colocá-los assim. Aconteceu que ele possuía uma metralha-
dora, talvez a tivesse roubado e escondido para qualquer emer-
gência. Com essa metralhadora, esmagou o ataque, salvou suas mer-
cadorias e os objetos, e conduziu a salvo todo o comboio, com
exceção dos carros cujos cavalos tinham sido atingidos pelos dis-
paros.
— Por que colocou os seus soldados na confusão? — per-
guntaram a Baulin os membros do Estado-Maior, alguns dias depois
do combate.
— É certo, mas agi assim porque era conveniente.
— Tenha cuidado! Não acha que está indo longe demais?
Tijomolov ainda não tinha sido anistiado, mas sabíamos que
nos acompanharia. Chegou, calçado de tamancos. Os seus dedos
estavam cheios de cortes e deles pendiam ataduras de linhaça
negra, que se arrastavam pelo chão como os pedaços de uma roupa.
Chegou à aldeia de Budiatichi, à praça da igreja, onde estavam
amarrados os nossos cavalos. Sentado nos degraus do templo cató-
lico, Baulin tinha os pés mergulhados numa bacia de água quente.
Os dedos dos pés infeccionados estavam vermelhos como o ferro
ao começar a forja. Mechas de seus jovens cabelos ralos empasta-
vam-se em sua fronte. O sol ardia nos ladrilhos e telhas da igreja.
Bisiukov, de pé junto ao comandante do esquadrão, pós-lhe um
cigarro na boca e acendeu-o. Arrastando os farrapos nos pés, Tijo-
molov dirigiu-se aos cavalos. Os seus tamancos batiam no chão com

160
]
suave ruído. Argamak estendeu o pescoço comprido e relinchou
para seu dono; o relincho parecia vir de muito longe, como de
um cavalo no deserto. Sobre o seu lombo, o pus corria e formava
uma renda na carne dilacerada. Tijomolov ficou ao lado do ani-
mal. As fitas sujas das ataduras tocavam o chão.
— Vamos, vamos — disse ele ao animal, em voz tão baixa
que mal se ouvia.
Adiantei-me:
— Façamos as pazes, Tijomolov. Fico alegre porque você
agora tem o seu cavalo. Não consegui acostumar-me a ele. Façamos
as pazes, sim?
— Ainda não chegou a Páscoa para fazer as pazes — disse |
o comandante do pelotão, que enrolava um cigarro atrás de mim.
Suas calças estavam afrouxadas, a camisa aberta no peito bron-
zeado. Ele apoiava-se nas grades da ipreja.
— Façam as pazes como bons cristãos — murmurou Bisiu-
kov que conhecia Kalistrat, o pai de Tijomolov. — Ele quer ser
seu amigo.
Eu estava sozinho entre aqueles homens cuja amizade não
tinha conseguido conquistar.
Tijomolov permanecia na frente do seu cavalo, como cravado
no chão. Argamak respirava forte e livre, e estendia o focinho para
seu dono.
— Assim é a vida — disse o cossaco e voltou-se bruscamen-
te para mim: — Não vou fazer as pazes com você,
Arrastando os tamancos, começou a caminhar pela estrada cal-
cinada pelo sol, varrendo com as ataduras a poeira da praça da
aldeia. Argamak seguia-o como um cão. À brida agitava-se debaixo
do seu focinho, o longo pescoço arqueava-se. Baulin continuava a
banhar na bacia a podridão vermelha de seus pés.
— Você me arranjou um inimigo — eu disse-lhe. — Que
culpa eu tenho de tudo isso?
O comandante do Esquadrão ergueu a cabeça.
— Compreendo — disse —, compreendo perfeitamente. Pros
cura viver sem inimigos. É só no que pensa: não ter inimigos.
— Faça as pazes com ele — murmurou Bisiukov, voltando-se.
Baulin tinha a fronte em fogo e a testa contraída.

161
— Sabe o que acho de tudo isso? — disse sem controle da
sua respiração. — É um grande aborrecimento. Vai para a puta
que.
Tive que ir embora. Transferi-me para o Sexto Esquadrão,
onde a situação era melhor. Apesar dos tormentos, Argamak ensi-
nou-me o estilo de montar, à Tijomolov. Passaram-se os meses €
o meu sonho tornou-se realidade: os cossacos deixaram de nos se-
guir com o olhar, a mim e ao meu cavalo.

162
ruddã
Pça Pa dúlco Maria, M$ - Planaito
Taletas: (ON) 44 1-D627 - DITADO DA
Em. Portal; MMA + SOMA = STD
ado Horiconta - MG
A Cavalaria Vermelha é, certamente, um dos mais
importantes textos literários sobre a Revolução Russa de
I917; além do mais, já é um clássico da literatura de
nosso século.
Nestes contos, Isaac Babel traz até o leitor os cora-
ções palpitantes daqueles que fazem a História e mostra
como a História pode transformar simples homens e mu-
lheres em. heróis.
Repleto de sangue, lágrimas e risos; repleto de vida
e de morte, A Cavalaria Vermelha é, antes de tudo, uma
leitura inesquecível.

dA
D NHAGRA
OR
DiLIDAS 85-85170-09-3
a

PeRE dito ta
OFICINA DE LIVROS
ma

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