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Carlos César

O manifesto do
fim do mundo

2° Edição

Revisão: Paulo Narley

2021
Edição e diagramação:
Carlos César
Revisão
Paulo Narley
Ilustrações e capa
Carlos César

César, Carlos
O manifesto do fim do mundo/ Carlos César - 2° ed. Teresi-
na, 2021.

ISBN 978-65-00-18562-1

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial


do trabalho sem autorização do autor.
Para Ivonaldo Bilac, Jorge Luis, Paulo Narley, Ro-
silene de Araújo, Lourdes, Nollan, Fernanda Lopes, Glei-
ciane, Filipe Garcês, Monica Alves, Sara de Paula, Wes-
lanya, Isabelle (Wendell e Marreiros), João Victor, meus
pais, meus primos maravilhosos (principalmente Amilly
e Anabel por me inspirarem com as histórias do sítio 29)
e todos meus outros familiares. Alguns não foram citados
porque ainda não ingressaram na complexa esteira deste
mundo fantasioso, ainda há muito para se trilhar.
Para a cidade de Piripiri e Teresina, que concreti-
zam com este livro a primeira colisão do Através entre
municípios. Para as pessoas religiosas que são tolerantes e
seguem os princípios do amor como minhas amigas, e não
os falsos. E para aqueles que defendem menos concreto
e mais verde dentro dos circuitos de Teresina. O fim do
mundo se aproxima e ele me parece pior do que os outros.
E para eles... Aqueles que estão me vigiando aguar-
dando o exato momento para me capturarem...

Carlos César/ Anthem C/ O. C. Uly/ Senhor Um Pouco Amarelo


O manifesto do fim do mundo

Prólogo

O barulho da TV antes do recado do governador do Piauí, com asses-


sores e familiares. Era impossível evitar a notícia, estava em todos os lugares.
Um grande épico para o país.
“É um enorme prazer estar aqui nessa celebração do dia de criação de
todas as cidades gêmeas! Todos os munícipios do Piauí com suas irmãs, coladi-
nhas, para dar assistência às maiores, num plano muito inteligente do governo
brasileiro. Vou citar o nome das respectivas cidades-extensões, aqui vai: Maria
da Inglaterra, cidade gêmea de Picos; Bandeira Listrada, cidade gêmea de Flo-
riano; Russinha Amada, cidade gêmea de Piripiri...”
...

“De acordo com fontes, o sistema inteligente brasileiro estima que exis-
ta centenas de células terroristas e fascistas por todo o território. Mesmo com
as missões da Divisa Inteligente do Brasil, os grupos vão se multiplicando como
coelhos, espalhando ideais perigosos por todo o país e cometendo crimes perver-
sos. Se você já viu alguma atividade suspeita ou conhece alguém envolvido com
alguma seita fascista, denuncie! Esse é o seu dever como cidadão brasileiro!”

...

“Eles estão nos observando. Você sabe disso...” “Eles possuem sua
própria lógica.”

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O manifesto do fim do mundo

Depois você desliga a televisão.

...

Os gritos de lamúria de dona Raimundinha rasgavam o ar, des-


troçavam qualquer conforto familiar de calmaria. Não era um berro
comum e triste; na verdade, tendia para um desespero desafiador, pa-
recia que ela não sabia explicar o que lhe afligia. Possivelmente, tinha
ficado louca. No entanto, para sua sorte, foi apenas o garoto que saiu
com malas sem dizer muito, sem tantas despedidas oleosas como é cos-
tume no interior. Rafael nem chegara a São Paulo ainda, mas já usava
uma jaqueta nada agradável para o clima de Russinha Amada. E dona
Raimundinha prometeu a si mesma que não faria tanto alarde, o neto
órfão tinha pedido tanto. Porém, não teve trato que segurasse o peso
daquele adeus cru, tanto para ela quanto para a cidade.
Os vizinhos se prostraram nas portas de suas casas, primeiro
para entenderem os bramidos e, depois, para captarem a despedida.
Tinha pegado eles de jeito também, todos boquiabertos se pergun-
tando onde falharam porque não sabiam que o introspectivo Rafael ia
embora. Conversando visualmente entre si, com sinalizações básicas
e interrogativas, ninguém sabia dizer sobre aquela ida abrupta. Nem
os gritos de dona Raimundinha chamavam mais a atenção, só serviam
para endossar tamanho contexto sombrio.
Rafael, com os seus dezesseis anos, não falava muito com nin-
guém. Não surpreendia tanto o fato de ele ir embora daquele jeito. Seu
único amigo também o observava ir em direção à pista asfaltada, cor-
tando a rua de pedras convergindo toda a atenção para si, com uma
precária expressão de tristeza no rosto, porém, mais tendenciosa para
o escárnio.
No fim, Rafael não era alguém fácil de ser lido.

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O manifesto do fim do mundo

E disso Igor sabia. Foram lhe chamar lá na floricultura, não


só por ser o melhor amigo do rapaz, mas porque um acontecimen-
to desses deve ser testemunhado por toda a cidade. Dona Josefina e
José Antônio foram também. Pareciam mais despreocupados, não se
importavam com muita coisa que não fosse com flores. Já o filho, con-
torceu-se mais, encheu os olhos de lágrimas e ficou com aquele aperto
ansioso, quando a garganta se fecha e o mundo parece que vai acabar
logo em seguida. Um adeus sem dizer adeus.
Dona Raimundinha não se deu por vencida. O neto na fren-
te, colocando a mala de rodinhas para trabalhar no calçamento, e ela
atrás, dizendo palavras sufocantes. Ninguém conseguia lhe entender,
soluçava deixando as frases trombarem entre si. Alguns retrucavam
palavras que pareciam maldizeres da macumbeira da rua, dona San-
dra. Uma outra incógnita, assim como era Rafael, para Russinha Ama-
da.
Os vizinhos estavam anestesiados o suficiente para não se
aglomerarem iniciando um bate-papo cheio de teorias e dizeres co-
muns para a situação: “Nossa, vai deixar a avó sozinha!”, “Que verme
escroto, a avó se acabando... Passou a vida se acabando para esse ra-
paz largar ela como se fosse nada!” ou simplesmente “Estúpido, nunca
gostou daqui esse falso...”. Todos ressentidos porque Rafael guardou
bem o segredo. Não tinha nada a ver com tomar as dores de dona
Raimundinha. Entretanto, a população não se moveria, só esperaria o
fim daquela perseguição vergonhosa.
A velha juntou as mãos num gesto exclamativo, implorando,
com a sua linguagem competente e incompreensível, mas Rafael per-
maneceu a ignorando na frente. Começou a andar mais rápido e uma
das rodinhas acabou ficando, pois a mala não era de uma qualidade
tão satisfatória assim. Dona Raimundinha viu a peça no chão e mudou

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O manifesto do fim do mundo

a fisionomia toda enrugada do rosto, os olhos continuaram grandes,


mas sedentos. Se agachou lascando os joelhos fracos no calçamento
com pedrinhas pontudas e agarrou com força a rodinha. O objeto de
plástico todo riscado e sujo.
Nem dera tempo para os vizinhos se questionarem. A velha
idosa atirou a peça contra o neto e, por pouco, não o atingiu na orelha.
Não se deu por vencida e começou a procurar pedras mais perigosas,
não essas mixurucas e branquinhas. Rafael não se virou, até parecia
que tinha um olho nas costas. Só deixou escapar um susto quando o
pedaço da mala parou bem à sua frente. Ele chutou com ansiedade,
assim como tinha chutado a atenção para com sua avó.
As primeiras pedras desviaram penosas, mas as seguintes
foram mais acertadas. Uma delas alcançou as costas do rapaz, o fez
cuspir involuntariamente, todo desajeitado e estapafúrdio, sujando
a roupa. Ainda assim, ele não se virou. Também não limpou a baba
esbranquiçada do casaco e da calça. Perpetuou demente, focando so-
mente na pista logo depois.
Dona Raimundinha também cuspia, com os dizeres chorosos
incognoscíveis. Já estava toda desasseada. A camisola branca coberta
de areia, manchada por mais excrementos vergonhosos. Alguns perto
dela torceram o nariz, sentiram o odor agudo da idosa, aquele mau
cheiro seboso dos cabelos desgrenhados. Podia ser também das axilas
pelancudas e malcuidadas. Quando foi que dona Raimundinha come-
çou a ficar desleixada? Pouco importava. Ela cuspiu no chão quando
viu a pedra perfeita para abrir o crânio de Rafael. Finalmente, uma
reação.
Os vizinhos mais ao longe da suntuosa rua só fingiram o avan-
ço, mas a deixa foi para os de perto, que correram para segurar o bra-
ço da idosa. Pareciam duas estacas nervosas segurando a arma. Dona

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O manifesto do fim do mundo

Raimundinha começou a se debater enquanto dois homens, um pai e


um filho, vizinhos amistosos, evitavam uma tragédia. Rafael não estava
nada preocupado. Chegou são e salvo perto de uma cabana de paus,
feita de forma bem precária simbolizando a parada de ônibus. Ainda
tinham alguns papeis espalhados perto dos postes ali perto, de serviços
que os esforçados habitantes ofereciam, como borracharia ou venda
de redes. E um pneu velho logo no alto, uma espécie de arte propa-
gandista de alguma cabeça empreendedora dali. Rafael não iria sentir
saudade.
O horizonte da pista BR trazia as boas novas. Rodeado por
plantas secas do contínuo piauiense, cheio de amarelos e verdes, o
Universo assistia a mais um pacto quebrado. Urubus sobrevoando por
cima do calorzão daquela manhã, perto da hora do almoço. Grilos
acordando uns aos outros porque mais tarde preparariam alguma or-
questra mais encorpada. E um ônibus vermelho com azul surgindo na
horizontal.
Dona Raimunda se jogava no chão porque sabia que seria am-
parada, fingia convulsões, gritando, fazendo com que se confundis-
sem. Ela não tinha gritado em nenhum momento o nome do neto,
só agiu teatralmente parecendo mais vitimizada por problemas bem
maiores que a partida de Rafael. Quis rasgar com as unhas um de seus
ajudantes, mas foi impedida. Eles não se importavam com a violência,
estavam mais apurados pela cara de nojo, com o fedor que se impreg-
nou nas camisetas suadas. O calor bem no seu apogeu.
Foi tudo muito rápido. Brusco. Rafael subiu sem nenhum úl-
timo adeus com os olhos. O ônibus estava quieto. Não parecia ter mo-
torista. Sem cerimônias. Não desceu nenhum conhecido que pudesse
acenar para a triste Russinha Amada. Consolar sobre aquela situação.
E, quando o veículo foi embora, a velha apagou. Os dois ra-

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O manifesto do fim do mundo

pazes agradeceram mentalmente, sentando-a numa cadeira que outra


vizinha trouxe, uma confortável de espaguete, amarelada e com fiapos
salientes de amarrações.
Tão perdido quanto os outros, Igor ficou mais alguns segun-
dos digerindo a cena. Agora só fixava o olhar para os galhos do outro
lado, misturados com o verde seco. Olhou também para a cabaninha
malfeita de troncos finos. Mas sua atenção foi roubada só por uma úl-
tima objeção, de um vizinho barrigudo, amigo do respeitado religioso
fiel Jerônimo.
“Tomara que vá para o inferno, veado fodido!”
...
Russinha Amada não suportaria tantas crises repentinas.
Eram muitos ataques caóticos vindos de todas as direções, abalando
aquele ecossistema cheio de prosaicos.
Os russinhos continuavam intrigados sobre dona Raimunda e
sua prole. Um ano havia se passado e ainda ninguém conhecia a natu-
reza da partida abrupta de Rafael. Ele tinha ido, e a idosa se derramou
em choro. Trancou-se, para sempre, numa redoma de tristeza abarcada
de efervescência dramática. Nutrindo-se com raiva e tristeza, deliran-
do sobre os outros e sobre si mesma. Altamente perigosa para qualquer
um que ousasse se aproximar daquela casa.
Os vizinhos ali perto apenas cogitavam: poderia ter sido al-
gum concurso, alguma oportunidade de emprego, algum amor vir-
tual... No entanto, nenhum deles conseguia responder àquela situação.
Era de uma falta de caráter tremenda por parte de Rafael deixar a avó,
adoentada e louca, naquela situação. Justamente quando os anos não
estavam mais fáceis.
Dona Raimundinha saía, às vezes, para comprar algo, era
sempre muito reservada. Por onde passava as pessoas tapavam o nariz,

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O manifesto do fim do mundo

pois ela continuava desleixada e ninguém estava muito a fim de ajudar.


Uma única vez a idosa tentou roubar algo do mercadinho, mas o dono,
seu Eliseu, perdoou devido à situação. Outra vez conversava sozinha
com o tempo numa língua estranha que fez todos se perguntarem se
ela ainda recordava o português. Alguns poderiam determinar, mais
arriscados, que deveria estar incorporada com o bicho, “a macumbeira
Sandra sabia”.
Contrastando com o burlesco da tristeza, Russinha Amada
ainda tinha lá seus sorrisos. Muitas boas-vindas para os negócios da
família do ressentido Igor. A floricultura tinha se tornado realmente
uma “Fortaleza Florida”, convidando todos da cidade a participarem
de um amistoso projeto de dona Josefina, conhecida como a carido-
sa mãe. Sempre tão carismática e do bem, afirmava que o mal-estar
da cidade iria embora se todos carregassem flores consigo. A remessa
daquela semana tinha sido tão boa, e as vendas para outros lugares es-
tava indo tão bem, que contando de suas vantagens dona Josefina e seu
Antônio logo terminaram com uma boa proposta. Todos de Russinha
Amada poderiam ter uma muda da flor especial violeta colorida em
suas casas, cultuadas como uma nova espécie que veio como novidade.
A belezura era tão cheirosa e bonita que parecia um troféu, delicada,
nada simpática com qualquer um que não fosse tão opulento. Rapida-
mente caiu no gosto da população. E Igor poderia se esquecer um pou-
co da traição do amigo Rafael, trabalhando arduamente nos negócios
da família.
Quando dona Raimundinha passava pela porta de Fortaleza
Florida, nem mesmo as especiais violetas coloridas conseguiam abafar
o mau cheiro. Ali ela tinha se tornado, mesmo que sem saber, um ícone
anarquista, para a tristeza de todos que assistiam à sua decadente rabu-
gice.

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O manifesto do fim do mundo

Só um acontecimento marcou de forma mais danosa a cidade-


zinha: duas crianças desaparecidas de forma esquisita. Toda a Russinha
Amada e algumas pessoas da cidade vizinha de Piripiri foram solidá-
rios na caçada que durou dias. Dona Josefina organizou o maior grupo
de busca que tinha, junto de fiel Jerônimo. Igor tinha ficado mais tem-
po na floricultura enquanto a cidade convergiu atrás de Cássio e Caio.
Mas a mãe carregou por um bom tempo aquela angústia dentro de si.
Nenhuma informação sobre o caso aparecia.
No fim, passado dias, a última cartada. Tinham procurado em
todos os lugares, menos naquele. Era uma suspeita fundada. A popula-
ção se reuniu para uma invasão à casa de dona Raimundinha. Impossí-
vel não desconfiar daquela mulher louca. Aos berros, a velha maldizia
a mãe Joseane, sem conseguir juntar as palavras direito. Reclamava
daquela violação como se fosse um estupro, gritando contra seus vizi-
nhos que nunca mais chegassem perto dela, senão iriam se arrepender
amargamente. Ninguém ligou. Uma das invasoras só rebateu com “um
remédio para doido é outro doido e meio”. Fim de conversa. A idosa
podia gritar o que quisesse.
No final, Joseane, mãe solteira, imigrante e cheia de traumas
pegajosos, aceitou o trágico destino que, para ela, era pior do que as-
sassinato ou qualquer outro crime: a ausência de respostas.
...
Em 2024, a floricultura da família de Igor abraçou o solo fértil
econômico. Fortaleza Florida era aquele negócio que mudaria os ru-
mos de Russinha Amada, abalando o status da cidade como sombra
de Piripiri. Era hora de o apagado Piauí ter algum destaque novamen-
te, depois de concursos de miss e figuras comediantes de destaque. A
premiada e idolatrada flor violeta colorida, raridade que chegou junto
com os sorrisos de dona Josefina, ganhou atenção e algumas manche-

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O manifesto do fim do mundo

tes. E ela demorou a digerir. Pessoas de todos os lugares vinham con-


templar, levar consigo uma, entender os burburinhos sobre a beleza de
outro mundo. A natureza sempre conseguindo surpreender.
Em paralelo, Igor e Russinha Amada, aos poucos, esqueciam-
-se do desastre em torno de Rafael. Havia muito o que fazer, entre tar-
des trabalhando na gerência da floricultura com Giovani e recepcio-
nando turistas curiosos sobre não só a violeta colorida, mas toda a
complexidade daquela cidadezinha “no fim do mundo”. Uma gêmea
ganhando destaque.
E, pontua-se, Giovani, o “faz tudo” assumidamente gay, en-
controu em Russinha Amada a chance de conseguir trabalho, só não
contava com um preconceito esquisito que não fazia muito bem para
a região. Antigo demais, quando todos os debates sobre sexualidades
já marcavam os novos tempos. Só conseguiu emprego porque dona
Josefina era uma mulher muito doce, livre dessas amarras. Mas Igor e
sua família viram fiel Jerônimo torcer o nariz, na espreita como uma
raposa temerosa. Só não faria caso porque respeitava o poder e hierar-
quia do império florido. Por enquanto...
Na dianteira do fim do mundo, dona Raimundinha não passou
de um assunto esfriado. Começou a ter mais higiene depois que Julia,
uma vizinha, se propôs a ajudá-la, passando por cima de birras e so-
papos. Com aquelas pupilas negras e amaldiçoadas, dentro das covas
fundas do rosto, dona Raimundinha muito tinha o que vigiar. E temer.
Mas vamos falar de flores. A novidade do verão.
Quando a cidade de Russinha Amada ficou eufórica com tanta
repercussão, eis que a chegada de certos visitantes foi vista como amis-
tosa. Dentre a fila de ônibus com turistas coloridos, um carro SUV
preto cheio de fardados de branco, possíveis médicos, roubou a cena,
cada um com suas feições categóricas. Os moradores não disfarçavam

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O manifesto do fim do mundo

nunca, olharam de baixo para cima, com as testas franzidas sentindo o


cheiro ameaçador no ar, completos na defensiva. Eles já tinham visto
aqueles tipos na TV, cientistas que chegam para “explorar” ou “acabar”
com tudo. Na maioria das vezes, brancos mimados e loucos.
Dona Josefina viu que não poderia deixar Igor recepcionar a
comitiva. O marido, seu Antônio, sumiu por uns dias por conta de um
probleminha de saúde e era ela quem estava no comando. Levantou o
queixo e torceu os lábios se transformando na figura autoritária. Per-
feita, com sua postura ereta, o coque amarrado, vestidinho florido e
sóbrio. Um estilo hipster de soberania.
Foram conversar num canto da pracinha ali perto, claro que
rodeada de curiosos, assistindo pela porta de casa ou pelo olho mágico
dos portões. Dona Josefina balançava a cabeça com um não muitas
vezes, logo notaram. Os vizinhos dariam a vida para proteger aquela
mulher, só aguardavam um sinal para avançar contra os estranhos de
jaleco. Depois de minutos de palavreado, era a vez do líder deles, um
bigodudo arrogante, fechar o rosto. Seu argumento, seja lá ele qual te-
nha sido, não ganhou dona Josefina, uma mulher doce, mas de palavra
feita. Ninguém fazia sua cabeça.
Não teve como Igor não se lembrar de Rafael. Se o amigo esti-
vesse ali, ambos estariam cogitando o assunto com base na expressão
facial dos envolvidos. Os dois sempre com jogos investigativos.
Dona Josefina fez um gesto lento, incisivo. Deixou a palma à
sua frente indicando que não desejava prosseguir. O bigodudo cuspiu.
Depois que riu, não continuou também. Fez um sinal e os outros mé-
dicos esquisitos o acompanharam. Pareciam todos manequins perfei-
tos com jalecos, só ele não estava num padrão, humano demais para a
frieza do espectro da ciência.
Igor assistiu à contrariedade esquisita no rosto da mãe e claro

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O manifesto do fim do mundo

que correu para questioná-la. No entanto, dona Josefina logo mudou


para sua feição rotineira. O homem, que se chamava Marcos, queria
“levar” violetas coloridas para um estudo, nada demais. Quando o
filho questionou o motivo de ela ter recusado, recebeu somente um
aceno de cabeça, para que não a enchesse. No final, fazia sentido, ele
pensou com mais calma. Aquela atenção estava um pouco fora de con-
trole, e sua mãe, bom, ela fingia bem. Seu foco principal sempre em seu
pai, ainda acamado.
As violetas coloridas iriam continuar somente dentro do cerco
de Russinha Amada. Patrimônio local.
...
No começo do ano de 2025, Russinha Amada parece estar
tão aflita quanto no dia da partida de Rafael. Pior ainda, tanto quanto
no dia do sumiço das duas crianças imigrantes, Cássio e Caio. Àquela
altura, Joseane já tinha ido embora da cidade, bem antes do sucesso
todo da Fortaleza Florida.
Depois de uma onda de êxitos com as violetas coloridas, os
tons divertidos acinzentaram. Primeiro que dona Josefina estava bas-
tante abalada com a doença esquisita de seu Antônio, que, por vezes,
era esquecido. O que veio em seguida foi o soco final, o agourento
óbito dentro do seu cerco.
Igor escutou os gritos de fora, decrépitos, cheios de exício, que
logo o fizeram lembrar da soturna e agora quieta dona Raimundinha.
Correu e por pouco não engoliu rasgando. Encontrou Márcia, uma das
balconistas, imóvel com os olhos esbugalhados, toda roxa. Perto do
corpo magro, um frasquinho com um líquido esquisito, e bem atrás o
mar de rosas da floricultura.
Dona Josefina foi a primeira a gritar, pois o filho não teve essa
reação. Igor era tão quieto com seus trejeitos e postura que demorava

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O manifesto do fim do mundo

para tomar atitudes mais bruscas. A mulher chamou toda a vizinhan-


ça, transformou sua passividade em desespero voraz. Quando o fiel Je-
rônimo e mais vizinhos chegaram, a infeliz constatação. Teria mesmo
Marcia tomado o veneno interrompendo sua narrativa de forma tão
grosseira?
O religioso condenou a alma, internamente. Antes por ela ser
filha de um rústico carpinteiro que não era nada cristão e depois pela
ofensa de tirar a própria vida. Mas ainda assim as autoridades precisa-
vam averiguar a situação, com todo o apoio de dona Josefina, visivel-
mente abalada.
No final, o que acharam foi somente um retrato psicológico
tendencioso ao suicídio. Márcia, mulher negra e pobre, enfrentava não
só os “fixos” problemas de sempre, mas uma tremenda falta de pers-
pectiva quando percebia, a cada dia, que não poderia dar uma vida
melhor ao pai já idoso. Além de não ter tempo para estudar, não tinha
ânimo e, pior ainda, não tinha apoio. Tudo como oposição ao seu cres-
cimento. O mais comum quadro de milhões de brasileiros.
Fortaleza Florida fechou, não somente por respeito, mas por-
que, aliado à doença de Antônio, era hora de repensar os rumos da
família. E mais uma vez Igor enfrentava um segundo baque. José car-
pinteiro, coitado, precisou ser hospitalizado. Só Deus sabe o que foi
feito deste homem anos depois.
Naquela tarde cinzenta, depois de burocráticos funerários e
um negócio interrompido, dona Raimundinha sai de casa pela primei-
ra vez num horário incomum. Dá alguns passos na rua povoada de
pedrinhas e acena para a principal pista asfaltada logo ali perto, onde
uma vez viu o neto deixá-la, sem piedade. Nunca tinha sorrido tão fa-
ceira para algo ou alguém. Os vizinhos acharam estranho, começaram
a fazer o sinal da cruz. Não tardaram em teorizar sobre a saúde mental

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O manifesto do fim do mundo

da idosa. “Agora ficou doida de vez...”


Ela começou a falar sozinha, já que não tinha ninguém
acenando para ela de volta.
...
Meses depois da fatídica morte de Márcia, 2025 começou a
embolar-se por inteiro. Russinha Amada e Piripiri enfrentaram uma
poderosa crise financeira, com descontentamentos e desconversas en-
tre governos. Fortaleza Florida e a família de Igor continuaram reclu-
sos. O rapaz não iria ver a mãe com frequência. A mulher dedicou
todos os seus dias cuidando do pai, pouco se importava com o filho.
Já não eram muito próximos mesmo. Restava para ele somente seu
computador e conhecimento, continuando seus estudos de ensino à
distância. Até de Giovani Igor acabou se distanciando.
...
Em junho de 2025, a humanidade enfrenta a maior crise de
saúde do século com a chegada do vírus Rarizes, um potencial biológi-
co altamente contagioso. Com sintomas esquisitos, que variavam entre
uma gripe e crises esquizofrênicas, todo o modelo social do planeta
foi alterado com o novo conceito de quarentena. Russinha Amada fica
mais antissocial ainda, e Igor se vê perto de uma depressão, longe de
tudo e todos, até mesmo daqueles que dormiam no quarto ao lado.
Mas não iria ser egoísta colocando seus sentimentos à frente do da
mãe, extremamente abalada e ainda com medo de perder o marido.
Ninguém mais ouviu falar sobre dona Raimundinha, nem
mesmo sua cuidadora especial, que precisou deixar de ajudar por con-
ta das medidas de segurança de isolamento e distanciamento social.
Nem mesmo de José, o carpinteiro. Ou de Joseane.
...
Em 2026, é encontrada uma cura. O planeta enfrentaria, me-

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O manifesto do fim do mundo

ses depois, somente um trauma social desenhado de hipocondria.


Depois de tanta obscuridade, outra feliz vitória: seu Antônio
vencera sua doença esquisita. Dona Josefina e Igor voltariam a sorrir.
Para comemorar, naquela noite, o universo abençoou Russinha Ama-
da com uma chuva de estrelas cadentes, um espetáculo magnífico.
Era hora de recomeçar. Era hora deles.

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O manifesto do fim do mundo

Parte 1 –
Bem
longe
de Cristinas,
Marílias ou
Geleias.

23
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 1 –
Será se vem aí?

P erto dos quarenta graus. Um pouco antes dos circuitos ca-


lorentos do famigerado B-R-O BRÓ. Piripiri estava viva, e Russinha
Amada mais ainda. Pareciam um casal que acordou disposto a escon-
der, mesmo que teatralmente, as discussões da noite passada. Ficava
aqui ou ali um resquício, mas nada que influenciasse o restante da ro-
tina. Assim os habitantes das duas cidades para sempre procederam.
Andavam com álcool em gel tratando-o como chaveiro, vez ou ou-
tra com máscara para a sensação de segurança. Tudo tinha voltado
ao normal, a tecnologia continuava por cima tentando penetrar nas
paredes conservadoras, o comum com pequenas alterações.
E Russinha Amada venceu o Rarizes sem nenhum caso se-
quer. Um marco!
Igor limpou o suor da testa com a camisa. O calor não era de
todo ruim, a falta das brisas sim. As folhas das copas que peneiravam
a luz do Sol daquela manhã imploravam por um assopro de Deus, mas

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O manifesto do fim do mundo

Russinha Amada estava malcriada, merecia o castigo. Assim pensavam


as duas vizinhas presas com o Deus do Antigo Testamento, aquelas que
acenaram com um “Te abençoe também, meu filho” para Igor quando
ele deu um bom dia morno. Ambas se refrescavam embaixo das árvo-
res da pracinha ali perto, as costas carnudas marcadas pelos espaguetes
da cadeira. Vibrantes.
— As atividades com fuxico começaram foi cedo. — Igor disse
baixinho.
Colocou a mão em concha protegendo os olhos quando saiu
da área de sombra. O suspiro feliz vendo o trânsito leve da cidade.
Alguns carros passando com aqueles descamisados estilosos de ócu-
los espelhados, pessoas de terninho entre trabalhadores mais simples,
sorrisos entre compadres de um comerciante para outro, a perfeita sin-
fonia de uma cidade em ascensão.
No caminho à Fortaleza Florida, Igor contou o número de far-
mácias, a expansão absurda delas, álcool em gel na vitrine, máscaras
em promoção, leve três pelo preço de uma. Sempre aquele lembrete
sanitário, mas ele preferia não enxergar como uma ameaça. Era só
uma readaptação. O Rarizes não passava de um momento histórico,
tenebroso por sinal.
— Bom dia, Deise. — deu com a mão para a dona da lancho-
nete mais famosa. O point perfeito para você avistar alguma briga na
pracinha entre bêbados e, também, discutir sobre os prédios moderni-
nhos que estavam se reerguendo nas ruas de trás, uma barulheira sem
fim. Pelo menos o prefeito estava trabalhando, mesmo que a população
sentisse que andando em círculo.
A mulher amistosa sorriu, passou a mão nos cabelos lisos e
com luzes. Limpou a blusa, mas não tinha nada sujo. Uma última pu-
xadinha para cobrir a barriga e a regata expandiu as ilhas de calor em-

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O manifesto do fim do mundo

baixo do sovaco.
— Opa, senhor Igor, bom dia! – depois, apoiou-se na vassoura,
gesticulou com o polegar para trás soltando aquela careta. Deise era a
pessoa mais alto astral que Igor conhecia, também era conhecida pelos
seus shortinhos jeans sempre com algum broche engraçado e antigo,
geralmente de políticos em campanhas. Era seu prazer culposo.
— Aqui a barulheira não para. — pontuou o assunto. Os pré-
dios logo atrás.
Igor sorriu franzindo o nariz.
— O prefeito tá correndo atrás do tempo perdido. — Ele res-
pondeu.
— E eu vou correr atrás dele com meu facão se ele não respei-
tar os horários das obras. Você sabe, né? Eu moro aqui do lado e vai até
tarde essa bagunça. Um barulho do capiroto!
Igor se despediu contente. Ganhou sua dose de vigor diária.
Deise era a exclamação contando que certas coisas nunca mudariam,
nem com pandemias esquisitas e mortais. Mas um último ponto da
solidária amiga.
— Igor, ei! — Deise chamou.
Ele se virou, fez o gesto com a cabeça para que ela continuasse,
os olhinhos miúdos por conta do Sol.
— Como está seu Antônio? Nunca mais o vi na igreja nem na
floricultura.
Igor esboçou outro sorriso, mais fraco.
— Está bem! Não teve nada mais, paizinho tá bem!
E Deise fez graças com as mãos, por pouco não deixou a vas-
soura cair.
Se recobriu com seriedade, mas Igor não iria dizer para
ninguém que algo já o tinha atingido naquela manhã. Dobrou na

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O manifesto do fim do mundo

esquina e não pôde deixar de enxergar a outra rua que daria para perto
da antiga casa de Rafael. Apenas uma redoma interrogativa. Dona Rai-
mundinha sobreviveu à epidemia, mesmo sendo do grupo de risco. E
depois conseguiu colocar em si mais trevas que o de costume.
Para uma cidade pequena Russinha Amada até que tinha pe-
quenos acontecimentos por toda parte, dignos de atenção. Quando
misturava a isso às tramas mescladas, os vizinhos se espevitavam. Se-
riam necessárias duas crises do Rarizes para abaixar a poeira daquele
comprimento.
Igor podia ficar borocoxô, mas não por muito tempo.
A coleção de lojinhas e casas, misturadas entre si porque ge-
ralmente todos moravam onde trabalhavam, era mais uma das heran-
ças que a tecnologia e os novos tempos nunca mudariam. Russinha
Amada se recusava a aceitar as modernidades que uma vez englobou
a tímida Teresina, e agora atacava a vanguardista Piripiri. Dois varais
requebraram com lençóis quando aquela mãe suspirou cansada para o
alto, sem paciência para a birra do filho.
— Nossa, Augusto! Por que você não me disse que sua camisa
estava suja? Meu Deus, o que vão pensar de mim? — disse, puxando
o pano do braço do garoto enfezado. Ele já tinha retirado uma jaqueta
calorenta e a jogado no chão. Fiapos dos cabelos negros da mulher
foram ao encontro da pele do filho, queimada pelo Sol. Era mais bem
cuidado, diferente da mãe.
— Ô, dona Marilene, eu me esqueci. — respondeu com pausas
engraçadas que só crianças sabiam — Coisa chata.
A mulher arregalou os olhos.
— É mãe, viu? Negócio de “dona Marilene”. Vai levar uns tapas
na bunda para aprender a não ser desrespeitoso. — Reprovou entre os
dentes.

27
O manifesto do fim do mundo

Igor foi chegando de fininho, ele não podia simplesmente só


passar por ela na rua, não estava numa cidade grande. Seria tremenda-
mente desrespeitoso.
— Já começou cedo a puxar a orelha dele? — disse dando uma
piscadinha para Augusto, o garoto sorriu.
— Oi, seu Igor! — Ela se virou desconcertada. — Como vai?
Bom, eu não precisaria estar brigando com ele se o bonitinho não fosse
tão cabeça de vento. — Semicerrou os olhos quando viu os de rebeldia
do filho. — A farda toda suja e ele não me disse nada. Eu vou é jogar
ele dentro do tanque da desinfecção daquele caminhão que passa lim-
pando as ruas!
Augusto fez bico.
— O carro da limpeza diária? Eu nem sei por que ainda pas-
sa... — Igor coçou a cabeleira loira, as maçãs do rosto já estavam bem
vermelhas depois de tanto sol. A blusa um pouco encharcada de suor,
chegando a tomar parte da estampa colorida na frente.
— Pra lembrar que qualquer hora vem outro vírus maldito e
leva a humanidade de vez. — Marilene levantou o indicador, magrice-
la, cheio de nós. A mão era de quem pegava no duro todos os dias. —
Parece até castigo. Ainda bem que isso passou bem longe daqui. Essas
coisas vêm de outros países para acabar com a gente.
Igor sorriu. Marilene também tinha algo a mais para falar
completando o assunto sobre estrangeiros importunos.
— Ei, ei, ei senhor Igor. — deixou o garoto birrento perto da
calçada. A mochila velha e o caderno debaixo do braço. Augusto podia
aproveitar para chutar as pedrinhas que avançavam na calçada.
Marilene se aproximou, o cheiro da lavanda deu náuseas em
Igor, mas ele nunca faria caso. Prestou atenção, involuntariamente, na
blusa com o rosto de um candidato a prefeito, um dos que perdera feio

28
O manifesto do fim do mundo

por não terem sido “abençoados” por sua família nem por fiel Jerôni-
mo. A força implacável.
— Você tá sabendo da novidade? Me lembrei agora depois
dessa conversa sobre invasor e tal. — ela disse com um tom de malícia,
de fofoca, baixinho e com sinuosidades na voz.
Igor franziu as sobrancelhas, os poucos lábios sumiram com a
interrogação no rosto.
— O quê?
Marilene se engrandeceu, adorava ser a primeira a dizer.
— Está vindo um ônibus aí de São Paulo... — ela gesticulou
com o polegar para a direção da pista principal, um pouco longe dali
— Parece que o infame ingrato tá vindo!
O nome surgiu na cabeça de Igor, mas ele se fez de desenten-
dido.
— Oras, o Rafael neto da dona Raimundinha! — Marilene ar-
regalou os olhos para que o rapaz a acompanhasse com o “boom” da
notícia. — O seu amigo! Deise quem me contou. O “antipatizante” do
fiel Jerônimo. Se bem que aquele homem não gosta de ninguém que
não esteja naquele grupo de beatas dele. — finalizou com deboche.
— Nossa... — Igor tentou conter a reação. Sempre soube muito
sobre “conter” comportamentos — Que esquisito... Do nada?
Marilene continuou, sensacionalista.
— Já pensou se ele traz uma nova doença? Russinha Amada
passou ilesa uma vez. Na segunda, não sei se teria sorte! Ê putaria en-
doidada que foi esse “Rarizes”. Vírus acabou com muita gente. – balan-
çou a cabeça, informativa. — Minha colega de Teresina disse que por
lá foi um caos.
— Verdade... — Igor sorriu amarelo. Foi se distanciando de
Marilene, retornando ao seu trajeto de ida. Estava atrasado. E agora

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O manifesto do fim do mundo

um pouco perturbado. — Vamos nos cuidar, mas nada de mal vai


acontecer à Russinha Amada.
— Deus queira que não. — Marilene sorriu voltando também
para o filho curioso. O garoto abobalhado tentando fazer leitura labial
da conversa particular da mãe.
Igor já não queria mais nenhum “bom dia” dos vizinhos,
apressou o passo com um incomodo progressivo.
“Deus queira que não...”

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O manifesto do fim do mundo

Capítulo 2 –
Um novo dia.

A ugusto fazia paradas propositais entre a caminhada. Não


gostava nem um pouco do exercício diário da mãe o controlando,
puxando-o como se fosse um bebezinho. Mas Marilene era impassí-
vel. A conversa dos dois floresceu tantos tópicos até chegar nos alertas
costumeiros da mulher. Para que Augusto tivesse cuidado e não ficasse
sendo malcriado por aí. Crianças desobedientes sempre eram raptadas
por criaturas esquisitas. Desde os últimos eventos, o assopro de medo
era a única brisa circulando entre as poucas ruas da cidadela. Pobre
Augusto aventureiro, sempre brincando e invadindo terrenos baldios.
Histórias daquele tipo eram um golpe desleal contra ele.
Marilene acenava vários bons dias padrões para os colegas vi-
zinhos, felizmente ser criança deixava Augusto isento disso. O garoto
não estava no seu melhor dia.
— Eu só queria ficar em casa que nem as crianças do futuro,
elas aprendem tudo pela internet. — disse, com a voz querendo embar-

31
O manifesto do fim do mundo

gar.
Marilene revirou os olhos. O começo de um dia penoso com
faxinas e ela ainda precisava repetir o de sempre. Inconveniente fase
ruim de comparações com a vida de outros “amiguinhos” mais endi-
nheirados.
— A internet é coisa de adulto. Está cheia de esculhambação.
— disse, num tom de educadora. Já tinha se tranquilizado.
— Eu não vou pesquisar xanas nos sites, mãe. — Augusto dis-
se.
E Marilene parou, ajoelhou-se encarando o filho como se ele
acabasse de ter recitado alguma heresia. Novamente, ela ficou contra
o Sol, seus cabelos encaracolados balançando enquanto a pele exibia
franzidos de expressão.
— Como é essa história, menino? Onde você está aprenden-
do isso? — perguntou na ofensiva, contida. Para a sorte do garoto, a
escola estava logo ali perto, e Marilene não iria fazer uma cena. Não
traria mais problemas para ambos, não tão bem vistos pelo restante da
comunidade. — Que porra de palavra é essa? Meu Deus!
Augusto fez bico. No seu infantil raciocínio, percebeu que ti-
nha mesmo ido longe demais. Não era para ele ficar soltando os termos
engraçados que o Bola soltava. Adultos eram sempre muito chatos.
— Anda, Augusto! – Marilene insistiu — Você ouviu isso
onde? Se uma dessas professoras de merda escuta isso você nem ima-
gina o problema que vai dar pra mim.
Por sorte, a mãe esfriou quando avistou, logo atrás, Cecília,
parecia uma boba sempre com seus sorrisos e inocência estampados.
Não saía da cartela entre rosa e branco, e convencia bem o personagem
estereotipado da tutora amorosa que tinha para si. Um coque e óculos
cênicos completavam-na. Sempre andando de forma polida com a saia

32
O manifesto do fim do mundo

lápis que tinha cheiro de café.


Amplamente teatral.
— Oi, Augusto! Oi, mãe Marilene! Bom dia! Não está um tem-
po vivo? Mais uma vez para agradecermos o quanto essa terra é aben-
çoada. — disse adornada pelos raios solares, tinha surgido como um
anjo trazendo as boas novas. — Ou mais um dia de Russinha Amada
sem nenhum caso do Rarizes. — brincou, mas sua empolgação não era
tão convincente.
— Oi, Cecília. — Marilene respondeu desconfiada, olhou para
o filho e para ela — Como anda esse rapaz na escola? Está dando muito
trabalho? — precisava agir como mãe interessada.
A outra riu, pendeu a cabeça para o lado, tão amorosa e tão
gentil.
— Ele está ótimo! Ficaria perfeito se não se envolvesse com
os danadinhos da turma do fundão! Qualquer dia eu desarticulo essa
“quadrilha”. — Contou no tom passivo-agressivo mais aceitável possí-
vel.
Augusto viu a mão gelar, mesmo no campo frágil calorento.
Atrás de Cecília, mais crianças chegavam com os pais. Algumas sozi-
nhas, mas todos interativos. Ansiosos e não era para as aulas.
— Em casa, vamos conversar. — Marilene deu um empurrão-
zinho insultuoso no garoto, deixando-o rumar murcho até as crianças.
Não cumprimentou os dois amigos que gritaram seu nome invocan-
do-o, provavelmente a turma do Bola. Dois garotos, um magro e um
gordinho, com roupas melhores que a de quase toda a classe, chamati-
vas demais para uma escola. Qualquer dia o prefeito também faria algo
com relação à farda escolar. A questão sempre foi bem mais do que um
mero protocolo de padronização.
Cecília pôs as duas mãos na frente da saia lápis, observando

33
O manifesto do fim do mundo

Augusto ir se despedaçando de vergonha. O cabelinho desarrumando


era diferente do da mãe, não tão enrolado.
Marilene se aproximou da professora, não estava interessada
em crianças.
— E aí, Cecília? Como estão as coisas? — perguntou, colo-
cando as duas mãos no bolso de trás do short, querendo simular uma
descontração.
Foi recebida com frieza. A professora deu um passo para trás
com uma linguagem corporal de repúdio, se pudesse nem tocaria o
chão.
— Estão bem... Por quê?
— Não sei. – Marilene também amoleceu — Só puxando con-
versa... — atrás de atenção?
— Mas, assim... — Cecília não prolongaria um mal-estar de
esquina que se formou ali — Está tudo bem. A escola já recebeu a
dose das flores de dona Josefina, estamos todos perfumados e seguros.
— Deu com a mão para o jardim vertical perto da janela, as paredes
descascando conceituavam um contraste estético interessante com as
flores violetas coloridas, pareciam pinturas antigas. — E somos aben-
çoados.
Fiel Jerônimo recita novamente: “Sempre fomos abençoados,
mas precisamos ficar vigilantes...”
Marilene arqueou as sobrancelhas, fingindo estar interessada
numa conversa sobre flores. Não que ela tivesse algo contra o império
floral de Fortaleza Florida. Algumas crianças gritaram quando um dos
meninos, bem atrás, tinha caído. Cecília seria breve.
— Sim, sim... Abençoados... Mas, então, Cecília, você está sa-
bendo do ônibus de São Paulo chegando? Em anos, não recebemos um
de lá... — Contou, rápida — Deise me disse, sempre nossa fofoquinha

34
O manifesto do fim do mundo

de amiga.
Pontos desnecessários para uma forçada de intimidade.
A professora ficou realmente surpresa, apertou os olhinhos
entre o desdém e a impaciência. Cecília tinha a poderosa habilidade de
ficar doce entre os maneirismos. O que já tinha lhe livrado de muitas,
ela só preferia mesmo ficar numa posição “acima”, da forma como seu
ego sempre mandara.
— Nossa. Quem será que está vindo? — perguntou, lenta, ex-
clamando perfeitamente todas as palavras como uma palestrante. Ha-
via desinteresse na voz.
— Não se faz de doida! É o filho ingrato de dona Raimundi-
nha! — Marilene quase deu um tapinha no ombro da professora, sorte
que estavam distante — Maior bafafá.
— Que surpresa! — Cecília foi rápida na resposta, não queria
continuar a discussão — Ela ficará feliz com essa visita, aposto! — e
foi se distanciando. Apontou involuntariamente para uma quase briga
acontecendo, precisava intervir. Sorrindo com os olhos.
— Marilene, preciso ir, depois conversamos. Mande um beijo
para dona Josefa! — deu um tchauzinho — Ela está sempre muito bo-
nita quando a vejo na igreja.
A outra, coitada, ficou prostrada perdendo o gás do sorriso.
Continuou alguns minutos fitando o exército mirim ao comando da
graciosa pernuda, parecia uma Ema entre anões, o retrato que Marile-
ne criou rápido na sua cabeça.
Quer se aparecer... Se acha a rainha da cocada preta.
Aquelas respostas automáticas e piegas de Cecília, Marilene
bem sabia o porquê. A professora nunca queria se envolver com nada
polêmico, sempre disse achar fofocas irritantes. Era tão complacente
com o circo de aparências de Russinha Amada. E, ainda por cima, sua

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O manifesto do fim do mundo

arrogância enraizada por participar da congregação de fiel Jerônimo.


Sem nada para segurá-la ali, Marilene deu meia-volta, porque
já estava atrasada para a faxina daquele dia. E dona Josefa sabia bem
como irritá-la com seus comentários sinuosos: “Se você não tivesse
chegado, eu que iria começar a limpar isso daqui...” Irritantes, por si-
nal.
Um verdadeiro teste de paciência.
Então, que fosse logo.
Durante o caminho, breve anotações. Os comerciantes só fica-
vam na porta chamando os pedestres para contar sobre as promoções.
Placas pinchadas e com erros ortográficos não eram suficientes, carros
de sons também não. Para terminar a dramaticidade daquela manhã,
só uma boa FM, com aquelas serenatas antigas cheias de instrumentais
nostálgicos, nada de música moderna ou pop mesclado com funk das
paradas. Eram dois Brasis acontecendo.
No labirinto de simplicidade rodeado pelo Sol do castigador,
Marilene, cheia de nós na cabeça, alguns sobre o almoço da exigente
dona Josefa. No intervalo rápido, pensando sobre uma vida laboral e
ainda se surpreendia com seus sonhos e vacilos oníricos. Porque apro-
veitou duas frases apaixonadas do cantor de rádio, e sorriu só para si,
na quietude de sua intimidade acesa.
Não obstante, Marilene não lidava bem com facilidades. Por
pouco não perdeu o chinelo, ou a perna, num rápido acidente de trân-
sito na esquina. Parou perto do esgoto e fez cara feia para o vidro fumê
que sequer foi abaixado do veículo grandalhão. Teve sorte porque ele
não estava “funcionando”, senão iria chegar encharcada de bactericida.
O cano grosso e com eco acima do veículo de limpeza em breve iria
funcionar.
Meses depois do fim de um problema de saúde e o caminhão

36
O manifesto do fim do mundo

pulverizador parecia mais um alerta ameaçador do que um aliado. Cir-


culando fúnebre, avisando-os sobre possíveis futuros catastróficos. Do
outro lado, Marilene obteve uma outra interpretação. Triste efêmero.
Tudo estava muito suspenso. Perto de desmoronar.

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O manifesto do fim do mundo

Capítulo 3 –
Giovani, chá e mel.

G
— iovani, pausa.
Igor pediu vendo o amigo nos momentos finais limpando o
freezer, no fundo da floricultura. A sala recheada de violetas coloridas,
até parecia que só tinha aquela espécie.
Dona Josefina tinha ido mais além, bem depois de jarrinhos
colorindo a entrada, ou plaquinhas rosadas que cultuavam o delica-
do espaço. Um lugar amplamente iluminado, bem ventilado e cheio
de cuidados com as protagonistas cheirosas. Seu Antônio tinha com-
plementado com objetos rústicos e decorativos, como cestinhas orna-
mentais e plaquinhas que direcionavam por todas as seções. Bem atrás,
uma portinha roxa que para uma área livre com mais espécies.
— Amém! Já iria desmaiar de fome. — levantou-se limpan-
do o traseiro, deu aquela coçada básica na barba ralinha do queixo,
notando o cheiro do produto de limpeza, um tom parecido com o de
alvejante. Giovani, ao passar, invejou o armário de sensações de dona

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O manifesto do fim do mundo

Josefina, cheio de fragrâncias especiais que a mulher pesquisava e cria-


va, mas que nunca foram pra frente no quesito negócios. Funcionava
mais como um hobby.
Foi chegando com simpatia e deixou Igor rindo do outro lado
do balcão. É claro que ele iria responder com o dedo do meio.
— Vai se foder, Igor. – A voz fanha e de tenor. Giovani desfi-
lou e dançou com as mãos blasé, cabendo dentro de uma feminilidade
fluída. A barriga, prostrada de anos de boêmia, balançava com os ges-
tos da dancinha — Sou independente, endinheirada, com saudades de
jogar o cabelão.
— É “caricata” mesmo, como você diz. E cuidado com a boca
ou eu te demito. — Igor disse balançando a cabeça.
— Como se tu me pagasse... Coitado! Madame Josefina é
quem banca os mimos da mamãe aqui. — Giovani balançou os peitos,
apertando-os como uma dançarina.
— Chega, Gio! Os clientes vão se assustar. — Igor deu com a
mão. Continuou sorrindo.
— Só o fiel Jerônimo. — respondeu, passando a flanela na testa
enrugada. Nem mesmo com a floricultura lotada de ar-condicionado o
calor cessara.
— E a corja dele. — Igor completou com uma arqueada rápida
de sobrancelhas — Eu tenho certeza de que aquele homem não gosta
da mãe nem do pai...
— Sem preconceitos, rapaz. — Giovani regulou com deboche
e, depois, apoiou-se no balcão organizado com cartões de visitas e mais
flores — Deus ama a todos, até os que pregam ódio.
Igor entortou os lábios e deu uma olhadela significativa.
— Nem você acreditaria nisso.
— E ainda tem veadinho que embarca nessa. Mas... Cada um

39
O manifesto do fim do mundo

sabe onde o calçado aperta. — Giovani deu com os ombros.


Igor suspirou e riu. As alfinetadas de Giovani eram, com certe-
za, a melhor parte do dia. Em uma boa manhã de trabalho, você pode-
ria ficar atualizado dos acontecimentos da rua de baixo, Floresta Dois,
as fronteiras com Piripiri, onde o amigo morava. Mesmo que o lugar
fosse bastante periférico, ainda assim era melhor que o antigo. Qual-
quer situação seria mais benéfica do que mendigar pelas ruas atrás de
trabalho, com fome e sujo. Antes da pandemia, o Brasil só aumentava
suas feridas, a cajadada final veio em seguida.
Vozes no fundo, algo parecido com cumprimentos e res-
postas. Só uma pessoa para ter tanta popularidade recebendo
inúmeros cortejos. Triunfal e sorridente, dona Josefina, com o coque
característico, cabelos lisos que escapavam, covinhas de beleza e sua
áurea de luz. Como se chegasse para consertar todos os problemas do
mundo. Por pouco, ela não o fez, pelo menos, com relação a muitas
pessoas e Russinha Amada.
Giovani endireitou-se, respeitava muito a chefe e toda a famí-
lia. Tinha uma oportunidade de poder comer e dormir com conforto
graças a eles. Quando toda a sociedade ficou de costas para uma vítima
do conservadorismo local, aquela família o acolheu. Seria eternamente
grato.
A porta abriu com um sininho tão delicado quanto quem che-
gou.
— Já almoçaram, meninos? — dona Josefina, no seu melhor
retrato dos quarenta, sorriu franzindo os olhos. Carisma sem fim.
— Ainda não, mãe. — Igor disse com um apontamento na voz.
Algo que o esperto Giovani notou, mas não iria comentar, sabia dos
seus limites.
— Vamos já! Estava só terminando de limpar o freezer. — Ele

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O manifesto do fim do mundo

apontou pra caixa branca no fundo da encantada floricultura. Dois ris-


quinhos de ferrugem, mas nada demais.
— Ótimo! Irei para a minha sala, já passei no restaurante e
deixei um crédito para vocês, hoje é sexta, dia de felicidade! — Giovani
se animou quando soube que iria comer no restaurante do seu Galiza,
um dos mais chiques de Russinha Amada. Vez ou outra dona Josefi-
na visitava os de Piripiri, também era uma figura imponente no outro
lado da divisa.
Igor repetiu com a cabeça que sim, ficou pensativo observan-
do a mãe ir à sala, acariciando as belíssimas flores coloridas, o mural
de violetas especiais que representava a caminha das flores. Um espe-
táculo.
— Mãe. — Resolveu falar. Giovani reparou que teve uma per-
ceptível preparação antes, Igor tinha daquilo, alguns pormenores que
só ele compreendia.
— Sim, meu amor. — Josefina se virou. Antes, arrancou uma
violeta gorducha com pétalas vivas. Ela cresceu um sorriso.
— A senhora soube que o Rafael está voltando?
Duas buzinas internas, o som prolongado pelo espaço até che-
gar a todos os ouvidos, o sinal para os adormecidos.
Não que aquilo tivesse abalado dona Josefina, só que ela não
precisou fingir nenhuma cerimônia, nem mesmo na frente de Giovani.
A mulher exprimiu as bochechas com o canto dos lábios. Os olhos
mudaram de significado.
— Interessante! Talvez, agora ele possa cuidar da avó. Nunca
mais a vi.
E bateu a porta.
Giovani arregalou os olhos e tentou quebrar o clima retesado,
não gostava de detalhes acontecendo nas entrelinhas.

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O manifesto do fim do mundo

— E você não me contou isso? Nem eu sabia dessa. Esse Rafael


parece ser fichado pelo povo daqui... Que amigo viu...
— Ele foi bem escroto... Enfim. — Igor desenhou ao rosto que
não queria prolongar a conversa, e Giovani, com seu estudo de lingua-
gem corporal, entendeu. Não seria esse o problema.
— Igor, deixa eu te contar uma coisa. Eu estou encabulado
com uma dúvida... — tirou o celular do bolso da calça jeans, surrada.
Sua guerreira do dia a dia. A atmosfera já tinha mudado.
O aparelho travou algumas vezes, não aquiesceu nem com a
ameaça de Giovani. Nunca foi tão necessária a regra do três para não
dar um fim catártico à velha geringonça. Só depois de segundos a foto
abriu.
— Olha... De quem será essa orelha? Aposto que é de algum
casado sigiloso daqui... — Giovani mostrou o printscreen do Glamour, um
dos milhares de aplicativos inventados para namoro. Existiam aos bal-
des e para todos os gostos, até se você, de repente, quisesse formar uma
turma de desconhecidos para festejarem num motel chique e temático.
— Giovani, como vou saber? É uma orelha! — Igor voltou ao
pique, deu uma risada. Era estranho o modo de sociabilidade dos apli-
cativos. A pessoa do outro lado tinha postado somente uma foto com
a orelha ampliada, nada mais. Para não ser tão raso, tinham alguns
dados, como idade e o dote, tudo sempre objetivo — Você já está de
novo nos aplicativos? E a confusão com o marido da Ruth? Não te fez
sair para sempre desse mundo?
O amigo concordou, faceiro.
— Claro que não. Uma besteira daquelas. Só quem perde
tempo não querendo namorar aqui é você.

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O manifesto do fim do mundo

Capítulo 4 –
Perto de você.

D istante de um circo florido, horas mais tarde, bem no inter-


valo onde nada acontece em uma cidade pequena... quando todas as
feras voltam para o ninho e está vistoso o quarto, as cortinas balançan-
do na falsa sensação de brisa, dissimuladas como as sensações em tor-
no do cômodo. Um local grande, com prateleiras e objetos nostálgicos,
uma mesinha, uma TV, relíquias metálicas demais para combinar com
o restante. O guarda-roupas, que era uma história para o casal, branco
e imponente. Observando os toques carinhosos e com sussurros.
Igor não fazia barulho ao entrar em casa, era um pecado. A
casa podia engolir qualquer um. Deixando o ar cênico de Russinha
Amada, a pracinha perto dali, as conversas dos vizinhos e as suposi-
ções sobre dona Raimundinha, finalmente uma fortaleza mais sólida.
Sem tantos questionamentos sociais.
Ele não acenou para as flores do jardim, tratou de ir direto
para a sala, que contemplava um corredor escuro com os quartos. No

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O manifesto do fim do mundo

fundo, a porta principal, o cômodo dos pais. Cheio de pensamentos


com enfermos.
O relógio tinha o som mais alto, de um modelo circular co-
mum. Um dos poucos objetos “rasos” numa casa suntuosa, feita de
gerações e de negócios bem administrados. Agora adornada por flores
e mais finanças. Branca, para se ter bem mais espaço do que já tinha.
Quando Igor se sentou no sofá e descansou os pés em uma das almo-
fadas, sua visão se chocou com a mesinha de porta-retratos no canto.
Rostos felizes, dona Josefina, ele e seu Antônio, no dia da inauguração
de Fortaleza Florida. Logo depois, o avô. Um homem sério rodeado de
crianças, filhos dos seus empregados.
Quanto mais ele olhava para a imagem congelada, mais força
ela perdia. Os sorrisos ficavam fracos, incluindo os dos pequeninos.
Alguns murmúrios vieram pelo corredor. Roberta, a empre-
gada, já tinha ido embora. Prova disso era a sempre aberta porta do
armário, porque ela não deixaria de levar um pouco do almoço para
a janta. No outro dia, os vasilhames caros de dona Josefina apareciam
limpos no maior cuidado do mundo.
Igor, no entanto, voltou-se para a conversa enigmática. Não
ligaria a TV, sua atenção estava muito dispersa.
A cozinha tinha um cheiro bom, sedutor, mas não iria beliscar
nada. Seus pequenos prazeres pareciam mortos demais, um resumo
ligeiro.
Levantou-se, investigativo, e adentrou a escuridão do corre-
dor. A luz fazia com que partículas de poeira ficassem suspensas e vi-
síveis entre o breu. A janela da sala não era, entretanto, suficiente para
abarcar muita coisa. Uma casa sinestésica e triste.
— Mãe... — deu dois toques na porta. Aproximou lentamente
a orelha, era engraçado pensar que aquilo vinha de filmes clichês. Seu

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O manifesto do fim do mundo

celular vibrou, no mínimo alguma notificação boba do Instagram, nada


demais.
O barulho abafado cessou por minutos; depois, algumas pega-
das sonoras. Josefina abriu a porta com um semblante bem oposto de
quando estava na floricultura.
— Está tudo bem? O paizinho está bem? — Igor se preocupou
mais.
A mãe reorganizou a expressão, seus movimentos pareciam
celestiais, lentos e incisivos. Dona de uma razão que lhe cabia median-
te todo o ornamento de delicadeza e força. Fazendo parte de um siste-
ma de discrição único. O universo transversal de Josefina.
— Ele não está comigo? Estou cuidando dele. Ele vai ficar
bem.
Igor marejou os olhos, tinha algo na força daquelas palavras
que o atingiu de forma desleal.
— Ele vai ficar bem. — dona Josefina repetiu, com calma.
— Mãe, tem certeza?
Josefina pôs a mão no ombro do filho, cravou as unhas brancas
pressionadas, eletrizando todos os caminhos. O carinho de uma mãe
forte, mística e que andava na borda do fim do mundo.
Mas, então, um detalhe. Entre o show de sombras e escuridão,
a janela do quarto principal deixava a luz socar detalhes, reacendendo
a dinamicidade das brisas, mais oníricas que naturais. As cortinas fluí-
das brincavam perto da cama, quando um homem magro levantou e
ergueu o braço.
“Ele não está com Rarizes. Ele não está doente, só é um mal-es-
tar...”
O antebraço era um músculo cheio de veias, ossudo. Chacoa-
lhando para conseguir um apoio de força no ar, exibindo os nós de-

45
O manifesto do fim do mundo

siguais e grandes demais, como os de um demônio de garras. A luz


desenhou bem o rosto de seu Antônio. Entregou somente para Igor a
familiar expressão no rosto. A mesma de quando ele brincava e entre-
gava uma artimanha inteligente, e o pai, orgulhoso, não se segurava
comprimindo os olhos e mostrando a gengiva num sorriso celebrável,
feito para engrandecer. Para expandir mais ainda o deslocado carinho
entre ambos.
Mas, daquela vez, os dentes ficaram feios no rosto de seu An-
tônio. As ondas, as profundidades ao redor dos ossos do crânio e dos
olhos formavam sombras deploráveis com alguns tons roxeados anê-
micos. Uma respiração pesada foi sentida visualmente, não precisava
ser ouvida. Igor esquivou a visão e Josefina escondeu com a porta, não
poderia tirar a imagem da cabeça do rapaz, mas poderia acalmá-lo
acariciando agora o rosto rosado com a cobertura gourmet da barba
ralinha.
— Ele não está doente. — Josefina foi mais estridente.
— Mãe e...
E ela foi estalando os dedos, para se controlar. O toque foi au-
mentando até engolir o que Igor iria falar. Ele foi ficando com a visão
mais turva, reconfortando-se com o próprio silêncio antes de acatar o
pedido da mulher. Não iria aborrecê-la mais. Sua própria cabeça foi lhe
dando as respostas rápidas para se retirar e deixar a mãe no comando.
Ela faria um bom trabalho, como sempre.
O pai vivia muito ausente, não era incomum. Aquele quarto era
confiável, sua mãe era confiável, a fortaleza daquela mansão era confiá-
vel. A solidão tinha sua própria confiança, quando junta da sobriedade.
Mas por que aquele espectro era tão frágil como mentiras malfeitas?
— Tudo bem? — Josefina se juntou à porta querendo fechá-la.
Era hora de interromper aquela conversa. Igor assentiu que sim, deu

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O manifesto do fim do mundo

um aceno de agrado para a mãe pelo ótimo trabalho que ela sempre
teve, por ser tão incrível e amorosa para aquela família. Por ter feito de
tudo para ter salvado Márcia, a filha que Russinha Amada perdeu cedo
demais, uma grande colega de trabalho, balconista exemplar, esforçada.
Não tão forte para consigo mesma. Por desde o começo ter sido... Amo-
rosa?
Igor deixou o corredor e um clique da porta fechada cessou o
universo de microacontecimentos antes. Seguiu, um pouco tonto, até
a sala, após a bofetada paradoxalmente carinhosa que tinha levado. A
sala rodopiou até parar, mas a nitidez continuava espontânea, as cores
se misturando perto de uma obra à óleo.
Minutos depois, Igor se voltaria para o único acontecimento
que ele lutava para guardar em segredo. Com as emoções à flor da pele,
tinha tomado uma atitude, perto de ficar face a face com os “antes” de
tudo. Ele e toda Russinha Amada iriam aguardar, com suas divergên-
cias, a chegada de Rafael. Bem perto da estrada de fantasmas, no berço
das despedidas.

47
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 5 –
Perspicaz.

M arilene também estava suada, trocando sua atenção entre


a louça lavada e o celular riscado por conta do mau uso. Vez ou outra,
o aparelhinho piscava por conta de um defeito, sua sensibilidade era
ativada de hora em hora. Marilene achava aquilo de um luxo, era seu
amigo particular alertando-a sobre o tempo. Para compensar alguns
vazios. Por vezes, interrompendo os mórbidos pensamentos que pai-
ravam na sua cabeça, alguns deles envolvidos com a impaciente dona
Josefa.
Uma casinha simples, histórica, parte do avanço transgressor
que Piripiri não soube manipular. A principal cidade tinha sua Praça
da Bandeira, suas impessoalidades, seu comércio abastecido, não que-
ria nada com um pedaço de extensão. E dona Josefa fazia parte dessa
rebeldia, uma das primeiras moradoras de Russinha Amada. Aquela
que enxergou a virada do século e a chegada de uma geração faminta,
que combinava com sua ansiedade de rotina. Só se incomodava com

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O manifesto do fim do mundo

a modernidade dos tempos. Não só ela, mas boa parte da população,


acreditava ficar estável contra as areias do tempo.
Marilene perfilava os pratos com todo o cuidado, mais por
medo do que por zelo. As flores ornamentando a cozinha, um cômodo
pequeno, sujo com manchas de épocas e de gordura. Contava vez ou
outra alguma explosão de panela de pressão. Um cheiro de doméstico
e de velhinhos, fragrância infantil e familiar. A geladeira com marcas
de dedos, perto de si, com respingos da chuva que Marilene criava la-
vando a louça. Tudo encaixado no seu lugar, sem transgressões, apenas
participando daquele ciclo que só destruía quem estava no centro dele.
Ela.
Marilene era uma mulher de ideias muito expressivas, co-
meçou esfregando um prato e depois o descansou na pia branca com
manchas. Virou a cabeça para a esquerda e mirou numa espécie de
jardim vertical pequeno da parede ao lado, mal endireitado. Feito às
pressas por algum dos filhos ocupado e negligentes de dona Josefa.
Porque àquela mulher só restava uma solidão para combinar com seu
jeito amargo.
As violetas especiais com suas pétalas quase ovais e juvenis pa-
reciam oprimi-la também. Marilene imaginou uma ordem vindo das
plantas, estavam ali para vigiá-la, para que não roubasse um garfo tor-
to qualquer daquela residência.
Não tinha uma brisa sequer, nenhuma para desestabilizar as
flores, fazendo-as cessar a perseguição, porque Marilene não era cul-
pada. Marilene não era ladra por ser quem era. Marilene era bem mais
do que... Marilene.
O som da TV no fundo e um programa humorístico de inte-
ração com a internet, dona Josefa iria reclamar em minutos. Maldiria
a programação ruim da atualidade, que se dividia entre conteúdos jo-

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O manifesto do fim do mundo

viais, como memes, e os rastros de destruição econômica deixados pelo


Rarizes. Que se foda o Rarizes, uma mulher religiosa e idosa não podia
ter direito a ter sua novela antiga da tarde? Murmúrios de indignação.
Iria sobrar pra alguém.
— Desgraça de internet... É por isso que esse mundo está de
cabeça para baixo. — se Marilene escutou, era porque deveria escutar,
dona Josefa não jogava sem estratégia.
A mulher deixou a torneira escorrendo, deu alguns passos e
viu a porta aberta, no fundo, depois da sala grande. Uma cadeira de
balanço antiga, que não lhe dava bons sentimentos, a idosa de cabelos
brancos, com dobras marcando um vestido azul-celeste, segurando o
terço de lado. A mão tremendo quando na escolha de um canal. Por
pouco, deixaria o controle arrebentar de vez, se caísse novamente. A
cama com uma colcha de renda, que tinha um cheiro de dona Josefa
bem mais do que ela em si. Sem reparar em alguns aparelhos ortopédi-
cos espalhados.
— É aberração mostrando invertido... É aberração mostrando
promiscuidade... — dona Josefa já convergiu mais para si — É uma
regalia trabalhista todo dia para ferrar com o brasileiro... É uma des-
graça, meu grande senhor. É fim de mundo.
Marilene desenhou no rosto uma expressão de transversali-
dade. Novamente, refez o motivo das reclamações da patroa, mental-
mente, fazendo-se algumas perguntas. Nenhuma delas teria uma res-
posta. E se perguntasse para as violetas coloridas? Pareciam conhecer
mais dona Josefa, afinal, estavam ali todos os dias. Filhas arrogantes
que eram presentes, tinham cara de vilãs, não era só porque coloravam
uma parede que deveriam ser confiáveis. O cheiro já não era tão interes-
sante assim.
Marilene tirou o sabão das mãos, enxugou-as numa toalhinha

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O manifesto do fim do mundo

que fora proibida de usar. Tinha sido presente também da “querida”


dona Josefina. Mas estava ali, era conveniente, não passava de um pano
bordado qualquer comprado no centro de Piripiri ou talvez de Teresi-
na. Ninguém estava vendo.
E teve uma ideia. Se portava como uma criança entretida com
obras experimentais de um museu. Primeiro, uma conversa visual e só
depois uma resposta. A mulher enfiou as mãos nos jarros de cerâmica,
capturando com agressividade cada talinho das rosas, algumas pétalas
acabaram caindo.
“Inferno...”
Depois de um raspão, reuniu as plantas num saco de super-
mercado e arremessou pro balde de plástico sujo, um antigo recipiente
de roupa de bebê. Algum presente idiota que sobrou naquela casa. Ma-
rilene limpou a terra que ficou no chão marrom, de cerâmica antiga, e
deu algumas borrifadas com álcool em gel. Sem saber exatamente por
que estava fazendo aquele procedimento, mas se deleitando com cada
investida.
De joelhos, passou a mão no cabelo encaracolado que esca-
pava, e fez bico de força, esfregando onde já não precisava. O chão
brilhando refletindo a luz do verão da tarde.
— O que está fazendo, menina? – dona Josefa surgiu fantas-
magórica. Marilene, de tão concentrada, não percebeu nem a cerimô-
nia que era a velha se levantar da cadeira. Cheia de resmungos e reque-
brados.
Vendo-a de baixo para cima, dona Josefa parecia um monu-
mento, com dobras e rugas, um cheiro de lavanda forte com um azedi-
nho no final de suor. Configurações notáveis do calor.
— Trocando as flores. Dona Josefina pediu que todos fossem
buscar as novas flores novas depois. — mentiu e continuou implacável

51
O manifesto do fim do mundo

com sua faxina de excessos.


— E eu mandei você fazer isso? — dona Josefa cerrou o punho
e o levou para o ar, tremendo. Talvez quisesse apontar o indicador e só
não tinha força para isso. A voz era tremida, entre a vida e a morte.
Marilene foi desacelerando, mas não se voltaria para a idosa.
— Foram ordens de dona Josefina. — continuou, dissimulada.
— Ela manda na casa dela, não na minha. — dona Josefa res-
pondeu, levantando com dificuldade os pés para caminhar até o bal-
cão. Andava de forma arrastada, às vezes cênica, para que todos con-
templassem a dor que era ser ela, uma mulher sofrida.
Pegou uma maçã da cestinha de frutas e balançou-a no ar.
— Ela manda na casa dela... Na casa dela... Só na casa dela...
— foi reclamando repetidas vezes, caminhando de volta para o quarto.
Precisava de ajuda, mas não daria esse gostinho para ninguém, nem
mesmo para a familiar Marilene.
“Aquela mulher se acha demais...”
— Tá, Marilene. Você quem sabe... — reclamou da porta, como
se a empregada tivesse dito algo. A outra só continuou passando o
pano, bem lentamente, desfrutando de uma discussão que só podia ter
na sua cabeça. Alguns respingos de suor caíam, e ela os limpava com
prazer, podia fazer aquilo o dia todo.
— Você é quem decide as coisas agora aqui, eu não tenho mais
voz para nada. Não mando em nada, pode ir. Pode tomar logo... —
dona Josefa perdia o fôlego, quase tossindo — Pode tomar logo essa
casa velha. Quando eu morrer, pode ficar com essa merda toda.
Marilene não respondeu, estava na tangente e não pretendia
sair disso.
Dona Josefa franziu as poucas sobrancelhas, bicolor. Com o
silêncio, ela conseguia ficar mais irritada.

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O manifesto do fim do mundo

— Pois vá! Vá, Marilene, vá logo buscar as flores porque eu


gosto demais de Josefina. — agora sim dona Josefa ergueu o indicador,
deixou os olhos miúdos por conta da luz da sala, quando uma nu-
vem saía da frente do Sol e tudo voltava ao enérgico. Falava cuspindo,
uma explosão de saliva — Vá logo. Vá buscar porque eu não quero essa
parede sem minhas flores, elas que me fazem bem. Você sabe disso e
faz de propósito...
— Eu vou já, dona Josefa. — Marilene se levantou com um
sorriso para baixo, suas bolsas dos olhos estavam mais escuras naquele
dia — Meu expediente está acabando, não vou demorar.
— Vá mesmo! Vá logo, você sabe que eu fico doente sem
minhas violetas. Você sabe...
E fechou a porta. O que quer que tivesse continuado dentro do
seu quarto pouco importava para Marilene. Nenhuma palavra foi ab-
sorvida, só o sentimento ruim que foi digerindo enquanto terminava
com a louça. Já tinha se esquecido do mundo novamente, quem deve-
ria estar por ela não estava, mas agora ela tinha um pouco de liberdade.
O calor, muitas vezes, criava aquele tipo de miragem engraçada.
O celular acendeu sozinho novamente e Marlene agradeceu
o amigo. Foi toda teatral se curvando para ver as horas, talvez fosse a
hora para acatar o pedido do doutor Félix de um par de óculos. Mas,
comparado aos outros diversos quebradiços pelo seu corpo, uma visão
embaçada não era nada.
Quatro da tarde e Marilene soletrou a hora. Para ficar mais
engrandecido para si, o celular tinha mostrado sem ela pedir, e era
importante para quando o aparelhinho fazia aquilo, agindo como um
subalterno. Marilene faria caso, não era sempre que sua imaginação
recriava uma situação tão criativa sobre ela estar no comando e o de-
feito da queda do aparelho o ter transformado em seu empregado. Ele

53
O manifesto do fim do mundo

corria para contar as horas, aleatoriamente, como ela correria pra bus-
car flores, cordialmente. Cíclico, esquisito e louco. O tipo de coisa que
só ela refletia no seu íntimo, o que, por vezes, arrancava-lhe o riso.
De como seria julgada se contasse alguma de suas peculiaridades para
alguém, que não imaginavam que existia uma Marilene bem mais cria-
tiva, um pouco excêntrica, escondida.
Dessa vez, ela recebera uma mensagem de uma colega, Ro-
seana, a vizinha de trás. Não tinha muitos amigos, a notificação a sur-
preendeu, mesmo que o conteúdo nem tanto.
“Mulher, tu tá vendendo parte do teu quintal? Queria fazer
um puxadinho pro meu fi...”
Marilene digitou com dificuldade: “Mulher, eu não tenho
quintal, essa área é para lavar e estender a roupa. Mesmo que eu pre-
cise do dinheiro, não tenho como vender. Mas e aí? Como estão as
novidades?”
E ficou sem resposta.

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O manifesto do fim do mundo

Capítulo 6 –
Convergências

He’s coming.
Russinha Amada foi se aglomerando, com brechas soltas. O
carro da desinfecção já tinha passado naquele dia, pouco depois de
quase ter acertado Marilene. As ruas já estavam secas, polidas, só com
pedrinhas interrogativas espalhadas no chão quando os seus morado-
res caminhavam, esmagando-as. Intrigados entre si sobre quem tinha
conseguido a informação de que estava chegando alguém de São Paulo,
e o quão bizarro era “cultuar” aquilo. Mas todos acompanharam a his-
tória de dona Raimundinha, sabiam do peso daquela chegada.
Por isso, todos estavam ali, menos ela.
Eles achavam que não, mas a energia tinha sido mediada.
Murmuravam uns com os outros, respeitando alguma espécie de si-
lêncio que foi decidido no ar com o subconsciente coletivo. Não fariam
cena, como abobalhados.
Deise espiava no canto da porta, tinha visão privilegiada. Na-

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O manifesto do fim do mundo

quele dia, muitas pessoas foram comer do caldo de cana dela, com
uma particular aglomeração na frente da lanchonete. Ela tinha coloca-
do seu melhor broche de comício no lado do short jeans. Estava suada
e incomodada com o calor, puxando a blusa para não colar tanto ao
corpo reto.
Marilene levou Augusto para passear, como pretexto. E o me-
nino não fez caso, correu com ferocidade com outros garotos do bair-
ro, não tinham lição de matemática naquela tarde. Ela podia ao menos
olhar para o filho de vez em quando, mas já sabia que ele tomava conta
de si. Qualquer coisa era só voltar chorando.
E Igor, um pouco melhor da tontura que o fez dormir por
algumas horinhas, colou em Giovani. Tinham tanto tempo para ares
livres, que ficavam vigilantes com aqueles que desafiassem sua estabi-
lidade. Ambos também ficaram por ali perto na pracinha, acenaram
para os amigos, todos desconfiados, cada um lendo a mente do outro.
Curiosos. Outros somente mais aflitos...
Finalmente, fiel Jerônimo, autoridade religiosa, indiscutivel-
mente carismático, com uma magreza afiada que entortou sua coluna,
de tanto olhar para baixo salvando almas pecaminosas. O cabelo rali-
nho na cabeça, seus quarenta anos que não o fizeram tão bem assim.
Homem de respeito, engomadinho e de gravata, naquela tarde foi pas-
sar com dona Celeste, sua esposa, dona de casa com a mesma energia
branda da de dona Josefina. Parecia um esquilinho tímido com seus
olhos dissimulados.
Fiel Jerônimo acenou como se estivesse num culto, sentou-se
numa das bancadas quebradas da pracinha, antes do trabalho pesado.
Sim, iriam querer saber sua opinião sobre aquela chegada, foi do mes-
mo jeito quando o esquisito de branco, o tal de Marcos, abordou dona
Josefina para levar suas violetas coloridas. Ele sempre tinha a palavra

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O manifesto do fim do mundo

certa, o direcionamento raiz.


Todos foram cortejá-lo para perguntar sobre o culto daquele
domingo. Similarmente, para atiçá-lo, se não tinha algum breve co-
mentário antes da chegada inesperada, daquele ônibus que deveria tra-
zer algum “caos”.
“Você já agradeceu por Russinha Amada nunca ter tido um caso
sequer do Rarizes?”
Mas fiel Jerônimo era inteligente, sorria com os dentes tortos,
tinha um mau-hálito perdoável por conta de alguns jejuns, só gesticu-
lava com as mãos robustas e acariciava o generalizado. Não era hora
de falar. Era hora de observar, de ver pela adjacência as figuras que não
tinham tanto interesse pelo que tinha a dizer.
Duas pessoas foram fitadas pelo pastor, ambas construindo
seus próprios complexos paralelos, dentro de suas vidas infelizes. Uma
delas bem livre de seus confrontos maternos sobre uma criança desa-
justada naquele mundo. A mulher que ignorava descompassos. Que
não sabia conceituar o que era uma “rejeição pecadora”. E o outro, in-
serido à força naquela comunidade. Bem no epicentro mais conserva-
dor do Piauí. Expressivo e alegre.
Marilene e Giovani, dispersos, sem exatamente saberem o por-
quê de estarem ali. Mas assim mesmo foram. Para algo maior que os
ligava para sempre, exatamente no mesmo sentimento que toda a hu-
manidade quando confrontada com o espetáculo do fim do mundo.
— Igor, você conhece essa digital influencer? Olha como ela é
linda, é diferente. — Giovani tirou Igor de sua introspecção, não per-
guntaria no que ele estava pensando porque sabia a resposta. Igor con-
tava, por meio de “solturas”, com fiapos colecionados por Giovani. Já
sabia de muita coisa e era importante lhe fazer companhia para aquele
evento.

57
O manifesto do fim do mundo

O rapaz se virou e mirou o celular. Sorriu mecanicamente,


nada demais. Não era para ser mesmo.
— Marília? Não conheço... É de Teresina? — questionou ten-
tando dar importância. Seu pé estava tremendo, mais do que o nervo-
sismo poderia chacoalhar.
— Sim, ela se autointitula “digital influencer do bem”, porque
fala sobre cultura local e dicas de saúde, mas é só mais alguma mapoa
sem conteúdo... — Giovani se contradisse intimamente. Deu algumas
beliscadas na blusa de comício, puxando-a para cobrir toda a barriga.
Não estava fácil se refrescar nem com todo o batalhão de árvores por
cima, soltando fragmentos do sol da tarde entre as brechas da copa.
Giovani até podia questionar Igor por estar ansioso, mas seria
prolixo. Queria saber mais sobre aquela amizade que marcou tanto o
amigo. Como realmente era esse Rafael “tão odiado”? Dois passarinhos
pousaram no fio de um dos postes, conversavam mais que o restante
dos curiosos.
— Chegou! — do outro lado, Deise pontuou. Todos com ela na
mesma arquibancada.
Russinha Amada esticando o pescoço para a região da pista.
fingindo bem com alguns desvios, vez ou outra puxando um papo
para ficar no coadjuvante, mas sempre ali, bem à frente, perto da velha
cabaninha com o pneu, um símbolo que nunca receberia um tostão
de reforma. Não se adornavam insígnias ruins de despedidas. Conti-
nuaria a mesma, a passarela de quem iria e de quem chegava, com as
mesmas pedrinhas nostálgicas e rostos atravessados. Russinha Amada,
sem nenhum chamego de boas-vindas, sem absolutamente nada de
novo...
O ônibus bufou, depois de um ruído agudo. O motorista des-
conhecido abriu a porta dando espaço suficiente para quem fosse de-

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O manifesto do fim do mundo

sembarcar, evitando ser visto, evitando qualquer insinuação que pu-


desse ser feita sobre quem estava dentro do veículo.
Sem muitas mudanças, a não ser alguns riscos da idade e um
corpo mais volumoso, com o bem-feito trabalho da testosterona em
alguns garotos, a figura surgiu.
Rafael desceu, quieto. Sem tchauzinhos e sem escândalos.
Notável o afronte. “Sem tchauzinhos e sem escândalos.” Não
era como um turista empolgado sem conhecer ninguém, estava mais
para um retorno mórbido e tímido. Não tinha ninguém para cortejá-
-lo. Tinha somente Rafael e uma enorme barreira ao redor, impelindo
qualquer um dos curiosos moradores.
O rapaz não fitou nenhuma plateia. O cabelo, liso e preto, pu-
lou com duas mechas quando a brisa veio do Sul da pista, depois que
o ônibus partiu. A roupa não tinha estampas, não dava motivos para
detalhes. Era desinteressante, assim como ele. Caminhou mastigando
as pedrinhas, o tênis sujo, cabível para a idade, aproximou-se da antiga
casa.
Deise arregalou os olhos, não deixaria aquilo passar. Acenou
boquiaberta para Marilene, que pensou o mesmo. Outros não enten-
deram. Foram caindo a ficha quando a dona da lanchonete explicou,
rápido.
Rafael abriu a porta da casa com as chaves que estavam no
bolso, fez uma caretinha pelo ruído e entrou. Tendo o cuidado para
não bater, para não criar significações que não fossem somente sobre
fechar uma porta.
Mas então a questão que Deise levantou, e deu a ela um prota-
gonismo inteligente. Ela precisava retrucar alto, para valer.
— Como ele tem as chaves, se dona Raimundinha trocou há
meses por conta de “receios”?

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O manifesto do fim do mundo

Parte 2 –

Interconexões.

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O manifesto do fim do mundo

Capítulo 7 –
O começo, algum meio e ne-
nhum final.

A lgumas cidades são como músicas de verão: recheadas de


nostalgia, com um charme único praiano, em que você só tem a expe-
riência quando de fato toca o mar. São poesias bonitas e feias, algumas
rimam, outras são mais urgentes do que isso. Não há narrativas linea-
res, para nenhum dos moradores. Só há começos e meios, os finais
são particulares. Por vezes, recomeços. Mas, então, a estrutura de uma
música de verão. É de fácil compreensão, possui uma batida envolven-
te. É frágil, porque as pequenas sociedades são frágeis. A resistência
das identidades acontece com a força do coletivo, mas isso não acon-
tecia frequentemente em Russinha Amada. Era bem maior que todos
os vizinhos nervosos e enigmáticos, porque, com suas particularidades
sensíveis, o cordão de união entre a cidade era invisível, numa ideia
pouco discutida. Finito demais.
Então, um corpo esquisito retorna ao sistema, e a porção imu-

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O manifesto do fim do mundo

nológica se une para detalhar o invasor.


Dias se passaram e exatamente ninguém conseguiu ver Rafael
fora de seu espectro antissocial. Quem mora perto ainda tentou espiar,
com o ouvido, algum grito, alguma surpresa. Mas dentro das paredes
brancas e pinicadas não houve barulho. Dona Raimundinha não saía
há uma semana, ninguém tinha se preparado. Russinha Amada não
sabia lidar com investidas no escuro, tudo ali acontecia às claras, os
segredos ficavam para um segundo submundo, precisavam do conhe-
cimento de todos. E sobre aquela família a população já não sabia mais
de nada, há anos...
O sábado foi de luto, no sentido mais expressivo possível. Só o
que estava vivo mesmo era a interrogação em torno daquela chegada.
Russinha Amada já tinha tido visitantes esquisitos, mas pouco
conhecia seu terreno. Porque tudo acontecia exatamente no espaço in-
visual.
Igor deitou-se com as duas mãos por baixo do travesseiro, de
lado. Gostava de estender o carinho externo com o calor dos lençóis.
O quarto estava resfriado e soturno. Ele não se interessou muito pelo
aparelho celular notificando curtidas em suas fotos do Instagram. Sua
única função era olhar para frente, para o ponto fixo na parede, e en-
tender o que uma tardezinha de sábado podia contar para ele. Dentre
alguns mergulhos, a visão ficando com pontos luminosos quando fixa-
da na parede. Preparando alguns desenhos criativos da sua imagina-
ção, pensando exatamente nos acordes dourados da infância. Rafael.
Lembrou-se, e aquilo nunca tinha saído da sua cabeça, de
quando ele e o amigo, tão arteiro como ele, resolveram explorar as
regiões floridas ao redor de sua casa. A mãe, no auge de sua animo-
sidade, mais feliz, e o pai, sem tantas reclamações de saúde, pediam
com dor no coração para que ambos tivessem cuidado. Chegaram a

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O manifesto do fim do mundo

proibi-los de traquinagens com as flores, ou em qualquer lugar pelas


redondezas do sertão. Que poderiam ser pegos por alguma onça. Pi-
ripiri tinha seus bichos, e eles rondeavam Russinha Amada, como se
fossem guardas, querendo destruir o povo daquele lado.
Mas Igor e Rafael eram teimosos. O amigo costumava rir mais
naquela época, tinha o ímpeto do investigador.
Contou para Igor que tinha visto algo, um esquisitão que fica-
va rondeando todo fim de tarde pelas bordas da cidade, escondendo-se
no mato. Rafael morava perto, também se acalmava com o cheiro das
flores, solenes com poucas brisas de verão.
Então, os dois decidiram investigar. Igor exprimiu os olhos,
estava menos no quarto e mais dentro da recordação. Por mais que
tivesse bem fluído nos zumbidos de sua cabeça, algumas coisas foram
ficando mais claras. O arteiro Rafael o puxou para uma investigação,
ambos com seis anos. Depois de tantas conversas pausadas entre crian-
ças, decidiram uma aventura.
Foram de fininho pela rua de trás, alguns cercadinhos, colados
com a terra das pistas. O ar melancólico e quente, assoprando para que
eles fossem embora. Felizmente, naquela tarde, a cidade tinha relaxa-
do. No horizonte, os montes esverdeados com a simpatia do sertão.
Roupas no varal que dançavam desordenadas. As casinhas simples pe-
las quais os dois poderiam se esconder caso algum adulto aparecesse.
E o céu azul, de mãos no quadril, balançando a cabeça e prometendo
que contaria aos pais dos garotos se pudesse, na sua mais magnitude
transição de cores, com laranjas e roxos, celestiais.
Igor e Rafael se aproximaram do cercadinho. Depois das flo-
res, já era a fronteira de Piripiri com o quintal de alguma vizinha chata.
Vez ou outra alguma planta feia, com um verde forte, que teimava em
circular a madeira velha do cercado, ignorando o arame farpado. A luz

63
O manifesto do fim do mundo

foi diminuindo, parecia que o dia queria se esconder, com pressa.


Os dois riram, a adrenalina infantil era saborosa, como sucos
vermelhos. Rafael, que quando ria comprimia os olhinhos, contou rá-
pido para Igor que tinham que ficar esperando porque o monstro iria
aparecer. Ele tinha certeza. O amigo, coitado, estava com medo, mas
não podia revelar. Rezou para tudo não passar de uma suposição.
Um tiro no escuro.
Igor sentiu a cabeça querer vomitar teorias. Podia explodir
como uma dinamite caseira. O esfumaçado deixou turvo suas rápidas
conexões, malditas memórias.
Dois movimentos rápidos. Uma forma humanoide.
A brisa, em seguida. Cada flor se curvando para o lado oposto.
Quando lá no fundo, confundindo até a visão mais aguçada, Rafael
testava seu boato. E encontrava o seu primeiro risco de destino.
Restou, aos dois, apenas correr. Bem rápido, com os chineli-
nhos de areia alcançando o bumbum com as passadas expressivas. Até
a explosão de criatividade da infância que se sucedeu depois. Anos
depois, o terreno diminuindo para virar o fundo da sua casa, tudo não
passaria de uma miragem infantil.
Igor se encontrou com o outro. Quando os dois por pouco
se tocaram, a imagem evaporou. Agora, sozinho com a parede bran-
ca, cogitando pedir ajuda para reformular, se aquilo era lembrança ou
alucinação. Alguma piadinha do Rarizes, o vírus que causava esquizo-
frenia e se manifestava de forma diferente, que felizmente não ceifou
nenhuma vida de Russinha Amada. Um feito e tanto da miserável re-
gião. Só Piripiri perdeu entes, triste por demais.
Barulhos secos no corredor desconcentraram Igor, que levan-
tou num pulo.
Foram se aproximando da própria porta, os passos silenciosos

64
O manifesto do fim do mundo

como se aquela casa não fosse dele. A cartilagem da orelha grudou na


parede, e ele fez caretas, tentando decifrar alguns dos abafados. Podia
ser a mãe mudando a cama de lugar, ou podia ser o pai, meio adoenta-
do, reclamando. Tinha ficado mais razinza, e com razão.
Igor abriu a porta com cuidado, foi seguindo pelo corredor
abominando a luz da tardezinha de sábado. Eram diferentes os fachos
daquele dia, estavam mais extravagantes. Sua teoria girava em torno da
chegada de Rafael. O céu já tinha as mesmas tonalidades da infância,
por que não algumas alucinações? Chegou na ponta dos pés perto da
porta do quarto dos pais, a mão cercando a maçaneta para abri-la num
momento ríspido. E ouviu alguns soluços.
— ... Estão... Vai... Bem... Tu... Sim... Você vai ficar bem!
A voz feminina exclamava as pausas.
Dois estalos com os dedos, quando a mãe ficava nervosa. Ti-
nha aprendido aquele costume há algum tempo, o que não combinava
com seu oceano calmo feminino. Dona Josefina sempre era tão dúbia.
Depois disso, Igor não ouviu nada, a não ser o próprio zumbi-
do.
“Humanoides...”

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O manifesto do fim do mundo

Capítulo 8 –
Um pedaço de Giovani.

A vizinhança de Florestas Dois, um dos bairros mais legais


de Russinha Amada, conservava o tom pitoresco da cidade graças aos
cuidados voluntários e caridosos de dona Josefina, que contemplou
toda a região com violetas coloridas apagando o verde aborrecível de
algumas plantas. Era honrosa a atitude com a região mais pobre de
Russinha Amada. Conservá-la com cores e vida, transformando o co-
ração de toda a população. Dona Josefina era quase um deus, perfeita.
A erosão de algumas residências se fazia de estética perto das
flores. Os muros de cerca malfeitos e tortos também, incluindo uma
raríssima antiguidade, um orelhão na esquina. Logo depois, um barzi-
nho, uma quitanda. Ao redor, como gordura, inúmeras casas, cheias de
histórias e necessidades, nunca complacentes.
Bem ali, à deriva, Giovani encontrou um espaço à luz fresca.
Sábado à tarde, alguns gritos dos filhos dos vizinhos. Uma pe-
lada acontecendo, mas ele estava mais interessado num mundo bem

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O manifesto do fim do mundo

diferente. Balançava as pernas deitado, procurando as novidades pelas


redes. Deslumbrado com a tal digital influencer Marília, sorrindo para
o celular quando a garota do outro lado da tela era gentil. Dois mundos
que se uniam somente pela felicidade. Giovani opinava mentalmente,
ficava indignado quando a adolescente reclamava dos antipatizantes, e
sabia de cor o nome dos cachorros e de quase todos os amigos da rica
Marília, como a sua “best”, a esperta Joyce. Tudo muito distante dele;
agora, falando em quilômetros.
A casinha de Giovani não tinha forro e, por isso, ele ficava
desviando dos tiros solares que atravessavam as telhas. Criavam uma
estampa única e iluminada na cama. Ele só fazia cara feia, dava uma
coçada na barriga volumosa e rolava por cima das crateras de um col-
chão muito usado. Dentro da casa, um ecossistema colorido e vivo,
com o pouco suficiente, vindo de muito esforço e luta do rapaz.
Danilo, o vizinho carismático e amigo, que muito deu gra-
ças quando achou alguém tão igual a ele na cidade, vez ou outra fazia
aquela visita saudosa. Já tinha intimidade o suficiente para entrar sem
bater. Tinha uma chave com um cordãozinho colorido, um presente.
Danilo era o oposto de Giovani, não tão encorpado, pernas e braços
ossudos, era um pedaço de gente. Baixinho, mas tinha lá seu charme
com o cavanhaque. O cabelo era lambido natural, e levou anos para
que Danilo convencesse o amigo a não alisar o seu porque Giovani,
algum tempo atrás, estava numa batalha interna consigo, bem na crise
depois dos trinta. Tinha começado aquilo depois de ingressar de cabe-
ça no mundo de aparências do Instagram.
— Oi, bicha. O que tem nessa casa para comer? — perguntou
levantando o abafador. Um jeito de dizer “cheguei”. Sabia que não tinha
muita opção, então, uma água seria bem-vinda. A geladeira do espaço
estava enferrujada, mas cheia de histórias para contar, sobre todas as

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O manifesto do fim do mundo

casas por onde passou. Certa vez, durante uma mudança, por pouco
não caiu da carroceria. Um causo.
Giovani ficou calado, tinha escutado, mas estava concentrado
em Marília e em como ela era estonteante, o cabelo loiro balançando
enquanto retrucava sobre algum texto militante da internet. Sua orató-
ria sabia seduzir alguém.
— Gio? — Danilo repetiu e, depois, fez cara de desânimo —
Você está viciado em internet, já tá marcando encontros com esses
caminhoneiros que chegam aqui? —zombou.
Giovani fez cara feia.
— Tu que fica se pegando com qualquer resto de Piripiri. —
respondeu com a voz azeda. Danilo percebeu que ele não queria con-
versa.
Se sentou na cama ao lado do amigo e também acendeu com o
celular. Giovani, alguns minutos depois, lembrou-se de algo.
— Você limpou as mãos com álcool em gel?
— Se esse fosse o menor dos meus problemas... — Danilo de-
volveu — Você está de deboche?
— Quando estiver por aí esquizofrênico, pegando até mulher,
vamos ver... — Giovani ficou de lado na cama, o celular na frente do
rosto como se devesse toda sua vida ao objeto. A camisa de comício
não conseguiu segurar a barriga e, por isso, encolheu, expondo a sa-
liente.
Danilo revirou os olhos, tinha guardado toda sua lábia para
aquela tarde, já passava ouvindo as fofocas das clientes cabelereiras.
Assuntos na maioria das vezes enfadonhos, a não ser por algumas fo-
focas aqui e acolá.
— Ficou sabendo que uma cutia gordona passeou pelo bairro
hoje? Os filhos da dona Conceição abriram o berreiro com medo. A

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O manifesto do fim do mundo

bichinha não fez nada, só correu. — Danilo contou sorrindo.


E obteve o silêncio como resposta. Já estava se enfurecendo.
Giovani não podia ser tão insensível assim.
— Você passa o dia todo vendo os vídeos dessa patricinha loi-
ra. Tem que ser bem demente para dar audiência para esse tipo de
gente... Deus me livre. — levantou da cama depois da alfinetada, foi
beber água de novo, os rins agradeciam aquele nordestino — Agora a
ideia de usar calcinha se concretiza.
— Comentário problemático. Machista e homofóbico. — Gio-
vani respondeu, mas ainda ligado nos stories de Marilia — Eu gosto
dela, não tem problema nenhum nisso. E não. Não vou usar calcinha
por causa disso. Brincadeira idiota.
Danilo foi esquadrinhando a cozinha pequena, o cheiro ame-
no das violetas coloridas que ficavam compondo a harmonia tanto
dentro como fora de casa. Os copos que na verdade eram de supermer-
cado para venda de azeitonas. O segundo odor, de desinfetante joga-
do, provavelmente do banheiro. Pelo menos iria usar como argumento
para abrir outra discussão com Giovani.
Quando abriu a porta sanfonada, a surpresa, mais violetas co-
loridas no basculante, o sol quase era interrompido pelas várias péta-
las que brilhavam. Danilo nunca tinha ido muito com “novidades” da
natureza. Quando foi dar espaço para a luz, a surpreendente violeta se
contorceu, e ele jurou ver um furta cor, um brilho que percorreu pelo
talo. Era uma miragem do calor, e aquele cheiro rechonchudo não aju-
dava.
O sanitário tinha do lado um jarrinho com mais uma irmã da
flor, e só a pia estava a salvo, porque não tinha espaço. Danilo sentiu
um enjoo, mas não fez cena.
— Giovani, deixa eu te perguntar uma coisa... — começou su-

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O manifesto do fim do mundo

gestivo, só uma boa fofoca para desconcentrar o outro do celular.


O outro olhou por cima do ombro, esfregou os pés escamados,
de quem tinha andado muito no solo quente.
— O quê?
— Qual é a do filho da dona Josefina? O seu amigo lá da Flo-
ricultura... — Danilo perguntou com um rosto faceiro, ficava caricato
nele com suas caras e bocas. Coçou o cavanhaque como um expurgo.
Giovani se voltou para o celular, levou alguns minutinhos, e
respondeu.
— Ele nunca me falou nada. Deixe o garoto em paz! Se ele for
gay, com certeza, a cabeça dele está bem embaralhada.
— Garoto? Aquele menino é um homem já. — Danilo cruzou
os braços se apoiando na parede, para ficar no campo de visão do ami-
go.
— Ele é reservado... — Giovani pausou com uma respiração
pesada — Rafael, o novo “odiado”, é amigo dele. Sabia?
Danilo emitiu uma risadinha maléfica.
— Mas isso não quer dizer nada! — Giovani o encarou arre-
grando os olhos. Conhecendo bem o amigo, aquilo não teria efeito.
Mas era bom não ser o primeiro a alcovitar, a função se encaixava me-
lhor com Danilo.
Silêncio. Giovani ficou esperando a réplica do amigo. Segun-
dos depois e o rapaz não tinha feito seu comentário sexual e maldoso,
como sempre fazia nas fofocas sobre os vizinhos. Em vez disso, Danilo
fitava algo com um ar de indagação, ficou ali alguns segundos com o
rosto desconfiado.
— Gio, o que é isso aí na sua perna? — Apontou, aconchegan-
do-se perto do amigo, mas sem chegar a tocar na mancha.
Giovani se virou e esticou a perna, o shortinho não tinha es-

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O manifesto do fim do mundo

condido um borrão rosado com violeta bem no músculo, desenhado


com varizes e mais varizes. O joelho murcho estava limpo, mas as ca-
nelas finas tinham mais riscos, só que esses explicáveis, de espinhos
das rosas.
— Não tinha visto... — amenizou o seu susto com as palavras
— Deve ter sido algum resultado de pancada.
— Olha a coloração disso... — a mancha, rosa-bebê, parecia
uma poça com requintes violetas. Por hora, se fitasse mais de perto,
encontraria um esverdeado esmeralda.
— Deve ser nada Danilo, relaxa. — Giovani semicerrou os
olhos pro amigo.
— Nossa... O paranoico com saúde dizendo isso! Que assus-
tador! São novos tempos mesmo! — E o outro se jogou em cima do
encolhido — Na época do Rarizes, você teria surtado.
Danilo foi rápido na brincadeira. Tomou o celular do amigo e
o deixou enfurecido. No barulho dos dois brigando, a cama soltou um
ruído caricato. Um “fuleiro” de Piripiri vendeu aquela velharia con-
tando um mar de rosas, mas pelo menos fez um preço bem abaixo. E
restaria aos dois consertarem. Danilo sempre ajudava o amigo com
problemas de casa, assim como cada um era o suporte do outro quanto
a todos os desafios diários, que só eles, com seus mundos particulares,
mas convergentes, sabiam lidar.

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O manifesto do fim do mundo

Capítulo 9 –
“Marilene, dona Josefa ligou
para você.”

— M ãe, a senhora já vai? — Augusto perguntou com o celu-


lar na frente do rosto. De pés estirados no sofá vermelho. Alguns bipes
e risadinhas, o vídeo a poucos centímetros dos olhos fazia escárnio de
acidentes. Tinha surgido na linha do tempo da sua conta secreta do
Facebook. Mais um dos segredos para os quais a mãe não dava muita
atenção.
— Vou. Cadê meu celular? — Marilene penteava os cabelos
com agressividade. Agora estreando seu espelho de borda laranja com
moldura grossa e listrada, novidade que tinha comprado quando visi-
tou a Praça da Bandeira em Piripiri. Ela ainda iria se mudar para o lado
mais verde daquela região com todos os secretos planos na sua cabeça.
Engatilhados e por pouco subversivos.
Quando avistou uma marca escura no canto dos olhos, prova-
velmente da ação do sol, suspirou raivosa.

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O manifesto do fim do mundo

— Velha estúpida, não sabe fazer nada sozinha. — a reclama-


ção baixinha.
Augusto arqueou a sobrancelha, mas manteve-se concentrado
no celular. Só falou minutinhos depois que o vídeo acabou, agora de
um cadeirante explodindo após segurar foguetes numa passeata. Era
para ser engraçado, mas no final do vídeo contaram que o homem
tinha morrido.
— Mãe, se ela quiser lhe bater, bate nela. Ela já tá velha mesmo.
— sempre suas sacadas inocentes e certeiras.
Marilene trancou o rosto, mudou a angulação do espelho para
englobar o filho no campo de visão. O jeitinho blasé do garoto, o cal-
çãozinho com dois furos na lateral, a forma calma com que ele sinteti-
zou as palavras e o sentimento amargo toda vez que ela escutava uma
ideia básica e polêmica do raciocínio infantil.
— Fique na sua, Augusto, que história é essa de bater? — per-
guntou já no tom de briga.
— O povo da escola disse que ela é a nova sovaco de cobra,
fede que nem a dona Raimundinha. — o menino sorriu, mas não teve
retorno.
Marilene se aquietou, puxou a ordem dos cabelos com menos
força porque já estava chegando a torturar-se mais do que o comum.
Varreu com as mãos alguns fios da blusa de uma santa, do festejo de
Nossa Senhora dos Remédios. Famoso acontecimento em Piripiri. Era
uma das suas peças preferidas. Conseguia entender o olhar cansado e
triste segurando um bebê na recriação, que a atingiu de forma contun-
dente, transcendendo o contexto religioso da imagem. Uma conexão
silenciosa e simbiótica, que mentalmente Marlene criou no meio dos
seus vazios doloridos. Por hora, era como se estivesse ali e por cá. De-
pois de toda a suntuosidade, ainda existia uma mulher com uma crian-

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O manifesto do fim do mundo

ça. O olhar de marinheiro evocando a eterna essência de uma mãe, que


escondia as dificuldades por trás de si.
Fiel Jerônimo ficaria chocado em saber daquela informação.
— Sovaco de cobra não tem nada a ver com isso, garoto, você
só fala eguagem. — respondeu rápido, não tão cantante, mas menos
solícita. Tinha se perdido admirando novamente os olhos da santa na
estampa.
— Me dá o celular, eu volto já. — chegou cutucando as pernas
do garoto com o joelho, as mãos cheiravam a creme de pentear. Ma-
rilene acreditava que se o cabelo podia ser ajudado com os produtos as
mãos também iriam pegar carona com o benefício. “Pobre une o útil
ao agradável.”
— Mãe, deixa ficar com ele. — Augusto juntou as duas mãozi-
nhas e sorriu maroto, fazendo bochechinhas de cereja.
— Não. Anda, Augusto, me dá logo isso, senão dona Josefa me
despede e você vai comer junto com os mendigos da Praça da Bandei-
ra.
— Mãe... Por favor.
Marilene revirou os olhos. Já tinha se enfurecido o suficiente
antes com a mensagem que recebeu. Que guardasse o estresse para
quem realmente merecia de verdade.
— Fica com essa merda, então. Mas, se você desconfigurar a
hora de novo, apanha.
— Beleza! — Augusto comemorou com um sorriso de prima-
vera. Não deu tchau nem recebeu, a porta bateu e, depois, o silêncio
arrastado metaforizou os anos daquela casinha em Domingos de Frei-
tas, outro bairro periférico de Russinha Amada. Era irmão de Floresta
Dois. As duas bordas de glacê mais gordurosas do bolo confeitado e
colorido da região.

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O manifesto do fim do mundo

Marilene não sorriu para a hora dourada. Não tinha motivos.


Felicidade ao ar livre era coisa de rico, de esnobe, para laia do
povo de dona Josefina. Caminhando na rua sem calçamento, com uma
ralinha esteira verde que teimava em crescer na vertical com a pista,
repleto de copos de plástico com garrafas competindo com o lixão da
cidade. Ela foi chutando uma, forçando os dedos dos pés com unhas
pequenas, para ver se não acontecia algo pomposo e terminasse o tédio
sombrio da sua cabeça. Atividades esquisitas no tempo “entre”.
Naquele lado de Domingos de Freitas, as casinhas eram mais
distantes umas das outras. Contava com um matagal seco cheio de
pontos brancos, das pinturas cotidianas quando as pessoas resolviam
darem uma de artistas e poluíam os terrenos intercalados. O calor
riscando a caixa, bem perto de um incêndio para levar logo aquela
miséria sofrida e aquele povo, com criança e velho, para a borda do
inferno, onde Marilene achava que iria parar. E, ironicamente, quando
perto do bairro de dona Josefa, as árvores resolviam acordarem verdes.
Com sombras gordas, com as quais Marilene não se importava. Tinha
entregado seu corpo para as intempéries do tempo, que fizessem o que
quisessem com ele. Oras, ela estava chateada.
Mas tinha o barzinho do seu Osvaldo, as cadeiras amareladas
e as mesas com logo de famosas cervejarias. Já inclinadas, esperando
secarem depois de uma ducha. Ele era um senhor amistoso, carismáti-
co e com o sorriso cheio de furos. Que não se enganassem com o seu
pouquinho de corpo, porque, quando preciso, não tem medo de sacar
a espingarda e afugentar qualquer bêbado engraçado. De esquina com
uma casa de muro de cimento feio, um orelhão, um poste, um bar, um
aceno que levantou o astral de Marilene.
— Mais tarde apareço aí. — ela soltou. O chinelo fazendo cro-
que quando esmagava as pedrinhas da pista empoeirada, açoitada pelo

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O manifesto do fim do mundo

sol.
Foi então que, apressando o passo, Marilene abriu a porta de
uma das mais cuidadas residências do outro lado, como se fosse sua. O
rangido acordou dona Josefa. A velha pulou e puxou a baba escorren-
do de volta.
— Diga, dona Josefa. — Marilene fiscalizou a cozinha, imun-
da, com inúmeros pratos sujos. Além dos copos comuns da casa, ti-
nham os que provavelmente nunca seriam tocados por ela, os de festa.
Um detalhe hierárquico.
— Ô Marilene, mais tu é boa pra mim, eu te mandei uma men-
sagem porque eu queria que você me ajudasse... — e saiu se arrastando,
lentamente, atiçando o pavio da mulher.
— O quê? — perguntou, da forma mais desinteressada possí-
vel.
Dona Josefa se apoiou na pia, curvou-se para pegar a cestinha
de flores no chão, as carnes volumosas do braço se balançaram com os
movimentos. A cozinha, imunda, passou batido, a parede com o jar-
dim vertical atualizado parecia apática, com as intimidadoras violetas
coloridas, sorrindo com escárnio. Era uma zona, mas não era proble-
ma de Marilene. Podia acontecer um atentado, mas aquele horário era
sua folga.
A idosa entregou com as mãos tremendo o saco enfeitado e
chique de Fortaleza Florida, assinado pela própria florista.
— Queria que você criasse pra mim um jardim vertical lá na
área de varanda. Dona Josefina veio aqui me entregar pessoalmente e
disse que...
— Dona Josefa, isso podia esperar até segunda! Eu pensava
que a senhora tinha caído e se acidentado! — Marilene interrompeu,
visivelmente irritada. Puta que pariu.

76
O manifesto do fim do mundo

A idosa recuou, perplexa, fazendo O com os lábios e piscando


para ver se realmente tinha entendido.
— Mas são flores, iriam ficar murchas, elas precisam de um
cantinho. Você não cuida das que dona Josefina lhe dá? — perguntou,
querendo se manter no pilar de apaziguadora.
— Lá em casa, eu deixo essas flores tudo fora. — mas não era
aquele o xis da questão. Sequer ligava para as flores que recebia, tudo
aquilo era uma grande baboseira — Enfim, dona Josefa, hoje é sábado!
Meu dia de folga, eu faço isso pra senhora na segunda-feira!
Na troca de olhares, dona Josefa tomou o saco da mão da mu-
lher e foi o mais rápido que pôde para o quarto, esquecendo-se do
teatral arrastado do chinelo.
— Pois vá, vá embora! Vá pra sua casa. Pode ir. — foi berran-
do até se trancafiar no quarto, a porta travou com uma batida que fez
Marilene franzir o rosto.
— Preguiçosa do inferno! — completou baixinho.
Marilene contou até três e se virou, fitando as violetas colori-
das rindo dela novamente. Estavam do lado de dona Josefa... e quando
não?
— Vou embora, dona Josefa, vejo a senhora na segunda.
— Moro aqui desde que Piripiri tinha um “e” e um “y” no
nome, pra ser desrespeitada desse jeito, é uma imundice! Um desres-
peito!
Marilene fez bico, fingindo que estava por cima, soltou antes
de bater o portão.
— Fique com Deus, dona Josefa! Bom final de semana.
“Velha caduca, projeto de senhora de engenho...”

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O manifesto do fim do mundo

Capítulo 10 –
Perto de uma colisão entre
mundos.

N ão é que Russinha Amada tinha ficado estagnada totalmen-


te no tempo.
Alguns de seus sobreviventes até criaram buracos de minhoca
com interseções, pequenas falhas na matriz. A internet era uma grande
falha na matriz.
No tempo em que Marilene saiu, Augusto foi bombardeado
por inúmeras e ofensivas propagandas do novo mundo globalizado,
repleto de estímulos altamente potentes e prejudiciais. A palavra da
vez: efemeridades gordas.
No Facebook.Augusto correu os olhos por assassinatos maca-
bros, notícias sobre o impacto econômico ainda vigente por causa do
Rarizes, memes de celebridades, e parou numa novidade. Até então,
uma surpresa divertida que estava tomando de conta da juventude. O
novo aplicativo “Pontua aqui”, uma inteligência dinâmica que já estava

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O manifesto do fim do mundo

no top dos mais baixados. Febre do verão. Augusto se perguntou como


não tinha esbarrado antes com aquele app.
Os dedinhos golpearam rápido, o celular demorava para
acompanhar a agilidade do garoto. Felizmente, o aparelho de Marilene
tinha boa memória. Augusto apagou algumas fotos da mãe. Um horror
de ofício. As imagens se dividiam entre vídeos esquisitos e montagens
com “bom dia” das vizinhas das quais ele já escutou a mãe falar mal. O
universo do cotidiano amaciado na pequena cabecinha inquieta.
Voilá! O Pontua aqui já estava pronto para recebê-lo.
Primeiro, os cumprimentos. Depois, a inteligência pediu os
dados de Augusto e ele mentiu tudo, é claro, só não o endereço. Lá, ele
era Paulo (o nome do seu pai), vinte e nove anos, homem, rico, que...
morava em Russinha Amada. Nem em Piripiri era. O mapa demorou
pra carregar as profundezas do Piauí.
A estratégia era simples. Não tinha erros.
Você falava suas emoções, você falava sobre você, você só...
falava a primeira coisa na sua cabeça e o mapa iria lhe dar uma loca-
lização específica da sua região para você descobrir algo, quem sabe
visitar um monumento ou descobrir um tesouro. Era bem empolgante!
Sete horas da noite e nada de janta, mas Marilene tinha prepa-
rado algum lanche bobo e açucarado. Entretanto, nada da mãe, a não
ser um aviso mental na cabeça de Augusto de que, se ele saísse sem
a permissão dela, estaria severamente encrencado. Podia até sumir
como as duas crianças, Cássio e Caio. O caso nunca tinha sido resolvi-
do, os dois poderiam estar exatamente agora sendo parte do solo seco
e ríspido do sertão.
Mas então o Pontua aqui pediu, com uma animação divertida,
para que o tal Paulo contasse seu dia, a inteligência artificial se disse
carente. Augusto começou, desconfiado, não era uma criança boba,

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O manifesto do fim do mundo

sabia dos truques. Porém, o aplicativo, ou quem quer que fosse que es-
tivesse do outro lado, era cativante, instigava-o, sorria do que ele dizia.
Prestava atenção no que ele dizia, de verdade.
Depois que Augusto contou sobre quem era sua mãe, sobre a
vizinhança chata e que existia uma velha bruxa que se chamava Rai-
mundinha com boatos de ser amaldiçoada, o Pontua aqui emitiu um
desafio divertido.
Desenhou uma rota no mapa.
— Eu vou... ter que sair? — questionou com os olhinhos ace-
sos. A papada era a almofada do queixo segurando a cabeça no sofá.
“Sim, Paulo! Vai ser divertido! Por que não descobrir agora uma
nova história? Um novo destino?” A voz feminina disse, apaixonante.
— Mas... A mãe falou que vai me bater se eu sair... e tenho
medo... — Augusto se retraiu no sofá. — Tá de noite, ó.
“Ora, Paulo! Você é um aventureiro! Venha comigo nessa! Eu te
guio e te protejo! Vamos descobrir novas aventuras, não seja preguiçoso!
O Rarizes gostava de pessoas preguiçosas!”
Que sagaz! O aplicativo não se atentou ao argumento de uma
criança que acabara de mentir a idade, falando sobre sua mãe. Bem-
-vindos a 2026.
Augusto pulou do sofá. Calçou os chinelos e correu para pôr
uma camisa, do seu herói vingador favorito, que tinha visto uma vez o
filme numa sessão ao ar livre para a comunidade. Presentes do prefeito.
Pegou as chaves da casa, verificou se não tinha nenhuma capivara ali
dentro, por engano, e desligou as luzes contando para a escuridão que
voltava em breve.
Um barulho de forró ficou mais audível quando ele saiu, vin-
do das bandas do trabalho da mãe. Tinha carros com sons e mais lu-
zes. Depois, muita escuridão, vez ou outra, algum poste de iluminação

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O manifesto do fim do mundo

amarelada regido por grilos e coaxares. A solidão da extensão causava


um medo em Augusto, sua vizinhança não era como a dos outros bair-
ros, eles realmente estavam no precipício perto do esquecimento, e de
terrenos que pessoas usavam para jogar sofás velhos, ou onde adoles-
centes se escondiam para fumarem maconha.
“Siga na direção Norte, Paulo, seu novo destino está perto! Va-
mos! Seja corajoso!” O celular queria ser seu amigo.
Augusto foi caminhando apressado, sentiu uma felicidade
quando viu Rayane, da outra rua, com duas amigas, conversando na es-
quina aos trejeitos mais expressivos e divertidos. Possivelmente, falando
de saliência..., ele imaginou. O terreno era plano, mas com buracos que
podiam lhe presentear com uma fratura. Vez ou outra, Augusto des-
viava o olhar quando os matagais se mexiam, verificando se não seria
alguma cotia perigosa pronta para comê-lo vivo.
Na caminhada ofegante, o celular manobrava o mapa. Passa-
ram por uma cruz no chão, em homenagem a Mestre Dedê, um ho-
mem que morreu pobre e não teve espaço no cemitério de Piripiri por
conta de algumas polêmicas absurdas. Augusto não sabia a história
toda. Tinham flores em algumas casas, em algumas janelas, em alguns
arames de cerca. Tinham violetas vigilantes por todos os lugares. Às
vezes, brilhavam, e o menino jurou ter visto duas delas “acenderem”.
A gritaria do bar onde provavelmente a mãe estava cortava
os céus, deixando a vizinhança uma fera, principalmente as beatas do
grupo de fiel Jerônimo.
O Pontua aqui, felizmente, pediu que o garoto fosse por outro
caminho, um mais escuro e sem tanta iluminação. Cortando a ruazi-
nha com uma esquisita cadeira branca que surgia sempre na esquina.
Uma árvore de folhas gordas e verdes, bem afrontosa no meio da pis-
ta de terra, servia como lixeiro, porque os vizinhos amarravam sacos

81
O manifesto do fim do mundo

com dejetos pelo tronco cheio de nós e cascas. E o silêncio, com lá no


final o sonzinho da novela das sete ou de algum programa de fofoca
de Teresina.
“Você está perto, Paulo, continue em frente.”
Augusto já começara a reconhecer o destino. Ficava perto do
bairro mais endinheirado. Perto da casa do fiel Jerônimo e de dona Jo-
sefina, do “gente fina” Igor. A iluminação, pelo menos, foi ficando mais
trabalhada, o que já deixou claro que ele não pisava mais no seu bairro
miserável. Uma pracinha logo em seguida, algumas árvores. Um ponto
de açaí que ainda não tinha sido inaugurado e um calçamento mais
opulento. A rua tinha ficado mais organizada, com calçamento entre a
areia e pedra. O cheiro era bom, familiar. Violetas coloridas.
“Continue, Paulo, estamos chegando!”
A localização fixou com precisão. Pontuou para a rua atrás
da casa de fiel Jerônimo. Logo em seguida, mais negócios e Fortaleza
Florida. Por incrível que parecesse, naquela noite de sábado, Russinha
Amada tinha ido para a cama cedo, só os zombeteiros e cachaceiros
dominavam a cidade. Não tinha ninguém pela região, até que uma
figura conhecida surgiu na esquina da rua que dava para a pista de
asfalto. De shortinho, cabelo ao ar, uma bolsinha de lado. Giovani, im-
paciente e meio sorridente.
Augusto ficou na espreita de uma árvore observando. O ho-
mem banhado pela luz amarela do poste. Não parava de tremer a per-
na, ansioso. Só parou quando avistou um carro.
O veículo estacionou, deixou os faróis ligados. Já era esquisito
carros àquela hora por ali, imagine quando saíam deles figura masca-
radas. O motorista tinha um adorno esquisito na cabeça que o deixava
irreconhecível. Fez um gesto com a cabeça para Giovani e os dois en-
traram num consenso. Com um cavalheirismo esquisito, o mascarado

82
O manifesto do fim do mundo

abriu a porta para o seu convidado e só depois o estapeou na bunda.


Augusto se perguntou por que Giovani não revidou. Mas eram
só contentamentos.
A outra surpresa foi mais esquisita ainda.
Quando o carro deu partida, não demorou cinco minutos para
o caminhão da desinfecção passar, com as mangueiras, jorrando bacte-
ricidas para tudo que era canto. Augusto se encolheu com medo, tinha
que pensar num plano B.
“Paulo, por favor, vamos continuar! Você está perto, está há me-
tros de distância!” O celular o tirou do transe e o pôs em adrenalina.
Augusto disparou. Saiu da visão do carro que trafegou devagar e des-
preocupado. Os vidros fumês nunca denunciavam quem o conduzia. A
hora era absurda para um passeio de rotina.
O menino correu se amassando na parede como um espião
dos filmes. Depois entrou no quintal florestal logo atrás das casas de
fiel Jerônimo e dona Josefina. O novo “jardim precioso e coroa de Rus-
sinha Amada”.
As residências eram fortalezas. E, mesmo que o jardim não ti-
vesse tanta proteção assim, intimidava quem se aproximasse. Colunas
de árvores serviam como guardas guiando a cerca de arames. Tudo
para proteger as centenas de violetas coloridas.
Mas nada pararia Augusto. O menino conseguiu uma brecha e
cortou o campo, foi se esfregando nas pétalas que pareciam propostas
alienígenas, cheias de brilhos estranhos, como dos diamantes que via
na TV. O celular continuou paciente. Até que, depois de uma atualiza-
ção, descansou.
“Finalmente, Paulo! Parabéns! Você chegou!”
Augusto riu, esperou o restante.
“Agora, descubra esse presente que é o Museu “Piripiri”. Visite-o,

83
O manifesto do fim do mundo

valorize sua cultura e... E.... Paulo...” O celular começou a travar, duas
mensagens de bateria no fim chegaram. O garoto chacoalhou o objeto
como se aquilo ajudasse.
“Valorize... Paulo. Desenterre.” E desligou. Malditas coincidên-
cias como nos filmes. A última palavra foi dita de forma tão distorcida
que lembrou Bola, com suas imitações grotescas.
Felizmente, Augusto tinha um chaveiro que piscava, lembrou
que sempre o carregava no bolso. A luzinha era fraca, mas boa. A intui-
ção do garoto foi direta: que atendesse a esquisita última ordem.
— Aqui só tem é terra. Que aplicativo fuleiro. — reclamou pra
solidão. As violetas se curvavam sempre que uma brisa do ar chegava.
Algumas vezes, dançavam sozinhas. O céu tinha estrelas e mais misté-
rios. O Magnum opus do divino.
Ele começou a cavar com as mãozinhas riscadas, foi tirando
terra, sem saber exatamente o que estava buscando. As violetas espia-
vam, somente. Quem sabe, desconheciam também aquele terreno. Até
que os dedos do menino tiveram um encontrão doloroso com uma
estrutura de cimento.
Primeiro, Augusto esperou, sondou a surpresa. Limpou a área
retangular inconveniente para se estar num jardim. As flores precisa-
vam de terra, não de cimento. E se surpreendeu com uma linha esqui-
sita, rasurada, sentindo-a com o tato. A luz da lua não era suficiente
para que ele enxergasse bem o que era. Ligou o chaveiro e, com duas
piscadas, o facho se firmou, surpreendendo-o.
Achou estranho e... peculiar. O desenho tinha um padrão en-
graçado e familiar.
Seu primeiro contato com o símbolo de um assunto que estu-
daria anos depois. Mesmo que a TV dos últimos anos sempre reviras-
se o polêmico quando debatia “humanidades e política”. O avanço do

84
O manifesto do fim do mundo

neofascismo.
Os olhos de Augusto se firmaram, contemplando a controver-
sa suástica.
Imediata.

85
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 11 –
Domingo pela manhã.

A igrejinha era pequena, mas bem iluminada. Tinha fol-


ga com janelas e saídas em todos os cantos. Ficava bem na borda do
Bairro das Flores, perto, obviamente, da casa de dona Josefina e fiel
Jerônimo. Seu respaldo era absoluto. Tão importante quanto o de ou-
tras autoridades políticas, as palavras do líder pertenciam ao céu do
Olimpo. Tinha um peso bem mais complexo que a do prefeito banana,
ocupando uma cadeira e entregando boas novas para a população, ete-
ceteras.
Naquela manhã, a igrejinha lotou.
As palavras de fiel Jerônimo cortavam o ar, alcançavam ou-
vidos e tocavam corações. Ele, no palanque mais alto, e a divisão nos
bancos feita de forma indireta. Dona Josefina e sua ala social na frente,
e alguns vizinhos de Marilene bem atrás. Sempre tinha sido assim, e
estava tudo bem. Eles concordavam.
Mas não era algo para discutir agora, não quando tinha ur-

86
O manifesto do fim do mundo

gência e expressividade nas palavras do líder, com seu sorriso cheio de


dentes amarelos, sua magreza suada e viril. Seus nós e dedos grandes
chafurdando no ar. E o que exatamente era aquele alerta?
— Eu vou... Eu vou falar mais baixo agora, mas pensem co-
migo. Pensem agora comigo. Sempre fomos um povo abençoado, pas-
samos ileso pelas misérias do tempo. Mas pode ser que um dia não
façamos “jus” a essa proteção divina. — Igor e a mãe escutavam com
expressões blasé. Seu Antônio tinha faltado a mais uma celebração,
todos repararam, é claro — Porque os sinais chegam sem que nós per-
cebamos. Primeiro, as pobres crianças sumiram e, depois, Márcia se
rendeu à tentação do capiroto. E agora o retorno do filho ingrato à
nossa cidade? Vem da primeira zona vermelha do Rarizes, onde o ví-
rus mais devastou. Vocês se lembram do que São Paulo se tornou? A
“grande cidade” moderninha?
Algumas cabeças se viraram. Troca de olhares significativas
entre si. Deise fez o sinal da cruz, estava do lado da mãe, de vestidinho
marrom, a beata da promessa. Logo à frente, Cecília, sozinha e quie-
ta, muito devota. Indefinidamente... quieta. Incomodando os vizinhos
curiosos porque ainda não tinha arranjado um marido.
Lá fora, algumas crianças fizeram ruídos. Chamaram a aten-
ção de Bola e sua mãe, dona Roseane. O coitado não podia sair pra
brincar. Só “projeto de marginais” não iam para a Igreja. Sua mãe foi
bem clara.
— Russinha Amada não teve um caso sequer. Piripiri teve suas
perdas, homens enlouqueceram, mulheres enlouqueceram. Mães ar-
rancaram os dedos de seus próprios recém-nascidos e muitos... muitos
suicídios. Nem preciso falar de Teresina. — balançou a cabeça, deu
uma puxadinha na gola da camisa social — Não tivemos nenhum caso
porque somos um povo forte, apesar de certas “ovelhas” que não acom-

87
O manifesto do fim do mundo

panham muito bem o rebanho. E são esses “pontos pecaminosos” que


podem trazer o caos que tentamos evitar.
Marilene..., Deise falou baixinho, sua mãe concordou.
— É uma figura, mas está no caminho errado com aquele jeito
dela. — completou — E então a chegada do joio. Uma ovelha preta.
Uma ovelha filha e escrava da impiedosa modernidade! — foi aumen-
tando o tom de voz — E vocês acham que vai ficar tudo bem? E se...
E se o neto de dona Raimundinha, pobre mulher insana, estiver con-
taminado com algo? Eu nem digo com Rarizes porque a doença foi
controlada, mas... Com outra enfermidade?
Fiel Jerônimo suava. As bordas molhadas da camisa queriam
grudar no seu corpo magro.
— O que deve ter motivado esse retorno tão inesperado? Oras,
a pandemia acabou há um tempo! Dona Raimundinha sempre preci-
sou de ajuda, antes de ter se trancafiado naquela casa e evitar contato
com todos.
Deise se encostou no cangote da mãe.
— Me lembro de quando a dona Raimundinha saiu toda caga-
da de casa, coisa mais nojenta. Quase que ela ia sendo entubada por-
que jurávamos que estava infectada com Rarizes, mas era somente sua
perturbação rotineira... – disse, baixinho. A velhinha do outro lado
mostrou a dentadura feliz.
Dona Josefina era o oposto de Igor. O semblante no rosto era
tão quieto que jurariam que ela não estava ali, estava pensativa com
assuntos bem mais importante que paranoias e ataques. O filho olhava
pelo canto do olho, dividindo-se entre uma opinião complexa sobre
fiel Jerônimo e a mãe. Como energias tão opostas estavam se coalizan-
do naquele momento... Mas só um rosto era de fato mais perverso por
não ser decifrado.

88
O manifesto do fim do mundo

O religioso disse mais algumas palavras. Falou sobre líderes


globais, sobre os perigos do comunismo, sobre ditaduras e principal-
mente sobre doenças. Ele tinha a façanha de unificar os assuntos de
forma empolgante. Cecília, a “estudada” e professora, nunca chegaria
perto daquela ascensão, porque, primeiro, era bem mais do que ter
conteúdo, era ter lábia. Era convencer. As proposições machistas vi-
nham em seguida.
Finalizou a celebração com o sinal da paz, fez questão de obri-
gar os irmãos a darem as mãos. Era hora de fortalecer os laços, fortifi-
car o calor humano. Para aqueles que mereciam, é claro...
— Mãe, paizinho não quis vir mesmo?
Dona Josefina foi estalando os dedos na primeira palavra da
sentença do filho. Esboçou um sorriso impaciente, entre o triste e o
desesperado, turvo. Cheio de entraves. A cada estalo, Igor foi se dis-
tanciando da figura de Antônio e se lembrando mais de Rafael, a luz
foi ficando espessa, quase convidativa. A igreja nunca tinha ficado tão
etérea, tão cheia de guerras e clarão.
Retornou ao banco com o zumbido no ouvido. Perdendo par-
te da noção geográfica.
— Você está bem? — dona Josefina reparou que tinham al-
guns olhares no filho. Era obrigada a conviver com aquela “inevitável”
atenção. Num tempo anterior iria se gabar disso, mas a mulher mudou
muito.
— Eu só fiquei tonto. — Igor recriou Rafael, na cabeça, espe-
rando-o lá fora. Tinha algo para lhe contar, sobre humanoides furta cor.
Algumas beatas seguiram dona Josefina, queriam saber sobre
flores ou qualquer detalhe da vida perfeita e colorida da florista. Elas
se reuniram como pré-adolescentes fervidas, cada uma mais empol-
gada em ser protagonista. O jeito infantil e lento que dona Josefina se

89
O manifesto do fim do mundo

dividia, com seus olhos encantadores e maduros. Respondendo às per-


guntas com doçura, enfatizando o quão fortes e vigorosas eram suas
violetas. Uma mãe apaixonada.
“Vocês têm suas flores? Não ficaram murchas?”
Igor, vendo duas da mãe, ainda focando entre um ponto à
frente e outro lá atrás, soltou um palavrão mental, odiava ficar daquele
jeito.
“Por que Giovani não vem à missa?”
Não entendeu o questionamento surpreso que fez para si.
Fiel Jerônimo abençoou. Foi conversando e se enfurecendo
quando viu dona Josefina distante dele, querendo escapar. Queria inte-
ragir mais com ela, mas nos últimos dias a florista tinha se trancafiado
numa bolha inacessível, talvez pela questão da ausência do marido. E
eis a questão. Dona Josefina deveria pedir ajuda ao religioso. Como a
sua mulher, Celeste, sempre fazia com qualquer decisão. Uma ideia
antiquada que fazia sentido dentro do raciocínio arcaico do fiel.
“As esposas, às vezes, não tomavam boas decisões.”
— Comadre Josefina. — ele ergueu a mão e ela deu com um
tchauzinho. Igor tinha ido na frente, soturno. Fechou os olhos quando
recebeu um soco do sol das dez da manhã. Domingos tinham lumino-
sidade diferente, e isso os interioranos sabiam bem.
Na entrada da igreja, o grupo se reuniu. Depois de um bom
sermão, todos renovados e agora vigilantes. Fiel Jerônimo não tinha
sido tão claro, mas deixou o recado implícito. Cuidado com o joio.
Rafael. O resto eles sabiam como lidar, não tinha segredo. Russinha
Amada não era idiota, mesmo que magoada.
O homem de camisa social deu alguns toques com o sapato
lustrado alcançando dona Josefina, pediu-lhe um abraço apertado e,
depois, sorriu.

90
O manifesto do fim do mundo

Os olhos de Josefina eram inomináveis. Perguntavam a ele o


porquê da aproximação.
— Dona Josefina, você não acha que deveríamos tentar com
mais afinco levar a palavra para os infiéis do bairro pobre?
A florista pareceu aérea. Olhava de um lado para outro como
alguém tentando reconhecer o lugar. Se afastou de fiel Jerônimo e o
deixou murcho.
— O quê? — não tinha escutado direito.
— Dona Josefina? — ele sorriu.
“O quê?”
O barulho do jato bactericida quebrou a sinfonia. O caminhão
da desinfecção dobrou naquele instante com o barulho da ação. Al-
gumas pessoas correram para o outro lado, soltaram gritinhos. Mas o
carro era inofensivo com a frente da igreja, passariam por ali depois
que a aglomeração dispersasse.
— FILHOS DA PUTA! Querem passar por cima de mim!
Querem me matar, esses cuzões. — o grito, que imediatamente puxou
Deise, a fez se virar. Conhecia aquele timbre rasgado.
— Marilene?
Dona Josefina pediu que saíssem do campo de visão, queria
entender a confusão. Livrou-se tão rápido de fiel Jerônimo, cortando as
pessoas. Evitava contatos muito próximos. Esquisita como nunca tinha
sido.
O carro passou com seus vinte quilômetros mornos, enquanto
a mulher protestava cambaleando. Marilene, segurando a garrafa de
cerveja, olhos vermelhos. Parecia um pêndulo velho, estava tão suada
que a areia grudava nas pernas e braços, formando uma segunda pele.
Na boca, os maldizeres e o mau-hálito, combinando bem com as pala-
vras.

91
O manifesto do fim do mundo

Fiel Jerônimo acompanhou a florista, parecia um fã obcecado.


— Viu, dona Josefina, a importância de se tentar levar à pa-
lavra para pessoas assim. Olhe o caso dessa mulher! Era isso que eu
queria falar com a senhora! — disse e ela fingiu que escutou. Estava
absorta com seus próprios mergulhos. Não disse que sim nem que não.
Só precisava se afastar do religioso e do seu hálito forte.
Igor foi o único a agir. A tentar pelo menos. Mas a lerdeza o
agarrou, fazendo-o perder a força. Tinha ficado tão imponente, ten-
tando descobrir por que toda vez que se aproximava da mãe aquilo se
manifestava. Parecia uma descarga enérgica inversa.
— O Augusto dormiu sozinho? — Deise logo questionou le-
vando a mão à boca. Só depois mostrou seu coração cristão e foi aju-
dar.

92
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 12 –
Energias.

C
— alma, Marilene! — Igor marchava com dificuldade car-
regando a mulher transtornada pelo braço. Deise tentava apoiar como
podia, mas Marilene estava impassível. Soltando as piores proposições.
Afirmando que estava sendo observada, que todos queriam, sim, ma-
tá-la! Não era ideia da sua cabeça, mas uma teoria muito fundada.
Russinha Amada tinha um postinho de saúde principal que
fazia ligação com a central médica de Piripiri. Era um anexo estrutura-
do que dava conta de toda a cidade.
Um dos dois médicos levava uma vida pacata cuidando da
vizinhança. Dia de domingo tinha plantão, ordem do governador do
Piauí. Doutor Félix, um quarentão divertido completava o hall de es-
trelas local. No comando. Como a atividade não era intensa nos finais
de semana, ele levava algum bom livro pra ler, ou então seus materiais
de desenho pra rabiscar alguma espécie vegetal pelas bandas. Só sentia
muitas saudades dos churrasquinhos de família em Floriano, mas ossos

93
O manifesto do fim do mundo

do ofício!
— Doutor Félix, ajuda aqui, pelo amor de Deus! — Deise bateu
palmas na frente da porta com barras. O ar-condicionado do lugar fa-
zia um barulho externo. Podia demorar pro médico aparecer. Mas ele
estava lá.
Só demorou dois minutos para surgir sorridente. Até surpre-
so.
— Opa! O que houve? Igor? Deise? — ele perguntou com uma
interrogação divertida, mas sentimental. Coçou a barba com fiapos
brancos, preenchendo o rosto quadrado. Os dentes brilhavam no sol
de tão brancos. Resultado de anos de cuidado.
— Uma noite de porre. — Deise balançou a cabeça em repro-
vação.
— Eu quero o Augusto! — Marilene berrou quando viu a fi-
gura de jaleco — Os cientistas doidos vieram pegar ele! Vão vir pegas
essas plantas também! É como da última vez!
— Que conversa mais sem rumo é essa, mermã? — Deise pôs
as mãos no quadril.
A tontura em Igor, a figura do humanoide. Rafael. A visita dos estra-
nhos. Foi tudo como num caleidoscópio, rápido, certinho, milhares de flashes...
Tinha algo de errado acontecendo. Bem onde ninguém estava
vendo.
— Ela deve estar relembrando o dia em que os visitantes estra-
nhos vieram aqui. — Igor respondeu, franzindo as sobrancelhas, tenta-
va puxar a mulher para cima quando ela teimava em se jogar no chão.
— Tragam ela. Vou dar um jeito. — Doutor Félix pediu, foi na
frente para puxar a porta e não dificultar o transporte do trio com a
bêbada.
Mas Marilene caiu no sono, não tinha muito o que fazer. Levá-

94
O manifesto do fim do mundo

-la para lá funcionou mais como um momento de escape do que neces-


sariamente uma urgência. Queriam evitar que Augusto, provavelmen-
te dormindo, visse a mãe transtornada daquele jeito. Aquela família já
lidava com sofrimentos demais.
A visita depois teve maiores interesses. Igor e Deise, ambos
investigativos e curiosos, gostavam de saber do viajado doutor Félix
sobre como estavam os outros lugares. Sobre as frenéticas mudanças
na capital. Teresina e as outras passando por um ciclo de moderniza-
ção gradual.
No fim das contas, apenas um domingo orbitando em torno
de uma boa conversa.
— ... Sim. Teresina agora está crescendo demais! O prefeito
pretende instalar uma espécie de antena poderosa no topo da Ponte
Estaiada! O serviço médico melhorou bastante, mas o ar ainda é muito
colonial. — Doutor Félix riu. Vez ou outra, espiava o corpo encolhido
dormindo no canto da sala, em cima de uma maca.
— O Rarizes deixou muito rastro de destruição, doutor? Eu
ouvi boatos... — Deise perguntou, estava sentada num banquinho
branco e velho, um que andava sempre com Félix no bagageiro do seu
jipe.
— Demais. A sensação que dá é que a cidade está... — Félix
coçou a cabeça — Esquisita. Parece que tem algo no ar, sempre um
medo, mesmo que tenha diminuído aquela ansiedade de antes. A Zona
Leste foi a mais afetada! E o prefeito atribuiu a culpa do desleixo em
pleno pico aos digitais influencers, também a grupos de direita que se
recusavam a aceitar o status da doença. Foi avassalador! Felizmente,
não chegamos ao nível de São Paulo, não tinha como.
— O senhor tá sabendo que chegou um rapaz de lá recente-
mente aqui? — Deise pontuou — Amigo do Igor e tudo.

95
O manifesto do fim do mundo

O outro estremeceu. Concordou com a cabeça, somente, mas


nada disse.
— Sim. Fiquei sabendo. Giovani me contou. — Félix respondeu
— Mas fiquem tranquilos. Vocês enfrentaram o Rarizes intactos e vão
continuar assim principalmente com a vacina! Não precisa excluir o
rapaz.
Deise arqueou as sobrancelhas, seu jeito de dizer “sei não...”,
desconfiado.
— É, antes o problema fosse só esse... — disse. Depois, desviou
o assunto para a possível nova fofoca — E... Giovani? Ele veio aqui?
Está bem?
Apesar dos protocolos de confidencialidade, doutor Félix sem-
pre deixava escapar algo, mas, claro, para aqueles em quem confiava.
— Sim, ele veio aqui assustado por conta de uma mancha. Mas
eu verifiquei e aparentemente não é nada. — Félix deu um gole no
café da mesinha. A sala tinha pouca coisa, só o suficiente para atender
artificialmente. Russinha Amada continuaria subestimada por muitos
anos ainda. — Uma mancha com uma coloração esquisita... Deve ter
sido pancada!
Igor e Deise se entreolharam. Cada um com suas compridas
linhas de raciocínio.
Marilene deu uma fungada e expirou pesado. Os três se vi-
raram, mas só um notou algo. Perto da cabeleireira desgrenhada da
mulher, a rasura esquisita perto das escápulas. Félix se levantou e foi
semicerrando os olhos.
— Não tinha visto isso. — antes de puxar a pele, massageou
ao redor, a superfície deformava o machucado, uma ferida perigosa
resultado das artes de Marilene — Ela tinha se machucado?
Os outros dois se levantaram. Deise pareceu nervosa, come-

96
O manifesto do fim do mundo

çou a recriminar a amiga.


— Quando eu digo pra Marilene tomar rumo de gente, é pra
evitar esse tipo de coisa. Ela vive nos bares, sendo indecente. Nosso
Senhor não gosta disso. — pontuou.
Félix esfregou as mãos, deixou o relógio caro de ouro desli-
zar pelo pulso entrando e saindo pelas mangas do jaleco. Sempre fazia
aquilo quando ficava preocupado com algo. Russinha Amada não era
somente seu trabalho, mas sua família. O vigia, senhor Irineu, recitava
em tom de orgulho como aquela cidadezinha tinha sorte de tê-lo. Era
um rapaz de bem, de família, que realmente se importava com os me-
nos abastecidos. O orgulho local depois das violetas coloridas. E de fiel
Jerônimo.
— Igor e Deise, depois de alguns dias, peçam para Marilene vir
falar comigo! Não sei se ela fez os exames de rotina dela. Giovani fará
o dele na próxima sexta! — Félix pediu — Digo isso porque, quando
ela acordar aqui, não vai ter cabeça para o monte de perguntas que vou
fazer, ela vai querer só ter muita vontade de morrer com a ressaca que
vem aí.
— Pode deixar, doutor! — Deise aquiesceu, mas sabia que
pouco lhe interessava sobre a saúde da “amiga”. Sua mãe já tinha lhe
alertado, não era bom ficar andando com Marilene para também não
ser malvista. Logo com aquela mãe solteira que nunca botou o pé
numa igreja... Fiel Jerônimo não gostava disso.
— Ah... e, Igor! Como vai seu Antônio? — parecia que Félix
tinha lido sua mente. Porque o rapaz realmente tinha invocado, sem
saber o motivo, a imagem do pai na sua cabeça.
Ele parou, teve alguma dificuldade para lembrar-se da última
vez que viu o senhor por inteiro, e, no fim, mentiu.
— Está melhor do que nunca, só com uma virose boba, mas

97
O manifesto do fim do mundo

que vai passar. Por isso ele não...


Apareceu ainda.

98
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 13 -
Retornos.

O restante do domingo foi se abrandando, mais nostálgico


que os retratos de madeira dos cômodos por ali. Enquanto o céu for-
tificava a esteira azulada, Russinha Amada costurava em si todos os
horizontes engrandecidos e fantasiosos. Fazendo cada um perceber
que, depois daqueles rochedos, havia terras mágicas e dimensões al-
ternativas. O cheirinho de terra quente, crianças com a testa franzida
rindo, conversas de verão. A solidão que era um bem, uma pérola de
liberdade em que você abria seus braços pra sentir o assopro quente
vindo do verde, da imensidão. Uma conversa sinuosa entre dois aman-
tes que estavam no começo de sua relação.
O bairro de dona Josefina ficou do mesmo jeito de sábado,
não tinha alternativa. Estavam todos trancados em casa se escondendo
do calor, deixando Russinha Amada curiosa sobre o que faziam seus
moradores naqueles pequenos trechos de tempo quando todos se en-
clausuravam.

99
O manifesto do fim do mundo

Igor já tinha checado sua linha do tempo do Instagram duas


vezes. Sempre o mesmo. Fotos em piscina, fotos de churrasco, fotos de
bobeira. Nem mesmo ver um pornô parecia uma boa ideia. Sua aba
secreta, escondida. Não tinha amigos para falar sobre aquilo, e bom...
Giovani era de outra época. O restante dos jovens em Russinha Amada
não pareciam candidatos promissores para uma amizade.
Na verdade, Igor se acostumou a uma vida privada desde sem-
pre. Sua mãe tinha ensinado cedo sobre os benefícios da quietude, por-
que quem agia na surdina tinha melhor chance de sucesso. E eles eram
quase pessoas públicas, as peculiaridades de dentro de casa não po-
diam ser motivos de picuinhas e fofocas. Fortaleza Florida só era um
sucesso porque, depois das violetas coloridas, a gestão do negócio era
exemplar e a vida pessoal em torno dos proprietários não era maior.
E o que fazer num domingo solitário? Não tinha nem Roberta
com quem gostava de conversar; na verdade, escutar os causos. Dona
Josefina passando pela cozinha, enquanto a moça, sempre muito enér-
gica, contava o melhor do que acontecia quando ela ia nas baladinhas
de Piripiri, dos homens que lhe jogavam as piores cantadas. Igor sentiu
no ar um clima pesado, que logo atribuiu à mãe. Sempre sorridente,
calada. E Roberta se aquietava, assim que a mulher não dizia nada, não
queria incomodar, sabia dos compasses de subordinação. Dona Jose-
fina tinha um ar passivo-agressivo na voz. “Ah, podem continuar, não
liguem para mim! Deixem de bobagem!” E, em seguida, equilibrava o
ambiente com sua ausência. Igor tinha sentido, há tempos.
A mãe estava, sim, visivelmente incomodada com algo
Seu universo era somente aquele quarto. Igor resolveu ir pela
contramão. Suspirou pesado com uma ideia sólida. Vestiu uma camisa
qualquer e penteou rápido os cabelos. Em dois segundos, reorganizou
alguns porta-retratos, mais sorrisos plastificados.

100
O manifesto do fim do mundo

O domingo seria diferente porque Igor estava diferente. Mais


nervoso desde os dois últimos dias. Não ficaria com ideias invulgares
tentando entender a dinâmica do quarto ao lado. Se a mãe queria ficar
trancafiada com o pai, era problema deles.
Bateu a porta sem fazer questão do barulho. O corredor bran-
co tinha mais iluminação naquele pico de tarde. Uma camada de poei-
ra ali e outra aqui, Igor notou que a casa se sujava fácil demais. Devia
ser irritante ficar ali dentro, tinha antipatizado naquele exato minuto.
Não iria mesmo ficar nenhum minuto vegetando no espaço.
Depois que passou pelo jardim, deu uma espiada pelo olho
mágico. A pracinha ali de perto vazia. A rua que dava para outros casa-
rões sonolenta, como uma aula chata do seu curso à distância. Só as ár-
vores se divertiam com os urubus que sobrevoavam por cima. Tinham
se interessado por carne fresca, talvez um gato morto que Tonhão, da
outra casa, tivesse matado durante suas brincadeiras com a espingarda
nova. Era um brucutu sem coração que só era perdoado por ser quem
era. Ou melhor, pelo bolso bem gordo.
Agora, dividir a vizinhança com fiel Jerônimo, era o oposto
dos clichês dados a religiosos. Igor achava estranho como nos filmes
retratavam-nos como barulhentos, com louvores altos. Mas era dona
Glória, de uma das casas da frente, perto da praça, que explodia o som
com música cristã. O religioso era reservado e estranhamente carinho-
so com a esposa. Um amor que parecia sempre estar no começo, bem
mais complexo que o entre dona Josefina e seu Antônio.
No final, a relação dos pais tinha virado cumplicidade e com-
panheirismo, para onde Igor sempre imaginava que os casamentos
duradouros remavam. Era somente para um ajudar o outro até o der-
radeiro final. Dure o que durar.
Certo, ele não queria mais se profundar no ponto.

101
O manifesto do fim do mundo

Rodeou o quarteirão. Foi direto para a área de flores atrás, o


cercado que protegia um jardim extenso, vivo! Quase um ponto tu-
rístico. A plaquinha com um “Atenção”, apagada pelo sol. As árvores
como pilares de um coliseu. Um espetáculo natural.
E a tarde foi passando rápido. Ele piscou e o céu foi se modifi-
cando. Agora estava rosado, perto de um crepúsculo muito particular.
Só depois de um tempo Igor foi reparar no repetido canto de um sabiá
tímido, teclando a mesma nota toda vez. Parecia chamar os amigos
para um cafezinho de fim de tarde.
Igor tinha se recolhido numa cadeira que deixava escondi-
da dentre algumas flores. Dona Josefina reservava-a para cuidar das
plantas. Às vezes, para sentir o universo de cores. Alguma meditação
íntima.
Abriu o celular. Blergh! Blasé.
Esquisito o Instagram esconder os stories de Giovani dele. O
amigo tinha ficado por último dentre a relação de “colegas” na rede so-
cial. Mas nada novo. Selfies com caras e bocas, uma leve aproximação
de semelhança com a tal digital influencer Marília, e depois um carro.
Um homem misterioso sorrindo pedindo para que seu companheiro
guardasse o celular.
Para onde esse doido foi? Igor riu. Giovani era sempre uma fi-
gura. Provavelmente, a noite tinha sido boa. Mais história para ouvir
nos intervalos chatos quando estivessem na floricultura. Igor poderia
sintetizar que, na verdade, bem na complexidade da coisa, Russinha
Amada era um grande intervalo chato. Que pena.
Um barulho no matagal à esquerda, perto do cercado. Igor
desligou o celular.
Primeiro, o rapaz ignorou, mas depois o barulho das pedri-
nhas amassadas reacendeu o alerta. Não podia ser a mãe, ela não cos-

102
O manifesto do fim do mundo

tumava visitar o jardim naquele horário. Como a cidade estava morta,


talvez fosse obra de alguma criança travessa preparando um bote, mas
Igor não tinha visto ninguém pelas redondezas. Esquisito.
Ele se levantou e ergueu o pescoço, vendo a extensão às vezes
desuniforme das flores. Por hora tinham matagais que seriam suficien-
tes para esconder um corpo, mas depois a área era bastante aberta.
Atrás é que ficava o volume de uma rasa floresta. Igor foi caminhando
até a beirada do cercado, com cuidado para não machucar as velhas
raridades coloridas. E reparou um detalhe interessante, o brilho que
parecia ilusão de ótica em algumas pétalas. Nunca tinha visto quando
mirou com atenção as violetas.
Na esquina com o cercado, uma sombra. Lembrou-se rapi-
damente da infância, a forma humanoide esquisita daquele dia. Sua
cabeça pregando peças. Mas agora quem quer que tivesse ali era me-
nor, e não estava preocupado em esconder-se. Seria desastroso se ele
tentasse. Mas não tinha invadido o terreno, estava do lado do cercado
que era o limite para terras de ninguém. Só apenas a região do mato
alto e que depois dava para outros quintais. Era um quarteirão incerto
e bonito à sua maneira.
Igor soltou um “ei”, e a figura foi surgindo no comecinho de
noite. Após um tempo, quando a iluminação pública funcionou que ele
reconheceu quem era, com uma emoção distinta.
Rafael.

103
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 14 –
Por quê?

A pergunta tinha sido feita. Igor tentou não se alterar, aper-


tou o celular na mão como forma de catarse. No escuro, as expressões
do enigmático ex-amigo eram opacas, como um lobo no mergulho do
breu. Mesmo depois parecia triste e continuou calado. O melhor a se
fazer não era responder.
— Vamos, fala, Rafael! — Igor não quis se aproximar muito,
o coração quase pulou do peito. As flores se reuniram para escutarem
a conversas, grandes fofoqueiras que começavam a dançar na noite,
frente às milhares de estrelas no céu. Era uma noite de banho de lua.
Sem resposta. Rafael continuou brincando com um pedaço de
arame solto, arranhando a ponta de uma das cercas irmãs. Atrás dele o
breu se consolidou, entre as árvores tortas e o mato alto. Lembrava um
temor infantil de ser pego pelas sombras.
— O que você está fazendo aqui? — Igor reformulou. Deu
mais dois passos para se aproximar da cerca.

104
O manifesto do fim do mundo

— Igor, desculpa. — Rafael recuou um passo, pôs as duas


mãos na frente do corpo como se não quisesse que o amigo avançasse
mais. As violetas coloridas dobraram com mais uma correnteza do ar,
a mesma que bagunçou a sublime eletricidade entre as duas presenças
ali.
— Você foi embora, deixou todo mundo, deixou sua avó de
lado... Não me disse nada e...
— Eu precisava ir. Eu tinha passado em um concurso, eu tinha
que ir. Desculpa, mesmo. — Rafael interrompeu — Minha cabeça es-
tava muito confusa.
Igor fez um muxoxo.
— E por que você não falou comigo? E... E... — Igor queria
reorganizar as milhares de perguntas por ordem de importância — E
por que você voltou?
Rafael se aquietou. Estava bastante esquisito.
Só depois de algum tempo, quando parte da luz da lua foi des-
bravando, Igor notou a roupa do amigo, com uma calça cheia de bolsos
atual e uma camisa branca comum. Os compartimentos pareciam lota-
dos de coisas, ou somente deveriam ser volumosos. Estranho mesmo
eram as botas de cano alto, como de agentes que entravam em áreas
perigosamente radioativas. Tudo bem que o terreno tinha vírgulas
traiçoeiras, ou espinhos, mas até um chinelo seria suficiente. Era ofen-
sivo o calçado de plástico brilhoso quando perto das violetas. Ofensivo
como se Rafael não quisesse mesmo não ter nenhum contato com a
terra de onde veio.
— Você não vai falar? Escroto... — Igor soltou. O seu celular
tremeu. Alguma notificação boba do Instagram que podia ser ignorada.
— Se cuida, Igor. — Rafael então foi desfazendo o caminho.
Deu meia-volta.

105
O manifesto do fim do mundo

— Não venha mais para esse terreno! Aqui é da minha família!


Seu escroto fodido! — Igor berrou — Falso!
— Onde eu estou não pertence à sua família! Riquinho arro-
gante de merda! — Rafael levantou a voz.
Surpreendeu a ambos, o clima nostálgico até o fundo. Não
eram palavras do agora, mas de versões dos dois de anos atrás. Por isso
eram carregadas de sentimentalismo. Quando os dois não passavam
de dois meninos faceiros que amavam brigar e brincar.
— Vai cuidar da sua avó, seu... Seu... Baitola insensível! — Igor
demorou para vomitar o termo, sabia que se arrependeria depois. Mas
precisou. Tinha que tentar atingir o antigo amigo de qualquer forma.
Rafael cessou a caminhada sem se virar. Começou a rir baixi-
nho, depois deu volume.
— É assim que você é agora? — perguntou com o tom irônico
à voz. As costas de Rafael ficavam bem desenhadas contra a luz do luar,
do mesmo jeito os braços torneados. Qualquer que fosse a rotina da
sua “nova” vida, aquilo tinha lhe feito bem, os anos realçaram não só a
beleza do rosto quadrado com o maxilar esculpido, mas compuseram
um empolgado corpo de homem, que antes era só de um garoto ma-
gricela.
Igor quis se engasgar com a própria decepção. Uma lágrima
saiu, outra escorreu. Ele mordeu a língua com pequenas pressionadas.
— Não mudou nada. Nunca sabe como se defender, parece
um menininho mimado. — Rafael respondeu a si mesmo. Continuou
a caminhar pela brecha entre o mato. Deveria ter uma lanterna consigo
porque as luzes do quintal de fiel Jerônimo e de dona Josefina, especial-
mente naquele dia, estavam desligadas.
— Não fale mais comigo, seu filho da mãe! — Igor berrou.
Mas Rafael já tinha adentrado a escuridão, sumindo por com-

106
O manifesto do fim do mundo

pleto.
O outro sobrou com as confusas violetas coloridas, todas con-
versando entre si se perguntando o que realmente tinha acontecido ali,
e por que aquilo que deveria ter sido dito não foi. A tensão no ar foi
se dissipando, depois que Igor relaxou na cadeira de plástico branca.
Ficou dez minutos digerindo a cena de minutos atrás antes de se situar
no tempo. Entendendo o que realmente fora aquilo. Olhou para o ce-
lular, para as notificações bobas, para o aparelho que ficou tão desinte-
ressante quanto a vida que ele cultuava na tela.
E se levantou, para pelo menos ficar dentro de casa assistindo
a algo, até aquele domingo confuso se dissipar. Lançou a cadeira bran-
ca para o lado, perto do muro dos fundos de fiel Jerônimo, e saiu furio-
so com passadas pesadas. Quando Igor dobrou na esquina iluminada
de amarelo, teve um encontrão surpreso.
— Opa, compadre Igor, o que você faz uma hora dessas no
jardim? — fiel Jerônimo abriu um sorriso estranho. Usava uma camisa
polo e uma bermuda, social demais para ele. Mas era domingo e ele
tinha folga de sua função de líder religioso também. O hálito de café
chegou até Igor, de tão próximo que ambos ficaram.
— Ah, oi, senhor Jerônimo! Desculpe! Eu estava só tomando
um ar, gosto de ficar perto das violetas. Me ajuda a pensar. — Igor
sorriu morno, foi se distanciando contornando o homem. Odiava en-
contros surpresas que requeressem respostas rápidas.
— Sei... Depois venha aqui em casa para a gente conversar!
Vamos falar dos seus deveres religiosos! Vai ser legal, cara! — o ho-
mem deu com a mão. Perto da porta do líder estava uma vassoura, e
a calçada não tinha uma folhinha sequer que o vento trouxe. Apenas
uma breve denúncia de que fiel Jerônimo tinha saído há algum tempo.
E se tivesse ouvido algo da confusão que aconteceu atrás de sua casa?

107
O manifesto do fim do mundo

Não... Mas ele estava no portão de entrada, o melhor lugar para não
ouvir nada. A cabeça de Igor lhe pregava peças.
— Tá. Tá. Vou sim. — “É mais fácil eu ir pro inferno...” — Pode
deixar, seu Jerônimo!
— Eu vou cobrar, você me conhece! Eu só quero que todos
conheçam o que eu conheci quando fiquei de cara com o Todo Pode-
roso! — sorriu.
Depois cantarolou algumas palavras para toda a plateia invi-
sível que tinha consigo ali na calçada. Antes dos olhares sombrios por
cima e dos esquisitos por trás. Bem no espaço “entre”. Feito pelas mãos
daqueles que tinham o poder do universo, para além de suas comple-
xas ações.
A métrica do tempo.

108
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 15 –
Replay.

E foi-se novamente. Nem Marilene e nem Augusto comenta-


riam sobre o final de semana movimentado. Tinha passado tão rápido,
que ambos nem viram. O que era bom durava pouco mesmo.
Segunda-feira, hora da escola. Dia de trabalho. O ciclo da vida.
O celular da mãe estava do mesmo jeito que ela tinha deixado,
sem nenhum rastro de aplicativo com inteligência artificial cativante.
E a mulher sem nenhuma marca de ressaca, se não fosse as bolsas em-
baixo dos olhos e o manto de irritação que tinha vestido. Com poucas
palavras, eles se reorganizaram à rotina, recolocaram os termos dentro
dos lugares e partiram para o começo de suas jornadas enfadonhas.
Lá fora, cedo, o sol ia enjaulando o livre. Esticando as sombras
das crianças, desenhando o tom do céu quando os passarinhos ficavam
avisando que todos deveriam contemplar a maravilha do dia. A poei-
ra estava fina, o chão gelado, mas todo mundo andava bem calçado.
As motos transitavam sem novidades, só era digno de nota quando

109
O manifesto do fim do mundo

tinham carros, mais raros em Russinha Amada. E depois, quando se


aproximando, a respiração dissimulada de Marilene, de olhos semicer-
rando encarando qualquer ponto à frente, reflexiva e impaciente. Nada
pessoal com qualquer um por ali.
Rayane da casa do outro lado tinha acenado, mas nem ela ou
Augusto respondeu. Fingiram que não era com eles. A vizinha não se
abalou, pensou que talvez os dois estivessem mesmo envergonhados.
Todo o bairro já sabia do show que Marilene tinha dado.
— Deveria ser crime ficar de dente aceso uma hora dessas. Eu
não quero conversa! — a mulher rosnou baixinho para si.
Augusto quase ia sendo arrastado. Toda manhã o arrependi-
mento de sempre teimar em dormir tarde. Marilene mesmo não iria
forçar menino nenhum a dormir, ele que sofresse com as consequên-
cias.
— Mãe... — começou, dengoso.
— Que é? — ela não estava no direito de ser chata com o filho.
Além da ressaca, ainda tinha a problemática de o ter deixado dormir
sozinho. E se ele sumisse? Não se perdoaria nunca. Aquela vida mise-
rável queria mesmo era levar tudo o que ela tinha embora.
— Posso ficar com seu celular hoje?
— Não. — Marilene foi direta. Depois, olhou com desconfian-
ça para o menino — Para que você quer celular? Você vai é estudar.
Celular só depois dos dezoito anos e se tiver emprego pra comprar um.
E Augusto murchou.
Já estavam perto do bairro da escola, também o de Fortale-
za Florida. Com todas as árvores e jarros de violetas colorindo aquele
lado da rua.
O cheiro das flores foi fundo contra Marilene, mas não era cul-
pa das belezinhas cheias de tons. O mau-humor da mulher era que ti-

110
O manifesto do fim do mundo

nha pesado. Precisava acenar para os vizinhos, retribuir algumas gen-


tilezas. E foi esmorecendo até que avistou o “infeliz”. Os olhos que lhe
julgavam. Eram piores do que os da beata do seu bairro. Aquela guerra
fria tinha começado há anos.
Ele começou breve com Marilene. Estava sentado perto de
casa, com seu livro sagrado. Do lado Celeste, toda de azul, saiote e
cabelo longo. Toda simpática e passiva. A pracinha ao redor do casal
brincava com os passarinhos, naquele horário, cedo, o sol era carinho-
so. As violetas coloridas que estavam arrumadas entre pontos na rua
cortavam a luz variando suas cores, pareciam até prismas. Uma be-
líssima obra da natureza que só era vista quando menos se prestava
atenção.
E um garotinho desconfiado, lembrando-se de ter vergonha
quando passou para aquele lado. Do que tinha visto na noite de caçada.
— Bom dia, dona Marilene. — o homem soltou debochado.
— Bom dia, senhor Jerônimo. — ela também não ficou por
baixo.
— Como você está? Melhorou dos vômitos? — carregou seu
armamento para aquela guerra passivo-agressiva.
— Estou já é preparada para outra! — Marilene debochou —
Pronto! Agora pode anotar no caderninho de atualização diárias sobre
a vida dos outros que o senhor tem! — bem direta. Augusto encarou
a mãe querendo sorrir e ela foi puxando-o com força para que não se
envolvesse
— Que é isso? — Dona Celeste pôs as mãos na cintura em
resposta à ofensa. Já o marido, riu.
— Eu estou tentando lhe ajudar, Marilene. Essa vida que você
leva... Você sabe o que aconteceu àquela mãe imigrante que perdeu os
dois filhos pro tempo... Você sabe o que aconteceu à Márcia, o seu pai

111
O manifesto do fim do mundo

até hoje chora pela perda da filha. O tinhoso não brinca... Ele tá atrás
de mentes fracas, que se doam para esse tipo de comportamento.
— Ah, vai se catar, fiel Jerônimo! Coisa chata do cacete! Nem
tudo é obra do inferno! Realmente, devemos ter muita sorte porque de
todos os lugares no mundo o tinhoso escolheu logo esse cu de cidade
aqui para ser o playground dele! — Marilene reclamou, gesticulando
com a mão. Continuavam distantes, ele e a esposa na pracinha e ela
do outro lado da rua. Sem plateia, pois naquele momento a rua estava
somente para ambos.
Fiel Jerônimo reprovou as palavras balançando a cabeça, com
pena daquela pobre alma resistindo. Continuaria, agarrou firme o livro
sagrado e soltou a mão da cordial esposa. A mulher não hesitou, seu
marido sempre sabia o que fazer. Tinha aprendido sobre quem estava
no controle, continuamente a voz da razão.
Quando o líder religioso levantou o dedo, o portão da casa vi-
zinha abriu com um rangido que engoliu suas palavras. Dona Josefina,
toda de vestido rosado com flores, esquadrinhou a cena, os envolvidos,
a manhã e todos os aplausos do bom dia sorrindo. Tinha algo no seu
olhar que a deixava confiante. Um tanto quanto melancólica e, às ve-
zes, superficial.
— Bom dia, queridos! — fiel Jerônimo sorriu quando ela falou.
De uns tempos para cá notou a personalidade festiva e materna bem
aflorada da vizinha. Aquele olhar de doçura que o deixava “atraves-
sado” e que sempre dizia que podia carregar todos os problemas do
mundo. O que tinha acontecido quando seu Antônio resolveu ficar menos
em cena? Uma mulher tinha aflorado.
— Oi, dona Josefina! Amanhã venho aqui buscar as flores da
dona Josef...
— Marilene, como você está? — Josefina interrompeu. Pôs a

112
O manifesto do fim do mundo

mão no ombro da mulher e sorriu com graça. Tinha excluído total-


mente o religioso da cena, deixando-o minúsculo. Se podia se aproxi-
mar e participar da discussão ou não, ele não sabia.
— Bem. E a senhora? — Marilene respondeu ríspida. Nin-
guém comprava ela com conversinha, nem mesmo mulheres brancas e
ricas que ficam pagando de boazinhas.
— Estou ótima! Em breve lhe levarei flores! Você deve estar
sem. — Dona Josefina sorriu, também para Augusto, e o coração de
Marilene, apesar de tudo, foi amolecendo — Precisamos ficar protegi-
dos com o belo odor das violetas.
Marilene em reparou algo nos olhos de dona Josefina. Pare-
ciam atravessá-la, era como se a mulher estivesse vendo o que não es-
tava ali. Mirados para o “além”. Depois só se tornou impressão.
— Si... Sim. Claro. Eu nunca mais peguei mesmo flores para
minha casa e...
— Dona Josefina! — fiel Jerônimo se aproximou de penetra.
Abriu os braços empolgado.
— Oi, líder Jerônimo! — E se virou para os outros dois. Não
estava com tempo para o religioso.
Dona Josefina se agachou para ficar na altura de Augusto.
— Vou levar uma torta de limão que você vai adorar, rapaz!
— e o garoto acendeu de felicidade com a notícia — Eu nunca tinha
reparado em como você é um menino especial. Como vai se tornar um
homem mais ainda.
— O... Obrigada, dona Josefina! A senhora é muito gente fina!
— se tinha algum sentimento anárquico contra a mulher, ele sumiu em
instantes. Tinha comprado a pobre Marilene, não era tão difícil.
Fiel Jerônimo ficou no canto, na calçada. Analisando, raivoso,
como foi excluído de forma proposital. Só depois de um tempo, repa-

113
O manifesto do fim do mundo

rando nas feições de Marilene, naquele ar travesso que ela conseguia


soltar, a mancha nas costas que ia um pouco para a nuca. A ferida que
se transformou em algo. Nunca tinha visto. O tipo de coisa que faria ele
repensar um abraço na mulher, mesmo nos atos fraternais aos finais da
missa. Ficou com nojo e de certa forma com medo.
Marilene deu com um tchauzinho e foi se alongando. Ainda
iria conversar com Deise, perguntar, envergonhada, o que tinha apron-
tado tanto, e depois deixar Augusto na conta de Cecília, a “perfeitinha”
sabichona. Não ligou sequer em olhar para o líder Jerônimo, agora ele
era problema de dona Josefina.
— Dona Josefina, você crê que essa moça ainda não admite
que está errada? — ele iniciou a conversa ditando um tom — É uma
moleca malcriada. Moreninha safada.
A vizinha, no entanto, virou-se e sorriu, não concordou nem
repreendeu o homem. Só tocou seu ombro com dois apertos e uma
descarga elétrica de sensações. Quando retornou ao seu portão, foi es-
talando os dedos, desmoronando o muro masculino.
— Se distancie.
Duas vozes disseram. Do alto.
E a figura abobalhada da esquina foi caindo em plumas, den-
tro de sua visão embaçada. Enfeitiçado pelo cheiro e pelo toque daque-
la mulher. Um feitiço que surgiu como investida obscena, inexplicável.
Fiel Jerônimo teve algumas rápidas lembranças. Metade delas
não envolviam dona Josefina ou qualquer vizinho. Tinha a ver com sua
infância, um pai agressivo que o corrigia amarrando suas pernas e o
pondo para sentar no milho. O bafo de álcool que era azedo e nojento,
perto da sua orelha, chamando-o de um nome muito doloroso. O que
quer que dona Josefina tivesse feito era cruel. Mas a mulher sequer foi
demorada.

114
O manifesto do fim do mundo

“O... O que é isso...” A mente do homem começou a se enrolar.


Com os estalos repetidos, vinte anos foram digeridos trom-
bando entre si, até Jerônimo perceber algo. Um frio na área da pelve.
— Querido, você está bem? — Celeste se aproximou com sor-
risos e enigmas — Está gelado e... Ai, meu santo protetor máximo! —
pôs as mãos na boca.
— Querido, você molhou o calção! Você está bem? — Celeste
foi logo pondo as costas da mão na testa do marido, mas ele tirou com
certa paciência.
— Não, meu amor, estou bem, estou bem! Isso daqui foi... Foi
de um cuspe. Aquela mulherzinha suja cuspiu em mim.
Celeste passeava os olhos do calção para o rosto atravessado
do marido, ficava enrugado quando ele queria se expressar demais.
— Eu não a vi fazendo isso! Como ela pôde? Que malcriada!
— Mas a gente não recua diante de uma dificuldade! A gente
não recua nunca!

115
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 16 –
Augusto e sua novidade.

D epois de todos os recheios sociais que Marilene fazia-o pas-


sar, Augusto comemorou quando chegou na escola. Viu o Bola, Milton
e o restante da sua galera, um grupo de meninos que sempre tentava
tirar a professora Cecília de tempo. Mas era inútil, perto da senhorita
autocontrole. E os castigos eram a pior parte. Era mais temida que elo-
giada.
Os dois amigos deram um pulo. Acenaram pro garoto, que na-
quele dia trajava uma camisa limpa. Marilene não brincava em serviço.
“Danado sim, sujo e sem mãe? Nunca.”
— Juízo, cacete. — ela deu um empurrãozinho no filho, o jeito
particular de desejar um bom dia. Augusto nem ligou, só queria mes-
mo contar das novidades para os amigos. Deu outro tchau morno e
saiu.
Marilene, esperou alguns minutos. Primeiro para ver se a sua
cabeça pararia de girar um pouco mais e depois procurando por Ce-

116
O manifesto do fim do mundo

cília. Mas a “engomadinha” de Russinha Amada com certeza estava


evitando-a. Não seria a primeira e nem última. “Que se foda ela.”
A manhã estava com cara de que passaria rápido. Depois da
escola era hora de voltar aos embates nas trincheiras com dona Josefa.
Quando o inferno se mostrava uma dimensão possível, dentro da Ter-
ra.
E Augusto bem pertinho do céu.
O garoto chegou com o seu andar de “gangster”, como mesmo
dizia. Um rebolado lançando os braços para um lado e para outro, e
já foi logo fazendo jogo com o indicador, apontando para si. Cheio de
ideias.
— Adivinha quem descobriu um novo game muito massa? —
perguntou retórico. Interviu no meio entre Bola e Milton. Os outros
dois começaram a se empurrar, na brincadeira.
— Jogo de boiola? Aposto. — Bola disse. Era um garoto gordi-
nho, a camisa acochada ao corpo, tinha dobrinhas na parte detrás da
cabeça, e um penteado legal. Desses de jogador de futebol, sensação
entre os jovens meninos. O seu rosto era tão oval que os olhos ficavam
como duas azeitonas perdidas. Certa vez, Augusto disse que ele lem-
brava muito um ditador coreano, os dois resolveram depois nos socos.
— Para de ser fresco, Bola. Tu nem sabe o que é. — Augusto
deu um chega para lá na orelha do amigo — Te cala, tonel!
Bola semicerrou os olhos para os dois, Milton sorrindo e Au-
gusto superior com sua piadinha.
— O nome é “Pontua aqui” e é bem massa! Sábado eu desco-
bri uma parada, um símbolo esquisito, mas que eu acho que já vi em
algum lugar... — Augusto disse.
— Que símbolo? — Milton indagou.
— E eu vou dizer? Vão ficar aí curiosos! É minha descoberta!

117
O manifesto do fim do mundo

Oras! — Augusto fez uma dancinha para os lados com a cabeça, con-
trariando o amigo — Se quiser descobrir, baixa o aplicativo e vai atrás!
Preguiçoso.
— Deve ser bem o símbolo dos veadinhos. — Bola cutucou
Milton e os dois ficaram contra Augusto.
— Pois é.
— Podem tirar onda aí, eu não vou contar. Enquanto vocês
ficam de graça aí, eu vou descobrindo todos os segredos de Russinha
Amada. Esse de sábado foi pelas terras de dona Josefina e do biruta
Jerônimo.
Bola arqueou as sobrancelhas, Milton o imitou no gesto estu-
pefato.
A conversa perdeu o tom de brincadeira.
— Respeita o líder Jerônimo, pô. — lançou o sermão.
— É mesmo. O cara faz mais que o prefeito.
— Ele é muito é um pé no saco. Fica só de perseguição com a
minha mãe. — Augusto cruzou os braços.
Bola e Milton soltaram uma risadinha de escárnio.
— Tua mãe só fica por aí bebendo e criticando o cara. — Bola
soltou — Eu e a mãe vimos ela dando o maior show perto da igreja,
parecia uma maluca. Eu aposto que ela passou a noite enchendo a cara
no bar do seu Osvaldo e flertando com os borracheiros.
Augusto foi cerrando o punho, de rosto franzido. Se levantou
para ficar cara a cara com os dois de uma vez.
— Como é? Tu tá falando mal da minha mãe? — perguntou no
seu limite.
— Eu só falei a verdade. Todo mundo sabe... — o Bola ficava
cada vez mais cínico. Com o sorrisinho de canto para Milton.
Augusto engoliu em seco, foi se dividindo, entre aceitar a ver-

118
O manifesto do fim do mundo

dade de Bola e defender a honra da mãe. Cecília tinha entrado cedo na


sala, as outras crianças ficaram aproveitando os minutinhos de atraso
da manhã, a professora não tinha chamado ainda para entrar. Parecia
ter algo a ver com uma das carteiras enferrujadas. Violetas coloridas ao
redor denunciaram, não só que o lugar era precário e feio.
O garoto foi primeiro com um soco no olho de Bola, depois
pulou no pescoço dele. Milton riu, mas quando camisas foram ras-
gadas viu que era hora de apartar. O restante das crianças só repetira
robotizadas “briga, briga”, para animar logo aquele começo de semana
desinteressante chamado segunda-feira. A poeira foi para cima, os co-
merciantes ali de perto também ficaram curiosos, começaram a gar-
galhar e a torcer por um dos dois. Ninguém teve uma boa ideia no
momento. Quando as coisas se desestabilizavam em Russinha Amada,
o tempo parava porque não era sempre. A resposta podia estar no caos.
— Mas o que é isso? — Cecília saiu correndo da sala. O cabelo
foi para a esquerda na brisa rápida que acordou também mais violetas
coloridas na janela. O sol já tinha seus raios de início, deu fogo para o
céu abrasar em azul. Uma formação de urubus logo acima era circular,
porque eles também notavam com interesse.
— Tia, o Augusto vai sufocar o Bola! — Juliana, uma menini-
nha de óculos grandes, filha do jornaleiro de Russinha Amada, disse.
Era famosa por ser fofoqueira (e por ter denunciado que o pai traía a
mãe quando o viu dando uns amassos na rua escura perto dos mata-
gais).
— Augusto! Bo... — Cecília se corrigiu na mesma hora. Crian-
ças riram para o quase dito apelido do garoto. — Augusto! Maurício!
Parem agora!
Milton tentava apartar, mas Augusto ia de cabeça na barriga
gelatinosa de Bola. O outro, tentando fazer algo com os bracinhos pe-

119
O manifesto do fim do mundo

quenos, socavam as costelas do rival. E deixou Cecília sem escolha. A


professora correu e ligou uma mangueira que servia para regar as vio-
letas, nos dias de calor infernal. Também para abrandar a terra quente.
Ela mirou o jato nos dois garotos e, como numa briga de cães, desgru-
daram-se, ensopados de sangue e água.
— Para a diretoria! Vou mandar dona Regina falar com vocês!
OS DOIS! — Cecília apressou. Estava tão furiosa que as bochechas
coraram. Odiava já perder as estribeiras no começo do dia, isso porque
ela nunca perdia. Sempre se mantinha no equilíbrio bem construído
que trouxe para si. No mais perfeito retrato de voz da razão (depois de
fiel Jerônimo).

120
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 17 –
Notações.

I gor passou a manhã pensativo, mais do que o habitual. Como


se suas constelações tivessem mudado drasticamente, e o interior do
seu ser não podia ser o mesmo, quando aquelas cócegas na barriga
o embebedavam com um sentimento engraçado. Um nostálgico, jo-
vial, no começo das descobertas. Por isso que estava moroso, e muito
disperso. Tinha faltado com algumas informações para clientes, tinha
esquecido o número quando nas ligações. Nem o seu celular conseguia
distrai-lo com facilidade.
A barra de pesquisa do Instagram estava limpa. Igor era preca-
vido. Extremamente cuidadoso. Parecia que pesquisar aquele nome,
desvendar aquilo, naquela hora, seria pecaminoso. Mas, mesmo na
noite anterior, ele não encontrou o perfil do antigo amigo. Concen-
trar-se ficava difícil, pensar em Rafael mais ainda. Depois do último
encontro, também havia as violetas coloridas, que tinham ficado mais
radiantes por toda a floricultura. Agitadas como a figura no balcão.

121
O manifesto do fim do mundo

Giovani, do outro lado, permaneceu calado. Não com senti-


mentos bobos ou pensamentos distantes, mas incomodado. Só não fi-
caria mais nervoso porque tinha um encontro com doutor Félix para
fazer uma bateria de exames. Sondando a mancha esquisita na perna.
Podia ser impressão dele, mas a cada dia ia mudando de forma. Um
desafio de mímica bizarro que não o estava divertindo de nenhuma
forma. Giovani se lembrava daquele sentimento, anos atrás, na sua mi-
séria. Quando o egoísmo humano se manteve em alta com a batalha do
Rarizes, cada um por si. Pouco se fodendo para alguém como ele. Es-
tremeceu só de relembrar. Em dúvidas se a sujeira no corpo não vira-
ria, em breve, alguma podridão, um sinal dentro do círculo de morrer
de dentro para fora.
Piscou duas vezes, uma vez quando a visão embaçou e a outra
para se situar na floricultura, no seu trabalho que tanto amava, perto
das pessoas que tanto gostava. O cheiro forte das violetas não ajudou,
pediam-no que fizesse logo seu trabalho. Que não demorasse com sus-
peitas malucas da sua cabeça.
— Não pode ser... Não pode ser isso. — e um fiapo mal-inten-
cionado surgiu, repleto de estereótipos, sobre o que poderia ser aquele
sintoma esquisito. Sua própria loucura em simbiose com sua hipocon-
dria. Não era legal.
“O Rarizes... Você lembra do que foi o Rarizes?”
Giovani se levantou, coçou as mãos fitando com cuidado os
dedos marcados. Mais alguns minutos e jurou que galhinhos salientes
saíam da unha, como uma ramificação que devia fazer parte se fosse
um monstro do pântano. Eram fios esverdeados crescendo dos nós,
se enroscando na pele, pareciam pelos. Só sumiram quando Giovani
chacoalhou a miragem.
— Que diabo é isso...

122
O manifesto do fim do mundo

— Gio, você está bem? — Igor resolveu voltar-se para o mun-


do real. Mas o celular ainda estava aberto na aba de pesquisar do Insta-
gram.
O amigo não respondeu.
— Giovani! — ele chamou novamente.
O funcionário prendado estava mesmo esfregando o freezer
das flores, funcionando somente para os barulhos da sua cabeça. Se
o dia tinha ficado mais quente naquela segunda, ele não sabia, estava
encharcado.
— Giovani? O ar-condicionado desse lado não está funcio-
nando? Você está suando, cara! — Igor surgiu como suas ideias bizar-
ras.
— Eu... — Giovani piscou duas vezes — só estou meio tonto,
não sei se foi o café da manhã. Comi bolacha de sal com café puro.
— Você não quer se sentar ali comigo no balcão? Estamos sem
movimento, não se preocupe! É bom que conversamos e você me con-
ta das suas...
— Isso! Boa ideia! Eu quero me sentar! — Giovani se apressou
— Eu já terminei o freezer aqui, não tem o que fazer.
Não quero morrer aqui, não quero morrer no meu trabalho, eles são
legais demais comigo para eu morrer aqui.
Igor se assustou com a investida abrupta, deixou que o outro
fosse na frente. Nas costas largas e gordas de Giovani, uma área molha-
da tinha se formado. Só depois, bem abaixo do shortinho jeans desfia-
do, a mancha reluziu e atraiu para si o espetáculo, num formato falo-
cêntrico tremido. Verde e rosa, uniam-se como se não se pertencessem.
— Gio, o que é isso na sua perna? — Igor perguntou, assusta-
do.
— É nada. É nada. — o amigo respondeu se sentando ligeiro,

123
O manifesto do fim do mundo

de pernas cruzadas como uma lady. Pegou o celular, queria desviar de


qualquer assunto que o perturbasse naquela hora. Nem que para isso
fosse para monotonias do seu dia a dia.
— Você sabia que aquela digital influencer Marília vai inau-
gurar uma nova baladinha em Teresina? — perguntou contra todos os
problemas do mundo. Com um sorriso nervoso e suado.
— Gio, pô, você está passando mal e quer falar sobre essa rica
mimada? — Igor se chateou, também se sentou no outro lado do bal-
cão.
— Por favor, Igor, eu... eu não quero falar disso. Vou me
consultar na sexta-feira com doutor Félix. — pediu de olhos fechados,
penteando o cabelo com os dedos, sempre fazia aquilo quando nervo-
so.
— Eu sei, eu fui falar com ele e...
O sininho da porta de entrada tocou e surgiu, um pouco mais
atrasada, dona Josefina. Carregando uma cestinha de flores que não
eram violetas coloridas. Alguma espécie qualquer da floricultura. O
rosto da mãe estava mais desafiador, ela conseguia mentir bem, se por
acaso você não a encarasse por mais tempo. Mas nos últimos tempos
Igor tinha ficado vigilante.
— Bom dia, meninos! — Ela disse sem tanto carisma, evitou
ter contato olho a olho com os dois. Igor na mesma hora fechou a cara.
Teve uma rápida lembrança.
Tinha nove anos e era um moleque danado, daqueles que caía
e engolia o choro para não apanhar depois. Nessa época, já tinha noção
das consequências de suas próprias estripulias e também de outros
comportamentos que não tinham tanto a sua culpa. Bem antes da mãe
ter criado uma espécie de muro invisível e emotivo. Ela se aproximou,
ele lembrou bem, com aqueles olhos incisivos. O pai dava algumas vol-

124
O manifesto do fim do mundo

tinhas na área de lazer, mas depois tinha ficado triste. Igor não sabia
bem o motivo, foi tão rápido. Ele não queria acenar nem nada do tipo,
estava tristonho na sua cadeira de balanços e encheu os olhos de água.
Mas dona Josefina tinha visto e balançou a cabeça. Se aproximou do
filho, ele no quintal, perto da árvore que soltava bolinhas amarelas,
cheias de lagartas de fogo. O terreno cimentado e com divisas de ra-
chaduras. “Você vai ficar aqui, e eu vou entrar. Não atrapalhe!” As pala-
vras eram quase aquelas, Igor não teve precisão. Podia ter aumentado,
estava emotivo naquele momento. Mas a repulsa no olhar estampado
de Josefina era visível. A mãe nunca tinha ficado tão humana em anos,
com poucos momentos como aquele. Ela evitava olhar para ele, mas
quando o fazia, enxergava através dele. Já ele não se recordou do que
houve depois.
Quando os pais sumiram. Como o restante da efêmera recor-
dação.
— Eu vou ficar um tempo cuidando das rosas, preciso de pri-
vacidade. Tirem o restante do dia de folga! Podem até ir ao Poço das
Cunhãs! — ela continuou se esquivando. Caminhou celestial até a por-
ta dos fundos, antes um último aviso — Não venham para cá! Vou
mexer com fragrâncias! Por favor! Não atrapalhem!
Não se meta! Humano!
— Obrigado, dona Josefina e... — Giovani foi murchando
quando a chefe bateu a porta.
— Gio, por que você não vai para casa? Eu passo lá depois! —
Igor pediu com um sorriso forçado.
— Beleza! Obrigado, Igor! Qualquer coisa você me avisa, tudo
bem? Por favor, qualquer coisa mesmo! Você sabe que eu não tenho
preguiça de trabalhar e...
— Eu sei, eu sei. — Igor foi interrompendo o amigo.

125
O manifesto do fim do mundo

— Se cuida, e largue essa Marília de mão! — disse depois sor-


rindo.
Giovani pegou uma pochete velha que tinha, ajeitou dentro
tudo o que precisava, as chaves e o celular. Deu um beijinho no ar com
a mão, bem dramático e caricato, como ele gostava de fazer. E saiu. Tão
transtornado quanto antes.
Igor também não fez caso, porque agora era hora de invocar o
seu personagem investigativo. Bem quando a sua intuição alarmava de
que algo não estava mesmo no lugar.
Tudo bem perto de si. No quarto ao lado.

126
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 18 –
Inflamações.

E le se aproximou da porta da floricultura, depois de minu-


tos rememorando a última vez que tinha desafiado a mãe. Até mesmo
quando aquela mulher não parecia ser uma Josefina, estranhamente
mais carismática e gentil, friamente apática, para ele e para o restante,
as violetas coloridas estavam vivas, tinham pétalas dentro do arco-íris
vibrante, funcionando como lâminas, com reflexo dos fachos de luz,
porque toda a floricultura era ampla e aberta.
Igor afastou algumas pétalas com o chinelo, havia um rastro
até a porta dos fundos. Foi se aproximando, como João e Maria, da
casa açucarada. A portinha de madeira, com uma plaquinha convida-
tiva. Somente com a voz de dona Josefina na sua cabeça, exclamando
para que ele não entrasse. Não invadisse. Era área de acesso proibido,
ela tinha pedido.
Alguns barulhos metálicos, o assobio de uma brisa do ar como
se estivessem no verão. Igor foi puxando a maçaneta, a luz invadindo

127
O manifesto do fim do mundo

com mais ênfase. E um clarão, absurdo. Demorou minutos para sua


visão se acostumar, até que amenizou. E ele esquadrinhou a região.
Estranho.
As flores estavam lá, os objetos de jardinagem também. Mas a
mãe não.
Se ela tinha saído, ele não viu, foi pelos fundos. Possivelmente
para o outro jardim, o de casa, pensou. Era confuso, nada fazia sentido. A
Fortaleza Florida iria ficar aberta e sozinha? Depois de seu Antônio
ter deixado a loja por problemas de saúde e agora uma irresponsável
Josefina. Parecia um absurdo. Igor sabia que a família tinha condições,
mas era notável o recente desleixo pelo negócio, o que o deixou irri-
tado. Iria dizer umas poucas e boas para a mãe. Ela só pensava em
fragrâncias ou nas malditas flores coloridas que surgiram como Rafael,
sem nenhuma gênese bem-dita.
Igor pegou as chaves. Trancou a porta dos fundos. Deu uma
última conferida, não tinha nada fora do lugar, e muito menos movi-
mento, podia mesmo fechar a floricultura. Para que ninguém perce-
besse, ele deixou a plaquinha de almoço, cessou tudo e foi de fininho
pela rua, as mãos nos bolsos e cabisbaixo. Sem querer conversa.
Um vizinho, perto do seu bairro, ainda assim o parou. Deu
um bom dia, fez uma ou duas perguntas inconvenientes, às quais ele
não queria responder. Finalizou com uma indagação considerável. A
atenção de Igor de volta.
— Você reparou que dona Raimundinha não saiu mais? Nem
o filho dela está saindo. Como será que estão comendo?
Depois, o rapaz balançou a cabeça, tentando recapitular em
que momento aquele vizinho arranjou intimidade para ter lançado tal
questionamento. Mas, depois de minutos, a rua estava vazia. Sem ne-
nhum oportunista. E Igor deveria pensar agora que foi uma pegadinha

128
O manifesto do fim do mundo

bem malfeita da sua cabeça? Simplesmente inconcebível. Ele não podia


estar ficando louco, e não deveria ser o Rarizes. Tinha se imunizado, a
humanidade venceu aquele mal. Se era loucura, era particular. Talvez,
o vizinho tenha só perguntado e saiu com vergonha, porque Igor pare-
cia mal-encarado.
Passou a chave com delicadeza no portão. Sabia da entrada se-
creta do quintal com o jardim principal. Indo pela dianteira, como se a
casa fosse um território inimigo. E, bem à frente, a entrada para o céu.
Deu um suspiro exclamativo. Tinha razão, a portinha estava aberta, e
só uma pessoa podia ter passado por ali. A luz era tão forte do outro
lado que Igor se questionou sobre um espetáculo inconcebível, como
todos os outros dias subversivos desde os últimos tempos. Porém, com
a guarda abaixada, uma nova ideia surgiu, bem mais proveitosa.
Igor recuou, entrou pela cozinha, não deu de cara com Ro-
berta, hora do almoço. Os recipientes de plástico ainda estavam ali, as
panelas intocáveis de comida também. Será se saiu para resolver algo
na lotérica? Bom, não tinha tempo para cogitar. Foi pulando com a
almofada principal dos pés, chegou perto da porta e destravou a ma-
çaneta. O quarto principal revelou a luz da manhã. A figura na cama
também, com os calombos nas costas, esquelética. Tão perto de falecer
com sua nula vivacidade.
— Pai? — perguntou baixinho – Pai, o senhor está bem?
O homem foi se virando, com espasmos. Parecia que só girar a
cabeça lhe conferia muito trabalho.
— Quem é você? É Igor? Se for Igor, por favor... Se for Igor,
por favor, venha aqui... — o homem falou com a voz falhando. Seu
Antônio, o oposto do que sempre tinha sido. A virilidade da sua época
de ouro, quando andava junto da sua família, forte e feliz, tinha se apa-
gado naquele instante.

129
O manifesto do fim do mundo

Igor deu meia-volta, evitando tocar até no lençol da cama. Seu


instinto de proteção falou mais alto. Aquele não podia ser o seu pai, o
homem que o levantava brincando para jogá-lo no ar. Sério. Sempre
uma energia alfa, que estava pronto para qualquer coisa, grato pelas
conquistas. E pela Família?
— Pai, o senhor está bem?
— Igor... — os olhos tiveram seu primeiro encontro, em dias.
Duas pupilas esverdeadas, com uma doce camada esbranquiçada fina
por cima. Parecia uma doença animal. O pai ficando cego junto da
deterioração do próprio corpo. O peito estava marcado, não tinha um
volume sequer, de tão magro, só marcando as costelas. Uma nova cor-
cunda tinha sido cuidada, pela má posição de dias ou meses.
— Pai... o que o senhor tem? — Igor não queria se aproximar.
O quarto cheirava a vômito. Como eram tantos detalhes para prestar
atenção, ele não pôde se atentar aos dejetos embaixo da cama, pare-
ciam vísceras. Ou a mãe estaria escondendo algum cadáver morto... O
odor foi ficando mais forte.
— Igor, você não devia estar aqui. — o homem sorriu, com
uma banguela que cortou o coração do filho. Não podia ser, aquele
corpo falecendo nunca poderia ser seu pai. Não tinha como chegar
àquele estado deprimente em tão pouco tempo — Não devia... Você...
sabe... as transformações...
— Pai, o senhor está com câncer? É isso? Por que a mãe não
fala nada? — tinha urgência na voz de Igor.
— Vai embora! — o pai berrou dando o máximo de si. Tossiu
depois com o esforço, gotículas de sangue se esparramaram no lençol
— Vai! Vai!
— Silêncio, pai, eu estou tentando ajudar o senhor! Eu sou seu
filho!

130
O manifesto do fim do mundo

— Filho?
Igor se tocou do tempo, não iria arriscar mais ali. Era inútil,
estava batendo a cabeça na parede. Mas pelo menos confirmou a nova
situação dentro de casa que, sim, aquele perímetro se inverteu, como
o indivíduo adoentado daquele quarto. Que nunca tinha sido o seu pai,
nunca.
Depois que saiu do cômodo e correu para o seu quarto, a cena
anterior foi se despedaçando. Igor anotou os detalhes que ficaram. Os
rabiscos foram ligeiros até morrerem, com o seu cérebro cheio de difi-
culdades. Em minutos, era como um sonho, tinha sido vivo e memorá-
vel até o seu último momento. Depois, só ficaria a sensação, e dela não
se extraía muito. Só o medo.

131
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 19 –
Momentos conflituosos.

E nergia perturbada nos dois polos, em regiões distintas. Gio-


vani parecia um bêbado, entre sorrisos e caretas, nervoso com a ansie-
dade o consumindo, do jeito que ela adorava saborear. Ele já era evita-
do por alguns da rua. Se não fosse dois vizinhos que sempre acenavam
num gesto caridoso, passaria despercebido. Sempre o tratavam como
assunto... Um bem ruim.
Duas ruas aqui, mais uma acolá, as árvores no meio da estra-
dinha, e a visão blefando, transbordando com certos delírios dignos
da criatividade de Giovani. O céu tinha suas nuvens densas e gordas,
que por pouco não tocavam o chão. Diziam que a linha do horizonte
era logo após, preparando para iludir Russinha Amada e Piripiri sobre
alguma chuva. Os ventos de subúrbio estavam por cima, não costuma-
vam mentir.
Uma quadra e ele estava em casa. No meio do trajeto, algum
matagal verde, com um cheiro de esgoto azedo. Ali perto, a residência

132
O manifesto do fim do mundo

de Danilo e o seu salão de cabeleireiro. No horário do almoço, ficava


vago. Giovani foi pela outra calçada, apressou o passo para esconder-
-se, tentou uma cobertura com as roupas dos varais, mas Danilo tinha
o olho afiado. De anos observando os mais desastrosos acontecimen-
tos daquela rua, ficando afiado.
— Ei, bicha! Tá indo pra onde? — questionou ao acenar, o sor-
riso foi diminuindo quando não obteve resposta. As costas de Giovani
estavam suadas, e ele foi aos pulinhos para casa.
Danilo semicerrou os olhos e correu para o celular, desmarcou
o corte de dois clientes para depois do almoço e arrumou o espaço.
Jogou as tesouras para uma cestinha, empurrou com o sapato um resto
de cabelo e suspirou ao fechar o salão. O barulho da porta de enrolar
ecoou pelos cantos de Floresta Dois, atrapalhando o almoço de um ou
mais vizinhos. Felizmente, ninguém saiu para ver.
Bateu porque era educado, mas ele não esperou resposta. Em-
purrou a porta da casa do amigo e foi direto para o quarto, de braços
cruzados e reclamação na goela.
— Agora virou uma bicha mal-educada? — perguntou, afiado.
— Que porra é essa? Me deixou falando sozinho lá fora!
Giovani estava encolhido. O travesseiro fazendo hamburguer
com sua cabeça, ele não queria papo com ninguém.
— O que foi, Giovani? Fala, mulher! Que diabo é isso? Que
macho te bateu? — Danilo deu dois tapas nos outros pés rachados tre-
mendo. A marca esquisita resolveu passear pela perna, indolor. Ansie-
dade no topo.
— Eu não quero falar agora, Danilo. Você pode sair, por favor?
— a voz de Giovani oscilava. Sempre aquele coração mole que cedia
primeiro, deixava Danilo furioso.
— Tá louca? Não vou sair e...

133
O manifesto do fim do mundo

— Não me chama no feminino! Não me chama! — Giovani


interrompeu com a voz alterada.
Danilo arregalou os olhos, não esperava aquela reação. Era
bem diferente do costume do amigo zangado.
— Eu acho que estou doente. Pronto! Tá feliz? Eu acho que
estou doente! — disse um Giovani com a voz embargada.
— Você não iria se consultar com o Félix? O gostoso do pos-
tinho? O que mudou? — Danilo continuou de braços cruzados e so-
brancelhas franzidas.
— Eu estou com muito medo do resultado, eu não quero fazer
esses exames...
— Como assim, bicha? Essa mancha não vai sumir do nada e...
— E SE FOR A MALDIÇÃO DO RARIZES? — Giovani tirou
o travesseiro do rosto com fúria, revelando suas bochechas vermelhas.
Danilo balançou a cabeça em negativa, não acreditou no que
estava escutando.
— Você é imbecil? Rarizes? E a vacina que nós tomamos? Era
água? — argumentou. Depois, foi amolecendo para chegar onde que-
ria — Você tá com algum outro sintoma? Giovani, que conversa é essa?
Uma lembrança, uma maldição. Uma velha.
Com palavras cruéis para uma versão mais esguia e jovial de
Giovani. Enquanto sua visão parecia uma lente de câmera tentando
o foco, as recordações o queimavam com uma culpa que ele deveria
carregar, como os estereótipos que sempre o assombraram. Parecia
que nunca se livraria daquele fardo pesado, enquanto tinha que passar
toda sua vida tentando sobreviver na selva preconceituosa de sempre.
O mundo parecia açoitá-lo por uma culpa de outras vidas, era injusto.
— Eu não aguento mais! — Giovani se sentou na cama, fez
garras com os dedos parecendo um maníaco — Eu. Não. Aguento.

134
O manifesto do fim do mundo

Mais.
Danilo poderia pedir que o amigo se acalmasse, ou então até
levasse na brincadeira como sempre fez para que os problemas entre
eles nunca tivessem o peso que tinham. A vida de ambos já era dura
demais para mais um extra. Mas aquele comportamento foi inédito e
cabível. Porque Giovani, sempre muito receoso com doenças, perdeu
toda sua família pra muitas enfermidades. Agora tinha chegado ao seu
limite.
— Bicha, se acalma! — Danilo recuou, continuou na defensiva
sem reconhecer a figura familiar — A gente pode ir para a urgência
agora, no postinho!
Giovani olhou para um ponto fixo no teto. Se perguntou quan-
do foi que começou a se transformar em variações de vegetais. Tam-
bém quando Danilo se tornou um estranho esquisito. Dentro da sua
visão, variando todas as formas, a loucura foi como um espiral, des-
cendo até o infinito. Suava frio. As mãos tinham engordado. Cheias de
calombos, com protuberâncias esquisitas.
Outros sintomas só foram vistos por Danilo. Ele esfregou os
olhos, balançou a mão para que a miragem passasse. Os olhos sensíveis
com a luz, mesmo que uma nuvem interrompesse o Sol, para o espetá-
culo que estava acontecendo no quarto. Com os devaneios de Giovani,
suas próprias loucuras, e o que estava irradiando para Danilo. Eram
duas energias sobre um mesmo evento.
Quando o outro saiu da cama, correu para a cozinha. Procu-
rando exatamente o que iria finalizar de vez com a sua dor. Violência
urgente.
Lembrou-se, e ele não sabia o porquê, de Marília. Parecia um
pequeno curativo para o emaranhado da cabeça. Num total acesso de
loucura, enquanto aquela adolescente loira dava dicas de produtos de

135
O manifesto do fim do mundo

pele, conversava sobre como estava triste, pedia que os seus seguidores
desabafassem com ela. Queria se tornar próxima deles. Assuntos bo-
bos da tangente.
Giovani foi lançando as palavras duras consigo. E Danilo se
encolheu para proteger-se também de sua própria cabeça, enquanto
sua visão era comprometida com um acesso luminoso que inundou o
quarto, sem conhecer a fonte. Ele não enxergava o que o amigo pro-
curava na cozinha. As palavras cruéis que lançava contra si tinham
muitos pauses, não conseguia elencar todas. Mas Giovani falava
sobre maldição, que deveria mesmo morrer porque era a escória da
sociedade. Inúmeros absurdos.
Com a faca em mãos, a pobre mente perturbada saiu com
ideias. Escancarou a porta, o corpo de fachos do Sol o engoliu, antes
de cegá-lo. Giovani saiu disparado na rua, bufando como um touro
raivoso. A testa molhada.
O terreno era cheio de pedrinhas, traiçoeiro. Furavam o sola-
do do pé e a tinta humana vermelha maculou a arena, grudando o que
podia de areia. Conseguindo um rastro para ele. Os vizinhos saíram na
porta, gritavam, zombavam. Uns ficaram só consigo torcendo para que
o que quer que Giovani fosse fazer que fizesse com um belo tiro final.
Exatamente na borda do fim do mundo, numa encruzilhada,
Giovani chegou a uma espécie de estopim. Esquizofrênico. Deu duas
voltas com a cabeça, fitou bem as árvores crescendo e diminuindo e
observou longe uma espécie de cavalaria, para escoltá-lo. Inúmeros
vaqueiros com armas e coragem em mãos. Como os homens que lem-
bravam muito a infância crua e quente de sertão, no único lugar onde
não deveria ter nascido como flor.
Quem quer que fosse que estivesse ali, não sorriu de volta para
ele. Os animais arrodearam Giovani com uma formação. Aguardaram

136
O manifesto do fim do mundo

o sinal do líder, o vaqueiro chefe, com espingarda na mão levantada


para o alto.
Na mesma hora, Giovani cortou o próprio pescoço, atendendo
ao que lhe pediram... Explodindo o novo mundo.

137
O manifesto do fim do mundo

Parte 3 –
Momentos
perto do
fim do
mundo.

138
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 20 –
Espetáculo.

M arilene chegou com a fúria de todos os mundos. Já foi


aquecida com as piadinhas de dona Josefa sobre ela ser uma péssima
mãe, que não botava “moral” no “perigosinho”. Ela poderia ir sim na
escola de Augusto depois que regasse as plantas e conversasse com elas.
Parecia um círculo esquizofrênico do qual Marilene não fazia nenhu-
ma questão de participar. Mas dona Josefa não estava boa da cabeça há
anos, e ela precisava do emprego. O patrão, filho da idosa, advogado
de Teresina, quase pediu de joelhos. Pagava um bom bônus, mas não o
suficiente para Marilene se mover.
Depois de escutar as alfinetadas, após contar até dez, seguiu
caminho. O movimento estava esquisito. Duas lojas ali perto tinham
fechado sem tantas pessoas na rua. Ou todos resolveram trabalhar ou
então estava tendo promoção de tapetes em Piripiri, só mesmo aquilo
para carregar toda Russinha Amada. Marilene foi desviando caminho,
pegou becos, uns matagais estranhos para continuar daquele jeito, sem

139
O manifesto do fim do mundo

abertura para papo. Já sabia dos olhares julgadores, e uma fofoca de


briga, por mais que fosse de criança, sempre resultava em algo maior.
Cecília esperou de mãos juntas na frente do ventre. Parecia tão
santificada que chegava a dar nervos, suas saias jeans eram feias, seu
cabelo era feio, Marilene não conseguia tirar nada de bom dela. E ain-
da por cima era mal-educada, com o jeitinho “nojento” de não querer
contato físico. Ela devia se tocar que estava numa escola.
Marilene só parou sua discussão mental quando Cecília apon-
tou a salinha pequena da direção. Depois, o banco com os protagonis-
tas da cena violenta. Pelas janelas, outras crianças espiavam. Metade
apostava que Augusto iria apanhar ali mesmo, e a outra metade estava
certa de que ele seria puxado pela orelha até em casa.
— Cadê esse imprestável safado, que devia tá era estudando e
não arrumando briga pro bico dele? — a mãe afunilou os lábios, fingiu
que ia acertar um tapa no braço do menino, mas passou reto. Ainda
manteve fios de paciência. A ameaça se sobrepôs — Quando chegar
em casa, eu vou te esquentar!
Bola e Milton engoliram os lábios, queriam rir do tanto que
Augusto murchou.
Cecília balançou a cabeça reprovando a acena, mas não se me-
teria naquele entrave.
— Diga, dona Regina! — Marilene se sentou sem ser convi-
dada, a diretora sorriu com uma troca de cumprimento, rápida, sem
esticar intimidade — Eu estou com pressa!
— Bom, olá, dona Marilene! Também serei breve. Pelos de-
poimentos não só dos envolvidos, mas de testemunhas, Augusto ini-
ciou a confusão atiçando os amigos com uma tal “descoberta”. — dona
Lourdes desenhou as aspas com os dedos, mostrou as unhas vermelhas
frescas. Feitas provavelmente no salão da Cleide, uma das melhores

140
O manifesto do fim do mundo

de Piripiri. O lugar para as podres de ricas — Então, acabou que, numa


troca de xingamentos, ambos partiram para a agressão.
Marilene balançou a cabeça dizendo estar bem atenta, mas a
sua opinião sobre o lado de Augusto mudou, começou exatamente no
segundo em que viu Cecília. A arrogância das absurdas violetas colori-
das por todo o lugar, aquele olhar de microssegundos que dona Lour-
des deu assim que chegou. Faltou tampar o nariz. Todos, exatamente
todos, contra ela e o filho. Parecia um motim.
— Eu conheço Augusto, ele não iria brigar atoa assim. Os me-
ninos devem ter feito ele de chacota! — Marilene se encostou na ca-
deira, fez de propósito em ficar bem à vontade, enquanto a autoridade
do outro lado da mesa se prendia a um jeitinho classudo. — Chama ele
aqui! Quero ouvir da boca dele.
— Eu entendo. — dona Lourdes sorriu, sem pegar os olhos —
Mas eu tenho testemunhas de que ele começou a briga e...
— Na verdade, o que eu entendo é que essa escola pega no pé
do Augusto desde quando ele entrou aqui! Uma instituição pública,
mas que fica agindo como se fosse particular, dessas de riquinhos de
merdas que comem lagostas no lanche e ganham tablets como brin-
de. — Marilene interveio, reorganizou-se, incisiva, apertando a área da
mesa da diretora com o indicador a cada palavra dita.
— Dona Marilene, não aceitamos esse palavreado. Deve ser
por isso que Augusto esteja malcomportado e xingando bastante. Ele
pode ouvir em casa e...
— Eu educo bem ele. SOZINHA! O pai fugiu porque só ser-
viu pra fazer mesmo, com a rola murcha dele! — Marilene levantou o
queixo — Só que eu não posso fazer tudo! Aposto que o amiguinho
gordo dele deve xingar bastante também, assim como o outro retarda-
do! Ele aprende aqui na escola e a professora Ce-cí-lia não está vendo

141
O manifesto do fim do mundo

porque deve estar preocupada em ser perfeita.


Dona Lourdes entendeu, não teria como discutir, mas a situa-
ção também lhe encheu a paciência.
— Eu não vou iniciar uma briga com a senhora, vendo que
está visivelmente alterada.
Marilene podia se dizer com poderes. Leu a mente por trás
dos cabelos loiros daquela engomadinha de batom vermelho. Sempre
a mesma tradução daquelas palavras polidas, dona Lourdes deveria di-
zer logo o que pensava.
— Essa cidade é cheia de gente esnobe que fica tentando mas-
sacrar meu filho e a mim! — disse, entre os dentes.
Mais um pouco e uma lágrima gorda iria escorrer. O tempo
tornou-se pesado.
— Se você não está satisfeita com a escola, ou com a nossa
cidade, então saia. Vá para alguma outra no fim do estado! — saiu com
mais rancor do que devia de dona Regina.
E o silêncio cortou a sala. Só o ruído molenga da cadeira de
balanço da diretora. A salinha era pequena, mas comportada. Orga-
nizados, alguns clássicos brasileiros, obras de Monteiro Lobato, estu-
dos sobre literatura moderna, e estranhamente somente um exemplar
de Machado de Assis, bem velho. Na estante de ferro nova, um globo
terrestre de plástico, algumas resmas de papéis e copinhos com lápis.
Estaria tudo bem até o restante da composição. Mais violetas coloridas,
que Marilene poderia jurar que também estavam interferindo naquela
conversa. Um cheirinho elegante por cima e um pequeno enjoo por
baixo.
Mas não diria mais nada. Tinha um arsenal de palavras, po-
rém... o fôlego foi embora. E sua visão ficou desfocada por segundos,
tempo suficiente para ela entender seus limites. Dentro de uma briga

142
O manifesto do fim do mundo

desnecessária, logo contra uma autoridade rica de Russinha Amada.


Cheia de regalias, proteção e muito dinheiro. Além do infinito apoio
popular.
Como fiel Jerônimo.
— Então eu vou pegar meu filho e conversar com ele. — foi a
única coisa que Marilene pôde dizer, saiu tão comportado e compla-
cente que nem parecia dela. Alguém suspirou no seu ouvido, bem fácil.
— Faça isso! Ele está uma semana suspenso! Espero que retor-
ne menos violento. Animalesco.
E Marilene saiu branda. Repleta de soturnos.
Não sabia o que mudou depois daquele pequeno embate, mas
puxou Augusto como se ele fosse um objeto qualquer e saiu sem dizer
uma palavra, nem para os outros brigões, nem para Cecília, que devia
até esperar mais “algazarras”.
O Sol do quase meio-dia estava crescendo em poder, quem
tivesse sombra que aproveitasse para não suar na quentura. Marilene
seguiu pelo canto, deixando a escola e as violetas coloridas, absorta
em seus pensamentos. Augusto ficou pensando se deveria ou não per-
guntar para a mãe o que ela tinha ouvido, mas o que quer que fosse
tinha deixado o menino aflito. Preferia os berros àquela quietude. Mas
Marilene não parecia estar pensando exatamente na briga do garoto.
Quando ela desviava os olhos espremidos por conta do Sol para o lado,
era porque sua cabeça também tinha ficado na transversal. Ele sabia os
truques expressivos da mãe.
Uma vibração de dar cócegas a interrompeu. Marilene olhou
para o nada e, segundos depois, lembrou-se do celular.
— Seu castigo por ser um moleque safado é ficar sem mexer
nessa droga, viu, Augusto! — disse, encarando o garoto receoso do seu
lado.

143
O manifesto do fim do mundo

Deslizou a notícia que tinha recebido quarenta minutos atrás,


uma foto com uma mensagem cheia de erros de português. A vizi-
nhança do bairro inteiro comentando com emojis de choro e tristeza.
Marilene boquiaberta para o celular com a foto escancarada e violenta.
Tão sensacionalista, o manto vermelho por cima do cadáver.
— Meu Deus, mataram o Giovani?
E Augusto se virou.
— Quem? O...
— O veado! Sim. — ela disse no automático.

144
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 21 –
Algazarra.

M ais um apocalipse de convergência social. Somente uma


moldura da desgraça para competir com a efervescência do dia. Quan-
do o céu tocava o chão e a pista de areia tinha um fim, havia um corpo
dormindo na paz de sua falência. Havia vielas divertidas de sangue na
areia, o líquido tinha ficado mais escuro, com dificuldade em se en-
volver com o solo. Por cima, e não sabiam se eram miragens de calor,
distorções divertidas como quando o picho do asfalto no forno. Mas
esse era mais especial, continha firulas furta-cor que se encaixavam
na estética de morte para aqueles que imaginavam que, quando mor-
ressem, algum espírito sairia do seu casulo numa carruagem de luz e
mágica.
Algumas senhoras de vestido branco, outras de marrom, iam
se aglomerando com suas expressões de horror. Faziam o sinal da cruz,
conversavam baixinho olhando para o céu, juravam que os próprios
anjos estavam se comunicando com elas, pedindo para que se acalmas-

145
O manifesto do fim do mundo

sem, que eles atenderiam os pedidos para que aquela alma não ardesse
TANTO no fogo do inferno.
Depois delas, o restante da vizinhança. Alguns com celulares,
outros com amigos, as crianças com suas barrigas de fora, os rostos
sujos de areia e suor, tentando digerir a violência incomum e rara.
Como uma segunda-feira tinha se transformado naquilo? Era
simplesmente inacreditável. Há algumas horas, aquele mesmo Giovani
estava vivíssimo e empregado, mas agora só tinha um corpo ensan-
guentado e uma faca há poucos metros. A massa ensanguentada para
fora. Não sabiam se eram pedrinhas ou vísceras.
E Danilo, cego, chorando, pedindo por ajuda para ele e para
o amigo. Duas vizinhas o acudiram, mas elas não sabiam dizer se ele
estava em si, se realmente tinha perdido a visão para a luz absurda ou
se não era o charme do drama da morte. Era mais inédito observar
como um corpo fica depois de golpeado com faca. A sensação de se
aproximar daquilo só tinham visto nos filmes, mas agora estava ali a
realidade crua, sem nenhuma trilha sonora. Era só sangue, miséria.
Um final abrupto, sem sentido.
Marilene chegou e falou com Deise. A amizade de uma via que
tinha se esfriado. Ainda assim, conversaram. Augusto se soltou por
minutos, curioso sobre a cena.
— O que aconteceu? — finalmente alguém perguntou.
— Eu o vi correndo, ele se matou. — uma vizinha disse, ofe-
gante, tinha alcançado o topo do seu nervosismo — Ele pegou a faca
e cortou a barriga e a garganta. Ele... — e caiu no choro, pelo peso das
próprias palavras.
— Por que ele faria algo assim? — a beata dona Jesus pergun-
tou, era uma das de marrom. Tinha uma verruga no canto dos lábios,
engraçada, próximo do bigode. Se aproximou de uma conhecida.

146
O manifesto do fim do mundo

— Ele estava acompanhado do Satanás... Eu sempre disse.


Quando o Satanás quer, não tem ninguém que sustente. Faz qualquer
homem liberar a rosca ou tirar a própria vida. — completou, baixinho.
— Dona Jesus, misericórdia! — a outra pôs a mão na boca.
— Mandaram chamar fiel Jerônimo. — Celinha na bicicleta
avisou, uma das filhas de Carolina, nora de dona Jesus. Os filhos esta-
vam todos no trabalho, eram marceneiros em Piripiri.
Um pouco distante, mais conversas paralelas. Entre o fio de
raciocínio para Giovani, um extra para fofocas do dia a dia.
— Olha a neta de dona Jesus, parece uma rapariguinha com
essa roupa. — dona Das Dores caracterizou. O caos tinha suas ramifi-
cações divergentes.
— E depois ninguém presta na boca dela. — dona Remédios
fechou o arco — Alcoviteira safada que fala mal de todo mundo lá na
rua.
Enquanto boa parte de Russinha Amada ignorava o choro de
Danilo, o Sol continuou enfatizando Giovani. A corcunda que foi em-
basada pela barriga, enquanto o sangue mantinha um grau desigual de
moldura. As plantas secas da pista se perguntavam se não estaria mui-
to quente para adormecer naquela terra. Mas teriam respeito, respeito
pela história sendo contada daquela criatura altamente rejeitada pelo
organismo coletivo, nunca digno. Ninguém, a não ser Danilo, se pôs a
gritar pela sua memória. Nem mesmo vizinhos que se diziam simpáti-
cos com Giovani sentiram algo.
— Avisaram Igor e a família de dona Josefina? — outra pes-
soa perguntou, enquanto o calor circundava a rua. Alguns passarinhos
cortaram o céu, logo depois viriam urubus. Sempre davam um trato
nos cachorros mortos que jogavam nas valas ou no fim das vielas.
— Avisamos. Ninguém atendeu. Mandei mensagem pro gru-

147
O manifesto do fim do mundo

po em que o Igor está, o de vendas. — um rapaz respondeu. Também


estava suando, a respiração ansiosa não combinava com os quarenta
graus do horário.
Os dois fizeram cara de desgosto para a morte.
— Era veado, mas era gente fina.
A única conclusão sobre toda a existência de luta de Giovani.
Jerônimo e a esposa Celeste vinham longe, correndo. Não es-
tavam com nenhuma malinha de pronto socorro, nem nada do tipo,
mas possuíam suas próprias ferramentas. Dois livros sagrados embai-
xo do braço.
Com a urgência que a situação pedia, o religioso conseguiu
vestir seu uniforme de batalha, a camisa, com mangas, abotoada. Era
tão magro que o vento criava crateras na roupa, davam a sensação de
que era maior para o corpo franzino. Dona Celeste, de vestidinho azul.
Suavam embaixo dos braços carnudos. A corridinha deixou uma baba
no canto dos lábios, quando viu a cena. A morte conferiu mais interro-
gações para os seus dois olhos de castor.
— Meu grande Deus, Senhor dos tempos... – disse.
Jerônimo recebeu a atualização rápida de alguma das fiéis. En-
quanto cada uma dava o melhor de si em aumentar os fatos, Morgana,
uma assídua frequentadora também da igreja, incomodava-se com o
espetáculo em torno da morte. Era criado um palco em cima do ca-
dáver, para um corpo ainda quente, e ninguém estava se importando
sobre a ida de Giovani, se ele não precisaria de uma oração depois de
ter apressado seu sofrimento até chegar aquele ponto.
— Você acha que foi um acesso de loucura? — Jerônimo per-
guntou baixinho antes de se dirigir para o restante. Todos aguardavam
seu veredito. Ninguém se lembrou de Félix, do outro médico que ficava
com ele em dias de semana no postinho de saúde. Também não per-

148
O manifesto do fim do mundo

turbaram a central médica de Piripiri. Russinha Amada era calculista


antes de declarar o problema. Precisavam ser ardilosos.
E foi o que o homem fez, encaixou tudo dentro de sua mente
criativa.
Era exatamente o ponto que ele queria. Desde o começo. Con-
seguiu maquinar todo o sistema de reações a partir daquele espetáculo.
Santa criatividade!
Não havia nenhum enigma na história do tempo que não
fizesse sentido para ele. Qualquer sofrimento tinha uma relação entre
causa e efeito. Tudo era explicado pela lógica maior. Tudo tinha sal-
vação para as entidades celestiais que ele resolveu panfletar com a sua
vida.
Por isso, determinou, com a voz embargada de emoção, estar
vivenciando a tragédia da qual sempre alertou. No fundo, tinha ganha-
do na loteria, um acesso de verdade e felicidade misturado com a adre-
nalina de testemunhar a morte, principalmente daquela alma pecadora
e antagônica. Foi o bode mais gordo entregue aos lobos. Perfeito.
— É o Rarizes! — disse e apontou mais duas vezes — Isso é o
que eu mais temia.
Todos se entreolharam. Pensaram em algo, mas não refutaram
porque Jerônimo foi rápido.
— Sim, fomos vacinados. Piripiri trouxe a vacina com muito
mal gosto. Mas vocês não se atentaram sobre a palavra de alguns es-
tudiosos da ciência, que o Todo Poderoso abençoou? Que essa doença
poderia se modificar, que poderia vir com força total novamente... —
falava cuspindo. Dona Celeste, fiel escudeira, demonstrava teatralmen-
te como todos deveriam se portar ao receber aquela notícia, entre o
temor e o horror. Nem se afastaram para a sombra. Podiam queimar
ali, o corpo no chão e o apocalipse das palavras.

149
O manifesto do fim do mundo

— Minha nossa... — Deise disse incrédula — Eu vi isso mes-


mo.
Marilene puxou Augusto e entregou o celular para o menino
brincar, pelo menos entretido com o aparelho não tinha chance de su-
mir ou de se “matar”. A desgraça pode ser contagiosa.
— E sabe, meus caros irmãos e irmãs de Russinha Amada, essa
alma aqui no chão sucumbiu pelos próprios pecados da carne. Mas
vejamos, somos todos pecadores, todos nós! Porém, nosso Senhor tem
hora que cansa. E o que ele faz quando zombam da cara dele? Ele
castiga. E agora nossa cidade, que passou ilesa pelo Rarizes, está sob
vigilância divina com essa nova sentença!
E continuou aos berros:
— A segunda VINDA DO RARIZES! — tinha facilidade em
aumentar o tom de voz — Que, coincidentemente, apareceu quando?
Assim que aquele ingrato filho de dona Raimundinha, que está há se-
manas sem sair de casa, chegou! Outro sinal! O demônio está agindo
enquanto pensávamos que tudo estava bem!
Todos explodiram em cochichos, estavam realmente enfeitiça-
dos pela linha de raciocínio.
— O que vai acontecer aqui é o seguinte: se não orarmos e
vigiarmos, se não evitarmos o pecado, se continuarmos pacíficos com
o demônio, ele vai matar um por um. Começou por esse sodomita.
Depois, vai para cada um que não quiser se aproximar das leis de Deus.
Dona Celeste continuou sombria. Não parecia estar ali total-
mente. Somente um corpo parado e submisso.
— Nós nos deixamos levar pelo pecado da carne e o nosso cas-
tigo chegou, um pouco mais tarde! — ele foi pontual — Mas chegou!
Jerônimo deu um passo à frente, por pouco não tocou a poça
de sangue. O líquido foi escurecendo dentro da inocência da terra

150
O manifesto do fim do mundo

cheia de pedrinhas e seus tons calmos. Giovani tinha perdido comple-


tamente o protagonismo. Nem na sua morte conseguiu uma cadeira
perto do Sol. O único que resolveu queimá-lo, se tinha pecados.
— É a vinda do demônio. Sinais! Agora vocês entendem por
que priorizo a presença de todos na nossa igreja? Precisamos agir, e
agir AGORA!
Encarou no descuido a sua observadora. Marilene. Jerônimo
foi cuidadoso em fitar a mulher do outro lado, sem deixar que perce-
bessem.
Augusto reparou no sinal contra a mãe, ambos na mesma
sintonia. Ele não quis saber muito do celular no momento. Era maior
que tudo, alguns diriam que era a força do laço sanguíneo. A raiva
que cresceu foi para ambos e, depois, para Bola, passando, em segui-
da, para Milton. Por último, toda a vida miserável e conturbada que
sempre tiveram. Sem entender por que, parecia que o mundo estava
contra eles.
Duas vibrações na mãozinha gorda do garoto. Leu a mensa-
gem que tinha acabado de chegar.
Dona Josefa não era moderninha. Não sabia mexer em smar-
tphones, mas quando o fazia nunca dava viagem perdida. Augusto pu-
xou a barra da blusa da mãe. Primeiro, ela deu alguns tapinhas para
que o menino parasse, estava realmente pensando no segundo round
contra fiel Jerônimo. O afronte no ar. Porém, voltou-se depois que o
menino foi insistente.
— Que porra, Augusto, o que foi? — questionou com o cenho
fechado. Falava entre os dentes para que ninguém entrasse em “cone-
xão” com ela. A última coisa que queria era chamar a atenção para si.
— A vó Josefa lhe mandou mensagem. — o garoto disse ino-
cente.

151
O manifesto do fim do mundo

Marilene ficou mais estupefata.


— Quê? Ela não é sua avó! Tá louco? — tomou o celular do
menino — Me dá essa porra aqui antes que você quebre.
E leu a mensagem, sentindo cada nervo se remexendo de ódio.
Contínuos brandos.
“Venha para seu trabalho que eu não pago você para ficar na
rua, não. Deixe essa sua cria em casa e volte! Eu quero meu almoço...”
Depois da treva no solo, o tempo fechou em Russinha Amada.
Retiraram o corpo com todas as evidências e testemunhas
apontando suicídio. No fim, Jerônimo tinha feito um movimento, o
qual iria colocá-lo na posição que ele realmente queria.
Que ele sempre quis.
Acima de dona Josefina.

152
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 22 –
Colapso.

D emorou para Marilene digerir a cena. Tão anestesiada e frá-


gil. A sensação se aproximava de um desespero perigoso. Parecia até
que Giovani tinha algo para lhe contar, algo muito sério, mas não teve
tempo.
Uma vez, houve acenos na rua. Momentos da vida, comuns
em uma rotina pacata, que amenizavam o impacto da morte. Como
se todos fossem imortais. Envelheciam e, depois, partiam para outra
dimensão. Morrer não deveria existir. E Marilene não se preparou bem
para entender aquilo.
Não tinha muito contato com Giovani, mas ele era uma das
poucas pessoas que a tratava com dignidade. Ela se via muito nele,
na resistência em ter sua presença dentro daquele circuito fixo e con-
servador de Russinha Amada. Numa das poucas conversas de bares
que teve com ele, antes de seu Osvaldo ter sido homofóbico e violento
com o rapaz, os dois se prometeram uma amizade. Diziam que iriam

153
O manifesto do fim do mundo

embora para Teresina atrás da vida das cidades grandes. Era lá que o
progressismo tinha suas diretrizes. Não iriam ser tão julgados e passa-
riam “imunes”.
O que aconteceu depois Marilene não recorda. Mas ela só evi-
tou Giovani. Sua presença tinha um tom de ameaça. Depois que Deise
contou do sermão de fiel Jerônimo, sobre os perigos de uma tal ideo-
logia de gênero, ficou mais atenta ainda. Para que aquela presença não
atingisse tanto sua vida. Podendo “influenciar” seu filho ou acarretar
para si uma imagem negativa mais forte só por andar com ele. Giovani
era só um conhecido, não iria desprezá-lo, mas também iria evitá-lo.
E agora ela era um novo alvo. Sabia disso. Sempre assim.
Marilene realmente temeu as palavras macabras. Faziam sen-
tido. Se o Rarizes era uma praga, finalmente chegou para aquele povo,
trazido definitivamente por Rafael para exterminar os impuros. Sofri-
mento e contas para pagar nunca são demais pro pobre, sua mãe disse
certa vez. O momento de cada um iria chegar. Mas ela não se encaixava
em Russinha Amada, nunca se encaixou. E, infelizmente, seu filho
também não.
E agora, no berço da morte, a dor era não poder conversar
sobre o acontecimento. Deise não tinha dado abertura, e Marilene não
era idiota. Só falou com ela na lanchonete por respeito, mas algo tinha
mudado. Estava sozinha, sem marido, sem pais, e com muitas despesas
para arcar, além de um filho travesso e nada inteligente. Esperto somen-
te “para o mal”, como dizia.
A cena se dissipou quando retiraram o corpo. Silêncios foram
contabilizados para uma espécie de julgamento final. O dia iria conti-
nuar sóbrio demais. Alguns galhos secos se comportavam como tre-
padeiras salientes, enroscavam-se vertiginosamente quando o céu as-
soprava para uma reação à distância, mesmo que o alerta do esquisito

154
O manifesto do fim do mundo

tivesse soado debaixo do solo, coberto pela areia da miséria. Recheado


de pedregulhos amassados.
Todos precisavam sair dali.
Quando Marilene chegou à casa de dona Josefa, animou-se ao
ver que a velha tinha dormido. Iniciou uma segunda guerra fria com as
violetas coloridas. As flores cheirosas e vibrantes, encarando-a, pediam
um diálogo, mas não eram confiáveis. A lealdade era somente à dona
Josefa; ou talvez à dona Josefina, a ricaça do bem.
Ou a ninguém. Não se sabe o que um ecossistema em ebulição
realmente planeja.
O celular vibrou, uma notificação de propaganda. Tinha se
conectado na rede Wi-Fi do vizinho, para sua sorte, que teve os dados
móveis gastos de tanto vídeo que recebeu de Giovani estirado morto.
Sentiu-se pertencida ao episódio de desgraça, até sua vizinha de trás
tinha enviado. Audiovisuais pesavam muito.
Além do aparelho acendendo de hora em hora, a barra de tare-
fas chamou mais a atenção. Era um convite, para um tal de Paulo. Para
que ele retornasse e descobrisse mais novas aventuras. O aplicativo ti-
nha ressurgido como mágica.
Augusto..., pensou. Clicou na curiosidade. Depois de tudo,
Marilene ainda tinha que ser uma mãe vigiando o que o filho faz. A
interface do aplicativo disparou a iluminação do aparelho, e o mapa
de Russinha Amada, desenhado ao lado de Piripiri, surgiu com alguns
pontos específicos desenhados. Uma espécie de caça ao tesouro. Em
cima, as letras garrafais “Pontua aqui.”
“Da última vez, você descobriu um incrível tesouro, Paulo, que
tal agora descobrir mais um? Baixe novamente os dados do aplicativo e
se divirta!”, a voz feminina disse. O que quer que Augusto tivesse feito
não eliminou totalmente o aplicativo do celular, era mais como um

155
O manifesto do fim do mundo

reset de memória. Para a infelicidade do garoto...


— Que diabo de jogo é esse? — Marilene jogou o pano de
prato por cima do ombro e balançou as mãos antes de destrinchar as
informações.
Viu o mapa indicando exatamente o jardim de dona Josefina,
além de uma foto. Com a imagem bem ruim, de Augusto, pela câmera
frontal. Ele não tinha se tocado de que fora fotografado. Devia ser um
registro feliz, mas Marilene fechou a cara e criou inúmeras teorias, de
como aquela foto tinha sido tirada e por que ela pontuava o jardim da
ricaça do bem.
— Diabo é isso, aquele moleque safado saiu sem minha per-
missão? — soltou, furiosa. Olhou de relance para a parede ao seu lado.
As violetas tremendo como se fantasmas estivessem brincando com
elas, culpa das mínimas brisas que entravam pela porta da cozinha.
Continuou mexendo no aparelho, tentando entender a inter-
face do “jogo”.
Depois de mais opções, uma segunda foto surgiu. Um símbolo
esquisito, que estremeceu Marilene.
O desenho na pedra da suástica, e mais outros rabiscos mal
executados.
Ela não tinha muito conhecimento, mas, nos últimos tempos
na TV, depois de algumas eleições com a extrema direita, o debate saiu
do clubinho intelectual da elite e foi para as massas. Muitos brasileiros
finalmente entenderem conceitos como “fascismo”, “neonazismo”, “es-
querda”, “comunismo” e “neofascismo”. Num desses slides bem-feitos
pela TV, o símbolo surgiu e com ele toda uma carga de história e sig-
nificados. Brutais. Para aqueles sem escrúpulos que tentaram apagar o
passado. Fazia parte da cartilha da Divisa de Educação do atual gover-
no brasileiro.

156
O manifesto do fim do mundo

— Que diabo é isso? Eu não estou entendendo nada... O que


esse desenho tá fazendo no meu celular? Isso é coisa daquele homem
do bigodinho raivoso que odiava negro... Mas que porra? — Entre in-
tervalos, a incredulidade. O celular era como se fosse um filho danado
recebendo um corretivo.
Dois ruídos logo atrás.
— Marilene, você já passou o pano na mesa? Eu sujei com o
caldo. — a voz de dona Josefa surgiu. A idosa vestia um vestidinho
rosa, cheio de buracos por conta do uso excessivo. Sua boca imitava a
de um pato, incomodada quando viu a mulher com o celular.
O aparelho por pouco não caiu com o susto. Marilene se virou
e foi logo no automático para a mesa. Agia até como um empregado
que tinha tesão em servir da forma mais ilustre possível o seu chefe.
Ela tinha que demonstrar serviço, conhecia bem os comentários pelas
suas costas. Mas deveria, sim, ser grata todo santo dia pelo emprego.
Nossa...
— Eu nem vi... — estreitou os olhos. A mesa não tinha sujeira,
estava do mesmo jeito quando limpou horas atrás — Onde a senhora
sujou?
— Eu não sei. Eu devo ter limpado, né? Você não vê as coisas,
aí eu que tenho que fazer. — dona Josefa foi se arrastando para a cozi-
nha, fazendo questão de esfregar bem o chinelo na cerâmica. De mos-
trar como era adoentada, sempre com suas caras amargas.
— Fica no celular direto, não presta atenção no serviço. — dis-
se baixinho. O suor da velha era azedo.
Marilene fechou os olhos e suspirou. Não fez barulho, não
queria prolongar nenhum mal-estar.
— Sobre o atraso de hoje, me desculpe. A senhora comeu e
nem me deixou explicar é...

157
O manifesto do fim do mundo

— Eu sei. O tal do veadinho que mora lá em Floresta Dois


morreu. — dona Josefa pegou a garrafa de vidro com água, perdendo
as forças. Fez logo cena — Olha aqui, Marilene, me ajuda mulher! Eu
não posso segurar nada pesado!
Tanto caos para lhe amparar. A mulher pôs a água no copo
para a idosa, mas o estranho é que dona Josefa não bebeu. Ficou
segurando.
— Isso, Marilene, é o que acontece com quem trai a palavra
do Todo Poderoso. — um discurso semelhante com o de horas atrás.
A mão tremendo segurando o copo cheio. Levaria para o quarto para
tomar o remédio?
— Ele se matou, dona Josefa. — Marilene começou a se inco-
modar.
“Dona Josefa não pode segurar coisas pesadas! Por que não bebe
de vez a água? Ela mesma poderia ter se ajudado e trazido o remédio para
tomar aqui, na cozinha...”
— Eu sei... recebi tudo no meu celular. Meus filhos estão preo-
cupados. Disseram que não era nem para eu chegar perto daquele lado.
Eu até ri... — dona Josefa encolheu os ombros — Não posso ir para
nenhum lugar mancando desse jeito. E ele não só se matou. Fiel Jerôni-
mo disse a verdade: quando o capeta atenta, só Deus.
— Mas não sei se é o Rarizes... Giovani tinha muitos proble-
mas... — por que Marilene tinha visões sobre jardins com animais
exóticos na sua cabeça? O pé de Carnaúba logo no fundo, depois da
região colorida. Estava cercado de cadáveres e seca. O chão dispersava
qualquer organismo liquefeito. Tinha voz e vida. Não só um solo, mas
um mequetrefe.
— Se tinha ou não, agora ele vai se ver com o tribunal divino.
Que nosso Pai tenha misericórdia de nós, minha filha. Você deveria

158
O manifesto do fim do mundo

começar a ir na igreja... — dona Josefa estreitou os olhos. Depois, um


novo nome ressurgiu na sua mente, fez cara de pena e completou —
Coitada de dona Josefina, o segundo funcionário que perdeu para tra-
gédia. São tempos difíceis para ela. Não adianta ela andar com aquela
postura de classuda e viver cheia de desgraça ao redor.
Marilene riu intimamente quando dona Josefa imitou com
uma careta a ricaça do bem, sempre uma alfinetada.
— E detalhe, Marilene... você viu a mancha que estava na per-
na dele, né? — dona Josefa levantou o indicador tremido. A outra mão
ainda tinha dificuldade em segurar o copo cheio de vidro.
— Não... — Marilene tentou lembrar do que havia visto horas
antes.
— Mandaram no meu celular, parece a insígnia do capeta.
Fiquei toda arrepiada. — completou, finalmente indo para o quarto.
Sempre arrastando os pés, mais cênico do que real.
Marilene ficou quieta, o tempo fechou dentro da sua mente.
Não sabia o porquê, mas tudo agora que envolvia o nome de Giovani
a assombrava, como se ela estivesse totalmente ligada a ele. Fiel Je-
rônimo era alguém que estava logo depois do jardim. Pisava no solo
seco, os pés queimando. Acenava para entrar na área esverdeada com
Angicos e Caroás de Marilene. Mas não parecia digno. Logo atrás dele
a imaginação da mulher criou uma segunda sombra sem identidade
revelada. Parecia responsável pelo inferno de rachaduras e desolação
de todo o restante. Era impossível saber se algum homem ou mulher
tinha feito aquilo.
Quando dona Josefa entrou no quarto empurrou a porta, mas
não trancou. A força insuficiente. No movimento, a porta bateu o trin-
co e voltou, dando visão para o cômodo. Marilene era curiosa, pergun-
tou-se qual era o remédio da vez que dona Josefa tinha que tomar e

159
O manifesto do fim do mundo

acabou desvendando o mistério da água não tomada.


A idosa estava limpando o copo com um pano e álcool. Tam-
bém parecia alguém não digna de estar no jardim de Angicos, porque
flores soltavam resquícios incompreensíveis. Marilene e sua criativida-
de de esquiva não eram solícitos, oras.
Estava tudo certo, precaução sobre limpeza então... Porém, a
expressão no rosto de dona Josefa deu a interpretação correta. Aquela
amargura atrelada ao nojo. O repúdio com os dedos que tocaram antes
o objeto.

160
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 23 –
Finalmente, Giovani, chá e
mel.

A lgumas vidas são acontecimentos, como o Ipê amarelo na


beira da estrada de enfermidades.
A cada dia, milhares de pessoas nascem e morrem, muitas de-
las transitam na Terra como passageiros cinzentos, e poucas são acon-
tecimentos. Mas Giovani era um caso à parte. Giovani era um aconte-
cimento. Ou a gênese para um.
Danilo recuperou a visão e foi acudido pela vizinhança, depois
de horas tentando entender o que tinha ocorrido, afinal, era tão bizarro
tirar sangue de uma rua. O que acontece logo depois que alguém mor-
re? Tudo parece tão seco. A sua sorte era a de que tinha um sedativo,
uma espécie de sensação de formigamento que o acompanhou após a
cegueira esquisita passar. Pediu privacidade, não abriria o salão pelo
restante do dia. Se trancou na casa de Giovani e silenciou-se.
Os pequenos cômodos estavam uma bagunça, mas as violetas

161
O manifesto do fim do mundo

coloridas permaneciam intactas. Pareciam até melhores quando respi-


ravam o ar do óbito. Danilo, antes de se dirigir à caixinha das lembran-
ças, o único patrimônio do amigo, ceifou todas as intimidadoras flores.
Arrancou uma por uma com agressividade, como se tivessem culpa
por aquela tragédia. Não se daria sequer ao trabalho de ensacá-las para
pôr no lixo, só descartou pelo basculante do banheiro e bateu as mãos,
limpando qualquer resquício nojento daquelas pedantes.
Pensou, engoliu o borbulhamento emocional, e jogou a caixa
da vida de Giovani para baixo. Um objeto talhado pelos deuses dos
sertões enfraquecidos.
De lá, saíram fotos, cartas, agendinhas, estojos, maquiagens e
algumas camisinhas. Nada demais. Aquela vida sempre teve muito do
pouco. Acostumada a viver na linha transitando entre a miséria e o
suficiente.
E foi costurando a história.
Primeiro, Giovani. Ou por que o manifesto do fim do mundo
precisa compreender essa costura narrativa. Até o colapso no futuro.
Mas não nos dispersemos. Giovani. Um menininho gordo que
nasceu nos mais distantes sítios do interior de Parnaíba. Filho de pai
pescador e mãe dona de casa, não teve acessos quando se afeiçoou à
energia feminina do lar. Era tão comunicativo e doce, adorava ver a
mãe consertar as roupas velhas do pai. Suas habilidades eram delicadas
e empoderadas, desenrolavam-se com maestria esnobando o círculo
de costumes dos homens. O pai tomava as decisões importantes, man-
dava no lar, mas a mãe era a responsável pelo sistema funcionar. Era a
força maior que mantinha aquela família, dispondo de inúmeras habi-
lidades no escuro para se equilibrar numa rotina bem mais exaustiva
que a do marido. Eram Maria e Adão. Casal de fibra, trabalhador. Sem
muito conhecimento. À deriva do fim do mundo.

162
O manifesto do fim do mundo

A harmonia daquela família era única. Tinham seus próprios


pontos e vírgulas. Por vezes, alguns pequenos contratempos, mas no
fim dona Maria abrandava a situação com algum jantar rico. Fazendo
mais até do que podia, com guloseimas da hortinha do lado.
Danilo reparou bem na foto, nos rostos austeros e cansados da
fotografia amarelada. O protótipo perfeito do pai trabalhador do ser-
tão e da mãe forte dona de casa. O sorridente Giovani era quem des-
toava tudo, com sua alegria colorida, que não comportava no registro.
Mas então ele se matou... O axioma veio como cafife.
Estava no meio de uma linha do tempo e o que acabou de
acontecer o atormentou com uma dúvida e uma exclamação depois.
Giovani se matou. Rarizes. Ele já tinha comentado sobre certas estra-
nhezas perto de si. Era sempre alegre, mas seus momentos solitários
eram os importantes. Diziam mais dele do que seus sorrisos plásticos.
No começo, pareciam ideias soltas que tinham que se encaixar só por-
que Danilo queria, mas ele precisava defender a imagem do amigo.
Fiel Jerônimo tinha feito sua jogada. O acontecido era fruto
de pecado, a segunda versão do Rarizes, um lembrete sobre pecados.
Giovani o pegou primeiro porque ele era um pecador. Mas... tinha algo
errado. Não podia ser. O que não funcionava no raciocínio de Danilo?
Precisou se recordar de um causo. Continuou costurando, iria
chegar a algum lugar. Quando a tempestade passa, logo você pode no-
tar os estragos. É sempre assim. E por isso a primeira foto de classe
de Giovani. Um ainda garotinho de cabelo lambido, gordinho, todo
contorcido de timidez, pernas tortas, com os joelhos juntos, dentro do
retrato de energia da gueixa. Foi se descobrindo com seus colegas, foi
ampliando seu mundo social sobre costumes e modernidades. E foi
sofrendo, do mesmo jeito que em casa, pelo destino que lhe foi dado,
sem sua escolha.

163
O manifesto do fim do mundo

Os contos na escola não eram importantes, e Danilo se atuali-


zou. Giovani não costumava conversar sobre aquilo com ele, não esta-
va pronto ainda para falar dos piores anos de sua vida sofrendo na mão
de valentões. Até parecia que bullying era coisa para rico, a palavra já
era pedante. Para ele, só o conceito do termo... Tinha que sofrer com
aquilo para aprender a não ser Giovani, e a se adequar a uma costura
cheia de hipocrisias da sociedade parnaibana da época. Simples.
A questão era em casa, quando chegava com a camisa suja de-
pois de um dia atormentado pelos valentões da oitava série, e corria
para o banheiro, para lavar na pia a mancha. Naquela casa não tinha
como ter segredos, a estrutura precária não permitia. Era toda irre-
gular, tão frágil quanto os sentimentos dos seus anfitriões. Feia por
dentro e por fora, sem reboco. Mas construída com muito suor, para
enfrentar o tempo, ledo engano. Não tinha mais o que fazer ali sem
tanto dinheiro. E Giovani se desesperava. A mãe na cozinha, o pai no
quintal matando alguma galinha, e ele tentando limpar sua barra.
A tinta que o grandalhão jogou era de tecido, não iria sair. Já
era tarde tocando o algodão da blusa que foi presente da escola, tinha
que honrar.
Dona Maria viu. Fazia aquela cara de desgosto, com todas as
rugas da testa. Era tão magra, mas forte. Tinha a força da mulher nor-
destina. Pedia com silêncio a roupa, sempre tentando conter os resquí-
cios de problemas. Sabia do marido.
Giovani logo correu para o varal, todo encolhido. Odiava ficar
descamisado, com os peitinhos pontudos de gordura balançando. O
pai, atencioso, avistou a cena, o menino com as mãos tampando o tor-
so. Parecia até uma menina. E de lá mesmo gritou para que parasse de
agir como uma florzinha escondendo os peitos. A coisa mais horrenda
que um homem podia fazer. Tentando se corrigir, o garoto endireitava

164
O manifesto do fim do mundo

a postura, a gozação ressignificava.


Parece um leitãozinho pronto para assar com esses peitinhos de
moça. Meu fi é fi do bode de seu Ronaldo? Adão dizia no melhor tom de
escárnio. Atingindo a pequena cabecinha nos seus dois pontos fracos.
Bem na autoestima baixa e no medo que tinha do bode Fuxico. O ani-
mal violento e chifrudo que botava qualquer um para correr. Principal
inimigo de Giovani. Bem mais do que os garotos grandões da oitava
série.
Sofria na escola, sofria em casa com as reguladas violentas do
pai para que não “afrouxasse” ou desmunhecasse, parecendo um pro-
jeto de invertido, uma desgraça para qualquer homem. E sofria com o
bode Fuxico.
O motivo do causo. Onde Danilo queria chegar. Por que dava
voltas?
Quando dona Maria saía para a cidade de Parnaíba e Giova-
ni ficava sozinho com o pai, mundos desmoronavam. O garoto ficava
estudando, preso no único universo em que se sentia bem e era per-
mitido naquela casa. Estudar era como uma das habilidades sinuosas,
empoderadas e fortes da mãe.
Era um olho nas palavras e outro na terra do seu Ronaldo. Pa-
recia que o vizinho fazia de propósito. Soltava o bichano para “alongar
as pernas”, deixava-o ir no rumo de Adão para uma boa conversa.
Fuxico era fedorento, forte, de chifres pontudos e pelo chupa-
do. Entendia exatamente quem atormentar. Corria na direção da casi-
nha de Giovani dando uma bofetada em cheio na porta. Agindo como
um convidado mal educado porque seu Ronaldo era mais rico, e Adão
adorava puxar seu saco. Claro que o bode violento também podia fazer
o que quisesse.
E Giovani foi aprendendo. Trancou as portas, ficava naquele

165
O manifesto do fim do mundo

empurra danado contra o bicho. Rezando para que a mãe chegasse


porque ela não aceitava chafurdo nenhum na sua casa. Fuxico ia fundo
contra a porta, com os chifres. Cada pancada fazia Giovani pular. O
garoto não tinha tanta força, e o bode era adulto, saudável. Podia fazer
um estrago.
Só depois de horas, quando Adão dava falta de uma boa fruta,
era que espantava Fuxico. Mandava ir embora porque seu Ronaldo já
o estava chamando. Até ficava meio incomodado com a porta cheia de
marcas dos murros, mas ele não estava nem aí para a casa. Contanto
que tivesse um teto, estava tudo bem por demais.
Ao chegar na sala, Giovani chorando, contando a ameaça.
Numa dessas, machucou o braço tentando conter o bicho. E o pai ria,
balançava a cabeça para a história do filho. Que virasse homem e ele
mesmo se defendesse do bicho. Agora era Adão e Fuxico, os dois pa-
drões de masculinidade que iriam perturbá-lo por toda a vida. Gio-
vani engolia o choro e o sentimento, decidindo como iria resolver a
situação. Não se tratava mais de uma rixa com garotões fortes, e sim
de uma luta pela vida contra um animal que tinha mais valor que ele.
Previsível.
Danilo descansou da lembrança. Fixou os olhos nos dois ex-
primidos pelo sorriso de Giovani. De repente, aquela felicidade foi
se transformando em desespero. Não tinha como o amigo ser feliz.
Começou a aprender desde cedo a sorrir enquanto o mundo caía por
terra. Tinha que ser solícito para qualquer um que fosse melhor que
sua família, e isso era quase todo mundo. Dona Maria tinha ensinado
aquilo. Regras de etiqueta.
E a rotina da sua infância e juventude rumava para um espec-
tro cíclico, com várias firulas cinzentas. Fugir de Fuxico, fugir dos va-
lentões e fugir dos pais. Sempre sorrindo. Era uma gratidão por todas

166
O manifesto do fim do mundo

as desgraças. Nunca perdia o seu jeitinho doce e meigo, por mais que
todos atentassem contra ele.
Giovani corria para se esconder de Fuxico nos pés de caju.
Segurando-se para não cair a cada golpeada com os chifres do bode
violento. Sentia o desespero quando avistava Adão indo pro riacho,
deixando-o sozinho com aquela ameaça. Seu Ronaldo soltava o bode
e ele ia direto como um touro até a casinha pobre do outro lado. Viu o
inimigo mortal matar galinhas com suas disparadas para tentar atingir
o garoto. Era um campo minado, dominado pela besta. Aquelas pupi-
las horizontais que pareciam a marca do demônio quando o encara-
vam lá do cercadinho.
Até o bendito dia, quando o confronto mudou de ares.
Danilo sentiu um tremor gelado ao lembrar da mesma cara
divertida que Giovani fez ao contar aquela história. Mesmo no ápice de
sua desgraça, ele ainda tinha aquele sorriso de manteiga.
Numa manhã dessas em casa, depois dos diários de persegui-
ção, Adão avisou ríspido para o filho que ia dar uma volta no riacho e
que o garoto não fizesse nenhuma arte com Fuxico, senão apanharia.
Dona Maria tinha ido à Parnaíba, fazer as compras. Foi de carroça com
a bondosa dona Núbia, uma vizinha altruísta.
Seu Ronaldo soltou Fuxico. E Giovani, preparado, já tinha fe-
chado a porta. Colocou duas cadeiras e empurrou um pouquinho o
armário. Não iria precisar ficar numa batalha de horas com o animal.
Se abrilhantou com a ideia, tinha a casa só para si. Como nunca tinha
pensado nisso?
Na sorte, a oportunidade... hora de mexer nas coisas da mãe,
nas roupas e nos calçados polidos e bonitos. Amava aquelas cores,
mesmo que fracas. Os desenhos das estampas ficavam bem com tudo.
Um universo de sensações e recolocações.

167
O manifesto do fim do mundo

Giovani esperava o barulho das pancadas, mas o bode Fuxico


não começou o seu show. Achou estranho e tratou de verificar, mesmo
sabendo que não tinha como, toda a cozinha atrás do inimigo. Tudo
intacto, as cadeiras ainda estavam lá, apertando a porta. O silêncio.
Mas um odor repugnante de fezes.
Fuxico estava remexendo na salinha de peças do pai, um com-
partimento escondido perto da cozinha. Quase como um depósito.
Quando algumas peças caíram, Giovani se alertou num pulo e viu o
rabinho peludo do bode agitado, enquanto enfiava o focinho entre as
panelas velhas e os alicates enferrujados.
Primeiro, Giovani engoliu o ar, procurou saber exatamente
como o inimigo tinha entrado, porque seria impossível pela janela. Fu-
xico não tinha como dar um pulo tão grande assim, ou ele subestimou
seu rival. Mas já era tarde demais para qualquer ponderação desse tipo.
Estavam ambos no mesmo terreno. O bode tinha adentrado o campo
inimigo, e ao garoto só restava sobreviver, fazendo todo o silêncio do
mundo.
Mas Fuxico captou o barulho. O bode era esperto. Parecia tão
dissimulado, fazendo-se de bobão já dando conta de que seu alvo esta-
va logo atrás dele. O bodejo foi o mais alto do mundo, o que fez Giova-
ni ir num sobressalto para o outro lado. Jogou alguns retratos velhos,
duas santas e uma glossário de telefones para dificultar a corrida do
bode. Mas Fuxico se defendia com os chifres.
O menino se trancou num baú velho, uma relíquia de dona
Maria, e Fuxico começou a empurrar o objeto com os chifres. Dava
tantos socos pontudos, que Giovani se questionou sobre a fragilidade
das paredes duras. Dentro daquele casulo o odor conseguia ser pior
que o do bode, porque há tempos a mãe não o limpava. Era só um
acúmulo para algum dia.

168
O manifesto do fim do mundo

Danilo semicerrou os olhos. Na sua cabeça, Giovani fez o mes-


mo, quando se recordou. O amigo se empolgava quando o outro enfa-
tizava o restante da história com as mãos por ser a parte importante.
Rarizes...
Giovani escutou. Não era nenhuma loucura da sua cabeça. Es-
cutou cada palavra dita do bom português ruim.
O bode tinha falado. Disse que ele lhe pegaria; se não o fizesse,
a vida iria surpreender com algo. Mas iriam buscá-lo de qualquer for-
ma. Eram dizeres esquisitos, lembravam uma pregação.
As palavras eram sussurradas de um autor com a garganta des-
gastada, uma voz de fumante assíduo. Enquanto socava o baú, Fuxico
proferia o destino de Giovani. E só deveria ser o bode, porque não ti-
nha ninguém mais em casa. Dizeres carregados. Com pausas. Danilo
se lembrou de quando Giovani interpretou. Se eu não te pegar, eles vão.
Você vai morrer, com todas as mazelas do fim do mundo. Se eu não te pegar, eles
vão. Porque você é pecador em terreno sagrado. Misericordioso aquele que teme
a vinda dos senhores do universo, porque o inferno abriu as portas para o apoca-
lipse no coração da seca.
Quando dona Maria chegou, pôs o bicho para correr e foi
salvar seu garotinho. Prometeu que nunca mais o deixaria só, enquan-
to reclamava de Adão, de como era um pai inadimplente largando o
garoto para as traças. Um final feliz com adendos, já que agora o pro-
blema não era Fuxico. Giovani nunca se esqueceu da mensagem. Até
seu último suspiro e ato, no mais caótico evento daquela semana.
Num outro dia dentre o tempo, Fuxico faleceu com a barriga
aberta. Exatamente no meio da pista, para a linha inativa de trem. Par-
naíba contava com algumas relíquias. As vísceras para fora, as moscas
por cima, e um fedor coberto de resquícios. O sangue tinha escurecido,
e a pista assoprou para a atmosfera transformada daquela manhã. Exa-

169
O manifesto do fim do mundo

tamente da região onde só tinha mato e seca. Das bordas do Piauí, por
onde ninguém nunca mais passou.
Porém, Danilo pensou, bodes não falam... Profecias não são reais e
Giovanis não se matam.
O restante daquela vida foi repleto de violências, umas tímidas
e outras mais agressivas. Chegou a se juntar com um homem que o
espancava para que agisse como mulher até que se separaram. Depois,
mudou-se para o interior de Picos para trabalhar numa fazenda, mas
disseram que tinha se envolvido com uma figura importante e por isso
teria sido enxotado. Não conseguiu entrar nos limites de Teresina, não
de forma clandestina, e parou em Russinha Amada, mendigando por
um prato de comida e com uma severa ferida nas costas que precisava
tratar depois de uma surra de cano de ferro. Porque mexeu no lixo de
um restaurante em Piripiri.
Danilo também era gay, mas seus privilégios e sua história o
contemplavam com mais respeito. Giovani era um eterno lutador, ba-
tendo de frente com a vida na contramão. Andando na beirada invisí-
vel da história. Protagonista somente de sua vida, mas ainda assim, um
grande espetáculo.
E aquela história do bode. As pancadas que recebeu. Toda a
violência deveria ter afetado Giovani, como fez com Márcia, cada um
com suas próprias narrativas miseráveis. Vítimas que só eram nota-
das porque a cidade era pequena demais. E agora, no fim da história
do amigo, Danilo só tinha fotos, uma desconfiança sobre o seu estado
mental por conta de tantos abusos e o medo de ser o próximo. Porque
o cerco conservador estava se fechando.
No fim, a questão. Rarizes fez Giovani “escutar” as palavras de
um bode? Um absurdo a ideia. Mas a humanidade estava tão descon-
fiada, mesmo quando vacinada. Todos os centros mundiais tinham se

170
O manifesto do fim do mundo

recuperado, mas as pessoas continuavam vigilantes. E se de repente a


doença tinha finalmente seu paciente zero... Era Giovani?
Não. Chega de cogitações.
Danilo reorganizou as fotos e pegou os saquinhos de camisi-
nha, velhos, mas intactos. Lembrou-se da paranoia de Giovani. Cres-
cendo na época da ascensão do HIV e de todos seus estigmas. Tinha
seu medo de vidas passadas, como as idosas religiosas falavam. Todo
mundo carrega um trauma de outra vida, um temor inexplicável. O de
Giovani era o de ficar doente. Mesmo quando na verdade o seu maior
problema tinha filiações bem mais complexas.
Rarizes ou loucura? Ou ambos? Danilo cogitou novamente.
Não, não, não...
Pegou as duas embalagens quadradas e jogou dentro da caixa,
junto das fotos. A vida que restava de Giovani era aquela. A casa em
breve seria invadida, não tinha dono. Era só um resto de moradia para
o primeiro que pegasse. Sem herdeiros.
Danilo iria até o final pelo respeito àquele monumento. Pobre,
mas significativo.
Até que surgiu dona Josefina. Que mudou da água pro vinho,
os vizinhos disseram. E olhou pelos mais pobres com suas violetas co-
loridas. Como uma salvadora misericordiosa que intercedeu em prol
de todos.
Antes da floricultura era somente mais uma arrogante empre-
sária até ressurgir com uma bondade particular. Ainda mais quando
seu Antônio ia ficando cada vez mais doente. Giovani sempre dizia que
a lembrança da morte amolece qualquer coração, não tinha nenhuma
reclamação contra a patroa. Ela era perfeita.
Perfeita e imortal.
Ainda assim, Danilo jogou fora aquelas violetas porque elas

171
O manifesto do fim do mundo

contavam outra versão dos fatos. Não iriam para qualquer jardim nem
para terrenos secos, eram superiores a qualquer espécie naquele mun-
do estreito.
No fundo, Giovani era inocente. A criança medrosa do inte-
rior de Parnaíba viveu para sempre até o último suspiro.
— Nossa... — uma pontada na cabeça apagou toda sua linha
investigativa. Estava quente, quente demais. O calor não perdoava nem
nos dias de desgraça.
Perto da cama de Giovani, onde as lembranças foram ganhan-
do mais força e o amigo foi subitamente levado para uma tristeza, um
aparelhinho vibrou. Como se tivesse se dado conta naquele momento
do peso da situação, Danilo quis vomitar, foi chorando até o objeto e o
pegou com raiva. Maldizendo toda aquela sucessão sangrenta e absur-
da. Dando o último ponto final.
Uma vez tinha ficado no passado. Agora somente as lembran-
ças. Os amigos não sairiam para beber em Piripiri, não reclamariam
da moto com o pneu murcho de Danilo, não dançariam azarando os
idosos assanhados no forró dos velhos. Tudo tinha evaporado, por
conta de um ato no escuro.
Sua própria cabeça o levou.
Danilo limpou os olhos encharcados, chorando como um
bebê. Olhou com a visão borrada para o celular e viu algumas notifi-
cações.
Desbloqueou a tela e eram mais e mais avisos de postagens de
Marília, a tal digital influencer preferida de Giovani. Aquilo foi cres-
cendo dentro de Danilo, quando passou o dedo para todo o feed com-
portado e organizado da garota. Com todos os comentários do amigo
que foram esnobados por ela. Ele sempre tentando participar daquela
vida perfeita, tentando ter exatamente um pedacinho do céu quando

172
O manifesto do fim do mundo

toda as desgraças o puxaram. “Linda”, “Maravilhosa”, “Você tem um fã


de Russinha Amada, amo você! Sempre tão chique!”. E todos sobra-
vam. Nem sequer uma curtida. Quem é que ligaria para um homem
afeminado de quarenta anos que sempre foi excluído da história?
No entanto, mais uma notificação chamou a atenção cortando
a raiva explosiva de Danilo: uma mensagem do aplicativo de namoro
para gays. O famoso Glamour.
A conversa abriu com intensidade. Era extensa, cheia de in-
sinuações e flertes quentes. Danilo franziu as sobrancelhas tentando
entender. No fundo, sabia que Giovani ficaria irritado se ele estivesse
mexendo no seu celular. Era um dos seus maiores medos, dizia brin-
cando, morrer e todos saberem que ele era “uma grandíssima safada”.
As fotos diziam muito da inocência do amigo. Enquanto o es-
quisito com quem conversava só mandava partes do corpo, como o
peito ou um esquisito ângulo da orelha, Giovani exibia as suas selfies
de biquinho tentando encolher a barriga.
No final dos flertes, a conversa convergiu para um interroga-
tório. Em detalhes específicos de onde e como Giovani morava. Danilo
foi deslizando o dedo, lendo todo o restante. Enquanto repetia “droga”
mentalmente a cada vacilo do amigo, falando até dos vizinhos.
— Como ele não achou isso estranho? Que carência absurda
foi essa? — se pergunto, enfurecido.
Com mais detalhes que o Glamour entregava Danilo foi aden-
trando nas informações. Antes o tal cara secreto, que se chama “Macho
parrudo”, estava há 167 quilômetros de distância. Mas no sábado se
moveu e ficou há menos de um quilometro de distância. Era esquisito
porque Danilo não tinha visto Giovani naquele dia, os dois sempre
saiam para beber.
E ainda tinha mais conversa, que o aplicativo foi carregando

173
O manifesto do fim do mundo

lentamente por conta da internet de dados móveis ruim.


Danilo não deveria ficar desconfiado, mas uma conversa que
mais parecia um interrogatório suspeito como aquela tinha que ter um
alerta.
Ainda mais porque o tal “Macho parrudo” não voltou para a
origem, com seus 167 quilômetros. Estava por perto, a pequenos cinco
quilômetros de distância. E tinha o tom de um investigador estranho.
A conversa avançou depois do sábado deixando todo o restante agres-
sivo. Até o tom de ameaça.
Com a última mensagem sendo o xis da questão.
“Se você não me falar dela e me trazer essas flores, vou te pe-
gar, boiola nojento. Você sabe, porque é minha putinha.”

174
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 24 –
Momentos antes.

— M ãe? — Igor abriu a porta do quarto, bêbado, a visão


transformando qualquer objeto em três. Foi direto para a porta dos
pais, mas em vão ao tentar abri-la. Dona Josefina nunca trancava. E
naquele dia o fez. As coisas tinham passado dos limites. Não era mais
uma guerra fria, não se dependesse dele.
Igor deu duas pancadas na porta, gritou pela mãe. Sempre os-
cilando com a vista. Porém, ninguém respondeu. Tentou mais duas ve-
zes puxando a maçaneta com força. Poderia quebrá-la se fosse o caso.
— Seu Igor? O que foi? — Roberta interveio. Surgiu das co-
xias, preparada. Estava com dois pratos na mão e o pano de passar nos
ombros. Parecia surpresa com a violência do outro.
— Roberta? O que você está fazendo aqui? — Igor amargou
com duas pontadas na cabeça, mas a visão foi melhorando — Já passou
do meio-dia e...
— Dona Josefina pediu para que eu viesse fazer um lanche!

175
O manifesto do fim do mundo

Também para ficar de olho em você. Ela me falou que o senhor des-
maiou por conta de um estresse. — Roberta pôs os pratos na mesa,
para colocar as mãos na cintura. Entre estar preocupada e desconfiada.
Igor não sabia no que pensar primeiro. Mas foi em qualquer
direção.
— A mãe nunca faz isso e... Onde ela foi? Cadê ela? Por que o
quarto do pai tá fechado? Cadê o pai? — foi atirando.
Roberta correu para amparar o rapaz, viu que ele balançava
como bêbado. Puxou-o pelo braço até os sofás branco. Quando perto
do móvel tratou de se afastar para não triscar, tinha medo de sujar
aquela imensidão cara e reluzente. Só Igor podia se jogar nele. Era o
patrão.
— Calma! Eu vou fazer um chá para você. Sua mãe foi resolver
a questão de Giovani. — Roberta disse com a voz mórbida. Com o ti-
que de limpeza, passou o dedo na mesinha com porta-retratos ao lado.
Estava impecável, porque ela era uma boa faxineira. A face do velho
barrigudo e de uma família repleta de aspas.
— Giovani? Como assim? — Igor ficou mais confuso. A cabe-
ça dobrou em rodopiar. As maçãs do rosto estavam vermelhas, parecia
até que entraria em combustão.
— Ué? O senhor não sabe? — Roberta fez cena.
— Que “senhor”, Roberta. É “você”. Eu já te disse! — Igor cor-
rigiu.
— Ah não! Eu não consigo, o se... Você sabe! Me deixe chamar
de senhor porque facilita a minha vida e a de todo o restante. Sua mãe
deve fazer caso e...
— Roberta! O que aconteceu com Giovani? — se não inter-
rompesse, a mulher divagaria até o infinito.
— Ele se matou. Golpeou o pescoço e a barriga. Sangue pra

176
O manifesto do fim do mundo

todo lado.
Igor perdeu o ar. Ficou imóvel, sentindo os braços não fazerem
mais parte dele. Seus olhos arregalaram enquanto a boca perdia o con-
trole.
— Giovani se matou? Quê?
Márcia...
— Como assim? Que porra foi isso? Que horas? — quis se
levantar, mas a cabeça o golpeou de novo. Soltou um palavrão só para
si, mas quem deveria ter ouvido era quem fez aquilo com ele.
Foi como voltar no tempo.
“Que porra...”
A mesma sensação ruim de se aproximar da morte, como
quando ele viu o corpo sendo carregado do jardim ensanguentado, tão
entregue ao tempo e ao sangue. Márcia tinha tirado a própria vida, a
cidade entrou em ebulição. Fiel Jerônimo surgiu com suas respostas
celestiais e etéreas. E a mãe completava, dentro daquele tempo, uma
espécie de conclusão de mudança identitária, moldando sua personali-
dade até chegar em quem é hoje, bem longe da avarenta e fria de antes.
Tinha seus resquícios, mas todos precisavam notar que ainda assim a
virada foi brusca. O peso da morte mudava mesmo a todos. Giovani
tinha razão.
Foi o que ele disse para um Igor sombrio.
— Sua mãe não tem sorte. O segundo suicídio de funcionário
da loja. Ela devia pedir pro fiel Jerônimo benzer aquele lugar. — Ro-
berta disse e voltou para cozinha. Amava ser a voz da razão e terminar
em grande estilo, saindo de cena — Mas não diga que eu disse isso,
pelo amor de deus!
— E... — Igor tinha dificuldade em perguntar, perturbou-se
deslocando os olhos para toda a sala, como se o lugar oferecesse al-

177
O manifesto do fim do mundo

guma resposta — E... E o que diabos estão fazendo? Fiel Jerônimo foi
para lá também? Como Danilo está?
Roberta soltou um barulhinho atento e inspirado antes de
contar algo sério. Teatral, Roberta... Teatral.
— O fiel Jerônimo disse que isso é a segunda vinda do Rarizes
e que, se não tivermos cuidado, vamos sofrer agora o que não sofremos
durante a pandemia. — entregou — E sugeriu que a culpa é de Rafael.
Ele quem deve ter trazido essa mutação do demônio para cá... E que ela
atinge pessoas mais... Vulneráveis... Oh meu pai.
As panelas se batiam porque Roberta lavava com afinco. Tam-
bém para dar um ânimo a casa. O barulho tinha o poder de vibrar um
cinza morto.
— Eu vou até voltar a usar minha máscara. Vai que é mesmo.
Nunca se sabe, senhor Igor.

178
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 25 –
Noite adentro.

V amos pincelar rápidos um dia comum de domingo? No


passado, antes da ideia de criar um manifesto tão desequilibrado quan-
to este.
Bem antes de pandemias e modernidades geográficas. A luz
do B-R-O BRÓ era mais inofensiva, e o céu deveria também ser menos
azul. Aquela família nem tinha ideia de que trabalhariam com flores,
mas dona Josefina gostava do conceito de aromas e arranjos. Enquanto
seu Antônio já era mais racional, trabalhava com aluguel de carro, ca-
minhões. Era alguém que fazia seu próprio horário. Quase como um
empresário.
Russinha Amada tinha seu brilho particular. Dona Raimundi-
nha era uma senhorinha devota, Deise comemorava com a lanchonete
ganhando dimensão. Giovani, uma partícula invisível. Marilene estava
amigada com um tal de Paulinho Pele Mansa, que a conquistou de
imediato. Todas as famílias seguiam com suas interconexões, a cidade

179
O manifesto do fim do mundo

ia desenvolvendo suas próprias narrativas.


Márcia começava a construir um sonho, era apenas uma das
demais que também tinha grandes ambições de ser alguém se desta-
cando dentro do cerco urbano.
E Igor sempre um mocinho. Tinha seus onze anos. Era esper-
to, mas não para o que a família gostava. Suas particularidades eram
até mais sensíveis, estudioso como sempre, não era atoa que vivia
agarrado com um livro. Vivendo as histórias que Russinha Amada
nunca permitiria. E aquilo era a melhor parte.
Pronto, teríamos um cenário que envelheceu mal para os no-
vos tempos. Como uma efêmera lembrança da água. Somente lem-
branças. Estes eram o espetáculo sobre o contexto de anos antes. Abre-
viando os dias normais e chatos.
Igor de agora vendo o Igor de anos atrás.
Só o santuário daquelas pedras com uma lagoazinha para tra-
zer a paz e o misticismo. O único lugar que conseguia acalmá-lo, além
do jardim, mas parecia que agora a morada das violetas coloridas esta-
va maculada. A mãe tinha conseguido isso. A mesma mulher daquela
lembrança que tempesteou sua cabeça, dona Josefina. Tempos atrás,
olhos desafiadores; tempos depois, olhos misericordiosos.
Afinal de contas, quem diabos era realmente a mãe?
Igor se aninhou perto das pedras. Era noite de banho de lua.
Russinha Amada iria adormecer traumatizada depois daquela segun-
da-feira de morte, mas ele não iria por esse caminho. Precisava refletir.
Deveria ser tão único e sagrado que nem o celular trouxe consigo. O
pequeno santuário de águas turva merecia. Quando Igor se aproxima-
va, a natureza o escutava e no final lhe contava uma anedota. Era uma
troca enérgica suficiente para equilibrar alguns caoses, feridas que
vieram dos tempos de ouro da infância. Alguns umbuzeiros trocavam

180
O manifesto do fim do mundo

uma ideia, fortaleciam suas raízes com água e esperança. Que não su-
bestimassem sua altura mediana, com um caule retorcido até o solo
cheio de umbus. Queriam falar com Igor, mas precisavam de clareza.
Sobre feridas como as daquele dia.
Igor passou a mão nos cabelos alinhados, respirou para o ba-
rulhinho da água escorrendo entre as pernas dentre as bordas da lagoa.
Grilos e coaxares completavam a composição, tinha escuridão, mas
não entregava temor. O lugar era mágico, pronto para acontecimentos
felizes, não para as trevas. Olhou para o reflexo tremido da Lua, assim
como o seu, e a imaginação foi divagando. Recriando a manhã de do-
mingo dos seus onze anos. Ao redor do dedo molhado de Deus, uma
área protegida por simbioses da seca, e mais espécies adaptáveis ao
calor.
Mas vejamos um interessante paralelo. Para compor o tal ma-
nifesto prepotente.
Igor, um magricela loirinho daqueles que os grandalhões ado-
ram pegar no pé. A idade do início das descobertas, uma explosão de
hormônios e incertezas.
Quando dava dez da manhã, o ápice do conforto de Deus, e
o tempo era como uma almofada de penas de ganso, procurava seu
caderninho, seu lápis e corria para o quintal de flores de dona Josefina.
Tinha uma garagem grande, sem teto, para entrar caminhões e carros.
Era um local espaçoso e ventilado, pronto para tecer lembranças de
famílias felizes no verão.
Quem era seu companheiro? O cão. Carlito. Um salsicha di-
vertido e marrom, que arrancava fofura com o seu andar, rebolando e
faceiro. Era o verdadeiro amor de Igor, o seu melhor amigo depois de
Rafael. Carlito passeava nas pernas do garoto enquanto ele desenhava
e explorava a região das flores, imaginando narrativas complexas sobre

181
O manifesto do fim do mundo

os cânticos dos passarinhos, conversando na linguagem indecifrável.


Não eram animais burros.
Também adorava criar rotas de fugas para gnomos, cogitando
em qual buraco ou vaso algum deles podia se esconder quando dona
Josefina chegava para cuidar das plantas. Era sempre muito divertido.
Naquele domingo, nada tinha mudado. E observe como são
feitos os retratos bucólicos de um bom sétimo dia. Dona Josefina con-
tinuava impassível. Pela ótica de Igor, a mãe parecia sempre áspera,
com a mania de acúmulos. Dinheiro era uma palavra que não saía da
sua boca, doença também não. Era até incomum relacioná-la à calma-
ria e à beleza das flores, apesar de o jardim ser o seu refúgio. Porque o
restante dos dias era sempre um mau humor, como uma camisa suja e
grudenta enquanto se está limpo. É impossível apenas ignorá-la.
Nem o Sol da manhã mudaria dona Josefina. A mulher levan-
tou com nojo o saco cheio de carne que seu Antônio trouxe, reclamou
duas vezes sobre ter que fazer aquilo sozinha e mais duas sobre o pri-
vilégio de domésticas. Para embaralhar-se nas atividades, ela também
varria, dando aquela dramaticidade de dondoca, que nunca se encaixa-
ria a ela. Estava suada, nervosa e quieta, observando de canto de olho o
marido, seu Antônio, conversar entre risadas com alguns vizinhos. O
assunto de sempre, carro e trabalho. Naquela animação, saíam dois ou
mais três palavrões que Igor sempre aprendia. Nada muito incomum.
Enquanto o menino sonhava com sua cabeça de mil infinitos,
dona Josefina trabalhava na cozinha.
E o domingo não podia ser diferente.
Seu Antônio iria receber o carro de um amigo, o veículo iria
passar um dia no seu quintal. Uma amostra de cumplicidade, a vizi-
nhança era sua segunda família. Seu Bartolomeu era de casa, estavam
na mesma classe de renda, no mesmo universo. Podia tudo.

182
O manifesto do fim do mundo

Do portão, o pai gritou para que Igor prestasse atenção e guias-


se seu Bartolomeu na ré. O menino assentiu, fingiu que entendeu, mas
estava tão disperso com o caderno... Carlito, que deve ter escutado,
levantou as orelhas de abano e já ficou em alerta. Não iria avançar em
nenhum dos vizinhos, mas não gostava do seu território com mais ou-
tra lataria grandalhona. Como ele iria correr naquele maravilhoso dia
de verão?
O cachorro acompanhou Igor, os dois retraídos enquanto o
carro acendia as luzes de trás. Uma HB20 novinha. Novidade para
Russinha Amada, mas não chegava a intimidar o carrão de seu Antô-
nio, mais um esportivo prateado.
Dona Josefina conhecia o jeito avoado do filho. Entretanto,
não iria intervir para ajudá-lo. Queria que Igor começasse a arcar com
suas próprias consequências, sempre tinha aquele jeito manhoso e
irritante que o pai abominava. Ela também começou a se incomodar,
porque, no final, a culpa sempre era da mãe quando algum filho “dava
errado”.
Seu Bartolomeu foi prestando atenção enquanto seu Antônio
pedia que Igor se atentasse. Ele estava lá fora com a mangueira e era
um momento cabível para que o filho aprendesse sobre aquelas coisas.
O vizinho foi dando a ré, avançando contra o carro prateado, e Igor
continuava gesticulando com a mãozinha, positivo, poderia vir.
Não soube exatamente o que perturbou Carlito, e foi inédi-
to até para o amigo íntimo. O cão disparou agressivo contra o carro,
como se aquele brutamontes fosse ameaçar Igor. As patinhas pegaram
gás e o levaram de frente contra o pneu. Igor deu um grito, segurando
o caderno, mas o lápis tinha caído. Rolou até sumir para sempre. Na
desordem, seu Bartolomeu acabou avançando demais, e ainda passou
por cima da pata do bichinho. O bradado de Carlito foi tão rasgado

183
O manifesto do fim do mundo

que perturbou os céus, mais do que Igor. Com o resultado esperado,


a SUV colidiu com a frente do outro carro prateado, amassou pouco,
mas ainda assim o estragou.
Igor se voltou para o lago, quando sua visão se tornou racional
e ele saiu por minutos da lembrança. A noite não estava confortando o
suficiente, ou então o desequilíbrio emocional daquela recordação era
agitado demais, afiado o suficiente para pontos. Não era tão simples.
Por que os pés de carnaúba mudavam de lugar entre as sombras do
breu? São questionamentos incabíveis. Se puxasse mais daquele fio de
raciocínio iria chegar a algum lugar, tecendo seu próprio manifesto.
A manhã de domingo tinha se tornado violenta. Como uma
lembrança pode ser ruim? Às vezes, certas anotações só deveriam su-
mir, sem sequer notificarem que um dia estiveram lá.
E Igor lembrou bem de seu Antônio pegando no seu braço e
arrancando o caderno de suas mãos. O cachorro saiu mancando, ainda
levou um chute por ter sido travesso. E dona Josefina recebeu um gri-
to por razões que transcendiam a da situação. Seu Bartolomeu pedia
calma do amigo, dissera que iria consertar, mas depois não interveio...
Que o dono da casa resolvesse com sua família.
Estragou para sempre o tédio dos domingos.
Até que quando o mal-estar passou e seu Antônio foi para o
quarto, chamou a esposa e contou umas poucas e boas.
Igor murcho, no canto da sala, passando a mão em Carlito,
dengoso, soltando gritinhos finos de dor. O cão também aguardava a
sua sentença. O menino não sabia o que tinha mais lhe cortado o co-
ração: seu caderno de sonhos afundado na lama do jardim ou o pobre
cachorro desconhecendo os donos.
Quando dona Josefina voltou e Igor esperava que ela tivesse
um lampejo de luz e intermediasse a situação, frustrou-se mais ainda.

184
O manifesto do fim do mundo

A cara de sulcos e decepção com o filho, olhando-o como se fosse um


projeto que tinha dado errado, apesar de toda a sua instrução. A mãe
severa vomitou poucas e boas.
A mesma violência, diferentes contextos. “Que ele não tinha
pena dos pais, era avoado. Só andava com coisinhas de moça, querendo
desenhar e ser fantasioso. Que não tomava rumo de homem”.
O restante do dia praticamente morreu, até Igor se lembrar do
encontro de aventuras que tinha com Rafael. Dona Raimundinha só
o deixava sair de tarde. Pela manhã, ele deveria fazer os seus deveres
diários.
Enquanto Carlito dormia de cansaço pela manhã agitada, Igor
foi de fininho até o quarto, para tentar contornar seu castigo. Deu um
toque e sentiu algo estranho. A mulher que abriu, a mesma mãe, pare-
cia diferente. Tinha se tornado tão distante dele que chegava a parecer
outra pessoa. Criança tem dessas dimensões tortuosas.
“O que é?”
“Mãe, posso sair pra brincar com Rafael?”
“Não. O que é que você fica fazendo escondido com esse me-
nino? Não vai. Volte pro seu quarto.”
Mais um golpe. Nem teria a chance de explicar pro amigo. Ra-
fael ficaria contrariado e furioso. Não gostava de ver o amigo triste,
pois era uma luta para conseguir sua confiança depois.
A tarde passou arranhando os sentimentos do menino, e o si-
lêncio do seu quarto foi o único conforto. Murmúrios vindo do lado
eram traduzidos como conversinhas sobre o comportamento do filho,
talvez algum assunto chato de adultos, sempre razinzas. Igor ficava
mais sentido sobre isso, era criativo. Imaginava as palavras cruéis que
seu Antônio deveria estar proferindo sobre ele. Dona Josefina, no mí-
nimo, continuaria calada. Concordando.

185
O manifesto do fim do mundo

Quando a noite engoliu o céu e as estrelas surgiram como


confetes divinos, Igor se confortou na janela, o queixo apoiado nos
braços cruzados, naquela mais clássica pose sonhadora. Os olhinhos
brilhavam no reflexo incerto das constelações. Ficaram acesos quando
um breve acontecimento relampeou. E uma das estrelas caiu, para suas
bandas.
Igor fechou os olhos e fez um pedido. Soube daquilo pelos fil-
mes e livros. Não custava nada tentar.
E então um barulho contido e pesado que estremeceu todo o
quarto. Mais uma das pequenas curvas de estranheza e fantasia da sua
vida, que logo o fez rir. Parecia o fim da hibernação de algum leviatã.
O que Igor não esperava era que o sonho fosse realizado breve,
e com ele vieram as violetas coloridas, os novos tons, uma nova dona
Josefina. E as contramãos de um manifesto.
Dessa vez, não foi o peso da memória que o acordou para a
noite do seu agora. Enquanto o riachinho sugava a luminosidade da
Lua, um barulho bem no meio da obscuridade. Do outro lado da lagoa,
a luz denunciou o invasor.
Rafael, novamente...

186
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 26 –
Quem é você.

— O que você está fazendo aqui? — Igor levantou-se rápido.


Foi limpando os fundos do calção. Mesmo para a noite, o calor não
perdoou, uma regata era sempre bem-vinda. A água construiu na am-
plitude da voz. Tornava-a fantasmagórica, encaixando-se na magia da
lagoa.
Rafael tentou disfarçar, mesmo assustado. Encarou Igor pelas
trevas e preferiu o silêncio. Deu meia-volta, depois de puxar alguns fios
que estavam consigo dentro do bolso.
— Ei. Espera! Ei, seu escroto! — Igor contornou a água aos
pulinhos, por conta das pedras maiores. A lagoa, que podia ser uma
invenção nova do Açude Caldeirão, tinha surgido há pouco tempo.
Era uma raridade que poucos de Piripiri e Russinha Amada sabiam.
O terreno ambiental do Piauí estava mudando, dentre todos os através
possíveis.
Rafael chacoalhou na escuridão. O barulho o denunciou. Pa-
recia que estava escondendo algo, porque duas luzinhas antes acesas

187
O manifesto do fim do mundo

foram também para o bolso da sua calça folgada. Depois de dias, ele
continuou com roupas largas e pesadas. Era como esnobar o tempo de
Russinha Amada.
— Cai fora, Igor. Que inferno! — foi na frente, arranhando-se
quando mergulhou na mata seca.
— Você vai continuar com essa merda de postura, se isolando
de tudo e todos? Vai continuar agindo que nem um estranho e...
— Se cala, porra! — parou no meio do caminho.
Igor ficou mais furioso ainda. Cerrou o punho, aquele rosti-
nho quadrado estava pedindo por um soco.
— Se cala? Tá todo mundo na cidade pensando que você é
doente e...
Rafael riu. Continuou de costas. Depois de alguns minutos,
Igor não soube dizer mesmo se era um barulhinho de deboche ou
preocupação. Já não conhecia a nova versão mais sombria do amigo.
Tantas variáveis.
— Vocês não mudaram nada. — disse.
— E você já mudou o bastante, né? Com essa pose bosta de
amargurado. — Igor continuou alfinetando — Eu vou descobrir o que
te trouxe aqui! Se a doença realmente tiver vindo com você, eu nunca
vou te perdoar e...
Rafael agiu. Se virou e foi caminhando na direção de Igor, com
uma força esquisita ao redor, repleta de eletricidade nostálgica. Fez o
outro se lembrar de quando ele perdia, ficava furioso com derrotas.
Levantava os ombrinhos e fazia bico, porque a pior parte era a humi-
lhação depois. Mas era diferente. Naquela época era baixinho e agora
parecia um boneco de músculos, os ombros largos. Um protótipo do
exército.
Igor, mais franzino, arregalou os olhos e se encolheu com os

188
O manifesto do fim do mundo

braços na frente, afinal, se levaria um soco, pelo menos depois iria re-
vidar. Mas Rafael passou direto por ele, pegou um objeto brilhoso do
bolso, um dos que escondeu antes e o lançou no lago. O pingente ra-
diante voou alguns milésimos de segundos no ar e tocou com força a
água. O primeiro impacto foi natural, de uma gotinha. Até os próxi-
mos segundos dos raios de luzes.
Uma fumaça saliente passeou fantasmagórica. Parecia uma
canção reverberada, da nota mais aguda para a mais grave, até o fecha-
mento com excelência dramática. A substância circulou todas as raízes
encurvadas com sua aparência etérea. Foi invadindo a mata seca, ilu-
minando com um verde esmeralda ao redor. Alguns bichos acordaram
e se esconderam com a perturbação. O umbuzeiro estremeceu e derru-
bou alguns frutos.
— Isso é veneno? Que porra é essa? — Igor caiu de bunda,
nem ligou para as pedrinhas pontudas.
Rafael parecia indeciso nas suas expressões. Sentou-se com
mais calma, bem do lado do velho amigo.
— É não. É uma substância de detecção de veneno. — disse,
como se Igor tivesse ciência de algo daquele universo — Vou ser bem
direto com você, sem joguinhos. Está aí o motivo de eu ter vindo. Sou
pesquisador numa grande empresa e vim estudar um pouco sobre a
natureza daqui. — Rafael completou com um jeito frio — Pronto. Sa-
tisfeito? Fiquei sabendo da morte de um cidadão daqui... Queria que
você me ajudasse.
— Espera... — Igor se afastou com o rosto interrogativo —
Empresa? Que empresa? E como você sabe do Gio? Ninguém aqui fala
com você e...
— Até parece que os vizinhos não berram. Nesse fim de mun-
do, qualquer acontecimento é praticamente canonizado. Também sei

189
O manifesto do fim do mundo

que eles estão tentando me culpar, e...


— Tá. — mais uma interrupção — Vamos ser claros e diretos,
né? Aqui vou eu. Por que sua avó, dona Raimundinha, nunca mais saiu
de casa? — Igor retirou o assunto do baú mais distante de sua cabeça.
— Nossa... — Rafael parecia mesmo estar por dentro de tudo,
rolou os olhos ao responder — Todos vão ficar batendo nessa tecla
sempre... Ela está doente. Eu estou cuidando dela e...
— Você a largou, seu ingrato! — Igor continuou implacável —
Você foi embora e não disse para ninguém, nem para mim! Que porra
de emprego é esse? E que merda foi essa fumaça?
Rafael semicerrou os olhos, com um tom mais divertido.
— Se você continuar me interrompendo, não vou conseguir
responder.
E depois pediu calma com a mão, mesmo que a cabecinha do
outro lado estivesse perto de explodir.
— Não. Não, nada do que você disser vai explicar! E por que
você me contou isso agora?
— Porque você pode me ajudar. Como nos velhos tempos. —
Rafael também se levantou, depois de Igor. Os dois numa distância
razoável, para evitar algum impasse acontecendo.
— Ajudar? Porra, praticamente a primeira conversa em anos!
Você sequer mandou uma carta, uma mensagem via Instagram, você
sumiu! Eu pensei até que tinha morrido de Rarizes! Sua avó surtou pra
caralho e você agindo como se nada tivesse acontecido?
Rafael expirou. Fechou os olhos e trancou a mandíbula, dei-
xando-a mais quadrada ainda. As maçãs pontudas e musculosas, inte-
ressantes para um rosto masculino. Parte de Igor esquadrinhava Rafael
e a outra parte buscava um jeito de absorver tudo aquilo. Preferiu, no
final, que tivesse mesmo levado um soco e assim ambos teriam inicia-

190
O manifesto do fim do mundo

do um combate corpo a corpo.


— Olha, então, tudo bem. Eu não tenho tempo para ficar ex-
plicando e implorando por perdão. Estou aqui a trabalho, preciso ser
rápido.
— Você é botânico agora? Nossa, parabéns! Ou será se é algu-
ma mentira? Não dá para saber, não é.
— Como eu disse, trabalho numa agência científica qualquer
especializada em estudar fenômenos que envolvam ambiente, plantas
ou qualquer elemento natural. Estou aqui porque quero entender se há
alguma relação da natureza com o fato de a cidade não ter tido um caso
sequer do Rarizes. É um projeto experimental, para compreendermos
mais ainda o que foi essa pandemia.
— Nossa... — Igor continuava franzindo o rosto, ficava mais
furioso quando reparava nas bochechas rosadinhas de Rafael. Depois,
para um ponto muito específico do corpo do amigo, conseguindo dis-
farçar rápido — Seja bem-vindo! Está tudo do jeito que você deixou!
— sempre irônico.
— Enfim, Igor, vou deixar a proposta de pé. Se você quiser
participar de um projeto científico e ter seu nome numa Conferência...
— Rafael bateu na calça folgada para tirar o resto de areia. A luzinha
verde tinha sumido minutos atrás. Ele olhou, procurando por algum
sinal — Nenhuma anomalia, o ar está realmente limpo.
O amigo queria socá-lo duas vezes: por ele ser aquele Rafael e
pelo jeito blasé com que estava levando a situação.
— Eu? Você não sempre se saiu bem sozinho? Por que vai pre-
cisar de mim?
Rafael levantou os ombros na expirada e, depois, os deixou
cair.
— Primeiro, porque você é meu amigo. — Igor cruzou os

191
O manifesto do fim do mundo

braços ao ouvir aquilo. — E, segundo, porque aparentemente há algo


nesse enigma que pode estar interligado com uma região que você co-
nhece bem.
— Onde? — Igor perguntou franzindo as sobrancelhas em de-
fesa.
— O seu jardim.
...

Foi mais forte do que ele. Uma vertigem vinda do escuro que-
rendo invocar alguma epifania, deixando-o com um enjoo, embriaga-
do. Pareciam os estalos de dedos de dona Josefina que sempre causa-
vam uma revolução esquisita de sensações. Há tempos interrogativos.
Igor apaziguou a expressão. Ficou alguns minutos fitando Ra-
fael e sua história absurda e o deixou, também ficou para trás qualquer
lembrança que o prendesse ali. Semelhante a um pequeno colapso,
como se tudo o que aconteceu naquela noite não passasse de mais um
absurdo, igualzinho à morte de Giovani.
Antes de manifestos, todos tinham uma rotina comum e enfa-
donha. Russinha Amada não aceitava que corrompessem suas crônicas
cotidianas, mesmo no tecido fino de complexidades que aquele novo
ambiente se tornou.
Igor voltou pela pista asfaltada. No horizonte as luzinhas ama-
relas da mistura de Russinha Amada com Piripiri. Do outro lado, so-
mente a escuridão embalada com algumas canções de terror. O vento
gélido demais para o verão. Não tinha nenhum grilo ou qualquer outro
animal pontuando sua presença. Uma pista solitária que virou de ca-
beça para baixo, para alguma dimensão criativa submersa dentro da
cabeça de Igor.
Assim que dobrou na rua da lanchonete de Deise, passou pela

192
O manifesto do fim do mundo

casa do esquisito Rafael. Foi para a pracinha presenciar a quarta anota-


ção do mundo paralelo que Russinha Amada começou a desenhar. O
inexpressivo carro de desinfecção, com sua mangueira atirando jatos
bactericidas por todos os lados. Parecia um veículo fantasma, ninguém
nunca sabia ao certo quem dirigia aquele grandalhão ou por que pas-
sava irregulares vezes pela cidade. Pior ainda, porque ainda funcionava
se a pandemia do Rarizes já tinha acabado... Era mais um capricho do
prefeito? Dele se esperava tudo. De tão ausente que o seu poder come-
çou a ser discutido, em breve seria transferido para alguma autoridade.
Alguém cogitaria em fiel Jerônimo ou em seus pais, realmente partici-
pativos na comunidade.
Igor tentou não se fixar no escuro, sua visão estourava com
pontilhados de luz, algumas moscas volantes faceiras. Tão fragilizado
que o humanoide daquela noite antiga da infância poderia ressurgir
com definição, mesmo que sua ideia fosse um sistema construído por
criatividade.
A rua estava deserta, as luzes públicas piscavam sem padrão,
não eram gourmetizadas para aterrorizar. Ufa! Mas o chão estava frio,
e a areia se movia com as pedrinhas. Eram infinitos acontecimentos
que Igor não notou, todos bem na sua frente, em dimensões paralelas.
Seus pensamentos tão desalinhados que iriam explodir sua cabeça.
E finalmente em casa... O portão abriu com um miado melo-
so. Igor estava sem o celular, teria dificuldade em atravessar o terra-
ço com os carros, todas as violetas coloridas o observando. No outro
dia, contariam para dona Josefina. E o cheiro agradável daquelas flores
abençoadas, que no fundo fazia Igor ter alguns enjoos, uma bondade
olfáctica excessiva e irritante.
No primeiro passo que deu na sala, a surpresa...
Engoliu o ar e arregalou os olhos tentando decifrar quem es-

193
O manifesto do fim do mundo

tava na cozinha namorando com a luz de um abajur antigo. A imagi-


nação foi traiçoeira naquele momento, mas a voz do outro lado res-
pondeu às questões. Com um sorriso amistoso dona Josefina cortou
a escuridão.
— Boa noite, meu amor. Você estava onde? Roberta disse que
saiu transtornado... Eu a chamei para ficar com você porque estava
resolvendo a questão do óbito de Giovani. Meus pêsames. — ela sorriu
com uma pitada de tristeza nos olhos. Nunca foi tão dissimulada sobre
si mesma como naquele momento. Igor não tinha dúvidas. A pouca luz
que transformava o rosto magro da mãe em caveira não ajudou.
— O que a senhora está fazendo acordada? — ele questionou.
Foi se apoiando pelas paredes para chegar até a iluminação.
Dona Josefina moveu o abajur para abarcar a pequena violeta
colorida em cima da mesa.
— Cuidando dessa raridade que será a flor de lembrança à me-
mória de Giovani. Certos rituais são tão indenes...
— Mãe, o que está acontecendo com a senhora? Está bem?
Parece que você está meio aérea, como se não estivesse aqui... — falou
num tom aflito — Eu não sei explicar. Como você pode estar assim se
morreu mais um funcionário da floricultura?! Mais uma pessoa... E
não me fala nada sobre o pai se ele está melhorando ou se está pior...
— Igor, você sabia que as violetas coloridas por pouco não são
desse mundo? — dona Josefina o interrompeu. Acariciou a pétala como
se fosse o rosto de um deus. Olhava para a delicadeza das proporções
como se contemplasse uma primorosa obra de arte — Sua mãe... — e
olhou rápido para Igor, como se tivesse acabado de cometer um erro —
Sua mãe! Eu! Sim, eu! Eu as achei nesse terreno e não pude ignorar que
tinha acabado de descobrir a próxima maravilha do mundo. Pesquisei
muito e descobri sobre seus efeitos medicinais, como seus pedúnculos

194
O manifesto do fim do mundo

são especiais correndo pura energia atrav...


— Mãe! — Igor ignorou a divagação — Você escutou o que eu
falei? Que porra é essa?
Dona Josefina o encarou, aproveitando-se da pouca luz para
emitir o medo de seus olhos, que ficaram cadavéricos.
— Eu escutei. Você agora está com essa boca suja, querendo
meter o nariz onde não deve. Seu pai está bem, e a morte é um proces-
so natural que todos os humanos aceitam à força. Alguns de forma tão
violenta que desestabilizam suas próximas linhagens.
— E por que você não me deixa ver el...
E os estalos surgiram da escuridão.
Os dedos magros e grandes de dona Josefina, com aquelas
unhas vermelhas se arrastando e criando o tique ordenado. Foram fi-
cando mais fortes com a força aplicada. Do outro lado, Igor viu sua
visão virar em mil, quando a escuridão tomou de conta e a luz parecia
uma foto muito borrada no fundo. A tontura o socou bem na frente,
o fez desvencilhar para trás. Por sorte não caiu, segurando a parede.
— Meu filho, seu pai está bem. Acredite em mim. — dona Jo-
sefina se levantou. O pijama rosado tinha estampas, deixava-a esquisi-
ta, como se ela fosse uma intrusa com o estilo. Antigamente, a mãe só
usava vestidinhos básicos comuns.
Abraçou o filho e foi auxiliando para que ele caminhasse. Nem
que demorasse a noite inteira para chegar ao seu quarto. Ele parecia
um senhorzinho precisando de ajuda.
— Você, depois, quer me contar aonde foi? Eu tenho muito
medo que saia sozinho. Temos muito medo na verdade. Podemos es-
barrar numa questão profunda... Bem mais que a morte. E eu... Eu não
quero que você morra.

195
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 27 –
Uma linda manhã.

D epois de trevas e temores, Russinha Amada resolveu retor-


nar à realidade, abraçando seus habitantes com plumas e doçura. O dia
continuaria nublado com o céu já prevendo a desgraça daquela sema-
na, antecipando-se com nuvens gordas que andavam no horizonte.
Acordaram de luto, mesmo aqueles que não simpatizavam
com Giovani. Entretanto, Marilene acordou com um peso maior. Seu
mau humor era transmissível. Dentre todas as variáveis que ela queria
confrontar em todos os fins do mundo, apenas o silêncio lhe tinha a
atenção. Porque digerir a quietude dos seus pensamentos correspondia
com um agrado no final.
Augusto ficava com um olho no celular e outro na mulher.
Nos momentos escondidos, ele era Paulo, um descobridor que iria des-
vendar segredos por toda Russinha Amada. O seu próximo destino já
tinha sido definido. Gravou mentalmente a rota, isso antes de achar
que iria excluir o aplicativo.

196
O manifesto do fim do mundo

Como se estivesse lendo a mente do garoto, Marilene obser-


vava de canto de olho, não iria dizer nada... Era seu próximo experi-
mento social até onde o filho podia ir. Uma família que não conversava
muito acarretava varizes preocupantes na relação. E ela já tinha seus
próprios problemas.
— Augusto, você já estudou nazismo na escola? — perguntou,
penteando os cabelos, puxava-os com tanta força que acabava arran-
cando porções. A dor no couro cabeludo estranhamente a fazia se sen-
tir bem.
O menino se encolheu na mesa. Achou esquisitíssima a per-
gunta. Primeiro, porque a mão não chegou agressiva como sempre fa-
zia; segundo, porque ele não sabia o que diabos era “nazismo”. Bola
uma vez mencionara rápido, falava que era uma “parada louca”, mas
nunca chegaram ao conceito sintético.
— Não... — disse, murcho. Será se a pergunta tinha a ver com
o seu aplicativo secreto? Pensou.
Marilene fez uma cara de surpresa debochada, arqueou as so-
brancelhas e se virou pro espelhinho laranja de bordas.
— É um negócio bem cruel. Você devia começar a ver mais
TV pra se inteirar dessas coisas. — disse, branda. Sua cabeça borbu-
lhava agora para outras questões. Conseguia se concentrar na conversa
e, ao mesmo tempo, recriar com detalhes na mente a feição de nojo de
dona Josefa com o copo no qual ela tocou. Era pior do que a divisão de
talheres naquela casa.
— A senhora não me deixa ver TV porque nas novelas só pas-
sam boiolagem. Lembra? — Augusto respondeu, inocente. Ele tam-
bém não era mais da geração do televisor, seu mundo agora estava
dentro da internet e dos aparelhinhos smartphones.
Giovani. O nome que imediatamente assombrou a cabeça de

197
O manifesto do fim do mundo

Marilene. Ela se recordou quando de fato proibiu o filho de ver TV,


tinha feito mais aquilo para puni-lo do que necessariamente por conta
do conteúdo do programa. Um discurso que foi posto na sua cabeça
como a maioria das ideias pela cidadezinha.
— Eu nunca falei isso. — respondeu com toda a certeza do
mundo — Se você fala uma coisa dessas em público, o povo vai pensar
que eu sou preconceituosa.
— Mas todo mundo pensa isso, mãe. Que nas novelas só tem
boiolas.
Marilene começou a se incomodar, agora sem entender o por-
quê. Era muito maior que algo relacionado a Giovani.
— Para de falar isso. A gente só fala em casa. Na rua, vão
pensar que você é um desses moleques abestados que ficam zanzando
e não têm estudo! — recriminou. Os olhos ficaram afiados quando se
virou para o filho.
Augusto estranhou, mas também não iria discutir.
— Tá bom.
— E comece a se comportar! Vai ficar em casa de castigo, mas
vai ficar estudando. O povo daqui quer só um pé para falar mal da
gente! Eu quero que você estude para ser alguém! Para me... Tirar desse
buraco.
— Tá bom, mãe. A gente vai ser rico, você vai ver. — Augusto
sorriu com uma inocência única.
Marilene fechou os olhos. Coçou a testa franzindo-a, conti-
nuou importunada com algo. Quando se levantou, guardou o pente
cheio de fios encaracolados perto da mesinha. Os buracos da casinha
pequena eram denunciados com as dezenas de fachos de luz do Sol,
entrando e denunciando a poeira invisível. O cheiro de cuscuz estava
por cima, assim como o de café. Competindo com um meio azedo que

198
O manifesto do fim do mundo

vinha de fora.
— Dona Josefina vai vir aqui qualquer dia desse, pra trazer
umas dessas flores fodidas que ela tem. Finja costume! Não vai me en-
vergonhar! — soltou enquanto puxava a barra da camisa delineando
bem os seios, grudada no seu corpo esguio. O shortinho jeans era des-
fiado, combinava com a estampa de comício. Como Marilene maquiou
em sua cabeça.
— Mãe, eu acho aquelas flores mó zoadas. — Augusto riu —
Pesquisei no busque ponto com e não achei nada delas. Estranho, né?
— Zoadas, mas trazem dinheiro para dona Josefina. Queria
eu ter encontrado elas! Tinha vendido para aquele estranho bigodudo
de branco na mesma hora! Que se foda esse negócio de sigilo e “bem
emocional”! — Marilene soltou meio aborrecida. Eles fazem isso porque
têm dinheiro, e rico pode pensar em sentimentos, pobre não...
— Bigodudo de branco?
— É, um esquisito que veio aqui uma vez para estudar as flores
e... — se deu conta de que já estava de muita conversa. Daquele jeito,
atrasando-se sempre, dona Josefa iria antipatizar mais ainda com ela.
Pelo menos dessa vez não precisava levar Augusto — Depois te falo. Já
vou porque tenho hora! Me dá esse celular.
O menino fez cara de pidão com os olhinhos.
— Mãe, por favor...
— Ficou maluco? Você está de castigo! Me dá essa merda aí,
anda... Que tipo de mãe faz as vontades do filho enquanto ele tá sus-
penso, hein? — Marilene tomou o celular das mãozinhas gordas.
Augusto cruzou os braços em protesto.
— E vai estudar! — Marilene abriu a porta, antes do último
recado — Não abra pra ninguém! Não saia de casa e não apronte! E
fique. Bem. Longe. Do. Bairro. Das. Flores.

199
O manifesto do fim do mundo

Augusto arqueou as sobrancelhas, não captou o verdadeiro


intuito do recado. Não podia ser o que ele estava pensando, tinha se
saído bem em esconder o aplicativo secreto da mãe. Será que ela sabia?
Marilene contou até três. Deixou a residência vestida com a
armadura para mais um dia de trabalho. Mas até que o odor da morte
por todos os lados estava conseguindo distrai-la. E como era perspicaz
essa noção, porque metade da vizinhança fingia não ligar para a morte
de Giovani, enquanto a outra metade só respeitava o ato de morrer,
não necessariamente a vítima. Algumas senhorinhas na rua estavam
de marrom, com o terço. Rezavam um credo levantando o braço, como
se a reza fosse um desinfetante para o espaço. Algumas garotas da es-
quina cochichavam sobre o ocorrido, aumentando como podiam a
desgraça. Fazendo breves retrospectivas de como conheciam o pobre
Giovani. Nenhuma memória muito positiva.
Marilene desviou rápido de qualquer atenção. Deu alguns
bons dias secos, mas se pudesse andaria por debaixo do solo. Só fica-
va receosa quando chegava justamente no bendito bairro florido. Mas
não recuava uma batalha. Se fiel Jerônimo aparecesse, ela iria conti-
nuar incisiva, como sempre fez. Como Giovani aprendeu logo rápido a
fazer assim que chegou à Russinha Amada.
A propósito, que estranho era o destino daqueles que confron-
tavam o religioso... Parecia praga...
Porém, a terça-feira esquisita continuou invulgar.
E não tinha ninguém pelas redondezas, somente ideias de co-
merciantes que não abriram suas lojas ainda, nervosos conversando
sobre algo. Não deveria ser só sobre Giovani. A morte tinha daquilo,
dava vazão a mais micro explosões de um sistema social frágil, ainda
mais um como o de Russinha Amada.
Para aquele lado mais trivialidades. Deise continuou concên-

200
O manifesto do fim do mundo

trica com sua rotina. O principal sinalizador do período pós caos.


Antes de chegar à lanchonete, Marilene resolveu amarrar o
cabelo. Foi se arrumando porque, de repente, o mundo todo cobrava
dela uma nova postura. Para se igualar ao restante da massa. Não se
perguntava por que pensava isso, suas ideias surgiam como excentrici-
dades inquestionáveis.
— Bom dia, Deise. Como vão as coisas? Como estão os prepa-
rativos para o funeral de Giovani? — cantarolou com a perfeita dicção.
A mulher a fitou dos pés à cabeça, por costume. Deise funcio-
nava pelas suas expressões e deduções. Se apoiou na vassoura e leu a
investida.
— Que voz é essa Marilene? — iria desestruturar o que quer
que estivesse em andamento ali — Tá falando que nem os soberbos da
novela.
— Eu falo assim, ué. — Marilene brincou também.
— Bom, sobre o funeral... não sei se vai ter. Se tiver, vai ser
preparado pela família do Giovani. Danilo não tem dinheiro e dona
Josefina já está muito ocupada com sepultamentos e outras coisas.
Marilene ficou surpresa.
— Não vai ter nada?
— Fiel Jerônimo achou melhor que não tenha porque Giovani
nunca foi à igreja, é pagão e...
— Mas... — Marilene se viu em contagem regressiva nova-
mente — todo mundo que morre aqui tem uma celebração. Vão jogar
o corpo em qualquer lugar?
Deise olhou interrogativa para a outra, fez um bico.
— O finado Giovani devia era agradecer por dona Josefina es-
tar cuidando dos seus restos. Ainda mais se ele tiver se matado por
conta da segunda vinda do Rarizes.

201
O manifesto do fim do mundo

Fiel Jerônimo, maldito fiel Jerônimo. O tempo todo fiel Jerônimo. Tudo
envolve fiel Jerônimo...
Marilene não emitiu nenhuma opinião, mesmo inquieta. A
sensação que reverberou naquele momento foi a de estar dentro de um
grande paralelepípedo espelhado enchendo de água. Lá fora alguém a
observava se afogar, curtindo aquela desgraça. O vidro era impenetrá-
vel, iria morrer ali. Pedindo por ajuda. A visão dissipou segundos em
seguida.
— E você deveria começar a ir nas celebrações de domingo...
Eu já lhe disse. Seu jeito meio entortado não está sendo muito bem
visto pela comunidade, nem por fiel Jerônimo e...
— Que se foda ele! — Marilene soltou, agora furiosa também
com Deise — Esse homem quer dar conta da vida de todo mundo. Que
palhaçada é essa? Ele se diz tão da paz e do amor, e não quer deixar o
falecido ter todas as cerimônias da própria morte.
Deise deu um passo à frente, foi hostil.
— Você devia começar a respeitar ele. A porra do prefeito da-
qui só serve pra permitir essas barulheiras aí desses prédios que estão
sendo construídos, não vem aqui, não faz nada por essa comunidade.
Fiel Jerônimo está à frente de tudo por escolha própria, por querer aju-
dar. Ele sabe do que é melhor para essa cidade, e você parece que está
aérea. Não sabe de nada.
— Eu não sei? — Marilene recuou com a cabeça. Foi aumen-
tando o tom de voz. — Quer dizer que eu não posso escolher não ir à
igreja.
— Até minha mãe já pediu para eu não ficar de licute conti-
go. Todo mundo fica falando, Marilene, porque te vê assanhada pros
bêbados lá do bar. Que diabo de exemplo é esse que tu tá dando pro
Augusto? Você está olhando pela educação desse menino, Marilene?

202
O manifesto do fim do mundo

Poderia sair fumaça dos ouvidos quentes da pobre atacada.


Era tanto para digerir, e aquilo vir da voz metálica de Deise
tornava tudo mais tremendo. Porque no final das contas era ela quem
ficava do lado de Marilene, que saía para tomar umas geladinhas no
Açude Caldeirão, que planejava uma tarde de compras em Piripiri, que
sempre dava um agrado para Augusto quando a lanchonete fechava o
dia com sobras. Se dizia sua amiga. Mas tudo vinha mudando desde
quando o pai do garoto abandonou a família. Quando ela começou a
ter uma opinião mais forte, e decidir não ir a um lugar em que sabia
que não era bem-vinda, ainda mais com a antipatia de fiel Jerônimo,
sempre pegando no seu pé.
— Eu não estou acreditando no que estou ouvindo, Deise. —
Marilene escolheu outra abordagem, uma realmente de vulnerável. Al-
gumas batalhas não valiam a pena.
— Eu falo isso é pro teu bem, mulher. Todo mundo fica falan-
do de ti, isso não é bonito pra tua cara. — Deise desafiava — Isso é feio
para uma mulher, sair por aí bebendo com macho. Agindo como um!
— E tu que não sai mais para beber comigo desde que aquele
encosto me deixou! Pensa que eu não notei tu toda estranha comigo.
— Marilene vacilava com a resposta.
— Porque eu estou tentando ser uma pessoa diferente, ajeitei
muito comportamento errado meu. Fiel Jerônimo me disse que...
— Tá, Deise. — Marilene viu a viagem perdida.
— Oxe?
Que se fodesse o mundo. No final, só restava rumar para a casa
de dona Josefa. Era capaz de partir uma pedra grande ao meio com
a força do ódio quando citavam fiel Jerônimo. Deixar Deise falando
sozinha seria sua vingança pessoal momentânea. Era melhor aquilo do
que dar umas bofetadas na amiga, ex-amiga na verdade. Mas depois

203
O manifesto do fim do mundo

não foi uma boa ideia também.


Deise estreitou o olhar quando notou o que tinha na nuca,
que sempre o cabelo solto de Marilene escondia. A mancha esquisita
passeando e muito retraída porque estava exposta. “Como ela não viu
isso?” Antes deveria ser um machucado.
— Ei! O que diabo é essa mancha bem aí no teu pescoço? Tu
pelo menos foi no médico saber que machucado é esse? Não tá aí nem
pra tu mesma... É uma esculhambação danada. — Deise berrou.
Algumas pessoas que passaram na rua também se atentaram,
mas pelos bons modos fingiram bem. Ouvidos pareciam maníacos
obcecados na discussão. Dona Miranda, que tinha uma lojinha de ca-
pas de celular, amava aqueles quase barracos matinais. Torcia para que
ninguém entrasse ali no momento, para continuar assistindo ao pro-
longamento daquela rinha.
Marilene passou a mão quase estapeando o pescoço. Tratava-
-se com agressividade porque já não bastava os outros. Pegou o celular
e posicionou a câmera frontal para tirar uma foto de trás. Por conta da
aflição, a foto saiu toda borrada, mas desenhou bem o verde esmeralda
com rosa passeando. Cabelos não revelaram o segredo, ela nunca iria
ver se não fosse outro. Não tinha o costume de ficar se “olhando” por-
que era vaidade demais, e ela se dizia “mulher sem aparência”.
Num primeiro momento, a ideia era gritar e correr para os
braços de Deise, mesmo com a tempestade. Mas Marilene se lembrou
de já ter visto essa mancha em algum lugar.
A recordação não falhou. Sim, exatamente... Giovani! Se tinha
algum mecanismo acontecendo, ele acertou bem suas vítimas.
Pobre Marilene. Pobres retratos sobre certezas. Nunca disse-
ram que este terreno era opaco e claro, rondeado de trevas agindo nas
esquinas. Camuflado pela inocente áurea prosaica.

204
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 28 –
Nada acontece.

C omo relógios acelerando não fazem barulho, ninguém des-


confia do tempo roubado. Porque eles agem na surdina e fazem acredi-
tar que tudo é um cenário constante. Quando nunca foi. Assim é mais
uma síntese do manifesto do fim do mundo, para você entender aquela
Russinha Amada. Deixando os parênteses para que eles acordem de
um sonho.
E Igor despertou. Mais um soco o faria pular da cama para
sair da realidade paralela que o estava consumindo. Precisou desligar
o ar-condicionado e abrir as janelas, senão o levariam de volta. Quan-
do agarrou o celular, teve dificuldade para ler as letrinhas, a visão aos
poucos foi definindo.
Não tinha notificações, não tinha nada de especial. Somente
alguns comentários no perfil de Giovani, de pessoas que Igor nunca
viu na vida, pedindo para que a plataforma atribuísse o “in memorian”.
Apenas duas poucas frases realmente dizendo coisas boas para o ami-

205
O manifesto do fim do mundo

go, o restante em torno da discussão sobre um status. A internet é um


antro de imbecis, Igor pensou. Pelo menos Giovani nunca iria ler nada
daquilo.
Quando abriu a porta, foi imediatamente para o quarto dos
pais. Deu algumas batidinhas, lembrando com certeza de todas as es-
tranhezas da noite anterior. Agora mais que tudo aquela mulher lhe
devia respostas.
Não escaparia dessa. Para ter certeza de que as suas crises de
tontura não atacariam, resolveu chamar testemunha. Gritou do cor-
redor por Roberta. A empregada na cozinha surgiu só com a cabeça,
pedindo silêncio com o dedo. Olhando para Igor como se ele estivesse
enlouquecido.
— Você pirou? Seus pais estão dormindo! — falou entre sus-
surros e gritinhos.
— Fica de olho aí, eu quero ver se ela vai fazer isso na sua
frente. — Igor disse de cabeça cheia. Rafael também surgiu em algum
canto, mas era assunto para depois.
Roberta não entendeu nada.
— Senhorzinho Igor, o que está fazendo? — ficou de mãos
na cintura assistindo às batidas na porta. Ele não iria parar até a mãe
responder.
Alguns barulhos e resmungos e o clique da chave girando.
Dona Josefina surgiu um pouco descabelada, mas dócil e surpresa. Riu
de lá para Roberta e, depois, para o filho. Fazia parte da proposta igno-
rá-lo primeiro?
— O que foi, meu amor? — perguntou com a voz meio rouca
— Você está bem?
— Mãe, o que aconteceu ontem? Por que toda vez que a gente
vai conversar você foge e eu tenho um desmaio? Eu percebi! Eu vi! Eu

206
O manifesto do fim do mundo

lembro, como nunca lembrei antes! — Igor se pôs na frente da mulher,


impossibilitando Roberta de vê-la. A empregada sabia que não deveria
ficar ali, mas o ímpeto curioso era maior que ela.
Josefina recuou com a cabeça, fitou os olhos de ressaca do filho
e deu a ele a resposta carinhosa.
— Meu amor, como assim? Você chegou tarde da noite e eu
e seu pai estávamos dormindo. Trouxe consigo algumas bebidas... —
disse. Tinha tanta verdade na sua fala, que Igor começou a duvidar de
si. Era inacreditável.
— Co... Como assim? Eu não bebi! Conversamos ontem! Você
está ficando louca? Cadê meu pai? — avançou contra ela, mas dona
Josefina não fez barreira. Escancarou a porta.
— Está dormindo! Ali! Recuperando-se dessa virose que o pe-
gou. Em breve, ele vai estar à tona e...
— Virose? Que história é essa, mãe? — Igor deixou-se para
uma irritação. Viu o monte na cama, encolhido. O cheiro de lavanda
mascarou as inverdades.
— Senhor Igor, desculpa me intrometer, mas você deve estar
de ressaca... Deve ter esquecido! Olha aqui as garrafinhas de cerveja!
— Roberta surgiu com duas. Tentando entender aquela investida in-
vulgar.
Josefina empurrou Igor do seu campo de visão para ver a em-
pregada. De longe, qualquer um poderia jurar que foi um “com licen-
ça” doce, mas as unhas da mãe encravaram forte no ombro do filho,
fazendo-o gemer por segundos. Não combinava nada em a brutalidade
escondida naquele rosto feliz.
— Viu? Se você não acredita em mim, por favor, acredite em...
— dona Josefina empalideceu. Ficou dois segundos olhando abobalha-
da para a mulher do outro lado. Com um sorriso forçado e congelado

207
O manifesto do fim do mundo

— Roberta!
A outra se encheu quando viu que a patroa lhe deu o respaldo.
Igor continuou animoso. Contra o cenário feliz da mãe, os sul-
cos formados e as bochechas rosadas como se todos estivessem num
belíssimo e calmo dia feliz de verão. Os cabelos desarrumados que só
agregavam a sua beleza. E aquela camisola, que realmente não era a
mesma da noite anterior, era um vestidinho comum típico de dona
Josefina. Amável que nem ela.
— Você é doente! — disse e deu meia-volta.
Roberta e dona Josefina se entreolharam assustadas.
— Ei, mocinho! — dona Josefina deixou a linha de segurança
que riscou para si. Mudou de expressão porque, antes de ser a mulher
bondosa e feliz, era mãe — Você me respeite! Venha aqui e...
— SAI FORA! — Igor se virou de punho fechado. O grito re-
verberou mais do que ele queria. Um estalo no seu ouvido o deixou ou-
vindo apitos tão agudos que por pouco não ficou surdo. A mãe recuou
assustada, ficou tão incrédula para enfatizar ao filho o caos gerado. A
agressividade que nunca tinha visto antes.
Mas não o derrubou. Mesmo que por dentro muros e mura-
lhas começassem a decair, quando um compilado de traumas e lem-
branças surgiram com a face assustada da mãe. Parecia até que ela sa-
bia como desequilibrá-lo, era tão fácil. Dona Josefina pôs a mão na
frente do corpo e deu dois passos para trás. Roberta continuou gélida.
— Você quer bater na sua mãe? — a voz assustada disse —
Agora que tem força, está crescendo, você vai bater na própria mãe?
Igor também recuou, tentando se manter à altura. Faltava
pouco para desmoronar. A pergunta indecente rasgou alguns lençóis
metafóricos.
— Você... está toda contente e sequer liga para um funcionário

208
O manifesto do fim do mundo

amigo que se matou. Você nunca liga para nada. Diz que mudou, mas
a única coisa que mudou foi essa sua interpretação de que é feliz e ra-
diante, quando na verdade você nunca foi assim dentro dessa casa.
Dona Josefina deu um sorriso de surpresa, com aquele tom de
piedade. O filho era tão desequilibrado.
— Mas fui eu quem cuidei da papelada dele. Não vamos abrir
a Fortaleza Florida em respeito e...
— Estou saindo fora, mãe. — Igor fez um sinal de desaprova-
ção para Roberta, para que ela não comprasse aquelas palavras polidas
e cheirosas.
Sequer trocou de roupa. Mas o pijama podia ser disfarçado
como roupa casual. Calçou os chinelos, apertou nervoso os botões do
celular, ligando e o desligando, uma mania ansiosa. E saiu. Com a ca-
beça para só um lugar e só uma pessoa.
Josefina continuou imóvel até ouvir o barulho do portão. De-
pois deu com a mão para Roberta, tentando conceituar aquela cena
como tão corriqueira dentro do universo de famílias. A discussão não
deveria ser nada demais. Roberta também assentiu de volta, sem graça.
Dona Josefina só pediu mais uma coisa.
— Roberta continue de olho nele. Espero que essa fase passe...
Que fase, porra?
...

Se Roberta não tinha entendido, Igor muito menos. A cabeça


tão quente pegando aquele solzinho e ele já duvidando de si. Quan-
do fez a retrospectiva, percebeu que a sensação toda lembrava um so-
nho. As memórias enfraqueciam como a última nota de um soneto.
Mas dessa vez ele lembrou dos estalos, o que a mãe fez para deixá-lo
bêbado. Se tinha acontecido antes, ele nunca reparou, mas agora era

209
O manifesto do fim do mundo

algo forte na sua mente. Não iria esquecer nunca. Por isso, não era
coerente começar a duvidar de si.
Passou pela casa de fiel Jerônimo, pelo restaurante de Deise,
pelo seu receio e por todos os olhares estranhos quando chegou ao
ponto da questão. Tocou a campainha da residência “evitada”. Mas Igor
não estava mesmo pra ninguém, e agora sua raiva tinha se ampliado.
Era tão esquisita existir coincidências. O que poderia relacionar um
“jardim”, um ex-amigo e uma mãe estranha ao mesmo tempo? As coi-
sas estavam intrincadas e perversas. Ele não seria a bola naquele jogo
de tênis confuso.
Tocou duas vezes a campainha. Era capaz de ter sido o pri-
meiro uso em meses. Dona Raimundinha deveria atender, com suas
falas rabugentas. O tempo a deixou mais razinza com tantos golpes. Já
Rafael, também não tinha para onde ir. A demora era inexplicável.
Deise ficou da porta da lanchonete de vigia. Alguns outros co-
merciantes também ficaram em alerta. Tentavam disfarçar, mas eram
péssimos nisso. Igor continuaria pouco se lixando. Descansou mais ve-
zes o dedo no botão.
— Atende droga!
O bolso começou a tremer. Deveria ser uma notificação inútil.
Mas Igor ponderou todas as possibilidades e acertou naquela mais in-
comum.
A mensagem do amigo chegou via Instagram. Rafael tinha o
seguido, mas não o deixou segui-lo. E nem precisava. O perfil não pos-
suía nenhuma foto, parecia falso.
“Me encontra hoje de noite no mesmo lugar. Não posso aten-
der, vai chamar a atenção da vizinhança. Estão todos de olho.”
Igor revirou os olhos, já estava começando a se encher daquilo.
“Foda-se. Você é daqui! Eles vão ter que te aceitar uma hora.

210
O manifesto do fim do mundo

Sai você e sua avó para eles verem que está tudo bem, e que vocês não
estão com nenhuma doença!”. Enviou como resposta.
Alguns segundos, três pontinhos indicando que Rafael estava
digitando.
“Não. Faz o que eu estou te mandando.”
— Foda-se, Rafael. — Igor soltou baixinho. Não iria insistir.
Deu meia-volta e seguiu pela rua. Deise ficou na porta, tentou
algo simpático.
— E aí, seu Igor! Foi visitar o amigo? Ele e a avó estão aí, não
saíram, não. — disse, puxando assunto.
Igor respirou fundo. Deise sempre era legal com ele, não me-
recia nenhum acesso de raiva gratuito.
— Devem estar dormindo.
— Até essa hora? Fiquei mesmo sabendo que esse povo da ci-
dade grande dorme até tarde. Depois é nós do interior, os “do mato”,
que somos preguiçosos! — Deise sorriu. Ficava engraçada quando ten-
tava ser passiva-agressiva. Ajeitou um broche na manga da blusa que
tinha uma santa desenhada. Mais uma aquisição de brilhos e lantejou-
las das boutiques de referência de Piripiri.
Igor sorriu também. Suas bochechas ficaram vermelhas, não
comprimiram tanto porque o sorriso não usou os olhos. Ele foi se dis-
tanciando, mesmo que Deise não tivesse acabado. Depois de Marilene
e sua mãe, é claro, Igor era a pessoa certa para detalhar assuntos que a
intrigavam. A discussão de horas atrás era um deles.
— Seu Igor, vem cá. Quer um salgado? — sugeriu com um sor-
riso. Apoiou-se na vassoura, como sempre. Deveriam se perguntar por
que ela varria tanto, mas atividades mecânicas eram boas para deixar o
cérebro funcionar com alguma questão, ou então para ouvir uma boa
fofoca.

211
O manifesto do fim do mundo

O rapaz lembrou que não tinha tomado café. O estômago vi-


brou. Ele não iria fazer aquela desfeita.
— É bom que você me conta como sua mãe está, depois dessa
tragédia. Até pensei se deveria abrir hoje... — falou, quando o rapaz se
sentou na cadeira de plástico. A fome quis desaparecer quando Deise
tocou no nome de Josefina. Uma pontada de raiva ressurgiu novamen-
te — É mau agouro. Fico toda arrepiada... — completou.
— Fiel Jerônimo vai fazer alguma celebração para Giovani,
né? — Igor respondeu com outra pergunta. Porque ele não queria se
atentar a qualquer coisa que envolvesse a mãe. Tudo um incômodo e
ninguém pensou em Giovani, puramente naquele Giovani.
Deise se calou por minutos, pegou a coxinha de carne e serviu
num pires. O suco no copo de vidro em formato de rolo. A mesinha de
plástico onde Igor estava tinha uma toalha estampada com os dizeres
“Grande Maestro seja louvado” e muitas cruzes. Na parede do lado es-
querdo da lanchonete, tinha também um relógio com outra cruz. Bem
perto do balcão a foto de nossa senhora. Para afastar o mal.
— Olha, seu Igor, a mamãe falou com fiel Jerônimo uma ho-
rinha dessas e acho que ele não se interessa em fazer uma cerimônia
para alguém que nunca visitou a igreja... — Deise tentou encontrar as
palavras certas — Alguém que sempre tentou “bater” de frente com o
que somos.
Igor enrugou a testa.
— E o que somos, Deise? — perguntou com um sorriso debo-
chado.
Deise coçou a cabeça. Bagunçou parte da cabeleira presa
com as famosas piranhas coloridas. Quando ficava em apuros, olhava
para baixo, tímida. Ela tinha perdido a coragem de horas atrás com
Marilene, mas aí poderíamos pensar que como Igor era “de família

212
O manifesto do fim do mundo

importante” restava a ela ponderar suas falas.


— Ah, seu Igor. Eu sei que o senhor entende dessas moderni-
dades, sabe, mas aqui nós somos um povo mais “cabeça dura”. Sua mãe
mesmo e seu Antônio são o casal que mais representa...
“Foda-se quem é minha mãe. Foda-se quem é meu pai. Eles sem-
pre me trataram mal, sempre colocaram dinheiro em cima de qualquer
propósito. Sempre ficaram sendo invasivos quanto a tudo da minha vida.
E do nada os dois mudam quando um deles permanece flertando com a
morte, ficam fingindo que são bonzinhos? E eu? Eu estou sendo escroto?
Estou, mas foda-se. Minha mãe tá me manipulando e eu não tenho como
provar, ela quer me deixar louco! Foda-se essa cidade também, aqui só se
importam com a porra do que esse fanático religioso pensa e...”
— Seu Igor? Tá bem? — Deise se aproximou do rosto pálido
do rapaz. Ele só tinha dado duas mordidas na coxinha. Uma fumaci-
nha saiu do interior de carne, feita na hora — O senhor babou.
Ela riu, pegou um dos guardanapos e se sentiu na obrigação de
limpar o fiapo que desceu traiçoeiro dos lábios finos de Igor. Estavam
rachados, o tempo seco não perdoava. Ele se assustou com o inter-
valo que desligou sua cabeça, ficou sem graça vendo a mulher ajudá-
-lo, como se fosse uma criança, mas não a impediu. Deise ficaria mais
brava se ele não a deixasse fazer algo por ele.
— Nossa, eu... Tive uma péssima noite. Meu Deus! Desculpa,
Deise. — ficou vermelho. Até deu um gole no suco para disfarçar.
Ela continuou rindo, preparando-se para discursar novamente
as maravilhas de fiel Jerônimo. Isso quando o primeiro estrondo de
obra não tinha começado, porque depois começou a orquestra infeliz
dos prédios novos. Os que ficavam logo atrás, sendo construídos junto
das hipocrisias de Russinha Amada.
Bem no coração do futuro fim do mundo.

213
O manifesto do fim do mundo

214
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 29 –
Marilene decide (não) mor-
rer.

A rua de dona Josefa. Bem mais do que casinhas comporta-


das e de condição. Aceitava tão bem as violetas coloridas como todos
os outros acidentes da natureza. Deslumbrante vista para uma das bor-
das de Russinha Amada, direto para a extensão de mato seco unifor-
me. No crepúsculo se tornava obra de arte. E ainda poderiam dizer que
era como petricor, observar aquela natureza seca, mas de uma beleza
única. O verde e o laranja contrastavam, tornando-se divertido. O ar
bucólico era protegido pelos moradores. Todos se perguntavam por
que a cidade não crescia para além dali. Era bem mais fácil.
E ainda assim toda beleza do mundo não ganhou Marilene.
Quando sabiam que ali morava dona Josefa, os deuses ficavam tristes,
arrependidos na hora de projetarem o quadro obra-prima dos céus.
Se tinha alguém guardando aquela redoma de beleza, Marilene achava
que não ia com a cara dela. Não se sentia bem-vinda nem naquela casa

215
O manifesto do fim do mundo

nem naquela região. Tinha caído do Olimpo; na verdade, da escada em


direção a ele. Não era digna de chegar nem perto da morada dos esco-
lhidos. Por isso aquele constante armamento. Sim!
Depois do confronto com Deise, parecia que se entrasse em
qualquer lugar seria esmagada, não só na região do Olimpo.
A mancha esquisita atrás da cabeça era uma maldição, depois
das invisíveis inevitáveis que amaldiçoaram sua família pela eternida-
de. Marilene com uma vida infeliz vendo a mãe apanhar do pai al-
coólatra, sofreu abusos psicológicos de ex-namorados e uma gravidez
indesejada bem no término de um relacionamento. A ela só restava
ingratidão. Porque na sua cabeça tinha gente que nascia para vencer e
tinha gente que nascia para perder. Não tinha dúvidas de qual lado a
vida lhe deu.
A nuca estava quase sangrando de tanto esfregar. Marilene
sempre em alerta, olhando de um lado para outro conferindo se não
tinha mais algum vizinho espertinho que pudesse denunciá-la. Puxar
a blusa não adiantaria, restou tentar disfarçar com o cabelo. Mas dona
Josefa era muito traiçoeira e observadora. E o pior não era isso.
A maldita mancha. O mesmo desenho amaldiçoado que bro-
tou em Giovani, tomando seu corpo e o fazendo delirar até tirar sua
vida. O restante dos palavreados que fiel Jerônimo disse não ajudou.
Ele já tinha definido sobre a nova marca da besta.
Marilene agora era a nova vítima. Era só questão de tempo até
enlouquecer.
Até se matar, possivelmente na frente do próprio filho. Se fizes-
se isso na casa de dona Josefa, iria poupar a todos do estresse, porque a
idosa só iria pedir que desovassem aquele resto inútil em algum canto
pelas redondezas. Quem sabe dos nutrientes do corpo se decompondo
não nasceriam novas violetas, violetas mais esquisitas ainda... Marilene

216
O manifesto do fim do mundo

criativa nos seus piores dias.


Passou a chave no portão e escutou uma conversa. Não po-
dia ser dona Josefa falando sozinha, ainda não tinha chegado naquele
nível. E a surpresa lhe desanimou. Com calafrios, como se tivesse aca-
bado de saber que seria o prato principal de leões famintos e sanguiná-
rios. Com seu terninho encantado e a boa lábia, fiel Jerônimo brincava
com a chave de casa quicando-a na mesa de dona Josefa. Ambos con-
versando como se fossem grandes amigos, cada um com sua simpatia
mortal.
— Não vai dar um oi pro seu Jerônimo, Marilene? — dona
Josefa espetou assim que a viu cortar a sala fingindo ser um fantasma.
Nessas horas, não lhe era mandado ficar à deriva.
Marilene deu com a mão, foi tão seca que fiel Jerônimo e dona
Josefa se entreolharam abismados.
— Esse povinho é mal-educado, seu Jerônimo. — a idosa se
aproximou com a mão na boca, riu com os dentes pequenos. O outro
a acompanhou na graça.
— Tudo bem. O pecador sempre se cala perante a espada de
justiça. — a frase de efeito saiu polida e conservada.
Marilene olhou para frente, fixou num ponto da parede, en-
carando azulejos medíocres enquanto pegava a primeira louça na pia
para lavar. A raiva transbordando junto do medo, iria afogá-la com um
líquido venenoso. E, ainda assim, as violetas coloridas na parede pare-
ciam a criação mais divina dos tempos. Com o arco-íris de orgulho,
por serem superiores a qualquer um ali. Dentro do seu jardim, não lhe
era permitido tanta graciosidade, mas era melhor ficar ali, naquele
pequeno espaço com Angicos e Ipês. O restante da região era seco,
doentio. Tinha morte. O retrato do sertão criava espasmos na sua
cabeça.

217
O manifesto do fim do mundo

Vez ou outra escondia como podia a nuca erguendo o queixo.


Ficaria com torcicolo se fosse preciso, mas não deixaria ninguém ver
aquela mancha. Pensou num plano alternativo até a ideia absurda de
arrancar com a faca a pele maculada. Parecia que o destino aceitava
com um amém a tudo que fiel Jerônimo falava, primeiro Giovani e
agora ela. Era uma boca do diabo. Por que revirar novamente essa propo-
sição?
Marilene entrou tão rápido que não se deu conta de mais de-
talhes na mesa. Só visualizou quando espiou pelas costas. O balcão de
granito, que dividia cozinha e sala, e a mesa logo depois com a feli-
cidade dos dois. Perto do jarro, um terço, a chave de fiel Jerônimo e
uma máscara. Uma de tecido branco, sem estampa. Atirou várias re-
cordações contra Marilene, quando ela precisou praticamente usar um
macacão de apicultor para trabalhar com dona Josefa. Era um cenário
bem mais estressante e catastrófico. Se a idosa tivesse pegado algo, tudo
recairia na empregada, não tinha dúvidas. Era a lei do equilíbrio social.
Os piores dias do Rarizes. Os novos piores dias de um possível Rarizes.
— Dona Josefa, vamos conversar no seu jardim? — Jerônimo
sugeriu. Apontou a cozinha com o olhar. A idosa sacou — Quero que
me mostre suas novas violetas.
Todos sorrindo. Como se uma desgraça não tivesse acontecido há dias, e
uma nova ameaça biológica não estivesse rondando.
Marilene fez bico. Respirou pesado.
— Vamos, eu quero mostrar umas outras flores que um dos
meus filhos trouxe de Teresina. Claro que nenhuma chega perto das
violetas coloridas. Ele fica chocado como só nós temos dessa beleza! —
dona Josefa se levantou, bem mais ágil e sem caminhar arrastado.
— Não se esforce muito, dona Josefa, quer ajuda, glória! — fiel
Jerônimo botou as mãos na corcunda acentuada da idosa.

218
O manifesto do fim do mundo

— Estou bem, fiel Jerônimo, estou bem! — ela não deixou que
ele a ajudasse.
E saíram deixando o silêncio. Marilene enxugou os pratos
com descaso. Tinha acabado de ter uma ideia. De segundo e segundo,
olhava para trás investigativa. Para lhe dar cobertura, deixou a torneira
ligada e alguns utensílios espalhados. Foi na ponta dos pés até o quar-
to de dona Josefa, procurando exatamente a melhor localização para
escutar a conversinha maliciosa entre o religioso e a patroa. Esperta
como sempre, Marilene também tinha calculado o móvel mais sujo do
quarto, para no caso de ser pega em flagrante. Iria dizer que estava na
hora de dar uma geral naquele ninho de cobra.
— ... Então, tome cuidado, dona Josefa. Se isso for uma segun-
da volta do Rarizes, é um sinal dos tempos para que nós nos arrepen-
damos de nossos pecados. O homossexual pederasta que morreu foi
o primeiro, não aceitou a Palavra e Satanás o pegou. Essa sua empre-
gadinha está indo na mesma onda. Fique de olho e de vez em quando
mande ela ir para a igreja! Toda nossa comunidade está nisso! Imagine
o estrago de um escândalo desses para Russinha Amada? São questões
bem maiores! O prefeito imprestável sequer tem poder para lidar com
elas.
Silêncio de dona Josefa. Marilene pressionou mais a cartila-
gem da orelha na parede.
— Eu sei, seu Jerônimo. Meu filho é quem paga ela, não posso
demitir porque não tem ninguém. Ela é a única que aceita o valor que
podemos pagar. Mas eu vou começar a dar uns sermões. Essa mulher
não tem noção nenhuma, vive se amostrando pros homens daquele
bar, daquele velho enxerido, Osvaldo. Coisa nojenta. O filho vai seguir
o mesmo caminho da perdição, pode até virar bandido. A professora
do menino comentou uma vez na igreja que ele é um dos piores da

219
O manifesto do fim do mundo

classe.
Marilene bufou. Falarem dela tudo bem, mas agora quando
chegava em Augusto dilacerava seu coração. Seus olhos tremeram, os
dentes também. Se segurou para não gritar quando sua cabeça pesou
com todas as aspas que aquela conversa evocava.
— Pois é, dona Josefa. Aqueles que não se arrependem vão di-
reto para o fogo do inferno. Mulheres têm um barquinho, mas querem
um Titanic! Ela se entregou à essa vida, e eu a compreendo. Eu já estive
lá, no fundo do poço. Meus pais foram péssimos. É uma pena a criança
também ir pro mesmo rumo.
— Cá entre nós, seu Jerônimo, mas quem gosta de passar a
mão na cabeça desse povo é dona Josefina, com essa coisa dela de ser
boazinha, de levar flores. Sei não... O senhor devia conversar com ela.
Nunca vi com bons olhos ela ter aceitado aquele homossexual na flo-
ricultura. Fica se achando a rainha da cocada preta! E, sei lá... Essas
florezinhas dela são bonitas, mas, às vezes, o demônio age com beleza
e nós nem percebemos...
— Olhe, dona Josefa, você tem razão... Faz tempo que eu que-
ria conversar com a senhora! Confio muito na senhora! E, sabe, sempre
achei muito esquisito a mudança de atitude de dona Josefina. Ela fica
tentando ser o próprio Deus Poderoso com aquela pose de bondade,
querendo passar por cima de tudo e todos com sua arrogância. Aquele
sorriso nunca me enganou! Um dia desses, eu não me lembro muito
bem porque eu acho que estava sonolento, mas ela ficou entre mim e
sua empregada.
— Rum. Deve ter endoidado, isso sim. Desde que o marido
ficou doente, parece que a cachola dela não bate muito bem. É o di-
nheiro, seu Jerônimo. Ele transforma as pessoas! Lembre-se daquela
palavra sagrada!

220
O manifesto do fim do mundo

Marilene continuou ouriçada. Surpreendentes conversas si-


lenciosas das quais nem os vizinhos influentes escapavam. Dona Josefi-
na...
— O marido doente, né, dona Josefa... — ficou um silêncio
pensativo de fiel Jerônimo. O quarto começou a esquentar. Marilene
puxou a blusa, ventilando-se. Até pensou como a velha poderia ficar o
dia todo naquele cômodo quente e cheirando a colônia.
— Ele fica doente direto. Tem coisa errada aí. De repente, seu
Jerônimo... — Marilene escutou as passadas de dona Josefa, a idosa até
mudou o tom da voz, como se fosse contar uma informação preciosa
— Essas doenças de seu Antônio sejam porque eles estejam fazendo
algo que o Poderoso não gosta. Entende? Nem só por ir à igreja quer
dizer que esteja salvo! O senhor mesmo disse! E eu continuo descon-
fiando dessas flores... Aceito pra não fazer desfeita...
— Verdade, dona Josefa... E essas flores...
— Espera só um pouquinho aqui, seu Jerônimo.
As passadas de dona Josefa ficaram apressadas. Marilene deu
um pulo, no automático, e correu para pegar a vassoura particular da
patroa, começou vassourando o quarto, mesmo que não estivesse tão
sujo assim. Felizmente, ela fingia bem.
— O que é que você está fazendo aí, Marilene? — dona Josefa,
para alguém que tinha muitos problemas nas pernas, surgiu rápido
demais na porta do quarto. Parecia até que já sabia o esquema da em-
pregada. Botou as mãos na cintura e fechou a cara.
— Oi, dona Josefa. — Marilene mostrou um sorriso pontual
— Estou aqui varrendo, faz dias que não limpo seu quarto e...
— Sai! Eu limpo. Se eu ficar sem fazer nada, vou enlouquecer!
— dona Josefa pediu o cabo de madeira — E você está usando a minha
vassoura? — questionou, ofendida.

221
O manifesto do fim do mundo

— Mas seu filho recomendou que a senhora não deveria f...


— Ele não sabe de nada! Vai para a cozinha! Anda! Vai fa-
zer um café para mim e para seu Jerônimo! — dona Josefa apressou,
aborrecida. Marilene aquiesceu e entregou o cabo. A idosa pegou num
ponto onde provavelmente as mãos da emprega não tocaram.
E ambas se cruzaram. Marilene saiu se colando na porta para
não “se aproximar” da patroa. Foi tentando como podia deixar que a
nuca ficasse fora do campo de visão de qualquer um. Ainda conseguiu
sentir a colônia adocicada da idosa, um cheiro cheio de violência e en-
joos. Dona Josefa semicerrou os olhos, balançou a cabeça igual quando
faz para seus netos inquietos.
O restante da tarde passou como uma boa estadia de verão.
Sem muitos desenrolares populares. Até porque as sinuosas marcas
verde-esmeralda passeavam pela nuca, quietas. Marilene sequer repa-
rou na extensão alegre de cores.
Como metade de todos os eventos em Russinha Amada, apo-
calipses nunca eram percebidos logo no começo, mas somente perto
do fim.
E quando tinham o fim do mundo nada mais adiantava.
Quando se tratava deles.

222
O manifesto do fim do mundo

Parte 4 –
O fim do
mundo.

223
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 30 –
Jerônimo.

O manifesto reescreve parte do passado, alguns anos antes


dos acontecimentos simbióticos. Eles tão perto de você.
Havia aqueles que olhavam para fiel Jerônimo e pensavam que
a sua vida tinha sido desde sempre um manifesto religioso e correto.
Aquele homem tinha nascido para uma missão espiritual, para salvar o
mundo. Tirar almas da aproximação do fogo do inferno, já que os tem-
pos sombrios rodeavam o planeta e testavam o povo de fé, os escolhi-
dos. Mas os anos anteriores até chegar ao protagonismo em Russinha
Amada não foram tão especiais e etéreos assim. Pertenciam ao livro
de crônicas do sertão adentro, lá onde aquele garotinho encontrou o
primeiro contato com o divino. Como um risco entre dimensões.
Jerônimo tinha dois anos. Família pobre, morava no interior
do Maranhão, perto de balneário próximo de Timon. Encostar em Te-
resina e na cidade ao lado era impossível, aquela família tinha raízes
muito duras, ficariam ali para sempre aceitando o destino que lhes foi

224
O manifesto do fim do mundo

dado. A mãe, Luzinete, e o pai, Sebastião, sabiam bem para onde ir, o
que fazer. Era uma família prática e sem tantas virgulas. Tinham uma
casinha simples e comum. Tinham amizades comuns. Nada saía da
rota. Dentro daquele interior, havia regras, só o habitual era aceitável.
Uma mãe dona de casa e um pai que trabalhava na roça perto de um
cemitério. Até então, nada espetacular.
Jerônimo era um menininho afoito e curioso. Tinha a mes-
ma energia de Augusto, era um denominador comum para as crianças
especiais, que sempre se acharam comuns. Estudava numa escolinha
simples, brincava de tudo. Nem sabia o que era Bíblia ou qualquer
outro livro religioso. Sua vida com ícones religiosos era meramente su-
perficial, rezava porque era lei, fazia o sinal da cruz porque era ordem,
mas nada substancial. Ele gostava mesmo era de brincar.
Essa costura começa em meados de abril e março. Na época
em torno da Páscoa. Um dos maiores divertimentos da data era cons-
truir um Judas de boneco, costume que moldou raízes daquele povo
interiorano. A comunidade se reunia para compor uma figura de ta-
manho humano, com roupas usadas, feno, algodão, tudo o que podia
preencher o boneco para depois açoitá-lo. Porque Judas era mal e me-
recia o castigo. Parecia um evento catártico. O mais aguardado pelas
crianças.
Naquele ano não foi diferente. Jerônimo agora tinha sete anos.
Era mais esperto. A barriga grande pro corpinho magro e de braços
longilíneos, boatos que era só de verme. A cabeça grande e o sorriso
faceiro de dentes afiados. Não era um menino bonito, tinham entrado
num consenso. Pelo menos era esperto.
Depois que a comunidade tinha reunido as roupas do futuro
Judas de pelúcia, as crianças tinham uma missão, darem o melhor de
si para deixar o boneco o mais parecido ainda com a figura histórica.

225
O manifesto do fim do mundo

Colocaram camisas divertidas, escolheram uma calça, dentre tantas


roupas. Peças para um arsenal considerável de Judas pelos próximos
anos. Tudo para fazer do espetáculo o mais expressivo possível.
No meio daquela situação, Jerônimo tinha uma ideia. Em casa
as coisas estavam difíceis. O dono da fazenda onde seu Sebastião tra-
balhava não estava pagando corretamente. Humilhava-o sempre, e o
fazia trabalhar com uma rotina desumana, sem nenhum ganho sufi-
ciente e ponderável. Dona Luzinete, coitada, só sabia cuidar de casa,
mas tinha medo de oferecer aquele serviço porque sabia bem da fofoca
entre as vizinhas. Todas cuidavam da sua própria casa e não precisa-
vam de serviçais. E aquela função não era muito bem vista. A comu-
nidade, sempre muito pobre, mas soberba, deixou dona Luzinete de
mãos atadas. Restava racionar tudo dentro de casa.
Vendo aquela montanha de roupas arrecadadas, Jerônimo cal-
culou com sua inteligência de espaço e tamanho o que poderia servir
tanto para ele quanto para os pais. Observou os meninos brincando
escolhendo e foi puxando como quem não queria nada as roupas cer-
tas. Fingia sorriso, entrava na conversa, mas sua cabeça estava nas três
peças perto de si.
O Judas já tinha roupa suficiente; a sua família, não.
Quando levasse uma surra de toda a comunidade, aquelas pe-
ças ficariam inutilizáveis. Era um desperdício em prol de uma come-
moração. Um absurdo! Pensando com essa linha de raciocínio, fazia
sentido Jerônimo não mirar somente nas três peças consigo, mas em
todo o arsenal. Até que ele montou um plano na surdina. As crianças
nos seus melhores anos fantasiosos criavam peripécias e mundos, po-
diam salvar uma humanidade inteira.
Dois vizinhos armaram o boneco Judas de calça jeans e cami-
seta polo num dos postes da estradinha de terra. Logo perto da pista

226
O manifesto do fim do mundo

asfaltada. As casinhas com distâncias consideráveis, tudo muito calmo


e bucólico. Amarram-no com violência, podia ser que ele se soltasse,
fugisse para Teresina atrás de redenção. Ninguém permitiria aquilo. A
sua surra era sagrada! A malhação de Judas no Sábado de Aleluia!
Sem nem ao menos pensar no contexto do evento, Jerônimo
só tinha em mente que a atenção de todos deveria continuar no bone-
co, para que esquecessem a moita de roupas no chão da sua casa onde
as crianças se reuniram pra montar. Enquanto Judas teria sua pena,
Jerônimo salvaria sua família pelo menos do constrangimento de não
terem o que vestir. Até o momento em que pensaria em algo, no caso
de faltar comida. Cada problema seria solucionado por etapa, sempre
havia uma solução para tudo no mundo. Até para as piores histórias.
Essa foi a resiliência aprendida, que mais tarde fez sentido no seu cos-
mo intelectual.
Quando chegou a noite e todos foram embora cansados, cada
um no seu lugar incluindo o Judas no poste, Jerônimo desconversou
tímido sobre onde ficaria o restante das roupas, que deveriam ficar na
sua casa, afinal, já estavam ali mesmo. Mas algumas crianças disseram
que as doações eram propriedade de dona Ritinha, a costureira oficial
de Judas. Os pequeninos entraram num consenso com só um contra-
riado. Mesmo com a dificuldade, Jerônimo daria um jeito.
Dona Luzinete sempre alertava o filho sobre os bons costumes,
sobre seguir as leis da Bíblia Sagrada, de não roubar, de não matar, por-
que o Senhor dos Tempos do Antigo Testamento poderia punir aquele
que o fizesse. Mas Jerônimo nunca absorveu aquilo bem, parecia um
papo adulto demais para sua cabecinha de pique esconde e pega-pega.
Tudo não passava de um status quo inquestionável, com dogmas e re-
gras que num primeiro momento não faziam sentido.
Até que chegou a noite de ação. Quando aquelas palavras res-

227
O manifesto do fim do mundo

surgiram. Querendo ficar entre ele e a sobrevivência. Jerônimo fingia


que não, mas tinha um nome para o que iria fazer. Roubo. Um dos
atos que fazia papai do céu castigar, coisa de bandido, de gente ruim.
Entretanto, o garoto não pensou muito graças à adrenalina da missão.
Saiu de casa assim que a comunidade adormeceu. Somente as
luzes dos postes e os uivos da noite pairando. Vez ou outra, uma corti-
na de poeira quente e, às vezes, gélida. O tempo não tinha se decidido
ainda. E ele seguiu descalço, dentro da escuridão.
A casa de dona Ritinha ficava no fim da estrada, depois do ce-
mitério e do trabalho do pai. A pior parte não seria o roubo, mas atra-
vessar aquela área aterrorizante. Ainda mais quando se tinha sete anos
e uma cabeça fértil. De imediato, começou a relembrar as histórias de
terror que os amigos contavam sobre o cemitério, onde afirmavam já
terem visto de tudo, até alienígenas e bichos com a estatura humanoide.
Crianças sempre aumentavam, mas suas histórias eram tão sólidas até
que se provasse o contrário.
Porém, Jerônimo atravessou o cemitério tão mortalmente si-
lencioso. Com todas as cruzes de ferro mal colocadas e muita sujeira
dos pés de mangas da arena. O muro era de arame farpado e a entrada
iluminada por um poste, o suficiente para seguir caminho. No fundo
do cercado, um breu engolia os túmulos. O único lugar onde o garoto
não fixou a visão. Engoliu o medo e correu, com a poeira levantando.
Só tinha que ter cuidado com os carrapichos traiçoeiros.
Chegando na casa de dona Ritinha, depois da corrida, Jerôni-
mo respirou fundo. A casinha simples e sem reboco vivia iluminada.
A vizinha odiava dormir no escuro, tinha medo de ser morta por es-
píritos zombeteiros. Era muito supersticiosa, agarrada à religião como
nunca. Incomodava-se com aqueles que não iam sempre à igreja, e por
vezes com a família de Jerônimo. Os pais do garoto não tinham roupa

228
O manifesto do fim do mundo

decente para ir à missa, mas o motivo nunca tinha ido às claras. Toda
a comunidade sabia como era especial o encontro espiritual e, por isso,
julgavam as ausências. Claro que o garoto logo antipatizou com ela,
com razão. Aquela velha coroca julgando sua família, quem ela pensa-
va que era?
Jerônimo viu a janelinha aberta; por sorte, era a da salinha
onde ficava a máquina de costura e consequentemente as roupas. Num
pulo, ele já estava dentro. Antes de estabilizar a respiração, precisou
agir, para não ter nenhum relâmpago de sanidade. Foi arremessando
as peças pela janela com todo o cuidado do mundo, sempre fitando
a porta ou se dona Ritinha apareceria. Quando conseguiu reunir na
terra afora todo o estoque, deu-se por aliviado. Missão cumprida.
Mas o cheiro prendeu o garoto. Vindo da cozinha, mexendo
com sua cabeça e com seu estômago. Era doce, podia resolver todos os
problemas do mundo. Um pecado seria se resistisse.
Jerônimo viu que o terreno estava limpo e, aparentemente,
dona Ritinha tinha o sono pesado. Foi explorando mais o território,
abriu a porta de fininho e passou pelo corredor até chegar ao xis da
questão. A mesa de plástico com alguns bolos guardados por abafado-
res. Tinha de todo tipo, até bordados. Pareciam obras-primas. O con-
teúdo, no entanto, era bem melhor.
Jerônimo puxou o abafador e sentiu a barriga conversar com
ele. Seus olhinhos ilustraram o seu impasse. Naquela noite, tinha co-
mido feijão com farinha. As refeições, cada vez menores, alternavam-
-se entre arroz e feijão. Aquele bolo tão delicioso parecia uma obra dos
deuses, e tinha dois deles. Dona Ritinha era só uma... Uma vez, Deus
disse para partilhar o pão. Ele se lembrou dessa parábola.
Jerônimo não demorou pensando. Dona Ritinha sempre fazia
bolos, tinha uma boa condição apesar de tudo. Não iria fazer mal a

229
O manifesto do fim do mundo

ninguém se ele levasse três fatias para ele e para os pais. Poderia ser o
suficiente para um ânimo superficial na vida sofrida da família. Comer
trazia sorrisos e aquilo nunca mais foi frequente em sua casa. Só aquela
frieza, entre a fome e o desespero.
Não perdeu tempo. Pegou a faca do lado e fatiou o bolo. Cap-
turou um saco da cozinha e jogou os três pedaços dentro, amarrou a
boca garantindo a higiene do alimento.
Quando sorriu satisfeito, um puxão esquisito o fez olhar para
trás, bem na hora que um carro estranho passou. Iluminou toda a co-
zinha, porque a casa era perto da pista de areia, e o fez ter aquele en-
contro, entre Jerônimo e a figura de um santo na parede. Uma divin-
dade com um olhar triste, julgando-o por fazer aquilo, porque se ele
era pobre deveria continuar pobre, mas não podia roubar. Aquilo era
errado. E as sanções foram direto na sua cabecinha frágil. Jerônimo
não podia pensar muito, eram decisões súbitas. Ele já tinha sua opi-
nião formada. Ninguém iria mudá-lo com sua barriga lembrando-o de
quem era.
Num descuido, acabou acertando com o mindinho a mesa.
O ruído do móvel riscou o chão e alarmou toda a casinha. Com socos
leves no ar, levantando a poeira silenciosa. Do quarto, dona Ritinha
gritou. A idosa podia ter lá suas limitações, mas foi rápida em pegar
uma faca, o terço e correr com uma lanterna para a cozinha. Porém,
Jerônimo era mais danado. Os dois tiveram um encontrão. Aos berros,
o garoto só pegou algumas peças e deixou o restante, segurando ainda
firme o bolo. Dona Ritinha era boa de cabeça, gravou bem a silhue-
ta. Mesmo gritando, sua cachola trabalhou e entregou uma primeira
suspeita. Mas uma hora daquelas Jerônimo estava longe, com o seu
trunfo.
O menino passou tão ligeiro pelo cemitério sombrio, só olhou

230
O manifesto do fim do mundo

de relance para as cruzes, vendo uma superfície esférica dentre os ca-


minhos dos túmulos. Detalhes que se destacavam na palidez daquele
ecossistema que lhe pediu para parar, senão confirmar alguma teoria
inventiva. Mas Jerônimo tinha o seu time de um só. Não era bem uma
boa ideia verificar se o objeto era um coco seco ou alguma bola dos
meninos. Não era hora de estripulias. O detalhe no cemitério ficou
para trás, também não fez caso de ser subestimado. Tudo bem.
Em casa, no outro dia, ele contou uma boa história. Sobre ter
recebido como agrado o bolo e que nessa brincadeira bondosa ganhou
também as peças de roupas. Num primeiro momento, os pais do ga-
roto desconfiaram, mas a fome e o desespero contaram outra histó-
ria. Dona Luzinete olhou orgulhosa para o filho, porque se ele tinha
ganhado algo era por ter sido um bom menino. E bons meninos vão
para o céu. Bons meninos nunca mentem ou roubam. Nunca! Jerônimo
estremeceu. Escondeu a culpa e a lembrança daquela noite, do rosto
santificado contra ele.
Assim os dias pascoais correram. As celebrações a todo va-
por, Judas foi malhado e dona Luzinete e seu Sebastião tiveram alguns
momentos felizes. Com a roupa “nova” que tinham ganhado, até po-
deriam ir à missa com mais frequência. Não havia o porquê de alguma
derrocada. Pena que o círculo de mentiras para uma comunidade era
sempre pequeno.
Dona Ritinha tinha a cabeça boa. Memorizou todas as peças
que a comunidade entregou para o Judas. Sabia de cor, era uma velhi-
nha esperta. Ninguém lhe passava a perna. Por isso, confiavam na sua
independência naquele fim de mundo.
Quando bateu o olho e viu seu Sebastião e dona Luzinete
com as peças roubadas, suas suspeitas se confirmaram. Ela já tinha na
cabeça que quem invadiu sua casa foi Jerônimo. Aquilo era um prato

231
O manifesto do fim do mundo

cheio, a família “descompromissada” da comunidade. Não contribuíam


com dinheiro para a comunidade religiosa, não socializavam tanto
com frequência com os vizinhos, sequer doaram roupas para o movi-
mento “malhando Judas”. Tinham ficado muito reclusos, atitude vista
como esnobe. Dona Ritinha já mencionou que eles não ajudavam muito
pagando a taxa especial da igreja?
Terminou com uma fofoca sem fim. Comunidade pequena... o
resultado não podia ser outro.
A família de seu Sebastião tinha um ladrãozinho com seus
comparsas. Os boatos foram aumentando até chegar em Jerônimo e
seus pais. Com todos os vizinhos olhando torto para eles e aquela fama
ruim que levaria milênios para limpar, o que estava ruim naquele nú-
cleo familiar ficou pior. Dona Luzinete jurou de mãos juntas que ela e
sua família não roubaram alguém, nunca fariam isso, mesmo se pas-
sassem fome perto de morrerem. E seu Sebastião perdeu o emprego,
o fazendeiro não iria trabalhar com gente desonesta. Era o melhor a
se fazer. Aquela família tão desleixada parecia sedenta a fazer de tudo;
roubar e, depois, quem sabe, matar. Um levava ao outro.
Quando todo o epicentro da confusão foi revisitado, a variável
chegou finalmente em Jerônimo. Posto contra a parede, precisou con-
fessar, de olhinhos marejados, para toda a comunidade.
Dona Ritinha amaldiçoou o menino com todos os nomes,
nunca simpatizou mesmo com ele. Recitou que a criança era quase um
filho do capiroto.
Mesmo depois da fria dos vizinhos, Jerônimo apanhou, levou
uma surra de gosto. As marcas cresceram com a vergonha, ardendo em
cada centímetro de pele maculada. Com o passar dos dias, a dor não
foi só na carne. A parede frágil do casamento dos seus pais desmoro-
nou. Um jogando a culpa no outro por aquela criança ser um presente

232
O manifesto do fim do mundo

do diabo, que veio para fazer o mal. Seu Sebastião chegou até a agredir
a mulher numa dessas discussões, e começou a ir para fazendas perto
dos balneários para esfriar a cabeça. Tinha amigos lá, iria lhe fazer
bem. Claro que dona Luzinete ficaria sozinha com o problema, o filho
amaldiçoado. Jerônimo nunca se esqueceu do dito da mãe entre o cho-
ro do desgosto.
— Você é mesmo um presente do desagrado! Não esperou
nem eu morrer pra trazer desgraça.
Quando toda a comunidade esfriou com a aquela pobre famí-
lia, os dias ficaram mais lentos. Jerônimo foi se dando conta da falta
de algo, bem além dos bens materiais, algo que transcendia a fome ou
a escassez. Seu coraçãozinho foi ficando mais apertado, cada vez que
ele via a mãe chorando, trabalhando como uma condenada, sem saber
se era por culpa dele, do pai ou da situação mais precária. Para não
morrerem total de fome, dona Luzinete passeou pelas bandas atrás de
frutas. Foi forçada a adotar um estilo de vida bem diferente e restrito.
Até o primeiro espetáculo do manifesto. Com a chegada da-
quela sexta-feira conturbada.
Jerônimo estava no quintal, contrariado porque nenhum dos
meninos o chamou para brincar, os vizinhos também olhavam com
cara feia para a sua casinha. Evitando-o. Dona Luzinete tentava dar
seu jeito no almoço, iria fazer qualquer coisa, mas não se renderia ao
extremo. Agarrou-se à cumplicidade do Todo Poderoso, sempre oran-
do para que o Santíssimo lhe desse a resposta. Até Jerônimo começou
a considerar uma conversa com esse tal Maior de Todos, do qual todos
eram tão devotos, amavam tanto, e coexistia em cada minúscula par-
tícula de planeta.
Quando parecia que a maré havia abrandado, Jerônimo avis-
tou a tempestade. Os vizinhos fazendo chacota, apontando aos berros

233
O manifesto do fim do mundo

para a figura no fim da rua. Mais desorientada que a sua casa.


Ele viu e não acreditou. Porém, depois daqueles dias, nada era
mesmo impossível. O respeitoso seu Sebastião, homem de honra, cam-
baleando com uma garrafa de cerveja. Tão patético quando se enrolou
na areia depois dos garotos rirem dele, pedindo por uma briga. Ao
conseguir entrar nos limites de casa, apontou para o filho, o menini-
nho assustado que não sabia se contava à mãe ou se ele mesmo resolve-
ria. Mas o bêbado Sebastião lançou a ameaça, de que iria matá-lo, por
todo o mal que tinha feito. Como uma marca amaldiçoada.
Jerônimo sorriu nervoso e começou a levar a sério a perse-
guição. O pai andava em círculos com os olhos baixos, queria agarrar
aquele malfeitor com as mãos brutas. Sem dar outra opção para o ga-
roto a não ser desviar das pedras grandes arremessadas. Se Sebastião
tivesse mais sorte, poderia abrir ali mesmo o crânio do próprio filho.
Para divertir aquela comunidade, formularam uma cena. Je-
rônimo correndo bem mais rápido enquanto Sebastião atrás o perse-
guindo com ataques verbais. Não adiantava para onde fosse, o velho
beberrão iria alcançá-lo. Só tinha um lugar que o pai não entraria, e
o menino foi esperto. Empurrou a porta aberta do cemitério e aden-
trou nos limites amaldiçoados. Ficou ofegante escutando as ameaças
ao longe, o pai quase o alcançando. Ele não entraria no cemitério do qual
tinha tanto receio.
A bebida precisou confundi-lo. Ninguém pararia o ímpeto do
homem.
Sebastião entrou no cemitério e pegou o primeiro objeto que
viu. O detalhe redondo de dias atrás. Jerônimo confirmou que não pas-
sava mesmo de coisa da sua cabeça, quando avistou a peça no dia do
roubo. Não era uma cabeça, mas realmente um coco velho. Apesar de
ali não ter nenhum pé.

234
O manifesto do fim do mundo

Sebastião agarrou o coco com uma mão, a fruta suja de areia


e mais excrementos esquisitos, e encarou o filho, que decidiu não dar
nenhum passo para trás.
Jerônimo se lembrou dos impossíveis celestiais. De repente,
toda aquela conversa fiada da mãe, da igreja, da escola, podia ter lá um
pouco de razão. Ele poderia pedir ajuda para o Santíssimo, mesmo que
fosse condenado pelo seu pecado. Jerônimo encarou os olhos mortos
do pai e pediu a qualquer intelecto sobrenatural que estivesse por ali, o
último movimento. Até o impossível acontecer.
Quando seu Sebastião pisou num espinho e deixou o coco cair
bem na sua frente, as vírgulas do manifesto foram escritas no exato
choque dimensional esquisito. Com a visão deturpada o suficiente
para descrever o coco como uma cabeça humana. O bêbado ficou tão
horripilado que o efeito da cachaça não anestesiou a dor e o medo. O
tempo congelou bem nos olhos da criança. Tão retardado aos melho-
res moldes impossíveis porque tinham atendido ao pedido. Foi paran-
do até qualquer partícula no ar parar também.
O que veio atrás criou desconfiança se aquele mundo realmen-
te era o racional ou o imaginado. Perto de um dos túmulos de alguns
vizinhos que morreram de câncer, uma figura humanoide apareceu
com uma roupa familiar e um rosto pintado do que seria o retrato
perfeito da divindade de todos os tempos. Transbordando seu olhar
misericordioso, porque nenhuma criança do seu reino poderia sofrer
à deriva, perto de alguns finais do mundo.
Até ele estalar os dedos e tudo explodir em luz, dentro da visão
de Jerônimo, tão confortável com o novo amigo e salvador, pedindo
para levá-lo ao infinito dentre os cosmos. Onde tudo acontecia e a hu-
manidade nunca deveria alcançar. Alcançando a perfeita sinfonia em
êxtase.

235
O manifesto do fim do mundo

...
Naquela tarde, depois de uma visita à dona Josefa com seu
manifesto de máscara, fiel Jerônimo acordou de uma soneca da tarde
se perguntando sobre realidades paralelas. Quando visitou o mesmo
cenário de anos atrás e visualizou a figura humanoide com identida-
de. Ele tinha lhe dito algo, mas Jerônimo não lembrava. Sua cabeça
começou a rodar mais ainda, o aroma instigante das violetas coloridas
também contribuiu com enjoos.
Até dona Celeste surgir, do lado da cama, observando-o com
seus olhos estáticos. Sempre era esquisito fitar os olhos de coruja da
esposa, ainda mais quando não conseguia decifrá-los corretamente.
— O que foi, mulher? — ele perguntou, passou a mão no peito
suado. Os lençóis tinham um cheiro de pele masculina, um odor forte.
Os olhos de dona Celeste romperam fronteiras.
— Meu amor... — ela começou sugestiva.
— Sim? — a voz ríspida masculina disse.
— Você não acha que deveríamos desfrutar do presente do
Todo Poderoso como uma forma de agradecer por estarmos sobrevi-
vendo aos novos tempos? — ela avançou, viu na brecha a oportunida-
de. As duas mãos embaixo da cabeça, encolhida como uma garotinha
indefesa. As bochechas bem expostas. Estava só de camisola, com os
peitos fartos contra o tecido.
Jerônimo olhou estranho para a esposa.
— Você está louca? Hoje não é dia! — disse, virando-se — E,
depois, vá orar para não atravessar a linha perigosa do pecado. Não
vamos querer algo que não merecemos...
Dona Celeste murchou, restou somente compreender.
— Desculpa, meu amor. — disse — Eu só quero estar mais em
conexão com você, e saber como é poderoso o que você guarda dentro

236
O manifesto do fim do mundo

de si.
Jerônimo clareou a velha lembrança, sobre os mesmos anos
sombrios atrás. Se enrolou no lençol preferindo a solidão, para que não
tivesse nenhum limite desafiado.
— É tempo de vigiar, Celeste.
Você mesmo deveria saber disso...

237
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 31 –
Noite.

T odo o hemisfério do casarão de dona Josefina sonhou com


dias melhores de verão. Precisavam contar histórias sobre tempos que
aconteceram e não voltam mais. A poeira era melancólica e infinita.
Os sons nostálgicos também. Até que aquela redoma encontrou sua
primeira vibração juvenil dentre os assopros mórbidos. Anotações in-
teressantes para um manifesto.
Igor finalmente avivou com o encontro noturno. Estava an-
sioso, como nos tempos de infância. Esperando o relógio andar mais
rápido com os ponteiros para que Rafael o chamasse logo para brincar.
Os pais podiam passar o resto da tarde trancados no quarto, murmu-
rando sobre assuntos particulares. O restante do dia continuaria morto
mesmo. Aquela família tinha sérios flertes com sensações fúnebres.
A adrenalina da infância voltou com uma ramificação parti-
cular, a qual Igor estava tentando desconversar para si. Criando voltas.
Ele esperou a mensagem de Rafael, depois de ter visualizado as outras

238
O manifesto do fim do mundo

mensagens e o perfil do amigo milhares vezes. Como se a cada atua-


lização algo pudesse mudar, mas não acontecia. Então, a notificação
mais esperada chegou.
“Me encontra no lago! Eu vou te explicar tudo direito.”
Igor deu uma espiada no quarto, saiu de fininho e também
procurou na cozinha para ver se não achava uma inconveniente Ro-
berta tentando xeretar sua vida. Felizmente, a casa estava como nos
moldes certos. Cheia de segredos velados e nenhum espetáculo. Por
isso, saiu com um friozinho na barriga de nome indefinido.
Do outro lado de Russinha Amada, a excitação construiu o
tempo camuflada com o cheiro doce das violetas coloridas.
Mas Marilene não estava atenta a nada, os sentidos todos dis-
persos com a cervejinha para digerir o que tinha sido aquele dia. En-
goliu tanto que sua raiva começou agora a se transformar em explosões
sensíveis pelo corpo. Vez ou outra o olho tremia, e ela bebia um gole
espumado. Tinha passado no bar de seu Osvaldo e acabou usando par-
te do dinheiro bem contado do mês. Não era hora de fazer caso.
Com a mãe silenciosa e reflexiva, Augusto viu a oportunidade
de continuar sua jornada de explorador. O celular dando sopa e ele não
perderia tempo. Perguntou se podia brincar lá fora, o rostinho franzi-
do com o suposto “não”. Mas Marilene aquiesceu, estranhamente acei-
tou. Ela sequer virou para o menino, só contemplava o céu estrelado da
janela com os pés para cima. Totalmente desligada de tudo, digerindo
palavras cruéis dentro de um círculo infernal e infinito. Augusto deu
um sorriso e saiu, ouvindo as instruções para o tal Paulo. Hora de criar
suas próprias aventuras.
Longe dali, Igor caminhava pela rua deserta próximo da lan-
chonete da Deise. Enquanto o mundo estava sintonizado na novela, ele
agradeceu pela cidade pequena ter um horário coletivo para se tran-

239
O manifesto do fim do mundo

car em mundinhos particulares. Atravessou a BR e seguiu pela pista


escura, com a luz do celular guiando. Dois sapos coaxaram quando
ele invadiu seu território, pularam desordenados rumo ao matagal e
sumiram no breu verde-escuro. Calangos da noite serpentearam pe-
los caules tortos de catingueira, acordaram uma família de formigas
coloridas transitando com a pouca luz natural. Suas características co-
loridas lembravam as peripécias das violetas especiais, nunca seriam
vistos por um olho humano naquelas condições.
— Buh! — Rafael surgiu dentro do mato, perto da entrada
para a lagoa. Estava usando um macacão esquisito que parecia plástico
e uma blusa. O cabelo brincava ao vento, vez ou outra tocando sua
testa. O sorriso formava covinhas deliciosas.
— Você... — Igor ficou sem jeito pelo susto e pela animação do
amigo — Você não iria me esperar lá na lagoa? Você parece um maluco
se escondendo no mato. Essa reunião no meio do nada... Deveria ser
na sua casa. Aqui é perigoso.
— Não vai ser lá em casa porque minha avó... Bom, minha
avó não está muito sociável. — Rafael soltou ríspido, o assunto sempre
parecia incomodá-lo.
Os dois seguiram rumo ao lago, tirando do caminho, vez ou
outra, algum galho seco. A forma de um facheiro lembrou um corpo
acenando dentro da escuridão, com seus braços levantados. Era o úni-
co e, por isso, se destacou. Igor evitou olhar para o cacto.
— E como dona Raimundinha está? Não é possível que al-
guém possa ficar tanto tempo dentro de casa e...
— Ela está bem, não se preocupe. Sempre esteve bem, desde
a pandemia do Rarizes. Relaxa. — Rafael finalizou com um sorriso
forçado.
Ele ia na frente e Igor atrás, mais receoso. Era desconfortável

240
O manifesto do fim do mundo

saber que o amigo desbravava o território sem medo, mesmo tendo


chegado há poucos dias. E ele ainda tão inquieto sobre as extensões de
Russinha Amada.
Quando chegaram, Rafael se sentou perto de Igor, olhou fun-
do nos seus olhos e disse:
— Aqui vamos nós.
E, depois, explicou sobre a “nova vida”, seu contexto paulista,
a formação em Ciências da Natureza, o convite para integrar uma em-
presa especializada em eventos problemáticos como a pandemia do
Rarizes. Não disse o nome, mas o restante das informações fez Igor até
se esquecer desse detalhe. Contou sobre a missão de entender a pande-
mia e alguns eventos “esquisitos” que surgiram, como novas doenças,
natureza modificada. O planeta perto de um estopim. A questão maior
era o jardim de violetas de dona Josefina, não bastava estudar somente
uma flor, o local concentrava algum espécime distinto. Alguma ener-
gia na diagonal.
Algo que poderia estar relacionado até com a morte de Giova-
ni e sua mancha. Igor notou a forma complexa como o amigo tinha co-
letado as informações. Parecia bem mais do que um simples “cientista”.
O primeiro alerta. Iria escutar mais e falar menos.
— Você sabe onde enterraram seu amigo? — Rafael pergun-
tou.
— A mãe quem ficou responsável por isso e... — Igor coçou a
cabeça — ela não falou mais nada. Provavelmente, fiel Jerônimo não
quer nenhuma celebração em memória de Giovani. Um escroto pre-
conceituoso! Sequer querem que ele tenha uma missa de sétimo dia!
Eu sei que o corpo deve estar em algum cemitério de Piripiri.
Rafael arqueou as sobrancelhas.
— Que pena que o povo daqui seja assim. Sua mãe deve ter te

241
O manifesto do fim do mundo

enlouquecido para que não saísse de casa mais, ela sempre foi muito
paranoica com você. — saiu com uma entonação distinta. Por que Ra-
fael parecia tão racional e investigativo até nos seus momentos descon-
traídos?
Igor emitiu um barulhinho de deboche.
— Ela está diferente. Está esquisita desde que essas flores che-
garam. Parece que vive num mundo colorido e feliz. Não sei se fico
feliz ou triste, mas em comparação meu pai es... — espere... Calma, Igor,
calma. Rafael logo reparou.
— Tudo bem se não confia em mim ainda. Você deve ter umas
mil perguntas para me fazer.
— Quem foi sua primeira namorada? — Igor soltou no ápice
nervoso.
Rafael arqueou as sobrancelhas.
— Não tive namorada.
Ele semicerrou os olhos, logo a resposta completa:
— Porque sou gay.
E o choque dentro dos dois corpos por pouco não escapou.
— Le... Legal. — Igor disse sem saber como continuar.
Rafael riu.
— Está chocado? Vai me mandar rezar uma oração para que
esse mal saia? Bom, às vezes, gostar de homem é uma maldição mes-
mo! — soltou de forma humorada — É engraçado Russinha Amada ter
congelado no tempo. Levou até você junto. Morar aqui não te fez bem.
Eu acho que era capaz de você ter um colapso quando chegasse em São
Paulo e...
— Nossa, Rafael. Primeiro, mil desculpas por aquele dia... —
Igor balançou a cabeça — Segundo, você acha mesmo que qualquer
interiorano é cabeça fechada? Por que você não se questiona sobre o

242
O manifesto do fim do mundo

fato de eu não estar chocado com essa sua história de pesquisa maluca
e estranheza? Não é novidade para mim. Eu sei o que anda acontecen-
do no mundo. Eu estou ligado em tudo! Só não esperava que o jardim
da minha mãe tivesse algo com isso.
— Você não está chocado porque eu sei que aí dentro... — Ra-
fael deu uma cutucada no peito magro do amigo — mora um espírito
de investigador pronto para tudo. Destemido. Pode até desvendar so-
ciedades secretas alienígenas.
Igor revirou os olhos e riu com a interpretação boba.
— Você é muito idiota.
— E nós estamos perdendo tempo com conversa fiada. — Ra-
fael disse no embalo sorridente — E aí? Topa me ajudar? Eu não quero
sondar as flores do seu jardim sozinho, muito menos ficar pesquisando
sobre a região sem o meu “grande amigo investigador”. Podemos des-
cobrir algo grandioso nesse terreno. Quem sabe alguma espécie alieníge-
na?
Igor balançou a cabeça. Notou o olhar obcecado de Rafael.
Não era diferente do de antes, só que agora ele percebeu o detalhe.
— Eu não acredito que estou concordando com isso. — res-
pondeu, incerto — O que eu quero saber é por que o jardim da minha
mãe está envolvido!
— Você iria ficar chocado com os mistérios que existem pelo
mundo, escondidos nos lugares mais inusitados. — Rafael se levantou
e deu a mão para Igor — Depois eu te explico direito sobre o melhor
trabalho do mundo: o meu.
— E você entrou nisso após se formar? Que rápido... Nem pa-
rece que estamos enfrentando uma crise econômica. — Igor questio-
nou limpando os fundos do calção cheio de areia.
— Não duvide de mim, há, há... — Rafael disse sorrindo — Eu

243
O manifesto do fim do mundo

sou um bom profissional e curioso.


— Parece mentira, Rafael! Quem diabos contrataria alguém
do interior fim do mundo do Piauí para participar de uma empresa
“global” que estuda tretas mundiais? — Igor soltou debochado.
— Você tá muito saliente! — Rafael cutucou o amigo nas costas
e o fez se contorcer com cócegas. Raízes amareladas brotavam do chão
e se enroscavam com suas semelhantes, dois passarinhos cortaram a
noite, pareciam perdidos. O horizonte nada tinha para esconder —
Precisamos descobrir o corpo de Giovani porque eu tenho que obser-
var essa mancha. Vamos começar por ele.
Igor suspirou um som de dúvida, mas era tarde demais. Acei-
tou a aventura porque pela primeira vez desde criança não sentia aque-
la euforia. E parte porque ele queria explorar cada vez mais o universo
do outro amigo, onde até tudo iria chegar e como tudo parecia confuso
e esquisito. A investigação não era somente com “jardins” ou “man-
chas”. Compreendia um universo bem maior, um do qual Rafael des-
conhecia, com seus segredos na tangente.
Enquanto a dupla saiu noite adentro, mais aventureiros se ar-
riscavam. Augusto serpenteava pelas ruazinhas de Russinha Amada.
Tinha mandado mensagem para Milton e Bola, depois que os três se
desculparam rápido como de praxe com amizades infantis. O trio sur-
giu para aquela aventura na noite. Reuniram-se rápido, sempre com
aqueles cumprimentos masculinos e infantis, de costume. Milton era
mais esperto como Augusto, enquanto Bola era medroso e boca suja.
Mas eles seguiram, próximo da última aventura do tal “Paulo”. Havia
uma segunda novidade naquele campo do jardim, pronta para ser ex-
plorada.
— A gente vai entrar no quintal do seu Jerônimo e da dona
Josefina? — Bola perguntou, medroso.

244
O manifesto do fim do mundo

— Tu é cagão demais, Bola! Para disso! — Milton disse e riu


com Augusto.
Quando o garoto explicou para os outros dois a brincadeira,
logo se empolgaram. Iriam baixar o aplicativo divertido de descobertas
e entrariam numa competição de quem achava mais segredos dentro
do cerco de Russinha Amada.
Perto do bairro mais rico, a pracinha balançou com as copas
das árvores agitadas. Duas pétalas de violetas coloridas voaram pelo
ar, uma delas acabou no cabelo do Bola, fazendo-o ficar mais supers-
ticioso. O juazeiro coberto de cores, vez ou outra, balançava sua copa
derrubando partes de violetas. As raízes estrondavam o chão, pareciam
interligadas criando uma rede extensa natural embaixo da terra. Nin-
guém nunca tinha reparado no detalhe daquela ruazinha.
— Eu não estou gostando disso. Nós vamos ficar de suspensão
que nem esse maluco aí!
— Aqui não é a escola, gordão. — Augusto soltou. Usava uma
camisa com furinhos, bem o oposto da dos dois amigos. Os pés sujos
brincavam com a chinela na terra de pedregulhos.
— Pior ainda, vamos ser presos por invasão!
— Nossa, Bola, para de ser chato! — Milton também recrimi-
nou. A cabeça ralinha parecia a maior dentre os três, sempre um novo
estilo porque o garoto era muito vaidoso.
Augusto parou e se virou chateado.
— Se for pra ser medroso, é melhor você ir.
— Tarde demais, né, seu filho da mãe. — Bola respondeu fu-
rioso — Eu não vou voltar sozinho não. A rua lá de casa é estranha, o
povo fala que já viu assombração por lá direto.
— Pior é a de Augusto, que quase nem casa tem, só mato e a
dele, perto de cair! — e Milton riu. Mas o outro amigo não gostou nada

245
O manifesto do fim do mundo

disso.
— Cuzões!
Os três meninos desviaram na esquina. Foram de fininho ro-
deando o muro da casa de seu Jerônimo. A pracinha ali perto estava
deserta, deixando que os assobios das poucas brisas circundassem os
juazeiros. Uma briga de gatos perto da rua do outro lado assombrou a
quietude, quando latas voaram e um dos bichanos gritou correndo. A
noite celebrava algo esquisito, que não tinha ganhado corpo ainda.
Quando levantaram um pedaço de pau que delimitava o ter-
reno das violetas, a tensão aumentou. O aplicativo de Augusto gritava
com ordens, a voz feminina dizendo que finalmente tinham chegado
ao seu destino. O mesmo protocolo de antes. Atrás dos garotos somen-
te mais vegetação comum e os confins de Russinha Amada, para além
do sertão. Rumo ao horizonte de seca e, depois, alguma cidade.
— Siga mais cinco metros e vai encontrar seu próximo tesouro,
desbravador Paulo!
Mas Augusto precisava mostrar o primeiro tesouro. Deveria
aproveitar a bateria pouca do celular de Marilene. Ligou a lanterna e
começou a procurar pela pedra.
— É bem aqui... — disse, escavando. O trio ficou desajeitado
quando sentiram o toque macio das violetas. Algumas tinham gritado
com aquela invasão, outras surgiram como salientes. Era difícil sinteti-
zar suas personalidades.
Augusto jogou terra para todos os lados. Chegou finalmente à
rocha, agora num formato diferente. A de antes era mais coesa e não
tão desgastada. Aquilo significava algo...
— Não pode ser, o desenho esquisito estava aqui!
Bola e Milton se entreolharam. Estavam de guarda catalisando
o medo com o redor vegetal. Os pilares do jardim lembravam baruei-

246
O manifesto do fim do mundo

ros, com suas copas gordas. Lares para roedores noturnos. Destaca-
vam-se em comparação com a mata rasteira e com a cerca. Parecia que
o terreno tinha sido invadido pela natureza de forma agressiva. Logo
atrás, onde o trio não avistou, duas cercas arrebentaram por conta de
espécies insolentes.
— Será se agora é você quem está ficando doido?
— Não, gente, eu vi! O desenho da marca que passava nos no-
ticiários da TV sobre aquela galera que espancava os veadinhos na rua.
Aquele símbolo... Eu não lembro o nome, não sei!
— Mas não tem nada na pedra, Augusto. E você tá se referindo
ao desenho dos nazistas? Do nada? Aqui em Russinha Amada? — Mil-
ton perguntou intrigado, coçou o topo da cabeça ao tirar mais vestígios
de brisas.
Augusto se chateou, pegaria feio para ele. Logo na frente dos
amigos.
— Mas eu tenho a foto! — lembrou. Desbloqueou o celular e
procurou na galeria da mãe. Milton deu uma cotovelada em Bola.
— O celular dele tá mais fodido do que alguém que mora no
Floresta Dois. — os dois riram, e Augusto os encarou com raiva.
— Vocês moram perto de lá e não são nenhum riquinho de
merda. — o garoto se defendeu procurando a foto, mas só tinha lá
registros de selfies de Marilene e fotos de pregações, enfeitadas, que
recebia por encaminhamento de mensagem de dona Josefa.
— Que porra!
Milton fez cara de decepção.
— Augusto, desiste logo. Vamos ver o próximo tesouro, senão
vou baixar no meu celular e ganhar o crédito para mim!
— Não pode... Que droga! Eu sempre preciso apagar o
aplicativo, senão ele teria salvo a minha descoberta anterior! — Au-

247
O manifesto do fim do mundo

gusto soltou, tão contrariado que jogou a pedra em cima de violetas


delicadas. O campo inteiro se curvou com a brisa sinaleira dos céus,
rodopiou até os limites selvagens e cessou.
Os três foram cortando as flores. Augusto, contrariado, na
frente, o celular lhe dando as coordenadas e Milton com Bola atrás,
rindo do amigo. Quando a voz eletrônica apontou o destino exato, os
três arrodearam um trunfo de violetas coloridas bem no meio do cam-
po.
O céu tinha as estrelas mais brilhantes da noite, a escuridão
e sussurros animalescos de sofrimento. Quando o celular apagou por
conta da memória, foi a vez de Milton usar o dele para iluminar o local
exato. Augusto, que revelou aquele aplicativo divertido, estava feliz pela
empolgação dos amigos e porque agora poderia se entreter com algo
mais irado. Pela primeira vez, ele quem trouxe a descoberta, e os meni-
nos da escola iriam lhe ver com outros olhos, até o respeitariam mais.
Menos os que estavam ao redor, nos pontos mais clandestinos daquele
campo. Observando a heresia e vivendo por debaixo de qualquer no-
ção humana. A natureza sabia responder à altura.

248
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 32 –
A noite continua.

S
— abe, eu vou te fazer mais perguntas conforme eu for lem-
brando. — Igor disse. Ele e Rafael desbravavam a mudez rumo ao bair-
ro de Giovani, depois dos matagais grandes e dos assombros de cons-
truções inacabadas.
— Certo. Também tenho umas perguntas. Tipo: como tudo
pode estar do mesmo jeito de anos atrás? — Rafael levantou os braços
ficando grandioso — Nem aquele pau torto lá da esquina perto de casa
arrancaram. Coisa mais medonha.
Igor sorriu. Gostava de ver o outro animado, mesmo que fosse
uma animação peculiar.
— Mas e você, cabeção, anda paquerando muito por aqui?
Pelo visto só as gatinhas de Piripiri porque aqui em Russinha Amada...
— Rafael completou.
A rua tinha um jerivá seco, deslocado quanto ao restante da
vegetação. Suas folhas serviam para fogueira, estavam armadas perto

249
O manifesto do fim do mundo

de um futuro incêndio. Entre as casas da região, muros e mais tre-


padeiras secas. O cheiro de terra só não ganhou do de carniça vindo
do terreno baldio. Algum bicho tinha sido morto e parou no meio de
galhos e folhas secas.
— Não. Eu estou mais focado em estudar, sei lá. Preciso dar
conta das coisas da minha mãe, do meu pai... Os problemas... — Igor
desconversou rápido. Depois, notou que tinha construído uma parede
para se proteger, nem Rafael conseguia mais ver o outro lado.
— Sei... — o amigo arqueou as sobrancelhas.
Ambos entraram na rua cheia de buracos. Um certo córrego
de esgoto era interrompido com alguns pezinhos de gabiroba salien-
tes. Frutos adentravam no solo como crianças faceiras. O fedor, nítido,
transformava mais a experiência noturna. Algumas luzinhas amare-
las ficavam piscando, nem todos tinham ido dormir ainda. Os postes
eram tortos, pesados por conta de tantas fiações impróprias neles.
A única casa da rua com as luzes apagadas tinha sido vanda-
lizada. Uma pichação enorme com alguns dizeres religiosos e a porta
entreaberta.
Igor não acreditou. Deixou Rafael de lado e correu. Ao aden-
trar a pequena residência, viu que estava tudo revirado. Não tinha mais
nada, apenas poeira e pequenos detalhes que formavam uma bagunça.
O que sobrepôs todo aquele caos foram os ornamentos ao redor, as pe-
quenas violetas coloridas enfeitando as esquinas, pareciam oferendas.
Ficavam mais alegres no basculante do banheiro, expulsando o fedor
do ralo. Comportando-se como se fossem trepadeiras. Não tinham
sido convidadas, porém, precisavam retornar para o ecossistema de
antes do dia da morte.
— Invadiram e levaram tudo? — Rafael questionou com um
rosto preocupado, ficou desorientado com a feição apavorada de Igor.

250
O manifesto do fim do mundo

— O povo daqui não teria essa coragem...


— Tudo bem, só picharam depois que eu tirei tudo.
A voz veio fraca perto da esquina. Rafael e Igor saíram, deve-
ria ser com eles.
Danilo surgiu com um controle remoto quebrado e uma cara
de surpresa ao avistar o novo visitante. Rafael acenou tímido e ele de-
volveu mais enérgico. O córrego do esgoto começou a correr mais rá-
pido, rasgou a areia e expulsou dois sapos. Os animais começaram a
sincronizar seus movimentos até desapareceram na noite.
— Oi, lindo. Na verdade, oi, lindos. — disse. Os olhos de Da-
nilo esboçavam um célebre transtorno. Pareciam que tinham visto a
tempestade levar tudo, qualquer resto de esperança. Sua aparência frá-
gil e exposta compôs o retrato de luto.
— Dani, eu vim falar com você porque como eu expliquei na
mensagem o...
— Eu sei. Eu entendo. Vocês acham que foi suicídio? Pois eu
não. Foi muito estranho, mas eu também não estou com cabeça para
suposições absurdas. — Danilo interrompeu Igor com divagações — O
corpo de Giovani era para estar no Cemitério São João. Eu não fiquei
sabendo de nada, sua mãe monopolizou tudo. Pelo menos isso. Eu não
teria dinheiro para arcar com uma rosa. Ele iria ser enterrado bem aqui
no canteiro de casa.
Rafael e Igor se entreolharam, Danilo não soube manobrar o
humor mórbido.
— Desculpe.
— Mas... ele não foi enterrado no São João? — Igor ficou com
mais dúvidas.
— Não. O povo daqui diz que é o cemitério dos pobres. Mas
o corpo não está lá. Algumas pessoas disseram que teve sepultamen-

251
O manifesto do fim do mundo

tos, mas ninguém avistou o de Giovani. É muito estranho. Eu procurei


também no Cemitério São Francisco e nada.
— Mas como assim? — Rafael franziu a testa, indignado. Igor
se surpreendeu com a reação do amigo. Para alguém há anos longe de
casa, ele tinha adentrado bem na estrutura de funcionamento de Rus-
sinha Amada.
— Porém, falei com dona Josefa, ela sempre sorridente e mui-
to vibrante. — Danilo jogou as mãos teatrais — Me disse que o corpo
foi para Parnaíba. A terra de Giovani. Faz mais sentido. No entanto,
não tenho como confirmar nada. É estranho não poder visitá-lo. Mas...
morreu, já foi. Qualquer celebração vai ser feita mesmo no íntimo de
quem respeita ele.
Danilo começou a embaralhar as ideias, poderia ter sido dire-
to logo. Mas era nítido que gostava de conversar, e naquele momento
de luto, precisava falar, nem que fosse para aumentar respostas clara-
mente curtas.
— Certo... — Igor respondeu — Eu já comecei a me assustar...
Já pensou ser mais um daqueles casos de desaparecimento do IML?
— E sobre ele estar estranho: não, ele sempre foi o mesmo Gio-
vani de sempre. — Danilo postava informação por cima de informa-
ção. Vez ou outra, trocava olhares com um Rafael boquiaberto e, de-
pois, ligava-o a Igor. Enquanto a conversa se concentrava em Giovani,
a mente inquieta de Danilo se divertia com um boato.
— ...Sempre viciado naquela patricinha de milhares de se-
guidores de Teresina, a tal influencer de conteúdo “relevante”, Marília.
Sempre também dando em cima de caminhoneiros. Ele iria me matar
se soubesse que estou falando isso, mas é a verdade. Ele só gostava de
velho. — Danilo sorriu nervoso, mas soltou — Na verdade, tudo ficou
esquisito quando ele voltou da floricultura e começou a ter umas ideias

252
O manifesto do fim do mundo

doidas... Nossa, não gosto nem de lembrar.


— É muito estranho... — Igor coçou o queixo — Eu estava com
ele, mas... Não lembro de nada. Ele estava esquisito?
— Eu queria ver de perto essa mancha e...
— Vocês querem desenterrar ele? — Danilo questionou sem
nenhum teor predominante.
— Não... — Igor sorriu. Por que o ar está... pesado? Notou
rasgos na esteira negra do céu. Pássaros brancos pousavam perto dos
postes, sem intenção de ficarem. Observavam o movimento e partiam.
Três da mesma espécie fizeram o mesmo, por isso, a desconfiança.
— Esse lindinho aí tem cara de ser muito estranho. Fique de
olho, senhor Igor, cuidado! — Danilo atirou sorrindo para Rafael, que
riu também com o enfrentamento.
— Ver de perto não quer dizer isso... — Igor começou a pensar
em uma desculpa, mas se embolou — Esquece! A gente queria pelo
menos fazer uma oração para ele. Porém, o túmulo estando em Parnaí-
ba...
— Sei... Vocês dois juntinhos não me enganam. — Danilo riu
com malícia — Era para estarem em casa. Daqui a pouco dona Josefina
grita atrás de você. As pessoas aqui da região estão com medo! Fiquem
ligados.
Igor revirou os olhos, e Rafael riu.
— A mãe deve tá na quinta camada de algum sonho dela. Pode
acreditar. E você podia ter me dito essas coisas tudo por mensagem.
Não precisava nos obrigar a vir.
— Mas eu gosto de falar olho no olho! — Danilo fez um sinal
com dois dedos — Nunca gostei desse negócio de internet, vicia, faz a
gente até esquecer que tá com fome.
Igor ficou pensativo, Rafael pôs as duas mãos no bolso, sentin-

253
O manifesto do fim do mundo

do-se deslocado. A noite era intensa, e as estrelas piscavam por cima


dando um show. Era a vez de grilos se aproximarem da conversa.
— Você tem razão, Dani, enfim... — Igor deu um sorriso —
desculpa! Acho que já vamos porque...
— Sim, é melhor vocês irem logo. Principalmente você, senhor
Igor, sua mãe não vai gostar de você andando por aqui. E outra coisa.
— Danilo falava rápido, era impossível pará-lo — Tome cuidado com
possível olho grande em cima da sua família. Você se lembra daquele
esquisitão de branco que veio aqui bem antes do Rarizes? Ou todas as
vezes que vinha algum turista engraçadinho querendo levar lotes das
flores coloridas da sua mãe? Não é só porque as coisas “se acalmaram”
que essa perseguição passou. Giovani me falava que sempre viu olhares
invejosos em cima da floricultura...
Igor carregou a fisionomia. Danilo soltava milhares de infor-
mações desconexas, mas todas levavam a algum sentido.
— Como assim?
A testemunha pensou rápido.
— É só um aviso. Sei que a floricultura vai ficar fechada por
um tempo em respeito, mas é sempre bom ter cuidado... — começou a
perceber que foi uma péssima ideia jogar a informação sem levar à luz
a conversa que tinha visto no celular de Giovani, do estranho querendo
puxar informações sobre a floricultura.
— Cautela, senhor Igor. Precisamos ser cautelosos. É apenas
cautela.
— Só Igor. — dessa vez, ele corrigiu.
— Tá. IGOR. Tome cuidado, fique esperto, cuide de sua mãe.
A família da gente é o maior bem que a gente tem.
Rafael continuou deslocado, somente concordando com a ca-
beça. Não comprou para si a indireta na fala de Danilo. O teor englo-

254
O manifesto do fim do mundo

bava também dona Raimundinha.


— Certo... — Igor não engoliu a dispersão — Tudo bem, então.
Obrigado, Danilo!
— E me avisem se tiverem novidades sobre essas investigações
“truqueiras” de vocês dois. — Danilo riu — Quem sabe vocês não des-
mentem Jerônimo com a teoria dos pecados? Faria a minha vida ser
menos complicada. Agora que Giovani morreu, o fardo do gay odiado
volta para mim, mesmo eu tendo nascido aqui.
Igor engoliu em seco. Rafael puxou os lábios para um canto,
como desgosto para aquela informação. Lembrou-se de ser parte do
problema. Lembrou-se de problemas bem maiores.
— Fica bem, Danilo, estamos do seu lado! — Igor foi solidário.
Não sabia se era ocasião propícia para um abraço. As dúvidas cruéis
dos introvertidos ansiosos.
— Fiquem com Deus. — Danilo sorriu. Mesmo depois de
todo o apocalipse, ele se mantinha com aquela energia — Ah, e mais
uma coisa!
Igor e Rafael se viraram.
— Aproveitem agora que estão juntos de novo! Giovani me
disse que você, senhor Igor, sempre morreu de saudades desse bonitão
aí.
...

Seis mãos e ainda não tinham cavado o suficiente para achar


não se sabe o quê! Augusto e os amigos estavam suados, recheados de
barro, desconhecendo qual era a terra misturada com tons esverdea-
dos, cheia de gotículas brilhosas como se fossem lágrimas de anjos.
Bola transpirava muito, aliada ao nervosismo, sua respiração denun-
ciava que não estava bem há horas.

255
O manifesto do fim do mundo

— Porra, Augusto! Esse aplicativo parece ser enganação, não


tem nada aqui.
— Ele acertou da última vez! — o amigo se defendeu.
— Nada disso! Você não mostrou nenhuma pedra com dese-
nho nazista! — Milton também reclamou.
Augusto sentiu a dor nas pontas dos dedos quando fincou
forte algo maciço. Gemeu de dor e, depois, de felicidade. Começou
a limpar rápido a estrutura, puxando sem piedade as flores coloridas.
Pareciam roedores fazendo a festa.
— Encontrei algo! — agradeceu, no íntimo, por não passar
mais aquela vergonha.
Bola e Milton se juntaram, ficaram ansiosos enquanto o objeto
ia se despindo da terra.
— Que diabos é isso?
Augusto sentiu um assopro gélido na sua nuca. Parou de es-
cavar cortando a excitação do momento. Olhou pelas redondezas e
só encontrou a mesma paisagem escura e viva. Alguns grilos tinham
cessado sua sinfonia, e o horizonte de acidentes tinha montanhas que
lembravam vacas. Ele nunca tinha reparado naquilo.
— O que foi? Você parou de escavar por quê? — Bola questio-
nou, incrédulo.
Augusto deixou os olhos bem abertos, sem fixar em nada. Pa-
recia que estava recebendo uma coordenada absoluta, bem mais forte
que ele. Se virou mais uma vez para checar o que tinha atrás de si. So-
mente as violetas coloridas se curvaram ao vento que veio da direção
errada. O trânsito de brisas começou uma guerra.
— Augusto? Ei, cara de rolinha, o que foi? — Milton questio-
nou retirando parte de galhos do cabelo ralinho. As copas ficariam
nuas com o assopro dos céus.

256
O manifesto do fim do mundo

O menino caiu de joelhos na terra, ainda meio abobalhado.


Voltou a cavar como se aquela função fosse o seu único objetivo de
vida. Bola e Milton se entreolharam no mesmo segundo.
— Mas que porr...
Augusto foi limpando o objeto esférico, cheio de rasuras. Pu-
rificou como se tivesse conhecimento do que estava embaixo da terra.
Seus olhos eram grandes, as pupilas dilatadas tinham cores esquisitas.
O celular de Bola continuou ligado denunciando o momento.
Finalmente, tirou o “tesouro”. Ergueu à sua frente e contem-
plou meio atônito.
Augusto viu três objeções até a visão definir. E só quando re-
cuperou a consciência pôde falar, pelos breves segundos em que não
existiu naquele mundo. Mas Bola e Milton deram um grito fino e se
abraçaram, caíram de jeito em cima das violetas que serpentearam pe-
los seus corpos tentando escapar daquele peso.
— É um coco. — Augusto disse com revérberos. Sua voz ficou
mais encorpada, continuando ainda na faixa infantil.
— UM COCO? — Milton olhou para o amigo sem conseguir
acreditar — VOCÊ ESTÁ MALUCO?
Augusto continuou sem ver a realidade. Segurando com toda
a inocência do mundo o crânio sujo, rodeado de ligas orgânicas colo-
ridas que lembravam teias. Parecia que a terra puxava a estrutura para
baixo. Sem falar dos vermes que saíam famintos, pensando se aqueles
três garotos eram os próximos com suas carnes.
— Puta que pariu! — Bola empurrou Milton e se reergueu,
quase tropeçou de novo — Eu não vou mais sair com vocês! Que POR-
RA! — começou a correr, sempre vistoriando atrás.
Milton não sabia se deixava o abobalhado Augusto fitando o
crânio ou se tentava acordar o amigo do transe. Teve que pensar rápi-

257
O manifesto do fim do mundo

do.
— Deixa essa porra aí!
Lascou o tapa no objeto com luzes. O crânio afundou na terra
e os vermes correram para entrar nos orifícios onde ficava os olhos e os
dentes. Augusto acordou, olhou como se estivesse acabado de chegar
à situação. Também gritou quando viu a surpresa, mas sua reação foi
mais obsessiva.
— Não, isso é uma prova!
— Augusto! VAMOS EMBORA! — Bola gritou perto do es-
conderijo onde Igor deixou sua cadeira.
— Eu vou levar! Isso vai sumir se a gente deixar aqui! É um
tesouro!
— É A CABEÇA DE ALGUÉM MORTO! — Milton desejou
uma bofetada no amigo.
— É coexistência. — Augusto disse, entre realidades, o transe
demorou a passar.
Milton franziu o rosto, a voz não foi bem recebida. Reverberou
em dois tons metálicos, um por cima e outro por baixo.
— Você está louco? Anda! Que diabo você está dizendo? — e
puxou o amigo. Augusto resistiu, soltou-se de Milton e trouxe o crânio
para perto de si, espantando qualquer verme que ficasse dentro dele.
Os fiapos coloridos romperam deixando o chão perder seu contato
com a peça humana. Os dois amigos não se opuseram, aceitaram que
aquele crânio iria junto. No final, um agradecimento por ter um “trun-
fo”. Seriam populares na escola, finalmente.
Para deixar o jardim, os três tiveram que dar tudo de si. Até a
noite começar a rodopiar com eles. As estrelas no céu contaram que
qualquer detalhe em terra tinha vida. Como se exatamente naquele
ponto até o concreto fosse parte de um sistema orgânico vivo, contor-

258
O manifesto do fim do mundo

cendo-se em um sono profundo. Augusto agarrou com força o crânio


que deveria ser de uma criança, parecia obcecado por ele, com todas as
suas cores pulsando dentro dos orifícios. Tão repleto de vida (e morte).
Para encerrar a experiência, um reencontro inesperado surgiu
na noite invulgar. A figura esperando pelo trio na esquina, mesmo
que não fosse o melhor lugar para se estar na calada de uma noite es-
trambólica. Quando duas ruas atrás o carro da desinfecção passou se
aliando a um rastro fantasma. A mangueira balançando como se fosse
um órgão fálico. Augusto foi o primeiro a gritar, bem na hora que a
surpresa reescreveu o terror da aventura.
A velha figura conhecida pediu para que não fossem meninos
cretinos. Vestia uma espécie de roupa cheia de desenhos geométricos
perfeitos, que sabiam o cálculo exato entre círculos e retas impecáveis.
Cada risco brilhava no seu corpo, definindo impasses entre futuro e
passado. Subestimando aquele tempo com sua tecnologia obsoleta e
velha.
Dona Raimundinha, de cabelos soltos e com um bafo forte,
tentou agarrar um dos três. Mas os meninos eram espertos, até mesmo
Bola, que tinha dificuldade em ser ágil. Se separaram e foram cada um
por uma rua. Augusto felizmente pegou a direção certa de casa, mas os
outros dois amigos foram rumo a extremos assustadores. Milton, em
direção aos prédios em construção pela prefeitura; e Bola, em direção
à pista asfaltada. Dona Raimundinha, ou o que quer que fosse aquela
figura, ficou com a cabeça explodindo para decidir qual iria perseguir.
Na segunda vez em que Augusto olhou para trás, ficou aliviado de não
ter sido ele. A velha tinha sumido e os seus gritos roucos também.
O menino avistou duas figuras conversando na rua, mas es-
tava tão perturbado que não parou quando lhe chamaram o nome.
Passou por eles e deixou que avistassem um brilho esquisito vindo de

259
O manifesto do fim do mundo

dentro da caveira.
Rafael e Igor se entreolharam de novo, enquanto só um deles
gritava para que Augusto parasse, perguntando o porquê da fuga. An-
tes, os dois estavam rindo da situação engraçada que Danilo invocou
até a sensação ruim percorrer o corpo magricela de Igor, e o fez ter um
gosto amargo na boca, que tinha tirado sua fome e as borboletas do
estômago. Não sabia como tinha aceitado aquele formigamento.
A noite pediu respeito e, quando não o teve, entregou enig-
mas. Por trás das conexões esquisitas e perversas ocorrendo. Direcio-
nada àqueles que preferiam ver o simples e o comum. O tempo não
parou nunca.
...

Igor se despediu de forma conflituosa de Rafael. Não tiveram


muito tempo para continuar a conversa empolgada de antes. Depois
que Augusto passou correndo, os ventos acompanharam o menino e
levaram com ele o brilho entre os dois amigos da escuridão. Igor sen-
tiu um frio na espinha, deu um abraço em Rafael e correu para casa
porque simplesmente sussurraram em seu ouvido que ele deveria fazer
isso.
...

No final, Augusto encontrou uma mulher bêbada tendo uma


conversa cheia de ataques verbais na cozinha. Marilene tinha resolvido
conversar sozinha, falando poucas e boas para o fantasma à sua frente.
Mentalizou o seu ex-marido para conseguir lavar a roupa suja e ainda
sobrou para a atual dele.
A mulher estava tão transtornada ao ver dois de Augusto,
questionando-o sobre o porquê de ele não ter dito para ela que levaria

260
O manifesto do fim do mundo

amiguinhos para dormir com ele. Até que a visão foi convergindo, e,
no soco de ressaca esquisito contra si, Marilene abraçou o menino as-
sustado chorando todas as lágrimas de Russinha Amada.
A caveira brilhosa foi chutada para longe, Augusto não podia
vacilar. E a luz ricocheteou dentro da pequena casinha, como se fosse
uma espécie de rastreador ou codificador. Um show cênico de futuris-
mo que só era aceito pela imaginação mais rica daquela casa.
...
De volta ao paralelo mundo florido, Igor guardou dúvidas,
milhares delas. Dessa vez, não precisou da mãe estalando os dedos
para que divagasse. Mesmo que a culpa não devesse ser dela por tudo,
por conta de um jardim sinalizado e uma nova personalidade adqui-
rida, além de outros espectros esquisitos que começaram há tempos.
Rafael também tinha sua parcela.
Dona Josefina. O problema não pode percorrer campo e, sim,
a si mesma, dentro daquela fortaleza ossuda impenetrável cheia de fal-
sa felicidade.
A casa estava escura. Roberta não espionava ninguém. Dessa
vez, ele conferiu se não tinham garrafas de cerveja em alguma parte,
mas encontrou tudo limpo. Porém, a porta do quarto principal mis-
terioso estava aberta. Uma luzinha azul fraca escapou, vindo, prova-
velmente, da noite e de suas estrelas. Igor iria espiar, ligou o celular
para construir algum registro sólido, seus olhos não eram testemunhas
sustentáveis.
Avançou lentamente com a respiração controlada. E foi suan-
do quando atravessou o próprio quarto. Chegou na porta dos pais e
ergueu o pescoço para adentrar o umbral.
Pura esquizofrenia...
Josefina por cima do marido, cavalgando como uma besta no

261
O manifesto do fim do mundo

cio. Apenas um lençol cobriu detalhes explícitos. Ela sabia que estava
sendo vigiada, deixou somente a cabeça virar, e não o corpo. E os olhos
grandes encontraram os de Igor, enfeitiçando-o para sempre. Até tudo
desmoronar cheio de suor, gozo e potestade.

262
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 33 –
Ameaças.

— M ãe... Mãe... — Augusto, aflito com a mãe babando estira-


da no chão da sala. Algumas moscas rodeavam o sabor azedo da cerve-
ja no chão. A cerâmica bege estava suja, com mais grudes localizados.
Nenhum facho de Sol entrando pela janela acordou Marilene.
O garoto tocou as bochechas da mãe como se fossem botões
divertidos. Riu quando as pálpebras tremeram e a boca deixava o fiapo
de saliva grosso como um pêndulo. O rosto de Marilene, com todos os
sulcos e marcas de expressão, transparecia uma força incomum mes-
mo no seu berço de fragilidade.
Augusto se aninhou um pouco mais. Vez ou outra, observou
no rumo do seu tesouro guardado, se não sairia dali correndo. Fez um
carinho na testa da mãe e se aproximou para deitar-se com a cabeça
colada à dela. Queria testar um pouco da perspectiva de Marilene.
Num desconforto de posição, a mulher se ajeitou para o lado,
e o cabelo se dividiu expondo a nuca. Os olhos de Augusto se arregala-

263
O manifesto do fim do mundo

ram quando viram o desenho. A mancha esquisita em formato de seta,


apontando para o topo. As bordas pareciam pus com aquele verde sem
graça e escuro, enquanto o interior era como uma piscina rosa com
cerejas avermelhadas.
— Mãe... — Augusto encontrou na cabeça mil suposições so-
bre aquela mancha. O medo por ser a mesma na perna de Giovani
engoliu todas. Tudo só levaria a um caminho. Seu coraçãozinho não
iria aguentar.
O celular de Marilene vibrou e ele correu para ver. Era uma
mensagem de dona Josefa. Uma bem mal-humorada.
“Cadê você, Marilene? Não vai trabalhar mais? Você chega
atrasada e ainda fica de enrolação. Pelo visto, não quer esse emprego.”
Entre figurinhas com carinha de raiva e decepção.
Augusto se enfureceu.
“Você é uma velha chata e fedorenta. Não gosto de você.” Es-
creveu e mandou sem pensar duas vezes.
Depois, fitou a mensagem, refletindo um pouco no que seria o
silêncio do depois. Dona Josefa tinha lido, mas não respondeu. Augus-
to ficou um pouco contrariado, perguntando a si mesmo se não tinha
passado dos limites. Porém, a idosa merecia uma verdade na sua cara.
...
Do outro lado, nem tudo eram ressacas e afrontes. Adiante
com as casinhas de muros mais equilibrados, o bairro das flores res-
surgia não tão solene. Havia um equilíbrio enérgico entre, para não
dizer com um fúnebre otimismo.
Dona Josefina passou a chave no seu portão e sorriu para o
alto, seus olhos brilharam com os desenhos divinos que circundaram
pelas esferas oculares. O céu flertou de volta, lançou insígnias intimas
que só ambos puderam decifrar. As árvores da praça soltaram folhas

264
O manifesto do fim do mundo

bagunçando o terreno, e o movimento se tornou espiralado e reflexivo.


Russinha Amada mais preguiçosa com o passar dos tempos. O baru-
lho das obras da prefeitura continuava a todo vapor; não fosse isso,
ninguém acordaria.
Duas vizinhas por pouco não mesuraram quando passaram
por dona Josefina. Ambas mascaradas, do Floresta Dois, assíduas no
grupo de fiel Jerônimo. Mais vizinhos também tinham nos rostos más-
caras, e uma lembrança foi evocada. A mulher redesenhou seu senti-
mento.
— Bom dia, dona Josefina, não vai usar sua máscara também?
— Jerônimo surgiu como uma mosca irritante. Também mascarado, a
sua com alguns dizeres religiosos, personalizada e de autoridade.
— Por que isso? — ela perguntou com um sorriso.
— Depois que o homossexual morreu por conta da possível
vinda do Rarizes, devemos nos proteger. — ele respondeu sorrindo,
mas o assunto não era engraçado — Achamos que isso possa estar in-
terligado com a chegada do amigo de seu filho e também com os peca-
dos que assolam essa cidade, já que não conseguimos salvar a todos. É
a marca da besta agindo!
Josefina não esboçou outra reação a não ser continuar com sua
simpatia fingida.
— Igor não está andando com Rafael, peço que, por favor, dei-
xe-o fora disso. — ela tentou ser o mais branda possível — Agora irei
para os meus deveres matinais e...
— Que deveres? Fortaleza Florida não está fechada? — Jerôni-
mo perguntou com inclinação — Deixe-me perguntar mais uma coisa,
dona Josefina... A senhora é quem é a “cabeça” da casa agora, não é
mesmo? Seu marido resolveu sumir...
— Fiel Jerônimo, o que eu faço não é da sua conta. — ela sor-

265
O manifesto do fim do mundo

riu.
A carnaúba solitária por trás de algumas casinhas balançou
suas folhas. O tronco torto pendeu pedindo ajuda, não merecia que
substâncias rosadas passeassem entre suas estruturas. Alguns urubus
pousaram perto, mas não tinha nada para eles ali. Ao contrário do que
esperavam, não tinha animais mortos pela região, mesmo pelo cheiro,
e sim muita vida. Excessos de longevidade e existência. Só não era fami-
liar aquela energia.
— Opa, perdão, dona Josefina. Não queria ser enxerido! Eu
só gostaria que você me incluísse mais em seus cafezinhos e tarefas.
Posso ajudá-la nos negócios de Fortaleza Florida, até mesmo com al-
gumas atividades no jardim... Você me parece distante... Não recebe
mais visitas de nossa comunidade...
Josefina respirou fundo.
— Com licença...
Jerônimo fez cara de malícia.
— E a máscara? Você vai arriscar, mesmo com seu marido
perto da morte?
Dona Josefina se virou, deu dois passos tão rápidos que pare-
ceu uma ninja. Tocou o ombro de fiel Jerônimo e aproximou os dedos
da sua orelha chamativa e com pelos. Estalou duas vezes, o comum
eram três estalos. O último para que Jerônimo mantivesse a lembrança
daquela investida.
— Não se aproxime de mim, se não quiser sofrer duras consequências
divinas. — disse em tom de ameaça. Perto do portão, o ruído para que
dona Celeste entrasse em cena e achasse esquisito o marido parado
como um bobalhão bem perto da vizinha.
— Amor?
Josefina se virou, seus olhos eram traiçoeiros, mas se interliga-

266
O manifesto do fim do mundo

ram com os ambíguos de Celeste. A conexão de ambas poderia supor-


tar qualquer tempestade, semelhante ao primeiro sexo entre amantes
fogosos.
— Ele não vai gerar um filho em você. Não tem estrutura su-
ficiente para isso, por que insiste? — disse com os músculos da boca
esticados num sorriso de dentes. Sua áurea era como a de um predador
traiçoeiro, até na forma que se deslocavam esquadrinhando qualquer
detalhe em cena. O desleixo na face de Celeste engordou o olhar amea-
çador de dona Josefina. Até ela deixar aquela esquina.
Fiel Jerônimo pareceu petrificado com o olhar de Medusa,
olhando a figura de vestido floral vagar, criando o medo de anos atrás.
A cabeça de dona Josefina virou coco, e o coco depois se transformou
em Josefina. Para completar, o enigma daquela visão, seu pai, Sebas-
tião, passeou cambaleando até a pracinha.
— Amor... — Celeste questionou, antes de Jerônimo se dobrar
perdendo a força das pernas — Você está bem? — a pergunta não evo-
cou importância.
— Me leva pra dentro... Cala a boca, mulher. Me leva pra den-
tro. — seu último pedido com forças.
...
Dona Josefina não sentiu nenhum pingo de emoção ao visua-
lizar Fortaleza Florida fechada. Nem parecia que conhecia a loja. En-
trou rápido, pouco se importando com os vizinhos curiosos por cima,
e deixou aberta a porta. O lugar estava sujo e empoeirado. Tinha um
cheiro que só ficava menor graças às violetas coloridas.
Dona Josefina pegou uma cestinha e começou a escolher as
melhores, as mais vivas e vibrantes. Conversava com carícias nas flores,
como se fossem suas filhas. Quem passava pelo lugar não entendia a
complexidade daquele luto prostrado. Em nenhum momento, esboçou

267
O manifesto do fim do mundo

qualquer noção de tristeza por Giovani, mas no fim foi ela quem ajei-
tou tudo. Só não teria celebração por culpa de fiel Jerônimo, mas isso
pouco importava para dona Josefina.
Quando saiu das redondezas de Fortaleza Florida, acenou
para Deise e mais alguns curiosos mascarados. Eles retribuíram, tími-
dos, sorrindo numa competição para quem ganhava mais o carisma da
figura importante. Não discutiram se do outro lado existia alguém sem
a máscara, contrariando fiel Jerônimo. Mas Josefina era justa como
Deus, padronizou-se para todos. Tão bondosa quando atravessa suas fron-
teiras.
Josefina não foi cantarolando. Entrou em Floresta Dois com
um ar austero caminhando com centímetros calculados, altamente
robótica. Suspensa de aflição. Ainda não tinha se tocado no peso da
atitude de andar com os lábios e nariz amostra. Porém, ninguém iria
pará-la ou chamar sua atenção. Alguns estranharam, outros agradece-
ram, pediram que os céus abençoassem sua pessoa, por ser tão bondo-
sa com suas violetas coloridas em mãos. “Mais um presente para algum
pobre morador”, duas beatas afirmaram. “Até com os miseráveis ela é
misericordiosa”. Nossa...
Josefina deu dois toques ao se aproximar da casinha humilde
por pouco solitária. Não olhou para os lados com receio nem se inti-
midou com o terreno baldio cheio de galhos, como mãos de bruxas.
Esperou em silêncio sorrindo para a porta de madeira, reparando nos
descascados. A maçaneta estava engordurada e a porta tinha buchos.
Com um golpe certo, era fácil arrombar a residência.
Lá dentro se apressaram. A chaves brindaram e o barulhinho
agudo foi ficando perto.
— Sim?
Augusto olhou para a mulher dos pés à cabeça. Escancarou a

268
O manifesto do fim do mundo

porta quando abriu.


— Sua mãe está, pequeno menino? — Josefina sorriu, mas não
ganhou o garoto.
— Ela está... Está doente. Tá de cama. — ele se atrapalhou com
a resposta.
— Nossa... — Josefina esboçou a teatral preocupação — Posso
entrar e ver como ela está, então?
— Não. — Augusto soltou ríspido. Tinha se enfurecido antes
com dona Josefa. E agora outra perturbação, ainda mais vindo da dona
das violetas coloridas. As flores nas mãos magras de dona Josefina in-
timidavam-no. Já deveriam ter contado o que ele tinha feito às suas
irmãs na noite anterior.
Josefina vacilou com a expressão. No seu mundo de gentilezas,
a resposta desconfigurou algo dentro de si. Ela se agachou para ficar
olho a olho com menino.
— Eu acho melhor você deixar eu entrar, ladrãozinho. — disse
baixinho. Sua voz metalizou com saliências profundas. Semelhante à
de um demônio numa sala vazia.
Augusto não afrouxou. Continuou de peito aberto.
— Não! E eu não sou ladrão.
Bateu a porta na cara da visitante. Ele ficou do outro lado es-
perando, não se sabe o quê. Agora, vigilante e com um “tesouro”, pre-
cisava estar preparado para qualquer coisa.
Alguns murmúrios tristes vieram do quarto. Gemidos franzi-
dos que fizeram Augusto correr para a mãe. Mas notou a péssima ideia.
Com o susto, por pouco não trombou contra a porta e a cena.
Marilene deitada no colo da estranha, sendo acariciada pelas mãos
meigas cheirando a violetas coloridas. Dona Josefina tinha surgido no
quarto, com seu olhar misericordioso. Cheio de significados divergen-

269
O manifesto do fim do mundo

tes menores.
— Eu acho que não é só efeito do álcool. — disse para Augus-
to. Voltou à simpatia de costume, evitou guardar rancor.
— O que... Como você entrou? O que você quer? Eu vou cha-
mar a polícia! — Augusto agarrou o celular, sua atenção e cuidado se
fixaram em outro ponto da casa.
— Eu vim trazer flores, vim ajudá-la... Ela está mal. Está doen-
te, com uma espécie de maldição demoníaca que atinge mães de meni-
ninhos traiçoeiros. — dona Josefina sorriu — Sua espécie é interessan-
te, esses ares subversivos dessa idade que vão morrendo com o passar
dos anos. Não me canso de fitá-los. Você me lembra muito a espécie de
carbono que mora comigo.
Augusto fechou a cara. Estava em posição de luta. O celular
vibrando na sua mão, provavelmente mensagem de algum dos ami-
guinhos. Precisavam conversar. Augusto finalmente os adicionou no
Facebook, como Paulo. O fim do seu perfil sigiloso. Seria zoado depois
na escola quando soubessem o motivo de não ter um com seu nome
verdadeiro.
— O que você quer?
Josefina puxou o corpo para mais perto de si, deixou a face de
Marilene, dorminhoca, contra sua barriga. As mãos delicadas afunda-
ram no cabelo, puxando-o para revelar a nuca.
— Está vendo isso? Você quer que sua mãe morra também?
Augusto estremeceu. Giovani.
— Por que você não me devolve o que roubou? E depois me
promete que não vai entrar nos limites daquela área?
— A senhora é um monstro? Uma assassina? — Augusto ques-
tionou com medo — Vai me matar?
— Não, porque você é importante para futuros eventos.

270
O manifesto do fim do mundo

A voz saiu mais do além do que de Josefina.


Ela retirou, dentre as violetas, uma seringa. Deu alguns toques
com a unha no plástico, a agulha era grande e pontuda. O conteúdo,
um líquido verde transparente, parecia sangue de gnomo. Assim Au-
gusto ressignificou.
Procurando o local certo, Josefina penetrou a seringa no meio
da mancha, uma gota de sangue saiu melodramática. O efeito foi ime-
diato. Todo o verde-esmeralda se espalhou como se ali dentro estivesse
morando um ser vivo, afobado. Agora que tinha se assustado com o
veneno, iria fugir levando consigo as cores. O rosa ficou aflito até ade-
quar-se à cor de pele de Marilene. A nuca só tinha a pontada da agulha
cicatrizada.
— NÃO! — Augusto gritou. Viu o espelho de mão da mãe e
não pensou duas vezes. Arremessou contra a esquisita dona Josefina,
mas ela agarrou o objeto no ar.
Ela empurrou o corpo de Marilene para longe como se fosse
brinquedo. A pancada na cabeça com a ressaca daria trabalho, disso
ninguém tinha dúvidas. Tinha se enfurecido por um motivo particular
que Augusto ficou sem entender, não deveria ser pelo espelho arre-
messado. Até ele desviava com facilidade. Mas correu para não des-
cobrir do que mais aquela esquisita carismática florista era capaz. Na
perseguição, ele foi jogando o que podia no chão para atrapalhá-la. Era
graduado em correr rápido de bichos ou de problemas, entrou com
agilidade no seu quarto e fechou a porta.
Augusto se colocou como peso, mas sabia que não iria adian-
tar. Dois golpes de dona Josefina quase o jogaram longe. Mais algum
daqueles e a porta iria ceder.
Porém, os ânimos lá fora se acalmaram. O único barulho era
do seu coraçãozinho pulando. Augusto transpirando com violência

271
O manifesto do fim do mundo

enquanto imaginava se dona Josefina não estava reunindo força para


mais um ataque brutal.
Um minuto se passou. Barulho de ossos estalando, o mesmo
de quando alguém acorda e se espreguiça, o corpo com espasmos de
prazer. Augusto teve milhares de versões do que podia ser aquilo, quis
chorar, mas o medo era maior que ele. Dona Josefina teria que adentrar
no seu quarto para tirá-lo dali.
O barulho rasgou perto da sua orelha. Um cone magro e esver-
deado atravessou a porta, quase atingindo-o. Parecia uma garra pontu-
da, anômala. Nos segundos em que ficou prostrada, Augusto reparou
nos desenhos padronizados, tinham dizeres que ele não entendeu. E
respirava um ar demoníaco, tão pesado que o golpe parecia que tinha
sido contra ele. A garra foi saindo levando as vísceras da madeira, tre-
mendo de dor. O ser vivo dono da garra deveria ter se machucado.
Dois soluços abafados realocaram a atenção do menino. A voz
era a de dona Josefina, mas que péssimo momento para alguma crise
emotiva.
— Por favor, leve o crânio de volta ao lugar esta noite. Eu já não quero
me ligar a você...
A voz rouca e chorosa.
E a atmosfera mudou, porque algo dentro de Augusto o fez
notar, mesmo quando ele parecia não ter entendido nada daquele con-
fronto.
Dois passarinhos que alcançaram voo contra o céu azulado,
a janela tinha ficado maior, obrigavam-no a ver a terra dos deuses. O
horizonte de seca trombando com o onírico das nuvens.
Dois segundos depois, todas as árvores tinham sumido e só
sobrou seca. E cocos.
Até o retorno da realidade que todos conheciam.

272
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 34 –
Espetáculos.

O doutor Félix achou estranho a baixa atividade no postinho


e a alta hipocondria social afora. Quando o vigia Irineu se sentou na
sua cadeirinha de escola velha para guardar as redondezas, o mundo
mentiu dizendo estar tudo bem. Mas ele mesmo tinha surgido com
uma máscara branca estampada. Uma cruz desenhada com um slogan
malfeito. Doutor Félix riu, com certo nervosismo, e viu na dúvida o
momento para tomar um suco e se atualizar do novo status de Russi-
nha Amada.
Alguns ainda estavam atrasados na notícia, outros correram
para a lojinha de estamparia para confeccionarem a sua proteção. Mas
o burburinho era divertido, desordenado como as interações sociais
daquele terreno.
E Félix gostava daquele ar bucólico, distante do neon baru-
lhento de Teresina. Respirava um ar limpo, infectado de mentiras. E
a facilidade da cidade lhe surpreendia. Tudo tão perto e, ao mesmo

273
O manifesto do fim do mundo

tempo, os arredores faziam ser distante, como se ainda existisse muita


Russinha Amada para além do sertão.
— Bom dia, dona Deise. Vim atrás daquele suquinho que só a
senhora sabe fazer. — ele sorriu ao entrar na lanchonete.
Deise quase afogou os olhos pelo sorriso. Estava mascarada,
precisou enfatizar. Ela se animou rápido.
— É pra já! — e, depois, um sermão delicado — Não me chame
de senhora. Sou moça ainda! — brincou.
Félix concordou com um gesto de mão. O relógio de ouro ba-
lançou no pulso.
O médico pegou a primeira cadeira que viu, sentou-se de per-
nas abertas. O jaleco logo tinha sido amassado. Avistou lá fora, nas re-
dondezas da ruazinha, vizinhos conversando e acenando. Contando
anedotas sobre tempos pandêmicos. A segunda vez era mais fácil.
— Então, dona Deise, o que está acontecendo por aqui? Todo
mundo usando máscara... O Rarizes voltou e não me disseram? —
Félix perguntou sorrindo.
Alguns barulhos de ferrugens caindo fizeram com que os dois
franzissem a testa. Deise queria competir com as obras, torceu para
que seu liquidificador fizesse mais barulho. Somente depois de segun-
dos de gritos masculinos, pôde responder.
— O senhor não está sabendo das novidades?
— Não... Inclusive, quero lhe perguntar que horas vai ser a
celebração de Giovani. E, também, por onde anda Marilene... queria
falar com ela. — Félix pôs a mão no queixo. O jaleco apertava seus
músculos, definindo-os. Também estava suado. O cheiro do perfume
reverberou mais.
Deise levantou as sobrancelhas.
— Olha... Não vai ter nada... — se contrariou para ter que dar

274
O manifesto do fim do mundo

aquela notícia. Ela conhecia a opinião do doutor Félix.


— Não vai ter celebração porque o morto não fazia parte de
nossa comunidade religiosa.
Uma segunda voz masculina surgiu.
Fiel Jerônimo, estranhamente descabelado. Sua colônia era
forte, parecia que tinha se banhado dela. A calça reta com cinto esta-
va justa no corpo magro, e ele tinha seus requintes polidos, com seus
olhos de inquisição que podiam ser sedosos. Félix quase deu um pulo,
deu dois toques na mesa antes de estender a mão para um cumprimen-
to.
— Obrigado, doutor, é melhor voltarmos aos costumes higiê-
nicos. — Jerônimo o deixou sozinho. Não fez isso pensando na saúde.
— Mas me diga, fiel, você também está mascarado? Está ha-
vendo algum surto de gripe por aqui? — Félix questionou, preparan-
do-se. Coçou as bochechas rosadas e limpou o suor.
— Não, mas um surto de pecados e desvios. Porque doenças
vêm e vão, mas o diabo continua tramando por aí.
O médico fingiu que entendeu.
— Eu, se fosse o senhor, usaria também. Pedi que todos adqui-
rissem a sua na loja do seu Macena. O homossexual profano morreu e
deve ter espalhado seu vírus do pecado e...
— Eu tenho uma pergunta, fiel Jerônimo. — Félix pediu tempo
erguendo a mão. Claro que se encheu com aquele discurso — Que
autoridade o senhor tem para determinar esse estado de alerta? Eu
acredito que isso deva ser dito por autoridades sanitárias e da saúde, a
menos que o senhor me comprove...
— E por que sua medicina não salvou todas as almas que fo-
ram ceifadas pela loucura do fogo quando aquele vírus atacou? — Je-
rônimo se afastou agressivo. Félix também recuou.

275
O manifesto do fim do mundo

Deise arregalou os olhos, não iria se intrometer. Melhor ficar


somente nos bastidores e repassar a fofoca depois.
— Mas você foi vacinado! — Félix jogou irônico — Ou recu-
sou?
— Sinceramente, não boto muita fé em uma vacina dessas
grandes corporações cheias de mentes doentias que só servem para
intimidar o povo e mudar seus preceitos.
O médico riu.
— Você tomou? — questionou novamente — Aposto que sim!
Jerônimo suspirou, furioso.
— Se eu fosse o senhor, rezaria enquanto há tempo, para não
acabar tendo o acesso de loucura igual ao do homossexual. Eu rezaria
para que o meu valor não estivesse totalmente no meu pulso ou no
meu pescoço... — fiel era direto, apontou com os olhos para o relógio
de Félix e, depois, voltou para o colar. Ambos reluzentes na cortina de
Sol.
— O.k. Deise, eu tomo o suco outra hora. — Félix se levantou,
sorriu paciente. Era perca de tempo discutir. Mas Jerônimo parecia
que queria ir até o fim com um arsenal engatilhado.
— Eu falei algo que atingiu seu ego mundano? — questionou
enquanto o médico caminhava paciente, tentando não chamar a aten-
ção. A paciência quase no fim.
— Pergunte para qualquer um quantas almas foram salvas co-
migo e quantas foram salvas no seu consultório. Você chega aqui com
seu ouro reluzente, essa riqueza que não importa... — Jerônimo tinha
força na voz, mas perdia para os desequilíbrios. A palavra fome surgiu
na sua cabeça. Em segundos, viajou para uma cena com três pessoas,
todas esqueléticas. Tinham olhares perdidos, mas sabiam como dividir
o restante de feijão naquela panela humilde. A lembrança quase engas-

276
O manifesto do fim do mundo

gou — Essa riqueza que... só o distancia dos reinos celestiais!


O restante dos vizinhos não perderia por nada o bate-boca. Já
estavam na calçada opinando mentalmente sobre a discussão de um
lado só. Embora Félix bem distante e despreocupado. Sabia do gênio
de Jerônimo, todos falavam tanto nele, não tinha como não formar
uma pessoa em sua cabeça.
— Fiel Jerônimo, você está bem? — Deise resolveu agir. Pas-
sou a mão nas costas do homem e sentiu o suor grudar a camiseta na
sua mão.
— Não precisa me tocar, Deise Maria, estamos sob vigilância.
— ele respondeu à amargura na sua voz falhada.
— O senhor quer uma água?
Jerônimo então olhou para o destino de sua missão inicial, an-
tes da discussão. A silenciosa e mais evitada casinha da rua. O ao redor
lotado de violetas coloridas formulando um acesso de irritação. Termi-
nações vermelhas quiseram invadir a esclerótica dos olhos do homem
suado, tinha se esgotado rápido demais para uma controvérsia.
— Eu quero é saber também qual é a desse rapaz, filho de dona
Raimundinha. Eu quero descobrir o porquê do mal nos rondando, pri-
meiro com a morte esquisita do homossexual e agora com a loucura de
dona Josefina e...
— Dona Josefina? O que ela fez? — Deise se animou curiosa
— Eu a vi hoje sem máscara... Ela pode não estar vendo as mensagens
que botamos no grupo de conversa da cidade...
Jerônimo se chateou rápido com a enxerida. Resolveu ignorar.
Mais ruídos estrondosos das obras da prefeitura. Só que dessa
vez não eram berros com ordens, ou reguladores. Eram gritos guturais
de temor.
Deise e Jerônimo se entreolharam e correram. Os vizinhos

277
O manifesto do fim do mundo

também. O bom da cidade pequena é que todas as cabeças se conec-


tam rápido, porque simplesmente todos em alerta criam uma rede in-
finita. Então... como os segredos são enterrados?
A poeira subiu, e o Sol deformou a terra em brasa. O sertão
rodopiou surpreso com mais uma inédita palhinha caótica. Trabalha-
dores deixaram os esqueletos metálicos e o maquinário pesado. Por
pouco, um trator de esteira não acertou um rapaz, a máquina se di-
zendo indomável, trombou contra uma parede levando o progresso de
parte da construção.
A confusão evocou mais gritos, olharam para cima para ver
a força do futuro prédio estremecer como num terremoto. Estavam
todos dispersos esperando as cortinas de poeira revelarem a gênese do
problema. Fiel Jerônimo à frente; Deise, com o celular apontado, atrás.
Todos os outros se perguntando, também questionando os trabalha-
dores da obra.
Dentro do esqueleto arquitetônico, onde já tinha certa cober-
tura, um espetáculo de luzes irradiou como numa balada.
Fios vivos se enroscavam na estrutura como nervos, cuidando
de algum órgão que logo teria para si um destaque. Quanto mais as
luzes abarcavam a visão da plateia, mais reações eram expelidas. Deise
botou a mão na boca e Jerônimo deu um passo para trás, seus dedos
trêmulos sem suas ferramentas.
Os olhos de cada um foram até os limites das respectivas ima-
ginações, porque o fenômeno luminoso com o globo ao centro não era
específico.
O que quer que estivesse fazendo era múltiplo, feio, carregado
de organicidade e saliência. Parecia tão devastadora a sua apresenta-
ção, fazendo com que se perguntassem se cada um realmente estava
contemplando o mesmo. Se não tinham desavenças visuais quanto aos

278
O manifesto do fim do mundo

podres daquela cena, cheia de cores, mas tão indecorosa. Com seus fi-
letes vivos dançando caçoístas para o tempo. Era muito à frente. Cheio
de épicos do futuro. Absurdamente eclético.
Com o mesmo teor enigmático que os olhos de dona Josefina.
Entretanto, sem o charme dela.

279
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 35 –
13 de junho de 2019. Jose-
fina. Precisamos voltar no
tempo.

N unca souberam bem o que aconteceu com a chuva de me-


teoros perto daqueles limites interioranos. Mas existiu um clarão como
tsunami e, depois, o beijo de Deus. Dois eventos imediatos nos exatos
segundos de sua história. Próximos um do outro.
A comichão morna, como se fosse uma esfoliação divina, nem
parecia que iria arrancar a pele humana deixando só o lodo vermelho
no chão. Ela estava tão triste que não percebeu, aguardando os cum-
primentos. Um instrumental no fundo cresceu como a paz dentro de
si, mas ela jurava que iria esquecer os anos terrestres, ou que a entra-
da naquela explosão iria resetar qualquer linha de destino, colocar em
cheque se ainda continuaria mulher ou não, se teria o mesmo círculo
de conhecidos dentro de sua história. Ledo engano. Não havia neces-

280
O manifesto do fim do mundo

sidade de nenhuma linha de raciocínio espiritual, não ali. Quando o


tempo tinha seu medidor próprio.
Josefina quis chorar, a paz dentro de si abalou. Quieta, usando
um vestido branco com flores que não combinavam. Naquela atmos-
fera, nada orgânico combinava. Sua presença carnal era ignorante, mas
ela não tinha controle sobre aquilo. Alguns segundos levaram para fitar
a imensidão luminosa onde estava. A sala convidativa para o futuro lhe
aguardando. Apesar de todos os detalhes novos e incríveis, ela conti-
nuou com Antônio e Igor na cabeça, se eles ficariam tristes por... Por ela
ser alguém novo a partir dali.
Esperou seu anfitrião chegar. Não tinha como descrevê-lo. Por
mais que sua imaginação trabalhasse, ainda assim todos os espirais e
microrganismos se movimentando não completavam formas fáceis.
Para quê descrevê-los, se ela poderia simplesmente afundar naquilo,
deixar-se para qualquer rumo. Já estava entorpecida, não tinha com
o que lutar. Ela sorriu, ele também deve ter o feito. Seu sorriso era di-
ferente, tão contrário aos que Josefina conhecia, conseguia passar sua
mensagem mesmo na contradição. Tinha um espectro ambíguo e ela
decidiu ler como um sorriso.
— Eu queria falar do meu casamento, acho que não estou mais
bem com isso. Não sinto a mesma coisa de antes. Meu filho... eu acho
que ele tem medo de mim, ou me acha louca. — disse. Foi a primeira a
emitir um som.
Seu anfitrião se movimentou com particularidades. Milha-
res de micro explosões aconteceram para que ele se preparasse com
o restante. Daquele momento em diante, Josefina notou que deveria
somente responder. Tinha recebido a ordem pelo instinto, pela leitura
complexa do anfitrião e sua beleza gestual.
A atmosfera não tinha mais características do plano terrestre.

281
O manifesto do fim do mundo

Josefina apagou o pensamento da cabeça. Suposições criativas eram


traiçoeiras. Teriam muita influência em qualquer atitude dali em dian-
te.
O anfitrião perguntou. Luz. A primeira divagação.
Josefina entendeu perfeitamente. Não tinha como ser descui-
dada a ouvir errado.
— Sim. Eu estou nessa cidade há anos... — não gostou de ter
sido vaga, mas precisou.
Outro questionamento. Microrganismos esvoaçando pelo ar.
Confiando em cada esquina daquela sala etérea.
Ela aquiesceu.
— Meus pais? Eles eram um casal de fazendeiros... Você acha
que eu deveria contar tudo logo de cara?
Microrganismos convergindo. Bastões finos explodiam como
fogos de artifício, passeavam na frente do anfitrião amorfo.
— Tudo bem... — Josefina se deu por vencida. Seus olhos ma-
rejaram, não podia mentir. O cabelo livre balançava com as ondas de
energia daquela atmosfera — Eles foram fazendeiros... não se amavam
tanto. Tudo esfriou quando minha mãe soube de algumas condutas
ruins de meu pai. Eles brigavam muito, tinham dinheiro. Eram... mal-
vados. Cruéis. Eu pensei que você o conhecesse...
Microrganismos se espalharam como uma divergência feliz.
— É verdade? Você os conhecesse... — Josefina se encolheu.
Parecia envergonhada, mesmo que suas respostas fossem boas — eu
não gostaria de falar sobre isso... É um aspecto muito feio da minha
família. E agora, aqui, sinto tudo fresco em minha cabeça. Não poderia
estar dissimulando nenhuma palavra.
Filetes de luz formaram um círculo luminoso.
— Sim... eles eram... cientistas... — Josefina quis se desvenci-

282
O manifesto do fim do mundo

lhar, mas não pôde. Sua pele esbranquiçada ganhou uma coloração
vermelha. A própria atmosfera era inadequada para ela, mas a pele
conseguia privar alguns sintomas — Eles faziam coisas cruéis... se di-
ziam neofascistas. Você conhece o neofascismo? Os homens que anda-
vam com meu pai adoravam o... — procurou a palavra — caótico... E
por isso eles resolveram fazer tais atrocidades. Pelo menos é o que eu
acho...
— Talvez me infectaram... — Josefina continuou, quis chorar.
Em seguida, ergueu a cabeça — Você acha que estou infectada?
Nenhuma resposta do anfitrião, ela continuou com rodeios.
Sua cabeça queria pregar peças, ressurgindo com todas as paranoias
que fazem o sono escapar. Mas Josefina sorriu para a estupidez de si.
Seus dentes ficavam tortos, mais alguns segundos naquele ambiente e
iria desintegrar até sobrar partículas estrangeiras.
— Mas me parece que agora nada disso importa, e o que eles
fizeram também não. Como pode? Como chegaram a vocês? E... o que
vocês pretendem fazer?
A luz mudou. A energia também.
— Quem são vocês?
A pergunta se saiu herege. Dona Josefina estremeceu com os
pelos do braço arrepiados, enroscando-se entre si como numa luta li-
vre. Pareciam transmissores elétricos, parte de algum espetáculo bem
maior, aquele corpo esquelético com veias azuis não era tanto assim.
Servia apenas como a peça de um grande monumento no cosmo.
— Tudo bem. Desculpe. Vou responder à pergunta. Vou ser
objetiva, mesmo achando que certos termos podem soar difíceis para
o seu entendimento.
A luz abrandou. Fez com que os artifícios teatrais dispersas-
sem.

283
O manifesto do fim do mundo

— Meus pais tinham vários terrenos. Alguns espalhados na


região de Parnaíba. Visitávamos sempre o interior para uma vistoria de
suas fazendas, dos seus negócios. Você entende isso? — ela questionou.
O anfitrião gesticulou com milhares de eventos, pediu para prosseguir.
Josefina continuou com a voz vacilante.
— Posso contar uma história? Meu pai sempre foi muito pro-
tetor comigo. Nunca me esqueci de um bode feio que me perseguia
vivendo pelas terras da vizinhança. Apesar de ele tentar, meu pai não
o deixava encostar em mim. Se divertia quando o animal corria atrás
das crianças pobres das redondezas, Certa vez, chegou a cegar um dos
filhos dos trabalhadores na fazenda. Mas o bicho tinha mais... mais
importância que a criança. Para o meu pai, aquelas pessoas eram co-
baias. Eram miseráveis que passaram na fila do céu para preencherem
alguma lacuna inútil. Agora eu percebo como era cruel. Ele chamava
as crianças pelo estalo do dedo. Às vezes, socava os meninos quando
eles se aproximavam de mim. Diziam que aqueles paus sujos não iriam
encostar na filha dele.
A luz ficou verde. A conversa tinha um teor tão sombrio que a
autoridade repensou sua forma. Continuou atenta à questão.
— Eu nunca vi direito o que ele fazia, mas minha mãe se inco-
modava. Eu sempre dizia... — Josefina teve mais uma crise interna. As
palavras pareciam contra ela — Quando eu olhava para aqueles olhos
tristes, sempre dizia a mim mesma que nunca iria ser como a minha
mãe. Que tinha medo do meu pai, porque ele sorria feio, e eu estreme-
cia quando ele surgia com aquele bafo imundo cheio de lascívia...
A luz roseou.
— Sim... sim... eu logo saí de casa. Deixei Teresina e...
Nenhuma mudança no espaço etéreo. O que o anfitrião pensou?
— E... vocês?

284
O manifesto do fim do mundo

Mais filetes explodiram no ar formando, em seguida, um arco-


-íris.
— Tudo bem... Tudo bem... — Josefina recuperou o fio da his-
tória. Seus movimentos tinham ficado mais lentos.
— Eu fui para aquela terra ao lado de Piripiri. A cidade já
crescia bastante. Meu pai tinha dado o terreno como último presente,
logo após eu conhecer Antônio. Nos apaixonamos como qualquer boa
história de amor, cheia de adjacências, com uma química sexual sem-
pre maravilhosa. Eu gostava de dar prazer a ele, revirava meus olhos
quando Antônio me encontrava e nos conectávamos tão carnalmente.
Ele ao fundo de mim, e eu o cobrindo. Parecia que depois de algumas
poucas palavras logo iriamos decidir uma história de amor para sem-
pre e...
Os microrganismos passearam novamente pelo ar. Tinham
bagunçando a atmosfera.
— Não... eu não odiei meu filho quando ele nasceu. Por que
você perguntou isso agora? Eu só o achava intruso... — Josefina tentou
se reconhecer, mas parecia cheia de minhocas na cabeça. Seus olhos
afundaram com bolsas, estava começando a ficar cadavérica. A linha
da bochecha desenhou bem o osso. A pergunta tinha atravessado fun-
do parte de si.
— Eu não sabia por que deveria me aproximar de algo que
parecia repugnar a mim, como se aquela criança não fosse parte de mi-
nha linhagem. Eu tinha intimidade com Antônio, mas não com aquele
bebê. Ele parecia de outro lugar. Tinha sido empurrado em minha bar-
riga contra a minha vontade... Por que você não me deixa continuar
a história sobre meu casamento? Vocês não querem saber mais sobre
meus pais? Nossa...
As luzes vibraram.

285
O manifesto do fim do mundo

— Mas isso é importante para mim. Você sabe disso...


Novamente, uma reação do outro lado.
— Então... se são pontos relevantes... uma pergunta relevante:
por que você não se questiona como eu aceitei de tão bom grado essa
oferta? — Josefina pontuou mistério na sua fisionomia feia. Por pouco,
a pele iria rachar mais, acarretando na total desintegração.
As luzes diminuíram um pouco, os microrganismos ficaram
mais leves.
— Sim. Você sabe o que eu sou e o que eu desejo. Você me co-
nhece bem, e eu acho que te conheço bem. Eu torci para que viessem,
principalmente nos piores intervalos da minha infância, mas parecia
algo distante. Eu gostaria agora... — Josefina vacilou com o olhar —
de falar sobre outra coisa. Começo a ter curiosidade... Talvez, eu não
queira mais falar sobre o meu pai ou sobre meu casamento...
A luz se agitou. O anfitrião deixou tudo confuso e embaralha-
do. Tinha perdido um pouco do dedo de Deus.
— Eu... não sei. Você agora me fez uma pergunta difícil. Eu
não posso ter controle sobre o que Igor vai se tornar. Você tem muito
interesse no meu filho, e eu queria falar sobre outra coisa... — Josefina
começou a ficar inquieta, mas era tarde demais. Sua composição foi
desmoronando como uma estátua de areia, levada pelo vento. Todas
suas veias vibraram com uma energia roseada, parecia no ponto da
transformação perfeita.
— Eu não quero falar dos meus pais, nem da minha vida, nem
do meu casamento. — precisou dizer.
Ainda assim, os microrganismos redesenharam o ar.
— Eu posso fazer perguntas?
Josefina não obteve resposta.
— Por que eu? Por eu ter pedido?

286
O manifesto do fim do mundo

O anfitrião redesenhou o espaço, com seus milhares de corpos


furta-cor imersivos.
— Mas muitas pessoas pedem... mesmo aquelas que não falam
por elas mesmas.
As luzes responderam, somente daquela última vez.
Josefina sorriu, conheceu o segredo do mundo. Seu tempo de
descoberta em estado físico parecia perto de acabar.
— Eu sou grata por tudo... Eu... amo você. Também amo o
meu marido, acho que também amo meu filho. Mas... — ela precisava
se redescobrir — Eu... irei pagar pelo erro de meu pai? O que vocês vão
fazer com essa informação?
As luzes não iriam responder.
— Não querem responder... Tudo bem, eu entendo. Confio
em vocês. Entrego meu presente a você. — Josefina sorriu lentamente.
A luz não a cegava mais — Eu nunca entendi por que precisaríamos
disso. Você chegou e agora posso lhe entregar o presente. Eu sempre...
Durante meu casamento... Sabe? — começou um acesso insano. Falan-
do consigo mesma agora.
— Eu falo muito no meu casamento, antes de Igor. Eu... gosta-
va do meu casamento... Naquela época, eu talvez tivesse dúvida.
Os microrganismos foram se juntando, até um espécime de
luz amorfo. Não estavam interessados mais no restante.
— Se eu sabia que isso iria acontecer? Não. Eu não poderia
prever nada, não funciona assim. Mas eu entrego meu presente a você.
Talvez possa aliviar parte do sofrimento da minha família.
Josefina parecia mais maníaca com suas expressões aumen-
tando.
— Não é justo eu continuar com tantas perguntas e você quie-
to com todas as respostas.

287
O manifesto do fim do mundo

E as luzes foram se comprimindo mais.


— Acho que está na hora de entregar o presente a você. Não há
mais nada a fazer. Tudo pelo bem da minha família e do meu casamen-
to. Vocês me prometeram...
...

Dia treze de junho de 2019 Igor não conseguiu dormir por


conta da chuva de luzes no céu. Dentro da pré-adolescência, longe do
amigo, seu coraçãozinho tinha ficado menor. E naquela escuridão a
tristeza lhe reconfortou como não deveria. Deixando-o distraído sobre
eventos na tangente.
Perto dele e do fim do mundo.

288
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 36 –
O dedo de milhares de vidas.

P or mais que estivesse estalando um barulho agudo por cima


de toda a estrutura de Russinha Amada, professora Cecília não desis-
tiu de continuar escrevendo no quadro. Não se rendeu para a rápida e
esquisita barulheira daquela manhã, assim como não iria ceder para os
ruídos de obras que já tinham passado dos limites aceitáveis. Deveriam
ter sons pesados, não cantorias metálicas como uma guerra no céu. Se
um dia as trombetas do apocalipse tocassem, o som deveria ser pareci-
do com aquele.
Cecília baixou as pálpebras, cansada. Sua boca estava seca, os
lábios rachando. O tempo seco não podia ter simplesmente piorado
como num passe de mágica. A situação climática global tinha suas ín-
timas desavenças, suas contradições e imaginações. Era um contra-a-
taque preparado e cauteloso.
— Tia, a senhora escreveu “Purta”. — um dos meninos disse
sorrindo. Cortou o silêncio de lápis riscando e de folhas amassadas.

289
O manifesto do fim do mundo

Cecília demorou dois segundos para focar no quadro. Sua ca-


beça divagou sobre tudo o que ela queria realmente ter escrito. O seu
“o” ficou feio, puxou para um “u”. A caligrafia naquele dia desandou
como nunca antes.
— Se tirar o “r” a palavra se torna o que a Mariana é. — um
cabeçudinho disse e arrancou o riso de toda a classe. Agora eram gritos
de criança competindo com barulheira do mundo externo.
Bola e Milton, tão desconfiados, parecendo que tinham as-
sassinado o último presidente do Brasil. Riram com a maior gaitada,
acima da piadinha sem graça. Quanto mais Bola ria, mais a mesa era
empurrada para frente por conta da barriga. Milton quis zoar o amigo,
mas eles estavam compartilhando um segredo de estado. Não era hora
de inimizades.
— O que é isso, Francisco? Cadê o respeito? Vai agora para a
sala da diretoria! — Cecília disse contendo uma fúria perversa, que
não lhe cabia. Piscava o olho esquerdo. O da direita ardendo sensível
à luz. Acabou como nos filmes de comédias escrachadas em que os
atores ganhavam com os exageros faciais.
— Ah não, tia... foi brincadeira... — Francisco se protegia com
o braço enquanto Mariana o atacava com o estojo. As meninas ficaram
do lado dela, os meninos do dele. A sala iniciou uma algazarra maior
que os sons metálicos.
Cecília respirou fundo. Fechou os olhos, pensou exatamente
em uma cena de centenas de quilômetros de distância. Revirando o
seu baú emotivo. Cogitou ser uma possível TPM, mas naquele dia seu
juízo estava mais afetado. Era pior para quem não conseguia expressar
tanto. Ela mesma tinha se graduado em ser a pessoa mais classuda dali.
Já seus sonhos, disseram o contrário. Os que perturbaram sua noite
anterior com visões deturpadas sobre sua realidade.

290
O manifesto do fim do mundo

Preciso ser forte... Preciso ser forte. Se regulou. Uma noite mal
dormida não podia criar um cataclisma.
— PAREM! — e lascou um tapa no quadro de giz. A mão ma-
gra roseou com o impacto.
Todas as crianças pararam de rir. Primeiro, pela ordem e, de-
pois, pelo detalhe inconveniente.
Bola guinchando. Parecia um golfinho. Se inchou de graça
vermelho de espremer as bochechas faltando ar. A piada tinha até pas-
sado da validade e o garoto continuou bobalhão.
— Bola? — Milton alertou para que o amigo se tocasse. A clas-
se inteira olhando para ele como se fosse um maluco. Mas o garoto
não conseguia parar, os bracinhos gordos engrossaram enquanto ele se
debatia. A mesa deu um pulo e o assento da cadeira desceu, adiante a
resistência do plástico.
— Bola? Você está me desacatando? — Cecília se aproximou
da mesa do menino e se curvou. Depois, notou a expressão de Bola
divergir.
— Bola? Você está bem?
— Ai, meu Deus, tia... ele tá vermelho! — Mariana disse. Deu
um peteleco na orelha de Francisco pela gracinha e correu para perto
da professora. Sempre ela quem tomava a frente das situações. Por isso,
o motivo de tanto bullying. Augusto a chamava de “senhora arrogante”.
Milton quis sorrir, mas se conteve. As bochechas de Bola co-
meçaram a aumentar para que a cabeça do garoto se transformasse
numa esfera imperfeita. Dobras na nuca já encostavam nas costas cur-
vadas e acentuadas. Os peitos de bola ficaram caídos, mas se ampara-
ram rápido na barriga de balão. Enquanto isso, ele soltava um prolon-
gado “s”, a única nota que conseguia emitir com os dentes trincados. Se
a sua boca se fechasse, não abriria mais.

291
O manifesto do fim do mundo

Perto de explodir.
— Meu Deus... Mariana, vai chamar a diretora e o Zé do Leite.
— Cecília se afastou. Mariana correu com sua esperteza, adorava se
tornar útil.
— Professora, se ele explodir... — Milton começou.
— Vai sair merda para todo lado. — Francisco cotovelou um
dos amigos, mas ninguém riu. Estavam todos preocupados. Os braços
de Bola não conseguiam mais abaixar.
— Bola? — Cecília abanou as mãos. A ideia da explosão era
ridícula, mas por precaução ela pediu que todos se afastassem. O cres-
cimento do corpo do garoto cessou, deixando-o se afogar em seu pró-
prio inchaço.
— Bola? — a mulher encarou os olhinhos encolhidos. Pediam
socorro indo de um lado para outro.
“Bola?”
O corpo do menino, dentro de um segundo, afogando-se
numa massa que não podia ser gordura. Àquela altura, a imagem cari-
cata tinha se concretizado, parecia um desenho animado antigo e ofen-
sivo, sobre a retratação de pessoas gordas para mera diversão cênica.
A diretora e Mariana chegaram. Regina, por pouco, não
desmaiou.
Crianças eram inventivas, não era possível que as palavras da
menina fossem reais. Mas Bola tinha inchado desafiando a estrutura
de um corpo. Alguns garotos riam, mas a situação foi perdendo o obs-
ceno fio cômico. A sala tinha parado no tempo, o odor de violetas con-
gestionando um pouco a tensão. O barulhinho prevendo uma catás-
trofe ficou ruidoso, e Cecília temia o impossível, forçando-se a prestar
atenção, mesmo quando sua cabeça vacilava com pequenas pontadas.
— O quê... Meu Deus, ele está inchado! Chama a mãe dele! —

292
O manifesto do fim do mundo

a diretora queria tocar em Bola, mas o nojo foi maior.


Cecília estava parada. Congelada. Seus olhos tremiam fitando
os aperreios de Bola. Coitado do menino, a sua boca não abria mais. A
orelha foi pra frente com as costas inchadas como travesseiro. Algumas
vozes lhe diziam o que fazer, mas as que deveria escutar não atravessa-
vam Cecília. Por isso, a diretora Regina precisou ser radical.
— Cecília? Acorde! Você escutou o que eu disse?
A professora se virou.
— Não... Não escutei. Desculpe, senhora.
— Cecília?
As duas se encararam. Significados discordantes entre o que
cada uma pensou sobre a outra.
— Eu vou ligar.
Finalmente, o barulho de alguém correndo no corredor. Zé do
Leite apareceu escancarando a porta e se mostrando mais assustado
que todos na sala. Ele tinha boas-novas, bem mais horripilantes.
— Diretora! Diretora! — falou com a voz rasgada.
Bola perdeu o protagonismo na mesma hora. Ninguém nunca
tinha visto aquele velho barbudo e magro tão perturbado. Suas feições
fundas desafiavam a composição de um rosto, parecia que iria chorar.
E Zé do Leite não chorava nunca. Eis a questão.
— O que foi, Zé? Eu estava atrás de ti! — a diretora disse.
Zé do Leite fitou Bola, todos ao redor do menino como numa
seita. Cecília tão transtornada e aérea que foi a única que não se conec-
tou com a energia alarmante dele.
— Que coisa do demônio é essa? — ele questionou.
— Fala, Zé! — a diretora pediu urgência. Balançou a cabeça de
um lado para o outro, o dia não estava agradável.
Ele reorganizou as ideias.

293
O manifesto do fim do mundo

— Fiel Jerônimo e Deise desmaiaram perto das obras. Os tra-


balhadores também! O prefeito e dona Josefina estão lá, preocupados!
— O quê? — a diretora contorceu o rosto.
— Ninguém sabe o que foi que houve! Tá a maior confusão!
Zé do Leite parecia que ainda não tinha dito o mais importan-
te, e a informação realmente lhe deixava afoito.
— Eles estão desmaiados, e da boca deles tá saindo uma baba
rosada com verde. A maior nojeira! Os olhos da Deise ficaram que
nem os do cachorro que morreu da dona Cleide, branco como de fan-
tasma.

294
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 37 –
Rafael canta para estranhos.

U ma célebre escrita para o manifesto. Para que contenha todas suas


excentricidades desenhadas no lugar certo, mesmo que na sua composição tenha
caos.
Russinha Amada já não era tão menina assim. Pequenas catás-
trofes por toda parte nem todos os habitantes cientes ou “inteirados”
sobre o assunto. Não tão longe dali, retratos paralelos eram construí-
dos. Igor resolveu dar uma volta pela mata com Rafael, mesmo com o
seu celular ele e o amigo desconheciam os eventos. Para eles, a manhã
estava sendo um pouco nublada, ainda que com o Sol em toda sua
regência espetacular. Um prontinho e específico para aquela cidade. O
clima nostálgico era ameno, e aquele dia parecia que não deveria existir
dentro do calendário tão confortável das pequenas cidades.
Rafael afastou alguns galhos que pareciam bichos-pau gene-
ticamente modificados. Tinham nós e eram longilíneos, grandes pra
estatura normal. A terra seca era quente, mas o odor suficiente para

295
O manifesto do fim do mundo

um tempo do contínuo das violetas coloridas espalhadas em todos os


lugares. Igor sempre ia atrás pensativo, alguma de suas formulações
sobre os segredos que as cigarras queriam contar se pudessem. Seus
ruídos depois de escarradas eram tão fantasmagóricos, pareciam api-
tos apocalípticos. Alertando quem adentrasse uma região tão densa de
calor e secura.
Quando os dois amigos chegaram a um espaço mais aberto,
perto de uma árvore torta, na imensidão verde e baixa, sentaram-se
numa rocha estranha. Parecia até um deslize que por pouco deu vida
a uma obra de arte. Bem mais atrás algumas casinhas com suas telhas
brilhando no Sol. As cigarras tinham enlouquecido. Um fio longo das
instalações perto da pista mergulhou no cinza e no verde, no amontoa-
do de mato e galho seco. Seria interessante saber para onde levaria. Se
ainda existiam mais fantasias depois daquele silêncio.
— Sabe, Rafael... — Igor continuou taciturno — se a sua pes-
quisa tem ligação principalmente com o jardim lá de casa, por que não
vamos logo lá descobrir? E... você bem que poderia deixar de manha e
contar mais sobre essa empresa aí...
Rafael jogou algumas gotículas de suor no chão. Para aquela
manhã, tinha escolhido uma roupa mais descontraída como a de Igor.
Seus braços desenhados brilhavam no suor, contraíam-se quando ele
sentia picadinhas de mosquitos.
— Eu já te disse tudo o que você precisa saber.
— Nossa... eu tenho a sensação de que você está escondendo
algo. Assim que chegou, tudo começou a ficar esquisito...
Rafael riu.
— Eu vou te contar mais um pouco porque gosto de você. Va-
mos lá...
Urubus desenhando na pista a quilômetros de distância. A

296
O manifesto do fim do mundo

presença deles perturbava Igor, deixando-o mais cismático. Mesmo


aqueles galhos tão estáticos e frágeis e o ar continuou animoso. Não
sabia dizer se era miragem pelo calor ou somente mais alguma inter-
venção perturbada como a que tinha visto na noite anterior... Ele pre-
cisava reorganizar as ideias.
— Parte também do nosso trabalho é detectar células
“bizarras” pelo país. Não somente pesquisar eventos significativos que
acontecem, mas situações criadas por pessoas. Na maioria das vezes,
por pessoas ruins. — Rafael soltou, didático. Deu um sorriso nervoso
para animar Igor.
— É como se fôssemos pesquisadores sociais. Nosso trabalho
é complexo. Vou contar um exemplo: de uns anos para cá, “coisas es-
tranhas” estão acontecendo no Brasil, como pessoas desaparecidas ou
outros crimes que a polícia não consegue decifrar. Proporcionalmente,
estamos vendo eventos como seitas ou organizações fascistas crescen-
do desde quando virou “moda” discutir na TV.
Igor apertou um dos olhos, pensativo. A distância de tópicos
pareceu muito abrupta. Não conseguiu entender onde o amigo queria
chegar, mas algo dentro dele pedia para que ficasse em alerta, em briga
com suas “borboletas” no estômago.
— Parece um bagulho muito conspiracionista... Eu pensei que
o fascismo estava decaindo... e... — ele fez um gesto com o indicador,
balançando-o para a próxima ideia — aqui no Nordeste isso deveria
ser bem incomum. Sempre votamos em partidos de esquerda. O Piauí
então! Russinha Amada quando era só uma extensão de Piripiri, tiran-
do eu acho que algumas poucas pessoas, toda votou no...
— Mas quem venceu? — Rafael interrompeu com mais nervo-
sismo do que o necessário. Igor notou a respiração do amigo querendo
falhar. Ele fingia bem— Mesmo que hoje em dia estejamos governados

297
O manifesto do fim do mundo

por um partido de esquerda, os problemas não acabaram. E a “resis-


tência”, pequenos grupos fascistas que se alinham com pessoas de di-
reita, ou extremistas, está em todos os lugares.
Igor se esquivou.
— Nossa, mas o que isso tem a ver com o meu jardim? Ou
com a minha mãe? — o ponto onde queria chegar — Ou então com o
Rarizes?
— Calma, seu chato, você não deixa nem eu terminar de fa-
lar... — Rafael deu um empurrãozinho no amigo, quase desequilibran-
do-o.
Mais dois urubus chegaram para uma reunião com os anfi-
triões de antes. Montaram uma roda bicando o chão. Não tinha ne-
nhuma carne podre no meio da pista, por isso as aves pareceram
robóticas, se estavam disfarçando não faziam direito. Era como uma
pequena falha inconsistente da natureza, um erro incalculável. Os bi-
chos alternavam entre o movimento mecânico e a fitar dois garotos
distantes. Totalmente loucos e excessivos.
— Tudo bem. — Igor devolveu com outro soco leve nos om-
bros do amigo.
— Então... continuando... Um dos eventos mais estranhos, dos
quais eu pude pesquisar, foram as escavações em terrenos de antigos
nazistas. Alguns casos ficaram famosos como o de famílias que escra-
vizavam crianças, mas outros iam além. Você já deve ter visto isso na
TV. — Rafael sugeriu, assertivo.
— Certa vez, numa dessas pesquisas da minha empresa, fica-
mos sabendo de pequenos laboratórios de famílias que se alinhavam
com a política escravocrata tempos atrás, que não fizeram só horro-
res como raptar crianças ou escravizá-las, mas que também as usaram
como cobaias em experimentos científicos. Tentando alguma espécie

298
O manifesto do fim do mundo

de resultado que só funcionava na cabecinha racista deles


Igor continuou atento ao assunto.
— Mesmo anos depois, após a turbulência da era Vargas, de-
pois até mesmo desses debates recentes, conseguimos detectar resí-
duos desses experimentos. De famílias que aparentavam ser “do bem”,
roubando crianças para praticar seus experimentos bizarros, tentando
“criar” monstros, algum tipo de exército para sabe lá o quê. Nunca
houve limites para a criatividade dessas pessoas. Já chegamos a desco-
brir laboratórios secretos alinhados a porões onde escravizavam crian-
ças. Celas debaixo do chão e até túneis que conectavam cidades a sítios.
Rafael pausou por dois segundos, antes de continuar. As ima-
gens que se formavam na sua cabeça pareciam perturbá-lo seriamente.
— Nosso país é grande, “misturado”, cheio de cores e cultura.
Mesmo assim, inúmeras células fascistas estão em funcionamento por
toda parte. E...
Olhou de relance para Igor.
— E o quê, Rafael?
Ele suspirou.
— Uma possível célula neonazista foi “detectada” aqui em Pi-
ripiri. Depois da criação das cidades gêmeas, as desconfianças migra-
ram para Russinha Amada. Porque, pelos nossos cálculos e pesquisa,
o possível funcionamento de um laboratório cruel e clandestino existe
nas bordas da cidade. Não exatamente dentro dela.
Igor fechou a cara. Ele entendia o peso daquelas palavras, mes-
mo quando todas levitavam tentando aterrissar no chão racional de
sua cabeça.
— Em sítios? Mas... eu moro numa casa. O quê? Você está
dizendo que a minha família é nazista ou sei lá o quê? E você está me
dizendo isso agora? Que porra é essa? — levantou-se rápido. Sua cabe-

299
O manifesto do fim do mundo

ça explodiu de teorias, também com imagens da noite anterior. A mãe


obscena por cima de um marido cadavérico e doentio. Pareciam duas
criaturas vulgares.
— Igor, calma. Me deixa continuar. — Rafael deu a mão para
ele, mas o amigo recusou.
— NÃO! Você tem noção do que está falando? Rafael, você
sempre foi meu amigo, desde a infância. Você conhece meus pais. Eu
conheço sua família. Sempre estivemos juntos em tudo. Crescemos
juntos! E aí, do nada, você vai misteriosamente pra São Paulo e volta
com esse papo de filme de terrorista?
Rafael rolou os olhos.
— Nossa, por isso, que eu não gosto de te falar as coisas. Você
faz logo um drama.
— EU?
— Tá, Igor. Pois finge que eu contei uma historinha de terror
qualquer. Pode voltar para a sua casa. — Rafael soltou, e Igor se enfu-
receu.
— Não! — deu um empurrão no amigo. Foi tão involuntário
que até o outro se assustou. Por pouco, não caiu num emaranhado
espinhento perto dali.
— Tá louco? Que porra... — Rafael se defendeu.
— Você é um escroto doente! — Os olhos de Igor marejaram.
— Eu não estou te forçando a nada! Eu só pensei que você
poderia me ajudar. Você não me deixou terminar de falar! Não estou
chamando sua família de nazista! — Rafael se levantou. Tinha mesmo
atravessado limites.
E não teve outra. Igor partiu para cima do amigo, quis acer-
tar um golpe, mas falhou miseravelmente. Primeiro, porque Rafael
era ágil; e, depois, por o amigo ser mais forte. Com agilidade, Igor foi

300
O manifesto do fim do mundo

mobilizado com um braço passando pelo seu pescoço enquanto uma


de suas mãos também era detida. Ficaram numa guerra de força por
alguns segundos até uma cotovelada desleal acertando a barriga de Ra-
fael.
— Não fale comigo nunca mais, seu doente! — Igor disse cus-
pindo a saliva salgada. Estava suado e sujo, agindo como um animal
confuso.
A cara amarga de Rafael no chão não se deveu à dor. Ele estava
realmente se culpando pela forma que conduziu a história, ou pensan-
do na burrada que foi aquela conversa sem um “contexto”.
Mas Igor sabia que estava sendo enganado e que tinha algo
a mais ali. E lhe enfurecia pensar que Rafael o subestimava. Desde o
começo, deixou o amigo seguir até o momento em que “mostrasse a
verdade”.
A próxima jogada ficou enigmática. Igor voltou pelo mesmo
caminho, furioso. Todos os seus sentimentos tempestuosos e querendo
de alguma forma se conectar com as imagens da noite anterior. E tudo
o que ele pediu foi por uma miragem do Sol na pista, que o levasse para
bem distante da nova realidade. Algum escapismo bobo momentâneo.
Na noite anterior, ele desconheceu mais ainda os pais. Sua
criatividade contornava com mais maestria o esquisito núcleo daquela
lembrança.
Rafael se levantou decidido a algo, precisava de uma ideia.
Cerrou o punho e correu perseguindo Igor. Estava todo suado e com
alguns desenhos pontilhados de areia na calça.
Quando virou o amigo bruscamente, apertou-o contra si
e lascou um beijo que foi bem recebido, apesar da dinâmica furio-
sa. Durando segundos. Os urubus de minutos antes agora tinham se
aproximado, rondearam por perto tentando alguma vítima morta ou

301
O manifesto do fim do mundo

simplesmente assistindo movimentos previsíveis. Quando a natureza


se desligou para os dois amigos.
Igor se afastou de Rafael e se deu conta do hálito de chiclete do
amigo. Também notou o que tinha crescido embaixo, envergonhado.
Ficou absorto olhando o rosto suado e bonito daquela nova face fami-
liar, mas ainda tão estranha. Parecendo que aquele beijo também não
continha veracidade.
Igor olhou de cima para baixo, tentando entender o que seu
corpo queria dizer. Avançando com a energia fervorosa crescendo ali
dentro. Mesmo quando aquele frio na barriga existiu, ainda conseguiu
se conter, com os dedos gelados de puro tesão, ou tensão. Perto da ou-
tra variável que desequilibrava o seu mundo.
Deu meia-volta e deixou Rafael com sua cara abobalhada.
— Some daqui. Você nunca foi bem-vindo de volta!

302
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 38 –
O mundo perto da destrui-
ção.

N ão é mais interessante deixar Piripiri como uma importante


telespectadora?
Perto da pista asfaltada, o mundo sem muitos acontecimen-
tos, a não ser carretas ou carros. Russinha Amada com um sentimento
tímido e melancólico, anestesiada pelos últimos eventos. E Igor sem
saber por que teve aquele pensamento exatamente no pior momento
de sua vida. O tempo tinha congelado, seus sentimentos todos confli-
tuosos, Russinha Amada se recusando a crescer, com certos problemas
que iriam acarretar numa fase adulta difícil.
Igor bagunçou os cabelos finos, porque ele precisava parar de
deixar seus pensamentos explodirem e divergirem para qualquer lado.
Pensou em Giovani e em todas as outras variáveis que surgiram rápido
demais. Ainda não teve tempo para digerir a morte do amigo, mas não
iria mentir para si. Havia algo naquele óbito que o fazia ficar apático.

303
O manifesto do fim do mundo

Ele não sabia o motivo.


Se colocou para correr na BR enquanto uma música ruidosa e
sem muita harmonia era repetida na cabeça com uma estrofe irritante.
Parecia que uma cigarra estacionou na sua orelha. Milhares de apitos
agenciando-o na chegada até Russinha Amada. Suas pernas fraquejan-
do no meio do caminho.
Até topar e cair. Parou o mundo exatamente no lugar que de-
veria. No meio do nada. O asfalto quente tinha rugas, e o céu tinha li-
nhas brancas e mais rastros. O mato era só mato e atrás dele só tinham
árvores encurvadas e mais carnaúbas, que davam para paredes esqui-
sitas de casas que não chegaram a existir. Algum projeto interrompi-
do. O matagal engoliu a construção, não podia derrubá-la e, por isso,
adornou-a com organicidade. O tempo continuamente agindo rápido.
Outra coisa no através também.
O que ele não podia ver, além de seus sentimentos misturados
e inúmeras teorias?
Levantou-se com pressa. Correu até chegar na movimentação
de acidentes. A aglomeração divertida metros depois. Era regra em
Russinha Amada. Primeiro, todos convergiam e, só depois, chamavam
ajuda.
— O que...
A casinha não tinha sido construída porque as pessoas que iriam morar
lá morreram. Pertencia a uma mãe de dois meninos. Seus filhos tinham sumido,
deixando-a com motivos para viver na periferia de uma segunda cidade caótica.
Restava ir embora para Teresina, onde iria passar fome e morrer alvo de brinca-
deira de algum filho de deputado e...
Todas suas ideias embaralhando entre si, como linhas de um no-
velo nas mãos de um filhote felino.
— Igor? Você estava onde? Está suando... Seus olhos estão ver-

304
O manifesto do fim do mundo

melhos. — Jurema disse assustada. Nas mãos, a sacola com compras do


mercadinho. Iria adiantar o almoço depois da fofoca quente.
Igor... Acorde. Ele pediu para si, continuando a delirar entre
mundos.
— Oi. — respondeu. Retornou rápido, depois que as cigarras
pararam de perturbá-lo. — Oi, sim, o que foi? O que houve? Estão to-
dos reunidos...
— Fiel Jerônimo e Deise desmaiaram perto da obra. Parece
que viram o demônio. A mãe de Deise tá assustada tentando ressus-
citá-la, uma coisa de doido! — Romário disse. O sapateiro barrigudo
de Russinha Amada. Estava todo suado e fedendo, o seu macacão era
estampado com graxa e cola — Sua mãe foi para lá ajudar.
Sua mãe...
— Minha mãe foi pra lá tentar ajudar? — Igor questionou mais
confuso.
Nunca tinha reparado nas bromélias próximo da esquina da
pista asfaltada. As folhas longas lembravam braços de alguma estrutu-
ra alienígena divertida. Sua coloração mudava intimamente com a luz
do Sol, parecendo felizes com a troca de calor no meio da imensidão.
Um jardim de cactos logo atrás se avivou com a força do céu vivo to-
cando em seu íntimo.
— Ela está lá. Tentando ajudar. Tão abençoada é dona Josefi-
na, sempre prestativa. Nem parece desse mundo. Nós vamos já lá.
...
A casa da mãe de Deise era como qualquer outra mediana.
Tinha um muro descascando, os números de identificação sem tinta
e a calçada era cimentada com acidentes do tempo. O portão velho de
deslizar antes era eletrônico. Mas agora Igor empurrou porque era de
o costume chegar sem bater. Pequenos rituais interioranos com a falsa

305
O manifesto do fim do mundo

sensação de segurança no ar.


Rumou para a sala e encontrou um grupo de mulheres de mãos
dadas, rezando para o alto no seu crítico expressivo. Deise estirada no
chão. Seus olhos brancos com aquela camada frágil por cima do preto.
Da boca não escorria nada, mas papéis bagunçados no chão, sujos com
verde e rosa, denunciavam algo. Igor sentiu um calafrio. Não acreditou
que estava vendo Deise daquele jeito. O marasmo da vida em Russinha
Amada não permitia escabrosidades e aquilo ultrapassava certos limi-
tes racionais.
— O que houve? — perguntou.
Dona Josefina continuou de joelhos. Levantou a cabeça e fitou
os olhos do filho, lançando um sinal para que não interrompesse a ce-
rimônia. A mãe de Deise retornou da cozinha com os pés arrastando.
Cobria a vela com uma das mãos. Estava chorosa, os lábios tremendo,
apesar do autocontrole necessário.
As outras vizinhas rezavam angustiadas. Cada uma com um
manto bordado branco e bonito, menos dona Josefina. Igor esperou
o desenrolar da cena. A mãe de Deise se ajoelhou com dificuldade e
colocou a vela bem no centro da mão relaxada da filha. Pingou, antes,
algumas gotas sem nenhuma resposta.
O fogo oscilava como numa arena agitada. Mas nenhuma cor-
rente de ar passeou pelo cômodo. O choro da vela era bonito de se
ver, entortando sua estrutura. Dona Josefina era a única a conter sua
emoção. Estava quieta e vigilante. Seus movimentos denunciaram algo
e só naquele momento Igor começou a perceber. Não eram comuns,
mas ardilosos e assiduamente dissimulados. Aquele olhar da mãe não
deveria ser o mesmo angustiado de anos atrás. E as suas ações eram
apenas parte de um processo de mudança que tinha acontecido àquela
mulher, o qual Igor nunca se deu conta, mas agora pôde ver.

306
O manifesto do fim do mundo

Despertando algo dentro dele. Mesmo com as borboletas


voando.
Dona Josefina não rezava, mexia a boca. A sincronia não era a
mesma com a das outras mulheres.
O que dona Josefina estava dizendo para si. Por que ninguém
percebeu?
E por que só Igor tinha que fazer aquela pergunta?
— Gente... Desculpa questionar, mas por que vocês não a leva-
ram no postinho? O que está acontecendo? Isso pode ser grave.
A mãe de Deise não gostou nadinha da interrupção, fechou o
tempo com sua feição.
— Eu sei o que estou fazendo, ela vai acordar. — falou e, de-
pois, pediu para as outras retomarem a reza.
Deise poderia morrer e a primeira coisa que fizeram foi levá-la
para casa antecipando um ritual antigo. Igor continuou impaciente,
iria ligar para o doutor Félix, mas Josefina o encarou mais rápido. Pa-
recia que tinha lido a sua mente e novamente fez aquilo com os olhos,
a ordem incisiva.
Mesmo com divergências, Igor se voltou para a antiga versão
da mãe. Antes tão fria e preocupada. Também áspera com aqueles que
tentavam lhe dar carinho. Só simpática com o marido. Ele ficou errado
ao tentar acompanhar o raciocínio da mãe. Quando parou, ela sucum-
biu de vez e virou dona Josefina com suas violetas coloridas. As únicas
filhas que lhe eram cabíveis.
Se ele rodopiasse com a visão pela casa, notaria mais detalhes
peculiares, como, por exemplo, o jarro de violetas especiais no canto.
Vivas, ainda com o lacinho vermelho da floricultura. Tinham chega-
do junto de Josefina até aquela cena, apesar de sua visão não ser mais
confiável. Viu os filetes dançando para lá e para cá como sambistas.

307
O manifesto do fim do mundo

Querendo um entrelaçamento com os das outras irmãs. Pareciam exe-


cráveis, não devendo pertencer ao corpo vivo tamanha distinção. As
violetas bamboleavam como se estivessem vivas e pensantes. Conhe-
cendo quem as observava.
Por isso, as pétalas se viraram e agiram como o rufo da cabeça,
o estigma que se dobrou e pareceu uma serpente. E na ponta um rosto
nasceu, com dentes e olhos negros. Sorrindo para Igor, que conseguiu
enxergar entre trancos e barrancos.
Até disse algo.
Para que o perturbasse para sempre.

308
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 39 –
Respiros.

N ão se sabe como Russinha Amada conseguiu sobreviver ao


sono de quatro dias de fiel Jerônimo e Deise. Apoteótico para todos os
limites da região. Por mais que a cidade se tornasse turbulenta, dona
Josefina conseguia apaziguar os ânimos, participando esquisitamente
de círculos de orações e debates espirituais. Ninguém levou nenhum
dos dois para o postinho, somente os trabalhadores da obra que foram
com o prefeito. Os homens logo se curaram. Acordaram e disseram
não lembrar do que tinham visto. Mas transitava entre algo “nojento” e
“saliente”. No final, o prefeito, que nunca dava as caras, abafou a histó-
ria e continuou ignorando a sua cidade. Lembrou-se rápido da cruzada
de olhares que teve com a bondosa dona Josefina. Ela sequer tinha
respondido à sua pergunta, se seu Antônio tinha ficado bem.
Russinha Amada decretou um pequeno luto pelo que seria o
“início” de uma segunda vinda do Rarizes para a humanidade. Agora
algo entrelaçado com os pecados e que deveria ser mantido em segre-

309
O manifesto do fim do mundo

do para que não devastassem a cidade com sensacionalismo e atenção


desnecessária. Depois que aqueles “homens de branco” vieram atrás
das violetas coloridas de dona Josefina sugerindo a criação divina,
Russinha amada se precaveu. E qualquer evento importante, dali em
diante, ficaria somente nos circuitos da cidade. Crianças desaparecidas
ou mortes estranhas. Qualquer bizarrice passeou somente nas entra-
nhas daquela pequena área.
Marilene também fez seu luto. Desconsiderou fofocas sobre
os últimos eventos e se trancou no seu mundo. Ficou silenciosa e es-
quisita demais para os padrões de si. Augusto deveria voltar à escola
em breve, mas ela pediu que ele ficasse mais um tempo afastado. O
seu emprego com dona Josefa, que tinha ido para os ares, também não
foi comentado. Nem ela fez questão de ir e nem a patroa fez questão
de ligar. E Augusto escapou com sua mensagem. Marilene continuou
quieta, alegrou-se quando viu que a mancha tinha sumido. Entretanto,
algo tinha mudado, para ela e para o filho.
Augusto, quando sozinho, circundava a brilhosa caveira, que
mais parecia uma obra divina dos cosmos. Coberta com brilhos, con-
tendo certas camadas finas furta-cor que passeavam como se tivessem
vida. O seu segredo de pouco tempo.
Já Bola, desinchou com um simples chá verde. E a mãe do
garoto, com vergonha, o tirou da escola por conta das piadinhas dos
colegas do menino. As vizinhas logo a culparam, fofocaram que a mu-
lher sempre deixou o menino comer como um “leitão”. E milhares de
comentários gordofóbicos foram em cheio contra a autoestima de uma
criança traumatizada pelos piores minutos de sua vida. Era irônico e
perverso que um chá qualquer tenha resolvido a situação. Ninguém
entendeu nada. E assim foi.
Deise e fiel Jerônimo só dormiriam. Russinha Amada ficou so-

310
O manifesto do fim do mundo

nolenta. Mas algumas pessoas estavam bem acordadas.


Igor também não quis prolongar conversa. Começou uma tur-
nê pela casa estudando e recolhendo fotos antigas da família. De tios,
avós, qualquer traço dos seus anteriores. Até uma Roberta mascarada
estranhou a energia quieta entre os cômodos. Ela era paga para ficar
de olho, já não estava mais entendendo nada sobre os últimos aconte-
cimentos daquela família. Gente com dinheiro é doida, repetiu sozinha
com escárnio.
As fotos não diziam nada, não tinham nada que ligassem ao
neonazismo ou a seitas fascistas. Quanto mais Igor pesquisava, mais
acreditava que Rafael tinha enlouquecido e que era ele a partícula in-
vasiva naquele corpo. Sua família não era nenhum projeto de mons-
truosidade. As fotos só indicavam pessoas sérias e desajeitadas para
poses, a cor desbotando retomava a nostalgia vintage.
Dona Josefina também não fez caso da pesquisa esquisita do
filho. Trancada no seu quarto, ignorou-o e se absteve da floricultura
já às traças. Roberta até se questionou sobre qual era mesmo a renda
daquela família, por se darem ao luxo de fechar Fortaleza Florida sem
nenhuma preocupação. Pobre não pode fazer isso. O tanto de gente que
morreu de fome por conta da quarentena provocada pelo Rarizes e
mais acessos da crise financeira...
Mas Igor continuou procurando. Fiel à teoria de Rafael ser
uma loucura sem nenhum embasamento.
Os álbuns de família eram poucos, com o restante escondido
no guarda-roupas dos pais. Mas ninguém podia entrar naquela forta-
leza com seu Antônio de vigia. O pai tinha se tornado tão ausente que,
às vezes, Igor se esquecia dele. Dona Josefina fingindo estar tudo bem,
e Igor retribuindo do mesmo jeito. Até quando tais atritos?
Uma foto caiu entre a bagunça de Igor, no meio de poeira e re-

311
O manifesto do fim do mundo

cordações avulsas. O retrato de uma criancinha que nunca viu na vida.


Achou esquisito, até sua cabeça recriar uma teoria tão louca quanto
seus últimos dias.
Mas ele precisava de mais provas. Pensou em conversar com
Rafael, mesmo sabendo ser uma péssima ideia. Parte porque depois do
beijo mais mudanças aconteceram dentro dele, algumas o deixaram
receoso consigo mesmo.
Quatro dias de respiro em Russinha Amada, onde todos só
cochicharam e ninguém agiu. A morte de Giovani se foi com o tempo.
O Rarizes é aquele amigo traiçoeiro que nunca se revelou de verdade,
e a cidade voltou ao ritmo hipocondríaco, aguardando ansiosamente
pela próxima etapa. Somente uma pessoa poderia dizer o que fazer.
Mas ela tinha sido vítima do “clarão do demônio”, como chamavam os
trabalhadores já recuperados.
As obras na prefeitura pararam por tempo indeterminado.
Pelo menos sem ruídos chatos.
Dona Josefina estava mais ativa, visitando seu jardim com fre-
quência durante a noite, levando flores para todos, para que ficassem
bem. As coisas iriam melhorar. Mas não comprou Igor de forma algu-
ma.
Mandou uma mensagem para Rafael no quarto dia de silêncio.
“Você pode terminar de falar, vou só escutar. Ou, melhor, ler.”
Rafael visualizou, mas não respondeu de imediato.
“Beleza. Me encontra à noite amanhã na lagoa.” A resposta
veio uma hora depois.
“Certo...” Igor respondeu no mesmo segundo. Sentiu-se estú-
pido por ser sempre imediatista.
“Chato”. A mensagem chegou com uma carinha engraçada.
Sem retorno.

312
O manifesto do fim do mundo

No quarto dia, Russinha Amada voltou ao tempo...


Finalmente.

313
O manifesto do fim do mundo

Parte 5 –
O que
acontece
no
fim do mundo.

314
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 40 –
Contagem regressiva.

F iel Jerônimo abriu os olhos devagar. Não se assustou com


os de dona Celeste, fitando-o cheios de compulsão. Tão obsessivo que
chegava a dar calafrios. A esposa sempre com aquela pose encolhida
aguardando algo que não necessariamente iria surgir, mas ainda na
espreita. Parecia não ter sofrido muito com os quatro dias, já que não
se emocionou com aquele despertar. Jerônimo ficou em silêncio alguns
segundos, fez de propósito. Celeste deve ter pensado que ele, ao acor-
dar, já levantaria questões ou indagações. Mas não o fez. O homem
ficou minutos a respondendo visualmente de volta para tentar enten-
dê-la. Cavando dentro de si os motivos que iam além de uma obediên-
cia ensinada para que Celeste fosse tão devota a ele, ou tão esquisita
desde que a conheceu.
— Eles estão lhe esperando. — ela disse com a voz da amanhã.
Jerônimo lembrou-se do sonho longo que o acompanhou. Se
encolheu mais na cama.

315
O manifesto do fim do mundo

— Por quanto tempo eu dormi?


— Quatro dias, mas você sofreu um trauma. Está tudo bem. —
ela respondeu desvalidando o peso da questão.
— Quatro dias, Celeste... O que aconteceu? — ele perguntou,
mas tinha um ar retórico. Já sabia o porquê daquele seu sono.
A mulher arqueou as sobrancelhas. Pareceu que tinha fragili-
zado algo dentro de si. O lençol foi crescendo, o braço de dona Celeste
chegou carinhosamente até Jerônimo. Tinha um toque diferente. Viu
na fragilidade a deixa para chegar onde queria.
— Amor?
Jerônimo fez um aceno interrogativo. Seu cheiro era forte.
— Sim?
Segundos para ela criar o clima necessário, enroscando a unha
nos pelos das pernas do marido.
— Você não acha que se algo acontecesse a você não seria me-
lhor ter um outro de você? — ela disse.
Jerônimo cresceu os olhos, coçou as têmporas com receio. Le-
vou como uma obscenidade.
E começou a entender os toques pontuais, o tamborilar dos
dedos de Celeste passeando por ele. Fez uma cara reprovativa, mesmo
que a da esposa fosse o oposto. Ela manteve seu fiel personagem com
carisma, além da bondade expressiva.
— Celeste... estamos atravessando uma era de provações. Você
não vai se deixar levar por opiniões alheias...
— Eu sei... — ela respondeu. No seu esboço expressivo, fingiu
entender algo, mas sua energia era tão impessoal que ecoava generali-
zada.
— Precisam de mim. Sempre precisaram.
— Eu também preciso de você. — Celeste se forçou a dizer.

316
O manifesto do fim do mundo

Algo dentro de si desequilibrou por segundos.


— Não. Não é a hora de trazer um herdeiro ao mundo. Como
eu disse, não dê ouvidos às ideias do exterior. — Jerônimo sinalizou
com o indicador igual a um mestre.
Ela esmoreceu, mas continuou acariciando o marido.
— E se o grande dos céus quiser levar você de uma hora para
outra e sequer me avisar.? Não teremos mais outro fiel Jerônimo.
O homem também ficou brando.
— Ele vai me dizer. Não iria nos pegar de surpresa. Não há
nada maior que o seu poder e sua decisão, e eu entendo todas as suas
decisões.
Celeste riu. Todos os milhares de espetáculos esquisitos à sua
direita também.
— Eu sei. — respondeu com ambiguidade, o marido nem no-
tou.
O quarto tinha uma meia-luz convidativa. As cortinas brinca-
vam com a pouca brisa passeando pela janela. O cheiro era humano,
de pele. Um pouco de colônia talvez. Em um dos cantos, uma mesinha
com os livros e teorias de Jerônimo; no outro, um cofre, presente de
casamento, que agora servia como apoio para alguns santos.
O quarto era observado por vários olhos, todos tristes e mi-
sericordiosos. Faziam a cobertura daquele casal de mãos abertas para
receber toda a graça. O aspecto do cômodo repleto de tristeza e oniris-
mo. Escavando mais a energia daquele lugar, trombou com a repressão.
Jerônimo mudou de posição na cama. Queria ficar quieto
pensando no por vir. Não precisou que Celeste falasse. Ele apagou,
mas algo dentro dele o notificou de toda a situação na sua cidade. A
coincidência sublime. Ele arqueou os olhos no exato momento em que
a campainha tocou, um estalo frio como as trocas enérgicas daquela

317
O manifesto do fim do mundo

casa. Celeste se movimentou na cama, fez Jerônimo remexer um pou-


co no colchão de molas barulhento. E nenhum dos dois trocou mais
palavras, não precisavam...
Ela cortou a sala. De ambos os lados, diversos quadros vigoro-
sos com rostos famosos e expressivos, rostos de entidades religiosas. O
cheiro da cozinha não era maior que o das violetas coloridas. Mesmo
com a ordem de Jerônimo para retirar todas as flores da residência, ele
precisava relembrar que tinha um jardim delas atrás. Parecia um câncer.
Olhou pelo olho mágico e achou estranho. Hesitou em res-
ponder, imaginando o porquê daquela visita. Esperava qualquer um,
até mesmo dona Josefina, mas não uma outra aflita mãe.
A mãe de Bola tinha se produzido toda para falar com Jerôni-
mo. De repente, era como se todos tivessem calculado que Deise e o
religioso acordariam naquele dia. Russinha Amada transcendia quan-
do o assunto era a conexão social, tão forte dentro daquelas casinhas
repletas de divergências diante de muitas ramificações.
...
Dona Carolina não poupou gentileza. Entrou como se fosse
a casa de um parente. Era praticamente a versão feminina e adulta do
filho, os traços de Bola eram todos dela. Até a papada embaixo do quei-
xo e a corcunda acentuada. Os olhos que ficavam pequenos dentro do
conceito do rosto, como cerejinhas perdidas. Naquele momento, afli-
tos, não queriam saber de dona Celeste. Não sabiam para onde mirar
quando esquadrinhavam a residência pouco convidativa de fiel Jerôni-
mo.
— Senhora Carolina, o que houve? — Celeste se mostrou in-
comodada sem fazer caso. Descreveu-a dos pés à cabeça.
— Quero falar agora com fiel Jerônimo! Ele pode me ajudar!
Estão todos falando mal do meu filho, caçoando dele, chamando-o de

318
O manifesto do fim do mundo

gordo e outras poucas merdas! — a voz da mãe era de um contralto


bonito.
— Meu marido está ainda se...
— Diga, dona Carolina. O que houve? — Jerônimo surgiu, e
Celeste diminuiu com a interrupção. Ele usava um calção e uma blusa
com alguns dizeres religiosos. Despojado demais, mas sempre um fiel.
A visitante se incomodou com tamanha simplicidade. Se fiel
Jerônimo não estivesse de camisa social e calça reta, então, não era
ele... Mas não levou o caso adiante, tamanho era o desespero.
— Como o senhor está? Deise acordou também hoje, ficamos
preocupados e...
— Diga o problema, dona Carolina. — fiel Jerônimo calibrou a
voz com desconforto. Sua cabeça ainda girava um pouco, relembrando
entre breves momentos o sonho duradouro daquele desmaio.
A mulher respirou fundo, suando. Celeste correu para levar
uma cadeira, mesmo que achasse que aquela visita importuna não me-
recesse.
— É o meu filho Maurício. Ele ficou inchado parecendo uma
bola, mais um pouco e ele poderia morrer de um infarto, não sei! Ago-
ra estão todos atribuindo a culpa a mim, como se eu quisesse matá-lo
de comer! Ele é uma criança, comer bobagens e doces faz parte dessa
fase e...
Fiel Jerônimo fechou os olhos por dez segundos, sua cabeça
começou a latejar. Massageou as têmporas, impaciente. Era sempre ele
quem deveria escutar, mas estava tão perturbado dentro de si que se
tornou difícil a tarefa.
— ... E tomou um chá, mas ele está triste em casa. Os cole-
guinhas dele fazendo-o de palhaço! Mas a culpa eu sei de quem é, eu
o fiz falar. Ele é um menino tão bom, não gosta de ser um dedo duro.

319
O manifesto do fim do mundo

Mas estava sofrendo, coitadinho. Você o conhece, ele sempre é muito


devoto! Sempre foi um exemplo nas aulas religiosas e...
— O que aconteceu? — fiel Jerônimo acordou quando a visão
escureceu um pouco — Ele inchou? O que houve?
Dona Carolina precisou de tempo. Só aquele falatório a tinha
deixado ofegante. O suor agora vinha do pescoço, não só de debaixo
dos braços.
— Meu filho... — respirou — foi aliciado por aquele trombadi-
nha filho de Marilene. E, junto de Milton, filho de dona Miranda, inva-
diram o jardim das violetas de dona Josefina, bem aí atrás, e acabaram
descobrindo um crânio humano. Ou sei lá o quê! A questão é que ele
pode ter se infectado com...
— O quê? Um crânio? — fiel Jerônimo aproximou as sobran-
celhas grossas e desalinhadas.
— Bizarro? Mas sim. Pode ser só ideia de criança, ele pode
ter visto algo a mais nesse jardim que o assustou! Coitadinho! Mas o
senhor precisa me ajudar. Por causa daquele molequezinho, meu Bola
teve essa reação alérgica!
Uma segunda rajada de felicidade cresceu dentro de Jerônimo.
A situação tinha juntado duas variáveis que ele teria de lidar de uma só
vez. Celeste leu o marido, mas continuou de esquina. Ele preso em si
com aquela novidade.
— Certo... calma, dona Carolina. Me deixe falar com o seu
filho. Vou ajudar! Vou falar com toda a comunidade e nós vamos fazer
uma visitinha em Domingo de Freitas.

320
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 41 –
Uma nova Marilene, os mes-
mos velhos erros.

D o outro lado, a figura da mulher silenciosa. Marilene esta-


peando uma blusa de Augusto no tanque, deixando o ofício catártico.
A cada parcela de sabão se espalhando no ar, um pouco da angústia ia
embora. O balde quebrado e velho estava lotado de roupas, algumas
com manchas de comida e outras com resultado das artes do filho. O
tanque no quintal era rústico, foi improvisado por alguém que não
tinha muito dinheiro. Ficava na crista do Sol, junto do varal que era
algum fio velho de um dos postes. Quatro dias e Marilene ainda taci-
turna. Silenciosa por fora, caótica por dentro. Pensando em um antigo
plano que agora faria sentido.
— Mãe, a senhora tá bem? A vó Josefa te ligou? — Augusto
surgiu no quintal, desconfiado. Sempre de olho na direção do quarto
com medo de surgir uma nova garra pontuda que tentasse matar ele ou
ela.

321
O manifesto do fim do mundo

Marilene balançou a cabeça com um sim. Ergueu mais uma


camisa do filho deixando-o contra o Sol. No canto do espaço, um jar-
dim com cansanção, as folhas tão esverdeadas que pareciam um pre-
sente exclusivo do deus botânico. Tocando do alto a samambaia de
Marilene, que dançava com as folhas amareladas. Não tinha recebido
muitos cuidados recentemente.
— Você anda sujando roupa demais. Minhas mãos estão aca-
badas de tanto ficar nesse tanque.
Recebeu uma pontada de decepção. Ela continuava invasiva.
— Mãe, por que a senhora não compra uma máquina? A mãe
do Bola d...
Marilene deixou a roupa ensaboada cair no chão. Apoiou as
duas mãos no tanque e respirou fundo, de olhos fechados. Contorcen-
do-se por dentro para não falar o que queria falar. A quentura rasgava
sua pele como castigo por subestimá-la.
— E você acha que eu tenho dinheiro, menino? — respondeu,
tentando não ser grossa — Que eu lavo roupa na mão por que eu que-
ro?
Augusto arregalou os olhos e fez um gesto com o rosto de “não
está mais aqui quem falou”. A samambaia rodopiou no ar enrolando
os fios que a sustentavam. Gotículas esverdeadas escapavam do jarro
encaracolado com as raízes.
— Só tentei ajudar...
— Sabe como você ajuda? Usando uma roupa por dia e ten-
tando não sujar! — Marilene voltou a bater a camisa na pedra. O sabão
escapou brincando no ar.
Augusto viu uma pedra perto do lodo no quintal. Usava-a
como assento. O mato tentou cobrir a região, mas Marilene sempre
evitou. Um halo ao redor do Sol abençoava Russinha Amada, fortifi-

322
O manifesto do fim do mundo

cando o azul celestial. Nenhuma nuvem naquele dia, mesmo quando


os dias anteriores insinuaram chuvas. O tempo ficava bipolar e fazia
parte daquela época.
— Quando eu vou pra escola? — o menino continuou.
Marilene balançou a cabeça. Dúbia sobre ele não ir para escola
ou realmente não querer conversa.
— Mãe...
— TÁ! CALMA! Você não vai ficar sem estudar, não vai ficar
burro! O mínimo que eu tenho que fazer como mãe é te dar educação.
NÃO SE PREOCUPA! — Marilene soltou furiosa. Fuzilou os olhinhos
murchos de Augusto por segundos. Até com a expressão carrancuda o
garoto conseguia enxergar o espectro frágil por detrás do personagem
da mãe daquele dia. Só ela não se dava conta do quanto ele a conhecia
muito bem, até o último nervo.
— Quem ver assim até pensa que você está interessado em
estudar... — ela jogou.
Augusto fez bico. O facho de luz engoliu toda a extensão do
torso do menino sem camisa, deixando dourados os pelos que nas-
ciam. O calção tinha alguns pequenos furos e um remendo engraçado
nos fundos. Marilene tinha improvisado algo, disse que o garoto só
deveria usar em casa, para os vizinhos não acharem que ele era maltra-
tado ou pobre demais para comprar um novo.
Um tempo somente com as batidas da roupa na pedra. Par-
tículas de sabão chegaram ao rosto de Augusto, frias e com cócegas.
Enquanto ele riu com o carinho, a mãe fez mais caras e bocas para cada
esfregão, a blusa com a estampa de uma cantora famosa americana,
mas que quase não dava para reconhecer quem era por estar velha. O
short que Marilene usava era o jeans de sempre. Brincava que era sua
farda.

323
O manifesto do fim do mundo

— E a avó Josefa?
— Augusto, aquela cobra não é sua avó! Eu já te disse! — Ma-
rilene o corrigiu — Não piso naquele inferno nunca mais. Cansei. O
povo da TV não cansa e faz coisas doidas? Eu também posso.
— E a gente vai morrer de fome? — Augusto acordou de re-
pente. Levantou-se de fininho e deu mais uma checada na direção do
quarto. Quis se estapear por quase ter esquecido a existência do seu
“trunfo”.
Marilene olhou de esquiva, também estava ligada em todos
os acontecimentos paralelos. Seu mau-humor tinha lhe tornado mais
sensível e introspectiva.
— Não... não vamos morrer de fome e... mudando de assunto...
Naquele dia que eu bebi, bati a cabeça em algum lugar? — questionou.
Augusto não soube disfarçar, coçou as mãos com os próprios
dedos. Voltou a sentar na pedra maturando uma resposta.
— Não sei...
— Você foi pra onde à noite?
— Fui brincar com meus amigos.
— Augusto... — semicerrou os olhos e, depois, abriu um sorri-
so. Foi surpresa até para si, amoleceu quando viu a expressão atraves-
sada do filho. Depois de tudo, ele era tão parecido com ela. Sem tantas
semelhanças com o pai impostor — Você está namorando?
O menino corou. Ficou aliviado pelo rumo da conversa. Pou-
co importava a vergonha.
— Não... Oxe! — Ele sorriu.
— Olhe, olhe! Guarde esse pintinho dentro das calças. — ela
disse e continuou a esfregar tecido. No final das contas, o momento te-
rapêutico da função automática valia a pena. Já tinha aprendido tanto
a romantizar a dificuldade que no final se tornou maleável a tudo.

324
O manifesto do fim do mundo

— Mãe! — Augusto se encolheu no banco. Preencheu seu ros-


to com o sorriso desajeitado de Marilene, sempre ela em dúvida como
fazer quando só deveria fazer. Ele sorriu de volta para estender a felici-
dade da mãe. Raro eram aqueles momentos que o faziam esquecer de
turbulências.
A samambaia tocou os dedos do cansanção. Fez cócegas e ig-
norou a urtiga da velha amiga. As duas plantas receberam uma descar-
ga viva de energia solar enquanto conversavam ignorando as gotículas
agora roseadas. Até as formigas respeitaram o espécime invulgar da
poça colorida no chão, perfiladas, dando a volta. As espécies teorizan-
do os novos rumos com a frente esquisita se aproximando. Porque o
fim do mundo não poupava ninguém.

325
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 42 –
Igor, Igor!

E
— u não entendi... Quer dizer que não passa de uma suspei-
ta? Você sequer tem provas! — Igor deu duas voltinhas próximo da la-
goa. A água estava quieta, mas sempre pequenos círculos em expansão
surgiam no meio. Pareciam que não estavam sozinhos.
Rafael fez um barulhinho com a boca como de um estalo. Es-
tava usando uma regata, despojado como assim deveria ser, sempre
de braços apoiados nos joelhos. O cabelo balançava com duas brisas
rápidas que levantaram o astral do mato morno.
— É bizarro até para mim, eu sei. Não estou dizendo que sua
família é nazista, mas há várias suspeitas de que seu avô tenha partici-
pado de seitas ou de células fascistas envolvendo tráfico de menores.
Não é como se sua mãe também fosse fazer isso... — disse — Mas há
algo errado nos arredores do seu jardim. Nós detectamos uma energia
incomum e...
— É engraçado como você solta essas informações descone-

326
O manifesto do fim do mundo

xas, mas nunca completas. “Energia incomum”. Que porra? Você é um


botânico ou um cientista paranormal? Até hoje sequer me contou o
nome dessa sua empresa. — Igor interrompeu.
Rafael se aproximou do amigo quando ele se sentou na beira-
da da água. Um friozinho percorreu o outro corpo.
— Igor, desculpa, mas é porque meu trabalho é meio sigiloso.
Eu nem deveria ter te contado tudo isso e...
— Tudo bem, você agora que aprendeu a esconder tudo de
mim não parou mais. — sempre interrompido — Será se você é Rafael
mesmo ou algum projeto mais evoluído do menino que foi embora e
não contou pro melhor amigo?
Rafael revirou os olhos.
— Nossa, esse seu drama só me faz lembrar de como você
sempre queria chorar quando eu ficava no melhor time de queimada.
— as covinhas de Rafael ficavam bonitas com a iluminação forte do
Sol. Começou a fazer uma vozinha engraçada — “Aí, vocês vão ganhar
da gente! Não vale!”
Igor desarmou, mas não ficou por baixo.
— Melhor do que fazer aquela cara de perdedor maníaco as-
sustando todo mundo. Parecia um psicopata. — disse, rindo — Você
sempre foi estranho, deve ser por isso que eu não estou assustado com
a ideia do “bravo Rafael” trabalhando numa empresa sem nome que
AGORA investiga “energias incomuns”.
O outro semicerrou os olhos.
— Você é muito debochado.
— E você é muito chato. — Igor sorriu — Consegue ser irri-
tante mesmo não querendo.
Rafael ficou alguns minutos encarando a superfície espelhada
do riacho. Algumas espécies cantarolavam na árvore. Logo atrás, ci-

327
O manifesto do fim do mundo

garras sinalizavam que estavam chegando. O verde baixo dava para as


casinhas distantes tanto de Piripiri quanto de Russinha Amada. A sen-
sação de calamidade nunca poderia chegar perto daquela vista, aquelas
extremidades eram tão simples e distantes, pareciam firmes no tempo.
Qualquer ideia absurda era radical e incompatível. E Rafael parecia um
ponto radical e incompatível.
— Mas eu já disse que vou ajudar. — Igor se policiava nas pala-
vras. Não queria entregar demais — Comecei a pesquisar algumas fo-
tos até chegar naquela que lhe mostrei... só não consegui mais porque
o restante dos nossos álbuns deve tá no guarda-roupas da minha mãe.
A dúvida pesou no ar.
— Ué, então, vai lá e pega. Estamos pesquisando quem é aque-
la criança ainda... — Rafael pegou uma pedrinha e jogou no riacho.
Alguns passarinhos se assustaram. Coçou o nariz e indiciou uma in-
verdade — Seria legal ter mais “detalhes” para costurarmos um caso.
— Não é tão fácil assim, né.
— É sua família, Igor... — o amigo tentou fitar os olhos tímidos
do seu lado — Agora tá na hora de você me contar o que está acon-
tecendo. Você também mudou muito, está estranho como se quisesse
dizer algo, mas não pode.
— Justamente! É minha família! Eu estou entregando provas
que podem, sei lá, incriminar eles para sempre! É muita coisa para eu
digerir. — Igor afundou o rosto nas mãos, esfregou e exibiu um can-
saço — Será se minha mãe está continuando uma espécie de legado
doentio do meu avô? Será se ela rapta crianças e faz experimentos ne-
las? E se... foi ela quem sumiu com os dois filhos da estrangeira daqui?
Meu Deus.... — se virou de súbito. Impossível não entregar demais.
Ele queria muito confiar em Rafael, mesmo que todas as suas pessoas
achassem melhor que não.

328
O manifesto do fim do mundo

Rafael pôs a mão nos ombros de Igor, começou a massageá-


-los.
— Não vai longe também. A possível célula fascista do seu avô
já foi desarticulada. Se ainda estivesse em funcionamento, conseguiría-
mos detectar.
— Como? Vocês não têm certeza de nada, só suposições. —
Igor relaxou os ombros. A mão grande de Rafael pressionava com ca-
rinho.
— Confie em mim!
— Difícil. — Igor se aquietou — E... sei lá... acabou de passar
um pensamento meio estranho na minha cabeça. Tem algo errado...
— No seu jardim? — Rafael arqueou as sobrancelhas — Tem,
sim. E por isso...
— Com você e com todo mundo. Com essa cidade. É bem
além de tudo. Você chegou e me contou que veio estudar o Rarizes,
agora está falando em células neofascistas e... — Igor hesitou — Giova-
ni morreu. Milhares de eventos que não fazem sentido e são tão alea-
tórios.
— Eu sei que parece tudo confuso. Eu vou conseguir reorga-
nizar tudo isso e explicar direitinho para você. Você só precisa confiar
em mim.
— Rafael. — Igor se virou, tirou a mão do amigo de seu ombro,
mas continuou segurando.
— Oi, garoto que interrompe. — ele riu.
— Somos amigos?
Rafael fez uma cara de surpresa. Sorriu com toda sua exube-
rância.
— Sim?!
A lagoa começou a ampliar um tilintar mágico, bem sinuoso.

329
O manifesto do fim do mundo

Apenas os mais sensíveis poderiam ouvi-lo. O céu estava tão gordo de


azul que se mostrou o mais genuíno dentre todos os céus. Só aquele
estado para receber um presente da natureza tão puro em sua própria
existência. O ar bucólico combinava com as diversas espécies vegetais
entre alguns acidentes naturais.
Além de todos os galhos secos e desertos, o mundo desenhava
mais segredos. Bem maior que uma conspiração ou qualquer paralelis-
mo, que fazia a experiência de estar naquele lugar ser a mais completa
e infinita do mundo. Para algumas almas.
Igor abraçou Rafael, sentiu o perfume no pescoço do amigo,
perto do prostrado pomo de Adão. Quando recebeu o carinho de vol-
ta, percebeu que desconhecia todo o campo ao seu redor, e se atentou
que as coisas mudavam rápido demais e nunca de forma abrupta. Tudo
acontecia nos bastidores enquanto mergulhavam que o fixo parece
real. Mas em dias o mundo viraria de cabeça para baixo.
Ele não se importou com um pingo de suor que escorreu do
braço do amigo. Os dois continuaram abraçados aproveitando um si-
lêncio discordante. Milhares de sentimentos foram destravados, assim
como milhares de lembranças. Foi mais profundo para Igor que viu no
espelho da água a chance de projetar suas imagens mentais. Tão con-
fusas quanto suas suposições. Mas ninguém poderia culpá-lo, porque
mudanças e processos sempre eram mais lentos em cidades pequenas,
assim pensou. Tudo devia ser com calma.
— Eu sei que estamos no meio de uma conspiração maluca e
uma missão tão aleatória quanto as coisas que estão acontecendo aqui,
mas eu acho que gosto de você. — disse para Rafael. Soltou tão absur-
do que repensou até se conhecia a si mesmo. Sua cabeça não parou de
girar um segundo sequer.
O amigo continuou calado, mas era um bom sinal.

330
O manifesto do fim do mundo

— E eu meio que... gosto de você não só como amigo... — Igor


se afastou e tentou trabalhar as palavras. Não soube por que se lem-
brou de Giovani. Talvez, o jeito direto do outro florista sempre deste-
mido era o que lhe faltava naquele momento.
Rafael o encarou e abriu mais outro sorriso, golpe baixo. Era
tão bonito com toda sua simpatia.
— Eu estava com saudades de você! — a resposta — Muitas
saudades.
Igor corou, cobrindo-se genuinamente. Continuou embalado
pelo sentimento, mesmo quando vozes lhe disseram não ser uma boa
ideia.
E não tinha como evitar o beijo apaixonado enquanto o celular
de Rafael sonorizava um bipe estranho. Alguma bugiganga tecnológica
que trouxe consigo. O riacho se agitou com dois passarinhos que se
aproximaram, eram tão curiosos quanto o grupo humano ali de perto.
Precisavam testemunhar momentos nostálgicos que faziam valer to-
dos os absurdos.
Que estavam por vir...

331
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 43 –
Jerônimo em ação.

A ugusto deixou a mãe com suas reticências. Tinha ficado


obscura depois de um tempo batendo a roupa na pia, e era melhor ele
não a atrapalhar. Depois de seu comportamento estranho e quieto, ha-
via mais pendências no ar, como, por exemplo, a caveira brilhosa em-
baixo da sua cama. E uma missão que envolvia o objeto, dada por uma
dona Josefina que não deveria ser a dona Josefina. Augusto já tinha
sido absorvido para o mundo dos impossíveis, e aquilo o engrandecia
quando ele andava no mundo das possibilidades escassas.
O melhor horário para adentrar nos circuitos do jardim seria a
noite, mas sem arriscar com Marilene. Ainda mais naquele estado vigi-
lante. Augusto conhecia a mãe, ela sempre ficava atenta com qualquer
coisa quando naquele personagem. Por isso, preferia a mãe absorta que
reclamava de tudo, porque nunca prestava atenção nele e dava certa
liberdade, apesar de tudo.
Durante o almoço provavelmente todos estariam em casa. Era

332
O manifesto do fim do mundo

uma cidade pequena, a maioria dos negócios fechava por um tempi-


nho. Um tipo de respeito com velhos costumes. A deixa perfeita para
Augusto refletir se devolveria ou não a caveira ao jardim. No fundo ele
queria continuar a aventura, mas, com Bola e Milton incomunicáveis
e sua mãe estranha depois de um ataque brutal de dona Josefina, as
coisas tinham saído do controle. Até o aplicativo misterioso ele largou.
Quem sabe um tempo depois Paulo retornaria.
A caveira continuava com suas rotas vivas furta-cor, um lí-
quido meio espelhado passeando pelos orifícios, enroscados na parte
dos dentes. Augusto jogou o objeto dentro de uma sacola com furos e
esperou segundos da canção da mãe. A roupa batendo na pedra e, de-
pois, mais esfregadas. Seria rápido. Marilene não iria sentir falta dele.
Apesar dos bairros divididos, tudo ficava perto. Funcionava como se a
casa deles fosse só um quintal malcuidado, mas ainda dentro de uma
fortaleza rica.
Augusto deu uma verificada teatral. Sentiu-se como um dos
espiões dos filmes que ama. Calçou o chinelo surrado, ainda com um
preguinho embaixo para evitar acidentes. Era impossível andar na
terra quente daquele horário. E foi de testa franzida e cara amarrada.
Protegendo os olhos do banho de Sol absurdo. Meio-dia e um pecado
qualquer passeio ao ar livre. Não tinha um rastro sequer de nuvem no
céu, e a claridade ao ponto de perder seu espetáculo azulado forte.
Começou caminhando e, em seguida, apressou-se. Augusto
sentiu a palpitação. Ainda que o terreno fosse limpo, ele não podia
arriscar trombar com alguém que pudesse tomar dele a caveira.
Mas o que poderia ser aquela aglomeração fervorosa no hori-
zonte? Vários mascarados como rebanho enquanto um suado e con-
vincente fiel Jerônimo liderava na frente. Do seu lado, a sempre mosca
morta dona Celeste. Augusto precisou realmente observar com aten-

333
O manifesto do fim do mundo

ção para entender a cena no mínimo estranha.


À esquerda do líder religioso, seu amigo Bola, também de
máscara estampada, caminhando murcho, rodeado pela mãe brava.
Jerônimo conciliava as coisas pelo gesto feito. Embaixo do braço, a sua
maior arma, o livro religioso. Estava de calça e camisa social brancas.
Engomadinho e com respaldo. Um líder à frente do seu tempo. Tudo o
que Russinha Amada precisa.
Augusto não perdeu tempo, deu meia-volta e correu para casa.
Mas alguém tinha lhe visto. Não era difícil reconhecê-lo. Sempre sem
camisa, cabelo grande, calções com estampas de heróis com alguns
poucos remendos. E sua perspicácia nos olhos grandes e afoitos dentro
daquele rostinho que sofreriam com as ações do Sol, depois de um
tempo.
— EI, MOLEQUE! — uma voz feminina gritou. Augusto não
parou pra saber de quem era.
Se iriam fazer alguma revolução, ele não queria ser nenhuma
espécie de resistência.
Trancou a porta e correu para o quarto. Pegou algumas blusas
sujas perto da cama e escondeu o objeto precioso. O buraco na por-
ta continuava ileso, nem Marilene tinha notado. Augusto ficou dando
voltas no quarto pensando no porquê de terem lhe chamado a atenção.
Mas no fundo já sabia que tinha algo errado, e o que tinha previsto
podia se tornar concreto. Bola nunca foi um amigo leal. Não como
Milton. Grande burrice ter chamado ele para a noite de aventura.
— Droga, droga, droga!
Pedrinhas foram esmagadas soltando um ruído. As sombras
tamparam o Sol na frente daquela miserável casa. Marilene sentiu de
longe, parou sua façanha com as roupas e aguardou, silenciosa. Dois
toques grotescos acompanhados de um “ô de casa” lhe deixaram em

334
O manifesto do fim do mundo

alerta. Não tinha o costume de receber visitas naquela hora. Alguma


de suas colegas vizinhas só passavam ali à noite, para fofocarem ou
contarem algo. Nada demais. As pessoas ficavam com receio quando
se tratava de Marilene. E todos sabiam de quem era a culpa por conta
disso.
Ela hesitou por segundos quando girou a maçaneta. Se cobriu
com sua força de combate e uma cara amarrada. Não tinha sequer se
arrumado, iriam vê-la daquele jeito mesmo.
— O que aconteceu? — questionou quando viu o desagradável
e seu time.
A criança em destaque, tímida, a mãe por cima como uma leoa
já deu sinais para Marilene. Augusto tinha que estar envolvido.
— Queremos falar com o seu filho, dona Marilene. — Carolina
disse. Olhou dos pés à cabeça sua anfitriã. O cheiro de sabão se mistu-
rava com o de suor.
— O que ele fez agora? Porque nem na escola ele está para
arranjar confusão.
Carolina se movimentou. Incomodou fiel Jerônimo com a
dianteira.
— Eu não vim aqui tomar satisfação sobre a surra que seu filho
deu no meu, só que agora seu molequinho passou dos limites! — apon-
tou. Na cabeça de Marilene, uma cena tinha acontecido, algo envolven-
do dedos quebrados e uma pose de arrogante desfeita com um golpe
desferido. Carolina merecia uma surra.
— Como se o seu filho não tivesse feito merda, né? — Marile-
ne pôs as mãos no quadril, deixou cair um pano velho e sujo de prato.
— A questão aqui, dona Marilene, é seu filho aliciando o meu
para tomar o caminho errado. Invadiram o jardim de dona Josefina e
roubaram o quê, meu amor? — a mulher se virou pro filho, sua voz

335
O manifesto do fim do mundo

mudou drasticamente de feroz para aveludada.


Bola se contorceu, tímido.
— Uma caveira.
— Uma caveira! Viu? Foram na propriedade de dona Josefina
e seu filho enfeitiçou ele ou sei lá o quê! Mexeram com algo errado que
resultou no meu garoto inchando como um balão. Agora ele fica com
esses delírios! Não sei se desfizeram algum despacho de macumba por
perto, mas essas brincadeiras que SEU MOLEQUE cria acabam dando
ruim para meu Mauricinho.
Fiel Jerônimo parecia incomodado com a discussão. Uma ca-
veira? Que coisa mais bizarra. A briga era mais ocular. Enquanto todos
assistiam mascarados, a mãe de Bola fazia caras e bocas. Seu batom ti-
nha sujado parte do pano da máscara, parte do processo. Dona Celeste
assistia comendo com os olhos a pobre atacada.
— Inchou? — Marilene engoliu o riso — Nossa... cortar o ar-
roz ajuda. — disse, irônica.
A outra mulher não acreditou. Virou-se para seu público, que-
rendo apoio.
— Viram? Eu não estou acreditando.
Agora era a vez de fiel Jerônimo.
— Dona Marilene, queremos conversar com Augusto e ver
essa tal caveira que ele roubou. A senhora nunca levou esse menino
para a igreja e deve ser por isso que...
— Olha, cala a boca. Que quem cuida do meu filho sou eu. EU
QUE ACHO O QUE É MELHOR PARA ELE! — Marilene interrom-
peu com autoridade apontando contra o próprio peito. Todos se en-
treolharam chocados. Àquela altura, a vizinhança já notava a confusão,
iam se aproximando, tímidos. Alguns com celulares — E essa porra de
caveira? Vocês estão ficando loucos?

336
O manifesto do fim do mundo

— Quem você pensa que é para me mandar calar a boca, sua


mulher imunda? — fiel Jerônimo vibrou. Sua irritação saiu de um lu-
gar que ele não esperava. Seus olhos cresceram enquanto seu rosto
trincou. Dona Celeste deu um passo para trás, não era inteligente ficar
perto do marido naquele estado.
— E quem o senhor pensa que é para vir aqui na minha casa
com essa dondoca plastificada de Piripiri cheirando a perfume brega
atirar ofensas contra meu filho? — Marilene não se dobrou. Fez um
bico de fúria crescendo junto com o seu opositor.
— O demônio está nos seus couros há tempos. Por isso que o
pai desse menino te largou, por isso que você anda como uma zom-
beteira por aí, sem rumo, atirando-se pros homens do bar da esquina.
Sem nenhuma perspectiva de vida. — fiel Jerônimo começou com as
ofensas. A testa estava pintada de suor. A mãe de Bola se sentiu vin-
gada. Já o garoto, assistia como um bobalhão, nunca tinha presencia-
do briga de adultos de perto — Homem nenhum assume mulher sem
rumo não.
— Vá tomar no meio do seu cu, seu fiel fodido! — Marile-
ne apontou com o dedo na cara do homem. Por pouco, não tocou no
olhar enfezado dele — Deve ser muito broxa para ficar cuidando da
vida dos outros como voc...
E o pior aconteceu. Jerônimo girou a mão na cara de Marilene.
Foi tão forte que ela se desequilibrou e bateu a testa no batente descas-
cado. O barulho seco assustou mais do que a ação em si. Mas Marilene
não contou o tempo, partiu para golpear o fiel e a confusão se formou.
Augusto no quarto tampou os ouvidos, assustado. Deveria ajudar a
mãe, mas o medo de ser achado com o objeto era maior. Estava tão
nervoso que começou a riscar com a unha os pés. Formando listras na
pele seca. O dedo tremia sem parar, enquanto ele fugia para qualquer

337
O manifesto do fim do mundo

esquina da sua cabeça tentando ignorar os gritos. Por precaução, pe-


gou todas as suas camisas e jogou por cima da sacola. Fitando a porta,
lembrou-se da unha grande e pontuda que a atravessou. Apenas even-
tos excepcionais.
Eram todos contra ele.
Bola e a mãe foram empurrados. As vizinhas beatas tentavam
tirar as mãos fortes de Marilene do pescoço de fiel Jerônimo. Todas no
epicentro da confusão, menos dona Celeste, que preferiu agir como a
pobre assustada boquiaberta. Marilene rasgou a máscara do fiel ainda
no rosto dele e, numa ideia rápida, lembrou-se de um dos processos
paranoicos da época do Rarizes. Esfregou o pano, a área que deveria
estar infectada, na boca de Jerônimo, rasgando-a. Os lábios secos ti-
nham ficado frágeis por conta do tempo.
— Queima cabaré!!! — os gritos da vizinhança energizaram a
briga. Quem era neutro naquela situação só podia divertir-se. A poeira
levantou com o tanto de chafurdo.
— Pega fogo mundão!!! — mais vaias.
Depois que uma vizinha puxou os cabelos de Marilene com
nojo e a empurrou, a confusão cessou. Ela caiu novamente. Levantou-
-se, ligeiro, mas não para brigar. Fechou a porta empurrando a força
do motim. Fiel Jerônimo, descabelado, fazia caras e bocas tentando
alcançar o rosto da inimiga. Quando o trinco passou, Marilene correu
para pegar estantes e cadeiras que iriam barrar qualquer tentativa de
invasão. Estava com dois rasgos na bochecha e um sorriso no rosto de
catarse pela investida violenta que conseguiu.
— Me diz onde que eu vou me dobrar pra um fielzinho de bos-
ta e uma manada de velhas hipócritas? Se vocês vierem aqui de novo,
eu vou chamar a polícia! — gritou.
— VAMOS VER QUEM VAI SER PRESO, SUA VAGABUN-

338
O manifesto do fim do mundo

DA SUJA! — fiel Jerônimo berrou.


Algumas conversinhas e murmúrios. Mais xingamentos e Ma-
rilene em alerta. Estava preparada se fizessem força para entrar. Olhou
de esquina para a cozinha, exatamente para sua faca branca de cortar
carne e se conscientizou do que iria fazer para proteger tanto sua inte-
gridade quanto a do filho. Também olhou para o quarto de Augusto de
portas fechadas. Ele iria escutar também. Mas pintadas de felicidade
caíram em cima de si. O que ela tinha pedido para os céus veio como
resposta numa briga. A dúvida tinha acabado.
— AUGUSTO! — berrou.
Ninguém respondeu do quarto.
— ANDA MENINO COVARDE! APARECE! SE ELES EN-
TRAREM, EU PASSO A FACA EM TUDINHO! ATÉ NO LEITÃO-
ZINHO! — dessa vez, para provocar Carolina, a mãe de Bola. Ela a
atacava com ofensas, indignada lá fora, mas Marilene não ligou.
A porta do quarto foi aberta timidamente. Finalmente, tinha
algo de errado. Um facho de luz atravessou o buraco na madeira. Au-
gusto surgiu com a carinha de um cãozinho abandonado, foi da mãe
até a confusão e viu que a barra estava limpa.
— Sim? — perguntou, como se nada estivesse acontecendo.
— Arruma suas coisas porque nós vamos embora dessa porra
de lugar!

339
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 44 –
Jerônimo não para. Queima
cabaré. Parte dois.

E le não parou para falar com algumas vizinhas que moravam


perto de Marilene. As coitadas acenaram, mas murcharam quando vi-
ram a fúria sombreando o homem magro e suado, além do pequeno
corte na boca. Atrás dele, as senhoras mascaradas, todas revoltadas,
tanta excitação pela emoção daquela briga no ápice do calor. Daria o
que falar para o restante da semana. Ninguém tinha prestado atenção
em dona Celeste, preocupavam-se com Bola chorando e a mãe tentan-
do erguer um movimento contra a nova inimiga. Os comentários eram
os da pior espécie, Marilene devia ser tudo e não merecer nada.
Fiel Jerônimo fracassou na sua primeira batalha, e agora le-
varia aquele ímpeto para a segunda. Algumas vizinhas se aproxima-
vam dele, queriam lhe dar cuidados, era importante ficar perto de um
líder tão importante, quase sagrado. Se dona Celeste era negligente,
o problema era dela. Aquelas mulheres iriam mimar Jerônimo como

340
O manifesto do fim do mundo

podiam. Mas não contavam com a aspereza do homem, tão furioso


que por pouco não ficou cego. A visão blindada pelas lembranças de
agressão que circularam dentro de si, maculando a celebre suntuosi-
dade do quieto fiel Jerônimo. Mesmo com todas as suas atribuições
de compaixão, ele ainda era homem, carregando traumas e desejos.
E, claro, inúmeros monstros que queriam tomar conta da situação. A
segunda versão do que todos de Russinha Amada desconheciam.
O passeio não demorou. Chegaram no bairro das flores, o seu.
O destino da próxima algazarra. Foi bem recebido com o cheiro doce
e esquizofrênico das violetas coloridas, agindo como se fossem doces
meninas pedindo paz, e só no final um pouco de guerra. Jerônimo se
enganou com enjoos, pisou em uma que se soltou das irmãs e caiu
bem no meio do seu caminho. Esmagada, a violeta colorida perdeu o
seu prisma gentil de tons, sendo apenas uma flor qualquer que nasceu
como uma aberração no fim do mundo. Ele nunca tinha se atentado a
isso.
Deu duas batidas na porta de dona Josefina. Todas as beatas
se reuniram fervorosas, contando sobre a teoria da caveira de Bola,
dizendo que sempre acharam estranho aquele jardim. Que não parecia
ser coisa do divino uma flor colorida que a humanidade não tinha ao
seu dispor. Assim como o Rarizes, que nunca tinha atacado Russinha
Amada, exclusividades pareciam fazer parte daquele circo pequeno.
Tinha que ter um motivo.
— Vou montar uma guarda! Vamos colocar nossa cidade
nas rédeas! — ele disse enquanto aguardava a anfitriã — Depois, nós
vamos resolver a situação de dona Raimundinha, que até hoje nunca
deu as caras depois que aquele filho ingrato dela chegou. Acabou esse
negócio de desrespeito com nossa comunidade!
As beatas sorriram concordando. Eram eleitoras fanáticas.

341
O manifesto do fim do mundo

Iriam derrubar fácil o prefeito se fiel Jerônimo se candidatasse ao car-


go. E a ideia era inteligente.
Algumas passadas pesadas, não deveria ser de dona Josefina.
A força consistia desde o caminhado até a respiração. Roberta puxou a
porta e semicerrou os olhos. Passeou toda a população atrás de Jerôni-
mo de pescoço esticado.
— Hoje é dia de procissão?
— Minha filha, diga cadê sua patroa. — Jerônimo foi direto.
Estava descabelado e sujo, mas não iria se limpar, o caos o tinha deixa-
do assim. Um homem que lutava precisava sair da guerra com cicatri-
zes para honrar sua dificuldade.
Roberta deixou a linha da boca reta, empurrando as boche-
chas.
— Está lá dentro. O que o senhor quer? Ela está ocupada. —
disse, agindo como uma secretária particular.
— Não é da sua conta! Vá lá e chame ela. — Jerônimo virou o
rosto e apontou. A respiração quase ofegante.
Roberta fechou a cara, encostou a porta e foi balançando a
cabeça para a ignorância gratuita. Nem precisou andar muito, Josefina
surgiu com um sorriso e com um roupão branco, igual a um anjo. Pediu
calma com a mão, e Roberta entendeu no segundo gesto que deveria
voltar pra sua redoma. Claro que, curiosa como era a mulher, entrou e
fingiu que voltaria a enfrentar a louça suja. Desde o começo, o mundo
daquela família estava de cabeça para baixo. E ela era correspondente
exclusiva, tendo acesso a tudo aquilo de perto. Ficaria na espreita para
ver o desenrolar da confusão. Não tinha risco de seu Antônio sair do
quarto e Igor estava fora. Outro ponto que deveria destrinchar. Estava
sendo paga para saber onde o filho da patroa se escondia e com quem,
mas o rapaz era esperto e Roberta tinha pernas curtas. Era muita coisa,

342
O manifesto do fim do mundo

mesmo sendo importante. Quando chegava em casa, todos queriam


escutar “a grande Roberta, detentora das notícias mais quentes de Rus-
sinha Amada”.
— Diga, fiel. — Josefina sorriu para todos. Era impossível não
sorrir de volta. Porém, algumas beatas já tinham fechado com o fiel,
cegas por ele. Dona Celeste acompanhou na esquina do motim. Sem-
pre soturna.
— Essa mãe — apontou para a mãe de Bola, segurando o ga-
roto para que ele não se perdesse naquele “mundo opressor” — está
sofrendo por conta de um ocorrido no seu jardim...
Era difícil fitar os olhos de Josefina. Quando aquelas esferas se
concentravam nos dele, uma atmosfera era reconquistada com peque-
nos defeitos memoriais. Jerônimo se lembrou de algo que não deveria,
de dias atrás quando avistou o que o fez maldizer a si próprio. Mesmo
com dificuldade e a visão na sua cabeça não tão nítida, a imagem o
assustou. Em pensar que Deise e a mãe não o acompanharam naquela
reunião. A coitada ainda com medo de sua visão esbranquiçar.
Josefina carregava impureza e maturidade no olhar, mas nin-
guém se atentou a isso, só ele. Se deixasse a visão borrada, talvez, não
se conectasse com veemência àquele feitiço demoníaco. Aquela mulher
explodia em segredos, mas ninguém iria acreditar se ele contasse de
fato o que passeou em seus olhos.
— Queremos saber se a senhora sabe de alguma coisa, ou até
olhar o jardim que de certa forma também é parte de minha proprie-
dade.
Duas vizinhas, bem atrás, comentavam a indecência de uma
mulher aparecer de roupão. No final, dona Josefina não era tão glorifi-
cada assim. Nada que interrompesse a cena.
— Uma caveira? — dona Josefina massageou com dois dedos

343
O manifesto do fim do mundo

a área dos lados do pescoço. Depois, colocou uma mecha do cabelo


atrás da orelha, sempre delicada e repulsiva com seus toques, como se
suas unhas estivessem molhadas. O inesperado veio como um soco em
fiel Jerônimo quando ela riu, de forma contida, é claro — O cemitério
daqui não fica em Russinha Amada, e sim em Piripiri. Que loucura é
essa, fiel?
A mão masculina se encolheu. O sangue fervendo passeando
pelo rosto enquanto a sua vítima era protegida pela redoma da im-
posição e do sarcasmo. Ele não iria aguentar aquilo, sua vida inteira
foi construída para lutar e se impor, como nunca tinha feito quando
criança naquele inferno vendo os inúmeros casos de agressão contra a
mãe e abusos do pai.
— E não... não vão olhar porque é meu terreno. Minhas
violetas não podem ser tocadas por qualquer um. — dona Josefina
completou, virando-se, em seguida, para a criança encolhida, as bo-
chechinhas coradas — E você, não adentre mais nesse terreno se não
quiser problemas.
A mãe ficou estupefata. Tinham acabado de ameaçar seu filho
na sua cara.
— Se fizerem alguma coisa, eu irei saber. Desde quando essa
cidade começou a levar a sério bobagens infantis?
— A senhora está dizendo que meu filho está mentindo? —
Carolina questionou, atônita.
— Sim, ele está. Impossível uma caveira no meu jardim.
— Então, deixe-nos olhar! — Jerônimo se impôs.
— Não, não deixo.
— Como está o seu marido, dona Josefina? — dona Júlia ques-
tionou e só depois se deu conta de que falou. Todos se viraram para ela.
— Está bem. Por quê?

344
O manifesto do fim do mundo

— Ele nunca mais apareceu, que nem dona Raimundinha. A


senhora também não vai abrir mais a floricultura? Já passou o tempo
de luto pelo suicídio do homossexual e...
— Suicídio, não, dona Júlia. — Jerônimo levantou o indicador
— Resposta de algum algoz que está infectando aqueles que preferem
viver no pecado. O homossexual preferiu passar sua vida se deleitando
com ideias do fogo do inferno, com lascívia e escárnio. E o peso da
mão divina é justo!
Dona Josefina sorriu. Não foi bem interpretada.
— O Rarizes voltou à humanidade e não me disseram nada?
E... por que estão todos usando máscara? Roberta me contou, mas eu
não acreditei. — disse.
— Coisa feia uma mulher como a senhora debochando das
pragas divinas. Você não sabe o que eu vi! A miséria humana e os pe-
cados aglomerando como obra do cão para atentar aqueles que não
acreditam. — fiel Jerônimo disse, entredentes. Sua testa franzia com
expressões megalomaníacas de fala — E a sua família não é melhor que
ninguém! Eu reconheço algo errado de longe.
— E eu reconheço um homem perturbado com problemas
mentais e uma séria reclusão sexual. — Josefina direcionou o olhar
para Celeste, que acordou com o ataque — Não deixe que esse reba-
nho conheça o que está dentro de você, fiel. Essa sua onda enérgica
que sobe indigesta atrapalha até o funcionamento de... outras áreas. Se
quiser eu posso fa...
— CALA A BOCA! — Jerônimo vociferou. Ficou vermelho
em segundos.
Dessa vez, todas se assustaram com motivo. Não era um grito
contra uma Marilene qualquer, mas sim contra uma das pessoas mais
importantes da cidade. A mulher que era bondosa e justa, sorridente e

345
O manifesto do fim do mundo

com o casamento perfeito. O filho viril, inteligente, vestia-se e cheirava


bem. Até tinham empregada e muros. Eram importantes, eram autori-
dades.
Mas nenhuma intercederia por Josefina.
E nem precisava. De queixo erguido e roupão branco, um
novo sorriso em resposta ao afronte. Não tinha perdido a pose branda
segundo algum.
Dona Josefina era perfeita, como nunca tinha se visto antes.
Dona Josefina parecia não existir.
— Fiel Jerônimo, não conte comigo mais para suas celebrações
religiosas nem venha à minha casa. Se você atravessar o perímetro do
meu jardim, irei fazer um B.O. e de quebra emendo com uma ação
restritiva. — disse — E aí, nós vamos brigar na polícia de Piripiri. —
finalizou, com mínimos e imperceptíveis desequilíbrios na voz.
Jerônimo se aproximou um passo de Josefina, ela não recuou.
— Então, essa cidade não vai querer mais receber nem com-
prar NENHUMA flor maldita na sua floricultura. Nem mesmo suas
violetas coloridas endemoniadas. As obras do capiroto, às vezes, não
acontecem somente em grandes cidades, mas ocorrem em lugares que
desconhecemos. E não são cores que vão mascarar isso!
— Pois não queiram ou não comprem. — Josefina avançou
um passo. Estavam a centímetros de distância um do outro. Ambos se
encarando como feras antes de um confronto. Era inconcebível a força
das duas figuras, as beatas estavam fervorosas. Boquiabertas. Assunto
agora para o ano inteiro.
— Péssima decisão. — ela completou baixinho, direcionado
somente para Jerônimo. Esfregou os dedos entre si e ameaçou um es-
talo. Mas não era o momento.
Os monstros tinham acordado.

346
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 45 –
Dona Josefina, um breve mo-
mento no espaço.

O manifesto tem seu primeiro rascunho com detalhes. É ape-


nas o começo. Não se preocupe. Por isso, é importante mais uma volta
no tempo, para quando houve os primeiros pontos de convergência até
o esquisito fim.
Voltamos a uma menininha com vestido de renda e detalhes
feitos a mão por alguma costureira requisitada.
Desconheça o ano, ficava perto de algum momento relevante
do século XXI. Josefina era criança, na borda do tempo que não dis-
cutia tanto as diversas questões relevantes que a nova geração sugeriu.
Era somente uma mocinha com um pai barrigudo e engraçado, agres-
sivo em toda sua totalidade. O avô de Igor tinha o gênio forte. Se ele
ria, todos ririam com ele. A decisão? Era dele. Sua barriga prostrada
e seu jeito de rei lhe eram muito bem recebidos. A mãe de Josefina só
era a força que acalmava, como a maioria das mães que ela conhecia e

347
O manifesto do fim do mundo

tinha como referência. A perfeita família de senhores importantes. Um


casal tão comum à deriva do fim do mundo.
Josefina uma vez se recordou. Sentada na sala de estar, o ma-
rido tomava um bom banho depois do zelo com os carros. Igor estava
quieto em seu quarto, pensando provavelmente na sua tarde de estu-
dos e, depois, em Rafael, e o mundo da cidadezinha não contava com
muitas estranhezas. Bem antes de tudo, ela olhando para o tempo. Sua
visão vez ou outra focava nos porta-retratos, a foto do pai sorrindo, na
frente, seu chapéu de vaqueiro, parecendo alguém confiável e seguro.
Tinha tanta energia máscula que chegava a intimidar os outros. Perto
dele, todos se incomodavam. Não se sabe o porquê.
Josefina resolveu costurar uma recordação. Precisava deixar o
campo molhado de um dia monótono como aquele seu, dentre uma
coleção deles.
Por isso, lembrou-se de Pedro Peteleco.
Seu amiguinho da natureza. Um menininho que era filho dos
empregados da fazenda vizinha a de seu pai. Dona Rodrigues e seu
Martinho trabalhavam na casa e na roça. Respeitavam seus patrões,
eram obedientes, tinham entregado suas vidas para aquela família sor-
ridente. Na composição de um retrato, eles apareciam, um pouco lá
atrás, mas ainda lá. E aquilo lhes bastavam.
Peteleco era arteiro, extrovertido. Corria mais que todos os
outros garotos das redondezas. Os pezinhos viviam queimados e com
machucados. Sempre ele com seu calção azul de corredor. As pernas
magras eram ágeis, presentes dos céus para uma criança com muita
energia. Já tinham o ajudado a escapar de poucas e boas, de brigas ou
de animais violentos. Peteleco, no fim, sempre venceu.
E tinha sua amizade platônica. Josefina sempre protegida pela
redoma da sua importância. Era menina e era filha de gente importan-

348
O manifesto do fim do mundo

te, não podiam perder os olhos dela. Mas ainda assim, tanto mimo não
a impediu de ter se aproximado daquele garoto. Peteleco era atrevido,
acenou e sorriu. Mesmo que todos dissessem para ele não ser saliente.
Num belo dia, aproximou-se de Josefina, disse seu nome, contou al-
gumas histórias com aumentos e deixou um brilho de felicidade no
outro rostinho. Era para ser o começo perfeito de uma vida de aventura
para duas crianças. Uma alma tímida e presa dentro de lógicas sociais
e outra livre, correndo de qualquer mal que tentasse o pegar. O complô
para histórias de interior. Os melhores anos da vida de alguém.
Peteleco adorava a visita de Josefina. Sempre que ela e o pai
iam para a fazenda, o coraçãozinho da menina se agitava. Sua mãe já
não o acompanhava, preferia ficar na cidade. Pouco lhe importava as-
suntos sobre cabras ou cabeças. Coisa de homem, dizia. Nem era para
aquela menina acompanhá-lo!
O pai, na sua picape moderninha, chegou levantando a poeira,
era muito expansivo em tudo o que fazia. Os vizinhos contemplavam o
poder do seu triunfo, daquele homem importante. Rico e só isso basta-
va. Qualquer desvio de caráter nunca importava. Josefina se encolheu
no carro, o pai fazendo carinhos na sua cabeça com a delicadeza de um
ogro, por vezes, bagunçava o seu cabelo. Recitava algumas breves fra-
ses machistas e impróprias para a menina, algumas sobre ela ter que se
resguardar sexualmente. Ela, somente uma criança tentando encontrar
a lógica daquele desconforto, cada vez mais retraída.
Quando aquele homem chegou gritando com seus empre-
gados, rindo pros vizinhos tão poderosos quanto ele, Josefina viu a
brecha para escapar. Mesmo que dona Afonsa, a governanta daque-
la fazenda, ficasse de olho nela. Sabia que se algo acontecesse àquela
menina era melhor até que fugisse porque no mínimo iria amanhecer
morta. Sua vida era de serventia e nada valia para aqueles homens,

349
O manifesto do fim do mundo

sabia bem disso.


Mas criança é criança... Josefina conseguia escapar para brin-
car com Peteleco. Ele, arteiro, sempre trazia uma novidade. Ou uma
fofoca da vizinha ou algum lugar novo perto dali que podia ser mágico.
Às vezes, mostrava as armadilhas que os moradores faziam para captu-
rar bichos, mostrando-se entendido de tudo. Contava quem era quem
pelas redondezas, adorava o olhar mágico da menina conhecendo uma
realidade que nunca iria tocar a sua, não se ela continuasse com aquele
ultimato protetivo.
Peteleco contou das quebradeiras de coco, da mulherzinha de
bigode que assava castanha de caju. O homenzinho que tinha perdi-
do todos seus irmãos para o tempo e enlouqueceu, enxotando “fan-
tasmas” que só ele via. Qualquer peripécia da região era notável, um
mundo de habitantes na borda invisível. Os primeiros a serem levados
pelo fim do mundo, notáveis dentro do esquecimento. Assim como
dona Rosilene, que procurava sua família desde pequena. Os dois geni-
tores tinham contado para ela uma história que só criança acreditava,
deixando-a com uma tia malvada. E a pobre Rosilene levou a sério
todos dias até quando os dois nunca retornaram. Nunca digna de um
final feliz.
No dia em que foram embora, tiveram muitos abraços. Muitos
beijos. Rosilene não sentiu algo bom, uma força maior dentro dela lhe
contou algo em que ela não quis acreditar. A sua tia revirava os olhos
com “tanta encenação”. E quando os dois pegaram estrada com a car-
roça ela correu infringindo aquela ordem.
Por isso cresceu no seu espiral de amargura, ficando para sem-
pre onde tinham lhe deixado. Perdas eram vírgulas da sua vida, e ela
tinha muitas palavras até o dia em que se calou. Para entender o que
era o tempo, e o que o destino iria propor para si. Depois da certa mor-

350
O manifesto do fim do mundo

te.
Peteleco contava tudo enfático, com adornos sombrios. Jose-
fina sorria, ficava triste, mas nunca abria a boca. Estava obcecada na
lábia do menino, ele sempre foi um bom contador de histórias. Aque-
la amizade tinha tudo para ser uma obra-prima. Tornou-se religioso,
Josefina chegava com o pai, aproveitava de seu egocentrismo para es-
capar e corria para se divertir com Peteleco. Mesmo que dona Afonsa
ficasse de olho e advertisse para tomar cuidado com os moleques da
rua, que ela era uma mocinha e precisava se comportar como uma,
sempre à sombra de algo ou de alguém.
Já dona Rodrigues, nunca tinha visto o filho tão empolgado
quanto naqueles tempos. Peteleco sorria, contava tudo de Josefina. O
assunto sempre era a menina, que ela era educada, que tinha um car-
rão, que morava na cidade, que dizia amar ser amiga dele. Ele contava
com a felicidade estampada nos olhos, gestual, esperando que chegasse
logo aquele dia de visita para terem mais aventuras. Peteleco, uma for-
ça motriz.
Dona Josefina respirou no seu sofá. Uma pausa na costura do
seu próprio manifesto sombrio.
Porque aquelas lembranças felizes lhe deixavam triste. A
amargura percorreu por todo o seu corpo, precisou parar para não
desmoronar. No fim, só comprimiu os lábios fazendo caras tímidas de
desgosto, para além do que ela podia apontar. Mas havia um vilão, uma
variável esquisita, que iria atrapalhar para sempre aquela amizade.
Retomou à reconstrução memorial.
Depois dos dias dourados, a amizade entre Peteleco e Josefi-
na ganhou dimensão o suficiente para um convite ao garoto: brincar
com a menina perto dos arredores da fazenda do pai. Enquanto aquele
homem grandalhão mandava e berrava como um bêbado, Josefina foi

351
O manifesto do fim do mundo

guiando o menino dentre a natureza do lugar, mostrou dona Afonsa,


algum dos empregados e toda a extensão de poder que ela nem sabia
que iria herdar algum dia. Peteleco ficou assustado, já quis logo criar
um jogo para se divertirem. Nada esquisito até que ambos entraram na
rota de observação de todos. A estrutura inteira da fazenda estremeceu
e todos se entreolharam. Josefina se virou assustada.
O pai, zangado, apontando para ela e para o menino. O rosto
vermelho e suado por pouco explodiu. Berrava ofensas contra o garoto,
e Peteleco, esperto como era, não ficou ali para ver o que se sucedeu.
Fugiu deixando a amiga e escapando de mais um problema. Foi uma
tempestade quase sem fim, parecia que tudo iria desmoronar. A mãe de
Josefina nunca soube o que aconteceu dentro do carro, com os belis-
cões que a filha levou, deixando-a murcha. Não é coisa de menina andar
com projeto de vagabundo, assim o pai disse. O fim. Simples e dolorido.
Ela não podia mais ver o amigo, ou sequer se relacionar com gente
“daquela laia”.
As situações dentro de sua casa se fragilizaram.
Dona Josefina até ri do modo como algumas maldições per-
correm famílias. Pausou até chegar no clímax da sua memória costu-
rada. Esfregou o rosto, puxando-o para baixo, e deixou os olhos sem
apoio, mortos, fitando qualquer ponto à sua frente. Uma brisa de verão
adentrou a sua casa silenciosa, parecia coincidência naquele momento
ela ter que sentir calafrios. O seu jardim com violetas não ficou quieto,
estavam todas esperando-a continuar.
O que aconteceu foi rápido.
E ela era somente uma criança.
Seu pai tinha proibido a menina de falar com Peteleco. E real-
mente o destino levou a sério aquela ordem, porque ela nunca mais o
viu. Mesmo quando conseguia escapar dos olhos do progenitor e de

352
O manifesto do fim do mundo

dona Afonsa, deu-se perdida. Não sabia como encontrá-lo. O garoto


sumiu como os pais de dona Rosilene, ou os irmãos da mulher doida.
A fazenda vizinha já não contava com os pais do menino, tinha troca-
do seus funcionários. Até parecia um surto momentâneo a existência
de Peteleco e sua família, evaporados no tempo.
Mas Josefina começou a ser mais atenciosa às conversinhas do
pai com os amigos fazendeiros. Sobre um tal recrutamento, trazendo
gente nova para trabalhar em outras fazendas e cuidando de miseráveis
perdidos. Os homens riam com malícia, parecia que faziam algo erra-
do. Comentaram até chegar num ponto peculiar. Um dos amigos logo
disse, afobado:
— A gente captura e, se a mãe do vagabundo insiste, a gente
mete bala.
Josefina cravou a fala dispersa na sua memória. Marcou tan-
to mais do que aniversários ou eventos felizes em família. Nunca saiu
da sua mente tal frase. Tudo pareceu interligado com as conversinhas
sombrias que o pai tinha com a mãe. Sobre trazer “novos” para suas
fazendas, para trabalharem. Tinha até construído um lar para eles, mas
não parecia com um. Na cabeça da pequena Josefina, era inconcebível
como jaulas e ferros poderiam servir de moradia para seres humanos.
Ainda mais para crianças, e crianças que choravam. Crianças perdidas.
Diversas crianças.
Crianças que agora estavam na borda do tempo.
Somente crianças.
Josefina começou a questionar o porquê de menininhos cho-
rosos surgindo na fazenda, ou porque dona Afonsa vivia emburrada
e áspera cuidando daqueles pequenos, como se fosse mãe deles. Mais
pontual do que devia. Quem eram os pais daquelas crianças que tinham
a mesma idade que ela, e não pareciam felizes? Por que eles estavam ali?

353
O manifesto do fim do mundo

Cadê Peteleco?
O pai não respondeu quando ela se atreveu a perguntar. Minu-
tos depois, ele deu uma resposta ignorante e mandou a menina se calar.
Por pouco não a agrediu. Foi uma das poucas vezes em que ela avançou
o sinal com a figura masculina. Dali em diante, precisou costurar um
manual rebuscado de como chegar no pai grosseiro.
Para evitar questionamentos femininos, Josefina agora iria ficar
em casa e aprender etiqueta. Até o dia em que tivesse cabeça para en-
tender quem manda e quem deve ser mandado, e que no mundo há
camadas perversas de realidade escondidas por detrás de um sorriso
familiar, onde ninguém nunca deveria desconfiar.
A pergunta foi reformulada na sua cabeça:
Quem conspirava para o fim do mundo?
Josefina nunca mais viu Peteleco. E Peteleco nunca mais viu
Josefina. A construção imagética do garoto foi se esvaecendo com o
tempo, junto da dúvida daquela menina sobre por que crianças como
ela chorarem trabalhando enquanto ela recitava o nome das frutas da
fazenda feliz de seu pai.
Parecia o inferno com o céu, duas realidades misturadas de
forma caótica. Era tudo tão violento e agonizante que Josefina precisou
peneirar o que iria gravar consigo para sempre. Mas as vozes infantis
ainda a perturbaram, centenas de crianças chorando enquanto carre-
gavam bacias ou faziam serviços pesados. Uma orquestra de morte e
escravidão no coração do nada para que ninguém visse. Como os ho-
mens cruéis e gananciosos como seu pai queriam.
Peteleco foi enterrado junto com os retratos de desequilíbrio
dos homens no poder. Mas o passado sempre conversou com o futuro
e disse a dívida de cada um. Contando a daquela família repleta com
dor e amargura.

354
O manifesto do fim do mundo

Dona Josefina respirou. Interrompeu onde deveria. Levantou-


-se e foi beber um pouco de água contemplando a majestosa cozinha
da sua casa, com utensílios e armários da melhor qualidade. Apesar do
calor daquela tarde, ali dentro fazia frio, mesmo com todas as janelas
fechadas e um Sol como protagonista.
Foram arrepios que desequilibraram as pernas da mulher e a
fizeram cair no chão de copo na mão. A água escorreu para debaixo
da geladeira e se perdeu com a sujeira, o pó que sempre restava após
a faxina.
Depois, só houve silêncio. E alguns infernos.

355
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 46 –
Uma floricultura destruída
e o tempo começou a passar
rápido demais.

R ussinha Amada hipocondríaca. Deise traumatizada e sem


dizer uma palavra. Fiel Jerônimo fervoroso desconhecendo também
uma Celeste na transversal. E um romance chegando ao calor confor-
tável, com sorrisos e toques arrepiados. Os dias não podiam ser mais
dúbios. Tão frenéticos que a história da caveira começou a se tornar
realmente tola. Bola e Carolina foram a faísca para aquele confron-
to. Iniciaram uma rixa interessante e imprevisível que nunca deixou o
campo das ideias como agora.
Enquanto Fortaleza Florida continuou fechada, com algumas
silenciosas visitas de dona Josefina, uma mente na cidadezinha repen-
sou toda aquela insanidade. De uma hora para outra, as pessoas sur-
giram hipocondríacas, temendo uns aos outros, começando a escutar

356
O manifesto do fim do mundo

fielmente o que Jerônimo tinha a dizer e embarcando numa narrativa


tão louca quanto os últimos episódios. Doutor Félix não iria lutar con-
tra uma cidade, estava fazendo seu trabalho, ganhando seu dinheiro.
Só se importou mesmo quando viu a lanchonete de Deise fechada e
foi atrás de fofocas. Duas vizinhas rápidas contaram a notícia. Trau-
matizada, a mulher estava sob uma redoma de velas e orações, mesmo
depois do incidente por conta de seus olhos esbranquiçados. “Pobrezi-
nha”, ele disse. Mas não fez nenhuma visita.
Félix também não soube sobre o clarão esquisito que inter-
rompeu as obras da prefeitura. Acabou que os relatos das duas vizi-
nhas pioraram o seu entendimento. Na borda da fantasia, a loucura
era bem-vinda. Na redoma esquizofrênica de Russinha Amada, agora
tudo podia acontecer, inclusive nada. A cidade queria aparecer, defini-
tivamente, na história do mundo, com um relato tão louco quanto foi a
pandemia do Rarizes. Se as pessoas não obedecessem às boas-novas do
Todo Poderoso, que escolheu Jerônimo como mensageiro, mais coisas
estranhas iriam acontecer. Era apenas questão de tempo.
O cronômetro foi ligado.
Fiel Jerônimo explicaria as boas-novas na celebração que iria
definir os rumos de Russinha Amada. Todos da cidade se agitaram, eu-
fóricos. Se tivessem sorte, ainda iriam ver o homem alfinetando dona
Josefina, era a briga do ano, não esqueçamos disso. O sucesso ganhou
o fiel, o suficiente para ele esquecer Deise ou qualquer outro que caiu
com ele na maestria de luzes daquele dia.
Sua obsessão progrediu com facilidade. Um dia ele acordou e
por pouco não gozou quando lhe contaram do episódio inédito que ti-
nha ocorrido na floricultura. Uma pichação grotesca com uma caveira
desenhada, rodeada de flores. Feita para chocar, como um tiro de lar-
gada para o rebuliço na sua gestação. Roberta, quando viu, comentou

357
O manifesto do fim do mundo

com duas amigas e correu para o seu trabalho, estava do lado da chefe,
mesmo que religiosa. Só um deles pagava seu salário.
Entretanto, naquele dia, dona Josefina se encontrou mais
branda que todo o restante. Sua atenção oscilou, embebedada pela sua
graça e por sua bondade, com o sorriso que sempre colocou até para
quando trevas chegaram. Roberta questionou atrevida se dona Josefina
não iria fazer nada, e a resposta foi absurda.
Disse que resolveria depois. A floricultura podia esperar.
“Mas... Poxa, senhora, você fala tanto em depois. Depois... De-
pois...” Roberta ficou preocupada. Como aquela família podia ignorar
estando na mira de toda a cidade? As pessoas já começavam a olhar
feio até para a coitada, porque trabalhava na casa da “violenta florista
ingrata”. E seu Antônio continuava à deriva.
Roberta lavou as mãos. Foi para a cozinha resmungando que
se a patroa disse, então ponto final. Depois se perguntou por onde Igor
acampava pelas manhãs, se ele largou mesmo os estudos e saiu “piran-
do o cabeção por aí”. Roberta deveria ganhar mais por se preocupar
até com os setores que iam além do dela! Lembrou-se de que tinha que
ficar na cola do rapaz. E uma ideia passeou na sua cabeça, já agitada
pelo frenesi da pichação.
— Vou dar mesmo uma de Sherlock. Todo mundo aqui com
o maior segredinho. E a Robertinha aqui sempre saca tudo! — disse,
efusiva.
Aproveitando-se dos entornos caóticos, Igor e Rafael se en-
contravam escondidos, alimentando um espírito de nostalgia. Passea-
ram pelo Açude Caldeirão, fizeram trilhas, arrancaram risadas. Quan-
do as coisas esquentavam, eles arranjavam lugares que antes serviam
para brincadeiras de esconderijo. Igor se entregava a um Rafael faceiro,
e a química de ambos não demorou para explodir. Agora mais intensa

358
O manifesto do fim do mundo

e carnal.
Tudo correu bem mesmo com o pequeno apito interior de
Igor o alertando sobre Rafael. Mas se apaixonou rápido, desvencilhou
da sua cabecinha até as questões sombrias da sua família. Deixou-se
levar pelo romance iniciado e pelas aventuras que sempre quis viver
naquela cidade solitária e cheia de olhares. Rafael também se aprovei-
tou dessa brecha. Ambos ganharam.
Depois da lagoa, o ponto de encontro principal dos dois para
conversarem e se divertirem era uma casinha abandonada pouco dis-
tante de Russinha Amada. Uma das diversas que pontuavam dentro do
mapa seco e intuitivo da região. Mesmo com tantas pautas e assuntos,
Igor se incomodava com a falta de objetivo do amigo. Rafael sempre
desconversou quando Igor perguntava por que deveriam vasculhar o
jardim. Da mesma forma, pairando em torno das questões da tal “em-
presa”. Passou de uma pesquisa sobre o Rarizes para uma investigação
antifascista. No meio do caos, ainda tinha o tal jardim.
E Rafael divagando. Nunca contou para Igor sobre o anda-
mento das pesquisas com as violetas coloridas que o amigo colheu da
própria casa para ele. Também não aprofundaram sobre o avô e sua
possível trama. Acontece que agora Igor se tornou um passatempo di-
vertido, logo após ambos engatarem a aproximação sexual. Claro que
Rafael estava se esquivando.
E Igor, sempre muito afoito, já demonstrou animosidade. Con-
torceu o nariz e começou a retomar o fio da sua investigação passiva.
— Rafael, você nem me contou também sobre como anda sua
avó... — o segundo calo do amigo.
Não, ele não se iludiu com o retorno magnífico e com surpre-
sas daquele que uma vez foi seu melhor amigo e agora seu novo amor
de verão.

359
O manifesto do fim do mundo

Duas coçadinhas no nariz, dispersando para onde apontar a


visão, uma rápida passada de mão nos cabelos. Rafael não sabia men-
tir. Igor o conhecia desde criança, não era estúpido. Os pontos come-
çaram a convergir.
— Ela está bem. De novo isso?
Desconfiança do outro lado.
— Rafael... — Igor semicerrou os olhos — por que eu ainda
continuo com a sensação de que você está me enganando?
— Igor... — Rafael se aninhou do seu lado, o peito suado —
ainda não tenho respostas sobre as violetas coloridas nem sobre a
criança da foto. Não posso te falar nada ainda. Por que não aproveita-
mos mais um pouco? — puxou o corpo magro para perto de si. Ambos
pelados, os membros descansando, apontando um para o outro.
— Certo. Nenhuma resposta. Nada. Então, por que não vamos
hoje à noite no jardim pesquisar essa energia? Você foi uma vez lá e
agora não quer mais ir?
— Eu não cheguei a entrar e...
— Rafael... — Igor se sentou, afastou-se também do corpo do
amigo para não se embebedar pelos seus encantos. Precisava continuar
racionalizando — todo mundo vai estar dormindo.
Algo implodiu nas mentes inquietas de ambos. A brisa pas-
seou pela casa que só tinha como conteúdo dois bancos e uma explo-
são de sentimentos. O teto sem forro serviu um jogo de luz com os
fachos do Sol. Por vezes, passarinhos brincavam nas telhas, alertando
os garotos de que no fim nunca estavam sozinhos.
Rafael respirou com a decisão que tomou. Apertou os olhos e
fez um bico, Igor já tinha entendido tudo.
— Vamos, então, no dia de missa. Assim não tem o risco de
sermos pegos.

360
O manifesto do fim do mundo

Igor comemorou jogando sua camisa suada no outro. Gote-


jando com o frenético do calor e das suas últimas peripécias.
— Doeu? Você é estranho demais. Já deveríamos ter ido lá há
dias! — Igor se sentou do lado de um Rafael sorridente, passou o braço
suado pelos ombros largos dele. — Para melhorar, só falta um café com
sua avó...
— Igor, ela ainda não está apta a receber visitas... prefere ficar
sozinha. — Rafael se afastou. Igor confirmou a desconfiança, mas não
era momento de colocar aquilo em jogo.
— Tudo bem, não vou tocar mais nesse assunto. — Igor sorriu.
Depois, fez um sinal com o olhar que alegrou Rafael. Disse algumas
palavras cheias de malícia e os dois se jogaram abraçados na toalha que
os protegia do chão. Tanta urgência, que não tinham pensado em pelo
menos equipar a casinha abandonada, mas quando estavam no calor
do sexo nada importava, nem mesmo o lugar.
Dois passarinhos dobraram a cabeça com uma conversinha
particular. Escutaram alguns gemidos vindo debaixo, mas se preocu-
param com o protótipo esquisito se formando perto dali.
Se aproximaram aos pulinhos e tocaram a ponta do bico num
arrepio de natureza esquisito, como se aqueles animais comuns não
pudessem fazer isso. Manejados por algum desequilíbrio inexplicável.
Continuaram como num jogo, sem aquela ligeireza divertida de um
passarinho, incorporados, recebendo uma energia em paralelo que
competia em dominar o invisível aos olhos mortais.
As duas criaturinhas pegaram voo, deixaram o casal de aman-
tes e partiram para a cidade. Encostaram-se em cima da lanchonete
fechada de Deise, rodeada da presença de vizinhas preocupadas sobre
a saúde mental da mulher. O grupo de beatas debatia sobre a celebra-
ção de Jerônimo, que podia encaixar “mais um ritual”. Tudo no sigilo.

361
O manifesto do fim do mundo

“Aquela intervenção peculiar”, elas sabiam, “era perigosa, mas ajudou


tanta gente...” Uma desobsessão rápida, sem precisar dos feitos da “ma-
cumbeira do Floresta Dois, que deve rir com o demônio agindo”.
— Ele está ocupado, principalmente agora com o caso da mãe
do garoto gordinho. E aquela Josefina antipática, nunca pensei. Ficou
toda arrogante, né? — disse uma voz idosa.
— Eu não quero uma flor daquela dondoca sem sal aqui em
casa. — completou outra — Até joguei fora as que ela trouxe no dia da
reza para a minha filha.
E uma conversa mais afiada se desenrolou. Os passarinhos se
atentaram aos detalhes, interagiram entre si sobre pontos importantes.
A espionagem não era mais interessante ali, precisavam ir urgente-
mente para outro lugar.
Novamente para os braços do ar.
Perto do bairro de dona Josefina, as duas carequinhas se arre-
piaram, coçaram as asas e se aninharam para entender o movimento
dentro dos muros de dona Josefa, agora sem empregada. Era ela com
um homem barrigudo velho e um jovem mais esbelto. Pela forma que
arregalou os olhos, o que dizia era urgente. Os passarinhos se atenta-
ram a poucas frases.
— Eu quero que vocês deem um susto naquela filha de uma
égua. Me deixou aqui, doente, sozinha e com aqueles desaforos. Não
contei pro meu filho ainda porque ele não me respeita mais. Por isso,
eu mesma vou resolver isso. Ela vai vir se arrastando para mim. E que-
ro ela se humilhando comendo aqui ó... — dona Josefa ergueu a palma
enrugada com manchas — na minha mão.
— Pode deixar, patroa... — o grandalhão respondeu com um
sorrisinho malvado.
Os passarinhos sorriram com as cabecinhas. Piscavam rápido

362
O manifesto do fim do mundo

para terem uma leitura visual exata do rosto de dona Josefa com sulcos
de ódio. Em seguida, sem mais delongas, pegaram voo. Não importava
mais o desenrolar do plano de “vingança” contado.
A última rota foi mais certeira. Bem pertinho do jardim mis-
terioso de violetas coloridas. A casa ao lado tinha um cheiro bom de
feijão temperado. Roberta assobiando não porque era de mania, mas
para se manter sã e viva dentro daquela redoma. Havia desconfiança
na forma que ela vassourava o pátio, sempre espionando o tempo atrás
de mais “incertezas”. Já estava ficando era doida, por pouco não con-
cluiu.
Mas os passarinhos não queriam saber dela. Estavam interes-
sados em dona Celeste na cadeira de balanço rabiscando com os dedos
a própria barriga, um sorriso duvidoso surgiu, e ela olhou afável para
os céus, não para os dois espiões. Eles podiam ler a sua mente, notaram
que ela repetiu o pedido de sempre.
Jerônimo chegou na cena como um penetra. Perguntou rís-
pido pelo almoço e obteve uma resposta carinhosa. Dona Celeste se
levantou e foi acudir o marido, redecorando-o com o calor de mulher
e mãe.
Os dois passarinhos não perderam tempo, entraram num con-
senso. Iriam entrar na casa.
Ficaram lá por horas observando o furta-cor se misturar com
o cheiro das comidas. Os dois tinham aprimorado habilidades visuais,
podiam enxergar bem mais além. A energia colorida não só mexia
com a estrutura sensível daqueles dois humanos, mas de todo o siste-
ma. Até na existência dos objetos religiosos, ou o que quer que fosse
inanimado.
O casal conversou com silêncios obscenos. Discutiam prepo-
sições que fariam fiel Jerônimo ficar arrepiado.

363
O manifesto do fim do mundo

Dona Celeste foi logo objetiva, sem ser imponente, é claro.


— Essa mensagem parece outro absurdo... Você não acha que
é demais acreditar que dona Raimundinha também assustou aqueles
garotos e fez Bola “inchar” daquele jeito? Me parece fruto de uma ima-
ginação fértil...
Fiel Jerônimo semicerrou os olhos.
— Esse garoto fica escondendo as informações e não conta
logo tudo. Mas criança não mente, Celeste. Tem algo acontecendo
aqui, sim, e eu preciso descobrir como o demônio está agindo.

364
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 47 –
Marilene. A primeira.

D omingo de Freitas. Duas da tarde. Algum dia da semana


como outro qualquer, não fosse todo o espectro atual.
Com o espiral de eventos dos últimos dias, muita coisa mudou
na vida de Danilo, tornando-o mais pensativo sobre seu cotidiano, ao
mesmo tempo perspicaz sobre as fofocas do momento. Necessitava se
readaptar a uma nova rotina sem Giovani, a difícil ausência do amigo
para contar os causos de suas clientes de Piripiri. O mundo se tornou
pesado demais nem precisou de fiel Jerônimo para isso.
As máscaras começaram a chamar a atenção dos visitantes,
mas o Rarizes foi tão traumático que ninguém fez muitas perguntas.
Danilo se recusava a usar, assim como se recusou a adentrar no con-
servadorismo local. Sua própria existência era uma singela resistência.
E, depois que Giovani se foi, ele também teve seus novos postulados.
Vamos, então, a uma série de breves acontecimentos importantes
demais para a concepção da nova Russinha Amada.

365
O manifesto do fim do mundo

Preparados? Estamos chegando.


Perto deles.
Dois passarinhos sobrevoaram as casinhas da irmãzinha de
Piripiri.
Danilo aproveitou a brecha do intervalo para prolongar sua
conversa arrepiada. Dias depois e ele continuou papeando com o estra-
nho paquera de Giovani. Entre mensagens picantes e agressivas, quem
quer que estivesse do outro lado não parecia ser qualquer um atrás de
diversão casual e no sigilo. Danilo entrou no jogo se passando pelo
amigo, poucas pessoas fizeram caso da morte de Giovani. Sua própria
cidade o largou. A família deve ter dado graças aos céus por um “vea-
do” a menos no mundo.
E o estranho não sentiu nenhuma diferença no ritmo da con-
versa.
Danilo o provocava querendo fotos íntimas, mas o esquisito
não mandava, gabava-se do seu dote, que era grosso e veiúdo e mais
diversas qualidades figuradas no topo daquele aplicativo, sem avançar
muito. Sua foto mais íntima eram porções “aleatórias” como uma ore-
lha. E Danilo não conseguiu decifrar muito.
Ele não sabia exatamente o que estava procurando, ou o que
iria ganhar continuando aquela conversa. Alguma aventura sexual
ou... curiosidade somente? Quem sabe desvendar o interesse do estra-
nho com a tal dona Josefina.
Claro que tinha algo errado. Não engolir a esquisita morte do
amigo foi um fator predominante. E algo dentro dele, uma voz que sur-
giu com os últimos assopros, disse-lhe que aquele esquisito do aplica-
tivo tinha culpa de algo. “Sou macaco velho”, o dito reacendeu. Danilo
conhecia os joguinhos, era ele quem tirava Giovani das roubadas. Se
orgulhava muito de sua inteligência de vida.

366
O manifesto do fim do mundo

Conversa vai, conversa afunda. E a primeira vitória. Depois de


muitas palavras, de flertes casuais, de elogios, (sim, o esquisito amava
ser elogiado, Danilo logo definiu que deveria ser no mínimo do signo
de leão), o estranho começou a ceder. Ninguém escapava do jogo de
palavras do cabeleireiro. As conversas foram saindo do campo sexual
e já tratavam de sentimentos, mas tudo muito razoável, com perguntas
bobas como: você está bem hoje?
Naquela tarde, Danilo viu que o esquisito liberou novamente a
sua localização em tempo real. Estava longe ainda, provavelmente em
Teresina. Logo se viu numa trama investigativa. Além da curiosidade
sobre aquele “predador sexual”, que, de certa forma, mexia com ele, a
questão do interesse nas flores de dona Josefina ganhou um destaque.
Danilo estava por dentro da briga entre a florista e fiel Jerônimo. E
escutou por alto uma das suas vizinhas dizer uma teoria:
“Não seriam as flores as responsáveis por essa onda nova do
Rarizes?”
Tem algo de errado... e esse gostosão está relacionado com isso,
Danilo disse para si, segurando um pente, de pernas cruzadas próximo
do clarão que engoliu a porta do seu salão. Estava na pose de um rei.
O Giovani esses imbecis faziam de palhaço, mas eu? Eu não. Há
há, completou ainda para si.
Rabiscando mais um ponto de convergência desse manifesto.
Por isso, é válido adicionar um novo. Não tão longe assim.
Bem perto das redondezas.
Uma figurinha velha no álbum de Russinha Amada despertou
do seu silêncio sobre os acontecimentos recentes. Compreendia seu lo-
cal periférico diante da religiosidade forte e local de fiel Jerônimo. Por
vezes, já teve seu terreiro vandalizado e pichado como a floricultura
de dona Josefina. Mas, diferente da florista, ela foi atrás dos crimino-

367
O manifesto do fim do mundo

sos e tentou fazer justiça, mesmo quando a polícia escolheu um lado,


o do mais forte. De uns anos para cá, depois do Rarizes e de todos
os absurdos naquele ecossistema, ela se aquietou e prometeu viver em
segurança na sua casinha no final da rua para as fronteiras de Piripiri.
Bem distante de todos, rodeada pelo mato seco e por uivos etéreos. As
crianças evitavam rodear por lá, diziam que a terra era da “bruxa do
mal que tinha pacto com o demônio”. Depois que Jerônimo conseguiu
sua superioridade, aquela figura foi esquecida e os vizinhos respeita-
ram seu espaço com ressalvas.
Estamos falando de dona Sandra, a “exotérica” de Russinha
Amada.
Ganhava a vida com o seu baralho místico e com uma ven-
da de peças de roupa na Praça da Bandeira, em Piripiri. Seu público
principal era de lá. Por sorte ela não ficava muito tempo em Russinha
Amada. Trabalhava o dia todo no centro, lidando com um ofício por
vezes exaustivo e estressante. Divertido somente quando assistia às bri-
gas perto da Praça da Bandeira. Suas amigas de trabalho também a
mantinham entretida com seus causos amorosos. Uma vida mediana,
mas feliz. Assim dona Sandra quis. No final do dia, ela ainda tirava um
jogo, para complementar a renda, alguma conhecida querendo saber
quais caminhos tomar. E a mulher sempre foi muito boa, acertou bas-
tante coisa. Era devota a seus guias, sempre na linha. E eles tão gratos,
como ela dizia.
Dona Sandra só tinha uma mania: passar no bar de seu Osval-
do para comprar alguma bobagem aperitiva ou vinho, conversar com
o homem que era um dos poucos que não ligava se ela era a “macum-
beira perigosa”, denominador comum entre o povo. Ela até prometera
um jogo para ele, para que seguisse sempre com saúde e prosperidade.
Eis que o pior aconteceu...

368
O manifesto do fim do mundo

Dona Sandra voltando do trabalho ignorou os mascarados que


a olhavam de cara feia. Os olhos ficavam mais expostos quando meta-
de do rosto estava coberto. Pareciam mais perigosos.
A mulher avistou uma pequena movimentação nos arredo-
res do bar de seu Osvaldo. Lá estava a figura que tanto evitava. Fiel
Jerônimo gesticulando feroz contra o pobre senhorzinho que procurava
apoio popular, mas não o tinha. Por mais que tentasse argumentar, não
era suficiente. Uma das pessoas ali perto comentou sobre o caso. Dona
Sandra prestou atenção.
— Parei de ir na igreja de fiel Jerônimo por causa dessa bestei-
ra. Deus não iria estar satisfeito com esse tipo de atitude. — o comen-
tário saiu solto.
A mulher continuou observando a baderna. Depois de minu-
tos, finalmente um resultado. Seu Osvaldo fechou a porta do bar, o
barulho foi arisco. Era o seu ultimato para fiel Jerônimo. As beatas
bateram palmas comemorando. O fiel saiu na frente todo cheio de si.
Satisfeito em fechar aquele lugar que aglomerava “pecadores” e contri-
buía para os vícios de muitos. Sua cidade entrando nos eixos.
Foi o fim da picada. Claro que foi. Dona Sandra respirou fun-
do e amassou a alça da bolsa. Embora suada, com um manto de can-
saço por conta do trabalho, precisava lidar com aquela falta de noção
tremenda. Foi o estopim. Tinha engolido demais. Ela iria ter uma con-
versa séria com seus guias. Agora iria tomar providências! Era hora.
Quando a noite foi chegando com seus tons rosados e alaran-
jados, Marilene já tinha arrumado parte de uma mala, cansada das
perguntas exaustivas de Augusto sobre a “nova casa” deles. Estava
tão feliz e impaciente, já tinha até pesquisado sobre a tal Teresina que
todos falavam. “Olha mãe, lá tem parque aquático!” Repetia sempre.
Marilene se estressava e nunca compreendia. Também se encontrou

369
O manifesto do fim do mundo

animada com a ideia. Se não fosse uma questão, a principal, que ela
não comentaria agora... deixaria para quando chegasse lá.
Marilene esquadrinhou sua casinha de Russinha Amada. Sen-
tiu uma pontada de tristeza pelas memórias que ficariam ali. Se per-
guntou diversas vezes se a decisão era a correta, prolongando como
podia. Conforme passavam as horas, ela arranjava obstáculos para
NÃO sair de Russinha Amada. Mas tinha dona Josefa e seu esquisito
silêncio. E agora um batalhão religioso... Não, não podia mesmo ficar
ali.
— Vou dar uma saidinha. — ela disse com um tom jovial. Au-
gusto já sabia.
— Vai beber, né, mãe? Eita... — perguntou sorrindo.
— Vai-te a merda. — ela disse, brincando também. Deixou o
menino com o seu celular e saiu quando a noite incorporou.
Não deu boa noite para nenhum dos vizinhos mascarados.
Agora ela sabia quem estava do lado de Jerônimo e quem estava pelo
“bom senso”. Também não ligou para os burburinhos que, na verdade,
faziam-na ficar cheia de si quando lembrava da esfregada que deu na
cara do “infeliz”.
Mas, espera aí... Sem nenhuma musiquinha animada, nenhum
forró das antigas. O ponto somente iluminado pelos postes, um bar
famoso e divertido fechado em pleno dia de trabalho? Seu Osvaldo só
podia estar doente. Marilene se aproximou, dois adolescentes cochi-
charam, riram e pegaram estrada com suas “bicicletas de ricos”. Sim,
ambos mascarados. Ela fingiu que não os viu.
— Mas... QUE PORRA! — disse furiosa. Pensou rápido, deu
uma coçadinha no braço, perto da manga. A blusa com o rosto de al-
guma celebridade faltando miçangas. O shortinho de sempre. Marile-
ne teve uma ideia... — Vou já lá.

370
O manifesto do fim do mundo

— Nem perca seu tempo.


A voz surgiu na noite.
A mulher se virou assustada. Só respirou quando a silhueta
surgiu, usando branco. Parecia um pijama. Dona Sandra, imponente.
Seu rosto estava esquisito, como se não fosse o dela.
— O que aconteceu, dona Sandra? E... faz tempo que não vejo
a senhora. — Marilene ficou atravessada.
— Sempre trabalhando, minha filha. — a outra respondeu. A
voz também divergiu.
— Seu Osvaldo fechou? A senhora ainda tira as cartas? Queria
ajuda num...
— Eu sei do seu problema, minha filha. Você está em dúvidas
se deve ir ou não, não é mesmo? — dona Sandra não quis deixar o papo
com firulas. Foi objetiva. Seus olhinhos pareciam de bêbados, bem fe-
chadinhos. A voz pigarreada, encaminhada como a de alguém mais
experiente. A mulher não estava sozinha.
— Como assim? — Marilene sentiu as pernas fracas. Era estra-
nho conhecer dona Sandra e não a ver ali. Sacou na hora o que estava
rolando.
— Não faça perguntas, minha filha. Eu estou por você. Você
não me conhece, mas eu te conheço.
— Dona Sandra... — Marilene engoliu em seco. Confirmou
sua teoria, dando-lhe mais calafrios.
— Venda sua casa para a vizinha de trás, ela quer aumentar
o terreno. E saia dessa região hoje ainda! No máximo, até amanhã!
Saia sem que ninguém veja! Leve seu filho, e proteja os pés dele! Muita
coisa ainda vai acontecer e você precisa sair daqui. — a voz com falhas
direcionou. Dona Sandra ficou corcunda como uma velhinha bem de
idade.

371
O manifesto do fim do mundo

Marilene não conseguia dizer uma palavra. Só absorver a or-


dem. Também não contestou, algo dentro dela apontou que finalmente
aquele era o caminho a se tomar, de fato.
— Tente ir hoje! Pegue carona, vá até Piripiri e veja os ônibus
que saem à noite. Sempre tem uma ou duas poltronas vagas. Mas vá!
Você arrumou as malas, sua história acabou aqui. Vá! Você corre peri-
go, minha filha. Fique vigilante.
Co... como podia? Marilene pensou.
— Vá! Esqueça o que tua carne quer hoje. Vá! Corra! — Dona
Sandra enxotou a mulher com as mãos. Marilene se desequilibrou e,
por pouco, não caiu na areia com carrapichos. Estava tão assustada que
não escutou o restante.
— Filha sofredora... Parte de ti só é o começo de algo maior.
Somente minutos depois Sandra se deu conta de que estava
fora de casa, perguntando-se sobre a urgência daquela situação para
se encontrar ali usando branco e respeito, imbatível, como nos velhos
tempos.

372
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 48 –
Danilo. O segundo.

S andra caminhou atordoada. Mas tinham lhe dito o que fa-


zer. A noite de verão era um espetáculo, porém, Russinha Amada não
estava sendo abençoada com estrelas. Nem com uma estonteante Lua.
O céu escuro só evocou simetrias e paralelismos com eventos implo-
dindo por todos os cantos.
Perto da mulher, uma segunda figura surgiu tão rápida como
a noite. Não que Danilo também não fosse um peão surpreso, mas
fazia parte dos eventos catastróficos até o espetáculo final. O celular de
Giovani, na sua mão, estava com carga máxima. E o estranho do outro
lado se aproximou, há apenas quilômetros de distância.
Danilo vestiu uma blusa qualquer e uma bermuda e seguiu no
breu, sem esbarrar com nenhum vizinho mascarado. Russinha Amada
parecia mais desolada com seus filhos.
Enquanto alguns destinos eram movidos pela curiosidade e
outros pela excitação, aconteceu uma convergência única. Igor tam-

373
O manifesto do fim do mundo

bém se aventurou naquela noite, determinado a entender as estranhe-


zas do próprio jardim.
Com uma pá e de peito aberto, iria resolver aquele dilema. O
que quer que descobrisse iria usar para confrontar os pais e quem sabe
Rafael. Qualquer ideia de caveira ou algo assim finalmente teria algu-
ma explicação. Aquela palhaçada já havia ido longe demais.
— Foda-se! — Igor mandou uma mensagem de boa noite, dis-
se que iria dormir. Rafael respondeu com algumas carinhas felizes e
luas amarelas. Deu uma última fitada na porta do quarto dos pais, a
relação naquela casa não mudou nada. Dona Josefina, cada dia mais
aérea e menos “dona Josefina”. Seu Antônio, um peso morto.
Marilene também sentiu o impacto da noite. Estava atordoa-
da quando voltou da sua conversa com a vizinha de trás. Negociaram
com agilidade e sem muito questionamento. Teve lá alguns momentos
de desconfiança, mas no fim se acertaram. Marilene só pediu segredo,
nada mais. A vizinha prometeu e não fez caso.
Depois ligou para uma companhia de ônibus de Piripiri e con-
seguiu também lugares para aquela “fuga” tão frenética quanto a sua
energia pós-dona-Sandra. Sua cabeça borbulhando com milhares de
ideias desconectadas, todos semelhantes somente por uma tênue linha.
Agraciada pelo belíssimo furta-cor.
Augusto já tinha arrumado a mala. Escondeu bem a caveira
consigo e tentou não se emocionar com o seu último dia em Russi-
nha Amada. Mesmo com um esquisito futuro à sua frente, foi ali que
cuidou de suas raízes e se divertiu com os amigos. Bom... ex- amigos
agora.
A noite não queria pressa, estava faceira observando as quatro
movimentações inquietas no terreno de Russinha Amada. Igor com
a adrenalina por cima, pisando nas violetas coloridas e pensando nas

374
O manifesto do fim do mundo

possíveis maldades que estão dentro do seu círculo histórico. Incrédu-


lo ainda sobre tudo o que Rafael tinha dito: o avô que escravizava, dona
Josefina ter em seu terreno uma “energia perigosa” e o modo como
tudo isso estava acontecendo. Ele parecia avulso.
Cravou a pá matando algumas das flores e foi escavando no
primeiro ponto aleatório do terreno. Não tinha lógica, ele só iria esca-
var pra chegar até algum lugar.
Marilene também não contava com certezas. Ainda quis pas-
sar uma última vez na frente da residência de dona Josefa. A luz de-
nunciou a idosa vendo TV, provavelmente despreocupada e com uma
nova empregada. Os seus dias de humilhação naquela casa acabaram.
Era hora de mudar. Augusto não entendeu nada quando a mãe bufou e
sorriu, eufórica. Puxando-o junto da mala. Pareciam dois bêbados no
meio da rua.
Só pararam quando avistaram o sumido caminhão da desin-
fecção. Sempre no espectro fantasma, cortando as ruas com sua pre-
sença ameaçadora. A mangueira apontada soltando as rajadas. Fazia
bem mais do que só o seu trabalho. Quem quer que estivesse na dire-
ção continuava uma incógnita. Marilene estremeceu quando avistou o
carro. Era um sinal. Iria embora para sempre daquele lugar que tentou
passar por cima dela.
Rumou no escuro da BR asfaltada, enfrentando qualquer ideia
fantasiosa. Augusto com medo, e os seus pezinhos ficavam querendo
enrolar de tanto temor. Era hora do espetáculo.
Por pouco não se encontraram com Danilo. O rapaz desen-
tendido sobre o aplicativo maluco apontando que o estranho deveria
estar... no meio do nada?
Continuou excluindo as mensagens indecentes de outros caras
pela região perguntando para o perfil de Giovani se ele era passivo ou

375
O manifesto do fim do mundo

ativo, se estava a fim naquele momento; enquanto que outros já eram


mais agressivos, postavam de cara a foto do pau, cheios de si pelos vá-
rios atributos que mexem com o imaginário e a excitação daqueles em
aplicativo de sexo. Danilo não se distraiu com nada, estava suando frio
e querendo sorrir, porque em plena noite de semana ele estava no meio
do nada querendo fundamentar uma paranoia que surgiu na sua cabe-
ça.
A localização já dava poucos metros, para o Norte. Para além
da extensão da BR, sentido contrário a Piripiri. O tempo tinha subver-
tido o suficiente para que Danilo se sentisse seguro com o abraço da
escuridão e temeroso com a luzinha do celular, apitando que o estra-
nho estava perto. Uma carinha feliz indicando que “em breve você vai
ter um encontro feliz com aquele parceiro”. Ridículo.
— Vou até gravar... — disse baixinho.
— CADÊ VOCÊ, ESTRANHO? — vociferou para o nada. Al-
guns grilos acordaram furiosos. Madeixas secas e vivas também. Ga-
lhos se enroscaram perto de cruzes na borda do asfalto. A memória de
alguém estava sendo respeitada naquele momento, porque as raízes
abraçaram com um carinho divino.
— Deve ser uma maricona safada. — Danilo continuou rindo,
mas não porque era engraçado...
Um grito gutural e reverberado surgiu do horizonte amaldi-
çoado. Parecia com o de uma criança que tinha acabado de ver a morte
dos pais e estava lidando com a primeira ideia de violência e sangue.
Era fino, daqueles que rasgam a garganta. Quem o escutasse não po-
deria nunca mais dormir tranquilo, porque conheceu o excremento de
dor de alguém.
Danilo se arrepiou. Deu alguns passos para trás no meio da
pista escura. A brisa só o provocou. Como se ele fosse o próximo a

376
O manifesto do fim do mundo

descer, no espiral rumo ao inferno.


E a corda surgiu e o puxou pelo pescoço. Apertou o suficiente
para imobilizá-lo com facilidade. O celular de Giovani caiu no chão e
apagou. Segundos depois já não estava nesse plano. As raízes de uma
samambaia se alongaram e surgiram invulgares, capturando-o. En-
rolaram-no até que se tornasse um núcleo dúbio e obsceno. Depois
rumou para os cansanções de beira de estrada. O céu riu, mas não se
expressou o suficiente. E a realidade foi sufocada. Veias pularam na
testa de Danilo, enquanto seus olhos eram devorados pela dor do fim.
O rastro negro aproveitou para comemorar na escuridão. A
primeira ponta solta havia sido exterminada. Levou o corpo desmaia-
do para o mato áspero e só depois os animais ali perto puderam escu-
tar alguns barulhinhos. Incômodo qualquer para uma noite pacata.
Mesmo longe da cena, Igor sentiu a brisa do cerceamento. Já
tinha cavado um buraco considerável, sem descobrir nada.
Só parou quando seus olhos foram tomados.
Estavam mais interessados em contemplar a noite e a rirem do
tempo. Ficaram esbranquiçados como os dentes, pontudos como uma
boa ameaça. Igor teve uma ideia que também não foi sua. Pulou dentro
do buraco desorganizado e juntou os braços ao corpo. E ali ficou em
estátua. Rindo para qualquer coisa. Mesmo que não fosse de sua von-
tade. As violetas coloridas se agraciavam com a brisa, já estavam mais
calmas, aninhando suas pétalas no braço arrepiado humano. Dançan-
do conforme a música.
Esperando a ordem acabar, com alguns estalos...

377
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 49 –
Fuga rápida. Estamos perto
do fim.

E
— ntra, entra, cacete! — Marilene deu um empurrãozinho
em Augusto. O menino tentava não se desequilibrar na escadinha do
ônibus. Sem sequer ter tempo para uma digestão. Deixar Russinha
Amada não teria cerimônias nem reflexões.
Marilene não pensou muito. Com o dinheiro pouco e vivo da
venda do terreno, além dos móveis que conseguiu negociar, ela preci-
sava deixar sua mente divagar para não digerir a ideia de que não tinha
muito. Tudo por uma mixaria, mas apenas pelo desejo de ir embora.
Teve tanta sorte em negociar tudo que acreditou no poder das palavras
de dona Sandra. Desde pequena, quando tomava uma atitude, tentava
não pensar nas diversas consequências. Estava feito, o destino ia cui-
dando do resto. Sua vida mesmo era um compilado de estradas com
curvas perigosas e acentuadas, sem muitos finais prósperos.
O motorista acenou para os viajantes. Mulheres com sacolas

378
O manifesto do fim do mundo

de fruta, homens com caixas pesadas, mercadores, donas de casa, tu-


ristas, etc. Todos empolgados, mas não tanto quanto aquela mãe sol-
teira com seu menino desconfiado. Se Augusto pudesse, teria comido a
caveira brilhosa. O objeto estava bem escondido em sua mochila e ele
agarrava-o como se fosse parte do seu corpo. Marilene não era burra,
mas não era hora de fazer caso sobre certas questões. Não tinham con-
versado muito desde a “visitinha” de Jerônimo.
— Augusto... quando chegarmos em Teresina, vamos conver-
sar, viu? — pronto. A sentença. O menino se fez de desentendido e
resolveu descansar a cabeça na janela. Fingindo que seria mais uma
conversa boba qualquer. Observou a noite começar sua trilogia de his-
tórias de terror. Pelo menos a mãe não foi agressiva.
— Meu Deus... — Marilene pôs a mão na boca. Riu de si mes-
ma, baixinho, é claro, para não acordar as galinhas da velhinha que
estava atrás — eu sou muito doida... acabei de ir embora de qualquer
jeito por causa da macumbeira. Eu sou muito doida.
— Por causa de quem, mãe? — Augusto se aninhou no braço
da mãe.
— Nada. Vai dormir porque daqui a pouco a gente chega.
Finalmente. Teresina. Sede oficial dos circuitos mirabolantes.
Marilene recebeu duas mensagens da amiga de longa data lhe
desejando boa viagem. Estava ansiosa para recebê-la na cidade. O im-
pulso que precisava.
Augusto não iria dormir. Conhecia-se muito bem com aquela
excitação no peito. Pensou em dona Josefina monstruosa e na rasteira
que deu levando consigo a caveira. Só depois mentalizou Bola e Mil-
ton, e toda as suas lembranças ficando. No final, um corte abrupto foi
bem mais fácil.
O ônibus deixou Piripiri sem rodeios. Marilene ainda incré-

379
O manifesto do fim do mundo

dula. Esticou o pescoço para ver as últimas luzes ligadas das casinhas
na borda da pista. De dona Raimundinha e seu Mario. Logo após o
restaurante de Deise. Não se despediu de ninguém, não fez um último
lanche. Não bebeu e contou a novidade aos berros para seu Osvaldo.
Ela só tinha ido.
Augusto respirava com dificuldade, sem entender o que era
ansiedade. Mas aos poucos sua guarda foi cedendo. E a visão embaçou
até que tudo escureceu, entre os desconfortos do sacolejo. Marilene
também se permitiu adormecer por minutos. Seu coração já conseguia
ficar mais quieto, e a leveza que a preencheu parecia um abraço de mil
anjos. Desconhecido para quem veio repleto de anseios.
O sonho foi algo aleatório, sem tantos significados. Somente
uma memória velha e alguns caprichos fantasiosos do seu subcons-
ciente. Nada muito sólido. Mas duas Marilenes podiam entrar em sin-
tonia sobre algo. A imensidão da quietude. O destino parece promissor
para aqueles que conseguem alinhar a energia de si. Alguma digital in-
fluencer poderia ter dito isso. Quem sabe a extrovertida Marilia?
...

Duas chacoalhadas.
Marilene abriu os olhos e a primeira coisa que fez foi usar a
pouca força dos braços para apalpar Augusto. Mesmo arrastando a
mão com protuberâncias pelo rosto do filho, ele não acordou. Na ver-
dade, só ela tinha acordado. Entre ficar naquele mundo ou voltar ao
hemisfério do subconsciente, estava assustada, e não tinha como não
ficar. O motorista conversando com alguém, deixando a dúvida sobre
quem estava dirigindo o transporte. Ele era um senhorzinho simpático
que, ao fazer uma feição de preocupado, tornou-se feio. Gesticulan-
do e apontando para uma das janelas, contando algo urgente. Quem

380
O manifesto do fim do mundo

conversava com ele não pôde ser identificado por dar as costas para a
mulher.
Marilene tentou se mexer, arregalou os olhos com a força do
grito que quis berrar. O diálogo conseguiu chegar até ela. Nada bom.
— A gente fez foi morrer, Zé. Não estamos indo para Teresina,
bicho. — o motorista disse, preocupado.
— E que lugar é esse? Estamos indo para onde? — o colega
perguntou sem tanta preocupação. Sua voz era explosiva num tenor
estridente.
— O GPS não está localizando.
O ônibus ia devagar, trilhando a pista. Marilene desviou o ros-
to para a esquerda e avistou o matagal comum por cima do topo da
cabecinha ao lado. Nada demais. Somente plantas e escuridão.
— Eu acho que é Oeiras... — o motorista disse.
— Mas... Oeiras toda está morta? — agora, sim, o colega se
preocupou.
— Não pode, pô! Eu não sei o que é isso, não. Tem uns corpos
jogados no chão lá fora. Não pode ser! — o motorista vacilando entre
soluços.
— Então, vamos sair daqui.
— Não dá, pô! A gente nunca consegue sair. Meu Deus, me
perdoa, por favor! — o homem se jogou no chão.
Com muito esforço, Marilene conseguiu empurrar sua cabeça
para o corredor do ônibus. A paralisia foi grave. De canto de olho,
avistou quem estava na direção do veículo. A mão com o jaleco branco
se transformou numa forma espessa e grudenta de coloração aberta. A
pouca luz de um poste ali perto clareou o suficiente para que ela reco-
nhecesse a cor. Amarelo. Amarelo vivo e brilhante. Quase ouro.
Depois só a mesma mão máscula com o jaleco.

381
O manifesto do fim do mundo

— Não dá, pô, desculpa. — e o motorista continuou a lamen-


tar, chorando.
— Eles são estribados demais. — o colega falou. O último a
suspirar.
Até que Marilene acordou e dançou com as mãos na frente
do rosto, comemorando por conseguir se mover. Augusto continuou
dormindo agarrado com a mochila. Despreocupado. E arrancou uma
invejinha da mãe que agora, assombrada, não fecharia o olho pelo res-
tante da viagem. Para ter certeza de que não era mais uma pegadinha
da sua cabeça, conferiu o motorista e viu o senhorzinho simpático de
quando entraram no veículo. Os minutos de ressaca do pesadelo foram
tão sublimes que Marilene evitou olhar para a estrada, não queria en-
contrar nenhum corpo ou estranheza. Conferiu também os próprios
braços e pernas. Nada de mancha esquisita, era tudo coisa da sua cabe-
ça. Não estava amaldiçoada, graças aos céus.
O celular vibrou e por pouco não beijou o chão. Marilene des-
bloqueou rápido imaginando que fosse Bárbara, a amiga de Teresina.
Mas quando leu a mensagem franziu o rosto com dúvidas. Um número
novo tinha adicionado o seu no aplicativo de conversas e mandado
uma citação religiosa sobre perdão e redenção. A foto no ícone do re-
metente ilustrava um homem com um sorriso de raposa.
Agora fiel Jerônimo conhecia as mensagens caminhadas.
Mas não passava de um incômodo que podia ser resolvido
com um simples bloqueio.
Em Teresina, o futuro era incerto, mas sem fanatismos...

382
O manifesto do fim do mundo

Parte 6 –

A
sociedade
esquizofrênica
no meio do
fim do mundo.

383
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 50 –
Roberta. A terceira.

R oberta uma vez se imaginou realmente assessora de im-


prensa ou uma daquelas que gerenciam crises de famosos, que sempre
atuam nos bastidores para que as estrelas continuem seu legado com
sorrisos e acenos falsos. Não era à toa o tanto que ela se dedicava à
dona Josefina e sua família. Mesmo que as coisas tivessem estranhas
desde quando seu Antônio adoeceu para nunca mais voltar. Nem o
quarto principal ela conhecia mais, sua chefe não deixava sequer ela
chegar perto. O que era um erro, confiar em Roberta era a melhor coi-
sa a se fazer, ela estava preparada para tudo, até para ficar do seu lado
contra uma cidade.
E foram esses argumentos que ela convenceu de si para come-
çar a interceder por aquela família. Bem cedinho, antes do sol emergir
no horizonte Roberta já estava de pé. Frenética com a nova confusão
em Russinha Amada. Os últimos dias tinham dado uma emoção sabo-
rosa para aquela pequena sociedade.

384
O manifesto do fim do mundo

Ela aprontou o café das duas sobrinhas e a casa com uma


leve arrumada. Organizou as vasilhas de dona Josefina e sorriu para
o tempo quando o céu lhe agradou com beleza. Para atravessar aquele
ponto de beatas fervorosas, Roberta usava máscara e fingia que era
agraciada com o dom de ser pura e nada pecadora. Até criancinhas na
rua precisaram se adaptar à nova realidade.
Seu Zézim, da esquina, já viu seu negócio de máscaras voltar
com tudo. Mal tinha acabado uma pandemia e já partiu para outra.
Foram todos instruídos a não falarem com ninguém, a ignorarem
repórteres curiosos e principalmente os três novos alvos que trouxeram
caos àquela cidade: dona Josefina, Marilene e Rafael. Cada um com
um motivo muito plausível. A mãe de Deise ensinou fiel Jerônimo a
manusear o celular, a conversar com todos no grupo da cidade. Dona
Josefina foi expulsa sem dó.
O prefeito? Mas quem diabos lembra do prefeito? Você?
Roberta não estava confusa. Não parecia nenhum pouco preo-
cupada com a segunda volta do Rarizes, ela queria mesmo era saber
até onde aqueles entrelaçamentos iriam chegar. Como num universo
paralelo da sua cabeça.
Já que de repente Russinha Amada resolveu desafiar qualquer
espírito de racionalidade, era cabível que sentisse um friozinho de in-
tuição para ir ao jardim de violetas antes do trabalho. Não sabia expli-
car, não iria atrás de entender, só aceitou sua inquietação e fez umas
caretas faceiras quando dobrou na esquina que dava para a região proi-
bida.
Roberta avistou os limites de Russinha Amada. Mais alguns
casarões ao lado, ricos tinham mania de não interagir. E uma recom-
pensa verde colada ao céu. A diferença era que aquele bairro na fron-
teira era primoroso, até o terreno ajudava. Era mais plano, sem graci-

385
O manifesto do fim do mundo

nhas.
Roberta fazia parte daquele sistema. Assim disse para si. Já es-
tava acima de muitos na cadeia de poder.
Mesmo que o cantarolar dos periquitos evocasse um ânimo
comum, o palco contava com visitantes. Roberta arregalou os olhos e
se esconde assim que viu. Nunca tinha sido de observar, mas de falar.
Porém, era tão esquisito que ela não precisava exprimir nenhuma opi-
nião momentânea.
Semicerrou os olhos para a figura silenciosa dentro do buraco.
Ao redor, diversas violetas balançando, felizes pela visita. O cabelo de
Igor agarrou algumas das folhas pelo tempo, poeira também. As bo-
chechas rosadas permaneceram cobertas de barro enquanto os olhos
limpos, enxergavam tudo menos a realidade.
Só depois de minutos que Roberta precisou intervir, puxando
a abertura para dar ao jardim. O Sol já estava crescendo e ela não sa-
bia exatamente como os outros receberiam aquela cena. Dona Josefina
ficaria furiosa pela destruição do seu jardim? Claro! Mas o que diabos
Igor fazia parado no meio?
— Meu amor? Igor? O que você está fazendo aí?
Perguntou na dianteira. Foi se aproximando. Roberta lembrou
da vez em que o garoto tinha adormecido com os olhos brancos nas
pernas de dona Josefina. Parecia um cadáver nos braços da mulher.
Foi logo na semana de luto pelo falecimento de Márcia. Roberta nunca
tinha visto aquela família tão triste, era como se a garota fosse parte.
Dona Josefina por pouco não enlouqueceu. Andava pela casa conver-
sando sozinha. Sempre naquele espectro perto de um surto. Seu mau-
-humor tinha tomado uma posição insignificante. Seu Antônio, como
sempre, ausente. Acenava do quarto para que Roberta fosse fazer um
favor para ele. Estava adoentado. Só andava doente.

386
O manifesto do fim do mundo

Por que não morria de uma vez?


— Igor? — Roberta olhou de um lado para outro. Ninguém
pelas redondezas. Sorte que o jardim não dava para nenhuma casa.
Quem estivesse por ali era exclusivamente pelo local florido. As pupilas
de Igor estavam dilatadas e sua boca entreaberta. De frente para a pa-
rede da residência de fiel Jerônimo, assistindo a algo muito estimulante
para se colocar naquela situação.
— Meu fi, você quer que eu chame sua mãe? — Roberta tocou
o ombro dele — Igor, eu posso chamar dona Sandra também.
Sim, Roberta não era de todo contra o legado de dona Sandra.
Numa vez em que seu irmão tinha bebido todas em Piripiri, foi a mu-
lher quem o ajudou. O homem tinha colocado na cabeça que era um
visitante de longe, que veio entregar uma notícia. Os amigos de bar
riram e, depois das ameaças ditas, preocuparam-se. O irmão de Ro-
berta vociferava palavras cruéis sobre um tempo que iria acabar com
todos. Para provar que era quem ele dizia ser, ateou fogo numa lata
de lixo grande e pegou as chamas para si sem sofrer uma queimadura
sequer. Ficaram todos abismados quando a tal “entidade do fim do
sertão” pediu que o levassem para a mata. Roberta não duvidou dos
eventos, chamou dona Sandra. Mas não prolongou uma amizade. Para
os outros, ela contava que tudo foi resolvido graças à fé que tinha, es-
nobando a vizinha.
Dona Sandra nunca comentou o episódio.
— Igor. — Roberta já estava soluçando. O corpo enterrado
não pendia nem saía. Estava tão firme quanto uma raiz. Mesmo que ela
arrancasse as violetas e cavasse mais, era impossível carregar sozinha o
enfeitiçado.
— Pode deixar, Roberta.
A voz masculina cortou o silêncio entre soluços e gemidos. A

387
O manifesto do fim do mundo

mulher se virou sem tempo de reação para a investida.


Com um golpe no pescoço, a maquininha cinzenta fez um ba-
rulho. Deixou Roberta trêmula por minutos absorvendo a carga de
energia. Seus olhos rolaram como bolas num bingo. A boca imedia-
tamente ficou seca e roxa, um dos desagradáveis efeitos. Só quando
neutralizou a memória foi que a geringonça se soltou.
Rafael vestia um macacão. As botas de plástico pesadas dei-
xavam-no mais largado, estavam sujas de terra. Ainda que não fizesse
tanto calor, ele suava como ninguém. As poucas brisas nada adian-
taram. Ele puxou Roberta pelo sovaco e arrastou o corpo da mulher
para dentro do jardim. Os olhos encheram de água. Quando sentia
cada violeta se recostando nos seus braços, o sentimento era o de como
adentrar num tonel com inúmeras serpentes.
Largar Roberta bem no meio do canteiro e ainda arrancar as
violetas para cobri-la não foi uma ideia bem pensada. Mas Rafael as-
sim o fez porque no final aquilo encontraria sentido. Quando se livrou
da mulher, correu para Igor e o puxou com força da escavação feita à
mão.
E eis um espetáculo. O que ele estava desconfiando. Arrepiou
no fundo da sua alma.
As cutículas dos dedos de Igor ficaram esverdeadas. Algumas
unhas pularam fora como rolhas de vinho. O espaço era para as linhas
vivas como pequenas raízes. Brotando inexplicavelmente da pele em
conexão com o chão. Quando Rafael arrancou Igor do buraco, acabou
rompendo alguns. Era para aquele corpo ser cultivado como uma boa
violeta. E em breve participaria daquele jardim.
Rafael com uma faca foi arrancando raiz por raiz, criando
protuberâncias com sangue na pele esbranquiçada dos pés do amigo.
Com os milhares de cortes, acabou arrancando pedaços de derme que

388
O manifesto do fim do mundo

caíam no barro junto com o vermelho. O mindinho de Igor tomado


totalmente por uma folha colorida. A saliente violeta colorida acabou
substituindo o dedo para dar vida à sua forma.
Com as cissuras feitas a sangue frio, Rafael cortou o que quer
que aquela ligação significasse. Estancou o sangue com adesivos espe-
ciais para não deixar rastros e se organizou para uma fuga. Com Igor
nos ombros, ele mentalizou um caminho secreto para cortar Russinha
Amada sem ser visto. Tudo com urgência para não ficar mais um mi-
nuto sequer naquele solo amaldiçoado.
Depois dos perímetros floridos, sorriu para si. E nunca Igor
poderia ver aqueles olhos vibrarem inteligentes, tão vorazes por se
concentrarem na única coisa que importava. Escondida pela camada
boa pinta do charmoso Rafael.
A pesquisa.

389
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 51 –
Violência.

T udo bem. Fiel Jerônimo acordou com disposição, beijou


Celeste no rosto, ignorou os sinais e ainda assim tudo bem. Sua rotina
matinal com algumas preces e conversas íntimas também estava no
denominador comum. Mensagens de seus seguidores abençoando seu
dia, perguntando sobre a grande missa de domingo, questionando-o
sobre o que o líder iria fazer quanto à dona Josefina e sua possível flori-
cultura amaldiçoada. Bastou uma mensagem para que tudo fosse para
os ares. Ultrapassando todos os limites.
Certa vez discutiram se pequenos fins do mundo poderiam
ocorrer em lugares distantes, abandonados. Lugares que ninguém
presta atenção. Mas vejamos, naquela terra de Russinha Amada, o
mundo já tinha acabado diversas vezes. Porque escondia sob o solo os
vermes de uma sociedade inquieta. No trânsito de ideias.
O que exatamente aconteceu com Russinha Amada, para que
os homens chegassem daquele jeito, boquiabertos por que o inferno

390
O manifesto do fim do mundo

abriu as portas?
Vejamos.
Violência.
Claramente esta não é uma história de amor comum.
Dois passarinhos conversaram entre si, tocaram seus bicos de-
pois de espasmos. Percorreram as cabeças frágeis de Russinha Amada.
Colocaram suas opiniões sobre alguns eventos. Estavam preparados
para o espetáculo. Aquele povo não reparava em passarinhos ou nos
eventos da quarta camada. Não notavam os detalhes daqueles com
que se acostumaram. Cresceram achando mudança uma utopia, e que
aquela terra era abençoada. Fundada por um dos familiares de dona
Josefina, concebida para respeitar a ordem de mundo antiga. A primei-
ra a subir aos céus, como fiel Jerônimo uma vez disse.
Só que chegou Giovani (Danilo não era tanto uma ameaça) e,
depois, Marilene e seu casamento abusivo. Em seguida, uma pande-
mia. Todos acordaram para os problemas, mas o intrínseco aconteceu
sem ninguém perceber.
Fiel Jerônimo, homem na faixa dos quarenta e pouco, saiu de
casa e foi conversar com dona Josefa que tinha lhe chamado. Ambos
discutiram a conduta ruim de Marilene. A idosa mostrou a mensagem
desbocada e continuou se lamentando por ter que fazer tudo sozinha.
Iria morrer e ninguém ficaria por ela. Era um absurdo, pensou fiel Je-
rônimo.
Depois veio Deise, que continuava trancafiada em casa. Con-
taram-lhe da possibilidade do efeito das violetas. As flores poderiam
estar amaldiçoadas. Toda a cidade iria fazer um mutirão para quei-
má-las. Seria o primeiro ponto de redenção. Mas Deise, estranha, não
queria ir para o médico. As vizinhas brincaram que ela precisava ver o
gostosão do doutor Félix, porém, nada a animou. Fiel Jerônimo tam-

391
O manifesto do fim do mundo

bém não queria que a população recorresse ao rapaz. Se aquilo era


uma segunda vinda do Rarizes, todos deveriam duvidar da eficácia da
vacina.
Claro que Piripiri achou estranho a irmã ao lado com seus ha-
bitantes mascarados. Mas Russinha Amada foi instruída a ficar de boca
fechada. Os poucos que comentaram alegaram loucura. Então, veja-
mos... uma cidadezinha do fim do mundo com um surto hipocondría-
co não chegava aos pés das notícias maiores percorrendo as capitais,
na beira do desenvolvimento. Teresina iria em breve estrear sua torre
elétrica na Ponte Estaiada. Um projeto que ninguém entendeu ainda,
só sabiam que foi patrocinado por um super ricaço. Gente rica sempre
é doida! Uma vez alguém disse.
As vizinhas de dona Raimundinha desconfiadas porque pas-
sou mais de uma semana que a idosa não colocava o pé na rua. So-
mente Rafael saía para fazer compras e nesse tempo evitou falar com
as pessoas. Ninguém o odiava, assim disseram, mas ele estava pedindo
para ser crucificado. Sempre de mau-humor com a chamada arrogân-
cia de quem vem de fora. Nem estribado era, voltou fodido que nem a gen-
te, Plínio da rua debaixo comentou. Se ele for zé droguinha com a gente
não vai comprar nada, os malas da rua do outro lado completaram.
Rafael estava intocável na sua fortaleza.
Mesmo Igor tentando, ainda assim não descobriu o que tanto
fazia o rapaz evitar a própria casa. Mais um dos vários enigmas.
Roberta tinha sumido. Até o final da tarde, a única pessoa que
iria sentir sua falta seria dona Josefina. Suas filhas brincavam na escola,
com a perfeita professora Cecília, obrigada a lecionar de máscara. De-
pois do incidente de Bola, sua personalidade esfriou mais. Evitava até
chegar perto das crianças, sempre com um certo repúdio crescente.
Para uma adaptação.

392
O manifesto do fim do mundo

Danilo continuou esquecido como Giovani. Com uma apa-


rente relação bondosa com seus vizinhos, ninguém sentiu falta do ra-
paz. Algumas clientes de Piripiri ligaram para entender aquele salão
fechado, ficaram zangadas com a falta de profissionalismo. No final,
soltaram um “veado sem compromisso” e foram embora.
Só uma pessoa tinha sentido coisa ruim.
Dona Sandra.
Que arrumou suas coisas e foi passar um tempo na casa da
irmã. Partiu durante à noite, para que aquela “terra maldita” não sen-
tisse falta dela. Uma vez que Russinha Amada notasse, seria tarde de-
mais.
E fizeram uma manifestação na frente da casa de dona Josefi-
na, pedindo que a mulher os deixasse invadir o terreno. Nada de polí-
cia, nada de político, só o povo dos céus. Jerônimo podia sim invadir
aquele jardim atrás de “suspeitas”, mas ele não queria só constranger
dona Josefina. Claro. Era bem maior que isso. Aquela mulher tinha o
fitado na mesma altura. Inconcebível. Era esquisito como ela lembrava
o pai alcoólatra, e sua força violenta nos momentos de crise.
Já dona Josefina?
Saiu do quarto com seu vestidinho branco bordado. Saben-
do que estava sozinha com o marido. Tocou as paredes sentindo cada
energia atravessada pelas paredes. Seus olhos mudavam de cor na luz;
nos pequenos momentos de Sol, ficavam esverdeados. Suas feições se
modificavam como se os músculos daquele rosto passeassem livre-
mente naquela estrutura essencialmente humana.
Josefina se aproximou do portão fechado. Escutou os gritos
pedindo sua voz. A mãe de Bola tinha se juntado à equipe. Depois,
reuniu seu próprio povo para irem “acertar contas” com outra culpada.
As feições de paz da florista eram tão plenas que encerravam

393
O manifesto do fim do mundo

guerras. Seus dedos eram estruturas maleáveis demais para um corpo


humano. Entortavam quando ela os colocava no banho de sol para que
recebesse a energia daquele dia. Não conseguia dizer nenhuma pala-
vra, apenas observar e escutar os gritos contra.
Num gesto abrupto, e ninguém sabe de onde veio, uma gar-
rafa voou por cima do muro e atingiu sua cabeça. Jerônimo mostrou
o estado furioso, mas precisou intervir. Gritou para que não agissem
daquela forma. Foram alguns marginais que aproveitavam da baderna
para uma aventura.
Pelo menos ninguém viu o ocorrido. Dona Josefina, banhada
em sangue, com o sorriso no rosto, segurando o próprio globo ocular.
A pancada tinha sido tão forte que sua testa afundou. Desequilibrou-se
e ainda amassou o carro empoeirado de Antônio, seu marido. Depois
do sermão de Jerônimo, a equipe voltou aos protestos.
— Nós vamos invadir se a senhora não abrir essa porta! Uma
criança se machucou nesse terreno e nós queremos respostas!
Josefina pegou parte das vísceras e encaixou o globo ocular
no lugar, mesmo com o sangue escorrendo como uma mangueira. Só
não podia sujar o veículo do marido, por isso, afastou-se deslizando
pelo chão. A testa roxa adquiriu logo um tom rosado. Mas seu sorriso
continuou de pé, sádico para as feições daquela mulher.
Arranhou o chão e uma de suas unhas sacou fora. Mais san-
gue. Não era uma boa ideia riscar o solo cimentado daquele jeito. Jose-
fina deitou a orelha e sentiu a vibração da terra. Faltava uma peça. Ela
sabia, não deveria ter confiado nele. Maldita criança.
Depois de uma autorreflexão rápida, repensou seu objetivo
maior. Hora de agir!
Os protestos continuaram até perder a força com o silêncio do
outro lado.

394
O manifesto do fim do mundo

...
— Ei, seus filhos da mãe! Que porra estão fazendo? — a vizi-
nha de trás de Marilene chegou correndo. A porta da sua nova aqui-
sição tinha sido escancarada com pancadas! A nova dona do terreno
apareceu de short e blusinha com um pano de prato nos ombros.
— Vai defender essa filha da puta, Roseana? — a mãe de Bola
pôs as mãos na cintura, liderando uma equipe de mulheres indignadas.
— Ela não tá morando aí mais! Ela foi embora! Não se chega
desse jeito na casa dos outros!
Carolina ficou boquiaberta. As outras beatas também comen-
taram a novidade. Ninguém ia embora de Russinha Amada assim. Nin-
guém.
Espera... Alguém já foi...
— Fugiu? Pra onde?
A vizinha levantou os ombros.
— Sei lá. Só vazou. Ela sabe que sujou pra ela aqui.
A mãe de Bola sorriu.
— É muita onda... Ela arregou! — Carolina abriu os braços
com o gosto da vitória — Espero que sofra onde quer que esteja. Ela e
aquele marginalzinho dela!

395
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 52 –
I love Teresina.

A ssim que desceram do ônibus, Marilene puxou Augusto


quando notou o movimento suspeito. O fardado esquisito na rodoviá-
ria se aproximou com uma pinta de policial e pegou no bolso volumo-
so. Encarou bem mãe e filho e sacou o objeto. Marilene viu o fôlego
esvair.
— Temperatura. — a pistolinha ficou apontada para a testa de
ambos. Um protocolo de segurança que o prefeito de Teresina estabe-
leceu. Hábitos de cuidados sobre a saúde deveriam ser permanentes. O
Rarizes ensinou algo para o mundo.
Marilene suspirou. Puxou a mala no embate entre conter a eu-
foria do filho e procurar por Bárbara. Um trânsito de pessoas, apesar
de ser bem cedo. O Sol levantando trouxe lembranças, mas agora ele
circundava o puro concreto. Chega de natureza seca. Chega de seresta.
A rodoviária não mudou muito, foi uma das poucas que so-
breviveu ao projeto de modernização atual da prefeitura. A arquitetura

396
O manifesto do fim do mundo

de Raimundo Dias continuou mostrando a essência do símbolo bruto


e modernista criado em meados de 1980. Mas uma ampliação do es-
paço e com bem mais quiosques de comida. Letreiros passeavam perto
da porta de entrada alertando aqueles que chegaram sobre Teresina.
A temperatura era a mesma de Russinha Amada, nenhuma diferença.
Ambas com escassez de brisas contínuas.
O estacionamento explodiu lotado de pessoas e carros. Cada
um que descia no ônibus sabia para onde ir ou tinha alguma ideia.
Marilene e Augusto entregaram sua vida para a sorte. Compraram
um picolé para ritualizar o novo recomeço. Os dois tão perdidos, mas
transbordando com confiança na nova selva.
— Marilene? — a mulher loira questionou de longe. Usava um
conjuntinho casual demais para quem deveria estar no trabalho. Ace-
nou para os dois sentados na beira da entrada. Dois guardas mal-enca-
rados se aproximaram, por mania.
— Bárbara! Mermã! Meu deus! Quanto tempo! Já vamos! —
Marilene se levantou, depois se virou pro filho ordenando baixinho.
Jogo rápido — Não seja mal-educado! Se comporte! Sorria e pegue na
mão das pessoas.
— Eu sei, mãe. — O menino fez bico.
— Anda! O meu namorado tá esperando no carro! — as duas
se abraçaram. Augusto ficou contido. Estava mais quieto, reparando
em toda a Avenida Presidente Getúlio Vargas. O bairro Três Andares
de um lado e Catarina do outro. Cobertos de hotéis, cachorros, sor-
risos, ninguém mascarado e muita cor. Crianças voltavam da escola,
pipas no ar rasgavam o céu, o tempo parecia até que tinha acelerado.
A conversa no carro foi mais empolgada.
Marilene contou sobre sua vida, sobre o pai de Augusto, sobre
qualquer bobagem de Russinha Amada, mas não sobre o motivo prin-

397
O manifesto do fim do mundo

cipal da sua vinda. Sequer citou os nomes de Jerônimo e Josefa, pois


só de pensar em ambos um aperto no seu coração aparecia. A emoção
naquele novo terreno tinha lhe abalado, a cidade grande tinha disso.
Bárbara e o namorado tinham um carrinho seminovo desses
comuns, com marcas de raladura e alguns defeitos do excesso de uso.
Augusto achou o máximo, poucas vezes tinha andado de carro. Olhar
o mundo pela janela foi uma experiência única. Mas aquele novo mun-
do, quando adentrando na Avenida Miguel Rosa, coberto por tantas
variações urbanas, era de um espetáculo ímpar. Somente quem saía
das complexidades de uma cidade pequena poderia entender. Tantas
situações ocorrendo em milésimos de segundo enquanto o tráfego es-
tava impassível.
O carrinho rumou para o Mafrense, irmão do Poti Velho. Um
bairro familiar, calmo, residencial. Tinha de tudo para aqueles que
viviam distantes das badalações do Centro ou do Jóquei. Augusto se
encantou de primeira. Marilene também. A vizinhança lembrava o es-
pectro de Russinha Amada, os mesmos curiosos com as malas que sur-
giram junto dos dois novos moradores. Duas mulheres pararam com
uma briga passivo-agressiva de vassouras na calçada. Em poucos mi-
nutos, Teresina acolheu duas pequenas relíquias que seriam importan-
tes para seu legado. E o Sol iria nascer para cada novo sonho daquela
terra no coração do calor.
Marilene organizou o quarto que Bárbara tinha lhe dado. Mes-
mo que o cômodo fosse pequeno, ainda sobrou espaço porque poucas
coisas os dois tinham. A cama era de beliche, uma doação da vizinhan-
ça. Augusto ficou em cima.
Por enquanto, as malas serviriam como cômodas. Com uma
vassourada rápida, tudo se ajeitaria. Bárbara ainda arranjou um bone-
co de ação das doações que sobraram da igreja. Augusto pulou de ale-

398
O manifesto do fim do mundo

gria agradecendo. Tinha até esquecido da sua mochila com o segredi-


nho. Marilene semicerrou os olhos para a bolsinha, contando quando
seria o momento da abordagem. Não era hora ainda.
O namorado de Bárbara, Jesuíta, apesar da gentileza, tinha um
ar sério e carrancudo. Não falou muito durante a viagem e tampouco
se importou em brincar com Augusto. Mesmo que não parecesse, Ma-
rilene tirou suas conclusões. A cada dez minutos, sorriu envergonhada
pedindo desculpas por estar atrapalhando a amiga. Mesmo que fosse
Bárbara quem respondesse, era para ele o recado. Jesuíta não se pro-
nunciou. Problemas de cidade grande deveriam estar rodeando sua ca-
beça naquele momento. Era fácil se perder entre o estresse do tráfego.
As horas correram e mais problemas lhe perturbaram. Contou
o dinheiro restante, preocupada. Depois da ressaca da viagem, era hora
de falar sobre coisas importantes.
Sentou-se com Bárbara durante à noite e conversou com a
amiga sobre os novos rumos, participando de um questionário fictício
de entrevista de emprego. Porém, Marilene acabou frustrando todas
as expectativas de cargos que a outra tinha em mente para ela. Mas
Bárbara já imaginava, pois na sua cabeça as cidades pequenas nunca
tinham muito para oferecer. E a amiga só tinha completado o ensino
médio quando deu início a uma turbulenta vida de responsabilidades.
— Marilene, mulher, não tem jeito. Você vai ter que trabalhar
mesmo na casa dos outros. Vai ter que ser faxineira. — Bárbara soltou,
amarrou os cabelos com uma liga colorida para prolongar o assunto
importante. Manchas de Sol se transformaram em adornos engraçados
no seu rosto com pequenos sinais.
— Eu topo. Qualquer coisa, só quero mesmo arranjar dinhei-
ro. — Marilene soltou decidida. Um filme deu replay na sua cabeça e
parecia de terror. No elenco, dona Josefa.

399
O manifesto do fim do mundo

— Certo. E Augusto vai precisar ir pra escola. Depois, quan-


do tiver de maior, vai te ajudar. As coisas não estão fáceis depois da
pandemia do Rarizes. — Bárbara disse com um semblante triste — Eu
estou me virando nos trinta pra dar conta de tudo. Quase nem vejo
meu namorado.
— Eu entendo. — Marilene assentiu, não tão mórbida.
Bárbara olhou para os lados, parecia incomodada com a pró-
xima questão que iria adentrar.
— Inclusive, falando nele... — sorriu — Sabe, pra gente ter
nossa privacidade e até para não adentrarmos na de vocês, é melhor
que já procure um cantinho só seu. Tem muita quitinete pelo Centro.
A caminho do trabalho vou procurando, dando essa força.
— Sim, sim. Com certeza! Como eu disse, não quero atrapa-
lhar. — Marilene ficou sem graça. Não esperava que o assunto viesse
logo no primeiro dia. Mas estava ciente da questão desde quando en-
trou naquele carro — Vou arranjar algo o quanto antes. Tenho uma
reserva que dá para ajudar pelo menos por um mês até arranjar meu
emprego.
Bárbara sorriu.
— Que bom que você levou numa boa. Eu te acho muito cora-
josa, sabe, sair de casa “na doida”. O que realmente aconteceu?
Marilene se blindou.
— É só porque eu abusei Russinha Amada. Não aguentava
mais aquela cidade. Queria explorar novos caminhos, você sabe. Vol-
tar a estudar, quem sabe... Colocar Augusto numa escolinha melhor.
A porta estava fechada. O barulho do menino brincando com
o boneco ficou abafado. Bárbara olhou de relance para o cômodo.
— Vai dar certo. Por sorte, amiga, eu conheço umas empre-
gadas que sempre me avisam de vagas para trabalhar na casa de gente

400
O manifesto do fim do mundo

importante. Aquele povo que mora na Zona Leste. Eles pagam bem,
você só vai precisar se dedicar mesmo. São frescos e tudo... — Bárbara
fez careta. Tamborilou os dedos na madeira da mesa — Cheios de “não
me toque”.
— Mas quem sabe você não consegue algo bom? Uma família
boa?
Marilene murchou.
— Eu já estou acostumada com esses “frescos”. — fez aspas
com os dedos.
— Que bom. Pois amanhã você já pode bater perna também
atrás de algo ali pela Zona Leste ou Sul. Vou mandar umas mensagens
também para algumas colegas.
Marilene segurou as duas mãos de Barbara sob a mesa. Deu
um aperto carinhoso.
— Obrigado amiga, de verdade! Por tudo!
Bárbara ficou vermelha.
— Imagina! A gente tem que se ajudar. Ah, e veja uma escoli-
nha para Augusto! Leve ele para ensinar as linhas de ônibus e as rotas.
Trabalhando quase o dia todo você não vai ter tempo de pegá-lo em
escola ou deixá-lo! Vai por mim.

401
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 53 –
Cidades que não estão em
chamas ainda.

O s vizinhos finalmente sentiram falta de Danilo. De dona


Sandra também. Sobre Marilene já sabiam. Tinha fugido. Claro.
Nem dona Josefa acreditou, mas algo na expressão da velha
denunciou que ela já sabia daquilo. E não a preocupava nem um pou-
co. Todos queriam conhecer a versão da mulher, e ela contava sobre as
trapaças de Marilene, aquela mulherzinha ingrata e arrogante. Entra-
ram num consenso que ela mereceu o tapa de fiel Jerônimo. A mãe de
Bola brincou que se pudesse a inimiga apanharia mais, para aprender
a não ser o que não é.
O carinhoso papo entre vizinhos é sempre assim. Não se assuste.
Dois dias se passaram rápido. Fiel Jerônimo conhecendo a se-
gurança de si para a missa do outro dia. E Dona Josefina isolada re-
solveu dar uma de dona Raimundinha. O grupo fervoroso de beatas
também rumou para a casa de Rafael. Mas encontraram mais silêncio.

402
O manifesto do fim do mundo

A ideia era mudar a proposta. Mudar o jeito de agir. A polícia e todos


estavam do seu lado. Até os “marginais” da rua das bordas. Todos já
tinham se esquecido do retrato da caridosa florista e do amistoso seu
Antônio. Da simplicidade do que foi Russinha Amada com aquelas re-
lações, antes da loucura se tornar uma variável possível.
Mas quando foi que tudo virou uma loucura possível?
Por que todos os vizinhos estavam com pás nas mãos para a
grande rebelião? Sim, fiel Jerônimo tinha preparado um espetáculo,
com seu teatralismo engraçado. Sua voz persuasiva. Sua história in-
compreendida.
— Dona Raimundinha, queremos falar com você! É dona Cas-
siane! — vizinhos gritaram. Mas nenhum barulho.
Jerônimo pediu a dispersão. Agora que todos se preparassem
para a grande cerimônia. Russinha Amada caminhando para uma re-
volução. No ápice de uma tarde quente, ele estava na rua transversal
com a pista. Tentando entender as coisas, zelando pelas vizinhas. Que-
rendo destruir o mal em forma do demônio.
— Ele é um abestado que nem fala com os outros. — disse um
vizinho sobre Rafael.
— Comprou uma vez na quitanda e não deu um bom dia. —
respondeu outro.
— Fiel, ele tem um jeitinho meio... esquisito, sabe? Sei não.
Esse povo vem do Sudeste se achando a bala. — mais um com suspeita.
— Não o vi de máscara. Esses jovens de hoje em dia não
respeitam mais ninguém. Coitada de dona Raimundinha.
— Mermã, ela também deve ter enlouquecido.
— Isso se não estiver morta já!
— Cruz credo! Chega de gente morta. Já basta o gayzinho.
— Então, arrobem essa porta!

403
O manifesto do fim do mundo

— Não! Calma, pessoal.


Jerônimo ficou entre a voz do povo e a residência silenciosa.
— Nós vamos fazer algo, sim! Contarei tudo na celebração.
Nós vamos mostrar quem é que manda. Ninguém está acima do povo
prometido! Nem o dinheiro, muito menos os políticos!
— Gostei.
— Vou já mandar os meninos se banharem.
— Por mim, o senhor era o prefeito, seu Jerônimo. — o grupo
concordou como um bando de formiguinhas.
— Não chega perto, Jéssica! Distanciamento social...
— Eu não estou doente, Rayane!
— Mesmo assim...
— Quem é que poderá nos salvar?
— Bom... você sabe quem!
— Obrigado, fiel.
Até que todos, por fim, dispersaram-se. O final do mundo
chegou.
Era hora deles.

404
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 54 –
O começo do fim.

F iel Jerônimo rodou a chave na fechadura. Acenou para Bibi,


a filha da Carmecita, uma grande fiel que sempre ajudou sua igreja
com gordas atribuições. Talvez a semelhança, ele não pegou direito,
mas se lembrou da mãe de Deise. Não tinha feito muitas visitas às duas.
Eram tantas responsabilidades. Ser um líder não era fácil.
Por isso, Jerônimo trancou novamente o portão se maldizendo
por ter esquecido. Caminho apressado pelas ruazinhas vivas, as árvo-
res balançando com as brisas da tarde. Pareciam miragens. Uma ou
duas violetas coloridas estavam pelo caminho, e o fiel fez questão de
esmagá-las. Cuspiu na obra do capiroto. Daquela família ingrata que
um dia só o respeitou quando ele se tornou vizinho naquele bairro. Se
continuasse com o mesmo status de quando chegou, iria ser qualquer
um menosprezado pela arrogância daquele casal com o sorriso mais
falso do mundo. Por sorte, o divino lhe trouxe sua missão.
Jerônimo deu duas batidinhas na porta de Deise. Não demo-

405
O manifesto do fim do mundo

rou muito, foi recebido com um sorriso encenado da senhorinha mãe


de vestidinho azul. Sua colônia atravessou toda o suor de quentura.
Quase que ela fica de joelhos com aquela visita especial. Quis abraçar
o homem, mas ele recusou. Estava de máscara. No fundo, os motivos
variavam camuflando a rispidez.
— Ela não quer sair de casa. Não quer mais abrir a lanchonete.
— E o que deu nessa moça? — Jerônimo perguntou fingindo
estar intrigado. Seu ânimo sumiu no ar. Não deveria ter feito a visita.
Paradoxalmente, repreendeu-se pelos pensamentos mesquinhos.
— Não sei, fiel Jerônimo. O senhor é um homem iluminado,
está bem. Mas ela... e até aqueles trabalhadores da obra não vieram
mais. O prefeito sumiu... — a senhorinha tinha a voz chorosa, parecia
ter saído dos desenhos animados com sua fofura caricata.
— Faça o seguinte... — Jerônimo sentiu repulsa. Percorreu
cada parte de sua cabeça para entender o sentimento invadindo-o. Mas
ele realmente não queria se importar com aqueles problemas — tente
levar ela pra celebração hoje! Conversaremos mais lá. Pode ser?
— O senhor é o homem escolhido! Eu sempre tive certeza dis-
so! Russinha Amada vive pelo senhor!
E se cumprimentaram com um aceno distante.
Jerônimo cuspiu no chão depois que um gosto azedo deixou
os pelos da sua nuca arrepiados. Na dobra dos fachos do Sol, a tarde já
estava quase dando adeus, faltava apenas duas horinhas, no máximo.
A palavra escolhido brigava jogando cadeiras dentro da sua mente, re-
colocando-o numa posição que ele sempre ambicionou. Nas decisões
cruciais, o certo a se fazer era chamar fiel Jerônimo. Todos sabiam.
Fazia tempo que não escutava uma gratidão tão recheada.
Lembrou-se do episódio da filha de Juvenal. Oficineiro em Pi-
ripiri. A menina com seus doze anos tinha engravidado e por pouco

406
O manifesto do fim do mundo

não foi linchada pela família. Os vizinhos sentiram pena e, depois dos
julgamentos, resolveram tomar partido do caso como acontece nas pe-
quenas cidades. Chamaram fiel Jerônimo e sua mensagem da resolu-
ção dos problemas sem a violência. O oficineiro, homem sem estudo,
continuou furioso. Xingou a mãe da garota que também quase não lhe
arrancou os cabelos. Queriam achar o culpado. O possível pai sequer
teve seu nome citado. A menina com medo achou melhor não dizer.
Estava desamparada e aflita, vendo todo seu suporte ir contra ela. Não
teve como evitar agarrar-se ao consolo de fiel Jerônimo, o único que
intercedeu por ela. No final de todo o rebuliço, sobrou ao homem a de-
cisão. Com calma, os dois tiveram a conversa, ele e a menina. Falaram
sobre responsabilidade e pecado. E a menina entendeu a ideia que lhe
foi plantada.
Teria o filho. Porque fiel Jerônimo achava melhor assim.
“Obrigado, fiel, você realmente é o escolhido!”
Mesmo com toda sua bondade transbordando, o mundo ainda
teimava em querer colocá-lo sempre no caminho difícil, com prova-
ções que o faziam tomar decisões difíceis. Tempestuoso é o andar do
homem iluminado, que segue rumo aos céus e intercede pelo mundo,
juntando todos aqueles que estão perdidos pelo caminho.
Mas fiel Jerônimo já tinha se contradito inúmeras vezes. E
também optou pelas vielas do ódio em alguns momentos.
Mesmo nas horas que os céus esperassem que ele tomasse uma
atitude diferente...
Por quem você está fazendo, fiel Jerônimo?
Novamente em casa, ele deu uma espiada no portão da vizi-
nha, sua inimiga. Passou a chave na fechadura, fez o sinal da cruz e res-
pirou por estar dentro dos limites que lhe seguravam. Não encontrou
Celeste na varanda tomando um ar, acariciando um presente que ainda

407
O manifesto do fim do mundo

não poderia ser seu. E tantas vezes precisou repetir para a esposa. No
fim ela sempre balançou a cabeça concordando, entendia que o seu
tempo era inútil perante ao dos céus.
A sua cegueira foi quem lhe traiu, pobre fiel Jerônimo.
Quem disse que ela não estava mesmo ali no jardim?
— Celeste? — questionou.
A casa estava assolada pela tristeza da meia-luz. Quando a tar-
de vai recolhendo os sonhos vivos da manhã e transformando-os em
melancolia para a noite. A poeira suspensa no ar cortava os fachos,
junto do cheirinho de familiaridade e zelo.
Achou esquisito. Era para alguém com a vozinha de submissão
ter respondido.
Jerônimo já se irritou, não gostava quando Celeste saía de casa
sem avisá-lo. Sentia-se traído. Se ela tinha a liberdade de deixar sua
morada por decisão própria e no escuro, o que mais poderia fazer?
Aquilo sempre o intimidou.
— Celeste?
— Oi, fiel. — A voz era feminina, mas não era de Celeste.
Jerônimo se virou. Precisou se segurar nas cadeiras da sala
para entender se o que estava vendo era real. Impossível...
— Do... Do... O que a senhora está fazendo aqui?
O buraco onde deveria ficar o olho esquerdo cicatrizou com
bordas de veias vermelhas apodrecendo. Uma vez que tinha se des-
prendido, o órgão não era mais útil. No lugar, somente vísceras ene-
grecidas; vez ou outra, escorria um fiapo vermelho diluído. Nada que
pudesse chamar mais a atenção que o acidente feio.
— Suas convicções te atrapalharam por anos, homem. Mas
agora você cometeu um erro e é meu dever enquanto ser falante, que
usa deste órgão, te dizer por que acaba aqui. — disse a visita, usando

408
O manifesto do fim do mundo

um vocabulário mais exótico.


— O... O quê? Saia da minha casa agora! — Jerônimo não de-
veria, mas ele realmente se intimidou com a figura.
Não é bem esperado uma dona Josefina com sequelas sérias
sorrindo como se o seu sistema nervoso estivesse falhado.
— Não. Eu vou realizar o sonho desta irmã. Se assim ela quis
desde o começo, não embarcando comigo para feitos maiores.
E finalmente surgiu dona Celeste.
Golpeando-o no pescoço com uma seringada certeira. Tão de-
sajeitada com seu jeito encolhido, quase falhou... Mas Jerônimo não
foi tão ágil, caiu de joelhos e se contorceu como num ataque epiléptico.
Todas as suas terminações começaram a trabalhar, até que ele sentiu
a esquisita carga descobrir suas entranhas. Primeiro, uma comichão
e, depois, o formigamento na área genital. O incomodo era suficiente
para ele não conseguir mexer os braços, o membro sexual também não
estava sob seu controle. Sua cabeça iria explodir entre prazer e irrita-
ção. Seus pensamentos chegariam ao fim.
A saliva escorreu da boca para o piso. Começou límpida e ga-
nhou o aspecto furta-cor. Mesmo no pior momento de sua vida, Je-
rônimo se virou para a imagem misericordiosa perto da sua mesa. Não
imaginou chegar ao fim de forma tão rápida e simples. Seu chamado
poderia ter sido mais extravagante, já que todas as etapas de sua vida
foram intercaladas com expressividades que o fizeram ser o homem
forte que ele era hoje. Mas não. A imagem não fez nada. Só o relem-
brou daquela noite na casa da vizinha costureira, quando criança. Os
mesmos olhos que o fitaram com veemência, até ele alcançar o seu
primeiro final do mundo.
Jerônimo se contorcia de forma tão violenta que desejou mor-
rer de uma vez, já que o espetáculo para nada iria servir. Sem entender,

409
O manifesto do fim do mundo

ele viu dona Josefina falar algo para a esposa. E Celeste sorriu, como
alguém que tinha acabado de alcançar a redenção. No final, ele não
se recordou de ter sido um marido ruim nem que Celeste tivesse sido
uma esposa ruim. Mas não avistou os sinais, que estavam claros o tem-
po todo.
Por isso, não precisou demonstrar espanto ao ver dona Josefina
arrancar a pele do rosto e virar algo que ele nunca viu na vida. Mas
nos seus sonhos mais estranhos aquela forma era familiar, quando ele
dormia soluçando tentando encontrar a resposta do seu destino. Nos
lugares mais mórbidos da imaginação infantil.
Celeste agarrou algo que era parte dele, negada a ela por anos.
Não podia ser resumido somente àquilo. Tinha algo a mais.
A conversa de ambas explicitou uma maior complexidade.
No fundo, ninguém era mesmo quem dizia ser.
Dona Josefina tinha se transformado em fiel Jerônimo. Numa
versão mais feliz.
E tão bem idealizada. Sem os piores dias sombrios.
Eles.

410
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 55 –
Igor, o quarto.

O sonho envolveu perseguição, lamaçal e, no final, tudo se


transformou em água cristalina. Tão agourento, que se contasse para
alguma das senhorinhas da pracinha elas iriam fazer o sinal da cruz.
Algumas buzinas tocam em fábricas desativadas e alarmam
todos aqueles que sempre juraram que o lugar era abandonado, as-
sustando-os. O mesmo medo ressurgiu em Igor, quando ele acordou e
gastou cinco minutos para entender que não passava de célebres ima-
gens do subconsciente. Mas não adiantou muito no final, o pesadelo
agora envolvia a realidade, na mesma sintonia com o absurdo que tudo
tinha tomado.
Igor amarrado perto de um lugar familiar. Já visitou muito
aquela cozinha quando dona Raimundinha o convidava para um lan-
che. Antigamente, tudo combinava com um filtro amarelado de amor,
mas agora aquela redoma de poeira e sujeira tinha se destruído com
todas as recordações. Olhar para os utensílios com teias de aranha e

411
O manifesto do fim do mundo

a invalidez de uma casa sem uso acordou Igor para a segunda nova
realidade da situação. Mesmo que fosse assustador, ele não demorou
para se perguntar o que tinha acontecido ali. Mirou os pés, enrolados
com um pano sujo de sangue. Parte dos seus dedos tinha perdido a
sensibilidade. Os movimentos eram limitados quando nos pés.
Uma sequência de socos na cabeça de Igor. Milhares de per-
guntas explodindo, incluindo as misturadas com suas suposições fan-
tasiosas. Era difícil acreditar em tudo aquilo.
Resolveu esquadrinhar o que podia da sala. Não foi bem uma
boa ideia. Mas foi deleitoso entender a dinâmica que Rafael tentou es-
conder. Os milhares de cabos eletrônicos trespassando entre mais fia-
ções esquisitas cinzentas. Computadores e mais bugigangas modernas,
os únicos objetos limpos naquele espaço. Um verdadeiro laboratório
malcheiroso que fazia a luz solar ficar verde quando adentrava naquele
perímetro.
Igor não podia falar. Depois de um tempo, notou a sonolên-
cia pesada retardando seus movimentos. Sua boca bem colada era um
ponto à parte. Mas seus olhos eram urgentes, rodeavam tão rápido
que poderiam pular fora. Só fitaram um ponto fixo quando finalmente
algo importante surgiu. Rafael, vestindo um colete por cima das vestes
brancas. Era tão esquisito relacionar aquele Rafael ao de alguns dias
atrás. Pior ainda, ao de anos atrás, quando só era um menino zangado
que amava ganhar nos jogos.
Russinha Amada não gosta de mudanças, já repetimos inúme-
ras vezes.
Drasticamente. Igor não poderia negar que certos circuitos fo-
ram rompidos com aquela chegada. Nos poucos momentos em que es-
tavam juntos, ele soube de algo errado. Mas a carência venceu algumas
batalhas. A nostalgia também. Cego pela novidade, o faro investigativo

412
O manifesto do fim do mundo

de Igor foi altamente neutralizado. Só que agora era tarde demais.


— Desculpa, Igor, foi o jeito. — Rafael se agachou um tanto
maníaco. Ficou no mesmo nível dele. Sua respiração fazia cócegas na
bochecha paralisada à sua frente. O cheiro era familiar, sobressaindo-
-se ao da casa.
O amigo podia se comunicar com os olhos e somente isso. Ia
de um lado para outro como lobos na caçada. Diziam algo, mas Rafael
não tinha tempo nem vontade de traduzir. A forma que ele olhava para
Igor era diferente, como um cientista olhando para sua obra. A verda-
deira face do novo estrangeiro por trás daquele jeito soturno.
Os fachos de luz atravessavam a janela, mas a sala conseguia
continuar escura. Algumas mensagens surgiam com bipes na tela do
computador, fazendo ode aos filmes sci-fi com uma iluminação fan-
tasmagórica de cientista maluco. Os cabos se moviam numa dança
estranha, não estavam vivos, mas Igor achava que também não eram
inanimados. Tudo tão esquisito, que ampliava a ideia de que ele não
estava em Russinha Amada. E aquela casa era somente uma tentativa
de lembrança fajuta. Nunca poderia ser a residência de dona Raimun-
dinha.
Rafael se levantou, parou quando se lembrou de algo. Achava
que devia satisfação diante da situação.
— Ah! Você deve estar se perguntando onde está minha avó,
né? Bom, ela está bem, mas nunca esteve aqui. Não se preocupe. —
sorriu, como se aquilo amenizasse o problema — A Família Siraivanes-
co vai saber o que fazer com ela. Eles sempre sabem o que fazer. Vovó
Raimundinha foi levada há dias e ninguém viu.
Nota mental um. O nome. Finalmente um nome. Igor nun-
ca tinha ouvido falar nessa organização. Tinha pesquisado na internet
empresas que fossem de espionagem, caça fantasmas, estudos de even-

413
O manifesto do fim do mundo

tos grandiosos, empresas que realmente pesquisassem eventos esqui-


sitos ou seitas. Mas tudo o que aparecia eram enredos de filme. E não
surpreendia Igor, um conglomerado desse tipo deveria mesmo estar
invisível nas redes.
Nota mental dois. O jeito maníaco de Rafael. Não era como
se aquelas palavras tivessem saído dele, mas foram ensinadas para que
ele as recitasse. O amigo estava esquisito, deixou seus limites para trás.
Nunca Igor o tinha visto excessivo daquele jeito. O seu personagem foi
por água abaixo.
— Finalmente vou resolver essa situação, porque eu acho que
já tenho provas suficientes! — rodopiou pela sala gestualmente — Você
realmente caiu na minha e foi direto para a emboscada! Tudo aconte-
ceu como planejado! — Rafael sorriu agora para Igor. Seus olhos se
tornaram tão esquisitos que mostravam fendas. Uma desinteressante
ilusão de ótica para o amigo.
— Agora que eu terminei de pesquisar as violetas coloridas
posso confrontar o que quer que seja dona Josefina... — Rafael conti-
nuou, enquanto se enchia de poder com suas mãos em forma de garras
— sua mamãe perturbada.
Correu para o computador. Ligou alguns alarmes específicos
e a casa virou um quartel com lasers vermelho. Os canos voltaram a se
mexer como serpentes, agindo com ligação a um aparelho cinzento. A
saída de ar do cubo metálico assoprou a poeira para Igor, atrapalhando
o único jeito de ele se comunicar, seus olhos.
Rafael pegou um projeto moderninho de arma, quase uma
escopeta de cara nova, e engatilhou. Deu um sorriso desequilibrado,
mas não era suficiente. Retornou para Igor. Acariciou o rosto pálido e
o beijou.
— Te vejo depois. Você nem imagina como faz parte de algo

414
O manifesto do fim do mundo

maior.
E saiu, deixando barulhinhos ruidosos. Computadores con-
versando entre si numa linguagem única. Solidão logo na esquerda.
...
O tempo passou e Igor nem reparou. Depois de inúmeras ten-
tativas lutando contra a substância neutralizante, ele conseguiu acenar
com o cotovelo. Parecia uma boneca de pano, um casulo amaldiçoado
com alma. Para recuperar todos os movimentos, levariam horas. Tem-
po que ele não tinha mais.
As coxas começaram a apresentar sinais. Arrastaram-se na
poeira da cerâmica como um limpador de para-brisa. Mesmo que to-
dos os bipes do computador acelerassem a dinâmica ali dentro, Igor
assistia a tudo em câmera lenta. Tão bêbado que se caísse de vez lá
ficaria para sempre.
Horas correndo...
O relógio continuou girando. A mente era a única veloz, re-
lembrando Igor sobre todas as vezes em que ele sorriu para a mãe,
que agora, pelo visto, era um alvo como ele. Embora não estivesse
entendendo nada, sua consciência adquiriu personalidade para lhe
contar. Algum possível efeito da substância injetada, sabe sé lá o quê,
mas Igor começou assustadoramente a compreender a situação. Ficava
mais digerível entender aquele ponto. Sobre estar no meio da sala com
milhares de computadores, dopado e tentando escapar. Sobre sua mãe
ser possivelmente uma fascista perpetuando o legado do pai que se au-
todenominava neonazista, que possivelmente escravizou milhares de
crianças e as usou para algo muito maior.
Rafael só tinha dito as informações por cima. O assunto era
bem mais complexo e urgente.
Agora Igor entendeu.

415
O manifesto do fim do mundo

As situações pareciam coniventes. Ele só não sabia por que Ra-


fael não tinha agido antes. Poderia ter feito qualquer coisa. Qualquer
coisa que não o envolvesse, que não precisasse usar dos seus sentimen-
tos. Logo na primeira vez que Igor começou a sentir algo mais forte por
alguém.
Na borda da loucura e ele pensava no coração magoado e con-
fuso.
...

Quando se passaram de fato mais horas, uma explosão tremeu


a terra. Igor se desequilibrou. Caiu com a testa beijando o chão. No im-
pacto, Giovani pulou na sua cabeça como uma lembrança saliente para
o momento. A dor percorreu todo o corpo, e Igor continuou enfilei-
rando todas as notas mentais que chegavam, como resultado daquela
substância, dopando-o.
A tarde quase encontrando a noite.
Quando se está em conexão com o chão, você começa a ouvi-
-lo. Igor, que agora pertencia a duas dimensões, destravou mais habili-
dades ou o soro o estava enganando. Mas ele soube que chegariam ali
os mesmos homens de branco de anos atrás. E só naquele momento
tudo começou a se interligar.
Família Siraivanesco.
O tal homem bigodudo que implorou à dona Josefina para es-
tudar as violetas coloridas.
Por que não agiram antes?
Quem são os que desafiam a paz de uma pobre cidadezinha?

416
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 56 –
A Família S.

Acertou em cheio.
Entraram como se fossem de casa. Pareciam familiarizados
com os cômodos que uma vez foram tão bem zelados por dona Rai-
mundinha. Eram cinco cientistas, todos de jalecos brancos. Carrega-
vam nos rostos a preocupação da ciência, olhos racionais que pode-
riam fitar o impossível e nada os abalaria. Encontrar um rapaz no chão,
com os pés ensanguentados cheios de finas ligas furta-cor não intimi-
dou ninguém. A cientista de cabelos cacheados tinha no seu crachá o
nome Fernanda. O departamento dela também estava escrito lá: Divisa
de Paranormalidade e Estudos do Através.
— Mas que porra é o Através? — Igor se perguntou mental-
mente. Reparou também no detalhe do diastema da mulher ao sorrir
para o ambiente.
O outro rosto familiar ressurgiu mais velho. O principal, o lí-
der Marcos, preservava o bigode, mas tinha mais marcas do tempo.

417
O manifesto do fim do mundo

Ressignificava a face de alguém que comanda um projeto ultrassecreto


e importante. Igor ainda tinha dúvidas, mesmo com o soro o acomo-
dando.
Mas nada pôde dizer.
— Eu avisei a ele para não intervir. Você viu a situação que
ficou lá fora? — Marcos questionou Fernanda. A outra cientista loira
se chamava Summer, tinha feições mais quadradas e sérias. Foi direto
para o computador e arrancou as fiações que interligavam o sistema.
Os outros dois cientistas, Cornélio e José, pareciam desloca-
dos sem perder a pose sisuda. O mais franzino, José, ajeitou seus ócu-
los completando a figura estereotipada do nerd com o aspecto desajei-
tado. Ele evitava tocar em qualquer objeto na casa, parecia preocupado
e hipocondríaco. Igor queria muito ler seus nomes e setores, mas sua
visão não o estava ajudando. Torceu para que ambos se aproximassem.
— Senhor, eu estou bem assustada. Eu... não pude pre...
— Fernanda! O QUE ACONTECEU? — Marcos socou a mesa
de dona Raimundinha. Igor conseguiu ver pelo canto do olho. Todos
continuavam o ignorando. Nos dias felizes, ele e o amigo Rafael co-
miam cuscuz com leite enquanto a idosa, na época, um pouco mais
nova, passava o ovo. Realmente, os melhores de toda uma vida.
— Como eu estava dizendo... — Fernanda se irritou. Seus olhos
pularam na expressividade — não consegui prever uma resposta dessa
magnitude. Rafael deveria ter estudado o alvo, a mulher, o marido e o
filho, além do jardim, poucas respostas obtivemos, a não ser um laudo
técnico sobre a espécie violeta colorida.
Marcos esfregou o bigode com cansaço. Pareceu estressado.
— E como vamos resolver a porra da situação lá fora? Você
viu o tanto de cadáver no chão? Não é tão simples como sumir com al-
guém. Nem nosso Departamento de Humanidades poderia lidar com

418
O manifesto do fim do mundo

aquilo tão rápido!


— Senhor, estou fazendo o backup do histórico do Rafael. —
finalmente a cientista loira, Summer, falou — Ele traçou rotas, deta-
lhou o dia a dia dos moradores, informações que poderia ter nos en-
viado, mas não o fez. Não consigo entender por que ele iria por si só
avançar e lutar contra uma força desconhecida como essa.
Marcos ficou alguns segundos pensativo. Apoiou-se na cadei-
ra de anfitrião da mesa, no canto, a mais bem conservada. Onde dona
Raimundinha sentava e ria das histórias que Rafael e Igor contavam.
Agindo com heresia contra a paz que reinou naquele lugar por anos.
Eram estranhos e animosos, coisa da ciência.
— Isso é problema do seu setor, Cornélio. É um erro grave.
GRAVE! — apontou furioso para um dos cientistas soturnos calados.
— Senhor, mas o treinamento dele foi igual ao de qualquer
outro cien...
— Pois dê um jeito, você viu o que aconteceu ali. — Marcos
interrompeu. A voz de Cornélio era estridente — Isso daqui vai custar
caro aos nossos cofres, eu quero saber o que vamos dizer aos nossos
acionistas. A parte difícil vem é para mim!
Fernanda mudou de foco. Igor agora tinha dois olhos na sua
direção, seu jeito racional de encarar o ambiente o intimidou.
— Levaremos o garoto? — perguntou apontando para o canto
da sala. Igor finalmente conseguiu seu destaque.
— Óbvio. Não iremos deixar nenhuma evidência aqui! Temos
que limpar o terreno. — Marcos, o principal, tratou a pergunta como
burra. Depois se virou para Summer. A cientista mais bizarra, a única
realmente presa a um totalitário frio.
— Você! Preciso que converse com as autoridades de Piripi-
ri, Russinha Amada e Teresina. E preciso que todo o Departamento

419
O manifesto do fim do mundo

de Contenção de Danos esteja nesse caso. Não pode vazar nada desse
massacre. Procure as famílias de todos os que foram mortos. Com os
que estiverem apenas desmaiados, já sabe o que fazer. — Marcos or-
denou tratando o que quer tivesse lá fora como números. Deixou a
cabeça de Igor mais aflita ainda.
Summer aquiesceu. Seu rosto lembrava um pouco o de Rafael,
com certas linhas mais duras e robustas.
— Puta. Que. Pariu. Que porra de confusão. E logo agora
quando estávamos melhorando nossos laços com os governos mun-
diais. — Marco fez um muxoxo, coçou o antebraço enfiando a mão por
dentro da manga longa do jaleco. Seu braço era peludo como o rosto
— A sorte é que aqui é só uma cidade fodida que ninguém liga.
Fernanda permaneceu aguardando pela ordem, -semostrou
em evidência com os braços cruzados. Vez ou outra, soltava um fiapo
de desespero que só Igor notou. Os outros cientistas agitados nunca
iriam reparar.
— Leve-o lá para fora. Você... — Cornélio se dirigiu a José, o
com óculos de fundo de garrafa — quero que vasculhe o jardim, já que
é do seu departamento. Cornélio vai levar toda nossa força tarefa para
conter alguma ameaça. Não sabemos se a criatura ainda está por aqui.
— Claro, senhor. — José falou. Sua voz era calma — Irei agora.
Marcos ignorou a resposta passiva.
Fernanda tocou os ombros de Summer, ambas vestiram luvas
e se aproximaram de um Igor apenas consciente e imóvel. Com dificul-
dade, as duas conseguiram carregar o corpo para fora. Na proximida-
de, Igor sentiu o cheirinho de perfume caro do jaleco de uma delas. As
mãos de Summer eram mais fortes que as de Fernanda.
Com o impacto da noite, Igor conseguiu engolir que ali ainda
era Russinha Amada e as horas expulsaram a tarde. O mesmo céu e as

420
O manifesto do fim do mundo

mesmas estrelas. A mesma escuridão familiar que participou da sua


existência cabisbaixa e morna.
O que arrancou uma reação de Igor, a força suficiente para ele
se mover nas mãos de Fernanda e Summer, foi a visão infernal do resto
da cidade. Mesmo que com dificuldade, ele fitou a porta das casinhas
abertas. Os corpos estirados no chão, a igreja ainda com a luz ligada.
O que tinha acontecido agitou sua criatividade mórbida. Não só a dele,
como a dos outros diversos soldados entre os cientistas importantes.
Carros e mais carros SUV parados por todo o perímetro.
Do mesmo jeito quando chegaram anos atrás. No meio das
festividades, dona Josefina sorridente com suas violetas coloridas os
recebeu cheios de soberba. Agindo como... cientistas.
Pisar entre os corpos no chão pareceu uma tarefa difícil. Igor
não conseguiu gritar, nem chorar, mas pôde internalizar toda a sua
fúria. Rezou aos céus no seu primeiro contato verdadeiramente espiri-
tual em anos e talvez por isso não foi atendido.
Os fardados militares e os cientistas adentraram no terre-
no, um por um. Tirando fotos, colhendo evidências. Criando mais
dúvidas. José e Cornélio tinham dobrado na ruazinha familiar. Igor
os acompanhou com os olhos. Eles pararam e se perguntaram sobre
avançar o perímetro. Alguns grandalhões com armas checaram o ter-
reno, apontaram a mira para diversos lugares, mas tudo limpo.
“Onde está todo mundo?” Igor se questionou mentalmente
mais uma vez.
Sem se preocupar com conforto, o corpo do rapaz foi entregue
à careca mal-encarada que o pôs nos ombros. O homem o carregou
com mais facilidade, deu folga para Summer e Fernanda também vas-
culharem o terreno. Igor torcia para que o segurança as seguisse, para
entender a complexidade da cena. E até que o universo o atendeu.

421
O manifesto do fim do mundo

Marcos ficou no celular, distanciou-se para se manter discreto,


deviam ser problemas para líderes, nada para o bico do restante do
seu grupo. O restante pareceu mais ligado na carnificina, nas inúmeras
beatas com vestidinhos fofos jogadas no chão. No rastro de destrui-
ção vindo da igreja. Eram tantos detalhes que só depois repararam no
carro de desinfecção logo atrás, sem nenhum motorista. O cano tinha
sido arrancado. Quem poderia ter força suficiente para causar tudo
aquilo?
— Acho que achamos Rafael, mas não vão querer ver o que
restou dele. — Fernanda voltou contrariada, seu nervosismo reapare-
ceu com mais força. Era a mais humana dentre eles. Mesmo com o
sangue frio da profissão, o que tinha visto a desestabilizou. Igor ficou
curioso com sua primeira certeza. O melhor amigo estava morto. Ou
que quer que fosse o melhor amigo. Ou amante. Ou quase namorado.
— Posso chamar o médico legista e a equipe? — um dos segu-
ranças perguntou.
— Faça logo! — Fernanda disse, atônita. Passou a mão nos
cabelos encaracolados e suspirou. As luzes dos postes estavam ligadas,
mas aquilo não iria calar o medo do silêncio entre o breu. Ao redor de
Russinha Amada, os segredos tinham ficado mais vivos do que nunca.
— Eu preciso de uma equipe grande! Preciso saber quem mor-
reu e quem está vivo! — Fernanda completou a ordem. O segurança
deu um o.k.
Depois, parou em frente a uma idosa de bruços com o rosto
colado nos pedregulhos. Seus olhos estavam esbranquiçados como ao
receber o beijo da morte. O cheiro não era dos melhores, mas o doce
das violetas coloridas sempre podia consertar qualquer coisa.
O segurança que carregava Igor estava com Fernanda, por
isso, o rapaz conseguiu reconhecer a figura.

422
O manifesto do fim do mundo

— Nossa... que porra de manchas são essas? — Fernanda veri-


ficou enojada — É bizarro demais.
Não tinha como ter dúvidas. Dona Josefa, agora um tanto me-
nos expressiva. A saliva da boca tinha criado uma poça no chão, já que
afrouxou todos os músculos.
Será que estava morta? Ela era sempre adoentada. Sempre frá-
gil em contrapartida de ser casca grossa.
— O departamento da Summer vai ter trabalho. — Fernanda
se dirigiu ao careca do seu lado. Ele nada disse.
— Pessoal! — a voz estridente de Cornélio rasgou a noite. To-
dos se viraram no automático, prontos para deterem qualquer ameaça.
Mas o cientista logo os acalmou com um gesto expansivo. Tirou a me-
cha saliente da frente dos seus olhos e gesticulou com as mãos para que
se aproximassem — Nossas evidências estavam corretas.

423
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 57 –
Uma rápida transformação.

I gor foi deixando no banquinho da pracinha. O mesmo lugar


que, nos dias de sol, serviu como inspiração para brincadeiras infantis.
Mas agora era apenas um espectador da catástrofe como o objeto. O
guarda o colocou de lado, bem de frente com a entrada da igrejinha
iluminada. Seus sentidos tinham ficado bem aguçados, na contramão
dos seus membros que não respondiam. Mesmo imóvel, Igor conse-
guia enxergar e escutar melhor.
— A minha teoria é a de que a criatura envenenou toda a ca-
pela durante o ritual religioso. A grande questão é a não resistência. As
pessoas simplesmente aceitaram a investida mortal? É muito esquisito.
— Fernanda disse para o segurança careca quando outro lhe repassou
a informação.
— Não deveríamos usar máscaras? — ele perguntou.
— Não se preocupe. Antes de chegarmos, sondei o ar. Não
contém nenhuma impureza.

424
O manifesto do fim do mundo

O careca se aproximou mais da cientista, parecia que o que iria


dizer era mais sigiloso.
— Mas, senhora... quem é essa criatura? — cruzou os braços
no nervosismo.
Fernanda continuou fitando a capela. Corpos pelo chão e pe-
los bancos, enfileirados. Os quadros santificados e as imagens respon-
diam expressivamente àquele desastre com tristeza. O único lugar de
Russinha Amada com uma quase organização. Até aqueles que não
tinham ido à missa não escaparam do que os cientistas chamaram de
perímetro venenoso, abarcando toda a cidade. Das bordas de Piripiri
até a pista corpos por todos os lados.
— Eu... não faço ideia. Eu sei o que é, mas não sei a sua forma
ou o que faz. — a cientista tocou o ombro do colega e fez um sinal —
Enfim... fique de olho no menino e na região. Vou ali sondar o que
Cornélio descobriu.
Igor se emocionou quando sentiu que conseguiu. Enfim, uma
lágrima escorreu passeando pelas maçãs do rosto secas desenhando
um traçado. A gota salgada tocou o chão e reagiu imediatamente com
o solo. Não era um local seguro como todos eles pensavam. Nunca
seria. Ele não sabia como tinha descoberto aquela verdade. O soro?
“Veneno?”
Demorou minutos para a aglomeração ao redor da região do
jardim. Os guardas ficaram curiosos, mas precisavam cobrir o períme-
tro. O que quer que Cornélio tivesse achado, parecia promissor. Igor
também queria entender como aquilo estava simbioticamente relacio-
nado consigo. Simbioticamente. Tanto ele quanto a coisa precisavam
um do outro. Não tinha escolha, deveria confiar naquela nova irman-
dade. A única alternativa promissora naquele momento. A voz que sur-
giu pedindo que desconfiasse de tudo e todos evoluiu para uma que lhe

425
O manifesto do fim do mundo

contou a verdade.
Agora que seus pés estavam formigando e o lençol que os co-
briam começou a desamarrar, Igor entendeu a extensão de sua nova
realidade. Tão paralela quanto a que tinha imaginado. Seus pensamen-
tos eram novos pensamentos. Sua existência era parte de algo maior.
Qualquer resistência seria inútil. Rafael tinha razão em algo.
Os pés eram redesenhados conforme eles queriam. Mesmo
sem saber quem eram eles. Mas a questão não importava mais. A voz
continuou dando ordens, querendo que fosse além.
Raízes foram redesenhando o que seriam os dedos, galhos se-
cos do ápice do sertão caindo do banco para o chão. Filamentos vi-
vos brotavam da pele, estendendo-se por todas as feridas, curando-as.
Dando forma ao inédito e à salvação de Igor. As veias eram agora ris-
cos luminosos, e as artérias pareciam tentáculos tão forasteiros que
sua existência naquele momento iria colocar em xeque a sanidade de
qualquer humanidade. Também se comportaram como fios elétricos
que iriam se conectar ao solo.
Por sorte, ninguém estava vendo, todos abismados com a cena
de horror em Russinha Amada. O mais novo arco esquizofrênico. Até
que uma transformação foi completada com sucesso. Deixou o antigo
corpo evaporar e o novo se juntar a uma nova realidade crescendo bem
na beira invisível de sonhos. Um risco onírico e perigoso.

426
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 58 –
O jardim dos sonhos.

D epois de horas, Fernanda voltou mais atônita que tudo. Es-


fregou o rosto visivelmente cansada sentindo o seu estômago queimar,
sequer soube lembrar a hora da sua última refeição. Aquele trabalhava
matava-a cada segundo com tanta “novidade”. Os sulcos bem desenha-
dos também revelaram sua expressão desgastada.
Pediu que o colega careca chamasse Marcos e que interrom-
pesse custe o que custar qualquer coisa que o líder estivesse fazendo.
Cornélio se aproximou, deixou José no “perímetro venenoso”.
— Mas que p... — o cientista coçou o topo da cabeça abisma-
do. Nada o surpreendia com frequência. A novidade parecia absurda.
— Calma, Cornélio. Pelo menos estávamos certos. — ela apa-
ziguou.
— Em partes... O que significa aquelas aberrações no chão? —
ele verbalizava mais do que deveria.
Fernanda suspirou para não ser grosseira, resolveu esperar

427
O manifesto do fim do mundo

Marcos.
— Acharam os corpos? — o bigodudo chegou interessado, co-
çou o tufo de pelos na pergunta — Acharam a tal dona Josefina?
— Sim e não. — Fernanda respondeu vendo a dúvida espocar
no rosto do chefe.
— Como assim?
— Bom... o pai realmente era um homem sádico, escravizou
crianças e definitivamente fez experimentos científicos com elas. Ain-
da não encontramos o tal laboratório, mas acredito que não deva estar
longe. O que tem no terreno, além de um corpo feminino normal por
volta de trinta anos, são restos de cadáveres modificados geneticamen-
te que servem como fonte de nutrição para as possíveis flores colori-
das.
— Então? São os cadáveres! Possivelmente, as crianças, adul-
tos, sei lá. — Marcos chegou com ambição, não se solidarizou nenhum
pouco com a situação perversa.
Fernanda coçou a cabeça.
— Senhor, não sei muito bem se aquilo são pessoas. José está
verificando o componente dos corpos. Tirando a mulher de trinta anos
todos estão envoltos de uma substância espelhada de aspecto furta-cor.
Parece viva e conectada tanto com o solo quanto com as flores. Eu não
posso dizer de cara que tenha a ver com o Através.
— Fernanda... — Marcos semicerrou os olhos — mas que por-
ra é essa que você está dizendo? Se não for o Através, o que é então? E
como uma célula neofascista conseguiu esbarrar nessas criaturas alie-
nígenas?
Cornélio murchou, melhor não dizer nada. A colega que ficas-
se no comando. Summer, um pouco distante, continuou cuidando de
enrolar os corpos.

428
O manifesto do fim do mundo

— Calma. — a cientista pediu vendo suas respostas desorga-


nizadas — Encontramos também o corpo de Josefina, a florista, e de
Antônio, o marido. Só que o mais esquisito é que estavam enterrados
há anos. De acordo com José, o casal morreu há cinco anos.
Marcos piorou sua cara de susto.
— Como? Se Rafael mandou fotos... e... a florista não estava
comandando a floricultura? Como? Impossível! Ela estava viva até a
última atualização do relatório!
Fernanda fechou os olhos por segundos para digerir o que ti-
nha dito. Também era difícil para ela.
— Não sei ainda. Vamos pesquisar e entender. Mas a melhor
parte vem agora. — encheu o peito de ar e soltou na exaustão — De
fato, um dos “cadáveres” tem a composição totalmente desconhecida.
É como se não pertencessem a este planeta. José afirmou com toda a
certeza do mundo. Então...
— Fernanda... uma criatura? Em carne e osso? Do próprio
Através? — Marcos reacendeu.
— Não sei dizer se realmente pertencem ao Através, precisa-
mos confirmar isso. Mas é uma forma de vida superior à nossa. — Fer-
nanda continuava não querendo relacionar conceitos — Pode ser que
existam outros “Através” por aí... São muitas questões.
Os cientistas pararam por segundo para teorizar... Se Fernan-
da não tinha certeza, então, o caso era grave.
— De qualquer forma, outro ponto esquisito é a existência de
dois Antônios enterrados naquele jardim. — ela continuou.
— Dois? — Marcos franziu as sobrancelhas.
— Sim. O marido de Josefina humano e o ser de composição
esquisita que tem o rosto do homem, numa versão mais madura.
— Que porra...

429
O manifesto do fim do mundo

— O falso Antônio tem inúmeros tubos ligados ao corpo e ao


chão. Provavelmente, esse ser alienígena morreu, estava adoentado e,
por isso, Rafael nunca o viu. O amigo também confirma isso, disse que
o pai vivia acamado aos cuidados da, possivelmente, falsa Josefina. O
casal verdadeiro foi morto pelas duas formas de vida alienígena que
prolongaram o sadismo do pai de Josefina. Porque continuaram pren-
dendo e realizando experimentos científicos em pessoas, usando-as
como fertilizante para as violetas coloridas. A flor em si não tem uma
composição que respeite preceitos biológicos de nosso planeta.
Marcos continuo aquiescendo, interessado nas teorias da cien-
tista.
— Rafael deve ter atacado a alienígena, ou seja lá o que for.
— Por favor, não vamos usar esse nome. Os acionistas... —
Marcos pediu depois das pontadas na sua cabeça — Vamos continuar
falando criaturas.
— Certo. — Fernanda se chateou com a interrupção. Mas vol-
tou ao seu destaque.
— Eu suponho que Rafael deve ter atacado a falsa Josefina e a
criatura, para se defender, acabou com todos os inimigos, os humanos.
Ele também passou um relatório contando que a mulher começou a
ganhar inimizades, já não simpatizavam com ela desde que admitiu
a primeira vítima dessa loucura, Giovani. — Fernanda gesticulava —
Ainda iremos verificar qual foi o plano afundo, mas essa cadeia de
acontecimentos deve ter entrado no caminho das duas figuras esquisi-
tas. O carro de desinfecção... — apontou para o veículo parado perto
da igreja — estava cheio de uma substância venenosa que provém das
violetas coloridas.
Marcos tampou o nariz, sua voz ficou anasalada.
— Meu Deus, Fernanda! Então, estamos sendo envenenados?

430
O manifesto do fim do mundo

A cientista rolou os olhos.


— Não. Eu já chequei o ar, as violetas agora só exalam o
perfume adocicado. Possivelmente porque um de seus genitores não
esteja mais aqui...
Cornélio e Marcos se entreolharam.
— Então...
— Sim. A falsa Josefina fugiu. E o pior: não sabemos se ela foi
para Teresina, sede do nosso problema.
Marcos cerrou os punhos. Poderia socar qualquer coisa à sua
frente com a fúria que reverberou.
— Puta que pariu, ainda há muitas pontas soltas e... — esqua-
drinhou toda a região, os guardas levando os corpos e alguns médicos
dando as coordenadas — cadê o garoto?
Fernanda se virou para o banco que estava perto da pracinha
e, depois, para o colega careca. Ele percebeu e se assustou também
quando viu o assento vazio, sujo com um líquido que interagia com a
luz, criando um belo arco-íris. Embaixo, mudinhas esverdeadas e rosas
cresceram num tempo recorde de minutos, fazendo cócegas no con-
creto e criando uma imediata reação de aversão.
— Minha nossa... — Fernanda pôs a mão na boca — ele estava
aqui há minutos! As nossas evidências estão se destruindo!
Marcos olhou para ela como se tivesse acabado de ser agredi-
do.
— Tirem foto de tudo! Todos! Summer! José! TIREM FOTO
DE TUDO E RECOLHAM O QUE PUDEREM VEDANDO OS
FRASCOS IMEDIATAMENTE! — berrou.
Tarde demais.

431
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 59 –
A jornada deles.

N o começo, pareceu uma odisseia experimental coberta de


ramificações. Eles sempre estiveram por todos os lugares, mas nin-
guém nunca os viu de verdade. Suas ações só circundavam no escuro,
nos limites mais invisíveis, mesmo que os resultados fossem sentidos
por todos de fora. Conceituá-los era uma tarefa inimaginável, verifi-
cando todas suas extensões infinitas. Como parte de um corpo muito
maior e mais complexo. Tão frágeis que um único toque externo po-
deria desencadear uma grande bagunça. Tão singelos que conseguiam
decifrar a alma de um corpo.
Assim tentaram eles.
O que aconteceu naquela noite foi súbito. Tão seco que só se-
gundos depois a atmosfera reconheceu a violência do espetáculo.
Começou com Igor reafirmando sua nova situação, preso. Não
muito longe, uma celebração religiosa reuniu boa parte da cidade. To-
dos aguardando fiel Jerônimo com pás nas mãos para juntos entende-

432
O manifesto do fim do mundo

rem o que Josefina queria esconder naquele seu jardim. A céu aberto,
ninguém tinha coragem de entrar no lugar sem uma permissão. Res-
peito? Não. Medo. Só fiel Jerônimo poderia liderar aquele movimento.
E isso resultou na agonia até seu último suspiro e gozo, enca-
rando os dúbios olhares da esposa que uma vez foi uma Celeste. Ele
não a reconhecia mais. Talvez, nunca soubesse quem realmente era ela.
Deu o lugar para um falso fiel Jerônimo, que antes foi dona Josefina.
O restante de Russinha Amada aguardou com afinco a cele-
bração; já o restante, os não-mascarados, continuaram suas vidas tão
normais e monótonas.
Fiel Jerônimo ressurgiu, sorridente. Estava diferente. A mãe
de Deise logo notou, parecia confiante e não tão apreensivo. Acenava
com a tranquilidade dos deuses irradiando uma energia que acalmou
o ambiente. Podia fazer tudo o que quisesse e ainda assim obteria êxito.
Ele disse algumas poucas palavras polidas. Falou com todos
num gestual padrão e se dirigiu até o tablado. Sequer tocou no nome
da vizinha florista. Ninguém entendeu direito, muito menos quando
os próximos minutos de violência se sucederam.
Quando um rapaz familiar apareceu, com armas, ameaçando
fiel Jerônimo e o chamando para um confronto, todos da igrejinha gri-
taram assustados, mas o que quer que fosse o novo fiel Jerônimo des-
viou com facilidade dos ataques. Porém, Rafael investiu rápido com
uma bomba de gás perigosa, mas bem articulada. Alcançando somente
os limites da pequena Russinha Amada.
Depois disso, a criatura que antes era fiel Jerônimo se transfor-
mou novamente. Voltou a ser dona Josefina com o ar de graciosidade.
Correu para casa e avistou a solidão da morte. Seu pobre companheiro
doente não aguentou a simbiose com a essência do que foi uma vez
Antônio, o pai de Igor, e faleceu.

433
O manifesto do fim do mundo

O tiro que Rafael disparou tinha sido fatal contra o doppelgän-


ger do marido. Antes de ir à igreja, ele visitou a casa de dona Josefina
e encontrou o quarto com aquele retrato adoentado. Antônio perto da
morte. Só restou acelerar a sua passagem.
Falsa dona Josefina começou uma espécie de ritual, adubando
o resto do companheiro para ser parte da existência que uma vez o
criou. Foi carinhosamente levado pela forte doppelgänger e seus no-
vos braços amarelos que pareciam presentes dourados. Eram macios
e quentes criando uma comichão quando tocavam algo. Um carinho
divino.
Todas as narrativas de repente interrompidas num só ato su-
blime.
A falsa dona Josefina não demorou para continuar sua mis-
são. Sabia para onde rumar atrás da última peça. Ela conseguia saber
futuro e passado como parte de suas habilidades intrínsecas. Por isso,
os eventos caminhavam conforme sua percepção. O seu futuro esta-
va em outro lugar, o tal destino final. Seu companheiro ficou por ser
fraco. Não resistiu ao parasitismo consciente. Mas ainda assim era seu
companheiro. Tinha uma história, tinha emoções, apesar de serem in-
finitos e tão intrincados ao cosmo etéreo. Por isso, dona Josefina reve-
renciou a cidade antes de partir.
Minutos antes de os cientistas da Família Siraivanesco chega-
rem, a falsa dona Josefina caminhou sentindo a brisa noturna da mor-
te. Respeitou cada corpo no chão, até o do que matou com os próprios
tentáculos, Rafael.
Notou antes a única vida consciente trancada. Mas falsa dona
Josefina sabia que parte de si vivia simbioticamente com o filho do
casal assassinado. Por isso, deixou que ele vivesse. O que explicou o
desequilíbrio em Igor.

434
O manifesto do fim do mundo

Na noite, sozinha, os cabelos longos ficaram esvoaçantes. Falsa


dona Josefina não entendia por que ter cabelos, tantas estruturas elé-
tricas junto de um dos principais órgãos humanos. Mas era parte da
cultura que adentrou há centenas de anos.
Falsa dona Josefina continuou soturna, de pés descalços, pelo
encostamento. Não temeu os uivos noturnos nem os animais traiçoei-
ros da mata, eles também eram parte de si. Respeitariam ela. A cada
passo o coração humano batia mais forte. O órgão que uma vez foi de
dona Josefina verdadeira. Desse modo, uma oração aos seus deuses
particulares, pela gratidão daquele corpo e daquela simbiose.
Por também ter “esbarrado” com a obra demoníaca do pai
daquela mulher e interrompido sua cadeia de dor a outros humanos.
Usando de toda aquela tecnologia para conseguir se adaptar ao novo
terreno. Aquela família só não teve sorte. Foi um belo de um castigo
dos tempos para todos os malfeitos em segredo.
Falsa dona Josefina avistou uma barriguda logo à frente. O
caule tinha torções com espinho, além de um ventre gordo. A madei-
ra vibrava uma coloração amarelo queimado que só ela conseguia en-
xergar. Parecia uma criatura afobada, queria acenar para sua visitante.
Ser grata por sua presença. Daí o rosto foi desenhado no caule como
presente. Os nós na madeira reverberando pela estrutura formando
bochechas, nariz e boca. Circularam imediatamente uma face. Mas a
criatura não reconheceu logo de cara, a árvore precisou ser mais ob-
jetiva.
Tudo bem. Detalhou cicatrizes e manchas, tudo muito rápido.
Só não conseguiria criar pelos, era demais para suas habilidades de ár-
vore. Falsa dona Josefina parou. Ficou minutos na encosta observando
o quadro excelso. A noite rodopiava. A pista vazia não carregava uma
emoção, apenas asfalto e galhos. Nada mais.

435
O manifesto do fim do mundo

Deixou que a turbação da outra falasse mais alto. Como pre-


sente pela sua bondade de entrega, a barriguda atiçou a essência de
Josefina com o rosto do seu antigo amigo. A árvore se deu por satisfei-
ta. Tinha dado o melhor de si para criar a estrutura do antigo rosto de
Peteleco antes de ser entregue às vilanias do avô de Igor.
E agora duas Josefinas estavam buscando rostos infantis.
Levaria dias para chegar até o seu destino mesmo que fosse o
final. O seu propósito espetacular como um celebre raio ao futuro. E
uma ode ao passado.
As horas passavam e falsa dona Josefina continuava marchan-
do sem cansar. Coluna ereta como normalmente nenhum humano fi-
caria. Os braços arrepiavam com as brisas, mas ela tinha desativado
parte do seu sistema sensorial. Os pés sangravam sem nenhum estímu-
lo. Foram desenvolvidos para a sobrevivência.
Alguns carros passavam? Sim. A maioria de Parnaíba para Te-
resina. Mas ninguém iria parar para uma mulher andando sozinha no
escuro, mesmo que subestimando sua figura feminina. E falsa dona
Josefina não se importou em ser ignorada. O ao redor era apenas um
ambiente qualquer, como muitos dos quais percorreu. Contextos eram
somente contextos.
Mas um veículo grande parou. O caminhão fez um barulho
no asfalto quando foi estacionando. A fumaça cortou o ar gelado da
mata. Pelo retrovisor e um pouco mais à frente, o caminhoneiro tirou o
boné e acenou. Era um homem de quarenta e poucos anos, barrigudo
e com hálito salgado. A calvície tinha surgido como um castigo, assim
como a enfermidade que percorria sua pele, cheia de sinais e caroços
avermelhados bem escondidos com mangas longas.
— Boa noite, moça. Quer carona?
Falsa dona Josefina continuava fitando o único ponto à sua

436
O manifesto do fim do mundo

frente. Caminhando lentamente, por isso, demorou minutos para atra-


vessar o caminhão e ignorar a gentileza. O homem não recebeu bem.
— Ei. Você está bem? Estou falando com você.
Ela parou. Teve uma ideia. Milhares de pensamentos e um ga-
nhou.
Se virou com a boca aberta exibindo o facho de luz como se
fosse uma lanterna. Os olhos de dona Josefina se esbranquiçaram e ela
fez o clarão acordar todos os vivos do perímetro como uma explosão
meteórica.
Novamente, retornou o cenário para si, evaporando com o
corpo do homem.
Recolheu as roupas que sobraram, uma calça fedorenta e uma
camisa de mangas com sangue, e amarrou à cintura. Entrou no veículo
e tocou a maçaneta obtendo um orgasmo enérgico. Seus olhos revira-
ram até ela conseguir chegar à eletricidade do caminhão. Quando deu
partida, falsa dona Josefina segurou o volante e desenrolou seu trajeto.
Em direção aos limites do novo mundo.

437
O manifesto do fim do mundo

Parte 7 –
A Sociedade
do Através:
síntese e
conceito.
Um retrato
obsceno.

438
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 60 –
Marilene dentro do submun-
do.

D emorou, mas, mesmo na crise, não faltaria emprego para


alguém que foi tão bem indicada. Bem-vindos à Teresina, sempre um
eterno jogo de rasteiras. Marilene conseguiu um ofício rápido e um
cantinho seu também. Uma quitinete no Centro, tão pequena quanto
a sua esperança sobre os novos dias. Russinha Amada foi ruim, mas
Teresina se superava na extensão de problemas. Não que ela não ima-
ginasse, só que agora estava sem saída, dentro dos círculos infernais de
uma capital.
Bárbara ajudou na mudança. Fez de bom grado porque não
aguentava mais seu namorado reclamando sobre a falta de privacidade.
Enquanto visitas, Marilene tinha pedido que Augusto sequer se apro-
ximasse do homem carrancudo, nenhum pouco contente com ambos.
No final foi um alívio para todos, e o garoto desfrutou de mais espaço
para brincar. Como seu desligamento da escola foi abrupto, Marilene

439
O manifesto do fim do mundo

iria ter que esperar o outro ano para matriculá-lo. Resultado: o restante
dos dias seria sabático. Augusto quase vibrou de felicidade. Seus olhi-
nhos procuravam por outras crianças pela vizinhança, mas a região
em torno da Praça Pedro II tinha um espectro sombrio. A maioria das
pessoas na rua era mendigo, isso no horário das 18 horas, quando a
cidade insinuava sonolência. O bairro ficava desértico. Vez ou outra,
algum movimento na esquina, as mulheres bonitas que acenavam para
Augusto quando ele surgia no portão. Uma delas chegou a chamá-lo,
mas não seria uma boa ideia aceitar o convite de uma estranha. Marile-
ne tinha alertado.
Mesmo com apenas um quarto, Augusto e Marilene se dividi-
ram bem. Tinha espaço até para ele guardar o seu bem mais valioso:
a caveira brilhosa. Toda vez que a mãe saía para trabalhar, ele usava o
artefato para participar de suas brincadeiras. O líquido furta-cor ti-
nha diminuído e, quando tocava o chão, sumia em ebulição. Não tinha
rastros. A caveira ganhou alguns riscos enquanto a estrutura óssea foi
ficando mais fraca. Um dos dentes tinha caído e, assim como o líquido
que brotava do interior, magicamente desapareceu. Cada parte do ob-
jeto, quando não ligada ao todo, evaporava.
Na imaginação do garoto, aquilo fazia todo o sentido. E mes-
mo que o objeto evocasse um sentimento ruim junto das lembranças
daquele dia, era o seu bem mais precioso, depois da sua mãe. Augusto
tinha mágica em suas mãos. A caveira não o assustava, mas comple-
tava um círculo fantasioso em sua cabeça. O teor do medo era mera
construção que as crianças desconstruíam com facilidade.
Entretanto, a rota de colisão envolvendo aquela caveira tinha
sido definida no exato momento em que ela foi tirada fora de seu lugar.
Marilene tinha até esquecido o assunto. Simplesmente, o tra-
balho lhe cansava o suficiente para pensar somente em dormir e sobre-

440
O manifesto do fim do mundo

viver.
A filha da patroa, uma digital influencer, era uma figura. Con-
versava vez ou outra com ela, mesmo que Marilene não achasse boa
ideia ficar papeando com seus patrões. Tinha colocado na sua cabeça
a posição de inferioridade no trabalho, feita para servir e ficar calada.
Num dia que sorriu para a mãe da garota, dona Andreia Lobo, recebeu
uma investida fria com a ricaça fechando a cara. Pediu que recolhesse
a mesa, com rapidez, porque não aguentava ver desorganização. Mas
Marilene até que entendeu, era difícil a vida da empresária. A filha,
Joyce, não gostava muito de estudar. Dizia que seria médica, mas pre-
feria passar o dia interagindo nas redes sociais com uma tal de Marília,
sua melhor amiga. Dona Andreia não gostava disso. Pagava caro uma
escola e um cursinho para ver resultados medíocres.
Em uma das várias discussões que a situação evocava, a ricaça
chegou a ameaçar Joyce, perguntando se ela iria querer ser balconista
ou qualquer cargozinho mixuruca. Se virasse uma servente burra, a
mãe disse que faria questão de humilhá-la na frente de todos. Ainda
completou que a menina era feia, não iria ter a sorte de ter um noivo
rico e bonito. Precisava agir por si só e continuar o legado da mãe sen-
do rica e bem-sucedida.
Joyce passou o restante do dia mal. Revirando o que era ser
uma adolescente gorda com todas as suas inseguranças. Marilene ficou
abismada porque nunca tinha visto uma menina tão linda como ela.
Mesmo nos seus ataques arrogantes, ela não conseguia desgostar de
Joyce. Naquele dia trevoso, pensou em consolá-la. Porém, limites se-
riam ultrapassados. E o drama não durou muito tempo. A adolescente
chamou algumas amigas para sair e foram juntas tirar foto para com-
por o feed do Instagram.
Ao se despedir, ordenou que Marilene arrumasse o seu quarto.

441
O manifesto do fim do mundo

De todas as partes daquela casa, o cômodo de Joyce era o pior


lugar. Repleto de objetos que mostravam a transição da vida infantil
para a juvenil, o rosa por toda parte. Eram bonecas caras, porta-retra-
tos com fotos em lugares famosos, toda uma vida que Marilene só viu
nas novelas. Embaixo da cama da menina, pratos e latinhas de refri-
gerante, teias de aranha e até uma possível poça de vômito ressecada.
As calcinhas no chão completavam o arco. Um terremoto juvenil de
desorganização.
— Pra onde ela foi? — dona Andreia tinha chegado em casa na
ponta dos pés. Marilene por pouco não trombou a cabeça num arma-
rinho atrás de si.
— O... Oi, dona Andreia. Ela saiu com as amigas. — disse ain-
da atônita com o susto.
A ricaça esquadrinhou o quarto, fez uma cara de decepção e
desenhou o indicador para a empregada.
— Arrume essa zona, por favor.
— Já estou fazendo isso. — Marilene soltou com mais rispidez
do que devia.
Dona Andreia entrou no seu quarto e trancou a porta. Se que-
ria privacidade, poderia começar não berrando quando conversava ao
telefone. A discussão interessou Marilene, era sobre a filha. De fininho,
a empregada se esgueirou perto da porta da ricaça e ficou surpresa
com o diálogo. O assunto parecia absurdo, quis fazê-la rir. A resolução
sobre uma foto importante para algum evento, algo envolvendo mãe e
a filha. Mas a preocupação de dona Andreia era peculiar.
— Eu vou pedir... — disse com um tom envergonhado — uma
coisa e queria muito que você fizesse.
Marilene escutou o ruído do outro lado da linha.
— Eu sei que vocês fazem o que eu pedir. Agradeço. — An-

442
O manifesto do fim do mundo

dreia riu — Bom, então, queria que vocês emagrecessem um pouco


minha filha nas fotos, sabe? Diminuíssem a região da cintura... É só o
tempo de ela conseguir perder uns três quilos até lá. Já sei como vou
fazer essa menina fechar a boca.
Finalmente parte das problemáticas. Marilene confusa sobre
o círculo de aparências daquele povo. Até engoliu a barriga no auto-
mático. Dali pra frente, a conversa rumou para detalhes de como o
fotógrafo mexeria no corpo de Joyce para ser transformado no que era
bem-visto.
Marilene também entendeu outro recado. Nunca iria para o
palco.

443
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 61 –
Espetáculos que antecedem
o apocalipse.

E la continuou dentro de um círculo vicioso, escrevendo os


quase-finais do manifesto. Tão no automático que até Augusto com
suas esquisitices passou despercebido. Toda vez que ela chegava, o me-
nino a recebia com desconfiança. E lá se vai a dona da casa ter que
fazer janta e pensar em algo. Isso depois de beber um bom gole de
água porque Marilene notou que a patroa não gostava que ela abrisse
sua geladeira cara, então, o melhor a se fazer para evitar conflitos era
levar sua garrafinha. Havia o risco de o consumo ser descontado no
seu salário que já era pouco.
O estresse foi crescendo em cadeia. De cabeça cheia, Marilene
se tornou mais razinza com Augusto. Num dado momento, ela poderia
ir no bar do seu Osvaldo comprar cerveja, mas depois de um dia de
cão só tinha forças para fazer a janta e cair na cama. Estava cansada,
os olhares tortos de Andreia reviravam sua cabeça. Atrapalhavam até

444
O manifesto do fim do mundo

o seu sono. No subconsciente de Marilene, a ricaça continuava dando


ordens enquanto Joyce perambulava com Marilia. Nem durante a noite
tinha paz.
Pelo menos as confusões rotineiras se tornaram a única parte
divertida do trabalho de Marilene. Num desses dias, Andreia brigou
com Joyce por ela ter visitado o metrô de Teresina. A filha disse que
estava na onda de ser uma influencer com conteúdo, como Marília.
As duas precisavam explorar a cidade. Sentir como é aquela Teresina,
a verdadeira Teresina distante da Zona Leste. E a mãe, lógico, con-
tou sobre os piores postulados da cidade. Na sua cabeça, só pobres e
marginais andavam no transporte. E que se a filha parasse no Dirceu e
se perdesse, lá mesmo ficaria...
Andreia reprovava totalmente as ideias “abestadas” de Marília.
Enquanto isso, os livros de Joyce continuavam intactos e os estudos
de escanteio. Com tanta frustração e briga em casa, não restava outra
alternativa à garota, a não ser comer. Comer muito. Chorar comendo e
se sentir como um animal, refletindo como a comida era tão prazerosa
e doentia ao mesmo tempo com o poder que tinha sobre ela.
E Marilene limpava, vassourava e continuava na dianteira da-
queles problemas modernos.
Na hora do almoço, uma quentinha; nos intervalos, escondida,
um pouco de água da geladeira das ricaças. Entre um cômodo e ou-
tro, um respiro... Sua cabeça se enchendo e tendo que se preocupar ao
mesmo tempo com os artefatos que valiam mais que ela. O ar pesado
daquela casa fedia com as sombras. E todos os avanços de Andreia com
seu olhar incisivo a ameaçavam. A patroa não precisava dizer nada, sua
atmosfera era tão intimidadora que Marilene murchava. Quando sem
querer se esquecia de lavar algo, de vassourar alguma relíquia, de ajei-
tar por cores as blusas de linho de dona Andreia, o mundo explodia.

445
O manifesto do fim do mundo

Depois de tudo isso, ainda precisava ficar de olho no que Joyce


comia.
Certo. São cenários repetitivos que acontecem na capital. Por
isso, o manifesto teve liberdade de avançar até um ponto importante.
Até aquele em especial. Aonde queremos chegar.
Um dia qualquer no mundo do proletariado. Quando deu sua
hora, Marilene ajeitou sua sacolinha de pano e deu tchauzinho, em
vão, para Joyce. A adolescente, muito mais concentrada em teclar no
seu celular, tinha resolvido “sentir” o ar livre na varanda opulenta da
sua casa. De frente para os majestosos condomínios do Jockey.
Quando Marilene deixou a residência e dobrou na Avenida
Nossa Senhora de Fátima, sentiu o seu sexto sentido, que, de uns tem-
pos para cá, percebia-se enguiçado. Mas Bárbara já havia avisado sobre
os roubos e assaltos pela região. Marilene não tinha nada de muito
valor, a não ser o celular, que estava bem velhinho por sinal. Agar-
rou com força a bola e continuou caminhando rápido até a parada de
ônibus. O grandalhão atrás dela possivelmente tinha dois metros. Era
forte, não parecia ser um estranho na rua caminhando na mesma dire-
ção. Marilene não era estúpida.
Para testar a sua teoria, ela dobrou numa rua qualquer antes
da parada de ônibus. E comprovou sua suspeita, assim que o estranho
também o fez.
Marilene chegou na parada e agradeceu por estar lotada. A
parte ruim seria o ônibus lotado. Mas pelo menos ali o estranho não
iria tentar nada.
O trajeto para casa foi mais desafiador. O Centro à noite ex-
pandia qualquer sensação aterrorizante. Os sem-teto já tinham se
acostumado a ela, assim como o contrário. Não eram problemas. Ma-
rilene conhecia até as garotas que faziam programa na esquina, porém,

446
O manifesto do fim do mundo

evitava contato. Um estranho sempre era um estranho. Bárbara con-


tinuou recitando na sua cabeça: Tome cuidado. Tome cuidado. Tome
cuidado.
Quando o esquisito de dois metros surgiu na esquina e lá ficou
parado, Marilene sentiu a pior das sensações, a insegurança. Agarrou
Augusto e reparou na grade de ferro da sua porta, a única coisa que
separava os dois daquela figura ameaçadora. Ele poderia ir até ali e fa-
zer algo com ela ou com o filho e ainda assim nada aconteceria. Nunca
teve sorte com vizinhos e sua única amiga em Russinha Amada, Deise,
ainda morava longe dela. Marilene precisava sempre se virar.
Augusto questionou a aflição da mãe, e ela, coitada, não pôde
dar nenhum deslize.
— Amanhã você vai pro trabalho comigo. — disse. Na sua ca-
beça, tinha sido loucura total deixar um menino daquela idade sozi-
nho. Se nomeou como a pior mãe do mundo. Burra. Estúpida. Inadim-
plente.
— Mas, mãe, eu fico vendo desenho. — Augusto não gostou
nada da ideia.
— E se você colocar fogo na casa? E explodir a cidade toda?
Nada disso! Você vai e ainda ficará comportado num canto com seus
brinquedos. — perguntou-se como iria pedir para dona Andreia dei-
xar o menino ir para o seu trabalho. Tudo era uma dificuldade.
— Tudo bem... — ele aquiesceu.
E as convergências explosivas não paravam,
Porque a criatura, a falsa dona Josefina, já estava naquele
terreno. Pronta para o seu veredito.
No meio da rotatória da Avenida João XXIII, observando em
estátua o fluxo do tráfego. Como era incrível ser invisível nas cidades
grandes.

447
O manifesto do fim do mundo

A energia funcionava como uma antena. E a doppelgänger


conseguiu sintonizar para onde ir. Estalou o pescoço quando o pendeu
para o lado. Mais um pouco e um rasgo marcaria na pele resultando
numa cachoeira de vísceras e sangue.
...
O dia começou nas alturas. Marilene arrumou e passou o me-
lhor perfume no filho. Augusto estava impaciente com tanta frescura.
Ela disse que seu filho não pode ser malvisto pelos ricos, podiam ser
pobres, mas não eram sujos. O trajeto até ao bairro Jockey contou com
Marilene repetindo tudo o que Augusto não deveria fazer e como qual-
quer atitude infantil poderia custar o emprego dela. Se alguma coisa
acontecesse, eles iriam dormir embaixo da ponte ou na barraquinha
perto da Praça Pedro II.
— É isso que você quer? — ela continuou num tom sério.
— Não. — o garoto respondeu, murcho.
Segurava com as duas mãozinhas a mochila. Temendo chamar
atenção. Marilene impaciente resolveu estourar ali mesmo.
— E o que você tá levando aí dentro? Desde faz tempo que eu
quero te perguntar uma coisa. Ter uma conversinha com você. Aquela
história de Bola... A gente ainda não teve tempo de conversar direito.
— disse e puxou uma das alças da mochila do garoto contra a sua von-
tade.
— Mãe. NÃO! — o menino agarrou com mais força. A caveira
ficou pressionada contra a sua barriga com o topo da cabeça redondo
escorregadio.
Marilene arregalou os olhos.
— É O QUÊ? — falou entredentes, sempre fitando para ver se
alguém no ônibus estava prestando atenção na conversa. Se contendo
para não abrir a mochila com força.

448
O manifesto do fim do mundo

— Mãe, a senhora fala de privacidade e eu tenho a minha. São


meus brinquedos!
— Então, se são brinquedos, por que você não me mostra?
— Porque não são da sua conta!
— É o quê, moleque? — Marilene lascou um tapinha na perna
de Augusto, a sorte dele é que não estavam sozinhos. O menino conti-
nuou na defensiva.
O ônibus chegou rápido ao destino e Marilene empurrou Au-
gusto cutucando com o indicador. Fazia-o de forma violenta, para que
ele soubesse o que lhe aguardaria depois.
— Chegar em casa vamos conversar! Dessa vez, você não es-
capa. — e desceram tentando não brigar com os outros passageiros
impacientes naquela luta corpórea. Todos mal-encarados querendo
espaço para desembarcar. Sete da manhã e as batalhas já eram árduas.
Marilene e Augusto rumaram para o coração do bairro Jóquei.
E duas figuras o acompanharam na surdina. Silenciosos à sua
maneira.

449
O manifesto do fim do mundo

Capítulo 62 –
Finalmente.

D ona Andreia não se opôs, mas também não ficou muito fe-
liz. Horas depois que o garoto só tinha tomado o cantinho da sala, a
ricaça questionou Marilene sobre ele vir todos os dias com ela.
Não soube dar resposta de imediato, mas contou o que a pa-
troa queria ouvir. A questão era onde deixar Augusto ficar, já que sozi-
nho em casa era um grande perigo.
Joyce quis interagir com o menino, simpatizou com ele desde
já. E os dois iniciaram uma amizade rápida. Em parte, para provocar
a mãe, sabia das aversões dela. Uma pena ter que usar o garoto para
aquilo. Marilene ficou contente com a relação. Se pelo menos a filha da
patroa gostava do filho então a questão na casa ficaria mais dividida.
Tudo girava em torno do seu emprego e Augusto não poderia ser uma
intempérie.
O primeiro dia de Augusto na casa dos ricos foi ameno.
Marilene puxava o garoto com força sempre com seu olhar

450
O manifesto do fim do mundo

paranoico procurando o estranho. Mas daquela vez não tinha nenhum


a perseguindo. Na volta para casa, com a cabeça recostada na janela do
ônibus, resolveu dar trégua para si e para ele.
Daquela vez, esgotou-se deixando a mente divagar. O trajeto
pela Avenida Frei Serafim era melancólico. Toda aquela intrincada li-
gação acontecendo dentro da cidade, como se cada um ali fizesse parte
de um sistema infinito que chegaria a um final interrogativo. Depois
que atravessava a ponte rumo ao Centro, a energia decaía. Havia dois
polos vibrantes, e o de Marilene era o mais entediado.
Ainda sem a presença do estranho, Marilene resolveu ser um
pouco mais educada. Acenou para a mulher toda arrumada na esqui-
na. Deu um boa noite e foi respondida com um sorriso. Augusto a
achava muito elegante, também acenou.
— Mãe, ela trabalha onde? Não deveria estar em casa uma
hora dessas? — puxou a barra da blusa de Marilene.
— O trabalho dela é complicado. — a outra riu.
Chegando em casa, a primeira notificação estranha. A luz ace-
sa e a porta entreaberta. Marilene soltou a mão do menino ali mesmo,
deixou-o na esquina e correu. Augusto a acompanhou gritando pelo
seu nome, perguntando o que tinha acontecido. Ficou mais assustado
ao vê-la cair de joelhos com a mão na cabeça vendo a porta arrebenta-
da e todas suas coisas reviradas ou quebradas.
— NÃO ENTRE! Eu vou primeiro! — ela gesticulou com a
mão.
— Mãe!
— AUGUSTO, ME OBEDECE! — escancarou a porta com
violência. Começou a berrar caso o estranho estivesse por ali — CADÊ
VOCÊ, FILHO DA PUTA? EU VOU CHAMAR A POLÍCIA!
Mas felizmente não tinha ninguém ali. Só prejuízos.

451
O manifesto do fim do mundo

O menino segurou a mochila com todas as forças. Estava tra-


vado. Não era uma boa ideia ficar ali fora e muito menos entrar dentro
de casa.
Marilene sentiu a contagem regressiva até uma explosão. O su-
ficiente para devastar um continente. O esquisito daquilo tudo era que
o estranho não tinha levado nada, entrou e destruiu por mera diversão.
Já não tinham muita coisa, agora iriam ter que lidar com mais impro-
visos para levar uma vida decente. Sequer água gelada teriam, porque
a geladeira, com duas marcas violentas, tinha queimado. O fogão teve
as bocas amassadas. A força do estranho a assombrou.
— Inferno... Inferno... — tudo começou a rodopiar. Até o olho
de Marilene bater no detalhe intocável e comportado dentre todo o
caos. Um papelzinho com um recado. O estranho tinha deixado um
rastro proposital.
“Nunca mais traia aqueles que estiveram do seu lado. Ou que
pagaram o seu salário por anos. Se contar à polícia, você morre...”
Dona Josefa.
Ótimo. Marilene riu. Mesmo longe, Russinha Amada conti-
nuava a perseguindo. Dessa vez, a ex-chefe tinha ido longe demais.
Era tão absurdo que não conseguia acreditar, mas tudo o que ela não
disse para dona Josefa foi crescendo e ganhando corpo. Poderia com-
prar uma passagem de ida para Russinha Amada usando o restante do
dinheiro apenas para dizer umas poucas e boas para a idosa. Mas no
fundo um alívio ascendeu. Se o perseguidor era obra de dona Josefa,
ele não poderia desafiar limites. Não iria cometer um assassinato. Ela
não iria colocar em risco sua reputação com um caso daqueles. E mes-
mo no submundo ainda havia um risco de noção na índole da idosa.
Os fantasmas da antiga cidade assombravam a cabeça de Ma-
rilene. Jerônimo e dona Josefa jogando vôlei com sua sanidade por

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O manifesto do fim do mundo

puro sadismo.
Ela respirou e contou até dez. Depois, pediu para Augusto lhe
ajudar com a arrumação. Para driblar os problemas, iria levar suas gar-
rafas de casa e enchê-las no filtro moderno de dona Andreia. Driblaria
a mesquinhez da patroa e conseguiria esconder as garrafas entre os
vários alimentos, isso até a hora de ir embora, quando levaria consigo
para ela e o filho aguentarem pelo menos de noite. Até o outro dia e por
assim vai.
Mesmo que a sensação de perseguição se amenizasse, Marile-
ne não conseguiria dormir, preocupada. O susto tinha seu valor, dei-
xando-a em alerta. Seu sexto sentido apontava para novos olhos em
cima de si e do filho. Quando se virou para o lado, deu de cara com a
mochila de Augusto. Brilhando. Nunca tinha notado antes o espetácu-
lo de cores.
Marilene se levantou na ponta dos pés e puxou o zíper com
cuidado. Seus olhos demoraram a se acostumar com a imensidão lu-
minosa. Até que o desenho da caveira surgiu e a assombrou com todas
as dúvidas possíveis. Nada fazia sentido. Não seria lógico acordar Au-
gusto para questionar sobre aquele artefato. No final das contas, toda
aquela confusão tinha um fundo de verdade. E ela, mais uma vez, sen-
tiu-se uma mãe irresponsável. Porque não o confrontou ali de cara.
Deixou suas desavenças falarem mais alto.
Quando tocou o líquido furta-cor, sentiu os pelos do braço ar-
repiarem. Um formigamento deleitoso passeando e contando que tudo
no fim fica bem. Conseguiu deixá-la calma, para que adormecesse e
não pensasse tanto. Eles iriam amenizar sua aflição.
Aquela alma só precisava de um descanso para continuar seu ca-
minho dentre o mundo dos homens comprovando sua íntima existência.
Dentro de um jogo desleal e cru. Uma página qualquer desse manifesto.

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O manifesto do fim do mundo

O crânio foi deixado novamente dentro da mochila por uma


força maior que a de Marilene. Iria segurar aquela família para uma
noite de sono preciosa e necessária, antes dos trovões. Só custaria as
lembranças da mãe, que, ao acordar, contaria com a estranheza de um
sonho absurdo.
Na manhã seguinte, Augusto e ela rumaram para o trabalho,
silenciosos. Algo tinha transformado os dois. Ele com sua mochila e
ela com suas garrafas dentro da sacola. Ambos rumo ao destino final.
Dona Andreia não deixou sequer a empregada respirar ao che-
gar. Já ordenou que fosse na casa de sua mãe, no apartamento chique
da esquina, e fizesse uma faxina por lá. Que demorasse o dia todo, mas
aquilo era prioridade. Marilene não gostou nada da ideia de deixar Au-
gusto sozinho na casa da patroa, até porque Joyce estava com a amiga
Marília. Não ficaria olhando o menino. Muito menos dona Andreia o
faria.
Mas ela tinha dívidas e prejuízos. Sem escolhas.
Pediu que Augusto se comportasse e ficasse quieto. O menino
só assentiu. Estaria protegido com seu objeto mágico que agora não
passava de uma lembrança empoeirada na cabeça da mãe.
As horas foram passando e Marilene não retornou. Ele estava
com fome. Ver Joyce e Marília conversando enquanto comiam, sem
que o garoto pudesse pedir nada, pareceu bem cruel. Ambas discutin-
do sobre redes sociais, sobre as irregularidades no mundo, como todo
o sistema capitalista era cruel. Isso até chegar a um assunto melhor
interrompendo a conversa, a nova tendência stalker. Criar perfil falso
no Instagram para seguir os ex-namorados. As duas meninas riam da
ideia.
Augusto não conseguiu resistir. Venceu a timidez e rumou te-
meroso pelo corredor ostensivo. Chamou Joyce e perguntou pela mãe.

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O manifesto do fim do mundo

A menina, ocupada, respondeu friamente que ela estava na casa da


avó. Claro que ele iria pedir para ficar com a Marilene.
Marilia estava de costas no telefone. A menina não reparou na
face que anos depois iria se tornar familiar, que uma vez iria ajudá-la
com um resgaste, nos primeiros e importantes momentos da constru-
ção desse magnífico e extenso manifesto.
Joyce não estava a fim de levar o menino até o prédio. Apontou
qual era o apartamento e pediu que Augusto fosse sozinho, mandan-
do-o tomar cuidado.
A tardinha começou a cair e o céu já contou com colorações
pitorescas. Um semblante mágico e opulento. Os carros não davam
trégua. Seria difícil Augusto atravessar a avenida. Só ele e sua mochi-
linha.
Até o célebre evento, quando entre as moitas surgiu um rosto
conhecido. Deixou Augusto de queixo caído, arrepiado. Falsa dona Jo-
sefina apareceu sorridente, não disse uma palavra porque seu idioma
era estrangeiro. Só estendeu a mão para o garoto pedindo aquilo que
ele protegia com toda a sua vida. Claro que Augusto iria correr e que
isso resultaria numa péssima ideia.
Proteja os pés do menino.
Um dos carros ainda tentou frear, mas foi tarde demais. Acer-
tou o garoto em cheio, quebrando-lhe as pernas. O acidente foi um
daqueles que parecia impossível de acontecer pelo absurdo do impac-
to. Falsa dona Josefina rumou calma até o corpo e viu o tráfego parar.
Augusto agonizando no chão chorando enquanto o motorista aflito
tentava desculpas perguntando por que o garoto tinha se jogado na
frente do carro.
A interrupção humana era sempre um desastre. Por isso, falsa
dona Josefina amputou o braço para conseguir uma façanha perigosa.

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O manifesto do fim do mundo

Congelou o tempo por toda a extensão da rua. Cada milímetro


de ação pendendo no ar, eletrocutados pela sua mágica particular. Fal-
sa dona Josefina se aproximou do corpinho e finalmente podia dizer
algo ao olhar para o desespero infantil.
Você prefere estender ou morrer para sempre?
Num tom etéreo e metálico. O rosto, antes da mulher, agora
parecia uma tempestade de ondas amarelas, definindo uma forma in-
teligente para se apresentar ao garoto que não estava entendendo nada.
Ele não respondeu. Estava gemendo de dor.
Você prefere estender ou morrer para sempre? Novamente a pergun-
ta.
Augusto não sabia o que responder, só pediu por ajuda. Que-
ria encontrar sua mãe. Ele não tinha culpa de nada.
A criatura assentiu. A resposta não foi tão clara, mas suficien-
te.
O véu do esquecimento em ti será finito. Até o momento célebre do teu
julgamento. Criança do entre.
O doppelgänger disse. Puxou a mochila estacionada no ar per-
to de um dos carros congelados no tempo. As feições das pessoas não
se moviam um segundo sequer. Pareciam estátuas divertidas.
A caveira tinha um dono. Uma vez foi um rosto peculiar. Só
anos depois alguém descobriria. Naquele momento, sua única relevân-
cia foi em derramar o líquido furta-cor em cima das pernas sangrando
da criança. O espetáculo de cores engoliu os membros e começou a
agir, soltando faíscas e celebrando a chegada do novo residente daque-
le mundo em ascensão.
Seus particulares pés de garrafas. Frágeis, mas excelsos.

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O manifesto do fim do mundo

Capítulo 63 –
O derradeiro espetáculo. O
fim do mundo e início de um
novo.

E scondido nas matas, alguns anos depois, vaga o espírito des-


temido contando somente com sua infância interrompida e uma nova
existência. O garoto passeava pela borda das avenidas, escondendo-se
dos adultos esquisitos e conhecendo a dinâmica social das ruas. O me-
lhor horário era a noite, quando o mundo podia aceitá-lo para que ca-
minhasse entre as excentricidades. Os fantasmas, à noite, ficavam mais
fervorosos, mas não se importavam com ele. Na verdade, ninguém se
importava. Nem mesmo o cabeçudo que morava embaixo do rio Par-
naíba, sempre fazendo inveja com todos os seus bonecos de ação e
brinquedos. O garotinho sem nome não tinha história nem perspec-
tiva de futuro, estava à deriva, como todo aquele mundo, controlado
agora pelo esquisito Senhor Amarelo.

457
O manifesto do fim do mundo

Tempos depois, aquela nova realidade, que muito tinha lhe en-
sinado, conseguiu surpreendê-lo. Relembrando-o de algo que ele não
sabia que buscava: amor.
Na calada da noite de um dia qualquer, uma menina surgiu.
Ela era diferente. Enxergava mais do que os outros humanos e parecia
corajosa avançando contra o terreno do chato Rei Cristian. Ele não
entendia o porquê, mas confiar nela pareceu a melhor ideia naquele
momento. A menina parecia tão corajosa e bondosa, e ainda carregava
consigo um artefato poderoso, o tal mapa mágico.
Resolveu tomar uma atitude de coragem e surgiu temendo re-
taliação. Seus pés faziam barulho porque não eram pés normais, e sim
garrafas, brilhantes como um presente do Através.
A menina estava impaciente. Era uma boa ideia ajudá-la.
Quem sabe ela também tornaria a ser gentil com ele de volta.
Ele respirou antes de falar.
— Se você quiser falar com ele, tem que pedir ao rio! — e, de-
pois, cobriu a própria boca pela ousadia.
A estranha menina se assustou. Pediu que ele saísse do seu
esconderijo. Era justo. Mas ele estava receoso, ela tinha pés normais
como o restante e ele consistia numa deformidade esquisita. Mas sur-
giu logo depois com uma divertida contagem regressiva.
Era o início de uma amizade de aventuras. Ambos conversa-
ram e o menino sem nome até ganhou um.
Depois que os dois enfrentaram a fúria do Rei Cristian e con-
seguiram soltar as meninas, o garoto se acidentou com o impacto da
queda. Foi levado para o hospital mágico por uma das meninas, a mais
carismática, chamada Carla.
Dias depois, quando acordou, a médica engraçada de cabe-
los vermelhos se levantou da cadeira. Encarou firme os dois olhinhos

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O manifesto do fim do mundo

abrindo e questionou:
— Geleia? Tudo bem?
Ele balançou a cabeça com um sim.
— Tenho uma surpresa para você.
O menino arregalou os olhos.
— Na verdade, três surpresas especiais, que estavam ansiosas
para vê-lo.
A médica se virou para a porta.
— Podem entrar, meninas. Ele está bem.
E o seu sorriso encantou o restante. Finalmente, com a sua
nova família.
Mas... a que custo?

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O manifesto do fim do mundo

Epílogo

A sala de reuniões branca tinha alguns zumbidos das lâmpa-


das retangulares. A mesa ao centro era oval, completa com dez rostos
austeros e preocupados. O anfitrião chegou acariciando o bigode, mais
velho que da última vez. Preocupações estrambólicas não faziam bem
para a pele.
Marcos apoiou as duas mãos na mesa e se curvou fitando cada
um dos rostos. Todas as divisas do conglomerado com seu represen-
tante. Fernanda ficava com a Divisa do chamado Através. Que nome pe-
culiar...
— Então, estamos prontos para dar início ao Protocolo Atra-
vés? Porque, se não formos agora para destruir ou entender esse mun-
do de vez, ele virá com retaliação total. E vocês sabem disso.
Apontou para o quadro no canto da mesa. As homenagens dos
funcionários mortos em missões.
Você pode adivinhar de quem era o primeiro rosto.
Depois, perguntou para Fernanda sobre a segunda novidade.

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O manifesto do fim do mundo

Todos se viraram para ela.


— E você descobriu um diário? Então, dessa vez, vamos che-
gar ao laboratório fascista, não é mesmo?
A cientista pareceu meio duvidosa, mas aquiesceu.
— Ele não tem muitas informações, mas nos dá um grande
norte. Principalmente sobre como a criatura se envolveu com a família
de dona Josefina.
Depois, exclamou uma preocupação. Marcos não gostou da
feição de Fernanda.
— E qual é o problema? — ele perguntou.
A mulher suspirou, antes de falar.
— Acho que esse mundo não abarca somente criaturas bizar-
ras. — olhou para os colegas quietos, todos de branco — Mas também
nós mesmos. Interessados em algo que todos nós escondemos muito bem...

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opinião! E... Tenha cuidado, o Através, eles e a Família Siraiva-
nesco estão em todos os lugares...

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