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NA FESTA:
reflexões sobre resistência
indígena e circularidade cultural
Rachei Soihet
I
EsIwlosHi.sf6tYos, RiodeJanci� val. S, D. 9, 1992, p. 44-59
o DRAMA DA mNQUlSTA NA FESTA 45
mente; como uma totalidade complexa que culturas diferentes, reside numa disposi
inclui conhecimento, crença, arte, moral, ção dialógica.6
lei, costumes, além de outras capacidades Em trabalho anterior Ginzburg nos in
e hábitos adquiridos pelo homem como forma sobre o empréstimo do termo cultu
membro de uma sociedade. Uma noção ra feito pela história à antropologia cultu
holIstica mas também processual, voltada ral, já num período relativamente tardio.
para a mudança cultural e suas fonnas de Só através do conceito de "cultura primiti
ocorrência? va" é que se chegou a reconhecer que
Robert Damton, um dos autores mais aqueles indivíduos outrora definidos de
entusiasmados com o diálogo antropolo forma paternalista como "camadas inferio
gia/história, esclarece que a história cultu res dos povos civilizados" possuíam cultu
ral trata a nossa civilização da mesma ma ra. Superou-se, assim, a posição daqueles
neira que os antropólogos estudam as cul que distinguiam nas idéias, crenças, visões
turas exóticas. Cabe ao historiador etno de mundo das classes subalternas, nada
gráfico estudar o modo como as pessoas mais do que um acúmulo desorgãnico de
comuns entendiam o mundo. Com tal ob fragmentos de idéias, crenças, visões de
jetivo busca descobrir sua cosmologia, mundo elaboradas pelas classes dominan
apreender como organizavam a realidade tes, provavelmente, vários séculos antes7
em suas mentes e a expressavam em seu A concepção de circularidade cultural,
comportamento.4 que propõe como recíprocas as influências
Este autor destaca, como contribuição entre a cultura dos segInentos dominantes
fundamental da antropologia, a noção de e subalternos, constitui-se numa outra im
diferença; com isto concorda Le Goff ao portante contribuição de Giowurg, inspi
afirmar que nela reside uma das seduções rado, como COnfCAA3, em Bakhtin, que bus
fundamentais desta disciplina para os his caremos adotar em nossa abordagem.8
toriadores. Consolida-se, a partir dessa Dentre os autores que enfatizam o papel
perspectiva, a visão de que os outros povos decisivo da cultura como força motivadora
são diferentes, não pensam da mesma ma da transformação histórica temos Natalie
neira que pensamos, o que, traduzido em Davis e E.P. Thompson. Este, inovando o
termos do ofício do historiador, identifica marxismo e opondo-se à visão tradicional,
se oom a recomendação contra o anaclu- ressalta a impossibilidade de se entender o
. 5
D1Smo. que é classe sem que esta seja percebida
Discorrendo acerca da similaridade en como uma formação social e cultural.9
tre o trabalbo do historiador e do antropó Thompson reconhece a importância da
logo, o historiador Carlo Ginzburg afIrma utilização pelo historiador das contribui
que 'lIas bases são textuais. Ambos se va ções dos folcloristas e da antropologia so
Iem de textos, intrinseca mente, dialógicos. cial, particularmente, no trabalho com s0-
A estrutura dialógica pode ser explícita, o ciedades onde predominava o costume. Tal
que ocorre tanto na série de perguntas e foi o seu caso ao se dispor a iCcuperar as
respostas presentes num processo inquisi formas de consciência plebéia na Inglater
torial como na transcrição das conversas ra do século XVIII. Mantém porém uma
entre o antropólogo e o seu informador.1à1 atitude critica, tecendo considerações acer
estrutura pode, também, ser implícita, co ca das precauções a serem tomadas para
mo, por exemplo, nas notas etnográficas que este intercâmbio se revele proveitoso.
referentes a um ritual, um mito ou um A atenção às normas, valores e rituais
utensílio. Para ele a e.«<ência de uma atitu pode proporcionar um significativo au
de antropológica, ou seja, o confronto entre mento do conhecimento histórico. Nesse
46 ES1lJJX)S IflSTÓRICDS 199'1.19
-
forças históricas externas e dete nninantes, a resta Coi por muitos considerada como
desempenhando um papel ativo e essencial um tema menor, periférico, desmobiliza-
o DRAMA DA OONQUISTA NA FESTA 47
dor. O diálogo entre Pierre Vilar e Vovelle momento de verdade em que um grupo
é sintomático. Vdar, embora amisto ou uma coletividade projeta simbolica
samente, questiona \bveUe - historiador mente sua representação de mundo, e
de temas tão heterodoxos como a morte e até filtra metaforicamente todas as suas
6
a festa -se não seria muito mais proveitoso tensões.t
interessar-se pelos p rocessos de tomada de
ronsciência entre as massas. Ainda mais Também para Natalie Oavis a festa pos
\3
que VoveUe se dizia marxista! sivelmente se constitui no
O fato talvez revele o desconhecimento
de Vdar do "paradigma conjecturai" -um elelnento fundamental da vida coletiva,
método discutido e batizado por Gin7hurg. porque exprime com marcante intensi
Estudiosos tão diversos como Morelli - dade as dimensões dos papéis sociais e
voltado para a história da arte -, Arthur o confronto dos simbolos que eles "sig
l?
Conan Doyle-autorde célebres romances nificam".
policiais -e Freud-criador da psicanálise
- foram adeptos desse método. Devia-se, Mikhail Bakhtin, no seu belíssimo tra
de acordo com esse método, que se revelou balhosobre Rabelais, faz emergircom toda
de fundamental importãncia para as ciên a força a cultura cômica popular da Idade
cias humanas, atentar, não para as caracte Média e do Renascimento, que, para o
rísticas mais aparentes, mas para os deta autor, é fundamental na determinação do
lhes secundários, aspectos aparentemente conjunto de seu sistema de imagens. Em
insignificantes, capazes de fornecer as vias bora Bakhtin focalire essencialmente o pe
de acesso a uma realidade mais profunda, ríodo histórico citado, faz algumas genera
14
inatingível de outra forma. lizações que o extrapolam.
Muitos autores consideraram a festa co Assim, refere-se às festividades como
mo uma válvula de escape para as te nsões uma forma primordial, marcante, da civi
do cotidiano, pemútida, controlada e esti lização humana. Discorda daqueles que as
mulada pelos grupos dominantes. Consti explicam como um produto das condições
tuir-se-ia, em última instância, em um re e finalidades práticas do trabalho coletivo
curso utilizado pelo poder para a manipu ou como um produto da necessidade bio
lação e o reforço da ordem vigente, capita lógica (fisiológica) do descanso periódico.
lizando em proveito próprio os excessos Para ele as festas tiveram sempre um sen
nela manifestados. Esta é, porém, uma tido profundo, exprimindo uma concepção
perspectiva simplista, unidimensional, que de mundo, vinculando-se ao mundo dos
18
elide a complexidade dessa forma de ex ideais.
pressão, de grande riqueza para o descor Sob o regime feudal na Idade Média, a
tino das atitudes, valores e comportamen relação da festa com os fins superiores da
tos dos diversos grupos sociais. A festa se existência humana - a ressurreição e a
const.itui num palco onde a dialética domi renovação - alcançava sua plenitude e sua
nação/resistência marca sua presença, pos pureza 110 carnaval e em outras festas po
sibilitando ao historiador, munido do mé pulares e públicas. Nestas circunstãncias,
todo acima, alcançar a essência de signifi a festa convertia-se na segunda vida do
cados sociais po r vezes inacessíveis atra povo, o qual penetrava temporariamente
t5
vés de outros caminhos. no reino utópico da universalidade, liber
Micbel \bveUe concorda com esta po dade e abundância.
sição, ao afirmar ser a festa um maravilho Estabeleciam-se na ocasião entre os in
so campo de observação para o historiador: divíduos, separados por barreiras intrans-
48 ESTUDOS HISTóRICOS-199m
para fortificá-lo. Olhavam para trás, para o Latina, teatro desta abordagem, na qual por
passado, confinnando a ordem social pre largo tempo buscou-se analisar a participa
ção e organização dos trabalhadores, se
sente. As distinções hierárquicas destaca
gundo o modelo europeu. As especificida
vam-se intencionalmente, sendo finalida
des do contexto latino-americano vinham
de destas festas a consagração da desigual
sendo vistas de fonoa negativa. Atribuía- se
dade, ao contrário do carnaval em que
2° aos populares de Sllas diferentes regiões
todos eram iguais.
características de passividade, inação, oque
A festa revolucionária, visando COffiO
teria impedido a fonnação de conheci
lidar na população a memória da Revolu 22
mentos novos e positivos a seu respeito.
ção de seus heróis, tem seu ponto alto no
Nenhuma preocupação se fez sentir so
século XIX. Comemorativa de um aconte bre o conteúdo de classe das reivindicações
cimento que assinala a instauração de um populares expressas através de movimen
novo tempo, tem como preocupação, atra tos aparentemente "apolílicos". Citam-se,
vés de seus símbolos e ritos, transmitir a entre eles, os quebra-quebras de transportes
mensagem de que a Revolução chegou a coletivos, os saques de lojas e annazéns de
tenno, buscando garantir coesão social à gêneros de primeira necessidade e os mo
-
naçao. tins derivados dos motivos mais diversos.
Reviver uma história remanipulada, re Ocorre, igualmente, que a situação de ten
ajustada, reprimida; inventar uma nova sa são e insatisfação destes segmentos tam
crnlidade - o culto cívico em substituição bém pode expressar-se em fonnas de resis
à antiga religião -são alguns dos objetivos tência cotidiana, por vezes comedida, por
deste tipo de festa. Segundo Mona Ozouf, outras carnavalesca. O deboche, a paródia,
historiadora que com sua fina sensibilida o teatro, a inversão, são algumas das ex
pressões através das quais os populares tor
de desvenda inúmeros significados de fes
nam explícita sua consciência da relativida
ta revolucionária, esta '101era mal a mu
de das verdades e das autoridades no poder.
dança", esforçando-se por neutralizá-Ia em
21 Os populares da América Lati na, cientes
rito.
de sua marginalidade e das dificuldades na
As festas religiosas, as execuções públi
superação desta condição, como uma de
cas com seu teatro de controle e o contra
suas opções preferenciais, investiram sua
teatro da multidão, são algumas outras mo
energia nestas fonnas algo metafóricas. Va
dalidades de festa que empolgavam a po
lendo.>;e de fonoas alternativas de organi
pulação e que passaram a se constituir em zação, ocorre sua intensa participação em
objeto da atenção dos historiadores. Estes, grandes festas como o carnaval e festivida
através da inventividade na busca de fontes des religiosas nas quais a carnaval �ção
e na utilização de métodos refinados, têm também está presente - dentre elas, a de
conseguido recuperar significativas infor Nossa Senhora de Guadalupe no México e
mações acerca da cultura dos diferentes a de Nossa Senhora da Penha no Brasil.
..
grupos sociais, dos conflitos e das fonoas Nas áreas de predominância indígena a
de interpenetração cultural aí presentes. dramatização da conquista é um dos even-
o DRAMA DA CONQULSTA NA FESTA 49
tos mais freqüentados, até nossos dias. Em No Peru e na Bolívia temos a "Tragédia da
bora o conteúdo indígena se ache impreg morte de Atabualpa"; na Guatemala, a
nado de influências espanholas,muitos dos uDança da conquista"� e, no México, a
fatos históricos apresentam-se modifica "Dança das plumas" e a "Grande conquis
dos,invertidos,sinalizando claramente em ta". Todas elas, por sua vez, apresentam
direção a uma fomla de resistência. variaçôes regionais. Sua representação, via
Considerando a sua originalidade e ri de regra, ocorre por ocasião das festas
queza simbólica, decidimo-nos pelo enfo cristãs; apenas em Oruro também durante
23
que desse tipo de manifestação, na qual a o carnaval ela é levada a efeito.
tragédia indígena é o espetáculo. O fenô Decidimo-nos pela apresentação fll3 is
meno da conquista, marcado pelo cboque ponnenorizada do exemplo peruanolboli
entre dllas culturas distintas, uma delas viano, apontando nos demais os traços que
pretendendo a destruição da outra,é reme mais sobressaem. A exibição do drama é
morado anualmente,deixando entrever, de feita na praça central para Ufll3 multidão de
fOffil3 significativa, a visão do indígena espectadores, que são mantidos à distância
sobre o acontecimento. Esta representa por dois jovens portadores de máscaras
ção, por si SÓ, constitui um testemunho do diabólicas e affil3dos com tridentes. O
fracasso daquele objetivo. acompanhamento musical é feito por ins
trumentos indígenas, (Jautas e pequenos
tambores. Os atores dividem-se em dois
grupos: os indígenas e, à Ufll3 distância
aproximada de vinte metros, os espanhóis.
4. O drama: a versão popular Os indígenas usam fantasias. Aqueles que
da conquista fazem o papel de espanhóis llsam capace
tes semelhantes aos do tempo da conquista
Até os dias atuais, os indígenas do Peru, e annaduras da época da independência,ou
Guatefll3l a e México encenam peças tea uni fonnes do exército atual; estão affil3dos
trais contendo recitaçÕes, cantos e danças de sabres, bastôes e fuzis de caça.
sobre o tefll3 da conquista. Estas peças Na Guatemala, é exaltada, numa parte
constituem-se em fontes, não apenas para do d rafll3, a atuação de Tecum Uman, herói
deslindar a intelPretação indígena da con nacional que liderou a resistência aos espa
quista, mas também para avaliar suas for nhóis. Todos llsam máscaras,sendo que as
mas de resistência; ainda, para tentar ex máscarns indígenas trazem um sorrlso,en
trair elementos acerca da visão destes gru quanto as espanholas, com longos narizes,
pos ante a dominação num sentido mais têm um semblante fecbado. Os atores
amplo, sem esquecer o contato que oos usam fantasias e adereços fll3i s trabalha
proporcionam com a sua riqueza simbóli dos do que aqueles do Peru. A popularida
ca. As peças apresentam alguma influência de desta manifestação é tafll3nha que con
hispânica, em quantidade variável, reve tribuiu para o crescimento de um ativo
lando a circularidade cultural; existem ver artesanato no país. Confeccionam-se tra
sões em que esta presença di ficilmente será jes, máscaras e outros acessórios em ofici
identificada. nas especializadas. Desenvolve-se, igual
Estas obras foram transmitidas oral mente, um comércio bastante intenso.
mente, remontando ao século XVI. Desde No Peru, a variação fll3is rica e expres
então o tefll3 já constava do teatro indíge siva da visão indígena sobre a conquista é
na, segundo o testemunho de Las Casas. a que apresentamos abaixo, que resume a
Sua transcrição data apenas do século XIX. primeira parte da ''Tragédia de Atabualpa":
ESllJOOS HISTóRICOS - 199V1
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cana, também ocorrem os sonhos premo resumiras tarefas neressárias ara o preen
i
nitórios. Na primeira, o velho rei Quicbé chimento de uma condição.2
mostra grande temor, após sonhar com a Ressalta-se, também, a presença de ele
sua própria morte que se seguiria à chegada mentos de fundamental importância para
de homeM com armas mágiCls, Seus fi tais grupos: os simbolos e os mitos, estes
lhos recomendam a resistêllCia, da qual se
últimos expressões de formas de vida, de
encarregará Terum. Quicbé confia seu es
estruturas de existêocia, ou seja, de parâ
tandarte a Tecum, que recebe o apoio dos
metros que permitem ao home.n inserir- se
demais caciques e promete vencer os espa
na realidade. Deles se utilizam na decifra
nhóis. Thcum, por sua vez, terá um sonho
inquietante, na véspera do combate. Uma ção dos mistérios do mundo, o que lhes
pomba a serviço dos espanhóis vence o seu permite a leitura de sua realidade social.
exército; ele se vê levado três vezes pelos Dessa forma, apoderam-se de seu ambien
ares, cai as três vezes, e seu coração cinde te natural e social, sentindo-se parte inte
se em duas partes sangrentas. grante deste mundo. Nas sociedades pré
O espanto com relaçãt> aos espanhóis industrializadas o mito é, portanto, uma
apresenta-se aqui muito atenuado, mani realidade viva e infIuellCiadora do compor
festando-se em duas curtas passageM. Na tamento individual e coletivo.
primeira, esse espanto fica explicitado
Na segunda parte da ''Tragédia de Ata
quando é dito que os príncipes, filbos de
hualpa":
Quicbé, Uas.�ombram-se ante seu estranho
semblante". Na outra, é evidenciado o me
Celebram-se ellCOntros preliminares
do experimentado por Quicbé com relação
entre índios e espanhóis. Uma primeira
ao raio dos ufilhos do sol", ou seja às suas
entrevista reúne HuayUa Huisa e Alrna
armas. Através dessa expressão , verifica
gro. O sacerdote pergunta a este último
se que os consideram deuses.
por que os home.lS barlJUdos invadem o
Na "Dança das plumas", Montezuma
pa�. Como resposta, Almagro só move
sonha com alguM dos presságios contidos
os lábios. Felipillo traduz estas palavras
em documentos mexicanos do século XVI
silenciosas e declara que os espanhóis,
que se referem à conquista: "as águas cres
enviados pelo Senhor mais poderoso da
cem e se elevam até o céu; uma estrela
terra, vieram em busca de ouro e prata.
desconhecida brilha durante a manhã; uma
Aparece então o padre Valverde, que o
águia tenta penetrar no palácio". Os seus
interrompe: os espanhóis vieram para
vass.alos advertem-no de que ua tem, a
dar a conhecer o verdadeiro Deus. Fi
áglla, o céu e os astros anuociam o fim do nalmente, Alrnagro entrega ao adivinho
seu Império". Montezuma, porém, armna uma carta para Atahualpa.
que não perdeu a esJl:'rança e diz ter o Desenvolve-se, a partir daí, uma longa
mundo em seu poder. série de episódios, rujo único tema é a
A utilização do sonho como veículo estupefação e a incompwensão dos ín
para previsão dos acontecill-.zntos, uma dios ante a misteriosa "Colha de milho"
coMtante nesses dramas, não revela gran que Alrnagro envia ao Inca. A carta
de distAocia da concepção junguiana; se ci/CUla de mão em mão, porém ninguém
gundo ]ung, os sonhos possuem um aspec pode decifrar sua muda mellS3gem. Fra
to prospectivo, ''uma antecipação incons cassam sucessivamente Atahua·lpa,
ciente da realização consciente futura". HuayUa Huisa, e alguns dos seus gene
Podem não presoagiar ou desafiar, mas rais como ChallkLochima e Kishkis. Por
52 F.S1UJX)S HIST'ÓRIa:>s -199m
ordem do Inca, Huaylla Huisa cai nova nas quanto ao autoritarismo da Igreja na
mente em sono profundo. sua pretensão de evangelizar as massas.
Um último encontro preliminar reúne Por outro lado, a resposta de Almagro de
Sairi Túpaj e Pizam>. Atabualpa confia monstra a denúncia do índio ante à rapina
a seu emissário os emblemas reais (fun cometida pelos espanhóis na sua ânsia de
da, acha e serpentes de ouro). Sairi Tú rique7JIs. Aliás, esta visão do comporta
paj ameaça Pizam> e o intima a deixar mento dos conquistadores ante à presença
o país. Pizarro "só move os lábios"; de riquezas pode ser constatada em outros
Felipillo traduz que os espanhóis vie depoimentos: "Como se fossem macacos,
ram para levar Atahualpa, ou sua cabeça levantavam o ouro, faziam trejeitos de sa
ao Rei de Espanha. Sairi Túpaj não tisfação, era como se lhes renovasse e se
compreende e sugere a Pizam> que ele lhes iluminasse o coração". De deuses pas
3!
mesmo fale a Atabualpa. Depois de Sai sam a ser vistos como animaisl
ri Túpaj retomar ao palácio, Atahualpa Uma nota a acrescentar diz respeito à
decide reunir seus guerreiros a fim de simetria no relacionamento dos incas com
30
expulsar os invasores. os espanhóis. futo na atitude do sacerdote
ao questionar Almagro sobre a invasão,
Um aspecto fundamental, apresentado como na intimação de Sairi Túpaj a Pizam>
neste trecho, re(ere-se à barreira na comu para abandonar o país, fica claro, na repre
nicação entre elementos de culturas tão sentação do drama, que os indígenas não
díspares. Tal fato é simbolizado, através se subestimavam ante o invasor.
das respostas mudas dos espanhóis aos Finalmente, na última parte da "Tragé
questionamentos dos Ú1dios, na qual aque dia de Atabualpa", ocorre:
les limitam-se a "mover os lábios". No
episódio da carta, a "folha de milho" que a irrupção de Pizam> no palácio de Ata
passa de mão em mão, também fica sim hualpa (em Oruro e Toco, os espanhóis
bolizado esse fato. O choque das culturas se precipitam disparando suas armas de
também manifesta-se na falta de com fogo). O Inca resiste e ameaça Pizarro.
preensão do e missário de Atahualpa em Este, movendo sempre os lábios (e tra
relação à pretensão dos espanhóis de "levar duzido por Felipillo), intima o Inca para
Atahualpa, ou sua cabeça, ao Rei de Espa que o siga até Barcelona. Atahualpa
nha". O Inca era, aos olhos de seus súditos, muda bruscamente de atitude e se ren
o todo poderoso Filho do Sol, principal de: os espanhóis lhe atam as mãos e o
intermediário entre deuses e homens, nu coro lamenta a sua sorte. Atabualpa ofe
ma posição superior inclusive à do Grande rece a Pizam> ouro e prata, numa quan
Sacerdote. Uma presunção desta natureza tidade que cubra a planicie até o limite
se afigurava impensável! do tiro de sua funda. Pizarro exige que
A cobiça dos espanhóis, tão marcante se recubra toda a planície. Atahualpa
na conquista, é expressa pela resposta de indigna-se, porém logo aceita tudo
Almagro de que a razão da invasão do país quanto se lhe exige e suplica que não se
era a busca de ouro e prata. O padre Val lhe tire a vida. Pizam> recusa.
verde reage, sintomaticamente, a esta res A tragédia alcança seu ponto culminan
posta. lntem>mpe Almagro dizendo que os te. Atahualpa despede-se dos seus, lega
espanhóis vieram, na verdade, para fazer seus emblemas reais às princesas e seus
co nhecer aos indígenas o verdadeiro Deus. dignitários. Seu filho Inlcaj Churin quer
.. Tal afinnação levada a efeito de fonna morrer com ele; Atahualpa o faz prome
arrogante denota a percepção dos indíge- ter que se retirará para Vilcabamba com
o DIlAMA DACONQU1STA NA FESTA 53
seus fiéis e não reco nhecerá a domina como reveladora dos segredos da criação
ção espanhola; um dia, seus descen do mundo, Atabualpa "pegou-a, abriu-a,
d e n t e s p e r s e g u i r ã o o s i n i mi g o s olbou-a de todos os lados e a folbeou".
barbudos recordando que este país foi o Dizendo queo livro nada lhe falava,jogou
de Atabualpa, seu pai e único Senhor. o no chão. O Padre Vicente, como ocorre
Atabualpa volta-se conb'a Pizarro e lan no t recho acima, exige vingança. Esta não
ça-lhe uma maldição: ficará eternamen se fez demorar, e o Inca te rmina por ser
te mancbado por seu sangue e os súditos preso.32
do Inca jamais o respeitarão. O padre A cobiça dos espanhóis tem, igualmen
Valverde exorta Atabualpa para que te, espaço privilegiado no espisódio do
aceite o batismo e confesse seus peca resgate. O seu valor teria sido fabuloso,
dos. O Inca não compiOende. O padre conforme muitos bistoriadores o atestam.
Valverde apresenta-lhe a Bíblia; "Não Duas das principais fontes da extrema vio
me diz absolutamente nada", diz Ata lência do conquistador, a intolerãncia pela
bualpa. O padre Valverde o amsa de religião do outro e a ambição desenfreada,
blasfemo e exige seu C3stigo, porém lhe são aqui desnudadas?3
administra a extrema-unção. Pizarro Aatitude digna de Atabualpa, sem qual
atravessa Atabualpa com sua espada. quer b'aço de sub missão mesmo nos piores
Seguem-se lamentações do coro e dos momentos, é outro aspecto que extravasa
súditos do Inca: o mundo inteiro parti da representação. Pode-se verificá-lo atra
cipa na morte de Atabualpa. O coro, por vés de alguns episódios como a exortação
sua vez, lança uma maldição contra Pi- a seu filbo para resistir aos espanhóis; a
13rro. A cena final reúne o Rei de Espa rnaldição que lança a Pizarro e a sua rejei
nha e Pizallo: este oferece ao seu ção l Bíblia,já mencionada. lãl atitude não
soberano a cabeça e o [Iouru deAtabual teria se distanciado da realidade, contra
pa. O Rei de Espanha se indigna com o pondo-se à de Montezuma. Este teria se
crime, elogia o Inca e anuncia que Pi- mostrado besitante e subserviente, não
13rro será castigado. Este maldiz sua opondo resistência a Cortez.34
espada e o dia que o viu nascer. Logo O a lcance cósmiCo do assasinato s do
cai por terra morto. Inca também fica insinuado no drama em
foco. O Império desmoronou, uma vez que
Alguns dos temas aqui se repetem e, ele assegurava a barmonia universal. O fi
lIlesmo, se acentuaOL A incomunicabilida lho do Sol "protegia seus súditos com sua
de entre índios e espanhóis, símbolo do sombra, fazia falar as montanhas e seu s0-
abismo entre as dllas culturas, está presente pro punha o mundo em movimento". Per
no jogo cênico do movimento dos lábios deram aqueles s"as referências, lamentan
realizado por Pizarro, como também no do o terrfvel acontecimento que desestrutu
episódio da Bíblia. rara sllas vidas. Só o retorno do loca poderá
onde chega a tua insolência!" Inicia-se a Montezuma deve ter sido um homem
batalha. Cortez é vencido e se rende. Mon fraco e de pouca coragem, para ter se
tezuma o encarcera, porém recomenda que deixado prender assim e, mais tarde,
seja tratado com respeito. Cortez reconhe preso, por nunca ter tentado fugir, mes
ce sua loucura e deseja a morte. Porém mo quando Cortez lhe oferecia a liber
Montezuma o indulta e é liberado. Cortez dade e seus próprios h om e n s
agradece o gesto de Montezuma e lhe su suplicavam que a aceiCaS5e.
plica o seu perdão?9
Realmente, temos a conquista do Méxi Conclui que este:
co pelo avesso, recurso muito presente na
cultura popular. Aqui, porém, não aparece o u era muito sábio, passando pelas coi
a irreverência que também lhe é típica. O sas assim, ou tão néscio que não as
resultado é a reconciliação entre índios e sentia.40
espanhóis, sob a superioridade indígena.
Justamente, o inverso da realidade. Embo Na verdade, os signos pnderiam em
ra os fatos históricos aí estejam presentes, muito ter contribuído para tal comporta
estes são recriados, segundo uma outra mento, na medida em que talvez tenham
juslificado um certo fatalismo por parte
lógica. A "Dança das plumas", uma das
dos indígenas. Embora, em face dos des
variaÇÕes do drama relativo à conquista do
mandos dos espanhóis, grande parte dos
México, revela-se o oposto da "Tragédia
dirigentes astecas tenham passad o a pregar
de Atahualpa". Nesta, como vimos, predo
e a travar uma luta encarniçada com os
mina a hostilidade entre fudios e espanhóis
invasores, cbamando-os de bárbaros, der
e, ao final, observa-se uma situação de
rubando-os do pedestal de deuse�. E este
inferioridade indígena, embora prefigu
sentimento se manteria, através dos tem
rando uma vitória posterior de Atahualpa.
pos, perpetuando-se na sua memória. A tal
A inversão aqui presente significaria uma
ponto que, ainda hoje, assiste-se a uma
forma simbólica dos indígenas se compen
representação em que Montezuma é mos
sarem do comportamento sub misso de
trado como um herói a �errido e Cortez
Monteruma? Este comportamento foi con
aparece servil e inglório. 1
siderado inexplicável por alguns dos cro
nistas e outros testemunhos espanhóis do
momento, e constrangedor para os ú,dios.
A fragilidade demonstrada por Monte
ruma frente aos espanhóis, conJO se prefe 5. Considerações finais
risse não usar seu imenso poder, é assim
comentada por Gomara, capelão e biógra A manutenção pelos indígenas de gran
fo de Cortez: de parte de Sllas tradições, entre elas as
representaÇÕes por nós focalizadas, cons
Nossos espanhóis nunca puderam saber titui-se em algo digno de nota. Vivendo na
a verdade, porque na época não com área correspondente aos grandes impérios
preendiam a lingua, e, depois, já não pré- colombianos, os indígenas sofreram,
vivia nenhuma pessoa com quem Mon da parte dos espanhóis, um controle que
tezuma pudesse ter compartilhado seu estes pretendiam total, no qual a violência
segredo. foi a tônica. A reação a esta dominação
fez-se se)ltir de múltiplas formas; não ape
Em alguns momentos o despreza: nas através de revoltas, mas também de
56 ESnmos HlSTóRlCXlS - 1!>921'l
outros tipos de resistência. Em grande me pai para filho. Cabe-lhe ensinar a repre
dida, os indígenas faziam das aÇÕC5 rituais, sentação aos atores; decidida a encenação
das representações, das leis que lhes eram pelos habitantes de uma determinada loca
impostas, algo diverso do que o conquista lidade, estes chamam-no e retribuem seus
dor pensava obter. Eles as subvertiam, não serviços. Pagam-lhe as aulas e o aluguel
rejeitando-as ou mudando-as, mas utili das fantasias. A função de organizador da
zando-as com fins e em função de influên encenação, por outro lado, implica nume
cias estranhas ao sistema do qual não po- rosos gastos: a hospedagem do " mestre" a
d·13m fuglf.
' 42 rcalizaç.ão em sua casa dos ensaios e o
Na aparência, aceitavam as normas im fornecimento de bebida e alimento para os
. . 44
postas pelo colonizador, mas na intimidade partIcIpantes.
do seu cotidiano mantinham seus valores, O espetáculo se constitui numa fonte de
suas práticas, crenças. Dessa forma, obser significativa importância para detetar a vi
va-se a persistência signi ficativa de sua são dos popula res sobre os acontecimentos
cultura, entremeada por elementos de ori e personagens da conquista, em que pese a
gem hispânica, configurando uma inter influência espanhola que modificou mais
pretação cultural. A presença até os dias intensamente o texto de algumas versões .
atuais destas dramatizações configura este De qnalquer forma, através de um cotejo
fato, assim como a eficácia da resistência, com outras fontes, podemos realizar uma
levada a afeito por aqueles segmentos. decantação das respectivas matrizes.
Wachtel considera que esta presença Emerge destes textos uma atitude de admi
revela o trauma provocado pela conquista, ração e respeito com relação aos soberanos
cujos efeitos se fazem sentir sobre os ín indígenas. Estes são dignos, firmes, na sua
dios até hoje. Tal acontecimento estaria rejeiçao às exigências dos conquistadores.
ínscrito profundamente em suas estruturas Recusam com vccmência a imposição da
mentais, constituindo-se num vestígio do religião cristã, sempre defendendo as sllas
passado no presente.43 crenças, ao preço de suas vidas. AlguM
Este autor parece conceber o fato de deles têm sua postura confirmada por ou
modo tradicional, vendo tais manifesta tros documentos. Tal é o caso de Atahualpa
çóes como relíquias. Na verdade, a persis e de Tecum. No tocante a Montezuma,
tência dos acontecimentos da conquista na como já vimos, é realizada, numa das ver
memória popular não exclui o fato de que sões, uma invers.'io total no que tange ao
os seus sig.úficados foram sendo atualiza seu comportamento ante os espanhóis.
dos em função das mudanças no contexto Apenas um deles, o rei Quiché na Guate
mais amplo; pois qualquer que seja a ori mala, desde o início é apresentado como
gem e o seu simbolismo manifesto, este é temeroso, claudicante. Sintomaticamente,
adaptado para um novo fim. ao fiml da "Dança da conquista", ocorre
. - . .
Deve-se destacar a organização criada sua apoteohca oonversao ao cnsllarusmo,
.. .
1989, p.25; Oro F.S. Cardoso, A crise da uni· (1530-1570), Madrid, Alianza Editorial, p. 63 el
versidade ocidOlJal, Niterói, UFF, Dep� de His passlm.
•
7. Carla Ginzburg, O queijo eos vermes, São colonização da América Espanhola, São Paulo,
Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 17. Ática, 1992, p. 38.
8. Idem, ibidem, p. 21. 28. N. Wacblel, op.cit., p. 74,76, 82.
9. E.P. Thompson, A formação da classe 29. Andrew Samuels et aI., Dicionário críti
operária inglesa, vaI. 1, São Paulo, Paz e Terra, co de análise junguiana, Rio de Janeiro, Imago,
1987, p. 10. 1988, p. 208.
10. Idem, ibidem. Ver também "Folklore, 30. O texto do drama em fooo enoontra-se na
antropologia e história n, Entrepassados,Ano U, obra já citada de N. Wacblel à p. 67.
rP 2, Buenos Aires, 1992, p. n. 31. O comportamento de Pizarro e seus com
17. Natalie Zemon Davis, Cu/Juras do povo, qual se refere o trecho, equivaleria a meio século
São Paulo, Paz e Terra, 1990, p. 87. de roda a produçáo européia. Henri Favreafirma
que transformado em moeda atual, chegaria à
18. Mik,hail Bakhtin, A cu/Jura popular na
cifra de rem milbões de dólares. Tais observa
Idade Média e no RenascimenJo; o conlex/o de
çôes encontram-se em Jorge Luiz Ferreira,
François RabeiDis, São Paulo, Hudtec/Ed. Uni
op.cit., p. 41.
versidade de Brasnia, 1987, p. 7.
34. Frei Bartolomé de Las Casas acentua a
19. Idem, ibidem, p. 8.
altivez de Atabualpa frente ao tratamento de que
20. Idem, ibidem,. lhe deu Pizarro em Brevissima relaçdo da da
21. Mona Ozour, "A resta sob a Revolução truição das Indias; o paraíso destruído, Porto
Franc(ss" em História: 110\.108 objetos, Rio de Alegre, LPM, 1984, p. 98. No tocante à hesitação
Janeiro, Francism Alves, 1976, p. 230. e debilidade de Montezuma ante aos espanhóis,
22. José Alvaro Moisés, Reflexões sobre o ver Tzvetan Todorov, A conquista daAINérica;
estudo do populismo na América Latina, Nite a questão do outro, São Paulo, Martins Fontes,
rói, p. 10 (mimeo). 1988, p. 54; também, Josefina Oliva de CoII,
23. Nathan Wacbtel, Los vencidos; los in op.cit., p. 67.
,
dias dei Perú frente a la conquista espaiiola 35. N. Wachlel, op.cit., p. 69.
o DRAMA DA mNQUlSTA NA FESTA 59
36. O Chilam Balam de Chumayel é uma 41. Todorov faz um brilhante tratamento do
obra maia, coostaooo de vári05 1i\lTOS com textos comportamento de Montezuma, relaciooaodo-o
que datam do século XVI, embora tenham sido com os signos próprios à cultura asteca. a partir
.