Você está na página 1de 3

FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DO PORTO

EXAME DE ÉPOCA NORMAL DE INTRODUÇÃO AO DIREITO


16/06/2020 10.00H – 12.00 H

I
Leonarda Davíncio, pintora de renome, celebra com Joana um contrato pelo qual se
obriga a fazer um retrato dos filhos de Joana, a entregar no dia 20 de junho deste ano. No
início de junho, Leonarda ainda não havia começado a pintar o quadro. Confrontada por
Joana, a artista justifica-se com fundamento em “falta de inspiração e de génio criador” e
indica um pintor seu amigo para pintar o quadro em sua substituição. Joana, contudo, não
está interessada, uma vez que para ela tem muito significado que o quadro seja assinado por
Leonarda Davíncio, cujo trabalho muito admira.

O que poderá Joana fazer? (5 val.)

Critérios de correção: A realização da obra como prestação de facto infungível;


impossibilidade de recurso à execução específica, enquanto mecanismo de tutela
reconstitutiva sob a modalidade de reconstituição natural (art. 828.º CC a contrario);
impossibilidade de recurso à sanção pecuniária compulsória (tutela compulsória), por a
prestação debitória exigir especiais qualidades artísticas do obrigado (art. 829.º-A CC).
Eventual possibilidade de recurso a dois mecanismos de autotutela: a tutela compulsória,
na modalidade de exceção de não cumprimento (art. 428.º CC), se preenchidos os requisitos
legais; e o direito de resolução por incumprimento (art. 432.º a 436.º). Possibilidade de
recurso à tutela reconstitutiva, sob a modalidade de reintegração por mero equivalente –
cfr. art. 566.º, n.º 1, do CC.

II

Analise a seguinte situação hipotética:

Em consequência da pandemia de COVID-19, o País enfrenta a mais grave crise


económica da última centúria. Perante este negro panorama de absoluta excecionalidade, e
de modo a impedir a economia de colapsar, a Assembleia da República vê-se obrigada a
aprovar uma Lei que proíbe os cidadãos de levantarem das suas contas bancárias mais de
250€ por semana.

Pode o legislador determinar como data de entrada em vigor da Lei o própria dia da
sua publicação em Diário da República? (4 val.)

Critérios de correção: Está em causa um problema de supressão total da vacatio legis


pelo legislador. A publicação em Diário da República como requisito de eficácia da Lei (art.
5.º, n.º 1 CC). Funções do período de vacatio legis: permitir o conhecimento da Lei pelos
respetivos destinatários e a adaptação destes ao que será o novo regime legal. Está em causa
uma lei que contém uma norma de conduta dirigida aos particulares. Parece de admitir que
a supressão total da vacatio legis apenas se justifica em situações absolutamente
excecionais, como a descrita no enunciado (dado que a existência de vacatio legis poria em
causa a própria eficiência da medida legislativa). Possibilidade de derrogação do art. 2.º,
n.º 1, in fine, da Lei n.º 74/98 (lei ordinária da AR) por diploma de nível hierárquico
equivalente que determine a vigência imediata.

III
Ana é empresária, explorando um ginásio que montou num imóvel arrendado, pertencente a
Bento. O contrato de arrendamento foi celebrado no dia 1 de fevereiro de 2020, por um
período de um ano, tendo a renda mensal sido fixada em €4.000,00.
Sucede que, por força das medidas legislativas adotadas no contexto da pandemia de Covid-
19, Ana foi forçada a fechar o ginásio no dia 22 de março, situação que se prolongou até ao
dia 1 de junho.
Em consequência, Ana invoca o artigo 1040.º do Código Civil, exigindo de Bento uma
redução da renda proporcional ao período em que o ginásio esteve encerrado.
Bento contrapõe, dizendo que a aplicação do artigo 1040.º do Código Civil foi afastada pela
Lei n.º 4-C/2020, de 6 de abril, que, nos termos do artigo 1.º, “estabelece um regime
excecional para as situações de mora no pagamento da renda devida nos termos de contratos
de arrendamento urbano habitacional e não habitacional, atendendo à situação
epidemiológica provocada pela doença COVID -19”. Assim, defende Bento que Ana apenas
tem direito à moratória no pagamento das rendas consagrada na referida Lei n.º 4-C/2020,
não tendo direito a qualquer redução do seu montante.
Tendo por base um exercício de interpretação jurídica do artigo 1.º da Lei n.º 4-C/2020,
de 6 de abril, indique, na sua opinião, quem terá razão. (5 valores)
Critérios de correção: enquadramento da questão na problemática do concurso de normas
jurídicas de fonte legal. O artigo 1040.º CC como norma especial do contrato de locação. A
qualificação pelo legislador do regime consagrado na Lei n.º 4-C/2020, de 6 de abril como
regime excecional a aplicar ao contrato de arrendamento por força da pandemia.
Interpretação do artigo 1.º da Lei n.º 4-C/2020, de 6 de abril: a delimitação constante do
elemento literal (“situações de mora no pagamento da renda devida”); a potencial
cumulação de alternativas legais à luz do elemento sistemático; a relevância da occasio legis
e problemática da determinação da ratio legis (acréscimo de proteção ao arrendatário, ou
criação de um regime especial de proteção do arrendatário afetado pela pandemia,
substituto do regime do Código Civil?). Consequências a retirar da posição defendida
quanto à interpretação do artigo 1.º da Lei nº 4-C/2020: concurso de normas cumulativas
ou incompatibilidade de normas. Aplicação, no segundo caso, do princípio da posteridade:
lex posterior derogat legi priori.

IV

Analise a norma abaixo transcrita à luz das finalidades do Direito:

"Artigo 8.º da Lei n.º 4-C/2020, de 6 de abril (na redação dada pela Lei n.º 17/2020, de 29
de maio)
Diferimento de rendas de contratos de arrendamento não habitacionais
1. O arrendatário que preencha o disposto no artigo anterior pode diferir [adiar] o
pagamento das rendas vencidas nos meses em que vigore o estado de emergência
e no primeiro mês subsequente, para os 12 meses posteriores ao término desse
período, em prestações mensais não inferiores a um duodécimo do montante
total, pagas juntamente com a renda do mês em causa. (...)" (6 valores)

Critérios de correção: A Justiça e a Segurança como as finalidades principais do Direito.


Indicação das respetivas dimensões. O art. 8.º da Lei n.º 4-C/2020 constitui uma
manifestação do relevo superior da Justiça, pois justifica o afastamento do princípio do
cumprimento escrupuloso dos contratos de arrendamento para proteção dos arrendatários
com rendimentos afetados pela ocorrência da pandemia de Covid-19. A natureza excecional
do regime da moratória no arrendamento como consequência do impacto na segurança
jurídica em geral e para os senhorios em particular.

Você também pode gostar