Você está na página 1de 183

Pablo Rocha lbañez

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Pensar
é
Pecado?
 
 
 
A evidência contra o império da crença
 
 
 
 
© 2005 Pablo Rocha lbai\ez
 
 
É proibida a reprodução desta obra sem a prévia permissão, por escrito, do Autor. Os
infratores serão punidos pela Lei nº 9 .61 O, de 19 de fevereiro de 1998.
 
Edições Catavento Ltda.
Rua Valdo Omena, 332. Ponta Verde.CEP: 57 035 170
Maceió. AL. Brasil. Tel/fax: (82) 3327 6680
 
Conselho Editorial
LEMUEL DOURADO SOBRINHO (Doutor em Sociologia)
DOUGLAS APRATTO TENÓRIO (Doutor em História)
ÉLCIO DE GUSMÃO VERÇOSA (Doutor em Educação)
PEDRO NUNES FILHO (Doutor em Comunicação e Semiótica)
 
Coordenação Editorial
LEDA ALMEIDA
Direção Executiva
LUCAS ALMEIDA
SIMONE CAVALCANTE
Diagramação
ANNA RODRIGUES
Capa
Pro Design
 
IBANEZ, Pablo R.
Pensar é Pecado?. Maceió: Edições Catavento, 2005.
132p
1. Religião
coo 248-4
ISBN 85-7545-103-0
 
 
 
 
Impresso no Brasil

 
 
 
 
 
 
A minha esposa, Michellyne, pelo estímulo, pelas
sugestões e pela paciência;
 
A meu pai, de quem herdei a curiosidade pela
natureza e uma especial percepção de sua beleza;
 
À memória de Carl Sagan, brilhante divulgador da
ciência e autor de diversos livros, dentre eles "O Mundo
Assombrado pelos Demônios", cuja leitura - não seria
exagero dizer - foi uma das atividades mais marcantes e
construtivas que já realizei;
 
Aos que compõem a Sociedade da Terra Redonda,
instituição que bravamente defende a postura racional
perante o mundo, ensinando, através de suas atividades
e dos excelentes textos que veicula em seu site na
internet, a maravilha da possibilidade de compreender
um Universo sem mitos nem fantasmas.
Prefácio
 
Este livro envolve assuntos que ocupam papel crucial nas vidas
humanas e na história humana, tais como religião, religiosidade,
filosofia e ciência. Não se trata de um trabalho científico, mas de um
esforço argumentativo marcado pela informalidade e pelo uso da
primeira pessoa. Isso, entretanto, não prejudicará o compromisso
com a racionalidade e fundamentação das idéias transmitidas. Se
assim não fosse, haveria uma profunda incoerência, pois que o
próprio fim da obra é a defesa do pensamento crítico e racional;
opondo-se à credulidade, ao dogmatismo e ao preconceito. A obra
está enriquecida com um grande número de citações de textos
extraídos de excelentes livros e da internet. Muitas das notas de
rodapé trazem importantes comentários (não deixem de lê-las).
Dividi o texto em onze capítulos que podem ser lidos
independentemente, muito embora a ordem entre eles não seja
aleatória, de modo que sugiro que a leitura seja feita na seqüência
em que estão dispostos.
Não tenho a pretensão de que as idéias por mim defendidas
convençam os leitores crentes, o que exigiria que abdicassem de
muitas de suas concepções. No entanto, levando em consideração
que cada "visão de mundo" se forma num contínuo e ininterrupto
processo moldado pelas experiências que vivenciamos, incluindo aí
o contato com outras "visões de mundo" que nos influenciam, lanço-
me ao desafio de, ao menos, levantar importantes questionamentos.
Assim, se eu não conseguir apresentar uma concepção de mundo
mais coerente e racional, espero ao menos incutir dúvidas,
provocando-os a buscar respostas que lhes pareçam sensatas.
Conseguindo isso (fomentar o espírito crítico), eu já me sentiria
bastante satisfeito.
Nas páginas que seguem, farei uma análise crítica das idéias
religiosas predominantes, especialmente sobre suas incoerências
internas e incompatibilidades com relação ao conhecimento
científico atual e, em alguns pontos, à própria noção de
racionalidade e bom senso. Nesse sentido, diria que a obra realiza
uma crítica perante a constatação de que a grande maioria das
pessoas, mesmo entre as que freqüentaram escolas e
universidades, não tem o hábito de pensar de forma crítica, livre das
amarras do dogmatismo, dos tabus e preconceitos transmitidos
através das gerações. Talvez não seja exagero dizer que o
esoterismo (visto da forma mais ampla possível) constitui, ainda
hoje, um dos principais pilares sobre os quais o homem erige as
suas concepções de mundo e de vida. Este fato não é restrito ao
campo da religião, mas abrange quase todas as áreas do
pensamento cotidiano do homem.
Permitam-me, já na apresentação da obra, fugir um pouco a seu
tema central para expressar o quanto me estarrece verificar a
superficialidade e a pequenez com que se tem visto o mundo. Basta
lançar os olhos sobre a literatura de massas: livros de auto-ajuda,
seções sobre horóscopo em revistas e jornais, pregações do
fanatismo religioso etc. A mesma coisa se diga com relação à maior
parte da programação das televisões e rádios, sem deixar de fora os
discursos políticos (especialmente os pré-eleitorais) e grande parte
das conversas nas casas, esquinas e botecos. Amedronta ver como
os mesmos comentários pobres, superficiais, falsos, hipócritas,
eivados da mais nefasta credulidade, são incansavelmente
repetidos e escutados e, a cada vez, como se novidades fossem. As
frases batidas e vazias de conteúdo talvez sejam os instrumentos
mais capazes de arrancar da maioria gestos de concordância,
palavras de aprovação (no mínimo, um vulgar "com certeza"), ou
mesmo calorosos aplausos.
Mas o intuito deste livro não é somente criticar ... Sua finalidade
principal é propor uma concepção sobre religiosidade que seja
baseada na compreensão racional do Universo e nos sentimentos
de admiração e reverência que os homens podem experimentar
quando sua mente procura deparar-se com a Imensidão de forma
intelectualmente honesta, sem apelos a crendices. Essa forma
honesta de "ver" a natureza do Universo significa procurar
compreendê-lo como ele é; e não como o Papa, o professor, nossos
pais, a sociedade, um livro "sagrado", ou nós mesmos, desejamos
que ele seja. A melhor forma de que o homem dispõe para conhecer
o Universo não pode prescindir do uso da razão e da ciência.
Socialmente, é muito mais proveitoso questionar e pensar, aprender
a apreciar o que é real, do que se render à tendência comodista de
precisar crer no irracional para conseguir se sentir feliz.
O sentimento religioso é de fundamental importância,
proporciona uma sensação de serenidade, paz e harmonia.
Arriscaria dizer que é uma experiência inevitável para qualquer ser
humano, assim como o amor, a raiva, a euforia, a dúvida etc. No
entanto, orar ou ir para a igreja não são as únicas formas de
experimentar a religiosidade; podemos senti-la também ao olhar
para um céu estrelado, ao ouvirmos uma bela música ou ao abraçar
alguém que amamos. Em suma: religiosidade não pressupõe fé ou
crença.
A obra propõe, ainda, uma clara distinção entre os conceitos de
religião e de religiosidade. A primeira, vinculada a uma instituição,
requer a aderência a uma fé (crença) e a aceitação de dogmas. A
segunda está relacionada a uma sensação que qualquer indivíduo
pode experimentar -e experimenta, em maior ou menor intensidade;
com maior ou menor freqüência -e que não pressupõe qualquer tipo
de crença. Assim, enquanto a religião pressupõe a religiosidade,
esta não requer aquela. Nesse contexto, como se poderá perceber
claramente mais adiante, é plenamente coerente falar-se em "ateu
religioso", ou "cético religioso".
Não é benéfico que o abandono da razão e do senso crítico -
mesmo que circunscrito à somente alguns aspectos de nossa "visão
de mundo" -seja o meio pelo qual decidimos vivenciar o sentimento
religioso. Ademais, penso que nosso imenso Universo material é
incrivelmente surpreendente, a base perfeita para fundamentar uma
religiosidade profunda e compatível com a mente racional que
questiona, pesquisa, pensa e conhece.
A felicidade, a bondade e o sentimento religioso, se aliados à
racionalidade e ao pensamento crítico (incluindo o autocrítico),
podem ser alcançados de forma muito mais responsável e segura
do que através da "muleta" da credulidade, que facilmente pode
romper-se trazendo graves danos a nós e aos que nos cercam. A
história humana, por diversas vezes, mostrou-nos isso. O caminho
mais cômodo e fácil nem sempre é o melhor caminho. Fechar os
olhos para as evidências nunca foi um bom modo de se viver.
Se o tom irônico de minhas palavras, em algum trecho do livro,
for considerado desrespeitoso, peço perdão. Minha intenção não é
de ofender ninguém e minhas críticas são dirigidas a idéias e
posturas, não a pessoas. Considero fundamental o respeito à
diversidade, ao direito que deve ser garantido a todos de serem
livres para pensar e manifestar seu pensamento. Manifestar
discordância frente a outras idéias e posturas, mesmo que de forma
incisiva ( e desde que não se parta para a ofensa), não caracteriza
desrespeito, mas um desdobramento da liberdade de expressão, do
direito que se tem de tentar influenciar o meio através das idéias (ou
mesmo de auto-afirmação).
A todos aqueles que lerem o livro de forma aberta e honesta,
coloco-me à disposição para receber críticas (mesmo as incisivas) e
disposto ao diálogo que, quando fundado nas idéias, é proveitoso
para todos os envolvidos. Se houver elogios, eles serão muito bem-
vindos e me deixarão feliz. Ambos -críticas e elogios -serão
considerados por mim como justa recompensa ao meu trabalho.
Peço, entretanto, que não venham rebater minhas idéias com
dogmas, berros e excomunhões (até porque não se pode "pôr para
fora" quem já saiu por vontade própria), pois estes não são
argumentos e não pode existir diálogo se os participantes não
"falam a mesma língua". Desejo a todos uma proveitosa leitura...
Sumário
 
 

Idéias a serem
I 11
inicialmente consideradas
II Criação do Universo? 31
Refutação aos
III argumentos de São Tomás 41
de Aquino
IV Sobre a fé 55
Religião, credulidade e
V 63
dogmatismo
Questionando a
inquestionabilidade da Bíblia
VI 71
(e de qualquer outro "livro
sagrado")

Religião e valores
VII 81
humanos

Religião, sociedade e
VIII 93
Estado
Crítica à natureza da
IX oração e à idéia 97
de cura pela fé
A consciência como
fenômeno dependente
X do cérebro e a 103
conseqüente inexistência
de vida após a morte
XI A vivência de um 117
ateísmo religioso

XII Bibliografia 127


 
I - Idéias a serem inicialmente consideradas
 
Meus sentimentos e, acima de tudo, o uso da razão e do senso
crítico, levam-me a descrer em um Deus com personalidade,
sentimento, vontade, tal como pregam as doutrinas cristã, judaica e
islâmica; apesar disso, meu posicionamento não poderia ser
chamado anti-religioso. Entendo que religiosidade não pressupõe
crer nesse Deus pessoal que cria o Universo e, distanciado dele,
rege-o através de leis por si mesmo elaboradas. Os sentimentos de
admiração, perplexidade, reverência, que nos são provocados ao
observarmos a imensidão, a complexidade e a beleza do Universo,
são genuinamente religiosos. A percepção e a consciência do
soprar do vento, do brilhar das estrelas, do movimento das galáxias,
do fluxo vida-morte e de que somos parte integrante desse imenso
Todo-sempre buscando atingir uma maior compreensão racional
sobre a natureza - pode ser a base para uma profunda religiosidade.
Transcrevo abaixo um texto de Albert Einstein, citado no livro
"Einstein e a religião", de Max Jammer, que mostra que ser religioso
não significa seguir uma religião institucionalizada, que impõe
dogmas; nem freqüentar cultos, nem crer num Deus pessoal1. Na
verdade, o homem religioso é aquele que está embriagado de um
indescritível sentimento de mistério e admiração.
"A mais bela experiência que podemos ter é a do
mistério. Ele é a emoção fundamental que se acha no
berço da verdadeira arte e da verdadeira ciência. Quem
não sabe disso e já não consegue surpreender-se, já
não sabe maravilhar-se, está praticamente morto e tem
os olhos embotados. Foi a experiência do mistério -
mesclada com a do medo - que gerou a religião. Saber
da existência de algo que não podemos penetrar,
perceber uma razão mais profunda e a mais radiante
beleza, que só nos são acessíveis à mente em suas
formas mais primitivas, esse saber e essa emoção
constituem a verdadeira religiosidade. Nesse sentido, e
apenas nele, sou um homem profundamente religioso.
Não consigo conceber um Deus que premie e castigue
suas criaturas, ou que tenha uma vontade semelhante
à que experimentamos em nós."2
O conceito de religiosidade está bastante vinculado a outro
conceito: o conceito de sagrado. Este último, por sua vez, pode ser
entendido como "uma força que engendra um sentimento de grande
espanto, quase temor, mas por outro lado tem um poder de atração
ao qual é difícil resistir"3. Podese dizer que religioso é aquele que
considera algo sagrado. Umberto Eco comenta sobre o fato de que
religiosidade e sentido do sagrado não estão necessariamente
vinculados à fé em Deus.
"( ... ) acredito firmemente que existem formas
de religiosidade, e logo sentido do sagrado, do
limite, da interrogação e da espera, da comunhão
com algo que nos supera, mesmo na ausência de
fé em uma divindade pessoal e providente."4
Aqui tratarei de expor as bases de minha religiosidade cética e
os motivos que me fazem discordar das crenças supramencionadas.
O ser humano, ao perceber fenômenos no mundo que ainda
não podem ser racionalmente explicados, sempre tratou, mesmo
que inconscientemente, de criar estórias que possam preencher o
vazio do desconhecido. Então, em vez de reconhecer as
dificuldades inerentes à atividade de obtenção de conhecimento
sobre o mundo que nos cercase encarar esse caminho sinuoso,
mas muito gratificante -, termina tachando de "sobrenatural" aquilo
que ainda não foi racionalmente explicado. Tal designação é
atribuída até a fatos já explicados pela ciência, e que,
teimosamente, insiste-se em considerar inexplicáveis. No entanto, o
conhecimento sobre o mundo não pode ser inventado, nem
alcançado através da fé, nem revelado por qualquer entidade
mística imaginária; mas requer raciocínio, paciência e, acima de
tudo, pensamento cético5. Esse ceticismo não deve ser interpretado
como duvidar de tudo: não significa fechar a mente, mas usar o filtro
da razão. O homem racional precisa ter a mente aberta o suficiente
para analisar novas evidências com imparcialidade e, se for o caso,
mudar de opinião. Entretanto, é preciso evitar a credulidade; em
outras palavras, a mente "não pode ficar tão aberta a ponto de o
cérebro cair para fora".6
Apesar da falibilidade do conhecimento científico, é necessário
reconhecer que este é, de longe, o mais seguro e preciso que pode
ser alcançado. A ciência é responsável pelo vertiginoso aumento da
expectativa de vida do ser humano nos últimos anos. Como uma
pequena lista de exemplos, basta mencionar as vacinas, capazes de
nos imunizar contra diversos vírus que no passado representavam
uma sentença de morte; os antibióticos que podem vencer graves
infecções causadas por bactérias; os anestésicos, imprescindíveis
para quase qualquer intervenção cirúrgica, desde a extração de um
dente até um transplante cardíaco. Graças à ciência podemos nos
comunicar em tempo real com parentes que vivem no outro lado do
planeta; podemos nos locomover rapidamente de um ponto a outro
da cidade, do país, do mundo; já colocamos os pés na Lua, que
num distante passado era uma misteriosa "bola luminosa" flutuando
no céu noturno; já enviamos sondas não tripuladas para Marte e
outros planetas. A ciência possibilita que saibamos quando e onde
ocorrerá uma tempestade, salvando diversas vidas; que possamos
prever com exatidão um eclipse que ocorrerá daqui a centenas de
anos. Quase tudo o que se conhece sobre o imenso Universo e
muito do que sabemos sobre nós mesmos, como seres vivos, deve-
se à ciência.
"(...) Não existe nenhuma religião no planeta
que não deseje ter uma capacidade comparável -
precisa e repetidamente demonstrada diante de
céticos convictos -de prever acontecimentos
futuros. Nenhuma outra instituição humana chega
perto de seu desempenho"7
É bem verdade que muitas das "descobertas" científicas
também podem ser utilizadas para destruir e levar sofrimento:
aviões usados nas guerras, o domínio da energia nuclear que
propiciou o desenvolvimento da bomba atômica, a poluição gerada
pelas indústrias etc. Em todo caso, deixando temporariamente de
lado a análise sobre o bom ou o mau uso que se pode fazer dela (e
lembrando que a religião e o misticismo também podem ser
utilizados para a destruição), é necessário reconhecer que a ciência
"funciona". Enquanto uma ultra-sonografia pode dizer com quase
cem por cento de segurança qual é o sexo do bebê que a gestante
carrega no ventre, um curandeiro (ou similar) nunca terá mais de
50% de chance de acerto. Ninguém minimamente esclarecido
deixará de levar um filho com câncer a um oncologista, para levá-lo
a uma "rezadeira".
O verdadeiro saber científico sempre está "disposto" a ser
revisto e, se necessário, substituído -esse contínuo questionamento
está no âmago do método científico. A atividade oposta -de taxar os
fatos de sobrenaturais ou divinos e considerar aquela forma de ver a
realidade como inquestionável -é bastante mais cômoda, mas
representa uma fuga que pode trazer grandes prejuízos,
estimulando a omissão, acobertando violência e preconceito (a
História Humana nos demonstrou isso de forma clara). O que muitas
vezes ocorre quando se foge da luta pelo saber racional e se cria
uma fantasia para explicar o desconhecido é que a comunidade,
com o passar das gerações, cada vez mais, aceita e se apega a
essa fantasia, na medida em que ela vai se enraizando e tornando-
se tradição. Assim, afasta-se uma imensa gama de fatos do âmbito
da razão e gera-se uma grave indisposição, e até mesmo
preconceito, contra a atividade racional e questionadora. Quando
finalmente, e depois de muita resistência, a sociedade aceita
determinada explicação científica no lugar da falsa explicação
"sobrenatural", então o imaginário conjunto de fatos sobrenaturais
sofre uma redução.
Ann Druyan, referindo-se a um comentário feito por Hipócrates,
disse no livro "O Universo de Carl Sagan":
"( ... ) as pessoas pensam que a epilepsia é
divina porque eles não sabem o que realmente
causa a epilepsia. Mas algum dia vamos entender
o que causa a epilepsia e não mais pensaremos
que ela é divina. E assim é com tudo o que agora
chamamos de divino. É isso que é conhecido como
o Deus das lacunas."8
 
Nada mais fácil (e ao mesmo tempo ingênuo) do que, na
tentativa de explicar os mistérios do Universo, recorrer a uma
entidade que seria responsável por todos os fenômenos que o
homem ainda não conseguiu explicar racionalmente. O próximo
passo é personificar essa entidade imaginária, pois, dessa forma,
facilita-se o relacionamento entre 0 ser humano e ela. Verifique-se,
por outro lado, como a "invenção de Deus" reflete a pretensão do
ser humano em achar que ocupa uma posição tão central no
Universo a ponto de fazer com que tal entidade, o suposto "Deus",
seja semelhante a ele.
Max Jammer9 cita um ensaio de Einstein, intitulado Religião e
ciência, onde o grande criador da Teoria da Relatividade comenta o
desenvolvimento histórico das tradições religiosas. Comenta
Einstein que, na sociedade primitiva, foi "o medo que evocou as
idéias religiosas; o medo da fome, dos animais selvagens, da
doença e da morte". Aos vários deuses criados pela imaginação
humana e que supostamente controlavam os poderes da natureza,
o homem oferecia súplicas e sacrifícios para aplacar-lhes a fúria.
Esse era o estágio da "religião do medo".
No próximo estágio, "o da concepção social ou moral de Deus",
no qual estão incluídos o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, o
homem imaginou um Deus que julga as ações do homem,
premiando as boas ações e castigando as más, e guarda as almas
dos mortos. Tal imagem de Deus tem origem no "desejo de
orientação, amor e apoio".
O estágio seguinte, segundo Einstein, despe-se do
antropomorfismo religioso visto nos estágios anteriores. É o
chamado "sentimento religioso cósmico", em que não há um Deus
pessoal. Essa espécie de religiosidade é perfeitamente compatível
com o conhecimento científico e o pensamento cético.
As religiões monoteístas hoje dominantes trazem em si a idéia
de que o homem é a finalidade de Deus na criação do Universo.
Assim, todo o Universo teria sido criado como um preparativo para a
existência do homem. No entanto, o Universo não é o resultado de
um projeto de lar para o homem, mas justamente o inverso: os seres
vivos, incluindo o homem, é que se adaptam ao meio. É fato
demonstrado pela ciência que o tempo decorrido desde o Big Bang
é de aproxima-damente 15.000.000.000 (quinze bilhões) de anos,
enquanto a existência do homem, como espécie, é recentíssima
nesse contexto. Como explicou Carl Sagan em sua série "Cosmos",
se toda a história do Universo fosse representada em um calendário
com todos os meses do ano, o surgimento da espécie humana
estaria localizado em algum dos últimos dez segundos, do último
minuto, da última hora, do mês de dezembro10. Por que o suposto
Deus teria.
feito com que o universo "esperasse" tanto tempo para que
houvesse o surgimento do homem? Que razão poderia ter Deus
para criar, para o homem, um universo tão vasto, no qual o espaço
ocupado por nosso planeta representa, proporcionalmente, muito
menos do que um grão de areia no deserto do Saara?
"( ... )vivemos em uma grande fatia de rocha e
metal que orbita uma monótona estrela nos
arredores obscuros de uma galáxia comum, feita
de 400 bilhões de estrelas em um Universo de
algumas centenas de bilhões de galáxias."
( ... ). Muitas, talvez a maioria das estrelas têm
planetas. Nesta perspectiva, como alguém pode
acreditar seriamente que nós somos centrais -
fisicamente, muito menos o propósito do Universo?
11
A idéia da existência do homem como propósito da existência
de todo o Universo é mais incoerente do que a da construção de
uma mesa do tamanho do Estádio do Maracanã com a finalidade
exclusiva de colocar-se sobre ela um objeto microscópico. Apenas
uma infinitésima fração da área em questão teria alguma utilidade. É
bem verdade que é impossível provar, definitivamente, a falsidade
da idéia de que todo o universo foi criado por um Deus para abrigar
o homem. Entretanto, como procurarei demonstrar, a possibilidade
de que o referido acima seja verdadeiro é tão remota que nem
sequer merece ser considerada. Da mesma forma, a inexistência
dos vampiros, dos gnomos, da Fada Madrinha e do Papai Noel
também não pode ser definitivamente provada, e nem por isso
passaremos a considerar com seriedade a possibilidade de
existência de tais seres.
Essa mesma pretensão humana de ser o propósito de tudo -
fruto de uma arrogante necessidade de auto-afirmação, ou
simplesmente da ignorância - também se manifesta em sua visão de
si perante os demais animais. O homem geralmente defende uma
clara separação entre sua espécie e todas as outras. Nomeia-se o
animal racional; e chama a todos os demais de irracionais. É uma
classificação já descartada no mundo científico, mas ainda usada
por muitas pessoas (e ensinada em muitas escolas) que fecham os
olhos para fato de que outros animais - especialmente mamíferos e
aves - também são capazes de raciocínio e sentimentos. Até
mesmo cultura existe em sociedades de algumas espécies. É
preciso que tenhamos consciência de que somos animais e que não
há razão numa classificação que nos coloque isolados de um lado e,
no outro lado, coloque juntos animais tão diferentes como a baleia e
a minhoca.
A tecnologia também não serve para nos conceder um suposto
valor intrínseco superior, visto que não é uma exclusividade nossa.
Chimpanzés12, por exemplo, fabricam instrumentos com gravetos e
pedras; e isso também é tecnologia, embora rudimentar. Mas nós
também, durante a maior parte de nossa história - e ainda hoje, em
algumas sociedades tribais - tínhamos uma tecnologia rudimentar
(provavelmente mais próximada dos chimpanzés,doque da
nossaatual). Na verdade, se comparados a esses fantásticos
animais - nossos parentes mais próximos-, verifica-se que
apresentamos praticamente as mesmas qualidades. A diferença
fundamental é que essas mesmas características estão presentes
em cada espécie com intensidades distintas.
Outro questionamento que tangencia o tema da "centralidade"
que o homem atribui a si é aquele sobre a existência, ou não, de
vida extraterrestre. Dada a vastidão do Universo e a provável
existência de grande número de sistemas planetários, torna-se
bastante plausível a hipótese de que a vida tenha brotado em outro
recanto. Há sérias pesquisas científicas no sentido de realizar essa
busca, a exemplo do projeto SETI (Search for Extraterrestrial
/ntel/igence), que envia sinais de rádio para o espaço na esperança
de obter uma resposta. Infelizmente, até agora não foi encontrada
nenhuma evidência confiável da existência de vida extraterrestre
inteligente13, mas as pesquisas prosseguem. É uma pena que esses
projetos sérios sejam tão pouco divulgados. Por outro lado, são
vastamente difundidas sandices como discos voadores passeando
pelo céu, abduções e homenzinhos verdes mantendo relações
sexuais com seres humanos14.
Agora, retomando o assunto do homem como propósito divino,
analisemos um pouco o modo como os cristãos, judeus e islâmicos
vêem seu Deus. Ele possui vontade, sente amor, ira, misericórdia,
faz planos etc. Qualquer semelhança com as características do ser
humano não é mera coincidência, mas sim a clara evidência de que
foi o homem quem criou (imaginou) Deus a sua imagem e
semelhança. Além das características humanas, o homem lhe
atribuiu uma grandeza condizente com a condição de "criador do
Universo". Essa atitude de "humanizar" Deus é chamada de
antropomorfismo religioso. Bastante interessante, e ao mesmo
tempo esclarecedora, é a frase de Xenófanes, citada por Max
Jammer:
"Se os bois ou os leões tivessem mãos e
soubessem pintar, sem dúvida representariam seus
deuses sob a forma de bois ou leões." 15
Aproveitando a discussão sobre a suposta criação do homem
por Deus, "vem a calhar" a pergunta: porque ele faria isso? A
primeira resposta que vem à mente - e provavelmente a mais
sensata - é que ele poderia ter feito isso porque estava se sentindo
muito sozinho, ou porque sua "vida" estava monótona demais. Mas
os cristãos negam (e condenam) tal resposta, afirmando que Deus
já estava completo antes da criação do homem, não precisava de
nada. Defendem que ele teria feito isso por amor. Mas eu me
pergunto: por amor a quem? Dizer que Deus criou o homem por
amor ao próprio homem, que ainda não existia, é um contra-senso.
Se o amor for à idéia divina da existência do homem - amor a um
projeto -, isso significa que ele fez por mera satisfação pessoal, o
que implica que ele ainda não se sentia completo. Outra resposta é
que a criação ocorreu para que o homem o amasse e glorificasse,
mas isso denota um forte egocentrismo e vaidade desmedida, o que
não combina com as características de perfeita bondade e justiça16.
Criar seres ignorantes para vê-los progredirem, ou para julgá-los
após a morte, é algo que, intrinsecamente, carece de sentido. Não é
bom nem ruim, denota, tão-somente, solidão, curiosidade ou
vontade de realizar um experimento.
O fato de que cada sociedade, hoje e em toda a história
humana, possui sua própria religião, cada qual com suas
peculiaridades, evidencia que a religião é um fenômeno psicológico
e social. As idéias sobre Deus e as diversas "escrituras sagradas"
sempre foram reflexo da sociedade que as imaginou. De fato, a
diversidade observável entre tais idéias é exatamente tão grande
quanto a observável entre as sociedades que as têm.
Muitos, ainda hoje, acreditam em fatos como a construção de
um enorme barco que teria abrigado um casal de cada espécie
animal existente com a finalidade de salvar a vida no planeta
durante um enorme dilúvio; ou como a criação do homem a partir do
barro e de uma mulher a partir da costela desse homem; que teriam
procriado e, a partir deles, teria sido gerada toda a humanidade. O
nível de absurdo em tais proposições é tão imenso que não consigo
deixar de me espantar com o fato de que muitas pessoas, inclusive
alfabetizadas, as aceitam sem qualquer objeção.
Quanto à arca, é evidente que uma vasta diversidade de
espécies não poderia sobreviver nem fora dela, nem dentro dela (
na água). O fato de a superfície da Terra ficar totalmente coberta por
água, e a conseqüente mistura da água salgada à água doce,
ocasionaria a extinção de quase todas as espécies de água doce e
de diversas de água salgada. Quanto à arca, imagine-se o tamanho
que precisaria ter para abrigar um casal de cada espécie animal
terrestre: quem sabe o tamanho do Estado de Sergipe fosse
suficiente. Mas, e a madeira para construí-la? Quantas florestas
seria necessário desmatar para construir a arca? Talvez, o milagre
da multiplicação das madeiras tenha precedido o da multiplicação
dos pães. Falando em árvores, um ou dois exemplares de cada
espécie vegetal terrestre também foi colocada na arca. Esqueçam,
então, das dimensões de Sergipe. Quem sabe possamos considerar
as dimensões do Estado de São Paulo, se tudo ficasse bem
apertadinho. E haja madeira. .. Isso sem falar em que deixar os
leões e tigres próximos às vacas e zebras seria um total desastre.
Certamente a arca era dotada de milhões de compartimentos
separados para impedir a carnificina geral. Não podemos esquecer,
ainda, que tais compartimentos eram climatizados de forma
personalizada para seus inquilinos: o urso polar vivia num
compartimento mantido a vinte graus abaixo de zero; enquanto a
morada das araras e papagaios estava sempre entre vinte e trinta
graus celsios. Os alimentos para tais animaisimagino eu - também
eram obtidos pelo milagre da multiplicação.
Quanto a Adão e Eva, não vou me delongar muito. Gostaria
apenas de saber se eles tinham umbigo ou não, visto que o umbigo
é uma cicatriz decorrente da "queda" do cordão umbilical, o que
implica uma gestação anterior. Acho que não ... A barriga deles era
destituída de umbigo. Espanta, também, pensar nas muitíssimas
relações incestuosas necessárias para a proliferação da espécie.
Mas isso é bobagem: os fins justificam os meios.
A separação entre religião e razão é imensamente perigosa e já
causou incontáveis acontecimentos absurdos e lamentáveis. Foi
essa separação que permitiu o sacrifício de pessoas que
contribuíram muito para a humanidade -basta citar nomes como os
de Giordano Bruno e Galileu Galilei, condenados pela Inquisição
porque o saber que produziram contrariava os dogmas da Igreja.
"( ... ) as principais religiões que dominam o
mundo de hoje desenvolveram-se no seio de povos
agricultores e pastores, em épocas em que a
superstição prevalecia à ciência. Épocas em que
se pensava que o sol orbitava à volta da terra e
que as estrelas eram orifícios num 'técto'.
( ... )
A incongruência entre religião e razão é
perigosa para a nossa integridade mental. A área
religiosa ajuda a encobrir ou incubar outros tipos
de irracionalidade, políticos ou raciais, e demais
recusas em confrontar a realidade e a evidência."
17

O dogmatismo, que se transmite através das gerações e que


contamina a sociedade de maneira geral, impede qualquer tipo de
aproximação a novas idéias sem o maléfico preconceito. O homem
dogmático não consegue "ver ao redor", apenas olha em uma
direção (quase sempre a errada).
Pode-se, facilmente, perceber a falta de coerência em algumas
idéias que sustentam a perfeição e bondade de um suposto Deus
pessoal. Quando logramos uma vitória, dizem-nos: Agradeça a
Deus, pois isso é fruto de sua imensa bondade. Quando uma
tragédia ocorre, dizem: Isso é culpa do homem e não de Deus.
Quando não se pode atribuir a culpa ao homem, ouve-se: São os
mistérios da vida. Não podemos compreender, mas, certamente,
Deus teve bons motivos para fazer isso. Dessa forma torna-se muito
fácil apoiar a perfeição desse suposto Deus: todo o bem que ocorre
é graças a ele; todo mal que ocorre é culpa do homem.
Se eu vivo em um prédio e ocorre um desmoronamento no qual
morre toda a minha família, Deus não teve nada a ver com isso, a
culpa é do homem que não construiu corretamente (ainda que eu e
minha família morta também não tenhamos nada a ver com a má
construção do prédio). Se, entretanto, o prédio foi muito bem
construído e é muito seguro, o fato de nunca ter ocorrido acidente
algum nele é graças a Deus. Se o prédio, apesar de excelentemente
construído, sofre a ação de um brutal e imprevisível terremoto, e
toda minha família vem a falecer (e aqui, é claro, não se pode
responsabilizar o homem pela triste tragédia), então, o que parecia
um terrível acontecimento foi, na realidade, algo bom: Deus teve
bons motivos; nós, pobres mortais, é que não percebemos ... Se a
culpa não pode ser atribuída ao homem, então, por pior que pareça
o suposto mal, este é, na verdade, bem.
Outros atribuem as tragédias ao Demônio: outro ser inventado
pela mentalidade humana, mas desta vez para simbolizar o mal,
ocupando o pólo oposto a Deus numa ótica teísta-maniqueísta. Ora,
Deus não é onipotente? Por que então permite que o Demônio
continue a praticar o mal impunemente? Por que não o extermina de
uma vez? Só vejo três explicações alegáveis:
a) Deus não é capaz de fazê-lo, o que contraria sua suposta
onipotência;
b) Deus não quer fazê-lo. E aí se abrem algumas sub-
hipóteses, entre elas:
b1) O agir do Demônio faz parte de um castigo divino
ou serve de lição para a humanidade (nesse caso, o
Demônio seria útil a Deus e este seria co-responsável por
todas as suas maldades);
b2) Deus mantém o Demônio existindo para que a
maldade diabólica sirva de oposição à bondade divina,
tornando esta última mais reconhecível em virtude do
contraste ( e aqui seríamos levados à mesma conclusão
quanto à utilidade do Demônio para Deus e a co-
responsabilidade deste pelos atos daquele);
c) Ainda não chegou a hora de fazê-lo, a qual talvez seja a
explicação mais aceita. Não se justifica, entretanto, a razão para
que se precise aguardar tanto enquanto milhões e milhões de
pessoas sofrem. As únicas explicações plausíveis seriam:
c1) O tempo representa um prazo -uma chance - para que
o Demônio se regenere e possa ser perdoado;
c2) A hipótese "c" precisa ser associada às teses "a" ou
"b”.
Diante de todo o exposto, parece mais lógico admitir a
inexistência de ambos -Deus e Diabo -e perceber que o
Universo não é "moral", nem "imoral".
A existência do homem como finalidade da criação e de um
Deus criador, onipotente, perfeitamente bom e justo, não me parece
se adaptar ao fato de a sociedade humana ser tão cruel, egoísta e
hipócrita; submetida, sempre, à lei do mais forte18. Uma sociedade
onde muitas e muitas pessoas nascem em condições de
monstruosa indignidade e, durante suas vidas, não se lhes é
apresentada sequer uma oportunidade para saírem de tal condição,
até que terminam por morrer na mesma indignidade em que
nasceram. Tais indivíduos passam toda a vida ouvindo a mesma
balela: Tenha fé. Peça e será atendido. Mas pedem sempre, sem
que ninguém lhes pareça ouvir. Depois que morrem (muitos - como
se merecessem um castigo extra - só depois de presenciarem a
morte de seus inocentes e desnutridos filhos), justifica-se o que
aparentemente foi uma vida desperdiçada, uma flor cujo jardineiro
se esqueceu de regar, dizendo-se que deles será o reino dos céus.
Mas quem poderá nos convencer disso? Só mesmo a fé, que faz
com que o desgraçado se conforme com sua desgraça, abaixe a
cabeça e espere chegar o dia do conto de fadas.
Quando se generalizar a noção do quanto pequenos e recentes
somos no contexto Universo, perceberemos o absurdo em nos
considerarmos a "finalidade" de sua existência. Os problemas
relacionados a valores e propósitos serão, então, colocados em seu
devido lugar: como problemas circunscritos ao limitado âmbito
espacial e temporal da atuação humana. Perceberemos, com
clareza, a desvinculação entre a existência do Universo e qualquer
espécie de propósito. Saberemos que as intenções e projetos aos
quais realmente estamos fortemente submetidos são os nossos e de
nossos semelhantes. Se nossa vida é (ou foi) suficientemente boa,
se fomos justos e bondosos e o que merecemos por nossas ações,
só o ser humano pode julgar. Nós criamos e aplicamos esses
valores.
lI - Criação do Universo?
 
Um argumento usado por teístas para defender a existência de
um Deus criador é a afirmação de que nada pode vir do nada.
Havendo todo o Universo, precisaria haver algo preexistente a este,
que lhe tivesse dado existência.
Os que utilizam esse argumento não percebem que sua
inconsistência faz com que ele se volte contra as idéias que foi
criado para defender. Ora, se nada pode vir do nada, seria inevitável
aceitar algo preexistente ao Deus criador, que lhe houvesse dado
existência. Isso se re petiria infinitamente, trazendo uma situação
inconcebível, pois o suposto criador de Deus também precisaria ter
sido criado por uma outra entidade, e assim sucessivamente.
A falta de coerência de referido argumento é comentada por
Paul Harrison, em seu texto "The selfexistent cosmos" (tradução no
rodapé):
"ln a sense the theist argument about a first
cause cuts the ground from under itself.
Everything, it argues, requires a cause. To
avoid infinit regress, there must be a first cause.
But this first cause is something that has no cause.
Therefore not evrything requires a cause.
Therefore the premise is invalid.
Again, if there is a being which does not
require a cause, why should this being not be the
universe itself?" 19
 
Esse assunto já foi tratado por Kant na Crítica da razão pura,
quanto apresenta uma lista de quatro antinomias, cada uma delas
contendo uma tese e uma antítese. A terceira antinomia tem como
tese "existe liberdade no sentido transcendental como possibilidade
de um começo absoluto e não causado de uma série de efeitos"; e
como antítese "tudo acontece no mundo segundo leis naturais".
Essa antinomia traz à tona a problemática de que, por um lado, uma
causalidade rigorosa e absoluta equivaleria à regressão ao infinito
de causas, mas, por outro lado, também não se pode conceber um
começo sem causa.
Seria, pois, necessário aceitar uma Existência Atemporal e
lncausada. Sua existência independeria do tempo, não teria início
nem fim. O argumento de que nada pode vir do nada perde sentido
com relação a essa Existência lncausada justamente porque existe
sem jamais ter "vindo". Por ser atemporal, é inconcebível que
qualquer coisa seja anterior a ela. Os teístas então diriam: Essa
Existência lncausada é Deus.
Mas, por quê? Se há algo que não foi criado, esse algo poderia,
perfeitamente, ser o próprio Universo. Essa concepção evita a
multiplicação desnecessária de entidades, estando de acordo com o
princípio científico da Navalha de 0ccam, sobre 0 qual falarei mais
adiante. Os argumentos usados pelos teístas tradicionais possuem
falhas claras, sobretudo porque o fato de haver uma Existência
lncausada não implica que essa Existência seja uma entidade
personificada.
Explicarei, a seguir, duas hipóteses filosóficas de compreensão
da existência do Universo. Ressalte-se que tais hipóteses não
devem tomar feição de limites, sendo apenas modelos, exemplos
ilustrativos de como o Universo pode ser compreendido de forma
racional como sendo auto-suficiente. Conforme também mencionei,
são hipóteses filosóficas, e não científicas. Assim sendo, não se
destinam a convencer os leitores de sua veracidade, mas a
incentivá-los ao questionamento.
Hipótese da criação relativa
Antes de tudo, é necessário ter em mente conceitos alternativos
das palavras "criação" e "nada". Num só exemplo pretendo mostrar
como essas duas palavras podem ser compreendidas de uma forma
distinta. Imaginemos o nº O; ele representa o Nada20 , no entanto,
se o "esticarmos para os lados", ele poderá ser transformado em (-1
+ 1), (-2 +2), (-10 + 10), (- 1000 + 1000), e assim infinitamente.
Desse modo, o Nada (O) é, na verdade, Tudo em potencial. Em
última instância, Nada e Tudo são formas diferentes da mesma
coisa (O = -999 ... +999 ... ).
O que seria esse Nada que, de certa forma, é o mesmo que
Tudo? Seria simplesmente a característica da mutabilidade - basta
isso para que tudo exista. Em última instância, o Universo seria a
própria Existência lncausada, pois o Nada, que não possui causa e
é atemporal, é o mesmo que Tudo: o que muda é apenas a forma
de apresentar-se. O Tudo fluiria espontaneamente do Nada.
É necessário ter em mente que, nessa hipótese, a
transformação do Nada em Tudo não se daria em um ponto
determinado do tempo. No contexto desta hipótese filosófica, só
podem existir tempo e espaço no Universo que "saiu do O" e passou
para o (-1... + 1 ... ). O tempo já é um "algo", por isso não pode estar
no Nada. Além disso, como nos explica a teoria da relatividade, os
conceitos de tempo, espaço e matéria, são interligados, não
podendo existir independentemente uns dos outros.
E como é possível surgir uma situação com tempo, a
partir de uma situação sem tempo? Uma ilustração para facilitar
entendimento seria a suposição de que a propriedade da
transformação se manifesta em um ponto que se acende e apaga. O
ponto apagado representaria o Universo em "O", sem tempo nem
espaço. O ponto aceso representaria o Universo que "saiu do O", no
qual existem tempo e espaço. O que faz o ponto acender-se (o
Universo "sair do Nada") é a característica da transformação, que já
é inerente ao Nada (existe mesmo no ponto apagado). A idéia de
que o ponto passa um tempo aceso, e outro apagado, é errônea,
pois só existe tempo no ponto aceso. O tempo seria algo que se
manifesta dentro do ponto aceso, não possuindo qualquer realidade
além dele. É bastante difícil imaginar situações em que o tempo e o
espaço inexistem porque vivemos numa situação em que há tempo
e espaço, e nosso raciocínio quase sempre é voltado para tais
situações; entretanto, isso não significa a impossibilidade de
situações sem tempo e espaço.
A Física Moderna vem apontando na direção de que a
transformação do Nada em Tudo é possível. Isso ocorreria caso a
energia total do Universo fosse igual a zero. Transcrevo abaixo um
trecho do excelente livro Einstein e a religião para melhor explicar o
que foi dito acima.
"( ... ) 'a Relatividade modificou tudo isso, e um
fato curioso, talvez não muito conhecido, é que a
criação da matéria a partir do nada não contradiz
nenhuma lei física de conservação'.
Segundo Margenau, consideremos, a bem da
simplicidade, o modelo cosmológico einsteiniano
de 1917 de um Universo esférico finito de raio R,
cheio de agregação de matéria com massa total M,
de modo que sua energia gravitacional potencial
seja a quantidade negativa -kGM2 / R ( ... ). 'Por
causa da equivalência massa-energia, a agregação
de matéria também contém a energia positiva Mc2
. ' A energia total do Universo, portanto,é E= Mc2 -
(kGM2 / R).
A criação a partir do nada é possível em
tennos de energia, se E = 0( ... ).( ... ) Margenau
declarou 'Fato notável: é bem possível que essa
relação seja atendida por nosso Universo atual ' ".
21

Como a Existência lncausada e o Universo são, em essência, a


mesma coisa, descabe falar-se em criação do Universo, a não ser
que a palavra criação, nesse contexto, signifique transformação (do
Nada em Tudo). Finalmente chegamos ao conceito mais completo
das palavras "nada" e "criação": é preciso saber distinguir o nada
(que é só uma palavra para designar o que não existe) do Nada
(que é Tudo em potencial); bem como saber distinguir a criação em
sentido estrito (que não existe, pois do nada, nada surge) da criação
em sentido mais amplo (que, na verdade, é uma espécie de
transformação).22
A Hipótese da não-criação
Uma outra hipótese filosófica capaz de explicar a existência do
Universo estaria em estrita conformidade com a frase: "Na natureza,
nada se perde, nada se cria, tudo se transforma"23. Segundo essa
forma de compreender o Universo, o tempo seria infinito e toda a
substância que compõe o Universo (matéria e/ou energia) teria
existido desde sempre: não haveria um início para ela. Estaria tal
substância, entretanto, em constante transformação, pois lhe é
inerente a característica da transformabilidade.
Para melhor explicar essa hipótese é muito útil transcrever um
parágrafo do livro "Convite à filosofia" de Marilena Chauí. Nesse
parágrafo, a autora fala sobre uma das características verificáveis
no período cosmológico (ou pré-socrático) da filosofia grega. Dito
parágrafo está inteiramente de acordo com a hipótese da não-
criação:
"Afirma que não existe criação do mundo, isto
é, nega que o mundo tenha surgido do nada (como
é o caso, por exemplo, na religião judaico-cristã, na
qual Deus cria o mundo do nada). Por isso diz:
'Nada vem do nada e nada volta ao nada.' Isto
significa: a) que o mundo, ou a Natureza, é eterno;
b) que no mundo, ou na Natureza, tudo se
transforma em outra coisa sem jamais
desaparecer, embora a forma particular que uma
coisa possua desapareça com ela, mas não sua
matéria." 24
Na essência, não há distinções relevantes entre as duas
hipóteses.
Apesar de todas as distinções feitas entre as duas hipóteses,
elas são menos diferentes do que parecem. Em nenhuma das duas
hipóteses existe algo externo ao Universo que possa ter-lhe dado
existência, ou que possa comandálo. Nas duas hipóteses verifica-se
que todo o fundamento, todo o mistério do Universo está no próprio
Universo.
Na hipótese da criação relativa, o Nada e o Tudo são duas
faces da mesma moeda, duas formas de o Universo apresentar-se:
O ou (-999. .. + 999 ... ). Não havendo nada externo ao Universo,
compreende-se que ele é Tudo e é auto-suficiente. Na hipótese da
não-criação, o Universo é formado pela substância eterna, que
possui a propriedade de automodificar-se incessantemente. Toda a
transformação que ocorre no Universo ocorre por conta do próprio
Universo. Dessa forma, a hipótese da não-criação também
apresenta um Universo que é Tudo e é auto-suficiente.
O Deus do cristianismo, judaísmo e islamismo, que se posiciona
externamente ao Universo e, separado dele, o cria e rege, é
totalmente desnecessário e até mesmo incompatível com as
hipóteses supramencionadas. Nelas, o Universo não precisa de uma
justificativa para existir; simplesmente existe.
III - Refutação aos argumentos de São Tomás de Aquino
 
Analisemos os argumentos que São Tomás de Aquino expôs
como provas da existência de Deus25, e que são, até hoje, aceitos
pela Igreja Católica Apostólica Romana. Tais argumentos, apesar de
não serem totalmente destituídos de lógica, estão muito longe de
serem suficientes para provar a existência de um Deus pessoal
como o cristão.
Afirma o filósofo cristão que:
1. ''A realidade de transformação requer um agente de
transformação."
Não vejo muito o que criticar sobre esse argumento, mas
também não enxergo como ele poderia servir de prova para a
existência de Deus. O referido "agente de transformação" não
precisa ser uma entidade personificada e independente, separada
do universo como o Deus pessoal; mas poderia perfeitamente ser
uma propriedade intrínseca ao Universo, uma característica de
mutação, de poder mudar-se. Assim não é preciso que exista algo
que modifique o Todo, sendo bem mais plausível que o Todo,
modifique a si próprio, já que lhe é inerente a propriedade da
mutação. Além disso, se o Todo, por definição, é tudo, não pode
haver nada externo a ele que o modifique.
2. "A cadeia de causalidade necessita fundar-se em uma
causa primeira que não é causada."
Como já foi dito, o argumento de São Tomás de Aquino que
estamos a refutar não serve, em absoluto, para demonstrar a
existência de um Deus pessoal. Se, de qualquer modo, devesse
haver algo que não tenha sido causado, esse algo não precisaria
ser Deus, mas poderia ser o próprio Universo. Aliás, isso decorre
também da aplicação do princípio científico da Navalha de Occam,
segundo o qual, se algo é explicado com igual eficiência por duas
hipóteses distintas, a mais simples (que contiver o menor número de
elementos ou entes) deve ser considerada correta. Por mais
complexo que seja (ou pareça ser) o Universo, este não se tomará
mais simples com o acréscimo de um "Ser-lmaterialOnipresente-
Onipotente-Onisciente-e-de-Perfeita-Bondade''. Tal ser seria, sem
dúvida, de insuperável complexidade.
O Universo é tudo o que existe. Conceitos como tempo e
espaço não fazem sentido fora do contexto do Universo. Como
explica Stephen Hawking, "(...) na relatividade geral, tempo e
espaço não existem independentemente do Universo ou um do
outro"26. Assim, seria irracional buscar uma causa primeira
temporalmente anterior (e espacial mente exterior) ao Universo
porque o tempo (e espaço) só faz sentido no contexto do Universo.
O Universo não existe no espaço e no tempo, estes é que existem
no Universo. Não pode existir antes, nem fora do Universo.
3. "Os fatos contingentes do mundo (fatos que poderiam
não haver sido como são) pressupõem um ser
necessário."
São Tomás diz que os fatos que podem ou não acontecer, fatos
incertos, acidentais, pressupõem um ser necessário. Tal afirmação
do santo cristão decorre do fato de a mentalidade dos teístas exigir
que, por trás de tudo, haja uma intenção. Fatos despropositais, para
eles, não podem existir; tudo é fruto de deliberação, é atitude
consciente - se um fato ocorre sem ter sido por vontade consciente
de alguém, então, aconteceu porque Deus assim decidiu.
Quando ocorre algo raro, pouco provável (ainda mais se tal
ocorrência vem em benefício de alguém), ouvese: Isso foi a vontade
de Deus. Entretanto, é preciso ter em mente que um fato
imprevisível e pouco provável não deixa de ser possível. Justamente
pela sua possibilidade de ocorrência ser pequena é que ele
acontece raramente, mas, caso ainda não tenha ocorrido, poderá
ocorrer. Não é preciso fé ou recorrer a Deus para isso: essa área é a
Matemática que explica.
Se lançarmos 100 dados numerados de I a 6 de uma só vez, a
possibilidade de que a soma de seus números seja 600 será
muitíssimo remota, mas existe. Se isso ocorrer, não significa que
houve um evento sobrenatural - simplesmente a possibilidade
existia e o fato ocorreu. Caso contrário, cada vez que alguém
ganhasse na loteria, isso seria um milagre 27 ; quando, na verdade,
o improvável seria nunca existir vencedor. Tanto pode ocorrer que
uma pessoa leve um tiro à queima roupa, que passe próximo a
vários órgãos vitais sem provocar danos que ponham em risco a sua
vida, como também pode ocorrer que uma bala perdida atinja uma
pessoa que esteja num lugar amplo e praticamente deserto e a mate
instantaneamente. Tais fatos só ocorrem, mesmo que vez ou outra,
porque são possíveis. Se não houvesse possibilidade para sua
ocorrência, jamais se concretizariam. Agora, se um tanque de
guerra passasse por cima da minha cabeça desprotegida e eu
escapasse ileso; ou se eu pulasse da minha janela e saísse voando
por aí com um simples abanar de mãos; ou se uma perna humana
amputada começasse a regenerar-se espontaneamente, até surgir
uma nova perna, aí sim, talvez se pudesse falar em milagre.
Entretanto, não há nenhuma evidência digna de crédito de que tais
fatos já tenham ocorrido. O texto abaixo, de Sagan, fala sobre
pretensas curas miraculosas:
"Centenas de milhões de pessoas têm ido a
Lourdes ( ... ) na esperança de ser curadas. ( ... ) A
Igreja Católica Romana rejeitou a autenticidade de
um grande número de pretensas curas
miraculosas, aceitando em quase um século e
meio apenas 65 (de tumores, tuberculose, oftalmia,
bronquite, paralisia e outras doenças, mas
nenhuma regeneração de membro ou de medula
espinhal rompida). ( ... ). Portanto, a probabilidade
de cura em Lourdes é de cerca de uma em um
milhão; é mais ou menos tão provável ser curado
em Lourdes quanto ganhar na loteria, ou morrer no
acidente de um avião de linha regular e
selecionado ao acaso - inclusive o que se destina a
Lourdes.
A taxa de regressão espontânea de todos os
cânceres, em conjunto, é estimada entre uma em I
O mil e uma em 100 mil. Se apenas 5% dos que
vão a Lourdes ali estivessem para tratar de seus
cânceres, deveria haver entre cinqüenta e
quinhentas curas miraculosas só de câncer. Como
apenas três das 65 curas autenticadas são de
câncer, a taxa de regressão espontânea em
Lourdes parece ser inferior à que existiria se as
vítimas tivessem simplesmente ficado em casa. É
claro que, se você é um dos 65 casos, vai ser
muito difícil convencê-lo de que a viagem a
Lourdes não foi a causa da regressão de sua
doença ...". 28
No Universo as coisas simplesmente ocorrem, transformam-se,
sem que haja, por trás disso, qualquer intenção ou pensamento. O
vento move as dunas, agita as folhas e soa seu som característico
sem pensar nem decidir nada. A própria existência do Universo, da
vida humana etc. não possuem qualquer propósito: eles
simplesmente existem. A idéia de propósito está intimamente ligada
à vontade, a qual só existe em seres vivos (além do homem,
diversos outros animais manifestam vontade e inteligência,
especialmente entre mamíferos e aves). A existência e
complexidade do Universo e da vida são explicadas claramente pela
ciência como decorrentes de um processo evolutivo guiado pela
seleção natural, sem que seja necessário o envolvimento de
qualquer ato de vontade. Negar isso, hoje, é praticamente tão
absurdo como dizer que a Terra é achatada e o Sol orbita ao seu
redor.
Considerar que coisas ruins só ocorrem porque as leis físicas
que regem o Universo são injustas seria absurdo. Em primeiro lugar,
considerar as coisas como justas ou injustas é uma atitude humana
além de muito relativa (o que é bom para um pode ser horrível para
outro). Em segundo lugar, tem-se que considerar que o Universo e
as leis físicas não são humanos, mas impessoais. As idéias de
bondade e maldade, justiça e injustiça ocupam o campo restrito das
relações entre seres dotados de personalidade; não há como ligá-
las ao Universo como um todo.
Com o que disse, não quero afirmar que tenhamos uma vida
desprovida de fundamentos éticos. Pelo contrário, penso que é
indispensável que procuremos nos relacionar com os outros e com o
mundo de forma ética e responsável. O que eu disse é que valores
morais são inaplicáveis ao Universo em si (seria como discutir se
um grão de areia é justo ou injusto ao cair em nosso olho), mas são
aplicáveis a nós, seres humanos, pois dispomos de consciência e
liberdade de ação 29.
4. "Pode-se observar uma gradação das coisas desde o
mais alto ao mais baixo, e isto aponta a uma realidade
perfeita no ponto mais alto da hierarquia".
O argumento é falho pois trata de conceitos relativos como se
objetivos fossem. Ora, o que pode ser a perfeição, se as
concepções de bondade, beleza, grandeza e justiça variam
conforme a pessoa, a época e a sociedade? A referida "gradação
das coisas" não é intrínseca a elas, mas reside nos olhos do
observador: é a impressão individual e subjetiva que se tem de algo.
Não existe o perfeito. Nem mesmo as pessoas, individualmente, têm
uma concepção clara do que seria perfeito para elas mesmas. É
inútil que todos concordem quanto à perfeição de Deus, porque
jamais haverá concordância quanto ao conteúdo dessa subjetiva,
vaga e imprecisa palavra.
Suponhamos, então, que se fale de uma perfeição de uma
gradação que sejam universais e imutáveis, acima da opinião do ser
humano. Nesse caso, a frase de São Tomás está equivocada, pois
quando ele disse "Pode-se observar uma gradação das coisas
desde o mais alto até o mais baixo ... " ele dá a entender que a
mesma gradação e perfeição podem ser observadas por todos os
seres humanos (até mesmo porque ele estaria sendo incoerente se
propusesse o contrário). Além do mais, uma perfeição absoluta e
universal, mas que não possa ser percebida por todos, não é nem
absoluta, nem universal. Ao final das contas, na melhor das
hipóteses, a frase de Tomás de Aquino redunda no seguinte: Deus é
perfeito segundo suas próprias convicções ou regras. Ora, mas isso
não é nenhuma façanha ... Até Hitler poderia ter se achado
moralmente perfeito segundo suas próprias convicções.
5. ''A ordem e o desenho da natureza demandam como
fonte um ser que possua a mais alta sabedoria. "
Esse é o conhecido argumento do projeto. Ainda que não se
dispusesse de qualquer conhecimento sobre como a Natureza se
autocompõe e auto-evolui, já se poderia contestar esse argumento,
pois ele somente substitui um problema por outro. O raciocínio é
simples: um ser capaz de criar coisas tão complexas, por certo
também será incrivelmente complexo. Assim sendo, e utilizando o
mesmo argumento do projeto, precisaria ter sido criado por outro ser
"da mais alta sabedoria". Cai-se, assim, na problemática conclusão
de que seria necessário haver infinitos "criadores de criadores".
No entanto, a c1encia resolveu o problema e sabeexplicar, de
forma racional, como a complexidade pode advir de uma situação
mais simples, sem a necessidade de recorrer a qualquer divindade.
A explicação se dá pela Teoria da Evolução por Seleção Natural.
Não é uma simples teoria, como insistem em dizer os criacionistas
bíblicos, mas, ao contrário do criacionismo, o evolucionismo conta
com vasto campo de irrefutáveis evidências (tais como os registros
fósseis, os estudos de anatomia e desenvolvimento embriológico
comparados, e de bioquímica comparada). Enquanto o
evolucionismo se apóia em evidências, o criacionismo se apóia
somente em crenças.
A compreensão do funcionamento do processo evolutivo requer
que se tenha idéia do tempo no qual ele vem ocorrendo. Em outras
palavras, é necessário saber que os primeiros organismos vivos
unicelulares apareceram na Terra há, aproximadamente, 3,5 bilhões
de anos. O mecanismo básico da seleção natural é muito simples:
"as mudanças prejudiciais levam à extinção; as mudanças benéficas
permanecem e servem de base para novas mudanças". O biólogo
Richard Dawkins explica de forma simples e clara essas idéias
centrais:
"Nós podemos seguramente concluir que os corpos
vivos são bilhões de vezes mais complicados -
muito improváveis estatisticamente -para terem
surgido por pura sorte. Como, então, eles
surgiram? A resposta é que a sorte entra na
história, mas não um ato de sorte simples,
monolítico. Ao invés disso, uma série completa de
pequenos passos de sorte, cada um, pequeno o
suficiente para ser um produto acreditável de seu
predecessor, ocorreu um após o outro em
seqüência. Esses pequenos passos de sorte são
causados pelas mutações genéticas, mudanças
aleatórias-erros na verdade-no material genético.
Eles dão origem às mudanças na estrutura dos
corpc,.; existentes. A maioria dessas mudanças é
eliminatória e leva à morte. Uma minoria delas
acaba se tornando pequenos avanços, levando a
melhorias na sobrevivência e reprodução. Por esse
processo de seleção natural, essas mudanças
aleatórias que acabam sendo benéficas finalmente
se espalham através da espécie e se tornam a
norma. O cenário está agora preparado para a
próxima pequena mudança no processo
evolucionário. Depois de, digamos, mil dessas
pequenas mudanças em série, cada mudança
providenciando a base para a próxima, o resultado
final se tornou, pelo processo de acumulação,
complexo demais para ter surgido em um único ato
de sorte.
( ... )
A evidência para a evolução é tão convincente que
o único meio de salvar a teoria criacionista é
assumir que Deus deliberadamente plantou
enormes quantidades de evidência para fazer
parecer que a evolução tenha ocorrido. Em outras
palavras, os fósseis, a distribuição geográfica dos
animais, e por aí vai, são todos um gigantesco
conto do vigário. (...)". 30
O renomado biólogo continua, no mesmo texto, explicando que
o código do DNA, base da hereditariedade na vida (e clara evidência
de que todos os seres vivos são descendentes de um ancestral
comum), também é extremamente complexo para ter surgido de um
único ato de sorte. Dessa forma, o DNA foi o resultado de uma
forma de seleção cumulativa anterior ao surgimento da vida, na qual
compostos químicos complexos eram formados a partir de outros
mais simples. Menciona que no momento imediatamente posterior
ao Big Bang tudo era formado de hidrogênio puro, o mais simples
composto químico.
Termina seu texto com as seguintes palavras:
"(...) mesmo se um físico precisa postular um
mínimo irredutível que deveria estar presente no
começo, para que o universo começasse, esse
mínimo irredutível é certamente extremamente
simples. Por definição, explicações construídas de
premissas simples são mais plausíveis e mais
satisfatórias do que explicações que têm começos
estatisticamente improváveis e complexos. E você
não pode conseguir algo mais complexo que um
Deus Todo-Poderoso!" 31
A ciência nos mostra um Universo auto-suficiente. Não é
necessário recorrer a um ser inteligente que o tenha criado, e que o
comande por meio de "leis", posto que os fenômenos naturais
(mesmo os aparentemente "projetados") não necessitam de
qualquer intervenção externa e intencional para ocorrerem. A ordem
que se observa na Natureza pode existir - e existe -
independentemente de qualquer espécie de consciência. O fato de
muitas pessoas não conseguirem "visualizar" isso se dá, a meu ver,
porque o homem observa os fenômenos do Universo comparando-
os, analogicamente, com os fenômenos decorrentes das ações
humanas, que muitas vezes denotam consciência e personalidade.
Ficando preso a essa errônea comparação, Jª não consegue
imaginar a ordem lógica dissociada da intencionalidade.
É falsa a impressão de que os fenômenos naturais obedecem a
leis naturais impostas. Na verdade é a própria natureza das coisas
que determina seu destino. Como explica Peter Atkins, a liberdade
total leva, naturalmente, à aparição de restrições, gerando um
comportamento que aparenta obedecer a regras. As regras, então,
não são mais do que os comentários que nós fazemos a respeito do
desenvolvimento livre e natural das coisas 32. Bertrand Russel, em
uma palestra proferida em 6 de março de 1927, referiu-se a essa
falsa impressão da existência de um legislador universal e a
algumas problemáticas decorrentes da indagação sobre o que teria
levado Deus a escolher determinadas regras, em vez de outras:
"(...) as leis naturais são uma descrição de como a
coisas de fato procedem e, não sendo senão uma
mera descrição do que elas de fato fazem, não se
pode argüir que deve haver alguém que lhes disse
para que assim agissem, porque, mesmo supondo-
se que houvesse, estaríamos diante da pergunta:
'Por que Deus lançou justamente essas leis e não
outras?' Se dissermos que Ele o fez por seu
próprio prazer, e sem qualquer razão para tal,
verificamos, então, que há algo que não está
sujeito à lei e, desse modo, se interrompe a nossa
cadeia de leis naturais. Se dissermos, como o
fazem os teólogos mais ortodoxos, que em todas
as leis feitas por Deus Ele tinha uma razão para
dar tais leis em lugar de outras - sendo que a
razão, naturalmente, seria a de criar o melhor
universo, embora a gente jamais pensasse nisso
ao olhar o mundo - se havia uma razão para as leis
ministradas por Deus, então o próprio Deus estava
sujeito à lei, por conseguinte, não há nenhuma
vantagem em se apresentar Deus como
intermediário. Temos aí realmente uma lei exterior
e anterior aos editos divinos, e Deus não serve
então ao nosso propósito, pois Ele não é o
legislador supremo." 33
Voltando, então, ao processo de seleção natural, percebe-se
que não se trata de um conjunto de regras impostas e seguidas pela
Natureza. Isso seria uma mistificação. Arriscaria dizer que a
evolução da Natureza guiada por um processo de seleção natural
resume-se, muito basicamente, em três idéias:
1º - A Natureza não é estática;
2º Algumas mudanças dão origem a situações estáveis; outras,
a situações instáveis e fugazes;
3º As mudanças que dão origem a situações fugazes pouco
interferem na cadeia de causalidade; enquanto as que dão
origem a situações mais estáveis servem de base para
alterações seguintes.
O leitor deve compreender a naturalidade dessas três idéias.
Não são regras externamente impostas a guiar os fenômenos, mas
uma óbvia decorrência da mera existência de algo que não seja
totalmente estático. Qualquer processo de continuidade não poderia
ocorrer de modo diverso. Quando o acaso, entre as inúmeras
combinações fugazes ocorridas, levou a uma combinação
autoperpetuante (capaz de multiplicar-se), "encontrou" uma forma
especial de estabilidade. Com base nisso, surgiram, posteriormente,
mecanismos autoperpetuantes ainda mais complexos, tal como o
DNA. E aqui estamos nós! As sucessivas combinações levam a uma
aparente complexidade, mas o processo em si, que leva a essa
complexidade, é de uma total simplicidade e naturalidade (não é por
acaso que se deu o nome de seleção natural). Não resta qualquer
papel para um suposto Deus, a não ser ficar sentado observando
como o Universo evolui por conta própria. E, assim, cai por terra
qualquer pretensão humana de ser o grande projeto de uma mente
superior.
"( ... ) Si hay átomos, a su debido tiempo habrá
moléculas; y si hay moléculas en ambientes cálidos
y húmedos, a su debido tiempo habrá elefantes" 34
IV - Sobre a fé
 
Fé, especialmente no campo religioso, pode ser conceituada
como a crença e confiança absolutas em algo, independentemente
de qualquer evidência ou embasamento racional.
"( ... ) E a fé é a certeza absoluta de coisas não
evidentes (argumentum non apparentium), que são
um problema mesmo do ponto de vista da 'razão',
tal como é entendida pela Igreja católica (embora
esta última evite reconhecê-lo e, com Tomás,
afirme a 'harmonia' entre fé e razão)". 35
Ao exigir a suspensão do pensamento crítico, a adesão à fé
termina por induzir (às vezes, quase impor) a crença em fatos que
desafiam todo o conhecimento que já se obteve sobre o mundo
natural. O indivíduo que tem fé, ao menos em alguns aspectos,
tende a acreditar somente naquilo que gostaria que fosse verdade
e/ou no que as pessoas com quem mantém contato, direto ou
indireto (no último caso, através dos meios de comunicação, por
exemplo), impõem como sendo verdades indiscutíveis. O ceticismo
é repreendido mediante forte preconceito social, o que termina por
impulsionar ainda mais os indivíduos no sentido de aderirem à fé e
repudiarem a atitude dos que não o fazem.
Há quem diga, talvez com alguma razão, que aderir a um
sistema de valores requer fé em tal sistema e, nesse sentido, todo e
qualquer ser humano possui alguma fé. Explicam que qualquer
sistema de valores precisa apoiar-se em algum(s) fundamento(s) a
priori (ou seja, premissas, que não se podem provar, simplesmente
são aceitas); caso contrário, não haveria sistema, mas um conjunto
desconexo de normas morais. Devo admitir que, com relação a esse
fundamento a priori, a "escolha é do freguês", muito embora o
condicionamento social limite muitíssimo o grau de liberdade nessa
escolha. E, finalmente, não posso negar que a opção por um
fundamento implique uma crença: a de que este ou aquele
fundamento é bom. Entretanto, é espécie sui generis de crença,
diferente da fé que critico. Ora, a escolha de um fundamento ético
não pode estar objetivamente certa ou errada, posto que inserida
num domínio totalmente subjetivo.
Para que se julgue um sistema de valores (ou seu fundamento a
priori), será necessário utilizar as regras de outro sistema (ou do
próprio que está sendo julgado). Assim, não haverá sistemas ou
valores que, em si mesmos, sejam certos ou errados; apenas
opiniões sobre isso, baseadas nas normas do sistema do julgador.
Aliás, nada pode ser bom ou mau em si mesmo, porque tais
conceitos referem-se a algo que não tem realidade objetiva e, assim
como os demais valores, são mecanismos mentais - "opiniões" -por
mais importantes que nos sejam 36 É totalmente diferente de
acreditar que o Universo tem seis mil anos; que a vida surgiu
conforme a perspectiva criacionista, ou conforme a evolucionista;
que a Terra é esférica; ou mesmo que exista um Deus pessoal; por
que aí tratamos de fatos objetivos, e nossas opiniões estarão certas
ou erradas.
Em determinadas ocasiões, a curto prazo, o sentimento de fé
pode exercer um papel benéfico: um indivíduo que está prestes a
morrer e que sempre acreditou em vida após a morte tem a fé na
vida "além-túmulo" como uma importante fonte de consolo que, se
retirada, ocasionará enorme sofrimento (e não penso que, nessa
situação, deve-se retirar-lhe tal consolo). Entretanto, a longo prazo,
e sobretudo numa perspectiva da coletividade humana, penso que a
fé é prejudicial.
"Numa vida curta e incerta, parece cruel fazer
qualquer coisa que possa privar as pessoas do
consolo da fé, quando a ciência não pode remediar
a sua angústia. Aqueles que não conseguem
suportar o peso da ciência têm a liberdade de
ignorar os seus preceitos. Mas não se pode fazer
ciência aos pedacinhos, aplicando-a quando nos
sentimos seguros e ignorando-a quando nos
sentimos ameaçados - mais uma vez, porque não
temos sabedoria para tanto. A não ser dividindo a
mente em compartimentos herméticos separados,
como é possível voar em aeroplanos, escutar rádio
ou tomar antibióticos, sustentando ao mesmo
tempo que a Terra tem cerca de 10 mil anos ou que
todos os sagitarianos são gregários e afáveis?". 37
A melhor forma de conviver com a realidade é procurar
conhecê-la; e isso não pode ser feito aceitando-se explicações
sobre a natureza fundadas em supostas "revelações". Tudo que
afasta o homem da liberdade de questionar e raciocinar obstruirá o
desenvolvimento e o amadurecimento da sociedade. Obviamente, a
atividade questionadora não deve ser concebida sob uma feição
destrutiva; mas sempre construtiva. É bem verdade (permitam-me a
metáfora) que para construir um prédio, às vezes seja necessário
destruir um antigo que ocupava seu lugar; mas, nesse caso, o fim
almejado não é a destruição de um prédio, senão a construção de
outro. A atividade questionadora deve ser levada a cabo com
prudência, paciência e, por que não dizer, com amor.
Um dos principais papéis exercidos pela fé é o de apoio,
sustentáculo, para suportar as vicissitudes da vida. Serve-se, para
isso, da crença em fatos indemonstráveis, dos quais, sequer, pode
haver questionamento (e, aí, o medo da punição, e da perda do
apoio, exercem papel crucial). Nesse sentido, diria que a adesão à
fé constitui um sinal de fraqueza, de rendição frente à vida. O
ceticismo e a racionalidade, por sua vez, são sinais de força; pois
demonstram que o indivíduo decidiu sustentarse com o que é real e
apreciar o que é real. Além de tudo, é uma atitude intelectualmente
honesta.
É a fé, e não a razão e a observação do mundo, que justifica as
crenças religiosas. Aquele que crê em Deus geralmente o faz
seguindo a "voz do coração". No entanto, ao lançarmos os olhos
sobre as sociedades humanas, percebemos a grande diversidade
de crenças existentes: algumas semelhantes, outras muito
diferentes, ou até frontalmente conflitantes em seus dogmas. Fica
claro que, nesse campo, "seguir o coração" pode levar aos mais
variados caminhos e concepções, o que evidencia que a fé não é
um bom guia para a obtenção de conhecimento sobre a realidade.
A credulidade é disseminada com facilidade, pois crer
corresponde a uma atitude intelectualmente passiva e,
conseqüentemente, muito mais cômoda do que o posicionamento
intelectualmente ativo do questionador rigoroso. "Pensar" é muito
mais difícil do que acreditar. É também verdade que pouquíssimas
pessoas têm acesso a um conhecimento científico básico e ao modo
de pensamento cético, o qual é pouquíssimo difundido pelas
escolas, imprensa etc. Tais instituições geralmente mostram-se mais
inclinadas à credulidade. Ceticismo não faz sucesso, mas livros
esotéricos e de auto-ajuda ( que vendem receitas para felicidade tão
fáceis como as do preparo de um macarrão instantâneo) vendem
como água. Sem dúvida nenhuma, raciocinar não é uma atitude
agradável para a maioria das pessoas.
Outro fator que não pode ser desconsiderado é
a influência que a sociedade e a família exercem na
formação da personalidade religiosa dos indivíduos que a
compõem. E evidente que se um indivíduo nasce e vive no seio de
uma sociedade e família cristãos, a probabilidade de que ele se
torne cristão é muitíssimo maior do que a possibilidade de que
venha a aderir a qualquer outra religião. O mesmo pode ser dito
com relação às sociedades e famílias budistas, islâmicas,
hinduístas, judias etc.: o indivíduo provavelmente seguirá os
costumes religiosos do seu meio social. Isso se estende à moral, à
moda, e assim por diante.
Dessa maneira, a disseminação da fé religiosa envolve
importantes fatores históricos, sociais e políticos. No Brasil e demais
países da América Latina, por exemplo, infelizmente é necessário
admitir que um relevante fator que contribuiu para a disseminação
da fé cristã foi a violenta dominação européia durante a conquista
da América. Nessa brutal e sangrenta conquista realizada por
portugueses e espanhóis, nossos povos nativos foram
barbaramente assassinados, tiveram sua cultura destruída e foram
vítimas da imposição de uma nova cultura e fé religiosa que nada
tinham a ver com eles. Por isso, parece-me que a chegada dos 500
anos de descobrimento (500 anos de dominação e imposição de
uma nova cultura e fé religiosa), principalmente para os poucos
índios que restaram, não constituem exatamente um fato a ser
comemorado.
Foram palavras do padre José de Anchieta, citadas por Gilberto
Cotrim, com relação aos índios:
""Pouco fruto se pode obter deles se a força do
braço secular não acudir para domá-los. Para esse
tipo de gente não há melhor pregação do que a
espada e a vara de ferro." 38
Outra brutalidade imensa cometida pela Igreja Católica foi a
Santa Inquisição (que, de santa, nada teve), na qual horríveis
atrocidades, como mortes e inimagináveis torturas físicas e/ou
psicológicas, foram cometidas contra aqueles que, de qualquer
forma, contrariavam os dogmas da Igreja. Tal instituição, sem
dúvida, contribuiu para reduzir o surgimento de novas crenças e
formas de entender o mundo durante um longo período da história,
visto que qualquer um que tomasse uma atitude (ou até mesmo
pensasse) diferente daquela aceita pela Igreja Católica corria o
grave risco de ser barbaramente torturado e até mesmo queimado
vivo.
Não fossem tais atrozes violências (desde o forte braço do
Império Romano até a nada santa Inquisição), o número de cristãos
no mundo provavelmente seria bastante inferior. Será que um Deus
bom e justo permitiria que tais meios, tão brutais e humilhantes,
tivessem um papel tão importante (provavelmente central) na
disseminação da crença nele? Decerto o número de adeptos não é
um bom modo para avaliar a veracidade e a credibilidade de
determinada religião, já que poucos "argumentos" conseguem ser
tão convincentes quanto a espada e a vara de ferro.
V - Religião, credulidade e dogmatismo
 
A falta de compreensão (e de interesse em compreender) dos
fenômenos naturais, a complexidade de tais fenômenos, a pouca
rigorosidade nos processos de questionamento, acarretando uma
predisposição a aceitar quaisquer explicações, por mais fantasiosas
e incoerentes que sejam, são importantes fatores a induzir as
massas para a religião de um modo geral. Acrescente-se a isso uma
tendência e um desejo naturais que muitas pessoas têm de crer em
fatos estranhos, pitorescos, que desafiem a noção de
normalidade39. O pensamento cético e rigoroso passa a ser
considerado pela sociedade como entediante, descortês e
arrogante. Isso em prejuízo da própria sociedade, que substitui o
conhecimento racional sobre a natureza por algo que se assemelha
a um conto de fadas (ver, por exemplo, Gênesis, na Bíblia). Até aqui
não nos referimos exclusivamente ao teísmo tradicional, mas ao
amplo conjunto de crenças religiosas (envolvendo, ainda, as
superstições, além de temas ligados ao esoterismo, tais como a
astrologia, numerologia, ufologia etc).
Carl Sagan nos traz uma demonstração clara da credulidade
humana. O trecho nos mostra como as seções de horóscopo podem
enganar leitores inadvertidos por meio de uma técnica chamada
leitura fria:
"Um cientista coloca um anúncio num jornal
parisiense oferecendo horóscopo grátis. Recebe
cerca de 150 respostas, cada uma, conforme
solicitado, dando os detalhes do lugar e da hora do
nascimento. A cada um dos solicitantes é então
enviado o mesmo horóscopo, junto com um
questionário para verificar o grau de exatidão dele.
Dos que receberam o horóscopo, 94% (e 90% de
suas famílias e amigos) respondem que pelo
menos podiam se reconhecer nas características
nele expressas. Entretanto, o horóscopo fora
traçado para um serial killer francês. Se um
astrólogo pode ir tão longe sem sequer ter contato
com seus clientes, imagine-se do que não seria
capaz alguém sensível às nuanças humanas que
não fosse exageradamente escrupuloso". 40
Quando a credulidade e o dogmatismo invadem frontalmente o
campo da ciência, os danos costumam ser graves e visíveis; é a
religião propagando algo que se poderia chamar de "cultura da
desinformação". Vêem-se pais que proíbem que seus filhos
recebam sangue por meio de transfusões, quando esse é o único
meio de salvar-lhes a vida; condenação ao uso de camisinha,
contribuindo para o alastramento da AIDS, entre outras doenças
sexualmente transmissíveis (e aí entra o problema da satanização
da sexualidade e do prazer de um modo geral, o que já levou muitas
mulheres à fogueira); o desincentivo à prática de transplantes de
órgãos; a condenação da atividade científica de modo geral (muito
embora tais pessoas usufruam de diversos benefícios trazidos pela
ciência) etc. O conflito entre ciência e religião é tamanho que,
muitas vezes, na mesma sala de aula em que um estudante
aprende sobre evolução das espécies e sobre a importância da
prevenção contra as doenças sexualmente transmissíveis, o
professor da matéria "religião" lhe "des-ensina" dizendo-lhe que as
diversas espécies foram criadas por Deus mais ou menos como um
artesão fabrica bonequinhos de argila, e que o uso do preservativo
constitui um gravíssimo pecado.
O fator central de estímulo à mentalidade religiosa e/ ou
dogmática não é o desconhecimento, mas a tendência a criar ou
aceitar explicações independentemente de qualquer verificação
racional e imparcial (credulidade). O desconhecimento sempre
existiu e sempre existirá; a questão está no modo como o ser
humano reage à sensação da dúvida gerada por ele. Essa sensação
não deve ser vista como um problema a ser combatido, mas como
uma motivação para que procuremos respostas sólidas e racionais.
Tais respostas, por sua vez, não devem ser entendidas como
definitivas, sendo importante sua constante exposição ao
questionamento para que talvez uma outra, mais precisa, seja
futuramente encontrada. Nesse sentido, o que impulsiona o homem
rumo ao saber é a dúvida; mas a religião, por meio da aceitação de
respostas obtidas por métodos não-racionais, às quais se confere o
status de definitivas, propõe a sua neutralização. Coloca-se, assim,
um obstáculo quase intransponível no caminho em direção à
obtenção do conhecimento.
Transcreverei alguns trechos de Nietzsche que contribuem para
o enriquecimento da obra. Apesar da admiração que mantenho pela
obra do autor, peço aos leitores que relevem o tom iracundo e
ofensivo de suas palavras-que não se coadunam às intenções deste
livro-e se fixem às idéias por trás delas. Há também que considerar
a época em que o texto foi escrito (ano 1888). Sobre o dogmatismo
e a credulidade predominantes na mentalidade religiosa, disse
Nietzsche:
"( ... ) Falta-lhe também a dialética, assim como a
idéia de que uma crença, uma 'verdade', pode ser
provada por razões (as suas provas são 'luzes'
interiores; sensações de prazer internas e
afirmações de si próprio, tudo 'provas de força').
Semelhante doutrina não pode contradizer; não
compreende em absoluto que possam existir outras
doutrinas; é incapaz de imaginar um juízo contrário
... ". 41
"( ... ) O crente não possui a liberdade de ter uma
consciência para a questão do 'verdadeiro' e do
'falso'; aqui a probidade seria a sua perdição. A
dependência patológica da sua óptica faz do
convicto um fanático( ... ). Mas as grandes atitudes
desses espíritos enfermos, destes epiléticos das
idéias, atuam sobre as grandes massas; os
fanáticos são pitorescos; a humanidade gosta mais
de ver gestos do que de ouvir razões ...” 42
Especificamente com relação ao teísmo tradicional, a resposta
para o desconhecido assume uma forma personificada: Deus. Um
ente personificado apresenta a importante peculiaridade de poder
servir como refúgio, um "ombro amigo", num mundo onde se
experimentam tantas dificuldades, carências e frustrações no
tocante às relações humanas. Além disso, crer em um "Criador"
afasta do homem a sensação, incômoda para alguns, de que a
existência do ser humano no Universo é algo nãointencional, sem
qualquer propósito externo. Evita, pois, o vazio existencial que
alguns podem sentir.
Sendo um ente imaginário, Deus pode amar seu idealizador na
medida e modo em que ele deseja; também pode apoiá-lo em
qualquer situação, porque, na verdade, 0 próprio indivíduo é que
está a se apoiar. Crer em Deus torna-se muito desejável, já que ele
pode ser um "amigo perfeito" a partir do momento que cada
indivíduo tem a liberdade de inventá-lo do modo que deseja. Pode,
ainda, justificar atitudes que, caso contrário, seriam consideradas
inaceitáveis; contanto que se transmita a idéia de que tais atitudes
têm a chancela de Deus. Assim, os valores que se dizem
"determinados por Deus" não são mais que valores sociais
atribuídos a ele para adquirirem maior eficácia impositiva. Neste
parágrafo já começamos a falar dos fatores envolvidos na difusão e
perpetuação do teísmo tradicional.
Ocorre que a conveniência da crença em Deus, exposta no
parágrafo anterior, não se manifesta de modo simples. Obviamente,
a criação do "Deus de cada um" não é assim tão livre, pois cada
sociedade, em cada época, possui sobre ele uma série de idéias
predefinidas. Essas idéias são transmitidas (ou impostas) aos
integrantes da sociedade, que tendem a aceitá-las, mesmo que se
mostrem contrárias aos interesses de muitos. Isso pode tornar a
idéia de Deus um poderosíssimo instrumento de manipulação e
contenção das massas (ou, em menor intensidadE', um meio de
defesa das massas). Evidentemente, todo esse processo de
"criação de Deus", tanto do ponto de vista individual, como do
social, se dá de modo inconsciente. Ninguém tem a consciência de
estar inventando uma entidade divina.
Idéias fortemente presentes no teísmo tradicional, como a do
julgamento divino, paraíso, inferno, pecado etc., induzem nas
pessoas forte "medo de não crer ", traduzindo-se numa verdadeira
"ditadura da religião". Esse é um fator de imensa importância no
tocante à difusão e perpetuação do teísmo tradicional.
(...) os 'pecados' tornam-se indispensáveis em toda
a sociedade organizada sacerdotalmente; são os
verdadeiros instrumentos do poder, o sacerdote
vive do pecado, tem a necessidade de que se
'peque' ... Princípio supremo: 'Deus perdoa a todo
aquele que faz penitência' - ou , por outras
palavras, ao que se submete ". 43
(...) 'Não julgueis!', dizem eles, mas mandam para
o inferno tudo o que encontram no seu caminho.
Enquanto deixam Deus julgar, são eles próprios
que julgam; quando glorificam Deus, é a si próprios
que se glorificam; exigindo as virtudes de que são
capazes - ou melhor, de que têm necessidade para
se manter - , enfeitam-se com o grande aparato de
uma luta pela virtude. (...)Leiam-se os Evangelhos
como livros de sedução pela mora/: essagentinha
requisitou a moral - sabiam perfeitamente o que a
moral representa! O melhor meio para conduzir a
humanidade pelo cabresto - eis a moral!". 44
O cristianismo, historicamente, e ainda hoje, sempre aplacou o
questionamento sobre seus dogmas usando as idéias de pecado e
inferno. A crença de que Deus está observando todas as nossas
ações e nossos mais íntimos
pensamentos, para condenar ao fogo eterno do inferno - "onde
haverá choro e ranger de dentes" - todos aqueles que não se
comportaram como "bons meninos" e não acreditaram
incondicionalmente, torna as mentes prisioneiras do terror. Qualquer
sutil questionamento sobre os dogmas religiosos é considerado
pecado e a liberdade de pensar e se manifestar é controlada a
rédeas curtas por um ente imaginário instalado dentro dos cérebros
crentes. Tal ente reúne em si os poderes de legislar, fiscalizar, julgar
e executar: em suma, é o maior dos ditadores. Uma doutrina que
tenha o terror como uma de suas principais bases de sustentação
sempre terá uma indiscutível face cruel, indigna e ilegítima; e as
ações e abstenções impulsionadas pelo medo carecem de
genuinidade. Enquanto existir o medo do inferno, inexistirá
liberdade.
Além da violência de ordem psicológica e moral que se viu e
que se vê na "imposição" do teísmo tradicional, deve-se lembrar da
própria violência física (torturas, mortes, guerras etc.) que
desempenhou, historicamente, papel muito relevante na sua
disseminação. A Igreja Católica, que durante a época em que
manteve profundos laços com o poder político utilizou-se por demais
da forçafísica para impor seus dogmas, hoje, felizmente, não adota
mais tais métodos.
A massificação do teísmo tradicional, especificamente de seu
aspecto dogmático, nos moldes expostos, traz graves prejuízos à
sociedade, limitando a capacidade de exercer a liberdade de
consciência. A genuinidade da conduta humana também é lesada
quando regramento dogmático-religioso coordena as atitudes das
pessoas de modo tão intenso que elas nem sequer se preocupam
em buscar algum sentido por trás das regras. A sociedade
dogmática é sempre preconceituosa e muitas vezes violenta.
VI - Questionando a inquestionabilidade da Bíblia (e de
qualquer outro "livro sagrado»)
 
Os livros "sagrados", que se dizem códigos de boa conduta,
inspirados diretamente por Deus, mostram-se repletos de
crueldades e contradições que apontam claramente seus
verdadeiros autores: os seres humanos. Transcreverei alguns
trechos da Bíblia 45 que me parecem de grande valia para
demonstrar essas afirmações. Algumas pessoas poderão
argumentar que a citação de trechos da Bíblia, sem a inclusão de
seu contexto, pode ser parcial. A tais pessoas lembro que basta
consultar a Bíblia para analisar o contexto; muito embora, como se
verá, os trechos citados (e diversos outros) são de tamanha
crueldade que não há contextos que possam salvá-los aos olhos
dos valores humanos atuais.
Veja como Ló se dispôs a proteger dois anjos que estavam em
sua casa em Gênesis 19: 5-8:
"(...) Eles chamaram Ló e perguntaram:
- Onde estão os homens que entraram na sua casa
esta noite? Traga-os aqui fora para nós, pois
queremos ter relações com eles.
Ló saiu para falar com os homens. Ele fechou bem
a porta e disse: - Por favor, meus amigos, não
cometam esse crime! Prestem
atenção: tenho duas filhas que ainda são virgens.
Vou trazê/as aqui fora para vocês. Façam com elas
o que quiserem. Porém não façam nada com esses
homens, pois são meus hóspedes, e eu tenho o
dever de protegê-los".
 
Sem dúvida, entregar duas filhas para serem abusadas
sexualmente é hoje incogitável para qualquer pessoa com o mínimo
de bom senso e amor paternal, mesmo se a razão fosse proteger
dois anjos. Isso é algo horrendo aos olhos de hoje ...
Agora, observe a postura que o Deus do Antigo Testamento
quer que se tome com relação aos infiéis, mesmo que eles sejam
nossos entes queridos. Em Deuteronômio 13: 6-9, lê-se:
"Talvez chegue perto de você o seu irmão, ou o
seu filho, ou sua filha, ou sua querida esposa, ou o
seu melhor amigo, procurando em segredo levá-lo
a adorar outros deuses que nem você nem os seus
antepassados adoravam. (. .. ) Não deixe que essa
pessoa o convença, nem escute o que ela disser.
Não tenha dó nem piedade dela e não procure
protegê/a. Mate essa pessoa a pedradas; atire a
primeira pedra, e, depois, que os outros atirem
pedras também".
Como poderia o bondoso e piedoso Deus apoiar tal
barbaridade, digna dos mais perversos vilões? Como conciliar o
conteúdo sanguinário desse trecho bíblico com a bela frase - "Atire
a primeira pedra aquele que não tiver pecado" - supostamente dita
por Jesus? A explicação é que - essa disparidade valorativa é
reflexo da relatividade dos valores do homem - único e verdadeiro
autor dessas frases, bem como de toda a Bíblia e qualquer outro
"livro sagrado". Os homens sempre inventam o Deus e os mitos que
lhes convêm.
Veja-se o que Moisés ordena em Números 31: 17 e 18:
"(...) Agora matem todos os meninos e todas as
mulheres que não forem virgens. Mas deixem viver
todas as meninas e moças que forem virgens; elas
pertencem a vocês”.
O trecho dispensa comentários ... Vejamos Números 15: 32 e
35:
"Quando os israelitas estavam no deserto,
encontram um homem catando lenha no sábado. (.
. .) Aí o Deus Eterno disse a Moisés:
- Esse homem deve ser morto; que todo o povo o
mate a
pedradas fora do acampamento!”.
Seriam essas as palavras de um Deus de amor e misericórdia
infinitos? Esse mesmo Deus fez o que consta no segundo livro de
Samuel 12: 13-16 e 18:
"Então Davi disse:
- Eu pequei contra o Deus Eterno.
Natã respondeu:
- O Eterno perdoou o seu pecado; você não
morrerá. Mas
porque, fazendo isso, você demonstrou tanto
desprezo pelo Eterno, o seu filho morrerá.
( ... )
Então o Deus Eterno fez que o filho de Davi e da
mulher de Urias ficasse muito doente. Davi orou
para que a criança sarasse e não quis comer nada.
Entrou no seu quarto e passou a noite inteira
deitado no chão. ( ... ) Uma semana depois, a
criança morreu ( ... ) . "
Resumidamente, o trecho diz: nós até poderemos ser
perdoados, mas nossos filhos devem ser severamente punidos
pelos nossos atos. Porém não pára por aí. Citemos Êxodo 20:5,
para demonstrar que as ordens de castigar a inocente prole pelos
atos de seus ascendentes não eram atos esporádicos do Deus
bíblico, mas faziam parte de sua rotina:
"Não se ajoelhe diante de ídolos, nem os adore,
pois eu, o Eterno, sou o seu Deus e não tolero
outros deuses. Eu castigo aqueles que me odeiam,
até os netos e bisnetos."
Algumas leis morais e religiosas contidas na Bíblia puderam
contribuir imensamente para as maiores atrocidades praticadas pelo
homem no decorrer da história. Observe como esta, que está em
Êxodo 22: 18, pôde incentivar o episódio histórico da diabólica
"Santa" Inquisição:
" - Mate toda mulher que fizer feitiçaria."
E haja fogueiras ...
Muito interessante observar que o poderoso Deus bíblico ainda
é capaz de arrepender-se e mudar de idéia. Isso não parece
incompatível com as supostas características da onisciência e da
justiça perfeita? Vejamos Êxodo 32: 14:
"Então o Deus Eterno mudou de idéia e não fez
recair sobre o povo a desgraça que havia
prometido."
As próprias palavras da figura bíblica de Jesus, em Lucas 12:5,
falam de um Deus que não pode ser visto senão como alguém cruel
e sádico; que se impõe, especialmente, pelo pavor que provoca:
"(...)Vou mostrar do que devem ter medo: Tenham
medo de Deus, que, depois de matar o corpo, tem
poder para ;ogar a pessoa no inferno. (...)."
Querem saber como é esse inferno? O próprio Jesus explica,
em Marcos 9:48, que é um local onde "os vermes que devoram não
morrem, e o fogo nunca termina".
Certamente Hitler teria adorado dispor de um lugar assim para
saciar seus perversos desejos de submeter os judeus a algumas
tenebrosas "experiências"; entretanto, o requinte em suas maldades
não conseguiu chegar a tal nível.
Esse é um dos principais métodos da ditadura da religião do
medo: acredite, pois, caso contrário, queimará eternamente nas
brasas do inferno. Sem dúvida, um excelente método para
convencer as pessoas a serem cristãs.
O mesmo Jesus bíblico não se mostra adepto dos ideais
humanistas em Lucas 12:47:
" - O empregado que sabe qual é a vontade do
patrão, mas não se prepara e não faz o que ele
quer, será castigado com chicotadas bem fortes."
Quem diria ... Se todos os empregados e empregadas do Brasil
soubessem dessas palavras, certamente, ou não amariam tanto
Jesus, ou não considerariam a Bíblia totalmente verdadeira ( ou
inventariam mais uma interpretação mirabolante).
Há um trecho da Bíblia que aparentemente não teria maiores
implicações. Entretanto, se lido atentamente, se perceberá nele um
desprezo pela vida de forma geral ou, na melhor das hipóteses, uma
simbologia bastante infeliz. Vejamos Mateus 21 : 18 e 19:
"No dia seguinte, quando voltava à cidade, Jesus
teve fome.
Viu uma figueira na beira da estrada e foi até lá,
mas não encontrou nada, a não ser folhas. Aí disse
à figueira:
- Nunca mais dê figos!
E na mesma hora a figueira secou." "
O mais interessante é que a própria Bíblia, em Marcos 11: 13,
afirma que, nesse episódio, não era época de figos e,
conseqüentemente, a figueira não poderia estar carregada de figos,
da mesma forma que uma mulher não pode parir um filho por mês.
Não se deve esquecer, ainda, de todo machismo implícito e
explícito na Bíblia. Basta citar que o termo "Deus", e a imagem que
se faz dele, presumem uma figura masculina (ninguém diz que
"Deus é mãe"). A mulher, como criação, assume um papel
secundário, tendo sido criada a partir da costela do primeiro homem
- Adão - para fazerlhe companhia. Até hoje, na Igreja, as mulheres
não ocupam um papel equivalente ao dos padres. O machismo foi
mais uma chaga na sociedade que a Bíblia contribuiu para
aprofundar e perpetuar. Em I Timóteo 2: 12-14, por exemplo, o
apóstolo Paulo ensina a Timóteo que:
"( .. .) Não permito que as mulheres ensinem ou
tenham autoridade sobre os homens: elas devem
ficar caladas. Porque Adão foi criado primeiro, e
depois Eva. E não foi Adão quem foi enganado; a
mulher é que foi enganada e desobedeceu à lei de
Deus."
E, ainda, em I Coríntios 11 :7-9:
"(...) O homem não precisa cobrir a cabeça, pois
ele é a imagem e a glória de Deus. Mas a mulher é
a glória do homem. Pois o homem não foi feito da
mulher, mas a mulher do homem. O homem não foi
criado por causa da mulher, mas a mulher por
causa do homem."
Pouco depois, o texto suaviza dizendo que nem o homem é
independente da mulher, nem a mulher o é do homem, porque,
assim como a mulher é feita do homem, o homem também é
nascido da mulher. Mesmo assim, fica claro e incontestável o
posicionamento machista da Bíblia.
Quero esclarecer que minha intenção não é criticar Deus, até
mesmo porque é ilógico criticar algo que não existe. Também não é
de fazê-lo com relação a Jesus Cristo, sobre quem, historicamente,
restam tantas dúvidas. As minhas palavras são, isto sim, dirigidas
contra a adoção da Bíblia e de seus personagens (bem como de
outros "livros sagrados") como fontes inquestionáveis de inspiração
para as ações do homem. Ora, como adotar como modelo
inquestionável de valores uma obra que, se analisada criticamente,
deixa mais do que claro que os seres humanos são seus únicos
autores? A ambigüidade moral encontrada em suas palavras e as
infindáveis contradições constituem inquestionável sinal de que as
diversas partes da obra em questão são o reflexo da carga
valorativa de um sem-número de indivíduos, nos mais diversos
períodos da história.
"Diz-se adequadamente que o diabo pode 'citar a
escritura para seus fins'. A Bíblia está cheia de
tantas histórias de moral contraditória que toda
geração encontra nela justificativa para quase
todas as ações que propõe -de incesto, escravidão
e homicídio em massa ao amor mais refinado,
coragem e abnegação. E essa desordem moral de
múltipla personalidade não se restringe ao
judaísmo e ao cristianismo. Pode-se encontrála
profundamente entranhada no Islã, na tradição
hindu, de fato em quase todas as religiões do
mundo".46
A religião dogmática traz uma grave conseqüência no campo
das relações humanas. A adoção como fonte dogmática de livros
"sagrados" moralmente ambíguos pode servir para "legitimar" as
mais variadas atitudes: desde as mais benéficos e altruístas47, até
(e aí que reside o perigo) as mais bárbaras e cruéis. A história do
cristianismo é vasta em episódios em que os textos bíblicos foram
usados para justificar as mais perversas atrocidades. Mas, muito
mais problemático e grave que a moralidade ambígua que se pode
encontrar em muitos livros "sagrados", é o dogmatismo e a
credulidade que levam pessoas a aceitar integralmente o conteúdo
de tais livros sem que façam qualquer questionamento.
VII - Religião e valores humanos
 
Apesar de o sentimento religioso ser benéfico - senão
necessário-, integrando a própria essência humana, não creio que o
mesmo possa ser dito em relação à adesão a uma instituição
religiosa dogmática que além de impor grave obstáculo ao livre
funcionamento da racionalidade humana, pode representar uma
base teórica perigosa para qualquer sistema de valores. Leva a uma
distorcida "teoria ética", que troca o verdadeiro significado das
ações. Em vez de justificar a importância de se fazer o bem com
uma íntima convicção de que é certo ajudar o próximo, o teísta
dogmático, muitas vezes, justifica tal ação dizendo estar cumprindo
a vontade de Deus; o que comumente denota uma obediência
movida pelo medo da punição, ou pelo desejo da recompensa. O
próximo, apesar de ser o alvo da "boa" ação do teísta extremante
dogmático, deixa de ser o motivo dessa mesma ação (ao menos no
campo teórico). Medo da punição, promessa de recompensa e
obediência passam a ser os pilares sobre os quais se ergue um
sistema de valores. Entretanto, é sabido que punição, recompensa e
obediência são meios adequados para o adestramento de cães; não
para justificar os mais importantes valores que compõem o caráter
de um ser humano.
Tenho observado o quanto, ainda hoje, é difundida a noção,
mesmo que inconsciente, de que Deus é capaz de perdoar tudo,
menos a falta de crença. São amplamente toleradas atitudes como a
infidelidade conjugal e a falta de amor e respeito à família como um
todo; o uso do poder e influência inerentes a um cargo que se detém
para a satisfação de interesses pessoais e mesquinhos,
apropriando-se do que é público e deixando à mingua a grande
maioria da população; o total individualismo e indiferença perante a
vida humana e a vida em geral. Na verdade, mais do que tolerar, a
sociedade induz as pessoas a agirem dessa forma, tachando de
"trouxas" aqueles que não o fazem. Por outro lado, o ato de
questionar a fé e negar-se a ela - especialmente no que se refere à
existência de Deus e à aceitação de Cristo como Salvador - é muito
malvisto. O indivíduo egoísta, cruel, hipócrita e antiético merece dar-
se bem porque é esperto; mas aquele que se nega a crer no que lhe
é imposto merece as chamas do inferno. Evidentemente, não se
trata de uma postura generalizada entre os crentes, mas está longe
de ser incomum.
Deve ser feita uma clara distinção entre o teísta fanático e o
teísta humanista; este último tende a ser tolerante, tem a mente bem
mais "aberta" e, ao contrário do primeiro, não deseja impor sua
crença, nem muito menos usar de violência para isso. É inegável
que hoje, no Brasil, o fanatismo cristão tem se mostrado bastante
menos intenso. Talvez a maioria dos cristãos "feche os olhos" para
determinados trechos da Bíblia que se chocam com seus valores
(mesmo sem admiti-lo). Quem sabe o humanismo esteja, num lento
processo, tomando o lugar do fanatismo. É possível que a
racionalidade, aliada à compaixão e à força de vontade, esteja, em
muitos aspectos, substituindo a fé cega.
Muitos cristãos (e teístas, de forma geral) são capazes de tomar
atitudes que requerem extremo amor e bondade; vários deles,
inclusive, dedicam-se a tais atitudes de modo perseverante. Muitas
instituições cristãs também se dedicam a atividades nobres como a
caridade. Por outro lado, é evidente que diversos ateus se dedicam
a atividades que demonstram nobreza de caráter. Muitos, dentre
eles, são bons pais, bons filhos, bons amigos. Muitos são pessoas
socialmente responsáveis. Diversos se compadecem
profundamente com o sofrimento do próximo e se esforçam para
minorá-lo. Qualquer um que não reconheça a veracidade de tais
afirmações certamente pertence ao grupo dos fanáticos e/ou dos
profundamente ignorantes. Não há qualquer dúvida de que
encontraremos pessoas que consideraremos predominantemente
boas, tanto no grupo dos crentes, como no grupo dos descrentes;
assim como em ambos também encontraremos pessoas que
consideraremos predominantemente más. Em suma, isso significa
que nem a fé religiosa, nem a ausência dela, são pressupostos para
que um indivíduo seja uma pessoa ética, altruísta, e feliz.
O fenômeno moral, mais do que desejável, é algo natural e
inevitável. Diria, ainda - e em consonância com algumas vozes na
moderna ciência - que ele não é exclusivamente humano
(inobstante os sistemas morais e a ética, vista como uma "filosofia
da problemática moral", o sejam). Essa inevitabilidade da moral,
entretanto, refere-se somente a sua presença, nunca ao seu
conteúdo. Nessa perspectiva, devo aceitar que a gênese dos
valores humanos é um evento marcado pela relatividade. A história
nos ensina que os valores diferem de modo drástico de uma
sociedade para outra, e de uma época para outra. Também é certo
que cada sociedade tende a considerar os seus valores como
superiores aos das demais sociedades. O mesmo se diga com
relação à religião: os cristãos pensam que somente eles aderiram à
fé e aos dogmas corretos; os demais estão todos enganados, ou
não compreenderam bem a mensagem. Por outro lado, os
praticantes do judaísmo, islamismo etc. também dizem o mesmo
com relação a qualquer religião que não seja a deles. Isso,
necessariamente, tem implicações bastante engraçadas. Para os
cristãos, por exemplo, a implicação seria a seguinte: enquanto a
grande maioria dos que vivem nos continentes americano e europeu
encontraram "caminho certo", a grande maioria dos que vivem na
Ásia e muitos que vivem na África escolheram crenças "erradas".
Essa seria, no mínimo, uma coincidência bastante suspeita.
Além da relatividade dos valores humanos, também é certo que
eles não possuem realidade independente. Eles não têm existência
fora da mente humana; são processos mentais.48 Têm eles uma
feição sóciobiológica. O aspecto biológico desses valores é o que
faz com que eles não sejam inteiramente relativos; pois o homem,
visto como espécie, e o mesmo em qualquer sociedade. As mais
diversas culturas humanas são formadas no seio de comunidades
compostas por indivíduos da espécie Homo sapiens. Tal base
biológica demonstra ser o único laço a unir qualquer sistema de
valores, em qualquer sociedade, em qualquer época.
É necessário asseverar que referida base natural (ou a
constatação de sua existência) não tem papel de uma "norma
diretriz" para a construção de um sistema moral. Ela não é um
fundamento (ou premissa), mas um fundo - se é que a distinção fica
clara. É o necessário contexto biológico no qual se dá o surgimento
dos mais díspares sistemas de valores. Abusando da redundância,
diria que a base é extremamente básica, de modo que o surgimento
dos sistemas de valores sobre ela será sempre um fenômeno
marcado pela imensa predominância do aspecto relativo. No final
das contas, o certo e o errado, o bem e o mal, o justo e o injusto,
serão sempre conceitos vinculados aos fatores temporal e espacial,
de modo que jamais terão significado absoluto, como pretende
qualquer espécie de direito natural. Como disse Eugênio Scalfari:
"(...) não existe ligação com o Absoluto, não
importa o que se queira entender por esta palavra,
que evite a mutação da moral segundo os tempos,
os lugares e os contextos históricos nos quais uma
vivência de desenvolve”.49
Considere-se, ainda, que cada indivíduo possui características e
tendências genéticas distintas de todos os demais, o que mostra
certa relatividade também no aspecto biológico. A carga genética de
cada indivíduo também influenciará na formação de seus valores,
contribuindo para que todo e qualquer ser humano seja
comportamentalmente único. E verdade, também, que as espécies
biológicas não são estáticas, mas estão em constante modificação.
Esse processo biológico, entretanto, se desenvolve de forma lenta,
requerendo longos períodos de tempo. O tempo decorrido desde o
surgimento das primeiras grandes civilizações, nesse contexto,
acredito eu, é muito pequeno para modificações biológicas
significativas.
Sobre as raízes valorativas humanas vale transcrever alguns
trechos do livro "Em que crêem os que não crêem?". O texto abaixo
foi escrito pelo jornalista Eugênio Scalfari:
"Pessoalmente sustento que ele [o fundamento da
Moral] reside na pertinência biológica dos homens
a uma espécie. Sustento que na pessoa se
defrontam e convivem dois instintos essenciais: o
da sobrevivência do indivíduo e o da sobrevivência
da espécie. O primeiro dá lugar ao egoísmo,
necessário e positivo desde que não supere um
limite além do qual se torna devastador para a
comunidade; o segundo produz o sentimento da
moralidade, isto é, a necessidade de responder
pelo sofrimento do outro e pelo bem comum.
Cada indivíduo elabora esses dois instintos
profundos e biológicos com a própria inteligência e
a própria mente. As normas da moral mudam e
devem mudar, pois muda a realidade à qual são
aplicadas”. 50
Este outro texto, do mesmo livro, foi escrito por Umberto Eco:
"Somos animais de postura ereta, por isso é
cansativo permanecer muito tempo de cabeça para
baixo e, portanto, temos uma noção comum de alto
e baixo, tendendo a privilegiar o primeiro sobre o
segundo. Igualmente temos noções de direita e
esquerda, do estar parado e do caminhar (...). A
lista poderia continuar indefinidamente (...).
Portanto (e já entramos na esfera do direito), temos
concepções universais acerca do constrangimento:
não” desejamos que alguém nos impeça de falar,
ver, ouvir, dormir, engolir ou expelir, ir aonde
quisermos (...).
( ... )
Mas como é que, mesmo elaborando de imediato
seu repertório instintivo de noções universais, o/a
besta - toda estupor e ferocidade - poderia chegar
a compreender que deseja fazer certas coisas e
que não deseja que lhe façam outras, e também
que não deveria fazer aos outros o que não quer
que façam a si mesmo? Porque, felizmente, o Éden
populou-se rapidamente. A dimensão ética começa
quando entra em cena o outro. Toda lei, moral ou
jurídica, regula relações interpessoais (...). 51
Interessante observar que, não por acaso, os valores menos
relativos sempre são aqueles nos quais o fator biológico exerce um
papel mais forte. Dificilmente uma deformidade física hereditária
será considerada bela; os atos de praticar sexo ou alimentar-se
deixarão de ser tidos como prazerosos; a coragem deixará de
encontrar limites no temor; e os mamíferos que têm ninhadas
pequenas deixarão de amar seus filhos. Os animais - inclusive
humanos - que acham bela (e conseqüentemente atraente) uma
deformidade física; os que não gostam de praticar sexo ou de
alimentar-se; os que têm tamanha coragem que enfrentam
desarmados animais de porte muito superior ao seu; assim como os
que têm ninhadas pequenas e não se dedicam ao cuidado dos
filhotes, invariavelmente, terão menos sucesso em transmitir adiante
sua configuração genética (e nela, suas próprias características).
Esse é o restrito âmbito onde talvez caiba falar-se em algum direito
natural, porque na natureza não se podem difundir com sucesso
valores que lhes sejam opostos (pois estes têm natureza "anti-
transmissível", o que impede sua própria difusão).
Sobre essa base biológica comum (relativamente comum), os
diferentes indivíduos e sociedades elaboram os mais diversos
sistemas de valores, de acordo com as características do meio
social e natural no qual se encontram. Sistemas de valores são
dinâmicos e funcionam como forma de adaptação ao meio. Isso,
então, explica a grande multiplicidade e diversidade valorativa
observável.
Para explicar meu entendimento sobre o funcionamento dessa
dinâmica, permitam-me criar alguns exemplos:
O homem primitivo possuía uma concepção de identidade tribal,
de modo que os indivíduos de outras tribos não eram vistos nem
tratados como iguais, podendo, inclusive, ser massacrados sem que
isso violasse ditames morais. Posteriormente, a mentalidade tribal
foi estendida para um conceito mais amplo de identidade. Mesmo
assim permaneceram restrições: os negros, por exemplo, durante
muito tempo, não tiveram reconhecida a sua dignidade como seres
humanos, sendo tratados como propriedade, que era comprada,
vendida e trocada. Após mais um estágio, passouse a conferir aos
negros o status de iguais, dando fim à chaga histórica da
escravidão. A percepção de uma gradativa melhora decorre do fato
de que nosso sistema julga os demais sistemas conforme suas
próprias regras: quanto mais semelhante a ele, melhor.
Muito mais difícil seria ver a melhora se pudéssemos olhar para
o futuro (e eu não falo de uma melhor adequação das nossas ações
aos valores "humanitários" atuais, mas sim da modificação do
próprio conceito de "humanitário"). Os homens do passado, caso
pudessem ver o futuro (nosso presente), certamente achariam
imoral a posição que a mulher ocupa na sociedade hoje, bem como
pervertidos e demoníacos nossos hábitos sexuais e os
questionamentos que nos permitimos fazer.
Analisemos um hipotético, distante e vegetariano futuro em que
os animais alcancem, aos olhos humanos, um status de igualdade
(de outrem, e não mais de algo). Nesse futuro, um homem percebe
que um sabiá fêmea havia construído seu ninho e depositado seus
ovos numa árvore do quintal de sua casa. Encantado, aquele
homem sempre observava a mãe sabiá cuidando de seus dois
filhotes (um terceiro havia caído do ninho e falecido, o que provocou
grande sofrimento ao homem que já se afeiçoara àquelas pequenas
aves). Certo dia, a mãe sabiá falece de morte natural, deixando os
dois filhotes abandonados e indefesos. Aquele homem sentia que
era seu dever moral cuidar dos pequenos até que estes pudessem
alimentar-se e defenderse por conta própria. Durante algum tempo o
homem cuidou das jovens aves: alimentava-as, acompanhava seu
crescimento, e percebia que elas o reconheciam, de certo modo,
retribuindo o carinho que recebiam. Profundamente afeiçoado
àqueles pássaros, o homem verifica em um dado instante que uma
criança, de aproximadamente 1 1 anos, que ele nem sequer
conhecia, havia pulado o muro de sua casa e tinha uma das aves
em sua mão. Olhando a face cruel da criança ele sabe que ela
pretendia matar o pequeno pássaro, que já estava todo emplumado,
quase apto a voar. Que monstro seria essa criança, capaz de,
intencionalmente, aniquilar aquele passarinho? O homem não teve
dúvida: pegou a escopeta guardada escondida sobre o armário, que
pertencera a seu tataravô, e que, por tradição familiar, era
transmitida de geração em geração. Sabia que a escopeta ainda
funcionava e sempre esteve carregada, com a bala nela colocada
pelo próprio tataravô. Ele nunca havia imaginado usar aquela arma,
pois era um pacifista, entretanto as circunstâncias não lhe deixavam
outro remédio. Ele temia que, caso somente amedrontasse ou
ferisse a criança, não conseguiria impedir o cruel assassinato da
ave. Num ato de legítima defesa, então, atirou na cabeça da
desconhecida e monstruosa criança, que estava prestes a esmagar
o pobre pássaro em suas mãos. A criança morreu fulminada - o que
sem dúvida foi traumático para o homem-, mas ele sabia ter agido
da forma correta, impedindo que o pássaro fosse morto. Toda a
sociedade compreendeu o caso e apoiou o homem (menos a mãe
da criança que, mesmo sabendo que seu filho era doentiamente
perverso, não podia deixar de amá-lo).
A ação do homem nessa estória simplória que inventei seria
considerada absurda e horrenda aos olhos da sistemática moral
vigente em nossa sociedade. No mínimo, aquele homem seria
considerado completamente louco. Eu, da mesma forma que a
totalidade dos leitores, reprovaria com veemência tal conduta. No
entanto, fazemos isso porque, inevitavelmente, usamos nossos
valores para julgar (que são relativos, assim como qualquer outro).
A sociedade hipotética que mencionei, também consideraria
detestável a forma como tratamos os seres das outras espécies
animais. Não compreenderiam como se pode ser cruel a ponto de
colocar um burro desnutrido para passar o dia inteiro puxando uma
carroça e sendo "recompensado" com chicotadas; ou como
podemos ser insensíveis a ponto de jogar um caranguejo vivo
dentro da panela de água fervente. Hoje, quase qualquer um de nós
é capaz de, sem qualquer motivo, pisar numa formiga52 com total
indiferença ao fato de ela também ter uma "história de vida", à qual
colocamos um ponto final com um único movimento, como se não
fosse nada. Mas isso também não poderia ser considerado
abominável? Por outro lado, muitas das tribos indígenas que
habitaram nosso país não viam o menor problema moral na prática
do canibalismo; hoje um canibal é, necessariamente, um psicopata.
Muitos homens na Idade Média consideravam dever moral e
cumprimento dos desígnios divinos tostar hereges e supostas
bruxas na fogueira da Santa Inquisição, que foi fundada em 1.231
por ninguém menos que o papa Gregório IX e mantida por muitos
outros sucessores do apóstolo Pedro. A Bíblia, como citei, traz
trechos repugnantes aos "olhos de hoje". Qual é, então, entre
tantos, o melhor sistema moral? Depende de qual sistema
utilizamos para responder à pergunta.
Considero-me convencido de que a absoluta luz do bem nunca
será achada porque, quando pensamos tê-la encontrado, ela muda
de cor. Os sistemas que buscam a almejada luz no "transcendente"
nunca encontrarão uma luz branca e estável, mas sempre um
colorido e explosivo show pirotécnico. Observar que o ser humano é
capaz de encontrar tantos "transcendentes" diferentes - e que cada
um deles não deixa de mudar - só me leva a uma conclusão
possível e aparentemente paradoxal: o "transcendente" é tão
imanente e colorido quanto 0 resto, porque também nasce na mente
do homem (aliás, poucas coisas são tão humanamente imanentes
quanto a invenção dos transcendentes).
VIII - Religião, sociedade e Estado
 
Voltando ao tema do fanatismo religioso, felizmente, no Brasil,
ele não se mostra muito intenso. Apesar do considerável
preconceito observável contra os praticantes de outras religiões - e
mais ainda contra ateus - , é raro que haja manifestações violentas.
O laicismo estatal contribui bastante nesse sentido. O meio social
brasileiro, entretanto, mostra-se bastante cristão, apresentando,
ainda, forte difusão das idéias supersticiosas e esotéricas. A
sociedade brasileira é, assim, crente e crédula. Tal meio social não é
muito "confortável" para um indivíduo cético, que procura analisar os
fatos com intenso rigor racional. Como disse, o ateu ( e o cético em
geral) é, geralmente, vítima de visível preconceito. Os mais
desinformados, muitas vezes, vêem o ateísmo como algo ligado ao
satanismo (ou, no mínimo, a algum desvio de caráter). O ceticismo é
visto como algo enfadonho e inconveniente.
Apesar de o Brasil ser um Estado laico, observase que, em
alguns pontos, o próprio Estado contraria sua opção pelo laicismo.
Vale mencionar a inclusão da frase "Deus seja louvado" em nossas
cédulas, emitidas pelo Banco Central; a expressão "sob a proteção
de Deus" no preâmbulo de nossa Constituição Federal; a comum
exposição de crucifixos em órgãos públicos; etc. As duas primeiras
menções denotam uma adesão estatal ao teísmo de um modo geral,
a terceira representa urna adesão dos órgãos públicos ao
cristianismo. Todas essas atitudes são incompatíveis com o laicismo
estatal e denotam uma postura que exclui os ateus e praticantes de
religiões não cristãs. Outra crítica que deve ser feita refere-se ao
modo como vem sendo ministrado o ensino religioso nas escolas
públicas. É bem verdade que nossa Constituição Federal, em seu
art. 21 O, § 1 º, determina que "o ensino religioso, de matrícula
facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas
públicas de ensino fundamental". Ocorre, entretanto, que a
facultatividade da matrícula em tal matéria praticamente não é
informada nas escolas, gerando a impressão de que constitui
matéria de matrícula obrigatória. Mais grave ainda é o fato de que
tal matéria vem sendo utilizada como meio de pregação e difusão do
cristianismo, quando não foi essa a "intenção" da norma
constitucional. O ensino religioso em escolas públicas não deve
doutrinar o aluno para a fé, mas mostrar a religião (não só o
cristianismo, mas as diversas religiões) como fato social; caso
contrário, o que ocorre é uma verdadeira afronta à necessária
desvinculação entre Estado e religião.
"( ... ) Primeiramente, não se poderá instituir nas
escolas públicas o ensino religioso de uma única
religião, nem tampouco pretender-se doutrinar os
alunos a essa ou àquela fé. A norma constitucional
pretende, implicitamente, que o ensino religioso
deverá constituirse de regras gerais sobre religião
e princípios básicos da fé. Em segundo lugar, a
Constituição garante a liberdade das pessoas em
matricularem-se ou não, uma vez que, conforme já
salientado, a plena liberdade religiosa consiste
também na liberdade ao ateísmo”. 53
IX - Crítica à natureza da oração e à idéia de cura pela fé
 
Antes de iniciar a argumentação propriamente dita deste
capítulo, gostaria de comentar algo relacionado à minha vida
pessoal. Minha avó paterna - com quem mantenho fortes laços
afetivos - reza por mim todas as noites, desde que contraí uma
grave enfermidade na infância. Esse fato emociona-me
profundamente porque é uma prova incontestável do grande amor
que ela sente por mim ( muito embora ela não precise prová-lo para
que eu saiba). Apesar de minha postura cética com relação ao
fenômeno oração - especialmente quanto a implicações
sobrenaturais -, agrada-me saber que ela, todos os dias, pensa em
mim de um modo especial. Com isso, quero explicitar que minha
crítica à idéia da oração como instrumento de comunicação
sobrenatural não me impede de reconhecer que as intenções por
trás dela são, muitas vezes, as mais nobres e louváveis.
Oração seria um modo de comunicação direta entre o ser
humano e Deus ( ou qualquer outra entidade mística). Através dela,
um indivíduo poderia pedir a Deus algo para si, para outrem, ou
para uma coletividade de pessoas; poderia agradecer, ou
simplesmente "bater um papo" com Deus. Pergunta-se: tal atitude
tem algum efeito prático? As evidências indicam que qualquer efeito
que possa haver não vai além do efeito placebo, ou seja, de um
estímulo biológico ou psicológico decorrente da própria confiança do
indivíduo. Esse efeito pode ser observado nos casos de doenças em
que indivíduos ingerem imitações de remédios, sem qualquer
substância ativa, pensando tratar-se de um medicamento
verdadeiro. Nesses casos ' observa-se que muitas vezes ocorrem
significativas melhoras, decorrentes da própria confiança do
indivíduo.
"( ... ) É concebível que as endorfinas -as
pequenas proteínas do cérebro que têm efeito
semelhante aos da morfina -possam ser
produzidas pela convicção. Um placebo só
funciona se o paciente acredita que é um remédio
eficaz. Dentro de limites restritos, a esperança, ao
que parece, pode ser transformada em
bioquímica”. 54
A ciência exerce um autopoliciamento. Desse modo, quando há
enganos em suas teorias (incluindo-se as relacionadas à cura e
controle de enfermidades) geralmente ela é a primeira a indicá-los.
A religião (e tudo que envolva fé) jamais se preocupa em verificar se
há erro em suas idéias, pelo contrário, procura não vê-los. Basta
lembrar que o "não-questionamento" integra a própria essência da
fé.
"(...) ninguém duvida de que a ciência realmente
funcione, mesmo que de tempos em tempos sejam
propostas teses erradas e fraudulentas. Mas é
muito controversa a idéia de alguma cura
'miraculosa' pela fé que extrapole a capacidade
curativa do próprio corpo. Segundo, a revelação da
fraude e do erro na ciência é feita quase
exclusivamente por ela mesma. A disciplina se
policia -o que significa que os cientistas estão
conscientes do potencial de charlatanismo e erros.
Mas o desmascaramento da fraude e do erro na
cura 'milagrosa' quase nunca é feito pelos que
curam pela fé. Na verdade, é impressionante como
as igrejas e sinagogas relutam em condenar os
enganos demonstráveis no seu meio." 55
Em outras ocasiões, independentemente do efeito placebo, a
enfermidade coincidentemente acaba pouco tempo após a oração.
As pessoas, então, interpretam que a oração foi responsável pela
cura. Esse é um exemplo de um erro de raciocínio que se costuma
chamar "post hoc, ergo propter hoc" (após o fato, logo por ele
causado)56 É preciso lembrar-se de que o fato de um acontecimento
ter precedido outro não significa que um causou o outro.
Agora, deixemos um pouco de lado os questionamentos feitos
acima e suponhamos que Deus exista e que, através da oração,
realmente se possa manter um contato com ele. Nesse caso, que
utilidade teria a oração? Ora, suposto Deus, sendo onisciente,
deveria saber das necessidades de cada pessoa. Por que seria
necessário "avisálo" sobre as angústias e necessidades de cada um
e pedir que ele satisfaça tais necessidades ou desejos, se ele, de
antemão, já os conhece? Se o seu filho estivesse febril, com
quarenta graus, você esperaria que ele pedisse para levá-lo ao
médico, ou para dar a ele um antitérmico? No caso da oração na
qual se pede algo para outra pessoa, a situação é ainda mais
irracional. Parece bastante injusto que o atendimento a um desejo
ou necessidade de alguém por Deus fique a depender de uma ação
de outras pessoas. Nesse caso, um indivíduo que conhece poucas
pessoas que possam orar por ele estaria, perante Deus, em clara
desvantagem se comparado a um artista ou esportista famoso,
pelos quais milhões de pessoas oram diariamente. O caso em que
se pede a Deus que, por exemplo, faça chover ou parar de chover,
controle um terremoto etc., também parece incompatível com idéias
de onisciência, onipotência e justiça divina. Não seria necessário
avisar e nem pedir algo a um Deus onisciente, justo e onipotente,
muito menos se esse pedido for impedir uma catástrofe que pode
causar a morte de um grande número de pessoas.
Na Bíblia, em Mateus 21 :21 e 22, Jesus diz que "se vocês
tiverem fé e não duvidarem, poderão fazer a mesma coisa que eu f,z
com esta figueira [matá-la inutilmente]. E não somente isso, mas
vocês poderão dizer a esse monte: 'Levante-se e joguese no mar', e
isso acontecerá. Se crerem, receberão o que pedem em oração".
Preciso dizer que essa afirmação não parece em conformidade com
os fatos. Coisas como "fazer montes jogarem-se ao mar", até hoje,
só foram vistas em livros de ficção ou em filmes como "Guerra nas
Estrelas", no qual Luke Skywalker, sob orientação do Mestre Yoda,
conseguiu façanha semelhante desencalhando uma nave espacial
com o poder da mente. Mas admitamos que "fazer montes jogarem-
se ao mar" tenha sido uma linguagem figurada usada por Jesus;
afinal, além de ser um exagero, não apresenta muita utilidade.
Bastaria que, quando os sertanejos - famosos pela sua fé inabalável
- rezassem por comida, lhes aparecesse um prato cheio de
alimentos nutritivos. No entanto, o número de crianças desnutridas
que lá vivem (sobrevivem) mostra que as inúmeras preces feitas
não vêm sendo atendidas. Caso as sinceras preces pedindo chuvas
no alto sertão fossem atendidas, aquele provavelmente seria o
cenário de um dilúvio; mas a escassez de chuva e as colheitas
frustradas mostram que é mais prudente confiar nas previsões
meteorológicas.
Termino este capítulo com um trecho esclarecedor - e ao
mesmo tempo divertido - de Carl Sagan:
"O estatístico vitoriano Francis Galton afirma que -
sendo iguais outras condições - os monarcas
britânicos deveriam ter vida muito longa, porque
milhões de pessoas em todo o mundo entoavam
diariamente o mantra sincero 'Deus salve a rainha'
(ou o rei). Entretanto, ele mostra que, se havia
alguma diferença, era que eles não viviam tanto
quanto os outros membros da classe aristocrática
rica e mimada”. 57
X - A consciência como fenômeno dependente do cérebro e
a conseqüente inexistência de vida após a morte
 
Cada dia mais, a ciência, especialmente a neurociência
cognitiva, vem demonstrando algo que hoje é indiscutível: a
consciência é um fenômeno totalmente dependente da atividade
cerebral. A morte e a indissociável parada total da atividade
cerebral, inevitavelmente, têm como conseqüência a total extinção
da personalidade. No entanto, apesar das evidências esmagadoras
no sentido de que nosso "eu" morre com nossos corpos, a grande
maioria das pessoas continua a crer na vida após a morte. Não é de
estranhar, entretanto, que essa crença permaneça, mesmo na
contramão das evidências.
A convicção de que nossos falecidos entes queridos não
deixaram de existir, nos observam constantemente e nos esperam
em lugar onde não existe sofrimento; assim como a promessa de
que a morte, que inevitavelmente nos alcançará, não será o nosso
fim, mas a passagem para a vida eterna, podem, realmente, ser
reconfortantes. Existem crenças para todos os gostos: os que
desejam, literalmente, viver de novo e enfrentar novos desafios,
tendem a crer na reencarnação, de modo que nasceriam diversas
outras vezes, em diversas situações; os que preferem uma vida
mansa e suave, onde reina a paz e a tranqüilidade, acreditam que
passarão toda a eternidade no Paraíso, talvez sentados em uma
nuvem, ou em um jardim florido, rodeados por anjos, familiares e
amigos. Existe a idéia islâmica de que o Paraíso inclui um vasto
número de belas donzelas para o deleite de cada homem que
houver seguido as regras de Alá Há, ainda, as crenças que dão
suporte ao desejo de vingança, como a crença no Inferno, no qual
nossos perversos inimigos, durante dias eternos, arderão, serão
torturados e sentirão as mais terríveis dores que se pode imaginar.
Os que se sentem injustiçados durante toda a vida tranqüilizam-se
(e também baixam a cabeça e se submetem) convictos de que todo
o sofrimento por que passam em vida é muito pequeno se
comparado à inabalável alegria e prosperidade com as quais
conviverão eternamente no Céu. De fato, a idéia da vida após a
morte não é nada difícil de ser vendida, por mais improvável que
possa ser.
""( ... ) alguns de nós morrem de fome antes de
completar a primeira infância, enquanto outros -
pelo acaso do nascimento - passam a vida na
opulência e no esplendor. Podemos nascer numa
família violenta ou num grupo étnico hostilizado, ou
podemos começar a vida com alguma deformidade
física. Vivemos com o baralho viciado contra nós e
depois morremos: é só isso? ( ... )Onde está a
justiça nisso tudo? É desolador, brutal, impiedoso.
Não deveríamos ter uma segunda chance numa
arena nivelada?
(...)
Dessa forma, as sociedades que ensinam a
satisfação com que temos na vida, na expectativa
de uma recompensa post mortem, tendem a se
vacinar contra a revolução. ( ... ) Assim, a idéia de
que uma parte espiritual de nossa natureza
sobrevive à morte ( ... ) deve ser algo que as
religiões e nações não encontrem dificuldade em
vender. ( ... )”. 58
O intenso desejo de "viver para sempre", entretanto, não
contribui para modificar o fato de que somos seres naturais, que se
extinguem com a morte. São inúmeras e robustas as evidências no
sentido de que a personalidade - a consciência- não pode existir
desvinculada de um cérebro vivo. É comum que uma lesão no
cérebro altere profundamente os traços da personalidade de quem a
sofre. Sabendo-se que tal lesão pode afetar irremediavelmente a
personalidade, torna-se absurdamente incoerente sustentar que a
destruição total de tal órgão, com a morte, não a extinguiria. Se
fosse o espírito, e não o cérebro, a sede de nossa consciência, uma
lesão neste órgão não afetaria a personalidade, já que o espírito
estaria intacto.
Os que defendem a chamada teoria do instrumento afirmam
que o espírito se expressa através do corpo, especialmente do
cérebro. Por isso - argumentam - lesões cerebrais podem causar
alterações comportamentais. O cérebro seria um instrumento do
espírito. Esse argumento costuma ser ilustrado, por exemplo, do
seguinte modo:
"Um vidro colorido ... [tem] apenas uma função
condutora em relação à luz que brilha através
[dele], uma vez que [ele mesmo não] cria os raios. (
... ). (Lamont 98)”. 59
Tal explicação cai por terra quando se percebe que é
justamente "a cor do vidro" que individualiza, que dá a
personalidade ao ser. Sem o "vidro colorido" não haveria
personalidade, mas sempre a mesma e monótona luz.
"Se o corpo humano corresponde a um vidro
colorido ... então a personalidade viva corresponde
a uma luz colorida que é o resultado do vidro ... Já
que embora a luz em geral continuará a existir sem
o vidro colorido ... os raios específicos vermelho ou
azul ou amarelo que o vidro produz ... certamente
não persistirão se o vidro [for] destruído (Lamont
104)".60
"Uma lesão grave na cabeça, por exemplo, pode
transformar um homem geralmente cordial em um
sujeito sombrio e mal-humorado, para subitamente
se encaixar em mania homicida. Se o cérebro e o
corpo são simplesmente os instrumentos da alma,
temos de dizer em tal caso que esta personalidade
ainda está realmente repleta com a alegria e a
benevolência, mas que infelizmente esses
sentimentos somente podem se expressar em
olhares sombrios, em queixas irritadas e em
ataques violentos (Lamont 100)”.61
Outro exemplo comum, numa analogia com o computador, é de
que o corpo corresponderia ao hardware; e o espírito, onde residiria
a personalidade, corresponderia ao software. Esse exemplo se
mostra inconsistente com a simples verificação de que o software só
pode manifestarse através do hardware. O software, sem o
hardware, não tem qualquer função, não "vive". Além disso,
saliente-se que se destruirmos o disco rígido, inevitavelmente o
so ware que está armazenado nele também restará destruído.
O cérebro é um órgão extremamente complexo.
Cada pensamento, cada sensação que temos, decorre de uma
atividade cerebral. Não pode haver uma idéia, uma recordação, um
desejo, que não tenha a atividade de tal órgão como peça-chave. O
espírito é desnecessário para explicar qualquer atividade humana,
seja ela exteriorizada ou introspectiva, então, a aplicação do já
mencionado princípio científico da Navalha de Occam deve excluí-
lo. Se um improvável espírito pudesse dar origem a tais fenômenos,
então não precisaríamos de um cérebro tão complexo. Bastaria um
órgão bem mais simples, apenas para controlar as nossas funções
vitais e movimentos, e o resto ficaria por conta do espírito. Os que
acreditam no espírito e na vida após a morte têm que aceitar a
redundância de que alma e cérebro fazem a mesma coisa, ao
mesmo tempo.
"(...) Se o cérebro é capaz de realizar todas as
tarefas valendo-se apenas de reações químicas e
impulsos elétricos, sem o auxílio de nenhuma
energia ou princípio vital, por que pensar que
existiria um espírito fazendo as mesmas coisas em
paralelo? Algumas correntes acreditam que o
espírito sofreria consequências do que acontece
com o corpo, e isso explicaria por que a
personalidade, as memórias ou o humor se alteram
com o efeito de drogas ou de lesões no cérebro.
Mas por que imaginar que a morte do cérebro não
causaria também a morte desse espírito, tão
redundante e tão sensível? (...) Por outro lado, se
esse espírito é capaz de sobreviver sem o cérebro,
por que então precisaríamos de um cérebro tão
complexo? Não seria bem mais prático se
tivéssemos cérebros bem menores, apenas para
controlar as funções vitais e os movimentos?
Certamente consumiria muito menos energia,
seríamos mais leves, as grávidas teriam bebês
menores e sofreriam menos nos partos, não
teríamos problemas com os dentes sisos, que
perderam espaço na mandíbula com a evolução à
medida que o homem se tornava mais inteligente e
o cérebro proporcional mente crescia".62
Ora, a questão da individualidade -de um "eu" bem definido -já é
um sério problema filosófico se considerarmos as pessoas vivas,
visto que nos mantemos em contínua mudança e que nossa forma
de ser modifica-se conforme as situações. Já se chegou a
mencionar que é como se tivéssemos várias almas. No entanto,
durante a vida, ainda se tem a continuidade do corpo como um guia
para o nosso entendimento sobre a continuidade do "eu".
Levantando-se a hipótese de uma vida após a morte, essa
problemática seria bem mais intensa, pois, além das questões já
abordadas, não se teria uma continuidade do corpo.
Mencione-se ainda a aparência do espírito (se é que ele possui
aparência). Manteria os traços básicos que se tinha imediatamente
antes da morte, talvez totalmente desfigurado por um acidente que
tenha sido a causa da morte? O espírito de alguém que tenha
morrido decapitado - carregaria a sua cabeça espiritual em suas
mãos espirituais. Os espíritos também teriam roupas espirituais ou
perambulariam nus? Ou os espíritos, sendo imateriais, também
seriam desprovidos de forma e aparência (contrariando os filmes
que quase sempre exibe'.11 os espíritos na forma de fantasmas)?
Nesse caso, admite-se que as "aparições" são ilusões e, talvez,
tenha-se que lidar com a profunda problemática de uma
personalidade que não esteja em nenhum local definido (já que é
imaterial).
Por fim, mencionarei resumidamente os pontos críticos em
algumas das mais significativas alegações que são vistas, por
muitos, como evidências da vida após a morte. Essas
considerações, bem como a maioria das que estão neste capítulo,
podem ser estudadas com maior profundidade no já citado texto de
Keith Augustine (O caso contra a imortalidade, disponível no site
http://www.str.com.br/ Atheos/caso.htm) e também no texto de
Ronald Cordeiro (introdução em debate sobre vida após a morte,
que pode ser lido em http://www.str.com.br/Debate/debate0302.htm).
As aparições podem ser muito satisfatoriamente explicadas
como alucinações. Leve-se também em consideração que existe
uma forte tendência a "ver" rostos humanos e formas humanas nos
mais aleatórios objetos (o que não ocorre só com as crianças). A
auto-sugestão tem um imenso poder, de modo que, comumente, se
vê aquilo em que se crê.
Casos interessantes são as supostas aparições da Virgem
Maria, quase sempre com baixíssimos padrões de evidência em
favor e fortes indícios de que se trate de alucinações. Mencione-se,
por exemplo, que as aparições são freqüentemente vistas logo
depois que a testemunha desperta, quando ainda não recobrou
inteiramente os sentidos e está mais propensa a ter alucinações.
Mencionese, também, a mensagem transmitida em tais aparições:
"Por que as admoestações são tão prosaicas? Por
que a visão de uma personagem tão ilustre quanto
a Mãe de Deus é necessária para que, num
minúsculo condado povoado por poucas mil almas,
um altar seja restaurado ou o povo pare de
blasfemar? Por que não mensagens importantes e
proféticas cuja importância seria reconhecida em
anos posteriores como algo que só poderia ser
emanado de Deus ou dos santos? Isso não teria
fomentado a causa católica na sua luta moral
contra o protestantismo e o Iluminismo? Mas não
temos aparições alertando a Igreja contra a
aceitação do engano de um Universo centrado na
Terra, nem prevenindo-a da cumplicidade com a
Alemanha nazista - duas questões de importância
moral e histórica, sobre as quais o papa João
Paulo li, para seu crédito, admitiu erro da Igreja.
Nenhum único santo criticou a prática de torturar as
'bruxas' e os heréticos. Por que não? Não tinham
consciência do que se estava passando? Não se
davam conta do mal? E por que Maria sempre
ordena que o pobre camponês informe as
autoridades? Por que não admoesta ela própria as
autoridades?".63
Experiências de Quase Morte (EQM) são também alegadas
como evidência da existência de vida após a morte. São aqueles
relatos de pessoas que "quase morreram", de que, por exemplo, se
viram num túnel com uma luz no fundo, povoado por familiares e
amigos já falecidos. Tais experiências, no entanto, podem ter uma
explicação· bem mais prosaica: decorrem de processos cerebrais
em pessoas cujo quadro clínico aproxima-se da morte (quando
ocorre privação de oxigênio, liberação de endorfina e descarga
neural aleatória). Saliente-se, ainda, que as experiências
semelhantes às EQMs podem ocorrer em alucinações, em pessoas
sob o efeito de drogas e sob estimulação elétrica direta nas áreas
cerebrais ao redor da fissura de Sylvian no lobo temporal direito64.
Cite-se, ainda, que "crianças vêem com mais freqüência amigos
vivos do que aqueles que morreram", o que evidencia as EQMs
como experiências naturais, decorrentes de processos cerebrais65.
Outro caso interessante é o relato de vidas passadas. Tais
relatos são satisfatoriamente explicados sem que se precise apelar
ao sobrenatural. As pessoas têm uma imaginação muito fértil e
podem ter claras lembranças de coisas que jamais aconteceram.
Segundo Fred H. Frankel, professor de psiquiatria na Escola de
Medicina de Harvard, "(. . .) em paralelo exato com o ato de fazer as
pessoas regredir para que supostamente recuperem lembranças
esquecidas de 'vidas passadas', os terapeutas podem com igual
facilidade fazêlas progredir sob hipnose, para que venham a se
'lembrar' de seus futuros. 'Essas pessoas não têm a intenção de
enganar o terapeuta. Elas enganam a si próprias', diz Frankel. 'Não
conseguem distinguir as suas fantasias das suas experiências"'.66
Acrescente-se que, algumas vezes, memórias sobre fatos
remotos podem ser revividas de um modo assustador, sem que se
lembre do contexto de tal fato. Lembro-me de ter lido a respeito de
um menino que pronunciava perfeitamente frases inteiras numa
língua (acho que um dialeto africano) diferente da sua e que ele não
conhecia. Todos interpretavam aquilo como uma prova da existência
de vida após a morte: memória de vidas anteriores, ou o contato
com algum espírito. É realmente um acontecimento intrigante e as
pessoas estão dispostas a convencer-se sobre a vida após a morte
com "evidências" bem menos relevantes. Ocorre que, nesse caso,
posteriormente, descobriu-se que o menino, anos atrás, havia tido
contato com alguém que falava essa língua. Ele nem sequer
recordava esse contato, mas repetia com perfeição as palavras que
havia escutado.
O texto de Keith Augustine fala de um estudo feito na Índia por
lan Stevenson sobre supostos casos de reencarnação, em que
crianças de dois a quatro anos começaram a falar sobre suas
supostas vidas prévias, ou mesmo mortes prévias. Relata que, em
muitos dos casos, as pessoas das quais as crianças alegam ser
reencarnações realmente existiram. Entretanto, em somente 11%
dos cerca de 1.111 casos estudados, não tinha havido algum
contato entre as famílias antes de se iniciar a investigação. Desses
1 1, sete estavam comprometidos por graves falhas na pesquisa.
Há, ainda, casos em que a criança alega lembrar-se de uma "vida
anterior", mas se descobriu que a pessoa (supostamente a própria
criança, na reencarnação passada) havia morrido depois de a
criança nascer. O condicionamento cultural, também, fica
evidenciado pelo fato de a grande maioria dos casos de alegações
de reencarnações ocorrer em países onde é muito presente a
crença religiosa na reencarnação (como na Índia, por exemplo).
Por fim, mencionarei o suposto fenômeno "mediúnico". Numa
grande parte dos casos, o que ocorre é charlatanismo. Não nego,
entretanto, que existem muitos fatos em que o suposto médium age
de boa-fé e de fato acredita ter poderes sobrenaturais. Na maioria
dos casos, o médium é capaz de "adivinhar" informações a partir de
sugestões, "dicas" que o "cliente", sem querer, fornece para o
médium. Keith Augustine, citando Carl Becker, informa que há casos
bem autenticados em que o médium agiu como se fosse a suposta
"entidade espiritual", dizendo coisas que supostamente somente ela
poderia saber, quando, na verdade, a pessoa (o suposto espírito)
estava viva e consciente, ou se tratava de um personagem fictício. É
muito interessante o caso de Robert Thouless, citado no texto de
Augustine:
"O falecido Robert Thouless, ex-presidente da
Society for Psychial Research, desenvolveu um
teste para a sobrevivência onde uma mensagem é
encriptada de tal maneira que somente pode ser
decodificada por palavras-chave conhecidas
somente por alguém que morreu (Stevenson 1 14).
Thouless desenvolveu três mensagens encriptadas
para ele mesmo, na esperança de comunicar
palavras-chave para seus colegas através de um
médium após sua morte.( ... )
Quando Thouless morreu em 1984
aproximadamente uma centena de candidatos para
uma chave foram submetidos a Society for Psychial
Research, alguns deles vieram de médiuns, mas
nenhum foi capaz de decifrar quaisquer das
mensagens encriptadas de Thouless (Stevenson
114). ( ... )".
O texto ainda diz que muitas das pessoas sentiram
intensamente que estavam em contato com Thouless. O
parapsicólogo Arthur Oram chegou à incrível conclusão de que o
fracasso do experimento se deve ao fato de Thouless ter se
esquecido da chave. Não penso que o experimento tenha sido um
fracasso, mas um sucesso no sentido de evidenciar que Thouless
não sobreviveu à morte.
O fato é que não existe nenhuma alegação de mediunidade
com indícios confiáveis de sua veracidade. Nunca se comprovou
que algum suposto espírito tenha dito através dos médiuns algo que
sirva como demonstração inequívoca da vida após a morte.
"Como é, pergunto a mim mesmo, que os
canalizadores nunca nos dão informações
verificáveis que nos são inacessíveis por outros
meios? Por que Alexandre, o Grande, nunca nos
informa sobre a localização exata de sua tumba,
Fermat sobre seu último teorema, James Wilkes
Booth sobre a conspiração do assassinato de
Lincoln, Herman Goering sobre o incêndio do
Reichstag? Por que Sófocles, Demócrito e
Aristarco não ditam suas obras perdidas? Não
querem que as gerações futuras conheçam suas
obras-primas?".67
A imprensa não gosta de noticiar fatos como esses porque são
menos rentáveis. Também por isso a população em geral é tão
crédula no que diz respeito ao "sobrenatural". Fiquei feliz quando,
certa vez, vi na televisão uma matéria a respeito de uma vidente
famosa por seus "acertos". O fato é que a matéria mostrava,
também, os inúmeros "erros" da vidente que, por sinal, estavam em
número bem maior que os "acertos".
Talvez alguns entendam que, sem a crença numa vida após a
morte, nos faltará estímulo para a bondade. Dizem que o homem
que não espera ser julgado por seus atos, pois entende a morte
como seu fim, não terá medo de praticar todas as maldades que
desejar. Eu não penso assim. Não creio que o medo seja o
modelador adequado para o caráter de qualquer ser humano. A
bondade, segundo a minha concepção (levando em conta a
relatividade do tema), é uma prática altruísta: é preocupar-se
verdadeiramente com próximo, com a sociedade, com a vida. Ser
bom exige ser solidário, entristecer-se com o sofrimento do outro e
alegrar-se com sua felicidade. Quem se comporta "bem" porque tem
medo do julgamento divino não está preocupado com o outro, mas
somente consigo mesmo. Portanto, não é a crença na vida após a
morte que irá permitir (nem impedir, é claro) que se seja bom.
A consciência de que esta é a nossa única vida tende a
valorizá-la; e valoriza também nosso lar, o pequeno planeta Terra,
que flutua na vastidão do Universo. Quem não crê num Paraíso
sobrenatural percebe que, se quisermos tanto um "paraíso",
devemos procurar fazê-lo aqui. Quem não crê na salvação divina
compreende que somente nós é que podemos nos salvar de nós
mesmos. Essa é uma tarefa que deve ser feita por todos e para
todos. Quando nos preocuparmos menos com uma improvável vida
no além e mais com a nossa vida, aqui e agora, teremos melhores
chances de propiciar uma existência feliz para nós mesmos, para
aqueles que compartilham o lar Terra conosco e para aqueles que
nos seguirão, com quem deixaremos "as chaves de casa".
Seguiremos podendo deixar nossas marcas no mundo e em
cada indivíduo que compartilhe seus momentos conosco. Nós
morreremos, mas nossas marcas (sejam elas boas ou más)
permanecerão mesmo após nossa morte e seremos lembrados de
acordo com elas. Nossos filhos levarão adiante nossos genes e o
amor que receberam de nós e, após nossa morte, a lembrança que
eles tiverem de nós pode fazer com que aquela lágrima que a
saudade às vezes faz escorrer pelo rosto seja acompanhada de um
doce sorriso. Não temos dúvida de que morreremos, mas nada
impedirá que algo de nós permaneça vivo em cada lugar que
pisarmos e em cada pessoa que tivermos a chance de olhar nos
olhos. E a vida continua...
XI - A vivência de um ateísmo religioso
 
Cabe, neste capítulo, falar algo sobre o que é, ou como é, uma
religiosidade sem fé, sem crença. Sobre isso teci alguns
comentários anteriormente, mas gostaria de me deter
especificamente nesse ponto. Imagino que ao leitor talvez pareça
estranha a total desvinculação desse tipo de "prática religiosa" a
qualquer sistema ético-valorativo. Em outras palavras, é uma
religiosidade amoral (por favor, não confundam com imoral), posto
que tem base nos sentidos, em sensações. Muito embora possam
os leitores estranhar tal concepção de religiosidade, afirmo que
quase todos já a vivenciaram por diversas vezes. É necessário
deixar claro que não se trata de religião, mas de sentimento
religioso.
O leitor que aprecia a boa música provavelmente alguma vez já
se sentiu tão profundamente envolvido por ela que foi como ter se
"transformado em música". O envolvimento é tão profundo que,
naquele momento, conceitos teóricos, valores morais, vaidade etc.
deixam de manifestar-se em nossa mente com a costumeira
intensidade. Sentimo-nos tão envolvidos pela música que ela
domina nossa percepção sensorial de tal modo que, naquele
instante, perdemos a consciência clara até mesmo de nossa
individualidade. Parece que nos misturamos à música. O contato
com a Natureza também pode proporcionar essa sensação
fantástica e acredito que essa seja a fonte mais potente para o
sentimento religioso.
Talvez pareça que estou sendo incoerente, pois durante toda a
obra defendi a atitude cética e racional na busca do conhecimento; e
agora proponho a vivência de uma religiosidade cósmica que se
traduz numa profunda sensação, na qual nos colocamos passivos e
receptivos frente ao que se contempla. É um posicionamento
passivo - de sentir - que, em certo modo, é oposto ao
posicionamento ativo de pensar, raciocinar. Entretanto, não há
qualquer incoerência. Muito embora o sentir e o pensar sejam
coisas distintas, são também mutuamente relacionadas. O
conhecimento racional sobre Universo direciona a postura religiosa
perante ele, e vice-versa. O conhecimento racional que se tem
sobre o objeto contemplado é incorporado à nossa percepção de tal
objeto (molda a visão que temos dele) e, consequentemente,
interfere na sensação provocada pela contemplação, mesmo que
não estejamos raciocinando durante a experiência religiosa (de
sentir). O inverso também é verdadeiro, pois o cientista comumente
está embriagado de tal sentimento frente ao objeto estudado que
isto o impulsiona à busca do conhecimento racional sobre tal objeto.
O trecho de Einstein citado no início do livro denota bem isso.
Uma das formas de vivenciar o sentimento religioso cósmico
que mais me fascina é deitar-me no solo e observar o céu estrelado
em um local afastado da poluição dos centros urbanos (incluindo a
visual e sonora). Quando faço isso, procuro abster-me de qualquer
pensamento ou sensação alheios à contemplação do espaço. Tento
deixar de lado as sensações tácteis, os sons ao meu redor,
buscando fazer com que o espaço seja a única realidade percebida
por minha mente. Não é uma atitude de pensar sobre o espaço, mas
uma meditação contemplativa do espaço. Mesmo assim, a noção
que se tem sobre o Universo molda o nosso sentir perante ele.
Eu sei que muito embora a Terra já nos pareça enorme, ela é
apenas um entre os diversos planetas do Sistema Solar. Nosso
planeta é milhões de vezes menor do que a estrela que nos ilumina-
o Sol; e muitíssimo menor ainda se o compararmos a todo o
Sistema Solar. Mesmo assim, o Sol, "rei do Sistema Solar", é
apenas uma insignificante estrela entre mais de 400 bilhões de
estrelas existentes na Via Láctea, a galáxia na qual se encontra o
nosso pequenino planeta (a essa altura, o imenso planeta já se
tornou um minúsculo grão de areia no deserto). A Via Láctea deve
ser realmente enorme, tão imensa que nossa mente não consegue
compreender tamanha extensão. A luz viaja a uma espantosa
velocidade de quase trezentos mil quilômetros por segundo e,
mesmo assim, demora cerca de trinta mil anos para, partindo do
centro da Via Láctea, chegar até nós68. Isso significa que a distância
do centro da galáxia até o planeta Terra é de cerca de
279.936.000.000.000.000 Km (quase 280 quatrilhões de
quilômetros). A largura da Via Láctea inteira é de noventa mil anos
luz (aproximadamente 850 quatrilhões de quilômetros). Achou
muito? Pois saiba que essa extensão é insignificante se comparada
ao Universo inteiro, no qual, além da Via Láctea, existem mais de
cem bilhões de outras galáxias. Andrômeda - a galáxia mais
próxima da Via Láctea - está há dois milhões de anos-luz.
Com base na taxa de expansão do Universo, verificada pelo
efeito Doppler aplicado às ondas luminosas emitidas pelas estrelas,
sabe-se que sua idade é de aproximadamente quinze bilhões de
anos desde o Big Bang. Todas essas informações que traduzem a
real magnitude do Universo são cruciais na formação da minha
noção ("imagem" mental) sobre ele, interferindo profundamente na
sensação que me causa contemplá-lo. Se eu pensasse, como
durante muito tempo insistiu a Igreja, que tudo se resume à Terra e
a alguns corpos celestes pendurados de "enfeite" como se
estivessem num móbile; e que tudo isso havia sido criado por Deus
como palco para um espetáculo em que o homem seria
o personagem principal; nesse caso, certamente, olhar para
o céu me provocaria uma sensação muito diferente (muito
menos profunda e bela, diga-se de passagem).
O Universo real, tal como a ciência e a razão se esforçam para
revelar, é muito maior, mais surpreendente, elegante e poético do
que o pequeno universo de alguns mil anos suposto pela maioria
das religiões. Não vejo como um mito possa ser melhor do que a
natureza real para servir de base ao sentimento religioso. Além
disso, acho importante que nos comportemos de modo
intelectualmente íntegro, não nos opondo à análise das evidências
só porque elas contrariam o que o padre, o rabino, o professor, ou a
mamãe nos disse. Nosso complexo cérebro nos dá a chance de
questionar e conhecer o mundo e a nós mesmos. Não posso
compreender como muitos preferem desperdiçar essa chance,
aceitando sem questionamentos verdades prontas. Podemos ser
racionais, céticos, curiosos e, ao mesmo tempo, religiosos. Afirmo
que não é preciso render-se à fé, suspender o questionamento, para
vivenciar a religiosidade; pelo contrário, questionar e procurar
respostas consistentes denota interesse por conhecer, mostra que o
mundo nos encanta. Proponho um sentimento religioso fundado no
interesse pelo conhecimento racional sobre o Universo e na
consciência de que somos partes integrantes dele, formados pela
mesma matéria que forma todo o Universo. É um sentimento que
requer que estejamos imbuídos de uma profunda admiração,
reverência e, também, curiosidade pelo Universo material. E não é
preciso ser um cientista para posicionar-se dessa forma.
Neste ponto, caberia comentar alguma coisa sobre os termos
"ateísmo" e "panteísmo". Qual dos dois se identifica melhor às
ideias que defendo? Antes de responder a tal indagação, tratarei do
significado dessas duas palavras e das distinções entre ambas.
Panteísmo é a crença que identifica Deus com o Universo ou
com a ordem impessoal do Universo, que vê o Universo como
sendo divino. É preciso diferenciá-lo do pantiteísmo, que é a crença
que vê Deus em cada ser individualmente. Para o panteísmo, Deus
está no Todo, e não nas diversas partes que o compõem. O
panteísmo também difere do panenteísmo, que, em vez de
identificar Deus com o Universo, entende que apesar de o Universo
fazer parte de Deus, este vai além do Universo.
Quando um panteísta diz que o Universo é Deus, não quer
atribuir a ele características como amor, ódio, vontade, pensamento
etc. Em outras palavras, o termo não é usado com o intuito de
personificar o Universo, tornando-o semelhante a um Deus pessoal.
Por isso, particularmente, prefiro não utilizar a palavra "Deus", pois
ela, além de muito imprecisa, geralmente induz a idéia de entidade
personificada.
""A palavra Deus cobre uma enorme variedade de
idéias diferentes (...) - indo desde um homem
enorme, de pele clara, com uma barba branca,
sentado em um trono no céu e contando a queda
de cada pardal, para o qual não temos prova
alguma, até o tipo de deus que Einstein ou Spinoza
falaram, que está muito próximo à soma total das
leis da Natureza. Agora, é um fato que pode ser
observado, e é magnífico, que há leis na Natureza
que se aplicam a todo o Universo. Se é isso o que
você quer chamar de Deus, é claro que Deus
existe.
(...)
Mas por que usaríamos uma palavra tão ambígua,
que significa tantas coisas diferentes?".69
Torna-se útil, aqui, a exposição da definição de panteísmo
encontrada na Enciclopédia Barsa Transcrevo-a abaixo:
"O panteísmo é a doutrina que afirma a identidade
substancial de Deus e do universo. Esse conceito
se traduz no princípio oposto àquele que admite
como ser supremo o criador do universo, que o
tirou do nada. (...) Para o panteísmo a natureza é a
realidade; encontra em si mesmo a sua razão de
existir e a sua unidade. Nega, portanto, qualquer
caráter de transcendentalidade para a explicação
da existência universal e é, em última análise, uma
forma de naturalismo".70
Essa definição parece-me útil, pois transmite de forma bem
singela uma ideia do panteísmo materialista. Existem outras
variedades de panteísmo, entretanto, o materialista é o único cujas
ideias adaptam-se à proposta do livro.
Em sua face teórica, o panteísmo materialista é idêntico ao
ateísmo e oposto ao teísmo tradicional (cristianismo, judaísmo,
islamismo). A concordância entre os dois primeiros está no fato de
que ambos são filosoficamente materialistas71 e negam
veementemente a existência de um Deus pessoal, que é defendido
no último; ambos entendem que nada existe além do próprio
Universo. Se teoricamente eles são idênticos, a diferença reside no
fato de que o termo ateísmo se refere somente à negação da
existência do Deus pessoal; enquanto o termo panteísmo
materialista, além de igualmente negar essa existência, refere-se
também a uma postura a ser tomada perante a natureza. Afirma que
o contato harmonioso com o Universo, o sentir-se parte dele,
provoca um forte sentimento religioso, sem a necessidade de
recorrer a entidades imaginárias. Dessa forma, o panteísmo
materialista é uma espécie de ateísmo, que tem como plus o
sentimento religioso com relação ao Universo material72. Assim
sendo, o termo ateísmo religioso pode ser usado como sinônimo de
panteísmo materialista.
Gostaria que as pessoas procurassem conhecer mais sobre o
Universo e percebessem a beleza da matéria, que vissem a beleza
por trás da conclusão de que toda essa imensidão não precisa de
um propósito para existir - simplesmente existe. A dualidade entre o
mundo natural e o mundo sobrenatural sempre vem em prejuízo do
primeiro. É triste ver como seres humanos negam sua condição de
seres puramente naturais - integrantes da natureza assim como
pássaros, peixes, átomos e estrelas - como se isso lhes diminuísse
o valor. Não... O homem jamais aceitará ser parente de um
chimpanzé, tem que ser essencialmente sobrenatural. Prefere ser
algo inexplicável, uma invenção humana que o próprio homem não
faz a mínima ideia do que seja, a aceitar as evidências e se
compreender como natureza habitando a natureza. Abdica de sua
chance de realmente compreender sua origem e constituição, e de
maravilhar-se com essa possibilidade de compreensão racional.
Subvaloriza a natureza e, assim, consequentemente, o faz consigo
mesmo, com sua vida e com seu habitat, em prol de uma muitíssimo
improvável vida sobrenatural. Nada existe de vergonhoso em
sermos entes naturais (animais, mais especificamente); pelo
contrário, quem se dispuser a procurar conhecer a natureza nua e
crua, sem mitos nem fantasmas, provavelmente perceberá nela um
brilho tão intenso que, a cada novo olhar, mais parecerá
surpreendente e encantadora.
Estamos interligados ao Todo, porque a matéria que nos
compõe é a mesma que está em todo o Universo. A compreensão
de que não somente existimos no Universo, mas também somos
parte do Universo, pode ser a base de uma profunda religiosidade e,
até mesmo, dar estímulo a um sistema de valores impregnado de
amor (a todos e a tudo) e encantamento perante a vida e a
natureza.
"Nossa apreciação da natureza do universo
provém de nossa capacidade de prestar atenção
nas coisas que contém, observá-las e refletir sobre
elas. Observamos, por exemplo, que tudo está feito
da mesma matéria. Os animais comem plantas e
bebem rios. As plantas comem montanhas.
Quando morrem, os animais contribuem para a
formação de montanhas posteriores e de outras
plantas. As montanhas brotam de planetas que são
os acrescidos dos detritos de estrelas mortas. Tudo
está feito da mesma matéria, e quanto mais longe
olhamos, menos provável parece que em alguma
parte intervenha alguma matéria diferente. Somos
pó galáctico e pó galáctico voltaremos a ser".73
Nossos corpos são formados por matéria; mas não pela mesma
matéria que os compunha ontem, nem pela mesma que os integrará
amanhã. Nossas consciências, nossas personalidades, tudo indica
(especialmente a neurociência) são resultado de uma combinação
especial de matéria que a natureza, guiada pela seleção natural,
lapidou durante bilhões de anos. Intriga-me pensar onde estava a
matéria que hoje me integra, há milhões, bilhões de anos atrás; ou
onde poderá estar daqui a bilhões de anos. Isso provoca uma certa
sensação de comunhão com o Todo que me faz sentir bem. Eu sei
que aquela matéria dispersa não era eu, nem o será no futuro... Mas
quando olho o céu e vejo as estrelas, sabendo que em certo
aspecto somos "farinha do mesmo saco", sinto-me profundamente
cósmico. A matéria é linda: é o que une tudo e todos no antes, no
agora e no depois. Todos e tudo somos mais que irmãos: somos um
só ... Um só Universo. E essa é uma bela bandeira.
Perceber a impessoalidade e a amoralidade do Universo leva à
desmistificação do tema chamado "sentido da vida" - que sempre foi
envolto em roupagem sobrenatural, esotérica, astrológica - e nos
permite uma grande liberdade, colocando em nossos ombros uma
enorme responsabilidade. A vida não é como um "video game", no
qual um saltitante bonequinho transita um percurso predefinido,
segue setinhas luminosas indicadoras do caminho, e luta contra
"vilões de fase" buscando atingir um objetivo que foi escolhido pelo
criador do software do jogo (Deus).
Aquele que evita a credulidade ao lançar seu olhar sobre a vida
percebe sua total desvinculação de um fim externamente imposto.
Alguns se sentem, então, vazios, ao imaginar que, sem destino, têm
uma vida carente de sentido. Não percebem que a essência da
descoberta é outra: temos poder e a liberdade de escolher um
sentido para nossas vidas e, em alguns casos, até mesmo uma
causa grande o suficiente para justificar nossas mortes. Na história
da vida, mesmo com tantas limitações, podemos, a um só tempo,
ser intérpretes e escritores.
Bibliografia
 
Livros:
A Bíblia Sagrada/Tradução na linguagem de hoje. São Paulo:
Sociedade Bíblica do Brasil, 1988.
ATKINS, Peter W. Cómo crear el mundo. Tradução para o
espanhol de Jordi Beltran. Barcelona: Editora Crítica,
1995.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 8ª ed. São Paulo: Ática,
1997.
COTRIM, Gilberto. História e consciência do mundo. I ª ed.
Saraiva. São Paulo, 1994, p.33.
ECO Umberto e MARTINI, Cario Maria. Em que crêem os que
não crêem? Traduzido por Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record,
2001.
Enciclopédia Barsa. Vol. 12. Verbete Panteísmo. Encyclopaedia
Britannica do Brasil Publicações Ltda. Rio de Janeiro - São Paulo.
1993.
Enciclopédia Encarta 2000 - CD ROM (versão em espanhol).
Microsoft Corporation. Verbete "Dios".
GMRDER, Jostein; HELLERN, Victor e NOTAKER,
Henry. O Livro das religiões. Traduzido por Isa Mara Lando. 6ª
ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
HAWKING, Stephen. O Universo numa casca de noz.
Tradução de Ivo Korytowski. São Paulo: Mandarim, 2001.
JAMMER, Max. Einstein e a religião. Tradução de Vera
Ribeiro. Contraponto. 1 ª ed. Rio de Janeiro, 2000.
MORA, José Ferrater. Filosofia. 4ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2001, p. 33 e 34.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 14ª ed. São
Paulo: Atlas, 2003.
NIETZSCHE,Friedrich. O anticristo. Tradução de Pietro Nassetti.
São Paulo: Martin Claret, 2002.
NIETZSCHE, Friedrich. Para além do bem e do mal. Tradução
de Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2004.
SAGAN, Carl. Documentário da série "Cosmos". Episódio 1: ''As
Margens do Oceano Cósmico".
SAGAN, Carl. O Mundo assombrado pelos demônios: a ciência
vista como uma vela no escuro. Tradução de
Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
TERZIAN, Yervant e BILSON, Elizabeth (orgs.). O Universo de
Carl Sagan. Tradução de Claudia Bentes.
Brasília: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado, 2001.
 
Internet:
AUGUST INE, Keith. O caso contra a imortalidade. Traduzido
por Gilson C. Santos.
Disponível em: < http://str.com.br/Atheos/caso.htm > Acesso
em: 1/10/04.
BARKER, Dan. "Contradições da Bíblia". Disponível em <
http://www.strbrasil.com/Atheos/contradicoes.htm >. Acesso em: 25/
1 1 /2003
CORDEIRO, Ronald. Introdução no debate vida após a morte.
Disponível em: <http://str.com.br/Debate/
debate0302.htm>. Acesso em: 1/10/04.
DAWKINS, Richard. A improbabilidade de Deus.
Disponível em:
<http://www.str.com.br/Atheos/improbabilidade.htm> Acesso em:
1/10/04. (Original da revista Free lnquiry, Volume 18, Número 3, em
<http://www.positeveatheism.org/writ/dawkins3.htm#IMPR0B>).
FIELDS, Emmett F.. A Bíblia é a palavra de Deus?
Disponível em: <http://www.strbrasil.com/Atheos/biblia.htm>
Acesso em: 25/11/2003.
HARRISON, Paul. Panteísmo científico: princípios básicos.
Disponível em:
<http://members.aol.com/Heraklit1/basicpor.htm>
Acesso em: 15/1/99.
 
Notas

[←1]
O termo "Deus pessoal", muitas vezes utilizado no livro, refere-se a um Deus dotado
de consciência, personalidade, vontade, valores éticos etc. É, em última análise, um
conceito antropomorfizado de Deus.
[←2]
Max Jammer, Einstein e a religião, contracapa.
[←3]
Jostein Gaarder, Victor Hellern e Henry Notaker, O livro das religiões, p. 18.
[←4]
Umberto Eco e Cario Maria Martini. Em que crêem os que não crêem? p. 80.
[←5]
5 Carl Sagan define pensamento cético como "meio de construir e compreender um
argumento racional e - o que é especialmente importante - de reconhecer um
argumento falacioso ou fraudulento. A questão não é se gostamos da con clusão que
emerge de uma cadeia de raciocínio, mas se essa conclusão deriva da premissa ou
do ponto de partida e se essa premissa é verdadeira" (O mundo assobrado pelos
demônios, p. 207 e 208).
[←6]
Carl Sagan, op. cit., p. 188 (citando o engenheiro espacial James Oberg).
[←7]
Carl Sagan, op. cit., p. 44.
[←8]
Yervant Terzian e Elizabeth Bilson (orgs.), O Universo de Carl Sagan, p. 185.
[←9]
Max Jammer, op. cit., p. 63-5.
[←10]
Documentário da série "Cosmos". Episódio 1 : ''As margens do oceano cósmico".
[←11]
Yervant Terzian e Elizabeth Bilson, op. cit., p. 170.
[←12]
Somos muito semelhantes a nossos primos, os chimpanzés, com quem
compartilhamos 99,6% de nossos genes ativos (O Universo de Carl Sagan, p. 172).
Na verdade, biologicamente, somos também macacos, embora a auto-idolatria
humana tenha proibido o homem de se classificar como tal.
[←13]
Há também que considerar o tempo que a onda de rádio demoraria para alcançar o
planeta onde haja vida e o tempo para que a resposta chegue a nós.
[←14]
Para uma compreensão melhor do assunto, sugiro a leitura de O mundo assombrado
pelos demônios, O Universo de Carl Sagan e do romance Contato (também de
Sagan), este último também disponível em filme.
[←15]
Max Jammer, op. cit., p. 109.
[←16]
Também contrasta com as características de perfeita bondade e justiça, atribuídas a
Deus, o fato de um ser vivo geralmente se alimentar de outro. A necessidade dessa
"carnificina" para que a vida se mantenha parece confirmar que o Universo em si
está desvinculado de qualquer valor moral.
[←17]
Paul Harrison. Panteísmo científico: princípios básicos. Disponível em: < http
://members.aol com/Heraklit1 /basicpor. htm > Acesso em: 15-1-99.
[←18]
Não parece coerente que um ser onipotente e de perfeita bondade crie seres
capazes de queimar vivos seus semelhantes, por terem crenças diferentes das suas;
ou de colocá-los aos montes numa câmara de gás, por entender que pertencem a
uma raça inferior.
[←19]
Em certo sentido, o argumento teísta sobre uma primeira causa destrói o chão sobre
o qual se ergue.
Tudo, eles argumentam, requer uma causa. Para evitar o regresso infinito, deve
haver uma primeira causa. Mas esta primeira causa é algo que não tem causa.
Portanto, nem tudo requer uma causa. Portanto, a premissa é inválida.
Logo, se há um ser que não requer uma causa, por que este não poderia ser o
próprio universo?
Paul Harrison . The Self Existent Cosmos. Disponível em: <http://
members.aol.corrv'Heraklit 1 /cause.htm > Acesso em: 27-8-02.
MORA.José Ferrater: Filosofia.4' ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 33 e 34.
[←20]
Atenção: o Nada (com "N" maiúsculo) ao qual me refiro, não é o "nada" (com "n"
minúsculo), que não passa de uma palavra para designar a inexistência; pelo
contrário, designa a possibilidade de geração espontânea da matéria. Tal criação,
porém, é, na verdade, uma transformação; pois não existe algo que surja
milagrosamente, mas uma mutação contínua na qual a matéria que compõe o
Universo pode vir do Nada e, depois, voltar ao Nada (exatamente do mesmo modo
que pares de números opostos podem resultar do zero; e o zero pode resultar da
união de tais pares).
[←21]
Max Jammer, Einstein e a religião, p. 155 - 156.
[←22]
Admito que este tópico é de difícil compreensão, pois trata de idéias que desafiam
nossos sentidos. Confesso também ter certa dificuldade para "visualizar" a hipótese.
Entretanto, entendo que ela seja mais adequada aos conhecimentos científicos
atuais do que a hipótese seguinte.
[←23]
Lei de Lavoisier.
[←24]
Marilena Chauí, Convite à filosofia, p. 35.
[←25]
Esses argumentos de São Tomás de Aquino, os quais eu critiquei, foram extraídos do
CD ROM da Enciclopédia Encarta 2000 (versão em espanhol), da Microsoft
Corporation, sob o verbete "Dias".
[←26]
Stephen Hawking, O Universo numa casca de noz, p.35.
[←27]
Tenho certeza que muitos dos que ganharam um grande prêmio na loto acreditam ter
sido beneficiados por um milagre.
[←28]
Carl Sagan, op. cit., p. 230 e 231.
[←29]
Na realidade, nosso "livre-arbítrio" é bastante condicionado, ou seja, não é tão livre
assim. Além disso, os conceitos de bondade, maldade etc. são extremamente
relativos e variam conforme a época, a sociedade e a pessoa. Mesmo assim, são
importantíssimos para que nosso relacionamento social se dê de forma menos
conflitiva (muito embora a contenção do conflito comumente se dê mediante
processos de dominação ideológica).
[←30]
Richard Dawkins. A improbabilidade de Deus. Disponível em: <
http://www.str.eom.br/Atheos/improbabilidade.htm> Acesso em: 1/10/04. (Original da
revista Free lnquiry, Volume 18, Número 3, disponível em:
http://www.positeveatheism.org/writ/dawkins3.htm#IMPROB).
[←31]
lbid.
[←32]
Peter W. Atkins, Cómo crear e/ mundo, p. 59 e 63.
[←33]
Bertrand Russell. Por que não sou cristão: um exame da idéia-divina e do
cristianismo. Disponível em: < http://www.str.com.br/Atheos/ porgue2.htm> Acesso
em: 1/10/04. (ensaio base original disponível em:
http://www.positeveatheism.org/hist/russellO.htm).
[←34]
Peter W. Atkins, op. cit.,p. 17. No mesmo livro, o autor explica que também os
átomos não precisam ter sido criados por qualquer Ser Supremo e que a única base
a ser verdadeira e utilmente considerada é, virtualmente, nada.
[←35]
Umberto Eco e Cario Maria Martini, op. cit., p. 1 O 1.
[←36]
Toda essa relatividade sobre o conteúdo do sistema moral não lhe retira a
importância. De fato, é um fenômeno necessário em qualquer coletividade humana e,
muito embora seu conteúdo varie constantemente, o fenômeno em si estará sempre
presente (já que é um fenômeno natural). É verdade que as características de um
sistema podem fazê-lo mais imperativo e "autoperpetuante", possibilitando que sobre
ele haja consenso mais estável (fator temporal) e difundido (fator espacial). Esse é o
meio geralmente utilizado para manter a dominação social. No entanto, embora eu
seja muito apegado aos meus valores e esteja disposto a lutar e a sacrificar-me por
eles, entendo que, numa perspectiva histórica, o ideal é que os valores humanos
sejam tão dinâmicos e mutáveis quanto é o meio natural e social. Adaptação é a
chave da questão. Os sistemas são exatamente formas de adaptação e
relacionamento com o meio. Compreender essa necessária dinâmica não significa
tornar-se amoral ou inescrupuloso, nem abdicar de seus valores, mas constitui sinal
de uma necessária maturidade intelectual.
[←37]
Carl Sagan, op. cit., p. 289 e 290
[←38]
COTRIM, Gilberto. História e consciência do mundo. / ª ed. Saraiva.
São Paulo, I 994, p.33.
[←39]
Mal sabem essas pessoas que a ciência, muitas vezes, chega a conclusões sobre a
natureza que desafiam as noções do senso comum - não é preciso inventar: o
mundo real também apresenta fatos surpreendentemente fantásticos. A diferença é
que a obtenção e a compreensão das conclusões da ciência requerem conhecimento
e esforço intelectual; enquanto a crença em eventos sobrenaturais não os requer.
[←40]
Carl Sagan, op. cit., p. 241 .
[←41]
Friedrich Nietzsche. O Anticristo, p. 68.
[←42]
Friedrich Nietzsche. op. cit., p. 94.
[←43]
Friedrich Nietzsche. op.cit., p. 61.
[←44]
Idem, p. 80 e 81.
[←45]
Os trechos bíblicos citados foram retirados de: A Bíblia Sagrada / Tradução na
linguagem de hoje. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1988. Caso o leitor
deseje maiores comentários sobre todos esses trechos bíblicos, além de muitos
outros, poderá encontrá-los em textode Emmett F. Fields, intitulado ':,\ Bíblia é a
Palavra de Deus?". Pode consultar, também, texto de Dan Barker, intitulado
"Contradições da Bíblia". Tais textos podem ser encontrados, traduzidos para o
português, respectivamente nos endereços de internet que seguem:
<www.strbrasil.com/Atheos/biblia.htm> e
<www.strbrasil.com/Atheos/contradicoes.htm>. Ambos foram acessados em
25/11/2003.
[←46]
Carl Sagan, op. cit., p. 286.
[←47]
É claro que na Bíblia também há belos trechos. A citação de trechos reprováveis
serve para mostrar a ambigüidade da Bíblia, deixando claro que, como qualquer livro,
ela não deve ser imune a críticas e questionamentos e que sua origem, assim como
a de todos os outros livros que conhecemos, é humana.
[←48]
É o que disse Nietzsche, com as seguintes palavras: "Não existem fenômenos
morais, apenas uma interpretação moral dos fenômenos ... " (Friedrich Nietzsche.
Para Além do Bem e do Mal. p. 92)
 
[←49]
Umberto Eco e Cario Maria Martini, op. cit., p. 116.
[←50]
Ibid., p. 81,82,83.
[←51]
Ibid., p. 81,82,83.
[←52]
Eu não vou nem citar as baratas, moscas e mosquitos, sobre as quais pensei
inicialmente, porque ainda se poderá alegar que eles trazem prejuízo à saúde
humana. Em contrapartida, opondo-se à nossa indiferença perante as formigas,
poucos não teriam pena de massacrar uma borboleta colorida.
[←53]
Alexandre de Moraes, Direito constitucional, p. 75.
[←54]
Carl Sagan, op. cit., p. 228
[←55]
Carl Sagan, op. cit., p. 228
[←56]
Sagan dedica um capítulo inteiro de seu famoso livro para comentar sobre
raciocínios falaciosos como este.
[←57]
Carl Sagan, op. cit., p. 273. Remeto também ao texto do mesmo
autor, já citado no capítulo Ili deste livro, sobre as supostas curas miraculosas das
pessoas que vão a Lourdes, na França.
[←58]
Carl Sagan, op. cit., p. 265.
 
[←59]
Texto citado por Keith Augustine. O caso contra a imortalidade. Traduzido por Gilson
C. Santos. Disponível em: < http://str.eom.br/Atheos/caso.htm > Acesso em: 1/ 10/04.
[←60]
lbid
[←61]
lbid
[←62]
Ronald Cordeiro. Introdução no debate vida após a morte. Disponível
em: < http:ljstr.com.br/Debate/debate0302.htm >. Acesso em: 1/10/04.
[←63]
Carl Sagan, op. cit., p 151.
[←64]
Morse 104, citado por Keith Augustine.
[←65]
Blackmore, Near-Death 36, citada por Keith Augustine
[←66]
Carl Sagan, op. cit., p. 167.
[←67]
Carl Sagan, op. cit., p. 201 .
[←68]
Ver em Yervant Terzian e Elizabeth Bilson (orgs.), O Universo de Carl Sagan, p.169.
[←69]
Yervant Terzian & Elizabeth Bilson (orgs.), op. cit., p. 177.
[←70]
Enci lopédia Barsa. Vol. 12. Verbete Panteísmo. Encyclopaedia Bntannica do Brasil
Publicações Ltda. Rio de Janeiro - São Paulo. 1993.
[←71]
Não se confunda o materialismo filosófico com o materialismo ético (que não é
proposta deste livro). Segundo "O livro das religiões", p. 240, de Jostein Gaarder e
outros dois autores, o "materialismo filosófico é a convicção de que todos os
fenômenos do mundo podem ser atribuídos a condições físicas, "inexistindo "(...)
forças espirituais agindo independentemente das leis da física." já o materialismo
ético é uma visão da vida centrada nos benefícios materiais e no prazer físico.
[←72]
Aqui, o termo "material" pode parecer redundante (afinal, não existe outro Universo).
Uso-o, entretanto, para impossibilitar totalmente que alguém dê ao termo "Universo"
qualquer conotação sobrenatural.
[←73]
Peter W. Atkins, Cómo crear e/ mundo, p. 19 e 20 (traduzido da versão em
espanhol).

Você também pode gostar