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A Ideia de Inconsciente Na Existencial e Outros Escritos
A Ideia de Inconsciente Na Existencial e Outros Escritos
O termo inconsciente... está, no fundo, tão presente, senão mais presente, à consciência
do que tudo o que habitualmente se descreve sob o nome de consciente, e o elemento
negativo que se encontra no termo ‘inconsciente’ significa somente que o fundo
inconsciente, em razão mesma de seu caráter essencialmente dinâmico e vivo, não pode
ser nem detido, nem decomposto, nem expresso de um modo tão preciso, no sentido
racional da palavra, do que os elementos conscientes de natureza estática. Nesse
sentido, não hesitaremos de modo algum em falar de ‘consciência do inconsciente’,
sem cairmos na contradição que parece conter esta expressão. (Minkowski 1995, p.47)
É evidente que o contato vital com a realidade seja de natureza dinâmica. Não se trata
aqui nem de ‘tocar’ a realidade material ou de ser tocado por ela, nem de algum
fenômeno comparável às relações desta ordem. O que temos em vista, é a faculdade de
‘avançar’ harmoniosamente com o devir ambiente, deixando-nos penetrar inteiramente
por ele, sentindo-nos um com ele. Neste sentido, empregamos também o conceito de
sincronismo vivido para designar o fenômeno estudado. (ib., p.59)
expressão clara consciente nos leva, para finalizar, à interessante concepção bergsoniana
da
que flui e evolui harmoniosa e paralelamente, através de duas séries fenomênicas que se
Vécu:
Esse termo (sincronismo vivido) nos faz pensar em duas linhas paralelas. Com efeito, há
como que
um esboço de paralelismo no contato vital com a realidade. São como duas durações
que evoluem
“comunhão” interpessoal:
Um outro fenômeno ainda realiza de um modo particularmente vivo o contato vital com
a realidade; éa ‘simpatia’, no sentido etimológico da palavra. Denominamos assim esse
dom maravilhoso que carregamos em nós de fazer nossas as penas de nossos
semelhantes, de nos penetrarmos inteiramente,de nos sentirmos em perfeita comunhão,
de nos tornarmos um com eles.
Assim, as idéias delirantes não serão mais unicamente os produtos de uma imaginação
mórbida ou distúrbios do julgamento; elas representarão, ao contrário, uma tentativa
de traduzir na língua do psiquismo do passado a situação não costumeira em presença
da qual se encontra a personalidade quese desagrega.
Conclusão
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Somos responsáveis por nossas emoções, visto que há maneiras que escolhemos
para reagir frente ao mundo. Somos também responsáveis pelos traços duradouros da
nossa própria personalidade. Não podemos dizer "sou tímido", como se isto fosse um
fato imutável, uma vez que nossa timidez representa a forma como agimos, e que
podemos escolher agir diferentemente. Nossos atos nos definem. Na vida, o homem se
compromete, desenha seu próprio retrato e não há mais nada senão esse retrato. Nossas
ilusões e imaginação a nosso respeito, sobre o que poderíamos ter sido, são decepções
auto-infligidas. Permanentemente estamos a nos fazer do modo que somos. Uma pessoa
"corajosa" é simplesmente alguém que geralmente age com bravura. Cada ato contribui
para nos definir como somos, e em qualquer momento podemos começar a agir de
modo diferente e desenhar um retrato diferente de nós mesmos. Há sempre uma
possibilidade de mudança, de começar a fazer um tipo diferente de escolha. Temos o
poder de nos transformar indefinidamente.
MÁ-FÉ E INCONSCIENTE
Uma das tentativas teóricas de resolver esse paradoxo que merece consideração
é a que nos apresenta a Psicanálise. O núcleo da proposta psicanalítica situa-se
inconsciente. Para explicar a situação na qual a consciência se constitui ao mesmo
tempo como enganador e enganado, a psicanálise atribui à consciência uma dimensão
subterrânea que subsiste sob a esfera consciente. Agindo por detrás da consciência
propriamente dita, o inconsciente pode motivar, influenciar e mesmo determinai, sem
ser percebido, as decisões que o indivíduo conscientemente assume É por meio dessa
incisão teórica na consciência que a teoria psicanalítica pretende haver tornado
compreensível a má-fé. Na medida em que supomos o inconsciente agindo à revelia da
própria consciência, e razoável supormos igualmente esse mesmo inconsciente a mentir
e a enganar à consciência. Com a cisão consciente/inconsciente, a psicanálise reproduz a
opacidade que caracteriza a relação de transcendência entre várias consciências. Desde a
concepção ontológica da consciência como ser-para-si não é possível concordar,
entretanto, com os pressupostos de semelhante teoria. Na perspectiva sartriana, a
hipótese do inconsciente comete um profundo equivoco ontológico: ela introduz na
dimensão do para-si uma opacidade que cabe unicamente ao em-si. Por isso, embora
reconhecendo a superioridade da teoria psicanalítica sobre as teorias psicológicas
clássicas, Sartre não pode aceitar o conceito de inconsciente, posto que este conduz a
um modelo no qual a consciência aparece, não como instituidora de significatividade,
mas sim como recebendo toda significação desde o inconsciente.
FENOMENOLOGIA DA MÁ-FÉ
Em primeiro lugar, podemos visualizar a situação descrita como uma espécie de "jogo"
existencial, jogo no qual facticidade e transcendência são elementos em permanente
trânsito. Senão vejamos: para que a mulher possa apreciar os galanteios que lhe são
dirigidos e, simultaneamente, negar-lhes uma motivação implícita, ela deve colocar-se
ora na dimensão da transcendência - c então os galanteios aparecerão como declarações
de apreciação que lhe são dirigidas por tini sujeito que a toma por objeto -, ora na
dimensão da facticidade - caso em que os mesmos galanteios lhe aparecerão
simplesmente como fatos do mundo e, como tais, desprovidos de quaisquer finalidades
-, pois somente uma consciência pode estabelecer finalidades.
Ocorre que, na medida em que as duas dimensões devem colocar-se
simultaneamente, a mulher que age de má-fé não pode jamais estabelecer-se em
nenhuma delas. Estacionar em uma dessas dimensões implicaria na obrigatoriedade em
assumir uma decisão, com o que a situação de má-fé se desvaneceria enquanto tal. A
má-fé se caracteriza na situação descrita, portanto, como um comportamento ambíguo
no qual os aspectos de transcendência e facticidade devem ser relacionados por meio de
uma síntese um tanto singular; nessa síntese ambas as dimensões devem
simultaneamente distinguir-se e confundir-se. Síntese em nada dialética, nela os
momentos contraditórios não se anulam nem se fundem em uma unidade superior ao
modo hegeliano, mas mantêm-se irreconciliáveis. A unidade dessas duas instâncias é
garantida unicamente por um movimento contínuo que nos joga continuamente de uma
para outra; a síntese revela-se, ao fim e ao cabo, uma pseudo-síntese.
Assim, para que os conceitos de má-fé possam ao menos um instante nos criar
ilusão, para que a franqueza dos "corações puros" (Gide, Kessel) possa valer para a
realidade humana como o ideal, é preciso que o princípio de identidade não represente
um princípio constitutivo da realidade humana, é preciso que a realidade humana não
seja necessariamente o que ela é, e possa ser o que ela não é.
Uma vez que a realidade humana se constitui desde o fundamento de uma tal
ambigüidade ontológica, o ideal da sinceridade - isto é, o ideal de que o homem torne-se
completamente aquilo que ele é e se apresente frente ao demais exatamente dessa forma
- deve revelar-se um puro ideal e, como tal, inatingível por princípio. O fundamento
dessa impossibilidade, entretanto, não deve ser buscado nas relações sociais perturbadas
ou não - que os homens travam entre si, mas sim na constituição ontológica da realidade
humana. 0 ideal de nos tornarmos exatamente aquilo que somos ou devemos ser choca-
se com a caracterização da consciência como ser-para-si: somente ao em-si cabe a
plenitude ontológica. A consciência estabelece uma barreira ontológica intransponível
para o ideal da sinceridade posto que este, traduzido em termos ontológicos, implica na
impossível fusão entre em-si e para-si. Dessa forma, o ideal da sinceridade não escapa,
como veremos, aos parâmetros que identificam os comportamentos de má-fé.
Isto inclui não apenas os papéis sociais que representamos, mas também os
assim chamados estados emocionais. Da mesma forma que um garçom não pode sê-lo
senão enquanto o representa, assim também não podemos, por exemplo, entristecer-nos
sem, simultaneamente, termos consciência (não-posicionalmente, isto é, de modo pré-
reflexivo) de que estamos tristes. Trata-se, sempre, de caracterizar a consciência como
consciência de ser: como tal, uma consciência não pode identificar-se de forma plena e
absoluta com a tristeza; em lugar disto, uma consciência triste apresentar-se-á,
necessariamente, corno consciência (de) tristeza. Nesse sentido, para encontrarmo-nos
tristes é exigido que tenhamos nos assumidos como tristes, isto é, que tenhamos
assumido a tristeza como i i m valor a ser realizado (o que não significa, evidentemente,
que tenhamos "escolhido a tristeza" a um nível reflexivo). Portanto, os estados
emocionais devem ser entendidos sobretudo como posições a serem assumidas e
escolhas a serem feitas, ao invés de serem vistos como estados solidamente constituídos
para o interior dos quais podemos, ocasionalmente, catapultar-nos.
A busca pela liberdade de Mathieu é uma busca de má-fé, busca da qual o ideal
de sinceridade não e senão uma das faces. A liberdade que ele deseja assumir se
caracteriza como uma ausência de todo compromisso, como recusa em comprometer-se
com qualquer situação. Dessa forma, ainda que Mathieu se queira diferente de seu
irmão Jacques - advogado de sucesso que assume integralmente os valores da classe
burguesa - os comportamentos de ambos revelam uma familiaridade essencial: um e
outro estão mergulhados na má-fé. Daniel Sereno, o homossexual amigo de Mathieu,
igualmente expõe essa face da sinceridade. Diferentemente do homossexual apresentado
em O Ser e O Nada, Daniel Sereno não renega sua pederastia mas, pelo contrário, quer
identificar-se com ela de uma forma absoluta.Ser de pedra, imóvel, insensível, sem um
gesto, sem um ruído, cego e surdo, as moscas, os insetos passando sobre meu corpo,
uma estátua severa de olhos vazios sem um projeto, sem uma preocupação; talvez
conseguisse coincidir comigo mesmo. Não, certamente, para me aceitar; para ser, enfim,
o objeto de meu ódio. ( ... ) Ser. No escuro, às cegas. Ser pederasta, como a árvore é
árvore. Apagar-se. Apagar o olhar interior.
Ao invés de pretender não ser o que ele não é, Daniel Sereno busca ser o que ele
é; ele quer tornar-se plenamente - sem ser dilacerado pelo nada da consciência (de) ser -
aquilo que ele é. Ainda uma vez aqui, a sinceridade se desmascara como uma forma
mais sofisticada da má-fé. Um outro aspecto fundamental da má-fé é o fato de que ela é,
justamente, uma fé. Ou seja: um comportamento de má-fé deve sustentar-se na medida
mesmo em que tenhamos desde o início - isto é, a partir do projeto existencial -
escolhido o não-convencimento, decidido por uma crença que não seja plena, que não
vá até o fim naquilo a que ela se propõe. Isto, por sua vez, é unicamente possível porque
a crença é, em seu próprio ser, cindida pelo nada; crer é ter consciência (de) crer: aqui,
como em todo lugar, a consciência instala-se a certa distância de si mesma. Essa
distância está também presente, portanto, na boa-fé. (3) Cabe agora explicitar a questão
que já há algum tempo se nos colocou: desde que a má-fé se apresenta como essa
possibilidade permanente de mistificação da realidade humana - possibilidade
instaurada desde que toda consciência do ser é, ao mesmo tempo, consciência (de) ser -,
corno articular uma superação dessa mistificação? Desafortunadamente, apesar da
prolixidade demonstrada em muitos pontos de suas análises, acerca desta questão em
particular, Jean-Paul Sartre revela-se extremamente lacônico. A ela refere-se
explicitamente apenas numa pequena nota ao pé da página final do capítulo sobre a má-
fé.Se é indiferente ser de boa ou de má-fé, porque a má-fé retoma a boa e se introduz na
origem mesma de seu projeto, isto não quer dizer que não se possa escapar radicalmente
à má-fé. Mas isto supõe uma reassunção do ser apodrecido por ele mesmo, reassunção
que nós chamaremos autenticidade e cuja descrição não cabe aqui.
Por outra parte, é interessante destacar que a má-fé, dita fundamento de todas as
formas reflexivas de fuga diante da liberdade, surge de início ao nível da pré-
reflexividade. Todas as mistificações da má-fé tem seus fundamentos naquele terreno
primeiro e imediato onde se esboçam as pseudo-sínteses conceituais e onde se dá o
embaralhamento das estruturas existenciais da realidade humana que caracterizam tais
mistificações. Estando a má-fé situada ao nível da pré-reflexividade, podemos concluir
que o desvelamento das pseudo-sínteses que a caracterizam exige, justamente, que as
consideremos à luz da dimensão reflexiva da consciência. Somos levados assim,
também desde aqui, até uma mesma hipótese, a qual pode ser enunciada como segue: a
autenticidade, qualquer que seja sua natureza e como quer que se determinem seus
limites, pressupõe a reflexividade como via de acesso.
NOTAS
(1) Arthur Danto, cru seu interessante estudo sobre a obra de Jean-Paul Sartre (DANTO,
1993), equivoca-se entretanto ao reduzir a noção sartriana de má-fé ao "auto-engano".
Ao fazê-lo, Danto deixa de lado toda a dinâmica ontológica da consciência, contexto
único e indispensável para tinia compreensão das raízes ontológicas da má-fé.
(3) Enquanto a sinceridade se define pela tentativa de se tentar ser o que se é, a boa-fé é
definida por Sartre como a tentativa de se crer no que se crê. (SARTRE, 1993, P. 106)
FENOMENOLOGIA DA MÁ-FÉ
Em primeiro lugar, podemos visualizar a situação descrita como uma espécie de "jogo"
existencial, jogo no qual facticidade e transcendência são elementos em permanente
trânsito. Senão vejamos: para que a mulher possa apreciar os galanteios que lhe são
dirigidos e, simultaneamente, negar-lhes uma motivação implícita, ela deve colocar-se
ora na dimensão da transcendência - c então os galanteios aparecerão como declarações
de apreciação que lhe são dirigidas por tini sujeito que a toma por objeto -, ora na
dimensão da facticidade - caso em que os mesmos galanteios lhe aparecerão
simplesmente como fatos do mundo e, como tais, desprovidos de quaisquer finalidades
-, pois somente uma consciência pode estabelecer finalidades. Ocorre que, na medida
em que as duas dimensões devem colocar-se simultaneamente, a mulher que age de má-
fé não pode jamais estabelecer-se em nenhuma delas. Estacionar em uma dessas
dimensões implicaria na obrigatoriedade em assumir uma decisão, com o que a situação
de má-fé se desvaneceria enquanto tal. A má-fé se caracteriza na situação descrita,
portanto, como um comportamento ambíguo no qual os aspectos de transcendência e
facticidade devem ser relacionados por meio de uma síntese um tanto singular; nessa
síntese ambas as dimensões devem simultaneamente distinguir-se e confundir-se.
Síntese em nada dialética, nela os momentos contraditórios não se anulam nem se
fundem em uma unidade superior ao modo hegeliano, mas mantêm-se irreconciliáveis.
A unidade dessas duas instâncias é garantida unicamente por um movimento contínuo
que nos joga continuamente de uma para outra; a síntese revela-se, ao fim e ao cabo,
uma pseudo-síntese.
Uma vez que a realidade humana se constitui desde o fundamento de uma tal
ambigüidade ontológica, o ideal da sinceridade - isto é, o ideal de que o homem torne-se
completamente aquilo que ele é e se apresente frente ao demais exatamente dessa forma
- deve revelar-se um puro ideal e, como tal, inatingível por princípio. O fundamento
dessa impossibilidade, entretanto, não deve ser buscado nas relações sociais perturbadas
ou não - que os homens travam entre si, mas sim na constituição ontológica da realidade
humana. 0 ideal de nos tornarmos exatamente aquilo que somos ou devemos ser choca-
se com a caracterização da consciência como ser-para-si: somente ao em-si cabe a
plenitude ontológica. A consciência estabelece uma barreira ontológica intransponível
para o ideal da sinceridade posto que este, traduzido em termos ontológicos, implica na
impossível fusão entre em-si e para-si. Dessa forma, o ideal da sinceridade não escapa,
como veremos, aos parâmetros que identificam os comportamentos de má-fé. Dada a
impossibilidade de situar a realidade humana sob o registro da identidade, devemos
compreendê-la segundo uma nova categoria, da representação. A propósito,
consideremos esta outra situação apresentada em O Ser e O Nada:
Consideremos a esse garçom de café. Ele tem o gesto vivo e marcado, algo
demasiado preciso, algo demasiado rápido; ele vem aos consumidores com um passo
um pouco demasiado vivo, se inclina com presteza algo excessiva; sua voz, seus olhos,
exprimem um interesse algo demasiado pleno de solicitude pelo comando do cliente;
enfim, ei-lo que volta, ensaiando imitar em sua marcha o rigor inflexível de não se sabe
qual autômato, tudo isto sustentando sua bandeja com um tipo de temeridade de
funâmbulo, colocando-a em um equilíbrio perpetuamente instável e perpetuamente
rompido que ele restabelece perpetuamente com um movimento ligeiro do braço e da
mão. Toda sua conduta nos parece uma representação. Ele se aplica a encadear seus
movimentos como se eles fossem mecanismos comandando-se uns aos outros, sua
mímica e sua voz mesmas parecem mecanismos; ele se dá a presteza e a rapidez
inexorável das coisas. Ele representa, se diverte. Mas o que então ele representa? Não é
preciso observá-lo muito para dar-se conta: ele representa ser garçom de café. 0 garçom
representa ser garçom porque ele não pode sê-lo, isto é, ele não pode ser garçom ao
modo em que o ser-em-si é de uma forma total aquilo que ele é. A realidade humana
desenha-se segundo contornos tais que, nela, tudo o que é não o é plenamente. Há uma
fissura ontológica que separa indelevelmente o homem de si mesmo: a este jamais é
permitido identificar-se totalmente com o que pretende ser, pois ele não pode evitar ser
consciente daquilo que ele é. E isto faz toda a diferença.Dentre toda a obra romanesca
de Jean-Paul Sartre, personagem algum é mais representativo desse aspecto da realidade
humana do que Lucien Fleurier de A infância de um chefe. Com certeza, poucas vezes
na obra inteira desse autor a má-fé encontrou lima tão exemplar encarnação. Ao
descrever a infância e a juventude de Lucien Fleurier, jovem representante das classes
dirigentes da França, Sartre molda esse personagem de modo a torná-lo lima figura
quase mítica na qual estão reunidas várias das muitas formas segundo as quais a má-fé
comumente se manifesta.
Lucien compreende então que tudo e todos estão a representar uma estranha comédia.
- Seu rapagão!
E Lucien brincava também, mas acabou por não saber muito bem de
quê. (idem, ibidem).
( ... ) Tenho boas notas, mas não gosto de estudar. Não detesto o estudo
tampouco, não lhe dou importância. Não dou importância a nada. Não
serei nunca um chefe. "Eu" Olhou ao longe; a palavra soava na sua
cabeça, talvez se pudesse adivinhar alguma' coisa como a ponta sombria
de uma pirâmide cujos lados fugiam, longe, na bruma. Lucien
estremeceu e suas mãos tremeram: "É isso", pensou, "é isso. Tenho
certeza: eu não existo. (idem, ibidem, p. 155).
Lucien Fleurier deseja conceber sua vida como algo mais do que uma mera
comédia a ser representada (e o que é pior: uma comédia por trás da qual nada subsiste.
De fato, se a existência é representação, então não há representante e o homem se esgota
nessa representação.). Com isto, seus questionamentos existenciais são apaziguados e
ele mergulha - definitivamente, enfim - na má-fé. Se viver é falsificar. e se a consciência
dessa falsificação é dolorosa, podemos falsificar a própria falsificação. Neste caso,
buscamos a falsificação potencializada assumindo um personagem que nos é dado e
com o qual buscaremos uma máxima identificação (ainda que uma identificação
absoluta esteja ontologicamente vedada). Com isto, porém, abdicamos da compreensão
de que, se a realidade humana esta submetida à necessidade ontológica de representar
ser aquilo que ela é, não se segue necessariamente daí que toda existência se constitua
enquanto mera comédia. Ocorre que podemos compreender o caráter de representação
da existência desde o ponto de vista da autenticidade; e isso significa: se aquilo que
somos é, fundamentalmente, aquilo que nos tornamos, então assumir lucidamente a
condição humana implica em compreender como cada ação que praticamos deve ser
referida a um projeto existencial pelo qual devemos responder.
Havia mais de dois mil anos que ele [Erostratol estava morto e sua ação brilhava
ainda, como um diamante negro. Comecei a crer que meu destino seria curto e trágico.
Isso me amedrontou a princípio, depois me habituei. Encarado sob certo ângulo, é atroz,
mas, de outro lado, dá ao instante que passa Lima força e uma beleza consideráveis.
Quando desci à rua, sentia em meu corpo uma força estranha. Tinha junto a mim meu
revólver, essa coisa que explode e faz barulho. Mas não era mais nele que punha minha
segurança, era em mim, eu era um ser da espécie dos revólveres, dos petardos e das
bombas. O sentimento de aventura de Roquentin e a tentativa desesperada de Paul
Hilbert de transformar a existência mim bloco de densidade impenetrável, têm uma
pretensão em comum, qual seja, a de constituir a realidade humana segundo os padrões
do ser-em-si. Ambas tentativas de justificação da existência ignoram, porém - e por isso
elas têm também o fracasso em comum -, a distância nadificante que a consciência
institui em meio ao ser e ambas revelam-se, enfim e por isso mesmo, exemplares dos
comportamentos de má-fé. Prosseguindo em nossa análise, acompanharemos agora
outros exemplos dos comportamentos de má-fé apresentados em O Ser e O Nada - por
meio deles, poderemos esclarecer um aspecto adicional de tais comportamentos. Trata-
se de avaliar as pretensões da sinceridade e de considerar as relações que tais pretensões
têm com o âmbito da má-fé. Citamos na íntegra o exemplo proposto para essa análise.
NOTAS
(1) Arthur Danto, cru seu interessante estudo sobre a obra de Jean-Paul Sartre (DANTO,
1993), equivoca-se entretanto ao reduzir a noção sartriana de má-fé ao "auto-engano".
Ao fazê-lo, Danto deixa de lado toda a dinâmica ontológica da consciência, contexto
único e indispensável para tinia compreensão das raízes ontológicas da má-fé.
(3) Enquanto a sinceridade se define pela tentativa de se tentar ser o que se é, a boa-fé é
definida por Sartre como a tentativa de se crer no que se crê. (SARTRE, 1993, P. 106)