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Era uma gélida manhã de outubro no Ducado de Avelan, pertencente ao


Reino de Aurácia. Nos estábulos do Castelo, Lálio, primogênito do velho duque,
despontava montado em seu vigoroso alazão, seguindo às montanhas baixas,
que circundavam a modesta finca da família de Sofia; situada à sudoeste, nos
limites pertencentes aos domínios do Estado. À cada sábado, ao percorrer este
mesmo trajeto, Lálio, buscava um encontro fortuito com a bela campesina, que
por sua vez, o ignorava. Nesta manhã, os ventos pareciam soprar a favor do
nobre, que, imerso em suas próprias expectativas e não se importando com as
origens humildes de Sofia, havia decidido propor-lhe casamento.
Ao aproximar-se da propriedade, avistou a moça, no umbral da porta,
envolta nos braços de um rapaz desconhecido. Por um momento, Lálio
permanecera estático, fitando o galante forasteiro que, estranhamente,
arrancava longas risadas dos que estavam dentro da casa. Transtornado, sua
atenção voltou-se ao rosto de Sofia e, observando que do seu sorriso tímido,
emanava uma alegria genuína, ele puxou vigorosamente as rédeas do seu
cavalo, partindo a galope.
De volta a fortificação, Lálio foi surpreendido pelo aviso de morte do seu
pai, o Duque de Avelan, que, acamado há um mês, sucumbira à uma doença
misteriosa. Das atalaias1, ressoaram trombetas fúnebres junto às folhas
ressequidas, que se desprendiam dos carvalhos. Uma missa fora celebrada na
capela abobadada, no pátio do Castelo e na aurora seguinte, o primogênito dos
quatro irmãos Avelan, com dezoito anos, foi aclamado o novo senhor do ducado.
Durante os dias que se seguiram ao luto, pesadelos assaltaram o duque
de maneira penosa. Burburinhos entre os serviçais, segredavam detalhes do
inesperado casamento de uma campesina, Sofia, com um forasteiro chamado
León. Este enlace destruiu nele, a esperança de tê-la ao seu lado.
No espaçoso leito de Lálio, as paredes recobertas por cortinados pesados
debruados em fios dourados e os candelabros de ouro maciço, tornavam-se
desprezíveis. Ele se levantou angustiado sentindo as mãos suadas; o ambiente
opressivo daquela câmara sombria, parecia infinito. Subitamente, lembrou-se de
algo que mudaria tudo. Era preciso agir de imediato.

1
Atalaia, em arquitetura militar, é uma torre ou lugar elevado, de onde se vigia o território
circundante. Normalmente integra o sistema defensivo de um castelo, sendo distribuídas em lugares
estratégicos na área ao redor.

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A madrugada soprava um forte vento sul e sob a penumbra da lua nova,
Lálio cruzou a galope as montanhas de Aurácia; seus cachos de cabelo negro
revoltos, luziam na escuridão, o tom de ébano mais escuro. No centro da planície
ele vislumbrou a finca de Sofia. Os carneiros apinhados no cercado de madeira,
berraram à sua chegada; o duque apeou do cavalo.
Inesperadamente, a silhueta da jovem se projetou por entre as vidraças
enevoadas da residência. Sofia abriu a porta de madeira e o rangido agudo soou
brevemente naquele espaço de tempo. Ela segurava um castiçal e a chama
suave da vela iluminava seus lábios rosados, quando perguntou:
— Senhor, o que faz aqui a esta hora?
O vento adentrou no ambiente e a chama se apagou.
— Preciso falar-lhe... — disse Lálio, gesticulando de maneira nervosa.
— O que aconteceu? — indagou Sofia, franzindo o cenho — chamarei
meus pais em seguida.
Ela virou-se caminhando ao interior da casa. Lálio não hesitou, e com
apenas três passadas largas, envolveu-a nos braços, tapando sua boca
violentamente. Tentando gritar, Sofia se debateu e derrubou o castiçal de metal
no chão; a porta de saída permanecia aberta e a ventania penetrava nos
cômodos. Neste embate, ela tropeçou, golpeando a própria cabeça. Do quarto
dos pais escutaram-se ruídos, entretanto, segundos depois, o duque
desapareceu a galope, com a moça desacordada nos braços.
Logo, uma massa de ar frio dominou a região; nuvens baixas pintaram o
céu ao mais puro tom cinzento e uma tempestade se precipitou, tornando o
caminho cada vez mais enlameado. Os cascos do alazão formavam uma linha
sinuosa por entre as colinas. Lálio conduzia Sofia à uma antiga propriedade
desabitada, pertencente ao Ducado de Avelan, o Castelo de Vinha, situado a
alguns quilômetros da principal fortificação do ducado, residência dos Avelans.
A imagem do Castelo, adossado pelo cume de uma montanha escarpada,
imerso na densa floresta de Aurácia, onde outras colinas o abraçavam ao centro,
renovava a obstinação do rapaz, em ter uma nova vida ao lado de Sofia. Os
portões de ferro se abriram e no segundo andar da torre de menagem2, ela foi

2
A torre de menagem ou Torreão, em arquitectura militar, é a estrutura central de um castelo
medieval, definida como o seu principal ponto de poder e último reduto de defesa, podendo em alguns
casos servir de recinto habitacional do castelo.

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repousada ainda adormecida, sobre o lençol de uma cama com estrutura de
dossel. Raios cortavam o céu e emanavam de maneira cadenciada, uma potente
luz que iluminava a túnica branca da menina. Lálio, tirou de dentro do seu gibão
purpúreo, um pequeno frasco de vidro; o líquido incolor cintilava. Ele sacou a
rolha de cortiça, e instantaneamente, o aroma da árila se espalhou no ar. A chuva
seguia açoitando as paredes da torre, quando o duque se ajoelhou, e, debruçado
sobre Sofia, embebeu os lábios dela com parte do néctar contido no frasco.
Um suave brilho esbranquiçado apoderou-se do corpo de Sofia, tornando-
o cada vez mais pálido; seu sedoso cabelo cor de mel tornou-se opaco e uma
aura espectral tomou conta dela. Menos de um minuto depois, sua energia vivaz,
pareceu tornar a habitar seu corpo e o aspecto rosáceo de seu rosto, voltou a
afigurar-se. Nada parecia ter mudado.
A luminescência da manhã seguinte, cravada sobre o rosto da jovem, a
despertou.
— Onde estou? — gritou ela ao duque, que adormecera sobre o soalho
de mármore negro ao seu lado.
Ele levantou-se energicamente, e disse:
— Os portões estão abertos e um cavalo à espera do lado de fora, você
está livre! — Seus profundos olhos azuis reluziam um tom ainda mais oceânico.
Sofia marchou-se da torre em silêncio. Um robusto corcel branco de
manchas castanhas estava apeado à sombra de um pinheiro.
Ao aproximar-se de volta à finca, ela escutou vozes distantes que
chamavam seu nome; eram seus pais e León.
— Mãe? Estou bem, vamos para casa — gritou a menina.
Sua mãe, porém, seguiu caminhando sem nada escutar. Sofia desmontou
apressadamente e correu em direção a León.
— Não entendo por que não me respondem. Olhe para mim, por favor. —
A fisionomia do camponês permaneceu inabalável.
— Sofia! — gritou ele, perscrutando o horizonte.
Neste momento, ela percebeu o seu terrível destino. Durante as noites
que se seguiram, os agricultores da vizinhança uniram-se à família, munidos de
tochas embebidas pelo fogo, em busca da jovem por toda a extensão do Ducado
de Avelan.

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Sofia regressara ao Castelo de Vinha; sua beleza fora consumida pela
tristeza que inundara a sua alma. Lálio descia as extensas escadarias do salão
principal, quando ela o avistou e disse friamente:
— Lálio, você destruiu a minha vida, eu só existo para você.
Ele parou subitamente.
— Estaremos juntos por toda a eternidade! — exclamou, deixando cair
um frasco de vidro do seu punho cerrado pelos degraus de madeira. O duque
sorriu, ainda sentindo nos lábios o doce sabor do néctar da árila. — Agora somos
iguais.
O sol de meio-dia irradiava uma luminosidade morna. Ao lado de uma
janela envidraçada, Lálio, de beleza viril e rosto delineado por traços marcantes,
estava parcialmente obscurecido pela penumbra.
— Agora percebe o porquê de tudo isso? — Ele sorria de maneira
histérica, abrindo os braços, como se buscasse um abraço de conforto.
Sofia empalidecera.
— Como isso pode ser revertido? Viveremos assim para sempre?
— O que está feito, está feito. Não se pode mudar.
Indignada, a moça abandonou o Castelo de Vinha e desceu a encosta
escarpada, adentrando na floresta. Lálio por sua vez, tinha certeza que ela
voltaria. E esperou.
A campesina passou a acompanhar o dia a dia da família na lavoura de
trigo, e, durante a época da colheita, derramou lágrimas amargas ao perceber
que a safra fora completamente perdida. Sofia dava-se conta de que seus pais,
pouco a pouco, sucumbiam a tristeza de perder sua única filha. Numa tarde
escura, a moça apeou do corcel e contemplou seu quarto da exata maneira que
abandonara. Sofia pousou os seus olhos negros, no pesaroso rosto da mãe, que,
na cozinha, colocava a mesa do café da manhã, sem notar a sua presença.
A cada pôr do sol, a moça acercava-se à sua antiga casa, montada no
corcel acastanhado que lhe fora confiado àquela madrugada terrível. Desde
então, sua mãe percebeu a presença de um estranho cavalo que rondava a finca
por volta do mesmo horário e, passou a nutrir lentamente, uma carinhosa afeição
pelo animal. A esperança de encontrar Sofia, se esvaia e o semblante de sua
mãe fora duramente marcado por sua falta.

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O povo concluíra que Sofia teria fugido com o duque, pois ele também
havia desaparecido misteriosamente no mesmo dia. Ao passo dos meses, León
refizera sua vida ao lado de outra mulher. Buscando ajudar os pais de Sofia,
passou a cultivar suas terras, preparando-as para o próximo plantio.
Os irmãos Avelan dividiram o espólio do velho duque em partes iguais
mas mantiveram o Castelo de Vinha desabitado. Uma criada de saias
farfalhantes passou a limpar seu interior sempre aos sábados, mas, abandonou
o serviço depois de algumas semanas, pois como ela dizia aos que lhe davam
ouvidos: “O tilintar dos vitrais parecem sussurrar um segredo terrível”.
A menina sentia-se cada vez mais impotente frente à própria existência.
Lálio ainda aguardava seu retorno ao castelo e, semanas depois, Sofia cavalgou
até as colinas do Castelo de Vinha, coberta por um longo manto escarlate, que
esvoaçava desde o platô. Relâmpagos luziram no céu à sua chegada e uma
tempestade rapidamente se formou, retumbando trovoadas. Lálio acompanhava
seu retorno a fortificação desde o torreão mais alto, mas a moça não cruzou o
portão. Desde a montanha, ela lançou ao seu algoz, o olhar mais desprezível
que a luz da lua jamais presenciou.
Atordoado, o Duque de Avelan correu aos estábulos e despontou da
fortificação, montado em seu alazão. Sofia escondia-se entre os montes e o
rapaz clamava o nome dela, mas nunca obtinha resposta. A perseguição se
seguiu durante meses.
Muralhas de reinos distantes eram cruzadas, as estações do ano se
desenhavam, e se desvaneciam. Eles atravessaram terras bárbaras, onde
batalhas épicas eram travadas, sem nunca terem sido vistos pelos demais.
Finalmente, numa tarde de primavera, Lálio perdera o rastro da jovem por entre
um vale montanhoso, cortado por um afluente de águas cristalinas.
Lálio retornou ao Castelo de Vinha e durante os seguidos meses de seca
que assolaram o ducado, não tornou a ver a menina montada no corcel
acastanhado. Os poços de todo o reino secaram e o céu conservava seu
espectro sem nuvens, pois, junto à Sofia, as chuvas que fertilizariam as terras
se extinguiram.
O desespero tomava conta dos habitantes e os irmãos Avelan não podiam
atender aos pedidos dos famintos que se apresentavam às muralhas da
fortificação; a estabilidade do ducado se via ameaçada. Numa noite quente, uma

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multidão de agricultores armados de foice, cercaram o Castelo de Avelan,
pedindo água e comida.
Alheio a todo o frenesi, Lálio se desesperava pela ausência de Sofia. Seu
último olhar de desprezo devastara sua alma. O rapaz sentia o coração
descompassado, e julgava perder a cabeça; o sumiço da jovem, tornou as flores
murchas, o solo estéril, a grama sem vida, e os carvalhos frondosos tombaram,
velhos e quebradiços. A natureza se desvanecia e Lálio sentia a culpa profunda
que recaíra sobre seu corpo, como um peso à sua consciência falida.
Quando tudo parecia perdido, o relincho do corcel acastanhado ecoou
pela cadeia de montanhas do Reino de Aurácia. Era noite e, surgindo desde a
colina, ao borde do penhasco, em frente ao Castelo de Vinha, Sofia brilhou,
novamente acompanhada de uma tempestade sem precedentes. Lálio fitara sua
aparição, como se ela fosse sua própria salvação; ele precisava do seu perdão.
Seus dias eram dedicados a vagar pelos campos áridos e suas noites tornaram-
se insones.
Desorientado, o duque caminhou passos trôpegos pela escadaria do
castelo e chegou ao pátio, atravessando o portão instantes depois. Sofia
encarava-o de maneira impassível, seu olhar distante poderia causar
desconcerto ao mais austero camponês. A borda do manto vermelho da moça
estava enlameada e sua elegância espectral, fora unida à majestade do cavalo.
Lálio cavalgava no terreno encharcado pela tormenta, em direção à Sofia,
quando o seu alazão empinou. Desmontando, ele seguiu caminhando, e, como
num sonho lúcido, nada mais avistava a não ser a bela Sofia; por instantes
fugazes, ambos se entreolharam. O aguaceiro inundava a porção de terra onde
ele pisava, quando impetuosamente, Lálio foi arrastado pela correnteza que se
formava, caindo do penhasco. Sofia assistiu a tudo perplexa.
Os poços de todo o Reino de Aurácia se encheram novamente. Ao fim de
cada entardecer, Sofia retornava à finca de seus pais. Os anos fundiram-se no
tempo. Sua mãe passou a alimentar e dar água fresca ao corcel que sempre lhe
visitava. Quando a noite caía, ela compreendia a poesia do cavalo selvagem,
que era livre para não ser de ninguém.

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