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Nota Prévia:
Estes são os apontamentos das aulas práticas de DIREITO PENAL, disponibilizados pela
Comissão de Curso dos alunos do 2º ano da licenciatura em Direito da Faculdade de Direito
da Universidade do Porto, para o mandato de 2022/2023.

Foram elaborados pela aluna Pilar Guimarães, tendo por base as aulas e documentos
disponibilizados pelo docente Tiago Rocha.

Salienta-se que estes apontamentos são apenas complementos de estudo, não sendo
dispensada, por isso, a leitura das obras obrigatórias e a presença nas aulas.

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Índice:
REVISÃO DO 1º SEMESTRE _______________________________________________ 6
TIPO JUSTIFICADOR _____________________________________________________ 7
LEGÍTIMA DEFESA ______________________________________________________ 9
CASO N.º 1 _____________________________________________________________ 11
CASO N.º 2 _____________________________________________________________ 30
CASO N.º 5 _____________________________________________________________ 11
CASO N.º 6 _____________________________________________________________ 11
CASO N.º 7 _____________________________________________________________ 17
CASO N.º 8 _____________________________________________________________ 20
CASO N.º 9 _____________________________________________________________ 27
CASO N.º 10 ____________________________________________________________ 30
CASO N.º 13 ____________________________________________________________ 49
CASO N.º 14 ____________________________________________________________ 77
CASO N.º 15 ____________________________________________________________ 52
CASO N.º 16 ____________________________________________________________ 54
CASO N.º 17 ____________________________________________________________ 57
CASO N.º 18 ____________________________________________________________ 59
CASO N.º 19 ____________________________________________________________ 69
CASO N.º 20 ____________________________________________________________ 71
CASO N.º 23 ____________________________________________________________ 73

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REVISÃO DO 1º SEMESTRE

Primeiro grande tema – introdução ao Direito Penal


Começámos por ver o sentido e a função do Direito Penal e o problema das finalidades das
reações criminais. Abordámos o conceito formal de Direito Penal – conjunto de normas que
fixam os pressupostos das reações criminais –, que se revela insuficiente, pelo que passámos
para o conceito material de Direito Penal.
Nesta parte da matéria, vimos duas características do Direito Penal: a fragmentariedade e a
subsidiariedade do Direito Penal, que resultam das ideias de dignidade penal e de necessidade
de pena.
De seguida, analisámos os fins das penas e as teorias relativas a esta temática:
1. Absolutas/Ético-retributivas: entendem a pena como um fim em si mesmo
2. Relativas: a pena não é um fim em si mesmo, é um meio para alcançar um objetivo:
evitar a prática de novos crimes
Concluímos que, atualmente, são dominantes as teorias relativas e as teorias retributivas são
inaceitáveis. De acordo com Figueiredo Dias, o ponto de partida é o da prevenção geral ou
positiva e o ponto de chegada o da ressocialização.
Depois, vimos o problema do monismo ou do dualismo das reações criminais.
Analisámos, ainda, a aplicação da lei penal, tanto no tempo como no espaço, a propósito de
cuja matéria vimos o princípio da legalidade, as fontes do Direito Penal, entre outras sub-
temáticas – aqui terminámos a introdução geral à unidade curricular.
Segundo grande tema – Doutrina Geral do Crime
Em primeiro lugar, abordámos o sistema classificatório, que procede a uma divisão analítica
do conceito de crime:
1. Ação
2. Tipicidade
3. Ilicitude
4. Culpa
5. Punibilidade
Não obstante esta divisão, a verdade é que o conceito de crime corresponde a uma unidade de
sentido, na medida em que a decomposição classificatória não corresponde a uma
desagregação do crime.
Seguidamente, vimos as grandes construções dogmáticas, nas quais se inserem os sistemas
clássico, neoclássico, finalista e teleológico-racional – neste âmbito, analisámos a perspetiva
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do Doutor Almeida Costa, nomeadamente a contraposição que faz entre o ilícito objetivo e o
ilícito pessoal ou subjetivo.
Depois, vimos que é possível autonomizar a dogmática geral do crime em torno de três formas
típicas de aparecimento do crime:
1. Crimes Dolosos de Ação
2. Crimes Negligentes de Ação
3. Crimes Omissivos
Começámos por estudar a primeira categoria, onde vimos o conceito dogmático de ação e, de
seguida, entrámos na matéria do tipo-ilícito, pois estes são uma unidade de sentido.
Abordámos a categoria do tipo e a distinção que existe entre tipo incriminador (o conjunto de
circunstâncias descritas na lei que têm de estar reunidas para que uma conduta se considere
ilícita) e tipo justificador.
Aqui terminou a matéria do primeiro semestre.

TIPO JUSTIFICADOR

A revelação de ilicitude precisa de necessita sempre de dois instrumentos, que operam em


sentidos contrários:
1. Tipo Incriminador: via provisória de afirmação da ilicitude, que funciona sempre
pela positiva
2. Tipo Justificador: via definitiva da exclusão da ilicitude, que funciona pela
negativa, como verdadeiro contra-tipo, dado que afasta a ilicitude da conduta que
caia no âmbito do tipo incriminador
Entre eles, estabelece-se uma relação de mútua complementaridade funcional.
Contudo, estruturalmente os dois tipos são distintos, uma vez que só o tipo incriminador é
que é o portador do bem jurídico essencial que é protegido pela norma penal. Em sentido
inverso, o tipo justificador é geral e abstrato, não se referindo a nenhum bem jurídico em
concreto.
Por outro lado, e ao contrário do que acontece com o tipo incriminador, o tipo justificador não
está sujeito ao princípio da legalidade, do que decorrem quatro consequências:
1. São menores as exigências de certeza e de determinação dos tipos justificadores
2. Não vale aqui a proibição da analogia
3. Não vale aqui o princípio da não retroatividade da lei penal
4. Podem ser criadas causas supralegais de exclusão de ilicitude
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Assim, temos de verificar se uma conduta cai/preenche um tipo incriminador e se não há
nenhum tipo justificador que, embora seja causa de exclusão de ilicitude, não é causa de
exclusão de culpa.
Nos termos do artigo 31º/1 do Código Penal, as causas de exclusão da ilicitude não precisam
de ter exclusivamente caráter penal e podem provir de qualquer ramo de Direito.
A este propósito, falamos do princípio da unidade da ordem jurídica, que não é entendido
como uma unidade da ilicitude, isto é, que se um certo ramo de Direito classifica uma conduta
como ilícita, ela será ilícita em todos os ramos, mas sim que se uma conduta é permitida por
qualquer ramo de Direito, ela não pode ser considerada ilícita pelo Direito Penal.
Assim, e nos termos do artigo 31º, podemos sistematizar as várias causas de justificação:
1. Legítima Defesa
2. Estado de Necessidade
3. Conflito de Deveres
4. Consentimento do Ofendido
5. Cumprimento de um dever – obediência hierárquica
É importante referir que existe um mínimo denominador comum a todas as causas de
justificação, que funciona como o elemento subjetivo do tipo justificador. Para que um
agente possa beneficiar de uma causa de justificação, ele tem de conhecer e representar que
atua a coberto de uma causa de exclusão de ilicitude.
è Mas o que acontece se um agente atuar objetivamente no quadro de justificação,
mas sem representar essa situação?
Exemplo: A e B têm uma desavença e discutem na rua. No dia seguinte, A quer
vingar-se de B, vai a casa dele e atira uma pedra à janela, ignorando que havia uma fuga
de gás, por consequência da qual B estava desmaiado, o que significa que, sem o
arremesso da pedra à janela, B teria morrido.
Será que podemos dizer que A agiu ao abrigo do estado de necessidade? Não, por
falta de representação do tipo justificador
Exemplo: Mesma situação do primeiro exemplo, mas A quer matar B, pelo que saca
de uma arma e, no momento em que o faz, B tinha a mesma intenção e saca também de
uma arma.
Poderá falar-se aqui de legítima defesa? Não, por falta de representação do tipo
justificador
A problemática desenvolvida com estes exemplos reside em saber qual a consequência da falta
de representação do tipo justificador. A doutrina maioritária, defendida pelo Prof. Figueiredo
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Dias, entende ser de aplicar o artigo 38º/4 do Código Penal por analogia, segundo o qual se
pune o agente com a pena aplicável à tentativa.
O Doutor Almeida Costa entende que não se pode aplicar analogicamente este artigo, no
seguimento do seu entendimento do crime como uma unidade objetivo-subjetiva – falhando
o tipo incriminador, o tipo justificador não se preenche, pelo que seriam punidos pelo
crime doloso consumado.

LEGÍTIMA DEFESA

Este é o tipo incriminador mais antigo e mais sedimentado; em virtude do monopólio estadual
da coerção, pelo que só quando as autoridades públicas não conseguirem intervir em tempo
útil é que o particular pode recorrer à legítima defesa.
Ao contrário do estado de necessidade, na legítima defesa não se exige uma ponderação de
interesses, sendo que se admite a lesão de um bem jurídico inferior ao que se visa proteger.
Fundamento da legítima defesa
Para Figueiredo Dias, funda-se na proteção de bens jurídicos, assim como do ordenamento
jurídico – prevenção especial e geral.
Requisitos da legítima defesa
A doutrina divide estes requisitos em dois grupos:
1. Requisitos da Agressão
a) Agressão de interesses juridicamente protegidos - uma conduta humana
agressiva que ameace bens jurídicos protegidos
A exigência de um comportamento humano exclui do âmbito da legítima
defesa os comportamentos dos animais, exceto se estes forem usados como meio
de agressão, e também exclui coisas inanimadas.
A agressão tem de ser voluntária – exclui os atos em que a vontade está
ausente, de que é exemplo o sonambolismo.
b) Agressão Atual – uma ação/agressão iminente (o bem jurídico já se encontra
ameaçado), persistente ou iniciada
A determinação da iminência resulta das regras da experiência comum, pelo
que o que interessa é a situação objetiva e não a que o indivíduo representa.
A legítima defesa pode ter lugar até ao último momento em que a agressão
persiste (exemplo: sequestro), sendo que o critério é sempre o do momento até
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ao qual a defesa ainda é suscetível de pôr fim à agressão.
c) Agressão Ilícita
A ilicitude afere-se à luz da totalidade da ordem jurídica, ou seja, não tem
que ser necessariamente penal. Porém, ela não é ilícita, para efeitos de legítima
defesa, quando a lei preveja procedimentos especiais de tutela, assim como nos
casos das agressões justificadas/consentidas.
A legítima defesa vale para agressões dolosas e negligentes, e vale para todas
as agressões ilícitas, ainda que não culposas, pelo que pode haver legítima defesa
contra inimputáveis.
2. Requisitos da Defesa
a) Elemento subjetivo do tipo justificador – o defendente tem de conhecer e
representar que está a atuar em legítima defesa
b) Necessidade do meio
A justificação que a legítima defesa pressupõe, ao nível da defesa, é a de que
os meios nela empreendidos sejam necessários para repelir a agressão atual – o
meio tem que sem necessário, mas não proporcional.
O meio é necessário quando é idóneo para suster a agressão, isto é, capaz de
a repelir, e, havendo uma pluralidade de meios idóneos, quando for o menos
gravoso para o agressor.
O juízo da necessidade do meio reporta-se ao momento da agressão (ex ante)
e deve ter em conta todos os elementos – idade do agressor, instrumentos de
agressão, surpresa e intensidade da agressão, entre outros.
O meio menos gravoso é sempre o recurso às autoridades públicas, nos
termos do artigo 21º da Constituição da República Portuguesa, e só quando
não for possível é que se avança para outros meios idóneos.
Os meios idóneos devem ser sempre empregues numa escalada – defendente
que tem arma de fogo e o outro não, aquele deve, primeiro, ameaçar, depois
disparar para uma zona não vital e só depois para um órgão vital.
c) Necessidade da Defesa – tem de ser normativamente imposta
Limites ou exclusão da legítima defesa, no âmbito do requisito da necessidade da defesa
Existem quatro situações típicas em que se limita ou exclui a legítima defesa:
1. Situações não culposas
Todos os requisitos da legítima defesa estão preenchidos, mas o agente age sem culpa.
Aqui, quanto menos responsável for o agressor, mais restritos serão os requisitos da
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necessidade da defesa – só se admite legítima defesa quando o agressor não puder afastar-
se ou repelir o ataque sem a agressão
2. Relações de proximidade existencial
3. Vale, no essencial, o referido para a situação anterior.
4. Agressões provocadas
Casos em que é o defendente que provoca a agressão, através de comportamentos
anteriores, sendo que temos de distinguir entre situações de pré-ordenação, em que ele
provoca a situação para atacar de volta, a coberto da legítima defesa (não havendo
necessidade de defesa, nega-se a legítima defesa), e provocação sem pré-ordenação, em
que se admite a legítima defesa, mas podem admitir-se restrições fortes
5. Abissal desproporção entre o bem jurídico protegido e o lesado

CASO N.º 1

No dia 12/5/2022, A, de 36 anos e compleição física bem constituída, aproximou-


se de B, pessoa com 60 anos e problemas de locomoção por todos perceptíveis,
apontando-lhe uma “arma branca” e dizendo-lhe que o teria de acompanhar ao ATM que
se encontrava próximo do local, onde deveria introduzir o seu cartão bancário, o PIN e
levantar 200 € que entregaria a A.
Receando pela sua vida ou integridade física, B, que era titular legítimo de licença
de uso e porte de arma, ao aproximar-se do ATM, desferiu um tiro no pé de A e fugiu do
local.

a) Mais tarde, A apresentou queixa-crime contra B, imputando-lhe a prática de um


crime, na forma consumada, com dolo directo, p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1, do CP. Se fosse
defensor/a de B, o que alegaria em sua defesa?

O defensor é o advogado do arguido, no âmbito do processo penal.


O tipo incriminador relativo à ofensa à integridade física encontra-se preenchido, seja
na forma objetiva como na subjetiva (o agente representou corretamente e quis,
efetivamente, acertar).
No entanto, é necessário, também, averiguar se não opera um tipo justificador, de que
é exemplo, por excelência, a legítima defesa.
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Requisitos da agressão:
è É uma ação humana agressiva? Sim
è Ameaça bens jurídicos protegidos? Sim, a propriedade de B, a integridade física, a
vida
è É atual? Sim
è É ilícita? Sim
Requisitos da defesa:
è Conhece e representa que está ao abrigo da legítima defesa? Sim, nada nos indica o
contrário
è O meio era necessário?
è O meio era idóneio? Sim, era um meio capaz de suster a agressão
è Havia outros meios idóneos? A fuga é um meio idóneo? Não, dado que não é
exigível ao homem médio que, perante uma agressão, não se defenda.
è Foi em escalada? Sim, pois parece que atirar para uma região não vital foi o meio
necessário para suster a agressão (se atirasse para o chão podia ser esfaqueado)
Em suma, a defesa era necessária e os requisitos da legítima defesa estão preenchidos,
o que leva a que B seja absolvido, pois a sua conduta deixou de ser ilícita, em virtude do
tipo justificador.

b) Imagine agora que, ao invés de disparar em direcção ao pé de A, B tinha


apontado e disparado para o tórax de A. Transportado ao hospital, passado cerca de um
mês, A veio a morrer. Avalie a responsabilidade jurídico-criminal de B.

Aqui preenche-se o tipo incriminador do homicídio.


A legítima defesa não poderia ser invocada, porque o meio não é necessário, visto que
escalou demasiado rápido. Havia uma pluralidade de opções e esta não era a menos gravosa,
pelo que o meio não era idóneo. Assim, a legítima defesa não podia operar.

Excesso intensivo e extensivo de legítima defesa

1. Excesso extensivo – reporta-se ao designado “erro sobre os pressupostos fáticos da


legítima defesa/legítima defesa putativa/etc” e está previsto no art. 16º/2, 1ª parte,
do Código Penal; não está em causa um elemento subjetivo do tipo justificador, na
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medida em que o defendente representa a sua ação como estando coberta pela
legítima defesa, o que acontece é que o agente supõe que os requisitos do tipo
justificador estão preenchidos, quando na verdade não estão. Assim, o agente
encontra-se em erro sobre as circunstâncias, que, a existir, excluirá a ilicitude
A avaliação do erro deve ser feita ex post e não ex ante. Na questão de saber se em concreto
estão ou não verificados os pressupostos de que dependa a justificação, o que conta é a
existência real da situação objetivamente existente e não a que o agente representou.
Se a posteriori se vem a apurar que os pressupostos não estão reunidos, não há causa de
exclusão da ilicitude, mas abre-se a porta ao erro.
Assim, temos que distinguir este erro (erro sobre as circunstâncias de facto – art 16º/2) do erro
sobre a ilicitude (de valoração – art 17º), que também se aplica num tipo justificador.
Está em erro sobre a ilicitude quem acredita que existe uma causa de justificação que a ordem
jurídica não reconhece ou falha no âmbito ou nos limites de uma causa de justificação
efetivamente existente. Estando o agente em erro quanto aos elementos da legítima defesa, a
consequência está prevista no 16º/2 – excesso extensivo.
2. Excesso intensivo – reporta-se ao excesso de meios de legítima defesa, que está
previsto no art. 33º do CP, em que o agente excede os meios que utiliza para recorrer
à legítima defesa
2.1.Excesso intensivo esténico – o emprego do meio fica-se a dever à cólera, raiva, o
agente usa da legítima defesa porque quer fazer justiça pelas suas mãos (artigo 33º/1)
2.2.Excesso intensivo asténico – fica a dever-se a medo, a pavor, a pânico, a perturbação,
a susto, que fazem com que o agente seja incapaz, no momento do facto, de medir a
necessidade do meio, indo além do necessário
è Se a astenia for censurável – artigo 33º/1
è Se a astenia não for censurável – artigo 33º/2 e exclui-se a punibilidade

Qual é o critério para determinar se a astenia é ou não censurável? É o critério de


exigibilidade do homem médio; se o homem médio não for censurável, naquelas mesmas
circunstâncias, então não se vai censurar; se ao homem médio for censurável, então deve-se
punir o agente (o homem médio não é uma pessoa qualquer, o critério do homem médio
corresponde ao do homem/pessoa média da condição socio-existencial do agente, isto é,
alguém com as mesmas características sócio existenciais do agente - neste caso seria um
senhor de 60 anos).
Neste caso, estava em causa um excesso intensivo.
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c) Nesta última hipótese, suponha que, em audiência de julgamento, se havia
provado que B apenas disparou sobre A na zona do tórax por ter ficado com muito medo,
tanto mais quanto já não era a primeira vez que tinha sido roubado e ficara bastante
traumatizado com esses eventos anteriores. Se fosse juiz(a), como decidiria?

Excesso intensivo de legítima defesa, sendo um excesso asténico.


O critério para determinar a censurabilidade da astenia é o do homem médio, sendo que, neste
caso, não era exigível que o mesmo atuasse de diferente modo, pelo que recorreríamos ao
artigo 33º/2 e concluiríamos pela não punição do agente.

d) Imagine agora, ao invés, que o tribunal deu como provado que B actuou somente
motivado pelo desejo de vingança, de “fazer justiça pelas próprias mãos”, sendo uma
pessoa muito revoltada com o estado da segurança pública em Portugal. A decisão deveria
ser diferente?

Excesso intensivo de legítima defesa, sendo um excesso esténico, face às motivações do


agente, que atuou num quadro motivacional de raiva, ódio e vingança, pelo que a consideração
jurídico-penal recaía no artigo 33º/1.

CASO N.º 2

No dia 4/1/2023, C escalou o tubo de águas pluviais e entrou na varanda das


traseiras do apartamento propriedade de D, tendo partido o vidro, afastado a cortina e
apropriando-se de coisas móveis no valor de 12.300 €.
Quando D acordou e se deu conta do que estava a acontecer, correu para a sala, mas
já só conseguiu vislumbrar C a fugir, sendo que ambos bem se conheciam.
Acto contínuo, D deslocou-se à habitação de C, tendo-lhe este aberto a porta. D
irrompeu nesse local e viu uma série de coisas dispostas no chão, tendo julgado reconhecer
o seu aparelho de TV, que levou consigo sem que C tivesse oferecido qualquer resistência.
D disse a C: “Isto é uma parte do que me tiraste. Venho cá amanhãe levo o resto”.
a) Suponha que, na verdade, o aparelho de TV que D levou não era seu, mas de E,
uma outra vítima dos furtos a que C se dedicava. Como responderia D do prisma jurídico-
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penal?

A conduta de C, ao nível do tipo incriminador, enquadra-se no âmbito do furto qualificado


e do dano.
Já a conduta de D incorre na prática de um crime de furto.
Importa saber se a conduta de D recai na legítima defesa.
Conduta de C - agressão:
• É um comportamento humano, voluntário e agressivo, que ameaça bens
jurídicos protegidos? Sim, ameaça os bens de D
• É uma ameaça atual? Não se diz que D persegue C, e o prof. entende que o
requisito da atualidade não está preenchido
O furto está consumado quando se verifica uma de duas situações – o
furto é realizado e a pessoa fica sem a coisa OU quando o agente tenha a
posse pacífica da coisa
O que é a posse pacífica? Ela ocorre quando a posse permanece sem coação físico-
moral, isto é, o momento a partir do qual o possuidor pode usufruir da coisa – basta
que haja um potencial de uso da coisa.
Vimos também que o critério da atualidade, para os crimes de furtos, deve ser
alargado para o momento concomitante da agressão, na medida em que o indivíduo
possa evitar a lesão da sua esfera jurídica.
Figueiredo Dias não toma posição sobre isto, ele entende que está coberto pela
legítima defesa.
O STJ vem a entender que o crime de furto só se consuma quando a coisa entrar
na esfera jurídica do agente, com uma “tendencial estabilidade”, que definem como
quando se ultrapasse um momento de risco imediato de reação por parte do
ofendido, das autoridades ou de outras pessoas que ajam em interesse do ofendido.
O problema não se colocaria se D tivesse perseguido C, mas aqui o caso é diferente,
dado que D só consegue reagir por saber onde C habita, pelo que não conseguiria
reagir se não soubesse.
De todo o modo, o preenchimento do critério da atualidade é dúbio, pelo que se
pode argumentar por qualquer um dos resultados.
• A ameaça é ilítica? Sim
Conduta de D - defesa:
• D representa que está ao abrigo do tipo justificador? Sim
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• Há necessidade do meio? Não, dado que D poderia ter contactado as
autoridades públicas para que elas interviessem; nos termos do artigo 21º da
CRP, o recurso à legítima defesa só se admite quando não haja tempo útil
para contactar as autoridades, sendo que este será sempre o meio menos
gravoso
Deste modo, ou pelo requisito da atualidade ou pelo requisito da necessidade do
meio, D não atua ao abrigo do tipo justificador.
Por outro lado, se D acreditasse que todos os pressupostos da legítima defesa
estivessem preenchidos, estaríamos perante um erro sobre a ilicitude, no subtipo
de erro sobre a valoração – artigo 17º -, pelo que falharia quanto aos limites do tipo
justificador.
Noutra hipótese, se todos os requisitos da legítima defesa estivessem preenhcidos
e D entrasse em casa de C, pensasse que a sua televisão estava lá e pega-se nela e
viesse-se embora, estaríamos enquadrados num caso de erro sobre os pressupostos
fáticos do tipo justificador – artigo 16º/2.

b) Imagine agora que, ao invés, D tinha pegado na sua TV e que, em julgamento,


o seu defensor alegou que D actuara a coberto de acção directa. Sendo juiz(a), como
avaliaria essa linha argumentativa?

Artigo 336.º do Código Civil (Acção directa)

1. É lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito,


quando a acção directa for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil
aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito,contanto que
o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo.
2. A acção directa pode consistir na apropriação, destruição ou deterioração de
uma coisa, na eliminação da resistência irregularmente oposta ao exercício do direito, ou
noutro acto análogo.
3. A acção directa não é lícita, quando sacrifique interesses superiores aos queo
agente visa realizar ou assegurar.

Estaríamos novamente num quadro em que os requisitos da legítima defesa


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falhavam, nomeadamente o da necessidade do meio.
Importa aqui fazer apelo à ideia de unidade da ordem jurídica, no sentido em
que, se um qualquer ramo do Direito vir uma conduta como ilícita, não pode o
Direito Penal considerá-la lícita.
Figueiredo Dias enquadra a ação direta numa categoria que designa como
atuações no lugar de um órgão oficial – agere pro magistrato.
Se é verdade que o monopólio da coerção pertence ao Estado, não é menos
verdade que que isso exclua, à partida, o poder de atuação legítima dos
particulares, em lugar do Estado, como uma medida provisória da realização da
ordem jurídica; é neste enquadramento que o artigo 336º do Código Civil
considera lícito o recurso à força, com o objetivo de salvaguardar interesses
próprios.

Requisitos da ação direta:


• Indispensabilidade do recurso à força – 336º/1, prende-se com ser
impossível em tempo útil recorrer à autoridade pública
• A ação em si tem de revestir uma das modalidades do 336º/2:
apropriação, destruição de uma coisa na eliminação da resistência
irrregularmente opostoa ao exercício do direito, ou noutro ato análogo
• Necessidade do meio - o agente não pode exceder o necessário, 336º/1
• Juízo de proporcionalidade – 336º/3

Resposta: D não estaria a coberto da ação direta, pois era possível recorrer às autoridades
públicas, parecendo que todos os outros requisitos estariam preenchidos

CASO N.º 3

Imagine que integrou o tribunal colectivo que, após a realização da audiência de


discussão e julgamento, deu como provados os seguintes factos:
1. Na tarde do dia 3/8/2022, houve troca de palavras entre os arguidos A e C e D,
perto do restaurante explorado por A, B e C;
2. Cerca das 18 h desse dia, os arguidos A, B e C encontravam-se no restaurante de
que eram proprietários, sito em Albufeira, ocupados nos seus trabalhos;
3. Então, entrou no restaurante D, seguido por J, levando D na mão um pau de
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madeira do tipo bastão e J um cinto com uma fivela em metal;
4. A, que na altura cortava pão com uma faca, ao aperceber-se da entrada no
restaurante de D, fugiu do local onde estava, dirigindo-se ao andar inferior, no que foi
perseguido por D;
5. Este, ao passar pelo local onde se encontrava C, desferiu-lhe com o bastão nas
costas, tendo, em consequência, C caído no chão;
6. Continuou D a perseguir A e este, já no terraço do restaurante, que não tinha acesso
directo à rua, parou e envolveu-se em confrontação física com D, no decurso da qual lhe
desferiu vários golpes com a faca que tinha na mão;
7. Entretanto, B, apercebendo-se do sucedido, havia corrido em direcção a A e D,
levando consigo uma faca; e com ela desferiu também golpes no corpo de D;
8. No decurso do acima descrito, C levantou-se do chão e, quando se encaminhava
em direcção aos outros indivíduos, foi agarrado pelas costas por J, que o prendeu pelo
pescoço, tendo acabado por cair os dois ao chão;
9. Quando J se levantava do chão, B, empunhando uma faca, desferiu-lhe um golpe
com ela, causando-lhe uma ferida perfurante;
10. Foi J quem acabou por conseguir tirar D de dentro do restaurante;

11. Como consequência directa e necessária da actuação de A e B, D sofreu várias


lesões, acabando por morrer:

Em julgamento A invocou beneficiar de legítima defesa e B argumentou que a sua


conduta não deveria ser punida, por ter agido em estado de necessidade. Se fosse juiz(a),
como avaliaria estas linhas argumentativas?

Resumindo o caso do enunciado, de um lado, temos A, B e C, e, de outro lado, temos D e J.


Quadros criminais:
• A – ofensa à integridade física, agravada pelo caso morte, ou homicídio (a diferença
reside no elementos subjetivo do tipo incriminador, ou seja, a intenção do agente)
• B – ofensa à integridade física, agravada pelo caso morte, ou homicídio, em relação
a D, e ofensa à integridade física, em relação a J
Legítima defesa
Requisitos da agressão de D a A:
• Comportamento humano, voluntário e agressivo, que ameaça bens jurídicos? Sim,
ameaça a integridade física de A
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• Atualidade da agressão? Sim, já se iniciou
• É ilícita? Sim
Requisitos da defesa de A:
• O agente A representou que estava a atuar a coberto de uma causa de justificação?
Sim
• Necessidade do meio? Há um conjunto de factos de que não temos conhecimento,
mas, por princípio, face à análise global, parece que o meio é necessário
• Havia uma crassa desproporção? Não
Em relação a A, parecem estar preenchidos todos os pressupostos da legítima defesa,
estando excluído o tipo incriminador, e afastando-se a ilicitude do crime.

Estado de necessidade
À custa de quem é que se salvaguarda o bem jurídico em perigo? Se for à custa do
agressor, é legítima defesa; se for à custa da esfera jurídica de um terceiro não implicado
na situação, estamos perante estado de necessidade.
O estado de necessidade precisa sempre de uma relação triangular – numa ponta, temos o
bem jurídico em perigo (pode ser do próprio ou de um terceiro); noutra ponta, temos o
agente que atua para salvaguardar o bem jurídico em perigo, à custa de um terceiro não
relacionado, que se encontra no terceiro vértice.
Neste caso, B quer salvaguardar os bens jurídicos quer de A como de C, mas fá-lo à custa
da esfera jurídica do agressor (D ou J), pelo que nunca poderíamos invocar aqui o estado
de necessidade.

Estado de necessidade justificante e estado de necessidade desculpante


Estado de necessidade justificante – verifica-se sempre que o facto praticado para
salvaguardar a esfera jurídica do próprio ou de um terceiro, é sensivelmente de maior valor
do que o bem ou interesse jurídico sacrificado; é uma causa de exclusão da ilicitude, nos
termos do artigo 34º do Código Penal
Estado de necessidade desculpante – verifica-se sempre que o bem ou interesse jurídico é
igual ou menor do que o bem jurídico sacrificado (exemplo da linha de comboio – matar
10 pessoas ou matar 50 pessoas); atua como uma causa de exclusão da culpa, nos termos
do artigo 35º do Código Penal
Por forma a resumir a distinção entre a legítima defesa e o estado de necessidade, importa
colocar a questão “à custa de quem se protege o bem jurídico?”.
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Para distinguir Estado de Necessidade (EN) de Legítima Defesa (LD): à custa de que esfera
jurídica se salvaguarda o bem jurídico ameaçado?
l Se a resposta for no sentido de lesarmos a esfera jurídica do próprio agressor - situação
de Legítima defesa;
l Se a esfera jurídica lesada for de um terceiro que não esteja implicado na situação/que
esteja na sua paz jurídica - situação de Estado de necessidade.

Situação típica de Estado de Necessidade:

Terceiro não implicado na situação de perigo

Agente que Bem jurídico em perigo


atua em Estado de
necessidade

Podemos ainda distinguir o Estado de necessidade consoante seja:


1. Estado de necessidade ofensivo/interventivo
Ocorre quando o agente ofende um bem jurídico de um terceiro não implicado na situação
para salvaguardar um bem jurídico seu ou de terceiro.
2. Estado de necessidade defensivo (resulta da evolução da dogmática)
O agente ofende um bem jurídico da própria pessoa que causa o perigo.

Ø Como é que se distingue da Legítima defesa?


- Se a agressão for ilícita, estamos sempre no domínio da Legítima defesa.
- Se a agressão for lícita, já estamos nos quadros do Estado de necessidade defensivo. Este
ocorre sempre que:
l Não foi possível recorrer-se à Legítima defesa por faltar um dos seus requisitos: a
ilicitude da agressão ou;
l Porque o facto perigoso não configura sequer uma agressão (ex.: A está a meio de um
ataque epilético e vai partir um jarro de B se não for travado à força - não pode haver Legítima
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defesa, mas poderá haver um Estado de necessidade defensivo) ou
l Porque o facto em si não é ilícito (ex.: um automobilista que circula com todas as
regras de cuidado começa a derrapar e vai matar um peão se não se desviar e bater no portão
de C) ou
l Porque a ameaça não é atual (ex.: D, a quem E furtou a bicicleta, encontra-o no dia
seguinte e dá-lhe uma bofetada com o único objetivo de recuperar o objeto furtado).

Embora hoje a maioria da doutrina aceite a justificação do Estado de necessidade defensivo,


colocam-se divergências quanto a saber qual é a concreta causa de justificação tipificada na
lei que está em causa e quais são os seus requisitos/pressupostos.
Uma corrente doutrinal defende a criação de uma causa supralegal de justificação, não prevista
na lei, mas fundamentada doutrinal e jurisprudencialmente, e uma outra corrente, defendida
pelo Doutor Figueiredo Dias e pelo Doutor Almeida Costa, entende que o Estado de
necessidade defensivo é apenas mais um aspeto da ponderação de interesses conflituantes que
subjaz à figura do Estado de necessidade justificante, pelo que os pressupostos do Estado de
necessidade defensivo são exatamente os mesmos do Estado de necessidade ofensivo
(previstos no artigo 34.º CP). Segundo esta última tese, o Estado de necessidade defensivo é
uma modalidade do Estado de necessidade justificante. (artigo 34º CP).

Voltando ao caso:
Mesmo assim, a conduta de B não se poderia reconduzir aos quadros do Estado de
necessidade, dado tratar-se de uma ação ilícita. Este invocou, portanto, uma causa de
justificação errada.

Contudo, poderia a ação ser justificada por recurso à Legitima defesa? Vejamos os requisitos:
1. Agressão (conduta de J e D quanto aos demais)
a) É verdade que houve um comportamento humano voluntário dirigido à lesão de bens
jurídicos - a conduta de J e de D ameaça, no limite, a vida de A e de B;
b) A agressão era atual, estava em curso;
c) A agressão é ilícita.
2. Defesa
a) O elemento subjetivo damos por verificado;
b) Necessidade de defesa está preenchida;
c) Necessidade do meio - B agride D e J:
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i. Em relação a D parece, em abstrato, que tenha havido um excesso de Legítima
defesa ;
ii. Em relação a J, este requisito parece estar verificado - foi um meio idóneo e o
menos gravoso de entre os meios disponíveis, que representa um perigo menor
para a integridade física de B.

Em relação à justificação da conduta da agressão de B a D, é duvidoso que os requisitos


estejam preenchidos. Já em relação à agressão de B a J, parece que todos os requisitos estão
preenchidos para se considerar que houve Legitima defesa.

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Direito Penal – 2.º semestre – Aulas práticas – Ano lectivo de 2022/2023
CASO N.º 4

F foi condenado pela prática de um crime de desobediência p. e p. pelo art. 348.º,


n.º 1, al. a), do CP, com referência ao art. 152.º, n.º 3, do Código da Estrada, na pena de
7 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano, e na pena acessória de proibição
de condução de veículos com motor, pelo período de 9 meses.
Durante o cumprimento da pena acessória, F conduziu um veículo automóvel e
foi intercetado por elementos da PSP que realizavam uma operação de fiscalização de
trânsito.
Na sua contestação, F defendeu que “durante o cumprimento da pena acessória, o
seu pai lhe telefonou porque estava a ter mais uma “crise de rins”, pelo que, perante a
aflição do seu pai, F, sem pensar, entrou num dos veículos da empresa que se encontrava
estacionado no parque da mesma e dirigiu-se para casa daquele, situada a pouca
distância”.
Qual o relevo do defendido por F na sua contestação para efeitos da avaliação da
respetiva responsabilidade jurídico-criminal?

Em primeiro lugar, a conduta de F constitui um tipo incriminador, presente no art. 353.º


CP.
O tipo justificador invocado por F é o Estado de Necessidade. Não se trata de Legítima
Defesa porque o bem jurídico é salvaguardado, mas não à custa de um bem jurídico do
próprio agressor.
Os terceiros não implicados na situação, é a empresa, a quem foi subtraído o veículo, e
“todos nós”, numa ideia de realização da justiça.
Trata-se de Estado de necessidade ofensivo, dado que a salvaguarda se faz à custa de
um bem jurídico de um terceiro, e justificante, dado que o bem jurídico em causa (saúde,
integridade física do pai de F) é sensivelmente superior ao património da empresa ou a
uma ideia de respeito pela autoridade pública/realização da justiça.

Tendo em conta os requisitos do Estado de Necessidade:

1. Existência de uma situação de perigo ou, segundo o Doutor Figueiredo Dias, de


necessidade.
a) A situação de perigo supõe a existência de um perigo objetivo, que ameaça interesses
juridicamente protegidos do agente ou de terceiro;
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Direito Penal – 2.º semestre – Aulas práticas – Ano lectivo de 2022/2023
b) Pode ter origem humana, animal ou natural.
c) Os interesses têm que ser juridicamente protegidos mas não penalmente protegidos:
i. Os bens jurídicos ameaçados podem não ter natureza penal e tanto podem ser
individuais como podem ser supraindividuais/comunitários (hipótese menos
frequente);
ii. O CP refere-se a “interesses juridicamente protegidos” e não a bens jurídicos
propositadamente, por forma a deixar claro que a comparação dos interesses em
perigo e os interesses sacrificados não deve apenas atender à posição hierárquica
dos bens jurídicos em confronto (por norma, bens jurídicos pessoais > bens
jurídicos patrimoniais), mas pende para se considerar que essa ponderação deve
ser feita tendo em conta os bens jurídicos projetados no contexto global;
iii. Os bens jurídicos conflituantes são apenas uma perspetiva da ponderação,
podendo haver outras como a maior ou menor adequação do meio salvador, o
grau do perigo que ameaça, a autonomia pessoal do lesado.

2. Atualidade: o perigo deve ser atual


a) Tal como na Legítima defesa, o perigo é atual se é iminente ou se já se iniciou.
Defende o Doutor Figueiredo Dias que o requisito da atualidade deve ser aqui
entendido de uma forma mais ampla: o perigo deve ser considerado atual mesmo que
não seja ainda iminente mas o adiamento do facto salvador represente uma
potenciação do perigo;
b) Há ainda o caso dos perigos duradouros (ex.: existe um edifício em perigo de
ruir, embora não se saiba exatamente quando).

3. Adequação ou necessidade do meio lesivo empregue para salvaguardar o bem jurídico


ameaçado
a) O meio empregue tem que ser adequado ou necessário a afastar o perigo atual.
Será adequado se for, segundo a experiência comum, objetivamente idóneo a
salvaguardar o interesse ameaçado;
i. Não é verdadeiramente um requisito mas o bem jurídico ameaçado pode ser
do agente ou de terceiro.

4. Na alínea a) do art. 34.º CP, é pressuposto da justificação que o perigo não tenha sido
intencionalmente criado pelo agente, salvo quando se trate de proteger o interesse de
terceiro.
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Direito Penal – 2.º semestre – Aulas práticas – Ano lectivo de 2022/2023
A doutrina e a jurisprudência fazem uma interpretação restritiva:
a) A justificação só deve ser afastada quando o agente atua em pré-ordenação e crie
intencionalmente a situação de perigo para a coberto dela ofender a esfera jurídica de
terceiro (ex.: A incendeia a habitação de B para se introduzir nela dado que tem muita
curiosidade em visitá-la);
b) Nas restantes situações, em que o agente se colocou voluntariamente numa
situação de perigo mas não o fez intencionalmente - negligência ou dolo eventual - o
Estado de necessidade deve continuar a afirmar-se como causa de justificação (ex.:
C foi fazer uma corrida para o deserto, apesar dos perigos inerentes, e alguém vai em
seu socorro);
c) A provocação intencional do perigo não deve servir para negar a justificação do
Estado de necessidade quando se trate de proteger o interesse de terceiro (ex.: se A
criou intencionalmente um perigo na casa de B mas depois se arrepende, pode usar
do Estado de necessidade para entrar na casa de B e chamar os bombeiros).

5. Nos termos da alínea b) do art. 34.º CP, está patente o princípio do interesse
preponderante
a) A lei exige que se pondere o valor dos interesses conflituantes de acordo com a
sua projeção no contexto global do acontecimento, havendo que ponderar vários
fatores:
i. A hierarquia dos bens jurídicos em colisão (pode-se usar como ponto de apoio
as molduras penais associadas aos bens jurídicos ameaçados e sacrificados,
respetivamente);
ii. Intensidade da lesão do bem jurídico (saber se o bem jurídico será
completamente aniquilado ou apenas se trata de uma lesão parcial/passageira -
ex.: perante uma ameaça temporária, um Banco é forçado a encerrar o
estabelecimento para proteção das suas reservas de ouro, para isso sequestrando
as pessoas que se encontravam dentro do banco aquando do surgimento da
ameaça);
iii. Grau de perigo afastado ou criado com a ação de salvamento.

Esta ponderação tem de ser feita objetivamente por referência à concreta situação:
concreto bem jurídico em perigo e concreto bem jurídico a lesar.
Apesar da alínea b) se referir a uma sensível superioridade, ela deve ser interpretada
como uma clara/indubitável/manifesta/inequívoca superioridade do interesse a
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Direito Penal – 2.º semestre – Aulas práticas – Ano lectivo de 2022/2023
salvaguardar em face do interesse sacrificado, dado que tratamos da lesão de um bem
jurídico de terceiro.

Perigos especiais
b) Em função de certos estados ou profissões, o ameaçado pode estar obrigado a
incorrer em perigos especiais ou a utilizar apenas certos meios para salvaguardar
interesses próprios (ex.: bombeiros, soldados, polícias);
c) Pode-se entender que só estão numa situação de perigo em condições mais
exigentes.

6. De acordo com a alínea c) do art. 34.º CP, está prevista a razoabilidade da imposição
do sacrifício ao lesado
a) Trata-se de um requisito de natureza limitativa;
b) O estado de necessidade tem também como fundamento a solidariedade social,
impondo a um terceiro o sacrifício da sua esfera jurídica em nome de um interesse
alheio.
c) Há, porém, limites para aquilo que se pode exigir a um terceiro, nomeadamente
quando esteja em causa a autonomia pessoal do lesado, uma vez que o facto
necessitado ofende, para além do seu bem jurídico, o seu direito de autodeterminação
(ex.: bens jurídicos eminentemente pessoais).
d) Este critério cumpre uma função semelhante ao da necessidade da defesa na
Legítima defesa: pode acontecer que numa concreta situação todos os restantes
requisitos do Estado de necessidade estejam preenchidos, mas, ainda assim, não se
possa exigir ao terceiro a lesão da sua esfera jurídica.
e) O exemplo mais comum é ser pedido a A que doe o seu rim a B e este recusar;
mais tarde, numa situação de urgência, A, mesmo sem ter dado o seu consentimento,
é submetido a cirurgia para que lhe seja retirado o rim de modo a salvar B. A doação
de sangue, contrariamente, não constitui um bom exemplo para este requisito.

7. O último requisito é o elemento subjetivo: o agente deve saber que está a atuar a coberto
de um tipo justificador.

Neste caso, estão preenchidos os requisitos do Estado de necessidade justificante


ofensivo?

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Direito Penal – 2.º semestre – Aulas práticas – Ano lectivo de 2022/2023
1. Situação de perigo - crise de rins do pai de F. Há efetivamente uma ameaça a interesses
juridicamente protegidos;
2. Atualidade do perigo - o perigo é atual, já se iniciou, está em curso;
3. Adequação ou necessidade do meio lesivo empregue para salvaguardar o bem jurídico
ameaçado pelo perigo - damos este requisito como preenchido, apesar de não sabermos o
que F ia fazer a casa do pai;
4. Art. 34.º/a) CP - o perigo não foi voluntariamente criado pelo agente;
5. Art. 34.º/b) CP - o bem jurídico ameaçado é sensivelmente superior ao bem jurídico
lesado;
6. Art. 34.º/c) CP - há razoabilidade na imposição do sacrifício ao lesado;
7. Elemento subjetivo - consideramos como preenchido.

Este caso é inspirado num acórdão do Tribunal da Relação do Porto. O Tribunal entendeu
que não estavam preenchidos 2 requisitos:
l A situação de perigo era puramente subjetiva e não objetiva;
l A necessidade e adequação do meio não estava verificada.
Não se creditou portanto a justificação ao abrigo do Estado de necessidade.

CASO N.º 5

G era sócio-gerente de X, Lda., cujo objecto social consistia na transformação e


reparação de motores para veículos, empregando 50 trabalhadores. Em virtude da actual
crise nos mercados internacionais, associada à crise inflacionista vivida, a sociedade
passou a ter menos encomendas que o normal, pelo que a respectiva situação económico-
financeira se deteriorou consideravelmente. Assim, durante os períodos contributivos de
Janeiro a Outubro de 2021, X, Lda. não liquidou o IVA devido ao Estado, no valor de
121.356,78 €.
Em julgamento, G alegou e logrou provar que, em face da descrita situação
comercial da pessoa colectiva, viu-se impelido a fazer uma escolha entre liquidar ao
Estado o imposto recebido ou assegurar o pagamento da retribuição aos trabalhadores,
tendo optado por este último, por estar convencido de que se tratava de algo muito mais
importante que regularizar a situação fiscal. Quid iuris?

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Direito Penal – 2.º semestre – Aulas práticas – Ano lectivo de 2022/2023
Está em causa um conflito de deveres. Nos termos do art. 36.º/1, em conjugação com o art.
31.º/2/c) CP, é uma causa de justificação/exclusão da ilicitude. O agente está obrigado a
cumprir dois ou mais deveres, mas não lhe é possível cumprir todos.
A pedra de toque, ou seja, o que permite distinguir o conflito de deveres face a outras figuras,
passa, por um lado, pelo facto de o agente se ver impossibilitado de cumprir todos os deveres
que em si recaem e, por outro lado, para cumprir um desses deveres, ter de incumprir os
restantes. São deveres excludentes entre si: o cumprimento de um leva ao incumprimento dos
outros.
Um dos deveres em causa tem de ser jurídico-penal, i.e., um dever cuja violação representa
um facto ilícito-típico. Neste caso, é o pagamento do imposto ao Estado (não liquidar o IVA).
O Doutor Almeida Costa entende que os deveres jurídicos que impendem sobre o agente
devem ser de molde a evitar ou minorar um bem jurídico de terceiro e não do próprio.
Na base do conflito de deveres, está uma ideia de inexigibilidade.

Uma questão puramente dogmática é de saber se esta figura é autónoma face ao estado de
necessidade. Para Figueiredo Dias e Eduardo Correia, o conflito de deveres, embora tenha
especificidades, não é completamente autónomo face ao estado de necessidade justificante.
Aliás, de acordo com Figueiredo Dias, é apenas relativamente autónomo. Mas, a verdade é
que, tanto no estado de necessidade como na colisão de deveres, temos um problema de colisão
de interesses.

Em tudo o que não seja específico do conflito de deveres, nomeadamente no que toca à
solução que se deve dar à colisão, ou seja, o dever que deve ser cumprido, deve então
aplicar-se subsidiariamente a teoria do estado de necessidade.

Hoje em dia, aceita-se uma autonomização da figura do conflito de deveres face ao estado de
necessidade justificante, com base nas suas caraterísticas:
l Tanto na legítima defesa como no estado de necessidade, o cerne da questão está na pessoa
que vai atuar sobre o agressor ou sobre um terceiro não implicado na situação. No conflito
de deveres, o foco está na pessoa que é onerada no cumprimento de dois ou mais deveres
cujo cumprimento cabal é impossível.
l Tanto a legítima defesa como o estado de necessidade são facultativos: o agente pode ou
não atuar em defesa de um bem jurídico próprio ou de terceiro. No caso do conflito de
deveres, o agente está obrigado a cumprir os deveres, a salvaguarda do bem jurídico é
obrigatória.
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Direito Penal – 2.º semestre – Aulas práticas – Ano lectivo de 2022/2023
l No estado de necessidade e na legítima defesa o bem jurídico que se quer salvaguardar
pode ser do próprio agente ou de terceiro, enquanto que no conflito de deveres o bem
jurídico é sempre de um terceiro.
l No estado de necessidade um dos requisitos é a atualidade do perigo, que não se aplica no
conflito de deveres.
l No estado de necessidade justificante só é possível a lesão de um interesse jurídico para
salvaguardar um outro interesse jurídico manifestamente/sensivelmente superior, ao
passo que no conflito de deveres exclui-se a ilicitude quando o agente satisfaça um dever
de igual ou superior valor (a exigência é menor).

Tal como acontece no estado de necessidade, também é possível no âmbito do conflito de


deveres apelar a uma teoria diferenciada do conflito de deveres. É possível falarmos de um
conflito de deveres justificante, que é o que está previsto no art. 36.º/1 CP, mas também podem
ocorrer conflitos de deveres desculpantes. Nestas situações, perante um conflito de deveres, o
agente cumpre o dever de valor menor.
Ao contrário do que acontece no estado de necessidade desculpante, o conflito de deveres
desculpante não está previsto no CP, pelo que a doutrina entende que se devem aplicar os
mesmos pressupostos, mutatis mutandis que se aplicam ao estado de necessidade desculpante.

Requisitos do conflito de deveres justificante:

1. Existência de dois ou mais deveres em conflito/colisão/confronto


Segundo a doutrina, não estamos no âmbito de um conflito de deveres quando a colisão ocorra
entre um dever e um direito. Nesse caso, prevalece sempre o cumprimento de um dever.

2. Os deveres digam respeito à salvaguarda de bens jurídicos alheios


Cada um dos deveres que impendem sobre o agente hão de dizer respeito à salvaguarda de
bens jurídicos de terceiros.

3. Os deveres em conflito devem ser deveres jurídicos


Não há um conflito de deveres entre deveres jurídicos e deveres morais, éticos ou religiosos.
Tem de haver pelo menos um dever jurídico-penal, que preencha um tipo ilícito. Havendo um
conflito entre deveres jurídicos e não jurídicos, deve-se optar pelo dever jurídico.
Relativamente aos deveres não jurídicos, ou a ordem jurídica atribui relevância a um dever
moral ou ele não tem qualquer relevância para o Direito.
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Direito Penal – 2.º semestre – Aulas práticas – Ano lectivo de 2022/2023

Alguma doutrina, nomeadamente Figueiredo Dias e Eduardo Correia, entende que só existe
um autêntico conflito de deveres entre deveres de sinal igual - ou ação ou omissão. Ocorrendo
um conflito de deveres entre deveres de sinal oposto, já não será conflito de deveres, mas sim
estado de necessidade.
O Doutor Almeida Costa discorda, e grande parte da doutrina acompanha esta posição, e
defende a possibilidade de ocorrência de conflito de deveres entre deveres de sinal oposto,
desde que os deveres de ação ou omissão impendam obrigatoriamente (é aqui que se faz a
distinção relativamente ao estado de necessidade) sobre o agente.

Exemplo: perante a existência de apenas um ventilador numa urgência de um hospital, do qual


dois pacientes têm uma necessidade urgente, um médico tem o dever de salvar um paciente
(ação) e o de não matar o outro paciente (omissão).

Sempre que estejamos perante o cumprimento de deveres de igual valor (vida contra vida), e
a colisão se dê entre um dever de ação e um dever de omissão, é sempre mais importante o
dever jurídico-penal de não cometer um crime. Segundo Eduardo Correia, face a bem jurídico
de igual valor, o dever de não praticar um crime prevalece sempre.

4. Impossibilidade de o agente cumprir todos os deveres


O agente tem de estar numa situação tal em que lhe seja imposto pela ordem jurídica o
cumprimento de deveres incompatíveis, mas em que não lhe é dado um critério de escolha.
Estando o agente impossibilitado de cumprir todos os deveres, dado que ordem jurídica não
dá um critério de escolha, ela tem de se contentar com o cumprimento de qualquer um deles
desde que sejam, pelo menos, de igual favor.
A impossibilidade tanto pode ser objetiva (dizer respeito a fatores externos ao agente),
subjetiva (dizer respeito a fatores internos ao agente) ou mista.

5. O dever cumprido tem de ser de valor igual ou superior ao dever incumprido


É necessário fazer uma ponderação entre os deveres conflituantes, o que implica que se
determinem previamente os critérios dessa ponderação.
Os deveres reportam-se sempre a bens ou interesses juridicamente protegidos. Logo, a
ponderação que tem de se fazer é entre bens jurídicos. Não se faz em abstrato, faz-se em
concreto, atendendo ao contexto global da situação de conflito.
Devem ser vários os fatores que nos vão ajudar na determinação do dever preponderante,
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Direito Penal – 2.º semestre – Aulas práticas – Ano lectivo de 2022/2023
desde logo a hierarquia dos bens jurídicos, a gravidade do dano, a intensidade do perigo, a
probabilidade de salvação de cada uma das pessoas em risco

Exemplo: Entram duas pessoas numa urgência, que necessitam de cirurgia imediatamente para
sobreviverem, e só há um médico, que terá de escolher qual das pessoas salvar.

Alguma doutrina defende, nomeadamente Figueiredo Dias, que se deve ter em conta, dando-
se prevalência, certos deveres especiais que decorrem de relações pessoais, por exemplo
deveres conjugais ou parentais. Neste caso, recai sobre o médico o dever especial de salvar o
seu próprio filho, sendo esse dever de valor superior.
O Doutor Almeida Costa discorda, com o argumento de que o Direito tem de respeitar a
liberdade de cada um, pelo que os deveres especiais que decorram de relações pessoais não
são relevantes para esta ponderação. Se os bens jurídicos forem de igual valor, o agente é livre
de cumprir qualquer um dos deveres.

Exemplo: Entram duas crianças numa urgência, uma delas filha do único médico de serviço
na urgência, que necessitam de cirurgia imediatamente para sobreviverem, e o médico terá
que escolher qual das crianças salvar.

6. Elemento subjetivo do tipo justificador


O agente tem de conhecer e representar que se encontra numa situação de conflito de deveres.

Nesta hipótese os deveres conflituantes são de pagar o IVA ao Estado ou pagar aos seus
trabalhadores. Verificando se os requisitos do conflito de deveres estão preenchidos:

1. Existência de dois ou mais deveres que colidem entre si - verifica-se


2. Os deveres devem dizer respeito à salvaguarda de BJ alheios - verifica-se
3. Os deveres em conflito têm que ser jurídicos - verifica-se
4. A impossibilidade de o agente cumprir todos os deveres - verifica-se

5. O dever cumprido tem de ser um dever de valor igual ou superior ao dever incumprido

Para a jurisprudência não se deve considerar justificada a conduta de quem, encontrando-se


numa situação económica difícil, escolhe manter em dia o pagamento dos salários dos
trabalhadores em vez de pagar os impostos.
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O pagamento dos impostos é uma obrigação legal, destina-se a cobrir as necessidades gerais
da comunidade e o direito dos trabalhadores a auferirem um salário é uma obrigação
decorrente de um contrato, que tutela interesses de natureza privada. Para os tribunais, o dever
de pagar salários não supera nem sequer iguala o dever de pagar impostos.

Seria de recusar então o funcionamento de uma causa de justificação para se excluir a


ilicitude do crime de abuso fiscal (é esta a posição do Doutor Lamas Leite).

Esta posição não é isenta de críticas, dado que a ponderação é feita meramente em abstrato e
não em concreto, face ao contexto global. Em determinadas situações limite, a subsistência do
trabalhador e da sua família encontra-se num plano superior ao da receita fiscal, mas não é
este o entendimento da jurisprudência.

Alguma jurisprudência entende que o requisito de se tratarem de deveres jurídicos alheios


também não está preenchido. Se é certo que o pagamento dos salários satisfaz os interesses
dos trabalhadores, essa satisfação é secundária, dado que primeiramente a satisfação está no
empregador. Interpretação muito discutível.

Poderíamos estar perante um conflito de deveres desculpante? Desta forma, excluir-se-ia a


culpa de G (art. 35.º CP). O estado de necessidade desculpante, cujos requisitos são os mesmos
para o conflito de deveres desculpante, só funciona para a salvaguarda de BJ eminentemente
pessoais, pelo que não poderíamos dizer que estávamos perante um conflito de deveres
justificante.

Artigo 105.º do RGIT (Abuso de confiança [fiscal])

1 – Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação


tributária de valor superior a 7.500 €, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente
obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
(…)
4 – Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da
prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente
declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável,
no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
5 – Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for
superior a 50.000 €, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200
dias para as pessoas colectivas. (…)
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Direito Penal – 2.º semestre – Aulas práticas – Ano lectivo de 2022/2023

CASO N.º 6

H era cônjuge de I e ascendente de J, K e L. Ambos os progenitores estavam


desempregados e não auferiam qualquer subsídio. Em virtude de iminência de os
descendentes passarem fome, H dirigiu-se a um hipermercado e apropriou-se de bens
alimentares de primeira necessidade no valor de 100 €.
a) Considerando apenas o disposto na PG do CP, como puniria H?

O ilícito típico praticado por H é o furto. Poderia invocar-se o estado de necessidade


ofensivo/interventivo, dado que a esfera jurídica lesada é de um terceiro não implicado na
situação (hipermercado). É estado de necessidade justificante, dado que o bem jurídico
salvaguardado é sensivelmente superior ao bem jurídico lesado.

Requisitos do EN justificante:

1. Situação de perigo objetiva, que ameace bens ou interesses jurídicos protegidos - verifica-
se

2. Atualidade do perigo - verifica-se

3. Necessidade do meio lesivo para salvaguardar o bem jurídico em perigo (necessidade do


meio)
O meio utilizado é idóneo mas não é necessário porque, segundo Figueiredo Dias, o requisito
da necessidade do meio não está preenchido quando o perigo possa ser removível de outros
modos: perante uma pluralidade de meios idóneos o agente tem que optar pelo meio menos
gravoso.

Quanto aos demais requisitos do EN justificante, estariam também preenchidos, mas falhava
a necessidade do meio, pelo que a atuação de H não se poderia considerar justificada, logo,
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Direito Penal – 2.º semestre – Aulas práticas – Ano lectivo de 2022/2023
não se excluía a sua ilicitude.

B) Tenha agora em conta o complexo normativo resultante do disposto nos artigos202.º, al.
c), 203.º, n.º 1 e 207.º, n.º 1, al. a), todos do CP. A sua resposta seria a mesma?

O artigo 207.º/1/b) CP corresponde ao chamado furto formigueiro ou furto por necessidade,


que é um furto de valor diminuto e que se destina ao consumo do agente ou de terceiros.
Aproxima-se do Estado de necessidade justificante, mas há diferenças que fazem com que o
legislador afaste a ilicitude no Estado de necessidade justificante e neste caso mantenha a
ilicitude da conduta, restringindo os termos em que o agente pode ser criminalmente
perseguido.
A opção do legislador em manter a ilicitude da conduta mas dificultar portanto a prossecução
da ação penal, tornando o crime num crime particular em sentido estrito (depende da
apresentação de queixa por parte do titular dos bens jurídicos violados e esse titular tem que
se constituir como assistente no processo e depois deduzir a acusação particular, no final da
fase de inquérito).

Resulta do artigo supra mencionado que só estamos perante um furto formigueiro se estiverem
preenchidos os seguintes requisitos:
1. A subtração ou apropriação de coisas incida sobre um objeto destinado à satisfação de
uma necessidade do agente (normalmente em produtos comestíveis);
2. Que se trate de uma coisa de diminuto valor (inferior a 102€) e pequena quantidade -
preceito integrado pela jurisprudência (art. 202.º/2/c) CP);
3. Imediatismo da utilização - tem-se entendido que não pode deixar de estar relacionado
com a atualidade da necessidade que se quer satisfazer. Por vezes, traduz-se em minutos ou
segundos depois da subtração mas, em princípio, não se pode estabelecer em abstrato
nenhum limite temporal;
4. Os objetos apropriados se destinem a ser utilizados pelo agente, pelo seu cônjuge,
descendente (pessoas mencionadas na alínea a) do art. 207.º/1 CP).

Neste caso, estes requisitos do art. 207.º/1/b)CP estão preenchidos?


A jurisprudência tem considerado que não se pode deixar de considerar que a necessidade a
que alude o art. 207.º/1/b)CP é uma necessidade que o agente não conseguiria satisfazer por
outros meios na iminência da necessidade. Caso contrário, o legislador estaria a dar carta
branca à utilização do que é alheio/satisfação de necessidades próprias.
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Tem ainda entendido que a coisa furtada ou legitimamente apropriada tem que ser
indispensável à satisfação de necessidades próprias, o que significa que tem que ser
absolutamente precisa para aquele efeito (mais do que a aptidão da coisa para satisfazer a
necessidade, requer-se que, em concreto, a necessidade não possa ser satisfeita de outra
forma). Havendo uma alternativa viável, lícita e menos gravosa que esteja disponível, não
pode o agente escolher aquela alternativa que vai ofender a propriedade de terceiros e fazer-
se prevalecer do art. 207.ºCP.
Não é qualquer tipo de necessidade que cabe na previsão legal: tem que ser relevante e a
utilização da coisa, segundo critérios de normalidade, tem que ser imprescindível ao
suprimento de carências essenciais da vida do agente ou familiar.
Na perspetiva do professor Tiago Rocha, o requisito do imediatismo da utilização não estaria
preenchido pois, tratando-se de uma quantidade considerável de bens (de valor igual a 100€),
seria impossível consumir imediatamente após o ato de furto.
É duvidoso que estes requisitos estivessem preenchidos, desde logo o consumo imediato e a
ideia de que não existisse uma outra alternativa viável, lícita e menos gravosa que o autor do
ato pudesse ter utilizado para suprir aquelas necessidades essenciais.

Nota: Seriam admitidas outras interpretações, desde que devidamente fundamentadas.

CASO N.º 7

Suponha que o J2 do Juízo Local Criminal da Maia deu como provados osseguintes factos
e condenou cada uma das arguidas a dois anos de prisão suspensa na sua execução pelo
mesmo período, pelo crime de sequestro, p. e p. pelo art. 158.º, n.º 1, do CP:
1. I, viúva, há alguns anos vivia sozinha em sua casa, encontrando-se ao cuidado
de familiares, por quem era auxiliada.
2. Dada a sua avançada idade e face a ser doente, I obteve auxílio e
acompanhamento domiciliário da Santa Casa da Misericórdia local, mantendo a ajuda da
sua nora J e da cônjuge do neto K.
3. Para poderem cuidar de I, ambas possuíam uma chave da casa desta.
4. No dia 14/5/2018, J e K colocaram I na cama, tendo-a enrolado com lençóis e,
com o auxílio de um outro lençol e algumas cordas, amarraram-lhe o corpo à própria
cama. Nas mãos colocaram-lhe uma luvas e, com uma corda, amarraram uma mão à outra.
Nos pés puseram-lhe uma botas e, com uma peça de vestuário e com uma corda,
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amarraram-lhe os pés um ao outro, deste modo imobilizando I.
5. Por volta das 21:30 h, e na sequência de uma chamada telefónica, soldados da
GNR, Bombeiros e uma trabalhadora da Santa Casa dirigiram-se à residência de I,
encontrando-a naquela situação de imobilização.
6. As arguidas agiram livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua
conduta não era permitida; ao imobilizarem I mais não quiseram que evitar que esta se
levantasse da cama e se deslocasse no interior da sua casa, já que, pelo seu estado, se o
fizesse, podia ferir-se, o que já antes havia sucedido.
Em sede de recurso, o defensor invocou que «J e K actuaram a coberto do art. 34.º ou do
art. 35.º, ambos do CP, pelo que deveriam ser absolvidas». Se fosse desembargador(a),
daria ou não provimento ao recurso?

Em primeiro lugar, o bem jurídico violado é a liberdade e o crime em causa é o crime de


sequestro. Dado que foi invocada a figura do Estado de necessidade, passaremos então à
análise da mesma.

Começando pela figura do Estado de necessidade justificante (art. 34.º CP), que exclui a
ilicitude da conduta (levaria à absolvição):
Tratar-se-ia de um Estado de necessidade defensivo, dado que o agente ofende um bem
jurídico da própria pessoa que causa o perigo. Obedece, segundo a doutrina maioritária, aos
pressupostos do Estado de necessidade ofensivo (art. 34.º CP):

1. Existência de uma situação de perigo (ou, segundo Figueiredo Dias, uma situação de
necessidade) - supõe um perigo objetivo, que ameace interesses juridicamente protegidos do
agente ou de terceiro (neste caso, a integridade física de I). Pode ter origem humana, natural
ou animal. Na ótica do Professor, neste caso concreto, só há invocação de um perigo
hipotético, não há um perigo objetivo.

2. Atualidade do perigo - situação de perigo iminente, que já se iniciou. Este requisito,


entendido em termos mais latos do que na legítima defesa, considerando-se atual o perigo que
ainda não é iminente, mas o protelamento do facto salvador representaria uma potenciação do
perigo e ainda o caso dos perigos duradouros, não estaria preenchido, dado que não há
iminência de nenhum perigo e o facto salvador não potencia o perigo no futuro, dado que este
manter-se-ia exatamente o mesmo.

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3. Necessidade do meio - adequação (tem que ser idóneo e, dentro de uma pluralidade de
meios idóneos, ser o menos gravoso) e necessidade do meio lesivo empregue para
salvaguardar o bem jurídico. Ainda que se admitisse que os requisitos anteriores estivessem
preenchidos, este não estaria.
Há obviamente um excesso de meios. I foi imobilizada na totalidade, não podendo satisfazer
necessidades fisiológicas ou alimentar-se (estas considerações resultam do acórdão em que foi
inspirado o caso).

4. Ponderação de interesses - é dúbio que se possa considerar que estivesse preenchido.

5. Razoabilidade do sacrifício ao lesado - não está preenchido. Estaríamos já no âmbito da


autodeterminação, pelo que a privação completa, total e duradoura da liberdade não se pode
considerar um sacrifício razoável que se possa impor à esfera do lesado.

Quanto à invocação do art. 34.ºCP, os juízes desembargadores deveriam manter a


condenação de J e K pelo crime de sequestro.

Quanto ao Estado de necessidade desculpante (art. 35.º CP):


O legislador adota uma solução diferenciada em função dos bens jurídicos que se pretendem
salvaguardar:
l Se o agente atuar para salvaguardar um bem jurídico eminentemente pessoal, exclui-se a
culpa (art. 35.º/1CP);
l Se atuar para salvaguardar outros bens jurídicos, apenas pode haver atenuação da pena ou
dispensa da pena (art. 35.º/2CP) - relaciona-se com o requisito de exigibilidade.

Muitos dos requisitos do Estado de necessidade desculpante são os mesmos do Estado de


necessidade justificante. Tem que existir uma situação de perigo, esse perigo tem que ser atual,
a ideia de necessidade e adequação do meio, tem que se tratar da preservação ou salvaguarda
de certos bens jurídicos (art. 35.º/1CP), tem que ser inexigível ao agente um comportamento
diferente daquele que adotou (padrão do homem médio) e o requisito subjetivo.
O bem jurídico que se quer salvaguardar está previsto no art. 35.º/1CP, mas falhariam os
mesmos pressupostos: não existia situação de perigo, não era atual e o meio utilizado não era
adequado (era possível remover o perigo de outro modo que não aquele). Fazendo funcionar
a cláusula da exigibilidade, era exigível a K e J outro comportamento.

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Como tal, K e J não se podiam prevalecer do Estado de necessidade desculpante,
mantendo-se a condenação por sequestro (art. 158.º CP?).

CASO N.º 8

L é transportado inconsciente ao Hospital de S. João, no Porto, na sequência de um


grave acidente de viação. Observado, é-lhe diagnosticado um traumatismo crânio-
encefálico com perda de massa encefálica, múltiplas fraturas ósseas e hemorragias
internas ao nível do baço e do fígado.
L foi induzido em coma e, atenta a emergência do caso, foi submetido a cirurgia que
visava diminuir a pressão intracraniana e suster as hemorragias internas, para o que foi
essencial administrar vários litros de sangue.
Dois dias depois, o paciente apenas mantinha função respiratória auxiliada por ventilador,
estando, porém, verificados os critérios de morte do tronco cerebral.

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Em função deste quadro clínico, os profissionais de saúde decidiram deixar de


ventilar o paciente, tendo este morrido cinco dias depois da admissão no hospital.
O filho de L apresentou queixa-crime contra os profissionais de saúde que
intervieram, na medida em que nenhum deles consultou o RENTEV (Registo
Nacional do Testamento Vital), onde estava claramente indicado que L não
autorizava a “administração de sangue ou derivados”, “ser submetido a meios
invasivos de suporte artificial de funções vitais” e “administrados fármacos
necessários para controlar, com efetividade, dores e outros sintomas que possam
causar-lhe padecimento, angústia ou mal-estar”.
a) Imagine que o Ministério Público (MP) deduziu acusação pelo crime p. e
p. pelo art. 156.º, n.º 1, do CP. Concorda com a decisão do MP?

Esta hipótese remete-nos para o consentimento do ofendido/lesado, previsto no art.


38.º e 39.º CP e, em especial para os atos médicos, art. 150.º, 156.º e 157.º CP
(remissão).
O consentimento corresponde a uma declaração feita por parte do titular do bem
jurídico, que consente a lesão desse bem jurídico. Nestas hipóteses, o titular renuncia
à tutela penal do bem jurídico através do consentimento.
A propósito desta figura, existe ainda uma querela doutrinal sobre a exclusão da
ilicitude ou a atipicidade da conduta (não chega sequer a preencher o tipo de ilícito,
por falta de tipicidade).
Há 4 formas de entender o consentimento do lesado:
1. Teoria do negócio jurídico - equipara o consentimento do ofendido para
efeitos penais ao consentimento no âmbito do direito civil. O consentimento teria
a natureza de um verdadeiro negócio jurídico de natureza unilateral, conferindo ao
agente o direito de lesão da esfera jurídica do declarante. Como o direito de lesão
não pode simultaneamente constituir um ilícito, o consentimento corresponderia a
uma causa de exclusão da ilicitude;
2. Teoria clássica - a conduta preenche o tipo incriminador, mas como o titular
do bem jurídico, na medida em que esse bem jurídico é disponível, renuncia à tutela
penal, o consentimento trata de excluir a ilicitude, pelo que a conduta deixa de ser
penalmente relevante;
3. Paradigma dualista ( Doutor Costa Andrade e Doutor Figueiredo Dias) - o

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consentimento tanto pode atuar como causa de exclusão da ilicitude como causa
de atipicidade da conduta.
a) Há exclusão da tipicidade quando a declaração do consentimento
emitida pelo titular do bem jurídico corra no mesmo sentido da tutela penal do
bem jurídico - nestes casos a ação não contribui para a lesão do bem jurídico,
antes contribui para a sua mais perfeita realização;
b) Há exclusão da ilicitude quando a declaração de consentimento emitida
pelo titular correr em sentido oposto ao sentido da tutela penal do bem jurídico.
Segundo Costa Andrade, há um verdadeiro conflito entre o sistema pessoal
(autorrealização ou autodeterminação) e o sistema social (perda do bem
jurídico que competia ao Direito Penal proteger e salvaguardar), permitindo a
ordem jurídica que, em certas condições, haja exclusão da tipicidade da
conduta, quando se dê prevalência ao sistema pessoal em detrimento do
sistema social;
4. Perspetiva monista do Doutor Almeida Costa e Roxin - todo o
consentimento é causa de exclusão da tipicidade da conduta. Adotando uma
perspetiva personalista dos bens jurídicos, todos os bens jurídicos são meios de
realização da pessoa humana, instrumentais em relação a um bem jurídico superior
a todos os outros, que o Doutor Almeida Costa diz ser a vida humana. Quando se
lesa um bem jurídico, lesa-se a relação de utilidade que existe entre o titular e o
bem jurídico, na medida em que cada bem jurídico é um espaço de realização da
liberdade. Quando o titular consente na lesão do bem jurídico, ele, no uso da
liberdade, prescinde do bem jurídico. Não havendo lesão da liberdade, não existe
bem jurídico para proteger, pelo que a conduta não é atípica.

Requisitos do art. 38.º CP:

1. O bem jurídico tem que ser pessoal e disponível


a) Só se pode consentir na lesão de bens jurídicos individuais, ou seja, que têm
um titular individual, que pode consentir na lesão, excluindo-se assim
relativamente a bens supraindividuais;
b) A disponibilidade de um bem jurídico afere-se em função de cada tipo legal
mas, atendendo ao espírito do sistema, pode-se estabelecer grandes linhas de
orientação quanto à disponibilidade dos bens jurídicos:

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i. A vida humana é um bem jurídico absolutamente indisponível, as lesões


provocadas por terceiros são punidas (o consentimento nunca é causa de
justificação);
ii. Os direitos de personalidade essenciais são, em princípio, indisponíveis;
iii. A integridade física é disponível, mas apenas nos termos do art. 149.º CP;
iv. O património é um bem jurídico livremente disponível para o seu titular.

2. Não contrariedade do facto consentido aos bons costumes - estamos perante


um conceito indeterminado, mas que não invoca um juízo valorativo/axiológico.
Vai ser representado tendo em conta a gravidade e a irreversibilidade da lesão,
tendo mais relevância no âmbito da integridade física;

3. Anterioridade do consentimento face ao ato consentido - se o consentimento


for posterior, trata-se de um perdão de parte e já não propriamente um
consentimento;

4. Capacidade para consentir - a capacidade, para estes efeitos, não é idêntica


à capacidade para efeitos civis. O declarante tem que ser jurídico-penalmente
responsável e capaz de avaliar o significado, o sentido, o alcance e as
consequências do ato que está a consentir. No fundo, o agente não pode ser menor
de 16 anos e tem que ser capaz de discernir o significado e as consequências do
seu ato. Admite-se a representação para casos de incapacidade penal;

5. O consentimento tem que traduzir uma vontade séria, livre e esclarecida do


titular do bem jurídico - o esclarecimento pode implicar que se explique a índole,
o alcance, a envergadura e as possíveis consequências da lesão (está especialmente
regulado no art. 157.º CP). O consentimento é livremente revogável até à prática
do facto. Para ser eficaz, o consentimento não pode ser inquinado por um vício de
vontade, nomeadamente o erro ou a coação (art. 153.º e 154.º CP). Adota-se uma
conceção diferenciada entre:
a) Erro provocado - o beneficiário do consentimento induz o titular do bem
jurídico em erro;
i. Se o erro provocado se referir ao próprio bem jurídico, o consentimento é
ineficaz;

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ii. Se o erro provocado não se referir ao bem jurídico, o erro não releva.
Roxin introduz aqui uma correção: mesmo que o erro provocado não seja
referido ao bem jurídico, deve considerar-se como relevante sempre que
for reportado a uma finalidade altruística ou ainda quando, por força do
erro, a pessoa que consente é colocada numa situação análoga à do Estado
de necessidade;
b) Erro espontâneo - é o próprio titular do bem jurídico que está em erro. O erro
não releva e o consentimento é eficaz.

6. Ausência de formalismos - não sendo propriamente um requisito, não há


qualquer exigência de forma. O meio tem apenas que ser idóneo para revelar a
vontade do titular do bem jurídico;
7. Elemento subjetivo do tipo justificador (art. 38.º/4 CP).

Neste caso, L não prestou nenhum consentimento, dado que estava inconsciente
aquando da entrada no hospital. Isto leva-nos para a distinção entre:
l Consentimento real e efetivo - o agente, de forma expressa ou tácita, declara
consentir na lesão do bem jurídico;
l Consentimento presumido (art. 39.º CP) - o agente não está em condições de
consentir expressa ou tacitamente, embora se presuma que, se lhe tivesse sido
colocada a questão, ele teria consentido. Fala-se frequentemente no Estado de
necessidade de decisão: é impossível obter um consentimento expresso ou tácito
do lesado, mas a intervenção é inadiável, pelo que não se pode esperar pelo
consentimento.
Nos termos do art. 39.º/1 CP, os requisitos equiparam-se ao consentimento real,
com as devidas adaptações: o consentimento há de dizer respeito a bens jurídicos
disponíveis e não pode ofender os bons costumes.

Requisitos específicos do consentimento presumido:

1. A presunção do consentimento tem que se reportar ao momento do facto,


sendo irrelevante a esperança numa posterior aprovação por parte do titular do bem
jurídico;
2. Exige-se na mesma capacidade para consentir;

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3. Tem de se verificar o Estado de necessidade de decisão, ou seja, tem de haver


uma necessidade de atuar que não pode ser adiada, de lesar o bem jurídico, estando
o titular do bem jurídico impossibilitado de se pronunciar em tempo útil;
4. Teria que se supor, razoavelmente, que aquela seria a vontade real do titular
do bem jurídico - o art. 39.º/2 CP estabelece como critério o concreto agente, visto
que o consentimento é um ato individual, e já não o homem médio.
Para averiguarmos a vontade do titular do bem jurídico, temos que olhar para
o concreto indivíduo, com as suas especificidades e particularidades. Só se
pode exigir ao agente que ele reconstrua a vontade do lesado na medida do
possível. Se, anteriormente, o agente souber que o lesado não consentiria na
lesão, então ela não se pode considerar justificada, por mais irrazoável que essa
vontade se afigure ao agente.

Neste caso, estávamos perante um consentimento presumido. Poderia considerar-


se a atuação dos médicos justificada à luz destes critérios? Tratar-se-ia de uma causa
de exclusão da ilicitude, dado que estaríamos a falar da lesão da integridade física,
que corre no sentido oposto da sua tutela.
Na Lei n.º 25/2012, de 16 de julho, no art. 6.º/4, em caso de urgência ou de perigo
imediato para a vida do paciente, a equipa responsável pela prestação de cuidados de
saúde não tem o dever de ter em consideração as diretivas antecipadas de vontade,
no caso de o acesso às mesmas poder implicar uma demora que agrave,
previsivelmente, os riscos para a vida ou a saúde do outorgante.

Há, portanto, duas conclusões possíveis:


I. Tendo em conta a urgência da situação, poderia dizer-se que a consulta do
RENTEV iria agravar o estado de L. Seguindo este caminho, poderíamos concluir
que os pressupostos do consentimento presumido estavam verificados, pois, numa
situação normal, os médicos poderiam razoavelmente presumir o consentimento
do paciente.
II. Concluindo em sentido oposto, e admitindo a obrigatoriedade de consulta
do RENTEV, não poderíamos creditar a justificação, embora se pudesse dizer que
os médicos atuaram em erro sobre os pressupostos do tipo justificador (art. 16.º/2
CP). Em combinação com o art. 16.º/3 CP, abrir-se-ia a porta à punição por
negligência, expressamente prevista no art. 156.º/3 CP.

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b) Suponha agora que se provou que, no momento da admissão de L ao


hospital, a base de dados do RENTEV não estava em funcionamento, devido a
problemas informáticos. Este facto teria relevo no apuramento da responsabilidade
jurídico- criminal dos profissionais de saúde?

Com essa impossibilidade, seria razoavelmente de supor que L iria consentir na lesão
da sua esfera jurídica. Creditava-se a causa de exclusão da ilicitude, o consentimento
presumido, ao abrigo do art. 39.º CP.

Lei n.º 25/2012, de 16 de Julho (Regula as diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob
a forma de testamento vital, e a nomeação de procurador de cuidados de saúde e cria o Registo
Nacional do Testamento Vital (RENTEV))

Artigo 2.º (Definição e conteúdo do documento)


1 - As diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital,
são o documento unilateral e livremente revogável a qualquer momento pelo próprio, no qual
uma pessoa maior de idade e capaz, que não se encontre interdita ou inabilitada por anomalia
psíquica [estatuto do maior acompanhado], manifesta antecipadamente a sua vontade
consciente, livre e esclarecida, no que concerne aos cuidados de saúde que deseja receber, ou
não deseja receber, no caso de, por qualquer razão, se encontrar incapaz de expressar a sua
vontade pessoal e autonomamente.
2 - Podem constar do documento de diretivas antecipadas de vontade as disposições que
expressem a vontade clara e inequívoca do outorgante, nomeadamente:
a) Não ser submetido a tratamento de suporte artificial das funções vitais;
b) Não ser submetido a tratamento fútil, inútil ou desproporcionado no seu quadro clínico
e de acordo com as boas práticas profissionais, nomeadamente no que concerne às medidas de
suporte básico de vida e às medidas de alimentação e hidratação artificiais que apenas visem
retardar o processo natural de morte;
c) Receber os cuidados paliativos adequados ao respeito pelo seu direito a uma
intervenção global no sofrimento determinado por doença grave ou irreversível, em fase
avançada, incluindo uma terapêutica sintomática apropriada;
d) Não ser submetido a tratamentos que se encontrem em fase experimental;
e) Autorizar ou recusar a participação em programas de investigação científica ouensaios
clínicos.

Lei n.º 141/99, de 28 de Agosto (Estabelece os princípios em que se baseia a verificação da


morte)

Artigo 2.º (Definição)


A morte corresponde à cessação irreversível das funções do tronco cerebral.

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CASO N.º 9

Na Av. dos Aliados, no Porto, um agente da PSP, apercebendo-se de um


veículo automóvel que não circulava em conformidade com o Código da Estrada,
nomeadamente mudando repentinamente de faixa de rodagem, deu-lhe ordem de
paragem, o que foi cumprido pelo condutor M.
Logo naquele momento, M exalava um forte odor a álcool, sentido pelo agente.
Porquanto o condutor havia parado a viatura num local que perturbava a fluidez do
trânsito, o agente da PSP, apesar de ter praticamente a certeza de que M circulava
em estado de embriaguez, ordenou-lhe que estacionasse o veículo mais à frente, por
forma anão perturbar a circulação.
O MP acusou M da prática, em concurso efetivo (art. 30.º, n.º 1, do CP), de
dois crimes p. e p. pelo art. 292.º, n.º 1, mais requerendo a aplicação da pena prevista
no art. 69.º, n.º 1, al. a), ambos do CP. Na sua defesa, M invocou que actuara “a
coberto de obediência indevida desculpante”. Quid iuris?

Estamos perante o tipo incriminador do art. 292.º/1 CP e a sanção acessória do art.


69.º/1/a) CP. A causa de justificação invocada é a obediência indevida desculpante
(art. 37.º CP). Convoca a problemática da culpa.
Em termos de considerações iniciais, é uma das categorias que integra o sistema
classificatório do conceito de crime, pelo que, para que se afirme a existência de um
facto punível, é necessário que ele seja culposo (decorrência básica do princípio da
culpa). A culpa realiza uma função de limite à intervenção do Direito Penal, para
salvaguarda da dignidade da pessoa humana. Corresponde a um juízo de censura,
dirigido ao concreto agente, pela prática de um facto ilícito.
Em princípio, o juízo de culpa coincide com o juízo de ilicitude, a menos que o agente
seja inimputável, ou atue ao abrigo de uma causa de exclusão da culpa, ou esteja em
estado de inexigibilidade, ou atue em erro.
Releva no juízo de culpa a subjetividade do concreto agente, as suas caraterísticas
pessoais e individuais, de modo a que se determine se a conduta é, ou não censurável
à luz da individualidade do seu autor.
Importa analisar o conteúdo material do conceito jurídico-penal de culpa. Falar de
culpa é, de certo modo, falar de liberdade humana, na medida em que hoje se aceita

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pacificamente que a liberdade humana é o pressuposto essencial/comum da culpa


(só se pode considerar alguém culpado quando se concluir que a pessoa foi livre no
momento da sua ação). É a expressão da autodeterminação da pessoa na sociedade, da
autonomia na regência pessoal. Só podemos censurar alguém ao nível da culpa, se
houve uma opção livre de atuar assim e não de outro modo.
Há, contudo, formas diferentes de encarar esta liberdade:

l Culpa da vontade - o conceito material de culpa submete-se à liberdade do


agente, partindo-se do princípio do livre-arbítrio. Para estas conceções, o homem
é totalmente livre de atuar, sem condicionantes endógenas ou exógenas. Estamos
perante as teses do indeterminismo absoluto. Aquilo que se censura é o facto do
agente ter atuado contra o dever ser jurídico-penal, quando devia ter atuado em
conformidade. É o poder de agir de outra maneira na mesma situação. A vontade
é o “órgão” da culpa: o homem é responsável pelos seus atos porque tem vontade.
n O primeiro problema que se levanta, comum a todas as teorias, é a
impossibilidade científica de se demonstrar o livre-arbítrio. A afirmação de
uma concreta capacidade de escolha numa situação é absolutamente
inverificável.
n O segundo problema é que leva a resultados político-criminais insuportáveis:
seriam aplicadas penas menos gravosas aos criminosos por tendência mais
perigosos, se fosse demonstrado que estes tinham menos livre-arbítrio.
n São introduzidas determinadas correções para superar as críticas
(indeterminismo relativo): o homem não é completamente livre uma vez que
o nosso modo de ser é condicionado e afetado por fatores endógenos e
exógenos, como a genética, o meio ou o ambiente. Apesar de todas as
condicionantes que existem e têm que ser reconhecidas, há sempre um espaço
para nos conformarmos enquanto pessoas. Todos nós somos obras de nós
mesmos e o nosso comportamento é a expressão da nossa liberdade.
n É esta última conceção a que o Doutor Almeida Costa adere. Não se resolve
o maior óbice que se coloca à culpa da vontade: a impossibilidade da
demonstração da liberdade humana. A solução pragmática é que a liberdade
passe a ser uma verdade de adesão: o homem é livre porque é tratado como
tal e a liberdade é imanente à nossa consciência social e humana.

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Se o Homem age com a convicção de que é livre, então o Direito Penal tem de
partir da hipótese da liberdade humana.

l Culpa ou pelo/do carácter ou formação da personalidade (Eduardo Correia) -


associam o poder de agir de outra maneira ou carácter ou personalidade do agente.
Moldamo-nos através de um efeito de feedback: ou adquirimos as tendências que
moldam a nossa personalidade e que nos levarão à prática de crimes ou
combatemos essas tendências, residindo o conteúdo material da culpa na decisão
de não combater as tendências contrárias ao direito. Antecipam o momento da
responsabilização para o momento da formação da personalidade, o juízo de culpa
é retrospetivo. São conceções hoje recusadas.

l Culpa da pessoa (Figueiredo Dias) - parte de uma base positiva ou determinista.


O homem não é livre no plano da ação concreta, uma vez que as possibilidades
que lhe são oferecidas, no momento da ação concreta, lhe são indiferentes. A
liberdade é vista como a liberdade daquele que tem que agir assim por ser como
é - a liberdade é uma caraterística do ser total que age. O homem é assim e não de
outra maneira porque escolheu ser. A pessoa tem que decidir a si, sobre si sem
que se possa furtar dessa decisão. Decide sobre si, sobre a sua essência. O conceito
material de culpa corresponde à responsabilização pelas qualidades juridicamente
desvaliosas que fundamentam um facto ilícito típico e que se exprimem nesse
facto. É impossível determinar o momento em que a pessoa tomou a opção
fundamental sobre a sua essência.

Pode dar origem a dois tipos de culpa:


l Culpa dolosa - atitude de contrariedade ou indiferença face ao dever-ser penal;
l Culpa negligente - atitude de descuido/leviandade censurável face ao dever-ser
penal/violação de um dever objetivo de cuidado.

O problema de obediência indevida liga-se à problemática da obediência hierárquica,


que procura determinar em que circunstâncias, o inferior hierárquico, que cumpriu
uma ordem ilegal do seu superior, vê a ilicitude da sua conduta excluída. Existem três
teorias:
1. Teoria da obediência cega (já afastada) - o inferior hierárquico devia sempre

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cumprir a ordem do superior, ainda que ilegal, sem cuidar da legalidade da ordem; a
obediência funcionaria sempre como causa de justificação;
2. Teoria da legalidade - o inferior hierárquico é responsável também pelos seus atos,
pelo que tem o dever de desobedecer quando se trata de uma ordem que conduza à
prática de um ato ilícito, sob pena de ser responsabilizado por esse ato (art. 271.º/2 e
3 CRP e art. 36.º CP);
3. Teoria da respeitosa representação - aplica-se apenas a ilícitos não penais (art.
271.º/2 CRP), determinando que, a partir do momento que o inferior hierárquico se
aperceba da ilegalidade da ordem, deve transmitir ao superior e, confirmando-se a
ordem, ao ser esta cumprida, transfere-se a responsabilidade para o superior
hierárquico.

Neste caso, não estamos perante uma obediência hierárquica, pelo que não se aplica o
art. 37.º CP, visto que só se aplica a funcionários, na ampla aceção do Código Penal,
presente no art. 386.º CP. M não era funcionário, pelo que não se podia fazer valer do
art. 37.º CP.
Numa breve nota, segundo o art. 37.º CP, exclui-se a culpa ao agente que cumpre uma
ordem, sem conhecer que ela conduz à prática de um crime, não sendo isso evidente
no quadro das circunstâncias por ele representadas. O nosso código penal, ao contrário
de outros ordenamentos jurídicos, consagra um regime específico. A obediência
indevida desculpante corresponde a uma situação especial de erro sobre a ilicitude ou
falta de consciência do ilícito não censurável. A única especificidade do regime do art.
37.º CP prende-se, segundo Figueiredo Dias, com a censurabilidade da falta de
consciência do ilícito, que tem um critério mais amplo. Não se exclui a culpa apenas
em situações em que é evidente a prática de um facto ilícito.

Em conclusão, dever-se-ia excluir a ilicitude da conduta de M, somente na


hipótese de ter estacionado o veículo mais à frente, ao abrigo do art. 31.º/2/c) CP,
dado que foi uma ordem legítima de autoridade.

CASO N.º 10

Imagine que participava, como juiz(a), da determinação da sanção a aplicar

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ao arguido N, por terem sido dados como provados os seguintes factos:

e) – Pelas 04.45h do dia 31 de Dezembro de 2018, na Rua de Monte dos


Burgos, no Porto, o arguido abeirou-se de O, a correr, e sem que nada o fizesse
prever, pontapeou-a nas costas, do lado direito, provocando a queda da mesma no
solo.
f) – Em consequência do descrito, O sofreu escoriações no cotovelo e na
coxa do lado esquerdo, bem como dores nas costas do lado direito.
g) – O arguido agiu com o propósito concretizado de molestar o corpo de
O, bem sabendo que a sua conduta lhe causava ferimentos e dores.
h) – No dia 9 de Maio de 2019, pelas 14.45h o arguido dirigiu-se ao “espaço
internet” pertencente à Câmara Municipal do Porto, e neste local utilizou um
computador ali existente.
i) – A dado momento, o arguido desferiu um murro no monitor do
computador que utilizava e saiu para o exterior.
j) – Passados breves momentos, o arguido voltou a entrar naquele espaço e
desferiu um novo murro no monitor provocando a queda do mesmo ao chão, bem
como de outro que se encontrava atrás e ainda de um CPU causando danos no valor
de 370 €.
k) – O arguido quis agir do modo descrito com o propósito concretizado de
causar estragosno referido material informático, apesar de saber que os mesmos não
lhe pertenciam e que agia contra a vontade do dono, resultado esse que quis e
representou, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
l) – O arguido é inimputável perigoso, padecendo de esquizofrenia
paranóide e transtorno de personalidade anti-social e comportamental, resultando
tal do relatório de perícia psiquiátrica forense solicitado pelo tribunal ao INMLCF,
IP.
m) – O arguido não cumpre a totalidade da medicação e restrições aplicadas
no processo de internamento compulsivo, continuando a consumir haxixe e
ingerindo bebidas alcoólicas nomeadamente cerveja.

Que sanção criminal aplicaria a N e com que fundamentos?

Estão preenchidos dois tipos legais: ofensas à integridade física simples (art.143.º/1 CP)

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e crime de dano (art. 212.º CP).


Estava em causa a inimputabilidade em razão de anomalia psíquica, que impossibilita
a afirmação da culpa jurídico-penal. A evolução do conceito de inimputabilidade em
razão de anomalia psíquica reduz-se a duas fases, com uma terceira fase introduzida
pelo Doutor Figueiredo Dias:

1ª fase (já ultrapassada) - paradigma biopsicológico


O modelo de racionalidade das ciências do homem era aquele adotado pelas ciências
naturais. A própria culpa foi construída dentro dos pressupostos metodológicos de que
participavam as ciências da natureza. A imputabilidade, fundada na exigência de uma
certa idade e de um mínimo de saúde mental, era o pressuposto da afirmação da culpa.
As exigências da inimputabilidade eram poucas, assentes numa doença em sentido
estrito, permanente ou temporária, desde que biopsicologicamente comprovada. As
doenças relevantes eram reduzidas àquelas que afastassem as faculdades intelectuais do
agente. Assentava numa repartição do trabalho entre os juristas e os peritos das ciências
naturais.

2ª fase - paradigma normativo


A conceção psicológica da culpa foi substituída por uma conceção normativa, que liga
a culpa a um juízo de censura dirigido a um comportamento humano, tendo-se também
alterado o sentido da imputabilidade. Passou a ser o elemento integrante da afirmação
da capacidade do agente para se deixar motivar pela norma no momento do facto (o
agente podia efetivamente ter atuado de outra maneira, e daí ser imputável).
Passaram a relacionar-se com a liberdade e surgiu a ideia da liberdade do agente no
momento do facto, que seria proposta pelo juiz ao perito das ciências sociais e humanas,
que não podia responder sem se arrogar de uma competência que não possuía, dado
tratar-se de um juízo normativo. O substrato biopsicológico foi alargado, passando a
abranger toda e qualquer anomalia psíquica. O perito das ciências passou a ser apenas
um auxiliar, dispensável relativamente ao juiz, que procede à afirmação da
inimputabilidade.

3ª fase (Figueiredo Dias) - paradigma compreensivo


A culpa jurídico-penal relaciona-se com o ter que responder pela atitude pessoal ética

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ou juridicamente censurada. Reconduz-se a inimputabilidade a um obstáculo à


comprovação da culpa, ao contorno da sua conceção.
Assim, uma anomalia psíquica que o agente padeça, destrói as conexões reais ou
objetivas do sentido da conduta da atuação do agente, de tal modo que os atos do sujeito
podem ser explicados, mas não podem ser compreendidos como factos de uma pessoa
ou de uma personalidade. A comprovação da culpa supõe um ato de comunicação
pessoal e supõe a compreensão da pessoa ou personalidade do agente. Se a anomalia
psíquica destrói essa compreensão da personalidade do agente, deixa de ser possível
afirmar a culpa em sentido jurídico-penal.

Críticas:
1. Esta conceção cai numa contradição, que se prende com a circunstância de se
considerar inimputável o doente mental mas ter como imputável o agente onerado
com uma tendência para o crime. É uma objeção que tem sido superada: só é mau
aquilo que o agente faz de mal quando podia, do ponto de vista da vontade
psicológica, agir de outra maneira. E, portanto, à luz deste entendimento, a
inimputabilidade constitui, mais do que uma causa de exclusão, um obstáculo à
determinação da culpa.
2. Roxin tem criticado esta perspetiva. Por um lado, afirma que a comunicação entre
o juiz e o arguido só muito dificilmente terá lugar em processo penal. Por outro lado,
a possibilidade de comunicação/compreensão da personalidade do agente não está
excluída quando a anomalia não se fundamenta na falta de sentido objetivo do facto
mas sim na falta de inibições.
Na ótica de Figueiredo Dias, estas críticas não devem proceder. A
incompreensibilidade impede em definitivo a qualificação do facto como culposo,
sobretudo atendendo à culpa como ter que responder pela atitude interna censurável
que o facto se exprime e fundamenta. O ato de comunicação pessoal entre o intérprete
e o arguido não se esgota na possibilidade de prestar declarações em audiência, há
que ter em conta todos os pontos do processo e todas as formas possíveis de
comunicação.
Relativamente à segunda crítica, quando o facto praticado pelo agente tem na sua
base um impulso irresistível para o crime, ou esse estado de afeto se liga com
anomalia psíquica, determinante da inimputabilidade, ou não se liga, e a exclusão da

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culpa só pode ocorrer por via da inexigibilidade.

Análise do art. 20.º CP

Olhando para o art. 20.º/1 CP, encontramos os requisitos da inimputabilidade em


razão de anomalia psíquica:
l O primeiro elemento presente no artigo é a conexão biopsicológica. O conceito de
anomalia psíquica abrange todo e qualquer transtorno ocorrido na psique, cuja
verificação é feita através de perícia.
l O segundo elemento é aquilo que se designa pela conexão normativa
compreensiva: impõe-se que o agente, no momento da prática do facto, seja incapaz
de avaliar a ilicitude desse facto ou de se conformar de acordo com essa avaliação.
Isso pressupõe que o agente seja incapaz de agir, no caso concreto, de outra
maneira. Esta decisão sobre a verificação do elemento normativo cabe
exclusivamente ao tribunal.
l Em terceiro lugar, temos a conexão fática típica. A anomalia psíquica tem que se
verificar no momento da prática do facto. Este requisito possui duas vertentes:
n Uma conexão temporal - impõe que o fundamento da inimputabilidade se
verifique no momento da prática do facto e se relacione temporalmente com
esse momento;
n Uma conexão típica - supõe que a anomalia psíquica se tenha exprimido num
concreto facto típico e o fundamente - ex.: alguém com uma anomalia sexual
é imputável para crimes patrimoniais, mesmo sendo considerado inimputável
para crimes sexuais.

O art. 20.º/2 e 3 do CP tratam da questão da inimputabilidade diminuída, também


designada por Figueiredo Dias de inimputabilidade duvidosa.
l No n.º 2, não havendo inimputabilidade total, o agente é capaz de avaliar a ilicitude
da conduta e de se determinar de acordo com essa avaliação, mas este padece de
uma anomalia que diminui sensivelmente essa capacidade. Essa diminuição da
capacidade da avaliação tem por efeito na diminuição da culpa: se o agente é menos
capaz de avaliar a ilicitude ou de se autodeterminar de acordo com essa avaliação,
ele é menos culpado.

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l Figueiredo Dias entende que, apesar de comprovável a anomalia psíquica, não são
claras as conexões objetivas de sentido que ligam o facto à pessoa do agente e
tornam esse facto compreensível. Importa que o juiz decida se, para a socialização
do agente, é preferível que ele cumpra uma pena ou uma medida de segurança, e é
nesse sentido que se deve interpretar o n.º 3. Trata-se de ter em conta esse fator
(sensibilidade do agente conseguir ser influenciável por uma pena ou por uma
medida de segurança) na decisão de saber se o agente é inimputável ou não.

O art. 20.º/4 CP trata da figura da actio libera in causa. São situações em que o estado
de inimputabilidade é culposamente provocado pelo agente, por forma a praticar o
crime nesse estado e beneficiar de uma causa de exclusão da culpa. A propósito desta
figura, há uma querela doutrinal, reconduzida a 2 teses:
1. Modelo da exceção: há aqui uma exceção ao princípio da coincidência temporal
entre imputabilidade e o facto. Neste casos, excecionalmente, a culpa não se reporta
ao momento da prática do facto mas a um momento anterior: quando o agente
provoca o estado de inimputabilidade.
a) Objeções: choca com o princípio da legalidade, na medida em que, no art. 20.º/1
CP se exige que no momento da prática do facto o agente não seja capaz de
avaliar a ilicitude do facto e de se autodeterminar com essa avaliação. A
aceitação de uma culpa prévia viola o princípio da culpa, o que é
constitucionalmente inadmissível.
2. Modelo do tipo: a execução do ilícito típico vai-se iniciar quando o agente se
coloca no estado de inimputabilidade.
a) Objeções: reconduz-se a uma ficção, que é particularmente visível quando o
agente não passa o estádio da tentativa. Esta ficção de imputabilidade é
materialmente inconstitucional, viola o princípio da culpa.

Outro problema que se coloca é distinguir a figura da actio libera in causa do art. 295.º
CP. No art. 20.º/4 CP o agente provoca o estado de embriaguez ou intoxicação para
praticar o ilícito típico e é tratado como um imputável, enquanto que no art. 295.º CP
não há uma pré-ordenação, havendo uma inimputabilidade transitória, que funda a
exclusão da culpa quanto ao ilícito típico praticado.

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Neste caso:

Conforme está descrito, só se podia concluir pela imputabilidade do agente


relativamente ao crime de dano. Já quanto ao primeiro facto, poder-se-ia dizer que o
agente era inimputável.
Em abstrato, atendendo à anomalia psíquica do agente, podia-se concluir pela
inimputabilidade do agente relativamente aos dois factos.

CASO N.º
11

R, que se apoderara de objetos pertença do ofendido S, dirigiu-se a Macedo de


Cavaleiros, onde propôs ao arguido T a aquisição de uma mala de viagem preta,
contendo um berbequim, uma serra elétrica e uma lixadora elétrica, negócio que este
aceitou por 50 €. A pedido de R, T guardou uma “faca de borboleta”. Esta
encontrava-se indocumentada e T nãoera titular de licença de uso e porte de arma.
R e T foram julgados, para além do mais, nos termos das disposições
conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, al. m), 3.º, n.º 2, al. e), e 86.º, n.º 1, al. d), todos do
RJAM, alegando ambos “desconhecerem que tal posse constituía a prática de
qualquer crime, tanto mais que se limitaram a detê-la, nunca a usando para a prática
de qualquer delito”.
Sendo juiz (a), que relevância daria a este argumento?

Artigo 2.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro – Regime Jurídico das Armas
e Munições (Detenção de arma proibida e crime cometido com arma) – RJAM
(Definições legais)

Para efeitos do disposto na presente lei e sua regulamentação,


entende-se por: 1 - Tipos de armas:

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n) «Arma branca» todo o objeto ou instrumento portátil dotado de uma


lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de
comprimento superior a 10 cm, as facas borboleta, as facas de abertura
automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, as estrelas de lançar ou
equiparadas, os cardsharp ou cartões com lâmina dissimulada, os estiletes e todos
os objetos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões;

Artigo 3.º do RJAM (Classificação das armas, munições e outros


acessórios)

o) - As armas e as munições são classificadas nas classes A, B, B1, C,


D, E, F e G, de acordo com o grau de perigosidade, o fim a que se destinam e a
sua utilização.
p) - São armas, munições e acessórios da classe A:
e) As facas de abertura automática ou ponta e mola, estiletes, facas de
borboleta, facas de arremesso, estrelas de lançar ou equiparadas, cardsharps e boxers;

Artigo 86.º do RJAM (Detenção de arma proibida e crime cometido com


arma)

1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em


contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, exportar,
importar, transferir, guardar, reparar, desativar, comprar, adquirir a qualquer título
ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou
transferência, usar ou trouxer consigo: (…)
d) Arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura
automática ou ponta e mola, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, cardsharp
ou cartão com lâmina dissimulada, estrela de lançar ou equiparada, boxers, outras
armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser
usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, as armas
brancas constantes na alínea b) do n.º 2 do artigo 3.º, aerossóis de defesa não
constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão,
bastão extensível, bastão elétrico, armas elétricas não constantes da alínea b) do n.º

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7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com


o fim de serem utilizados como arma de agressão, artigos de pirotecnia, exceto os
fogos-de-artifício das categorias F1, F2, F3, T1 ou P1 previstas nos artigos 6.º e 7.º
do Decreto-Lei n.º 135/2015, de 28 de Julho, e bem assim as munições de armas de
fogo constantes nas alíneas q) e r) do n.º 2 do artigo 3.º, é punido com pena de prisão
até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias; (…)

Trata-se de um erro sobre a ilicitude (art. 17.º CP).


Historicamente, o código penal de 1886 determinava que a ignorância da lei penal ou a
“ilusão sobre a criminalidade do facto” não afastava a responsabilidade penal. Ou seja,
o erro sobre a ilicitude não relevava. Só o erro sobre as circunstâncias de facto excluía
o dolo.
A doutrina alemã defendia a relevância do erro para a doutrina do dolo ou para a
doutrina da culpa, reconhecendo desde muito cedo a existência de dois tipos de erros:
erro sobre a factualidade típica (art. 16.º/1/1ª parte CP), que é um erro intelectual, e
o erro sobre a falta de consciência do ilícito (art. 17.º CP), que é um erro de valoração.

Saber se erro sobre a ilicitude releva ao nível do dolo ou ao nível da culpa é uma das
questões mais controvertidas do direito penal:
1. Teoria do dolo estrita: o cerne dos delitos dolosos está na consciência do ilícito
com que o agente atuou/na oposição consciente ao Direito Penal (dolus malus).
Assim, se o agente não tem consciência de estar a praticar um ilícito, excluir-se-ia o
dolo e poder-se-ia punir pela negligência, se o erro fosse censurável. Esta tese é
insustentável do ponto de vista político-criminal, porque levaria a absolvições em
massa, por força do princípio in dubio pro reo.
2. Teoria do dolo limitada: parte da teoria anterior, mas afirma que também devem
ser punidos a título de dolo todas aquelas hipóteses em que a falta de consciência do
ilícito se fica a dever a conceções do agente, de todo incompatíveis com os princípios
da ordem jurídica sobre o lícito e o ilícito. Ademais, faz uma distinção entre bens
jurídicos essenciais, como a vida e a integridade física, e não essenciais. Assim, se o
agente violasse um bem jurídico essencial, mostrava uma verdadeira contrariedade
ao Direito Penal e seria punido a título de dolo. A crítica que se faz é a determinação

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dos bens jurídicos essenciais.


3. Teoria da culpa estrita: parte-se da afirmação de que a consciência do ilícito não é
elemento constitutivo do dolo, que se esgota no conhecimento e vontade de
realização do tipo objetivo de ilícito. A consciência do ilícito é um elemento essencial
do juízo de culpa, na medida em que quem atua sem esta não pode ser punido, porque
sobre si não se pode formar um juízo de culpa pessoal. Se, todavia, o agente pudesse
ter conhecido o ilícito, mas tenha atuado sem consciência atual do ilícito, é punido
pelo dolo. Exclui-se a punição a título de negligência, só se admitindo a aplicação de
uma pena especialmente atenuada.
4. Teoria da culpa limitada (Doutor Almeida Costa e Doutor Figueiredo Dias): parte
da tese anterior mas introduz uma correção ao nível do erro sobre os elementos
constitutivos/de facto do tipo justificador (erro intelectual), aos quais se aplica o
art. 16.º/2/1ª parte CP e a solução é excluir-se o dolo, passando para a órbita da
negligência, e do tipo incriminador, aos quais se aplica art. 16.º/1/1ª parte CP e a
solução é a mesma, não igualando ao erro sobre a ilicitude.
Relativamente ao erro sobre a ilicitude/de valoração: sendo não censurável, aplica-
se o art. 17.º/1 CP e exclui-se a culpa, sendo censurável, aplica-se o art. 17.º/2 CP e
pune-se pelo crime doloso, podendo a pena ser especialmente atenuada. Por último,
o erro sobre as proibições, previsto no art. 16.º/1/2ª parte CP, que tem a mesma
solução do erro sobre as circunstâncias de facto.
Em qualquer dos casos, o que justifica a exclusão do dolo ou da culpa é a não
contrariedade ou indiferença face ao dever-ser jurídico penal. A diferença está ao
nível do juízo que se faz: se se puder fazer esse juízo ao nível do homem médio,
exclui-se o dolo, mas, se for apenas ao nível do concreto agente, exclui-se a culpa.

Neste caso estávamos perante um erro sobre a ilicitude. Teríamos que fazer a
avaliação se esse erro era ou não censurável, utilizando três critérios:
l Critério da vencibilidade ou evitabilidade do erro: a falta de consciência do ilícito
só não seria censurável se o erro fosse invencível ou evitável. É um critério
impraticável;
l Critério da tensão da consciência ética: o erro só não é censurável se o agente não
pode ativar a sua consciência ética. Também é impraticável e só vale para juízos
morais;

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l Critério da retitude da consciência idónea (Figueiredo Dias): a falta de consciência


do ilícito só não é censurável quando o erro da consciência ética não se fundamente
numa atitude interna desvaliosa do agente face aos valores jurídico-penais. A
personalidade que erra sobre a valoração jurídico-penal mantém-se
substancialmente responsável, pelo que deve arcar com a culpa do ilícito típico
praticado.
Pode, todavia, acontecer que, apesar do erro em valoração que cometeu, a
personalidade do agente venha a revelar-se essencialmente conformada com
aquele tipo de atitude interna que é exigido pela ordem jurídica. Propõe-se que se
avalie a personalidade do agente e, apesar do erro que cometeu, que a
personalidade ainda se conforme com o que é exigido pela ordem jurídica.
Há casos em que é fácil afirmar, em que a própria qualidade da personalidade
desvaliosa que vale como juízo de censura sobre a falta de consciência do ilícito.
Figueiredo Dias entende que uma falta de consciência do ilícito não censurável só
pode verificar-se em situações em que a ilicitude é discutível/controvertida.

Neste caso:

R não tinha uma personalidade conforme à consciência ética, já tinha cometido um


crime de furto. A falta de consciência é censurável e, acerca da consciência do ilícito,
não há propriamente uma contraversão na consciência social acerca deste tipo de crime.
O erro sobre a ilicitude é censurável, pelo que poderiam ser punidos pelo crime
cometido, podendo a pena ser especialmente atenuada.

Ainda referente ao caso nº 11:


Erro sobre a ilicitude e distinção para o erro sobre as proibições:
1. Erro sobre as proibições (previsto no art.º 16.º, n.º 1, 2.ª parte CP):
O erro sobre as proibições incide geralmente sobre normas de Direito Penal secundário,
normas de carácter técnico ou normas que se encontram em constante mutação, ou que
são de recente formação. Todas estas normas incriminadoras têm em comum não
estarem ainda enraizadas no conhecimento do Homem médio ou na consciência ética
da comunidade (ex.: normas incriminadoras do Código das Sociedades Comerciais).

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Do ponto de vista dogmático, contende com atuações sem ressonância ético-social.


Respeitam a constelações da vida que não convocam, aos olhos do Homem médio, a
representação da correspondente anti-juridicidade da conduta, de tal forma que o
conhecimento, representação e vontade de realização do tipo incriminador não exprime
uma atitude de contrariedade ou de indiferença face ao dever-ser jurídico-penal. O
preenchimento do tipo objetivo não convoca uma oposição frontal ao Direito.
Faltando o conhecimento efetivo da proibição legal, apenas é possível afirmar o ilícito
negligente e não o ilícito doloso.

2. Erro sobre a ilicitude (previsto no art.º 17.º CP)


Corresponde já a proibições enraizadas na consciência axiológica da sociedade, ou seja,
o conhecimento daquelas incriminações, que integram o Direito Penal clássico, resulta
da convivência social, do processo de formação do indivíduo em sociedade. São
proibições que de todos são conhecidas e que são aprendidas pela convivência social.
Isto significa que no erro sobre a ilicitude o conhecimento e a representação do tipo
objetivo suscita de imediato ao Homem médio a representação da anti-juridicidade da
conduta, pelo que se o tipo for preenchido já se revela uma atitude de contrariedade ou
de indiferença face ao dever-ser jurídico-penal. Portanto, a ressonância axiológica do
ilícito é de tal forma elevada que, do ponto de vista do Homem médio, o
desconhecimento do ilícito representa já uma oposição frontal ao Direito, mostrando
que o agente está verdadeiramente divorciado do quadro axiológico normal.
Daí que o erro sobre a ilicitude não exclua a ilicitude ou o dolo. Pode acontecer que, ao
nível da culpa (concreto agente), existam determinados elementos subjetivos que
afastem a censurabilidade do comportamento, permitindo a exclusão da culpa (ex.: o
Tarzan, por não ter crescido em sociedade, ao ser inserido nesta, não terá consciência
da ilicitude do ato de furto).

Conclusão: A grande diferença está na natureza das proibições, além das


consequências ligadas a cada um dos erros.

CASO N.º 12

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Em audiência de julgamento deram-se como provados os seguintes factos:


1 – No dia 6/5/2002, cerca das 21h 30m, A encontrava-se acompanhado de
B, com mais quatro indivíduos seus amigos.
2 – O arguido encontrava-se munido de uma espingarda caçadeira, que
ocultava sob o casaco que vestia.
3 – O grupo onde se encontrava o arguido decidiu ir a casa deste, a pedido
do mesmo para deixar a referida arma caçadeira.
4 – A determinada altura, A, a título de brincadeira, empunhou aquela
caçadeira e visou o B, que no momento se encontrava de frente para si, a uma
distância de cerca de dois metros.
5 – O B disse-lhe para estar quieto, pois não gostava daquelas brincadeiras,
contudo o arguido acabou por disparar a arma, atingindo o B.
6 – Em consequência, B veio a falecer.
Pronuncie-se, fundadamente, quanto à responsabilidade jurídico-penal de A.

O tipo de ilícito que a conduta de A preenche é o homicídio (art. 131.º CP, em


princípio).
Na perspetiva do Doutor Almeida Costa, o dolo do tipo não se esgota no dolo natural,
que corresponde ao tipo subjetivo. O dolo é condição necessária para a afirmação do
dolo do tipo, mas não é condição única ou suficiente. Este defende a tese do ilícito
pessoal, em que argumenta que o ilícito doloso corresponde a uma posição de
contrariedade ou indiferença face ao dever-ser jurídico-penal.
Ao nível do tipo de ilícito, além do dolo natural (conhecimento e vontade de realização
do tipo), ainda é preciso avaliar se, de um ponto de vista objetivo, atendendo ao critério
do Homem médio, que valora a conduta do agente como conteúdo que ela adquire como
ato humano em geral, o facto ilícito-típico revela ou não essa contrariedade ou
indiferença face ao dever-ser jurídico-penal:
l Se revelar essa atitude, estaremos perante um ilícito doloso:
l Se revelar uma atitude de leviandade ou de descuido face ao dever-ser jurídico-
penal estaremos perante um ilícito negligente.

O elemento volitivo traduz-se na vontade dirigida à realização do tipo objetivo de


ilícito. Essa vontade pode ter 3 matrizes: dolo direto (art. 14.º/1 CP), dolo necessário

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(art. 14.º/2 CP) ou dolo eventual (art. 14.º/3 CP).


No caso do dolo eventual, o crime é consequência da conduta, mas a sua verificação
surge com um grau de probabilidade menor. O preenchimento do tipo de crime é apenas
possível, mas não provável ou necessário. Quer no dolo eventual quer na negligência
consciente, o agente representa o ilícito típico, ou seja, sabe que o ilícito típico pode
ocorrer.
A diferença entre um e outro está no grau de conformação face a essa possibilidade:
l Se o agente se conforma com essa possibilidade, ou seja, toma a sério o risco da
possível lesão de bens jurídicos e, ponderando essa possibilidade de lesão, decidir
na mesma pela realização do facto, estaremos perante dolo eventual;
l Se o agente representa a realização do ilícito típico como possível, mas acredita
que o ilícito não se verificará, estamos perante uma hipótese de negligência
consciente (art. 15.º/a) CP).

A não atuou com dolo direto, a finalidade primeira da sua conduta não era matar B.
Também não atuou com dolo necessário nem dolo eventual, na medida em que não há
propriamente uma conformação com o resultado. A não ponderou seriamente a
verificação do risco e mesmo assim decidiu avançar, não havendo uma atitude interna
de conformação com o resultado.
Não estando preenchido o tipo subjetivo, neste caso, não havendo dolo (elemento
volitivo), não se pode punir A pelo crime de homicídio previsto no art. 131.º CP.
Não se trata de um ilícito doloso, mas a verdade é que o dolo não é a única forma típica
de aparecimento do crime.
Poderemos estar, nesta hipótese, perante um crime negligente de ação, mais
concretamente, o homicídio negligente do art. 137.º CP.

O facto negligente não é simplesmente uma forma menos grave de aparecimento do


respetivo facto doloso. No crime doloso há uma convergência entre o plano objetivo e
subjetivo: o agente representa e quer uma dada conduta objetiva e efetivamente realiza-
a. Diversamente, no crime negligente, isso não acontece: o agente até pode representar
o facto ilícito, mas não o quer, sendo que esta representação do facto ilícito nem sequer
é necessária (negligência inconsciente).
De acordo com a doutrina maioritária, o fundamento material da negligência
corresponde à violação do dever objetivo de cuidado, que é o conteúdo do tipo de

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ilícito negligente.
Pelo simples facto de vivermos em sociedade, cada um de nós tem a obrigação de
manter uma certa tensão psicológica de modo a ter, em todos os momentos da sua vida,
um grau de atenção suficiente para antecipar as consequências dos seus atos e deste
modo poder abster-se das condutas que levarão à lesão ou à colocação em perigo de
bens jurídicos.
De modo a evitar a lesão ou colocação em perigo de bens jurídicos, o legislador só pode
exigir que:
l Os indivíduos se abstenham da prática consciente e voluntária de condutas dolosas;
l Os indivíduos mantenham ao longo da sua vida, em função das caraterísticas
peculiares de cada situação, um determinado grau de atenção para prever as
consequências dos seus atos, a fim de que não venham a provocar lesões em bens
jurídicos, sem o pretenderem (crime negligente).

Nos termos do art. 13.º CP, a punição por negligência é excecional, só sendo possível
quando estão preenchidos cumulativamente dois requisitos:
l Requisito formal, que se traduz na previsão legal expressa que o tipo também é
punível a título de negligência;
l Requisito material, que se traduz na violação de um dever objetivo de cuidado.

Seguindo a conceção do ilícito pessoal de Almeida Costa, que tem também reflexos nos
crimes negligentes: do ponto de vista objetivo, tem de haver uma atitude de leviandade
e de descuido face ao dever-ser jurídico-penal, avaliada à luz do critério do Homem
médio.
O ilícito negligente consiste na realização de um comportamento que se mostre evitável,
de acordo com a atenção e a diligência que se espera dos intervenientes na vida
comunitária e, por conseguinte, contendo a infração de um dever objetivo de cuidado,
definido em função do padrão do Homem médio.

De acordo com a doutrina do duplo escalão, que é maioritária e seguida


inclusivamente por Figueiredo Dias, esta descreve a realidade da avaliação da
negligência como uma unidade de sentido subjetivo-objetivo, tanto ao nível do ilícito
como da culpa.
Do ponto de vista do ilícito, o tipo de ilícito do facto negligente considera-se preenchido

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por um comportamento sempre que este seja discrepante do comportamento que é


exigível ao Homem médio naquela situação para evitar a lesão ou a colocação em
perigo do bem jurídico, e, portanto, assenta na violação de um dever de cuidado e na
previsibilidade e possibilidade de evitar o resultado.
Ao nível do ilícito, essa avaliação faz-se de um prisma objetivo (padrão do Homem
médio). O dever de cuidado do Homem médio representa a exigência mínima de tensão
psicológica que o Direito coloca a qualquer agente (critério minimalista).
No âmbito do tipo de culpa negligente, o tipo de culpa negligente vai-se considerar
preenchido quando àquele concreto agente era exigível um dever de cuidado e a
previsão ou o evitar da lesão ou colocação em perigo do bem jurídico.

Estrutura dogmática dos crimes negligentes:

1. Ação negligente - adota-se um conceito personalista de ação (ação como


exteriorização de uma intencionalidade de sentido, ou seja, toda a manifestação da
vida consciente do indivíduo), que exclui os factos naturais, os factos praticados em
estado de inconsciência, os atos reflexos, os atos não humanos e os atos praticados
sob coação absoluta;

2. Tipo de ilícito negligente


a) Tipo objetivo - é composto pelo agente, pela conduta e pelo bem jurídico.
Traduz-se na violação do dever objetivo de cuidado que impende sobre o
agente nas vestes do Homem médio ou da pessoa social. Essa violação
corresponde ao desvalor da ação, ao passo que o desvalor do resultado se
traduz na produção, causação e na previsibilidade do evento típico e,
excecionalmente, na própria realização integral do tipo.
A conduta é avaliada sobre o prisma do Homem médio (critério do Homem
médio da posição socio-existencial do agente, ou seja, que tem as mesmas
qualidades físicas e intelectuais do concreto agente, a que se soma aquilo que
o Doutor Almeida Costa designa como as capacidades instrumentais
operatórias do concreto agente que estejam acima da média). Quanto às
capacidades abaixo da média, elas não excluem nem o ilícito nem a tipicidade,
na medida em que o critério do Homem médio já é, por si só, o critério mínimo
(abaixo deste fica a inimputabilidade com a eventual exclusão da culpa).

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Relativamente à problemática da imputação objetiva do resultado à conduta,


também se coloca no domínio dos crimes negligentes. A doutrina maioritária
entende que os critérios serão os mesmos que se colocam nos crimes dolosos
(teoria da equivalência das condições, teoria da adequação e teoria da conexão
do risco, com os respetivos corretores: princípio do risco permitido, princípio
da diminuição do risco, princípio do comportamento lícito alternativo e
princípio do âmbito ou campo de proteção da norma). O Doutor Almeida Costa
tem uma posição divergente, na medida em que entende que os critérios
aplicados aos crimes dolosos não se podem verificar relativamente aos crimes
negligentes.

Quais são as fontes do dever de cuidado?


l Fontes normativas - primeiro elemento concretizador dos deveres de
cuidado:
n Normas de conduta;
n Normas profissionais e de tráfego (correntes em certas atividades,
como as leges artis na medicina);
n Costumes profissionais comuns ao profissional médio;
n Na falta de todos estes, dever de cuidado imposto pelo concreto
comportamento socialmente adequado.

• Negligência na aceitação ou na assunção - corresponde àquelas


situações em que o agente assume ou aceita responsabilidades para as
quais não está preparado, ou porque lhe faltam as condições pessoais
ou porque lhe faltam os conhecimentos, ou porque lhe falta o treino
necessário ao correto desempenho de atividades perigosas.
Se a negligência referida ao momento do facto não pode ser
comprovada, ela é afirmada por referência ao momento em que o
agente aceitou ou assumiu o desempenho de atividades sabendo ou
sendo-lhe cognoscível que não estava preparado. Exige-se aqui que o
agente, antes de aceitar determinadas responsabilidades, tem de se
informar convenientemente dos riscos. Se não conseguir alcançar essa
informação ou esclarecimentos necessários, deve omitir a conduta

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projetada.

• Princípio da confiança ou da autorresponsabilização de terceiro -


exclui-se do dever de cuidado a necessidade de prever comportamentos
ilícitos que terceiros possam adotar, ou seja, quem se comporta de
acordo com o dever de cuidado, deve poder confiar que os outros
também o farão. Quando houver fundadas e concretas razões para
pensar ou dever pensar que os outros não vão cumprir o seu dever de
cuidado e o resultado ilícito se irá produzir, cessa o princípio da
confiança.
Este princípio tem o seu fundamento material no princípio da
autorresponsabilização de terceiro: como regra geral, não se responde
pela falta de cuidado alheio. O Direito autoriza que se confie que os
outros cumprirão os seus deveres de cuidado.
Todavia, o pensamento tem de ser temperado sempre que for claro,
evidente ou razoavelmente de supor para o agente, numa situação
concreta, que o terceiro não se comportará de uma forma responsável
(assume especial importância em atividades que envolvem a
fiscalização de outros).
Tem particular interesse no âmbito da divisão de tarefas em equipa,
nomeadamente nas equipas médicas. Qualquer membro de uma equipa
pode ou deve poder contar que os restantes membros observarão os
seus deveres de cuidado. Todavia, se for percetível ou previsível ou se
efetivamente se cometerem erros, eles devem ser impedidos ou
corrigidos pelos colegas de equipa, principalmente o chefe de equipa
(cenário em que cessa o princípio da confiança).
O princípio da confiança vale ainda e, finalmente, para dizer que o
agente pode contar que os terceiros não cometerão factos dolosos,
aproveitando-se de condutas negligentes do agente. Quando a própria
conduta negligente tiver criado um perigo intolerável e possibilidade
próxima ao da atuação dolosa de um terceiro, cessa também o princípio
da confiança.

b) Tipo subjetivo

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Alguma doutrina entende que nos crimes negligentes não há lugar a tipo
subjetivo. Roxin defende que existe, distinguindo entre negligência consciente
e inconsciente (art. 15.º/a) e b) CP, respetivamente). No âmbito da negligência
consciente, o agente representa a realização do ilícito típico como possível,
mas confia que o ilícito não se verificará. No âmbito da negligência
inconsciente, o agente não chega sequer a representar a realização do ilícito
típico.
Para relembrar, o tipo subjetivo é integrado ou pela representação imperfeita
ou pela não representação da realização do tipo objetivo.

Há ainda uma distinção feita na lei entre negligência simples e negligência


grosseira. A negligência grosseira corresponde a uma grave violação do dever
objetivo de cuidado, e essa gravidade apura-se, ou em função do carácter
particularmente perigoso do facto, ou em função da frequência da verificação
do resultado, ou em função do especial valor dos bens jurídicos em causa, ou
em função de uma particular atitude de leviandade ou descuido por parte do
agente perante o dever-ser jurídico-penal.

3. Culpa - a culpa negligente traduz-se no juízo de censura dirigido ao concreto


agente e tem como conteúdo material uma atitude de leviandade ou descuido face ao
dever-ser penal. Para haver culpa, o agente tem de se encontrar em condições
pessoais de poder prever ou evitar a lesão ou a colocação em perigo dos bens
jurídicos, tem que poder ser possível exigir ao agente que observe os seus deveres de
cuidado.

Neste caso:
Interessa-nos ver se houve violação de um dever objetivo de cuidado e se é possível
imputar o resultado à conduta:
l Relativamente à imputação objetiva do resultado à conduta, seria possível fazê-lo
logo no primeiro patamar – teoria da equivalência das condições.
l No que toca às fontes do dever objetivo de cuidado, poderia ser extraído
diretamente do art. 131.º CP (fonte normativa) ou, mais especificamente, no âmbito
da legislação que regula o uso e porte de arma.
l Do prisma objetivo, tendo em conta o critério do Homem médio, a conduta de A

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revela uma atitude de leviandade ou descuido perante o dever-ser penal.


Poder-se-á dizer então que o tipo objetivo do homicídio negligente estava preenchido.

Quanto ao tipo subjetivo, estaríamos perante um caso de negligência consciente, dado


que A representa a realização do ilícito típico como possível, mas confia que o ilícito
não se verificará (mediante justificação, e atendendo a alguma especificação do
enunciado, poderia aceitar-se negligência inconsciente).
Seria ainda negligência grosseira devido ao particular valor do bem jurídico em causa
ou a frequência com que o resultado se produz.

Quanto à culpa, não há nenhum elemento do concreto agente que permita excluir a
culpa - é possível fazer-se um juízo de censura que tem como conteúdo material a
atitude de leviandade e descuido face ao dever-ser jurídico-penal.
Assim, punir-se-ia A pelo homicídio negligente (art. 137.º/2 CP).

CASO N.º 13

F circulava a 70 km/h num local onde somente poderia circular a 50 km/h.


Em virtude da velocidade, não conseguiu imobilizar o veículo que conduzia no sinal
vermelho do semáforo colocado num cruzamento. Cerca de 20 metros à frente,
atravessava a estrada o peão G, fora da passadeira, tendo sido colhido pelo veículo,
daí resultando a sua morte.
F foi julgado e condenado pelo crime p. e p. pelo art. 137.º, n.º 1 e 2, do CP.
Inconformado, F interpôs recurso, alegando que: a) actuara com negligência
simples e não com negligência grosseira; b) a vítima contribuíra também para o
acidente, ao atravessar a estrada fora do local adequado.
Como apreciaria o recurso?

Relativamente ao primeiro argumento:


Não havendo razão para acreditar que o agente representou a possibilidade de
homicídio e confiou que não se ia verificar, resulta do enunciado que se trata de
negligência inconsciente.

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O facto de se tratar do bem jurídico vida e a frequência com que os peões passam fora
da passadeira determinam que se trate aqui de negligência grosseira.

Relativamente ao segundo argumento:

No segundo argumento, F invoca o princípio da confiança. De acordo com a


jurisprudência maioritária, o agente só pode aproveitar-se do princípio da confiança se
atuar de acordo com o seu dever objetivo de cuidado. F viola o seu dever objetivo de
cuidado, pelo que não pode aproveitar-se do princípio da confiança para invocar que
um terceiro também não agiu de acordo com o seu próprio dever de cuidado.
F poderia efetivamente ser condenado pelo homicídio negligente por negligência
grosseira.

CASO N.º 14

D circulava no seu automóvel dentro dos limites de velocidade estabelecidos


para o local que atravessava. Num cruzamento em que tinha prioridade de
passagem, D não diminuiu a velocidade do seu veículo. Aí surgiu E, da sua
esquerda, que nem sequer afrouxou a marcha do seu potente Ferrari. Em
consequência, os dois automóveis colidiram, vindo E a perecer devido à violência
do embate.

a) O M.P., no final do inquérito entretanto aberto, deduziu acusação contra D,


imputando-lhe a prática do crime de homicídio negligente, em virtude do facto de,
dada a velocidade em que E seguia, ser totalmente perceptível que este último
não tinha condições para imobilizar o seu veículo em segurança, o que deveria ter
motivado um afrouxamento ou mesmo paragem do automóvel conduzido por D.
Pronuncie-se sobre o conteúdo do despacho de acusação.

A acusação estaria correta - D poderia ser punido pelo crime de homicídio


negligente. Este tinha condições para perceber que, mesmo atuando ao abrigo do
princípio da confiança, o outro indivíduo (E) não iria atuar corretamente e que não pode

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confiar, configurando uma situação em que cessaria o princípio da confiança.

Sempre que seja evidente que os outros cidadãos não vão cumprir o princípio da
confiança, cessa esse princípio e é exigido ao agente que vai atuar a coberto do
princípio, que cesse a sua conduta. Se o agente não cessar, a morte pode ser imputada
a título de negligência (doutrina maioritária, incluindo Figueiredo Dias), havendo uma
limitação ao princípio da confiança, em conjugação com a ideia de que o Direito Penal
deve proteger bens jurídicos dignos de tutela penal.

O professor Lamas Leite discorda, dizendo que não parece razoável que se impute a
morte do infrator a quem cumpriu todos os deveres objetivos de cuidado. O agente que
atuou a coberto do princípio da confiança não incumpriu nenhum dever objetivo de
cuidado, pelo que não deveria existir responsabilidade penal (apesar de poder haver
responsabilidade civil).

b) E se D, apesar de circular dentro dos limites de velocidade estabelecidos,


conduzisse com uma taxa de alcoolemia de 1,3 g/l, a solução seria a mesma
(cf. art. 292.º, n.º 1, do CP)? Justifique.

O problema coloca-se no âmbito da imputação objetiva, pelo que se deve recordar a


matéria já estudada aquando do tipo objetivo dos crimes dolosos de ação (teoria da
equivalência das condições, teoria da adequação e teoria da conexão do risco, com
os respetivos corretores: princípio da diminuição do risco, princípio do risco
permitido, princípio do âmbito de proteção da norma e princípio do comportamento
lícito alternativo).

Neste caso:
Segundo a teoria da conexão do risco, o resultado só pode ser imputado à conduta
se esta tiver criado ou aumentado um risco proibido para o bem jurídico e se esse
risco se tiver materializado no resultado típico. O perigo em que se concretizou o
resultado tem de ser um daqueles que corresponde o fim de proteção da norma de
cuidado.
D, circulando em estado de embriaguez, segue dentro do risco permitido no que toca
à cedência de prioridade no cruzamento e no respeito pelos limites de velocidade. A

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condução em estado de embriaguez aumenta o tempo de reação do condutor, pelo


que faria com que D não fosse capaz de afrouxar ou parar o seu veículo percebendo
que o outro veículo circulava com excesso de velocidade.
O risco materializou-se no resultado típico e, portanto, a solução seria a mesma
em relação à alínea anterior.

O Doutor Almeida Costa responderia de forma diferente, argumentando que, neste


caso, a norma de cuidado era observar as regras da prioridade e circular dentro dos
limites de velocidade estabelecidos. Se o agente cumprisse com estes dois requisitos,
estaria a atuar dentro do risco permitido, sendo irrelevante a atuação em estado de
embriaguez, dado que o resultado se iria produzir de qualquer forma. Por força do
âmbito de proteção da norma, o resultado não se imputaria à conduta.
Na hipótese anterior, também resolve de forma diferente, não punindo o agente,
entendendo que o princípio da confiança opera. Os critérios utilizados por este autor
no âmbito da imputação objetiva são diferentes dos estudados em aula.

CASO N.º 15

Em meados de Agosto celebra-se na aldeia X a festa anual em honra do santo


local.F, presidente da Junta de Freguesia, tem por hábito disparar algumas balas de
borracha para o ar, no meio da multidão, como sinal de júbilo.
Na festa de 2001, G, conhecido “carteirista”, decidiu deslocar-se à aldeia, a fim de,
aproveitando-se da normal confusão da festa, furtar uma série de carteiras.
Enquanto F disparava as ditas balas, G aproximou-se dele, sem que o Presidente da
Junta disso se apercebesse. Estava já com a mão na carteira de F, quando uma bala
disparada por este fez ricochete num lampião e atingiu G, o qual sofreu leves
escoriações.
Em Tribunal, F defendeu ter agido em legítima defesa. Terá razão? Explicite a sua
resposta.

F, acusado de um crime de ofensa à integridade física, invoca um tipo justificador.


Este caso convoca a matéria dos tipos justificadores em sede de crimes negligentes

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de ação.
A doutrina maioritária, nomeadamente Figueiredo Dias, entende que a maioria dos
tipos justificadores estudados a propósito dos crimes dolosos de ação, também opera
para crimes negligentes de ação.
Mais controvertida é a questão de saber com que extensão e com que requisitos essas
causas de justificação se vão aplicar à negligência. Nem todos os autores defendem
que exista uma perfeita simetria de requisitos e de extensão entre os tipos
justificadores dos crimes dolosos e os dos crimes negligentes. Parece ser de aceitar
que, na negligência, algumas causas de justificação tenham um âmbito mais lato do
que para os crimes dolosos.
Outra questão controvertida é a de saber se, nas causas justificativas dos factos
negligentes se exige ou não o elemento subjetivo do tipo justificador, ou seja, que o
agente conheça e represente que se encontra a atuar a coberto de um tipo justificador.
Prescindindo deste elemento, Figueiredo Dias e alguma doutrina alemã aceitam que
se apliquem os tipos justificadores em sede dos crimes negligentes.

Analisando os tipos justificadores em concreto:


1. Legítima Defesa

A ação de defesa pode também, em teoria, ser punida a título negligente. Geralmente,
a ação de defesa é representada a título de dolo, ou seja, em situações que o agente
conhece e representa que está a atuar a coberto de um tipo justificador.
No cenário da negligência, admite-se o funcionamento da legítima defesa em tudo
quanto disser respeito à ação necessária de defesa perante o agressor, mas apenas nos
casos em que se provar que o facto doloso correspondente também estaria a coberto
da legítima defesa.
No fundo, tem de se fazer um paralelo: há uma defesa negligente e ela poderá ser
justificada com legítima defesa se a correspondente defesa dolosa também estivesse a
coberto da legítima defesa.
Da mesma forma, considera-se justificada pela legítima defesa, quando a conduta
resulta em situações ou consequências não previstas ou não queridas, desde que as
consequências pertençam aos riscos típicos do meio de defesa empregue.

2. Estado de Necessidade Justificante

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Valem exatamente as mesmas considerações que vimos para a legítima defesa. Uma
ação de salvamento em violação das normas de cuidado considerar-se-á justificada se
se provar que a ação de salvamento dolosa correspondente também estaria justificada.
Idem para as consequências indesejadas da ação de salvamento.

3. Consentimento presumido

O consentimento presumido, no âmbito da negligência, pode ocorrer sobretudo no


âmbito das intervenções médicas em violação das leges artis.

Podem-se colocar mais tipos justificadores, mas apenas estes relevam para exame.
Nem toda a doutrina aceita que os tipos justificadores funcionem no âmbito da
negligência, nomeadamente o Doutor Almeida Costa. O resultado prático dessa
posição é igual àqueles que aceitem o funcionamento dos tipos justificadores - a
conduta estaria justificada, excluía-se o ilícito e não há punição.
Para quem não aceita o funcionamento dos tipos justificadores, entende que aqui faz
sentido aplicar, por analogia, aquela solução que a doutrina maioritária defende para
as situações em que falha o elemento subjetivo (art. 38.º/4 CP) no âmbito do tipo
justificador. Acontece que, na negligência, a tentativa não é punível, pelo que o
resultado prático será, igualmente, a exclusão da pena.

Neste caso:
Seguindo a posição de Figueiredo Dias, iremos prescindir do elemento subjetivo e
teremos que, nesta hipótese, questionar se, caso F tivesse tido a intenção de disparar
contra G, essa conduta dolosa estaria ainda coberta pela legítima defesa.
Ora, caso F tivesse tido a intenção de disparar contra G, estaria efetivamente coberto
pela legítima defesa se tivesse praticado a ação de defesa com dolo.
Seguindo a orientação do Doutor Almeida Costa, iríamos concluir pela não verificação
do elemento subjetivo do tipo justificador, aplicaríamos o regime do art. 38.º/4, mas,
como a tentativa não é punida pela negligência, o agente não seria punido.

CASO N.º 16

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Na madrugada de 2/4/1998, quando B regressava a casa no seu automóvel, foi


surpreendida por C, toxicodependente, que a interceptou e, recorrendo a um
sedativo que lhe injetou, a colocou em estado de inconsciência.
Num local ali perto, violou B, abandonando-a de seguida. Passados 8 meses, em
análises de rotina, à vítima foi diagnosticada o VIH, tendo-se concluído, durante
o inquérito, que C era portador do vírus e que tinha sido em virtude da violação
que B passou a ser seropositiva.
a) Em julgamento, o arguido defendeu-se alegando que, apesar de saber que
era portador do vírus, nunca representou a possibilidade de contaminar a vítima.
Quid iuris?

Temos uma hipótese em que há uma violação e o violador, portador do VIH,


transmitiu a B o vírus. A conduta preenche o tipo de ilícito da violação (164.º/2 CP).
O facto de C ser portador do VIH tem alguma relevância do ponto de vista jurídico-
criminal?
Sim, de acordo com o art. 177.º CP, que prevê uma série de circunstâncias que
agravam as molduras penais do crime base. Neste caso, o facto de o agente ser
portador de uma doença sexualmente transmissível agrava a moldura penal, no seu
limite máximo e mínimo, em um terço (art. 177.º/3 CP).

Estamos perante um crime doloso ou negligente? O crime fundamental é um crime


doloso, dado que o sentido da conduta do C é de oposição frontal ao Direito.

Este caso prático remete-nos para a matéria dos crimes agravados pelo resultado,
prevista no art. 18.º CP. De acordo com este artigo, são crimes agravados pelo
resultado aqueles tipos cuja pena aplicada é agravada em função da produção de um
resultado que deriva da realização do tipo fundamental. Isto corresponde, na maior
parte dos casos, a um exercício interpretativo, para averiguar se há ou não um
resultado que decorra do crime fundamental, distinguindo os crimes qualificados e
os crimes agravados pelo resultado. No art. 177.º/1/a), por exemplo, trata-se apenas
de uma qualificante do crime, dado não haver resultado autónomo, mas apenas uma

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especial relação entre o agente e a vítima.


Só há um agravamento pelo resultado se ele estiver previsto expressamente na lei,
mas a verdade é que na própria só constam alusões ao agravamento, pelo que é
necessário saber se se convoca o regime do art. 18.º CP.

Do ponto de vista histórico, os crimes agravados pelo resultado têm origem no


Direito Canónico. Aplicando o vocábulo versari in re illicita, quem pratica um ilícito
responde pelas suas consequências, mesmo por aquelas que foram casuais, que não
eram queridas. Porém, não se pode considerar este aforismo compatível com o
princípio da culpa.
Durante a vigência do anterior Código Penal, introduziu-se a figura dos crimes
preterintencionais, cuja verificação dependia de quatro requisitos:
l Ocorrência de um crime fundamental doloso (por exemplo, exposição ao
abandono - art. 138.º CP);
l Ocorrência de um elemento agravante não doloso que resultasse do crime
fundamental (tomando o exemplo dado, o resultado morte);
l Esse elemento agravante tinha de ser imputado ao agente a título de negligência
grosseira e consciente
l Princípio da legalidade ou numerus clausus - só havia crime preterintencional
onde a lei expressamente previsse.

Atualmente, esta figura desapareceu e foi substituída, no art. 18.º CP, pelos crimes
agravados pelo resultado, com requisitos menos exigentes. Há uma mudança de
paradigma: nos crimes preterintencionais, a moldura penal que resultava desse
regime era sempre superior àquela que resultaria do concurso de crimes entre o crime
fundamental e o elemento agravante. Atualmente entende-se que, visto que o
resultado não é praticado com dolo, pelo que o juízo de censura é menor.
Mantêm-se como quatro os requisitos dos crimes agravados pelo resultado:
l Ocorrência de um crime fundamental, que já não precisa de ser doloso (pode ser
negligente, como as ofensas à integridade física por negligência - art. 148.º/3
CP);
l Há que se verificar um elemento agravante, que tanto pode corresponder a um
ilícito típico autónomo como pode corresponder a um simples estado, a um
facto, a uma situação que em si mesma não é criminosa (ex.: tomando o exemplo

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dado, o resultado gravidez);


l O resultado tem de ser imputado ao agente, pelo menos a título de negligência,
podendo esta ser simples e inconsciente;
l Aplica-se, nos mesmos moldes, o princípio da legalidade ou numerus clausus.

A justificação para estes crimes é a existência de um específico e forte nexo causal


entre o crime fundamental e o elemento agravante, de tal modo que o evento
agravante consubstancia um perigo típico quase necessário associado à realização
do crime fundamental.

Nesta hipótese, os dois primeiros requisitos verificam-se. Trata-se de uma


negligência consciente, aceitando o disposto no enunciado. Poderia punir-se C,
conjugando o art. 164.º/2 CP com o art. 177.º/3 CP.

B) Se C não soubesse que estava infectado, a resposta seria a mesma?


Explicite a sua resposta.

Tratar-se-ia de uma negligência inconsciente. O comportamento socialmente


adequado indica a utilização de contracetivos, pelo que há na mesma a violação de
um dever objetivo de cuidado. Atendendo que C era toxicodependente, fruto das
práticas relacionadas com esse facto, a probabilidade de ser portador de VIH era
acrescida, pelo que o dever de cuidado seria também superior.
Imputava-se na mesma o resultado, e punia-se C da mesma forma que na alínea
anterior.

CASO N.º 17

No dia 28/12/2009, pelas 23h, na Rua do Cruzeiro, na Trofa, A envolveu-se


numa discussão com B. Na sequência dessa discussão, B pegou num pau que se
encontrava no chão e, empunhando-o, aproximou-se de A, fazendo menção de o
atingir. De imediato, A retirou o pau da mão de B e empurrou-o, fazendo-o

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cair ao chão, que no local é composto por "paralelos" de granito.


Conquanto B continuasse a agredir A, este agarrou-o pela cabeça, batendo com
ela no chão, por várias vezes. Posteriormente, acorreram ao local várias pessoas,
que afastaram A de B, o qual foi conduzido de ambulância ao hospital. B acabou
por falecer em 3/1/2010, em virtude de lesões traumáticas crânio-encefálicas
originadas pelas pancadas da cabeça no solo.
Note bem:
Em sede de audiência de julgamento, provou-se que A nunca representara
nem quisera a morte de B.
Refira-se, fundadamente, à responsabilidade jurídico-penal de A.

O tipo incriminador preenchido pela conduta de A poderá ser um dos seguintes:


homicídio doloso (art. 132.º CP), homicídio negligente (art. 137.º CP) ou ofensas à
integridade física agravadas pelo resultado morte (art. 147.º CP).
l Não é homicídio doloso porque falha o dolo - A nunca quisera nem representara a
morte de B;
l Não é homicído negligente dado que não se trata apenas de uma atitude de
leviandade ou descuido face ao dever-ser jurídico-penal.
l Sobram então as ofensas à integridade física agravadas pelo resultado morte.

Tendo em conta os requisitos:


l Ocorre um crime fundamental, as ofensas à integridade física, que são dolosas;
l Ocorre um elemento agravante, neste caso sendo um crime autónomo (homicídio).
l Seria possível imputar esse elemento agravante, no mínimo, a título de negligência.
Há neste caso a violação de um dever de cuidado, pelo menos inconsciente.
l Princípio da legalidade - a lei prevê esta hipótese no art. 147.º CP.

Seria de imputar a A o crime de ofensas à integridade física agravado pelo


resultado morte.
Questão diferente é saber se poderíamos justificar a conduta de A através da legítima
defesa. Dando por preenchidos os requisitos da agressão (ilícita, atual, existência do
comportamento agressivo), não estaria preenchido o requisito da necessidade do meio,

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do lado da defesa. Efetivamente houve excesso intensivo de legítima defesa.


O tipo justificador não operaria, pelo que a punição se mantinha.

CASO N.º 18

A, guia de montanhismo, comandava uma expedição de alpinismo. No decurso da


mesma, um dos elementos do grupo ficou em situação de grave perigo, carecendo
de ajuda.
Tratando-se de um excursionista que ainda não havia pago o preço acordado com
A, este não o socorreu, com base em tal facto.
Na sequência do exposto, o alpinista em perigo veio a sofrer uma queda de que
resultou a fractura das pernas.
Qual a responsabilidade jurídico-penal de A? Justifique.

A não pratica uma ação proibida, mas não socorre o membro do grupo. Estamos no
âmbito dos crimes de omissão - A escolhe não agir.
Quando tratámos as formas de realização típica, vimos que o tipo tanto pode ser
preenchido ou realizado através da prática de uma ação proibida como através da
omissão de um comportamento juridicamente exigido ou devido. Efetivamente, se o
crime é a lesão ou colocação em perigo de bens jurídicos essenciais, compreende-se
que o Direito Penal não se baste com a incriminação das ações, mas também incrimine
a omissão, ou seja, a inação, apesar de o fazer apenas e só quando a ação, para o agente,
era juridicamente esperada e devida.
Apesar de existir uma óbvia diferença estrutural entre crimes de ação e omissão, há uma
certa simetria, em sentido inverso, entre uns e outros. A punição da ação continua a ser
maioritária. Porém, com o crescimento da sociedade do risco, há uma tendência para
aumentar em número e em significado as omissões jurídico-penalmente relevantes. Não
obstante, não se deve alargar em demasia a malha da punição por omissão, sob pena de
isso representar uma intolerável intromissão de cada um na esfera jurídica dos outros.
De forma muito simples, a omissão corresponde, tipicamente, a uma obrigação de
atuar que impende sobre o agente e que ele não leva a cargo, colocando um bem

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jurídico em perigo, ou seja, à inação, quando, na concreta situação, ao agente se


impunha a ação.

Do ponto de vista histórico, a admissibilidade dos crimes de omissão apresentava dois


grandes problemas:
1. O conceito de ação - o sistema positivista tinha um entendimento causal de uma ação
(ação como a modificação do mundo exterior, cega a valores). A omissão é justamente
o inverso: a não modificação do mundo exterior. Neste quadro, como se poderia punir
a omissão?
l Teoria da ação precedente - aquilo que se punia não era a omissão em si mesma,
mas a ação que colocava em perigo o bem jurídico. Isto era uma posição criticável
porque nem sempre na omissão há uma ação precedente;
l Teoria do aliud agere - aquilo que se punia era a ação que impedia a ação devida,
isto é, punia-se a ação alternativa (a ação que o agente tinha realizado ao invés da
ação exigida). Levava a um absurdo: uma mãe que estaria a fazer tricot em vez de
vigiar o filho pequeno, que se encontrava a brincar com as facas da cozinha, seria
punida pelo ato de fazer tricot.
l Teoria da decisão da vontade - para esta teoria, havia um impulso, um ato da
vontade, que suspendia o impulso de agir, de realizar a ação juridicamente devida.
Punia-se a decisão do agente não atuar. Também é criticável dado que a omissão
pode resultar de uma negligência inconsciente.

Todas estas dificuldades são ultrapassadas com o conceito pessoal de ação como
ato de comunicação ou, dito de outra forma, como a exteriorização de uma
intencionalidade de sentido. Esse ato de comunicação tanto serve para a ação
como para a omissão, dado que esta também exprime um determinado sentido.

2. O sentido da punição por omissão - esta dificuldade decorre do próprio quadro


mental individualista do século XX. Se é natural punir um comportamento ativo que
lese ou coloque em perigo bens jurídicos, mais difícil é para esta conceção punir a não
realização de um comportamento altruístico que visa salvaguardar bens jurídicos
alheios. Parecia que na omissão se estava perante exigências de ordem moral e não
penal. Porém, no âmbito do Estado Social, a lesão de um bem jurídico deixa de ser
encarada como um dano exclusivamente individual, mas como um dano comunitário,

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pelo que, dentro de certos limites, parece ser razoável exigir a determinadas pessoas um
pequeno incómodo para evitar a lesão ou colocação em perigo de bens jurídicos.

É com recurso ao conceito pessoal de ação que se vai distinguir a ação de omissão.
Porém, existem casos de ambivalência ou de dupla cabeça, que são casos de dupla
relevância entre a ação e a omissão, hipóteses em que é relevante tanto a ação como a
omissão. Por exemplo, se o médico interrompe o funcionamento da máquina a que
estava ligado C, o resultado morte analisa-se sobre o prisma da ação (desligar a
máquina) ou da omissão (não prestar os cuidados exigíveis pela profissão que
desempenha e os quais está obrigado a prestar)?

A resposta ao problema afere-se segundo os seguintes critérios:


1. Critério da introdução positiva de energia - segundo Roxin, a distinção entre ação e
omissão passa por saber se a conduta do agente envolveu uma introdução positiva de
energia que determinou causalmente o resultado. Se sim, estamos perante uma ação. Se
não, estamos perante uma omissão. É criticado na medida em que o Direito Penal não
corresponde à descrição de causalidades;
2. Critério do ponto de conexão da censurabilidade jurídico-penal - seria necessário
identificar o ponto central onde radica a censurabilidade. É criticável na medida em que
é demasiado vago;
3. Critério da subsidiariedade - uma omissão só deve ter-se por relevante quando, de
todo em todo, o comportamento não poder ser perspetivado como uma ação. Também
se critica, pois é a ausência de critério;
4. Critério da ilicitude típica (defendido por Figueiredo Dias e pelo Doutor Almeida
Costa) - estamos perante uma ação sempre que, com a sua conduta, o agente cria ou
aumenta um perigo para o bem jurídico que venha concretizar-se no resultado e estamos
perante uma omissão sempre que o agente não diminui um perigo para o bem jurídico,
perigo esse que ele não criou, não intervindo.

Roxin veio introduzir uma série de constelações ou casos díficeis, pretendendo


introduzir uma nova categoria: omissão através da ação. São situações que
correspondem a ações, de acordo com o critério da introdução positiva de energia, mas
que se vão punir como omissões:
l O primeiro caso é a tentativa interrompida do cumprimento de uma imposição legal

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(ex.: desistir da ação de salvamento do filho que se está a afogar);


l O segundo caso é o da comparticipação ativa em delito omissivo (ex.: A aconselha
B a deixar de prestar o auxílio necessário);
l O terceiro caso é o da omissio libera in causa (ex.: bombeiro que bebe até ficar
inconsciente, tornando impossível que responda a uma chamada para ir em socorro
de alguém);
l O último caso é o da interrupção técnica de um tratamento (ex.: médico que desliga
a máquina. Caso se tratasse de uma ação de um terceiro, este seria punido pela ação
porque não há uma obrigação pessoal de prestar cuidados).

Na verdade, todas estas constelações se integram no núcleo da omissão, sem


necessidade de uma categoria especial. São todas situações em que o agente não
diminuiu o perigo porque não intervém, sendo que o perigo não foi criado por este.

É preciso ter sempre presente que o crime de omissão tem como núcleo a violação de
uma imposição legal de agir. O crime de omissão só pode ser cometido por uma
pessoa sobre a qual recaia um dever jurídico de levar a cabo uma ação imposta e
esperada. Em face da situação concreta, nem todas as pessoas podem praticar um crime
omissivo, pois é preciso, de entre o conjunto de pessoas envolvidas com o facto, apurar
aquele conjunto de pessoas que estava obrigado juridicamente a intervir e não o fez.

A omissão só pode ser imputada às pessoas que estejam oneradas com um dever
jurídico de garante.

O CP recorre a dois mecanismos distintos para punir a omissão:


l Ou o legislador descreve integralmente os pressupostos fáticos do crime omissivo
(ex.: art. 200.º, 245.º, 284.º CP), de onde resulta o dever de garante;
l Ou recorre a uma cláusula geral de equiparação da omissão à ação (prevista no art.
10.º CP).

Estes dois instrumentos estão na base da distinção entre omissões puras ou próprias e
omissões puras ou impróprias.
A omissão pura ou própria abrange aqueles casos em que o Código Penal prevê
expressamente a omissão como forma de realização do crime e descreve os

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pressupostos fáticos de onde deriva o dever jurídico de atuar ou, pelo menos, referindo
esse dever e tornando o agente o garante do seu cumprimento.
A omissão imprópria ou impura abrange todos os outros casos, em que a punição da
omissão resulta da cláusula geral de equiparação à ação, prevista no art. 10.º CP.
Entre nós, o n.º 3 do art. 10.º determina que, no caso da omissão impura, se aplica o
agente a moldura penal correspondente ao crime de ação respetivo, podendo a pena ser
especialmente atenuada (trata-se de uma atenuação facultativa). Tratando-se de um
crime omissivo puro, a moldura penal resulta do próprio artigo.

Quanto à estrutura dogmática dos crimes omissivos:


Temos um tipo de ilícito, que se decompõe num tipo objetivo e subjetivo, e um tipo de
culpa.

I. Tipo de ilícito - o Professor Figueiredo Dias diz que existem essencialmente três
requisitos comuns a todos os crimes de omissão:
a) Situação típica - constituída pelos pressupostos fáticos que permitem determinar
o conteúdo do concreto dever de atuar (ex.: na omissão de auxílio estamos
sempre a falar de uma ação de salvamento). Nas omissões impuras, a
determinação é mais difícil. A situação típica reconduz-se à não diminuição de
um perigo que recai sobre o bem jurídico, sendo que os restantes elementos
relevantes da situação típica são determinados por referência ao delito de ação
correspondente.
b) Ausência da ação esperada - corresponde, na omissão pura, à ação que a lei
prescreve, e, na omissão impura, ao comportamento necessário e adequado para
obstar à verificação do resultado típico.
c) Possibilidade fática de ação - só existe omissão se o agente puder, pessoalmente,
levar a cabo a ação devida ou esperada. Se, para o agente, a ação for impossível,
então estaremos perante uma causa de atipicidade. Essa impossibilidade tanto
pode ser física, técnica, de conhecimentos ou de meios de auxílio (ex.: pai
paralítico e mudo que vê o filho a afogar-se).

Estes são os requisitos gerais de todos os delitos omissivos. Mas há um conjunto de


problemas específicos que resultam da omissão impura, da equiparação da omissão à
ação:

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l Imputação objetiva do resultado à omissão - este problema coloca-se porque os


crimes de omissão impura são sempre crimes de resultado. A doutrina tradicional,
que será a seguida, reconduz a imputação objetiva nos crimes omissivos impuros
aos mesmos critérios que os correspondentes crimes de ação, com exceção do
degrau da causalidade. Não existe, de facto, na omissão, um nexo causal entre a
conduta (neste caso, a ausência dela) e o resultado. Temos então dois critérios:
n Critério da adequação - o critério funciona exatamente da mesma forma que
para os crimes de ação, mas, em vez de se avaliar a idoneidade do
comportamento para a produção do resultado, avalia-se a idoneidade do
comportamento devido ou esperado para evitar o resultado.
n Critério da conexão do risco - segundo este critério, só há imputação objetiva
se a ação devida ou esperada fosse tal que teria diminuído o risco da
verificação do resultado. Funcionam também os corretores:
u Corretor do risco permitido - o agente só deve atuar quando a ação
esperada caia dentro do risco permitido;
u Corretor da diminuição do risco - exclui-se a imputação se da omissão
resultar uma diminuição do perigo;
u Corretor do comportamento lícito alternativo - exclui-se a imputação
quando se prove que o resultado se iria produzir na mesma, ainda que o
agente tivesse intervindo;
u Corretor do âmbito de proteção da norma - exclui-se a imputação quando
o resultado extravase o âmbito de proteção da norma.

l Fonte do dever de garante - é a questão mais relevante em sede de crimes


omissivos. A resposta ao problema de determinar qual a fonte do dever de garante
permite perceber sobre quais agentes impende um dever jurídico de atuar, que
constitua o agente numa posição de garante e que permite afirmar que, se ele não
intervier, pratica um ilícito omissivo.
O art. 10.º CP delimita o âmbito das omissões impuras jurídico-penalmente
relevantes, fazendo essa delimitação através de alguns critérios: requisitos gerais,
previstos no n.º 1, e requisito específico, previsto no n.º 2:
n Quanto aos requisitos gerais:
u O primeiro requisito é o de que o crime de ação correspondente seja um

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crime de resultado (a expressão resultado deve ser entendida num sentido


amplo. Aliás, defende o Professor Lamas Leite que a expressão resultado
significa, neste contexto, a lesão ou a colocação em risco de bens jurídicos,
ou seja, a afetação da situação de tranquilidade do bem jurídico). Assim,
podem ser cometidos por omissão os crimes de dano e os crimes de perigo
concreto (só se excluem os crimes de perigo abstrato).
u O segundo requisito é o da possibilidade fática de ação.
u O terceiro requisito (parte final do n.º 1 do art. 10.º CP) abrange os casos
refratários (denominação de Faria Costa): situações em que, pela própria
natureza das coisas, o crime de ação não pode ser cometido por omissão
(ex.: bigamia) ou situações em que o próprio legislador exclui a
possibilidade de equiparação da ação à omissão.
Para estarmos perante um crime omissivo impuro é preciso que se reúnam
todos estes requisitos.

n No n.º 2 temos o requisito específico ou concreto: sobre o agente tem de


impender um dever de garante e precisamente aqui se coloca a questão de
determinar qual é a fonte desse dever. A nossa lei, ao contrário de outras
legislações penais, nada diz a este respeito, o que coloca problemas de
inconstitucionalidade. Existem duas teorias:
u A teoria formal do dever de garante (já abandonada) - segundo esta teoria,
o dever de garante provinha de 3 fontes: lei, contrato ou ingerência
(abrange as situações em que alguém cria uma situação de perigo anterior
e deve por isso proteger os bens jurídicos que venham a ficar em perigo);
u A teoria das funções - divide em dois grandes grupos a fonte do dever de
garante:
1. Função de guarda ou proteção de um bem jurídico concreto - o bem
jurídico carente de tutela deve ser protegido contra todos os perigos
englobáveis no âmbito de proteção. Todas as situações típicas em que se divide
criam deveres de proteção e assistência e giram em torno de três tipos de
relação: relações de proximidade sócioexistencial, de confiança e/ou
dependência material. Pode ser dividida em:
a) Relações de comunidade de vida, familiares ou análogas (art. 1874.º CC
- dever de garante que os pais têm em relação aos filhos; filhos/pais;

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avós/netos; cônjuges e pessoas que vivem em condições análogas à dos


cônjuges);
b) Assunção de funções de proteção e de guarda - correspondia à velha fonte
contratual, abrangendo hipóteses em que alguém assumiu uma posição de
proteção ou de guarda relativamente a um bem jurídico carente de tutela,
pelo que uma vez assumida essa posição cria-se uma relação de confiança,
de tal modo que o agente não pode violar depois a relação que assumiu,
independentemente do vínculo. É o exemplo da babysitter que tem o dever
de salvar a criança que se está a afogar na banheira, apesar de os pais da
criança estarem atrasados e, entretanto, já ter passado da hora combinada
para ela ir embora;
c) Relações de comunidade de perigo – estamos perante empreendimentos,
tarefas arriscadas ou perigosas, sendo que o perigo ou o risco desse
empreendimento é reconhecido e aceite por todos os membros do grupo
de tal modo que entre cada membro do grupo acresce um dever de garante
face aos outros membros, pois estabelecem relações fáticas de confiança
que não podem ser violadas;
d) Situações de monopólio (são aceites por Figueiredo Dias e pelo Professor
Lamas Leite, mas não pela maioria dos penalistas) - estamos perante casos
em que não existe entre os sujeitos nenhuma relação de proximidade
existencial, de confiança e/ou dependência. Entre o omitente e o bem
jurídico carecido de proteção não existe nenhuma destas relações, a fonte
é a pura solidariedade. Não obstante, o omitente está, do ponto de vista
fático, numa posição de domínio absoluto da fonte de perigo, sendo que
esse domínio resulta do arbítrio, do acaso. É o exemplo de uma pessoa que
vai a correr numa floresta e vê alguém a afogar-se num lago, sem que
ninguém esteja por perto para salvar sem ser o corredor. Há desproporção
entre o bem jurídico em perigo e o esforço que é exigido ao omitente para
proceder à ação de salvamento. O dever de garante, segundo a doutrina,
recai sobre o agente, mediante o preenchimento de três requisitos:
i. Que o agente esteja investido, mesmo que por circunstâncias
ocasionais, numa posição de domínio fático absoluto e próximo da
situação (pode até tratar-se de uma pluralidade de agentes, desde que
cada um domine em absoluto a situação e tenha o mesmo custo de

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intervenção);
ii. O perigo em que se encontra o bem jurídico tem de ser agudo e
iminente e tem que estar em causa a lesão de um bem jurídico pessoal;
iii. O agente tem e poder levar a cabo a ação esperada sem ter de incorrer
numa situação danosa e perigosa para si mesmo, ou seja, a ação de
salvamente tem de representar para o agente um encargo irrelevante.

2. Função de vigilância, que cria deveres de segurança e controlo. Nesta


função, aquilo que se exige ao agente é que fiscalize concretas fontes de perigo
(ex.: papel do controlador aéreo). Pode ser subdividida em diversas situações
típicas, todas elas repousando numa situação de proximidade material do
agente com uma fonte de perigo:
a) Ingerência - quem cria um perigo que pode afetar terceiros deve
cuidar que esse perigo não venha a atualizar-se num resultado típico. Por
exemplo, quem sequestra alguém tem o dever de alimentar a pessoa;
b) Senhorio ou domínio - são situações relacionadas com as zonas lícitas
de risco permitido traduzidas em deveres de vigilância e de fiscalização
sobre fontes de perigo concretos - ex.: dono da fábrica tem um dever de
fiscalização em relação às chaminés da fábrica;
c) Atuações de terceiros - são situações especiais em que existe um
dever de controlo ou vigilância face a atuações de terceiros que não sejam
responsáveis ou tenham a sua responsabilidade limitada ou diminuída e
abrange ainda relações de supra-infra ordenação, em que o superior
hierárquico tem a função de fiscalizar a ação dos inferiores.

Relativamente ao tipo de ilícito subjetivo dos crimes de omissão, pode também


distinguir-se entre dolo e negligência como formas típicas de realização prática do
crime:
l Dolo – Na omissão, o dolo do tipo também é composto por um elemento intelectual
(corresponde ao conhecimento da situação típica) e um elemento volitivo
(corresponde à omissão devida ou esperada com vontade que se preencha o tipo
objetivo);
l Negligência – está em causa a violação consciente ou inconsciente de um dever
objetivo de cuidado.

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Relativamente à culpa, o conteúdo material é o mesmo do que foi visto para as outras
dogmáticas.

Neste caso:
Poderíamos imputar a A o crime de omissão de auxílio (art. 200.º CP) ou o crime de
ofensas à integridade física por omissão (art. 143.º combinado com o art. 10.º CP).
Deve-se sempre verificar se o agente pode ser punido por um crime de omissão impura,
já que a doutrina e a jurisprudência defendem que o art. 200.º deve ceder, ou seja, tem
carácter subsidiário perante um dever de garante inerente a uma omissão impura, razão
pela qual, caso se aplique em simultâneo o art. 200.º e um crime de omissão impura,
prevalece o segundo.

Requisitos gerais do art. 10.º CP:


l O delito de ação correspondente é um crime de resultado – neste caso são as ofensas
à integridade física, que são um crime material;
l O omitente tem de estar na posição de poder adotar um comportamento adequado
que evitasse a possibilidade fática da lesão – A podia intervir, mas escolheu não o
fazer;
l Que a situação não recaia no âmbito dos casos refratários – pode-se punir por
omissão e neste caso, o legislador não exclui essa possibilidade.

Requisito concreto:
Sobre o agente ter a ser cargo um dever de garante, recorrendo à teoria das funções, A
poderia estar investido numa função de guarda ou de proteção. Dentro desta função,
estávamos no âmbito da assunção de funções de proteção de guarda. Neste caso
tínhamos um contrato entre o grupo e A, mas A não intervém porque o elemento do
grupo não lhe tinha pagado o preço acordado no contrato.
A comandava a expedição de alpinismo e estabeleceu uma relação contratual com os
restantes elementos do grupo, assumindo assim uma função de proteção ou de guarda
perante estes, havendo uma relação de confiança que justifica o dever de garante que
impende sobre o A, que leva a que os membros do grupo, especialmente o membro
carente de proteção, ter confiado na disponibilidade e experiência interventora de A,
dessa forma se sujeitando a riscos acrescidos ou dispensando outra proteção.

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Era possível imputar a A o crime de ofensas à integridade física por omissão, na


medida em que estavam preenchidos os pressupostos do art. 10.º CP, a título de dolo,
dado que tinha conhecimento da situação e atuou sabendo que se produziria o resultado
típico. A poderia ter uma atenuação especial da pena, nos termos do art. 10.º/3 CP.

CASO N.º 19

Num dia de Verão, ao notarem que A se estava a afogar, as demais pessoas


quese encontravam na praia X lançaram-se à água na tentativa de o salvar.
Entretanto, vendo B dirigir-se ao local com um barco de salvamento – e,
portanto, convencidos da desnecessidade de prosseguirem os seus esforços –, os
restantes indivíduos interromperam a sua iniciativa, regressando ao areal.
4. Quando se aproximou de A, B reconheceu-o como um seu antigo namorado
que a abandonara, o que a leva a voltar para terra, deixando-o no local.
Apercebendo-sedo sucedido, dois outros veraneantes voltaram a lançar-se à água
mas, quando chegaram perto de A, já este se encontrava morto.
Avalie, legal e doutrinalmente, a responsabilidade jurídico-penal de B.

Estávamos no âmbito da omissão. Podíamos ter dois tipos legais em abstrato: crime de
omissão de auxílio (art. 200.º CP) ou o crime de homicídio por omissão (art. 131.º
conjugado com o art. 10.º CP). Sempre que, em abstrato, seja possível a aplicação de
um crime de omissão pura (omissão de auxílio do art.º 200.º CP) e impura, temos de
testar a possibilidade do preenchimento dos requisitos do art. 10.º CP, que permitem a
punição pelo crime de omissão impura.
Olhando para os requisitos do art.º 10.º CP:
l O crime de ação correspondente tem que se tratar de um crime de resultado - sim,
o crime de homicídio é um crime de resultado;
l Possibilidade fática de ação - também se verifica;
l Não se trata de um caso refratário;

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l Fonte do dever de garante (o agente está investido numa posição que


pessoalmente o obriga a evitar o resultado) - esta situação reconduzir-se-ia à
primeira função, mais especificamente uma situação de monopólio. São casos em
que o omitente, fruto das circunstâncias, tem um domínio absoluto fático e próximo
da situação de perigo, embora não a tenha criado, e não tem nenhuma relação de
proximidade existencial ou dependência do bem jurídico carecido de amparo.
É preciso reconhecer que B não se coloca na situação de monopólio por força do
acaso e que, ao aproximar-se de barco da vítima, é que se coloca nessa situação. A
doutrina maioritária, apesar de negar a situação de monopólio como fonte do dever
de garante, tem mais facilidade em aceitar o monopólio como fonte do dever de
garante nos casos em que o próprio omitente se coloca nessa posição.

Logo, era possível punir B pelo crime de homicídio por omissão a título doloso.

5. Partindo da mesma factualidade, suponha agora que B pensava que o


náufrago era o seu ex-namorado quando, na verdade, não o era. Este facto altera a
responsabilidade de B? Fundamente a sua resposta.

As funções de guarda e proteção de um bem jurídico, nomeadamente em situação de


monopólio, implicam que se faça uma avaliação de quem é a pessoa?
Não, basta que o omitente domine a fonte de perigo, não é necessário que se verifique
uma relação de proximidade existencial ou dependência para com a pessoa em perigo.
Por outra via, está em causa um erro sobre as circunstâncias de facto, mais propriamente
um erro sobre a pessoa ou o objeto (error in persona vel objeto). Neste erro, a
execução é perfeita, mas há um problema na formação da vontade - o agente está em
erro quanto à pessoa ou ao objeto.
No âmbito da omissão também se verificam os erros intelectuais ou de valoração já
estudados:
l Erro sobre as circunstâncias de facto, que se designa por erro sobre a posição de
garante ou erro sobre os pressupostos materiais do dever de garante (art. 16.º/1/1ª
parte CP, cuja consequência é a exclusão da culpa)
l Erro sobre a ilicitude, que se designa por erro sobre o dever de garante (art. 17.º
CP, que exclui a culpa, se não for censurável).

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Neste caso concreto, estamos perante um erro sobre a posição de garante, mais
concretamente uma das situações típicas do erro sobre as circunstâncias – o erro sobre
a pessoa ou objeto. Segundo a doutrina maioritária, o erro é irrelevante se houver
identidade típica entre o crime consumado e o crime projetado ou entre o objeto
atingido e o objeto projetado, punindo-se o agente a título de dolo. Não havendo
identidade típica, a doutrina maioritária defende que ele deverá ser punido ou só pela
tentativa ou por concurso pela tentativa quanto ao crime projetado e pela negligência
quanto ao crime consumado.
Aplicava-se aqui a primeira hipótese, dado que há uma identidade típica entre o crime
projetado e o crime consumado. Logo, a resposta seria exatamente a mesma da alínea
anterior.

CASO N.º 20

Certo dia, D e o seu filho E dirigiram-se a uma praia repleta de veraneantes, na


qual F exercia as funções de nadador-salvador.
Após alguns “banhos de sol”, D tomou uma lauta refeição. Algum tempo
depois adormeceu, sendo acordado por uns gritos lancinantes. Apercebeu-se então
de que alguém, que não identificou, se estava a afogar, mas decidiu nada fazer,
receandovir a ter uma congestão. Dada a passividade de todos os presentes, a pessoa
em perigo acabou por morrer.
12. No decurso do inquérito judicial, F defendeu que se limitara a
telefonar paraos bombeiros por considerar que não estava obrigado a intervir, uma
vez que, apesar de à data dos factos se encontrar no seu posto de trabalho e em
funções de vigilância, o seu contrato com o concessionário da praia havia caducado
há mais de um mês. Quid iuris?

Tendo em consideração que teríamos dois tipos legais de crimes em abstrato (crime
de omissão de auxílio e crime de homicídio por omissão) e sendo necessário testar a
possibilidade do preenchimento dos requisitos do art. 10.º para que houvesse punição
pelo crime de omissão impura:
Todos os outros requisitos do art. 10.º se encontravam preenchidos, pelo que há então
que verificar o requisito da fonte do dever de garante: qual era a fonte do dever de

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garante que onerava F?


Estaríamos no âmbito da função de guarda de um bem jurídico, nomeadamente uma
hipótese típica de assunção de deveres de guarda e assistência (a velha fonte
contratual). O nadador-salvador, estando no seu posto, identificado como tal, e nas
suas funções de vigilância, assume uma função de proteção materialmente baseada
numa relação de confiança, que existe porque os veraneantes confiam na
disponibilidade de F para proteger os bens jurídicos.

F entendeu que não tinha de atuar e que não tinha praticado um crime de omissão,
dado que tinha ligado para os bombeiros. Nos crimes de omissão, pune-se a não
adoção da conduta esperada ou devida. Neste caso, a ação esperada resulta daquilo
que segundo a situação típica é necessário ou idóneo para obstar à verificação do
resultado típico. Logo:
l Quanto ao primeiro argumento, no âmbito da teoria das funções, o que interessa
é a relação material ou de confiança que se estabelece entre o omitente e os bens
jurídicos carecidos de amparo, não relevando o vínculo contratual;
l Relativamente ao segundo argumento, não era devido ou esperado de F que
ligasse para os bombeiros, dado que essa ação poderia ter sido tomada por
qualquer outra pessoa na praia.

Assim, F poderia ser punido pelo crime de homicídio por omissão (art. 131.º
conjugado com o art. 10.º CP).

13. E se o náufrago fosse E? A solução seria a mesma? Justifique.

Relativamente a F, a solução seria a mesma. Aquilo que se podia concluir é que havia
mais do que uma pessoa onerada com um dever de garante: além de F, D, o pai de
E, também estaria onerado com um dever de garante.
Dando por preenchidos todos os outros requisitos do art. 10.º, olhemos para o requisito
da fonte do dever de garante:
Estávamos perante uma fonte relacionada com uma função de guarda e proteção e, no
âmbito das situações típicas, as relações familiares ou de proximidade existencial.
D poderia invocar duas justificações:

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l Quando diz que não interveio porque tinha feito uma refeição lauta e temeu ficar
indisposto, está a colocar em causa o requisito da possibilidade fática da ação, mas
não se poderia aplicar, dado que a congestão não tem consequências gravosas para
D;
l D poderia não se ter apercebido que quem se estava a afogar era o filho, E.
Poderíamos estar perante um erro sobre a posição de garante, excluindo o dolo e
punindo-se o homicídio por negligência, uma óbvia violação de um dever de
cuidado.

Logo, era possível a punição de D por homicídio negligente por omissão.

CASO N.º 23

J, L e M decidiram assaltar o “Banco X”. Para tal, procederam ao


estudo das instalações e dos respectivos sistemas de segurança, adquirindo, em
seguida, os mecanismos adequados a desactivar os alarmes e, bem assim, armas de
fogo destinadasa intimidar os guardas.
q) Refira-se à punibilidade das condutas em apreço. Justifique doutrinal e
legalmente.

Estamos perante atos preparatórios não puníveis em geral, nos termos do art. 21.º
CP. Isto leva-nos para o iter criminis ou caminho do crime, ou seja, as fases que vão
da preparação à execução de um crime, que são essencialmente quatro:
l Nuda cogitatio ou puro pensamento – não têm qualquer relevância jurídico-penal,
não têm materalização, o pensamento é penal e socialmente irrelevante;
l Atos preparatórios – o agente não está ainda a executar o crime, mas já está a
prepará-lo/estudá-lo. Antecedem temporalmente e segundo a natureza das coisas
a execução de ato ilícito. Como regra geral não são puníveis, mas a lei pode prever
o contrário. O legislador pode efetivamente e a título excecional prever que certos
atos preparatórios constituam desde logo crimes autónomos (geralmente crimes
de perigo abstrato - ex.: art. 262.º CP) ou punir os atos preparatórios enquanto tais
(ex.: art. 271.º CP);
l Atos de execução – fundam a punição na tentativa;
l Consumação.

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Neste caso, era da máxima importância distinguir entre atos preparatórios e atos de
execução. Os critérios que permitem determinar se estamos perante um ato de
execução estão previstos no art. 22.º/2 CP, sendo que cada uma das alíneas consagra,
respetivamente, o critério formal-objetivo, o critério material-objetivo e a
formulação de Frank, com o sentido desenvolvido por Welzel.
A teoria material objetiva diz-nos que seriam atos de execução todos aqueles que de
acordo com as regras da experiência comum e conhecimentos especiais e normais do
agente fizessem antever como possível ou provável ou pelo menos não impossível a
consumação do crime. Seria uma execução os atos que fossem já idóneos para produzir
a consumação.
Segundo a fórmula de Frank, deveriam considerar-se atos de execução aqueles atos
que segundo a normalidade social aparecem já como próximos de um perigo iminente
para o bem jurídico protegido.
Welzel diz que, para que haja um ato de execução, não basta que este seja idóneo para
produzir a consumação, mas que é ainda necessário um avançar imediato para a
execução do crime. A execução começa quando o agente dá início a um momento em
que, numa situação de continuidade, sem quebra ou uma necessidade de renovação de
vontade, vai já conduzir a um ato final de execução.

De acordo com isto, nenhum destes atos elencados no enunciado se pode


enquadrar nos atos de execução, são ainda atos preparatórios.

No dia combinado, entraram no Banco e chegaram à caixa-forte. Quando se


preparavam para abandonar o local, já na posse de milhares de euros, J recordou-
se de ter ouvido dizer que as notas em causa eram de uma série nova e, portanto,
facilmente detetável, circunstância que frustraria os objectivos do crime. Em
conformidade, J dirigiu-se aos comparsas, incitando-os a voltarem a colocar o
dinheiro no cofre respectivo e a aguardarem por outra ocasião mais propícia. Assim
fizeram todos os agentes. À saída do Banco foram capturados pela Polícia.
r) Avalie, justificadamente, a responsabilidade jurídico-penal de J, L e M.

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Estamos perante uma hipótese de desistência da tentativa. Temos de distinguir entre


tentativa acabada e tentativa inacabada. Vimos que a prática de um único ato de
execução é já bastante para configurar a tentativa, mas distinguem-se duas situações:
l O agente não chega a praticar todos os atos de execução que seriam indispensáveis
ou necessários à consumação, que corresponde à tentativa inacabada ou
simplesmente tentativa;
l O agente pratica todos os atos necessários à consumação, mas a consumação não
chega a ter lugar por motivos alheios à sua vontade, que corresponde à tentativa
acabada.

Esta distinção tem relevância sobretudo na desistência voluntária de tentativa. No caso


da tentativa acabada, caso em que o agente realizou todos os atos executórios que,
segundo as suas representações, são necessários à consumação, tem de haver da sua
parte um arrependimento ativo: tem de impedir a consumação ou a verificação do
resultado ou pelo menos esforçar-se seriamente (tem que desfazer o que fez ou pelo
menos tentar). Nestas hipóteses a tentativa deixa de ser punível nos termos do art.º 24.º
CP.

O art.º 24.º/1 abrange três situações distintas:


l Abandono da prossecução do crime - estamos no âmbito da tentativa inacabada;
o agente interrompe, abandona ou omite a prática dos atos executórios restantes
que ele crê como indispensáveis para a consumação;
l Impedimento da consumação - tem como horizonte os casos de tentativa acabada,
que exigem do agente um arrependimento ativo. O agente praticou todos os atos de
execução que segundo as suas representações eram necessários à sua consumação,
e agora tem de impedi-la através de uma atividade própria, normalmente com o
auxílio de terceiros. Tem de colocar em marcha uma nova cadeia de eventos
destinadas a evitar a consumação e tem que ter êxito;
l Desistência em caso de consumação - o Código Penal alarga o privilégio da
desistência também aos casos em que existe uma consumação formal, mas não
material do crime, ou seja, quando ainda não teve lugar o resultado atípico (não
compreendido no tipo de crime) que a lei teve em vista evitar quando construiu a
incriminação. Tem sobretudo interesse nos crimes de perigo, em que a consumação
ocorre quando o bem jurídico é colocado em perigo.

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No n.º 2 do art. 24.º são situações de tentativa acabada que ainda que o agente tenha
iniciado um processo causal destinado a evitar a consumação ou a verificação do
resultado, um ou outro vêm a ser impedidos, não por força da sua atividade, mas por
um facto independente da sua conduta.
Nestes casos exclui-se a punibilidade da tentativa se o agente se tenha esforçado
seriamente para evitar o resultado. Aqui, esforços são mais do que meras intenções de
salvamento ou preocupações, é preciso que o agente tenha efetivamente criado uma
oportunidade de salvação para o bem jurídico. O agente tem de fazer tudo aquilo que
subjetivamente pensa que teria que fazer para evitar a consumação.

Requisito comum:
A desistência tem de ser voluntária. Quanto ao requisito da voluntariedade há duas
posições:
l O Doutor Almeida Costa afirma que a voluntariedade deve ser interpretada no
sentido da espontaneidade, a desistência não se deve a qualquer pressão ou coação
de fator externo, mas não é necessário sequer que o agente abandone o projeto
criminoso (conceção psicológica da voluntariedade, com que se identificam o
Professor Lamas Leite e o Professor Tiago Rocha);
l Figueiredo Dias (conceção normativa) afirma que a voluntariedade não depende só
da pressão psicológica, mas de uma atitude interna do agente de regresso ao
Direito, um arrependimento no sentido de fidelidade ao Direito (“corresponde a
uma obra pessoal do agente que detém o domínio do facto no sentido da desistência
e toma nas suas próprias mãos a decisão de regressar ao Direito”).

Estaríamos perante o crime de furto qualificado ou o crime de roubo, numa hipótese de


tentativa inacabada, pelo que se aplica a primeira parte do art. 24.º/1. Os agentes
abandonam a prossecução do crime. Analisando o requisito comum, a desistência é
voluntária na perspetiva do Doutor Almeida Costa, pelo que se afirma a isenção de pena
para os agentes do crime de furto ou roubo, não se excluindo a pena de outros crimes.
Seguindo a conceção de Figueiredo Dias, afirmar-se-ia que os agentes do crime seriam
punidos pelo crime de furto ou de roubo na forma tentada, aplicando-se uma atenuação
obrigatória da pena (ar. 23.º CP).

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Suponha agora que L, sensível aos argumentos de J, manifestou-se no mesmo


sentido deste último. Pelo contrário, M preparava-se para abandonar o Banco com o
dinheiro, apesar da insistência dos seus companheiros. Face a tal comportamento, J
e L agarraram-no com o objectivo de impedir a sua fuga. No entanto, dada a maior
força física de M, foram empurrados para o chão e o agressor conseguiu fugir com
o “produto” do roubo, tendo todos sido detidos.
s) A factualidade agora apresentada implica uma diferente responsabilidade
jurídico-penal dos agentes? Fundamente a sua resposta.

Aplica-se, nestes casos, o art. 25.º CP, que consagra a desistência da tentativa em
caso de comparticipação. A especialidade deste regime prende-se com a
circunstância de cada um dos participantes ter posições diferentes: uns desistem e
outros não.
Assim, J e L não seriam punidos, eles esforçam-se seriamente para impedir a
consumação do crime, pelo que poderiam beneficiar da isenção de pena. M,
contrariamente, seria punido pela tentativa.

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