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BA Rater See Teen aE aT Circe Bittencourt auténtica Cotec¢ao Hisroria pA Epucacao Circe Bittencourt Livro didatico e saber escolar 1810-1910 auténtica Copyright © 2008 by Circe Bittencourt CCOORDENADORADA COLEGAO Luciano Mendes de Faria Filho - lucianomff@uol.com.br CCONSELHO EDITORIAL Ana Maria de Oliveira Gaivao (UFMG); Carlos Eduardo Vieira (UFPR); José Goncalves Gondra (UERJ); Jorge Carvalho do Nascimento (UFSE); Luciano Mendes de Faria Filho - Editor (UFMG); Rosa Fatima de Sousa (UNESP-Araraquara) { con my Alberto Bittencourt EDITORAGAG ELETRONICA, Eduardo Costa de Queiroz (Saitec Editoracéo) REvisAo Tucha (Saitec Editoracao) Todos os direitos reservados pela Auténtica Editora, Nenhuma parte desta publicacio poderé ser reproduzida, seja por meios mecdnicos, eletronicos, seja via copia xerografica, sem a autorizacio prévia da editora, Aurénmica Eorrora Lroa. Rua Aimorés, 981, 8° andar. Funcionérios 30140-071 . Belo Horizonte . MG Tel: (55 31) 3222 68 19 Tewevenoas: 0800 283 13 22 ‘www.autenticaeditora.com.br DOACAO PARA UNIRIO-Biblioteca@ UR NO Registro: 23644 Preco:i0,00 RECON : 20/08/2010 lo, PWHA 93 bz Dados Internacionais de Catalogacéo na Publicagéo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Bittencourt, Circe Livro didatico e saber escolar (1810-1910) / Circe Bittencourt. — Belo Horizonte : Auténtica Editora, 2008. — (Historia da Educagao) Bibliogratia, ISBN 978-85-7526-358-7 1. Educagao - Brasil - Historia 2. Educagao e Estado - Brasil 3. Livros didaticos - Avaliacao 4. Livros didaticos - Brasil 5. Livros didéticos - Hist6ria 6. Politica e educacéo |. Titulo. Il. Série, 08-0904 cbp-371.320981 Indices para catélogo sistematico: 1, Brasil : Livros didaticos : Educagao 371.320981 Esta historia do livro didatico é resultado da tese de doutorado cuja defesa ocorreu no inicio de 1993, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas da USP, de Sao Paulo. A elaboracao de uma tese possui sempre uma histéria na qual varios persona- gens participam direta ou indiretamente e, esta nao foi diferente. Foi permeada de mui- tos encontros que se transformaram em amizades. O apoio financeiro concedido pela bolsa do CNPq foi essencial para a pesquisa em Paris, onde contei com a acolhida do professor Fréderic Mauro, que me recebeu no Institut des Hautes Etudes de 1’ Amérique Latine, possibilitando contatos com pesquisa- dores e arquivos. Na Sorbonne, 0 apoio constante e a amizade de Katia de Queiroz Mattoso foram fundamentais para o delineamento da pesquisa. O caloroso entusiasmo pelo trabalho e as sugestdes bibliograticas e metodolégicas do professor Jean Glénisson permitiram 0 encaminhamento do trabalho na Franga e posteriormente no Brasil. Agra- dego a André Chervel pelas importantes contribuicdes iniciadas no Institut National de Recherche Pédadogique de Paris e continuadas quando de sua estadia na USP. Também no INRP, a colaboragao de Alain Choppin foi fundamental para as descobertas do mundo editorial dos livros didaticos. Meus agradecimentos se estendem a amigos e colegas da Faculdade de Educacao da USP e, em especial, os do Departamento de Metodologia do Ensino e Educagao Comparada, No decorrer da pesquisa, ficam ainda comigo muitos dos momentos de conversas e das sugestoes que tive da professora Elza Nadai, com quem compartilhei a vida docente e de pesquisadora durante seus tiltimos dez anos de trabalho. No Departa- mento de Historia da USP, contei com o apoio fundamental de amigas que me apoiaram novamente na realizacdo de um trabalho educacional, De forma especial, agradeco & Sylvia Basseto, leitora critica, que compartilhou as angistias e diividas que permearam a construcio desta pesquisa e a Raquel Glezer, que mais uma ve acreditow e confiou no trabalho, incentivando e enriquecendo-o em todos os momentos. E agradeco aos editores, especialmente a Luciano Mendes de Faria Filho, a pos- sibilidade de tornar este trabalho disponivel depois de tantos anos passados de sua elaboracao. O tema ~a histéria do livro didatico brasileiro - era ainda pouco explo- rado ¢ ainda em momento inicial de reconhecimento como objeto de pesquisa na historia da educacdo. Embora muito tenha sido debatido e produzido sobre os livros escolares, creio que esta publicacao ainda possa oferecer contribuigdes mesmo com as ressalvas de que os referenciais aqui apresentados sio ainda do final da década de 1980 e inicio da década de 1990. Assim, esta publicagao mantém o texto quase que em sua integralidade e espero que possibilite reflexdes sobre a escola em suas miiltiplas di- mensoes e problemas. Sumario Prefacio Introdugao .. 1* Parte — Literatura escolar e Estado Capitulo I - Livro didatico e construgao do saber escolar Concepgées e projetos de redacao do livro didatico Concep¢ées iluministas do livro didatico Planos de redacao dos livros escolares.. Livros didaticos e concepsées de ensino .. Instrucdo para quem? Livros de leitura e ensino elementar .. Livros e compéndios para o ensino secunditio.. Vigilancia e controle da produgao didatica . Legislacao sobre os livros escolares... Vigilancia dos Conselhos de Instrugao Capitulo II—Estado e editoras: confecgao e difusto da produgao didética. Editoras e poder institucional Nascimento das editoras de livros di Editoras nas provincias.... Comercializago do livro didatico ‘A “carne” da produgao de livros Estratégias de produgao e venda ... Divulgaco oficial da literatura escolar Politica de distribuigao de livros Bibliotecas escolares e exposigies pedagégicas 2s Parte — Livro didatico e disciplina escolar Capitulo III — Livros didaticos e ensino: da Histéria Sagrada a Hist6ria Profana. ‘A Historia nos programas curriculares: constituig4o de uma disciplina Hist6ria nos programas curriculares do ensino secundatio ... Historia nas escolas elementares e profissionais . Da Historia Sagrada a Hist6ria Profana . Historia Sagrada nos livros didaticos . Moral profana e livros de Instrugao Civica... Confrontos na produgao didética: Hist6ria Universal ou Historia da Civilizagao’ O predominio dos franceses na Historia Universal... Divergencias entre os autores de Historia da Civilizagao . Capitulo IV — Hist6ria do Brasil nos livros didaticos... Autores e compéndios de Histéria do Brasil... Militares e Historia nacional Os sécios do IHGB ea Historia oficial do Brasil Expansio da produgao .. Temas periodizagao da Historia do Brasil Cronologia e “her6is nacionais “Nacionalismos” nner A nogio de tempo e espago nas obras do conego Fernandes Pinheiro e de Joao Ribeiro O tempo sagrado na obra do conego As temporalidades da Historia do Brasil de Joao Ribeiro... 165 . 167 3* Parte — Usos do livro didatico.... Capitulo V —Livros didaticos e professores ... Mestres normalistas ou leigos? Primeiras Escolas Normais .. Condigées de trabalho dos “mestres de primeiras letras Mestres ¢ livros . Professores secundérios: leitores e escritores .. . 178 Professores dos liceus.. . 178 Professores-autores... 181 Didlogos dos autores com os docentes . 183 Metodologias do ensino . . 183 A imagem do professor e da escola m nas obras didaticas 186 Capitulo VI — Livros didaticos nas salas de aula 191 ‘Métodos pedagégicos e formas de leitura .. 193 Exercicios e conceitos de aprendizagem 193 llustragbes eaprendizagem . . 196 103, 207 . 207 210 25 217 A “memorizagdo” no processo de aprendizagem Salas de aula e praticas de leitura.. Imposigdes de normas de leitura Lereescrever........ Transgressoe Algumas consideragées finais Referéncias 223 Prefacio Sob uma aparente banalidade e uma familiaridade enganadora, o manual escolar € um objeto complexo. Trata-se de um produto cultural cujas fungdes so plurais': instrumento iniciatico da leitura, vetor lingiistico, ideolégico e cultural, suporte — du- rante muito tempo privilegiado - do contetido educativo, instrumento de ensino e de aprendizagem comum a maioria das disciplinas. Mas é também um objeto manufatura- do, amplamente divulgado em todo 0 mundo, cuja producao e difusao se inscrevem em uma logica industrial e comercial. A hist6ria do livro e da edicao escolares foi durante muito tempo negligenciada pelos pesquisadores apesar do papel que, pelo menos ha dois séculos, tem-se atribuido aos manuais na formacao das mentalidades coletivas, e apesar do peso econdmico representado por esse setor da atividade editorial. Foi apenas na década de 1960, mas, sobretudo, a partir da década de 1980 que se manifesto um interesse crescente por esse campo de pesquisa em varios paises, dentre os quais os Estados Unidos, a Alemanha, 0 Japao ¢ a Franca figuram como precursores. No entanto a multiplicidade das aborda- gens possiveis faz com que os estudos histéricos — assim como os que nao o sao — focalizem em geral um ou outro aspecto particular do manual: dessa forma, a produgao cientifica mundial aparece muito heterogenea e consiste, essencialmente, em artigos iso- lados, 0 que torna ainda mais dificil delimita-la. Se retomarmos a categorizagao proposta pelo teérico alemao Peter Weinbrenner, a maioria dos estudos destinados historia do manual escolar interessa-se, com efeito, apenas pelo préprio produto, e de modo mais particular pelo seu conteiido — sempre textual, as vezes iconografico e excepcionalmente paratextual; aqueles que se interessam. \ CE. LEBRUN, Monique (Dir.). Le manuel scolaire: un outil & multiples facettes. Québec: Presses de PUniversité du Québec, 2006. 356 p. ICO F SABER ESCOLAR— 1810-1910. pelas diversas etapas do processo que faz com queo manual chegue definitivamente as mios dos alunos s4o ainda menos numerosos; aqueles, enfim, que tratam, sob uma perspectiva histérica, da questao do uso dos manuais e de sua recepgao sio, de longe, os mais raros.’ Quanto as monografias que apresentam sinteses histéricas nacionais, se- jam elas fruto de um trabalho coletivo ou resultantes dos esforgos de um pesquisador isolado, sdo ainda hoje raras em todo o mundo e, em geral, incompletas. No comeco da década 1990, enquanto a questo da qualidade dos livros didaticos colocava-se com particular acuidade no Brasil, suscitando abundante literatura no cam- po didatico, a historia do livro escolar permanecia uma 4rea quase inexplorada.’ A producao historica resumia-se, essencialmente, a elgumas passagens nas obras destina- das & historia geral do livro no Brasil e a um pequeno ntimero de estudos que aborda- vam, de maneira fragmentaria e quase sempre alusiva, as recentes evolugdes dos manuais escolares de uma dada disciplina. Em 1993, a historiadora Circe Maria Fernandes Bittencourt defende, na Universi- dade de Sao Paulo, a tese intitulada Livro Didético eConhecimento Histbrico: uma histéria do saber escolar — a primeira tese de doutorado que fez da hist6ria do livro escolar brasileiro seu objeto de estudo. E também, ainda hoje, um dos raros trabalhos de sintese jamais realizados no mundo sobre a hist6ria do livro escolar e, com certeza, um dos mais completos e bem-sucedidos. Circe Bittencourt adota uma perspectiva ao mesmo tempo diacronica e holistica: ela se dedica a estudar o conjunto dos processos que interagem na concep¢ao, elaboragao, produgao, difusdo, utilizagdes e recepgao dos manuzis escolares de hist6ria, e também dos manuais de leitura, destinados ao ensino primario esecundario a partir da emergéncia de uma literatura escolar nacional no Brasil. Dizer que se trata de uma reflexio sobre o papel que teve olivro didatico na construcao do saber escolar e na constituigao de uma identida- de nacional, como o titulo poderia deixar pensar, seria por demais redutor. A autora tem 0 cuidado de restituir as diferentes evolucdes em seus contextos politicos, sociais, culturais, mas também econdmicos, nao deixando de articular a parte do nacional aquela das diversas influéncias estrangeiras, francesa principalmente, que se exerceram nos campos epistemolégico, didatico ou editorial. O estudo se organiza em torno de trés grandes tematicas: 0 papel do Estado na constituicio de uma literatura escolar nacional, a emergéncia da historia como disciplina escolar constitutiva da nagao €, enfim, as utilizagées do livro escolar. Quatro observagdes merecem ser feitas para esclarecer o leitor sobre as principais contribuigoes desta obra. > Cf. WEINBRENNER, Peter. Kategorien und Methoden filr die Analysewirtschafts ~ und sozialwissens- chafilicher Lehr ~ und Lernmittel. Internationale Schulbuchforschung. Zeitschrift des Georg-Eckert Insttuts,v. 8, n. 3, p. 321-337, 1986, * CE. GALZERANI, M. Carolina et al. Que sabemos sobre livro didatico: catélogo analitico. Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 1989. 234 p. Trinta ocorréncias (mas, na verdade, 25 titulos) de um total de 426 estdo indexadas na rubrica “Historia do livro didatico’. Sublinhamos, primeiramente, a importincia que Circe Bittencourt atribuiu a0 contexto politico e institucional no qual se constituiu a literatura escolar brasileira: écom uma anilise detalhada das evolucdes da politica do livro escolar no Brasil, dos projetos abortados, dos debates de idéias e também das efetivas realizagoes, que ela inicia seu livro. A autora faz uma obra pioneira no Brasil ao considerar, com razio, que sao 0s contextos legislativo e regulamentar que, além de definirem os contetidos ou os métodos de ensino eas modalidades praticas de sua implantagao, condicionam tanto a existencia € a estrutura de um setor editorial privado quanto as estratégias das empresas ¢ a natureza de suas produgdes. Como os contetidos dos manuais de historia do Brasil, que constituem uma produgao editorial necessariamente original, e também aqueles dos manuais de leitura que prolongam seu discurso contribufram para forjar a identidade da nacao? A se- gunda parte da obra aborda, essencialmente, a relagao entre a hist6ria da disciplina e dos manuais escolares e, de modo mais preciso, a constituigao da hist6ria do Brasil como disciplina autonoma, ao mesmo tempo laica e nacional. Se a problematica em si nao era verdadeiramente nova,‘ a andlise 4 qual se entrega Circe Bittencourt para 0 Brasil era inédita. A autora, que se apoia em um corpus documental de mais de qua- renta manuais publicados no Brasil entre 1831 ¢ 1910, interessa-se, sobretudo, pelos autores e pelas evolugdes ligados a tematica, aos “herdis” nacionais e & concepgao do tempo ¢ do espaco histéricos Notamos, em terceiro lugar, o interesse atribuido aos usos do livro escolar: como os manuais, cujas condigdes de producao e de difusao ja haviam sido previamente estudadas, foram utilizados pelos professores ¢ pelos alunos, tanto na sala de aula quanto fora dela? Uma questio dificil, pois os “rastros” so ténues, mas uma questo tdo essencial para Circe Bittencourt, detentora de grande experiéncia de ensino, que ela Ihe reserva a terceira e ultima parte do livro, intitulada Usos do livro didatico. Essa é uma iniciativa inovadora, e s6 podemos lamentar que ainda hoje a questao dos usos perma- nega, na maior parte das vezes, negligenciada pelos pesquisadores que se interessam pelos manuais escolares antigos. Trata-se, no entanto, de uma questao incontornavel, pois ela é constitutiva do livro escolar que, como qualquer instrumento, s6 existe pelo uso que dele se faz ou que dele se espera. ‘A tiltima observagio diz respeito as fontes: uma pesquisa com tal envergadura jamais havia sido realizada no Brasil e, na auséncia de estudos nacionais aos quais se referir, a autora tomou o cuidado de consultar a literatura cientifica estrangeira. Mas, para dar conta da situagio local, teve de recorrer essencialmente a fontes primédrias, manuais, revistas pedagogicas, relatorios administrativos, textos legislativos e regula- mentares, catdlogos de editores, contratos ou correspondencia de autores, etc., cuja * CE. por exemplo, KOULOURI, Christina. Dimensions idéologiques de Uhistorcité en Groce (1834-1914): les ‘manuels scolares a histoire et de géographie, Frankfurt am Main; Bern; New York; Paris: Peter Lang, 1988. 612 p (Studien zur Geschichte Siidosteuropas, p. 7). Prerscio, Livro pipArico k SABER ESCOLAR ~ 1810-1910 is} simples localizagao demandou tempo e tenacidade, pois, quando nao haviam desapa- recido, esses conjuntos documentérios ~ as colegdes dos manuais em primeiro lugar ~ cram em geral lacunares ou estavam dispersos e raramente catalogados. Esta pesquisa contribuiu, dessa forma, para evidenciar a necessidade de se constituirem no Brasil grandes instrumentos de trabalho que fizessem o levantamento sistematico do patrimo- nio educativo nacional efavorecessem anilises cientificas. Hoje, o Brasil é um dos paises onde as pesquisas em historia da educacio e prin- cipalmente as pesquisas que abordam a hist6ria do livro e da edigao escolares sao as mais dinamicas. Circe Bittencourt é responsavel, hi varios anos, pela coordenacao do programa “Livres”. Esse programa, que visa reunir ampla documentagao sobre a pro- dugao escolar nacional, conseguiu desenvolver, em especial, um banco de dados que repertoria 0 conjunto dos manuais escolares publicados no Brasil desde 1810, data da instalacdo da Impressdo Régia até os nossos dias, para todas as disciplinas e todos os niveis de ensino. Consultavel on-line, esse instrumento de pesquisa, desenvolvido em parceria com o programa francés “Emmanuelle”, resulta de uma estreita colaboracao firmada entre varias universidades dos Estados de Sa0 Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraiba, Mato Grosso do Sul e Parané.® O livro que o leitor tem em maos é, simplesmente, 0 ato fundador da pesquisa sobre o manual escolar no Brasil. Alain Chopin, Paris, 11 de junho de 2007.” * “A organizasao do acervo de livros didaticos correspondeu a um trabalho semelhante ao do arqued- logo, buscando os objetos escondidos em diferentes ‘sitios” (p. 11 da versio original da tese). * Disponivel em: http://paje.fe.usp.br/estrutura/livressindex.htm. Traduzido do francés por Cristina Moerbeck Casadei Pietrardia, Introdugdo Neste trabalho, aborda-se a hist6ria do livro didatico no processo de constituigao do ensino escolar brasileiro no decorrer do século XIX e primeiros anos do século XX. A proposta é pensar o livro didatico de forma ampla, acompanhando os movimentos que vao da sua concepcao a sua utilizacdo em sala de aula. E uma reflexao sobre o papel do livro didatico na construgao do saber escolar que, por sua natureza, deve necessaria- mente ser considerado em um conjunto mais geral no qual aspectos sociais, culturais, politicos ¢ econdmicos se articulam, conferindo-Ihe dimensio especifica. Livros escolares circulam aos milhdes diariamente pelas maos de professores e alunos. Editoras divulgam novos titulos ¢ reeditam os mais vendidos, dando ao livro didatico proeminéncia na indiistria cultural, A literatura escolar € 0 produto de maior vendagem no quadro atual das editoras nacionais. O livro didatico é assunto polémico, pois gera posigdes radicais entre professo- res, alunos e pesquisadores dos problemas educacionais. Os principais consumidores de livros didaticos, professores e alunos, divergem na avaliacdo do papel exercido por le na vida escolar, Para uma parcela de professores, 0 livro didatico é considerado um obstéculo ao aprendizado, instrumento de trabalho a ser descartado em sala de aula. Para outros, ele ¢ material fundamental ao qual 0 curso é totalmente subordinado. Na pratica, 0 livro didatico tem sido utilizado pelo professor, independentemente de seu uso em sala de aula, para preparagao de “suas aulas” em todos os niveis da escolari- zacao, quer para fazer o planejamento do ano letivo, quer para sistematizar os conteti- dos escolares, ou simplesmente como referencial na elaboragao de exercicios ou ques- tionérios. A escolha do livro a ser adquirido pelo governo para as escolas tem sido, 1nos tiltimos anos, outro aspecto polémico e controverso, assim como todo o processo de avaliacdo que o MEC tem realizado por intermédio do PNLD e, mais recentemente, do PNLEM. we Livko DIDATICo & SaMER ESCOLAR~ 1810-1910 = Entre os alunos, podemos observar avaliagoes divergentes sobre o livro didatico, Parte deles considera o livro como organizador da “matéria”, garantindo o contetido a ser estudado para as provas. Para outros, é apenas um material didatico dentre outros. O mesmo ocorre com os pais que exercem vigilncia para se ter alguma garantia sobre a eficiencia e exercer algum tipo de controle sobre os contetidos escolares fornecidos aos filhos. O livro didatico e sua hist6ria inserem-se, assim, em uma complexa teia de rela- des e de representagoes. (© uso permanente do livro a partir das primeiras escolas do século XIX, integrado ou no a métodos denominados “tradicionais” de ensino. foi o ponto de partida para a andlise deste material didatico aparentemente simples de se identificar, mas de dificil definicao. O livro didatico foi se constituindo como problema a ser desvendado, surgindo constantes indagagdes sobre a pritica escolar que temos vivenciado na nossa hist6ria escolar. A natureza complexa do objeto explica o interesse que o livro didatico tem desper- tado nos diversos dominios de pesquisa. E uma mercadoria, um produto do mundo da edigaio que obedece a evolugao das técnicas de fabricagao e comercializacao pertencente aos interesses do mercado, mas é, também, um depositario dos diversos contetidos educacionais, suporte privilegiado para recuperar os conhecimentos e técnicas conside- radas fundamentais por uma sociedade em determinada época. Além disso, ele é um instrumento pedag6gico “inscrito em uma longa :radigdo, insepardvel tanto na sua claboragdo como na sua utilizagdo das estruturas, dos métodos ¢ das condigoes do ensino de seu tempo” (CxorPin, 1980, p. 1-25). E, sem duivida, o livro didatico ¢ também. um veiculo portador de um sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultura. Tais caracteristicas fazem com que o livro didatico seja objeto de pesquisas diver- gentes. F alvo de criticas contundentes ou de estudos que proclamam sua existéncia como fundamental no proceso de ensino das escolas. Criticada ou elogiada, a obra didética tem se constituido em tema com enfoques variados, em que se destaca uma linha que privilegia avaliagdes de seus diversos contetidos. Nos estudos mais criticos prevalecem andlises dos seus aspectos ideolégicos, ¢ apenas recentemente tém surgido trabalhos que cuidam das questdes politicas que envolvem a produgao, divulgacao e uso dessa literatura didatica.* As divergéncias no tratamento do tema me levaram, em uma primeira instancia, a considerar a possibilidade de conhecé-lo com mais profundidade, acompanhando-o em uma trajetoria mais longa, buscando sua génese. No Brasil, poucos estudos tratam da histéria do livro didatico. Em alguns casos aparecem como introdugdes para outros temas ou surgem como fonte para estudos da evolugao de conceitos em trabalhos sobre a hist6ria de uma determinada disciplina.’ * Entre outras obras, cito FREITAG (1989) e OLIVEIRA; GUIMARAES; BOMENY (1984). " Cf. levantamento feito na publicagao do Catélogo analitico Que sabemos sobre a livro didadtco, realizada or pesquisadores da Unicamp em 1989. Com a preocupagdo de alancar uma dimensio mais ampla do significado do livro didatico procurei situé-lo no contexto da historia do livro. Nos estudos brasileiros destaca-se a obra de Halewell O livro no Brasil (1985), que resgatou a vida dos editores ¢ sua produgao. O livro escolar € nele apresentado em varios momentos, sendo possivel visualizar a importincia do material no conjunto editorial, desde os primérdios da imprensa nacional. A produgio didatica surgiu também em uma importante historia do livro na Franga, a Histoire de l'édition francaise organizada por Roger Chartier e Henri- Jean Martin (1982-1985). Nela o livro didatico apareceu em dois capitulos: o primeiro é referente ao Antigo Regime frances associado ao ensino religioso, 0 outro é dedicado ao século XIX, com o desenvolvimento da escola laica e obrigatéria."” Os organizadores da obra tragaram propostas importantes para a pesquisa histé- rica do livro impresso, produto cultural por exceléncia da sociedade moderna, Destaca- ram a importancia do livro como um elemento de diferenciacao entre os grupos sociais, nao apenas entre as classes sociais, entre dominantes e dominados, mas também indica- dor de oposigées nas proprias elites. Com base nessa formulagao, colocaram a questo sobre as variagdes do ato de ler e a necessidade de se realizar a hist6ria da leitura. Fazer a historia da leitura implica rever o problema do livro e seu carater ambiguo. Proposto, em geral, para cimentar a uniformidade de pensamento, divulgar determinadas crengas, inculcar normas, regras de procedimento e valores, 0 livro pode também criar as dife- rencas porque leitura que se faz nele ou dele nunca é tinica. A leitura de um livro é ato contraditério, e estudar seu uso é fundamental para o historiador compreender a di- mensio desse objeto cultural. Tais elementos se tornaram importantes para esta pesquisa, que passou a ser definida pela insergao do livro escolar na historia da cultura, associando-o a constitui- ao de uma sociedade letrada, procurando determinar claramente seus consumidores. Nese sentido foram sugestivas as obras de Carlo Ginzburg (1987) e de Mikhail Bakthin (1987) que tém por objeto a historia da cultura popular se inter-relacionando ou se afastando da cultura burguesa, & medida que o mundo da leitura e da escrita se expan- diam na sociedade moderna. Seus trabalhos forneceram contribuigdes importantes para a busca de indicios sobre a circularidade da cultura, dos problemas que envolvem a tradigio oral tipica das sociedades pré-capitalistas, na constituigao de um saber que pretende se comunicar por signos impressos em livros. Essa op¢ao de encaminhamento foi reforcada pelos trabalhos de Jean Glénisson (1985) sobre o mundo da leitura infantil e da juventude e os de Leonardo Arroyo, Marisa Lajolo e Regina Zilbermann. Procurei inscrever o tema no conjunto das reflexdes da produgao cultural, especial- mente a literdria, situando o livro didatico na hist6ria cultural, mas de modo a apresentar suas peculiaridades na hist6ria educacional, estabelecendo seus vinculos com a escola. "© Nesta obra os capitulos referentes aos livros didaticos sio os de Dominique Julia, “Livres de classe et usages pédagogiques”, t. 2: Le livre trionphant (1660-1830), p. 468-497, ¢ 0 de Alain Choppin, “Le livre scolaire”, t, 4: Le livre coneurraneé, 1900-1950, p. 280-305. Iyrropucio a espaco escolar esta associado intrinsecamente construgio do livro diditico considerando que a escola é, fundamentalmente, uma instituigdo contraditoria onde dominacio e conflitos convivem no quotidiano de alunos ¢ professores desde sua cria- ¢A0 pelo Estado Nacional. A anilise da escola nesta pesquisa € concebids sob perspectiva de um espaco contraditorio, um lugar de produgao de conhecimento, ¢ néo apenas mera instncia criada pelo Estado para transmitir e reproduzir sua ideologia. Sob essa ética, busca- mos aprofundar as leituras das teorias de Michael Apple ¢ Yvor Goodson sobre a relacdo entre educacao e sociedade, procurando avangar na compreensao dos concei- tos de hegemonia, contradigao e resistencia na instituigao escolar. A escola, lugar onde © conhecimento é produzido e transmitido, além de ser o espaco da reprodutividade da divisio de trabalho, liga-se aos questionamentos sobre qual conhecimento ela produz efetivamente. Procurei, dessa maneira, investigar 0 conhecimento como capi- tal cultural, verificando sua disseminagao em determinado momento da nossa hist6- tia escolar (APPLE, 1989; Goopson, 1983), Essa preocupagao me levou a considerar 0 livro didatico abrangendo aspectos epistemolégicos que envolvem sua construcao. Situei o livro didatico discutindo o pro- blema da claboracdo dos contetidos e métodos das diferentes disciplinas escolares e que sao ligados a uma imagem de pedagogia. O estudo deste objeto nos levou a reflexao sobre os conceitos de disciplina e contetido do ensino escolar, visto que geralmente se aceita a idéia que os contetidos das disciplinas escolares sao meras “vulgarizagoes” do saber denominado erudito, cabendo aos pedagogos criar metodologias para que as ciencias possam ser assimiladas por um publico jovem. O livro didatico e sua historia somaram-se aos problemas do saber escolar cuja esséncia busco definir. Essa reflexao é necessaria uma vez que, frequentemente, o conteti- do dos manuais é confundido com o saber escolar por exceléncia. Trata-se de um conhecimento concebido como cientifico, ou criado com certo rigor em centros conside- rados academicamente como tal e que é proposto de acordo com regras determinadas. pelo poder constituido ou por instituigdes proximas a ele, construindo-se, dessa forma, o saber a ser ensinado difundido pelas disciplinas escolares distribuidas pelos programas e curriculos escolares. © saber a ser ensinado transforma-se em saber ensinado na sala de aula, onde o professor é elemento fundamental tanto nainterpretacao que fornece a esse conhecimento proposto como nos métodos que utiliza em sua transmissdo, com os meios de comunicacao que dispée. Finalmente, para a configuracao integral do saber escolar, temos o saber apreendido, ou seja, o conhecimento incorporado e utilizado pelos alunos de acordo com a vivéncia de cada um deles, das condigdes sociais e das relacdes estabelecidas no espaco escolar. 2 | g A articulagao entre saber académico e o saber escolar nao tem sido abordada em pesquisas sobre a hist6ria das disciplinas, embora tais questdes sejam eventualmente introduzidas sem maiores aprofundamentos e apresentadas com dados pouco siste- matizados. Livro pivatico, a Em proposta mais contundente, André Chervel (1988) contribuiu para uma refle- xo sobre as possibilidades de uma pesquisa sobre a historia das disciplinas escolares de maneira a abrangé-las em toda sua complexidade. Nossa proposta é abordar a consti- tuigdo do saber especifico construido pela disciplina escolar incluindo a anslise do uso que seus diversos agentes fazem dela, Partindo das reflexdes de Chervel, preocupamo- nos em estabelecer dialeticamente o elo entre a escola e sua vida interna com o saber oriundo de fora, trazido por alunos e professores. Acreditamos que uma hist6ria do livro didatico referenciada fundamentalmente na escola auxilia a compreensao do mo- vimento pelo qual é criado um saber escolar, percebendo-se com clareza os limites de intervengao de professores e alunos no proceso de produgao desse conhecimento e questionando qual a liberdade do aluno na apreensao e no uso dele (Ciieavet, 1988). Para vincular 0 livro didatico as questoes epistemoldgicas e situé-lo na pratica educacional, promovendo uma leitura de seus contettdos e métodos, optei por uma tinica disciplina, tendo recaido a escolha sobre a Histéria, visto que nela se realizou minha formagao académica e experiéncia profissional. Para o estabelecimento de uma periodizacao, os critérios desviaram-se dos poucos trabalhos sobre a historia do livro didatico existentes entre nds, especialmente o de Guy de Hollanda, autor de um estudo sobre a bibliografia didética de Historia entre 1931 1956, fundamentado exclusivamente nas reformas dos programas de ensino, privilegi- ando as agdes do Estado (Houtanpa, 1957). Embora as reformas dos programas se constituam, efetivamente, em marcos importantes para a elaboragao dos livros didati- cos, busquei verificar outros agentes que intervieram na construgao e nas mudangas dos livros escolares, pois nem sempre tais reformas transformaram substancialmente sua natureza ¢ seus contetidos. O tema foi localizado, entao, a partir do periodo de instalacao das primeiras escolas publicas pelo Estado Nacional na década de 1810 do século XIX até 1910, por considera-lo clucidativo quanto 4 dimensio que a ele atribuo. A pesquisa inicia-se no perfodo no qual foi posstvel resgatar a origem dos manuais editados em griticas brasileiras, perpassando rapidamente pelos livros, em sua maioria tradugdes, da Impressio Régia, e centrando-se no momento de efetivacao da producao nas décadas de 1860.2 1880 do século XIX, quando o ensino primario comecou a ser ampliado em meio as questoes politicas e sociais. Fecha- mos a periodizacao nas primeiras décadas do regime republicano quando, ao lado das medidas educacionais que, aparentemente, forjavam novos projetos para a escola, as empresas editoriais puderam fazer do livro didatico a sua principal fonte de renda, o que significava estar ele incorporado como objeto necessério ¢ indispensivel no cotidiano escolar, Esse periodo de cem anos, aproximadamente, correspondeu a fase da constituigao do saber escolar em uma sociedade brasileira escravagista que se transformava, chegando a0 advento do trabalho livre e da nova concepgao de cidadania. Assim, a escolha do periodo compreendido entre a primeira década do século XIX € 0s primeiros vinte anos do século XX se fez no sentido de perscrutar as transformagdes sofridas por esse material de ensino e 0 saber por ele construido, a partir do momento InTRoDUGAO go Livo DIDATICO E SABER ESCOLAR — 1810-1910 & da constituicio do Estado Moderno Nacional até o periodo da construgao do regime republicano que, segundo varios estudos sobre educagao, tem sido considerado como um dos marcos da historia brasileira em todos seus aspectos. Para estudar essa historia um problema complexo se apresentou: a documenta- 40. Um aspecto importante sobre a documentagao refere-se a dificuldade para a cons- tituicao do corpus documental, uma vez que o livro didatico 6, neste trabalho, objeto de Pesquisa e seu principal documento. Uma das primeiras dificuldades se refere a diversi- dade da produgao, com um intenso fracionamento do sistema escolar em seus diversos niveis e a multiplicacao das disciplinas. Outro aspecto é a sua caracteristica de produto a ser consumido em tempo breve, de acordo com os ritmos das reformas curriculares, criando um paradoxo: possui uma grande tiragem de exemplares desde seu inicio, mas estes so pouco preservados, sendo raramente encontrados em locais adequados, e na maior parte das vezes, esto em péssimo estado de conservacao, ‘Trata-se de um material disperso e varios desafios devem ser enfrentados, tanto para conseguir localiz4-Io, como para ter acesso a ele, Sendo uma espécie de produgao marginal, 0 livro escolar nao foi e nem tem sido depositado em bibliotecas ptiblicas de forma sistematica. Alguns exemplares brasileiros do século XIX puderam ser encontra- dos nas segdes de livros raros da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e da Biblioteca Municipal “Mario de Andrade”, de Sao Paulo, e em bibliotecas da Universidade de $40 Paulo que receberam acervos doados, como a Biblioteca “Paulo Bourroul” e “Macedo Soares” pertencentes a Biblioteca da Faculdade de Educagao da USP. Outros exemplares foram comprados em sebos ou doados por pessoas amigas que colaboraram na tarefa de coleta. A maior parte, entretanto, do corpus documental foi obtida na Bibliotheque Nationale de France, pois um ntimero significativo de manu- ais escolares brasileiros foi impresso na Franga e, de acordo com sua legislagao sobre o depot legal, encontram-se preservados naquela instituiga0. Devo frisar também que nela foi possivel encontrar os livros em suas varias edigdes, dado relevante no sentido de definir o periodo de uso da obra e identificar sua aceitagao perante o puiblico. A organizagao do acervo de livros didaticos correspondeu a um trabalho seme- Ihante ao do arquedlogo, buscando os objetos escondidos em diferentes “sitios”, que definirao as varias leituras. Os livros encontrados na Bibliothéque de Paris por razées da obrigatoriedade do depét pouco dizem sobre seus leitores, mas com eles podemos acompanhar suas edigdes. Livros obtidos por doagées de antigos alunos, professores ou encontrados em bibliotecas particulares fornecem indicios sobre possiveis formas de consumo e de leitura, pelos tracos de uso neles existentes. Para reconstituir o sentido amplo do objeto, conforme os objetivos enunciados, foi necessério consideraras relagdes estabelecidas em trés polos: o texto, o objeto que lhe serve de suporte ea pritica que dele se apodera. Dessa forma, a proposta de elaborar a histéria do livro didético constituiu-se como desafio, tanto na organizagao do corpus, quanto na forma de tratamento da documentagao, visto que foi concebida como problema a ser desvendado em toda sua complexidade, envolvendo-a em contextos abrangentes, associados ao espago escolar e aseu piiblico leitor. Para cumprir tal propésito, pelo tipo especifico de documentagao, fez-se necessi- rio distinguir as varias leituras do material. Considerando-o como objeto da inchistria cultural, o livro foi pesquisado pela documentacao existente nos arquivos de editoras, sempre com dificuldades, vigiada pelos proprietirios que restringem 0 acesso ao conjunto do acervo, Os almanaques publicados pelas editoras e seus catélogos foram fontes importantes para obter dados quantitativos, informagdes sobre métodos de vendagens e divulgagao das obras. Para elucidara relacao entre o livro didatico e escola foram feitas leituras paralelas dos programas escolares propostos pelo Estado, pela Igreja ou demais instituigoes par~ ticulares que se encarregaram da organizacao educacional do perfodo. Os textos dos programas foram acompanhados da leitura sobre legislacao, acrescida dos pareceres e relat6rios de autoridades vinculadas a educagao, somadas literatura pedagdgica entao produzida, Para resgatar 0 uso do livro pela sociedade da época e suas transformagoes, buscamos informagées em romances e biografias, sobretudo nos memorialistas com suas recordagdes da vida escolar. Para completar o quadro das complexas representa- ‘G®es sociais sobre 0 papel do livro e do mundo letrado, recorremos primordialmente a “fala” do proprio livro didatico sobre tais questoes. O trabalho foi dividido em trés partes, as quais foram subdivididas em seis capi- tulos. Iniciamos pela vinculagao entre livro didatico e a organizagao educacional do Estado Nacional, recuperando as formas como o poder instituido concebia o livro € 0 saber escolar. Trata-se de uma anilise dos projetos sobre o livro escolar e o papel que deveria desempenhar, segundo os pressupostos oficiais e de intelectuais preocupados com a questio educacional. Considerando o publico para o qual o livro escolar foi produzido, pudemos acompanhar como o saber proposto para eles se alterou no de- correr do processo de transformagoes sociais decorrentes da urbanizagao, imigracao e com o estabelecimento de novas relacdes coma introdugao da mao-de-obra livre. Nesse sentido, foram verificadas as mudangas que ocorreram na instituigao escolar ainda em construgio, sem marcos definidos, onde se alternavam discursos e projetos legislativos, veiculando uma educagao para todos, obrigatéria e gratuita, e uma pritica elitista, como provaram varios estudos e os dados estatisticos da época. No processo de cons- tituigdo do ensino publico, foram considerados os confrontos oriundos da laicizagao da educagao, as imbricagdes entre o saber da escola elementar e da secundaria, além das questdes existentes entre escola publica e privada. © mundo editorial faz parte da problematica do segundo capitulo, desvendando suas relagdes com 0 poder politico. A preocupacao foi questionar as razbes aparentemente ambiguas do Estado, que exerceu uma constante vigilincia sobre © material, mas que sempre concedeu e favoreceu sua produgao por empresarios particulares. Nesse contexto olivro didatico foi abordado também como mercadoria, como objeto da industria cultu- ral ligada a interesses econémicos particulares, que aperfeigoaram técnicas de fabricagao, difusdo e comercializagao. Iyrropu¢so cS LLIVRO DIDATICO E SABER FSCOLAR— 1810-1910. Ss A segunda parte do trabalho corresponde a investigagao do processo da constitui- sao do saber escolar pela obra didatica, tendo optado pela disciplina de Historia para desvendar esse processo. Autores de Historia Sagrada, Geral e do Brasil sto 0s principais. protagonistas dessa parte do trabalho na qual o objetivo era entender o trabalho de ctiagao de um texto didético. Preocupou-me, inicialmente, a relagio com os programas curriculares e como tais propostas foram transpostas para a obra escolar. Foram situa- dos autores ¢ programas articulados ao lugar ou aos lugares, onde era produzido 0 chamado saber erudito. Esses dados se tornaram relevantes a0 acompanhar como autores de Historia fizeram interpretagdes desses programas, ao reelaborarem temas ¢ conceitos baseados nos mesmos contetidos propostos e, em principio, todos voltados para a configuracao de uma identidade nacional para as geracdes em formacao, A terceira parte aborda as questoes que envolveram a utilizagao da literatura didé- tica pelos professores e alunos. Foram apresentadas algumas questdes sobre a forma- ao dos professores ¢ a precariedade de instituigdes criadas para tal fim, buscando conhecer 0 papel que o livro didatico desempenhou naconstrugao do saber dos mestres das escolas primarias e lentes dos cursos secundérios, Foram relacionadas as concep- ‘G0es oficiais de livro didatico as formas de consumo de que foi objeto e preocupei-meem identificar como os autores estabeleceram “didlogos” com os professores no sentido de direcionar os métodos de leitura desse material pedagdgico. Em seguida, foi realizada outra leitura dos livros didaticos, analisando o discurso pedagégico que eles portam, incluindo ilustragdes e exercicios, para identificar as formas pelas quais alunos e professores liam e usavam o livro didatico na sala de aula. Empreen- demos o resgate das concep¢des de aprendizagem com o objetivo de averiguar o papel que olivro didatico exerceu na constituigao do saber escolar em suas articulacdes com as formas de transmissao tradicionais da sociedade da época. Este capitulo foi permeado pelos problemas que envolveram a constituigao de uma sociedade letrada, tendo como ponto de referéncia a importancia que a escrita e a leitura tendiam a desempenhar na sociedade do século XIX e inicio do XX, quando os meios de comunicagao de massa atuais nao estavam disponiveis. 1* Parte Literatura escolar e Estado Atendendo ao que propdsa Inspetoria geral de instrugao do Municfpio da Corte: 1nenhum livro, mapa ou objeto de ensino seré adotado nas escolas puiblicas sem. prévia aprovagio do ministro do Império, ouvido o Conselho diretor, que dara parecer fundamentado; a adogao dos livros ou compéndios que contenham ma- téria de ensino religioso, precedera também a aprovacao do bispo diocesano. (Decreto n. 9.397, de 7 de margo de 1885. Rio de Janeiro) Capitulo I Livro didatico e construgao do saber escolar A origem do livro didatico esta vinculada ao poder institufdo. A articulagao entre a produgio diditica e 0 nascimento do sistema educacional estabelecido pelo Estado distingue essa produgio cultural dos demais livros, nos quais ha menor nitidez da interferéncia de agentes externos em sua elaboragao. Essa caracterfstica da literatura escolar me levou a iniciar a pesquisa da hist6ria do livro didatico por uma abordagem externa. Os documentos oficiais sobre a literatura escolar sao indicativos dos limites impostos em sua criagdo e das interferéncias institu- cionais que presidiram sua construcao e que antecederam a atuagao dos demais agentes participantes de sua confec¢ao. ‘A questao fundamental desta parte do trabalho refere-se ao desvendamento das concepgdes de livro didatico engendradas pelo Estado Nacional e das formas como ele organizou o controle sobre esta producao cultural, no sentido de perceber as possiveis mutagdes em sua historia como projeto associado a politicas mais amplas de educacao. Nessa perspectiva, procuramos conhecer 0 livro didatico nao apenas em sua singulari- dade, mas como parte integrante de um sistema de ensino institucionalizado. No Brasil, Estado e Igreja, afastando-se ou aproximando-se, produziram e efeti- varam projetos educacionais variados no decorrer do século XIX e primeiro decénio do atual, provocando conflitos ou conciliando interesses que expressavam a contradigao inerente da educagao escolar proposta com base nas transformagoes econdmicas e po- Iiticas configuradas pela Revolugao Francesa. A educagao escolar deveria ser estendida ao conjunto da populagao, obedecendo 20s principios de legitimidade impostos pelo ideario liberal europeu. O poder exercido deveria estar subordinado a vontade da nagdo, expressa pelo voto, pressupondo, por- tanto, a educagio do eleitor para 0 exercicio do poder. A legitimagao do poder politico 23 LIVRO DIDATICO E SABER ESCOLAR — 1810-1910. _ pelo voto obrigou as classes dirigentesa estabelecer que parcela da populagao gozaria de tal privilégio. Bstado liberal, ao determinar os setores sociais que teriam direitos civis e politi- cos, viu-se obrigado a definir os critérios para a constituigao dos conceitos de cidadania e de nagdo. O Estado brasileiro, em formacao, buscava acompanhar 0 ideério liberal adaptando-o a seus interesses. Assim, a questo da cidadania politica brasileira colocava-se como garantia da ma- nutengao de privilégios das classes dominantes, embore estas tivessem de enfientar con- frontos, uma vez que mudangas sociais e econdmicas exigiam ampliagdes dos direitos dos cidadaos. Os direitos civis, politicos e sociais, elementos que constituem a cidadania, foram sendo estendidos, lentamente, aos grupos sociais nao pertencentes ao setor agrario e a0 do grande comércio, A passagem do voto censitirio ao do alfabetizado, determinando os direitos politicos do cidadao, foi acompanhada de mutagées nas definigdes sobre o papel da escola na construgao da cidadania, na constituigdo de uma populagao letrada, Aeescola nao poderia continuar a dedicar-se, exclusivamente, a educagao da classe dirigente tradicional, de aristocratas, Existiam outras necessidades oriundas de novos empreendimentos que precisavam garantir 0 aumento da produtividade. As exigéncias dos projetos de modernizagao compreendiam novas formas de adquirir e usar o saber. Nesse processo, o Estado brasileiro teve de se defrontar com o problema da aboligao do trabalho escravo e com a constituigao de uma educagao que deveria incluir trabalhado- res livres, situagdo que interferiu nas concepgdes de escola e objetivos do seu ensino. O estabelecimento da educagao escolar foi planejado e acompanhado pelo poder governamental, que passou a utilizar varios mecanismos para direcionar e controlar o saber a ser disseminado. Nessa perspectiva, o livro didatico constituiu instrumento privi- legiado do controle estatal sobre o ensino e aprendizado dos diferentes niveis escolares, Ao desvendarmos a atuagdo do poder governamental na construcdo do livro escolar, tivemos o cuidado de situ-la paralelamente as concepgdes de ensino e aprendi- zagem que permearam os discursos de parlamentares e de educadores, utilizando como documentos basicos 0s textos legislativos de educacao ea literatura pedagdgica nacional c estrangeira do periodo. Concepgées e projetos de redacao do livro didatico Concepcdes iluministas do livro didético Os manuais didéticos foram tema de debates dos parlamentares que decidiam sobre a criagao e a organizagio do sistema educacional do novo Estado que se formava € permaneceu durante todo o transcorrer do século XIX. As propostas relativas ao livro didatico contidas nos discursos de ministros de Estado, presidentes de Provincias/Estados, deputados e senadores, administradores, inspetores es- colares, revelaram dois momentos diferenciados para a elaboragao dessa produc. ‘A fase inicial correspondeu a projetos que insistiam sobre a necessidade de se cons- truir livros seguindo modelos estrangeiros, notadamente franceses e alemaes. A geracao de intelectuais do inicio do Oitocentos determinou que os livros escolares fossem adaptados de obras estrangeiras, podendo-se “mesmo traduzir-se alguns, que hé nas outras nagdes cultas, particularmente a alema, que mais se tem assinalado nesta espécie de instrugao, apropriando-os ao sistema estabelecido neste plano...” (ANRADA, 1945, p. 104).!" Relatérios oficiais relativos a escolarizagio nas primeiras décadas do Império re- gistraram constantes reclamag6es sobre a auséncia de manuais escolares nas escolas. A escassez da literatura escolar explicava parcialmente as deficiéncias encontradas: Um dos defeitos ~ é falta de compéndios — no interior por que os nao ha — nas Capitais, por que nao hé escolha, ou foi mal feita; ~ porque a escola nao é suprida, 0s pais relutam em dar os livros exigidos, ou repugnam aos mestres os admiti- dos pelas autoridades. (Dias, 1989, p. 363) O relatério de Gongalves Dias sobre as provincias do Norte e Nordeste, datado de 1852, possui indicadores da fase posterior de projetos para a elaboragao dos manuais escolares. Ele contém criticas aos Conselhos de Instrugdo por preterirem obras de auto- res nacionais “dando preferéncia a gramatica de Monteverde, quando as ha melhores na Bahia; ha tao boas aritméticas como a de Monteverde, e em igualdade de circunstancias cera justia, premiar o nobre esforco desses autores, em ver de injuriar além de os desfa- vyorecer” (Dias, 1989, p. 363). As criticas em relagao aos livros estrangeiros aumentaram nas décadas de 1970 ¢ 1980, aparecendo, entao, propostas de construgao de obras didé- ticas “ genuinamente nacionais”. O diagnéstico de José Verissimo, de 1890, é representativo da tendéncia nacionalis- ta que passou a presidir as intengdes dos construtores de obras didticas: Sio 08 escritores estrangeiros que, traduzidos, trasladados ou quando muito, servilmente imitados, fazem a educagao de nossa mocidade Seja-me permitida uma recordagao pessoal. Os meus estudos feitos de 1867 a 1876 foram sempre em livros estrangeiros. Eram portugueses e absolutamente alheios ao Brasil os primeiros livros que li. O Manual Enciclopédico de Monte- verde, a Vida de D Joao de Castro, de Jacinto Freire (1), 0s Lusfadas, de Camoes ¢, mais tarde, no Colégio de Pedra II, o primeiro estabelecimento de instrugao secundaria do Pais, as seletas portuguesas de Aulete, os Ornamentas da meméria, de Roquette — foram os livros em que recebi a primeira instrugao |...] E propos mudangas: ‘Neste levantamento geral, que € preciso promover a favor da educagao nacional, uma das mais necessérias reformas é a do livro de leitura. Cumpre que ele seja brasileiro, nao s6 feito por brasileiro, que nao é0 mais importante, mas brasileiro 8 0 texto foi escrito, provavelmente, em 1815 e foi indicado pela Assembléia Constituinte de 1823 para servir de guia para posteriores projetos educacionais. LIVRO DIDATICO E CONSTRUGAO DO SABER ESCOLAR v a L1VRO DIDATICO F SABER ESOOLAR ~ 1810-1910 d & pelos assuntos, pelo espirito, pelos autores trasladados, pelos poetas reproduzi- dos e pelo sentimento nacional que o anime. (Verissimo, 1985, p. 54-55) As propostas de “nacionalizagao” da literatura escolar corresponderam ao perio- do de crescimento da rede escolar, decorrente, em parte, das mudangas sociais surgidas com a urbanizacdo, imigracao, do esfacelamento do trabalho escravo e modernizagdes tecnolégicas nos meios de comunicagao. As reivindicagdes de novos grupos sociais, sobretudo urbano, que incluiram a questo educacional, foram parcialmente incorpo- radas pelos politicos liberais que se revezavam no poder com os conservadores. Entre- tanto, énecessario destacar, no discurso nacionalista de educadores e politicos do perfodo, © confronto com a Igreja Catélica. Os projetos “civilizatorios” de uma parcela da geracao de educadores ¢ politicos liberais da segunda metade do século XIX pretendiam a total separacao entre Estado ¢ Igreja, incluindo a construgao de uma escola secularizada, rejeitando as premissas dos liberais do periodo da Independencia que a idealizaram atrelada a Igreja. A polémica entre o grupo conservador catélico, ligado ao idedrio da Igreja tra- montina, ¢ 0 de liberais mais radicais, positivistas ou cientificistas e republicanos, acir- rou-se durantea reforma de Ledncio de Carvalho de 1878, que tornou o ensino religioso facultativo e teve prosseguimento nos anos seguintes atéa implantagdo do regime repu- blicano. As divergéncias entre os dois setores do poder nos anos finais do século passado marcaram um momento diferenciado em relagdo a primeira fase de elaboracao de projetos educacionais durante os debates da primeira Constituigao brasileira, periodo em que parlamentares ¢ a maioria dos intelectuais pensaram o sistema escolar, seus métodos e programas de ensino de maneira a conciliar Estado e Igreja. AS propostas de “nacionalizagio” da obra didatica representavam o grupo de educadores favoraveis ao dominio do Estado na escola publica, em detrimento do poder da Igreja, evidenciando conflitos de setores em luta pelo poder no nivel central ou para obter controle politico nas esferas regionais. Mas, nos dois momentos, permaneceu a crenga na forca do livro escolar como pega importante na viabilizagao dos projetos educacionais. A obra didtica era concebi- a como principal instrumento para divulgagao do idedrio educacional, dependendo dela, a formagao do professor e do aluno. A énfase no papel dos manuais didaticos para a efetivagao do programa de ensino partia do conceito que vigorava entre os franceses do periodo da Revolugdo: um livro lido um livro apropriado que induz a novos habitos. Um dos politicos mais entusiastas das reformas educacionais do periodo revolucionatio francés, Francois de Neufchateau, dizia ue “nao existem tiranos para os que sabem ler” (apud Jouts, p. 19, 1991). A permanéncia da concepgio iluminista do carter poderoso da palavra impressa, contida na literatura escolar, pode ser percebida pelo cuidado constante com que as lites " Tradugdo nossa de: “il n'est plus de tyrans pour quiconque sait lire”. intelectualizadas das classes dominantes tiveram no processo de construgio dessa pro- dugao cultural, Para os intelectuais que se dedicaram aos projetos educacionais, olivro escolar deveria condicionar o leitor, refrear possiveis liberdades diante da palavra escri- ta, impressa. O leitor ~ professor, crianga e jovem — deveria abordar a leitura de forma homogénea, tendo uma compreensio exata das palavras, com um sentido tinico. O temor deles residia, exatamente, nas possibilidades miiltiplas que oferecem as praticas de leitura (Cuartier, 1990, p. 122-124). Um texto escolar deveria resultar, dessa forma, diferentemente de outros livros, de um cuidadoso plano engendrado pelo poder constituido, articulado com outros discur- 808 que definiam o saber escolar. Condorcet, em plena fase revoluciondria francesa, no seu texto Second Mémoire sur Instruction Publique, concebeu dois tipos de livros didaticos: um para o professor ¢ outro destinado aos alunos. Existiriam os compéndios ou manuais escolares, dos alunos, 0s livros dos mestresou dos professores. A conieccao do livro do mestre era importante porque conteria “anotagoes sobre o método de ensinar, de esclarecimentos necessitios, para permitir aos professores responder as questoes das criangas, de definigoes das palavras dificeis” (apud Trexarp, 1986, p. 61).!"O livro do mestre serviria, sobretudo, para suprir as deficiéncias dos docentes mal preparados, recrutados de maneira pouco rigorosa dada a auséncia de cursos especializados em sua formagao. A.concepgao de livro didatico de Condorcet, distinguindo as duas obras, destacando a do professor e acentuando a articulacao que deveria existir entre ambas, foi bastante conhecida por nossos legisladores. O texto educacional de Martim Francisco d’Andrada, Memsria sobrea reforma de estudos da capitania de Sao Paulo, foi praticamente uma tradu- sao adaptada da obra de Condorcet. Durante a Constituinte de 1823, a Comissdo de Instrugao Publica propds que este trabalho servisse “de guia aos atuais professores estimulo aos homens de letras para a composigao de compéndios elementares, enquanto nao se dé uma adequada forma a instrugao publica” (ANAIS..., apud Xavie, 1980, p. 24).!* A questio da constituigao de um corpo docente leigo colocada pelo filésofo fran- cés assemelhava-se a0 caso brasileiro, e encontramos entre nossos intelectuais preocu- pacdes idénticas quanto a idoneidade e a competéncia do novo quadro burocratico que se constituia, Compreendem-se as razdes da divulgacdo dos pensadores franceses no Brasil porque se debatia igualmente um problema que se arrastava desde a segunda metade do século XVIII, com a expulsao dos jesuitas. 0s franceses fazem uma nitida distingdo entre 0 professor secundario e do ensino superior, denomina- do de professeur e 0 do primétio, o instituteur. No Brasil do século XIX e inicio do XX existia uma pre- ‘ocupacao menos acentuada, mas igualmente discriminat6ria, quanto a0 emprego da palavra professor que geralmente € usada segundo 0 nivel que ocupava: professor secundério e professor primério, Os textos oficiais usam mais, entretanto o termo “lente” para designar o professor secundério concursado das escolas oficiais pablicas e o mestre, assistente de tais professores, Para o ensino primério usou-se o termo “mestre de 1* letras” ¢ na Repiiblica foi usual o termo “professor primério”, seguindo-se hierar- quicamente o termo de interinos (mestres no concursados) ¢ adjuntos ou substitutos. “ Nesse texto, a autora refere-se as adaptagdes feitas por Martim Francisco no texto do autor frances, LIVRO DIDATICO E.CONSTRUGAO DO SABER ESCOLAR v 8 Livro piAtico EsapeR ESCOLAR— 1810-1910 y & A reforma pombalina, com o intuito de substituir a orientagao pedagégica da Companhia de Jesus, determinara a implementagio do Novo Método, baixando decre- tos, organizando estatutos e enviando instrugdes varias em que se constatava claramen- te a importancia dada aos livros. Embora a proposta educacional do marqués de Pom- bal nao tenha sido totalmente leiga, contando sempre com o apoio de outras ordens religiosas para sua efetivacdo, ela pressupunha a constituicao de um novo quadro de professores, Os problemas que se originaram da nova proposta duplicaram. Houve necessidade de formular um novo saber escolar, substituindo o Ratio Studiorum, com seu minucioso método e regras pormenorizadas dos jesuitas e das ordens religiosas que 68 seguiam, por um outro projeto pouco detalhado nos contetidos e métodos, bem como 0 problema de transmiti-lo a um corpo docente leigo que passaria a ser remune- rado, compondo 0 quadro do funcionalismo ptblico. Para realizar essa tarefa, a escolha e a impressio de livros didticos tornaram-se pontos bisicos da reforma, tendo havido instrugdes para “queimar todos os livros que serviam de ensinar Gramiética Latina pelo método antigo, reprovado por Sua Majesta- de” (Axprabe, 1978, p. 15). Uma das primeiras medidas tomadas por Portugal para a implementacao da reforma pombalina foi a distribuigao do texto Meméria dos Livros Aconselhveis e Permitidos para o Nove Método, onde era apresentada uma listagem com- pleta das obras a serem utilizadas nas escolas régias e a quantidade de livros novos a serem impressos. Para o ensino elementar, mesmo nao sendo a preocupagdo dos gover- nantes da época, houve ordens régias determinando que se ensinassem os meninos “por impressos ou manuscritos de diferente natureza, especialmente pelo Catecismo pequeno do Bispo de Montpellier, de Carlos Joaquim Colbert, mandado traduzir pelo arcebispo de Evora” (Anpkabe, 1978, p. 23, grifo nosso). Os cuidados expressos para a selegdo de livros a serem adotados nao foram, entretanto, os mesmos empregados para garantir que chegassem as maos dos professores. Uma das dificuldades apontadas para a subs- tituicao do antigo método jesuitico, no Brasil, foi a auséncia de novos compéndios: (..1 as dificuldades brotaram a flux, porque se tornava dificil conseguir livros apropriados e professores aptos que estivessem dispostos a seguir, com conviegao anova ordem imposta. As primeiras edigdes dos compendios quase se esgotaram. em Lisboa e na provincia, recebendo o Brasil muito poucos, até se proceder a pressdo, (ANDRaDE, 1978, p. 115) O livro escolar aparecia, no final do século XVIII, como principal instrumento para a formacao do professor, garantindo, ao mesmo tempo, a veiculacao de contetido emétodo de acordo com as presctigdes do poder estabelecido. A questio, entretanto, nao residia no papel a ser desempenhado pelo livro no ensino, mas na criagao de novos textos pedagégicos segundo uma visio educacional secularizada. © discurso pombalino educacional, baseado em Verney e Ribeiro Sanches, apresentava questdes que ultrapassavam a natureza dos contetidos escolares e a orientagao dos manuais. Tratava-se da criagao de uma educagdo institucionalizada por outro tipo de Estado e por uma escola puiblica (FALCON, 1982, p. 363-364). A literatura didatica produzida no decorrer do século XIX era herdeira dessa con- cepeio de educagao formal, cabendo-Ihe dupla tarefa: assegurar ao professor o dominio de um contetido basico a ser transmitido aos alunos e garantir a ideologia desejada pelo sistema de ensino, suprindo a deficiencia “do espfrito filos6fico” existente entre alguns professores (Conporcer, 1847 apud TRENARD, 1986, p. 61). Os livros que os professores deveriam utilizar foram pensados pelas autoridades brasileiras em dois niveis, Inicialmente, pelo custo ¢ raridade de obras propriamente didaticas, impunha-se aos professores 0 uso de livros de autores consagrados, sobretu- do as obras religiosas. Os professores fariam ditados e os alunos copiariam trechos ou ouviriam as prelegdes em sala de aula, Tal era o método imaginado para as primeiras décadas do século XIX. As propostas de produgao de livros escolares concentraram-se, primordialmente, na elaboragao de textos didaticos para uso exclusivo dos professores, dando-se preferéncia as tradugoes. Um segundo tipo de livro destinado aos professores surgiu com a criagao, as vezes efémera, das Escolas Normais para a formagio de professores de niveis elementares. Iniciaram-se novas concepsdes de produgao didatica que nao correspondiam, apenas, aos livros que deveriam ser usados na sala de aula. A Reforma de 1872, do ministro Joao Alfredo, para as escolas do municipio da Corte classificou os livros dos professores em trés grupos principais: 1°) os que eram destinadas aos professores e mestres para sua formagio, referindo-se as obras das “ciéncias pedagdgicas”; 2°) os que se dirigiam particularmente aos alunos; e 3°) as obras administrativas que se destinariam “a fazer conhecer ou recordar aos funcionarios da instrugio publica as leis e os regulamentos que regem a matéria” (AuMetDA, 1989, p. 158). O livro didético visava, portanto, nos seus primérdios, prioritariamente, atender 0 professor. No decorrer do século XIX, embora 0 manual escolar mantivesse esse carter intrinseco em sua elaboragao, ele passou a ser considerado também como obra a ser consumida diretamente por criancas e adolescentes, que obtiveram o direito de posse sobre ele. As concepgdes dos franceses sobre 0 livro didatico para alunos, assimiladas e copiadas pelos educadores brasileiros, estabeleciam algumas distingdes entre ele, Existiam 8 abrégés ¢ 0 livre élémentaire, termos transpostos por alguns brasileiros como “com- pendios” e “livros populares”.'* Um compéndio deve apresentar um quadro exato, resumido e preciso de uma ciéncia, ou de tuma arte, tal qual existe no momento em que o autor escreve. Mas um livro elementar é um sistema de ensino; ele abrange um plano dirigido de instrugao, O autor se propde nao a compilar todos 0s fatos, todas as verdades conhecidas, ‘mas a realizar uma escolha satisfat6ria de coisas que, estando ligadas, apresen- tem novas articulagées, relagdes verdadeiras e essenciais. Ele serve entao para 'S Abilio César Borges, diretor de instrugio da Bahia no relatério para 0 presidente da provincia Alvaro ‘Tibério Moncorvo, utilizou os termos compéndios livros populares (apud MOACYR, 1939, p. 101-104). LivRo DIDATICO # CONSTRUGAO DO SABER ESCOLAR y S Livro DIDATICO E SABER ESCOLAR— 1810-1910 2 s desenvolver o espirito, para fazer germinar as idéias, supondo que seu autor considere quais sejam os conhecimentos mais importantes, assim como quais sejam os exercicios, ¢ a constituigao da ciéncia ou da arte que ele pretende que seja conhecida. O compéndio serve para amemiéria, um livro elementar atinge mais diretamente o espirito e a inteligéncia."® Ao lado da definigao de livros didaticos, especificando sua natureza e finalidades das obras de acordo com seu puiblico consumidor, os administradores encarregados dos projetos educacionais tiveram 0 cuidado de estabelecer as formas como seriam elaborados os textos e quem deveria escrevé-los. Planos de redagao dos livros escolares Segundo Andrada (1945, p. 104), os livros poderiam “ser feitos ou pelos mestres encarregados deste trabalho em beneficio de sua patria, voluntariamente ou por ordem superior”. A confeccao de uma obra didatica seria uma tarefa patridtica, um gesto hon- roso, digno das altas personalidades da “nacao”, Os discursos dos relat6rios de ministros demonstraram a preocupacao em incen- tivar os mais célebres intelectuais para elaboré-los. Partindo do pressuposto de que uma obra didatica deveria difundir a “verdadeira ciéncia”, nossos politicos incorporaram as ideias dos iluministas que confiavam aos “sabios” a realizagao de uma tarefa que asse- guraria a felicidade das geragdes futuras: “Sd0 os mais conhecidos sabios que devem separar as ideias fundamentais de uma ciéncia. Esses livros, ao serem orientados para 0 aperfeicoamento da razao e para a prosperidade da nagao, facilitarao o trabalho do professor ¢ servirao de base das aulas”.!” Varias personagens da nossa elite cultural assumiram a tarefa “patriética” que Ihes era destinada, mas cabe destacar uma das primeiras obras didaticas produzidas por um “eminente cidadao” e atuante politico do governo de D. Jodo VI ede D. Pedro I, pelas concep¢des que forneceu relativas ao poder da palavra impressa. Trata-se do livro Escola brasileira ou instrugao itil a todas as classes extraida da Sagrada Escritura para uso da ‘mocidade de José da Silva Lisboa, o visconde de Cairu, escrito em 1827. Obra dedicada “aos mestres das primeiras letras”, teve, segundo 0 autor, como base para sua constru-

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