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A IDEIA DE INCONSCIENTE NA FENOMENOLOGIA-EXISTENCIAL

Rotulações indevidas são comuns na apresentação das abordagens da psicologia;


assim a gestalt é conhecida pela “forma”, o behaviorismo pelo “reforço”, a rogeriana
pela “aceitação” e a existencial pela “escolha” ou por “não admitir o inconsciente”.
Reducionismos.
Tomando a questão do inconsciente para estudo, Tatossian afirma que mesmo no
fundador da fenomenologia, o inconsciente não está ausente, já que a recusa do
inconsciente não é mais que um eco inicial e efêmero da doutrina de Brentano que
identificava “fenômeno psíquico” e “fenômeno consciente”. Assim, no conceito de
“consciência de horizonte” e na “intencionalidade do horizonte” já encontramos vários
modos de uma “intencionalidade inconsciente”.
No cerne do surgimento da psicologia científica, e buscando definir o “objeto de
estudo da psicologia”, Franz Brentano diferencia fenômenos físicos e fenômenos
psíquicos. Fenômenos físicos como objetos dados pela percepção e que não possuem
existência em si (as cores, os sons, os sabores, os cheiros e as sensações); e os
Fenômenos psíquicos que são atos mentais reais em si mesmos, que temos certeza de
sua existência. Brentano distinguiu três classes de fenômenos psíquicos fundamentais: a
representação, a aprovação (ou sentimento de amor) e a desaprovação (ou sentimento de
ódio).
Como é apontado por Husserl, o sentido é maior do que cada ato visado; é o seu
conjunto. Quando perguntam: “o que é uma bicicleta?” Em nossa resposta não diremos:
“duas rodas conectadas a um quadro com guidão e selim...” Pensaremos o sentido como
um todo. Pensaremos no conjunto subentendido na palavra “bicicleta”. A visualização é
o todo. O sentido sempre ultrapassa o que é dado em cada cogito. Tais sentidos, por sua
vez, se manifestam à consciência através de dois modos distintos, a saber: o atual e o
horizonte. No modo atual está todo o sentido dado imediatamente no objeto, o que ele é
no momento presente. De certo modo, em sentido lato, o atual é sempre parte do
horizonte do que já foi pertencente às possibilidades. Por outro lado, por horizonte, no
sentido estrito, entende-se o conjunto de possibilidade de sentidos no qual o objeto se
encontra envolto. O visar atual da consciência traz implícito o horizonte potencial, o
sentido. Desse modo, também os atos da consciência se distinguem entre si no fato de
pertencerem aos diferentes modos de visar, atual e potencial. À percepção, cabe
unicamente o modo atual de visar o objeto. De outro modo, no horizonte potencial, se
enquadram os atos da consciência tais como a memória, a imaginação, a lembrança...
Tal é o papel do horizonte na fenomenologia que Husserl chega a definir o mundo como
o horizonte máximo de nossas sínteses – o mundo implica tanto experiências empíricas,
quanto éticas, religiosas e assim por diante.
Em Meditações Cartesianas Husserl não aborda com tanta profundidade a
temática do horizonte, apenas explanando-a nos §§ 9 e 19. Segundo Husserl, para além
do núcleo do ego cogito, existe um horizonte indeterminado, de uma generalidade vaga,
horizonte daquilo que, na realidade, não é objeto imediato de experiências, mas somente
o do pensamento, que, necessariamente, o acompanha. A esse horizonte vago, segundo
Husserl, pertence o passado do eu. Por outro lado, na percepção externa o sujeito
percebe, no objeto que se apresenta, um conjunto aberto e infinito de possibilidades
indeterminadas que não são atualmente percebidas. A esse horizonte de possibilidades,
Husserl denomina espectro. A experiência apodítica do eu transcendental permite
perceber a implicação desse horizonte indeterminado e aberto sobre si mesma. Na
filosofia de Husserl, a consciência desse horizonte é a garantia de que o eu
transcendental pode enganar-se a respeito de si próprio, e até mesmo de até onde se
estendem os dados absolutos e indubitáveis. Ao mesmo tempo, a abertura a um
horizonte possível é a garantia de que o ego cogito seja capaz de alcançar evidências
sempre mais precisas em sua aproximação com o objeto de sua intencionalidade.
Também no § 19, onde trata da atualidade e potencialidade da vida intencional, Husserl
trabalha a idéia de horizonte. Segundo ele, cada estado de consciência possui um
horizonte que varia conforme a modificação de suas conexões com outros estados e com
as próprias fases de seu decorrer. É um horizonte intencional, cuja característica é
remeter a potencialidades da consciência que pertencem a esse mesmo horizonte.
Assim, como o próprio nome já indica, os horizontes ou espectros são potencialidades
pré-traçadas. Mesmo sendo imperfeito enquanto possibilidade, possui uma estrutura de
perfeição. A existência desse horizonte já é um momento da consciência, é parte dela.
Como se sabe, atribui-se ao fluxo da consciência a possibilidade de apreensão
dos objetos intencionais. Tais objetos se apresentam numa multiplicidade de perfis, de
modo a necessitar de um elemento de unificação. Diante disso, a síntese aparece com
importância salutar, pois somente através dela instaura-se o sentido na consciência. Em
breves termos, a consciência é formada pelo conjunto de sentidos, que por sua vez se
estruturam como o todo das sínteses. Se não houvesse síntese não haveria o sentido. A
demonstração do cogito como consciência de alguma coisa somente se institui graças à
possibilidade inata à própria consciência de fazer síntese. Somente pela síntese são
esclarecidos os atos da consciência. A tarefa das reduções consiste, basicamente, em
desfazer as sínteses da consciência; o fenomenólogo mostra como as sínteses são
formadas, bem como os elementos que virão a ser unificados.
Ora, pensar a consciência significa pensá-la como formadora de sínteses. Em
primeiro lugar, Husserl aponta para a existência da síntese passiva. Somente através de
tal síntese a consciência pode identificar os objetos. A síntese passiva apresenta-se sob a
forma da consciência interna contínua do tempo. O tempo é uma síntese da consciência.
Cada vivência possui uma duração. Tal duração, por sua vez, apresenta-se sob distintas
possibilidades: há a duração objetiva, presente no próprio objeto; como também, a
duração imanente à própria corrente da consciência. Para Husserl, a consciência sempre
atua de modo a formar sínteses. Tais sínteses, por sua vez, devem ser caracterizadas
como uma pura passividade ou como uma atividade do eu. Segundo o autor, mesmo as
contradições e incompatibilidades são formas de sínteses. Não obstante, assinala o
filósofo, a síntese não é somente o próprio de cada estado de consciência individual,
bem como não liga estados individuais a outros apenas de forma ocasional. Para
Husserl, “toda vida psíquica em seu conjunto é unificada de maneira sintética.” Toda a
vida é um cogito universal. Por isso afirmar o mundo como o horizonte máximo de
nossas sínteses. O mundo é o lugar de unificação de todos os objetos. Como vimos, a
consciência imanente do tempo é o que, em suma, torna-se o fundamento para toda a
forma de síntese universal. Em última instância a consciência é esse fluxo absoluto de
tempo. Não há um tempo profundo, mas um fluxo absoluto. Disso se constitui o tempo
da consciência. O objeto percebido está sempre em relação com a consciência que o
visa. Não poderíamos, porém, apreender os objetos senão pelos tempos da consciência,
que os possibilitam ao todo. Tudo ocorre, porém, sem a consciência do eu, de modo
passivo.
De modo semelhante aos demais momentos da filosofia, na fenomenologia de
Husserl também se faz imprescindível a clara distinção entre os termos transcendente e
transcendental. De modo explícito, Kant foi quem trabalhou a idéia de uma distinção
entre tais conceitos. Em Husserl, utiliza-se a mesma distinção feita por Kant, dando a
ela a devida aplicação no universo da fenomenologia. Em primeiro lugar, pode-se dizer
que enquanto o transcendental diz respeito unicamente à consciência, o transcendente se
refere às coisas do mundo. Transcendente é tudo aquilo que se encontra no exterior do
sujeito, no externo de sua consciência. O mundo em si é o transcendente ao cogito. Por
sua vez, a idéia de transcendental forma-se tomando como pressuposto a corrente da
consciência: ego-cogito-cogitatum. Enquanto existentes no mundo os objetos, árvores,
casas, mesas..., são transcendentes ao sujeito. Entretanto, em sua intencionalidade, a
consciência toma para si tais objetos, apreendendo-os em seus atos de consciência, tais
como a percepção e memória. O cogitatum é o objeto em si, no exterior do ego, ao
passo que no próprio cogito persistem características desse mesmo objeto. De certo
modo, na síntese, está ele apropriado pela consciência. Enquanto presente na
consciência torna-se, esse objeto, um transcendental. Basicamente, pode-se definir
como transcendente tudo o que está fora de mim, ao passo que por transcendental,
entendem-se as idéias que tenho em mim dos objetos que em si me ultrapassam. O
mundo em si é um transcendente a mim. A idéia de mundo presente em minha
consciência é um transcendental por expressar a detenção de um conhecimento que me
ultrapassa.

Fiel à concepção de Bergson, Minkowski denomina de Inconsciente ao fundo


movente, de profundidade, da consciência ou estrutura da vida psíquica. (Minkowski
1995, p.47). Na concepção bergsoniana, os estados psicológicos inconscientes devem
ser concebidos a partir da conceituação da consciência enquanto uma propriedade
essencial dos estados psíquicos, de modo que “um estado psíquico não poderia deixar de
ser consciente sem deixar de existir” e, sendo a consciência a marca característica do
presente, do que é atualmente vivido, do real, “do que age, então o que não age poderá
deixar de pertencer à consciência sem deixar necessariamente de existir de algum
modo”.(Bergson 1999, p.165) Assim, a consciência não seria sinônimo de existência e
sim de ação real, e o conceito de inconsciente equivaleria ao de virtualidade ou de
iminência em busca de atualidade no momento da percepção.

O conceito minkowskiano de inconsciente pode ser concebido


fenomenologicamente com o significado de uma “consciência-inconsciente” ou
consciência do inconsciente sem cair na aparente contradição que o termo poderia
apresentar, pois, de um ponto de vista fenomenológico o conceito de estrutura mental
una e indivisível não implica na existência de partes decompostas, isoladas e
antagônicas. A aparente contradição de termos encontra-se, na fenomenologia, na
contradição da formulação ou na conceituação imprópria que o termo tradicionalmente
incorre.

O termo inconsciente... está, no fundo, tão presente, senão mais presente, à consciência
do que tudo o que habitualmente se descreve sob o nome de consciente, e o elemento
negativo que se encontra no termo ‘inconsciente’ significa somente que o fundo
inconsciente, em razão mesma de seu caráter essencialmente dinâmico e vivo, não pode
ser nem detido, nem decomposto, nem expresso de um modo tão preciso, no sentido
racional da palavra, do que os elementos conscientes de natureza estática. Nesse
sentido, não hesitaremos de modo algum em falar de ‘consciência do inconsciente’,

sem cairmos na contradição que parece conter esta expressão. (Minkowski 1995, p.47)

Por conseguinte, o conceito de inconsciente deixa de ser concebido como uma


instância impenetrável e obscura, e adquire muitas das propriedades comumente
atribuídas à consciência, sem perder a sua natureza de movente primário ou motivação
basal da vida mental:

É o inconsciente, impreciso e obscuro à primeira vista, que parece ser o verdadeiro


suporte, o primeiro móvel de nossa pulsão pessoal; é ele que torna plausível que as
nossas ações isoladas possam em geral repousar sobre os móveis positivos acessíveis à
razão, que possa em geral existir na consciência esse algo inteiramente particular que
nós designamos pelo nome de ‘motivação’.

O conceito fenomenológico de inconsciente está também ligado ao conceito de


sincronicidade vivida ou sincronismo vivido e relaciona-se com o conceito dinâmico de
tempo-duração e de contato vital com a realidade:

É evidente que o contato vital com a realidade seja de natureza dinâmica. Não se trata
aqui nem de ‘tocar’ a realidade material ou de ser tocado por ela, nem de algum
fenômeno comparável às relações desta ordem. O que temos em vista, é a faculdade de
‘avançar’ harmoniosamente com o devir ambiente, deixando-nos penetrar inteiramente
por ele, sentindo-nos um com ele. Neste sentido, empregamos também o conceito de
sincronismo vivido para designar o fenômeno estudado. (ib., p.59)

No contexto epistemológico do problema da relação mente-corpo, um outro autor e


contemporâneo de Minkowski, Carl Gustav Jung (1875-1961), considera que corpo e
psique constituem dois aspectos do ser vivo que agem simultaneamente e, tal
simultaneidade ou existência simultânea pode ser representado pelo conceito, ou
princípio, de sincronicidade ativa no mundo. A sincronicidade,4 de um ponto de vista
junguiano, expressa a idéia de fatos que de certo modo acontecem juntos como se
fossem um só, apesar de ainda não compreendermos exatamente essa integração entre
eles, nem a integração entre a psique e o corpo. A falta de um método matemático que
evidencie essas identidades permanece como um desafio para o futuro. O conceito
junguiano de sincronicidade5 é, nas palavras do próprio

Jung, um equivalente pobre do conceito oriental de Tao, na medida em que tenta


expressar um conjunto de coisas indissociáveis. O exemplo de Jung, na sua obra
“Fundamentos da Psicologia Analítica”, para ilustrar o termo, é simples: A gente está na
praia e as ondas trazem um chapéu velho, um sapato, uma caixa, um peixe morto, que
ficam ali na areia. Olhamos e dizemos: ‘Acaso, mera bobagem’. O chinês se pergunta:‘o
que significam todas essas coisas juntas’? A mente oriental trabalha com este estar junto
e chegar junto, no mesmo instante”. (Jung 1972, p.97)

Na medida em que a sincronicidade vivencial parece ser um importante fenômeno

psíquico a ser investigado, pensamos que tanto na psicologia analítica junguiana (a

sincronicidade dita acausal de C. G. Jung) quanto na fenomenologia bergson-


minkowskiana

(sincronicidade vivida) os conceitos de inconsciente, de sincronicidade, de simpatia e de

“consciência inconsciente” desempenham um papel fundamental. A semelhança


conceitual

de ambas as escolas, a prospectivo-hermenêutica ou construtivo-sintética de Jung e a

fenomenológico-estrutural de Minkowski, parecem convergir em muitos aspectos


essenciais,

tais como: prospectivismo, anti-associacionismo, condicionalismo acausal, anti-


racionalismo,

perspectiva da complexidade e da fenomenologia existencial, dinamicismo,


sincronicidade e

sincronismo vivido, pluralismo ontogenético, transpessoalidade, holismo e


antiantropocentrismo,

só para citar alguns dentre os vários outros aspectos de semelhança teóricoconceitual

entre as duas escolas de pensamento. O conceito central de tempo psíquico vivido

pela consciência na continuidade dinâmica do devir, desde a latência inconsciente até a

expressão clara consciente nos leva, para finalizar, à interessante concepção bergsoniana
da

evolução criadora da vida psíquica, em que a consciência é a marca característica do


presente,

do atualmente vivido, do que age, da ação real, da eficácia imediata, do papel de


presidir a

ação, de iluminar as escolhas. O passado recente é virtualidade daquilo que já foi


atualidade

momentânea e o futuro imediato consiste numa ação iminente. No domínio da


consciência
tudo o que é real é presente, é atualidade, é temporalidade vivida. O conceito de
sincronismo

vivido de Minkowski recebe uma acepção temporal, similar à junguiana, de duração


psíquica

que flui e evolui harmoniosa e paralelamente, através de duas séries fenomênicas que se

interpenetram constantemente, ao longo do percurso do contato vital da vida mental


com a

realidade. Minkowski explicita brevemente o conceito nesta passagem da sua obra Le


Temps

Vécu:

Esse termo (sincronismo vivido) nos faz pensar em duas linhas paralelas. Com efeito, há
como que

um esboço de paralelismo no contato vital com a realidade. São como duas durações
que evoluem

harmoniosamente e em mútua concordância, uma ao lado da outra. Mas a imagem do


paralelismo não

poderia ser aplicada integralmente ao fenômeno estudado. (Minkowski 1995, p.59)

Um outro conceito, o de simpatia é utilizado por Minkowski para descrever o fenômeno

de interpenetração intuitiva entre duas pessoas, similarmente ao conceito freudiano de

comunicação entre inconscientes, mas aqui aplicado ao fenômeno de contato vital ou

“comunhão” interpessoal:

Um outro fenômeno ainda realiza de um modo particularmente vivo o contato vital com
a realidade; éa ‘simpatia’, no sentido etimológico da palavra. Denominamos assim esse
dom maravilhoso que carregamos em nós de fazer nossas as penas de nossos
semelhantes, de nos penetrarmos inteiramente,de nos sentirmos em perfeita comunhão,
de nos tornarmos um com eles.

A teoria fenomenológica minkowskiana se apóia na relação ou contato vital entre o ser

e o outro, o eu e o tu. Na doença mental, ocorreria uma retração ou inibição do contato


vital com o meio ambiente, levando a uma desagregação da síntese da personalidade
humana e a uma independência dos elementos que constituem a estrutura da vida
mental. A vivência do tempo se imobilizaria na forma de sucessão espacializada, como
se a instantaneidade do tempo vivido fosse dissociada em partes semelhantes, fixas,
levando inevitavelmente às clássicas aporias de Zenão de Eléia. Na relação entre o ser e
o mundo, se intercalariam os objetos do ambiente que passariam a ser interpretados de
acordo com a estrutura mental interpretante, o outro interlocutor. No caso da estrutura
psicótica, o delírio assumiria um caráter muito mais complexo do que um simples
distúrbio do juízo:

Assim, as idéias delirantes não serão mais unicamente os produtos de uma imaginação
mórbida ou distúrbios do julgamento; elas representarão, ao contrário, uma tentativa
de traduzir na língua do psiquismo do passado a situação não costumeira em presença
da qual se encontra a personalidade quese desagrega.

Em suma, a vivência alterada ou psicopatológica do tempo e do espaço psíquicos, sejam

quais forem as origens desta transformação da vida psíquica, determinam a qualidade da

estrutura da experiência humana no mundo fenomênico. O que se denomina “sintomas”


da doença mental seriam os modos de existir e de experienciar psiquicamente o tempo e
o espaço irredutíveis. As propostas bergsonianas e minkowskianas, e de certo modo
também junguianas, nos levam a questionar a avalanche de conceitos-diagnósticos da
atual classificação internacional de doenças mentais (CID-10) e do manual estatístico e
diagnóstico norte-americano de doenças mentais (DSM-IV), na medida em que os
sintomas psicopatológicos assumem quase que o estatuto de entidades nosológicas
distintas e redutíveis às “lesões” neurobioquímicas e biogenéticas, desconsiderando as
enormes conquistas da fenomenologia, da psicogênese das doenças mentais e da
psicanálise.

Conclusão

Iniciamos este capítulo sugerindo que os conceitos fenomenológicos de Henri Bergson e

de Eugène Minkowski concorrem para a descrição e a compreensão da estrutura da vida

mental dinâmica, a partir da percepção da temporalidade psíquica irredutível e da visão


antiestática de temporalidade não-espacial. O conceito de tempo-duração encontra-se
presente na própria formação da semântica grega antiga através do conceito de duração
ligado à raiz dos verbos ser, estar, existir e ir, conferindo ao tempo vivencial o caráter
de fluxo movente. As aplicações da conceituação e das idéias fenomenológico-
estruturais de Eugène Minkowski à psicopatologia nos levam às tentativas de se resolver
o tradicional e milenar problema epistemológico da relação espírito-matéria, psique-
soma ou mente-corpo. As considerações psicopatológicas minkowskianas, baseadas na
compreensão fenomenológica da doença mental a partir dos conteúdos expressivos da
linguagem e os relativos aos diversos modos de deformação da percepção temporal,
abrem possibilidades heuristicamente importantes nas investigações epistemológicas da
mente. Na medida em que se afastam tanto do reducionismo reificante e estéril das
concepções neurobiologizantes quanto das conclusões ingênuas de diversas
interpretações ditas psicodinâmicas, a teoria minkowskiana da mente pretende nos livrar
do caráter dogmático e unilateral de algumas escolas de pensamento e nos abrir as vias
da intuição clínica à compreensão dos transtornos psíquicos, inclusive pela via da
“penetração” intuitiva e empática, ou seja, da possível apreensão dos dados imediatos da
consciência, segundo as formulações bergsonianas. Quanto ao problemático e
controverso conceito de “consciência do inconsciente”, cabe-nos investigar a sua
possível não contraditoriedade,

evitando assim as aporias de uma dualismo ontológico do tipo inconsciente versus


consciência. Se levarmos em conta as formulações teóricas bergsonianas sobre a
consciência, uma “consciência inconsciente” pode ser naturalmente conceituada como
uma estrutura psíquica una e indivisível, um continuum, sem partes decomponíveis,
isoladas ou antagônicas. A aparente contradição seria um falso problema de linguagem
que estaria mal formulado por conceituação imprópria. Assim sendo, a instância
psíquica dita inconsciente seria o primeiro momento de uma pulsão vital ou o primeiro
móvel da vida psíquica, num amplo e contínuo espectro “inconsciente-consciência”,
sem solução de continuidade ou dicotomia. Por extensão, o conceito de desarmonia ou
doença mental, a partir do paradigma da continuidade da relação entre o normal e o
patológico, e da relação de continuidade entre as várias modalidades do adoecer
psíquico, nos levaria a compreender o espectro neurose-psicose da psicopatologia
clássica a partir de uma visão multidimensional que consideraria a influência da
vivência temporal como um importante elemento heurístico. Mas, além do tempo vivido
há que se ater à necessidade de um outro importante campo de estudos experimentais e
epistemológicos: a dimensão fenomenológica da vivência do espaço, do espaço vivido,
já que tão importante quanto compreender o tempo psíquico é conhecer o espaço
psíquico. Tema para outro espaço e em outro tempo, no fluxo inesgotável da
“episteme”, do conhecimento filosófico-científico.

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SARTRE NEGA O INCONSCIENTE FREUDIANO

Rubem Queiroz Cobra

Sartre rejeita enfaticamente a idéia de causas inconscientes dos fatos psíquicos;


para ele tudo que está na mente é consciente. Rompeu com a psicanálise por esta retirar
a responsabilidade do indivíduo ao invocar a ação de uma força inconsciente, que, para
Sartre, não existe. Sustenta que a consciência é necessariamente transparente para si
mesma. Todos os aspectos de nossas vidas mentais são intencionais, escolhidos, e de
nossa responsabilidade, o que é incompatível com o total determinismo psíquico
postulado por Freud. Teríamos de atribuir à repressão inconsciente alguma instância
dentro da mente (a "censura") que distingue entre o que será reprimido e o que pode
ficar consciente, de forma que essa censura tem de estar a par da idéia reprimida a fim
de não estar a par dela. Portanto, o inconsciente não é verdadeiramente inconsciente.
Em algum nível eu estou consciente, e escolho, o que vou e o que não vou permitir vir
claramente à minha consciência. Por isso não posso usar "o inconsciente" como uma
desculpa para meu comportamento. Mesmo que eu não possa admitir para mim mesmo,
eu estou consciente e escolhendo. Mesmo na decepção que sofro, eu sei que sou eu
aquele que me decepciona, e o assim chamado "Censor" de Freud deve estar consciente
para saber o que reprimir. Aqueles que usam o inconsciente como desculpa do
comportamento acreditam que nossos instintos, nossas inclinações e nossos complexos
constituem uma realidade que simplesmente é; que não é verdadeira nem falsa em si
mesma mas simplesmente real.

Somos responsáveis por nossas emoções, visto que há maneiras que escolhemos
para reagir frente ao mundo. Somos também responsáveis pelos traços duradouros da
nossa própria personalidade. Não podemos dizer "sou tímido", como se isto fosse um
fato imutável, uma vez que nossa timidez representa a forma como agimos, e que
podemos escolher agir diferentemente. Nossos atos nos definem. Na vida, o homem se
compromete, desenha seu próprio retrato e não há mais nada senão esse retrato. Nossas
ilusões e imaginação a nosso respeito, sobre o que poderíamos ter sido, são decepções
auto-infligidas. Permanentemente estamos a nos fazer do modo que somos. Uma pessoa
"corajosa" é simplesmente alguém que geralmente age com bravura. Cada ato contribui
para nos definir como somos, e em qualquer momento podemos começar a agir de
modo diferente e desenhar um retrato diferente de nós mesmos. Há sempre uma
possibilidade de mudança, de começar a fazer um tipo diferente de escolha. Temos o
poder de nos transformar indefinidamente.

O instrumento proposto por Sartre para que possamos conseguir um auto-


conhecimento genuíno é a Análise existencial. Ele chama "Psicanálise Existencial" a
"Uma psicanálise que busca não as causas do comportamento de uma pessoa, mas o seu
sentido" (O que o comportamento exprime como escolha). A função desta psicanálise
não é procurar as causas do comportamento de uma pessoa, mas o seu sentido. A
realidade humana identifica-se e se define pelos fins que busca e não por pretensas
"causas" no passado. Nenhuma "essência" determinada de mim mesmo orienta a priori
meu comportamento. Porém, há o que Sartre chama "Projeto Original". Como uma
pessoa é essencialmente uma unidade, e não apenas um amontoado de desejos ou
hábitos sem relação, deve haver para cada uma delas uma escolha fundamental por um
papel ou script de vida, o "projeto original", o qual dá o significado de qualquer aspecto
específico de seu comportamento. A radical oposição de Sartre à psicanálise influiu
grandemente na psiquiatria de seu tempo. Ronald David Laing (1927-1989), um
conhecido psiquiatra inglês de origem escocesa, que buscou um novo método de
tratamento da loucura seguindo a filosofia existencialista. Entre suas principais obras
está "Razão e violência: uma década da filosofia de Sartre", em co-autoria com D.G.
Cooper, de 1971.

MÁ-FÉ E INCONSCIENTE

(Do livro: "Má fé e autenticidade"

Má-fé e mentira são títulos próprios a circunstâncias totalmente diversas - este o


ponto inicial a considerar na análise que Jean-Paul Sartre faz da má-fé A distinção
assenta-se no seguinte: numa mentira nos encontramos sempre com uma relação
transcendente entre um sujeito e um objeto; ou seja: quando mentimos, o que fazemos é
apresentar sob o registro da verdade algo que, sabemos, devia antes ser reconhecido
como falso. Pretendemos, então, que outra(s) pessoa(s) assuma(m) como uma verdade
algo que nós mesmos não assumiríamos por reconhecermos não sustentar-se enquanto
tal. Destaca-se aí a característica fundamental da mentira: a ilusão de verdade pela
qual a mentira se constitui vale unicamente para as outras consciências, não para o
sujeito que a cria. Com efeito, a idéia mesma de "mentira" implica em que o mentiroso
esteja consciente de que o que ele propõe não é senão uma ilusão - uma ilusão que ilude
aos demais, bem entendido, não ele próprio - voluntariamente sustentada. Desse modo,
toda a problemática da mentira coloca-se ao nível das relações entre indivíduos; duas
consciências, ao menos, estarão envolvidas nesse processo: para a consciência
mentirosa a mentira se mostra exatamente enquanto tal; para a consciência que é iludida
a mentira não aparece, justamente, enquanto mentira.

À má-fé devemos caracterizar de uma forma bastante distinta. Em primeiro lugar


- e isto significa: no nível mais superficial (1) -, a má-fé pode ser entendida como uma
mentira de si a si mesmo. Ora, face à caracterização da mentira que acima expusemos,
facilmente nos damos conta de que no caso da má-fé algo de muito curioso acontece.
Uma mentira de si a si exige que reunamos em uma mesma consciência enganador e o
enganado, o ilusionista e o iludido. No caso da mentira em sua forma usual, a
exterioridade das consciências garante, por si só, as condições nas quais a mentira pode
se instituída. Algo pode surgir sob o registro da mentira para uma consciência ao
mesmo tempo em que, para a outra, se coloca sob o registro da verdade. Embora
translúcidas a si mesmas, o isolamento ontológico de cada consciência torna-as opacas
frente às demais. A má-fé ao contrario, é uma relação que ocorre em plena imanência de
uma mesma e única consciência. Nela, mentira e verdade são aspectos que se colocam
para uma mesma consciência frente a um mesmo objeto, e isso ocorre simultaneamente.
Assim, e uma vez que nada pode existir para a consciência senão enquanto consciência
de si, ria má-fé o enganado não pode estar senão inteiramente consciente do engano que
ele mesmo formula para si.

Uma das tentativas teóricas de resolver esse paradoxo que merece consideração
é a que nos apresenta a Psicanálise. O núcleo da proposta psicanalítica situa-se
inconsciente. Para explicar a situação na qual a consciência se constitui ao mesmo
tempo como enganador e enganado, a psicanálise atribui à consciência uma dimensão
subterrânea que subsiste sob a esfera consciente. Agindo por detrás da consciência
propriamente dita, o inconsciente pode motivar, influenciar e mesmo determinai, sem
ser percebido, as decisões que o indivíduo conscientemente assume É por meio dessa
incisão teórica na consciência que a teoria psicanalítica pretende haver tornado
compreensível a má-fé. Na medida em que supomos o inconsciente agindo à revelia da
própria consciência, e razoável supormos igualmente esse mesmo inconsciente a mentir
e a enganar à consciência. Com a cisão consciente/inconsciente, a psicanálise reproduz a
opacidade que caracteriza a relação de transcendência entre várias consciências. Desde a
concepção ontológica da consciência como ser-para-si não é possível concordar,
entretanto, com os pressupostos de semelhante teoria. Na perspectiva sartriana, a
hipótese do inconsciente comete um profundo equivoco ontológico: ela introduz na
dimensão do para-si uma opacidade que cabe unicamente ao em-si. Por isso, embora
reconhecendo a superioridade da teoria psicanalítica sobre as teorias psicológicas
clássicas, Sartre não pode aceitar o conceito de inconsciente, posto que este conduz a
um modelo no qual a consciência aparece, não como instituidora de significatividade,
mas sim como recebendo toda significação desde o inconsciente.

Que a proposta psicanalítica para a compreensão da má-fé está fadada ao


fracasso, é o que Sartre ilustra por meio do conhecido fenômeno psicanalítico da
resistência que oferece o paciente durante a análise. No decorrer de um tratamento
psicanalítico, é freqüente ocorrer que, na medida em que o psicanalista aproxima-se da
origem dos problemas psíquicos de seu paciente, o psicanalisando principie a oferecer
certa resistência ao tratamento e pretenda, inclusive, desviar a análise de seu curso. A
psicanálise explica este comportamento do psicanalisado pela postulação de rima
instância intermediária entre a dimensão consciente e a inconsciente. A necessidade
dessa postulação evidencia-se uma vez que compreendemos que o paciente não poderia
oferecer resistência alguma a menos que ele de alguma forma fosse consciente de que o
psicanalista estivesse aproximando-se da suposta fonte inconsciente de sua neurose.
Como, entretanto, pode o psicanalisando constatar essa aproximação se ela é,
justamente, inconsciente? Tendo inicialmente cindido a consciência em consciente e
inconsciente, a psicanálise deve agora prover uma instância que estabeleça uma ponte
de comunicação entre essas duas dimensões: é a censura. É pela censura que se
estabelece o elo sem o qual o psicanalisando não saberia jamais que o psicanalista
aproxima-se das origens de sua neurose; é por meio dela que o psicanalisando se dá
conta daquilo que disfarça por detrás de todas as manifestações - manifestações que, ao
mesmo tempo, manifestam e encobrem - de sua neurose. É por meio dessa instância
intermediária que a consciência, de alguma forma, alcança o inconsciente. Eis-nos,
assim, de volta ao ponto de partida: na censura iremos reconhecer a mesma síntese
contraditória entre enganador e enganado que há pouco atribuímos à má-fé. Dessa
forma, a psicanálise consegue apenas ampliar e complexificar - sem ao Mesmo tempo
oferecer elementos originais que possam efetivamente ajudar na sua resolução - o
problema desde o início colocado pela má-fé. Com isto, a solução psicanalítica revela-se
antes uma pseudosolução: sua proposta teórica conduz a tinia instância - a censura - na
qual o problema da má-fé se repõe e a explicação acerca de sua natureza deve ser
reificada. "O núcleo da proposta psicanalítica situa-se no inconsciente. Para
explicar a situação na qual a consciência se constitui ao mesmo tempo como enganador
e enganado, a psicanálise atribui à consciência uma dimensão subterrânea que subsiste
sob a esfera consciente. Agindo por detrás da consciência propriamente dita, o
inconsciente pode motivar, influenciar e mesmo determinar, sem ser percebido, as
decisões que o indivíduo conscientemente assume.... Na medida em que supomos o
inconsciente agindo à revelia da própria consciência, é razoável supormos igualmente
esse mesmo inconsciente a mentir e a enganar à consciência. Com a cisão
consciente/inconsciente, a psicanálise reproduz a opacidade que caracteriza a relação de
transcendência entre várias consciências......

Que a proposta psicanalítica para a compreensão da má-fé está fadada ao


fracasso, é o que Sartre ilustra por meio do conhecido fenômeno psicanalítico da
resistência que oferece o paciente durante a análise. No decorrer de um tratamento
psicanalítico, é freqüente ocorrer que, na medida em que o psicanalista aproxima-se da
origem dos problemas psíquicos de seu paciente, o psicanalisando principie a oferecer
certa resistência ao tratamento e pretenda, inclusive, desviar a análise de seu curso. A
psicanálise explica este comportamento do psicanalisado pela postulação de uma
instância intermediária entre a dimensão consciente e a inconsciente. A necessidade
dessa postulação evidencia-se uma vez que compreendemos que o paciente não poderia
oferecer resistência alguma a menos que ele de alguma forma fosse consciente de que o
psicanalista estivesse aproximando-se da suposta fonte inconsciente de sua neurose.

Como, entretanto, pode o analisando constatar essa aproximação se ela é,


justamente, inconsciente? Tendo inicialmente cindido a consciência em consciente e
inconsciente, a psicanálise deve agora prover uma instância que estabeleça uma ponte
de comunicação entre essas duas dimensões: é a censura. É pela censura que se
estabelece o elo sem o qual o psicanalisando não saberia jamais que o psicanalista
aproxima-se das origens de sua neurose; é por meio dela que o psicanalisando se dá
conta daquilo que disfarça por detrás de todas as manifestações - manifestações que, ao
mesmo tempo, manifestam e encobrem - de sua neurose. É por meio dessa instância
intermediária que a consciência, de alguma forma, alcança o inconsciente....

FENOMENOLOGIA DA MÁ-FÉ

A análise de Jean-Paul Sartre dos comportamentos de má-fé desenvolve-se por


meio do exame fenomenológico de uma série de exemplos, tomados como
paradigmáticos, de tais comportamentos. Pela investigação desses exemplos, a noção de
má-fé será enriquecida e irá adquirindo, progressivamente, novos aspectos. A primeira
clássica ilustração dos comportamentos de má-fé é a do flerte. Consideremos - pede-nos
Sartre - a situação de uma mulher que entretém uma conversa informal com um homem.
Na medida em que este tem sobre ela pretensões de conquista sexual, galanteia; ela,
ainda que se dê conta das pretensões masculinas prefere, provisoriamente, ignorá-las.
Para isso, ela mantém sua atenção exclusivamente dirigida aos galanteios que a tomam
por objeto, sem colocar em questão a intenção manifesta de tais galanteios; assim
agindo, ela opta por ocultar de si própria as razões que os motivam e adia ao limite a
decisão a tomar diante dos objetivos masculinos. Evidentemente, em algum momento
urna opção a esse respeito deverá ser assumida, seja para repelir, seja para "capitular"
diante do assédio masculino. De momento, entretanto, a mulher prefere, não apenas
suspender essa decisão mas, inclusive, afastar a sua necessidade do seu horizonte de
cogitações.

Na situação descrita, a má-fé está caracterizada pela relutância da mulher em


considerar os objetivos sexuais masculinos. Pois ocorre que, de um lado, a fim de
desconsiderar as intenções de seu interlocutor masculino, ela deve compreender os
galanteios como atos isolados e desprovidos de motivos ou finalidades que os
qualifiquem como uma unidade referida a uma consciência; de outro lado, entretanto, os
galanteios que lhe são dirigidos evidentemente lhe agradam - e é por isso, basicamente,
que clã prossegue a conversação -, o que é compreensível unicamente desde que esses
galanteios estejam sendo percebidos como dirigidos a ela desde um outro sujeito que a
toma por objeto de desejo e admiração. Com isto, finalmente, a mulher passa a encarar-
se a si como um objeto ao qual "acontecem coisas" sem que ela possa agir de qualquer
modo sobre a situação que assim se cria. Por meio desse artifício ela busca ocultar sua
liberdade e, com ela, a responsabilidade que lhe cabe ao colocar-se na situação em que
se encontra.

Que aspectos da má-fé a ilustração apresentada permite-nos


compreender?

Em primeiro lugar, podemos visualizar a situação descrita como uma espécie de "jogo"
existencial, jogo no qual facticidade e transcendência são elementos em permanente
trânsito. Senão vejamos: para que a mulher possa apreciar os galanteios que lhe são
dirigidos e, simultaneamente, negar-lhes uma motivação implícita, ela deve colocar-se
ora na dimensão da transcendência - c então os galanteios aparecerão como declarações
de apreciação que lhe são dirigidas por tini sujeito que a toma por objeto -, ora na
dimensão da facticidade - caso em que os mesmos galanteios lhe aparecerão
simplesmente como fatos do mundo e, como tais, desprovidos de quaisquer finalidades
-, pois somente uma consciência pode estabelecer finalidades.
Ocorre que, na medida em que as duas dimensões devem colocar-se
simultaneamente, a mulher que age de má-fé não pode jamais estabelecer-se em
nenhuma delas. Estacionar em uma dessas dimensões implicaria na obrigatoriedade em
assumir uma decisão, com o que a situação de má-fé se desvaneceria enquanto tal. A
má-fé se caracteriza na situação descrita, portanto, como um comportamento ambíguo
no qual os aspectos de transcendência e facticidade devem ser relacionados por meio de
uma síntese um tanto singular; nessa síntese ambas as dimensões devem
simultaneamente distinguir-se e confundir-se. Síntese em nada dialética, nela os
momentos contraditórios não se anulam nem se fundem em uma unidade superior ao
modo hegeliano, mas mantêm-se irreconciliáveis. A unidade dessas duas instâncias é
garantida unicamente por um movimento contínuo que nos joga continuamente de uma
para outra; a síntese revela-se, ao fim e ao cabo, uma pseudo-síntese.

Um outro comportamento de má-fé pode ser encontrado no conto Intimidade


Lulu, personagem principal da história, e uma mulher que se defronta com a exigência
de uma decisão que a dilacera: ela deve escolher entre manter seu casamento com Henri
- seu marido impotente - ou fugir com Pierre - seu amante (que, embora insensível,
empresta à sua vida inteiramente convencional um certo sabor de aventura). Pressionada
pela situação, a cada momento em que a decisão é dela exigida, Lulu recua. Preferindo
deixar-se manipular pelos demais ao invés de assumir a responsabilidade que uma
opção clara dela exigiria, Lulu refugia-se continuamente em um comportamento
Passivo. Quando, após finalmente ter decidido abandonar seu marido, ela volta a
encontrar-se com - encontro que ela mesma tornara altamente provável -, cria-se uma
situação constrangedora na qual Lulu, de forma passiva, como se objeto fôra, deixa-se
disputar por Henri e sua amiga Rirette. Mais tarde, tendo resolvido voltar para seu
marido, Lulu igualmente nega-se a assumir a responsabilidade por essa nova decisão
Para isso, mais uma vez mascara sua liberdade e age como se todo seu comportamento
não fosse mais do que assentimento a uma situação inevitável. Lemos na carta de
despedida que ela envia a seu amante: "Henri, porém, se mataria se ele não me tivesse
mais, eu lhe sou indispensável; asseguro-lhe que semelhante responsabilidade não me
agrada nada". Um comportamento ambíguo no qual a própria ambigüidade substitui a
responsabilidade acarretada pelo compromisso em uma determinada situação: eis como
as ilustrações apresentadas permitem caracterizar a má-fé. Esta compreensão dos
comportamentos de má-fé implica, naturalmente, na compreensão da realidade humana
enquanto facultadora de semelhantes Processos: se a má-fé define-se por uma constante
e contraditória rearticulação de certas estruturas existenciais, isto ocorre, em primeiro
lugar, porque a instabilidade de tais estruturas é própria à realidade humana.

  Assim, para que os conceitos de má-fé possam ao menos um instante nos criar
ilusão, para que a franqueza dos "corações puros" (Gide, Kessel) possa valer para a
realidade humana como o ideal, é preciso que o princípio de identidade não represente
um princípio constitutivo da realidade humana, é preciso que a realidade humana não
seja necessariamente o que ela é, e possa ser o que ela não é.

Uma vez que a realidade humana se constitui desde o fundamento de uma tal
ambigüidade ontológica, o ideal da sinceridade - isto é, o ideal de que o homem torne-se
completamente aquilo que ele é e se apresente frente ao demais exatamente dessa forma
- deve revelar-se um puro ideal e, como tal, inatingível por princípio. O fundamento
dessa impossibilidade, entretanto, não deve ser buscado nas relações sociais perturbadas
ou não - que os homens travam entre si, mas sim na constituição ontológica da realidade
humana. 0 ideal de nos tornarmos exatamente aquilo que somos ou devemos ser choca-
se com a caracterização da consciência como ser-para-si: somente ao em-si cabe a
plenitude ontológica. A consciência estabelece uma barreira ontológica intransponível
para o ideal da sinceridade posto que este, traduzido em termos ontológicos, implica na
impossível fusão entre em-si e para-si. Dessa forma, o ideal da sinceridade não escapa,
como veremos, aos parâmetros que identificam os comportamentos de má-fé.

Dada a impossibilidade de situar a realidade humana sob o registro da


identidade, devemos compreendê-la segundo uma nova categoria, da representação. A
propósito, consideremos esta outra situação apresentada em O Ser e O
Nada:Consideremos a esse garçom de café. Ele tem o gesto vivo e marcado, algo
demasiado preciso, algo demasiado rápido; ele vem aos consumidores com um passo
um pouco demasiado vivo, se inclina com presteza algo excessiva; sua voz, seus olhos,
exprimem um interesse algo demasiado pleno de solicitude pelo comando do cliente;
enfim, ei-lo que volta, ensaiando imitar em sua marcha o rigor inflexível de não se sabe
qual autômato, tudo isto sustentando sua bandeja com um tipo de temeridade de
funâmbulo, colocando-a em um equilíbrio perpetuamente instável e perpetuamente
rompido que ele restabelece perpetuamente com um movimento ligeiro do braço e da
mão. Toda sua conduta nos parece uma representação. Ele se aplica a encadear seus
movimentos como se eles fossem mecanismos comandando-se uns aos outros, sua
mímica e sua voz mesmas parecem mecanismos; ele se dá a presteza e a rapidez
inexorável das coisas. Ele representa, se diverte. Mas o que então ele representa? Não é
preciso observá-lo muito para dar-se conta: ele representa ser garçom de café. 0 garçom
representa ser garçom porque ele não pode sê-lo, isto é, ele não pode ser garçom ao
modo em que o ser-em-si é de uma forma total aquilo que ele é. A realidade humana
desenha-se segundo contornos tais que, nela, tudo o que é não o é plenamente. Há uma
fissura ontológica que separa indelevelmente o homem de si mesmo: a este jamais é
permitido identificar-se totalmente com o que pretende ser, pois ele não pode evitar ser
consciente daquilo que ele é. E isto faz toda a diferença.

Dentre toda a obra romanesca de Jean-Paul Sartre, personagem algum é mais


representativo desse aspecto da realidade humana do que Lucien Fleurier de A infância
de um chefe. Com certeza, poucas vezes na obra inteira desse autor a má-fé encontrou
lima tão exemplar encarnação. Ao descrever a infância e a juventude de Lucien
Fleurier, jovem representante das classes dirigentes da França, Sartre molda esse
personagem de modo a torná-lo lima figura quase mítica na qual estão reunidas várias
das muitas formas segundo as quais a má-fé comumente se manifesta. Na raiz de todas
essas manifestações, encontramos a constatação feita por Lucien Fleurier em sua
infância, num certo dia em que uma singular desconfiança lhe ocorre: seria a mulher
que se diz sua mãe realmente sua mãe? Não encontrando uma resposta que pudesse
considerar satisfatória a esta indagação, "( ... ) Lucien convenceu-se de que ela
representava uma comédia, e não lhe disse mais que a desposaria quando fosse grande".
(SARTRE, 1987, p. 135). Essa desconfiança inicial alastra-se progressivamente na vida
de Lucien, até dominá-la por inteiro. Lucien compreende então que tudo e todos estão a
representar uma estranha comédia.Era divertido porque todo mundo brincava. Papai e
mamãe brincavam de papai e mamãe; mamãe fingia atormentar-se porque o filhinho
comia tão pouco, papai fingia ler o jornal c agitava de vez em quando o dedo diante do
rosto de Lucien, dizendo:- Seu rapagão!E Lucien brincava também, mas acabou por não
saber muito bem de quê. (idem, ibidem).A formação de Lucien Fleurier principia pela
descoberta de que todos desempenham um determinado papel numa espécie de teatro
universal. Nada, portanto, pode ser visto como natural e ninguém de fato é aquilo que
parece ser; a representação é, na verdade, a forma de ser própria à realidade humana. A
manutenção de cada um daqueles papéis depende - na medida mesma em que são papéis
e não fatos naturais - de lima decisão assumida nesse sentido por aqueles que os
desempenham.

A compreensão de que cada um representa um certo papel acaba por conduzir


Lucien a um estado de indiferença e profundo tédio. No final das contas, se a
representação é o modo de ser próprio ao homem, então não vale a pena tentar assumir
qualquer personagem em particular: todos representamos papéis que, enquanto papéis,
eqüivalem-se inteiramente. Dessa forma, ao mesmo tempo em que, por um lado,
continua a representar determinados personagens, como o de "bom aluno" e o de "filho
pródigo" - e isso porque, já que é necessário assumir algum papel, o mais cômodo é
assumir aqueles personagens que o costume e a tradição dignificaram e que por isso
recebem a aprovação social -, por, outro lado, Lucien não pode deixar de reconhecer a
superficialidade e a insipidez de tais comportamentos.( ... ) Tenho boas notas, mas não
gosto de estudar. Não detesto o estudo tampouco, não lhe dou importância. Não dou
importância a nada. Não serei nunca um chefe. "Eu" Olhou ao longe; a palavra soava na
sua cabeça, talvez se pudesse adivinhar alguma' coisa como a ponta sombria de uma
pirâmide cujos lados fugiam, longe, na bruma. Lucien estremeceu e suas mãos
tremeram: "É isso", pensou, "é isso. Tenho certeza: eu não existo. (idem, ibidem, p.
155).

Desse niilismo a que seus pensamentos o levaram, Lucien busca refúgio,


primeiro, na fraternidade escolar do liceu em que estuda e, em seguida, no
relacionamento homossexual com um poeta surrealista; ambas as tentativas de fuga
fracassam. Ao final, quando já começa a desesperar-se, Lucien acaba por encontrar na
ideologia fascista, ideologia respeitada no meio social burguês em que vive, o
anestésico existencial perfeito. Com esse artifício, consegue afastar as inquietações que
desde a infância o atormentavam; assumindo seu papel de chefe, reclama todos os
direitos que o desempenho desse papel confere."( ... ) Eis que, de novo, lhe ofereciam
um caráter e um destino, um meio de escapar às tagarelices inesgotáveis de sua
consciência, um método para definir-se e apreciar-se.Lucien Fleurier deseja conceber
sua vida como algo mais do que uma mera comédia a ser representada (e o que é pior:
uma comédia por trás da qual nada subsiste. De fato, se a existência é representação,
então não há representante e o homem se esgota nessa representação.). Com isto, seus
questionamentos existenciais são apaziguados e ele mergulha - definitivamente, enfim -
na má-fé. Se viver é falsificar. e se a consciência dessa falsificação é dolorosa, podemos
falsificar a própria falsificação. Neste caso, buscamos a falsificação potencializada
assumindo um personagem que nos é dado e com o qual buscaremos uma máxima
identificação (ainda que uma identificação absoluta esteja ontologicamente vedada).
Com isto, porém, abdicamos da compreensão de que, se a realidade humana esta
submetida à necessidade ontológica de representar ser aquilo que ela é, não se segue
necessariamente daí que toda existência se constitua enquanto mera comédia.

Ocorre que podemos compreender o caráter de representação da existência desde


o ponto de vista da autenticidade; e isso significa: se aquilo que somos é,
fundamentalmente, aquilo que nos tornamos, então assumir lucidamente a condição
humana implica em compreender como cada ação que praticamos deve ser referida a
um projeto existencial pelo qual devemos responder. De toda forma, deparamo-nos
como a mesma constatação: a realidade humana define-se como uma forma de ser como
que a distância de si. Há essa distância que rios separa de nós mesmos, algo como o ator
se distancia do personagem que representa (comparação que falha, porém, num
momento essencial: no caso da realidade humana, não há ninguém por detrás do
personagem representado - apenas o vazio do para-si).

Isto inclui não apenas os papéis sociais que representamos, mas também os
assim chamados estados emocionais. Da mesma forma que um garçom não pode sê-lo
senão enquanto o representa, assim também não podemos, por exemplo, entristecer-nos
sem, simultaneamente, termos consciência (não-posicionalmente, isto é, de modo pré-
reflexivo) de que estamos tristes. Trata-se, sempre, de caracterizar a consciência como
consciência de ser: como tal, uma consciência não pode identificar-se de forma plena e
absoluta com a tristeza; em lugar disto, uma consciência triste apresentar-se-á,
necessariamente, corno consciência (de) tristeza. Nesse sentido, para encontrarmo-nos
tristes é exigido que tenhamos nos assumidos como tristes, isto é, que tenhamos
assumido a tristeza como i i m valor a ser realizado (o que não significa, evidentemente,
que tenhamos "escolhido a tristeza" a um nível reflexivo). Portanto, os estados
emocionais devem ser entendidos sobretudo como posições a serem assumidas e
escolhas a serem feitas, ao invés de serem vistos como estados solidamente constituídos
para o interior dos quais podemos, ocasionalmente, catapultar-nos.

O modo de ser do para-si, núcleo da realidade humana, distingue-se do modo de


ser do em-si, núcleo do mundo: este o fundamento da impossibilidade de aplicarmos os
mesmos padrões para um e outro. 0 garçom somente pode constituir-se garçom na
medida em que tem consciência de sê-lo - e, nesse caso, ele já apenas representa ser
aquilo que é; se me entristeço, o faço ao mesmo tempo em que sou consciente (de) estar
triste. Na medida em que somos conscientes da atividade que executamos ou do
sentimento que manifestamos, então já não o somos ao modo da plenitude ontológica.
Ao mesmo tempo somos e não-somos: tendo consciência (de) ser, colocamo-nos a uma
certa distância do ser, isto é, afetamo-nos de não-ser. Em A Náusea encontramos
Antoine Roquentin desvencilhando-se de um sentimento dito de "aventura": trata-se de
um perspectiva de má-fé que caracteriza a existência como uma história que se
desenrolam segundo o tradicional esquema narrativo início/meio/fim; através deste
artifício, a existência é como que perpassada por pequenos fragmentos de em-si que a
definem. No processo de desvelamento existencial de Roquentin, ele termina por dá-se
conta de que "aventuras" simplesmente não existem - elas são tão-somente ficções que,
a partir dos dados da memória, a realidade humana constrói e projeta no passado. Não
podemos viver realmente uma aventura, pois esta somente pode ser articulada
retrospectivamente.

Em contrapartida, Paul Hilbert, personagem de Erostrato, agita-se


desesperadamente em meio à sua má-fé sem conseguir senão nela mergulhar ainda mais
profundamente. Buscando seguir o exemplo de Erostrato, o célebre incendiário
responsável pela destruição do templo de Éfeso na antiga Grécia, Paul Hilbert quer
justificar sua existência pela fama; com um gesto chocante e destrutivo quer imortalizar-
se diante de um público presente e futuro.Havia mais de 2 mil anos que ele [Erostratol
estava morto e sua ação brilhava ainda, como um diamante negro. Comecei a crer que
meu destino seria curto e trágico. Isso me amedrontou a princípio, depois me habituei.
Encarado sob certo ângulo, é atroz, mas, de outro lado, dá ao instante que passa Lima
força e uma beleza consideráveis. Quando desci à rua, sentia em meu corpo uma força
estranha. Tinha junto a mim meu revólver, essa coisa que explode e faz barulho. Mas
não era mais nele que punha minha segurança, era em mim, eu era um ser da espécie
dos revólveres, dos petardos e das bombas. O sentimento de aventura de Roquentin e a
tentativa desesperada de Paul Hilbert de transformar a existência mim bloco de
densidade impenetrável, têm uma pretensão em comum, qual seja, a de constituir a
realidade humana segundo os padrões do ser-em-si. Ambas tentativas de justificação da
existência ignoram, porém - e por isso elas têm também o fracasso em comum -, a
distância nadificante que a consciência institui em meio ao ser e ambas revelam-se,
enfim e por isso mesmo, exemplares dos comportamentos de má-fé.

Prosseguindo em nossa análise, acompanharemos agora outros exemplos dos


comportamentos de má-fé apresentados em O Ser e O Nada - por meio deles,
poderemos esclarecer um aspecto adicional de tais comportamentos. Trata-se de avaliar
as pretensões da sinceridade e de considerar as relações que tais pretensões têm com o
âmbito da má-fé. Citamos na íntegra o exemplo proposto para essa análise.Um
homossexual tem, freqüentemente, um intolerável sentimento de culpa, e sua existência
inteira se determina com relação a esse sentimento. Se tenderá a augurar que ele é de
má-fé. E, com efeito, acontece freqüentemente que esse homem, ainda reconhecendo
sua inclinação homossexual, ainda confessando uma a uma cada falta singular que
cometeu, se nega com todas as suas forças a se considerar como "um pederasta". Seu
caso é sempre "à parte", singular; intervêm elementos do jogo, do azar, da má sorte; são
erros passados, eles se explicam por uma certa concepção do belo que as mulheres não
poderiam satisfazer, é preciso ver aí antes os efeitos de uma busca inquieta do que as
manifestações de uma tendência muito profundamente arraigada, etc. Eis aí,
seguramente, um homem cuja má-fé toca o cômico, já que, reconhecendo todos os fatos
que lhe são imputados, ele se recusa a tirar daí a conseqüência que se impõe. Assim seu
amigo, que e seu mais severo censor, se irrita por essa duplicidade: o censor não pede
senão uma coisa - e talvez então se mostrará indulgente: que o culpado se reconheça
culpado, que o homossexual declare sem desvios - com humildade ou reivindicação,
pouco importa - "Eu sou um pederasta." Nós perguntamos aqui: Quem é de má-fé? 0
homossexual ou o campeão da sinceridade? (SARTRE, 1993, p. 100).

A resposta de Jean-Paul Sartre a esta questão é de que ambos tanto o


homossexual quanto o "campeão da sinceridade"- estão, ainda que em sentidos
diferentes, agindo de má-fé. O homossexual, reunindo em si aquelas características que
nos permitem reconhecê-lo como pederasta, alega, contudo, toda nina série de pseudo
justificações e se utiliza de vários subterfúgios para negar sua condição. Quando a nega,
ele o faz de uma forma absoluta: ele pretende afirmar-se como não sendo, em sentido
algum, um pederasta. Ao colocar a questão em tais termos, o homossexual embaralha a
distinção ontológica em-si/para-si e age de má-fé.O censor, por seu turno, solicita ao
amigo o reconhecimento da pederastia - isto é, exige que este se reconheça como sendo
verdadeiramente um pederasta - como pressuposto de qualquer possibilidade de
indulgência. Não é difícil nos apercebermos da dinâmica tramada por essa pretensão de
sinceridade: o que ela pretende é, com um mesmo movimento, estabelecer a condição
do homossexual como tira objeto - e com isto reduzir a liberdade do censurado a urna
coisa, um ser em meio ao mundo - para, em seguida, estabelecer a possibilidade de
distanciamento em relação a esse objeto. O reconhecimento da pederastia solicitado ao
homossexual ocorre na medida em que esse reconhecimento, distanciando-o de si
mesmo como um sujeito se distancia do objeto, lhe abriria a possibilidade de uma
expurgação de suas faltas.

Como vemos, a dinâmica da sinceridade não difere essencialmente daquela que


encontramos na análise da má-fé. Outra vez nos deparamos aqui com a impossível
síntese que propositalmente desfigura os contornos da distinção em-si/para-si. É a
realidade humana mesma que permite, já o vimos, (con)fundir em-si e para-si, de modo
a esboçar uma unidade às custas de rima confusão entre ambos. Se a má-fé pressupõe
que a realidade humana esteja constituída de uma forma tal que para ela a identidade
absoluta seja uma impossibilidade ontológica, então as pretensões da sinceridade
deverão ser entendidas, elas também, como sendo de má-fé. Sinceridade e má-fé serão
consideradas, portanto , variações de uma mesma possibilidade posta pelo caráter de
representação da realidade humana: a possibilidade da falsificação existencial. A
sinceridade compreendida enquanto uma variação da má-fé encontra em Mathieu
Delarue - personagem central da trilogia "Caminhos da Liberdade" - uma caracterização
exemplar. Em uma das cenas iniciais de A idade da razão - o diálogo entre Mathieu e
Marcelle, sua amante - esta denuncia justamente essa falsificação existencial: "Quando
você se olha, imagina que não é o que está olhando, que você não é nada. No fundo, é o
seu ideal: não ser nada". O que Marcelle então critica em Mathieu é a própria pretensão
de sinceridade pela qual, tentando colocarmo-nos por inteiro diante de nós mesmos - ou
seja, colocarmo-nos como objeto para um sujeito -, tentamos também colocarmo-nos
para além desse objeto que é defrontado - na medida em que, justamente, nós mesmos
somos quem nos defrontamos.

A busca pela liberdade de Mathieu é uma busca de má-fé, busca da qual o ideal
de sinceridade não e senão uma das faces. A liberdade que ele deseja assumir se
caracteriza como uma ausência de todo compromisso, como recusa em comprometer-se
com qualquer situação. Dessa forma, ainda que Mathieu se queira diferente de seu
irmão Jacques - advogado de sucesso que assume integralmente os valores da classe
burguesa - os comportamentos de ambos revelam uma familiaridade essencial: um e
outro estão mergulhados na má-fé. Daniel Sereno, o homossexual amigo de Mathieu,
igualmente expõe essa face da sinceridade. Diferentemente do homossexual apresentado
em O Ser e O Nada, Daniel Sereno não renega sua pederastia mas, pelo contrário, quer
identificar-se com ela de uma forma absoluta.Ser de pedra, imóvel, insensível, sem um
gesto, sem um ruído, cego e surdo, as moscas, os insetos passando sobre meu corpo,
uma estátua severa de olhos vazios sem um projeto, sem uma preocupação; talvez
conseguisse coincidir comigo mesmo. Não, certamente, para me aceitar; para ser, enfim,
o objeto de meu ódio. ( ... ) Ser. No escuro, às cegas. Ser pederasta, como a árvore é
árvore. Apagar-se. Apagar o olhar interior.

Ao invés de pretender não ser o que ele não é, Daniel Sereno busca ser o que ele
é; ele quer tornar-se plenamente - sem ser dilacerado pelo nada da consciência (de) ser -
aquilo que ele é. Ainda uma vez aqui, a sinceridade se desmascara como uma forma
mais sofisticada da má-fé. Um outro aspecto fundamental da má-fé é o fato de que ela é,
justamente, uma fé. Ou seja: um comportamento de má-fé deve sustentar-se na medida
mesmo em que tenhamos desde o início - isto é, a partir do projeto existencial -
escolhido o não-convencimento, decidido por uma crença que não seja plena, que não
vá até o fim naquilo a que ela se propõe. Isto, por sua vez, é unicamente possível porque
a crença é, em seu próprio ser, cindida pelo nada; crer é ter consciência (de) crer: aqui,
como em todo lugar, a consciência instala-se a certa distância de si mesma. Essa
distância está também presente, portanto, na boa-fé. (3) Cabe agora explicitar a questão
que já há algum tempo se nos colocou: desde que a má-fé se apresenta como essa
possibilidade permanente de mistificação da realidade humana - possibilidade
instaurada desde que toda consciência do ser é, ao mesmo tempo, consciência (de) ser -,
corno articular uma superação dessa mistificação? Desafortunadamente, apesar da
prolixidade demonstrada em muitos pontos de suas análises, acerca desta questão em
particular, Jean-Paul Sartre revela-se extremamente lacônico. A ela refere-se
explicitamente apenas numa pequena nota ao pé da página final do capítulo sobre a má-
fé.Se é indiferente ser de boa ou de má-fé, porque a má-fé retoma a boa e se introduz na
origem mesma de seu projeto, isto não quer dizer que não se possa escapar radicalmente
à má-fé. Mas isto supõe uma reassunção do ser apodrecido por ele mesmo, reassunção
que nós chamaremos autenticidade e cuja descrição não cabe aqui.

Abre-se aí um leque de questões a serem desenvolvidas, se pretendemos


esclarecer razoavelmente o que vem a ser autenticidade e em que condições ela pode ser
efetivada. A via para tais esclarecimentos pode ser balizada, parece-nos, desde duas
observações sugeridas pelo conjunto das análises de Sartre que até o momento
acompanhamos. Em primeiro lugar, cabe considerar a liberdade tal como esta é
compreendida desde os fundamentos da ontologia sartreana, a saber: como uma fissura
nadificante que cinde a plenitude ontológica do em si. Vimos de que forma a liberdade
surge no para-si no para-si como consciência (de) liberdade, vale dizer, como angústia
existencial. Logo, não nos arriscamos demasiado se sustentamos que é pela assunção
dessa consciência (de) liberdade - isto é, pela sua consideração ao nível posicional que
realizamos a possível "fuga radical" da má-fé indicada por Sartre. Ora, semelhante
passo pressupõe, evidentemente, que nos coloquemos para além, seja da dimensão pré-
reflexiva da moralidade cotidiana, seja elas formas reflexivas de fuga que, a fim de
suprimir a angústia com a qual se confunde a consciência (de) liberdade, reprimem a
própria liberdade.

Por outra parte, é interessante destacar que a má-fé, dita fundamento de todas as
formas reflexivas de fuga diante da liberdade, surge de início ao nível da pré-
reflexividade. Todas as mistificações da má-fé tem seus fundamentos naquele terreno
primeiro e imediato onde se esboçam as pseudo-sínteses conceituais e onde se dá o
embaralhamento das estruturas existenciais da realidade humana que caracterizam tais
mistificações. Estando a má-fé situada ao nível da pré-reflexividade, podemos concluir
que o desvelamento das pseudo-sínteses que a caracterizam exige, justamente, que as
consideremos à luz da dimensão reflexiva da consciência. Somos levados assim,
também desde aqui, até uma mesma hipótese, a qual pode ser enunciada como segue: a
autenticidade, qualquer que seja sua natureza e como quer que se determinem seus
limites, pressupõe a reflexividade como via de acesso.

NOTAS

(1) Arthur Danto, cru seu interessante estudo sobre a obra de Jean-Paul Sartre (DANTO,
1993), equivoca-se entretanto ao reduzir a noção sartriana de má-fé ao "auto-engano".
Ao fazê-lo, Danto deixa de lado toda a dinâmica ontológica da consciência, contexto
único e indispensável para tinia compreensão das raízes ontológicas da má-fé.

(2) De fato, praticamente a totalidade dos personagens principais de "Os caminhos da


Liberdade" é ilustração de algum típico comportamento de má-fé; Mathieu, Marcelle,
Daniel, Brunet, Gomez, Boris, Ivich, Sarah, Daniel, Odette: cada um deles tem sua
própria rota de fuga diante da angústia existencial, cada um deles representa uma
tragicomédia pessoal. Fazer a guerra ou a revolução, praticar a caridade ou a maldade
são ações que se eqüivalem na medida em que são assumidas no âmbito da má-fé. Na
verdade, como o mostra Mathieu, a própria busca pela liberdade pode constituir-se
numa fuga diante dela.

(3) Enquanto a sinceridade se define pela tentativa de se tentar ser o que se é, a boa-fé é
definida por Sartre como a tentativa de se crer no que se crê. (SARTRE, 1993, P. 106)

FENOMENOLOGIA DA MÁ-FÉ

A análise de Jean-Paul Sartre dos comportamentos de má-fé desenvolve-se por


meio do exame fenomenológico de urna série de exemplos, tomados como
paradigmáticos, de tais comportamentos. Pela investigação desses exemplos, a noção de
má-fé será enriquecida e irá adquirindo, progressivamente, novos aspectos. A primeira
clássica ilustração dos comportamentos de má-fé é a do flerte. Consideremos - pede-nos
Sartre - a situação de uma mulher que entretém uma conversa informal com um homem.
Na medida em que este tem sobre ela pretensões de conquista sexual, galanteia; ela,
ainda que se dê conta das pretensões masculinas prefere, provisoriamente, ignorá-las.
Para isso, ela mantém sua atenção exclusivamente dirigida aos galanteios que a tomam
por objeto, sem colocar em questão a intenção manifesta de tais galanteios; assim
agindo, ela opta por ocultar de si própria as razões que os motivam e adia ao limite a
decisão a tomar diante dos objetivos masculinos. Evidentemente, em algum momento
urna opção a esse respeito deverá ser assumida, seja para repelir, seja para "capitular"
diante do assédio masculino. De momento, entretanto, a mulher prefere, não apenas
suspender essa decisão mas, inclusive, afastar a sua necessidade do seu horizonte de
cogitações. Na situação descrita, a má-fé está caracterizada pela relutância da mulher
em considerar os objetivos sexuais masculinos. Pois ocorre que, de um lado, a fim de
desconsiderar as intenções de seu interlocutor masculino, ela deve compreender os
galanteios como atos isolados e desprovidos de motivos ou finalidades que os
qualifiquem como uma unidade referida a uma consciência; de outro lado, entretanto, os
galanteios que lhe são dirigidos evidentemente lhe agradam - e é por isso, basicamente,
que clã prossegue a conversação -, o que é compreensível unicamente desde que esses
galanteios estejam sendo percebidos como dirigidos a ela desde um outro sujeito que a
toma por objeto de desejo e admiração. Com isto, finalmente, a mulher passa a encarar-
se a si como um objeto ao qual "acontecem coisas" sem que ela possa agir de qualquer
modo sobre a situação que assim se cria. Por meio desse artifício ela busca ocultar sua
liberdade e, com ela, a responsabilidade que lhe cabe ao colocar-se na situação em que
se encontra.

Que aspectos da má-fé a ilustração apresentada permite-nos


compreender?

Em primeiro lugar, podemos visualizar a situação descrita como uma espécie de "jogo"
existencial, jogo no qual facticidade e transcendência são elementos em permanente
trânsito. Senão vejamos: para que a mulher possa apreciar os galanteios que lhe são
dirigidos e, simultaneamente, negar-lhes uma motivação implícita, ela deve colocar-se
ora na dimensão da transcendência - c então os galanteios aparecerão como declarações
de apreciação que lhe são dirigidas por tini sujeito que a toma por objeto -, ora na
dimensão da facticidade - caso em que os mesmos galanteios lhe aparecerão
simplesmente como fatos do mundo e, como tais, desprovidos de quaisquer finalidades
-, pois somente uma consciência pode estabelecer finalidades. Ocorre que, na medida
em que as duas dimensões devem colocar-se simultaneamente, a mulher que age de má-
fé não pode jamais estabelecer-se em nenhuma delas. Estacionar em uma dessas
dimensões implicaria na obrigatoriedade em assumir uma decisão, com o que a situação
de má-fé se desvaneceria enquanto tal. A má-fé se caracteriza na situação descrita,
portanto, como um comportamento ambíguo no qual os aspectos de transcendência e
facticidade devem ser relacionados por meio de uma síntese um tanto singular; nessa
síntese ambas as dimensões devem simultaneamente distinguir-se e confundir-se.
Síntese em nada dialética, nela os momentos contraditórios não se anulam nem se
fundem em uma unidade superior ao modo hegeliano, mas mantêm-se irreconciliáveis.
A unidade dessas duas instâncias é garantida unicamente por um movimento contínuo
que nos joga continuamente de uma para outra; a síntese revela-se, ao fim e ao cabo,
uma pseudo-síntese.

Um outro comportamento de má-fé pode ser encontrado no conto Intimidade.


Lulu, personagem principal da história, é uma mulher que se defronta com a exigência
de uma decisão que a dilacera: deve escolher entre manter seu casamento com Henri -
seu marido impotente - ou fugir com Pierre - seu amante (que, embora insensível,
empresta à sua vida inteiramente convencional um certo sabor de aventura). Pressionada
pela situação, a cada momento em que a decisão é dela exigida, Lulu recua, preferindo
deixar-se manipular pelos demais ao invés de assumir a responsabilidade que uma
opção clara dela exigiria, refugiando-se continuamente em um comportamento passivo.
Quando, após finalmente decide abandonar seu marido, cria-se uma situação
constrangedora na qual Lulu, de forma passiva, como se objeto fora, deixa-se disputar
por Henri e sua amiga Rirette. Mais tarde, tendo resolvido voltar para seu marido, Lulu
igualmente nega-se a assumir a responsabilidade por essa nova decisão Para isso, mais
uma vez mascara sua liberdade e age como se todo seu comportamento não fosse mais
do que assentimento a uma situação inevitável. Lemos na carta de despedida que ela
envia a seu amante: "Henri, porém, se mataria se ele não me tivesse mais, eu lhe sou
indispensável; asseguro-lhe que semelhante responsabilidade não me agrada nada". Um
comportamento ambíguo no qual a própria ambigüidade substitui a responsabilidade
acarretada pelo compromisso em uma determinada situação: eis como as ilustrações
apresentadas permitem caracterizar a má-fé. Esta compreensão dos comportamentos de
má-fé implica, naturalmente, na compreensão da realidade humana enquanto
facultadora de semelhantes processos: se a má-fé define-se por uma constante e
contraditória rearticulação de certas estruturas existenciais, isto ocorre, em primeiro
lugar, porque a instabilidade de tais estruturas é própria à realidade humana.  Assim,
para que os conceitos de má-fé possam ao menos um instante nos criar ilusão, para que
a franqueza dos "corações puros" (Gide, Kessel) possa valer para a realidade humana
como o ideal, é preciso que o princípio de identidade não represente um princípio
constitutivo da realidade humana, é preciso que a realidade humana não seja
necessariamente o que ela é, e possa ser o que ela não é.

Uma vez que a realidade humana se constitui desde o fundamento de uma tal
ambigüidade ontológica, o ideal da sinceridade - isto é, o ideal de que o homem torne-se
completamente aquilo que ele é e se apresente frente ao demais exatamente dessa forma
- deve revelar-se um puro ideal e, como tal, inatingível por princípio. O fundamento
dessa impossibilidade, entretanto, não deve ser buscado nas relações sociais perturbadas
ou não - que os homens travam entre si, mas sim na constituição ontológica da realidade
humana. 0 ideal de nos tornarmos exatamente aquilo que somos ou devemos ser choca-
se com a caracterização da consciência como ser-para-si: somente ao em-si cabe a
plenitude ontológica. A consciência estabelece uma barreira ontológica intransponível
para o ideal da sinceridade posto que este, traduzido em termos ontológicos, implica na
impossível fusão entre em-si e para-si. Dessa forma, o ideal da sinceridade não escapa,
como veremos, aos parâmetros que identificam os comportamentos de má-fé. Dada a
impossibilidade de situar a realidade humana sob o registro da identidade, devemos
compreendê-la segundo uma nova categoria, da representação. A propósito,
consideremos esta outra situação apresentada em O Ser e O Nada:

Consideremos a esse garçom de café. Ele tem o gesto vivo e marcado, algo
demasiado preciso, algo demasiado rápido; ele vem aos consumidores com um passo
um pouco demasiado vivo, se inclina com presteza algo excessiva; sua voz, seus olhos,
exprimem um interesse algo demasiado pleno de solicitude pelo comando do cliente;
enfim, ei-lo que volta, ensaiando imitar em sua marcha o rigor inflexível de não se sabe
qual autômato, tudo isto sustentando sua bandeja com um tipo de temeridade de
funâmbulo, colocando-a em um equilíbrio perpetuamente instável e perpetuamente
rompido que ele restabelece perpetuamente com um movimento ligeiro do braço e da
mão. Toda sua conduta nos parece uma representação. Ele se aplica a encadear seus
movimentos como se eles fossem mecanismos comandando-se uns aos outros, sua
mímica e sua voz mesmas parecem mecanismos; ele se dá a presteza e a rapidez
inexorável das coisas. Ele representa, se diverte. Mas o que então ele representa? Não é
preciso observá-lo muito para dar-se conta: ele representa ser garçom de café. 0 garçom
representa ser garçom porque ele não pode sê-lo, isto é, ele não pode ser garçom ao
modo em que o ser-em-si é de uma forma total aquilo que ele é. A realidade humana
desenha-se segundo contornos tais que, nela, tudo o que é não o é plenamente. Há uma
fissura ontológica que separa indelevelmente o homem de si mesmo: a este jamais é
permitido identificar-se totalmente com o que pretende ser, pois ele não pode evitar ser
consciente daquilo que ele é. E isto faz toda a diferença.Dentre toda a obra romanesca
de Jean-Paul Sartre, personagem algum é mais representativo desse aspecto da realidade
humana do que Lucien Fleurier de A infância de um chefe. Com certeza, poucas vezes
na obra inteira desse autor a má-fé encontrou lima tão exemplar encarnação. Ao
descrever a infância e a juventude de Lucien Fleurier, jovem representante das classes
dirigentes da França, Sartre molda esse personagem de modo a torná-lo lima figura
quase mítica na qual estão reunidas várias das muitas formas segundo as quais a má-fé
comumente se manifesta.

Na raiz de todas essas manifestações, encontramos a constatação feita por


Lucien Fleurier em sua infância, num certo dia em que uma singular desconfiança lhe
ocorre: seria a mulher que se diz sua mãe realmente sua mãe? Não encontrando uma
resposta que pudesse considerar satisfatória a esta indagação, "( ... ) Lucien convenceu-
se de que ela representava uma comédia, e não lhe disse mais que a desposaria quando
fosse grande". (SARTRE, 1987, p. 135). Essa desconfiança inicial alastra-se
progressivamente na vida de Lucien, até dominá-la por inteiro.

Lucien compreende então que tudo e todos estão a representar uma estranha comédia.

Era divertido porque todo mundo brincava. Papai e mamãe brincavam


de papai e mamãe; mamãe fingia atormentar-se porque o filhinho comia
tão pouco, papai fingia ler o jornal c agitava de vez em quando o dedo
diante do rosto de Lucien, dizendo:

- Seu rapagão!

E Lucien brincava também, mas acabou por não saber muito bem de
quê. (idem, ibidem).

A formação de Lucien Fleurier principia pela descoberta de que todos


desempenham um determinado papel numa espécie de teatro universal. Nada, portanto,
pode ser visto como natural e ninguém de fato é aquilo que parece ser; a representação
é, na verdade, a forma de ser própria à realidade humana. A manutenção de cada um
daqueles papéis depende - na medida mesma em que são papéis e não fatos naturais - de
lima decisão assumida nesse sentido por aqueles que os desempenham. A compreensão
de que cada um representa um certo papel acaba por conduzir Lucien a um estado de
indiferença e profundo tédio. No final das contas, se a representação é o modo de ser
próprio ao homem, então não vale a pena tentar assumir qualquer personagem em
particular: todos representamos papéis que, enquanto papéis, eqüivalem-se inteiramente.
Dessa forma, ao mesmo tempo em que, por um lado, continua a representar
determinados personagens, como o de "bom aluno" e o de "filho pródigo" - e isso
porque, já que é necessário assumir algum papel, o mais cômodo é assumir aqueles
personagens que o costume e a tradição dignificaram e que por isso recebem a
aprovação social -, por, outro lado, Lucien não pode deixar de reconhecer a
superficialidade e a insipidez de tais comportamentos.

( ... ) Tenho boas notas, mas não gosto de estudar. Não detesto o estudo
tampouco, não lhe dou importância. Não dou importância a nada. Não
serei nunca um chefe. "Eu" Olhou ao longe; a palavra soava na sua
cabeça, talvez se pudesse adivinhar alguma' coisa como a ponta sombria
de uma pirâmide cujos lados fugiam, longe, na bruma. Lucien
estremeceu e suas mãos tremeram: "É isso", pensou, "é isso. Tenho
certeza: eu não existo. (idem, ibidem, p. 155).

Desse niilismo a que seus pensamentos o levaram, Lucien busca refúgio,


primeiro, na fraternidade escolar do liceu em que estuda e, em seguida, no
relacionamento homossexual com um poeta surrealista; ambas as tentativas de fuga
fracassam. Ao final, quando já começa a desesperar-se, Lucien acaba por encontrar na
ideologia fascista, ideologia respeitada no meio social burguês em que vive, o
anestésico existencial perfeito. Com esse artifício, consegue afastar as inquietações que
desde a infância o atormentavam; assumindo seu papel de chefe, reclama todos os
direitos que o desempenho desse papel confere."( ... ) Eis que, de novo, lhe ofereciam
um caráter e um destino, um meio de escapar às tagarelices inesgotáveis de sua
consciência, um método para definir-se e apreciar-se." (idem, ibidem, p. 206).

  Lucien Fleurier deseja conceber sua vida como algo mais do que uma mera
comédia a ser representada (e o que é pior: uma comédia por trás da qual nada subsiste.
De fato, se a existência é representação, então não há representante e o homem se esgota
nessa representação.). Com isto, seus questionamentos existenciais são apaziguados e
ele mergulha - definitivamente, enfim - na má-fé. Se viver é falsificar. e se a consciência
dessa falsificação é dolorosa, podemos falsificar a própria falsificação. Neste caso,
buscamos a falsificação potencializada assumindo um personagem que nos é dado e
com o qual buscaremos uma máxima identificação (ainda que uma identificação
absoluta esteja ontologicamente vedada). Com isto, porém, abdicamos da compreensão
de que, se a realidade humana esta submetida à necessidade ontológica de representar
ser aquilo que ela é, não se segue necessariamente daí que toda existência se constitua
enquanto mera comédia. Ocorre que podemos compreender o caráter de representação
da existência desde o ponto de vista da autenticidade; e isso significa: se aquilo que
somos é, fundamentalmente, aquilo que nos tornamos, então assumir lucidamente a
condição humana implica em compreender como cada ação que praticamos deve ser
referida a um projeto existencial pelo qual devemos responder.

De toda forma, deparamo-nos como a mesma constatação: a realidade humana


define-se como uma forma de ser como que a distância de si. Há essa distância que rios
separa de nós mesmos, algo como o ator se distancia do personagem que representa
(comparação que falha, porém, num momento essencial: no caso da realidade humana,
não há ninguém por detrás do personagem representado - apenas o vazio do para-si).
Isto inclui não apenas os papéis sociais que representamos, mas também os assim
chamados estados emocionais. Da mesma forma que um garçom não pode sê-lo senão
enquanto o representa, assim também não podemos, por exemplo, entristecer-nos sem,
simultaneamente, termos consciência (não-posicionalmente, isto é, de modo pré-
reflexivo) de que estamos tristes. Trata-se, sempre, de caracterizar a consciência como
consciência de ser: como tal, uma consciência não pode identificar-se de forma plena e
absoluta com a tristeza; em lugar disto, uma consciência triste apresentar-se-á,
necessariamente, corno consciência (de) tristeza. Nesse sentido, para encontrarmo-nos
tristes é exigido que tenhamos nos assumidos como tristes, isto é, que tenhamos
assumido a tristeza como i i m valor a ser realizado (o que não significa, evidentemente,
que tenhamos "escolhido a tristeza" a um nível reflexivo). Portanto, os estados
emocionais devem ser entendidos sobretudo como posições a serem assumidas e
escolhas a serem feitas, ao invés de serem vistos como estados solidamente constituídos
para o interior dos quais podemos, ocasionalmente, catapultar-nos. O modo de ser do
para-si, núcleo da realidade humana, distingue-se do modo de ser do em-si, núcleo do
mundo: este o fundamento da impossibilidade de aplicarmos os mesmos padrões para
um e outro. 0 garçom somente pode constituir-se garçom na medida em que tem
consciência de sê-lo - e, nesse caso, ele já apenas representa ser aquilo que é; se me
entristeço, o faço ao mesmo tempo em que sou consciente (de) estar triste. Na medida
em que somos conscientes da atividade que executamos ou do sentimento que
manifestamos, então já não o somos ao modo da plenitude ontológica. Ao mesmo tempo
somos e não-somos: tendo consciência (de) ser, colocamo-nos a uma certa distância do
ser, isto é, afetamo-nos de não-ser.

Em A Náusea encontramos Antoine Roquentin desvencilhando-se de um


sentimento dito de "aventura": trata-se de um perspectiva de má-fé que caracteriza a
existência como uma história que se desenrolam segundo o tradicional esquema
narrativo início/meio/fim; através deste artifício, a existência é como que perpassada por
pequenos fragmentos de em-si que a definem. No processo de desvelamento existencial
de Roquentin, ele termina por dá-se conta de que "aventuras" simplesmente não existem
- elas são tão-somente ficções que, a partir dos dados da memória, a realidade humana
constrói e projeta no passado. Não podemos viver realmente uma aventura, pois esta
somente pode ser articulada retrospectivamente. Em contrapartida, Paul Hilbert,
personagem de Erostrato, agita-se desesperadamente em meio à sua má-fé sem
conseguir senão nela mergulhar ainda mais profundamente. Buscando seguir o exemplo
de Erostrato, o célebre incendiário responsável pela destruição do templo de Éfeso na
antiga Grécia, Paul Hilbert quer justificar sua existência pela fama; com um gesto
chocante e destrutivo quer imortalizar-se diante de um público presente e futuro.

Havia mais de dois mil anos que ele [Erostratol estava morto e sua ação brilhava
ainda, como um diamante negro. Comecei a crer que meu destino seria curto e trágico.
Isso me amedrontou a princípio, depois me habituei. Encarado sob certo ângulo, é atroz,
mas, de outro lado, dá ao instante que passa Lima força e uma beleza consideráveis.
Quando desci à rua, sentia em meu corpo uma força estranha. Tinha junto a mim meu
revólver, essa coisa que explode e faz barulho. Mas não era mais nele que punha minha
segurança, era em mim, eu era um ser da espécie dos revólveres, dos petardos e das
bombas. O sentimento de aventura de Roquentin e a tentativa desesperada de Paul
Hilbert de transformar a existência mim bloco de densidade impenetrável, têm uma
pretensão em comum, qual seja, a de constituir a realidade humana segundo os padrões
do ser-em-si. Ambas tentativas de justificação da existência ignoram, porém - e por isso
elas têm também o fracasso em comum -, a distância nadificante que a consciência
institui em meio ao ser e ambas revelam-se, enfim e por isso mesmo, exemplares dos
comportamentos de má-fé. Prosseguindo em nossa análise, acompanharemos agora
outros exemplos dos comportamentos de má-fé apresentados em O Ser e O Nada - por
meio deles, poderemos esclarecer um aspecto adicional de tais comportamentos. Trata-
se de avaliar as pretensões da sinceridade e de considerar as relações que tais pretensões
têm com o âmbito da má-fé. Citamos na íntegra o exemplo proposto para essa análise.

Um homossexual tem, freqüentemente, um intolerável sentimento de culpa, e


sua existência inteira se determina com relação a esse sentimento. Se tenderá a augurar
que ele é de má-fé. E, com efeito, acontece freqüentemente que esse homem, ainda
reconhecendo sua inclinação homossexual, ainda confessando uma a uma cada falta
singular que cometeu, se nega com todas as suas forças a se considerar como "um
pederasta". Seu caso é sempre "à parte", singular; intervêm elementos do jogo, do azar,
da má sorte; são erros passados, eles se explicam por uma certa concepção do belo que
as mulheres não poderiam satisfazer, é preciso ver aí antes os efeitos de uma busca
inquieta do que as manifestações de uma tendência muito profundamente arraigada, etc.
Eis aí, seguramente, um homem cuja má-fé toca o cômico, já que, reconhecendo todos
os fatos que lhe são imputados, ele se recusa a tirar daí a conseqüência que se impõe.
Assim seu amigo, que e seu mais severo censor, se irrita por essa duplicidade: o censor
não pede senão uma coisa - e talvez então se mostrará indulgente: que o culpado se
reconheça culpado, que o homossexual declare sem desvios - com humildade ou
reivindicação, pouco importa - "Eu sou um pederasta." Nós perguntamos aqui: Quem é
de má-fé? 0 homossexual ou o campeão da sinceridade? A resposta de Jean-Paul Sartre
a esta questão é de que ambos tanto o homossexual quanto o "campeão da sinceridade"-
estão, ainda que em sentidos diferentes, agindo de má-fé. O homossexual, reunindo em
si aquelas características que nos permitem reconhecê-lo como pederasta, alega,
contudo, toda nina série de pseudo justificações e se utiliza de vários subterfúgios para
negar sua condição. Quando a nega, ele o faz de uma forma absoluta: ele pretende
afirmar-se como não sendo, em sentido algum, um pederasta. Ao colocar a questão em
tais termos, o homossexual embaralha a distinção ontológica em-si/para-si e age de má-
fé.
O censor, por seu turno, solicita ao amigo o reconhecimento da pederastia - isto
é, exige que este se reconheça como sendo verdadeiramente um pederasta - como
pressuposto de qualquer possibilidade de indulgência. Não é difícil nos apercebermos da
dinâmica tramada por essa pretensão de sinceridade: o que ela pretende é, com um
mesmo movimento, estabelecer a condição do homossexual como tira objeto - e com
isto reduzir a liberdade do censurado a urna coisa, um ser em meio ao mundo - para, em
seguida, estabelecer a possibilidade de distanciamento em relação a esse objeto. O
reconhecimento da pederastia solicitado ao homossexual ocorre na medida em que esse
reconhecimento, distanciando-o de si mesmo como um sujeito se distancia do objeto,
lhe abriria a possibilidade de uma expurgação de suas faltas.Como vemos, a dinâmica
da sinceridade não difere essencialmente daquela que encontramos na análise da má-fé.
Outra vez nos deparamos aqui com a impossível síntese que propositalmente desfigura
os contornos da distinção em-si/para-si. É a realidade humana mesma que permite, já o
vimos, (con)fundir em-si e para-si, de modo a esboçar uma unidade às custas de rima
confusão entre ambos. Se a má-fé pressupõe que a realidade humana esteja constituída
de uma forma tal que para ela a identidade absoluta seja uma impossibilidade
ontológica, então as pretensões da sinceridade deverão ser entendidas, elas também,
como sendo de má-fé. Sinceridade e má-fé serão consideradas, portanto , variações de
uma mesma possibilidade posta pelo caráter de representação da realidade humana: a
possibilidade da falsificação existencial.

A sinceridade compreendida enquanto uma variação da má-fé encontra em


Mathieu Delarue - personagem central da trilogia "Caminhos da Liberdade" - uma
caracterização exemplar. Em uma das cenas iniciais de A idade da razão - o diálogo
entre Mathieu e Marcelle, sua amante - esta denuncia justamente essa falsificação essa
falsificação existencial: "Quando você se olha, imagina que não é o que está olhando,
que você não é nada. No fundo, é o seu ideal: não ser nada". O que Marcelle então
critica em Mathieu é a própria pretensão de sinceridade pela qual, tentando colocarmo-
nos por inteiro diante de nós mesmos - ou seja, colocarmo-nos como objeto para um
sujeito -, tentamos também colocarmo-nos para além desse objeto que é defrontado - na
medida em que, justamente, nós mesmos somos quem nos defrontamos. A busca pela
liberdade de Mathieu é uma busca de má-fé, busca da qual o ideal de sinceridade não e
senão uma das faces. A liberdade que ele deseja assumir se caracteriza como uma
ausência de todo compromisso, como recusa em comprometer-se com qualquer
situação. Dessa forma, ainda que Mathieu se queira diferente de seu irmão Jacques -
advogado de sucesso que assume integralmente os valores da classe burguesa - os
comportamentos de ambos revelam uma familiaridade essencial: um e outro estão
mergulhados na má-fé. Daniel Sereno, o homossexual amigo de Mathieu, igualmente
expõe essa face da sinceridade. Diferentemente do homossexual apresentado em O Ser e
O Nada, Daniel Sereno não renega sua pederastia mas, pelo contrário, quer identificar-
se com ela de uma forma absoluta.

Ser de pedra, imóvel, insensível, sem um gesto, sem um ruído, cego e


surdo, as moscas, os insetos passando sobre meu corpo, uma estátua
severa de olhos vazios sem um projeto, sem uma preocupação; talvez
conseguisse coincidir comigo mesmo. Não, certamente, para me aceitar;
para ser, enfim, o objeto de meu ódio. ( ... ) Ser. No escuro, às cegas. Ser
pederasta, como a árvore é árvore. Apagar-se. Apagar o olhar interior.
(SARTRE, 1960, PE 112/3). (2)
Ao invés de pretender não ser o que ele não é, Daniel Sereno busca ser o que ele
é; ele quer tornar-se plenamente - sem ser dilacerado pelo nada da consciência (de) ser -
aquilo que ele é. Ainda uma vez aqui, a sinceridade se desmascara como uma forma
mais sofisticada da má-fé. Um outro aspecto fundamental da má-fé é o fato de que ela é,
justamente, uma fé. Ou seja: um comportamento de má-fé deve sustentar-se na medida
mesmo em que tenhamos desde o início - isto é, a partir do projeto existencial -
escolhido o não-convencimento, decidido por uma crença que não seja plena, que não
vá até o fim naquilo a que ela se propõe. Isto, por sua vez, é unicamente possível porque
a crença é, em seu próprio ser, cindida pelo nada; crer é ter consciência (de) crer: aqui,
como em todo lugar, a consciência instala-se a certa distância de si mesma. Essa
distância está também presente, portanto, na boa-fé. (3) Cabe agora explicitar a questão
que já há algum tempo se nos colocou: desde que a má-fé se apresenta como essa
possibilidade permanente de mistificação da realidade humana - possibilidade
instaurada desde que toda consciência do ser é, ao mesmo tempo, consciência (de) ser -,
corno articular uma superação dessa mistificação? Desafortunadamente, apesar da
prolixidade demonstrada em muitos pontos de suas análises, acerca desta questão em
particular, Jean-Paul Sartre revela-se extremamente lacônico. A ela refere-se
explicitamente apenas numa pequena nota ao pé da página final do capítulo sobre a má-
fé.

Se é indiferente ser de boa ou de má-fé, porque a má-fé retoma a boa e


se introduz na origem mesma de seu projeto, isto não quer dizer que não
se possa escapar radicalmente à má-fé. Mas isto supõe uma reassunção
do ser apodrecido por ele mesmo, reassunção que nós chamaremos
autenticidade e cuja descrição não cabe aqui. (SARTRE, 1993, p, 107).

Abre-se aí um leque de questões a serem desenvolvidas, se pretendemos


esclarecer razoavelmente o que vem a ser autenticidade e em que condições ela pode ser
efetivada. A via para tais esclarecimentos pode ser balizada, parece-nos, desde duas
observações sugeridas pelo conjunto das análises de Sartre que até o momento
acompanhamos. Em primeiro lugar, cabe considerar a liberdade tal como esta é
compreendida desde os fundamentos da ontologia sartriana, a saber: como uma fissura
nadificante que cinde a plenitude ontológica do em si. Vimos de que forma a liberdade
surge no para-si no para-si como consciência (de) liberdade, vale dizer, como angústia
existencial. Logo, não nos arriscamos demasiado se sustentamos que é pela assunção
dessa consciência (de) liberdade - isto é, pela sua consideração ao nível posicional que
realizamos a possível "fuga radical" da má-fé indicada por Sartre. Ora, semelhante
passo pressupõe, evidentemente, que nos coloquemos para além, seja da dimensão pré-
reflexiva da moralidade cotidiana, seja elas formas reflexivas de fuga que, a fim de
suprimir a angústia com a qual se confunde a consciência (de) liberdade, reprimem a
própria liberdade. Por outra parte, é interessante destacar que a má-fé, dita fundamento
de todas as formas reflexivas de fuga diante da liberdade, surge de início ao nível da
pré-reflexividade. Todas as mistificações da má-fé tem seus fundamentos naquele
terreno primeiro e imediato onde se esboçam as pseudo-sínteses conceituais e onde se
dá o embaralhamento das estruturas existenciais da realidade humana que caracterizam
tais mistificações. Estando a má-fé situada ao nível da pré-reflexividade, podemos
concluir que o desvelamento das pseudo-sínteses que a caracterizam exige, justamente,
que as consideremos à luz da dimensão reflexiva da consciência. Somos levados assim,
também desde aqui, até uma mesma hipótese, a qual pode ser enunciada como segue: a
autenticidade, qualquer que seja sua natureza e como quer que se determinem seus
limites, pressupõe a reflexividade como via de acesso.

NOTAS

(1) Arthur Danto, cru seu interessante estudo sobre a obra de Jean-Paul Sartre (DANTO,
1993), equivoca-se entretanto ao reduzir a noção sartriana de má-fé ao "auto-engano".
Ao fazê-lo, Danto deixa de lado toda a dinâmica ontológica da consciência, contexto
único e indispensável para tinia compreensão das raízes ontológicas da má-fé.

(2) De fato, praticamente a totalidade dos personagens principais de "Os caminhos da


Liberdade" é ilustração de algum típico comportamento de má-fé; Mathieu, Marcelle,
Daniel, Brunet, Gomez, Boris, Ivich, Sarah, Daniel, Odette: cada um deles tem sua
própria rota de fuga diante da angústia existencial, cada um deles representa uma
tragicomédia pessoal. Fazer a guerra ou a revolução, praticar a caridade ou a maldade
são ações que se eqüivalem na medida em que são assumidas no âmbito da má-fé. Na
verdade, como o mostra Mathieu, a própria busca pela liberdade pode constituir-se
numa fuga diante dela.

(3) Enquanto a sinceridade se define pela tentativa de se tentar ser o que se é, a boa-fé é
definida por Sartre como a tentativa de se crer no que se crê. (SARTRE, 1993, P. 106)

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