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AFORISMOS

e outros foras jurídicos


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AFORISMOS
e outros foras jurídicos

Denival Francisco da Silva

GOMES & OLIVEIRA EDITORA


BRASILIA-DF
2014
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© Gomes & Oliveira Editora

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Todos os direitos desta edição reservados à GOMES & OLIVEIRA EDITORA

Silva, Denival Francisco da


Aforismo e Outros Foras Jurídicos – Brasília: Gomes & Oliveira Editora. 2014
ISBN: 978-85-6857-201-6
1. Direito 2. Linguagem Jurídica.

BRASIL
Percebo que quanto mais longe vou, mas perto tenho que ficar.
Ficar ligado à finitude e a efemeridade de nossa existência.
Ficar cada vez mais comprometido com os valores, princípios,
direitos e garantias fundamentais, que embora faça de nós
seres humanos desiguais, mantêm-nos iguais em dignidade.
Ficar colado aos meus amores mais diletos, minha esposa
Selênia e minhas crianças, João Paulo e Ana Clara, aos quais
dedico inteiramente este livro.
Sumário

Apresentação................................................................................ 11

INTRODUÇÃO.........................................................................................................................15

I DIGNIDADE DA JUSTIÇA................................................................................21
A propósito, na imagem conhecida da deusa Themis ela está
descalça!

II O MITO DOS MITOS: NEUTRALIDADE! ....................................... 27


Neutralidade não existe, nem mesmo em quimera.

III JURISPRUDÊNCIA MANSA E PACÍFICA...................................... 33


 Pacífico é quem se rende, simples e incontinentemente, aos jul-
gados de outros órgãos julgadores sem a mínima capacidade
de fazer-lhes críticas.

IV A JUSTIÇA INDUSTRIALIZADA..................................................... 39
 A falsa eficácia da justiça pautada em números quantitativos,
porém pouco se importando com resultados qualitativos.

V DO LADO DE LÁ DO MURO.............................................................. 49
Qual é o verdadeiro muro que nos separa?

VI A REALIDADE É ASSIM MESMA! ................................................... 53


“Toda realidade está aí submetida à possibilidade de nossa in-
tervenção nela.” (Paulo Freire)

VII TAXA DE JUROS PELA MÉDIA DE MERCADO ......................... 57


Mais uma ficção entregue como verdade.

VIII O JUIZ DE DIREITO E A MOSCA AZUL......................................... 61


 Não se podem querer juízes representando classes sociais, o que
não significa uma amnésia em torno dos próprios valores e das
realidades sociais no momento de decidir.
IX SOBRE A REINCIDÊNCIA.................................................................. 71
Mais, sobre a multirreincidência.

X NÃO É POR FALTA DE CREDIBILIDADE QUE O


JUDICIÁRIO ESTÁ AFASTADO DO JURISDICIONADO ........... 75
A falta de cultura de solução de conflitos noutras esferas senão
jurisdicionais e o modelo capenga existente.

XI 
COMO SÃO PRODUZIDAS BOAS PARCELAS DAS
DECISÕES............................................................................................... 81
O juiz vidente e o livre uso da linguagem (não) jurídica.

XII A MAGISTRATURA E O SACERDÓCIO......................................... 85


Não sabemos da missa a metade!

XIII
 REALIDADE VERDADEIRA SOBRE O AFORISMO
a
VERDADE REAL.................................................................................. 89
O que é verdade e o que é real? Quem define o que é verdadeiro?
É possível ter uma verdade irreal?

XIV  QUE TEM SIDO AS DECISÕES JUDICIAIS NA


O
URGÊNCIA DE AGORA..................................................................... 93
O juiz dá um tiro no pé e sai contando vantagens.

XV 
ONDE ASSENTAM AS GARANTIAS DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS? .............................................................................. 99
Me dá cantinho? Vá pedir a seu vizinho!

XVI PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO: APENAS UM PRINCÍPIO!.................. 103


 Os procedimentos antidemocráticos para escolha dos dirigentes
do Ministério Público, da OAB e do Poder Judiciário.

XVII USO DE TORNOZELEIRA ELETRÔNICA É APENAS O


RECOMEÇO............................................................................................................. 109
 Do controle do corpo ao controle da alma; do controle da alma
ao controle do corpo, da moral, do caráter, da dignidade e de
todo resto.
XVIII  MAIS UMA SOBRE O MANTO DA “DIGNIDADE DA
JUSTIÇA OU DO “INTERESSE DA JUSTIÇA” ............................... 115
 Ofensa ao direito fundamental da inviolabilidade o sigilo, art.
5º, XII, da Constituição Federal.

XIX A RETÓRICA DA MELHOR DOUTRINA .................................... 121


 Isso é tão ridículo quanto autoritário, a ponto de representar o
que se tem de pior num regime democrático.

XX ENTRE AS VÍSCERAS LINGUÍSTICAS, EIS UM FALSO


ÓRGÃO................................................................................................. 129
 A utilização incorreta do termo órgão, para referenciar ente
privado, reforça o modelo autoritário da imposição do direito
pelo uso errôneo do vernáculo.

XXI O QUE NÃO ESTÁ NOS AUTOS NÃO ESTÁ NO MUNDO!...... 135
E então, onde está?

XXII 
OBJETIVAMENTE, O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ NÃO
COMPORTA O ADENDO “OBJETIVA
Melhor seria: má-fé subjetiva do intérprete..........................................139

REREFÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................... 147


Apresentação

A Justiça brasileira tem uma histórica dificuldade para se comunicar


com o cidadão médio. A constatação é observável na prática. As peças
processuais são complexas e escritas em uma linguagem rebuscada. Isso
faz com que sejam inacessíveis para a maioria das pessoas, exigindo
intimidade com jargões e expressões arcaicas para compreensão da
mensagem contida. Não se trata de diagnóstico inédito. É uma das
mais comuns e recorrentes queixas à metodologia jurídica.
Não deveria ser assim. Há caminhos mais saudáveis ao Direito. O
devido processo legal não sofreria dano algum se os procedimentos
fossem acompanhados por uma linguagem concisa, clara e acessível.
O poder de síntese é um exercício intelectual profundo e saudável. É
quando menos significa mais. Há iniciativas em curso para adaptar o
idioma forense à linguagem cotidiana. Faz sentido. Em época em que o
desenrolar das ações e percepções humanas é tão dinâmico nada parece
mais apropriado.
Aforismos e Outros Foras Jurídicos, obra de autoria do juiz de Direito
Denival Francisco da Silva, reabre o debate sobre o uso automático
de brocardos como garantia jurídica de sucesso e manutenção do
pensamento hegemônico. O título é síntese adequada ao conteúdo do
volume – em particular o trocadilho que se reveste do particular estilo
do magistrado.
O autor, magistrado de carreira, se propõe a refletir sobre a
relevância que o Judiciário empresta às fórmulas consagradas do Direito,
reproduzindo conceitos e abstrações que tendem à obscurecer a atividade
judicante. Trata-se de uma coleção de breves ensaios, reunindo temáticas
que percorrem um amplo espectro legal: da hermenêutica do direito
material às idiossincrasias formais do processo.
Antes de focar a obra, considero relevante uma breve síntese
para localizar o leitor. O Oxford English Dictionary define, em livre
tradução, que aforismo é “uma declaração concisa de um princípio

11
científico, tipicamente feita por um autor clássico”. Ou, ainda, “uma
observação sintética que contenha uma verdade universal”. As
máximas ganharam o gosto popular a partir de meados do século XIII,
tornando-se praticamente um gênero das letras, particularmente dada
a popularidade das epígrafes e frases construídas pelo nobre francês
François de la Rochefoucauld.
Epistemologicamente, aforismo é herança grega enquanto palavra,
mas consagra-se romana a sua perenidade. Ao Direito, as máximas
legais se travestiram em brocardos – primeiramente consagrados pelos
costumes; depois, absorvidos pela lei. A construção do pensamento
jurídico ocidental lastreou-se nas frases latinas, que tomaram força
de dogma. Hoje, tendem a ser camisas-de-força ao livre pensamento
daqueles que buscam na Justiça o equilíbrio das relações em sociedade.
Trata-se de um interessante contraponto. O exercício da síntese,
razão de ser do aforismo, não é exatamente o foco da reflexão do autor.
Não há uma manifestação contrária à concisão processual, desde que
não lese o Direito reclamado. Denival Francisco Silva atua em duas
diferentes frentes.
A primeira, incisiva, questiona a aplicação automática e impensada
das máximas como argumento jurídico válido. Tal atitude afasta a
abstração normativa do texto legal ao caso concreto. A generalização
dos brocardos, herança romana por excelência, adota a tese de uma
verdade universal ao fato que motiva a lide. As frases consagradas pelo
uso são utilizadas como garantias de legitimidade.
O problema tem implicações teóricas severas. Acaba por reduzir
o pensamento jurídico à condicionante axiológica dos brocardos. Para
Denival Francisco Silva, o uso de brocardos dilui a força e a necessidade
de reflexão daqueles que atuam na esfera judicante. Criam, por assim
dizer, uma tradição autômata e vazia de novas ideias. O jurista acaba
se tornando limitado pela doutrina e da jurisprudência, reduzindo a
probabilidade de novas contribuições argumentativas.
A segunda face do livro lança seu olhar sobre o discurso simbólico
contido nos brocardos. Para Denival Francisco da Silva, os aforismos são
ferramentas de dominação porque encerram em si uma representação

12
de força política de dado grupo social. Pode ser corporativista ou
ideológica. Não importa, em essência, ao autor. A reflexão se dá no
sentido de que a prática forense acaba por tornar válida a vontade de
entes alheios à lide por meio da construção social das máximas legais
e dos aforismos – muitas vezes, sem que as partes sequer percebam a
relação entre argumentações antagônicas.
Trata-se de posição polêmica. O discurso jurídico emana da
tradição, que se respalda nos costumes. Logo, é uma construção social,
histórica, política e cultural. Os aforismos e brocardos são sínteses
legais construídas em um dado momento histórico e que passam por
reinterpretações nas cortes ao sabor dos séculos. Tal variação temporal
de sentido simbólico é o que permite ao autor refletir sobre o uso
enviesado dado às máximas, que resultam em foras ou equívocos
jurídicos.
Não é comum ver um magistrado se expressar com tamanha clareza
sobre suas convicções pessoais. Neste sentido, “Aforismos e Outros
Foras Jurídicos” é um livro atípico em Goiás. Usualmente o juiz que se
permite a opinar publicamente opta pela literatura – não pelo ensaio.
Talvez porque a literatura empreste a ficcionalidade como recurso de
defesa ou ainda por permitir grau maior de liberdade à expressão.
Ensaio é gênero exigente ao autor. Demanda maturidade como
ferramenta para selecionar da própria erudição os melhores argumentos
ao fato. O grande filósofo espanhol José Ortega y Gasset certa vez
classificou o ensaio como uma ciência que não explicita suas provas. É
uma argumentação lógica de fatos encadeados que busca despertar no
leitor sua própria reflexão.
Aforismos e Outros Foras Jurídicost é uma obra corajosa por expor a
intimidade do pensamento de um juiz de carreira. Ao fazê-lo, Denival
Francisco da Silva oferece sua contribuição para tornar o Judiciário um
Poder mais humano e sensível às demandas da sociedade que lhe confia
o próprio destino.

13
INTRODUÇÃO

O presente livro consiste num apanhado de crônicas, resenhas e


artigos que escrevi durante os anos de 2010 a 2013, alguns desses textos
publicados em meio virtual, e que aqui mereceram uma reescrita, com
alguns acréscimos e referências.
Como não surgiram propriamente compromissados com a
temática - Aforismos e outros foras jurídicos – e por isso sem expectativa
de se transformarem num livro, eu não tinha a preocupação inicial
em dar-lhe caráter de um trabalho acadêmico. Por isso, havia inserido
poucas referências bibliográficas porque pretendia que fossem textos
mais leves. Porém, aconselhado por alguns amigos a editar o material
em meio impresso, e apesar de continuar sendo um conjunto que
pretende de fácil leitura – inclusive esse foi o motivo do incentivo à
publicação, aparentemente mais informal – ao topar o desafio senti-
me na contingência de dar-lhes enfoques mais acadêmicos e daí a
necessidade de se enxertarem referências para suporte e legitimidade às
minhas falas e sustentabilidade aos argumentos que busco desenvolver.
Não existem aqui verdades, como de resto não existem em nenhum
lugar. Aliás, esse é um dos assuntos questionados e repudiado em
alguns dos textos, enfrentando determinadas imposições desse mundo
jurídico e que são ditas como dogmas intocáveis.
Nesse sentido, o objetivo com os textos apresentados é trazer
pontos de vista sobre determinados assuntos, trazendo-os para
discussões e debates, sempre sob a perspectiva de um olhar crítico e
contestador, com o modesto propósito de instigar o enfrentamento a
certas verdades postas na seara jurídica, em especial quando descritas
no processo judicial.
Não tive a preocupação de dar uma sequência aos textos atendendo
eventual disposição que obedecesse a uma lógica. Não há, também, na
enumeração dos textos sequência cronológica, ordem alfabética, ou

15
qualquer outra forma que possa justificar suas locações dentro deste
acervo que compõe o livro. O único critério seguido foi o da adequação
ao título então definido e que neste caso nasceu antes, embora os
textos já existissem sem ele. Bastou-me selecioná-los para formar este
apanhado (sobraram outros tantos para, quem sabe, um novo livro).
Feito isso, e partindo, então, do título proposto, restou-me definir
os textos que tivessem essa identidade temática – alguns com maior
ênfase, outros menos – mas que em suma convergissem para a questão
do emprego da linguagem jurídica, seja pelos tradicionais aforismos
ou por outras invencionices – ainda sem o quilate dos primeiros –, e
que de igual forma são disseminados no meio jurídico, acadêmico e
principalmente nas lides judiciais de forma muito rápida, na maioria
das vezes sem a mínima reflexão quanto ao real sentido do que se está
a usar.
É bom que se esclareça que o termo aforismo aqui é compreendido
como expressão que designa máximas, e que no mundo jurídico muitas
delas passam a ser dogmas, ou “verdades absolutas”, sendo mantidas e
preservadas por tradição, costume, conservadorismo, respeito a quem
as utilizam, formalidade e que, em razão desses elementos, vão sendo
repetidas exaustivamente sem nenhuma reflexão ou contraposição.
Dá pretensão de desvelar certas expressões e termos jurídicos,
tentando enfrentar o assunto sobre outro viés, já no propósito de
desmistificar essa sisudez e intangibilidade, sobreveio o complemento
do título, ...e outros foras jurídicos, deixando antever de plano a
viabilidade e necessidade de romper com algumas insinuações jurídicas
que no fundo tem outro mote, senão aquele decorrente do próprio
significado do termo utilizado.
É fato que toda forma de linguagem traz consigo uma variante
de signos e significados, e que se amolda a realidade histórica,
cultural, social, econômica, jurídica e, sobretudo política. Para além
da possibilidade de comunicação entre indivíduos, é instrumento de
dominação e de controle social, seja ela uma linguagem técnica ou
mesmo informal.

16
Quando a linguagem se associa ao dizer jurídico, parece que tem
potencializado seu poder de intervir, de reafirmar situações de controle
e de manutenção do status dominante. Isso porque o direito é também
instrumento de domínio. Não sem motivo o “mundo jurídico” ainda
se atém a uma linguagem reacionária, conservadora e legitimadora
da situação vigente. De regra, o dissenso neste universo é motivo de
repulsa e rejeição.
A recusa ao linguajar diferente ou contestatório aos aforismos (ou
equivalente), como se fosse possível impor uma fala uníssona, traz em
si uma contrariedade enorme. A sociedade é dialética, e o direito, como
construção jurídica para atender aos interesses sociais e políticos desse
agrupamento humano, também o é.
Porquanto, é impossível o direito para um só indivíduo, se não tiver
ao menos a quem reivindica-lo. Para Robison Crusoé, na sua solidão
não havia direito, quando muito valores morais. Somente depois de
constatada a presença de outro indivíduo (Sexta-Feira) é que começam
a valer regras de condutas e que haveriam de ser seguidas por ambos.
O que quero destacar é que é impossível falar sozinho, porque toda fala
é resultado de absorções alheias, num contínuo complementar. Toda
linguagem, de um modo ou de outro, sempre encontrara eco, e, ainda
que na aparência de desprezo, sempre ressoara, mesmo que para isso
haja um baixo campo de verberação.
Essa é a esperança de quem diverge do senso comum no cenário
jurídico, ou de quem insiste em proferir uma fala descontente,
enfrentando o desafio da maioria que ainda enxerga na linguagem
jurídica um glamour, uma necessidade e apego ao tradicionalismo,
sem, às vezes, ao menos notar que é desse discurso que se mantém o
distanciamento de direitos, principalmente na pauta dos tidos como
fundamentais, não universalizados.
Revelar, portanto, um discurso dissonante do padrão usual e
aparentemente provocativo a essa estrutura, neste campo em que o
zelo e apreço pela linguagem é uma marca com forte carga de estilo
clássico e formal, é uma aventura temerosa, mas com riscos calculados.

17
Deve-se estar preparado para enfrentar rejeições e chibatadas. A
dialética pressupõe a possibilidade de contradição e não o chicote,
embora para este deve-se também estar pronto. As resistências, ou a
negativa dialética, é fruto do conservadorismo e formalidade no falar
jurídico como se fossem elementos imprescindíveis e indissociáveis,
senão como mecanismo ideológico de poder.
Ademais, não se pode desprender do fato de que toda forma de
expressar é resultante do aprendizado acumulado, com os valores
somatizados, em fontes de onde se abeberou. Destarte, é difícil
(não impossível) querer uma fala descontente de quem vive no
contentamento, sobretudo numa sociedade de consumo onde o ter é
sinal de status e poder, ou de quem não consegue enxergar no outro o
espelho do seu próprio eu (alteridade), por isso igualmente dotado de
direitos, onde o egocentrismo é marca do sucesso.
A linguagem, neste contexto, traz em si uma torrente de
elementos ideológicos, e que são exercidos com precisão por forças
políticas no embate de uma sociedade plural, porém com ascensão de
poucos que dentre as tantas formas de manutenção desse status, ela é,
sem dúvida, arma fundamental. Alexandre Rosa assinala que se trata
de uma
atividade artística interpretativa e como tal pressupõe a
possibilidade de estilo e produção mágicos, desde e na
linguagem. E continua, afirmando que, como faceta do
poder, espraia pelo espaço social, servindo tanto a discursos
revolucionários quanto à reprodução de discursos totalitários,
deslocando-se ao gosto dos atores jurídicos sabedores de sua
maleabilidade e limites.1

O direito, como expressão evidente de domínio – e há quem diga


que mesmo o discurso quanto ao tema dos direitos humanos é senão
forma de se fortalecer esta posição – desfruta da linguagem como sua
ferramenta essencial. Toda linguagem jurídica descente deste contexto
1
 OSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal: A Bricolage de Significantes. Rio de
R
Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 376.

18
e embora possa assumir posições dissonantes ao final, diante dos
incessantes conflitos de interesses em discussões, sempre estará ligada
a um mesmo liame da flexibilidade retórica com o intuito persuasivo.
A reflexão se dá no sentido de que a prática jurídica acaba por
tornar válida a vontade de entes alheios aos conflitos de interesses por
meio da construção social das máximas legais e dos aforismos, muitas
das vezes sem que os envolvidos ao menos percebam a relação entre
argumentações antagônicas.
Antes de qualquer desejo de convencimento – e muito longe
desta intenção e capacidade de fazê-lo – a seleção desta coletânea de
textos que compõem este livro tem o intento de revelar a força, agora
sim, persuasiva, de muitas das expressões e termos concebidos como
aforismos, ou não, e que são utilizados rotineiramente no cenário
jurídico desde muito tempo.
Outra questão relevante é que a utilização de um vocabulário
próprio, para além da necessidade técnica de se construir e definir
institutos e instrumentos jurídicos é fruto de um pedantismo e
arrogância de quem se julga acima da média ou pertencente a um
foro especial de linguagem, reservado a poucos, por óbvio. Trata-se
de forma de preconceito linguístico aos sem-língua2 e barreira a afastá-los
do acesso inclusive aos direitos e garantias fundamentais. Muitos, pelo
simples fato de não saberem do falar e do emprego da linguagem jurídica
são excluídos dos ganhos na sociedade de consumo e de conquistas
sociais e históricas. Em contraposição, ocultadas as demandas sob a
força de uma linguagem jurídica opressora e desigual no momento do

2
Existem milhões de pessoas neste país que não têm acesso a essa língua, que é a norma
literária, culta, empregada pelos escritores e jornalistas, pelas instituições oficiais, pelos
órgãos do poder – são os sem-língua. É claro que eles também falam português, uma
variedade de português não-padrão, com sua gramática particular, que no entanto não
é reconhecida como válida, que é desprestigiada, ridicularizada, alvo de chacota e de
escárnio por parte dos falantes do português-padrão ou mesmo daqueles que, não falando
o português-padrão, o tomam como referência ideal – por isso podemos chama-los de sem-
língua. (BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. 48ª ed.
São Paulo: Edições Loyola, 2007. p. 16/17)

19
seu uso, velam-se aos desassistidos a sina dos “sem-direitos”, quando
efetivamente não o são.
É assim que se estrutura e monta o discurso jurídico, mormente
dominante, com fim claro de sonegar, de distorcer e de mutilar
direitos, ou ainda de reforçá-los em favor de uns poucos. Tudo isso
e diretamente com o emprego de estruturas linguísticas pinceladas de
jurídicas, com a capacidade e finalidade de subverter a ideia de justiça
enquanto equidade e igual participação de todos.
O incrível é que muitos usuários dessa linguagem jurídica
apodera-se de determinadas expressões por simples força do hábito ou,
principalmente, porque ouviu de alguma sumidade jurídica (em geral
confortável e regiamente bem paga por quem detém o poder político e
econômico). Na prática usual não faz nenhum filtro quanto aos termos
empregados e que por vezes, militam contra seus próprios interesses
ou suas realidades sociais, econômicas e políticas.
Esse é o engodo jurídico. A fantasia verborrágica para iludir e
apascentar ânimos.

20
I
DIGNIDADE DA JUSTIÇA

A propósito, na imagem conhecida


da deusa Themis ela está descalça!

A maioria dos aforismos jurídicos é criada conforme o uso, como


o cachimbo a entortar a boca do fumante. Lançados de forma não tão
casual por alguém, ou surgidos misteriosamente sem que ninguém
saiba exatamente a procedência, como um brocardo pouco intencional
(ditos populares), cai no gosto comum assumindo peso suficiente para
ser seguida e aos poucos vai se transformando em regras correntes na
linguagem jurídica, sem que os usuários conheçam os motivos
Neste compasso, os aforismos são copiados e repetidos sem
quaisquer reflexões sobre seus significados e sentidos, bastando saber
que aquela fala se amolda a determinada situação (ainda que tudo seja
fruto de pura imaginação e emprego equivocado), porque o uso o fez
assim, ainda que no fundo não exprima efetiva conexão.
Outros aforismos veem redigidos em textos de leis – por
certos extraídos também da prática comum –, acabam tornando
editos impositivos, afinal dura lex sed lex (já é um novo aforismo que
mereceria comentário) 3. Acontece que são inseridos na legislação

3
 lei não basta em si apenas por ser lei. Depende de interpretação e de adequação
A
social e histórica para amoldar as realidades fáticas. Ainda assim, o exercício
hermêutico não produz um único resultado. Tudo dependerá de quem tem o dever
de interpretar e do momento em que o realiza. Portanto o brocardo latino dura
lex sed lex (a lei é dura, mas é a lei) não tem sentido diante desta necessidade de
aproximação da normativa à realidade e que ainda assim poderá apontar caminhos
variados.
A este propósito vide: BITTAR, Eduardo C. B. Linguagem Jurídica. 4ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2009. p. 125. A maior ilusão do legislador é a de vislumbrar na norma

21
com a mesma falta de cautela com que se faz seu uso cotidianamente,
quando dever-se-ia de se ter mais atenção à técnica e a semântica dos
termos jurisdicionalizados.
Nesse passo, é lamentável como determinadas expressões e
palavras com forte acepção axiológica acabam sendo desvalorizadas
pelo emprego incorreto. Por vezes, maliciosamente, com o fim mesmo
de diminuir-lhes a importância; noutras ocasiões, em decorrência de
pedantismo cultural que faz do usuário autossuficiente o bastante para
pretender transferir as potencialidades axiológicas de referidos termos
para outras expressões, dando-lhes outras conotações, o que de fato não
ocorre, senão suas deturpações; noutras situações, por fim, por pura
ignorância de quem as usam, porque não teve a capacidade reflexiva
sobre o que está utilizando e as imbricações que dali podem surgir.
Dentre os tantos equívocos linguístico-jurídicos, a expressão
dignidade da justiça, repetida no mínimo três vezes no Código de Processo
Civil (arts. 125, 598 e 600), deturpa sua essência, embora entrega ao
julgador um subjetivismo para sancionar sujeitos processuais, em regra
o mais frágil na relação. É o caso que ocorre nos processos de execução,
porque se compreende como atentado à dignidade da justiça aquele que
afeta o interesse do credor, não havendo igual correspondência ao
devedor. Ou seja, no contexto em que a expressão é focada na legislação,
o credor sempre está com a razão, mesmo que seu crédito seja fruto de
um contrato com cláusulas abusivas e com práticas de usura.
A partir do que já era errôneo nesta literalidade da lei,
estendeu-se mesmo fora de qualquer invocação legal para outras fases
processuais, alargando o seu uso incorreto e de modo perverso, para
fazer da dignidade uma simples frase de efeito punitivo da qual se vale
abusivamente o julgador, sem a dimensão que nela se encerra, bastando
argumentos colhidos na vala comum da verborragia jurídica.

jurídica um preceito estéril e imune ao movimento. O sentido (único) fundado pelo legislador,
ou por ele pretendido, quando plasmado em texto normativo, ganha vida própria. O sentido
jurídico-normativo do legislador nada mais é que um projeto de sentido, pois quando se
promulga, se publica, passa a navegar nas ondulações das cadeias da interpretação. [...]
O legislador histórico é responsável apenas pela formação do texto, e pela sua oferta à
comunidade jurídica e à sociedade.

22
Há uma verdadeira inversão de sentido e, em nome da dignidade
da justiça expedem-se mandados de prisões, realizam-se buscas e
apreensões e até mesmo são adiadas audiências, porque as vestes
de algum advogado ou os calçados de uma das partes “não estariam
condizentes com o ambiente forense”, ofendendo o “respeito à
dignidade da justiça”.
Sob estes argumentos, existem vários registros de adiamento de
audiências porque os advogados estavam sem terno e gravata. Noutra
situação este fato chegou ao CNJ e que nada fez. Preferiu acomodar-
se deixando nas entrelinhas que cada órgão jurisdicional pode
perfeitamente ditar como as pessoas devem se vestir para adentrar
aos umbrais forenses e frequentar tais espaços, ao tempo que deveria
ter dado um basta nestas atitudes ridículas, inibindo de vez que esses
órgãos jurisdicionais percam seu tempo com atos administrativos desta
natureza, verdadeiras demonstrações de arrogâncias e idiossincrasias.
Santa estupidez! Enquanto estas baboseiras são repetidas o
fundamental é aviltado. Os jurisdicionados que batem as portas do
Judiciário estão preocupados com seus dramas, e daí a existência do
processo, não podendo ter como obstáculo a estética no vestir.
Mas a coisa não se resume a estas futilidades e sua erronia. O pior
é a veleidade de quem se esconde nesses biombos. O uso impróprio do
termo dignidade, inclusive e principalmente na legislação, é o fato mais
aterrador, porque reduz sua importância e significado.
Não existe dignidade da justiça, porque dignidade é
atributo humano4. Somente e exclusivamente!

4
S ILVA, José Afonso. A dignidade da pessoa humana como valor supremo
da democracia. Texto publicado no Livro de Teses da XV Conferência
Nacional da OAB, Ética, democracia e justiça. Foz do Iguaçu. Set. 1994. p. 108.
Apud ALVARENGA, Lúcia Barros Freitas de. Direitos Humanos, Dignidade
e Erradicação da Pobreza: Uma Dimensão Hermenêutica para Realização
Constitucional. Brasília: Brasília Jurídica, 1998. p. 134. Dignidade da pessoa humana
é valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o
direito à vida, acompanhando o homem até sua morte.

23
É justamente em virtude de sua importância axiológica que o
termo ganhou na ordem constitucional o status de eixo central dos
direitos e garantias fundamentais em torno do qual gravitam todos os
demais. Está inserido logo no art. 1º, III da Constituição Federal, como
fundamento da República Federativa do Brasil, fato que muitos sequer
se dão conta.
Satirizando o engano (intencional ou não) pode-se afirmar
que a única forma de dignificar a justiça seria humanizando a deusa
Themis. Como isso não é possível (pura ficção), o emprego incorreto
do termo serve para esvaziar seu conteúdo e dimensão, fazendo com
que se perca o contexto humano que passa a ser mera abstração. Nisso
seus entusiasmados usuários dão de costas aos jurisdicionados, por
vezes sem dignidade nas relações processuais, a ponto de determinado
juiz, recentemente, isso agora em pleno século XXI, adiar a audiência
porque o reclamante (trabalhador, assalariado, demitido, sem receber
seus direitos remuneratórios, e tudo mais) estava calçando chinelos.
Segundo o magistrado, aquilo ofendia a dignidade da justiça.5
Este caso teve grande repercussão na mídia (raridade, até porque
estas ofensas à dignidade não chegam ao conhecimento da imprensa,
ou quando chegam não dão também a mínima importância) e por
isso ganhou destaque no cenário jurídico. Na tentativa de emendar
o malfeito, a sua Excelência levou na audiência seguinte um par de
sapatos velhos (do seu acervo de descartados), e que foi rejeitando
pelo reclamante, a essa altura calçando um número não ajustado aos
seus pés porque foi o sapato que conseguiu emprestado para a liturgia
daquela audiência.
O motivo da recusa do antes achinelado não foi orgulho, mas
por ter a honra de preservar a própria dignidade, situação por certo
não compreendida por muitos daqueles que tem o dever de dizer o
direito. O reclamante não pedia filantropia, mas exercia dignamente

5
 ONJUR. Revista Consultor Jurídico. Juiz suspende audiência porque autor da ação
C
calçava chinelos. Reportagem de Gláucia Milício. 21 de junho de 2007 CONJUR. In:
http://bit.ly/qbypru. Pesquisa em 20/08/2011.

24
seu direito de ação com a expectativa de que o magistrado investido de
competêcia para sua ação, pudesse apreciar sua pretensão – e se fosse
o caso de reparar suas vestes, que o fizesse para constatar sua aflição
pecuniária – e, uma vez ouvido, deferisse seus pedidos, inclusive para
que pudesse adquirir seus próprios calçados, ao invês de ter que suportar
o constrangimento de um ralhar impiedoso, arrogante e patético.

25
II
O MITO DOS MITOS: NEUTRALIDADE!

Neutralidade não existe, nem mesmo em quimera.

As frases prontas do tipo, “segurança jurídica”, “obediência à lei”,


“deve-se respeitar a lei e a ordem”, “o juiz deve analisar as consequências
econômicas de suas decisões”, “boa fé objetiva”, etc., servem ao
julgador como anteparo as suas posições conservadoras, reacionárias,
nada resilientes, mantenedores de uma estrutura posta de modo
inquestionável, e tantas outras justificativas que se queiram dar. São
por meio destes bordões que se disparam brandos ditos democráticos,
enquanto seus falantes encastelam suas posições distantes de súditos
ávidos por justiça.
O passo inicial para um decidir honesto é admitir, de vez, que não
existe neutralidade no ato de julgar6. Não existe juiz politicamente neutro,7
porque não existe ser humano que não se engaje no político, mais ou
menos, independentemente das posições assumidas. A tentativa de não
deixar refletir uma posição política é verdadeiro engodo, porque nisso
já é uma forma de se assumir, nesses caso, em regra, com a situação
vigente.
Assim, não há como se esconder em mitos como se neles pudessem
afastar-se de vinculações e comprometimentos. Toda conduta humana
é uma revelação com a qual o ator se identifica. Não há disfarce para
o juiz. Todo ato de julgar é ato político e não se é possível ocultar as
6
PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. 5ª ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2003. p. 63.
7
 OMES, Luiz Flávio. A Dimensão da Magistratura: no Estado Constitucional e
G
Democrático de Direito: independência judicial, controle judiciário, legitimação da
jurisdição, politização e responsabilidade do juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1997. p. 134.

27
tendências e opções escolhidas, nem mesmo quando se quer ocultar
em artefatos que se dizem jurídicos. No fundo, são apenas argumentos
alheios com os quais o usuário se identifica para negar ou justificar
a concessão de determinada pretensão. Ao fim, tudo depende das
escolhas que se faz em relação a quem pede, a quem se pede, quando se
pede e porque se pede.
Qualquer tomada de decisão, seja ela jurídica ou não, é um ato
político e ideológico8, carregado de paixões (ou paixão nenhuma,
o que é um pouco difícil; porém, ainda assim representaria um
antissentimentalismo nefasto), valores morais, religiosos, inebriações
momentâneas movidas pela euforia popular ou mais comumente pela
sanha da imprensa. E assim por diante.
Em geral – se não possuídas por estes elementos enumerados –
a decisão judicial é fruto da revelação de convicções que se firmaram
durante anos de bancos de escola, da sapiência no conhecimento
jurídico, do bom senso, de experiências humanas, de relações sociais
e lutas diárias, inclusive que fizeram do sujeito que tem a incumbência
oficial de julgar, ascender socialmente, podendo ou não, querer ser o
espelho para suas próprias decisões.
A decisão judicial é, senão, produto do amontoado de
sensibilidades (ou insensibilidades). É resultado do adensamento e
somatório de um emaranhado de concepções e preceitos que acabam
transformados num texto jurídico e que se pretende conclusivo na rota
evolutiva do processo. Ou mais do que isso. É fruto de um compromisso

8
[...] é insustentável pretender que um juiz não seja cidadão, que não participe de certa
ordem de ideias, que não tenha uma compreensão de mundo, uma visão da realidade. Não
é possível imaginar um juiz que não a tenha, simplesmente porque não há homem que não
a tenha, por pífia ou errada que possa ser julgada. O “juiz eunuco político” de Griffith é
realmente ficção absurda, uma imagem inconcebível, uma impossibilidade antropológica.
[...] O juiz não pose ser alguém “neutro”, porque não existe neutralidade ideológica, salvo
na forma de apatia irracionalismo ou decadência do pensamento, que não são virtudes
dignas de ninguém e menos ainda de um juiz. (ZAFFARRONI, Eugenio Raul. Poder
Judiciário: Crise, Acertos e Desacertos. Tradução Juarez Tavares;. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1995. p. 92)

28
ethos do julgador, centrada nesta carga de valores9 que traz consigo,
conforme seus interesses e sensações.
O terrível é quando se agarra as motivações espargidas fora de
uma racionalidade que se exige ao julgamento, deixando-se (ainda
que negue este fato e o faça autonomamente) levar por pressões
tendenciosas e emocionais. É o que ocorre, por exemplo, com o
apelo feito pela mídia, principalmente diante de situações de enorme
repercussão social. Atropela-se tudo e se quer uma resposta imediata,
em completa desprezo a um devido processo.10
Haverá sempre neste processo de julgar frustrações não resolvidas
e que se extravasam em posições relativisadas, por vezes autoritárias,
porque sem qualquer fundamento, camufladas nas de quem julga
subjetividades e no leque interpretativo que se entende permitir a
legislação. Não há como desvencilhar: nos meandros desta produção
há nítidas fragmentações morais, religiosas, éticas, etc., conformadas
na esfera social e que por isso passam despercebidas em nome de um
julgar neutro que não existe.
É óbvio que o conformismo com posturas aparentemente
sedimentadas torna tudo mais fácil (melhor seriam, repetitivas, mas
que não refletem sequer o pensamento daqueles que a reproduzem),
inclusive porque se evitam questionamentos, motivações e a
necessidade de se autorrevelar, bastando o abrigo no cobertor do
proselitismo linguístico, amotinando-se num verdadeiro aranzel como
9
 juiz que não tem valores e diz que seu julgamento é neutro, na verdade está assumindo
O
valores de conservação. O juiz sempre tem valores. Toda sentença é marcada por valores.
O juiz tem que ter a sinceridade de reconhecer a impossibilidade de sentença neutra.
(PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. 5ª ed. Porto Alegre:
livraria do advogado, 2003. p. 74).
10
 ameaça que a mídia faz pairar sobre o embasamento simbólico da justiça pode revelar-se
A
talvez mais perigosa que os atentados contra algumas liberdades públicas. O símbolo, na
verdade, distancia. Ora, a mídia abole as três distâncias essenciais em que se baseia a justiça: a
delimitação de um espaço protegido, o tempo diferenciado do processo e a qualidade oficial
dos personagens do seu drama social. Ela desloca o espaço judiciário, paralisa o tempo e
destitui a autoridade. (GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das
promessas. Tradução Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 2001.p. 76).

29
quem mimetiza com a realidade. Não é preciso neste caso enfrentar
o receio da rejeição, o escárnio da indiferença, a pecha de rebelde,
ultrapassado (como se fosse ultrapassado evocar o ente humano como
razão de ser das estruturas políticas e sociais), ou outra coisa do gênero.
Porém, ainda que se revolte contra tudo isso, porque decidir de
outro modo se ao final vale a última palavra?
Será? Quantos indivíduos têm a oportunidade de levar suas
demandas às instâncias superiores e até ao topo para ser apreciado
pelo STF? Aliás, este gargalo desmistifica um pouco a história do pleno
acesso à justiça (outro mote para um novo texto) argumento também
ressaltado como uma verdade absoluta, porque expresso no texto
constitucional, mas que acaba sendo assegurada a poucos.
Ainda, quanto a isto, e voltando ao título da neutralidade,
pouca diferença faz. O ato de decidir será sempre um ato não neutro,
porque não existe de modo nenhum juiz velado às influências
externas, passadas, presentes e futuras.11 Os julgamentos sempre serão
conduzidos por estes sentimentos e compreensões que no fundo não
passam de adaptações no processo exegético do direito aplicado ao caso
concreto. Daí esta volatilidade da interpretação jurídica.
Neste cenário subjetivo que é dado a qualquer interprete,
rigorosamente, as soluções jurídicas fundadas no mito da neutralidade
tem servido de escaramuça para impedir a entrega de garantias
fundamentais, negando às minorias políticas direitos que são
resultantes de peregrinações históricas da humanidade, além de

11
 difusão, pois, da neutralidade axiológica do julgador não passa de embuste, mito,
A
capaz de funcionar como aplacador da dimensão política do jurídico, deixando o julgador
alienado tal qual ‘Truman Burbank’, protagonista da película ‘O Show da Vida’ (‘The
Truman Show’), na qual sua existência era artificial, um programa de TV, em que vivia
num cenário perfeito e falso. Sua família, sua casa, seus sentimentos, sua situação no mundo,
nada era, enfim, verdadeiro. O juiz neutro encontra-se neste cenário de plena felicidade
por acreditar que está levando sua própria vida, talvez precisando de uma voz, como se deu
no filme, para avisar aos incautos, que o cenário onde se desenrola a ação não é falso, mas,
sublinhe-se, totalmente controlado. (ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal:
A Bricolage de Significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 299).

30
obstruir o caminho para novas conquistas. A par deste mito, muitos
juízes (e muitos mesmo!), ao decidirem apenas convalidam e preservam
o status quo,12 contribuindo de modo incisivo para o acirramento das
desigualdades sociais. Neste contexto a maneira de julgar no processo
é sempre e claramente comprometida, não podendo nunca e jamais
ser resultado de um ato de neutralidade, como também não o seria se
houvesse envolvimento com os princípios fundamentais descritos no
texto constitucional o que, aliás, haveria de ser.
Enquanto o julgador possuir coração, sentimentos e capacidade
intelectiva (antes que possa ser substituído definitivamente por
computadores) lançará decisões não neutras, afinal, é impossível obter
a figura do juiz como um eunuco político de Griffith é realmente uma ficção
absurda, uma imagem inconcebível, uma impossibilidade antropológica.13
Suas decisões estarão sempre em sintonia com o conjunto de
valores acumulados na sua existência e que são, por fim, transferidos
aos seus julgados, revestidos com um retoque jurídico.
O que nos resta é apontar as tendências e justificar os motivos
da decisão, para que possa ser combatida ou conformada, conforme
obviamente os interesses dos destinatários, dentro das raias
democráticas.
O problema central não reside na decisão em si, mas nas fantasias
que são utilizadas para editá-las, meio que lobos transvestidos de
cordeiros. É preciso desvelar as falsas ovelhas, arrancando-lhes a pele
da suposta neutralidade que dizem trajar.

12
 sendo o julgador dogmático um simples reprodutor do conhecimento já estabelecido, nada

mais faz do que propagar os conceitos elaborados por essa minoria, eternizando o status quo.
A sentença tradicional, na visão apresentada, serve para evitar a transformação social. [...]
Para isso, há necessidade do julgador perceber a existência de vários Direitos, ou de várias
formas de ler o Direito, cada qual defendendo classes que se conflitam. A sociedade necessita
de julgadores políticos, pois não há uma Justiça a ser distribuída. (ANDRADE, Lédio
Rosa da. Juiz Alternativo e o Poder Judiciário. 2ª ed. Florianópolis: Conceito
Editorial, 2008. p. 88)
13
ZAFFARRONI, Eugenio Raul. Poder Judiciário: Crise, Acertos e Desacertos.
Tradução Juarez Tavares; São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 92

31
Se algum dia, entretanto, conseguir-se um juiz do qual se
possa afirmar com convicção ser neutro, saiba que este julgador
será um androide, um alienígena14, senão um robô (...juízes não sóis
máquina, homens é que sóis. Charles Chaplin em “O Grande Ditador”).
Provavelmente, a esta altura, já teremos nos autodestruído.

14
 iz-se, pois, que o Juiz é neutro como se isso possível fosse. A única forma de uma pessoa
D
ser neutra é estar fora do mundo, como se as coisas acontecessem abaixo dela. Na verdade
ninguém, nem mesmo o cientista, pode ser neutro. Já se disse antes que o ato sentencial
é fruto da ideologia do julgador [...] e todos sabemos que a visão de mundo que temos é
comprometida com a nossa história. Ao decidir, ou se está aplicando uma lei que não é
neutra, ou se está aplicando uma justiça que também não o é. Logo, não neutra é a decisão.
Acrescente-se, ainda, que tal decisão é prolatada a partir da ideologia do julgador, que
por sua vez também não é neutra. CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e
Direito Alternativo. 7ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 41.

32
III
JURISPRUDÊNCIA MANSA E PACÍFICA

Pacífico é quem se rende, simples e incontinentemente, aos


julgados de outros órgãos julgadores sem a mínima
capacidade de fazer-lhes críticas.

Quem já teve oportunidade de ler ao menos umas três decisões


judiciais, ainda que parcialmente, ou já teve que suportar a fala de alguns
falsos eruditos e autodenominados “operadores do direito” (o operário
não tem a obrigação de refletir sobre o que está fazendo, porque
suas tarefas já chegam pensadas por quem manda executar, por mais
absurdas que sejam), percebeu que geralmente quando se quer fechar
a discussão jurídica sobre determinado assunto o prosador encerra o
debate com a expressão de que sobre o tema já existe jurisprudência
mansa e pacífica.
Mesmo fracionando o termo já seria em si uma excrescência. Mas
porque não só mansa, ou não só pacífica? Qual a razão da redundância,
senão reforçar justamente o que não é e não pode ser, mansa e pacífica.
Veja. Essa coisa domesticada só pode ser contraponto com o
que fora anteriormente bravio e selvagem feito animal enfurecido
resistente à opressão daqueles que querem enjaulá-la. É possível que
seja preciso tato, jeito, coragem, condicionantes, interesses, vontades
para amansá-la. Isso só pode ser trabalho destinado a poucos, “dotados
de poderes suficientes para ditar posições e interpretações jurídicas
absolutas”. Assim, expedida a bula por tais gurus e uma vez tornada
mansa e pacífica esta “verdade”, ninguém mais poderá enfrentá-la. É
necessário preservá-la assim, dócil e tranquila para apascentar os
interesses reinantes e sufocar os clamores sociais, até porque em regra
espelham posições conservadoras e legitimadoras do status vigente.

33
E não adianta relutar, ainda que exista nisso uma enorme
contradição que se opera desde o princípio. Contrário àquilo que é
manso e pacífico, a jurisprudência com este selo passa ser extremamente
temida, justo o oposto da ideia do que fora que amansado e pacificado.
No entanto, o que ela resume transforma-se num dogma que ninguém
pode se insurgir. Passa a ser um mito, uma divindade, uma crença, com
a qual não se permite a mínima discussão, sequer sobre seu conteúdo.
Para o juiz, a depender de seu modo decisório, será uma lástima
ou comodismo. Representará comodismo15 quando prefere repetir
friamente, sem ao menos adequá-la ao caso concreto. Neste caso ver-
se-á na confortável situação da desnecessidade de estudar o assunto
para prolatar uma decisão que implicaria na individualização da questão
trazida a juízo, e não um simples copiar de fórmulas. De outro lado – e
retornando ao tema enfatizado noutro artigo deste livro – ao acolher
o que já está assentado e repetido como algo “manso e pacífico”, quer
reafirmar, embora falsamente, sua condição de neutralidade, numa
tentativa de descomprometer-se com a própria decisão: sou neutro e
outros já afirmaram ser esta a solução para o caso.16
Lastimoso para aqueles que eventualmente ainda ousam divergir.
Neste caso serão de imediatos taxados de não antenados com as
exigências judiciais de agora, que requer rapidez e eficiência (aqui
entendida como quantidade de decisões). São os renegados como
portadores de uma rebeldia vazia e desprovida, porque sabem que
ao fim serão vencidos. Para estes o argumento repulsivo é de que
ferem o preceito da necessidade segurança jurídica (outro aforismo
15
Um vizinho muito próximo do formalista é o juiz acomodado, o que se afirma apolítico e
entende que não é tarefa sua indagações sobre a justiça, a legitimidade e os efeitos sociais
das leis. Esse é, possivelmente, o caso da maioria dos juízes. (DALLARI, Dalmo de
Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 38).
16
 s julgadores submetidos ao senso comum têm dificuldade de reconhecerem-se não neutros
O
e não compreendem ser necessário optar, enquanto autores sociais. [...] é muito salutar a
conscientização de que não somos neutros e imparciais, porque, assim, descobrimos que
somos responsáveis pelas nossas decisões e que não podemos transferir nossas injustiças
ao fantasma do legislador nem à cômoda cobertura da ‘Jurisprudência mansa e pacífica’.
(ANDRADE, Lédio Rosa da. Juiz Alternativo e o Poder Judiciário. 2ª ed.
Florianópolis: Conceito Editorial, 2008. p. 100/101)

34
inconteste), mesmo que diante da divergência estejam justamente
dando legitimidade aos seus julgados, em observância ao disposto no
art. 93, IX da Constituição que exige que todas as decisões judiciais
sejam fundamentadas. Porém, um juiz que não possa decidir de acordo
com seu livre convencimento já não age como juiz,17 é senão um escriba
muito caro ao Estado.
Diante de tantas falsas razões, aquele julgador que não tem
a coragem de divergir, despreza qualquer possibilidade de um novo
pensar sobre o assunto, para abraçar a maldita da jurisprudência mansa
e pacífica, contra a qual não há motivação que consiga superar. Basta-
lhe fazer menção à jurisprudência mansa e pacífica, como se fosse um
medicamento ultrapossante e tudo estará decidido.
O direito, assim como a própria sociedade, é mutante e não pode
se deixar encalhar pelo caminho feito um paquiderme com trombose.
Não existe jurisprudência que resista ao tempo, por mais longínquo
que possa parecer. Mesmo os fatos presentes diferenciam-se em cada
processo e esta dinamicidade e que permite a inovação. A castração,
inibe um novo modo de pensar, mesmo diante da necessidade de
renovar a tal da jurisprudência mansa e pacífica, impede a evolução social
e a reflexão sobre o direito e sua adequação ao caso concreto, sob a
ótica dos preceitos fundamentais descritos na Constituição Federal.
É enganosa a afirmação de que toda a jurisprudência é importante
e necessária para que se obtenha a “segurança jurídica”18. Não que a

17
DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 64.
18
 esde a implantação do Poder Judiciário no Brasil, sempre houve a tão propalada segurança,
D
e contra ela, até o momento, ninguém se insurgiu. Há que se indagar como pode, após tantos
anos de segurança jurídica, estar o povo brasileiro em estado de miséria tão profunda?
Afinal, a quem serviu tal segurança além dos detentores do poder?
Que tipo de segurança tem a gente humilde brasileira? Segurança formal não mata fome,
não dá saúde, moradia e demais condições de sobrevivência à população. Em verdade, a
segurança jurídica meramente formal não garante, sequer, a própria segurança formal ao
povo, menos ainda acesso a alguma base material, sem as quais o mais é discurso que, se
atende interesses de alguns, ilude a necessidade de outros. (ANDRADE, Lédio Rosa da.
Juiz Alternativo e o Poder Judiciário. 2ª ed. Florianópolis: Conceito Editorial,

35
jurisprudência não possa servir de parâmetros para novas decisões;
aliás, ela é também fonte do direito. Todavia, não se pode ser seu
escravo. Não se pode engessar o debate sob o manto de “verdades”
incontestáveis. Não se pode transformá-la em algo pronto e acabado
para situações tão diversificadas que ocorrem diariamente nas lides
jurídicas.19
Para o juiz é a tranquilidade de quem não quer ter o trabalho
de realmente decidir, por inúmeras razões: (i) porque se conforma
com o império desta certeza mansa e pacificada; (ii) porque não tem a
capacidade de repensar e dar sua solução ao caso, como efetivamente
requer; (iii) porque lhe falta compromisso e disposição para se debruçar
sobre cada caso em especial; (iv) porque vive pressionado, sob ameaça
de números estatísticos e cobranças das corregedorias de justiça e
do CNJ, diante da cobrança que lhe é imposta de produtividade; (v)
porque não quer desagradar os órgãos jurisdicionais hierarquicamente
superiores, e que lhe dá gratuitamente fórmulas prontas, servíveis
para as mais distintas causas; (vi) porque lhe falta preparo intelectual
e técnico para enfrentar de modo diverso os temas em discussão;
(vii) porque se conforma com o status vigente, não afrontando suas
próprias convicções, em regra conservadoras e tradicionalistas, bem
como querem aqueles que editam e se aproveitam das mencionadas
jurisprudências mansas e pacíficas; (viii) porque apesar de se dizer
2008. P. 140/141).
19
P ara ser justa, a decisão de um juiz, por exemplo, deve não somente seguir uma regra de
direito ou uma lei geral, mas deve assumi-la, aprová-la, confirma-la em seu valor, por um
ato de interpretação reinstaurador, como se em seu limite a lei não existisse previamente,
como se o juiz inventasse a lei a caso. Cada exercício da justiça como direito não pode ser
justo a não ser como um fresh judgement... para que uma decisão seja justa e responsável,
é necessário que em seu preciso momento, se é que acontece, ela seja simultaneamente
regrada e sem regra, conservadora da lei e também destrutiva ou suspensiva da lei ao ponto
de dever em cada caso reinventá-la, rejustificá-la, reinventá-la ao menos na reafirmação e
na confirmação nova e livre de seu princípio. Cada caso é outro, cada decisão é diferente
e requer uma interpretação absolutamente única, que nenhuma regra existente
ou codificada pode, e nem deve, garantir. (negritei) (SOUZA, Ricardo Timm de.
Justiça em seus Termos. Dignidade humana, dignidade do mundo. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2010. p 98).

36
“missionário” (como um ungido de Deus para julgar), não sabe rezar
um pai-nosso, preocupando-se exclusivamente com seus interesses,
dando a mínima importância ou atenção às aflições dos jurisdicionados
em processos sob sua direção.
Mesmo diante de tantos argumentos ( e de outros não ditos),
jurisprudência mansa e pacífica é verdadeiro animal traiçoeiro que quer
igualar decisões na força bruta, na estupidez de uma imposição.
Por que não só jurisprudência? Os adjetivos, mansa e pacífica,
contrariamente ao que expressam, servem para intimidar, para
colocar as coisas nos devidos lugares, para não se remover o que está
assentado, por mais que em linhas transversas, ou nitidamente, com
sói ser, em proveito de interesses dos de sempre. Em geral é resultado
de posicionamentos conservadores, restritivos de direitos e que
preservam o estado de coisas sem nada modificar. De dócil, não tem
nada.
São soluções ardilosas, não raro encomendadas, no sentido
de que servem exatamente aos interesses econômicos e políticos de
grupos dominantes, em contraposição e desprezo as minorias sociais.
É mais um de tantos outros jogos de linguagem, utilizados
exaustivamente no mundo jurídico para travar o debate e evitar
novas soluções e o pulsar do direito que emerge fora dos compêndios,
dos preparatórios para concursos, e principalmente dos processos,
gabinetes e salas de audiências.

37
IV
A JUSTIÇA INDUSTRIALIZADA

A falsa eficácia da justiça pautada em números quantitativos,


porém pouco se importando com resultados qualitativos.

Pertenço aos quadros funcionais do Estado do qual não posso


inteiramente me orgulhar. Não pela tarefa em si a ser exercida, mas
como é vista internamente por boa parcela de seus integrantes e por
eles exercida nos dias atuais.
De fato, numa sociedade de tanta conflitualidade20 é muito pouco o
que o Poder Judiciário faz. Mesmo considerando sua condição de inerte
frente ao conflito, dependendo por isso de provocação, aquilo que lhe
chega para análise e julgamento resulta em soluções não coerentes com
a potencialidade que tem para dar uma guinada em busca de um novo e
efetivo sentido de justiça social, que por certo é o que haveria de interessar
a todos por trazer mais próxima a ideia de equidade.
Há tanto a ser oferecido e dado como serviço essencial, mas pouco
é ofertado diante das resistências a um sistema anacrônico, antigo,
ultrapassado que se omite diante de claras situações de espoliação
confronta a lei e o entendimento mais reacionário da interpretação
jurídica e tudo aquilo que serve para renegar direitos fundamentais.
Ainda que não se possa dar um conceito de justo com satisfação
a todos os interesses a serem justificados; ainda que seja utópica a
ideia da própria justiça e por vezes inalcançável; ainda que o drama
humano seja uma realidade vivenciada diariamente; ainda que... entre
outros tantos fatores que possam ser descritos, a percepção do injusto é
plenamente factível, por vezes refletida em decisões judiciais distantes
20
 s conflitos sociais não são algo estranho numa sociedade plural. Aliás, as
O
divergências são típicas, e só possíveis, em sociedades democráticas e que, por
consequência, estabelecem os instrumentos e paradigmas para soluções. Não se
espera, por óbvio, que o Judiciário assuma integralmente esta responsabilidade.
Não se é possível e tampouco desejável.

39
dos dramas humanos, das aspirações sociais e da realidade econômica
dos envolvidos.
O processo judicial não é mero instrumento para se chegar a
um fim.21 O processo pulsa, tem vida. Há nele pessoas transbordando
angústias, interesses, divergências, invocando direitos ou resistindo
a tudo sob as mesmas justificativas. Por isso existem sentimentos,
emoções, sensações entrelaçadas que não podem ser negligenciadas no
ato de julgar. Só os juízes não o percebem.
Porém, no contexto em que o processo é compreendido e
aplicado, partindo-se da ilusão de com ele as questões da vida pública e
privada serão resolvidas, apenas serve para justificar sua existência como
uma ferramenta útil da burocracia estatal onde se reproduz a estatística
judiciária. O processo como forma de aplacar estas tensões sociais, de certo
modo naturais numa sociedade pluralista, é na precisa análise de Adauto
Suannes o mais puro fingimento22. Neste campo de urgências, embora
atrelado em tremendas formalidades, a eficiência é medida pela rapidez –
para ser célere não se pode perder tempo com questões ditas menores, se
para o tema trazido a julgamento já existem posições firmadas – que por
sua vez distancia-se das particulares de cada um tornando o que haveria de
ser individualizado em mais uma decisão padronizada.23
21
 ASSOS, J. J. Calmon de. Direito, poder, justiça e processo: julgando os que nos
P
julgam. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
22
 á no processo uma ficção: finge-se que o Estado concede o provimento no mesmíssimo
H
instante em que é ele solicitado, tanto que a compensação pela demora, os irrisórios juros
de mora, incidem a partir daí, na ilusão de que isso responda o patrimônio do lesado. O
processo judicial, aliás, está repleto dessas ficções, como aquela segundo a qual se destina
ele à procura da verdade ou que, terminado ele (lustros depois!) acabou-se por fazer justiça.
“Tarda mas não falha!” é uma dessas inverdades que vão sendo repetidas de geração, tanto
quanto a também repetida e também falsa “o crime não compensa”. (SUANNES, Adauto.
Justiça & Caos. Curitiba: Instituto Memória, 2008. p. 75/76)
23
 Processo emaranhou-se num pragmatismo desenfreado de tecnicalidades, mais
O
preocupado em realizar objetivos práticos puramente simbólicos, como a celeridade, do que
a ser o instrumento acessível da plena e concreta eficácia dos direitos de todos. E os direitos
humanos passaram a constituir a justificativa para as mais atrozes violações dos direitos
humanos. (ALVES, Cleber Francisco & SALLES, Sérgio de Souza (organizadores).

40
Este fato – apesar da decisão judicial ser fruto da ação humana,
muitas das vezes impensada, irrefletida, copiada, enfim, resultado puro
e simplesmente de uma conduta humana –, em grande medida decorre
do modelo imposto de que o Judiciário deve-se espelhar e funcionar
como na atividade privada industrial (não sem razão utiliza-se o termo
“máquina judiciária” para se referir a tarefa do Judiciário). Sendo
assim, tem que produzir resultados em série, como se as demandas
fossem equivalentes e se só fosse possível valer-se das fórmulas
construídas pelos tribunais superiores feitas as composições secretas
dos xaropes dos refrigerantes que vêm direto da matriz, bastando às
filiais dissolverem com água, tudo conforme a receita.
O objetivo único é produção. Justamente (ou injustamente) isso.
Quantidade, quantidade, quantidade...
Existe um desespero por parte dos gestores do Poder Judiciário
de recuperação, melhor, de conquista de prestígio e eficácia (somente
pode ser recuperado o que se teve um dia), como se estes atributos
decorressem dos números estatísticos expostos com ênfase em
entrevistas e matérias jornalísticas regiamente programadas e não
adviessem de uma relação de confiança, credibilidade, acolhimento e
atenção às demandas e soluções justas dos conflitos.
Mas o que significaria solução justa? No mínimo obediência aos
princípios fundamentais descritos na Constituição Federal, algo que
boa parte das decisões judiciais está longe de atingir. E é fácil negá-
los. Embora os xaropes vindos da matriz utilizem em suas fórmulas
ingredientes secretos, são plenamente dedutíveis, traduzidos na
composição com os seguintes termos, como exemplo:
a) p ara a negligência do Estado em relação aos direitos sociais,
sobretudo quanto à deficiência no cumprimento das medidas
pertinentes ao atendimento à saúde e educação, aplica-se qualquer
um destes argumentos, recheados com mais alguns falatórios: os
direitos sociais são normas pragmáticas; frente ao princípio da reserva
do possível cabe ao poder público atender o que for mais urgente diante

Justiça, Processo e Direitos Humanos. Coletânea de Estudos Multidisciplinares.


Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. Prefácio, p. ix)

41
da demanda, assegurando apenas o mínimo existencial; é necessário
alcançar o superávit primário (para bancar juros da dívida de agiotas
internacionais do mercado financeiro (??); políticas macroeconômicas que
impedem o cumprimento das promessas políticas, e tantas outras ladainhas
ritualizadas diariamente;24
b) para o abuso nas relações de consumo, principalmente
quanto às diversas cláusulas abusivas dos contratos bancários, eis
as pré-anunciadas soluções: liberdade de contratar; boa fé “objetiva”
(novas interpretações do velho “pacta sunt servanda”)25; juros pela média de
24
 curioso notar no trecho desta decisão que o relator cita ele mesmo noutro
É
julgado para falar da importância de se dar às normas tidas como programáticas
– em quando a tese já não mais se sustentava – caráter efetivo, não podendo
simplesmente ser vistas como promessas. Porém, logo a frente, faz a ressalva –
agora para abraçar a tese da reserva do possível – para dizer da impossibilidade do
poder público atender a demanda, diante de uma dotação orçamentária definida.
Ou seja, para citar Augusto dos Anjos, “a mão que afaga é a mesma que apedreja”.
Cabe assinalar, presente esse contexto - consoante já proclamou esta Suprema Corte - que
o caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política "não pode converter-
se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando
justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima,
o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade
governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado" (RTJ 175/1212-
1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo
ao tema pertinente à "reserva do possível" (STEPHEN HOLMES/CASS R.
SUNSTEIN, "The Cost of Rights", 1999, Norton, New York), notadamente em
sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda
geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder
Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais
prerrogativas individuais e/ou coletivas.
É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se
pela gradualidade de seu processo de concretização - depende, em grande medida, de um
inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado,
de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da
pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material
referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. (negritei)
(STF. ADPF 45 MC/DF. Relator Min. CELSO DE MELLO. Boletim Informativo STF. N°
345. Brasília, 26 a 30 de abril de 2004. In: http://bit.ly/1b7QF12. Pesquisa em 14/03/2012).
25
S obre a “boa-fé objetiva” mereceu um texto específico, disposto neste livro no
tópico XXII.

42
mercado26; impossibilidade de reconhecimento de ofício destas abusividades,
ainda que o Código de Defesa do Consumidor diga que sim;27
c) para os conflitos sociais, então transformados em questões
de segurança pública e violência urbana: invocação da legislação penal,
ainda que em determinadas condutas esteja claramente delineado que foram
editadas com o fim de aplacar interesses de grupos mais fortes, sobretudo
diante de uma legislação penal editada na década de 1940 (realidade
completamente distinta da atualidade) e, não obstante o texto constitucional
garantista de 1988, ainda assim, a legislação mais recente, continua servindo
a estes mesmos fins; discurso do império “lei e da ordem”; Estado Democrático
de Direito (?!?!);28
26
t ema da “Taxa de juros pela média de mercado” foi discorrido no tópico VII deste
livro.
27
S úmula nº 381 do STJ: Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício,
da abusividade das cláusulas.
28
 uando as fissuras de nossa “democracia republicana” são expostas, diante das
Q
manifestações populares mais acentuadas – o que dizer dos movimentos de rua
ocorridos em diversas cidades brasileiras durantes os meses de junho e julho de
2013 e que mobilizou uma boa e relativa parcela da população – , reacende-se toda
tradição reacionária e conservadora dos segmentos privilegiados, retomando as
antigas posturas antidemocráticas com desinformações e manipulações pela mídia
e a reeditando os velhos métodos de contenção com invocação dos instrumentos de
punição e repressão do Estado. Com isso nega-se a necessidade de acolhimento de
demandas sociais, na busca do verdadeiro sentido do princípio da igualdade, cujas
políticas que haveriam de ser implantadas neste rumo, ainda que eventualmente
propostas, são de logo repudiadas ou enfrentam enormes resistências por aqueles
que detêm o poder e não quer perde-lo, preferindo propugnar, com sucesso, na
implantação de políticas emergências e enérgicas de coerção. Problemas sociais e
políticos são tratados como problemas policiais. Não se trata de fato novo, mas que
resultante de nossa travessia democrática invencível. A par disso, Angelina Peralva
assevera que a experiência brasileira da democracia tem sido uma espécie de drama sem
fim. Se os avanços são indiscutíveis, há também o sentimento de se estar vivendo uma crise
que não acaba nunca, e que até agora só proporcionou raros períodos de trégua. [...] Admitir
que a democracia fez evoluir a experiência da igualdade não implica negar a existência de
desigualdades substanciais, em particular desigualdades de renda, que se mantêm. Não se
trata de apostar na igualdade, mas de levar em conta os efeitos da igualdade de condições
sobre a consciência coletiva, o que requer se tome em consideração mudanças históricas.
(PERALVA, Angelina. Violência e Democracia: o paradoxo brasileiro. São

43
d) para os interesses de grupos e corporações econômicas,
inclusive estrangeiras as justificativas são: livre concorrência e liberdade
de mercado;29 regras da globalização; legítimo benefício e concessões do poder
público como forma de atração de investimentos; indenizações pelo poder
público em virtude das expectativas criadas com o investimento; concessão
de subsídios e isenções para instalação e desenvolvimento; interesse público
para desapropriação, com o fim de assentar atividade privada que produzirá
“emprego e renda” 30 à população local, etc.;

Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 27, 33).


29
 doutrina do livre mercado se apresenta em duas variantes. A primeira é a doutrina oficial
A
imposta aos indefesos. A segunda é a que podemos chamar de “doutrina do livre mercado
realmente existente”: a disciplina do mercado é boa para você, mas para mim, a não ser
por algumas vantagens temporárias. [...] As “experiências” contemporâneas seguem um
padrão conhecido ao assumirem a forma de “socialismo para ricos” dentro de um sistema
de mercantilismo empresarial global no qual o “comércio” consiste, em larga medida,
de transações centralmente administradas no interior das próprias empresas, imensas
instituições ligadas aos seus concorrentes por alianças estratégicas e dotadas de estruturas
internas tirânicas projetadas para obstacularizar a tomada de decisões democráticas e
para proteger seus donos da disciplina do mercado. Essa implacável disciplina é para ser
ensinada somente aos pobres e indefesos. (CHOMSKY, Noam. O lucro ou as pessoas?
O neoliberalismo e ordem global. Tradução Pedro Jorgensen Jr. 5ª ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. p. 39 e 44).
30
 discurso repetido a exaustão por políticos conservadores do “emprego e renda”,
O
sobretudo durante campanhas eleitorais, é retórica ensaiada com os interesses
dominantes. Trata-se de parente bem próximo do também discurso positivista,
liberal e conservador do “lei e ordem”. Só interessa a quem quer manter o status
quo para continuar a se deliciar com as vantagens do desenvolvimento econômico
e social. A ideia de emprego embutida nesta mensagem é ocupar o indivíduo ao
máximo – e aquele que não trabalha, mesmo diante de um mercado cada vez
mais competitivo e seletivo, não faz por que não quer e não serve a este modelo
econômico neoliberal – para não tem tempo para outras atribulações. Renda é
apenas o mínimo existencial. Mas, como cantado pelos Titãs: A gente não quer só
comida/ A gente quer comida, diversão e arte / A gente não quer só comida, / A gente
quer saída para qualquer parte / A gente não quer só comer, / A gente quer comer e quer
fazer amor / A gente não quer só comer, / A gente quer prazer pra aliviar a dor / A gente
não quer só dinheiro, / A gente quer dinheiro e felicidade / A gente não quer só dinheiro,
/ A gente quer inteiro e não pela metade / Você tem sede de quê? / Você tem fome de quê?
["Comida", Fromer, Antunes & Britto (Titãs)]

44
d) para o pluralismo político e a necessidade de resgate das
minorias, erradicação da pobreza (art. 3°, CF): igualdade perante a lei
(leitura diminuta do princípio, apenas formal, sem reflexão em relação a
ideia de igualdade material); rejeição das políticas de cotas ou de qualquer
outra política de inserção social, com repúdio (sem o saber) às discriminações
positivas e às ações afirmativas, etc.;
e) para justificar as razões do imediatismo de determinadas
decisões, ou a severidade quanto ao que fora decidido: resgate da
credibilidade do Judiciário; interesse da justiça31; anseios sociais; combate a
onda de violência e restaurar a paz e harmonia social; pessoas de bem vítimas
do caos e violência urbana, etc.
Neste pacote de receitas, as decisões saem aos montes e moldadas
nestas formulações desprezam-se as particularidades dos casos
concretos. O que importa é ter dados estatísticos a apresentar, como se
isso satisfizesse o serviço, cuja instituição concedente está sabidamente
desacreditada e desprestigiada.
A tentativa dos administradores da “máquina judiciária”32 é
resgatar prestígio a qualquer preço. A solução então é apresentar dados

31
O tópico XVIII deste livro trata da temática sobre o “interesse da justiça”.
32
 expressão “máquina judiciária” também é um fora jurídico. Trata-se de termo
A
constantemente empregado, e tem o justo motivo de firmar uma ideia de que se
valendo da analogia do modelo privado, de máquina de produção, poderá dar ao
Judiciário – como de resto a toda administração pública – maior eficiência, na falsa
suposição de que funcionando como uma indústria prestara melhores serviços
à população. Em síntese, quer medir-se a eficiência da atuação judicial como se
produzissem em série, numa esteira de resultados (decisões) em massa. É dessa
concepção que surge os instrumentos e institutos padronizadores, como Súmulas
Vinculantes, Repercussão Geral, Recursos Repetitivos, etc., afastando os próprios
princípios de individualização dos julgamentos e fundamentação, inscritos no
texto constitucional. Essa concepção já foi embutida no Judiciário, quer por estes
instrumentos judiciais já mencionados, quer, sobretudo, pela cobrança sistemática
e fiscalização assídua dos órgãos corregedores, desde o CNJ às Corregedorias de
Justiça dos Tribunais, exigindo dos órgãos subordinados o cumprimento de metas
e superação de números estatísticos, como se quantidade refletisse o êxito na
atuação judicial.

45
numéricos sem nenhum critério técnicos apenas voltados a atender aos
interesses de satisfação quantitativa, pouco importando se há qualidade.
E assim vai a trôpego. Os dirigentes dessa (mal)dita “máquina
judiciária”, ensimesmados nestas ilusões de enganosa eficiência,
imaginam que uma vez produzidas as decisões nesta esteira industrial
a prestação jurisdicional possa ser obtida como algo adquirido em
gôndolas de supermercado. Nesse modelo de jurisdição a granel e
sem identificação, o jurisdicionado não pode mesmo ser nominado de
cidadão. Ao contrário do que é proposto, este sofrido “consumidor”
(dos bens fornecidos pela “máquina judiciária”) quase nunca obtém
o que quer, porque o produto pretendido é específico e único (daí a
razão do princípio individualizador), e por isso deveria ser fornecido
sob medida, seja concedendo ou negando, que também é forma de dar
resposta ao que se pede, desde que com exclusiva dedicação.
Justiça é verdadeiramente um bem fungível. Para isso, aquele que
diz concedê-la precisa dar atenção especial àquele que a busca. Ao que
requer o jurisdicionado é preciso de um olhar detido e oportunidade
para esclarecer suas particularidades, para detalhar suas pretensões,
para distinguir seu direito do receituário industrial e demonstrar que
aquilo que já está pronto – como fórmula ou modelo a ser seguido –
nem sempre atende as suas necessidades. Este aviso, aliás, deve ser dado
também aos procuradores das partes, em bom número compiladores
de minutas de petições, vendidas (ou cedidas sem ônus) na internet,
com suas infinidades de equívocos.
Todavia, a despeito, ou para além dessa justificativa de maior
celeridade nos julgamentos, será que esta indústria judiciária está
realmente preocupada somente com números quantitativos e neste
desespero de obter maior credibilidade tem cometido um grande erro
estratégico de sua atuação? Ou será que tem cumprido exatamente
determinados interesses, camuflados nestas fórmulas subjetivas,
utilizando de um linguajar falsamente erudito com o claro objetivo

46
de sonegação de direitos fundamentais a uma minoria social e que
historicamente sempre foi vítima das maiorias políticas e econômicas
dominantes?
A urgência e reiteração de modelos já expostos impedem e
inibem novas reflexões sobre qualquer assunto, embora simplifique o
atuar judicial, reduzido a números e estatísticas.

47
V
DO LADO DE LÁ DO MURO

Qual é o verdadeiro muro que nos separa?

Nada pode ser pior do que estar do lado de lá do muro. O lado


de lá, para quem está trancafiado, é o local público, “terra de ninguém”,
é o espaço livre para os devaneios e as ações dos vândalos. É o lugar
onde tudo aconteceu e resultou no seu aprisionamento, desde a vida
pregressa esquecida, ao escárnio e ojeriza do ocorrido. É o vácuo do
direito e o direito no vazio das liberdades de todos e em suas contenções.
Do lado de lá do muro é a liberdade sem poder usufruí-la. É o
querer ter, o necessitar, a precisão material de bens, a possibilidade
de desfrutar de atenção e cuidados, mas não poder se esbaldar de nada
disso porque as condições econômicas e sociais não lhe permitem ou o
exclui desses devaneios.
Mas, nada pode ser pior do que estar do lado de cá do muro. O
lado de lá, para quem está de cá trancafiado, não limita o pensamento,
a indignação, o ódio contra as injustiças ainda que tenha que entregar o
corpo em pelo para as chibatas. Ainda que ressoe em suas estruturas o grito
dos oprimidos e o pavor do pelourinho haverá a possibilidade da leveza
dos sonhos e a esperança de um horizonte. O lado de lá quer expiação,
arrependimento, pedido de perdão, mas o faz com a fúria dos Titãs.
O fato é que os muros de arrimos não servem para separar,
apenas acentuam as diferenças. Os muros dos presídios escondem a
escória,33 o dejeto humano dos que estão do lado de cá e que necessita
33
 s cativos do medo não sabem que estão presos. Mas os prisioneiros do sistema penal, que
O
levam um número no peito, perderam a liberdade e perderam o direito de esquecer que a
perderam. Os presídios mais modernos, últimos guinchos da moda, tendem a ser, todos eles,
presídios de segurança máxima. Já não há uma proposta de reintegrar o delinquente na
sociedade, recuperar o extraviado, como se dizia antigamente. A proposta, agora, é isolá-

49
ser camuflado, embora permaneçam presentes diante de nossas vistas
para que saibamos que existem. A solidão do xadrez e o seu amontoado
não é maior que o pavor dos muros de tijolos e cimento que cercam
todos, dentro e fora, desta bestialidade humana.
Muros condominiais, acoplados com suas cercas elétricas,
câmeras de vigilâncias, guardas fardados, guarnecem as posses de
alguns, mas não os livram da convivência dos desiguais e despossuídos.
Todos os dias, domésticas, jardineiros, serventes, encanadores, garis,
seguranças, motoristas e tantos outros serviçais colocados no fim da
linha da escala social e laboral por essa paranoica divisão, adentram
nestes espaços e ocupam seus domínios com a advertência de que ali
são chamados para servi-los, tão somente. Ao final do expediente estes
trabalhadores e “estranhos” ao estrato social dos residentes são lançados
fora, para o sossego madrugueiro das “potestades” patrimoniais, mas
com a tensão constante do aprisionamento de ter no dia seguinte que
sair destes limites e que entregá-las ao controle dos externos.34

lo e já ninguém se dá ao trabalho de mentir sermões. A justiça tapa os olhos para não


ver de onde vem o que delinquiu, nem por que delinquiu, o que seria o primeiro passo de
sua possível reabilitação. O presídio-modelo do fim do século não tem o menor propósito
de regeneração e nem sequer de castigo. A sociedade enjaula o perigo público e joga fora
a chave. (GAELANO, Eduardo. De pernas pro ar. A escola do mundo ao avesso.
Tradução Sérgio Faraco. 7ª ed. Porto Alegre: L&PM, 1999. p. 112/113).
34
 aí que, usando como pano de funda essa discussão, Contardo Calegaris (A praga
D
escravagista brasileira. In Folha de São Paulo, Caderno Mais, p. 5) procura explicar
a atitude e o discurso das classes médias e médio-superiores brasileiras acerca desta
problemática: “No Brasil, talvez por ele ter sido e talvez por ser ainda o maior sistema
escravagista do mundo ocidental, a modernização aconteceu pela metade. Nas classes
médias, geralmente a regra é o poder moderno sobre e pelas coisas. Podemos comprar o
trabalho de um outro, seus serviços, mas não dispomos de seu corpo. Mas na relação entre
as classes médias e as classes ditas eufemisticamente não-favorecidas o poder ainda é poder
sobre os corpos, construído no modelo da escravatura. As classes médias brasileiras não
abriram as portas do poder sobre as coisas para metade da população do país. Não por
razões econômicas: a manutenção do escravagismo caseiro é um péssimo negócio
que estrangula o mercado interno. Foi por tradição ou por gosto atávico escravocrata”.
Por isso, diz Calegaris, tanta violência no Brasil: o ladrão brasileiro não está pedindo posse
de mais coisas. Quer mais! Quer os corpos...! São eles que “é bom possuir”. E (de forma
irônica) Calegaris acresenta: “a violência (na sociedade) já reveste se os elevadores

50
Muros de Berlim35, entre o capital e o socialismo, ruíram no
tempo, embora as divisões ainda permaneçam neste emaranhado de
entulhos. Muralha secular como da China e que no passado prendeu
mais operários nos seus rebocos do que o cerco aos virtuais rivais,
como poetisa Mia Couto,36 servem hoje apenas ao deleite do turista e
para ser visto inclusive do espaço. E se a China não é toda esta dimensão
territorial como uma nação não é por este marco divisório, mas em
razão das dicotomias sociais que ascendem diariamente entre um misto
cada vez mais progressivo de uma elite bilionária (minoria, da minoria,
da minoria...) e uma população de miséria incontida, explorada nas
relações de trabalho mas que produz toda sanha consumista para o
mundo ocidental, entre uma cultura milenar cheia de rituais e tradições
e um ambiente hostil de urgências e que se diz moderno.
Os muros das lamentações aparam os clamores de tantas outras
divisões mas não se rompem para a passagem das divergências de
outras tantas desigualdades. Suas frestas, de tanto desejo enfiado, por
tantas cobiças e individualidades, já foram tapadas para o mais tênue
sopro de paz entre povos irmãos.
Muros políticos e ideológicos apropriam-se dos bens públicos e
sucumbem à maioria da população aos seus desmandos. Martirizam os
direitos sociais e deixam morrer a míngua pessoas sem acesso à saúde
e à educação. Expulsam os invasores de seus casebres numa sociedade

de serviço forem suprimidos”. (STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica


e(m) Crise. Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 5ª ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004. p. 30/31).
35
 muro de Berlim soterrou um grande valor da humanidade, a utopia. Felizmente sinto que a
O
utopia começa a renascer, pois sem ela correríamos o risco de ficar condenados e confinados
aos valores presentes. Presos à tendência perigosa de querer eternizar o mundo atual. Este
mundo de hoje não é bom para todos. Não é bom para dois terços da humanidade. Daí
o desafio de resgatarmos a utopia. (BOLOGNA, José Ernesto. Diálogos Criativos:
Domenico de Masi: Frei Betto (mediação e comentários José ErnestoBologna). São
Paulo: DeLeitura Editora, 2002. p. 17).
36
 OUTO, Mia. Comemorar o medo. Palestra na Conferência de Estoril, Portugal.
C
2011. In: http://bit.ly/13Xk30k. Pesquisa em 15/03/2012.

51
em que o poder público não assegura o direito fundamental à moradia
causando um contrassenso sem igual, e ainda com a desfaçatez de
preservar os bens comuns e interesses coletivos exclusivamente para
um nicho social.
Os verdadeiros muros que nos cercam e que nos separam são
invisíveis. São muros sem alvenaria ou barricadas, embora mais
sólidos que as muralhas da China e tantos outros paredões que já
bloquearam e ainda bloqueiam nosso livre trânsito. São muros sobre
nossas consciências, nossos preconceitos que servem para impedir a
aproximação do outro não igual. São muros que não implodem, mesmo
com avanços tecnológicos e científicos, com a avalanche do tempo, com
as amargas experiências históricas de conflitos e sacrifícios humanos
em nome de divisões bestiais. Aliás, são muros que, lamentavelmente,
solidificam ainda mais com o tempo e com as argamassas (sem massas)
do atraso, de movimentos reacionários, conservadores, mantenedores
de privilégios e usurpadores das benesses sociais.
Como haverá de ser o lado de lá desses muros?
Não é o paraíso e não precisa ser. O paraíso também é fantasia
que nos foi imposta para ser perseguida, reservada apenas para o ser
dócil e obediente que será recompensado na infinitude, na eternidade
(?!). Não é necessário iludir-se ou transpor a linha do horizonte nunca
atingível. Existe a possibilidade de conversão de sonhos encantados e
transformados em realidade no presente. Para isso, é preciso ver em
todos sorrisos sinceros de crianças, ter a temperança dos idosos, a
parcimônia e alegria dos adultos numa roda de amigos. Basta um recanto
sem cobiça, sem preconceitos e discriminação, de respeito fraterno, de
igualdade de direitos concebendo a multiplicidade de culturas, de pleno
pluralismo, de crenças, de ideologias, de convicções...

52
VI
A REALIDADE É ASSIM MESMA!

“Toda realidade está aí submetida à possibilidade


de nossa intervenção nela.” (Paulo Freire).

Para o descrente, o acomodado ou o conivente com o estado de


coisas a sua volta, é muito simples justificar suas ações ou inações com
a afirmativa de que a realidade é assim mesma e não há como, ou não
será ele, que inverterá tudo.
Na magistratura está realidade discursiva é extremamente
presente. Há um continuísmo, uma mesmice no ato de julgar, um
embolar de decisões prontas para situações novas ou novas urgências.
E quanto se decide de modo diverso do tradicional – juiz marginal37,
juiz orgânico38, juiz rebelde (ou ético) 39 – , buscando outros horizontes
interpretativos para afirmar os direitos, fundamentais de onde
nenhuma decisão judicial rigorosamente pode desapegar, vem sempre
o cético de plantão tentando menosprezar e inferiorizar o dissidente.
No fim, a dissidência é vista simplesmente como um ato de
prepotência de quem ousa divergir pelo simples prazer do dissenso e
é ele um não conectado as lições que vem dos tribunais (um repetir
incontido de decisões antigas; quando se diz inovar, na maioria das
vezes, não se vê novidade, mas um retroceder de posições).

37
 OSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal: A Bricolage de Significantes. Rio de
R
Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 375.
38
 NDRADE, Lédio Rosa da. Juiz Alternativo e o Poder Judiciário. 2ª
A
ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008; CARVALHO, Amilton Bueno.
Magistratura e Direito Alternativo. 7ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 55.
39
 ALINI, José Renato. O juiz e o acesso à justiça. 2ª ed. São Paulo: Revista dos
N
Tribunais, 2000. p. 154.

53
Não se afirma aqui, de antemão, que há um acerto na nova
forma de decidir. Conquanto, o que intriga é a falta de contraposição
no campo das ideias a estas novas reflexões que são desprezadas tão
somente por contrapor ao que está posto. Cabe compreender, como
registra Lídia dos Reis Almeida Prado, que o juiz deve proferir a sentença
com sentimento e não se reduzir a um mero burocrata repetidor de decisões
alheias, com a finalidade de aderir à maioria.40
Outro argumento é que a justiça carece de rapidez (por este
motivo destacaram tanto a inserção do princípio da celeridade dentre
os direitos fundamentais com a EC 045/2004), não se podendo perder
tempo para inovações se o tema já foi consolidado nos tribunais. É a
fórmula secreta da Coca-Cola distribuída às instâncias inferiores para
serem utilizadas sem a mínima possibilidade de incremento na receita,
ainda que o produto final possa ser melhorado (dirão os acomodados de
sempre que a Coca-Cola é um produto que deu certo e é receita secular.
Todavia, muitos outros dirão que nem todos apreciam a bebida e nem
assim são forçados a tomá-la).
Ao intérprete que não tiver disposição para se render a esta
prática deve-se estar consciente de que terá um preço bastante alto
a ser pago. Antes então de enveredar por estes desafios cabe analisar
meticulosamente se tudo isso vale a pena. Digo isso com o sentimento
de quem já experimentou na pele as rejeições em razão de divergência
de posições, não propriamente em decorrência das ideias, porque estas
sequer são colocadas em campo pelos interlocutores para confrontação.
Não há chance alguma de se estabelecer o debate, a reflexão e a
contraposição, porque tudo é posto em jogo numa arena sem adversários.
Trata-se de partida perdida por “WO”, embora sejam de cá as ideias
comparecentes. Aliás, o grande problema é justamente este, a ausência
de qualquer discussão, porque a pretexto de não ter que enfrentar tais
embates – empobrecido de fundamentos ou completamente vazio o
interlocutor – é melhor repudiar de uma vez o propagador de outras
40
 RADO, Lídia Reis de Almeida. O Juiz e a Emoção: Aspectos da Lógica da Decisão
P
Judicial. 5ª ed. Campinas/SP: Millenium, 2010. p. 24.

54
formas de pensar e refletir, ou pior, deixá-lo falando só (o desprezo à
fala é forma de desrespeito ao outro, de discriminação, de não aceitação
do convívio num ambiente de diferenças e negação do pluralismo
político, salutar para qualquer regime democrático, donde sobressaem
os direitos e garantias fundamentais).
Para isso a repulsa passa a ser sobre o indivíduo e não do que ele
tem como proposta para debate. Neste caso específico para discussão
jurídica.
Tratando-se de decisões judiciais, as reformas dos julgados
passam, em grande medida, ao largo do enfrentamento dos argumentos
postos a justificar o novo. O revisor inicia-se de traz para frente,
sem ter que atentar para o conteúdo do que irá revisar: Quem assinou
isso? Hum, de novo!? ...É, é aquele que quer ser diferente. Já sei que não
concorda comigo! Nada do que ali está dito na decisão posta sob novo
julgamento aproveita-se, pelo simples fato de ser diferente. Neste caso
basta reproduzir, frivolamente, o que já está assentado sem nenhuma
perspectiva ou oportunidade de um novo olhar. Pronto!
Fora do processo, qualquer tentativa de contraposição ao
trivial já é devorado pelos olhares que percorrem seus trajes, seu
modo de convivência, seus hábitos e amizades, suas referências
ideológicas, sua religiosidade (ou o que entendem como falta dela),
suas eventuais leituras, tudo enfim que possa servir de argumento
para justificar a “anormalidade de conduta” (fuga do estereótipo
padrão) e enfrentamento ao que deveria efetivamente ser pontuado.
Se você não é igual ao seu possível interlocutor (e ele é tido como o
comum e normal) é o suficiente para ser afastado sem merecer ao
menos abordagem sobre as ideias. É a política de se evitar para não ser
confundido ou contaminado.
E assim, para não ser considerado “anormal” ou dissidente, às
decisões seguem como numa esteira de envasamento de Coca-Cola,
onde os operadores têm o único trabalho de misturar água a fórmula e
engarrafar a mistura. Entretanto, produzir decisões é mais que operar
máquinas.

55
A este propósito, é interessante notar como o próprio termo
“operador do direito” já é em si a expressão concreta disso. Utilizado
de boca cheia pelos cômodos repetidores, acreditando tratar de um
trunfo, sequer têm a percepção de que o operário é alguém que não se
dá ao trabalho de pensar, porque sua tarefa é apenas cumprir ordens
que lhe foram dadas, necessitando tão somente reprisar o que outros
projetaram – misturar água à fórmula trazida da matriz – o que outras
já lhe deram pensado. Tudo passa a ser repetido irrefletidamente
nos moldes entregues pelas Cortes superiores. Se já decidiram em tal
sentido, pronto, não tem mais o que dissentir, ainda que sejam possíveis
novas reflexões e interpretações (é assim que se enchem estatísticas e
que no fundo é o que parece interessar).
No fim, a realidade é assim, basta conformarmos!
Será?

56
VII
TAXA DE JUROS PELA MÉDIA DE MERCADO

Mais uma ficção entregue como verdade.

Um dos temas mais recorrentes nas ações em curso nos juízos


cíveis estaduais, Brasil afora, referem-se à questão dos juros fixados
nos contratos de empréstimos bancários, questionados como abusivos
em ações declaratórias. O primeiro vício dá-se aqui na nomenclatura
destas denominadas ações revisionais, resultando daí interpretações
equivocadas. É que na maioria destas ações há sempre invocação de
abusividade de cláusulas contratuais. Porém, ante o Código de Defesa
do Consumidor – foco legal para as ações – o abusivo não é passível
de revisão, mas de reconhecimento por declaração judicial, com sua
exclusão do contrato. Diferentemente, em caso de pedido revisional,
não há questionamento quanto a eventual abusividade, mas a revelação
de um fato superveniente que impede o contratante de cumprir as
obrigações na forma assumida.
O que quero destacar aqui é que vale a interpretação da taxa de
juros pela média de mercado, espargida pelo STJ (Superior Tribunal de
Justiça), que a partir de então limitou a capacidade de pensar (aliás,
isso se aplica também noutros temas). É mais uma ficção entregue
como verdade, por isso não se aceita mais nenhum questionamento,
bastando que os órgãos judiciários inferiores copiem-na como solução
fácil, pronta e acabada.
Todavia, a solução apresentada é resultado de um puro achismo
tendencioso. Para o STJ – e de resto todos que o acompanha cegamente
– só se poderá admitir abusividade de taxas de juros praticados pelas
instituições financeiras se estiverem acima da média de mercado.41
41
 os dias atuais há consenso de que as casas bancárias, perfeitos agentes de um capitalismo
N
desumano, agem no mercado de forma usuária. Os juros por elas cobrados, com os mais

57
Que diabos é isso, média de mercado? Esta solução é a verdadeira
criação teratológica que não atende a critérios jurídicos, principalmente
diante dos preceitos de defesa do consumidor (arts. 5º, XXXII e 170, V,
da Constituição Federal, e arts. 1º, 6º, VIII e 51, IV, do Código de Defesa
do Consumidor), tampouco observa qualquer parâmetro econômico,
estatístico ou de matemática financeira. Trata-se, rigorosamente, de
ausência de critério, apenas fruto de um jogo de palavras aleatórias,
de viés ideológico neoliberal acentuado e que legitima as imposições
contratuais das instituições financeiras – sempre lucrativas – em
detrimento da cidadania porque retira direitos fundamentais referentes
à defesa do consumidor.42
Não é a média de mercado (fato que não existe) que dita se a
cláusula contratual que fixa juros é, ou não, abusiva. Este critério
(ou melhor, falta de critério) significa tão somente que a instituição
financeira observou as taxas praticadas pelos seus parceiros nesta
ciranda financeira (não se pode dizer concorrente onde há visível
ajustamento de tarifas). As minguadas e eventuais diferenças entre uma
e outra instituição revelam somente se esta ou aquela está lucrando
mais ou menos, em relação a outras. Mas, o que pode parecer um
diferencial de taxa de juros, na maioria das vezes é compensado com
outras tarifas igualmente abusivas (abertura de crédito, manutenção de
contas, venda casada de produtos, etc.), tudo depois admitido em prol
da liberdade de contratar (?!?!).
variados nomes, extrapolam o limite da própria moralidade capitalista. (CARVALHO,
Amilton Bueno. Magistratura e Direito Alternativo. 7ª ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2005. p. 60/61).
42
 omo diz Milton Friedman, guru do neoliberalismo, em seu livro Capitalismo e Liberdade,
C
dado que a busca do lucro é a essência da democracia, todo governo que seguir uma
política antimercado estará sendo antidemocrático, independentemente de quanto apoio
popular informado seja capaz de granjear. Portanto, o melhor a fazer é dar aos governos a
tarefa de proteger a propriedade privada e executar contratos, além de limitar a discussão
política a questões menores. Os problemas reais da produção e distribuição de recursos e da
organização social devem ser resolvidos pelas forças do mercado. CHOMSKY, Noam. O
lucro ou as pessoas? O neoliberalismo e ordem global. Tradução Pedro Jorgensen
Jr. 5ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. Prefácio de Robert W. McChesney.
p. 9).

58
Assim, se não for por ingenuidade, só pode ser por má-fé a
interpretação que leva à conclusão de que existe concorrência por
taxas entre as instituições financeiras, de modo que o consumidor
possa negociá-las caso a caso, como se, ao final, não se conformando
com a oferta, pudesse simplesmente levantar a bunda do banco do banco
e ir em busca de outro banco noutro banco onde possa colocar a bunda para
negociar (este era o convite que fazia o então Presidente Lula, quando
do início da expansão do crédito, como se um contrato bancário fosse
feito nos mesmos moldes que se faz compras no comércio, ainda assim
para alguns que se dispõem a fazer levantamento de preços).
A rigor, a suposta tese de média de mercado segue exclusivamente
os interesses das instituições financeiras, porque sabidamente não
existe concorrência neste mercado como querem fantasiar alguns. E
não sem razão. Ninguém arreda pé de uma instituição e dirige-se a
outra como quem troca de padaria ou farmácia. E mesmo que o fizesse,
vai encontrar o “mercado” senão cartelizado, no mínimo baseado num
sistema de competição imperfeito, onde pouca, pouquíssima, diferença
poderá encontrar, o que não deixará de serem taxas abusivas.
É inegável a padronização de taxas, fato típico de atividades
cartelizadas e que já mareceria censura e correção das autoridades
monetárias e do Judiciário.43 Depois, somado a isto, se o consumidor
resolve contratar não tem opção de modificar uma vírgula no contrato
(contrato de adesão), com suas cláusulas complexas (que sequer o
preposto do banco sabe explicar) e disposições leoninas. Ademais não
existem equivalência de responsabilidades e obrigações às partes para
ser interpretado pelo judiciári e que, utilizando-se das velhas formas
com as pinceladas de modernidade (princípio da boa fé objetiva é um
exemplo claro da reinvenção de velhos princípios, superados na nova
43
 problema ético do Direito é também, e acima de tudo, um problema político,
O
visto como a ordem jurídica outra coisa não é senão o discurso do poder, quer enquanto
enunciado, quer, e principalmente, no momento de sua aplicação, com a conotação e o
alcance que a efetiva correlação de forças existentes no grupo, em determinado momento
histórico, possibilita. (PASSOS, J. J. Calmon de. Direito, poder, justiça e processo:
julgando os que nos julgam. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 56).

59
legislação), quer transparecer conectado com as novas realidades.
Veja. A média que leva em conta apenas um setor, não segue
nenhum padrão técnico e mesmo lógico. Daí não se pode extrair média
alguma. Apenas a constatação de que todas as instituições podem fixar
suas taxas de juros em patamar elevado, sem nenhuma regulação.
Assim, a relação entre o banco e o consumidor é idêntica a do Tarzan
com o jacaré.
Neste contexto, se para a solução da modificação (ou não) da
cláusula contratual que rege taxa de juros fosse necessário buscar
uma média, o único parâmetro plausível seria o PIB (Produto Interno
Bruto), porque é o índice oficial que revela a evolução de toda economia
no país durante o ano, e não exclusivamente um setor (financeiro)
que sempre ganhou, mesmo nos anos em que o produto interno ficou
negativo ou próximo a isto.
Embora torçam o nariz, para aqueles que querem admitir a tese de
média de mercado como parâmetro para solução do problema, o único
caminho seria o PIB. Ou será que alguns terão que perder sempre!?
Em suma, somente quem não necessita de linhas de financiamento,
ou quando buscam as obtêm a taxas mínimas – mais um dos mimos
ofertados aos juízes pelas instituições financeiras – pode velar os olhos
diante da realidade, jurídica, social, econômica, financeira, matemática,
acomodando-se, convenientemente, na repetição desta abstração
ficcional expressa neste aforismo de média de mercado.

60
VIII
O JUIZ DE DIREITO E A MOSCA AZUL

Não se podem querer juízes representando classes sociais,


o que não significa uma amnésia em torno dos próprios valores e
das realidades sociais no momento de decidir.

Seria apenas esquecimento das próprias origens? Pura


alienação da realidade social, em virtude de um processo preparatório
massificador? Ou deturpação quanto aos objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil?
Em 1997 um grupo de acadêmicos, sob o comando de Luiz
Werneck Vianna, editou o livro Corpo e Alma da Magistratura
Brasileira44, resultado de uma pesquisa empírica onde os autores fazem
um primoroso levantamento sobre o perfil do magistrado brasileiro.
Dentre as diversas constatações apuradas na pesquisa referida,
para fins deste artigo, destaco o dado quanto às origens do juiz
brasileiro, ali apresentado como “distante das elites fundadoras do país”
e que por isso, possibilitaria a “inovação do pensamento e revitalizando
o humanismo jurídico”.
Conforme os números apontados pelo estudo, naquele momento
54% dos juízes eram filhos de pais (masculino – o estudo revela também
dados sobre as mães, conquanto ainda mais representativos) com
escolaridade até o primeiro grau enquanto apenas 31% com formação
universitária. A mesma percentagem dos primeiros dados foi refletida
no padrão econômico familiar, advindos de classe média baixa e classe
baixa, sendo que aproximadamente 30% com perfil ocupacional de
extração subalterna.

44
 IANNA, Luiz Werneck. Corpo e Alma da Magistratura. Rio de Janeiro:
V
Editora Revan e IUPERJ, 1997

61
No ano de 2005 a professora Maria Tereza Sadek45, em parceria
com a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), realizou novo
estudo onde se pode constatar uma mudança significativa de paradigma
(aqui não se busca fazer o paralelo), com uma redução para 32,8% dos
juízes com pais (masculino) com escolaridade até o primeiro grau,
pouco acima do índice de 32,3% de pais com nível de escolaridade
superior. Nota-se que o padrão quanto ao índice do ensino superior
manteve equilibrado, com pequeno acréscimo de 1,2%, enquanto, na
parte de baixo, houve um forte impacto de mais de 20%. Na fala da
autora, “estas proporções constituem claro indicador de mobilidade
social e de democratização na composição do corpo dos magistrados”.46
É sabido que neste período houve um avanço em todos os níveis
de educação no Brasil, conquanto não exatamente na proporção que
foi apresentada no comparativo destas pesquisas.
Cabe anotar que o acesso à carreira da magistratura sempre foi
precedido de enormes obstáculos. Os concursos são sempre concorridos
(hoje em dia muito mais), com etapas muito desgastantes e exaustivas,
exigindo do candidato preparo acadêmico formal para enfrentar todas as etapas
do certame. Essa maratona parece ter o fim de testar psicologicamente o
candidato e torná-lo turrão, o mais duro possível, porque uma vez aprovado
será lançado ao campo de batalha onde não poderá fraquejar (!!).47
Não são raros depoimentos de juízes e juízas contando os
sacrifícios que fizeram (e suas famílias) para alcançarem o objetivo
pretendido. São anos de luta, de dedicação, de contenção de recursos,
de sacrifícios pessoais e familiares, tudo em busca do projeto delineado.
45
SADEK, Maria Tereza. Magistrados: uma imagem em movimento. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2006.
46
Este trabalho pode ser conferido também na internet: http://bit.ly/12UDtsX
47
 eneralizou-se a ideia de que o mais necessário para o juiz é o bom conhecimento das regras
G
processuais. Ficaram em plano bem inferior as preocupações com a formação filosófica-
jurídica, a transmissão de conhecimentos básicos para que o juiz possa avaliar o significado
das ações humanas, inclusive das suas, o estímulo à sensibilidade do juiz, para que ele não
proceda com a fria racionalidade de um autômato. (DALLARI, Dalmo de Abreu. O
poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 30).

62
Sem demérito a todos estes elementos aparentemente subjacentes,
é importante verificar que no paralelo que se quer fazer entre as duas
pesquisas os números cada vez tornam-se mais invertidos. À falta
de dados empíricos palpáveis a revelar exatamente os motivos desta
tendência, pode-se levantar algumas proposições sobre o fato.
A primeira delas, e provavelmente a mais determinante, é que
a partir da EC 45/2004 passou-se a exigir dos candidatos experiência
mínima de três anos depois de formado como condição simples para
participação nos concursos. Com isso, aquilo poderia ser um dos
critérios de equiparação entre os candidatos, na perspectiva de que
poderiam estar com o conhecimento recém-apreendido e apto ao
certame, deixou de existir, vez que para muitos implicará uma ruptura
com o processo preparatório. Nisso o alcance aos menos possuídos é
evidentemente maior. É que nem todos podem aguardar este tempo
se preparando, e neste caso os de menor renda ficam prejudicados
porque precisam imediatamente entrar no mercado de trabalho, ou
nele permanecer, mesmo que distante de suas pretensões profissionais.
Diante deste impedimento acabam se inserindo noutras áreas onde
a experiência não é necessária e ali se acomodam ou acabam ficando
impedidos de se prepararem.
Outro fator que tem diminuído o número de ingressos na
magistratura de pessoas advindas das camadas mais baixas, é que
os concursos, e não só para juiz, com seus testes simplesmente
mnemônicos, para cuja avaliação requer-se apenas a capacidade dos
decorebas,48 acabaram por instituir a rentável e enganosa “fábrica
do conhecimento”, os cursinhos preparatórios (massificadores).
48
 ssim como o ensino jurídico só transmite o conhecimento já produzido, um saber seletivo,
A
as provas para ingresso na carreira da magistratura cingem-se em verificar a quantidade
de acumulada pelo vigor. Quem souber quais as principais correntes jurisprudenciais
existentes na atualidade e conseguir citar mais destacados doutrinadores não terá muitas
dificuldades para alcançar seu desiderato, ser um juiz de Direito. Pode ser uma pessoa
alienada, distante da realidade social, mas, se tiver decorado o saber instituído e for
manipuladora competente dos dogmas postos, estará apta a ser aprovada. (ANDRADE,
Lédio Rosa da. Juiz Alternativo e o Poder Judiciário. 2ª ed. Florianópolis:
Conceito Editorial, 2008. p. 67)

63
Estas “entidades de (não) ensino” propõem à revisão da graduação e
a instrução dos candidatos às provas de concursos (na verdade tem
muito aluno na graduação, cujos pais podem bancá-los, esperando
das instituições de ensino superior tão somente o título de bacharel
em direito, pois, convictos de que precisaram frequentar cursinhos
preparatórios posteriormente, preferem adiar o esforço e sacrifício).
O método de ensino adotado nestes cursinhos é expirado no
sistema do emprego de fórceps para abrir o cérebro. Tudo é enfiado e
socado pretendo que fique registrado na memória imediata do aprendiz
(mas quem precisará disso depois dos concursos?). Do mesmo modo
como se é realizado nos preparatórios para vestibular. Todo o conteúdo
passível e possível de estar nos editais de concurso é oferecido de forma
condensado, rápido (sem nenhum espaço para discussões e reflexões),
com distribuição de macetes e fórmulas (igualzinho aos preparatórios
para vestibulares), e com apresentação das últimas súmulas e decisões
dos órgãos judiciários, sem nenhuma possibilidade de debates, como
verdades incontestáveis.
É nestas entidades que os candidatos buscam comprar passagem
para uma carreira profissional. Nelas não há nenhuma preocupação
com análise crítica do direito e, sobretudo, das decisões judiciais. Isso
porque visam atender a demanda dos concursos que não querem
conhecer a capacidade de interpretação do candidato, preferindo dos
futuros selecionados a passividade e a mera repetição de soluções
prontas e inquestionáveis. O sistema é forjado para atender expectativas
do próprio sistema, afastar o juiz das verdadeiras discussões – o
envolver politicamente – e fazer dele um burocrata eficiente para
atender as demandas estatísticas, e para isso lhe é dada a doutrina e a
jurisprudência certas, sem qualquer pretensão criativa.49
Depois, pela exiguidade de tempo disponível, tudo há de ser
“revisto” (se isso é possível!), apenas em lampejos. O resto cabe ao
candidato resolver, dedicando um pouco do seu tempo decorando
49
 ARVALHO, Amilton Bueno. Magistratura e Direito Alternativo. 7ª ed. Rio
C
de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 96.

64
as apostilas, fórmulas e as decisões dos órgãos jurisdicionais. Fatura
o concurso àquele que melhor fotocopiou os macetes para seu disco
cerebral, ou contar com a sorte das questões do certame corresponder
justamente aquilo que conseguiu manter neste seu acervo.
A este propósito, e abrindo um parêntesis, ouvi casualmente, sem
não ter como ficar obnubilado, de uma recém-aprovada no concurso
da magistratura em Goiás, quando o interlocutor também pretendente
à carreira solicitou-lhe dica de como deveria se preparar para o certame
com menor custo e sucesso: - Olha, faça como eu fiz. O negócio é o seguinte:
você dedica um semestre de cursinho, preocupando em anotar tudo. No outro
semestre, você fica em casa decorando as apostilas e anotações.
Aqui está bem claro, como adverte Amilton Bueno, que o juiz
nada mais é do que um ex-aluno de faculdade de direito que, em determinado
momento de sua vida, presta concurso, às vezes um concurso malfeito.50
Quer dizer que para passar no concurso, cumprindo o prazo de
três anos, cujo período pode coincidir com a tática acima delineada, com
um pouco de determinação do candidato e sorte, bastará o sacrifício de
dois semestres: um para anotar fórmulas, o outro para memorizá-las
(até o concurso, depois poderá ser apagado).51
Não sei quem serve a quem. Se os cursinhos às bancas
examinadoras, ou se as bancas, com seus métodos de avaliação, aos
cursinhos. Acho, sinceramente, que existe um grande pacto como
numa via de mão dupla, onde se ajudam e se beneficiam. As bancas
recebendo candidatos massificados, os cursinhos contando com o
segredo das fórmulas e estratégias exigidas nos certames.

50
 ARVALHO, Amilton Bueno. Magistratura e Direito Alternativo. 7ª ed. Rio
C
de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 124.
51
 uestiona-se legislação, doutrina e jurisprudência. Vencem os mais capazes de memorização.
Q
Daí o sucesso dos cursinhos preparatórios da carreira jurídica, mecanismos de revisão
– com intensidade e técnicas mnemônicas – de todo o curso jurídico. Cuja eficiência trata
até mesmo de um treino de performance do candidato perante a banca. (NALINI, José
Renato. O juiz e o acesso à justiça. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
p. 152).

65
Apesar de repudiar estes modelos e as escolhas feitas pelas
bancas de concurso para seus certames, não é exatamente este o foco
em discussão neste artigo, merecendo este assunto ser reservado para
outro embate. Neste instante chamo a atenção para este segundo fato
que é o distanciamento de candidatos oriundos de camadas sociais de
baixa renda. Com os custos destes preparatórios e o tempo necessário
para se dedicar a eles, serão novos entraves aos pretendentes de baixa
renda. Significa, na prática, quase sua exclusão do processo seletivo,
já que com este esquema sintonizado entre as bancas e os cursinhos,
torna-se basicamente inviável àquele aspirante ao concurso que não se
submeta a este processo massificador.
Para formar uma tríade de hipóteses, sem aqui descrevê-las
numa ordem de importância, tem-se o fato de que a busca de uma
carreira no serviço púbico já é vista com outros olhos, como algo
promissor, com boa remuneração, instabilidade e alguns outros
benefícios, principalmente agora em que as oportunidades do
nepotismo e do apadrinhamento estão sendo reduzidas – ainda são
mantidos, injustificadamente do ponto de vista administrativo, alguns
ajeitamentos com uma infinidade de cargos comissionados (?!?!) –
atraindo por isso muito mais pretendentes.
Nisso, a carreira da magistratura, assim como do Ministério
Público, que representa o topo da remuneração no serviço público,
passou a ser o desejo de bem estar, certo status e comodidade de muitos.
Em decorrência deste fato, a concorrência nos concursos tornou-
se muito mais acirrada, retomando a necessidade dos preparatórios
– para os que podem –, paciência, tempo, e muita determinação dos
pretendentes, sobretudo para seguir a risca os macetes e massificação
dos preparatórios.
Não se fecham aqui, obviamente, as argumentações investigativas
sobre o tema da elevação do padrão quanto à origem econômica dos
candidatos. Tampouco se pode assegurar que tais premissas estejam
corretas. Somente com uma nova pesquisa, inserindo esta investigação
quanto à mudança do perfil do magistrado, no que tange a sua origem, se
poderiam apontar verdadeiramente os motivos desta rápida mudança.

66
O fato é que, uma vez aprovado no concurso já se acha alguém
superior, porque conseguiu superar uma série de etapas do certame
que o apontaram como “o melhor” dentre os pretendentes. Como
adverte Renato Nalini, para julgar um ser humano, o juiz precisa ser cada
vez mais humano. Porém este sentir humano se perde logo de início
com a aprovação em concurso público para o qual ocorrem milhares e no
qual algumas dezenas logram sucesso, acarreta nítida dose de imodéstia. Da
presunção à arrogância, é curta a distância.52
Ingressando na carreira, independentemente da classe social que
pertencem, são quase todos picados pela mosca azul.53 É o encantamento
da alteração brusca no seu padrão econômico, no seu reconhecimento
social, e na sua importância enquanto presença atuante de um poder do
Estado em determinada localidade.
Acresce a isto, o fato da carreira ser iniciada no interior, em
comarcas com uma única vara, faz do magistrado a autoridade judiciária
naquela comunidade, com expressivos poderes, como que um clínico
geral para dizer o direito.
Para alguns, a assunção em demasia de um grau de responsabilidade
que extrapola suas próprias atribuições, como se fosse o salvador da
52
PRADO, Lídia Reis de Almeida. O Juiz e a Emoção: Aspectos da Lógica da Decisão
Judicial. 5ª ed. Campinas/SP: Millenium, 2010. (prefácio de José Renato Nalini, p.
XI).
53
 Juiz tem que estar atento e ser crítico com o seu próprio treinamento, fase durante a qual
O
internaliza alguns signos de falso poder (tratamento distante, automóveis com distintivos,
saudações militarizadas etc.), que pode leva-lo a se comportar exatamente como programado
pelo sistema (assepsia ideológica, neutralidade valorativa, despreocupação ética,
sobriedade, aparente segurança, moralista, paternalista etc.) que ensina, inclusive, que para
garantia de sua neutralidade e para preservação da sua – falsa e artificial – identidade,
o único caminho é a burocratização, ou seja, respostas estereotipadas, conformidade com
as pautas de sempre etc. O resultado de toda essa estonteante burocratização (que afeta
em idênticas proporções também o Ministério Público) é o enfraquecimento do próprio
juiz, que está muitas vezes perdido diante de tanto poder formal, mas nulo do ponto de
vista empírico. (GOMES, Luiz Flávio. A Dimensão da Magistratura: no estado
constitucional e democrático de direito: independência judicial, controle judiciário,
legitimação da jurisdição, politização e responsabilidade do juiz. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1997. p. 106/107)

67
pátria – esquece-se nisso, que naquela comarca muitos outros colegas
seus já estiveram e que, portanto, o fato de estar assim ou assado, não
decorre da ausência antes de um magistrado, embora, talvez, não com
o mesmo entusiasmo –, e o despreparo para lidar com esta situação,
leva-o, não raro, a cometer excessos. E como num círculo vicioso passa
a acreditar que tem mais poder do que lhe reserva a autoridade do
cargo, passando a agir quase como um déspota e autoritário. Isso piora
quando o exemplo vem de cima.
Não é incomum o deslumbre – mesmo com a exigência da
experiência de três anos – aliado à imaturidade e que supõe ser
necessário se apresentar perante os jurisdicionados como alguém
forte, imponente, temeroso para que seja respeitado e obedecido, a
incorporação de uma empáfia que subverte suas atribuições. Tudo,
sobre falsos engodos que os preparatórios, sejam antes, na fase de
concurso, sejam depois de iniciada a carreira, não têm suprimido aos
novatos. Às vezes têm mesmo contribuído para reforçá-los.
O convívio com tudo isso pode rapidamente afastar o magistrado
de sua história. É como se apagasse o passado e suas próprias origens,
negando os sacrifícios superados e as experiências de vidas sofridas.
Muitos chegam a acreditar que todo empenho e dificuldades são etapas
necessárias para o sucesso profissional, como se fosse um batismo de
sangue e que, agora, deve ser recompensado ou descontado em alguém,
neste caso o jurisdicionado.
Embora não se possa desmerecer o valor do esforço, é importante
ter consciência das razões que o levaram a alcançar o objetivo traçado,
numa trilha em que tantos outros ficaram pelo caminho. De igual modo,
não se pode querer fazer do seu sucesso algo atingível por qualquer um
que queira e se empenhe. O gargalo dos concursos é extremamente
delgado, e ainda que depurados todos os fatores que impulsionaram ao
resultado atingido, não se pode iludir ao ponto de se imaginar ungido,
o melhor dentre os demais.
Tudo é circunstancial. E as circunstâncias não fazem de nenhum
aprovado no concurso para a magistratura o mentor do saber jurídico,

68
o expoente do preparo técnico, da onipotência que possa descarregar
sobre os demais. A soberba afasta-o dos ditames da justiça. O conteúdo
técnico, alheio à sensibilidade e a necessidade de perceber o outro
como ele é (alteridade), leva às decisões narcisistas onde o olhar
ensimesmado sobre o espelho de suas próprias conquistas, como se a
escada da ascensão social e econômica estivesse à disposição de todo
aquele que batalha, faz ver nos fragilizados verdadeiros fracassados
que não merecem o acudimento do mundo jurídico: todos são iguais
perante a lei. Esta é a leitura simplista.
Numa sociedade democrática os poderes do Estado devem estar
a serviço de todos, indistintamente, como exigência dos mandamentos
constitucionais. O princípio da igualdade não se resume a sua expressão
material como acima exposta. É necessário reconhecer as desigualdades
e, num gesto igualitário, compensar as diferenças. Ser igual é acolher o
pluralismo e admitir as desigualdades.
E é justamente do texto constitucional que estão delineados os
compromissos e os objetivos fundamentais para instituição de uma
sociedade igualitária. Não se trata de obrigação dada exclusivamente ao
executivo e ao legislativo, enquanto o judiciário se aquieta como “a boca
da lei”. O alcance destes compromissos depende da intervenção estatal
em todas suas esferas, para o fim de promover o desenvolvimento
nacional sustentável, com a supressão das desigualdades sociais, a
erradicação da pobreza e dos desequilíbrios regionais e locais.
Não se quer que os juízes representem classes sociais. Não se
pede, ao mesmo tempo, que o magistrado assuma o papel de Robin
Hood, sendo apenas alguém em defesa exclusiva dos menos favorecidos.
Todavia, do outro lado da moeda, os juízes deveriam ser imunes à
picada da mosca azul, quando se deixam embebecer simplesmente
pelos mimos que a carreira propicia a ponto de desprezar sua história,
como quem quer apagar seu passado. Ou que não consiga observar e
sentir as histórias alheias.
E não se trata de cobrar apenas dos juízes que tiveram uma
trajetória de sacrifícios e de uma origem modesta, embora para estes

69
a percepção da realidade deva ser fruto da própria experiência. O
compromisso com os objetivos fundamentais da República (art. 3º.
Constituição Federal) é imposição dada a todos, cabendo, sobretudo
ao Judiciário, diante da importância e ascendência que tem frente ao
princípio do Estado Democrático de Direito, à tarefa de assegurar
os direitos fundamentais, fazendo com que os mandamentos
constitucionais sejam de fatos imperativos a serem cumpridos.

70
IX
SOBRE A REINCIDÊNCIA

Mais, sobre a multirreincidência.

A justiça criminal age como se estive de costas para a realidade. O


surgimento de determinadas expressões como se fosse etimologicamente
corretas, reforça o argumento de que o direito nada mais é do que aquilo que
se pode pensar e falar sobre determinado fato, conforme os (pré)conceitos
daquele que tem o poder de dizê-lo (em regra as últimas instâncias do
judiciário, no que é seguido cegamente pelos fiéis súditos). Assim, vale a
última palavra ou aquela que tem a força bastante para disseminá-la no
meio jurídico, por mais absurda, sem conteúdo, ou resultado de ilações
pessoais, em geral discriminatórias, elitistas, segregacionistas e uma série
de fatores e argumentos não jurídicos disfarçados por detrás de um falar
impoluto e verborrágico.
Dentre tantas incongruências no direito penal, o instituto da
reincidência54 é daquelas constatações contraditórias, mas que continua
sendo um marco incisivo no agravamento da pena. É inevitável o
efeito criminógeno da pena e, neste pretexto de se “fazer justiça”, envolve-se
o etiquetado no círculo de desvio social cujas máculas não se extirparão
mesmo após o integral cumprimento da reprimenda sofrida.55
54
 reincidência (CP, arts. 63-64) serve para de mãos dadas com a análise da personalidade
A
do agente, fixar necessária para sua recuperação, com franca influência da ‘Escola
Positiva’, e fundamentada na periculosidade, violando escancaradamente o princípio do
‘non bis in idem’ e da ‘intangibilidade da coisa julgada’ (CR, art. 5º, XXXVI). (ROSA,
Alexandre Morais da. Decisão Penal: A Bricolage de Significantes. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006. p. 354)
55
S ILVA, Denival Francisco da. Obsessão pelo cárcere: A renitência dos juízes às
penas não privativas de liberdade. Dissertação mestrado. Universidade Federal de
Pernambuco. Brasília, 2002. p. 84.

71
Apesar disso tudo é incrível como se mantém a reincidência como
fator de ampliação da pena mesmo na vigência da atual Constituição
Federal, vez que ofende o princípio do ne bis in idem, sendo imutável a
coisa julgada (art. 5º, XXXVI).
A pena, sobretudo a prisão (regra geral no nosso sistema punitivo),
é inegavelmente fator criminológico, e porquanto, a possibilidade de
alguém condenado voltar a delinquir é muito maior do que um iniciante
“no mundo do crime”. Como advertiu Juarez Cirino dos Santos56, há
quase três décadas, se a pena criminal não tem eficácia preventiva – mas,
ao contrário, possui eficácia invertida pela ação criminógena exercida –,
então a reincidência criminal não pode constituir circunstância agravante.
E vai avante este autor para dizer que seria necessário reconhecer,
em determinadas situações, em razão do processo de deformação e
embrutecimento pessoal pelo sistema penitenciário, ser a reincidência
concebida como circunstância atenuante.
Os efeitos criminológicos da reincidência são plenamente
mensuráveis, bastando observar as altas cifras de indivíduos condenados
mais de uma vez, principalmente em relação aos condenados à pena
privativa de liberdade.
Se isso não bastasse, propaga-se o termo da multirreincidência57 (não
previsto em lei, ferindo deste modo o princípio que impede interpretação
extensiva em prejuízo ao acusado) para, não só agravar a pena, mas agravá-
la ferozmente, muito além daquilo que seria acrescido no caso da “mera
reincidência”, em virtude das incisivas reiterações delitivas.
Eis o equívoco. Constata-se aqui que o fim ressocializador e
preventivo da pena não tem surtido efeito algum, como de fato desde

56
SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal: a nova parte geral. Rio de Janeiro:
Forense, 1985.
57
 título de exemplo, eis o trecho de um julgado do STJ sobre o assunto: STJ. Sexta
A
Turma. HC 231791 MS 2012/0015892-2. Ministro Og Fernandes. Julgamento 22/03/2012.
DJe 11/04/2012. [...] Na hipótese, ao apontar a multirreincidência do réu – sete condenações
definitivas - a magistrada logrou apresentar justificativa suficiente para o aumento da
pena, dentro dos limites da discricionariedade que lhe são atribuídos.

72
o princípio já se sabia.58 Ao contrário, tem trazido maior incidência
criminológica. Quanto mais se condena, mais se cria fatores de repulsa
social e que impedem mais e mais a possibilidade de acolhimento do
ex-condenado. Sem necessidade de ser determinista ou futurologista,
é elementar que este fato contribuíra para que o ex-detento volte a
cometer novas práticas criminosas. Ou seja, o direito penal, ao invés de
resolver o problema da criminalidade faz estimulá-la.
A despeito destas obviedades, vale ainda a fala vazia, não
argumentativa e despregada da própria ordem constitucional. Utiliza-
se, como sempre, de uma verborragia para justificar a maior dureza do
sistema penal, negligenciando o princípio constitucional, e por outro,
acentuando com rigor a pena, num verdadeiro direito penal do autor
(pune-se pelo que se é, e não pelo que se fez).
É mais uma prova inconteste de que o direito penal serve, dentre
outros fins, como instrumento de seletividade59 e segregação, excluindo
do convívio social aquele tido como fora dos padrões estabelecidos
socialmente.
Os estereotipados em razão da seleção que faz o sistema penal são
ainda mais reforçados conforme a reiteração recidiva. No fim, quanto
mais se considera a extensão da reincidência, a ponto de denominá-
la de multirreincidência, mais semelhanças estereótipas se veem no
grupo assim definido.
58
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Tradução
Rsquel Ramalhete. 21ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1987.
59
 sistema penal atua sempre seletivamente e seleciona de acordo com estereótipos
O
fabricados pelos meios de comunicação de massa. Estes estereótipos permitem a catalogação
dos criminosos que combinam com a imagem que corresponde à descrição fabricada,
deixando de fora outros tipos de delinquentes (delinquentes de colarinho branco, dourada,
de trânsito, etc.).
Nas prisões encontramos os estereotipados. Na prática, é pela observação das características
comuns à população prisional que descrevemos os estereótipos a serem selecionados pelo
sistema penal, que sai então a procura-los. E, como a cada estereótipo deve corresponder um
papel, as pessoas assim selecionadas terminam correspondendo e assumindo os papéis que
lhes são propostos. (ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas. A
perda de legitimidade do sistema penal. Tradução Vânia Romano Pedrosa e Amir
Lopes da Conceição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 1996. p. 130.)

73
X
NÃO É POR FALTA DE CREDIBILIDADE QUE O
JUDICIÁRIO ESTÁ AFASTADO DO JURISDICIONADO

A falta de cultura de solução de conflitos noutras esferas


senão jurisdicionais e o modelo capenga existente.

Diversas pesquisas revelam que o Judiciário não é a instituição


de maior credibilidade pela opinião pública60, cujas razões – algumas
conhecidas – não serão objeto de análise neste texto pelo pequeno
espaço.
Chega a ser paradoxal o fato de que não obstante a constante
afirmação de crise judicial 61, ainda existe a crença de que só o Judiciário
poderá dar a última palavra em qualquer conflito. Essa cultura de levar
para as raias forenses as mais diversas demandas, muitas das quais
poderiam perfeitamente ser resolvidos noutras esferas, tem no fundo
também o sentimento vingativo, como que pela via judicial o demando

60
 s críticas efetuadas ao Poder Judiciário são superficiais, sequer chegam a discutir o
A
positivismo jurídico. Não são questionados os fatores ideológicos da prestação jurisdicional,
não se perquire a real função do Judiciário, ou quem está se beneficiando com seus serviços.
Não se trata, portanto, de uma crítica de corte mais profundo contra o sistema jurídico, ou
contra sua fonte legitimadora positiva. Há, sim, um descontentamento da população com as
instituições jurídicas, oriundo da total ineficiência das mesmas na solução dos problemas
sociais. As pessoas não possuem conhecimento para fundamentar teoricamente uma crítica
à máquina judiciária, como visto no capítulo anterior, mas sentem cotidianamente sua
incapacidade, sua ineficácia. O povo vê a miséria alastra-se, a injustiça solidificar-se,
tudo frente à inércia do Poder Judiciário. O descrédito nos julgadores e o desprestígio do
Poder resultam dessa realidade. Tal fato, entretanto, parece não abalar o sistema, pois o
Judiciário continua firme em sua postura tradicional e tradicionalista, elitizada e elitizante.
(ANDRADE, Lédio Rosa da. Juiz Alternativo e o Poder Judiciário. 2ª ed.
Florianópolis: Conceito Editorial, 2008. p. 54/55).
61
ZAFARONI, Eugenio Raul. Poder Judiciário: Crises, acertos e desacertos.

Tradução Juarez Tavares. São Paulo: RT, 1995.

75
pudesse ao menos ser reprimido e se possível sancionado.
Neste aspecto o Judiciário é visto como o vingador, o braço estatal
para sanção, pura e simplesmente. Como adverte Antoine Garapon,
juiz francês: Ao invadir tudo, o direito corre o risco de matar a civilidade.62
Mas porque então deste exagero e excesso?
É certo que nessa previsão não se incluem aqueles que por
outros motivos estão distantes do acesso ao Judiciário, com a falta de
informações necessárias de direitos, de condições de custear os ônus
de uma ação e a espera pelo resultado, da ausência de implantação dos
instrumentos assistenciais previstos na própria Constituição como as
defensorias públicas, etc. Por ironia são justamente estes desassistidos
os mais carentes de justiça e certamente os que mais dependeriam da
jurisdição estatal.
Não se trata de fazer um estudo ou apresentar dados – até porque
não os tenho – em relação ao problema levantado, mas formular
algumas conjecturas sobre o assunto a partir da observação diária
como juiz de direito.
No plano do jurisdicionado existe uma percepção equivocada de
que o Judiciário, para além de propiciar-lhe a segurança do seu direito
(e só ele seria capaz disso), tem também, equivocadamente, a impressão
já dita de que punirá o adversário. Ou seja, o sentido da demanda ser
apresentada numa esfera pública de solução do conflito, mais do que a
possibilidade de dar-lhe o que procura, é a busca de penalização da parte
adversa pelos contratempos que teve que enfrentar. Neste momento
não adianta o profissional de advocacia tentar evitar o ajuizamento
da ação, ponderando quanto à possibilidade de outras vias, porque de
nada adiantarão seus argumentos, senão o risco de perda do cliente.
Noutras vezes a situação é inversa, aliás, até mais comum. É o
advogado que não consegue dar solução à causa que lhe foi trazida
pelo cliente se não ajuizar a ação, ou várias (cautelar, pedidos distintos
62
GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Tradução
Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 152.

76
em ações diversas, ainda que ao fim tudo tenha que ser distribuído ao
mesmo juízo em razão da conexão). Quero acreditar que não seja, ao
menos na sua maioria, por má-fé do advogado, no sentido de valorar
seu trabalho perante o cliente e auferir maiores honorários. Este
fato não alivia muito a barra, porque não sendo por isso, trata-se de
inabilidade do profissional de solucionar o conflito (a capacidade de
mediação de conflitos deve ser também um atributo do advogado, e
aquele que não a tem enfrenta enormes dificuldades para a própria
militância profissional) sem que haja a intervenção de um terceiro,
neste caso a ele só servirá também o Judiciário.
Noutras situações, porém, valendo-se das próprias veleidades da
instituição desacreditada e de sua normal burocracia (também outro
tema que deve ser objeto de análise noutro momento, adiantando apenas
que nada me convence de que o problema possa ser resolvido partir da
PEC do Peluso63, que ao contrário, atropela princípios fundamentais),
quer-se com o curso processual (e neste instante quanto mais lento
melhor) postergar obrigações ou a entrega de determinado direito,
quiçá o tempo suficiente para seu perecimento ou de seus pretendentes.
A este fim a própria administração pública contribui de forma decisiva.
Quantas e quantas questões, sabidamente inconsistentes são levadas
ou mantidas em curso, entulhando com os seus autos os escaninhos,
sobrecarregando a gestão judiciária e contribuindo para a morosidade
de todos os processos, pelo congestionamento de processos a serem
analisados.
Outro problema é que as raras vias de solução de conflitos fora
deste quase monopólio da jurisdição estatal são pouco acionadas,
inclusive quando se pede a mediação de terceiros que não querem
intrometer em demandas alheias, mesmo que suas intervenções
63
A denominada PEC (Projeto de Ementa Constitucional) dos Recursos foi sugestão
formulada pelo ex-Ministro Cezar Peluso, então presidente do STF, ao propor o
III Pacto Republicano (apenas mais uma panaceia midiática) na abertura do Ano
Judiciário 2011. Em suma a proposição objetiva excluir alguns recursos e dar efeito
de imediata executividade às decisões judiciais depois de ultrapassada a segunda
instância, mesmo que ainda não tenha transitado em julgado.

77
fossem bastante para equacionar a questão. De outro lado, quando
se dispõe de instituições legalmente constituídas para este fim, como
as Cortes Arbitrais, regulamentadas pela Lei n° 9.734/1997, são mal
instrumentadas e operacionalizadas, atropelando inclusive o que exige
a própria legislação.
Busca-se elevar a credibilidade do Judiciário com propostas
mirabolantes e falsas soluções administrativas que dão muito
mais repercussões midiáticas do que efetividade ao problema do
congestionamento e do aumento de confiança. Exemplo claro disso
são os mutirões de conciliação programados a nível nacional pelo
CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e que no fundo não minimizam
as aflições que permeiam o exercício da atividade, quando não torna
ainda mais odiosa.
É no mínimo uma administração falseada do problema, porque,
a rigor, não tem o juiz o papel de conciliador. Em tese, a questão a ser
apresentada em juízo é aquela que já superou as etapas possíveis de
solução sem a intervenção jurisdicional (condição da ação: interesse
processual). Porquanto, quando a matéria em discussão é revelada num
processo, a presunção óbvia que se tem é que não há forma de solução
senão com a dicção da sentença pelo juiz. Não que com isso as partes
não possam transigir no curso do processo. Para esta tarefa não será
necessária a presença do juiz, devendo as partes trazer a sua presença
um acordo já formulado para fins de homologação (se ainda assim for
necessário).
Aliás, é bem isso que tem acontecido nos mutirões de conciliação
realizados Brasil afora: arma-se um mirabolante cenário, com uma
multidão de pessoas, convoca-se a imprensa, e então põe-se de um
lado os grandes demandantes, em especial bancos que instigaram toda
esta armação (como se o Judiciário trabalhasse exclusivamente para
atender aos seus interesses, em especial quanto aos seus caprichos
momentâneos de formular ou não uma proposta de acordo), bem
assessorados com seus prepostos e propostas quase que “irrecusáveis”,
e de outro os jurisdicionados, sobretudo mal assessorados, quando

78
as têm, a engolir a seco os acordos que vêm das matrizes daquelas
primeiras. Sob a ponta da espada, qualquer proposta do oponente que
nos salve o pescoço passa a ser um acordo alvissareiro.
Ao fim o acordo passa a ser, tão somente, a aceitação pelo des(mal)
assistido do que quer as instituições financeiras. As mesmas cláusulas
leoninas no contrato, questionadas na ação, ganham nova roupagem
no pseudo-acordo e que então, subscrito pelas partes, vêm para a
assinatura do juiz presente, diante dos holofotes que o vêm em ritmo
alucinante a distribuir, para ao final do dia propagandear o sucesso do
evento com suas centenas e milhares de “sentenças” (sentença vem do
latim sentire) proferidas.

79
XI
COMO SÃO PRODUZIDAS BOAS PARCELAS DAS DECISÕES

O juiz vidente e o livre uso da linguagem (não) jurídica.

[...] a atitude demonstra que [o réu] não possui responsabilidade,


compromisso com a Justiça, sendo certo que em liberdade
continuará a delinquir, o que causa descrédito à Justiça,
sensação de impunidade e, assim, sua prisão mostra-se
necessária para acautelar o meio social... (TJMS).
[...] É fundamentada a decisão que nega liberdade em razão de
como foi praticado o crime... A preservação da ordem pública não se
restringe às medidas preventivas da irrupção de conflitos e tumultos,
mas abrange também a promoção daquelas providências de resguardo
à integridade das instituições, à sua credibilidade social e ao aumento
da confiança da população nos mecanismos oficiais de repressão às
diversas formas de delinquência [...] (STJ. Quinta Turma. Rel. Min.
Napoleão Nunes Maia. HC178362).
Os trechos acima transcritos, ao sacramentar o decreto de prisão
preventiva de um réu acusado de homicídio tentado, resumem bem como
as decisões judiciais são proferidas pelo Brasil afora. Pior é que neste caso –
como de muitos ignorados réus, quando ainda ousa levar a questão adiante
– as decisões são referendadas por instância judiciária superior, como aqui
ficou assentado no julgado no STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Os argumentos utilizados na primeira decisão negatória de
liberdade, em míseras três linhas, sintetiza toda a gama de elementos não
jurídicos, fruto de outras elucubrações por vezes desconexas e regadas a
preconceito e determinismo. Pontualmente, observar-se que a forma de
decidir do julgador pautou-se: a) na busca de valores morais, porquanto
de nenhum interesse jurídico penal (...a atitude demonstra que o [réu] não
possui responsabilidade...);64 b) num supremo ato de vidência e fatalismo
64
 burocracia judicial costuma responder aderindo à campanha, impondo penas
A
“exemplares”, usando expressões moralizadoras nas sentenças que publica e inclusive

81
inescapável (...sendo certo que em liberdade continuará a delinquir...); c) no
orgulho ferido em razão do descumprimento anterior de decisão (...o
que causa descrédito à Justiça...)65; d) num sentimento vingativo em nome
da coletividade (...sensação de impunidade ...)66; e) num heroísmo ímpar
por parte do julgador e de todo o Judiciário, como se fossem a tábua
de salvação de toda sociedade; é o inimigo que rompeu o pacto social67
(...sua prisão [do réu] mostra-se necessária para acautelar o meio social...).
Não se debate aqui a necessidade do decreto prisional, como

procurando notoriedade pública com declarações que, frequentemente, em razão do baixo


nível técnico e informativo de seus agentes, contradizem as mais elementares regras do
discurso jurídico convencional. (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas
perdidas. A perda de legitimidade do sistema penal. Tradução Vânia Romano
Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 1996. p. 127)
65
 juiz torna-se tão-somente juiz, esquecendo-se que tem como possibilidade um réu
O
dentro de si. O ego identifica-se com a persona, fato muito lesivo, porque redunda na
ofuscação da consciência por um conteúdo inconsciente. O magistrado tenta ser divino, sem
máculas, incidindo, às vezes, na hybris (descomedimento) de se considerar a própria Justiça
encarnada (porque só os deuses julgam os mortais). (PRADO, Lídia Reis de Almeida.
O Juiz e a Emoção: Aspectos da Lógica da Decisão Judicial. 5ª ed. Campinas/SP:
Millenium, 2010. p. 44).
66
 uando alguém fala que o Brasil é “o país da impunidade”, está generalizando indevidamente
Q
a história imunidade das classes dominantes. Para a grande maioria dos brasileiros – do
escravismo colonial ao capitalismo selvagem contemporâneo – a punição é um fato cotidiano.
Essa punição se apresenta implacavelmente sempre que pobres, negros ou quaisquer outros
marginalizados vivem a conjuntura de serem acusados da prática de crimes interindividuais
(furtos, lesões corporais, homicídios, estupros, etc.). Porém essa punição permeia principalmente
o uso estrutural do sistema penal para garantir a equação econômica. Os brasileiros pobres
conhecem bem isso. Ou são presos por vadiagem, ou arranjem rápido emprego e desfrutem do
salário mínimo (punidos ou mal pagos). Depois que já estão trabalhando, nada de greves para
discutir o salário, porque a polícia prende e arrebenta (punidos e mal pagos). (BATISTA, Nilo.
Punidos e Mal Pagos: Violência, Justiça, Segurança Pública e Direitos Humanos no
Brasil de Hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 38/39).
67
 criminoso aparece então como um ser juridicamente paradoxal. Ele rompeu o pacto,
O
é portanto inimigo da sociedade inteira, mas participa da punição que se exerce sobre ele. O
menor crime ataca toda a sociedade; e toda a sociedade – inclusive o criminoso – está presente
na menor punição. [...] o direito de punir deslocou-se da vingança do soberano à defesa da
sociedade. (FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões.
Tradução Raquel Ramalhete. 21ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1987. p 76).

82
medida cautelar cabível no caso concreto, conforme os parâmetros
estabelecidos no Código de Processo Penal, cujos aspectos doutrinários já
mereceriam outro debate. A discussão que se propõe é quanto a invocação
dos argumentos falaciosos na decisão, notoriamente distantes das razões
que permeiam a própria essência do instituto acautelatório.
O mais apavorante é que o caso em apreço não se refere a
uma decisão excepcional. Essa é apenas o espelho do que ocorre com
frequência nos juízos criminais. Todavia, não passam de um conjunto de
falatório não jurídico, transvertidos de um montão de preconceitos, de
um apanhado de posturas individualistas, segregacionistas, moralistas
e de um poder muito além dos pedestais de onde vociferam estas lições,
mas que se espalham como razões de decidir. E que trazem enormes
consequências aos direitos individuais do preso.
A forma redacional – o juiz e o seu ato de decisão encontram-se
emaranhados na teia da linguagem68 – utilizada nestas decisões é sempre
revestida de suposta erudição e de técnica jurídica, porém cheia de
subjetivismos e repetições copiadas de outros julgados para parecer
imune a outras sensações e isentas influências não próprias do direito69.
No fundo serve para escamotear e disfarçar a própria ira, acomodando
a consciência do julgador.
A decisão judicial, sobretudo nas pretensões cautelares, passou a
68
 ZEVEDO, Bernardo Montalvão Varjão de. O Ato de Decisão Judicial: Uma
A
irracionalidade Disfarçada. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2011. p. 131.
69
Com efeito, a busca do ‘grau zero’ na escrita faz aparecer palavras vedetes capazes
de serem tudo e nada ao mesmo tempo, prenhes de significância, com seus sentidos
suspensos no eterno joro social do poder (violência simbólica dos estereótipos – Bourdieu),
aparentemente dissociadas dessas discussões de interesses, mas confortando, astutamente,
os discursos que nega/esconde. Inaugurada a cadeia de significantes, desliza-se... Nesse
lugar indireto, fragmentário, suspenso de sentidos projetados, o escritor/jurista deve
deslocar estrategicamente, na condição de ‘bricoler’, o jogo dos significantes, diante das
pretensões de validade pelos outros e do Outro, subornando as possibilidades de sentido na
busca da realização do critério material de Dussel. As suspensões são atiradas no ‘mar de
significantes’ tal qual uma isca para o peixe. O sucesso da pescaria depende da existência de
quem segura a vara e da fome dos peixes..., sem esses elementos não se completa o processo.
(ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal: A Bricolage de Significantes. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 377/378).

83
ser um exercício mecânico de um “operador” e não daquele que deveria
refletir, pensar e assumir, como compromisso constitucional, o zelo
pelas garantias fundamentais.
Compete ao julgador, em especial (diante do conflito existe
também conflito no processo penal e na omissão ou falha de outras
esferas de poder), a tarefa de assegurar os princípios regentes de uma
sociedade democrática, de acolhimento do pluralismo, na aceitação das
diferenças e na convicção de que todos são iguais com elas e não fora
delas.
Juiz não é vidente. Juiz não é profeta. Juiz não é responsável por
futuras condutas de pessoas a quem concedeu a liberdade. Juiz não é
culpado pelas mazelas sociais, senão com sua crença de ser não político.
Juiz não tem o poder de mudar o comportamento humano. Juiz não
é espelho moral e padrão social de conduta. Juiz não tem que expiar
ações alheias. Juiz não tem que suportar o mundo sobre seus ombros.
Juiz não está acima da lei e principalmente desgarrado dos princípios
e valores impressos na Constituição. Juiz não é entidade divinizada.70
Mas, alheio a tudo isso, no campo da justiça penal (apenas
como foco deste artigo) tem sido frequentes decisões que decretam
prisões ou que cerceiam o direito à liberdade sem nenhum aporte
jurídico, regadas de subjetivismos e invocações distantes dos ditames
dos preceitos fundamentais. Parece até que a exigência constitucional
de fundamentação (art. 93, IX, Constituição Federal) se satisfaz
com o simples ato dissertativo. Só! Não há esmero algum quanto ao
conteúdo, mas um entupimento de expressões vagas e vazias, apenas
reflexo de seus preconceitos transpostos em algumas linhas, entufadas
de aleatoriedades e de crenças reacionárias. Nada mais.

70
 livre-arbítrio da linguagem objetológica é o livre-arbítrio compreendido como sublime,
O
que assemelha o ser humano a Deus, e o torna superior aos demais animais. O livre-
arbítrio, que mascara a irracionalidade humana, que incute a busca da verdade, é o que vê
no juiz um messias, aquele que será abençoado no seu ato de decisão com a revelação da
verdade. (AZEVEDO, Bernardo Montalvão Varjão de. O Ato de Decisão Judicial:
Uma irracionalidade Disfarçada. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2011. p. 24).

84
XII
A MAGISTRATURA E O SACERDÓCIO

Não sabemos da missa a metade!

Ouvi muito durante minha carreira de juiz que a magistratura é


um sacerdócio.
No princípio, afoito e mais ainda encantado com o status do
cargo desempenhado, cheguei a acreditar nesta baboseira (apenas mais
uma de tantas outras que nos martelam assiduamente até ver se pega).
Todavia, mesmo assim, confesso (... mas o sacerdote não é
o confessor?) que nunca entendi direito está expressão, repetida
exaustivamente como um dogma (assim como a própria fé)71 a martelar
na minha (e na consciência de todos os magistrados), para que o agir
seja interpretado meio que de uma representação Divina.
Mesmo sem temer o que se é sacralizado, objeto de aceitação
cega sem questionamentos, não me contive em querer enfrentar este
assunto que sempre me incomodou.

71
 os primórdios os atos dos juízes eram um culto religioso. A origem deste culto está
N
na mitologia grega. Thémis era a deusa da justiça, tinha forma de uma mulher, mas
simbolizava um princípio da natureza. Os gregos construíam templos e evocavam as forças
da natureza, a partir de imagens simbólicas com a intenção de obter o culto a beleza e a
harmonia da vida.
Naquela época, o sacerdote era respeitado como mediador entre o Céu e a Terra, sua missão
era sentir, a partir desta cerimônia devocional, “a voz da Verdade”. A Justiça era celebrada
como um ato de devoção aos Céus. Estes homens não cogitavam desonrar os santuários dos
quais eram os guardiões. O ritual visava estabelecer e proteger a harmonia e o equilíbrio-
dois dos maiores ideais da cultura grega. (DIAS, Ari Santos. Juízes Sacerdotes,
Tribunais Templos: O Mito de Thémis e Hades. In: http://bit.ly/14w5xnw.
Pesquisa em 19/03/2012).

85
Primeiro tive que espargir em mim a ideia de que eu seria um
sacerdote (embora temendo a excomunhão pelo pecado mortal de
rejeitar a condição sacerdotal), até porque não tenho a grandeza para
assumir os votos necessários do celibato, da castidade e da renúncia aos
bens materiais.
Aliás, como não existem estas semelhanças entre ambos os ofícios,
cheguei a pensar em determinando momento que o comparativo
devia-se à preocupação com o tema da justiça social. Entretanto, logo
percebi, empiricamente, que tanto lá, quanto cá, salvo por ações e
condutas isoladas de alguns de seus abnegados membros, isso não é
uma realidade institucionalizada, ainda que as instituições em essência
se proponham a estes compromissos. O vício não está, em verdade (aqui
vai propositalmente o uso do termo “verdade”, precedido do “em”, por
ser uma expressão bíblica), nas instituições em si, mas no que elas
concedem de poder aos seus dignitários e que acabam desvirtuando
seus reais fins.
Nesse calvário de inquietações continuei a via crucis em
penitências, buscando justificar o nominativo de sacerdote utilizado ao
magistrado que por derradeiro poderia significar uma heresia, sem que
ninguém ainda o tivesse percebido.
Nessa procura da própria identidade, na tentativa de ser um
magistrado atuante e preocupado com temas por vezes incomuns nas lides
judiciais, assim como muitos temas também não passeiam pelas naves
eclesiásticas, cheguei a ser repreendido, tratado com indiferença e certo
rancor por integrantes das cúpulas judiciárias. Era como se eu tivesse
fugido do catecismo ou rompido com as liturgias – um juiz marginal72 –
deixando de atentar para toda ritualística descrita nos breviários missais.

72
 OSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal: A Bricolage de Significantes. Rio de
R
Janeiro: Lumen Juris, 2006.

86
Bom, só me faltava ser excomungado! 73
Imaginei-me, imediatamente, tal qual o sacerdote que é censurado
por seus superiores, repreendido por ter enaltecido sentimentos de
consternação, de enfrentamento às injustiças sociais, e outros temas
por vezes relegados em face à necessidade dita de uma humildade servil
dos fiéis em menosprezo ao que propõe o sentimento cristão.
Assim, embora não admitindo a ideia de que o ofício do juiz seja
de um sacerdote, compreendi que há ao menos dois pontos em comum
de onde decorre o empréstimo do nominativo, de forma velada ou ao
menos não dita ao baixo clero, embora o inverso não ocorra.
Trata-se, primeiramente, de uma obediência hierárquica
incontida, de um temor inarredável aos mandamentos advindos dos
membros superiores das instituições, que faz tanto do sacerdote, quanto
do juiz, seres dóceis e obedientes às ordens, independentemente do que
isso representa às propaladas relevantes missões que desempenham.
Depois a transmissão de uma ideia de representação Divina
entre os seres humanos. O legítimo hermeneuta74. Disso a detenção

73
P or meio de corpos colegiados que exercem uma ditadura interna e que se divertem
aterrorizando colegas, abusando de seu poder cotidiano. Através deste poder vertical
satisfazem seus rancores pessoais, cobram dos jovens suas frustrações, reafirmam sua
titubeante identidade, desenvolvem sua vocação para as intrigas, desprendem sua egolatria
etc., mortificando os que, pelo simples fato de serem juízes de diversa competência, são
considerados seus “inferiores”. Deste modo desenvolve-se uma incrível rede de pequenez e
mesquinharias vergonhosas, das que participam os funcionários e auxiliares de jurisdição.
A maledicência é convertida em moeda corrente, faz-se presa de todos e substitui as
motivações racionais dos atos jurisdicionais: as sentenças não são confirmadas, revogadas,
ou anuladas por razões jurídicas, mas por simpatia, antipatia, rancor, ciúmes do colega. Se
os operadores de um poder judiciário verticalizado decidissem um dia deixar de praticar
a maledicência relativamente a seus colegas, reinaria nos edifícios de seus tribunais maior
silêncio do que nos templos. (ZAFARONI, Eugenio Raul. Poder Judiciário: Crises,
acertos e desacertos. Tradução Juarez Tavares. São Paulo: RT, 1995. p. 89.
74
Hermenêu tica deriva do nome do deus da mitologia grega Hermes, o mensageiro dos
deuses, a quem os gregos atribuíam a origem da linguagem e da escrita e considerado o
patrono da comunicação e do entendimento humano. O certo é que este termo originalmente
exprimia a compreensão e a exposição de uma sentença "dos deuses", a qual precisa de uma

87
do poder de julgar, condenar, punir e penitenciar outros seres iguais.
O poder de sanção e perdão. A possibilidade de ditar o que é justo e
exigir que os demais cumpram com os ditames instituídos em nome
do Estado e do Celestial para uma harmonia social, cujos poderes de
fiscalizar incumbem-lhes, para manter a “lei e a ordem”, em nome do
pai e do Pai.

interpretação para ser apreendida corretamente. (WIKIPÉDIA. A enciclopédia livre.


Hermenêutica. http://pt.wikipedia.org/wiki/Hermen%C3%AAutica. Pesquisa
em 04/06/2013).

88
XIII
a REALIDADE VERDADEIRA SOBRE
O AFORISMO VERDADE REAL

O que é verdade e o que é real? Quem define o que é


verdadeiro? É possível ter uma verdade irreal?

Eu pensei que não ouviria mais o termo verdade real, senão nos
velhos manuais de direito ou em decisões judiciais e peças jurídicas
antigas, mais como valor histórico. Porém, qual foi minha surpresa
quando outro dia, ao indeferir um pedido de prova numa audiência
preliminar, vi e ouvi estupefato o advogado da parte ré interpor o
agravo retido cujas razões pautaram sobre o velho brocardo. Há muito
que este mito fez-se pó. A simples intenção de se apossar da verdade75
(e para isso não carece acrescer real) já é em si uma demonstração
mentirosa porque todo fato expõe diversas realidades, conforme o
angulo de visão do observador.
Na situação concreta o advogado discursava o arrazoado de
seu recurso deitando “longas verdades”. Diante de tantas futilidades,
fiquei a imaginar se a intenção era tentar me convencer, uma busca
desesperada de inibir à parte adversa, seu próprio constituinte, ou pior,
se o único propósito era impressionar a plateia formada quase só por
alunas de graduação em direito nas suas atividades complementares.

75
 em mesmo a verdade pode ser princípio definitivo da justiça. Poder-se-ia discutir o que
N
vem a ser verdade. Parece-me que o conceito de verdade é relativo: as de ontem não são
necessariamente as verdades de hoje. Devem ser interpretadas diante das circunstâncias
e da ideologia de cada um. Inexiste padrão externo definitivo que possa estabelecer o que
é ou não verdade: depende sempre da finalidade. É verdade, em princípio, o que favorece
o oprimido. Logo, também nela não há neutralidade. (CARVALHO, Amilton Bueno.
Magistratura e Direito Alternativo. 7ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
p. 43).

89
O fato é que, em torno deste falso dogma da “verdade real”, numa
ilusória e arrogante eloquência, como quem trouxesse ao palco uma
novidade acadêmica, vociferava uma sequência verborrágica que mais
parecia o esforço no falatório do vendedor ambulante.
Não obstante, seguia o “ilustre causídico” embevecido por suas
velhas aulas numa faculdade qualquer, afirmando categoricamente que
as partes têm a obrigação de dizerem a verdade e daí a importância dos
depoimentos pessoais (ainda que quisesse do depoente uma confissão
de um fato negado na inicial, razão inclusive do ajuizamento da ação).
Não vou adentrar em mais detalhes nesta tarefa quixotesca
do procurador do recorrente. O que interessa a esta análise é, assim
como tantos outros o fazem, desmistificar este aforismo jurídico e
mito linguístico da “verdade real”, ainda com enormes repercussões no
processo e ao cabo, aos indivíduos fora dele.
O termo verdade real é mencionado inclusive como princípio
por grandes nomes da doutrina processual, para afirmar que cabe ao
juiz a busca da certeza, a partir do conjunto de provas apresentado nos
autos trazidas por iniciativa das partes ou por providência de ofício
quando a lei assim o permitir.
Descrito desta forma, com tantas autoridades do processo, o
termo ganha ainda mais estofo e passa a ser de fato um dogma irrefutável.
O resultado disso é que a decisão judicial transfigura-se num mantra,
porque fruto da verdade anunciada pelo juiz, a representação divinizada
entre os mortais.
Não tem o juiz (por mais que o queira) o dom desta providência
divina, da sabedoria incontestável para se afirmar com absoluta razão a
convicção certeira extraída de um processo. A versão judicial é apenas
o resultado de uma inferência indutiva, conforme as perspectivas do
julgador e a forma com a qual delibera para ver e compreender os fatos.
Mesmo assim, o juiz dispõe apenas da reconstrução histórica destes fatos e
que jamais serão reproduzidos fielmente.76
76
S e não se pode determinar, com exatidão, o movimento e o posicionamento de uma partícula,
como determinar, no passado, a real trajetória e intencionalidade de uma ação humana,

90
Ainda que se pudesse reproduzir o fato objeto em discussão no
processo, jamais será possível fazê-lo com precisão, e mais não haverá
aí também como trazer uma única verdade, assim como se dera antes
no momento de sua ocorrência. Daí a razão da demanda, salvo se se
imaginar que todo réu é um estelionatário de justiça. Qualquer que seja
o episódio fático sempre haverá visões multifacetadas sobre ele, feito
uma figura geométrica postada num círculo rodeado por pessoas onde
cada um pode, embora vendo o todo, enxergar faces completamente
diferentes a depender do ângulo em que esteja.
Assim, não se é possível afirmar que existe uma única verdade
sobre os fatos, ou, em outras palavras, não há verdade absoluta77, a
suposta verdade real. Todo processo traz em si no mínimo duas versões
e que geralmente são antagônicas, conforme as pretensões de cada uma
das partes, e que eventualmente poderão convergir por conveniência
de uma composição. Ao final, com o ato decisório, uma destas versões

ainda mais contextualizada, ou rotulada com um crime, quando nesta estão implicadas
diversas variantes? [...]
Quando o processo penal passa a averiguar uma conduta criminosa e, ao final, vem
punir o agente provavelmente culpado, isto ocorre sob uma ótica isolacionista, ou
seja, o indivíduo processado e sentenciado o é somente como se estivesse ligado ao
fato típico.
Quem é o indivíduo que está sob a investigação do Estado? Para os autos apenas
interessam, via de regra, uma qualificação de poucas linhas e algumas certidões
policiais e judiciais informando sobre antecedentes e primariedade. Eis todo o
indivíduo a ser julgado pela ocorrência passada.
As estruturas psíquicas, físicas, mentais, religiosas, sociais, culturais, morais, econômicas
e outras que possam interessar à investigação do fato, e particularmente à defesa, pouco
são consideradas, ou tomam relevância somente em função de um maior poder aquisitivo
do agente, dentro daquela característica de seletividade já destacada. (SANTOS, Pedro
Sérgio dos. Direito Processual Penal & A Insuficiência Metodológica: A
Alternativa da Mecância Quântica. Curitiba: Juruá, 2004. p. 163 e164).
77
 ra, se a verdade é consenso, ela não é verdade. É, pois, apenas uma herança convencionalista
O
ou nominalista/funcionalista. Por tais razões, não há espaço para a ética do discurso.
Ela só ingressa posteriormente, com um standard de racionalidade de segundo nível,
para ornamentar o discurso. STRECK, Lênio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição,
Hermenêutica e Teorias Discursivas Da Possibilidade à necessidade de respostas corretas
em Direito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 82.

91
poderá sobressair, ou advir outra a partir de uma condensação de
ambas, ou ainda, emergir versão completamente inovadora depois do
olhar judicial. Não se pode assegurar com isso, que com a sentença as
demais “verdades” (versões) tornaram-se mentiras, mas apenas teses
não acolhidas e que, por outro lado, a projeção judicial seja a visão
definitiva.
O fato é que este aforismo da “verdade real” – que eu supunha
não fosse mais usado nas salas de audiências – decorre de uma
percepção autoritária e inquisitiva do processo, como adverte Aury
Lopes78 ao abordá-lo no processo penal. Para o autor, trata-se de uma
artimanha engendrada nos meandros da inquisição para justificar
o substancialismo penal e o decisionismo processual (utilitarismo),
típicos do sistema inquisitório.
O máximo que se extrai num processo é uma versão final que
depois de esgotadas as vias recursais, pelo decurso de prazo ou pela
limitação de novos recursos é denominada de coisa julgada passando
a ser versão imutável processualmente. Nunca verdade real que jamais
existe no processo ou fora dele.

78
 OPES Jr., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional.
L
Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

92
XIV
O QUE TEM SIDO AS DECISÕES JUDICIAIS
NA URGÊNCIA DE AGORA

O juiz dá um tiro no pé e sai contando vantagens.

Dentre os tantos problemas que afligem a prestação jurisdicional,


por certo, a morosidade é o tema mais recorrente. Ouço isso desde
quando iniciei o curso de direito, no ano de 1987.
Tendo ingressado na magistratura em 1993 passei a ouvir com
maior frequência e a me incomodar imensamente com isso. Mas ao
mesmo tempo em que me via impedido de atender toda a demanda em
menor tempo, constrangia-me (e ainda constrange-me) o fato de dispor
de tantas folgas durante o ano, com 60 dias de férias e agora, mais uns 20
de recesso forense. O jurisdicionado, com toda razão, não compreende
o motivo pelo qual o processo dele demora tanto, sobretudo se vai ao
Fórum e descobre que o juiz está de férias, novamente.
Para compensar esta ausência, responde-se com urgência a
condução do processo, transformando o ato de julgar numa produção em
série e o juiz num burocrata de um sistema industrial. Um juiz que não
pensa porque sua condição é de operário (alguns chamam-no de operador,
o que dá no mesmo) que tem que cumprir metas. É o juiz dócil e que muito
interessa, porque a um só tempo produtivo e não incomoda.79

79
 reinado pela formação jurídica e reforçado pelo concurso a memorizar lei, doutrina e
T
jurisprudência, terá tudo para se considerar um erudito. Aprovado em rigorosíssima
seleção, acreditar-se-á um predestinado. Alguém que já não precisa mais estudar: passou
pelos testes os mais dificultosos. Sua sapiência já foi posta à prova. Agora, é produtor de
jurisprudência, não se lhe reclama debruçar-se ainda mais sobre os compêndios. [...]
A sua opinião é a resultante da quantificação dos julgados dos Tribunais Superiores. Abdica
de sua vontade e se afina com aquela exteriorizada pelas Altas Cortes. (NALINI, José
Renato. O juiz e o acesso à justiça. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
P. 153).

93
De fato, diante desta perspectiva as agências internacionais
ditaram o modelo a ser instituído – aqui no Brasil como em diversos
outros países, sobretudo latino-americanos – com a implantação de
verdadeiros modelos empresariais na análise da atividade jurisdicional, em
homenagem a uma “modernidade” insólita, que tende a “desjuridicizar” os
juízes, para transformá-los em técnicos empresariais.80
É óbvio que o problema da morosidade não debita somente a
este fato, mas é certa a tentativa do oposto. Talvez a ausência física
do juiz, sobretudo neste modelo industrial, de fórmulas prontas e
assessoramento (ainda que de estagiários) para editar as decisões, e
por fim, a possibilidade de assinatura digital, a identidade física do
juiz já passou a ser princípio superado, não se exigindo (dentro deste
modelo) tanto sua estada in loco. Não se trata de quanto um magistrado
pode fazer, mas de quantos assessores pode contar para aumentar sua
estatística e assim poder gozar mais férias.
Ainda assim – e parece que a intenção é manter sempre o drama
das dificuldades enfrentadas pelo Judiciário, discurso que nunca deixei
de ouvir em duas décadas na magistratura, embora tenha neste curso
vivenciado condições e situações completamente distintas – várias
questões devem ser analisadas, como: o excesso de formalidades e de
vias recursais; o aumento acentuado da demanda jurisdicional e que
não é acompanhada na mesma proporção com os quadros judiciários;
a desorganização administrativa nos tribunais que impede uma maior
dinâmica e soluções eficazes para problemas simples (a preocupação é
apresentar projetos e programas apoteóticos, de modo a dar visibilidade
midiática aos seus formuladores, mesmo que não represente efetivo
resultado para solução dos problemas). E tantos outros que poderiam
ser listados.

80
ALERO, Luis Salas. El poder judicial en la década de los ochenta, aspectos
C
administrativos. In: Justicia penal en Centroamérica y Caribe. Madrid, 1986. p. 99.
Apud: ZAFARONI, Eugenio Raul. Poder Judiciário: Crises, acertos e desacertos.
Tradução Juarez Tavares. São Paulo: RT, 1995. p. 30.

94
Acontece que os mentores da versão final da Emenda
Constitucional 045/2004 (tendo a frente Nelson Jobim, ministro e então
presidente do STF), que modificou parte da estrutura do Judiciário
brasileiro (no falso engodo de modernização), atendeu claramente
interesses econômicos e externos, buscando com a reforma somente os
argumentos da efetividade, rapidez e segurança jurídica nas relações
contratuais, sobretudo internacionais, a fim de atrair capital externo (tudo
obra do BIRD, FMI e grandes conglomerados internacionais, apadrinhados
pelos dirigentes políticos de suas matrizes, na concepção de um mundo
globalizado) e atender a um modelo neoliberal sem fronteiras e respeito à
soberania das nações. Os investimentos destas agências internacionais e os
lobbies para a reforma judicial eram experiências implantadas noutros países
latinoamericanos, vindo para o Brasil como um modelo já concedido.81
Para contemplar a pauta de reivindicações – não exatamente
do povo brasileiro – a referida EC 045/2004 não teve propósitos
propriamente preocupação com o jurisdicionado comum, o povo ávido
por justiça. Além de atender os pleitos corporativistas de instâncias
distintas do Judiciário – e nisso valeu a hierarquia e acolhimento de
alguns mimos –, buscou adequar a burocracia judiciária brasileira
ao modelo neoliberal globalizador. Para tanto, fez-se necessário
estabelecer instrumentos de maior controle sobre o Judiciário, no

81
 iante do Poder Judiciário a postura neoliberal, sempre com o propósito de atingir seus
D
objetivos, não destoa da trilogia clássica: investimento, subordinação e/ou fuga. Em
primeiro lugar desejam contar com um Judiciário eficiente e acessível porque ainda grande
parte dos seus litígios ingressam no seu âmbito. As evidências desse investimento na Justiça
são: nesta década de 90 o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento
e a Usaid (agência americana de apoio ao desenvolvimento) que destinaram mais de
dois milhores de dólares para a Argentina, trinta e oito milhões para a Colômbia, quize
milhões para Honduras, dezesseis milhões para a Costa Rica, vinte e sete milhões para El
Salvador, doze milhões para a Bolívia etc. O escopo último é contar com um sistema jurídico
e judicial que favoreça o comércio, o investimento, o sistema financeiro, a transferência de
recursos etc. A preocupação não é com a Democracia, como valor constitucional, senão com
o “livre mercado”. (GOMES, Luiz Flávio. A Dimensão da Magistratura: no estado
constitucional e democrático de direito: independência judicial, controle judiciário,
legitimação da jurisdição, politização e responsabilidade do juiz. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1997. p. 200/201.)

95
sentido de se ter maior previsibilidade (uniformidade) das decisões
judiciais, com o velho argumento da segurança jurídica e instabilidade
econômica, tudo para acudir grandes grupos econômicos.82
Nesta configuração, a proposta de reforma constitucional, e
que se mostrou vitoriosa, embora não fosse claramente revelando por
estarem envoltos numa ideia de reforma mais abrangente, onde outros
itens eram inclusive tidos como mais importantes, tudo, porém, para
fazer a blindagem necessária ao que efetivamente interessava.
São estes os três pontos essenciais e que de fato interessava ao
projeto de mudança constitucional: ( i ) criação do CNJ (Conselho Nacional
de Justiça), para cercar os excessos e fazer um controle administrativo
das gestões judiciárias (tem conseguido algumas coisas, excedidos em
outros negligenciado e não alcançado soluções em tantas, por vezes
preservando com suas decisões velhos privilégios à magistratura); ( ii )
instituição da Súmula Vinculante, com o fim de tentar engessar os juízos
inferiores, com o argumento da necessidade de segurança jurídica;
( iii ) fortalecimento das vias arbitrais, com a possibilidade de solução
de conflito na esfera privada com o incentivo da instituição esferas
privadas de jurisdição (cortes de arbitragem) para equacionamento das
demandas, forma discreta de enfraquecimento do Judiciário.
Como incremento a estas medidas inseriu-se dentre os direitos

82
 Secretário da Reforma do Ministério da Justiça, ao tratar da Reforma do Poder Judiciário
O
(que culminou com a Emenda Constitucional n° 45), sustentou a estreita relação entre a
economia e os objetivos da reforma, a ponto de considerar que a economia e a cidadania
são os dois interesses fundamentais visados. Destaque para a redução do custo Brasil,
prevenção da fuga de capitais e a possibilidade das empresas terem maior previsibilidade
das decisões judiciais. Esta entrevista é bastante elucidativa para compreender o interesse
do Ministério da Justiça nesta reforma. Algumas afirmativas, como a necessidade de
decisões economicamente viáveis, a necessidade de resultados efetivos na recuperação de
créditos (na qualidade de pressuposto para a redução das taxas de juros bancários) e a
vinculação entre um melhor funcionamento do Judiciário e o desenvolvimento do país, são
bem elucidativas do real objetivo a ser atingido. (ROCHA, Sérgio. Neoliberalismo
e o Poder Judiciário. p. 504/505. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda
& LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. Diálogos Constitucionais: Direito,
Neoliberalismo em Países Periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 497-518).

96
e garantias fundamentais o princípio da celeridade (art. 5º, LXXVIII,
Constituição Federal), encampado pelo CNJ como razão de satisfação
dos interesses dos jurisdicionados. Com isso, passou-se a exigir
dos Tribunais urgência nos julgamentos (reforço e incremento
na industrialização das decisões), que então cobram dos juízes
cumprimento de metas e divulgação de números, como se aí estivesse
alguma representação do sucesso de suas ações e eficiência do Judiciário.
O que importa nesta corrida estatística é simplesmente a
superação dos recordes anteriores. Não há nenhuma preocupação com
os resultados efetivos, como se a eficiência no ato de julgar se resumisse
tão somente na decisão, sem qualquer enlevo para sua qualidade
técnica e as razões decisórias. Para isso, impõem-se fórmulas prontas
vindas dos tribunais superiores e tudo passa a ser produzido em série,
como numa verdadeira fábrica de decisões (longe de uma “companhia
de justiça”). E aí de quem divirja!
Neste compasso o juiz já não é mais juiz. É um autômato batedor
de carimbos em decisões e sentenças compiladas por assistentes e
estagiários. Um autoritário detetive de credores em busca dos devedores
e de seus bens, e que se julga dotado de poderes para escarafunchar
dados, registros, arquivos de todo e qualquer indivíduo, em completa
afronta aos direitos e garantias individuais previstos na Constituição
Federal. Ou, concomitantemente, um simples burocrata que vive a
preencher formulários estatísticos, a responder questionários. Tudo
para atender a sanha numérica e as determinações do CNJ e das
Corregedorias de Justiça.
Ao final, o juiz ainda bate do peito envaidecido diante de sua
estatística como mero encolher de pilhas de autos, sem a mínima
responsabilidade com os efeitos e consequências deste movimento.
Nesse ato mecânico, não consegue perceber que a cada acréscimo no
locomover de montanhas processuais menos juiz é, porque a cada dia
os atos praticados já não são seus, mais de auxiliares compiladores.
Para finalizar, segue o poema:

97
Mote
Decreto-Lei 4.657/1942 – Lei de Introdução às normas do
Direito Brasileiro: Art. 5º
Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a
que ela se dirige e às exigências do bem comum.

VELHAS FORMAS DE DECIDIR


(Ctrl C + Ctrl V )
Fernando Pessoa
[...] Às vezes tenho ideias felizes,
Ideias subitamente felizes, em ideias
E nas palavras em que naturalmente se despegam...

Depois de escrever, leio...


Por que escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?...
Por vezes tenho interpretações felizes,
Interpretações extremamente felizes, em dizer o direito, mas ...
na urgência de atender e não desagradar, prefiro a cópia feita
e fácil.
Depois de copiada, sequer leio...
Por que perder tempo com isso?
De que adiantaria reler isso?
Como haveria de mudar isso? Mas, isto é pior do que eu...
Serei eu juiz apenas teclas (Ctrl C + Ctrl V)
Com que repito a valer o que outros já traçaram? 83

83
SILVA, Denival Francisco da. Poemas Reconvencionais: inverso e reflexo das
coisas. Goiânia: Kelps, 2011. p 22.

98
XV
ONDE ASSENTAM AS GARANTIAS
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS?

Me dá cantinho? Vá pedir a seu vizinho!

O Ministério Público tem como incumbência promover a


defesa da ordem jurídica, não podendo ser considerado parte
no stricto sensu porque não busca incondicionalmente, na
Ação Penal, a condenação do réu, ao contrário, atuando na
defesa da lei, age livremente na busca da verdade real, verdade
esta também perseguida pelo Estado personificado na figura
do juiz. (Desembargadora federal Cecília Marcondes
restabelece o assento do Ministério Público Federal
ao lado direito do magistrado nas sessões da 7ª Vara
Federal).84
A medida liminar foi concedida em Mandado de Segurança
impetrado por 16 procuradores da República, em face da Portaria 41,
de 1º de dezembro de 2010, editada pelo então juiz impetrado. Para o
magistrado a sala de audiência ideal deve ser o espaço onde a defesa
e a acusação têm a mesma importância. Para atender a essa lógica
processual, determinou a retirada do tablado da sala de audiências,
postando todos num único plano e as partes processuais, enquanto
seus representantes (membro do Ministério Público, defensor público
e advogados) posicionados frente a frente.
Dentre as tantas idiotices e fanfreluches que permeiam os átrios e
salas forenses, a disputa por um lugar ao sol, ou melhor, um lugar para
assento, ainda toma assento em muitas disputas cretinas e imaturas
de integrantes da magistratura e do Ministério Público, fruto de pura

84
SCRIBONI, Marília. Ministério Público deve ficar ao lado do juiz. CONJUR –
Consultor Jurídico. In: http://bit.ly/eEyGdJ. Pesquisa em 11/01/2011.

99
vaidade com estas questões de menor relevo e real interesse para o
desempenho das respectivas funções.
- Devo sentar-me aqui, ao lado direito de Vossa Excelência, porque se
trata de uma garantia assegurada ao parquet!
- Não! Vossa Excelência deverá sentar-se lá (em pensamento: onde
padecem as partes). O pedestal é reservado apenas ao Estado-Juiz, imparcial
sobre os interesses das partes!
A repulsa do juiz pela presença do presentante85 do Ministério
Público ao seu lado direito (a questão do lado direito deve ter sido
extraído do Credo da igreja católica: ... subiu aos céus, está sentado a direita
do pai ...), é apenas para evidenciar aos presentes a distinção sobre todos
os demais. Não por uma obviedade de equiparação entre as partes.
Em seu íntimo, confabula o magistrado: – Cá estou no meu pedestal
e todos os demais aos meus pés. Eu sou a justiça!
Só isso! Extremamente fútil e vazio. O essencial se perdeu.
O poder de fala entre os sujeitos processuais e as regras do devido
processo, com tratamento igualitário entre as partes.
Enquanto esta disputa inconsistente, como que uma brincadeira
infantil – Me dá cantinho? Vá pedir a seu vizinho! – persiste, sob os
olhares atônitos e incrédulos daqueles que raramente botam os pés
numa sala de audiências, o pano de fundo da questão fica relegada a
plano nenhum.
Tudo não passa de um joguete de extrema vaidade, adornos a
serem exibidos aos passantes como num cortejar de pavão. Por vezes é
resultado de outras disputas medíocres entre estes agentes e que vão se

85
 m aprendizado com uma colega Promotora de Justiça com quem tive a honra
U
de trabalhar. Desde o início me corrigiu quando a nominei de representante do
Ministério Público. Esclareceu-me que ela era ali naquele juízo a instituição do
Ministério Público presente, e não uma representante dele. Convenci-me desta
questão e nunca mais utilizei o termo representante.

100
agravando a cada novo encontro – necessário e inevitável – em prejuízo
à condução dos processos e aos interesses dos jurisdicionados.86
E haja vaidades, nisso. Na linguagem e tranquilidade de um colega
juiz aposentado (estimado Joaquim Leite), estes embates apoteóticos
parecem mesmo uma locomotiva empuxando uma lingueta infinita de
vagões, todos carregados da mais refinada vaidade.
A considerar a isonomia entre as partes não se justifica de modo
algum o posicionamento diferenciado e em destaque para os membros
do Ministério Público nas salas de audiência. O argumento de que para
além de acusar o promotor de justiça atua na defesa da lei e age na
busca da “verdade real”, é falácia tão odiosa quanto à própria disputa
pelo assento.
Em qualquer julgamento, sendo o Ministério Público parte,
estará sim envolto na sua parcialidade, merecendo o mesmo destaque
que tem à defesa. A este propósito, a considerar a famigerada tese da
defesa da lei há de prezar, antes de qualquer coisa, a defesa das garantias
e direitos individuais assegurados na Constituição Federal. Não há
dúvidas de que, neste sentido, ainda que vigilante o presentante do
Ministério Público, o defensor é quem melhor fará esta tarefa, desde
que efetivamente engajado no seu ofício, porque, seu compromisso,
sobretudo no processo penal, é focar seus argumentos nos direitos
fundamentais de seu constituinte. Se este parâmetro então fosse válido,
a supremacia dos interesses mais relevantes deveria ser dada à defesa
assegurando-lhe assento especial.
O curioso é que a vaidade é entregue as próprias baboseiras.
Enquanto alguns integrantes do Ministério Público disputam este
assento ao lado do juiz, ainda se autodenominam de parquet, num
verdadeiro caricato de suas funções. Para tais desavisados, parquet, da
86
 ventual inimizade existente entre a pessoa do procurador da República ou do promotor de
E
Justiça e o juiz não pode mais ser avaliada como insignificante do ponto de vista jurídico e
que não gera qualquer prejuízo para a relação jurídica processual penal ou civil, uma vez
que esse pernicioso jogo de vaidades humanas, muitas vezes, é conduzido para além do que
efetivamente importa, a justiça da decisão. (SOUZA, Artur César de. A Parcialidade
Positiva do Juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 91)

101
língua francesa, significa justamente aquele que está abaixo, o rodapé
(Aí! Humm!).87
Toda esta celeuma que consome saliva, suor, lágrimas e
impropérios (não aos vaidosos em debate, mas aos jurisdicionados que
ficam a mercê destas futilidades, enquanto esperam solução para suas
demandas), perderia por completo o sentido se houvesse um olhar
sobre os “esquerdos humanos”88, como adverte o poeta uruguaio Mario
Benedetti, e cairia no ridículo a discussão.
Mas não. Continua neste debate patético, cafona, cretino,
enquanto o que efetivamente interessa fica para depois,... ou para
nunca, como sempre!

87
 aqui já vai uma tremenda contradição, resultado da ignorância do usuário, neste caso em
E
busca de importância quando mesmo se desqualifica. Isso remonta ao período monárquico
francês, quando os procuradores do rei ficavam sobre o assoalho (parquet) da sala de
audiências, e não sobre o estrado do lado do magistrado. WIKIPÉDIA. A enciclopédia
livre. http://pt.wikipedia.org/wiki/Parquet. Pesquisa em 18 de abril de 2013.
88
Ahora Todo Está Claro
Cuando el presidente carter /se preocupa tanto / de los derechos humanos / parece evidente
que en ese caso / derecho no significa facultad / o atributo / o libre albedrío / sino diestro
/ o antizurdo / o flanco / opuesto al corazón / lado derecho en fin / en consecuencia /
¿no sería hora / de que iniciáramos / uma / amplia campaña internacional / por los
izquierdos humanos? (In: http://www.poesi.as/Mario_Benedetti.htm. Pesquisa em
06/08/2013)

102
XVI
PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO: APENAS UM PRINCÍPIO!

Os procedimentos antidemocráticos para escolha dos dirigentes do


Ministério Público, da OAB e do Poder Judiciário.

Não é de se estranhar que a democracia brasileira ainda seja em


muitos aspectos bastante incipiente e por vezes distante do ideal, ainda
que o texto constitucional de 1988 afirme, categoricamente, logo em
seu art. 1º, que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado
Democrático de Direito. O fato é que muitas de nossas instituições,
justamente aquelas das quais mais se espera uma visão consentânea
com o regime democrático, são ainda dotadas de resquícios típicos
de regimes totalitários, não só no formato, mas por manterem
procedimentos para escolha de seus dirigentes sob o viés nitidamente
antidemocrático, na sua acepção mínima da participação.89

89
 emocracia, sobretudo na atualidade, implica muito mais do que a simples
D
participação política com o direito universal ao voto, para escolha de representantes,
algo que ainda não se tem no Judiciário, entregue a uns poucos como se fossem
os verdadeiros donos. Isso é pouco na perspectiva de um grau de democracia
mais integral, como salienta Alain Touraine: Já não queremos uma democracia de
participação; não podemos nos contentar com uma democracia de deliberação; temos
necessidade de uma democracia de libertação. [...] A democracia só é vigorosa na medida em
que é alimentada por um desejo de libertação que, de forma permanente, apresenta novas
fronteiras, ao mesmo tempo longínquas e próximas, porque se volta contra as formas de
autoridade e repressão que atingem a experiência mais pessoal. [...] O regime democrático
é a forma de vida política que dá a maior liberdade ao maior número de pessoas, que
protege e reconhece a maior diversidade possível. [...] O que define a democracia não é,
portanto, somente um conjunto de garantias institucionais ou o reino da maioria, mas
antes de tudo o respeito pelos projetos individuais e coletivos, que combinam a afirmação de
uma liberdade pessoal com direito de identificação com uma coletividade social, nacional
ou religiosa particular. A democracia não se apóia somente nas leis, mas sobretudo em uma
cultura política. A cultura democrática tem sido, frequentemente, definida pela igualdade.
(TOURAINE, Alan. O que é a democracia? Tradução de Guilherme João de
Freitas Teixeira. 2ª ed. Petrópolis/RJ: 1996. p. 21, 23 e 26.

103
E preservam isso naturalmente, como se nada de errôneo
existisse, ainda que seja latente a afronta ao princípio constitucional.
Neste quadro fica difícil incutir o verdadeiro espírito democrático na
sociedade brasileira, com as dimensões que isso significa e a importância
para o amadurecimento político de participação, quando exemplos
contrários encontram-se dentro das carreiras jurídicas às quais cabem
dar efetiva interpretação ao texto constitucional. Falo claramente do
Ministério Público, da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e, em
destaque, do Poder Judiciário.
Em relação ao Ministério Público, ainda que haja um
procedimento mais aberto e participativo, aos seus integrantes é dado
o direito de voto apenas para formação de uma lista tríplice que então
é encaminhada ao chefe do Poder Executivo para definição do novo
Procurador Geral, que não estará obrigado a escolher o mais votado.
Em suma, o processo eletivo por parte de seus integrantes é meramente
figurativo. Ao final o Procurador Geral tem grandes chances de tornar-
se refém do chefe do executivo, a quem coube o poder de escolhê-lo.
Não sem motivação muitos primeiros colocados na lista tríplice pelos
integrantes da instituição têm sido relegados quando da escolha do
chefe do executivo.
Na OAB mantém-se ainda o voto vinculado. Embora as
chapas tenham um número quase infinito de integrantes, incluindo
as atribuições tipicamente administrativas e a de conselheiros, não
se pode votar separadamente. Com isso se impede candidaturas
independentes, ou mesmo votos desatrelados, o que legitimaria a
autonomia do voto e contribuiria com o processo de fiscalização da
administração com a formação de conselhos com forças antagônicas ou
independentes. Ademais, cultiva-se o personalismo na figura da pessoa
“cabeça de chapa”, arrastando todos os demais integrantes sob diversas
convergências e interesses setoriais e não propriamente da instituição.
Por mais que composições façam parte do jogo democrático, isso
somente se legitima se houver opções de escolha.
Incrível que estas práticas antigas foram mantidas inalteradas
mesmo com a Lei 8.625/1993 (Lei Nacional do Ministério Público)

104
e a Lei 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados
do Brasil – OAB), ambas as legislações editadas depois da nova
Constituição.
Mas não adentrarei aqui noutras particularidades destas duas
primeiras instituições, embora o que já se mostrou sejam bastante
para se apontar as restrições democráticas incidentes. Quero enfatizar
a questão no Poder Judiciário não só por ser a mais conservadora e
antidemocrática destas instituições neste próprio texto constitucional,
como por derradeiro, por ser o guardião da ordem constitucional.
Veja que em pleno século XXI, depois de 25 anos da nova
Constituição, mas a par dela, mantém-se a antidemocrática fórmula
de escolha dos dirigentes administrativos nos Tribunais, como
previsto no seu art. 96, I, que em suma reproduz o art. 21, I, da Lei
Complementar 35/1979 (LOMAN – Lei Orgânica da Magistratura
Nacional). Apesar desta previsão constitucional não se pode negar que
a referida disposição confronta com o princípio democrático.
Apesar de ser hoje uma disposição constitucional, o texto do art. 96,
I, guarda ranço antidemocrático porque obsta a ampla participação neste
processo eletivo daqueles que estão diretamente envolvidos na gestão
administrativa do Judiciário. Se antes, num regime não democrático a
previsão desta limitação podia ser justificada na necessidade de controle
deste poder pelo regime de exceção, com o impedimento do voto extensivo
a todos integrantes do Judiciário, somente a aspereza da instituição, o gosto
particular daqueles favorecidos com este sistema e o seu distanciamento
com a realidade democrática, justifica a inserção da limitação do sufrágio
no texto constitucional de agora, reproduzindo assim o aspecto autoritário
de antes.
É bom que se esclareça que o Judiciário não se resume aos
Tribunais e seus dirigentes não administram apenas suas questões
internas, mas gerenciam toda esfera judiciária a qual pertencem. Assim,
o Poder Judiciário Estadual é formado pelo Tribunal de Justiça e pelos
juízes em primeira instância (efetivos e substitutos). O mesmo se dá na
justiça federal e do trabalho que têm os tribunais regionais federais e do

105
trabalho e, respectivamente, os juízes federais e do trabalho (efetivos
e substitutos).
Ocorre que em termos quantitativos o grande número de
integrantes do Poder Judiciário está na sua base, na primeira instância,
onde se encontram os juízes que vivenciam as dificuldades do exercício
da carreira, dos reclamos locais quanto à prestação dos serviços da
justiça e que certamente sabem melhor das necessidades para uma boa
administração judiciária, até porque estão próximos dos jurisdicionados
e conhecem de perto suas aflições.
Embora não esteja prevista na LOMAN, existe um acordo
de cavalheiros para se respeitar a antiguidade, o que é sabidamente
chamado por Marcelo Semer de instituição da gerontocracia.90 Não existe
de fato um processo eletivo, mas mero referendo (talvez unção fosse o
termo adequado) do que já se é sabido, como se isso servisse de critério
para seleção de bons dirigentes. Há muito tempo estão distantes das
bases, ou são oriundos do quinto constitucional (reserva de 1/5 das
vagas nos tribunais ocupada por advogados de carreira e membros do
Ministério Público) e que nunca sentiram o peso da gestão judiciária
nas comarcas.
Começo então com o questionamento de Marcelo Semer: quem
tem medo da democracia nos tribunais?
Por que os juízes não participam do processo eletivo dos
dirigentes administrativos dos Tribunais se também têm incumbências
de gestão judiciária e as demandas administrativas do Judiciário lhe são
muito mais próximas? Qual o temor em se democratizar este processo
que, aliás, não representa uma reivindicação política perseguida pura
e simplesmente pelos juízes de primeira instância em participar deste
processo, mas uma exigência frente ao princípio constitucional e que
redunda em grande benefício político e social? O motivo de temer o
90
SEMER, Marcelo. ....quem tem medo da democracia nos tribunais? Decisão
do STF que consolidou gerontocracia na justiça continua assombrando eleições
nos tribunais. Peluso justificou como medo da política. Blog Sem Juízo. Artigo
publicado 05/02/2011. In: http://bit.ly/1c7UCDm. . Pesquisa em 03/03/2012.

106
voto dos juízes nesta escolha seria o risco de inverter o procedimento
da subserviência ou o medo de ter que negociar propostas efetivas para
uma boa gestão judiciária? Por qual razão o STF, como lhe é dever,
não encaminhou ainda ao Congresso Nacional proposta para uma
nova Lei de Organização da Magistratura Nacional, em conformidade
com o texto constitucional vigente? Por que não se aproveitou as
oportunidades das Emendas Constitucionais que remendaram a parte
que trata da organização judiciária – EC 03/1993, EC 23/1999, e em
especial a EC 45/2004 –, num momento então de maior maturidade
democrática, para fazer inserir expressamente a necessidade de um
processo democrático, com a participação de todos os seus integrantes
na escolha dos dirigentes administrativos dos Tribunais? Será que
estagnamos na caminhada democrática e por vezes retrocedemos?
Fica difícil imaginar que diante de tantas contradições dentro
do próprio Judiciário se possa obter decisões em relação às demais
instituições mencionadas, ou mesmo em face de outro procedimento
antidemocrático noutra instituição qualquer, de modo a criar-
lhes dificuldades ou dizer-lhes que o procedimento fere o princípio
constitucional.

107
XVII
USO DE TORNOZELEIRA ELETRÔNICA
É APENAS O RECOMEÇO

Do controle do corpo ao controle da alma; do controle


da alma ao controle do corpo, da moral,
do caráter, da dignidade e de todo resto.

O próprio Estado pratica bullying ao fazer com que os presos


em regime semiaberto utilizem tornozeleiras eletrônicas em suas
saídas. Não se trata de objetos pequenos e discretos, mas de artefatos
extremamente visíveis (propositadamente) de modo que inibe o usuário
de sair em público para não ser vítima de preconceitos, discriminação
ou de nova criminalização, porque sempre será visto como criminoso
em potencial.91 Ou o fim da tornozeleira é fazer o controle de uma
prisão domiciliar?
A ressocialização, mito incrustado na doutrina penal, no entanto
raramente admitido como projeto fracassado (se é que alguma vez na
história fez parte de um verdadeiro projeto, senão de segregação e
de separação de uns poucos – “pessoas de bens” – de outros tantos?),
prevista como um dos fins da pena é ideia que se renova com modelos
diferentes.

91
 carga estigmática produzida por qualquer contato do sistema penal, principalmente com
A
pessoas carentes, faz com que alguns círculos alheios ao sistema penal aos quais se proíbe a
coalizão com estigmatizados, sob pena de considera-los contaminados, comportem-se como
continuação do sistema penal.
Cabe registrar que a carga estigmática não é provocada pela condenação formal, mas
pelo simples contato com o sistema penal. (ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca
das penas perdidas. A perda de legitimidade do sistema penal. Tradução Vânia
Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 1996.
p. 134).

109
Se a prisão acaba por entregar ao indivíduo o dever de “emenda”,
em ambiente completamente promíscuo e desagregador, servindo de
levante a revolta e estrangulamento definitivo do pouco que ainda
possa restar do seu caráter, sendo por isso instrumento para justificar
os nossos preconceitos e a mística inefável de uma sociedade perfeita,
dá-se agora ao condenado certa autonomia, desde que não nos peçam
para aceitá-lo.
A tornozeleira aparentemente é forma mais digna de
cumprimento da pena. Mas não se pode esquecer que toda segregação
de liberdade atinge a dignidade. O problema não se resolve restringindo
ofensas à dignidade, até porque não fracionamento ao tratar deste
valor. Não existe dignidade “meia-boca”.
A tornozeleira, a rigor, transforma o ser humano num animal
rastreado, cujo fim é segui-lo passo a passo até o abatedouro, ou num
veículo de carga vigiado por radar com rotas e horários previamente
estabelecidos. Qualquer mudança de itinerário importará no
acionamento de alerta e ordem de captura.
Seja no imaginário do animal identificado por um microchips, seja
na perspectiva do veículo com GPS – ambos os bens de posse de algum
ser humano –, haverá sempre a certeza de que numa questão de tempo o
monitorado será trancafiado novamente em virtude de algum deslize, fato
que servirá para justificar a incapacidade ressocializadora do condenado.
Não se trata de políticas ou doutrinas equivocadas, mas de ações
certeiras para fins não propriamente declarados. Desde que o Estado
assumiu o monopólio do poder punitivo tem enfrentado o dilema da
sanção, não obstante seja claro a importância deste controle como
forma não exatamente de apaziguamento de conflitos sociais, mas de
retenção de muitas das demandas e insurgências em face da subjugação
de uns pelos outros. Ao final, vale a força daqueles que definem as
linhas políticas de comando.
Nesta perspectiva, Foucault92 salienta que quando a prisão
passou a ser modalidade de punição por excelência, apenas houve uma
92
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Tradução
Raquel Ramalhete. 21ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1987.

110
mudança do modo de dominação sobre o outro. Abandonamos o suplício
do corpo, com o descarte das penas corporais (morte, decapitação de
membros) e sacrifícios físicos (açoites, apedrejamento e outros), para
introduzir o suplício da alma. Esta transformação não se deu por piedade,
mas pela necessidade da força de trabalho de corpos não mutilados e
que poderiam perfeitamente ser úteis (utilitarismo), sobretudo com
organização e definição dos limites dos territórios nacionais.
Estes ideários não coincidem exatamente com o advento do
capitalismo e do vigor da revolução industrial a pouco mais de dois
séculos, mas são decorrentes deles.
Estabelecidos estes modos político e econômico, encontramo-
nos agora diante de um novo passo. Não precisamos mais preservar
corpos inoperantes, improdutivos, verdadeiros estorvos numa
economia que se quer dinâmica, onde o ente humano não é a premissa
principal. A preservação dos corpos desses “indivíduos indesejáveis”
ao atual modelo de produção já não seria necessária, sobretudo porque
constituem apenas encargos frente a um Estado que se propõe ser
mínimo e não intervencionista.
No entanto, vimo-nos atualmente acossados pela consciência
dos mandos humanistas que justificaram no passado a mudança de
paradigma. Embora estes indivíduos sejam “elementos descartáveis” e
sem valor diante deste modelo econômico globalizador, de enormes
avanços tecnológicos e que pouca (ou nenhuma) serventia reserva
às pessoas desqualificadas, não se pode simplesmente destruí-los
fisicamente, mesmo que o abandono e a repulsa social sejam fatos
escancarados. Dê-se-lhes, então, a disciplina e obediência (corpos
dóceis)93, adestrando-os ao modus desejado pelo sistema espoliador.
Diante desta nova realidade mantemos a alma dos rejeitados sobre
dominação, acrescentando o domínio da moral. Exigimos do indivíduo
um padrão de conduta – e não precisa estar criminalizada – uniforme,
93
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução Roberto
Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nau
Editora, 1999.

111
desrespeitando o pluralismo e as opções pessoais. O indivíduo já não é
punido pelo que faz, mas pelo que é, desde que a sua forma de ser não
corresponda àquela engendrada por quem faz as escolhas.
E se isso não bastar o direito penal está aí para bem servir94.
A cada dia é instrumento que se agiganta, servindo para separação
das “pessoas de bem” (melhor, “de bens”), num ato maniqueísta que
exige para sua conformação a previsão da existência de “pessoas do
mal” (melhor, “sem bens”). Tratam-se velhas concepções veladas que
se perpetuam desde a instituição da pena de prisão como ferramenta
útil ao Estado. É a forma de dominação sem culpa, diante de um pacto
social firmado por alguns que se disseram representante de todos e de
todas as gerações (passadas e futuras), porque para todos os efeitos a
responsabilidade pela na adaptação ao modelo social é exclusiva do
infrator.
Só que isto onera, sobretudo nos dias atuais em que o sistema
punitivo se expande avassaladoramente. O Estado mínimo não pode
lançar mão de seus recursos com aqueles que não servem ao padrão
de desenvolvimento econômico. É necessário controlar mais e mais
eficazmente (é o que se quer), conquanto com menor custo.
Nisso, o método de controle pela tornozeleira é um novo grande
achado, porque ao tempo em que pode ampliar a possibilidade deste
controle, com o argumento de que com esta tecnologia assegura-se
dignidade ao indivíduo, visa a redução de custos. Tudo não passa da
simples difusão de seu uso, tornando o sistema paulatinamente mais
barato e, porquanto, mas factível ao sistema penal, sempre carente de
recursos.
Não existem olhares puros quando a retina espelha cifrões e
poder. É necessário atentar para o fato de que tudo pode ser apenas
mais um passo de um projeto mais audacioso. Acostumamos fácil
com a tecnologia e seus avanços, não nos importando com os
objetivos sublineares e seus efeitos. O que aparentemente é algo
94
NEPOMOCENO, Alessandro. Além da Lei: A face obscura da sentença penal. Rio
de Janeiro: Revan, 2004.

112
auspicioso, logo-logo traduzirá no novelo que envolverá a todos com
a maior naturalidade, introduzindo chips subcutâneos (estes sim,
imperceptíveis), e por isso com a possibilidade de maior ampliação e
alcance em termos de vigilância.
Talvez caminhemos, num futuro não tão longínquo, para
imposição de chips em todo ser humano nascido com vida, no qual se
constarão todos os dados de sua identificação que sequer o identificado
saberá. Este mesmo acervo mnemônico servira para registro das
ocorrências policiais, dos desvios de conduta, do descumprimento dos
preceitos morais, para localização do inadimplente e de seus bens, para
controle de migração, registro de pontos no local de trabalho etc.
Eventuais antecedentes criminais e todo retrospecto contrário
ao repertório de restrições, com os elementos subjetivos sobre o
indivíduo (legítimo direito penal do autor) serão anotados mesmo a
distância, bastando que as centrais de controle atualizem os dados que
serão automaticamente registrados online nos chips do usuário, sem
que sequer tome conhecimento desta atualização. Caso deseje sair
de sua situação, devera dirigir-se a tais centrais para obter uma folha
corrida (após pagar as devidas taxas, porque o modelo também visará
lucratividade), ou, por senha (desde que se tenha assinatura mensal,
com débito direto no cartão de crédito, ou no seu chip), acessar seu
acervo na internet.
Não haverá necessidade de reter passantes de eventuais fujões,
porque barreira eletrônica o denunciará nas catracas da emigração.
Alguns, com senhas especiais, terão autorização para bisbilhotar
todo e qualquer indivíduo, seja para montagem de dossiês para
vazamento para a imprensa (com as regras de sempre de preservação
da fonte e direito a informação), ou, mesmo quando sem autorização,
nas velhas praticas da arapongagem, com triagens não autorizadas até
que por algum motivo sejam validadas.
Nos locais de acesso público, o indivíduo passará por leitores
magnéticos e ópticos que farão o reconhecimento e o encaminhará,

113
conforme sua classificação, como já se faz nas grandes propriedades
rurais de criação de animais rastreados, para os espaços sociais que lhe
são reservados. A simples tentativa de invasão de espaço que não é seu
acionará alarmes, na velocidade necessária para interceptar a tempo o
invasor.
É este o futuro que nos aguarda. Uma incidência cada vez mais
acentuada das regras punitivas e de controle social, com ganhos aos
grandes conglomerados tecnológicos internacionais que os explorarão
feito mercadorias, vendendo informações, legal ou clandestinamente,
e vigiando-nos diuturnamente.
Quem serão os controladores de todo este sistema e mecanismo?
Os de sempre, com toda certeza. Os donos do poder econômico que
têm a sua frente como testa de fera o poder político.

114
XVIII
MAIS UMA SOBRE O MANTO DA “DIGNIDADE
DA JUSTIÇA” OU DO “INTERESSE DA JUSTIÇA”

Ofensa ao direito fundamental da inviolabilidade


do sigilo, art. 5º, XII, da Constituição Federal

As disposições constitucionais alcançam a todos, indistintamente,


embora com sobrepesos distintos, frente ao princípio da igualdade
donde se exige a adequação material diante das situações desigualadoras
ocorrentes. Sendo assim, compete principalmente aos juízes, em
virtude de seu dever funcional, zelar pelos direitos fundamentais, com
imperativo de reconhecê-los de ofício no processo nas hipóteses de
evidentes ofensas.
Neste sentido, se o texto constitucional (art. 5º, XII) só permite
a violabilidade do sigilo de correspondência e das comunicações
telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas em situações
excepcionais (último caso), para investigação de algumas condutas
criminosas, em razão de suas naturezas e, previamente descrito em
lei, mediante ordem judicial (porquanto somente juiz criminal), não
se é possível ao juiz civil atender pedido que implique na superação da
garantia fundamental expressa.
Curiosamente, e a despeito da clareza do texto constitucional –
motivo de grandes equívocos e exacerbações em decisões judiciais, como
se o julgador estivesse num patamar acima da vontade do constituinte
originário – muitos têm atropelado esta garantia fundamental, seja
requerendo, ou pior, concedendo a pretensão formulada sob o manto
de falsos dogmas como da “dignidade da justiça” ou “interesse da
justiça”.95
95
 m face do interesse da Justiça na realização da penhora, ato que dá início à expropriação
E
forçada, admite-se a requisição à repartição competente do imposto de renda para fins de
localização de bens do devedor, quando frustrados os esforços desenvolvidos nesse sentido.

115
Aqui estão as construções jurídicas enigmáticas, resultado de
uma suposta última fala sobre o assunto e que, doravante, e só por isso,
deixa de exigir questionamentos.
Será?
Em relação ao termo “dignidade da justiça”, inclusive descrito em
lei, como previsto no art. 600 do Código de Processo Civil, consiste
num verdadeiro deslize e impropriedade técnica legislativa, porque o
termo dignidade é atributo exclusivamente do ser humano. Ao querer
utilizá-lo desregradamente, sem nenhum contexto etimológico,
espalhando-o para fora do indivíduo, esvazia-se sua axiologia, vulgariza
seu conteúdo, despreza sua essência e renega o próprio ser humano,
comparando-o então as coisas materiais e abstratas, colocando-o em
igual plano das pretensões meramente patrimoniais.
(...)
Interesse da justiça é outra invencionice criativa, real placebo para
também sonegar direitos fundamentais. O termo, por si só, é o tudo e
o nada ao mesmo tempo. É o subjetivismo puro, é o vazio, a abstração
que entorpece falsos eruditos e jurisconsultos. É o próprio vácuo ou a
densidade atômica. É simplesmente aquilo que o seu usuário quer que
se entenda como justo, embora não assuma claramente sua percepção
de justiça, escamoteada numa aparente imparcialidade e neutralidade
(outras impurezas jurídicas/linguísticas).
Seria a justiça do credor para aqueles que acham ter sempre
razão, não obstante, por vezes, os abusos na cobrança? Seria a justiça
da necessidade do cumprimento de contratos leoninos, adesivos,
nos quais o devedor não pode alterar uma vírgula? Seria a justiça de
instituições financeiras que escondem informações aos seus próprios
clientes nas relações contratuais informadas e por vezes descumprem
ordens judiciais para informar?

Cada vez mais se toma consciência do caráter público do processo, que, como cediço, é
instrumento da jurisdição. (STJ-RSTJ 21/298). No mesmo sentido: RSTJ 34/294.

116
Mas alheio a tudo, quer-se do juiz civil que se auto invoque acima
das disposições constitucionais para, agindo como um autoritário/
mandão, assuma o comando de uma investigação detetivesca – em geral em
decorrência de cadastros pessimamente elaborados pelos credores de seus
tomadores – para conseguir com a força de suas decisões, simplesmente
por ser juiz, dados sobre a vida pessoal e patrimonial do réu.96
Ora, isso é intolerável diante da ordem constitucional democrática
e garantista que dispomos. Aliás, mesmo antes da Constituição de 1988,
durante o regime ditatorial de supressão de garantias fundamentais, a
legislação ali editada já impedia a quebra de sigilo.97 Depois, o Código
de Processo Civil de 1973 (auge do regime militar) já estabelecia
parâmetro para sequência dos atos processuais em caso do réu não
ser encontrado, por estar em local incerto ou não sabido, coibindo
inclusive qualquer possibilidade maliciosa de procrastinação: citação
por edital.
Este parâmetro é consentâneo com a atual Constituição,
conquanto relegado, em grande medida (por comodismo, por
conveniência por falta de questionamento, por supor ser o juiz
detentor de ilimitados poderes, por ignorância, por maledicência,
etc.), preferindo a parte autora insistir com pedidos que afrontam as
garantias fundamentais porque ciente das decisões que advirão (basta
no pedido trazer alguns julgados dos tribunais superiores. Pronto, não
se fala mais nada!).
Depois da citação, tratando-se de execução, outros caminhos
legais foram instituídos como o instituto da penhora pela via eletrônica
(ainda que em relação a ele pairem outros questionamentos) que

96
 xecução. Localização de bens do devedor. Declaração de bens para fins de imposto de
E
renda. Requisição. As declarações, para fins de imposto de renda, têm caráter sigiloso que
deve ser resguardado, salvo razão excepcional, que não se configura pelo simples interesse
de descobrir bens a penhorar. (STJ, 3ª Turma, Resp. 11.114-ES, rel. Min. Eduardo
Ribeiro, j. 23.08.91, DJU 16.09.91).
97
 omo exemplo tem-se a Lei 6.538, de 22/06/1978: Art. 5º. O sigilo da correspondência
C
é inviolável.

117
permitem a constrição de valores, independentemente de se fazer
presente ao processo o devedor.
Fora isso não se pode inventar novas exceções, sobretudo porque
se estará confrontando direitos fundamentais. Somente numa escala de
ponderação de interesses é que se poderia mitigar o sigilo de dados,
caso a caso, diante da supremacia de outro interesse superior. Todavia,
mesmo para a ponderação já há previsão no próprio art. 5º, XII da
Constituição Federal quando fixa os requisitos necessários às hipóteses
de quebra do sigilo, reservando à legislação infraconstitucional a
descrição das situações restritas para esta sobreposição de interesses
fundamentais.98 Assim, não se pode extrair na contraposição entre os
direitos a intimidade e privacidade (em suma decorrentes do direito
à liberdade) e ao interesse iminentemente patrimonial, à prevalência
destes últimos.
Tentando arrefecer a objetividade imposta no dispositivo
constitucional, da qual não tem como se desprender, introduziu-
se uma falácia nova para dizer que a possibilidade de obtenção de
informações pela via judicial99 somente é possível depois de esgotadas
as vias à disposição do próprio interessado.
98
Lei 9.296, de 24/07/1996.
99
 deferimento de exped de ofício a órgãos da administração, com o fim de obter informações
O
sobre bens dos devedores passíveis de penhora, é restrito, só sendo possível em casos
excepcionais e após a comprovação de que o exequente exauriu os meios à sua disposição
para localizar o patrimônio do executado. Recurso provido. (TJ/RS - 15ª C., Ag. Inst. nº
70008423352, Rel. Des. Ricardo Raupp Ruschell, julg. 30/03/2004).
Declaração de Renda. Receita Federal. Possibilidade. Configura legítima a requisição de
fotocópia da última declaração de bens do devedor, que citado não oferece bens à penhora,
frustrando os esforços do credor, para esse fim, situação que não tipifica a violação de sigilo
fiscal. Provimento do recurso. (TJRJ - 18ª C., Ag. Inst. nº 8721/98 - Reg. 160399, Rel.
Des. Roberto Abréu Silva, julg. 10/02/1999).
Não localização de bens do devedor, após diligencias do exeqüente e do juízo. Requerimento
de exped de ofício ao Banco Central do Brasil, Receita Federal e órgãos públicos. Possibilidade,
em casos excepcionais. "é legitima a pretensão do credor em obter, para efeito de penhora
em processo de execução esclarecimentos sobre a existência de bens declarados pelo devedor
perante a Receita Federal”. (Súmula 03 TAPR) Recurso conhecido e provido. (TAPR
- 4ª C., Ag. Inst. nº 164158700/CASCAVEL, DJ 26/09/01).

118
Não! A disposição constitucional é taxativa. O rompimento
a este cerco é outra criação infundada, porque não encontra guarida
em nenhuma disposição legal e tampouco coaduna com a ordem
constitucional.
Acontece que no decorrer dos anos e na contramão das garantias
previstas no texto constitucional está havendo uma real involução da
jurisprudência100 sobre o tema. Algo assustador, pois que o desejo da
100
 XECUÇÃO FISCAL - INFORMAÇÕES SOBRE EXISTENCIA DE BENS DO
E
CONTRIBUINTE - REQUISIÇÃO DE OFICIO A RECEITA FEDERAL – AUTORIDADE
JUDICIARIA – IMPOSSIBILIDADE. Não ha lei ou convenio que obrigue o Banco Central do
Brasil a quebrar sigilo bancário de executado porque ele mudou de endereço. Também não
constitui hipótese de requisição regular da autoridade judiciaria. A obtenção do atual endereço
do devedor e a existência ou não de bens de sua propriedade a serem penhorados e obrigação
do exequente. Recurso improvido. (STJ. RESp 163405 /RS. Relator Ministro GARCIA
VIEIRA. Data do julgamento: 17/04/1998. Publicação: DJ 08/06/1998 p. 54).
Processual Civil. Execução. Informações sobre bens em nome do contribuinte. Ofício ao
Banco Central do Brasil. Impossibilidade. O interesse patrimonial do credor não autoriza,
em princípio, a atuação judicial, ordenando a quebra do sigilo bancário, na busca de bens
do executado para satisfação da dívida. (STJ, 2ª Turma, rel. Min. Peçanha Martins, j.
08.02.00, DJ 13.03.00).
EXECUÇÃO - REQUISIÇÃO DE INFORMAÇÃO DE ENDEREÇO DO RÉU AO BANCO
CENTRAL – IMPOSSIBILIDADE. 1. Embora na hipótese dos autos não se pretenda, através
de requisição ao Banco Central, obter informações acerca de bens do devedor passíveis de
execução, mas tão-somente o endereço, o raciocínio jurídico a ser adotado é o mesmo. 2. O
contribuinte ou o titular de conta bancária tem direito à privacidade em relação aos seus
dados pessoais, além do que não cabe ao Judiciário substituir a parte autora nas diligências
que lhe são cabíveis para demandar em juízo. 3. Recurso especial não conhecido. (STJ.
REsp 306570/SP. Relatora Ministra ELIANA CALMON . Data do julgamento:
18/10/2001. publicação: DJ 18/02/2002 p. 340).
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSO CIVIL.
EXECUÇÃO. EXPEd DE OFÍCIO À RECEITA FEDERAL. MEDIDA EXCEPCIONAL.
IMPOSSIBILIDADE.1. O acórdão recorrido está em consonância com a jurisprudência
deste C. Superior Tribunal de Justiça, firmada no sentido de que "a exped de ofício à Receita
Federal, para fornecimento de informações, é providência admitida excepcionalmente,
justificando-se tão somente quando demonstrado ter o credor esgotado todos os meios à
sua disposição para encontrar bens passíveis de penhora, o que não ocorre no caso dos
autos" (AgRg no REsp nº 595.612/DF, Relator o Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, 4ª
Turma, DJ 11/02/2008). 2. Em relação ao pedido de informações para fins de localização
do endereço do executado "o raciocínio a ser utilizado nesta hipótese deverá ser o mesmo dos

119
humanidade é que a cada passo na história os direitos fundamentais
sejam mais enraizados e não subjugados como valores perecíveis.
Isso tudo decorre muito pela interferência do poder econômico,
em detrimento às garantias fundamentais principalmente diante
dos interesses das instituições financeiras, que fazem prevalecer os
discursos vazios e enganosos da “dignidade da justiça” ou do “interesse
da justiça” para dizerem que o Judiciário tem que agir de algum modo,
ainda que pisoteando a ordem constitucional.
Em suma, o que deflui de tudo isso é que não existe possibilidade
– na perspectiva de um devido processo e em obediência às garantias
fundamentais, extensivas a “todo e qualquer indivíduo, sem nenhuma
exceção” (art. 5º, caput, Constituição Federal) – de o juiz cível sair a
campo à procura do réu. Os mesmos limites impostos à parte autora, ao
ter esgotados os canais públicos e acessíveis de informações, cerceiam
também o juiz. Não será, portanto, pelas mãos do magistrado que as
vias restritivas impostas pelo texto constitucional que as portas poderão
ser abertas. O juiz que assim age extrapola suas atribuições, abusa do
poder, avança sobre direitos fundamentais e mancha a própria toga
com o autoritarismo e desrespeito a ordem democrática.

casos em que se pretende localizar bens do devedor, pois tem o contribuinte ou o titular de
conta bancária direito à privacidade relativa aos seus dados pessoais, além do que não cabe
ao Judiciário substituir a parte autora nas diligência que lhe são cabíveis para demandar
em juízo." (REsp nº 306.570/SP, Relatora a Ministra ELIANA CALMON, DJU de
18/02/2002). 3. Agravo regimental a que se nega provimento. (STJ. AgRg no Ag
1386116 / MS. Ministro RAUL ARAÚJO. Data do julgamento: 26/04/2011. Data
publicação: 10/05/2011).
* Já existem decisões mais recentes, não propriamente do STJ, que permitem a
busca de endereço do réu em órgãos públicos, sem, sequer, a demonstração prévia
do esgotamento das vias de pesquisas da parte autora. É a assunção definitiva do
papel de detetive do Judiciário, gratuitamente, em favor do credor.

120
XIX
A RETÓRICA DA MELHOR DOUTRINA

Isso é tão ridículo quanto autoritário, a ponto de representar


o que se tem de pior num regime democrático.

O contumaz usuário do mais puro “juridiquês” (linguagem


supostamente rebuscada, empolada, que não diz precisamente o direito.
Puro enfado para falsos juristas que se encantam com o discurso vazio,
autoritário e tradicionalista, sem mínima adequação à realidade social),
sempre se enforca nas próprias diabruras, enfiando os pés pelas mãos
na convicção de que está se dando bem.
Trata-se de uma prática ainda usual por alguns profissionais
do direito que imaginam seja esta linguagem diferenciada (com seus
equívocos e enganos) ferramenta necessária de trabalho. Tem os
cultores que disseminam a praga, arraigados às velhas tradições e sob
estas falsas erudições sentem-se condicionados a propagarem ideias.
Pertencem a elite das elites ditas intelectuais, únicas dotadas de um
saber técnico e linguístico maioral, em razão da qual haverão de ser
seguidos e referenciados silenciosamente.101
101
 o Brasil, o uso da cultura e da língua como forma de discriminação social constitui
N
herança da colonização portuguesa. [...] Desde então, a cultura e suas mais elevadas
formas de expressão, a língua escrita e a variedade culta da língua falada, assumiram
“papel de fronteira social” e de “privilégio de uma elite”. (CARBONI, Florence e
MAESTRI, Mário. A linguagem escravizada: Língua, história, poder e luta de
classes. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2003. p. 40).
Ainda: No fundo, a ideia de que “português é muito difícil” serve como mais um dos
instrumentos de manutenção do status quo das classes sociais privilegiadas. Essa entidade
mística e sobrenatural chamada “português” só se revela aos poucos “iniciados”, aos que
sabem as palavras mágicas exatas para fazê-la manifestar-se. [§] A propaganda da suposta
“dificuldade” da língua é, como diz Gnerre no livro citado, “o arame farpado mais poderoso
para bloquear o acesso ao poder”. Sustentar que “português é muito difícil” é cavar uma
profunda trincheira entre os poucos que “sabem a língua” e a massa enorme de “asnos”
(termo usado por Luiz Antonio Sacconi em seu livro Não erre mais!) que necessitam,

121
Aqueles que acompanham tal escrutínio, principalmente no
exercício da atividade forense, valem-se destes sofistas para resumir
qualquer debate, mormente quando se veem acuados em seus estreitos
limites. Neste caso a solução é simples. Basta rememorar um velho
autor, também com suas prosopopeias e tudo se resolve, afinal quem
ousara discutir diante: ... da melhor doutrina que trata do assunto ... ; ... da
doutrina de escol que reporta ao assunto da seguinte forma...; ... do tema o
qual a melhor doutrina já sentenciou....
A melhor doutrina, reprodutora da dogmática jurídica102, é irmã
gêmea da jurisprudência mansa e pacífica (deste outro assunto tratei
no artigo III deste livro) e quem as utiliza sistematicamente é sempre
o acomodado e conformado (por preguiça ou falta de capacidade
crítica), estando a desserviço da mutabilidade e do avanço do próprio
pensamento jurídico. Pode ser chamado do “jurista papagaio”, adestrado
para um reprisar inconsciente do que ouve e apreende, ou como alerta
Nelson Hungria, aquele que exerce o humilde papel de esponja, que só
restitui a água que absorve.103 E eu acrescentaria, com impurezas!
O fato é que para este dogma, tal qual para a jurisprudência mansa e
pacífica, não existe mais possibilidade de dissenso porque a tal doutrina

assim do “auxílio” indispensável daqueles “mestres” para saltar com segurança por sobre o
abismo da ignorância. (BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico: o que é, como
se faz. 48ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2007. p. 39).
102
P ara uma compreensão ampla sobre o significado de dogmática jurídica, necessário se
faz conceituar dogma. São preceitos estabelecidos a priori e apresentados como verdades
definitivas, incontestáveis, tidos como naturais, sem influência ideológica em sua
elaboração. São feitos para serem aceitos e seguidos, sem discussão ou análise crítica. Não se
admite dúvidas ou questionamentos. (ANDRADE, Lédio Rosa da. Juiz Alternativo
e o Poder Judiciário. 2ª ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008. p. 22).
103
 força de se impregnar de doutrina e jurisprudência, o juiz despersonaliza-se. Reduz
À
sua função ao humilde papel de esponja, que só restitui a água que absorve. HUNGRIA,
Nelson. Comentários ao Código Penal. V. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1958. p. 66.
Apud: BENETI, Sidnei Agostinho. Deontologia da Linguagem do Juiz . p. 129.
In: NALINI, José Renato (coord.). Curso de Deontologia da Magistratura. São
Paulo: Saraiva, 1992. (p. 113-139).

122
especial, suprema, transformou o assunto em ponto irretorquível, não
se podendo mais questioná-lo. Porém, toda linguagem está a serviço
de interesses bem definidos e se propõe a dominar, daí sua preservação
e perpetuação. Assim, como não há linguagem neutra, não há igualmente
linguagem única.104 A afirmação de que algo é “melhor”, embora
represente em si a necessidade de uma confrontação, nesta situação
em especial do uso desta linguagem no direito é forma de submissão
de qualquer outra, tendo justo o sentido de aniquilamento total das
adversidades.
Este discurso, de caráter claramente ideológico, se especializou
em esvaziar o debate impondo uma solução incontestável como
expressão de domínio e continuísmo. Não há mais nenhuma
possibilidade de manifestação depois que o melhor se expõe. É como se
ficasse na retaguarda esperando para dar cabo ao problema. Somente
em último caso, se houver alguma tentativa de afrontamento ao que já
se convencionou, é que se é convocado para dar o tiro de misericórdia.
Não existe chance alguma para quem pretende enfrentá-lo, geralmente
lançado na bacia das almas, quando os recônditos valores se veem
encurralados frente a uma nova visão sobre o assunto, para o qual
não querem ceder (porque seus preconceitos, seus valores morais, sua
falsa sabedoria e tantas outras vicissitudes não permitem ao menos a
recepção de novas ideias?).
O interessante é que a definição do melhor está na tibieza de
quem a utiliza, pela ausência de uma posição crítica e falta de respeito à
diversidade. Aquilo que é repetido como a melhor doutrina é apenas o
ponto de vista de alguns – às vezes, nem isso, mas apenas a lei do menor
esforço porque esta afirmação evita qualquer sacrifício exegético, afinal
já está pensado – e que pode perfeitamente parecer uma lástima aos
olhos de outros, antipáticos àquela alternativa doutrinária.
Por vezes, a prepotência e arrogância do usuário deste termo
melhor doutrina é tanta que acredita bastar a utilização do jargão sem
104
 ARBONI, Florence e MAESTRI, Mário. A linguagem escravizada: Língua,
C
história, poder e luta de classes. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2003. p. 59.

123
fazer nenhuma referência doutrinária para acuar o interlocutor.
Pior, muitos interlocutores acostumados com o império deste fora
jurídico aceitam passivamente, postando-se no lugar dos ignorantes e
conformados.
Só é possível a ideia de um posicionamento melhor, sem a
possiblidade de discussão e debate, num regime autoritário onde não
há expressão legítima do pluralismo político e democrático.
Conquanto, o autoritarismo não se restringe ao termo “melhor”,
mas também ao erro terrível quanto à referência “doutrina”. A
expressão começa com este equívoco originário. Não existem doutrinas
jurídicas, mas doutrina jurídica (singular). Assim como existe uma
doutrina cristão com vertentes distintas conforme a concepção de
cada segmento do cristianismo: católico, evangélico, kardecista, etc.
Doutrina é o conjunto de ideias que forma um ramo do conhecimento
ou de expressões sobre determinada área de conhecimento.
No caso das ciências jurídicas, assim como em diversos outros
ramos do saber, justamente por não dispor de um método matemático e
objetivo, suas aferições e resultados são sempre dotadas de subjetividade.
Existem entendimentos diversificados conforme a postura daquele que
emite suas opiniões e interpretações sobre o fato jurídico. Nem por
isso se fala em diversas doutrinas. O que ocorre neste caso são posições
de doutrinadores que opinam diversamente sobre um mesmo fato e
que está longe, portanto, de representar “a doutrina jurídica”.
Este é o primeiro passo para desmascaramento deste pedantismo
linguístico e que se revela um verdadeiro sofisma.
Outro ponto a ser destacado é o autoritarismo de quem se vale
deste argumento para finalizar um entendimento ou para dar números
finais à discussão. Não há, é certo, neutralidade de conhecimento,
principalmente quando diante de argumentações tendentes a discorrer
deste ou daquele modo sobre o mesmo objeto. Toda possibilidade
de escolha envolve critérios específicos e que reflete a vontade do

124
interlocutor. Nunca será um processo neutro, porque ao fim significa
as visões do interlocutor ainda que enxergando com olhos alheios. A
utilização da expressão melhor doutrina é, portanto, sempre dotada
de arrogância, porque menospreza qualquer outra forma de pensar,
decidir, buscando desqualificar posições contrárias.
Para o urubu, a melhor rês é a perrengue, à beira da morte.
Moscas adoram fezes e vermes se proliferam nas entranhas intestinais
de outros animais. O melhor depende dos interesses daquele que o
anuncia. Tudo depende da perspectiva do interlocutor.
Mas a questão do melhor passou a ser tão relativizada e
banalizada que não é incomum, por exemplo, ao se dar notícia da
morte de um conhecido, que alguém diga que o morto partiu para uma
melhor. Como se sabe? Afinal, o comunicante já esteve lá? Porque não
ficou? Ou, se está tão convicto de que a condição de defunto é melhor,
porque não aproveitou o bonde? Veja que o melhor, neste caso, é
apenas a constatação do imponderável e, embora seja natural temer
o desconhecido, “é melhor” apostar que será melhor, assim as pessoas
conseguem amenizar suas aflições com a perda do falecido e com o
próprio futuro inevitável.
Todo ponto de vista é a vista de um ponto, já o disse Leonardo Boff.
O olhar sobre determinada perspectiva é apenas um olhar. Nem todo
mundo pode ver o eclipse solar a cada acontecimento e ainda assim ao
mesmo tempo. Dependerá do ponto em que esteja na face da terra.
Melhor é somente um ponto de vista.
Ainda bem que existem diferenças e pontos de vistas distintos.
Imaginem quanta chatice se tivéssemos que conviver com a mesmice,
com a impossibilidade de novas reflexões, porque tudo já estaria dito
e atingido pela imutabilidade? O pluralismo político decorre desta
imersão na diversidade, no respeito às diferenças e no convívio entre
seres desiguais (não em direitos).
O conhecimento jurídico não é uma ciência exata, embora até
mesmo nas ciências exatas se é possível divergir. As relações humanas são

125
múltiplas, sofrendo constantes alterações, modificações e evoluções, de
modo que não se pode estagnar um raciocínio sobre determinado tema
e, a par de enunciá-lo como fruto de “uma melhor doutrina” impedir
novas digressões. Assim, o conhecimento doutrinário expandido por
alguém (ou alguns), por mais que seguido e copiado por outros tantos,
nunca pode ser classificado como a melhor doutrina.
Nesta ordem de ideias, todo fato jurídico é multifacetado como
um caleidoscópio que se altera a cada semicírculo. O intérprete é
apenas um visionário que se situa em determinado ponto para análise
do caso concreto e não aquele que dita ensinamentos doutrinários
para situações eventuais e futuras. Até mesmo a legislação é um olhar
hipotético e eventual sobre determinado fato, cabendo sua adequação
a cada necessidade de seu uso.
O exercício hermenêutico requer a acomodação do fato concreto
com a norma posta e com as demais fontes do direito, conforme
o ponto de vista do intérprete. Se é legítimo invocar um ou outro
entendimento, copiar decisões jurisprudenciais e fazer referências a
posições doutrinárias que se adeque a solução pretendia, não se pode,
por outro lado, ter-se a arrogância de afirmar que esta forma de ver as
coisas “é a melhor” delas. Fosse assim, não poderia haver o dissenso e
não se falaria em duplo grau de jurisdição.
Um dos princípios básicos do Estado de Democrático de Direito,
como enaltecido no texto constitucional, é a prevalência do pluralismo
político (art. 1º, IV, Constituição Federal) ou a concepção do direito
à diferença. Tal fato significa a liberdade de expressão e a necessidade
de convívio com a multiplicidade. A aceitação do outro, a alteridade, o
respeito pela diferença.
No cenário jurídico o emprego desta expressão “melhor doutrina”
é apenas o reforço do autoritarismo, da imposição de determinada
argumentação jurídica sem a mínima perspectiva ao menos de pesquisa
em novas concepções. É uma tentativa de sedativo para o insurgente a
fim de acomodá-lo de qualquer resistência a um modelo de dominação
e exploração vigorante, e um relaxante para o conformado, acrítico
que não precisará ter nenhum peso de consciência.

126
Em regra, a dita melhor doutrina é aquela que se firmou no
consenso dos confortavelmente aquinhoados com os beneplácitos
de uma sociedade desigual. E ela existe exatamente para atender este
ajeitamento e justificar a legalidade, a juridicidade e a necessidade de
ordenação política como forma de tranquilidade e paz social. Só que
se trata de uma perspectiva não plural e por isso antidemocrática. A
retórica eficaz deste discurso jurídico e sua disseminação é que faz
dele o suposto prosar “verdadeiro” e “melhor”. No fundo serve para a
mantença do status dominante.

127
XX
ENTRE AS VÍSCERAS LINGUÍSTICAS, EIS UM FALSO ÓRGÃO

A utilização incorreta do termo órgão, para referenciar ente


privado, reforça o modelo autoritário da imposição do direito
pelo uso errôneo do vernáculo.

A expressão órgão de proteção ao crédito surgiu com o próprio


serviço prestado por empresas particulares de armazenamento de
informações de consumidores e venda destes preciosos dados. Dadas
as suas naturezas e a forma com que tratam as informações que colhem
e repassam mediante pagamento, só podem ser frutos de estruturas
montadas no regime de exceção quando o ato de bisbilhotar fora de
qualquer apara jurídica era algo trivial, sem nenhuma preocupação com
os direitos fundamentais dos investigados e cadastrados. Em muito se
assemelham aos mecanismos oficiais do regime ditatorial de repressão
e captação de informações vivenciado no Brasil no período do final da
década de 1960 a meados da década de 1980.
Impressiona que, não obstante a isso, tais serviços prevalecem
atualmente ainda que sob os auspícios de um Estado Democrático de
Direito, sendo naturalmente denominados como órgãos de proteção ao
crédito, quando deveriam ser rechaçados por ser verdadeiros instrumentos
de afronta aos direitos fundamentais e ao princípio democrático.
Se não há objeção não é pela falta de reiteração equivocada do uso
do termo (ao contrário, silêncio e comodismo), com o intuito de fazê-
lo válido e as atividades das empresas que os que desempenham. Basta
um mínimo de conhecimento jurídico para se perceber o tremendo
engodo técnico/jurídico na expressão e do conteúdo ideológico deste
emprego incorreto.105
105
S úmula 359 STJ: Cabe ao órgão mantenedor do cadastro de proteção ao crédito a
notificação do devedor antes de proceder à inscrição. Negritei para destacar os termos

129
Todavia, – e isso é gravíssimo! – não se ouvem vozes no
mundo jurídico a desvelar o emprego desta expressão, mostrando seu
aspecto totalitário. É preocupante (assim como também atormenta
o conformismo com tantas outras inconstitucionalidades latentes), a
falta de críticas jurídicas que venham repudiar a forma com que estas
empresas privadas desempenham suas atividades, servindo como
banco de dados de cadastro negativos de pessoas, bem assemelhadas
aos verdadeiros órgãos de repressão de regimes ditatoriais com suas
agências de arapongagem e levantamento de informações secretas à
revelia dos investigados e cadastrados. Depois tudo é repassado a
terceiros mediante pagamento sem o consentimento e ciência do
prenotado.
Aquilo que não se vê agora, em meados da década de 1980, e no
limiar da atual Constituição Federal, o professor (não jurista) Milton
Santos, um dos grandes intelectuais que o Brasil produziu no século
passado, já advertia como um absurdo a manutenção destes serviços.
Para ele:
Que as firmas se assemelham a instituições nos países onde
funciona o capitalismo monopolista de Estado é fato já
arquiconhecido. Mas em certos países como o Brasil, onde
a figura do cidadão é praticamente inexistente, as firmas se
comportam impunemente e de forma abusiva.
Veja-se, por exemplo, o famigerado Serviço de Proteção
ao Crédito. Entidade impossível de se conceber onde haja
um mínimo de respeito pelas pessoas, em nosso país age
naturalmente e se comporta como se fosse uma verdadeira
instituição pública. Esse SPC funciona ao mesmo tempo como
uma central ilegal de informações e um verdadeiro tribunal
privado. Manipula as informações que obtém e que deveriam,
ao menos, ser confidenciais, para julgar, condenar ou perdoar
os consumidores, segundo suas próprias regras.106

tecnicamente incorretos, conquanto reforçados nas repetidas decisões judiciais, a


ponto de transformar-se nesta Súmula do STJ.
106
SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. 5ª ed. São Paulo: Studio Nobel, 2000.
p. 23 (coleção espaços).

130
Estes serviços são realmente formas espúrias de perseguição
e linchamento social, com claras ofensas aos direitos fundamentais
não só em razão dos dados pessoais (físicas e jurídicas) que anotam e
transmitem, como em virtude dos métodos escusos da captação sem
observância do devido procedimento, sempre com tom de imputação
de culpa e sem a possibilidade de defesa ou possibilidade de esquiva
quanto às prenotações.
Até sua reversão muitos malefícios terão impostos aos
cadastrados. Quando submetidos à supervisão judicial, muitas das vezes
são ainda considerados apenas como meros dissabores e chateações.
O argumento da proteção ao crédito é uma bizarrice, porque
as inscrições não trazem nenhuma cobertura ao crédito já concedido.
Tais registros, ao contrário da pureza e importância que lhe querem
atribuir, ferem princípios fundamentais expressos na Constituição
Federal em destaque a privacidade do indivíduo, a preservação de sua
imagem, à defesa do consumidor, o devido processo legal, (art. 5º, X,
XXXII, XXXV, XXXVII), dentre outros princípios fundamentais, na
medida em que disponibilizam publicamente informações negativas
sobre a pessoa do “cadastrado” resultando-lhe enormes prejuízos.
Não obstante a vigência de uma Constituição Cidadã,
convivemos ainda com métodos dessa estirpe e que não foram abolidos
com o fim do regime militar. Isso se dá em virtude dos interesses que
privilegiam, alcançando exclusivamente os donos do crédito, pouco se
importando com ofensas às prerrogativas elementares do indivíduo,
ao atingir sua privacidade, seu sigilo e diretamente seus direitos básicos
de consumidor.
Soma-se a tudo isso a conivência do Judiciário que na imensa
maioria de suas decisões não só diz ser possível a inserção negativa
(mesmo que o credor dela não dependa para nada e não constituir
pressuposto da ação) como, por vezes, é o ato oficioso do julgador que
determina a inclusão.
E é justamente por isso que a expressão órgão de proteção ao
crédito é utilizada de modo exaustivo, com o fino propósito de falsear

131
as características desses serviços, como de fato falseiam. Ao elevar
aquilo que sabidamente é errôneo busca retirar-lhe o viés abusivo
tentando dar a impressão de que se trata de algo legal (não existe lei
alguma regulamentando esses serviços, embora se multiplique no
mercado), oficial (porque faz acreditar que se trata de instrumentos
criados e geridos pelo poder público e, por isso, com implícita
impressão de coação, confiabilidade e credibilidade), relevante (porque
supõe a proteção imprescindível para as relações jurídicas, conquanto
só atenda ao interesse do credor, num mundo reforçado de medos) e
imparcial (porque na expectativa de um serviço público, aparentemente
se posta como alheio aos interesses exclusivos do credor, tanto que se
fala em crédito e não credor), ofuscando assim seus reais objetivos.
Ademais, a incorreção da expressão utilizada no meio jurídico
carrega forte carga ideológica, dando uma noção de pureza e de
necessidade de proteção ao crédito como se esta abstração carecesse de
guarida. Crédito, efetivamente, sinônimo de confiança, não depende
de nenhuma proteção: tem-se ou não se tem! O objetivo é salvaguardar
não o crédito, que não carece de proteção, afinal é da sua natureza a
expansão e circulação. Quem depende de proteção é sim o credor, para
não ser enganado na “confiança” atribuída a outrem. Todavia, não
lhe é dado utilizar-se de meios antidemocráticos para se guarnecer na
atividade que desempenha já devidamente recompensada em razão dos
riscos assumidos.
Veja, pois, que o fato das empresas prestadoras destes serviços
(entes privados com fim lucrativo, ou em favor das associações
comerciais e financeiras que os mantém) serem denominados de órgãos,
não se trata de um mero detalhe, mas maledicência para induzir a erro,
sobretudo as pessoas mais simples e que não têm a noção exata destas
distinções, embora conheça a sobrecarga do título que lhes são dados.
O terrível é que este vício perpetua no mundo jurídico, inclusive e
lamentavelmente, em decisões judiciais. Só não dizem que diante desse
sabido erro jurídico está favorecendo alguém e seus interesses.
Com todo este contributo jurídico o credor utiliza-se de tais
cadastros de registros de inadimplentes como instrumento de coação

132
ao devedor, no mesmo sentido do desforço imediato proibido pelo
direito, chantageando-o ao cumprimento da obrigação. Afinal, ao
contrário do ponto de vista jurídico a inscrição do nome do devedor
em cadastros de inadimplentes constitui efetivo prejuízo ao credor
(senão na ótica da permissão de chantagem e coação), porque não é
requisito necessário para o ajuizamento de qualquer ação judicial ou
outra providência extrajudicial tendente à satisfação de seu crédito.
Este é o único objetivo almejado pelo credor ao promover a
inserção, ou seja, criar verdadeiros embaraços ao devedor. E haja
embaraços! O credor ao publicizar a pecha de mau pagador força seu
devedor – de modo coativo e com abuso de direito, sem qualquer
processo devido – a saldar a dívida, pois a permanência do registro
negativo trará grandes percalços e atribulações a sua imagem e
reputação. Diversamente, é o verdadeiro tiro no pé dado pelo credor,
já que cria dificuldades ao devedor para obtenção de recursos para
satisfação da dívida.
Por derradeiro, o fato do Código de Defesa do Consumidor
fazer referências a estes entes não lhe dão legalidade ou ares de
constitucionalidade as suas atividades, embora seja uma tentativa e
argumento.
É bastante simples e cômoda esta premissa, porque busca camuflar
algo tirano no cerne de uma legislação garantista e democrática. Esse
é o método do Estado de Exceção (Giorgio Agamben)107, forma de
atribuir aspecto de constitucionalidade a determinado instituto ou
organismo que isoladamente seria clara a contrariedade com a ordem
constitucional, escamoteando-o no bojo de uma lei completamente
diversa, nesse caso com a sua inserção enviesada no corpo da legislação
consumeirista (art.43, Código de Defesa do Consumidor). Observa-se
que referida legislação não trata de cadastros de maus fornecedores, o
que seria razoável dada a sua natureza e fins.

107
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Tradução Iraci D. Poleti. 2ª ed. São
Paulo: Boitempo, 2004 (coleção Estado de Sítio).

133
Ainda que haja aquela previsão é importante ressaltar o art. 42,
também do Código de Defesa do Consumidor que assim enuncia: Na
cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo,
nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.
O lançamento do nome do devedor em cadastros negativos, sem
devido processo, não é forma concreta de exposição ao ridículo, ou não
representa constrangimento ou ameaça? Quantas e quantas decisões
judiciais tem evocado esta disposição?
XXI
O QUE NÃO ESTÁ NOS AUTOS NÃO ESTÁ NO MUNDO!

E então, onde está?

O brocardo é tão antigo e intocável que tem grafia em latim e


por vezes utilizada pelos mais pedantes: Quod non est in actis non est in
mundo!
Mas espera aí! O mundo não se reduz aos autos. A propósito,
o mundo seria muito melhor se não fossem os autos ou se deles não
dependesse. Afinal, autos significa, neste caso, demanda, processo,
conflito.
Sendo então inevitáveis, será que fatos notórios, sentidos
socialmente, são imperceptíveis ao juiz se não tiverem registro nos
autos? É a ordem principiológica do direito, sobretudo quando se
asseguram os direitos fundamentais, invenções de jusfilósofos servindo
apenas para embelezar o texto constitucional?
E como se revelam os fatos nos autos? Como se veem a riqueza
e a pobreza, a fome e o desperdício, a ganância e a miséria, a exploração e
a humilhação, os direitos e a indiferença, as desigualdades e a necessidade
de igualação, o público e o privado, a função social do Estado coexistindo
com a imposição cada vez mais acentuada para um Estado mínimo? Num
simples invólucro de papel? Num amontoado de páginas que prezam mais
o rigor formal do que as descrições das pretensões?
Como se verifica o desequilíbrio palpável, porém não resumido
a termo entre as partes? É o juiz um agnóstico a ponto de aceitar o
princípio da igualdade na perspectiva meramente formal, isto é, basta
acolher o primado pela visão liberal de que todos são iguais perante a lei?

135
A possível e desejada figura do juiz asséptico (por alguns), como
se vivesse numa urna de cristal, de tal modo insensível que não possa
experimentar reações mentais ante os acontecimentos do mundo
exterior, é inconcebível. Não há como o juiz deixar de conhecer as
coisas fora do estreito mundo processual, porque também é um ente
social que ocupa espaço na coletividade e dela participa e interage.
Não existem dois mundos: o dos juízes e dos comuns mortais. Não
há como, portanto, ser imune às questões externas porque não existe
também na antessala do gabinete um módulo para que faça uma
“descontaminação”, deixando de ser cidadão como qualquer outro sem
vínculo com determinada ordem de ideias sem que se compreenda o
mundo sobre suas próprias análises.108
A quem interessa, então e afinal, o aforismo: Quod non est in actis
non est in mundo!? (o que não está nos autos não está no mundo!?).
Fosse para beneficiar o mais fraco na relação processual – ainda
que por vezes se ouçam vozes surdinas entoando o brocardo em prol
de acusados em processos criminais – a máxima não estaria aí tão
presente. Tudo é feito em nome do direito e da segurança jurídica, não
podendo as partes serem surpreendidas com aquilo que não está nos
autos.109
Ah, mas isso atende muito bem o interesse daqueles que
têm a oportunidades, meios e condições de trazer aos autos o que
lhes importam. E para os demais (grande maioria)? É justamente o
fragilizado que tem maiores dificuldades de revelar, nos autos, sua

108
S OUZA, Artur César de. A Parcialidade Positiva do Juiz. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2008. p. 136.
109
 Direito, consequentemente, antes de ser um agente conformador ou transformador da
O
convivência social, é, quase que exclusivamente, um instrumento assegurador de determinado
modelo dessa convivência, o que só alcança em virtude de sua impositividade que, por sua vez, o
vincula necessariamente ao poder político institucionalizado. Sem poder não há impositividade
e sem impositividade não há Direito. Correto, pois, afirmar-se que Direito e poder político são
indissociáveis. (PASSOS, J. J. Calmon de. Direito, poder, justiça e processo: julgando
os que nos julgam. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 51)

136
própria existência (como indivíduo que merece tratamento igual,
por isso sujeito de direitos, mas que para isso depende de ser tratado
desigualmente), suas debilidades e clamor por justiça.
De uma coisa é certa. O aforismo em nada serve a esses que não
têm acesso ao processo no sentido de efetividade de defesa de seus
direitos, porque não conseguem reproduzi-los em formas processuais
adequadas, embora em si seja a própria forma de suas negativas.

137
XXII
OBJETIVAMENTE, O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ
NÃO COMPORTA O ADENDO “OBJETIVA”

Melhor seria: má-fé subjetiva do intérprete.

Na ciência do Direito existe uma enorme prodigalidade, seja na


doutrina ou na jurisprudência, para invenção de termos e expressos
que se dizem jurídicas. Quanto maior o peso do precursor do novo
termo, maior será sua aceitabilidade e perspectivas de alta reprodução.
Nisso, tem muitos aficionados em ser genitor de uma nova expressão ou
vocábulo (na maioria das vezes apenas um péssimo sinônimo lançado
para o que já está definido), seduzidos pelo possível reconhecimento
em razão da paternidade, ainda que sejam umas estultícias jurídicas
ou expressões completamente sem nexo e sentido com aquilo que
quer representar, mas que acabam ganhando destaques em virtude da
herança genética que traz.
Associado a isso – sem deixar de ser também consequência do fato
anterior – existe outro fenômeno por detrás de algumas dessas criações
bizarras. Nesse caso, regiamente orquestrada e quase sempre maliciosa.
Trata-se da ficção de quem realmente tem quilate jurídico, e justo por
conta do pedestal de sua respeitabilidade, é convocado para instituir
determinada praga jurídica com o fim de socorrer interesses mediatos
ou futuros, de quem os pagam a bom preço. Com essa incumbência
lançam termos e expressões relativamente sem nenhum denodo
especial, conquanto sobrecarregados de mensagens subliminares
que acabam passando ofuscadas pela engenhosa justificativa dos seus
mentores e nas artimanhas verborrágicas para o seu uso, rapidamente
disseminado. Em regra têm sutilezas ideológicas (como de resto todas
trazem, por mais que impensadas) para justificar uma situação jurídica
vigente ou fomentar novos privilégios aos mais aquinhoados.

139
Para aumentar o prestígio da nova criação é comum dar-lhe o
status de princípio110, quando efetivamente nada disso o é, ou ainda,
aproveita-se de algum princípio existente e nele insere um acréscimo
com o fim de desvirtuar ou modificar completamente seu sentido
original. Isso é sabido por quem o faz e calculadamente realizado.
Essa conduta adequa-se aquela segunda hipótese acima referida
– de maledicência no dizer jurídico para atender interesses certos e
encomendados – e não raro acontece, ainda que passe doravante
despercebido no uso corrente, como realmente é o desejo de seus
criadores.
Feita essa introdução, digo que esta situação está acorrendo em
face ao princípio da boa-fé, expresso no art. 422 do Código Civil, no
capítulo que trata das relações contratuais. O texto legal não insere em
momento algum o adendo objetiva. Porém isso foi acoplado tão logo
passou a viger o novo Código (2003) que não deu sequer tempo de
refletir sobre o verdadeiro significado do princípio. Trata-se neste
caso de mais uma das mencionadas invenções doutrinária, feita sob
encomenda, para não dar vazão a amplitude e real sentido ao princípio
da boa-fé, querendo mesmo enterrá-lo no seu nascedouro.
Os prosadores da velha dogmática apossaram-se então do
mencionado princípio e acresceram-lhe a palavra “objetiva” para soar
ao oposto ao que de fato constitui seus propósitos. A rigor deu-lhe uma
nova roupagem com o uso deturpado da linguagem a fim de possibilitar
a reinterpretação – agora com maior dureza – da ideia de que o contrato
é lei entre as partes (princípio do pacta sunt servanda), antigo preceito
gestor das relações contratuais no Código Civil de 1916 e que havia
acabado de ser derrogado com a novel legislação.
110
 esta mania de se sair por aí lançando infinitos termos como se fossem princípios
A
– fugindo a própria ideia que em si enseja a etimologia do termo, de início, de
primeiro – é duramente criticada, e com razão, por Lenio Streck, ao que denomina
de pan-principiologismo “[...] verdadeira usina de produção de princípios despidos de
normatividade.” In: STRECK, Lenio Luiz. O pan-principiologismo e o sorriso do
lagarto. CONJUR. Consultor Jurídico. Ed. 22/03/2012. http://bit.ly/1hSyv0o.
Pesquisa em 08/10/2013.

140
No fundo a utilização do termo, com o despudor do adjetivo
objetiva, no primeiro momento um vazio na sua essência, um nada,
mas que depurado o resultado da sua interpretação a partir da inserção
indevida do termo não contido no texto legal, consegue atender
aos interesses positivistas daqueles que não veem a possibilidade de
discussão de cláusulas contratuais, porque o pacto continuaria sendo
vontade inconteste entre os contratantes. Eis o resultado: o uso só
se dá em favor daqueles que, sob este falso preceito, nega direitos
fundamentais e impõem contratos adesivos e regados de cláusulas
abusivas, ou contrárias ao outro princípio geral que é da função social
do contrato.
De fato. Como na redação legal não existe o adendo objetiva, o
que aparentemente parece ser um adereço importante (ou inverso,
irrelevante), converte-se num verdadeiro engodo com o fito de negar o
próprio princípio. O acréscimo inserido na sua redação, como se fosse
um enfeite ou algo necessário a complementá-lo, age silenciosamente
em sentido inverso nulificando o conteúdo principiológico. Isto é,
embutindo-lhe o termo objetiva dá-lhe nuances de melhor técnica e
precisão, conquanto, entroniza-lhe extravagâncias e incongruências
que são absorvidas cegamente sem mínima perplexidade ou análise
sobre seu contexto.
O fato é que não se mede princípio com régua ou a partir
de uma planilha, onde se tem cumprido parcialmente ou não o
contrato. Princípio, por sua natureza, transcende as minudências e
particularidades de cada caso. O que é princípio alcança a situação abstrata
e não a abstração de quem o avalia, ainda que traga consigo uma enorme
carga de subjetividade.
Não se pode, portanto, na esteira de um princípio afetar
determinada situação nas suas extremidades sem se conhecer o todo.
O princípio envolve o conjunto onde os elementos são as normas.
Sendo assim, a norma não sobrevive sem uma imersão no conjunto
dos princípios.

141
Nesse passo, se o contrato é firmado apoiando-se em normas,
mas nem assim avança sobre toda a extensão do regramento específico
sobre o tema, não é razoável pinçar um fato e sobre ele aplicar uma
interpretação que escoe da própria base principiológica sem que
com isso se estenda o olhar sobre o todo. Não há como fatiar o que
é princípio, seja para aproveitar parcela do que nele se traduz (o que
seria impossível, porque é um todo) ou, mesmo desnaturando-o, com o
intuito de dar-lhe conotações por vezes opostas ao que verdadeiramente
quer refletir.
Nesse passo o embutimento do adereço objetiva (como que fazer
linguiça) traz-lhe repercussão completamente diversa. Esse acréscimo
é sim fruto de abstração e distintamente da ideia de objetividade
denota, ao revés, aspecto claro de extrema subjetividade. Aliás, o termo
“objetiva” em si contrapõe a própria ideia de boa-fé. Boa-fé é resultado
da subjetividade do indivíduo, associado aos seus costumes, hábitos, práticas
sociais e morais acolhidas em determinado tempo. Não existe, porquanto,
boa-fé sob a perspectiva objetiva, porque isso não é descritivo ou enunciado
num tábua de leis.
Noutro parâmetro, para que se invoque o princípio da boa-fé é
importante situá-lo (não encontrar suas modalidades) no próprio
ordenamento civil. Veja que referido princípio foi alocado imediata e
posteriormente ao princípio da função social do contrato (art. 421), ambos
integrantes do capítulo que trata das disposições gerais dos contratos.
Porquanto, não se pode analisar nenhum desses princípios
isoladamente, porque de modo efetivo se complementam.
Mais do que isso. É salutar destacar que a legislação civil
editada em 2003, suplantando o Código Civil de 1916, traz uma
perspectiva inovadora em relação aos contratos. Antes, dizia-se que
o contrato era lei entre as partes (o que a doutrina denominou de
pacta sunt servanda) e, porquanto, somente em situações extremadas,
cabendo ao descontente demonstrar vícios do consentimento, havia a
possibilidade de modificação, revisão ou sua extinção. Porém, mesmo

142
diante dessa leitura, ainda que tênue, havia um campo e possibilidade
de demonstração do vício.
Mas a astúcia de alguns, fixados na velha regra suprimida,
como promotores de lições soberbas sobre as quais poucos param
para pensar, num passe de mágica fez ressuscitar agora com maior
morbidez o antigo brocardo. Sob os auspícios de uma objetividade
impossível e que foi inserida de forma maliciosa no princípio da boa-
fé, transformou-se o ultrapassado dogma – de que o contrato é lei entre
as partes –, mesmo que excluído da redação legal, em algo muito mais
severo, porque doravante quem não o cumpre ofende a boa-fé objetiva
[Contratou porque quis! (!?!)].
Com essa criação teratológica fez ressurgir uma das maldades
do Código de 1916 (pacta sunt servanda), agora com muito mais rigor,
porque entrega ao intérprete a liberdade de navegar para onde seus
(pre)conceitos objetivarem (que busca um objetivo).
Neste sentido, a boa-fé objetiva nada mais é do que a má-fé
subjetiva do intérprete.
Admitindo-se o estorvo nominativo, com o aditivo da palavra
“objetiva”, o princípio da boa-fé inserido nas Disposições Gerais dos
Contratos do Código Civil de 2003 (é necessário identificar com
precisão onde está alocado, para se compreender da necessidade de
se fazer uma leitura sistemática, e não isolada, embora mesmo assim
resiste a essa insinuação deturpada que lhe meteram), por obra de
algum(ns) renomado(s) jurista(s), a serviço de interesses meramente
mercadológicos e privados, faz com que o primado seja relegado,
permitindo uma interpretação que retrocede, antes de 1916.
O princípio da boa-fé ao contrário do arremedo que lhe querem
dar, revela “sinceridade”, “confiança”, “justeza”, “compartilhamento
de interesses” – não que sejam necessários iguais ou proporcionais
vantagens aos contraentes – enfim, sincronismo entre as partes quanto
ao proveito contratual. Pelo princípio da boa-fé busca-se exatamente

143
estabelecer e preservar o equilíbrio de modo a não tornar o contrato
extremamente promissor para uma das partes e oneroso em demasia
a outra. O adendo “objetiva” é, senão, obra intencional para anular
está interpretação e a possibilidade de discussão do contrato (seja para
rever, modificar ou rescindir), sobretudo porque se está a interpretar
a legislação civil de forte e evidente ascendência sobre interesses
econômicos e privados
Assim, a expertise de quem fez acrescentar o termo “objetiva”
ao princípio da boa-fé foi algo deliberado e claramente preparado para
atender às velhas práticas, fazendo dos antigos dogmas preceitos
renovados com maior eficácia. O que era lei entre as partes, num simples
jogo de linguagem passou, para além de sê-lo, algo quase imutável e
intransponível. O contratante dissidente (em regra o polo mais frágil
da relação contratual) passou a ser um “salafrário”, um “malfeitor”, um
“espertalhão”, um “malicioso” que conscientemente realizou o contrato
e agora não quer honrá-lo, etc. Mesmo que se queira invocar vícios
do negócio (vícios do consentimento e sociais), em contraposição
se insistirá na tese da boa-fé objetiva para afastar qualquer situação
justificadora.
Deve-se ter claro exatamente o que significa boa-fé, partindo-
se, necessariamente, da premissa de que é a regra nas relações
humanas e aquilo que dela foge exige demonstração explicita e não
simples proposições, principalmente quando exercidas sobre bases
preconceituosas e discriminatórias negativas111.
A consciência no ato de contratar, a vontade deliberada em
pactuar, o conhecimento prévio das condições contratuais, nada
disso interfere na possibilidade de invocação de boa-fé para revisão,
modificação ou extinção contratual.

111
 iscriminação negativa – em contraposição à discriminação positiva, permitida e
D
constitucionalmente assegurada – é situação em que o indivíduo é colocado abaixo
da linha da igualdade, deliberadamente, sendo por isso inconstitucional.

144
Boa-fé sobrepõe a vontade primária dos contratantes, por vezes
enganados na sua intimidade quanto aos proveitos daquele pacto. A
ilusão (imaginou que conseguiria cumprir o contrato) não exclui a
ocorrência de boa-fé no ato de contratar e não impede a rediscussão do
contrato. De igual modo o engano quanto ao sucesso do contrato também
não macula a boa-fé, porque sendo recomandado que o indivíduo acerte
na prática de seus atos jurídicos, nem por isso é obrigado a assumir o
fracasso do negócio, se não decorreu de ingerência sua.
Neste contexto, a boa-fé é presumida porque regra de conduta,
não carecendo de adjetivação (objetiva que em si diz o oposto do que é
dado como de boa-fé). A má-fé, ao contrário, é a exceção, cabendo a quem a
alega sua demonstração.
Não se quer, com isso, afastar a atenção ao que voluntariamente
às partes entabularam num contrato. Porém, é mais do que certo que
ninguém contrata sabendo de antemão que aquilo lhe trará prejuízos.
Fora isso, não haverá boa-fé.

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