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Carlos Nelson Coutinho - Cultura e Sociedade No Brasil-Expressão Popular (2011)
Carlos Nelson Coutinho - Cultura e Sociedade No Brasil-Expressão Popular (2011)
4a edição
Editora Expressão Popular
São Paulo – 2011
CDD 301
CDU 316.7
Catalogação na Publicação: Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250
Leandro Konder,
Isnaia Veiga Santana,
Roberto Gabriel Dias (†),
José Paulo Netto
e Daniel Tourinho Peres –
Prefácio...................................................................................9
Os intelectuais e a organização da cultura . ............................ 13
Cultura e sociedade no Brasil.................................................. 35
Dois momentos brasileiros da escola de Frankfurt. ................... 73
O significado de Lima Barreto em nossa literatura.................... 89
Graciliano Ramos................................................................. 141
O povo na literatura de Jorge Amado................................... 195
A imagem do Brasil na obra de Caio Prado Júnior.................. 201
Marxismo e “imagem do Brasil” em Florestan Fernandes. ....... 221
O legado de Octavio Ianni.................................................... 241
Nota bibliográfica................................................................ 255
Índice onomástico.......................................................................... 257
*
A primeira edição desta coletânea (Belo Horizonte, Oficina do Livro, 1990) continha um
ensaio sobre “A recepção de Gramsci no Brasil”, agora incluído, numa versão atualizada,
como apêndice ao meu livro Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político (Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 1999, p. 279-305). Esta nova edição da Expressão Popular,
além de reproduzir o ensaio sobre Florestan Fernandes (já contido nas duas edições da
coletânea publicadas pela editora DP&A, Rio de Janeiro, 2000 e 2005,), inclui ainda
os ensaios sobre Jorge Amado e Octavio Ianni.
1
Gostaria de começar com uma questão terminológica. O
título que me foi sugerido para esta exposição, “Os intelectuais
e a organização da cultura”, é – como se sabe – o título de uma
coletânea de escritos do cárcere de Antonio Gramsci, que reúne
precisamente os textos relativos à questão dos intelectuais e da
relação deles com os mecanismos de reprodução cultural da rea-
lidade (sistema educacional, jornalismo etc.). Mas esse título não
é do próprio Gramsci.
Os famosos Cadernos do cárcere foram publicados a partir
de 1948, sob a orientação editorial de Felice Platone e Palmiro
Togliatti, não na ordem em que haviam sido escritos, mas agru-
pados segundo grandes temas, divididos em seis volumes, cujos
títulos foram escolhidos pelos próprios editores1. Pois bem: no
caso que nos interessa aqui, não só o título não é de Gramsci,
como também não é muito frequente em suas notas a expressão
“organização da cultura”.
Mas isso não quer dizer que ela seja infiel ao espírito da reflexão
gramsciana. Ao contrário: tem um forte vínculo com o conceito de
“sociedade civil”, que, como se sabe, é um conceito central na obra
do fundador do Partido Comunista Italiano. Em certo sentido,
podemos mesmo dizer que, sem uma “organização da cultura”,
não existe sociedade civil no sentido gramsciano da expressão.
Vamos resumir alguns tópicos conhecidos. O maior mérito
de Gramsci consiste em ter “ampliado” a teoria marxista clássica
1
Somente em 1975, sob os cuidados editoriais de Valentino Gerratana, foi publicada
(Quaderni del carcere, Turim, Einaudi) uma edição crítica, que não apenas apresenta os
cadernos na ordem em que foram escritos, mas fornece também as variantes dos textos
e recolhe na íntegra os apontamentos de Gramsci.
2
Como Marx disse, a chave da anatomia do macaco está na
anatomia do homem. Tracei aqui, conscientemente, as linhas gerais
das relações entre Estado e sociedade civil, entre sociedade civil
e organização da cultura, entre intelectuais e sociedade civil etc.,
tal como se manifestam numa sociedade desenvolvida, sob uma
forma que – ainda segundo uma indicação metodológica de Marx
– poderíamos chamar de “forma clássica”. Essa forma clássica mais
desenvolvida nos permite pensar a anatomia do caso brasileiro, ou
seja, de uma forma mais primitiva e menos explicitada, bem como
4
Tento apontar algumas das causas de tais “exceções” em meu ensaio sobre Lima Barreto,
infra, p. 89-139.
3
Mas seria errado não ver que algo começa a se mover, algo
que explodiria à luz do sol sobretudo a partir dos anos de 1920.
A sociedade brasileira vai se tornando mais complexa (ou menos
simples), o capitalismo vai se tornando o modo de produção
dominante também nas relações internas. Nossa estrutura social,
com a Abolição, com os primeiros inícios da “via prussiana” no
campo, começa a se tornar mais próxima da estrutura de uma
sociedade capitalista, ainda que continue atrasada e fortemente
marcada por restos pré-capitalistas; novas classes e camadas sociais
se apresentam no cenário político do País. Antes de mais nada,
começa a surgir uma classe operária formada ainda essencialmente
por semiartesãos; os primeiros esboços de industrialização, a gran-
de imigração de finais do século passado, criam um bloco social
contestatário, que põe em discussão de modo organizado (o que
talvez ocorra no Brasil pela primeira vez) o modelo “prussiano”,
elitista e marginalizador de dominação política, econômica e social
até então dominante.
Começa assim a surgir, com a introdução do capitalismo,
com o início das lutas operárias e com as agitações das camadas
4
Esses embriões de sociedade civil, esses pressupostos de uma
autonomia da cultura, favorecidos ademais pela situação interna-
cional, apareceriam de modo mais claro em 1945, com a rede-
mocratização do país. Fato significativo é que, pela primeira vez,
o Partido Comunista do Brasil, legalizado, torna-se um partido
de massas; e revela, na época, compreender melhor do que em
1935, embora de modo ainda insuficiente, a importância da luta
democrática, do fortalecimento da sociedade civil nos combates
pelo socialismo em nosso país6. Os sindicatos operários, embora
continuassem atrelados à tutela do Ministério do Trabalho, co-
meçam a ter um peso crescente não só nas lutas econômicas, mas
inclusive na vida política nacional. Também as camadas médias
buscam formas de organização independentes, nos partidos e
fora deles: escritores, advogados, jornalistas criam associações
6
Sobre o PCB em 1945, cf. Leandro Konder, A democracia e os comunistas no Brasil, Rio
de Janeiro, Graal, 1980, p. 49-61.
5
Isso se tornou evidente quando, em 1964, uma aliança entre
os vários segmentos das classes dominantes conseguiu truncar o
processo de democratização em curso, impondo mais uma vez uma
solução “prussiana” para os problemas decorrentes da necessidade
de levar o país a um novo patamar de acumulação capitalista. O
novo regime ditatorial, particularmente no período que se seguiu
7
Em 1958, o PCB indicou claramente essa tendência, que considerava – malgrado os
seus altos e baixos – “uma tendência permanente”: “As forças novas que crescem no
seio da sociedade brasileira, principalmente o proletariado e a burguesia, vêm impondo
um novo curso ao desenvolvimento político do país (...). Esse novo curso se realiza no
sentido da democratização, da extensão dos direitos políticos a camadas cada vez mais
amplas.” (“Declaração do CC do PCB”, março de 1958, in: PCB: Vinte anos de política,
São Paulo, Ciências Humanas, 1980, p. 8).
(1980)
8
K. Marx e F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, in: Id., Obras escolhidas, Rio de
Janeiro, Vitória, 1956, vol. 1, p. 29.
9
Para os conceitos de subordinação (ou subsunção) formal e real, cf. K. Marx, O capital,
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, Livro 1, p. 585 e ss; e Id., O capital, Livro
1, Capítulo VI (inédito), São Paulo, Ciências Humanas, 1978, p. 51-70. A passagem da
subordinação formal para a real, garantindo a socialização das forças produtivas, cria
os pressupostos materiais para que a produção se liberte de sua forma social capitalista;
do mesmo modo, poderíamos dizer que a passagem correspondente, numa economia
“periférica”, faz com que surjam as bases materiais internas – nacionais – para a superação
da dependência ao capital internacional.
14
É evidente que a cultura indígena e, em particular, a cultura negra desempenham um
papel decisivo na formação de nossa fisionomia cultural especificamente brasileira. Mas
tal papel ocorreu sempre no quadro de um amálgama com as matrizes europeias (basta
pensar, por exemplo, no processo ocorrido na música popular). Quando resistiram contra
esse amálgama, independentemente do valor moral dessa resistência, as culturas índia
e negra transformaram-se ou em folclore ou na expressão de grupos marginais.
15
A. Candido, Introducción a la literatura de Brasil, Caracas, Monte Ávila, 1968, p. 27.
17
Nelson Werneck Sodré, A ideologia do colonialismo, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1965, p. 11-16.
20
Cf. V. I. Lenin, O programa agrário da social-democracia na primeira revolução russa de
1905-1907, São Paulo, Ciências Humana, 1980.
21
Esse conceito “ampliado” de via prussiana aparece em György Lukács. “Não é por acaso
que Lenin indica essa via [seguida pela Alemanha] como um caso típico de alcance inter-
nacional, como uma via desfavorável para o surgimento da moderna sociedade burguesa;
ele a chama de via prussiana. Essa observação de Lenin não deve ser limitada à questão
agrária em sentido estrito, mas aplicada a todo o desenvolvimento do capitalismo e à
superestrutura política que ele assumiu na moderna sociedade burguesa da Alemanha”
(G. Lukács, La distruzione della ragione, Turim, Einaudi, 1959, p. 50). Em muitas de suas
análises concretas da sociedade e da cultura da Alemanha e da Hungria, Lukács aplicou
de modo fecundo seu conceito “ampliado” de via prussiana: cf., por exemplo, o seu ensaio
sobre Béla Bartók (“Il mandarino meraviglioso contro l’alienazione”, in: Rinascita, n. 37,
18/09/1970, p. 18-20), onde ele relaciona organicamente os conceitos de “via prussiana” e
de “intimismo à sombra do poder”. É interessante observar ainda que o conceito lukacsiano
de “via prussiana” é essencialmente análogo ao conceito gramsciano de “revolução passiva”
(ou “revolução-restauração”, ou “ revolução pelo alto”), com o qual Gramsci pretende
sintetizar a ausência de participação popular e o tipo de modernização conservadora que
foram próprios do caminho italiano para o capitalismo. Nem se deve esquecer que tais
conceitos foram desenvolvidos por Lukács e por Gramsci na tentativa de determinar as
raízes históricas do fascismo, respectivamente, na Alemanha e na Itália.
22
Ou, em outras palavras: se tivesse ocorrido uma solução diversa para a nossa secular
questão agrária, uma solução democrático-revolucionária e não “prussiana”, isso teria
aberto o espaço efetivo para uma industrialização centrada no mercado interno popular;
uma tal industrialização – expandindo-se de baixo para cima – poderia ter evitado a
monopolização precoce e a dependência tecnológica ao exterior, que estão na raiz do
modelo capitalista dependente-associado que efetivamente triunfou.
26
“Contudo, seria prova de esquematismo entender essa tendência como manifestação
de uma clara adesão imediatamente político-ideológica ao poder estabelecido, às for-
mas mais reacionárias de dominação social, embora também essa adesão ocorresse em
alguns casos. O ‘intimismo à sombra do poder’ combinou-se frequentemente com um
inconformismo declarado, com um mal-estar subjetivamente sincero diante da situação
social dominante” (ibidem, p. 92).
27
G. Lukács, La distruzione della ragione, cit., p. 5 e 205-206.
30
Ambas as citações estão em Mercadante, op. cit., p. 62 e 117.
31
N. W. Sodré, A ideologia do colonialismo, cit., p. 101-161.
32
Cf., respectivamente: para os líderes da Praieira, P. Mercadante. A consciência conserva-
dora, cit., p. 146-161; para L. de Rezende, Antônio Paim, História das ideias filosóficas
no Brasil, São Paulo, Grijalbo, 1967, p. 223 e ss.; para o Iseb, Jacob Gorender, “As
correntes sociológicas no Brasil”, in: Estudos Sociais, n. 3-4, 1958, p. 335-352; e, para o
estruturalismo, Ferreira Gullar, “Vanguardismo e cultura popular no Brasil”, in: Temas
de Ciências Humanas, São Paulo, 1979, vol. 5, p. 80-81.
35
Lukács viu bem os dois momentos do processo: “O particular caráter do desenvolvimento
do povo alemão [isto é, segundo uma via prussiana] apresenta, também em literatura, os
falsos polos a) de um abstrato cosmopolitismo (contraposto ao real internacionalismo) e
b) de um provincianismo restrito, que frequentemente se manifesta como chauvinismo
reacionário (contraposto ao real patriotismo)” (G. Lukács, Realisti tedeschi del XIX secolo,
Milão, Feltrinelli, 1965, p. 19).
36
Azevedo Amaral, “Realismo político e democracia”, in: Cultura Política, n. 1, 1943, p. 31.
37
P. Mercadante, A consciência conservadora, cit., p. 260.
38
Não é aqui o local para expor as necessárias diferenças que a qualificação de nacional-
popular apresenta quando referida à arte ou ao pensamento social. O nacional-popular,
decerto, refere-se apenas à ideologia, no sentido de concepção do mundo; liga-se assim
à ciência social e à arte apenas na medida em que essas se ligam, de diferentes modos,
a constelações ideológicas.
39
G. Lukács, Estetica, Turim, Einaudi, 1970, vol. 1, p. 579. Para o necessário pluralismo
da esfera estética, cf. ibidem, p. 629-654.
Assis Barbosa, A vida de Lima Barreto, Rio de Janeiro, José Olímpio, 1975, p. 321). A
produção jornalística de Lima Barreto, reunida em vários volumes de suas obras com-
pletas editadas por F. de A. Barbosa (São Paulo, Brasiliense, 1958 e ss.) é um precioso
instrumento para analisar a formação de uma ideologia nacional-popular no Brasil. São
pouquíssimos, até agora, os estudos dedicados a essa parte de sua atividade cultural; é
de ressaltar o belo ensaio de Astrojildo Pereira, “Posições políticas de Lima Barreto”, in:
Id., Crítica impura, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963, p. 34-54.
42
Cf., para a literatura, Walnice Nogueira Galvão, “Amado: respeitoso, respeitável”, in:
Id., Saco de gatos, cit., p. 13-22; e, para a música popular, Gilberto Vasconcellos, “O
sambão-joia”, in: Id., Música popular: de olho na fresta, Rio de Janeiro, Graal, 1977, p.
75-82.
43
J. Chasin (O integralismo de Plínio Salgado, São Paulo, Ciências Humanas, 1978, p.
628 e ss.) foi − ao que eu saiba − o primeiro a empregar o conceito de “capitalismo
hipertardio”, indicando com ele um processo de industrialização que se dá quando o
capital monopolista já domina em escala mundial (ou seja, na época do imperialismo).
Enquanto o capitalismo tardio leva o país que o experimenta a uma monopolização
precoce, que pode transformá-lo em potência imperialista (Alemanha, Japão), o capita-
lismo hipertardio torna-se necessariamente dependente do imperialismo.
45
Sobre a natureza e os limites dessa “hegemonia da esquerda” na vida cultural brasileira
da época, cf. Roberto Schwarz, “Cultura e política, 1964-1969”, in: Id., O pai de família
e outros estudos, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978, p. 61-92.
46
O problema do desemprego de diplomados – com a consequente formação de um
“exército cultural de reserva” – é um dos frutos da desastrosa e demagógica política
universitária do regime militar. É certo que, em parte, o espetacular aumento das vagas
universitárias ocorrido após 1964 correspondeu às exigências do desenvolvimento ca-
pitalista. Mas um dos objetivos da política de aumento das vagas foi a de criar entre as
camadas médias uma expectativa de mobilidade social ascendente, que pretendia servir
à ampliação de uma atitude favorável ao regime entre tais camadas. O colapso dessa
política não se manifesta apenas no desemprego de diplomados (que resulta na negação
daquela expectativa); revela-se também na deterioração radical das condições do ensino
universitário, que se tornou majoritariamente ministrado em instituições privadas, com
prejuízo inclusive de sua função na reprodução do sistema econômico social vigente.
47
Por outro lado, até mesmo os intelectuais privilegiados que obtêm altos salários tendem a
não mais encarar a sua “cooptação” como um “favor” dos poderosos. É certo que podem
surgir nesse caso fenômenos de corrupção intelectual; mas o fato é que a situação de
assalariado leva espontaneamente ao estabelecimento de conflitos de interesse entre os
intelectuais bem remunerados (mas subordinados ao capital) e os patrões. Em muitos casos,
tais conflitos podem assumir a forma de uma luta desses intelectuais pela sua autonomia
enquanto produtores de cultura. Em suma: o conceito de “aristocracia intelectual”, aplicado
sem mediações, é tão problemático quanto o de “aristocracia operária”.
com a luta para pôr fim à dominação dos monopólios, ela abre
com isso a possibilidade concreta de que os produtores de cultura
se apropriem socialmente dos meios de difusão cultural de massa,
hoje em grande parte sob poder dos monopólios; e não é preciso
dizer o que isso significaria no sentido de tornar real e efetiva a
liberdade de criação assegurada no plano formal.
Em outras palavras: só a construção de uma democracia de
massas pode quebrar definitivamente os estreitos limites de casta
em que a “via prussiana” emparedou a grande maioria dos nossos
intelectuais e, desse modo, criar um novo tipo de relacionamento
– de dupla mão – entre os intelectuais e o povo-nação; momento
decisivo nesse processo será assegurado pela autogestão dos or-
ganismos de difusão cultural pelos próprios produtores culturais
associados. Ora, nesse ponto, a “questão cultural” – convertendo-se
em momento privilegiado da “questão democrática” – encontra a
base para a sua solução. Lutando pela democratização da cultura, os
intelectuais combatem efetivamente pela renovação democrática da
vida nacional em seu conjunto; e, ao mesmo tempo, lutando por
essa renovação democrática, asseguram condições mais favoráveis
à expansão e florescimento de sua própria práxis cultural.50
(1977-1979)
50
Este ensaio foi concluído e publicado pela primeira vez em 1979. Se deixarmos de lado a
repressão aberta e a censura explícita, todas as demais tendências identificadas em sua última
parte continuam a caracterizar a vida social brasileira e, em particular, a sua vida cultural.
Algumas delas até mesmo se acentuaram depois do fim, em 1985, do regime militar. A adoção
no Brasil de políticas abertamente neoliberais nos governos civis de Fernando Collor de Mello
e de Fernando Henrique Cardoso reforçou a monopolização do capital e a dependência
em face do imperialismo. Isso vale particularmente em relação à indústria cultural, que se
tornou cada vez mais monopolista e desnacionalizada. Se há um fato novo é que agora a
indústria cultural não só coopta intelectuais “tradicionais”, mas também cria seus próprios
intelectuais “orgânicos”, certamente mais inclinados a considerar os bens culturais como
meras mercadorias. Em relação à universidade, registra-se um aumento crescente do setor
privado e uma clara deterioração do setor público, hoje amplamente minoritário. Existem,
como sempre, resistências, mas o fato é que esta relativa hegemonia do neoliberalismo no
período pós-ditatorial (inclusive no governo Lula) não permitiu que as condições abertas
pelo processo de democratização política fossem capazes de modificar substancialmente,
entre outras coisas, a vida cultural brasileira. [Adendo à presente edição]
53
O termo foi cunhado pelo lukacsiano alemão Wolfgang Harich, Critica dell’impazienza
rivoluzionaria, Milão, Feltrinelli, 1972.
58
Também sem nenhuma pretensão exaustiva, citaria: de Horkheimer e Adorno, Dialética
do esclarecimento (Rio de Janeiro, Zahar, 1985); de Benjamim, Haxixe, Origem do drama
barroco alemão e Obras escolhidas, v. 1, 2 e 3 (todos pela Brasiliense, São Paulo, 1984-
1989); de Habermas, Conhecimento e interesse (Zahar), Para a reconstrução do materia-
lismo histórico (Brasiliense), Mudança estrutural da esfera pública e Crise de legitimidade
no capitalismo tardio (Tempo Brasileiro). Cabe ainda registrar duas antologias, sobre
Habermas (organizada por S. P. Rouanet e B. Freytag) e sobre Benjamin (por Flávio
R. Kothe), publicadas na coleção “Grandes Cientistas Sociais”, da editora Ática, São
Paulo, respectivamente em 1980 e 1985, bem como a coletânea de textos frankfurtianos
publicados pela Abril Cultural, São Paulo, na coleção “Os Pensadores”, vol. XLVIII,
1975, com várias reedições posteriores.
59
Refiro-me a Édipo e o anjo. Itinerários freudianos em Walter Benjamin (Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, 1981); Teoria crítica e psicanálise (Rio de Janeiro-Fortaleza, Tempo
Brasileiro-Universidade Federal do Ceará, 1983); A razão cativa (São Paulo, Brasiliense,
1985); e As razões do iluminismo (São Paulo, Companhia das Letras, 1987).
60
Cf. Sérgio Paulo Rouanet, “Verde-amarelo é a cor do nosso irracionalismo”, in: Folhetim,
17 de novembro de 1985; e Id., “Blefando no molhado”, ibid., 15 de dezembro de 1985
(republicados em As razões do iluminismo, cit., p. 124-146). Mas cf. também a entrevista
de Rouanet publicada em Veja, de 29 de janeiro de 1986. Todas as citações de Rouanet
contidas neste ensaio são retiradas desses seus três trabalhos.
entanto, ele não condena o uso do agradável em obras culturais, mas sim a sua confusão
com o especificamente estético.
a luta por uma nova cultura (momento da luta por uma nova
hegemonia) implica um esforço no sentido de “depurar” o “sen-
so comum” e elevá-lo ao nível do “bom senso”, ou seja, a uma
concepção do mundo mais organizada e sistemática que, liberta
de anacronismos e mesclas bizarras, coloque-se à altura da mo-
dernidade e se converta em instrumento de uma práxis crítica.
Todos sabem o imenso papel que Gramsci atribuía aos “grandes
intelectuais” – e, como tal, à alta cultura – nesse processo de
elevação da consciência folclorista ao nível do bom senso (ou, se
quisermos, da cultura nacional-popular). Mas tal processo não
pode ser confiado à simples esperança numa “utopia tendencial”:
sem jamais propor o desprezo ou o abandono da alta cultura,
Gramsci chega a dizer que – no nível da consciência social – o fato
de que uma concepção do mundo já elaborada seja difundida
entre as massas, tornando-se “bom senso”, é mais importante do
que a realização de uma descoberta teórica específica que reste
limitada a um círculo restrito. Por outro lado, para o autor dos
Cadernos do cárcere, essa obra de difusão e renovação cultural não
só não é incompatível com a grande arte, mas é mesmo uma de
suas condições: “É lutando por uma nova cultura – diz ele – que
se chega a modificar o ‘conteúdo’ da arte”63.
Ora, no mundo moderno (que deve certamente ser criticado,
mas não romanticamente recusado em bloco), a difusão de massa
de uma cultura crítica pode encontrar nos meios eletrônicos de
comunicação um instrumento privilegiado. Refiro-me, em pri-
meiro lugar, ao caráter positivo da difusão pela mídia de obras
culturais de nível superior (algo com o que o próprio Rouanet
talvez concorde, já que afirma que “até certo ponto a indústria
cultural é neutra em matéria de conteúdos”); com o perdão de
Adorno, citado por Rouanet, parece-me muito importante que
63
Resumo aqui conceitos gramscianos expressos nos Cadernos do cárcere, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1999-2002, em particular nos vs. 1, 2 e 6. Nas velhas edições
brasileiras, eles podem ser encontrados em Concepção dialética da história, Literatura e
vida nacional e Os intelectuais e a organização da cultura (Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, respectivamente 1966, 1968 e 1968).
(1986)
1
A exata determinação do significado de Lima Barreto na evo-
lução da literatura brasileira requer, como condição preliminar,
o estabelecimento – ainda que sumário – de algumas linhas de-
terminantes dessa evolução, não apenas no específico campo dos
problemas estéticos, mas igualmente no que se refere ao quadro
histórico-social em que ela se processa.
O caminho do povo brasileiro para o progresso social – um
caminho lento e irregular – ocorreu sempre no quadro de uma
conciliação com o atraso, seguindo aquilo que Lenin chamou de
65
O termo aparece no ensaio manniano Grandeza e sofrimento de Richard Wagner, citado
e comentado por György Lukács, Thomas Mann, Paris, Maspero, 1967, p. 162 e ss.
Este conceito foi amplamente utilizado por Lukács em suas análises literárias (sempre
em relação com o problema da “via prussiana”), servindo-lhe como fio condutor na
compreensão de muitos problemas da história literária alemã e húngara. No presente
ensaio, valho-me dessas ideias e sugestões lukacsianas, na tentativa de esclarecer problemas
específicos da cultura brasileira.
2
Essa rápida alusão às obras de Manuel Antônio de Almeida e de
Machado de Assis, os dois maiores exemplos de vitória do realismo
na arte narrativa brasileira do século 19, tem um objetivo preciso:
indicar o fato de que não existe entre os dois romancistas nenhu-
ma continuidade orgânica, que os seus meios estilísticos e os seus
recursos ideológicos – embora se orientem em ambos os casos para
o realismo e para o humanismo – são basicamente diversos. Em
outras palavras: o modo pelo qual cada um deles alcança a vitória
do realismo aparece como um fenômeno singular e irrepetível, ca-
rente de qualquer exemplaridade. É indiscutível que não existe, na
literatura universal, nenhum exemplo de continuidade homogênea,
de exemplaridade absoluta; não ocorre jamais, por parte dos realistas
expressivos, uma simples repetição das soluções estéticas e ideológicas
encontradas pelos seus antecessores. Mas, nos países que seguiram
uma via não prussiana de desenvolvimento, nos quais a contínua
intervenção popular na criação da vida nacional assegura a formação
de um amálgama sócio-humano relativamente homogêneo e con-
tínuo, a literatura apresenta também uma marcada continuidade:
os novos escritores tomam como ponto de partida, ainda que para
superá-los dialeticamente, os problemas e as soluções encontrados
por seus antecessores. Basta aqui lembrar, como exemplos, as linhas
que levam de Balzac a Roger Martin du Gard, na literatura francesa,
ou de Pushkin a Gorki (ou, ainda, de Dostoievski a Soljenitsin) na
literatura russa: apesar de grandes diversidades, os romancistas fran-
ceses e russos evidenciam uma marcante unidade e homogeneidade,
que decorre essencialmente da profunda ligação entre eles e a vida
nacional-popular de seus respectivos países.
67
A crítica desses equívocos pode ser encontrada em Astrojildo Pereira, Machado de Assis,
Rio de Janeiro, São José, 1959, particularmente p. 89-112. Mas certamente a mais lú-
cida “leitura” de Machado de Assis já produzida no Brasil é aquela contida em Roberto
Schwarz, Ao vencedor as batatas, São Paulo, Duas Cidades, 1977, e Id., Um mestre na
periferia do capitalismo, São Paulo, Duas Cidades, 1990.
68
Carta a Austregésilo de Ataíde, 19/01/1921, in: Lima Barreto, Correspondência, São
Paulo, Brasiliense, 1956, tomo II, p. 256-257.
70
Francisco de Assis Barbosa, “Prefácio” a Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías
Caminha, São Paulo, Brasiliense, 1970, p. 14.
71
Lima Barreto, Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, São Paulo, Brasiliense, 1956, p.
133-134.
73
De qualquer modo, Lima nunca hesitou em apontar no capitalismo a origem de todos
os nossos males e de defender a revolução dos “maximalistas” (ou seja, dos bolchevi-
ques), desejando-a também para o Brasil. Num artigo escrito em maio de 1918, ele diz:
“Nós, os brasileiros, devemos iniciar a nossa Revolução Social (...) Confesso que foi a
revolução russa que me inspirou tudo isso. (...) A face do mundo mudou. Ave Rússia!
(...)” (Lima Barreto, Bagatelas, São Paulo, Brasiliense, 1956, p. 96). Em março de 1919,
3
Entretanto, apesar de intuir corretamente os problemas esté-
ticos e ideológicos da literatura da nova época, Lima nem sempre
conseguiu resolver adequadamente, em sua práxis criativa, as tare-
fas a que se propusera. Seria uma explicação equivocada – diante
do autor de Triste fim de Policarpo Quaresma, uma das maiores
realizações estéticas da literatura brasileira – falar em “falta de
talento”74. As causas dos desníveis internos que podemos indicar
na produção narrativa do romancista devem ser buscadas num
nível mais profundo, ou seja, naquela ausência de continuidade
substancial na evolução do realismo brasileiro, ausência que impõe
uma linha fragmentária e cheia de altos e baixos. Essa descontinui-
dade obriga o escritor a recomeçar sempre “do início”, a descobrir
por sua própria conta os meios estético-ideológicos adequados à
reprodução da realidade; e, mais que isso, ela se insinua frequen-
temente no próprio interior da produção de cada escritor tomado
isoladamente. Assim, forçando um pouco a mão, poderíamos
dizer que “recomeçar do início” não vale apenas para cada escritor
singular, mas até mesmo para cada obra singular (ou, pelo menos,
para cada etapa singular na produção do escritor, como é o caso
em Machado de Assis). Em outro local, analisando a obra de
Graciliano, mostrei não apenas o evidente desnível existente entre
Caetés e os demais romances, mas indiquei também o fato de que
74
Em seu péssimo ensaio sobre Lima Barreto, Eugênio Gomes (Aspectos do romance brasi-
leiro, Salvador, Progresso, 1958, p. 153-173) não se limita a defender essa tese insusten-
tável. Afirma ainda que Lima seria consciente dessa sua “falta de talento”, representando
na ridícula figura de Floc – um cronista literário que, no Isaías Caminha, se suicida
ao convencer-se de suas debilidades criativas – a própria problemática pessoal. Mas o
absurdo das análises de Eugênio Gomes não para aí: nas 20 páginas do seu ensaio, nem
sequer uma vez é mencionado o Policarpo Quaresma, enquanto o único texto de Lima
que, na opinião do crítico, apresentaria indícios de talento literário seria… o Gonzaga
de Sá. Não me parece casual que um pretenso “machadiano”, como era Eugênio Gomes,
preferisse o Gonzaga, nem tampouco que, a partir de suas concepções estéticas “intimis-
tas”, deixasse inteiramente de lado o Policarpo. Esse ensaio pode ser tomado assim como
um claro sintoma da incapacidade dos críticos conservadores, mesmo quando sensíveis e
inteligentes (como é o caso de Eugênio Gomes), de compreenderem e aceitarem a obra
de Lima Barreto no que ela tem de específico.
77
Francisco de Assis Barbosa, A vida de Lima Barreto, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1964, p. 251.
4
Antes de mais nada, cabe afastar alguns possíveis equívocos: a
transformação da bizarrice em leitmotiv, ao longo de toda a obra
de Lima Barreto, não expressa uma simples preferência pessoal
do autor, algo como uma idiossincrasia; tampouco pode ser vista,
ao modo dos defensores do caráter “memorialista” da produção
do romancista, como a imediata transposição para a obra de uma
experiência pessoal. Não há dúvida de que a biografia de Lima
– como se pode ver não apenas em seu modo extravagante de
tentar conservar a dignidade pessoal, mas também na sua singular
e contraditória ideologia política – apresenta alguns traços mar-
cadamente bizarros. Mas não é difícil perceber que essa bizarrice
pessoal de Lima é somente a expressão, na vida do escritor, de
um fenômeno social objetivo mais amplo. A expressão literária
desse fenômeno, assim, decorre do profundo realismo do autor
81
Salvo indicação em contrário, todas as citações daqui para a frente são extraídas de Lima
Barreto, Triste fim de Policarpo Quaresma, São Paulo, Brasiliense, 1956.
social da terra: “E a terra não era dele [de quem a trabalhava]. Mas
de quem era então, tanta terra abandonada que se encontrava por
aí? Ele vira até fazendas fechadas com as casas em ruínas… Por que
esse acaparamento, esses latifúndios improdutivos?” Além disso,
descobre que as instituições jurídicas consagram e defendem o
latifúndio:
Aquela rede de leis, de posturas, de códigos e de preceitos, nas mãos desses
regulotes, de tais caciques se transformavam em potro, em polé, em instrumento
de suplícios para torturar os inimigos, oprimir as populações, crestar-lhes a
iniciativa e a independência, abatendo-as e desmoralizando-as.
Mas, embora já perceba alguns elementos essenciais da proble-
mática social brasileira, a visão do mundo de Policarpo está longe
de libertar-se das deformações impostas pela sua bizarrice e pelo
seu isolamento (no plano subjetivo) e pela “prussianização” da
sociedade brasileira (no plano objetivo). Em vez de enxergar num
caminho democrático-popular, numa autêntica transformação “a
partir de baixo”, a solução para os problemas que agora percebia,
Policarpo – em função de sua falta de vinculações concretas com
a vida social – começa a se tornar entusiástico defensor de “um
governo forte até a tirania”. Em outras palavras: o major “des-
cobrira” – e, em sua bizarrice, assumira com exacerbado pathos
subjetivista – a problemática da “revolução pelo alto”, ou seja,
da típica modalidade de transformação social nos países que
seguem a “via prussiana”. Essa modalidade implica a crença de
que alguns indivíduos excepcionais, ou quando muito uma elite
esclarecida, podem substituir – enquanto sujeito histórico – as
massas populares, que se supõe condenadas à apatia e à ignorância.
Não há dúvida de que essa “solução” aparece e se difunde, muitas
vezes, entre círculos “progressistas”; no plano objetivo, contudo,
ela reforça a continuidade da “via prussiana”, na medida em que
conserva o povo afastado das grandes decisões histórico-políticas.
Trata-se, em suma, apesar das eventuais aparências em contrário,
de uma solução reacionária e antipopular.
É evidente, porém, que Policarpo – como muitos dos integran-
tes do movimento florianista – não tem clara consciência, num
82
Para evitar mal-entendidos: não é necessário que o realismo formule alternativas concretas.
Em muitos casos, basta-lhe propor – como diria Tchekov – “questões razoáveis”, que
ponham em causa as soluções falsas do mundo que descreve; para citarmos um exemplo
concreto, é este o caso de Machado de Assis. Todavia, no tipo de realismo proposto por
Lima (ou seja, no realismo fundado na explícita tomada de posição), que corresponde
a períodos históricos marcados por contradições sociais intensas, a formulação de alter-
nativas torna-se elemento estrutural necessário da composição.
84
É surpreendente que até mesmo Francisco de Assis Barbosa, a quem devemos um importan-
tíssimo trabalho de levantamento biográfico e de edição da obra de Lima, afirme o seguinte:
“Ao contrário dos personagens masculinos, de traços vigorosos, gente viva, de carne e osso, as
mulheres que transitam nos seus romances são apenas desenhadas, vagas, imprecisas, faltando-
lhes a densidade, por causa talvez desse desconhecimento da alma feminina” (Barbosa, A vida
de Lima Barreto, cit., p. 278). O biógrafo, naturalmente, esqueceu-se da figura de Olga.
5
Com Lima Barreto, iniciou-se para a literatura brasileira uma
nova etapa – moderna e popular – do realismo. Tanto em sua
obra estética quanto em sua produção jornalística, o romancista
carioca rompe decisivamente com qualquer versão do “intimismo
à sombra do poder”, afirmando com clareza a dimensão humanista
do ofício literário. Diante de todas as questões que enfrentou,
como escritor ou periodista, ele sempre tentou encontrar (e, na
85
Não é aqui o lugar para uma avaliação exaustiva da problemática do modernismo. Valiosas
indicações nesse sentido estão no ensaio de Luís Sérgio N. Henriques, “Contradições
do modernismo”, incluído em Vários Autores, Realismo e antirrealismo na literatura
brasileira, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974, p. 57-74.
86
Cf. Lima Barreto, Feiras e mafuás, São Paulo, Brasiliense, 1956, p. 67-68.
87
Mario de Andrade, Aspectos da literatura brasileira, São Paulo, Martins, 1943.
(1972)
Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.
(...) Ilhas perdem o homem.
Drummond
1
A obra romanesca de Graciliano Ramos abarca o inteiro pro-
cesso de formação da sociedade brasileira contemporânea, em suas
íntimas e essenciais determinações. Nada existe nele em comum
com aquele regionalismo estreito que foi uma das manifestações
brasileiras do naturalismo “sociológico”. O destino de seus perso-
nagens, seu modo de agir e reagir em face das situações concretas
em que se encontram inseridos, são manifestações típicas de toda
a realidade brasileira. No “regional”, a Graciliano interessa apenas
o que é comum a toda a sociedade brasileira, o que é “universal”.
Mas não um universal abstrato e absoluto, pretensamente válido
em qualquer circunstância; a universalidade de Graciliano é uma
universalidade concreta, que se alimenta e vive da singularidade,
da temporalidade social e histórica. O que lhe interessa não é a
exemplificação, através da literatura, de teses e concepções aprio-
rísticas; é a narração do destino de homens concretos, socialmente
determinados, vivendo em uma realidade concreta. Por isso, pôde
ele descobrir e criar verdadeiros tipos humanos, diversos tanto da
média cotidiana como da caricatura abstrata.
A crise da sociedade brasileira apresentava-se no Nordeste
com cores mais vivas e intensas do que no resto do Brasil. Os
movimentos de renovação e de transformação que começavam a
esboçar-se (apenas a esboçar-se) por todo o país – expressando-se,
entre outras coisas, na chamada Revolução de 1930 –, chocavam-
2
Caetés, o primeiro romance de Graciliano, foi escrito entre
1925 e 1928. Essa época representa, na história do romance
brasileiro, um período de domínio quase incontrastado do na-
turalismo, que encontrara no “regionalismo” modernista, isto é,
na reconstrução superficial de ambientes e de costumes exóticos,
um forte incentivo. Embora contenha elementos que anunciam o
vigoroso realismo da década de 1930, Caetés é – em sua estrutu-
ra, em seu conteúdo e nas técnicas literárias que manipula – um
romance naturalista.
O naturalismo representa, com relação à estrutura romanesca
clássica, a supressão de uma das duas dramati personae que com-
põem o grande romance realista: o herói problemático. As obras
estruturalmente naturalistas limitam-se à descrição do mundo
convencional e vazio, isto é, à reprodução superficial de ambientes
e de indivíduos médios (cotidianos). Trata-se da primeira mani-
festação literária da decadência burguesa, isto é, de uma época na
qual a rígida divisão capitalista do trabalho, alienando os homens
com relação à história, dificulta-lhes uma visão de conjunto da
realidade global. O naturalismo limita-se a reproduzir a superfície
da realidade, jamais transcendendo (pelo menos de uma maneira
orgânica) o fenômeno empírico imediato. Ora, a realidade imedia-
ta de uma sociedade capitalista é a total mutilação do indivíduo,
sua transformação em “coisa”, em joguete de um determinismo
fatalista; a maioria dos homens adapta-se às condições de alienação
vigentes, aceitando passivamente a sua redução a meras peças de
uma engrenagem que eles não compreendem e que, por isso, os
determina do exterior. Assim, descrever apenas a realidade cotidia-
na, como pretendem os naturalistas, significa mutilar a realidade
global, desconhecendo as forças que reagem – mesmo que de uma
forma igualmente alienada – contra a alienação capitalista. Em
outras palavras, significa desconhecer aquele “incorformismo”,
aquela inquietação “demoníaca”, aquela manifestação evidente
de uma práxis humana criadora, que não aceita passivamente a
alienação e que representa, consequentemente, um outro momen-
92
G. Lukács, “Narrar ou descrever?”, in: Id., Marxismo e teoria da literatura, São Paulo,
Expressão Popular, 2010, p. 149-185.
3
Com São Bernardo, publicado em 1934, opera-se uma comple-
ta reviravolta na obra de Graciliano: superando a visão ideológica
e artística do seu primeiro romance, ele cria uma das obras mais
autenticamente realistas da literatura brasileira. Penetrando nas
determinações essenciais de nossa realidade, Graciliano reencontra
a estrutura romanesca clássica e a visão humanista que haveria de
ser o fundamento de sua práxis artística ulterior. Ao lado das ra-
zões biográficas que tornaram possível esse salto, acreditamos que
foram as próprias transformações ocorridas na realidade brasileira
a sua causa fundamental. Entre Caetés e São Bernardo, situa-se a
Revolução de 1930: apesar de suas notórias limitações, de seu
caráter de transformação “pelo alto”, ela permitiu perceber com
mais precisão as forças sociais em choque na realidade brasileira,
revelando o quanto era aparente e superficial a solidez daquela
sociedade estagnada e mesquinha e indicando as tendências
renovadoras latentes e encobertas. Em estreita ligação com esses
movimentos da renovação, Graciliano passa a ter uma ação efetiva
93
Sobre o vínculo entre “observação” e “descrição”, por um lado, e entre “participação” e
“narração”, por outro, cf. G. Lukács, “Narrar ou descrever ?”, cit.
94
“O individual perante o individual só se conserva mediante o sacrifício do outro” (Hegel,
Estética, Lisboa, Guimarães, 1959, v. 1, p. 97).
4
Após a “classicidade” de São Bernardo, pode parecer estranho,
ao leitor superficial, que Graciliano tenha escrito um romance
bastante diverso do ponto de vista técnico, no qual são mais evi-
dentes as afinidades com a chamada “vanguarda”. Na realidade,
Angústia é um romance tecnicamente “vanguardista”: além do uso
frequente do monólogo interior, em sua forma da livre associação
de ideias, encontramos nele uma radical fragmentação do tempo,
o que o aproxima das mais audaciosas experiências do romance
de vanguarda. Contudo, se aprofundarmos nossa análise, supe-
rando o nível imediato dos processos técnicos, reencontraremos
em Angústia a estrutura clássica acima descrita, o respeito às leis
universais da grande arte épica: em suma, o profundo realismo
que Graciliano, com São Bernardo, já introduzira na literatura
brasileira contemporânea. Como o dissemos acima, nenhuma
inovação formal importante, num verdadeiro artista, é pura expe-
rimentação: ela decorre da necessidade de expressar um conteúdo
novo, de concretizar artisticamente a abordagem de um novo
aspecto da realidade.
Esse novo conteúdo, em Angústia, expressa-se por uma acen-
tuação dramática das paredes do “pequeno mundo”, do cárcere
da solidão e da impotência em que está encerrado o homem
brasileiro. Em Caetés, há sempre a perspectiva – ainda que tênue
e mal esboçada – de que a superação do provincianismo, a ida
para uma grande cidade, possa propiciar uma realização humana,
uma expansão das potencialidades esmagadas pela limitação no
5
São Bernardo e Angústia, que viemos de analisar, têm como
conteúdo temático a contradição, que se estabelecia em nosso
país, entre uma sociedade semicolonial em decadência e o desen-
volvimento de elementos capitalistas; também estes elementos
capitalistas – por força da especificidade de nossa formação histó-
rica e da natureza geral do próprio capitalismo – revelavam desde
6
Trabalhando sobre uma realidade social e humana extrema-
mente complexa – que comporta em si, em situação de simultânea
contradição e integração, sistemas sociais diversos e em diversas fases
de evolução –, Graciliano recorre, em sua tentativa de captá-la artis-
105
G. Lukács, Introdução a uma estética marxista, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1970, p. 242 e ss.
106
Para a distinção entre consciência de classe real e possível, cf. L. Goldmann, Le dieu caché,
cit., p. 97-114.
107
De uma maneira errônea, a meu ver, dois inteligentes críticos de Graciliano Ramos
generalizaram esse pessimismo para toda a obra do romancista, transformando-o em sua
visão do mundo geral. Trata-se de Antonio Candido (“Ficção e confissão”, in: G. Ramos,
Caetés, São Paulo, Martins, 1961, p. 53) e Rolando Morel Pinto (Graciliano Ramos: autor
e ator, Assis, s. e., 1962, p. 25), que falam, respectivamente, em “pessimismo radical”
e em “ceticismo, pessimismo e negativismo”. Além disso, une esses dois críticos uma
acentuação exagerada do aspecto autobiográfico dos romances de Graciliano – o que, em
minha opinião, contribui pouco para a análise literária e sociológica de tais romances.
Não obstante, o belo ensaio de Cândido continua sendo uma importante contribuição
para o conhecimento da obra do romancista alagoano.
108
Esta mesma visão do mundo, ao que me parece, não encontrou uma expressão conceitual
(filosófica) tão coerente quanto a artística, devida a Graciliano. Isto foi tentado por alguns
teóricos do extinto Iseb, notadamente por Álvaro Vieira Pinto, em seu interessante livro
Consciência e realidade nacional, Rio de Janeiro, Iseb, 2 v., 1960. Contudo, escrevendo
quase 30 anos após Graciliano – num período no qual as contradições internas entre as
classes que compõem o povo brasileiro já haviam atingido um nível bem mais elevado
–, Vieira Pinto parece-me ter elaborado não uma “filosofia”, ou uma visão do mundo,
do povo brasileiro, mas uma expressão do máximo de consciência possível dos setores
mais radicais da burguesia. Por exemplo, a aceitação do socialismo é muito mais clara e
evidente em Graciliano romancista do que neste livro do digno professor Vieira Pinto.
(1965)
110
G. Lukács, “Thomas Mann e a tragédia da arte moderna”, in: Id., Ensaios sobre literatura,
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965, p. 249.
(1992)
1
Embora tenha consagrado a maior parte de sua obra historio-
gráfica à análise de nosso passado, é inegável que o objetivo central
da reflexão de Caio Prado Júnior – o ponto focal a partir do qual
se articula o conjunto de sua ampla investigação histórica – é a
compreensão do Brasil moderno. Não é casual que o título de sua
história geral de nosso país – prevista para quatro tomos, mas dos
quais foi escrito apenas o primeiro, dedicado à “Colônia” – seja
Formação do Brasil contemporâneo111. Pode-se traçar uma linha con-
tínua que liga entre si a identificação do “sentido da colonização”,
efetuada no brilhante capítulo com que se inicia essa sua obra-
prima sobre a colônia (de 1942), e as propostas para a “revolução
brasileira”, explicitadas em sua última produção significativa (de
1966). Mesmo quando trata do passado, Caio Prado tem sempre
em vista a investigação do presente como história, o que implica
para ele, enquanto marxista, uma análise dialética da gênese e das
perspectivas desse presente.
Ora, se esse movimento dialético é o núcleo de sua reflexão
historiográfica, isso indica que nela estão contidos, ainda que só
implicitamente, conceitos de “transição” ou de “modernização”. Se
ele quer pensar o presente como história, tem de responder neces-
sariamente à seguinte questão: de que modo e por que vias o Brasil
evoluiu da situação colonial originária, através do Império e das
várias repúblicas, para a constelação histórico-social que apresenta
111
Os demais volumes, que estariam “em preparo” em 1957, conforme podemos ler na
“orelha” à 5ª edição de Formação do Brasil Contemporâneo. Colônia, São Paulo, Brasiliense,
1957 (1ª ed.: 1942), teriam os seguintes títulos: 1) “A Revolução e a organização do
Estado nacional (1803-1850); 2) “O Império e as instituições do Brasil Nação (1850-
1889); 3) “A República e o Brasil contemporâneo”.
112
Essa crítica ao paradigma terceiro-internacionalista está sobretudo em Caio Prado Jr.,
A revolução brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1987 (1ª ed.: 1966), p. 29-75.
113
Em Formação do Brasil contemporâneo, cit., p. 266, ele diz: “A análise da estrutura co-
mercial de um país revela sempre, melhor que a de qualquer um dos setores particulares
da produção, o caráter de uma economia, sua natureza e organização”.
114
Cf., por exemplo, C. P. Júnior, Evolução política do Brasil e outros estudos, São Paulo,
Brasiliense, 1957 (1ª ed. 1933), p. 81; e Id. História econômica do Brasil, São Paulo,
Brasiliense, 1959 (1ª ed. 1945), passim.
115
Cf. C. P. Júnior, A revolução brasileira, cit., sobretudo p. 122 e ss., 232 e ss. e 255 e ss.
2
Quando Lenin tenta conceituar a diversidade de vias para
o capitalismo, inovando em relação ao marxismo evolucionista
e unilinear da Segunda Internacional, constrói sua tipologia a
partir do modo pelo qual o capitalismo resolve a questão agrária.
Recorda Lenin:
Marx já dizia que a forma de propriedade agrária que o modo de produção
capitalista encontra na história, ao começar a desenvolver-se, não corresponde
ao capitalismo. O próprio capitalismo cria para si as formas correspondentes
de relações agrárias, partindo das velhas formas de posse da terra (...). Na
Alemanha, a transformação das formas medievais de propriedade agrária se
processou, por assim dizer, seguindo a via reformista, adaptando-se à rotina, à
tradição, às propriedades feudais, que se foram transformando lentamente em
fazendas de Junkers (...). Nos Estados Unidos, a transformação foi violenta (...).
As terras [dos latifundiários] foram fracionadas; a grande propriedade agrária
feudal se converteu em pequena propriedade burguesa.116
116
Cf. V. I. Lenin, O programa agrário da social-democracia, São Paulo, Ciências Humanas,
1980, p. 63.
117
Caio Prado Júnior, A questão agrária no Brasil , São Paulo, Brasiliense, 1979, p. 158
(Os ensaios contidos nessa coletânea foram publicados na Revista Brasiliense, entre
março-abril de 1960 e janeiro-fevereiro de 1964).
118
Cf. A revolução brasileira, cit. p. 104.
119
Cf. A questão agrária, cit., p. 96 e passim.
Os polos principais da estrutura social do campo brasileiro – diz ele – não são
o ‘latifundiário’ ou ‘proprietário senhor feudal ou semifeudal’, de um lado,
e o camponês, de outro; e sim, respectivamente, o empresário capitalista e o
trabalhador empregado, assalariado ou assimilável econômica e socialmente
ao assalariado.120
120
Cf. A revolução brasileira, cit., p. 105.
121
Cf., para uma crítica dessas posições de Caio Prado, cf. Guido Mantega, A economia
política brasileira, São Paulo/Petrópolis, Polis/Vozes, 1984, p. 250 e ss.
122
Caio Prado Jr., A revolução brasileira, cit., p. 97-98. Cf. Francisco de Oliveira, “A eco-
nomia brasileira: crítica à razão dualista”, in: Estudos Cebrap, n. 2, São Paulo, outubro
de 1972, p. 3-82.
3
Ainda que a questão agrária tenha lugar de destaque na deter-
minação da via de transição à modernidade, um posto central nesse
processo pode também ser ocupado, em momentos determinados,
por uma outra “questão nacional”, inclusive de natureza superes-
trutural. É esta a posição de Lenin, ao comparar a Rússia com a
Alemanha: “É a questão agrária que encarna agora na Rússia a
questão nacional do desenvolvimento burguês (...). Na Alemanha,
entre 1848 e 1871, ela consistia na unificação [na criação de um
Estado nacional unificado], e não na questão agrária”.124 Em outras
palavras: é o modo de resolver a “questão nacional” central que irá
indicar se a implantação ou consolidação da formação econômico-
social capitalista será de tipo “prussiano” ou, ao contrário, de tipo
“clássico”. Lenin prossegue:
Os anos 1848-1871 foram [na Alemanha] a época de uma luta revolucionária
e contrarrevolucionária entre duas vias para a unificação, ou seja, para a so-
lução do problema nacional do desenvolvimento burguês na Alemanha, uma
das quais conduzia à unificação através da república da Grande Alemanha, e a
outra através da monarquia prussiana.125
Também a Itália, em meados do século passado, defrontava-
se com o desafio da construção de um Estado unificado, que era
então a questão básica de sua transição definitiva para o capita-
lismo. Como se sabe, a solução que predominou foi a de uma
transformação “pelo alto”: a casa real do Piemonte, sob a direção
de liberais moderados, liderou um processo de “arranjos políticos”
entre as várias classes dominantes das diferentes regiões italianas,
algumas das quais baseavam ainda sua dominação em formas
123
Cf. em particular, os ensaios contidos em Antonio Gramsci, A questão meridional, Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
124
V.I. Lenin, “Lettre à I. Skovorstsov-Stépanov”, in: Oeuvres, Paris, Ed. Sociales, 1973,
vol. 16, p. 122.
125
Ibid., p. 124.
127
Caio Prado Jr. Evolução política do Brasil, cit., p. 49-50.
4
Com suas análises da formação do Estado nacional e da evo-
lução agrária brasileira, Caio Prado lançou os fundamentos para
uma adequada compreensão marxista da via “não clássica” de
transição do Brasil para o capitalismo. Registrou, com sagacidade e
131
Ibid., p. 91.
132
Ibid., p. 94.
133
Cf. J. C. Mariátegui, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, São Paulo,
ExpressãoPopular, 2010, passim.
140
Ibid., p. 23. Também o governo Kubitschek recebeu duríssimas críticas de Caio Prado,
não só em A revolução brasileira, mas já nos ensaios dos anos de 1950, publicados na
Revista Brasiliense. Creio que ele não só subestimou o inegável desenvolvimento da
industrialização que se inicia na era varguista e prossegue na era populista, mas ignorou
completamente o crescimento e ativação da sociedade civil nela ocorrido, sobretudo no
“período malfadado” do governo Goulart.
141
Caio Prado Jr., A revolução brasileira, cit., p. 244.
142
Este é um dos pontos corretos da crítica dirigida a Caio Prado, em 1966, por Assis Ta-
vares, pseudônimo sob o qual era então obrigado a se ocultar um importante dirigente
comunista, Marco Antônio Coelho (cf. A. Tavares, “Caio Prado e a teoria da revolução
brasileira”, in: Revista Civilização Brasileira, n. 11-12, dezembro de 1966/março de 1967,
p. 79). Também é justa a observação segundo a qual Caio Prado “nem sequer cogitou
de examinar as camadas médias urbanas” (ibid., p.77). Essa ausência, a meu ver, decorre
da centralidade que ele atribui ao campo, em consequência de sua visão “atrasada” do
Brasil. Apesar de observações pertinentes, o artigo de Tavares – que mereceu uma longa
resposta de Caio Prado, incluída nas edições mais recentes de A revolução brasileira –
reproduz, no essencial, o paradigma analítico da Terceira Internacional.
(1988)
143
Caio Prado Jr., A revolução brasileira, cit., p. 267.
1
Não são muitos os pensadores sociais que formularam, em
suas obras, o que poderíamos chamar de uma “imagem do Brasil”.
Imagens desse tipo articulam sempre juízos de fato com juízos
de valor, na medida em que não se limitam a fornecer indicações
para a apreensão de problemas específicos da vida social de nosso
país (como, por exemplo, o sistema colonial, a industrialização,
a consciência do empresariado, o movimento sindical etc. etc.),
mas se propõem – para além e/ou a partir disso – a nos dar uma
visão de conjunto, que implica não só a compreensão de nosso
passado histórico, mas também o uso dessa compreensão para
entender o presente e, mais do que isso, para indicar perspecti-
vas para o futuro. Forçando um pouco os termos, poderíamos
dizer que tais “imagens” contêm sempre uma articulação entre
ciência e “ideologia”, ou entre ser e dever-ser, o que nos permite
classificá-las – conforme sua perspectiva seja conservadora ou re-
volucionária – como de direita ou de esquerda. Para darmos uns
poucos exemplos, há “imagens do Brasil” nas obras de Gilberto
Freyre e de Oliveira Vianna, que são de direita, ou na de Caio
Prado Júnior, que é de esquerda.
Florestan Fernandes insere-se entre esses poucos pensadores
em cuja obra podemos encontrar uma “imagem do Brasil”. Diria
mesmo que o mais valioso de sua vasta produção teórica – que
abordou com competência tantos e tão variados temas, da orga-
nização social dos tupinambá aos fundamentos metodológicos da
sociologia, dos problemas do negro às mudanças sociais no Brasil,
das questões da escola pública às vicissitudes da revolução latino-
americana – é precisamente essa “imagem do Brasil” que ela nos
fornece. Tal “imagem” é apresentada, sobretudo, em A revolução
2
Uma das primeiras observações a fazer, nessa comparação
entre Caio Prado e Florestan, é que ambos divergem, em pontos
substantivos, da “imagem do Brasil” formulada pelo PCB e pela
maioria dos seus “subprodutos”. De modo extremamente esquemá-
tico, poderíamos resumir assim essa “imagem” pecebista: segundo
ela, o Brasil continuaria a ser um país “atrasado”, semicolonial
e semifeudal, bloqueado em seu pleno desenvolvimento para o
capitalismo pela presença do latifúndio e da dominação imperia-
lista. Em consequência, careceríamos ainda de uma “revolução
democrático-burguesa”, que deveria ser feita com a participação
de uma “burguesia nacional” supostamente anti-imperialista e
PCB, São Paulo, Difel, 1982, 3 v. Para uma “imagem do Brasil” próxima àquela do PCB,
cabe também consultar as significativas obras de Nelson Werneck Sodré, sobretudo as
escritas a partir da década de 1960.
151
Para um maior desenvolvimento desses aspectos da reflexão do autor de A revolução
brasileira, cf. também “A imagem do Brasil na obra de Caio Prado Júnior”, supra.
3
Lenin, na definição dos pressupostos de uma via “não clássica”
para o capitalismo, recorre sobretudo ao modo de resolução da
“questão agrária”. Florestan, ao contrário, sublinha uma outra
característica para explicar a “não classicidade” brasileira: para
ele, com efeito, a peculiaridade de nossa revolução burguesa re-
sultaria essencialmente do fato de que esta se processa num país
dependente, primeiro do colonialismo, hoje do que ele chama
de “imperialismo total”. Para Florestan, residiria sobretudo nesse
caráter dependente e subalterno de nossa formação social a razão
por que não seguimos uma “via clássica” para a modernidade; ou,
mais precisamente, foi por termos sempre ocupado uma posição
dependente no quadro do capitalismo internacional que não pu-
demos conhecer uma revolução burguesa capaz de forjar em nosso
país uma superestrutura política que, referindo-se a Barrington
Moore Jr., nosso autor chama de “liberal-democrática”. Ao elencar
os traços mais perversos do que define como a “autocracia burgue-
sa” brasileira, Florestan nos adverte para o fato de que tais traços
“são típicos da organização e do funcionamento da sociedade de
classes sob o capitalismo dependente e subdesenvolvido (e não se
155
Cf., por exemplo, os textos reunidos em Caio Prado Júnior, A questão agrária no Brasil,
São Paulo, Brasiliense, 1979.
4
Essa suposição me parece estar na raiz de concepções equivocadas
presentes na produção teórica e jornalística do último Florestan.
Embora denunciasse com lucidez os limites “transformistas” do
projeto de “abertura”, Florestan parece ter subestimado – em seus
trabalhos posteriores a RBB – o fato de que tal projeto foi atraves-
sado e contraditado por um processo de abertura, isto é, por um
movimento social objetivo que resultou da ativação da sociedade
civil, em particular dos segmentos ligados às classes trabalhadoras157.
O “processo” de abertura, atuando de baixo para cima, abriu e con-
quistou espaços que nem de longe estavam previstos no “projeto”
geiseliano-golberiano, que previa apenas uma reforma da autocracia
“pelo alto”, com a conservação de suas características essenciais.
Ora, em 1974, no momento em que escreveu a última parte de
157
Para a dialética entre “projeto” e “processo” de abertura, cf. C. N. Coutinho, Contra a
corrente. Ensaios sobre democracia e socialismo, São Paulo, Cortez, 2000, p. 87 e ss.
5
As críticas que sugerimos aqui, ao tentar analisar a herança
teórica e política de Florestan, não pretendem ser mais (nem tam-
pouco ser menos) do que propostas de autocrítica. Embora talvez
nenhum marxista tenha elaborado uma “imagem do Brasil” tão
rica e lúcida como a que Florestan nos legou, sabemos – como ele
também o sabia – que “o proletariado não deve recuar diante de
nenhuma autocrítica, pois só a verdade pode levá-lo à vitória e, por
isso, a autocrítica deve ser seu elemento vital”.161 A tarefa coletiva
de elaborar uma “imagem do Brasil” com base no marxismo – para
a qual, depois de Caio Prado Júnior e de Nelson Werneck Sodré,
Florestan Fernandes deu certamente a maior contribuição – é uma
tarefa sempre em aberto, pelo que jamais poderemos nos satisfazer
com os resultados já obtidos. Para o cumprimento de tal tarefa,
Florestan não contribuiu apenas com suas brilhantes reflexões
teóricas, mas também com o seu extraordinário exemplo moral.
O radicalismo com que ele empreendeu sua atividade intelectual e
política, sobretudo na última fase de sua vida, é uma lição que nós,
intelectuais marxistas (mas não só marxistas), não podemos e não
devemos esquecer. Contra os trânsfugas e os capitulacionistas, contra
os que optaram pela falsa “democracia de cooptação”, o exemplo de
Florestan Fernandes nos recorda que o lugar dos intelectuais dignos
desse nome é ao lado das classes subalternas, na difícil, mas cada vez
mais necessária, luta pela revolução democrática e socialista.
(1998)
161
György Lukács, História e consciência de classe, Porto-Rio de Janeiro, Escorpião-Elfos,
1989, p. 107.
162
F. H. Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, São Paulo, Difusão Europeia
do Livro, 1962. A mencionada introdução está nas p. 9-33.
163
F. Fernandes, A revolução burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica, Rio de
Janeiro, Zahar, 1975. Sobre este livro seminal, cf. supra, “Marxismo e imagem do Brasil
em Florestan Fernandes”, p. 221-239.
178
O. Ianni, O colapso do populismo no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968,
p. 213.
179
Ibid., p. 240.
180
Cf., supra, nota 167.
181
A. Gramsci, Cadernos do cárcere, ed. cit., v. 1, p. 393.
182
O. Ianni, Estado e planejamento econômico, ed. cit., p. 316.
183
Cf., supra, nota 169.
(2006)
*
Este índice relaciona apenas os nomes de pessoas; não foram incluídos neste índice
nomes de personagens literários ou mitológicos, nem títulos de livros
W
WEBER, Max – 228
Z
ZOLA, Émile – 93