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CLAUSURA

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CLAUSURA

SANTIAGO FONTOURA

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Capa, diagramação e revisão
Santiago Fontoura

Ficha catalográfica

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Em meio à tempestade, quando minha fé foi colocada à prova, Deus,
em sua imensa misericórdia, me deu amparo, me colocou na neces-
sária clausura e acionou filhos e filhas nobres de alma, que foram
imprescindíveis no mais tenso e arrasador momento da minha exis-
tência. Por isso, esta obra é dedicada a:
Eva Marlene (minha mãe), Bruno Fernandes (meu irmão), João Pe-
dro Fontoura e Marina Santiago (meus filhos), Grace Karla Sodré,
Jorge Augusto, Sérgio Marconi, Leila Pimenta, Rodrigo Taveira, Mau-
rício Machado, Raimundo Botelho Costa Jr., Marcelo Fuezi, Márcio
Almeida, João Filho, Állex Leilla, Alessandro Castro, Joaquim Roriz,
Milka Roriz, Gustavo Felicíssimo, Carol Costa, Igor Adorno, Suely
Barbosa, Ruan Pablo Barbosa.

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A reabsorção da circunstância é o destino concreto do homem.
José Ortega y Gasset

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LIMBO

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Só os indivíduos rachados possuem abertura para o além.
Emil CIoran

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Eutanásia

Antes houvesse na barriga um rei


do que este deus corrompido na alma.
O fetiche do pecado e a razão dissimulada
de meros deslizes se tornaram lei.
Do presente constante fiz eternidade
e travesti o belo, o justo, o verdadeiro.
À covardia dei o nome de coragem
e os livros, fechados, eram pose e apego.
Já era tarde quando se fez vivo o Espírito
pois a morte, sutil detalhe, fora anunciada.
Ainda soberbo, fiz do fim o único ato digno
– e que Deus tenha misericórdia de mim.

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Morta

Fossem flácidos apenas os seios


nenhum terremoto abalaria o desejo de amar.
Mas a flacidez da alma,
acidentada pela ausência de Deus,
se contorce entre a amargura e o delírio
de dar vida a quem já morreu.
Quando cinza for apenas uma cor
– e não mais esse doloroso existir –
já terá sido tarde.
E aquilo que jamais se doou
se fará pleno na superfície do disfarce.
Servirá de consolo a pobre condição
de seios plastificados e contentes
na efêmera volúpia de um amor sem eternidade.

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Cinzas

O amor deveria ser maior


do que os pratos mal lavados,
maior do que a estúpida espera
por dias perfeitos.
Deveria se regozijar
no prazer da morosidade
que denuncia a ausência
do vigor da juventude.
O carinhoso cobertor
que protege do frio,
o café que dispersa o sono
dos estudos vespertinos,
a promessa de envelhecer
lado a lado revelam tudo
o que o amor deveria ser.
Mas como deuses fabricados
sob a ferrugem da soberba
e da renúncia dos rituais,
na medida do possível,
ao amor foram dedicados
míseros segundos de entrega.
E até hoje parecem intermináveis
as horas tensa repletas de medo.

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Toque

Não há amor que sobreviva


à ausência do toque.
O dedo em riste
e os sermões das verdades
autoproclamadas
camuflam a covardia
colocada em prática.
O desejo de moldar
o mais coerente,
e por isso mesmo,
fraturado espelho
desabilita o já esquecido
ato imprescindível:
esse que faz da pele
entre os dedos
gesto suficiente
para dissolver
o maior de todos os medos.

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Metástase

Não há amor que enrijeça


sem a sutil violência
do carinhoso predador.
Frescuras e chiliques
se se tornam arestas
matam com requintada maldade
a intenção viril da besta-fera.
E, então, o que resta
é a desastrosa obediência
de um bicho manso acuado
que penetra apenas
quando solicitado.

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Fim

A farda do soldado não cabe no homem livre.


Sob vigilância constante, a liberdade, submetida,
se arrasta entre o temor e a necessidade
de expor sua condição inata.
O desejo reprimido,
as reclamações sistemáticas,
o álcool-gel como fiel aliado
se tornaram alicerces
desse quartel, hoje, dissolvido.
Despido feito Francisco de Assis,
o homem livre não suprime
seu último suspiro:
mais afago, menos dedo em riste.
Porém, o sustentáculo espiritual
desta estrutura insana
segue sendo a fria carne do cadáver
que sugere traumas, ratifica zangas
e esquenta na alma autoritária
o gosto amargo de viver sob cinzas.

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Antídoto

O sabor da pele
cuja textura desconheço
há de servir de antídoto.
Mentiras agradáveis
contadas a alguém
em quem não me reconheço
decerto me reconectará
com a típica farsa
de uma vida sem eternidade.
Contentar-me com a superfície,
após tantos anos
de mergulhos profundos,
ao menos, tem de exorcizar
o que insiste preencher meus dias
com fissuras benquistas
– remédio ingerido
em quantidade jamais indicada.

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Carta

Entre tropeços
constantes
e raros acertos
aceitei o convite
para uma renovada
paternidade.
O vazio, há tempos,
dentro de mim, inteiro,
se encontrou invadido
por estranhas canções
que embalavam o sono
da minha menina,
pelos beijos que dela recebia
de manhã cedo,
e o abraço que lhe concedia
para amenizar o medo.
Mas o vazio teimou.
Hoje, ainda que perto,
mas tão longe,
choro em segredo
a certeza de que nunca fui digno
do amor da minha menina.
Meus gestos, contidos,
pedem perdão pela ausência
que não pude evitar.

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E somente
nos sonhos diários
ganho o conforto da leveza
que jamais entreguei
ao cotidiano da nossa casa.

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Morto

Abafados, como prenúncio de tempestade,


os dias não aquecem: morreu
o chamego cotidiano das manhãs
acordado pelo rechonchudo corpo
fazendo de mim seu amoroso agasalho.
Não há mais o beijo inesperado,
o pedido manhoso, a espera
pela recompensa depois do almoço.
Choroso feito menino no escuro,
padeço entre a tristeza e a raiva,
lamento o enlace que jamais foi intenso
e aceito a sangria dessa saudade
de esquecer o cansaço
e tomar a filha nos braços
no carinhoso caminho do sofá ao leito
– quando, sussurrando,
desejava que os anjos
fossem os regentes dos nossos sonhos.

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Empreendimento

O dia duro de trabalho


nem mesmo a noite,
esvaziada, é capaz de recompensar.
A fome, inesperada, denuncia
a dor, persistente e sem segredos,
que o suor derramado secou,
mas não curou.
Repleta de dispositivos lógicos
e cronogramas precisos,
a vida, ordeira, repudia emoções
como no calor se ignora a sede.
E as horas que passam,
ligeiras e sem alegria,
convidam ao deleite insípido:
a laboriosa confecção da morte.

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O ELOGIO DA CONVERSÃO

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Diante de Deus, está sempre a descoberto o abismo da consciência
humana: que poderia haver de oculto em mim para Deus, por mais
que eu não quisesse dizer a verdade? Conseguiria apenas ocultar
Deus aos meus olhos, mas não poderia ocultar-me dos seus.

Santo Agostinho

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Fez-se verbo

Reconhecer o erro
– destituir seu caráter de adereço.
Perdoar as más intenções
– abdicar de tê-las como amuleto.
Silenciar no auge do sofrimento
– impedir que o grito, dentro, prevaleça.
Servir em plena algazarra de deleites
– assumir o desapego da recompensa.
Amar, sem temer, os inimigos
– estancar a sangria do gesto fingido.
Morrer para o vazio da vida
– louvar a graça à luz do sacrifício.

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Dentro

Dentro, mesmo em plena solidão,


havia barulho que se sobrepunha
à banalidade sonora das buzinas.
Dentro, na mais profunda quietude,
consagração de abalos sísmicos
que nenhum terremoto confrontaria.
Dentro a vida era mero engenho orgânico
e a convicção de um espírito degenerado
no ineficiente disfarce entre sangue e epiderme.
Quando, enfim, se fez presente o resgate,
muito antes de acender velas,
entoar cânticos e frequentar templos,
de joelhos, voltei-me para a única clausura possível.
A de dentro.

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Da graça

A dor causada e a recebida


estão dispensadas do peso
de um tempo sem referência.
A eternidade prometida se faz concreta.
Frente às chagas
nenhuma lágrima merece apreço.
A vida, outrora vazia
(mais do que o túmulo no terceiro dia),
recebe a graça do perdão.
E a morte, tornada alegoria,
de agora em diante, não caberá
nas molduras que enfeitam as paredes
do remorso e da desesperança.

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Epifania

Bento, arquiteto da clausura,


fez-se vivo por milésimos de segundos
– e eu nunca mais fui o mesmo.
A conversão revirou meus espelhos,
repaginou meus livros,
me colocou de joelhos
– e eu nunca mais fui o mesmo.
A pedra firme que onda nenhuma deforma
transformou a elegância triste
em riso desavergonhado e sem medo
– e eu nunca mais fui o mesmo.
Eu nunca mais serei o mesmo.
O novo, que parece antigo,
é eterno e já não carrega segredo.
O mistério, outrora charme do intelecto,
tem rosto, propósito, graça e ressurreição.

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Resgate

Parecia não ter fim tatear no escuro


em pleno fundo do poço.
Desconhecia do abismo a beira
e ainda assim ministrava palestras,
sob a égide das verdades instáveis,
feito cego que despreza o braile.
Porém, cansado de uma vida sem plenitude,
de joelhos tornei-me grande.
E compreendi que não eram sombras as luzes.

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Caminho

Fragmentar o espelho com as mãos cerradas.


Deixar sangrar a vida.
Olhar-se em meio aos pedaços partidos
e ter a chance de se tornar inteiro.
Humilhado frente à própria imagem esfacelada,
o sujeito, sem o devaneio das consagrações,
se depara plateia na missa de 7º dia
da vítima que jamais será ressuscitada.
E com mãos ainda ensanguentadas,
faz do ínfimo estilhaço
lápis que traça verdade
no autorretrato:
suprema imagem e semelhança.

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Verdade
para Sérgio Marconi

O mais árido ou escasso


pedaço de chão
transmuta-se paróquia
a quem incorpora o sal da terra.
A fé bem-intencionada,
aprisionada no saleiro,
subverte a via crucis,
faz do atalho o caminho
pavimentado de adereços.
Livre, o luminoso sal
– tempero que dá gosto à vida –
tem por apologética missão
fazer-se presente na medida exata:
que não seja demasiado
(fazendo do mundo
mimética condição
intransponível
dos sacos plásticos);
que não seja parco
(subnutrido aspecto macrobiótico
de uma existência sem brio).

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Vida
para João Filho

Transformar o medo da morte


em preparação para o tempo infindável.
Fazer do mais sofrido gemido
consagração da conquistada verdade.
Dispensar a fingida alegria dos atalhos
para ler o mapa que orienta o caminho.
Aceitar de Deus o Amor Infinito:
mãe que enxerga rebento no filho presidiário.

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A supressão dos calendários

Começar de novo e cometer os mesmos começos:


lascívia forjada de militância política;
mágoa reguladora do afeto jamais concluído;
narcisismo camuflado de amor-próprio legítimo;
caridade como encenação cívica.
Começar de novo como quem carrega
ladeira acima a gigantesca pedra.
E sobre as costas já não pesa a cruz
– íntegro sacrifício que aponta o caminho
para o verdadeiro começo:
aquele que é novo e nunca finda.

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O elogio do Natal

Encarnado,
o corpo tornou luminosa
a escuridão do deserto,
da escassez.
O intenso e inebriante
– e por isso mesmo efêmero –
advento dos desejos,
que a desmesura sustenta,
tem seus alicerces, enfim, abalados
por uma inquebrantável concorrência.
Pois a perenidade
do Verbo feito carne
ratifica a denúncia dos filósofos,
legitima a rouquidão dos profetas,
anuncia a vida – esta que não se encerra
no intervalo entre o nascimento e a morte.

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Poema do amor fraterno
para Bruno Fernandes, meu irmão

Mesmo nos dias quentes e abafados,


frio e febre abatem meu irmão
(apesar da forte dose de remédios,
que pulverizam, e não dissolvem,
a dor que, na alma, parece sem fim).
Aflito frente à fome dos bem-aventurados,
meu irmão deseja salvar-lhes o prato
mas, ingênuo por pura bondade,
seus olhos, repletos de matéria,
desfazem, em si, a ínfima chance
da necessária autocaridade.
Somente quando meu irmão compreender
que a luz do conhecimento é mero holofote
se não houver, antes, a mínima chama do desapego,
fármacos, pães e livros se tornarão figurantes
de algo essencialmente maior. Supremo.

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Oração dos dias

A tudo dai graças:


ao que não se revela
e ao mistério, enfim, desvendado,
à dor incurável e ao amor que se apresenta,
ao desastre e à fartura,
à quietude e à conflagração.
É ilusão o que impera no breve intervalo
e nada mais se estabelece
quando o tempo se torna
a medida de todas as coisas.
Mas se a tudo damos graças,
sejam feridas abertas ou cicatrizes possíveis,
tomamos conhecimento da névoa do existir
e acatamos a eternidade.

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O equilibrista

No abismo, a escuridão é moeda valiosa


e sua única luz acessível
são couraças brilhantes como Narciso,
que, por essência, desconhece
no reflexo da superfície
a camuflagem que mais denuncia
do que esconde as profundezas inabitáveis.
O desejo sob firme regulação
e as afetações suavizadas
são trampolim para alçar voo
até a beira do abismo
– tênue logradouro
que demarca o mapa
para uma vida possível.
Pois acreditar que exista um lugar
de solo firme, fértil e distante
da beira do abismo
é apenas a efêmera e alegre maneira
de tomar atalho para uma nova queda
ao reino subterrâneo da ilusão
– espaço isento de sacrifícios.

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A dor envaidece

Ínfima ou profunda,
a dor, mais do que elogios,
envaidece.
O gosto de ser vítima
enrijece a vida de tal maneira
que nenhum artefato raro
conquistado se equipara.
A arrogância de almejar sofrimento
desconhece a libertadora humilhação.
Longe, o Cristo, humilde
nas dores da cruz, denuncia,
sem gemidos, a morte consentida
– a dispensada ressurreição.

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Antimotor imóvel

No Reino Absoluto do Relativismo


impera o absurdo de motores
que se movem infinitamente.
A exaltação de deuses
que se espalham nos espelhos
disseca como fatal inimigo
a potência única do motor imóvel.
E o que não se contrai,
se contradiz e contraria a verdade,
faz da política rito e passagem,
almeja o poder, com olhos míopes,
em busca de uma efêmera eternidade.

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Verdade roubada

A mão que apedreja


é a mesma que doa.
Mora na intenção o vestígio
do que é essencial
ou daquilo que dissimula.
Não há ação imune
aos critérios que, apesar
de isentos de textura,
pulsam na alma.
Tudo isso é o oposto
do que perfumarias ideológicas
exalam: transformam o bom
e o ruim neste lamaçal
de relatividades
porque não suportam
o gosto azedo
e necessário da sabedoria.

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Orgânico

Onde está o homem


está o gemido.
Negar o sacrifício é desaguar
no tormento dos prazeres
sem compromisso.
A dor, dentro, desarticula os ossos,
flagela flácida a estrutura dos músculos.
Acionar oráculo no espelho
aprisiona a alma numa liberdade sem freios.
E morrer se torna mero falecimento orgânico
frente à vida que apenas respira em desespero.

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São Francisco de Assis

Não há matéria que se sustente de pé


frente ao corpo despido e entregue a Cristo.
A morte da idolatria exige o ato extremo,
este que radicaliza negar posses,
acatar fome, amar sem medo.
Viver plenamente em gloriosa luta
contra os desejos, fazer dos próprios anseios
o suprimento do corpo alheio
são passos fundantes para a santidade:
a irrevogável prova de que jamais foram os céus
a morada de Deus.

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Maria

Mãe do sagrado ventre,


que intercede pelos filhos
(rebeldes ou obedientes),
nos ampara pelo caminho da vida,
que é de pedra, vidro e estaca.
Mãe que roga em favor do pecador
e assume por toda a eternidade
o consolo essencial
à remissão de nossos pecados.
Mãe que tem consigo a chave
que nos liberta da prisão
de desejos nunca satisfeitos.
Mãe que abençoa crentes, céticos
e alienados, nos acaricia o rosto
como se ainda fôssemos rebentos.
E basta este olhar de misericórdia
para sabermos, sem teses, tratados
ou aplicações lógicas, que a Verdade existe.
Palpável. Visceral. Materna.

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Ora et labora

Não perder de vistas as Escrituras Sagradas


nem desvencilhar das mãos
o movimento laborioso da enxada.
A desordenada canção dos pássaros
é a trilha sonora que embala a silenciosa oração.
Dia que nasce, noite que nos absorve,
do nascimento à morte,
ora, ora, trabalha, trabalha.

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ÂNIMA

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O homem é aquele ser que sempre se liberta daquilo que o determina,
o ser que não está submetido aos ditames do instinto. Ele não precisa
aceitar tudo automaticamente. Pode mobilizar as forças do espírito,
que são maiores do que as fraquezas psíquicas.

Viktor Frankl

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Imprescindível adereço

Na casa vazia, o homem morto vagueava


em meio a escassos móveis
e o eco das estantes.
Masoquista, o homem morto
pincelava os dedos nas feridas abertas
que jorravam sangue e ressentimento.
O homem morto oscilava
entre a angústia dos desejos
e a esperança do essencial amparo.
Na mais escura e silenciosa noite,
devidamente humilhado,
o homem morto ficou de joelhos.
E sob lágrimas e soluços,
fez da oração, na casa vazia,
o imprescindível adereço.

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Solidão

A luz que invade a janela


sem cortina e sem segredo
desvenda a noite mal dormida:
não havia lobos famintos.
Somente as paredes
de reboco envelhecido
escutam, entediadas,
discursos e lamúrias
de um homem morto
à beira do abismo.
Nas tardes calorentas,
o ventilador sussurra
a descarada mentira
do dispositivo silencioso
que a propaganda anunciara.
Formigas se aglomeram
com habitual eficiência
na pia de pratos e copos,
catando restos de comida
com a frágil esperança
de que a torneira não seja acionada.
Tudo se fez vivo quando descobri
que não é acre o sabor da solidão.

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Silêncio

Certas orações, certas canções


não passam de ruído – como se Deus
fosse surdo e precisasse de nosso barulho.
Em meio à poluição dos sons,
quando até dos pássaros
exigimos compasso,
faz-se necessária
a verdadeira subversão,
permitir-se o único ato religioso possível:
o silêncio – voz divina que o ouvido não alcança.

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Geladeira

Nenhum véu de dignidade é rasgado


na casa em que se faz presente a geladeira.
Detentora da segurança
inviável à ancestralidade,
esta simples e pesada peça,
que tão bem se adequa
no espaço orgânico da cozinha,
vale o tanto que conserva.
Pela importância prática
que lhe é nata, a geladeira
– sem os devaneios das religiosidades
abstratas nem a turbulência
das infindáveis indagações filosóficas –
denota que está na manutenção
da existência, resfriada ou congelada,
a resposta, há milênios, almejada.

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Malandragem amorosa

O amor visitou meu abrigo,


amenizou a saudade,
causou abalo sísmico
no ressentimento e na raiva.
A noite se fez luminosa
apesar do inesperado temporal.
Contou-me seus planos,
detalhou aventuras lúdicas,
me fez pedidos, outrora inegociáveis,
que prontamente atendi.
A risada solta do amor
tornou bonito meu abrigo.
E com a malandragem amorosa
que lhe é peculiar
me disse, sorrindo,
que aquela meia-hora
que passamos juntos
havia sido o melhor de todos os dias.

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Do sagrado ato de brincar

A luz que emana lúdica na infância


enxuga as lágrimas da distância indesejada.
O incerto roteiro da história que envolve
bonecas e minúsculos objetos
como seres animados
dá à vida o gosto que a rotina,
cheia de objetivos, elimina.
É divina a graça concedida à criança:
essa referência explícita que se apresenta
dizendo com todos os gestos
que nenhum problema é obstáculo
para o pleno existir eterno.

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Mãe

O mais sincero afago


se faz presente na quentura do prato.
Gestos contidos não machucam
porque os olhos reluzem
o impagável tesouro.
A entrega, feito martírio,
acata as dores do corpo, da alma.
E somente à mãe compete
a coragem do seio
eternamente exposto
para encher de vida
o rebento que nunca cresce.

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Trânsito indiano

O silêncio da casa vazia é pura farsa.


Apurados, os ouvidos captam
serviços sonoros em ininterrupto trabalho.
Relógio de pulso, geladeira, cortina, descarga
– tudo, dentro, denuncia o disfarce.
Nem mesmo a tv, desligada,
ratifica a mentirosa paz interna.
Entre barulhos sutis,
a musicalidade da respiração sôfrega
preenche os espaços e não engana:
onde não há templo,
impera a microfonia constante
do trânsito indiano.

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Lar

A casa que não contempla


a sacralidade de um templo
é mera argamassa, sustentáculo
que faz do teto ínfimo céu alcançável.
A cada gesto uma oração,
e a contrição da alma
mais assídua do que o escovar dos dentes.
O amor, então, se faz presente: louvar a vida,
de pé ou deitado (mas como se estivesse de joelhos),
dando ao efêmero o coadjuvante papel
que prepara a cena para o único brilho possível:
o protagonismo da eternidade.

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LIMBO 9

Eutanásia 11
Morta 13
Cinzas 15
Toque 17
Metástase 19
Fim 21
Antídoto 23
Carta 25
Morto 27
Empreendimento 29

O ELOGIO DA CONVERSÃO 31
Fez-se verbo 33
Dentro 35
Da graça 37
Epifania 39
Resgate 41
Caminho 43
Verdade 45
Vida 47
A supressão dos calendários 49
O elogio do Natal 51
Poema do amor fraterno 53
Oração dos dias 55
O equilibrista 57
A dor envaidece 59
Antimotor imóvel 61
Verdade roubada 63
Orgânico 65
São Francisco de Assis 67
Maria 69
Ora et labora 71

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ÂNIMA 73

Imprescindível adereço 75
Solidão 77
Silêncio 79
Geladeira 81
Malandragem amorosa 83
Do sagrado ato de brincar 85
Mãe 87
Trânsito indiano 89
Lar 91

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Fonte Arnhem
Tamanhos 10 / 11

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