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O manifesto do
fim do mundo
2° Edição
2021
Edição e diagramação:
Carlos César
Revisão
Paulo Narley
Ilustrações e capa
Carlos César
César, Carlos
O manifesto do fim do mundo/ Carlos César - 2° ed. Teresi-
na, 2021.
ISBN 978-65-00-18562-1
Prólogo
“De acordo com fontes, o sistema inteligente brasileiro estima que exis-
ta centenas de células terroristas e fascistas por todo o território. Mesmo com
as missões da Divisa Inteligente do Brasil, os grupos vão se multiplicando como
coelhos, espalhando ideais perigosos por todo o país e cometendo crimes perver-
sos. Se você já viu alguma atividade suspeita ou conhece alguém envolvido com
alguma seita fascista, denuncie! Esse é o seu dever como cidadão brasileiro!”
...
“Eles estão nos observando. Você sabe disso...” “Eles possuem sua
própria lógica.”
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...
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Parte 1 –
Bem
longe
de Cristinas,
Marílias ou
Geleias.
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Capítulo 1 –
Será se vem aí?
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baixo do sovaco.
— Opa, senhor Igor, bom dia! – depois, apoiou-se na vassoura,
gesticulou com o polegar para trás soltando aquela careta. Deise era a
pessoa mais alto astral que Igor conhecia, também era conhecida pelos
seus shortinhos jeans sempre com algum broche engraçado e antigo,
geralmente de políticos em campanhas. Era seu prazer culposo.
— Aqui a barulheira não para. — pontuou o assunto. Os pré-
dios logo atrás.
Igor sorriu franzindo o nariz.
— O prefeito tá correndo atrás do tempo perdido. — Ele res-
pondeu.
— E eu vou correr atrás dele com meu facão se ele não respei-
tar os horários das obras. Você sabe, né? Eu moro aqui do lado e vai até
tarde essa bagunça. Um barulho do capiroto!
Igor se despediu contente. Ganhou sua dose de vigor diária.
Deise era a exclamação contando que certas coisas nunca mudariam,
nem com pandemias esquisitas e mortais. Mas um último ponto da
solidária amiga.
— Igor, ei! — Deise chamou.
Ele se virou, fez o gesto com a cabeça para que ela continuasse,
os olhinhos miúdos por conta do Sol.
— Como está seu Antônio? Nunca mais o vi na igreja nem na
floricultura.
Igor esboçou outro sorriso, mais fraco.
— Está bem! Não teve nada mais, paizinho tá bem!
E Deise fez graças com as mãos, por pouco não deixou a vas-
soura cair.
Se recobriu com seriedade, mas Igor não iria dizer para
ninguém que algo já o tinha atingido naquela manhã. Dobrou na
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esquina e não pôde deixar de enxergar a outra rua que daria para perto
da antiga casa de Rafael. Apenas uma redoma interrogativa. Dona Rai-
mundinha sobreviveu à epidemia, mesmo sendo do grupo de risco. E
depois conseguiu colocar em si mais trevas que o de costume.
Para uma cidade pequena Russinha Amada até que tinha pe-
quenos acontecimentos por toda parte, dignos de atenção. Quando
misturava a isso às tramas mescladas, os vizinhos se espevitavam. Se-
riam necessárias duas crises do Rarizes para abaixar a poeira daquele
comprimento.
Igor podia ficar borocoxô, mas não por muito tempo.
A coleção de lojinhas e casas, misturadas entre si porque ge-
ralmente todos moravam onde trabalhavam, era mais uma das heran-
ças que a tecnologia e os novos tempos nunca mudariam. Russinha
Amada se recusava a aceitar as modernidades que uma vez englobou
a tímida Teresina, e agora atacava a vanguardista Piripiri. Dois varais
requebraram com lençóis quando aquela mãe suspirou cansada para o
alto, sem paciência para a birra do filho.
— Nossa, Augusto! Por que você não me disse que sua camisa
estava suja? Meu Deus, o que vão pensar de mim? — disse, puxando
o pano do braço do garoto enfezado. Ele já tinha retirado uma jaqueta
calorenta e a jogado no chão. Fiapos dos cabelos negros da mulher
foram ao encontro da pele do filho, queimada pelo Sol. Era mais bem
cuidado, diferente da mãe.
— Ô, dona Marilene, eu me esqueci. — respondeu com pausas
engraçadas que só crianças sabiam — Coisa chata.
A mulher arregalou os olhos.
— É mãe, viu? Negócio de “dona Marilene”. Vai levar uns tapas
na bunda para aprender a não ser desrespeitoso. — Reprovou entre os
dentes.
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por não terem sido “abençoados” por sua família nem por fiel Jerôni-
mo. A força implacável.
— Você tá sabendo da novidade? Me lembrei agora depois
dessa conversa sobre invasor e tal. — ela disse com um tom de malícia,
de fofoca, baixinho e com sinuosidades na voz.
Igor franziu as sobrancelhas, os poucos lábios sumiram com a
interrogação no rosto.
— O quê?
Marilene se engrandeceu, adorava ser a primeira a dizer.
— Está vindo um ônibus aí de São Paulo... — ela gesticulou
com o polegar para a direção da pista principal, um pouco longe dali
— Parece que o infame ingrato tá vindo!
O nome surgiu na cabeça de Igor, mas ele se fez de desenten-
dido.
— Oras, o Rafael neto da dona Raimundinha! — Marilene ar-
regalou os olhos para que o rapaz a acompanhasse com o “boom” da
notícia. — O seu amigo! Deise quem me contou. O “antipatizante” do
fiel Jerônimo. Se bem que aquele homem não gosta de ninguém que
não esteja naquele grupo de beatas dele. — finalizou com deboche.
— Nossa... — Igor tentou conter a reação. Sempre soube muito
sobre “conter” comportamentos — Que esquisito... Do nada?
Marilene continuou, sensacionalista.
— Já pensou se ele traz uma nova doença? Russinha Amada
passou ilesa uma vez. Na segunda, não sei se teria sorte! Ê putaria en-
doidada que foi esse “Rarizes”. Vírus acabou com muita gente. – balan-
çou a cabeça, informativa. — Minha colega de Teresina disse que por
lá foi um caos.
— Verdade... — Igor sorriu amarelo. Foi se distanciando de
Marilene, retornando ao seu trajeto de ida. Estava atrasado. E agora
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Capítulo 2 –
Um novo dia.
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gar.
Marilene revirou os olhos. O começo de um dia penoso com
faxinas e ela ainda precisava repetir o de sempre. Inconveniente fase
ruim de comparações com a vida de outros “amiguinhos” mais endi-
nheirados.
— A internet é coisa de adulto. Está cheia de esculhambação.
— disse, num tom de educadora. Já tinha se tranquilizado.
— Eu não vou pesquisar xanas nos sites, mãe. — Augusto dis-
se.
E Marilene parou, ajoelhou-se encarando o filho como se ele
acabasse de ter recitado alguma heresia. Novamente, ela ficou contra
o Sol, seus cabelos encaracolados balançando enquanto a pele exibia
franzidos de expressão.
— Como é essa história, menino? Onde você está aprenden-
do isso? — perguntou na ofensiva, contida. Para a sorte do garoto, a
escola estava logo ali perto, e Marilene não iria fazer uma cena. Não
traria mais problemas para ambos, não tão bem vistos pelo restante da
comunidade. — Que porra de palavra é essa? Meu Deus!
Augusto fez bico. No seu infantil raciocínio, percebeu que ti-
nha mesmo ido longe demais. Não era para ele ficar soltando os termos
engraçados que o Bola soltava. Adultos eram sempre muito chatos.
— Anda, Augusto! – Marilene insistiu — Você ouviu isso
onde? Se uma dessas professoras de merda escuta isso você nem ima-
gina o problema que vai dar pra mim.
Por sorte, a mãe esfriou quando avistou, logo atrás, Cecília,
parecia uma boba sempre com seus sorrisos e inocência estampados.
Não saía da cartela entre rosa e branco, e convencia bem o personagem
estereotipado da tutora amorosa que tinha para si. Um coque e óculos
cênicos completavam-na. Sempre andando de forma polida com a saia
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de amiga.
Pontos desnecessários para uma forçada de intimidade.
A professora ficou realmente surpresa, apertou os olhinhos
entre o desdém e a impaciência. Cecília tinha a poderosa habilidade de
ficar doce entre os maneirismos. O que já tinha lhe livrado de muitas,
ela só preferia mesmo ficar numa posição “acima”, da forma como seu
ego sempre mandara.
— Nossa. Quem será que está vindo? — perguntou, lenta, ex-
clamando perfeitamente todas as palavras como uma palestrante. Ha-
via desinteresse na voz.
— Não se faz de doida! É o filho ingrato de dona Raimundi-
nha! — Marilene quase deu um tapinha no ombro da professora, sorte
que estavam distante — Maior bafafá.
— Que surpresa! — Cecília foi rápida na resposta, não queria
continuar a discussão — Ela ficará feliz com essa visita, aposto! — e
foi se distanciando. Apontou involuntariamente para uma quase briga
acontecendo, precisava intervir. Sorrindo com os olhos.
— Marilene, preciso ir, depois conversamos. Mande um beijo
para dona Josefa! — deu um tchauzinho — Ela está sempre muito bo-
nita quando a vejo na igreja.
A outra, coitada, ficou prostrada perdendo o gás do sorriso.
Continuou alguns minutos fitando o exército mirim ao comando da
graciosa pernuda, parecia uma Ema entre anões, o retrato que Marile-
ne criou rápido na sua cabeça.
Quer se aparecer... Se acha a rainha da cocada preta.
Aquelas respostas automáticas e piegas de Cecília, Marilene
bem sabia o porquê. A professora nunca queria se envolver com nada
polêmico, sempre disse achar fofocas irritantes. Era tão complacente
com o circo de aparências de Russinha Amada. E, ainda por cima, sua
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Capítulo 3 –
Giovani, chá e mel.
G
— iovani, pausa.
Igor pediu vendo o amigo nos momentos finais limpando o
freezer, no fundo da floricultura. A sala recheada de violetas coloridas,
até parecia que só tinha aquela espécie.
Dona Josefina tinha ido mais além, bem depois de jarrinhos
colorindo a entrada, ou plaquinhas rosadas que cultuavam o delica-
do espaço. Um lugar amplamente iluminado, bem ventilado e cheio
de cuidados com as protagonistas cheirosas. Seu Antônio tinha com-
plementado com objetos rústicos e decorativos, como cestinhas orna-
mentais e plaquinhas que direcionavam por todas as seções. Bem atrás,
uma portinha roxa que para uma área livre com mais espécies.
— Amém! Já iria desmaiar de fome. — levantou-se limpan-
do o traseiro, deu aquela coçada básica na barba ralinha do queixo,
notando o cheiro do produto de limpeza, um tom parecido com o de
alvejante. Giovani, ao passar, invejou o armário de sensações de dona
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Capítulo 4 –
Perto de você.
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um aceno de agrado para a mãe pelo ótimo trabalho que ela sempre
teve, por ser tão incrível e amorosa para aquela família. Por ter feito de
tudo para ter salvado Márcia, a filha que Russinha Amada perdeu cedo
demais, uma grande colega de trabalho, balconista exemplar, esforçada.
Não tão forte para consigo mesma. Por desde o começo ter sido... Amo-
rosa?
Igor deixou o corredor e um clique da porta fechada cessou o
universo de microacontecimentos antes. Seguiu, um pouco tonto, até
a sala, após a bofetada paradoxalmente carinhosa que tinha levado. A
sala rodopiou até parar, mas a nitidez continuava espontânea, as cores
se misturando perto de uma obra à óleo.
Minutos depois, Igor se voltaria para o único acontecimento
que ele lutava para guardar em segredo. Com as emoções à flor da pele,
tinha tomado uma atitude, perto de ficar face a face com os “antes” de
tudo. Ele e toda Russinha Amada iriam aguardar, com suas divergên-
cias, a chegada de Rafael. Bem perto da estrada de fantasmas, no berço
das despedidas.
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Capítulo 5 –
Perspicaz.
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corria para contar as horas, aleatoriamente, como ela correria pra bus-
car flores, cordialmente. Cíclico, esquisito e louco. O tipo de coisa que
só ela refletia no seu íntimo, o que, por vezes, arrancava-lhe o riso.
De como seria julgada se contasse alguma de suas peculiaridades para
alguém, que não imaginavam que existia uma Marilene bem mais cria-
tiva, um pouco excêntrica, escondida.
Dessa vez, ela recebera uma mensagem de uma colega, Ro-
seana, a vizinha de trás. Não tinha muitos amigos, a notificação a sur-
preendeu, mesmo que o conteúdo nem tanto.
“Mulher, tu tá vendendo parte do teu quintal? Queria fazer
um puxadinho pro meu fi...”
Marilene digitou com dificuldade: “Mulher, eu não tenho
quintal, essa área é para lavar e estender a roupa. Mesmo que eu pre-
cise do dinheiro, não tenho como vender. Mas e aí? Como estão as
novidades?”
E ficou sem resposta.
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Capítulo 6 –
Convergências
He’s coming.
Russinha Amada foi se aglomerando, com brechas soltas. O
carro da desinfecção já tinha passado naquele dia, pouco depois de
quase ter acertado Marilene. As ruas já estavam secas, polidas, só com
pedrinhas interrogativas espalhadas no chão quando os seus morado-
res caminhavam, esmagando-as. Intrigados entre si sobre quem tinha
conseguido a informação de que estava chegando alguém de São Paulo,
e o quão bizarro era “cultuar” aquilo. Mas todos acompanharam a his-
tória de dona Raimundinha, sabiam do peso daquela chegada.
Por isso, todos estavam ali, menos ela.
Eles achavam que não, mas a energia tinha sido mediada.
Murmuravam uns com os outros, respeitando alguma espécie de si-
lêncio que foi decidido no ar com o subconsciente coletivo. Não fariam
cena, como abobalhados.
Deise espiava no canto da porta, tinha visão privilegiada. Na-
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quele dia, muitas pessoas foram comer do caldo de cana dela, com
uma particular aglomeração na frente da lanchonete. Ela tinha coloca-
do seu melhor broche de comício no lado do short jeans. Estava suada
e incomodada com o calor, puxando a blusa para não colar tanto ao
corpo reto.
Marilene levou Augusto para passear, como pretexto. E o me-
nino não fez caso, correu com ferocidade com outros garotos do bair-
ro, não tinham lição de matemática naquela tarde. Ela podia ao menos
olhar para o filho de vez em quando, mas já sabia que ele tomava conta
de si. Qualquer coisa era só voltar chorando.
E Igor, um pouco melhor da tontura que o fez dormir por
algumas horinhas, colou em Giovani. Tinham tanto tempo para ares
livres, que ficavam vigilantes com aqueles que desafiassem sua estabi-
lidade. Ambos também ficaram por ali perto na pracinha, acenaram
para os amigos, todos desconfiados, cada um lendo a mente do outro.
Curiosos. Outros somente mais aflitos...
Finalmente, fiel Jerônimo, autoridade religiosa, indiscutivel-
mente carismático, com uma magreza afiada que entortou sua coluna,
de tanto olhar para baixo salvando almas pecaminosas. O cabelo rali-
nho na cabeça, seus quarenta anos que não o fizeram tão bem assim.
Homem de respeito, engomadinho e de gravata, naquela tarde foi pas-
sar com dona Celeste, sua esposa, dona de casa com a mesma energia
branda da de dona Josefina. Parecia um esquilinho tímido com seus
olhos dissimulados.
Fiel Jerônimo acenou como se estivesse num culto, sentou-se
numa das bancadas quebradas da pracinha, antes do trabalho pesado.
Sim, iriam querer saber sua opinião sobre aquela chegada, foi do mes-
mo jeito quando o esquisito de branco, o tal de Marcos, abordou dona
Josefina para levar suas violetas coloridas. Ele sempre tinha a palavra
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Parte 2 –
Interconexões.
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Capítulo 7 –
O começo, algum meio e ne-
nhum final.
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Capítulo 8 –
Um pedaço de Giovani.
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casas por onde passou. Certa vez, durante uma mudança, por pouco
não caiu da carroceria. Um causo.
Giovani ficou calado, tinha escutado, mas estava concentrado
em Marília e em como ela era estonteante, o cabelo loiro balançando
enquanto retrucava sobre algum texto militante da internet. Sua orató-
ria sabia seduzir alguém.
— Gio? — Danilo repetiu e, depois, fez cara de desânimo —
Você está viciado em internet, já tá marcando encontros com esses
caminhoneiros que chegam aqui? —zombou.
Giovani fez cara feia.
— Tu que fica se pegando com qualquer resto de Piripiri. —
respondeu com a voz azeda. Danilo percebeu que ele não queria con-
versa.
Se sentou na cama ao lado do amigo e também acendeu com o
celular. Giovani, alguns minutos depois, lembrou-se de algo.
— Você limpou as mãos com álcool em gel?
— Se esse fosse o menor dos meus problemas... — Danilo de-
volveu — Você está de deboche?
— Quando estiver por aí esquizofrênico, pegando até mulher,
vamos ver... — Giovani ficou de lado na cama, o celular na frente do
rosto como se devesse toda sua vida ao objeto. A camisa de comício
não conseguiu segurar a barriga e, por isso, encolheu, expondo a sa-
liente.
Danilo revirou os olhos, tinha guardado toda sua lábia para
aquela tarde, já passava ouvindo as fofocas das clientes cabelereiras.
Assuntos na maioria das vezes enfadonhos, a não ser por algumas fo-
focas aqui e acolá.
— Ficou sabendo que uma cutia gordona passeou pelo bairro
hoje? Os filhos da dona Conceição abriram o berreiro com medo. A
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Capítulo 9 –
“Marilene, dona Josefa ligou
para você.”
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sol.
Foi então que, apressando o passo, Marilene abriu a porta de
uma das mais cuidadas residências do outro lado, como se fosse sua. O
rangido acordou dona Josefa. A velha pulou e puxou a baba escorren-
do de volta.
— Diga, dona Josefa. — Marilene fiscalizou a cozinha, imun-
da, com inúmeros pratos sujos. Além dos copos comuns da casa, ti-
nham os que provavelmente nunca seriam tocados por ela, os de festa.
Um detalhe hierárquico.
— Ô Marilene, mais tu é boa pra mim, eu te mandei uma men-
sagem porque eu queria que você me ajudasse... — e saiu se arrastando,
lentamente, atiçando o pavio da mulher.
— O quê? — perguntou, da forma mais desinteressada possí-
vel.
Dona Josefa se apoiou na pia, curvou-se para pegar a cestinha
de flores no chão, as carnes volumosas do braço se balançaram com os
movimentos. A cozinha, imunda, passou batido, a parede com o jar-
dim vertical atualizado parecia apática, com as intimidadoras violetas
coloridas, sorrindo com escárnio. Era uma zona, mas não era proble-
ma de Marilene. Podia acontecer um atentado, mas aquele horário era
sua folga.
A idosa entregou com as mãos tremendo o saco enfeitado e
chique de Fortaleza Florida, assinado pela própria florista.
— Queria que você criasse pra mim um jardim vertical lá na
área de varanda. Dona Josefina veio aqui me entregar pessoalmente e
disse que...
— Dona Josefa, isso podia esperar até segunda! Eu pensava
que a senhora tinha caído e se acidentado! — Marilene interrompeu,
visivelmente irritada. Puta que pariu.
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Capítulo 10 –
Perto de uma colisão entre
mundos.
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sabia dos truques. Porém, o aplicativo, ou quem quer que fosse que es-
tivesse do outro lado, era cativante, instigava-o, sorria do que ele dizia.
Prestava atenção no que ele dizia, de verdade.
Depois que Augusto contou sobre quem era sua mãe, sobre a
vizinhança chata e que existia uma velha bruxa que se chamava Rai-
mundinha com boatos de ser amaldiçoada, o Pontua aqui emitiu um
desafio divertido.
Desenhou uma rota no mapa.
— Eu vou... ter que sair? — questionou com os olhinhos ace-
sos. A papada era a almofada do queixo segurando a cabeça no sofá.
“Sim, Paulo! Vai ser divertido! Por que não descobrir agora uma
nova história? Um novo destino?” A voz feminina disse, apaixonante.
— Mas... A mãe falou que vai me bater se eu sair... e tenho
medo... — Augusto se retraiu no sofá. — Tá de noite, ó.
“Ora, Paulo! Você é um aventureiro! Venha comigo nessa! Eu te
guio e te protejo! Vamos descobrir novas aventuras, não seja preguiçoso!
O Rarizes gostava de pessoas preguiçosas!”
Que sagaz! O aplicativo não se atentou ao argumento de uma
criança que acabara de mentir a idade, falando sobre sua mãe. Bem-
-vindos a 2026.
Augusto pulou do sofá. Calçou os chinelos e correu para pôr
uma camisa, do seu herói vingador favorito, que tinha visto uma vez o
filme numa sessão ao ar livre para a comunidade. Presentes do prefeito.
Pegou as chaves da casa, verificou se não tinha nenhuma capivara ali
dentro, por engano, e desligou as luzes contando para a escuridão que
voltava em breve.
Um barulho de forró ficou mais audível quando ele saiu, vin-
do das bandas do trabalho da mãe. Tinha carros com sons e mais lu-
zes. Depois, muita escuridão, vez ou outra, algum poste de iluminação
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valorize sua cultura e... E.... Paulo...” O celular começou a travar, duas
mensagens de bateria no fim chegaram. O garoto chacoalhou o objeto
como se aquilo ajudasse.
“Valorize... Paulo. Desenterre.” E desligou. Malditas coincidên-
cias como nos filmes. A última palavra foi dita de forma tão distorcida
que lembrou Bola, com suas imitações grotescas.
Felizmente, Augusto tinha um chaveiro que piscava, lembrou
que sempre o carregava no bolso. A luzinha era fraca, mas boa. A intui-
ção do garoto foi direta: que atendesse a esquisita última ordem.
— Aqui só tem é terra. Que aplicativo fuleiro. — reclamou pra
solidão. As violetas se curvavam sempre que uma brisa do ar chegava.
Algumas vezes, dançavam sozinhas. O céu tinha estrelas e mais misté-
rios. O Magnum opus do divino.
Ele começou a cavar com as mãozinhas riscadas, foi tirando
terra, sem saber exatamente o que estava buscando. As violetas espia-
vam, somente. Quem sabe, desconheciam também aquele terreno. Até
que os dedos do menino tiveram um encontrão doloroso com uma
estrutura de cimento.
Primeiro, Augusto esperou, sondou a surpresa. Limpou a área
retangular inconveniente para se estar num jardim. As flores precisa-
vam de terra, não de cimento. E se surpreendeu com uma linha esqui-
sita, rasurada, sentindo-a com o tato. A luz da lua não era suficiente
para que ele enxergasse bem o que era. Ligou o chaveiro e, com duas
piscadas, o facho se firmou, surpreendendo-o.
Achou estranho e... peculiar. O desenho tinha um padrão en-
graçado e familiar.
Seu primeiro contato com o símbolo de um assunto que estu-
daria anos depois. Mesmo que a TV dos últimos anos sempre reviras-
se o polêmico quando debatia “humanidades e política”. O avanço do
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neofascismo.
Os olhos de Augusto se firmaram, contemplando a controver-
sa suástica.
Imediata.
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Capítulo 11 –
Domingo pela manhã.
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Capítulo 12 –
Energias.
C
— alma, Marilene! — Igor marchava com dificuldade car-
regando a mulher transtornada pelo braço. Deise tentava apoiar como
podia, mas Marilene estava impassível. Soltando as piores proposições.
Afirmando que estava sendo observada, que todos queriam, sim, ma-
tá-la! Não era ideia da sua cabeça, mas uma teoria muito fundada.
Russinha Amada tinha um postinho de saúde principal que
fazia ligação com a central médica de Piripiri. Era um anexo estrutura-
do que dava conta de toda a cidade.
Um dos dois médicos levava uma vida pacata cuidando da
vizinhança. Dia de domingo tinha plantão, ordem do governador do
Piauí. Doutor Félix, um quarentão divertido completava o hall de es-
trelas local. No comando. Como a atividade não era intensa nos finais
de semana, ele levava algum bom livro pra ler, ou então seus materiais
de desenho pra rabiscar alguma espécie vegetal pelas bandas. Só sentia
muitas saudades dos churrasquinhos de família em Floriano, mas ossos
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do ofício!
— Doutor Félix, ajuda aqui, pelo amor de Deus! — Deise bateu
palmas na frente da porta com barras. O ar-condicionado do lugar fa-
zia um barulho externo. Podia demorar pro médico aparecer. Mas ele
estava lá.
Só demorou dois minutos para surgir sorridente. Até surpre-
so.
— Opa! O que houve? Igor? Deise? — ele perguntou com uma
interrogação divertida, mas sentimental. Coçou a barba com fiapos
brancos, preenchendo o rosto quadrado. Os dentes brilhavam no sol
de tão brancos. Resultado de anos de cuidado.
— Uma noite de porre. — Deise balançou a cabeça em repro-
vação.
— Eu quero o Augusto! — Marilene berrou quando viu a fi-
gura de jaleco — Os cientistas doidos vieram pegar ele! Vão vir pegas
essas plantas também! É como da última vez!
— Que conversa mais sem rumo é essa, mermã? — Deise pôs
as mãos no quadril.
A tontura em Igor, a figura do humanoide. Rafael. A visita dos estra-
nhos. Foi tudo como num caleidoscópio, rápido, certinho, milhares de flashes...
Tinha algo de errado acontecendo. Bem onde ninguém estava
vendo.
— Ela deve estar relembrando o dia em que os visitantes estra-
nhos vieram aqui. — Igor respondeu, franzindo as sobrancelhas, tenta-
va puxar a mulher para cima quando ela teimava em se jogar no chão.
— Tragam ela. Vou dar um jeito. — Doutor Félix pediu, foi na
frente para puxar a porta e não dificultar o transporte do trio com a
bêbada.
Mas Marilene caiu no sono, não tinha muito o que fazer. Levá-
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Capítulo 13 -
Retornos.
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Capítulo 14 –
Por quê?
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pleto.
O outro sobrou com as confusas violetas coloridas, todas con-
versando entre si se perguntando o que realmente tinha acontecido ali,
e por que aquilo que deveria ter sido dito não foi. A tensão no ar foi
se dissipando, depois que Igor relaxou na cadeira de plástico branca.
Ficou dez minutos digerindo a cena de minutos atrás antes de se situar
no tempo. Entendendo o que realmente fora aquilo. Olhou para o ce-
lular, para as notificações bobas, para o aparelho que ficou tão desinte-
ressante quanto a vida que ele cultuava na tela.
E se levantou, para pelo menos ficar dentro de casa assistindo
a algo, até aquele domingo confuso se dissipar. Lançou a cadeira bran-
ca para o lado, perto do muro dos fundos de fiel Jerônimo, e saiu furio-
so com passadas pesadas. Quando Igor dobrou na esquina iluminada
de amarelo, teve um encontrão surpreso.
— Opa, compadre Igor, o que você faz uma hora dessas no
jardim? — fiel Jerônimo abriu um sorriso estranho. Usava uma camisa
polo e uma bermuda, social demais para ele. Mas era domingo e ele
tinha folga de sua função de líder religioso também. O hálito de café
chegou até Igor, de tão próximo que ambos ficaram.
— Ah, oi, senhor Jerônimo! Desculpe! Eu estava só tomando
um ar, gosto de ficar perto das violetas. Me ajuda a pensar. — Igor
sorriu morno, foi se distanciando contornando o homem. Odiava en-
contros surpresas que requeressem respostas rápidas.
— Sei... Depois venha aqui em casa para a gente conversar!
Vamos falar dos seus deveres religiosos! Vai ser legal, cara! — o ho-
mem deu com a mão. Perto da porta do líder estava uma vassoura, e
a calçada não tinha uma folhinha sequer que o vento trouxe. Apenas
uma breve denúncia de que fiel Jerônimo tinha saído há algum tempo.
E se tivesse ouvido algo da confusão que aconteceu atrás de sua casa?
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Não... Mas ele estava no portão de entrada, o melhor lugar para não
ouvir nada. A cabeça de Igor lhe pregava peças.
— Tá. Tá. Vou sim. — “É mais fácil eu ir pro inferno...” — Pode
deixar, seu Jerônimo!
— Eu vou cobrar, você me conhece! Eu só quero que todos
conheçam o que eu conheci quando fiquei de cara com o Todo Pode-
roso! — sorriu.
Depois cantarolou algumas palavras para toda a plateia invi-
sível que tinha consigo ali na calçada. Antes dos olhares sombrios por
cima e dos esquisitos por trás. Bem no espaço “entre”. Feito pelas mãos
daqueles que tinham o poder do universo, para além de suas comple-
xas ações.
A métrica do tempo.
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Capítulo 15 –
Replay.
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até hoje chora pela perda da filha. O tinhoso não brinca... Ele tá atrás
de mentes fracas, que se doam para esse tipo de comportamento.
— Ah, vai se catar, fiel Jerônimo! Coisa chata do cacete! Nem
tudo é obra do inferno! Realmente, devemos ter muita sorte porque de
todos os lugares no mundo o tinhoso escolheu logo esse cu de cidade
aqui para ser o playground dele! — Marilene reclamou, gesticulando
com a mão. Continuavam distantes, ele e a esposa na pracinha e ela
do outro lado da rua. Sem plateia, pois naquele momento a rua estava
somente para ambos.
Fiel Jerônimo reprovou as palavras balançando a cabeça, com
pena daquela pobre alma resistindo. Continuaria, agarrou firme o livro
sagrado e soltou a mão da cordial esposa. A mulher não hesitou, seu
marido sempre sabia o que fazer. Tinha aprendido sobre quem estava
no controle, continuamente a voz da razão.
Quando o líder religioso levantou o dedo, o portão da casa vi-
zinha abriu com um rangido que engoliu suas palavras. Dona Josefina,
toda de vestido rosado com flores, esquadrinhou a cena, os envolvidos,
a manhã e todos os aplausos do bom dia sorrindo. Tinha algo no seu
olhar que a deixava confiante. Um tanto quanto melancólica e, às ve-
zes, superficial.
— Bom dia, queridos! — fiel Jerônimo sorriu quando ela falou.
De uns tempos para cá notou a personalidade festiva e materna bem
aflorada da vizinha. Aquele olhar de doçura que o deixava “atraves-
sado” e que sempre dizia que podia carregar todos os problemas do
mundo. O que tinha acontecido quando seu Antônio resolveu ficar menos
em cena? Uma mulher tinha aflorado.
— Oi, dona Josefina! Amanhã venho aqui buscar as flores da
dona Josef...
— Marilene, como você está? — Josefina interrompeu. Pôs a
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Capítulo 16 –
Augusto e sua novidade.
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Oras! — Augusto fez uma dancinha para os lados com a cabeça, con-
trariando o amigo — Se quiser descobrir, baixa o aplicativo e vai atrás!
Preguiçoso.
— Deve ser bem o símbolo dos veadinhos. — Bola cutucou
Milton e os dois ficaram contra Augusto.
— Pois é.
— Podem tirar onda aí, eu não vou contar. Enquanto vocês
ficam de graça aí, eu vou descobrindo todos os segredos de Russinha
Amada. Esse de sábado foi pelas terras de dona Josefina e do biruta
Jerônimo.
Bola arqueou as sobrancelhas, Milton o imitou no gesto estu-
pefato.
A conversa perdeu o tom de brincadeira.
— Respeita o líder Jerônimo, pô. — lançou o sermão.
— É mesmo. O cara faz mais que o prefeito.
— Ele é muito é um pé no saco. Fica só de perseguição com a
minha mãe. — Augusto cruzou os braços.
Bola e Milton soltaram uma risadinha de escárnio.
— Tua mãe só fica por aí bebendo e criticando o cara. — Bola
soltou — Eu e a mãe vimos ela dando o maior show perto da igreja,
parecia uma maluca. Eu aposto que ela passou a noite enchendo a cara
no bar do seu Osvaldo e flertando com os borracheiros.
Augusto foi cerrando o punho, de rosto franzido. Se levantou
para ficar cara a cara com os dois de uma vez.
— Como é? Tu tá falando mal da minha mãe? — perguntou no
seu limite.
— Eu só falei a verdade. Todo mundo sabe... — o Bola ficava
cada vez mais cínico. Com o sorrisinho de canto para Milton.
Augusto engoliu em seco, foi se dividindo, entre aceitar a ver-
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Capítulo 17 –
Notações.
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tinhas na área de lazer, mas depois tinha ficado triste. Igor não sabia
bem o motivo, foi tão rápido. Ele não queria acenar nem nada do tipo,
estava tristonho na sua cadeira de balanços e encheu os olhos de água.
Mas dona Josefina tinha visto e balançou a cabeça. Se aproximou do
filho, ele no quintal, perto da árvore que soltava bolinhas amarelas,
cheias de lagartas de fogo. O terreno cimentado e com divisas de ra-
chaduras. “Você vai ficar aqui, e eu vou entrar. Não atrapalhe!” As pala-
vras eram quase aquelas, Igor não teve precisão. Podia ter aumentado,
estava emotivo naquele momento. Mas a repulsa no olhar estampado
de Josefina era visível. A mãe nunca tinha ficado tão humana em anos,
com poucos momentos como aquele. Ela evitava olhar para ele, mas
quando o fazia, enxergava através dele. Já ele não se recordou do que
houve depois.
Quando os pais sumiram. Como o restante da efêmera recor-
dação.
— Eu vou ficar um tempo cuidando das rosas, preciso de pri-
vacidade. Tirem o restante do dia de folga! Podem até ir ao Poço das
Cunhãs! — ela continuou se esquivando. Caminhou celestial até a por-
ta dos fundos, antes um último aviso — Não venham para cá! Vou
mexer com fragrâncias! Por favor! Não atrapalhem!
Não se meta! Humano!
— Obrigado, dona Josefina e... — Giovani foi murchando
quando a chefe bateu a porta.
— Gio, por que você não vai para casa? Eu passo lá depois! —
Igor pediu com um sorriso forçado.
— Beleza! Obrigado, Igor! Qualquer coisa você me avisa, tudo
bem? Por favor, qualquer coisa mesmo! Você sabe que eu não tenho
preguiça de trabalhar e...
— Eu sei, eu sei. — Igor foi interrompendo o amigo.
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Capítulo 18 –
Inflamações.
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— Filho?
Igor se tocou do tempo, não iria arriscar mais ali. Era inútil,
estava batendo a cabeça na parede. Mas pelo menos confirmou a nova
situação dentro de casa que, sim, aquele perímetro se inverteu, como
o indivíduo adoentado daquele quarto. Que nunca tinha sido o seu pai,
nunca.
Depois que saiu do cômodo e correu para o seu quarto, a cena
anterior foi se despedaçando. Igor anotou os detalhes que ficaram. Os
rabiscos foram ligeiros até morrerem, com o seu cérebro cheio de difi-
culdades. Em minutos, era como um sonho, tinha sido vivo e memorá-
vel até o seu último momento. Depois, só ficaria a sensação, e dela não
se extraía muito. Só o medo.
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Capítulo 19 –
Momentos conflituosos.
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Mais.
Danilo poderia pedir que o amigo se acalmasse, ou então até
levasse na brincadeira como sempre fez para que os problemas entre
eles nunca tivessem o peso que tinham. A vida de ambos já era dura
demais para mais um extra. Mas aquele comportamento foi inédito e
cabível. Porque Giovani, sempre muito receoso com doenças, perdeu
toda sua família pra muitas enfermidades. Agora tinha chegado ao seu
limite.
— Bicha, se acalma! — Danilo recuou, continuou na defensiva
sem reconhecer a figura familiar — A gente pode ir para a urgência
agora, no postinho!
Giovani olhou para um ponto fixo no teto. Se perguntou quan-
do foi que começou a se transformar em variações de vegetais. Tam-
bém quando Danilo se tornou um estranho esquisito. Dentro da sua
visão, variando todas as formas, a loucura foi como um espiral, des-
cendo até o infinito. Suava frio. As mãos tinham engordado. Cheias de
calombos, com protuberâncias esquisitas.
Outros sintomas só foram vistos por Danilo. Ele esfregou os
olhos, balançou a mão para que a miragem passasse. Os olhos sensíveis
com a luz, mesmo que uma nuvem interrompesse o Sol, para o espetá-
culo que estava acontecendo no quarto. Com os devaneios de Giovani,
suas próprias loucuras, e o que estava irradiando para Danilo. Eram
duas energias sobre um mesmo evento.
Quando o outro saiu da cama, correu para a cozinha. Procu-
rando exatamente o que iria finalizar de vez com a sua dor. Violência
urgente.
Lembrou-se, e ele não sabia o porquê, de Marília. Parecia um
pequeno curativo para o emaranhado da cabeça. Num total acesso de
loucura, enquanto aquela adolescente loira dava dicas de produtos de
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pele, conversava sobre como estava triste, pedia que os seus seguidores
desabafassem com ela. Queria se tornar próxima deles. Assuntos bo-
bos da tangente.
Giovani foi lançando as palavras duras consigo. E Danilo se
encolheu para proteger-se também de sua própria cabeça, enquanto
sua visão era comprometida com um acesso luminoso que inundou o
quarto, sem conhecer a fonte. Ele não enxergava o que o amigo pro-
curava na cozinha. As palavras cruéis que lançava contra si tinham
muitos pauses, não conseguia elencar todas. Mas Giovani falava
sobre maldição, que deveria mesmo morrer porque era a escória da
sociedade. Inúmeros absurdos.
Com a faca em mãos, a pobre mente perturbada saiu com
ideias. Escancarou a porta, o corpo de fachos do Sol o engoliu, antes
de cegá-lo. Giovani saiu disparado na rua, bufando como um touro
raivoso. A testa molhada.
O terreno era cheio de pedrinhas, traiçoeiro. Furavam o sola-
do do pé e a tinta humana vermelha maculou a arena, grudando o que
podia de areia. Conseguindo um rastro para ele. Os vizinhos saíram na
porta, gritavam, zombavam. Uns ficaram só consigo torcendo para que
o que quer que Giovani fosse fazer que fizesse com um belo tiro final.
Exatamente na borda do fim do mundo, numa encruzilhada,
Giovani chegou a uma espécie de estopim. Esquizofrênico. Deu duas
voltas com a cabeça, fitou bem as árvores crescendo e diminuindo e
observou longe uma espécie de cavalaria, para escoltá-lo. Inúmeros
vaqueiros com armas e coragem em mãos. Como os homens que lem-
bravam muito a infância crua e quente de sertão, no único lugar onde
não deveria ter nascido como flor.
Quem quer que fosse que estivesse ali, não sorriu de volta para
ele. Os animais arrodearam Giovani com uma formação. Aguardaram
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Parte 3 –
Momentos
perto do
fim do
mundo.
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Capítulo 20 –
Espetáculo.
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Capítulo 21 –
Algazarra.
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sem, que eles atenderiam os pedidos para que aquela alma não ardesse
TANTO no fogo do inferno.
Depois delas, o restante da vizinhança. Alguns com celulares,
outros com amigos, as crianças com suas barrigas de fora, os rostos
sujos de areia e suor, tentando digerir a violência incomum e rara.
Como uma segunda-feira tinha se transformado naquilo? Era
simplesmente inacreditável. Há algumas horas, aquele mesmo Giovani
estava vivíssimo e empregado, mas agora só tinha um corpo ensan-
guentado e uma faca há poucos metros. A massa ensanguentada para
fora. Não sabiam se eram pedrinhas ou vísceras.
E Danilo, cego, chorando, pedindo por ajuda para ele e para
o amigo. Duas vizinhas o acudiram, mas elas não sabiam dizer se ele
estava em si, se realmente tinha perdido a visão para a luz absurda ou
se não era o charme do drama da morte. Era mais inédito observar
como um corpo fica depois de golpeado com faca. A sensação de se
aproximar daquilo só tinham visto nos filmes, mas agora estava ali a
realidade crua, sem nenhuma trilha sonora. Era só sangue, miséria.
Um final abrupto, sem sentido.
Marilene chegou e falou com Deise. A amizade de uma via que
tinha se esfriado. Ainda assim, conversaram. Augusto se soltou por
minutos, curioso sobre a cena.
— O que aconteceu? — finalmente alguém perguntou.
— Eu o vi correndo, ele se matou. — uma vizinha disse, ofe-
gante, tinha alcançado o topo do seu nervosismo — Ele pegou a faca
e cortou a barriga e a garganta. Ele... — e caiu no choro, pelo peso das
próprias palavras.
— Por que ele faria algo assim? — a beata dona Jesus pergun-
tou, era uma das de marrom. Tinha uma verruga no canto dos lábios,
engraçada, próximo do bigode. Se aproximou de uma conhecida.
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Capítulo 22 –
Colapso.
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embora para Teresina atrás da vida das cidades grandes. Era lá que o
progressismo tinha suas diretrizes. Não iriam ser tão julgados e passa-
riam “imunes”.
O que aconteceu depois Marilene não recorda. Mas ela só evi-
tou Giovani. Sua presença tinha um tom de ameaça. Depois que Deise
contou do sermão de fiel Jerônimo, sobre os perigos de uma tal ideo-
logia de gênero, ficou mais atenta ainda. Para que aquela presença não
atingisse tanto sua vida. Podendo “influenciar” seu filho ou acarretar
para si uma imagem negativa mais forte só por andar com ele. Giovani
era só um conhecido, não iria desprezá-lo, mas também iria evitá-lo.
E agora ela era um novo alvo. Sabia disso. Sempre assim.
Marilene realmente temeu as palavras macabras. Faziam sen-
tido. Se o Rarizes era uma praga, finalmente chegou para aquele povo,
trazido definitivamente por Rafael para exterminar os impuros. Sofri-
mento e contas para pagar nunca são demais pro pobre, sua mãe disse
certa vez. O momento de cada um iria chegar. Mas ela não se encaixava
em Russinha Amada, nunca se encaixou. E, infelizmente, seu filho
também não.
E agora, no berço da morte, a dor era não poder conversar
sobre o acontecimento. Deise não tinha dado abertura, e Marilene não
era idiota. Só falou com ela na lanchonete por respeito, mas algo tinha
mudado. Estava sozinha, sem marido, sem pais, e com muitas despesas
para arcar, além de um filho travesso e nada inteligente. Esperto somen-
te “para o mal”, como dizia.
A cena se dissipou quando retiraram o corpo. Silêncios foram
contabilizados para uma espécie de julgamento final. O dia iria conti-
nuar sóbrio demais. Alguns galhos secos se comportavam como tre-
padeiras salientes, enroscavam-se vertiginosamente quando o céu as-
soprava para uma reação à distância, mesmo que o alerta do esquisito
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Capítulo 23 –
Finalmente, Giovani, chá e
mel.
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as desgraças. Nunca perdia o seu jeitinho doce e meigo, por mais que
todos atentassem contra ele.
Giovani corria para se esconder de Fuxico nos pés de caju.
Segurando-se para não cair a cada golpeada com os chifres do bode
violento. Sentia o desespero quando avistava Adão indo pro riacho,
deixando-o sozinho com aquela ameaça. Seu Ronaldo soltava o bode
e ele ia direto como um touro até a casinha pobre do outro lado. Viu o
inimigo mortal matar galinhas com suas disparadas para tentar atingir
o garoto. Era um campo minado, dominado pela besta. Aquelas pupi-
las horizontais que pareciam a marca do demônio quando o encara-
vam lá do cercadinho.
Até o bendito dia, quando o confronto mudou de ares.
Danilo sentiu um tremor gelado ao lembrar da mesma cara
divertida que Giovani fez ao contar aquela história. Mesmo no ápice de
sua desgraça, ele ainda tinha aquele sorriso de manteiga.
Numa manhã dessas em casa, depois dos diários de persegui-
ção, Adão avisou ríspido para o filho que ia dar uma volta no riacho e
que o garoto não fizesse nenhuma arte com Fuxico, senão apanharia.
Dona Maria tinha ido à Parnaíba, fazer as compras. Foi de carroça com
a bondosa dona Núbia, uma vizinha altruísta.
Seu Ronaldo soltou Fuxico. E Giovani, preparado, já tinha fe-
chado a porta. Colocou duas cadeiras e empurrou um pouquinho o
armário. Não iria precisar ficar numa batalha de horas com o animal.
Se abrilhantou com a ideia, tinha a casa só para si. Como nunca tinha
pensado nisso?
Na sorte, a oportunidade... hora de mexer nas coisas da mãe,
nas roupas e nos calçados polidos e bonitos. Amava aquelas cores,
mesmo que fracas. Os desenhos das estampas ficavam bem com tudo.
Um universo de sensações e recolocações.
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tamente da região onde só tinha mato e seca. Das bordas do Piauí, por
onde ninguém nunca mais passou.
Porém, Danilo pensou, bodes não falam... Profecias não são reais e
Giovanis não se matam.
O restante daquela vida foi repleto de violências, umas tímidas
e outras mais agressivas. Chegou a se juntar com um homem que o
espancava para que agisse como mulher até que se separaram. Depois,
mudou-se para o interior de Picos para trabalhar numa fazenda, mas
disseram que tinha se envolvido com uma figura importante e por isso
teria sido enxotado. Não conseguiu entrar nos limites de Teresina, não
de forma clandestina, e parou em Russinha Amada, mendigando por
um prato de comida e com uma severa ferida nas costas que precisava
tratar depois de uma surra de cano de ferro. Porque mexeu no lixo de
um restaurante em Piripiri.
Danilo também era gay, mas seus privilégios e sua história o
contemplavam com mais respeito. Giovani era um eterno lutador, ba-
tendo de frente com a vida na contramão. Andando na beirada invisí-
vel da história. Protagonista somente de sua vida, mas ainda assim, um
grande espetáculo.
E aquela história do bode. As pancadas que recebeu. Toda a
violência deveria ter afetado Giovani, como fez com Márcia, cada um
com suas próprias narrativas miseráveis. Vítimas que só eram nota-
das porque a cidade era pequena demais. E agora, no fim da história
do amigo, Danilo só tinha fotos, uma desconfiança sobre o seu estado
mental por conta de tantos abusos e o medo de ser o próximo. Porque
o cerco conservador estava se fechando.
No fim, a questão. Rarizes fez Giovani “escutar” as palavras de
um bode? Um absurdo a ideia. Mas a humanidade estava tão descon-
fiada, mesmo quando vacinada. Todos os centros mundiais tinham se
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contavam outra versão dos fatos. Não iriam para qualquer jardim nem
para terrenos secos, eram superiores a qualquer espécie naquele mun-
do estreito.
No fundo, Giovani era inocente. A criança medrosa do inte-
rior de Parnaíba viveu para sempre até o último suspiro.
— Nossa... — uma pontada na cabeça apagou toda sua linha
investigativa. Estava quente, quente demais. O calor não perdoava nem
nos dias de desgraça.
Perto da cama de Giovani, onde as lembranças foram ganhan-
do mais força e o amigo foi subitamente levado para uma tristeza, um
aparelhinho vibrou. Como se tivesse se dado conta naquele momento
do peso da situação, Danilo quis vomitar, foi chorando até o objeto e o
pegou com raiva. Maldizendo toda aquela sucessão sangrenta e absur-
da. Dando o último ponto final.
Uma vez tinha ficado no passado. Agora somente as lembran-
ças. Os amigos não sairiam para beber em Piripiri, não reclamariam
da moto com o pneu murcho de Danilo, não dançariam azarando os
idosos assanhados no forró dos velhos. Tudo tinha evaporado, por
conta de um ato no escuro.
Sua própria cabeça o levou.
Danilo limpou os olhos encharcados, chorando como um
bebê. Olhou com a visão borrada para o celular e viu algumas notifi-
cações.
Desbloqueou a tela e eram mais e mais avisos de postagens de
Marília, a tal digital influencer preferida de Giovani. Aquilo foi cres-
cendo dentro de Danilo, quando passou o dedo para todo o feed com-
portado e organizado da garota. Com todos os comentários do amigo
que foram esnobados por ela. Ele sempre tentando participar daquela
vida perfeita, tentando ter exatamente um pedacinho do céu quando
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Capítulo 24 –
Momentos antes.
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Também para ficar de olho em você. Ela me falou que o senhor des-
maiou por conta de um estresse. — Roberta pôs os pratos na mesa,
para colocar as mãos na cintura. Entre estar preocupada e desconfiada.
Igor não sabia no que pensar primeiro. Mas foi em qualquer
direção.
— A mãe nunca faz isso e... Onde ela foi? Cadê ela? Por que o
quarto do pai tá fechado? Cadê o pai? — foi atirando.
Roberta correu para amparar o rapaz, viu que ele balançava
como bêbado. Puxou-o pelo braço até os sofás branco. Quando perto
do móvel tratou de se afastar para não triscar, tinha medo de sujar
aquela imensidão cara e reluzente. Só Igor podia se jogar nele. Era o
patrão.
— Calma! Eu vou fazer um chá para você. Sua mãe foi resolver
a questão de Giovani. — Roberta disse com a voz mórbida. Com o ti-
que de limpeza, passou o dedo na mesinha com porta-retratos ao lado.
Estava impecável, porque ela era uma boa faxineira. A face do velho
barrigudo e de uma família repleta de aspas.
— Giovani? Como assim? — Igor ficou mais confuso. A cabe-
ça dobrou em rodopiar. As maçãs do rosto estavam vermelhas, parecia
até que entraria em combustão.
— Ué? O senhor não sabe? — Roberta fez cena.
— Que “senhor”, Roberta. É “você”. Eu já te disse! — Igor cor-
rigiu.
— Ah não! Eu não consigo, o se... Você sabe! Me deixe chamar
de senhor porque facilita a minha vida e a de todo o restante. Sua mãe
deve fazer caso e...
— Roberta! O que aconteceu com Giovani? — se não inter-
rompesse, a mulher divagaria até o infinito.
— Ele se matou. Golpeou o pescoço e a barriga. Sangue pra
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todo lado.
Igor perdeu o ar. Ficou imóvel, sentindo os braços não fazerem
mais parte dele. Seus olhos arregalaram enquanto a boca perdia o con-
trole.
— Giovani se matou? Quê?
Márcia...
— Como assim? Que porra foi isso? Que horas? — quis se
levantar, mas a cabeça o golpeou de novo. Soltou um palavrão só para
si, mas quem deveria ter ouvido era quem fez aquilo com ele.
Foi como voltar no tempo.
“Que porra...”
A mesma sensação ruim de se aproximar da morte, como
quando ele viu o corpo sendo carregado do jardim ensanguentado, tão
entregue ao tempo e ao sangue. Márcia tinha tirado a própria vida, a
cidade entrou em ebulição. Fiel Jerônimo surgiu com suas respostas
celestiais e etéreas. E a mãe completava, dentro daquele tempo, uma
espécie de conclusão de mudança identitária, moldando sua personali-
dade até chegar em quem é hoje, bem longe da avarenta e fria de antes.
Tinha seus resquícios, mas todos precisavam notar que ainda assim a
virada foi brusca. O peso da morte mudava mesmo a todos. Giovani
tinha razão.
Foi o que ele disse para um Igor sombrio.
— Sua mãe não tem sorte. O segundo suicídio de funcionário
da loja. Ela devia pedir pro fiel Jerônimo benzer aquele lugar. — Ro-
berta disse e voltou para cozinha. Amava ser a voz da razão e terminar
em grande estilo, saindo de cena — Mas não diga que eu disse isso,
pelo amor de deus!
— E... — Igor tinha dificuldade em perguntar, perturbou-se
deslocando os olhos para toda a sala, como se o lugar oferecesse al-
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guma resposta — E... E o que diabos estão fazendo? Fiel Jerônimo foi
para lá também? Como Danilo está?
Roberta soltou um barulhinho atento e inspirado antes de
contar algo sério. Teatral, Roberta... Teatral.
— O fiel Jerônimo disse que isso é a segunda vinda do Rarizes
e que, se não tivermos cuidado, vamos sofrer agora o que não sofremos
durante a pandemia. — entregou — E sugeriu que a culpa é de Rafael.
Ele quem deve ter trazido essa mutação do demônio para cá... E que ela
atinge pessoas mais... Vulneráveis... Oh meu pai.
As panelas se batiam porque Roberta lavava com afinco. Tam-
bém para dar um ânimo a casa. O barulho tinha o poder de vibrar um
cinza morto.
— Eu vou até voltar a usar minha máscara. Vai que é mesmo.
Nunca se sabe, senhor Igor.
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Capítulo 25 –
Noite adentro.
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uma ideia, fortaleciam suas raízes com água e esperança. Que não su-
bestimassem sua altura mediana, com um caule retorcido até o solo
cheio de umbus. Queriam falar com Igor, mas precisavam de clareza.
Sobre feridas como as daquele dia.
Igor passou a mão nos cabelos alinhados, respirou para o ba-
rulhinho da água escorrendo entre as pernas dentre as bordas da lagoa.
Grilos e coaxares completavam a composição, tinha escuridão, mas
não entregava temor. O lugar era mágico, pronto para acontecimentos
felizes, não para as trevas. Olhou para o reflexo tremido da Lua, assim
como o seu, e a imaginação foi divagando. Recriando a manhã de do-
mingo dos seus onze anos. Ao redor do dedo molhado de Deus, uma
área protegida por simbioses da seca, e mais espécies adaptáveis ao
calor.
Mas vejamos um interessante paralelo. Para compor o tal ma-
nifesto prepotente.
Igor, um magricela loirinho daqueles que os grandalhões ado-
ram pegar no pé. A idade do início das descobertas, uma explosão de
hormônios e incertezas.
Quando dava dez da manhã, o ápice do conforto de Deus, e
o tempo era como uma almofada de penas de ganso, procurava seu
caderninho, seu lápis e corria para o quintal de flores de dona Josefina.
Tinha uma garagem grande, sem teto, para entrar caminhões e carros.
Era um local espaçoso e ventilado, pronto para tecer lembranças de
famílias felizes no verão.
Quem era seu companheiro? O cão. Carlito. Um salsicha di-
vertido e marrom, que arrancava fofura com o seu andar, rebolando e
faceiro. Era o verdadeiro amor de Igor, o seu melhor amigo depois de
Rafael. Carlito passeava nas pernas do garoto enquanto ele desenhava
e explorava a região das flores, imaginando narrativas complexas sobre
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Capítulo 26 –
Quem é você.
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foram também para o bolso da sua calça folgada. Depois de dias, ele
continuou com roupas largas e pesadas. Era como esnobar o tempo de
Russinha Amada.
— Cai fora, Igor. Que inferno! — foi na frente, arranhando-se
quando mergulhou na mata seca.
— Você vai continuar com essa merda de postura, se isolando
de tudo e todos? Vai continuar agindo que nem um estranho e...
— Se cala, porra! — parou no meio do caminho.
Igor ficou mais furioso ainda. Cerrou o punho, aquele rosti-
nho quadrado estava pedindo por um soco.
— Se cala? Tá todo mundo na cidade pensando que você é
doente e...
Rafael riu. Continuou de costas. Depois de alguns minutos,
Igor não soube dizer mesmo se era um barulhinho de deboche ou
preocupação. Já não conhecia a nova versão mais sombria do amigo.
Tantas variáveis.
— Vocês não mudaram nada. — disse.
— E você já mudou o bastante, né? Com essa pose bosta de
amargurado. — Igor continuou alfinetando — Eu vou descobrir o que
te trouxe aqui! Se a doença realmente tiver vindo com você, eu nunca
vou te perdoar e...
Rafael agiu. Se virou e foi caminhando na direção de Igor, com
uma força esquisita ao redor, repleta de eletricidade nostálgica. Fez o
outro se lembrar de quando ele perdia, ficava furioso com derrotas.
Levantava os ombrinhos e fazia bico, porque a pior parte era a humi-
lhação depois. Mas era diferente. Naquela época era baixinho e agora
parecia um boneco de músculos, os ombros largos. Um protótipo do
exército.
Igor, mais franzino, arregalou os olhos e se encolheu com os
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braços na frente, afinal, se levaria um soco, pelo menos depois iria re-
vidar. Mas Rafael passou direto por ele, pegou um objeto brilhoso do
bolso, um dos que escondeu antes e o lançou no lago. O pingente ra-
diante voou alguns milésimos de segundos no ar e tocou com força a
água. O primeiro impacto foi natural, de uma gotinha. Até os próxi-
mos segundos dos raios de luzes.
Uma fumaça saliente passeou fantasmagórica. Parecia uma
canção reverberada, da nota mais aguda para a mais grave, até o fecha-
mento com excelência dramática. A substância circulou todas as raízes
encurvadas com sua aparência etérea. Foi invadindo a mata seca, ilu-
minando com um verde esmeralda ao redor. Alguns bichos acordaram
e se esconderam com a perturbação. O umbuzeiro estremeceu e derru-
bou alguns frutos.
— Isso é veneno? Que porra é essa? — Igor caiu de bunda,
nem ligou para as pedrinhas pontudas.
Rafael parecia indeciso nas suas expressões. Sentou-se com
mais calma, bem do lado do velho amigo.
— É não. É uma substância de detecção de veneno. — disse,
como se Igor tivesse ciência de algo daquele universo — Vou ser bem
direto com você, sem joguinhos. Está aí o motivo de eu ter vindo. Sou
pesquisador numa grande empresa e vim estudar um pouco sobre a
natureza daqui. — Rafael completou com um jeito frio — Pronto. Sa-
tisfeito? Fiquei sabendo da morte de um cidadão daqui... Queria que
você me ajudasse.
— Espera... — Igor se afastou com o rosto interrogativo —
Empresa? Que empresa? E como você sabe do Gio? Ninguém aqui fala
com você e...
— Até parece que os vizinhos não berram. Nesse fim de mun-
do, qualquer acontecimento é praticamente canonizado. Também sei
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Foi mais forte do que ele. Uma vertigem vinda do escuro que-
rendo invocar alguma epifania, deixando-o com um enjoo, embriaga-
do. Pareciam os estalos de dedos de dona Josefina que sempre causa-
vam uma revolução esquisita de sensações. Há tempos interrogativos.
Igor apaziguou a expressão. Ficou alguns minutos fitando Ra-
fael e sua história absurda e o deixou, também ficou para trás qualquer
lembrança que o prendesse ali. Semelhante a um pequeno colapso,
como se tudo o que aconteceu naquela noite não passasse de mais um
absurdo, igualzinho à morte de Giovani.
Antes de manifestos, todos tinham uma rotina comum e enfa-
donha. Russinha Amada não aceitava que corrompessem suas crônicas
cotidianas, mesmo no tecido fino de complexidades que aquele novo
ambiente se tornou.
Igor voltou pela pista asfaltada. No horizonte as luzinhas ama-
relas da mistura de Russinha Amada com Piripiri. Do outro lado, so-
mente a escuridão embalada com algumas canções de terror. O vento
gélido demais para o verão. Não tinha nenhum grilo ou qualquer outro
animal pontuando sua presença. Uma pista solitária que virou de ca-
beça para baixo, para alguma dimensão criativa submersa dentro da
cabeça de Igor.
Assim que dobrou na rua da lanchonete de Deise, passou pela
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Capítulo 27 –
Uma linda manhã.
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vinha de fora.
— Dona Josefina vai vir aqui qualquer dia desse, pra trazer
umas dessas flores fodidas que ela tem. Finja costume! Não vai me en-
vergonhar! — soltou enquanto puxava a barra da camisa delineando
bem os seios, grudada no seu corpo esguio. O shortinho jeans era des-
fiado, combinava com a estampa de comício. Como Marilene maquiou
em sua cabeça.
— Mãe, eu acho aquelas flores mó zoadas. — Augusto riu —
Pesquisei no busque ponto com e não achei nada delas. Estranho, né?
— Zoadas, mas trazem dinheiro para dona Josefina. Queria
eu ter encontrado elas! Tinha vendido para aquele estranho bigodudo
de branco na mesma hora! Que se foda esse negócio de sigilo e “bem
emocional”! — Marilene soltou meio aborrecida. Eles fazem isso porque
têm dinheiro, e rico pode pensar em sentimentos, pobre não...
— Bigodudo de branco?
— É, um esquisito que veio aqui uma vez para estudar as flores
e... — se deu conta de que já estava de muita conversa. Daquele jeito,
atrasando-se sempre, dona Josefa iria antipatizar mais ainda com ela.
Pelo menos dessa vez não precisava levar Augusto — Depois te falo. Já
vou porque tenho hora! Me dá esse celular.
O menino fez cara de pidão com os olhinhos.
— Mãe, por favor...
— Ficou maluco? Você está de castigo! Me dá essa merda aí,
anda... Que tipo de mãe faz as vontades do filho enquanto ele tá sus-
penso, hein? — Marilene tomou o celular das mãozinhas gordas.
Augusto cruzou os braços em protesto.
— E vai estudar! — Marilene abriu a porta, antes do último
recado — Não abra pra ninguém! Não saia de casa e não apronte! E
fique. Bem. Longe. Do. Bairro. Das. Flores.
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Fiel Jerônimo, maldito fiel Jerônimo. O tempo todo fiel Jerônimo. Tudo
envolve fiel Jerônimo...
Marilene não emitiu nenhuma opinião, mesmo inquieta. A
sensação que reverberou naquele momento foi a de estar dentro de um
grande paralelepípedo espelhado enchendo de água. Lá fora alguém a
observava se afogar, curtindo aquela desgraça. O vidro era impenetrá-
vel, iria morrer ali. Pedindo por ajuda. A visão dissipou segundos em
seguida.
— E você deveria começar a ir nas celebrações de domingo...
Eu já lhe disse. Seu jeito meio entortado não está sendo muito bem
visto pela comunidade, nem por fiel Jerônimo e...
— Que se foda ele! — Marilene soltou, agora furiosa também
com Deise — Esse homem quer dar conta da vida de todo mundo. Que
palhaçada é essa? Ele se diz tão da paz e do amor, e não quer deixar o
falecido ter todas as cerimônias da própria morte.
Deise deu um passo à frente, foi hostil.
— Você devia começar a respeitar ele. A porra do prefeito da-
qui só serve pra permitir essas barulheiras aí desses prédios que estão
sendo construídos, não vem aqui, não faz nada por essa comunidade.
Fiel Jerônimo está à frente de tudo por escolha própria, por querer aju-
dar. Ele sabe do que é melhor para essa cidade, e você parece que está
aérea. Não sabe de nada.
— Eu não sei? — Marilene recuou com a cabeça. Foi aumen-
tando o tom de voz. — Quer dizer que eu não posso escolher não ir à
igreja.
— Até minha mãe já pediu para eu não ficar de licute conti-
go. Todo mundo fica falando, Marilene, porque te vê assanhada pros
bêbados lá do bar. Que diabo de exemplo é esse que tu tá dando pro
Augusto? Você está olhando pela educação desse menino, Marilene?
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Capítulo 28 –
Nada acontece.
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— Roberta!
A outra se encheu quando viu que a patroa lhe deu o respaldo.
Igor continuou animoso. Contra o cenário feliz da mãe, os sul-
cos formados e as bochechas rosadas como se todos estivessem num
belíssimo e calmo dia feliz de verão. Os cabelos desarrumados que só
agregavam a sua beleza. E aquela camisola, que realmente não era a
mesma da noite anterior, era um vestidinho comum típico de dona
Josefina. Amável que nem ela.
— Você é doente! — disse e deu meia-volta.
Roberta e dona Josefina se entreolharam assustadas.
— Ei, mocinho! — dona Josefina deixou a linha de segurança
que riscou para si. Mudou de expressão porque, antes de ser a mulher
bondosa e feliz, era mãe — Você me respeite! Venha aqui e...
— SAI FORA! — Igor se virou de punho fechado. O grito re-
verberou mais do que ele queria. Um estalo no seu ouvido o deixou ou-
vindo apitos tão agudos que por pouco não ficou surdo. A mãe recuou
assustada, ficou tão incrédula para enfatizar ao filho o caos gerado. A
agressividade que nunca tinha visto antes.
Mas não o derrubou. Mesmo que por dentro muros e mura-
lhas começassem a decair, quando um compilado de traumas e lem-
branças surgiram com a face assustada da mãe. Parecia até que ela sa-
bia como desequilibrá-lo, era tão fácil. Dona Josefina pôs a mão na
frente do corpo e deu dois passos para trás. Roberta continuou gélida.
— Você quer bater na sua mãe? — a voz assustada disse —
Agora que tem força, está crescendo, você vai bater na própria mãe?
Igor também recuou, tentando se manter à altura. Faltava
pouco para desmoronar. A pergunta indecente rasgou alguns lençóis
metafóricos.
— Você... está toda contente e sequer liga para um funcionário
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amigo que se matou. Você nunca liga para nada. Diz que mudou, mas
a única coisa que mudou foi essa sua interpretação de que é feliz e ra-
diante, quando na verdade você nunca foi assim dentro dessa casa.
Dona Josefina deu um sorriso de surpresa, com aquele tom de
piedade. O filho era tão desequilibrado.
— Mas fui eu quem cuidei da papelada dele. Não vamos abrir
a Fortaleza Florida em respeito e...
— Estou saindo fora, mãe. — Igor fez um sinal de desaprova-
ção para Roberta, para que ela não comprasse aquelas palavras polidas
e cheirosas.
Sequer trocou de roupa. Mas o pijama podia ser disfarçado
como roupa casual. Calçou os chinelos, apertou nervoso os botões do
celular, ligando e o desligando, uma mania ansiosa. E saiu. Com a ca-
beça para só um lugar e só uma pessoa.
Josefina continuou imóvel até ouvir o barulho do portão. De-
pois deu com a mão para Roberta, tentando conceituar aquela cena
como tão corriqueira dentro do universo de famílias. A discussão não
deveria ser nada demais. Roberta também assentiu de volta, sem graça.
Dona Josefina só pediu mais uma coisa.
— Roberta continue de olho nele. Espero que essa fase passe...
Que fase, porra?
...
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algo forte na sua mente. Não iria esquecer nunca. Por isso, não era
coerente começar a duvidar de si.
Passou pela casa de fiel Jerônimo, pelo restaurante de Deise,
pelo seu receio e por todos os olhares estranhos quando chegou ao
ponto da questão. Tocou a campainha da residência “evitada”. Mas Igor
não estava mesmo pra ninguém, e agora sua raiva tinha se ampliado.
Era tão esquisita existir coincidências. O que poderia relacionar um
“jardim”, um ex-amigo e uma mãe estranha ao mesmo tempo? As coi-
sas estavam intrincadas e perversas. Ele não seria a bola naquele jogo
de tênis confuso.
Tocou duas vezes a campainha. Era capaz de ter sido o pri-
meiro uso em meses. Dona Raimundinha deveria atender, com suas
falas rabugentas. O tempo a deixou mais razinza com tantos golpes. Já
Rafael, também não tinha para onde ir. A demora era inexplicável.
Deise ficou da porta da lanchonete de vigia. Alguns outros co-
merciantes também ficaram em alerta. Tentavam disfarçar, mas eram
péssimos nisso. Igor continuaria pouco se lixando. Descansou mais ve-
zes o dedo no botão.
— Atende droga!
O bolso começou a tremer. Deveria ser uma notificação inútil.
Mas Igor ponderou todas as possibilidades e acertou naquela mais in-
comum.
A mensagem do amigo chegou via Instagram. Rafael tinha o
seguido, mas não o deixou segui-lo. E nem precisava. O perfil não pos-
suía nenhuma foto, parecia falso.
“Me encontra hoje de noite no mesmo lugar. Não posso aten-
der, vai chamar a atenção da vizinhança. Estão todos de olho.”
Igor revirou os olhos, já estava começando a se encher daquilo.
“Foda-se. Você é daqui! Eles vão ter que te aceitar uma hora.
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Sai você e sua avó para eles verem que está tudo bem, e que vocês não
estão com nenhuma doença!”. Enviou como resposta.
Alguns segundos, três pontinhos indicando que Rafael estava
digitando.
“Não. Faz o que eu estou te mandando.”
— Foda-se, Rafael. — Igor soltou baixinho. Não iria insistir.
Deu meia-volta e seguiu pela rua. Deise ficou na porta, tentou
algo simpático.
— E aí, seu Igor! Foi visitar o amigo? Ele e a avó estão aí, não
saíram, não. — disse, puxando assunto.
Igor respirou fundo. Deise sempre era legal com ele, não me-
recia nenhum acesso de raiva gratuito.
— Devem estar dormindo.
— Até essa hora? Fiquei mesmo sabendo que esse povo da ci-
dade grande dorme até tarde. Depois é nós do interior, os “do mato”,
que somos preguiçosos! — Deise sorriu. Ficava engraçada quando ten-
tava ser passiva-agressiva. Ajeitou um broche na manga da blusa que
tinha uma santa desenhada. Mais uma aquisição de brilhos e lantejou-
las das boutiques de referência de Piripiri.
Igor sorriu também. Suas bochechas ficaram vermelhas, não
comprimiram tanto porque o sorriso não usou os olhos. Ele foi se dis-
tanciando, mesmo que Deise não tivesse acabado. Depois de Marilene
e sua mãe, é claro, Igor era a pessoa certa para detalhar assuntos que a
intrigavam. A discussão de horas atrás era um deles.
— Seu Igor, vem cá. Quer um salgado? — sugeriu com um sor-
riso. Apoiou-se na vassoura, como sempre. Deveriam se perguntar por
que ela varria tanto, mas atividades mecânicas eram boas para deixar o
cérebro funcionar com alguma questão, ou então para ouvir uma boa
fofoca.
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Capítulo 29 –
Marilene decide (não) mor-
rer.
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— Estou bem, fiel Jerônimo, estou bem! — ela não deixou que
ele a ajudasse.
E saíram deixando o silêncio. Marilene enxugou os pratos
com descaso. Tinha acabado de ter uma ideia. De segundo e segundo,
olhava para trás investigativa. Para lhe dar cobertura, deixou a torneira
ligada e alguns utensílios espalhados. Foi na ponta dos pés até o quar-
to de dona Josefa, procurando exatamente a melhor localização para
escutar a conversinha maliciosa entre o religioso e a patroa. Esperta
como sempre, Marilene também tinha calculado o móvel mais sujo do
quarto, para no caso de ser pega em flagrante. Iria dizer que estava na
hora de dar uma geral naquele ninho de cobra.
— ... Então, tome cuidado, dona Josefa. Se isso for uma segun-
da volta do Rarizes, é um sinal dos tempos para que nós nos arrepen-
damos de nossos pecados. O homossexual pederasta que morreu foi
o primeiro, não aceitou a Palavra e Satanás o pegou. Essa sua empre-
gadinha está indo na mesma onda. Fique de olho e de vez em quando
mande ela ir para a igreja! Toda nossa comunidade está nisso! Imagine
o estrago de um escândalo desses para Russinha Amada? São questões
bem maiores! O prefeito imprestável sequer tem poder para lidar com
elas.
Silêncio de dona Josefa. Marilene pressionou mais a cartila-
gem da orelha na parede.
— Eu sei, seu Jerônimo. Meu filho é quem paga ela, não posso
demitir porque não tem ninguém. Ela é a única que aceita o valor que
podemos pagar. Mas eu vou começar a dar uns sermões. Essa mulher
não tem noção nenhuma, vive se amostrando pros homens daquele
bar, daquele velho enxerido, Osvaldo. Coisa nojenta. O filho vai seguir
o mesmo caminho da perdição, pode até virar bandido. A professora
do menino comentou uma vez na igreja que ele é um dos piores da
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classe.
Marilene bufou. Falarem dela tudo bem, mas agora quando
chegava em Augusto dilacerava seu coração. Seus olhos tremeram, os
dentes também. Se segurou para não gritar quando sua cabeça pesou
com todas as aspas que aquela conversa evocava.
— Pois é, dona Josefa. Aqueles que não se arrependem vão di-
reto para o fogo do inferno. Mulheres têm um barquinho, mas querem
um Titanic! Ela se entregou à essa vida, e eu a compreendo. Eu já estive
lá, no fundo do poço. Meus pais foram péssimos. É uma pena a criança
também ir pro mesmo rumo.
— Cá entre nós, seu Jerônimo, mas quem gosta de passar a
mão na cabeça desse povo é dona Josefina, com essa coisa dela de ser
boazinha, de levar flores. Sei não... O senhor devia conversar com ela.
Nunca vi com bons olhos ela ter aceitado aquele homossexual na flo-
ricultura. Fica se achando a rainha da cocada preta! E, sei lá... Essas
florezinhas dela são bonitas, mas, às vezes, o demônio age com beleza
e nós nem percebemos...
— Olhe, dona Josefa, você tem razão... Faz tempo que eu que-
ria conversar com a senhora! Confio muito na senhora! E, sabe, sempre
achei muito esquisito a mudança de atitude de dona Josefina. Ela fica
tentando ser o próprio Deus Poderoso com aquela pose de bondade,
querendo passar por cima de tudo e todos com sua arrogância. Aquele
sorriso nunca me enganou! Um dia desses, eu não me lembro muito
bem porque eu acho que estava sonolento, mas ela ficou entre mim e
sua empregada.
— Rum. Deve ter endoidado, isso sim. Desde que o marido
ficou doente, parece que a cachola dela não bate muito bem. É o di-
nheiro, seu Jerônimo. Ele transforma as pessoas! Lembre-se daquela
palavra sagrada!
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Parte 4 –
O fim do
mundo.
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Capítulo 30 –
Jerônimo.
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dado. A mãe, Luzinete, e o pai, Sebastião, sabiam bem para onde ir, o
que fazer. Era uma família prática e sem tantas virgulas. Tinham uma
casinha simples e comum. Tinham amizades comuns. Nada saía da
rota. Dentro daquele interior, havia regras, só o habitual era aceitável.
Uma mãe dona de casa e um pai que trabalhava na roça perto de um
cemitério. Até então, nada espetacular.
Jerônimo era um menininho afoito e curioso. Tinha a mes-
ma energia de Augusto, era um denominador comum para as crianças
especiais, que sempre se acharam comuns. Estudava numa escolinha
simples, brincava de tudo. Nem sabia o que era Bíblia ou qualquer
outro livro religioso. Sua vida com ícones religiosos era meramente su-
perficial, rezava porque era lei, fazia o sinal da cruz porque era ordem,
mas nada substancial. Ele gostava mesmo era de brincar.
Essa costura começa em meados de abril e março. Na época
em torno da Páscoa. Um dos maiores divertimentos da data era cons-
truir um Judas de boneco, costume que moldou raízes daquele povo
interiorano. A comunidade se reunia para compor uma figura de ta-
manho humano, com roupas usadas, feno, algodão, tudo o que podia
preencher o boneco para depois açoitá-lo. Porque Judas era mal e me-
recia o castigo. Parecia um evento catártico. O mais aguardado pelas
crianças.
Naquele ano não foi diferente. Jerônimo agora tinha sete anos.
Era mais esperto. A barriga grande pro corpinho magro e de braços
longilíneos, boatos que era só de verme. A cabeça grande e o sorriso
faceiro de dentes afiados. Não era um menino bonito, tinham entrado
num consenso. Pelo menos era esperto.
Depois que a comunidade tinha reunido as roupas do futuro
Judas de pelúcia, as crianças tinham uma missão, darem o melhor de
si para deixar o boneco o mais parecido ainda com a figura histórica.
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decente para ir à missa, mas o motivo nunca tinha ido às claras. Toda
a comunidade sabia como era especial o encontro espiritual e, por isso,
julgavam as ausências. Claro que o garoto logo antipatizou com ela,
com razão. Aquela velha coroca julgando sua família, quem ela pensa-
va que era?
Jerônimo viu a janelinha aberta; por sorte, era a da salinha
onde ficava a máquina de costura e consequentemente as roupas. Num
pulo, ele já estava dentro. Antes de estabilizar a respiração, precisou
agir, para não ter nenhum relâmpago de sanidade. Foi arremessando
as peças pela janela com todo o cuidado do mundo, sempre fitando
a porta ou se dona Ritinha apareceria. Quando conseguiu reunir na
terra afora todo o estoque, deu-se por aliviado. Missão cumprida.
Mas o cheiro prendeu o garoto. Vindo da cozinha, mexendo
com sua cabeça e com seu estômago. Era doce, podia resolver todos os
problemas do mundo. Um pecado seria se resistisse.
Jerônimo viu que o terreno estava limpo e, aparentemente,
dona Ritinha tinha o sono pesado. Foi explorando mais o território,
abriu a porta de fininho e passou pelo corredor até chegar ao xis da
questão. A mesa de plástico com alguns bolos guardados por abafado-
res. Tinha de todo tipo, até bordados. Pareciam obras-primas. O con-
teúdo, no entanto, era bem melhor.
Jerônimo puxou o abafador e sentiu a barriga conversar com
ele. Seus olhinhos ilustraram o seu impasse. Naquela noite, tinha co-
mido feijão com farinha. As refeições, cada vez menores, alternavam-
-se entre arroz e feijão. Aquele bolo tão delicioso parecia uma obra dos
deuses, e tinha dois deles. Dona Ritinha era só uma... Uma vez, Deus
disse para partilhar o pão. Ele se lembrou dessa parábola.
Jerônimo não demorou pensando. Dona Ritinha sempre fazia
bolos, tinha uma boa condição apesar de tudo. Não iria fazer mal a
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ninguém se ele levasse três fatias para ele e para os pais. Poderia ser o
suficiente para um ânimo superficial na vida sofrida da família. Comer
trazia sorrisos e aquilo nunca mais foi frequente em sua casa. Só aquela
frieza, entre a fome e o desespero.
Não perdeu tempo. Pegou a faca do lado e fatiou o bolo. Cap-
turou um saco da cozinha e jogou os três pedaços dentro, amarrou a
boca garantindo a higiene do alimento.
Quando sorriu satisfeito, um puxão esquisito o fez olhar para
trás, bem na hora que um carro estranho passou. Iluminou toda a co-
zinha, porque a casa era perto da pista de areia, e o fez ter aquele en-
contro, entre Jerônimo e a figura de um santo na parede. Uma divin-
dade com um olhar triste, julgando-o por fazer aquilo, porque se ele
era pobre deveria continuar pobre, mas não podia roubar. Aquilo era
errado. E as sanções foram direto na sua cabecinha frágil. Jerônimo
não podia pensar muito, eram decisões súbitas. Ele já tinha sua opi-
nião formada. Ninguém iria mudá-lo com sua barriga lembrando-o de
quem era.
Num descuido, acabou acertando com o mindinho a mesa.
O ruído do móvel riscou o chão e alarmou toda a casinha. Com socos
leves no ar, levantando a poeira silenciosa. Do quarto, dona Ritinha
gritou. A idosa podia ter lá suas limitações, mas foi rápida em pegar
uma faca, o terço e correr com uma lanterna para a cozinha. Porém,
Jerônimo era mais danado. Os dois tiveram um encontrão. Aos berros,
o garoto só pegou algumas peças e deixou o restante, segurando ainda
firme o bolo. Dona Ritinha era boa de cabeça, gravou bem a silhue-
ta. Mesmo gritando, sua cachola trabalhou e entregou uma primeira
suspeita. Mas uma hora daquelas Jerônimo estava longe, com o seu
trunfo.
O menino passou tão ligeiro pelo cemitério sombrio, só olhou
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do diabo, que veio para fazer o mal. Seu Sebastião chegou até a agredir
a mulher numa dessas discussões, e começou a ir para fazendas perto
dos balneários para esfriar a cabeça. Tinha amigos lá, iria lhe fazer
bem. Claro que dona Luzinete ficaria sozinha com o problema, o filho
amaldiçoado. Jerônimo nunca se esqueceu do dito da mãe entre o cho-
ro do desgosto.
— Você é mesmo um presente do desagrado! Não esperou
nem eu morrer pra trazer desgraça.
Quando toda a comunidade esfriou com a aquela pobre famí-
lia, os dias ficaram mais lentos. Jerônimo foi se dando conta da falta
de algo, bem além dos bens materiais, algo que transcendia a fome ou
a escassez. Seu coraçãozinho foi ficando mais apertado, cada vez que
ele via a mãe chorando, trabalhando como uma condenada, sem saber
se era por culpa dele, do pai ou da situação mais precária. Para não
morrerem total de fome, dona Luzinete passeou pelas bandas atrás de
frutas. Foi forçada a adotar um estilo de vida bem diferente e restrito.
Até o primeiro espetáculo do manifesto. Com a chegada da-
quela sexta-feira conturbada.
Jerônimo estava no quintal, contrariado porque nenhum dos
meninos o chamou para brincar, os vizinhos também olhavam com
cara feia para a sua casinha. Evitando-o. Dona Luzinete tentava dar
seu jeito no almoço, iria fazer qualquer coisa, mas não se renderia ao
extremo. Agarrou-se à cumplicidade do Todo Poderoso, sempre oran-
do para que o Santíssimo lhe desse a resposta. Até Jerônimo começou
a considerar uma conversa com esse tal Maior de Todos, do qual todos
eram tão devotos, amavam tanto, e coexistia em cada minúscula par-
tícula de planeta.
Quando parecia que a maré havia abrandado, Jerônimo avis-
tou a tempestade. Os vizinhos fazendo chacota, apontando aos berros
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...
Naquela tarde, depois de uma visita à dona Josefa com seu
manifesto de máscara, fiel Jerônimo acordou de uma soneca da tarde
se perguntando sobre realidades paralelas. Quando visitou o mesmo
cenário de anos atrás e visualizou a figura humanoide com identida-
de. Ele tinha lhe dito algo, mas Jerônimo não lembrava. Sua cabeça
começou a rodar mais ainda, o aroma instigante das violetas coloridas
também contribuiu com enjoos.
Até dona Celeste surgir, do lado da cama, observando-o com
seus olhos estáticos. Sempre era esquisito fitar os olhos de coruja da
esposa, ainda mais quando não conseguia decifrá-los corretamente.
— O que foi, mulher? — ele perguntou, passou a mão no peito
suado. Os lençóis tinham um cheiro de pele masculina, um odor forte.
Os olhos de dona Celeste romperam fronteiras.
— Meu amor... — ela começou sugestiva.
— Sim? — a voz ríspida masculina disse.
— Você não acha que deveríamos desfrutar do presente do
Todo Poderoso como uma forma de agradecer por estarmos sobrevi-
vendo aos novos tempos? — ela avançou, viu na brecha a oportunida-
de. As duas mãos embaixo da cabeça, encolhida como uma garotinha
indefesa. As bochechas bem expostas. Estava só de camisola, com os
peitos fartos contra o tecido.
Jerônimo olhou estranho para a esposa.
— Você está louca? Hoje não é dia! — disse, virando-se — E,
depois, vá orar para não atravessar a linha perigosa do pecado. Não
vamos querer algo que não merecemos...
Dona Celeste murchou, restou somente compreender.
— Desculpa, meu amor. — disse — Eu só quero estar mais em
conexão com você, e saber como é poderoso o que você guarda dentro
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de si.
Jerônimo clareou a velha lembrança, sobre os mesmos anos
sombrios atrás. Se enrolou no lençol preferindo a solidão, para que não
tivesse nenhum limite desafiado.
— É tempo de vigiar, Celeste.
Você mesmo deveria saber disso...
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Capítulo 31 –
Noite.
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enlouquecido para que não saísse de casa mais, ela sempre foi muito
paranoica com você. — saiu com uma entonação distinta. Por que Ra-
fael parecia tão racional e investigativo até nos seus momentos descon-
traídos?
Igor emitiu um barulhinho de deboche.
— Ela está diferente. Está esquisita desde que essas flores che-
garam. Parece que vive num mundo colorido e feliz. Não sei se fico
feliz ou triste, mas em comparação meu pai es... — espere... Calma, Igor,
calma. Rafael logo reparou.
— Tudo bem se não confia em mim ainda. Você deve ter umas
mil perguntas para me fazer.
— Quem foi sua primeira namorada? — Igor soltou no ápice
nervoso.
Rafael arqueou as sobrancelhas.
— Não tive namorada.
Ele semicerrou os olhos, logo a resposta completa:
— Porque sou gay.
E o choque dentro dos dois corpos por pouco não escapou.
— Le... Legal. — Igor disse sem saber como continuar.
Rafael riu.
— Está chocado? Vai me mandar rezar uma oração para que
esse mal saia? Bom, às vezes, gostar de homem é uma maldição mes-
mo! — soltou de forma humorada — É engraçado Russinha Amada ter
congelado no tempo. Levou até você junto. Morar aqui não te fez bem.
Eu acho que era capaz de você ter um colapso quando chegasse em São
Paulo e...
— Nossa, Rafael. Primeiro, mil desculpas por aquele dia... —
Igor balançou a cabeça — Segundo, você acha mesmo que qualquer
interiorano é cabeça fechada? Por que você não se questiona sobre o
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fato de eu não estar chocado com essa sua história de pesquisa maluca
e estranheza? Não é novidade para mim. Eu sei o que anda acontecen-
do no mundo. Eu estou ligado em tudo! Só não esperava que o jardim
da minha mãe tivesse algo com isso.
— Você não está chocado porque eu sei que aí dentro... — Ra-
fael deu uma cutucada no peito magro do amigo — mora um espírito
de investigador pronto para tudo. Destemido. Pode até desvendar so-
ciedades secretas alienígenas.
Igor revirou os olhos e riu com a interpretação boba.
— Você é muito idiota.
— E nós estamos perdendo tempo com conversa fiada. — Ra-
fael disse no embalo sorridente — E aí? Topa me ajudar? Eu não quero
sondar as flores do seu jardim sozinho, muito menos ficar pesquisando
sobre a região sem o meu “grande amigo investigador”. Podemos des-
cobrir algo grandioso nesse terreno. Quem sabe alguma espécie alieníge-
na?
Igor balançou a cabeça. Notou o olhar obcecado de Rafael.
Não era diferente do de antes, só que agora ele percebeu o detalhe.
— Eu não acredito que estou concordando com isso. — res-
pondeu, incerto — O que eu quero saber é por que o jardim da minha
mãe está envolvido!
— Você iria ficar chocado com os mistérios que existem pelo
mundo, escondidos nos lugares mais inusitados. — Rafael se levantou
e deu a mão para Igor — Depois eu te explico direito sobre o melhor
trabalho do mundo: o meu.
— E você entrou nisso após se formar? Que rápido... Nem pa-
rece que estamos enfrentando uma crise econômica. — Igor questio-
nou limpando os fundos do calção cheio de areia.
— Não duvide de mim, há, há... — Rafael disse sorrindo — Eu
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disso.
— Cuzões!
Os três meninos desviaram na esquina. Foram de fininho ro-
deando o muro da casa de seu Jerônimo. A pracinha ali perto estava
deserta, deixando que os assobios das poucas brisas circundassem os
juazeiros. Uma briga de gatos perto da rua do outro lado assombrou a
quietude, quando latas voaram e um dos bichanos gritou correndo. A
noite celebrava algo esquisito, que não tinha ganhado corpo ainda.
Quando levantaram um pedaço de pau que delimitava o ter-
reno das violetas, a tensão aumentou. O aplicativo de Augusto gritava
com ordens, a voz feminina dizendo que finalmente tinham chegado
ao seu destino. O mesmo protocolo de antes. Atrás dos garotos somen-
te mais vegetação comum e os confins de Russinha Amada, para além
do sertão. Rumo ao horizonte de seca e, depois, alguma cidade.
— Siga mais cinco metros e vai encontrar seu próximo tesouro,
desbravador Paulo!
Mas Augusto precisava mostrar o primeiro tesouro. Deveria
aproveitar a bateria pouca do celular de Marilene. Ligou a lanterna e
começou a procurar pela pedra.
— É bem aqui... — disse, escavando. O trio ficou desajeitado
quando sentiram o toque macio das violetas. Algumas tinham gritado
com aquela invasão, outras surgiram como salientes. Era difícil sinteti-
zar suas personalidades.
Augusto jogou terra para todos os lados. Chegou finalmente à
rocha, agora num formato diferente. A de antes era mais coesa e não
tão desgastada. Aquilo significava algo...
— Não pode ser, o desenho esquisito estava aqui!
Bola e Milton se entreolharam. Estavam de guarda catalisando
o medo com o redor vegetal. Os pilares do jardim lembravam baruei-
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ros, com suas copas gordas. Lares para roedores noturnos. Destaca-
vam-se em comparação com a mata rasteira e com a cerca. Parecia que
o terreno tinha sido invadido pela natureza de forma agressiva. Logo
atrás, onde o trio não avistou, duas cercas arrebentaram por conta de
espécies insolentes.
— Será se agora é você quem está ficando doido?
— Não, gente, eu vi! O desenho da marca que passava nos no-
ticiários da TV sobre aquela galera que espancava os veadinhos na rua.
Aquele símbolo... Eu não lembro o nome, não sei!
— Mas não tem nada na pedra, Augusto. E você tá se referindo
ao desenho dos nazistas? Do nada? Aqui em Russinha Amada? — Mil-
ton perguntou intrigado, coçou o topo da cabeça ao tirar mais vestígios
de brisas.
Augusto se chateou, pegaria feio para ele. Logo na frente dos
amigos.
— Mas eu tenho a foto! — lembrou. Desbloqueou o celular e
procurou na galeria da mãe. Milton deu uma cotovelada em Bola.
— O celular dele tá mais fodido do que alguém que mora no
Floresta Dois. — os dois riram, e Augusto os encarou com raiva.
— Vocês moram perto de lá e não são nenhum riquinho de
merda. — o garoto se defendeu procurando a foto, mas só tinha lá
registros de selfies de Marilene e fotos de pregações, enfeitadas, que
recebia por encaminhamento de mensagem de dona Josefa.
— Que porra!
Milton fez cara de decepção.
— Augusto, desiste logo. Vamos ver o próximo tesouro, senão
vou baixar no meu celular e ganhar o crédito para mim!
— Não pode... Que droga! Eu sempre preciso apagar o
aplicativo, senão ele teria salvo a minha descoberta anterior! — Au-
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Capítulo 32 –
A noite continua.
S
— abe, eu vou te fazer mais perguntas conforme eu for lem-
brando. — Igor disse. Ele e Rafael desbravavam a mudez rumo ao bair-
ro de Giovani, depois dos matagais grandes e dos assombros de cons-
truções inacabadas.
— Certo. Também tenho umas perguntas. Tipo: como tudo
pode estar do mesmo jeito de anos atrás? — Rafael levantou os braços
ficando grandioso — Nem aquele pau torto lá da esquina perto de casa
arrancaram. Coisa mais medonha.
Igor sorriu. Gostava de ver o outro animado, mesmo que fosse
uma animação peculiar.
— Mas e você, cabeção, anda paquerando muito por aqui?
Pelo visto só as gatinhas de Piripiri porque aqui em Russinha Amada...
— Rafael completou.
A rua tinha um jerivá seco, deslocado quanto ao restante da
vegetação. Suas folhas serviam para fogueira, estavam armadas perto
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do.
— Deixa essa porra aí!
Lascou o tapa no objeto com luzes. O crânio afundou na terra
e os vermes correram para entrar nos orifícios onde ficava os olhos e os
dentes. Augusto acordou, olhou como se estivesse acabado de chegar
à situação. Também gritou quando viu a surpresa, mas sua reação foi
mais obsessiva.
— Não, isso é uma prova!
— Augusto! VAMOS EMBORA! — Bola gritou perto do es-
conderijo onde Igor deixou sua cadeira.
— Eu vou levar! Isso vai sumir se a gente deixar aqui! É um
tesouro!
— É A CABEÇA DE ALGUÉM MORTO! — Milton desejou
uma bofetada no amigo.
— É coexistência. — Augusto disse, entre realidades, o transe
demorou a passar.
Milton franziu o rosto, a voz não foi bem recebida. Reverberou
em dois tons metálicos, um por cima e outro por baixo.
— Você está louco? Anda! Que diabo você está dizendo? — e
puxou o amigo. Augusto resistiu, soltou-se de Milton e trouxe o crânio
para perto de si, espantando qualquer verme que ficasse dentro dele.
Os fiapos coloridos romperam deixando o chão perder seu contato
com a peça humana. Os dois amigos não se opuseram, aceitaram que
aquele crânio iria junto. No final, um agradecimento por ter um “trun-
fo”. Seriam populares na escola, finalmente.
Para deixar o jardim, os três tiveram que dar tudo de si. Até a
noite começar a rodopiar com eles. As estrelas no céu contaram que
qualquer detalhe em terra tinha vida. Como se exatamente naquele
ponto até o concreto fosse parte de um sistema orgânico vivo, contor-
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dentro da caveira.
Rafael e Igor se entreolharam de novo, enquanto só um deles
gritava para que Augusto parasse, perguntando o porquê da fuga. An-
tes, os dois estavam rindo da situação engraçada que Danilo invocou
até a sensação ruim percorrer o corpo magricela de Igor, e o fez ter um
gosto amargo na boca, que tinha tirado sua fome e as borboletas do
estômago. Não sabia como tinha aceitado aquele formigamento.
A noite pediu respeito e, quando não o teve, entregou enig-
mas. Por trás das conexões esquisitas e perversas ocorrendo. Direcio-
nada àqueles que preferiam ver o simples e o comum. O tempo não
parou nunca.
...
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amiguinhos para dormir com ele. Até que a visão foi convergindo, e,
no soco de ressaca esquisito contra si, Marilene abraçou o menino as-
sustado chorando todas as lágrimas de Russinha Amada.
A caveira brilhosa foi chutada para longe, Augusto não podia
vacilar. E a luz ricocheteou dentro da pequena casinha, como se fosse
uma espécie de rastreador ou codificador. Um show cênico de futuris-
mo que só era aceito pela imaginação mais rica daquela casa.
...
De volta ao paralelo mundo florido, Igor guardou dúvidas,
milhares delas. Dessa vez, não precisou da mãe estalando os dedos
para que divagasse. Mesmo que a culpa não devesse ser dela por tudo,
por conta de um jardim sinalizado e uma nova personalidade adqui-
rida, além de outros espectros esquisitos que começaram há tempos.
Rafael também tinha sua parcela.
Dona Josefina. O problema não pode percorrer campo e, sim,
a si mesma, dentro daquela fortaleza ossuda impenetrável cheia de fal-
sa felicidade.
A casa estava escura. Roberta não espionava ninguém. Dessa
vez, ele conferiu se não tinham garrafas de cerveja em alguma parte,
mas encontrou tudo limpo. Porém, a porta do quarto principal mis-
terioso estava aberta. Uma luzinha azul fraca escapou, vindo, prova-
velmente, da noite e de suas estrelas. Igor iria espiar, ligou o celular
para construir algum registro sólido, seus olhos não eram testemunhas
sustentáveis.
Avançou lentamente com a respiração controlada. E foi suan-
do quando atravessou o próprio quarto. Chegou na porta dos pais e
ergueu o pescoço para adentrar o umbral.
Pura esquizofrenia...
Josefina por cima do marido, cavalgando como uma besta no
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cio. Apenas um lençol cobriu detalhes explícitos. Ela sabia que estava
sendo vigiada, deixou somente a cabeça virar, e não o corpo. E os olhos
grandes encontraram os de Igor, enfeitiçando-o para sempre. Até tudo
desmoronar cheio de suor, gozo e potestade.
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Capítulo 33 –
Ameaças.
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riu.
A carnaúba solitária por trás de algumas casinhas balançou
suas folhas. O tronco torto pendeu pedindo ajuda, não merecia que
substâncias rosadas passeassem entre suas estruturas. Alguns urubus
pousaram perto, mas não tinha nada para eles ali. Ao contrário do que
esperavam, não tinha animais mortos pela região, mesmo pelo cheiro,
e sim muita vida. Excessos de longevidade e existência. Só não era fami-
liar aquela energia.
— Opa, perdão, dona Josefina. Não queria ser enxerido! Eu
só gostaria que você me incluísse mais em seus cafezinhos e tarefas.
Posso ajudá-la nos negócios de Fortaleza Florida, até mesmo com al-
gumas atividades no jardim... Você me parece distante... Não recebe
mais visitas de nossa comunidade...
Josefina respirou fundo.
— Com licença...
Jerônimo fez cara de malícia.
— E a máscara? Você vai arriscar, mesmo com seu marido
perto da morte?
Dona Josefina se virou, deu dois passos tão rápidos que pare-
ceu uma ninja. Tocou o ombro de fiel Jerônimo e aproximou os dedos
da sua orelha chamativa e com pelos. Estalou duas vezes, o comum
eram três estalos. O último para que Jerônimo mantivesse a lembrança
daquela investida.
— Não se aproxime de mim, se não quiser sofrer duras consequências
divinas. — disse em tom de ameaça. Perto do portão, o ruído para que
dona Celeste entrasse em cena e achasse esquisito o marido parado
como um bobalhão bem perto da vizinha.
— Amor?
Josefina se virou, seus olhos eram traiçoeiros, mas se interliga-
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qualquer noção de tristeza por Giovani, mas no fim foi ela quem ajei-
tou tudo. Só não teria celebração por culpa de fiel Jerônimo, mas isso
pouco importava para dona Josefina.
Quando saiu das redondezas de Fortaleza Florida, acenou
para Deise e mais alguns curiosos mascarados. Eles retribuíram, tími-
dos, sorrindo numa competição para quem ganhava mais o carisma da
figura importante. Não discutiram se do outro lado existia alguém sem
a máscara, contrariando fiel Jerônimo. Mas Josefina era justa como
Deus, padronizou-se para todos. Tão bondosa quando atravessa suas fron-
teiras.
Josefina não foi cantarolando. Entrou em Floresta Dois com
um ar austero caminhando com centímetros calculados, altamente
robótica. Suspensa de aflição. Ainda não tinha se tocado no peso da
atitude de andar com os lábios e nariz amostra. Porém, ninguém iria
pará-la ou chamar sua atenção. Alguns estranharam, outros agradece-
ram, pediram que os céus abençoassem sua pessoa, por ser tão bondo-
sa com suas violetas coloridas em mãos. “Mais um presente para algum
pobre morador”, duas beatas afirmaram. “Até com os miseráveis ela é
misericordiosa”. Nossa...
Josefina deu dois toques ao se aproximar da casinha humilde
por pouco solitária. Não olhou para os lados com receio nem se inti-
midou com o terreno baldio cheio de galhos, como mãos de bruxas.
Esperou em silêncio sorrindo para a porta de madeira, reparando nos
descascados. A maçaneta estava engordurada e a porta tinha buchos.
Com um golpe certo, era fácil arrombar a residência.
Lá dentro se apressaram. A chaves brindaram e o barulhinho
agudo foi ficando perto.
— Sim?
Augusto olhou para a mulher dos pés à cabeça. Escancarou a
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tes menores.
— Eu acho que não é só efeito do álcool. — disse para Augus-
to. Voltou à simpatia de costume, evitou guardar rancor.
— O que... Como você entrou? O que você quer? Eu vou cha-
mar a polícia! — Augusto agarrou o celular, sua atenção e cuidado se
fixaram em outro ponto da casa.
— Eu vim trazer flores, vim ajudá-la... Ela está mal. Está doen-
te, com uma espécie de maldição demoníaca que atinge mães de meni-
ninhos traiçoeiros. — dona Josefina sorriu — Sua espécie é interessan-
te, esses ares subversivos dessa idade que vão morrendo com o passar
dos anos. Não me canso de fitá-los. Você me lembra muito a espécie de
carbono que mora comigo.
Augusto fechou a cara. Estava em posição de luta. O celular
vibrando na sua mão, provavelmente mensagem de algum dos ami-
guinhos. Precisavam conversar. Augusto finalmente os adicionou no
Facebook, como Paulo. O fim do seu perfil sigiloso. Seria zoado depois
na escola quando soubessem o motivo de não ter um com seu nome
verdadeiro.
— O que você quer?
Josefina puxou o corpo para mais perto de si, deixou a face de
Marilene, dorminhoca, contra sua barriga. As mãos delicadas afunda-
ram no cabelo, puxando-o para revelar a nuca.
— Está vendo isso? Você quer que sua mãe morra também?
Augusto estremeceu. Giovani.
— Por que você não me devolve o que roubou? E depois me
promete que não vai entrar nos limites daquela área?
— A senhora é um monstro? Uma assassina? — Augusto ques-
tionou com medo — Vai me matar?
— Não, porque você é importante para futuros eventos.
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Capítulo 34 –
Espetáculos.
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podres daquela cena, cheia de cores, mas tão indecorosa. Com seus fi-
letes vivos dançando caçoístas para o tempo. Era muito à frente. Cheio
de épicos do futuro. Absurdamente eclético.
Com o mesmo teor enigmático que os olhos de dona Josefina.
Entretanto, sem o charme dela.
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Capítulo 35 –
13 de junho de 2019. Jose-
fina. Precisamos voltar no
tempo.
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lhar, mas não pôde. Sua pele esbranquiçada ganhou uma coloração
vermelha. A própria atmosfera era inadequada para ela, mas a pele
conseguia privar alguns sintomas — Eles faziam coisas cruéis... se di-
ziam neofascistas. Você conhece o neofascismo? Os homens que anda-
vam com meu pai adoravam o... — procurou a palavra — caótico... E
por isso eles resolveram fazer tais atrocidades. Pelo menos é o que eu
acho...
— Talvez me infectaram... — Josefina continuou, quis chorar.
Em seguida, ergueu a cabeça — Você acha que estou infectada?
Nenhuma resposta do anfitrião, ela continuou com rodeios.
Sua cabeça queria pregar peças, ressurgindo com todas as paranoias
que fazem o sono escapar. Mas Josefina sorriu para a estupidez de si.
Seus dentes ficavam tortos, mais alguns segundos naquele ambiente e
iria desintegrar até sobrar partículas estrangeiras.
— Mas me parece que agora nada disso importa, e o que eles
fizeram também não. Como pode? Como chegaram a vocês? E... o que
vocês pretendem fazer?
A luz mudou. A energia também.
— Quem são vocês?
A pergunta se saiu herege. Dona Josefina estremeceu com os
pelos do braço arrepiados, enroscando-se entre si como numa luta li-
vre. Pareciam transmissores elétricos, parte de algum espetáculo bem
maior, aquele corpo esquelético com veias azuis não era tanto assim.
Servia apenas como a peça de um grande monumento no cosmo.
— Tudo bem. Desculpe. Vou responder à pergunta. Vou ser
objetiva, mesmo achando que certos termos podem soar difíceis para
o seu entendimento.
A luz abrandou. Fez com que os artifícios teatrais dispersas-
sem.
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Capítulo 36 –
O dedo de milhares de vidas.
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Preciso ser forte... Preciso ser forte. Se regulou. Uma noite mal
dormida não podia criar um cataclisma.
— PAREM! — e lascou um tapa no quadro de giz. A mão ma-
gra roseou com o impacto.
Todas as crianças pararam de rir. Primeiro, pela ordem e, de-
pois, pelo detalhe inconveniente.
Bola guinchando. Parecia um golfinho. Se inchou de graça
vermelho de espremer as bochechas faltando ar. A piada tinha até pas-
sado da validade e o garoto continuou bobalhão.
— Bola? — Milton alertou para que o amigo se tocasse. A clas-
se inteira olhando para ele como se fosse um maluco. Mas o garoto
não conseguia parar, os bracinhos gordos engrossaram enquanto ele se
debatia. A mesa deu um pulo e o assento da cadeira desceu, adiante a
resistência do plástico.
— Bola? Você está me desacatando? — Cecília se aproximou
da mesa do menino e se curvou. Depois, notou a expressão de Bola
divergir.
— Bola? Você está bem?
— Ai, meu Deus, tia... ele tá vermelho! — Mariana disse. Deu
um peteleco na orelha de Francisco pela gracinha e correu para perto
da professora. Sempre ela quem tomava a frente das situações. Por isso,
o motivo de tanto bullying. Augusto a chamava de “senhora arrogante”.
Milton quis sorrir, mas se conteve. As bochechas de Bola co-
meçaram a aumentar para que a cabeça do garoto se transformasse
numa esfera imperfeita. Dobras na nuca já encostavam nas costas cur-
vadas e acentuadas. Os peitos de bola ficaram caídos, mas se ampara-
ram rápido na barriga de balão. Enquanto isso, ele soltava um prolon-
gado “s”, a única nota que conseguia emitir com os dentes trincados. Se
a sua boca se fechasse, não abriria mais.
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Perto de explodir.
— Meu Deus... Mariana, vai chamar a diretora e o Zé do Leite.
— Cecília se afastou. Mariana correu com sua esperteza, adorava se
tornar útil.
— Professora, se ele explodir... — Milton começou.
— Vai sair merda para todo lado. — Francisco cotovelou um
dos amigos, mas ninguém riu. Estavam todos preocupados. Os braços
de Bola não conseguiam mais abaixar.
— Bola? — Cecília abanou as mãos. A ideia da explosão era
ridícula, mas por precaução ela pediu que todos se afastassem. O cres-
cimento do corpo do garoto cessou, deixando-o se afogar em seu pró-
prio inchaço.
— Bola? — a mulher encarou os olhinhos encolhidos. Pediam
socorro indo de um lado para outro.
“Bola?”
O corpo do menino, dentro de um segundo, afogando-se
numa massa que não podia ser gordura. Àquela altura, a imagem cari-
cata tinha se concretizado, parecia um desenho animado antigo e ofen-
sivo, sobre a retratação de pessoas gordas para mera diversão cênica.
A diretora e Mariana chegaram. Regina, por pouco, não
desmaiou.
Crianças eram inventivas, não era possível que as palavras da
menina fossem reais. Mas Bola tinha inchado desafiando a estrutura
de um corpo. Alguns garotos riam, mas a situação foi perdendo o obs-
ceno fio cômico. A sala tinha parado no tempo, o odor de violetas con-
gestionando um pouco a tensão. O barulhinho prevendo uma catás-
trofe ficou ruidoso, e Cecília temia o impossível, forçando-se a prestar
atenção, mesmo quando sua cabeça vacilava com pequenas pontadas.
— O quê... Meu Deus, ele está inchado! Chama a mãe dele! —
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Capítulo 37 –
Rafael canta para estranhos.
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Capítulo 38 –
O mundo perto da destrui-
ção.
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Capítulo 39 –
Respiros.
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Parte 5 –
O que
acontece
no
fim do mundo.
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Capítulo 40 –
Contagem regressiva.
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Capítulo 41 –
Uma nova Marilene, os mes-
mos velhos erros.
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— E a avó Josefa?
— Augusto, aquela cobra não é sua avó! Eu já te disse! — Ma-
rilene o corrigiu — Não piso naquele inferno nunca mais. Cansei. O
povo da TV não cansa e faz coisas doidas? Eu também posso.
— E a gente vai morrer de fome? — Augusto acordou de re-
pente. Levantou-se de fininho e deu mais uma checada na direção do
quarto. Quis se estapear por quase ter esquecido a existência do seu
“trunfo”.
Marilene olhou de esquiva, também estava ligada em todos
os acontecimentos paralelos. Seu mau-humor tinha lhe tornado mais
sensível e introspectiva.
— Não... não vamos morrer de fome e... mudando de assunto...
Naquele dia que eu bebi, bati a cabeça em algum lugar? — questionou.
Augusto não soube disfarçar, coçou as mãos com os próprios
dedos. Voltou a sentar na pedra maturando uma resposta.
— Não sei...
— Você foi pra onde à noite?
— Fui brincar com meus amigos.
— Augusto... — semicerrou os olhos e, depois, abriu um sorri-
so. Foi surpresa até para si, amoleceu quando viu a expressão atraves-
sada do filho. Depois de tudo, ele era tão parecido com ela. Sem tantas
semelhanças com o pai impostor — Você está namorando?
O menino corou. Ficou aliviado pelo rumo da conversa. Pou-
co importava a vergonha.
— Não... Oxe! — Ele sorriu.
— Olhe, olhe! Guarde esse pintinho dentro das calças. — ela
disse e continuou a esfregar tecido. No final das contas, o momento te-
rapêutico da função automática valia a pena. Já tinha aprendido tanto
a romantizar a dificuldade que no final se tornou maleável a tudo.
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Capítulo 42 –
Igor, Igor!
E
— u não entendi... Quer dizer que não passa de uma suspei-
ta? Você sequer tem provas! — Igor deu duas voltinhas próximo da la-
goa. A água estava quieta, mas sempre pequenos círculos em expansão
surgiam no meio. Pareciam que não estavam sozinhos.
Rafael fez um barulhinho com a boca como de um estalo. Es-
tava usando uma regata, despojado como assim deveria ser, sempre
de braços apoiados nos joelhos. O cabelo balançava com duas brisas
rápidas que levantaram o astral do mato morno.
— É bizarro até para mim, eu sei. Não estou dizendo que sua
família é nazista, mas há várias suspeitas de que seu avô tenha partici-
pado de seitas ou de células fascistas envolvendo tráfico de menores.
Não é como se sua mãe também fosse fazer isso... — disse — Mas há
algo errado nos arredores do seu jardim. Nós detectamos uma energia
incomum e...
— É engraçado como você solta essas informações descone-
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Capítulo 43 –
Jerônimo em ação.
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Capítulo 44 –
Jerônimo não para. Queima
cabaré. Parte dois.
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Capítulo 45 –
Dona Josefina, um breve mo-
mento no espaço.
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te, não podiam perder os olhos dela. Mas ainda assim, tanto mimo não
a impediu de ter se aproximado daquele garoto. Peteleco era atrevido,
acenou e sorriu. Mesmo que todos dissessem para ele não ser saliente.
Num belo dia, aproximou-se de Josefina, disse seu nome, contou al-
gumas histórias com aumentos e deixou um brilho de felicidade no
outro rostinho. Era para ser o começo perfeito de uma vida de aventura
para duas crianças. Uma alma tímida e presa dentro de lógicas sociais
e outra livre, correndo de qualquer mal que tentasse o pegar. O complô
para histórias de interior. Os melhores anos da vida de alguém.
Peteleco adorava a visita de Josefina. Sempre que ela e o pai
iam para a fazenda, o coraçãozinho da menina se agitava. Sua mãe já
não o acompanhava, preferia ficar na cidade. Pouco lhe importava as-
suntos sobre cabras ou cabeças. Coisa de homem, dizia. Nem era para
aquela menina acompanhá-lo!
O pai, na sua picape moderninha, chegou levantando a poeira,
era muito expansivo em tudo o que fazia. Os vizinhos contemplavam o
poder do seu triunfo, daquele homem importante. Rico e só isso basta-
va. Qualquer desvio de caráter nunca importava. Josefina se encolheu
no carro, o pai fazendo carinhos na sua cabeça com a delicadeza de um
ogro, por vezes, bagunçava o seu cabelo. Recitava algumas breves fra-
ses machistas e impróprias para a menina, algumas sobre ela ter que se
resguardar sexualmente. Ela, somente uma criança tentando encontrar
a lógica daquele desconforto, cada vez mais retraída.
Quando aquele homem chegou gritando com seus empre-
gados, rindo pros vizinhos tão poderosos quanto ele, Josefina viu a
brecha para escapar. Mesmo que dona Afonsa, a governanta daque-
la fazenda, ficasse de olho nela. Sabia que se algo acontecesse àquela
menina era melhor até que fugisse porque no mínimo iria amanhecer
morta. Sua vida era de serventia e nada valia para aqueles homens,
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te.
Peteleco contava tudo enfático, com adornos sombrios. Jose-
fina sorria, ficava triste, mas nunca abria a boca. Estava obcecada na
lábia do menino, ele sempre foi um bom contador de histórias. Aque-
la amizade tinha tudo para ser uma obra-prima. Tornou-se religioso,
Josefina chegava com o pai, aproveitava de seu egocentrismo para es-
capar e corria para se divertir com Peteleco. Mesmo que dona Afonsa
ficasse de olho e advertisse para tomar cuidado com os moleques da
rua, que ela era uma mocinha e precisava se comportar como uma,
sempre à sombra de algo ou de alguém.
Já dona Rodrigues, nunca tinha visto o filho tão empolgado
quanto naqueles tempos. Peteleco sorria, contava tudo de Josefina. O
assunto sempre era a menina, que ela era educada, que tinha um car-
rão, que morava na cidade, que dizia amar ser amiga dele. Ele contava
com a felicidade estampada nos olhos, gestual, esperando que chegasse
logo aquele dia de visita para terem mais aventuras. Peteleco, uma for-
ça motriz.
Dona Josefina respirou no seu sofá. Uma pausa na costura do
seu próprio manifesto sombrio.
Porque aquelas lembranças felizes lhe deixavam triste. A
amargura percorreu por todo o seu corpo, precisou parar para não
desmoronar. No fim, só comprimiu os lábios fazendo caras tímidas de
desgosto, para além do que ela podia apontar. Mas havia um vilão, uma
variável esquisita, que iria atrapalhar para sempre aquela amizade.
Retomou à reconstrução memorial.
Depois dos dias dourados, a amizade entre Peteleco e Josefi-
na ganhou dimensão o suficiente para um convite ao garoto: brincar
com a menina perto dos arredores da fazenda do pai. Enquanto aquele
homem grandalhão mandava e berrava como um bêbado, Josefina foi
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Cadê Peteleco?
O pai não respondeu quando ela se atreveu a perguntar. Minu-
tos depois, ele deu uma resposta ignorante e mandou a menina se calar.
Por pouco não a agrediu. Foi uma das poucas vezes em que ela avançou
o sinal com a figura masculina. Dali em diante, precisou costurar um
manual rebuscado de como chegar no pai grosseiro.
Para evitar questionamentos femininos, Josefina agora iria ficar
em casa e aprender etiqueta. Até o dia em que tivesse cabeça para en-
tender quem manda e quem deve ser mandado, e que no mundo há
camadas perversas de realidade escondidas por detrás de um sorriso
familiar, onde ninguém nunca deveria desconfiar.
A pergunta foi reformulada na sua cabeça:
Quem conspirava para o fim do mundo?
Josefina nunca mais viu Peteleco. E Peteleco nunca mais viu
Josefina. A construção imagética do garoto foi se esvaecendo com o
tempo, junto da dúvida daquela menina sobre por que crianças como
ela chorarem trabalhando enquanto ela recitava o nome das frutas da
fazenda feliz de seu pai.
Parecia o inferno com o céu, duas realidades misturadas de
forma caótica. Era tudo tão violento e agonizante que Josefina precisou
peneirar o que iria gravar consigo para sempre. Mas as vozes infantis
ainda a perturbaram, centenas de crianças chorando enquanto carre-
gavam bacias ou faziam serviços pesados. Uma orquestra de morte e
escravidão no coração do nada para que ninguém visse. Como os ho-
mens cruéis e gananciosos como seu pai queriam.
Peteleco foi enterrado junto com os retratos de desequilíbrio
dos homens no poder. Mas o passado sempre conversou com o futuro
e disse a dívida de cada um. Contando a daquela família repleta com
dor e amargura.
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Capítulo 46 –
Uma floricultura destruída
e o tempo começou a passar
rápido demais.
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com duas amigas e correu para o seu trabalho, estava do lado da chefe,
mesmo que religiosa. Só um deles pagava seu salário.
Entretanto, naquele dia, dona Josefina se encontrou mais
branda que todo o restante. Sua atenção oscilou, embebedada pela sua
graça e por sua bondade, com o sorriso que sempre colocou até para
quando trevas chegaram. Roberta questionou atrevida se dona Josefina
não iria fazer nada, e a resposta foi absurda.
Disse que resolveria depois. A floricultura podia esperar.
“Mas... Poxa, senhora, você fala tanto em depois. Depois... De-
pois...” Roberta ficou preocupada. Como aquela família podia ignorar
estando na mira de toda a cidade? As pessoas já começavam a olhar
feio até para a coitada, porque trabalhava na casa da “violenta florista
ingrata”. E seu Antônio continuava à deriva.
Roberta lavou as mãos. Foi para a cozinha resmungando que
se a patroa disse, então ponto final. Depois se perguntou por onde Igor
acampava pelas manhãs, se ele largou mesmo os estudos e saiu “piran-
do o cabeção por aí”. Roberta deveria ganhar mais por se preocupar
até com os setores que iam além do dela! Lembrou-se de que tinha que
ficar na cola do rapaz. E uma ideia passeou na sua cabeça, já agitada
pelo frenesi da pichação.
— Vou dar mesmo uma de Sherlock. Todo mundo aqui com
o maior segredinho. E a Robertinha aqui sempre saca tudo! — disse,
efusiva.
Aproveitando-se dos entornos caóticos, Igor e Rafael se en-
contravam escondidos, alimentando um espírito de nostalgia. Passea-
ram pelo Açude Caldeirão, fizeram trilhas, arrancaram risadas. Quan-
do as coisas esquentavam, eles arranjavam lugares que antes serviam
para brincadeiras de esconderijo. Igor se entregava a um Rafael faceiro,
e a química de ambos não demorou para explodir. Agora mais intensa
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e carnal.
Tudo correu bem mesmo com o pequeno apito interior de
Igor o alertando sobre Rafael. Mas se apaixonou rápido, desvencilhou
da sua cabecinha até as questões sombrias da sua família. Deixou-se
levar pelo romance iniciado e pelas aventuras que sempre quis viver
naquela cidade solitária e cheia de olhares. Rafael também se aprovei-
tou dessa brecha. Ambos ganharam.
Depois da lagoa, o ponto de encontro principal dos dois para
conversarem e se divertirem era uma casinha abandonada pouco dis-
tante de Russinha Amada. Uma das diversas que pontuavam dentro do
mapa seco e intuitivo da região. Mesmo com tantas pautas e assuntos,
Igor se incomodava com a falta de objetivo do amigo. Rafael sempre
desconversou quando Igor perguntava por que deveriam vasculhar o
jardim. Da mesma forma, pairando em torno das questões da tal “em-
presa”. Passou de uma pesquisa sobre o Rarizes para uma investigação
antifascista. No meio do caos, ainda tinha o tal jardim.
E Rafael divagando. Nunca contou para Igor sobre o anda-
mento das pesquisas com as violetas coloridas que o amigo colheu da
própria casa para ele. Também não aprofundaram sobre o avô e sua
possível trama. Acontece que agora Igor se tornou um passatempo di-
vertido, logo após ambos engatarem a aproximação sexual. Claro que
Rafael estava se esquivando.
E Igor, sempre muito afoito, já demonstrou animosidade. Con-
torceu o nariz e começou a retomar o fio da sua investigação passiva.
— Rafael, você nem me contou também sobre como anda sua
avó... — o segundo calo do amigo.
Não, ele não se iludiu com o retorno magnífico e com surpre-
sas daquele que uma vez foi seu melhor amigo e agora seu novo amor
de verão.
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para terem uma leitura visual exata do rosto de dona Josefa com sulcos
de ódio. Em seguida, sem mais delongas, pegaram voo. Não importava
mais o desenrolar do plano de “vingança” contado.
A última rota foi mais certeira. Bem pertinho do jardim mis-
terioso de violetas coloridas. A casa ao lado tinha um cheiro bom de
feijão temperado. Roberta assobiando não porque era de mania, mas
para se manter sã e viva dentro daquela redoma. Havia desconfiança
na forma que ela vassourava o pátio, sempre espionando o tempo atrás
de mais “incertezas”. Já estava ficando era doida, por pouco não con-
cluiu.
Mas os passarinhos não queriam saber dela. Estavam interes-
sados em dona Celeste na cadeira de balanço rabiscando com os dedos
a própria barriga, um sorriso duvidoso surgiu, e ela olhou afável para
os céus, não para os dois espiões. Eles podiam ler a sua mente, notaram
que ela repetiu o pedido de sempre.
Jerônimo chegou na cena como um penetra. Perguntou rís-
pido pelo almoço e obteve uma resposta carinhosa. Dona Celeste se
levantou e foi acudir o marido, redecorando-o com o calor de mulher
e mãe.
Os dois passarinhos não perderam tempo, entraram num con-
senso. Iriam entrar na casa.
Ficaram lá por horas observando o furta-cor se misturar com
o cheiro das comidas. Os dois tinham aprimorado habilidades visuais,
podiam enxergar bem mais além. A energia colorida não só mexia
com a estrutura sensível daqueles dois humanos, mas de todo o siste-
ma. Até na existência dos objetos religiosos, ou o que quer que fosse
inanimado.
O casal conversou com silêncios obscenos. Discutiam prepo-
sições que fariam fiel Jerônimo ficar arrepiado.
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Capítulo 47 –
Marilene. A primeira.
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animada com a ideia. Se não fosse uma questão, a principal, que ela
não comentaria agora... deixaria para quando chegasse lá.
Marilene esquadrinhou sua casinha de Russinha Amada. Sen-
tiu uma pontada de tristeza pelas memórias que ficariam ali. Se per-
guntou diversas vezes se a decisão era a correta, prolongando como
podia. Conforme passavam as horas, ela arranjava obstáculos para
NÃO sair de Russinha Amada. Mas tinha dona Josefa e seu esquisito
silêncio. E agora um batalhão religioso... Não, não podia mesmo ficar
ali.
— Vou dar uma saidinha. — ela disse com um tom jovial. Au-
gusto já sabia.
— Vai beber, né, mãe? Eita... — perguntou sorrindo.
— Vai-te a merda. — ela disse, brincando também. Deixou o
menino com o seu celular e saiu quando a noite incorporou.
Não deu boa noite para nenhum dos vizinhos mascarados.
Agora ela sabia quem estava do lado de Jerônimo e quem estava pelo
“bom senso”. Também não ligou para os burburinhos que, na verdade,
faziam-na ficar cheia de si quando lembrava da esfregada que deu na
cara do “infeliz”.
Mas, espera aí... Sem nenhuma musiquinha animada, nenhum
forró das antigas. O ponto somente iluminado pelos postes, um bar
famoso e divertido fechado em pleno dia de trabalho? Seu Osvaldo só
podia estar doente. Marilene se aproximou, dois adolescentes cochi-
charam, riram e pegaram estrada com suas “bicicletas de ricos”. Sim,
ambos mascarados. Ela fingiu que não os viu.
— Mas... QUE PORRA! — disse furiosa. Pensou rápido, deu
uma coçadinha no braço, perto da manga. A blusa com o rosto de al-
guma celebridade faltando miçangas. O shortinho de sempre. Marile-
ne teve uma ideia... — Vou já lá.
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Capítulo 48 –
Danilo. O segundo.
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Capítulo 49 –
Fuga rápida. Estamos perto
do fim.
E
— ntra, entra, cacete! — Marilene deu um empurrãozinho
em Augusto. O menino tentava não se desequilibrar na escadinha do
ônibus. Sem sequer ter tempo para uma digestão. Deixar Russinha
Amada não teria cerimônias nem reflexões.
Marilene não pensou muito. Com o dinheiro pouco e vivo da
venda do terreno, além dos móveis que conseguiu negociar, ela preci-
sava deixar sua mente divagar para não digerir a ideia de que não tinha
muito. Tudo por uma mixaria, mas apenas pelo desejo de ir embora.
Teve tanta sorte em negociar tudo que acreditou no poder das palavras
de dona Sandra. Desde pequena, quando tomava uma atitude, tentava
não pensar nas diversas consequências. Estava feito, o destino ia cui-
dando do resto. Sua vida mesmo era um compilado de estradas com
curvas perigosas e acentuadas, sem muitos finais prósperos.
O motorista acenou para os viajantes. Mulheres com sacolas
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dula. Esticou o pescoço para ver as últimas luzes ligadas das casinhas
na borda da pista. De dona Raimundinha e seu Mario. Logo após o
restaurante de Deise. Não se despediu de ninguém, não fez um último
lanche. Não bebeu e contou a novidade aos berros para seu Osvaldo.
Ela só tinha ido.
Augusto respirava com dificuldade, sem entender o que era
ansiedade. Mas aos poucos sua guarda foi cedendo. E a visão embaçou
até que tudo escureceu, entre os desconfortos do sacolejo. Marilene
também se permitiu adormecer por minutos. Seu coração já conseguia
ficar mais quieto, e a leveza que a preencheu parecia um abraço de mil
anjos. Desconhecido para quem veio repleto de anseios.
O sonho foi algo aleatório, sem tantos significados. Somente
uma memória velha e alguns caprichos fantasiosos do seu subcons-
ciente. Nada muito sólido. Mas duas Marilenes podiam entrar em sin-
tonia sobre algo. A imensidão da quietude. O destino parece promissor
para aqueles que conseguem alinhar a energia de si. Alguma digital in-
fluencer poderia ter dito isso. Quem sabe a extrovertida Marilia?
...
Duas chacoalhadas.
Marilene abriu os olhos e a primeira coisa que fez foi usar a
pouca força dos braços para apalpar Augusto. Mesmo arrastando a
mão com protuberâncias pelo rosto do filho, ele não acordou. Na ver-
dade, só ela tinha acordado. Entre ficar naquele mundo ou voltar ao
hemisfério do subconsciente, estava assustada, e não tinha como não
ficar. O motorista conversando com alguém, deixando a dúvida sobre
quem estava dirigindo o transporte. Ele era um senhorzinho simpático
que, ao fazer uma feição de preocupado, tornou-se feio. Gesticulan-
do e apontando para uma das janelas, contando algo urgente. Quem
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conversava com ele não pôde ser identificado por dar as costas para a
mulher.
Marilene tentou se mexer, arregalou os olhos com a força do
grito que quis berrar. O diálogo conseguiu chegar até ela. Nada bom.
— A gente fez foi morrer, Zé. Não estamos indo para Teresina,
bicho. — o motorista disse, preocupado.
— E que lugar é esse? Estamos indo para onde? — o colega
perguntou sem tanta preocupação. Sua voz era explosiva num tenor
estridente.
— O GPS não está localizando.
O ônibus ia devagar, trilhando a pista. Marilene desviou o ros-
to para a esquerda e avistou o matagal comum por cima do topo da
cabecinha ao lado. Nada demais. Somente plantas e escuridão.
— Eu acho que é Oeiras... — o motorista disse.
— Mas... Oeiras toda está morta? — agora, sim, o colega se
preocupou.
— Não pode, pô! Eu não sei o que é isso, não. Tem uns corpos
jogados no chão lá fora. Não pode ser! — o motorista vacilando entre
soluços.
— Então, vamos sair daqui.
— Não dá, pô! A gente nunca consegue sair. Meu Deus, me
perdoa, por favor! — o homem se jogou no chão.
Com muito esforço, Marilene conseguiu empurrar sua cabeça
para o corredor do ônibus. A paralisia foi grave. De canto de olho,
avistou quem estava na direção do veículo. A mão com o jaleco branco
se transformou numa forma espessa e grudenta de coloração aberta. A
pouca luz de um poste ali perto clareou o suficiente para que ela reco-
nhecesse a cor. Amarelo. Amarelo vivo e brilhante. Quase ouro.
Depois só a mesma mão máscula com o jaleco.
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Parte 6 –
A
sociedade
esquizofrênica
no meio do
fim do mundo.
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Capítulo 50 –
Roberta. A terceira.
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nhas.
Roberta fazia parte daquele sistema. Assim disse para si. Já es-
tava acima de muitos na cadeia de poder.
Mesmo que o cantarolar dos periquitos evocasse um ânimo
comum, o palco contava com visitantes. Roberta arregalou os olhos e
se esconde assim que viu. Nunca tinha sido de observar, mas de falar.
Porém, era tão esquisito que ela não precisava exprimir nenhuma opi-
nião momentânea.
Semicerrou os olhos para a figura silenciosa dentro do buraco.
Ao redor, diversas violetas balançando, felizes pela visita. O cabelo de
Igor agarrou algumas das folhas pelo tempo, poeira também. As bo-
chechas rosadas permaneceram cobertas de barro enquanto os olhos
limpos, enxergavam tudo menos a realidade.
Só depois de minutos que Roberta precisou intervir, puxando
a abertura para dar ao jardim. O Sol já estava crescendo e ela não sa-
bia exatamente como os outros receberiam aquela cena. Dona Josefina
ficaria furiosa pela destruição do seu jardim? Claro! Mas o que diabos
Igor fazia parado no meio?
— Meu amor? Igor? O que você está fazendo aí?
Perguntou na dianteira. Foi se aproximando. Roberta lembrou
da vez em que o garoto tinha adormecido com os olhos brancos nas
pernas de dona Josefina. Parecia um cadáver nos braços da mulher.
Foi logo na semana de luto pelo falecimento de Márcia. Roberta nunca
tinha visto aquela família tão triste, era como se a garota fosse parte.
Dona Josefina por pouco não enlouqueceu. Andava pela casa conver-
sando sozinha. Sempre naquele espectro perto de um surto. Seu mau-
-humor tinha tomado uma posição insignificante. Seu Antônio, como
sempre, ausente. Acenava do quarto para que Roberta fosse fazer um
favor para ele. Estava adoentado. Só andava doente.
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Capítulo 51 –
Violência.
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abriu as portas?
Vejamos.
Violência.
Claramente esta não é uma história de amor comum.
Dois passarinhos conversaram entre si, tocaram seus bicos de-
pois de espasmos. Percorreram as cabeças frágeis de Russinha Amada.
Colocaram suas opiniões sobre alguns eventos. Estavam preparados
para o espetáculo. Aquele povo não reparava em passarinhos ou nos
eventos da quarta camada. Não notavam os detalhes daqueles com
que se acostumaram. Cresceram achando mudança uma utopia, e que
aquela terra era abençoada. Fundada por um dos familiares de dona
Josefina, concebida para respeitar a ordem de mundo antiga. A primei-
ra a subir aos céus, como fiel Jerônimo uma vez disse.
Só que chegou Giovani (Danilo não era tanto uma ameaça) e,
depois, Marilene e seu casamento abusivo. Em seguida, uma pande-
mia. Todos acordaram para os problemas, mas o intrínseco aconteceu
sem ninguém perceber.
Fiel Jerônimo, homem na faixa dos quarenta e pouco, saiu de
casa e foi conversar com dona Josefa que tinha lhe chamado. Ambos
discutiram a conduta ruim de Marilene. A idosa mostrou a mensagem
desbocada e continuou se lamentando por ter que fazer tudo sozinha.
Iria morrer e ninguém ficaria por ela. Era um absurdo, pensou fiel Je-
rônimo.
Depois veio Deise, que continuava trancafiada em casa. Con-
taram-lhe da possibilidade do efeito das violetas. As flores poderiam
estar amaldiçoadas. Toda a cidade iria fazer um mutirão para quei-
má-las. Seria o primeiro ponto de redenção. Mas Deise, estranha, não
queria ir para o médico. As vizinhas brincaram que ela precisava ver o
gostosão do doutor Félix, porém, nada a animou. Fiel Jerônimo tam-
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...
— Ei, seus filhos da mãe! Que porra estão fazendo? — a vizi-
nha de trás de Marilene chegou correndo. A porta da sua nova aqui-
sição tinha sido escancarada com pancadas! A nova dona do terreno
apareceu de short e blusinha com um pano de prato nos ombros.
— Vai defender essa filha da puta, Roseana? — a mãe de Bola
pôs as mãos na cintura, liderando uma equipe de mulheres indignadas.
— Ela não tá morando aí mais! Ela foi embora! Não se chega
desse jeito na casa dos outros!
Carolina ficou boquiaberta. As outras beatas também comen-
taram a novidade. Ninguém ia embora de Russinha Amada assim. Nin-
guém.
Espera... Alguém já foi...
— Fugiu? Pra onde?
A vizinha levantou os ombros.
— Sei lá. Só vazou. Ela sabe que sujou pra ela aqui.
A mãe de Bola sorriu.
— É muita onda... Ela arregou! — Carolina abriu os braços
com o gosto da vitória — Espero que sofra onde quer que esteja. Ela e
aquele marginalzinho dela!
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Capítulo 52 –
I love Teresina.
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importante. Aquele povo que mora na Zona Leste. Eles pagam bem,
você só vai precisar se dedicar mesmo. São frescos e tudo... — Bárbara
fez careta. Tamborilou os dedos na madeira da mesa — Cheios de “não
me toque”.
— Mas quem sabe você não consegue algo bom? Uma família
boa?
Marilene murchou.
— Eu já estou acostumada com esses “frescos”. — fez aspas
com os dedos.
— Que bom. Pois amanhã você já pode bater perna também
atrás de algo ali pela Zona Leste ou Sul. Vou mandar umas mensagens
também para algumas colegas.
Marilene segurou as duas mãos de Barbara sob a mesa. Deu
um aperto carinhoso.
— Obrigado amiga, de verdade! Por tudo!
Bárbara ficou vermelha.
— Imagina! A gente tem que se ajudar. Ah, e veja uma escoli-
nha para Augusto! Leve ele para ensinar as linhas de ônibus e as rotas.
Trabalhando quase o dia todo você não vai ter tempo de pegá-lo em
escola ou deixá-lo! Vai por mim.
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Capítulo 53 –
Cidades que não estão em
chamas ainda.
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Capítulo 54 –
O começo do fim.
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não foi linchada pela família. Os vizinhos sentiram pena e, depois dos
julgamentos, resolveram tomar partido do caso como acontece nas pe-
quenas cidades. Chamaram fiel Jerônimo e sua mensagem da resolu-
ção dos problemas sem a violência. O oficineiro, homem sem estudo,
continuou furioso. Xingou a mãe da garota que também quase não lhe
arrancou os cabelos. Queriam achar o culpado. O possível pai sequer
teve seu nome citado. A menina com medo achou melhor não dizer.
Estava desamparada e aflita, vendo todo seu suporte ir contra ela. Não
teve como evitar agarrar-se ao consolo de fiel Jerônimo, o único que
intercedeu por ela. No final de todo o rebuliço, sobrou ao homem a de-
cisão. Com calma, os dois tiveram a conversa, ele e a menina. Falaram
sobre responsabilidade e pecado. E a menina entendeu a ideia que lhe
foi plantada.
Teria o filho. Porque fiel Jerônimo achava melhor assim.
“Obrigado, fiel, você realmente é o escolhido!”
Mesmo com toda sua bondade transbordando, o mundo ainda
teimava em querer colocá-lo sempre no caminho difícil, com prova-
ções que o faziam tomar decisões difíceis. Tempestuoso é o andar do
homem iluminado, que segue rumo aos céus e intercede pelo mundo,
juntando todos aqueles que estão perdidos pelo caminho.
Mas fiel Jerônimo já tinha se contradito inúmeras vezes. E
também optou pelas vielas do ódio em alguns momentos.
Mesmo nas horas que os céus esperassem que ele tomasse uma
atitude diferente...
Por quem você está fazendo, fiel Jerônimo?
Novamente em casa, ele deu uma espiada no portão da vizi-
nha, sua inimiga. Passou a chave na fechadura, fez o sinal da cruz e res-
pirou por estar dentro dos limites que lhe seguravam. Não encontrou
Celeste na varanda tomando um ar, acariciando um presente que ainda
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não poderia ser seu. E tantas vezes precisou repetir para a esposa. No
fim ela sempre balançou a cabeça concordando, entendia que o seu
tempo era inútil perante ao dos céus.
A sua cegueira foi quem lhe traiu, pobre fiel Jerônimo.
Quem disse que ela não estava mesmo ali no jardim?
— Celeste? — questionou.
A casa estava assolada pela tristeza da meia-luz. Quando a tar-
de vai recolhendo os sonhos vivos da manhã e transformando-os em
melancolia para a noite. A poeira suspensa no ar cortava os fachos,
junto do cheirinho de familiaridade e zelo.
Achou esquisito. Era para alguém com a vozinha de submissão
ter respondido.
Jerônimo já se irritou, não gostava quando Celeste saía de casa
sem avisá-lo. Sentia-se traído. Se ela tinha a liberdade de deixar sua
morada por decisão própria e no escuro, o que mais poderia fazer?
Aquilo sempre o intimidou.
— Celeste?
— Oi, fiel. — A voz era feminina, mas não era de Celeste.
Jerônimo se virou. Precisou se segurar nas cadeiras da sala
para entender se o que estava vendo era real. Impossível...
— Do... Do... O que a senhora está fazendo aqui?
O buraco onde deveria ficar o olho esquerdo cicatrizou com
bordas de veias vermelhas apodrecendo. Uma vez que tinha se des-
prendido, o órgão não era mais útil. No lugar, somente vísceras ene-
grecidas; vez ou outra, escorria um fiapo vermelho diluído. Nada que
pudesse chamar mais a atenção que o acidente feio.
— Suas convicções te atrapalharam por anos, homem. Mas
agora você cometeu um erro e é meu dever enquanto ser falante, que
usa deste órgão, te dizer por que acaba aqui. — disse a visita, usando
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ele viu dona Josefina falar algo para a esposa. E Celeste sorriu, como
alguém que tinha acabado de alcançar a redenção. No final, ele não
se recordou de ter sido um marido ruim nem que Celeste tivesse sido
uma esposa ruim. Mas não avistou os sinais, que estavam claros o tem-
po todo.
Por isso, não precisou demonstrar espanto ao ver dona Josefina
arrancar a pele do rosto e virar algo que ele nunca viu na vida. Mas
nos seus sonhos mais estranhos aquela forma era familiar, quando ele
dormia soluçando tentando encontrar a resposta do seu destino. Nos
lugares mais mórbidos da imaginação infantil.
Celeste agarrou algo que era parte dele, negada a ela por anos.
Não podia ser resumido somente àquilo. Tinha algo a mais.
A conversa de ambas explicitou uma maior complexidade.
No fundo, ninguém era mesmo quem dizia ser.
Dona Josefina tinha se transformado em fiel Jerônimo. Numa
versão mais feliz.
E tão bem idealizada. Sem os piores dias sombrios.
Eles.
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Capítulo 55 –
Igor, o quarto.
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a invalidez de uma casa sem uso acordou Igor para a segunda nova
realidade da situação. Mesmo que fosse assustador, ele não demorou
para se perguntar o que tinha acontecido ali. Mirou os pés, enrolados
com um pano sujo de sangue. Parte dos seus dedos tinha perdido a
sensibilidade. Os movimentos eram limitados quando nos pés.
Uma sequência de socos na cabeça de Igor. Milhares de per-
guntas explodindo, incluindo as misturadas com suas suposições fan-
tasiosas. Era difícil acreditar em tudo aquilo.
Resolveu esquadrinhar o que podia da sala. Não foi bem uma
boa ideia. Mas foi deleitoso entender a dinâmica que Rafael tentou es-
conder. Os milhares de cabos eletrônicos trespassando entre mais fia-
ções esquisitas cinzentas. Computadores e mais bugigangas modernas,
os únicos objetos limpos naquele espaço. Um verdadeiro laboratório
malcheiroso que fazia a luz solar ficar verde quando adentrava naquele
perímetro.
Igor não podia falar. Depois de um tempo, notou a sonolên-
cia pesada retardando seus movimentos. Sua boca bem colada era um
ponto à parte. Mas seus olhos eram urgentes, rodeavam tão rápido
que poderiam pular fora. Só fitaram um ponto fixo quando finalmente
algo importante surgiu. Rafael, vestindo um colete por cima das vestes
brancas. Era tão esquisito relacionar aquele Rafael ao de alguns dias
atrás. Pior ainda, ao de anos atrás, quando só era um menino zangado
que amava ganhar nos jogos.
Russinha Amada não gosta de mudanças, já repetimos inúme-
ras vezes.
Drasticamente. Igor não poderia negar que certos circuitos fo-
ram rompidos com aquela chegada. Nos poucos momentos em que es-
tavam juntos, ele soube de algo errado. Mas a carência venceu algumas
batalhas. A nostalgia também. Cego pela novidade, o faro investigativo
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maior.
E saiu, deixando barulhinhos ruidosos. Computadores con-
versando entre si numa linguagem única. Solidão logo na esquerda.
...
O tempo passou e Igor nem reparou. Depois de inúmeras ten-
tativas lutando contra a substância neutralizante, ele conseguiu acenar
com o cotovelo. Parecia uma boneca de pano, um casulo amaldiçoado
com alma. Para recuperar todos os movimentos, levariam horas. Tem-
po que ele não tinha mais.
As coxas começaram a apresentar sinais. Arrastaram-se na
poeira da cerâmica como um limpador de para-brisa. Mesmo que to-
dos os bipes do computador acelerassem a dinâmica ali dentro, Igor
assistia a tudo em câmera lenta. Tão bêbado que se caísse de vez lá
ficaria para sempre.
Horas correndo...
O relógio continuou girando. A mente era a única veloz, re-
lembrando Igor sobre todas as vezes em que ele sorriu para a mãe,
que agora, pelo visto, era um alvo como ele. Embora não estivesse
entendendo nada, sua consciência adquiriu personalidade para lhe
contar. Algum possível efeito da substância injetada, sabe sé lá o quê,
mas Igor começou assustadoramente a compreender a situação. Ficava
mais digerível entender aquele ponto. Sobre estar no meio da sala com
milhares de computadores, dopado e tentando escapar. Sobre sua mãe
ser possivelmente uma fascista perpetuando o legado do pai que se au-
todenominava neonazista, que possivelmente escravizou milhares de
crianças e as usou para algo muito maior.
Rafael só tinha dito as informações por cima. O assunto era
bem mais complexo e urgente.
Agora Igor entendeu.
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Capítulo 56 –
A Família S.
Acertou em cheio.
Entraram como se fossem de casa. Pareciam familiarizados
com os cômodos que uma vez foram tão bem zelados por dona Rai-
mundinha. Eram cinco cientistas, todos de jalecos brancos. Carrega-
vam nos rostos a preocupação da ciência, olhos racionais que pode-
riam fitar o impossível e nada os abalaria. Encontrar um rapaz no chão,
com os pés ensanguentados cheios de finas ligas furta-cor não intimi-
dou ninguém. A cientista de cabelos cacheados tinha no seu crachá o
nome Fernanda. O departamento dela também estava escrito lá: Divisa
de Paranormalidade e Estudos do Através.
— Mas que porra é o Através? — Igor se perguntou mental-
mente. Reparou também no detalhe do diastema da mulher ao sorrir
para o ambiente.
O outro rosto familiar ressurgiu mais velho. O principal, o lí-
der Marcos, preservava o bigode, mas tinha mais marcas do tempo.
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de Contenção de Danos esteja nesse caso. Não pode vazar nada desse
massacre. Procure as famílias de todos os que foram mortos. Com os
que estiverem apenas desmaiados, já sabe o que fazer. — Marcos or-
denou tratando o que quer tivesse lá fora como números. Deixou a
cabeça de Igor mais aflita ainda.
Summer aquiesceu. Seu rosto lembrava um pouco o de Rafael,
com certas linhas mais duras e robustas.
— Puta. Que. Pariu. Que porra de confusão. E logo agora
quando estávamos melhorando nossos laços com os governos mun-
diais. — Marco fez um muxoxo, coçou o antebraço enfiando a mão por
dentro da manga longa do jaleco. Seu braço era peludo como o rosto
— A sorte é que aqui é só uma cidade fodida que ninguém liga.
Fernanda permaneceu aguardando pela ordem, -semostrou
em evidência com os braços cruzados. Vez ou outra, soltava um fiapo
de desespero que só Igor notou. Os outros cientistas agitados nunca
iriam reparar.
— Leve-o lá para fora. Você... — Cornélio se dirigiu a José, o
com óculos de fundo de garrafa — quero que vasculhe o jardim, já que
é do seu departamento. Cornélio vai levar toda nossa força tarefa para
conter alguma ameaça. Não sabemos se a criatura ainda está por aqui.
— Claro, senhor. — José falou. Sua voz era calma — Irei agora.
Marcos ignorou a resposta passiva.
Fernanda tocou os ombros de Summer, ambas vestiram luvas
e se aproximaram de um Igor apenas consciente e imóvel. Com dificul-
dade, as duas conseguiram carregar o corpo para fora. Na proximida-
de, Igor sentiu o cheirinho de perfume caro do jaleco de uma delas. As
mãos de Summer eram mais fortes que as de Fernanda.
Com o impacto da noite, Igor conseguiu engolir que ali ainda
era Russinha Amada e as horas expulsaram a tarde. O mesmo céu e as
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Capítulo 57 –
Uma rápida transformação.
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contou a verdade.
Agora que seus pés estavam formigando e o lençol que os co-
briam começou a desamarrar, Igor entendeu a extensão de sua nova
realidade. Tão paralela quanto a que tinha imaginado. Seus pensamen-
tos eram novos pensamentos. Sua existência era parte de algo maior.
Qualquer resistência seria inútil. Rafael tinha razão em algo.
Os pés eram redesenhados conforme eles queriam. Mesmo
sem saber quem eram eles. Mas a questão não importava mais. A voz
continuou dando ordens, querendo que fosse além.
Raízes foram redesenhando o que seriam os dedos, galhos se-
cos do ápice do sertão caindo do banco para o chão. Filamentos vi-
vos brotavam da pele, estendendo-se por todas as feridas, curando-as.
Dando forma ao inédito e à salvação de Igor. As veias eram agora ris-
cos luminosos, e as artérias pareciam tentáculos tão forasteiros que
sua existência naquele momento iria colocar em xeque a sanidade de
qualquer humanidade. Também se comportaram como fios elétricos
que iriam se conectar ao solo.
Por sorte, ninguém estava vendo, todos abismados com a cena
de horror em Russinha Amada. O mais novo arco esquizofrênico. Até
que uma transformação foi completada com sucesso. Deixou o antigo
corpo evaporar e o novo se juntar a uma nova realidade crescendo bem
na beira invisível de sonhos. Um risco onírico e perigoso.
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Capítulo 58 –
O jardim dos sonhos.
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Marcos.
— Acharam os corpos? — o bigodudo chegou interessado, co-
çou o tufo de pelos na pergunta — Acharam a tal dona Josefina?
— Sim e não. — Fernanda respondeu vendo a dúvida espocar
no rosto do chefe.
— Como assim?
— Bom... o pai realmente era um homem sádico, escravizou
crianças e definitivamente fez experimentos científicos com elas. Ain-
da não encontramos o tal laboratório, mas acredito que não deva estar
longe. O que tem no terreno, além de um corpo feminino normal por
volta de trinta anos, são restos de cadáveres modificados geneticamen-
te que servem como fonte de nutrição para as possíveis flores colori-
das.
— Então? São os cadáveres! Possivelmente, as crianças, adul-
tos, sei lá. — Marcos chegou com ambição, não se solidarizou nenhum
pouco com a situação perversa.
Fernanda coçou a cabeça.
— Senhor, não sei muito bem se aquilo são pessoas. José está
verificando o componente dos corpos. Tirando a mulher de trinta anos
todos estão envoltos de uma substância espelhada de aspecto furta-cor.
Parece viva e conectada tanto com o solo quanto com as flores. Eu não
posso dizer de cara que tenha a ver com o Através.
— Fernanda... — Marcos semicerrou os olhos — mas que por-
ra é essa que você está dizendo? Se não for o Através, o que é então? E
como uma célula neofascista conseguiu esbarrar nessas criaturas alie-
nígenas?
Cornélio murchou, melhor não dizer nada. A colega que ficas-
se no comando. Summer, um pouco distante, continuou cuidando de
enrolar os corpos.
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Capítulo 59 –
A jornada deles.
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rem o que Josefina queria esconder naquele seu jardim. A céu aberto,
ninguém tinha coragem de entrar no lugar sem uma permissão. Res-
peito? Não. Medo. Só fiel Jerônimo poderia liderar aquele movimento.
E isso resultou na agonia até seu último suspiro e gozo, enca-
rando os dúbios olhares da esposa que uma vez foi uma Celeste. Ele
não a reconhecia mais. Talvez, nunca soubesse quem realmente era ela.
Deu o lugar para um falso fiel Jerônimo, que antes foi dona Josefina.
O restante de Russinha Amada aguardou com afinco a cele-
bração; já o restante, os não-mascarados, continuaram suas vidas tão
normais e monótonas.
Fiel Jerônimo ressurgiu, sorridente. Estava diferente. A mãe
de Deise logo notou, parecia confiante e não tão apreensivo. Acenava
com a tranquilidade dos deuses irradiando uma energia que acalmou
o ambiente. Podia fazer tudo o que quisesse e ainda assim obteria êxito.
Ele disse algumas poucas palavras polidas. Falou com todos
num gestual padrão e se dirigiu até o tablado. Sequer tocou no nome
da vizinha florista. Ninguém entendeu direito, muito menos quando
os próximos minutos de violência se sucederam.
Quando um rapaz familiar apareceu, com armas, ameaçando
fiel Jerônimo e o chamando para um confronto, todos da igrejinha gri-
taram assustados, mas o que quer que fosse o novo fiel Jerônimo des-
viou com facilidade dos ataques. Porém, Rafael investiu rápido com
uma bomba de gás perigosa, mas bem articulada. Alcançando somente
os limites da pequena Russinha Amada.
Depois disso, a criatura que antes era fiel Jerônimo se transfor-
mou novamente. Voltou a ser dona Josefina com o ar de graciosidade.
Correu para casa e avistou a solidão da morte. Seu pobre companheiro
doente não aguentou a simbiose com a essência do que foi uma vez
Antônio, o pai de Igor, e faleceu.
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Parte 7 –
A Sociedade
do Através:
síntese e
conceito.
Um retrato
obsceno.
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Capítulo 60 –
Marilene dentro do submun-
do.
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iria ter que esperar o outro ano para matriculá-lo. Resultado: o restante
dos dias seria sabático. Augusto quase vibrou de felicidade. Seus olhi-
nhos procuravam por outras crianças pela vizinhança, mas a região
em torno da Praça Pedro II tinha um espectro sombrio. A maioria das
pessoas na rua era mendigo, isso no horário das 18 horas, quando a
cidade insinuava sonolência. O bairro ficava desértico. Vez ou outra,
algum movimento na esquina, as mulheres bonitas que acenavam para
Augusto quando ele surgia no portão. Uma delas chegou a chamá-lo,
mas não seria uma boa ideia aceitar o convite de uma estranha. Marile-
ne tinha alertado.
Mesmo com apenas um quarto, Augusto e Marilene se dividi-
ram bem. Tinha espaço até para ele guardar o seu bem mais valioso:
a caveira brilhosa. Toda vez que a mãe saía para trabalhar, ele usava o
artefato para participar de suas brincadeiras. O líquido furta-cor ti-
nha diminuído e, quando tocava o chão, sumia em ebulição. Não tinha
rastros. A caveira ganhou alguns riscos enquanto a estrutura óssea foi
ficando mais fraca. Um dos dentes tinha caído e, assim como o líquido
que brotava do interior, magicamente desapareceu. Cada parte do ob-
jeto, quando não ligada ao todo, evaporava.
Na imaginação do garoto, aquilo fazia todo o sentido. E mes-
mo que o objeto evocasse um sentimento ruim junto das lembranças
daquele dia, era o seu bem mais precioso, depois da sua mãe. Augusto
tinha mágica em suas mãos. A caveira não o assustava, mas comple-
tava um círculo fantasioso em sua cabeça. O teor do medo era mera
construção que as crianças desconstruíam com facilidade.
Entretanto, a rota de colisão envolvendo aquela caveira tinha
sido definida no exato momento em que ela foi tirada fora de seu lugar.
Marilene tinha até esquecido o assunto. Simplesmente, o tra-
balho lhe cansava o suficiente para pensar somente em dormir e sobre-
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viver.
A filha da patroa, uma digital influencer, era uma figura. Con-
versava vez ou outra com ela, mesmo que Marilene não achasse boa
ideia ficar papeando com seus patrões. Tinha colocado na sua cabeça
a posição de inferioridade no trabalho, feita para servir e ficar calada.
Num dia que sorriu para a mãe da garota, dona Andreia Lobo, recebeu
uma investida fria com a ricaça fechando a cara. Pediu que recolhesse
a mesa, com rapidez, porque não aguentava ver desorganização. Mas
Marilene até que entendeu, era difícil a vida da empresária. A filha,
Joyce, não gostava muito de estudar. Dizia que seria médica, mas pre-
feria passar o dia interagindo nas redes sociais com uma tal de Marília,
sua melhor amiga. Dona Andreia não gostava disso. Pagava caro uma
escola e um cursinho para ver resultados medíocres.
Em uma das várias discussões que a situação evocava, a ricaça
chegou a ameaçar Joyce, perguntando se ela iria querer ser balconista
ou qualquer cargozinho mixuruca. Se virasse uma servente burra, a
mãe disse que faria questão de humilhá-la na frente de todos. Ainda
completou que a menina era feia, não iria ter a sorte de ter um noivo
rico e bonito. Precisava agir por si só e continuar o legado da mãe sen-
do rica e bem-sucedida.
Joyce passou o restante do dia mal. Revirando o que era ser
uma adolescente gorda com todas as suas inseguranças. Marilene ficou
abismada porque nunca tinha visto uma menina tão linda como ela.
Mesmo nos seus ataques arrogantes, ela não conseguia desgostar de
Joyce. Naquele dia trevoso, pensou em consolá-la. Porém, limites se-
riam ultrapassados. E o drama não durou muito tempo. A adolescente
chamou algumas amigas para sair e foram juntas tirar foto para com-
por o feed do Instagram.
Ao se despedir, ordenou que Marilene arrumasse o seu quarto.
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Capítulo 61 –
Espetáculos que antecedem
o apocalipse.
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Capítulo 62 –
Finalmente.
D ona Andreia não se opôs, mas também não ficou muito fe-
liz. Horas depois que o garoto só tinha tomado o cantinho da sala, a
ricaça questionou Marilene sobre ele vir todos os dias com ela.
Não soube dar resposta de imediato, mas contou o que a pa-
troa queria ouvir. A questão era onde deixar Augusto ficar, já que sozi-
nho em casa era um grande perigo.
Joyce quis interagir com o menino, simpatizou com ele desde
já. E os dois iniciaram uma amizade rápida. Em parte, para provocar
a mãe, sabia das aversões dela. Uma pena ter que usar o garoto para
aquilo. Marilene ficou contente com a relação. Se pelo menos a filha da
patroa gostava do filho então a questão na casa ficaria mais dividida.
Tudo girava em torno do seu emprego e Augusto não poderia ser uma
intempérie.
O primeiro dia de Augusto na casa dos ricos foi ameno.
Marilene puxava o garoto com força sempre com seu olhar
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puro sadismo.
Ela respirou e contou até dez. Depois, pediu para Augusto lhe
ajudar com a arrumação. Para driblar os problemas, iria levar suas gar-
rafas de casa e enchê-las no filtro moderno de dona Andreia. Driblaria
a mesquinhez da patroa e conseguiria esconder as garrafas entre os
vários alimentos, isso até a hora de ir embora, quando levaria consigo
para ela e o filho aguentarem pelo menos de noite. Até o outro dia e por
assim vai.
Mesmo que a sensação de perseguição se amenizasse, Marile-
ne não conseguiria dormir, preocupada. O susto tinha seu valor, dei-
xando-a em alerta. Seu sexto sentido apontava para novos olhos em
cima de si e do filho. Quando se virou para o lado, deu de cara com a
mochila de Augusto. Brilhando. Nunca tinha notado antes o espetácu-
lo de cores.
Marilene se levantou na ponta dos pés e puxou o zíper com
cuidado. Seus olhos demoraram a se acostumar com a imensidão lu-
minosa. Até que o desenho da caveira surgiu e a assombrou com todas
as dúvidas possíveis. Nada fazia sentido. Não seria lógico acordar Au-
gusto para questionar sobre aquele artefato. No final das contas, toda
aquela confusão tinha um fundo de verdade. E ela, mais uma vez, sen-
tiu-se uma mãe irresponsável. Porque não o confrontou ali de cara.
Deixou suas desavenças falarem mais alto.
Quando tocou o líquido furta-cor, sentiu os pelos do braço ar-
repiarem. Um formigamento deleitoso passeando e contando que tudo
no fim fica bem. Conseguiu deixá-la calma, para que adormecesse e
não pensasse tanto. Eles iriam amenizar sua aflição.
Aquela alma só precisava de um descanso para continuar seu ca-
minho dentre o mundo dos homens comprovando sua íntima existência.
Dentro de um jogo desleal e cru. Uma página qualquer desse manifesto.
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Capítulo 63 –
O derradeiro espetáculo. O
fim do mundo e início de um
novo.
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Tempos depois, aquela nova realidade, que muito tinha lhe en-
sinado, conseguiu surpreendê-lo. Relembrando-o de algo que ele não
sabia que buscava: amor.
Na calada da noite de um dia qualquer, uma menina surgiu.
Ela era diferente. Enxergava mais do que os outros humanos e parecia
corajosa avançando contra o terreno do chato Rei Cristian. Ele não
entendia o porquê, mas confiar nela pareceu a melhor ideia naquele
momento. A menina parecia tão corajosa e bondosa, e ainda carregava
consigo um artefato poderoso, o tal mapa mágico.
Resolveu tomar uma atitude de coragem e surgiu temendo re-
taliação. Seus pés faziam barulho porque não eram pés normais, e sim
garrafas, brilhantes como um presente do Através.
A menina estava impaciente. Era uma boa ideia ajudá-la.
Quem sabe ela também tornaria a ser gentil com ele de volta.
Ele respirou antes de falar.
— Se você quiser falar com ele, tem que pedir ao rio! — e, de-
pois, cobriu a própria boca pela ousadia.
A estranha menina se assustou. Pediu que ele saísse do seu
esconderijo. Era justo. Mas ele estava receoso, ela tinha pés normais
como o restante e ele consistia numa deformidade esquisita. Mas sur-
giu logo depois com uma divertida contagem regressiva.
Era o início de uma amizade de aventuras. Ambos conversa-
ram e o menino sem nome até ganhou um.
Depois que os dois enfrentaram a fúria do Rei Cristian e con-
seguiram soltar as meninas, o garoto se acidentou com o impacto da
queda. Foi levado para o hospital mágico por uma das meninas, a mais
carismática, chamada Carla.
Dias depois, quando acordou, a médica engraçada de cabe-
los vermelhos se levantou da cadeira. Encarou firme os dois olhinhos
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abrindo e questionou:
— Geleia? Tudo bem?
Ele balançou a cabeça com um sim.
— Tenho uma surpresa para você.
O menino arregalou os olhos.
— Na verdade, três surpresas especiais, que estavam ansiosas
para vê-lo.
A médica se virou para a porta.
— Podem entrar, meninas. Ele está bem.
E o seu sorriso encantou o restante. Finalmente, com a sua
nova família.
Mas... a que custo?
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Epílogo
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