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CULTURA E SOCIEDADE NO BRASIL

Ensaios sobre ideias e formas

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Carlos Nelson Coutinho

CULTURA E SOCIEDADE NO BRASIL


Ensaios sobre ideias e formas

Nova edição ampliada

4a edição
Editora Expressão Popular
São Paulo – 2011

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Copyright © 1990, Carlos Nelson Coutinho
Copyright desta edição © 2011, Editora Expressão Popular Ltda.

Revisão: Maria Elaine Andreoti


Projeto gráfico e diagramação: Krits Estúdio
Impressão: Cromosete

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


Coutinho, Carlos Nelson, 1943-
C871c Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre idéias e
formas / Carlos Nelson Coutinho. -- 4.ed. -- São Paulo :
Expressão Popular, 2011.
256p.

Indexado em GeoDados - http://www.geodados.uem.br


ISBN 978-85-7743-187-8

1. Cultura - Brasil. 2. Sociedade – Brasil. I. Título.

CDD 301
CDU 316.7
Catalogação na Publicação: Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250

Todos os direitos reservados.


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ou reproduzida sem a autorização da editora.

Nova edição ampliada


Edição revista e atualizada de acordo com a nova regra ortográfica.

1ª edição: Oficina do Livro, 1990


2ª e 3ª edições: DP&A, 2002 e 2005
4ª edição: Expressão Popular, outubro de 2011

Editora Expressão Popular Ltda


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Para

Leandro Konder,
Isnaia Veiga Santana,
Roberto Gabriel Dias (†),
José Paulo Netto
e Daniel Tourinho Peres –

com quem tenho conversado


sobre muitas coisas,
até mesmo sobre estes ensaios.

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Sumário

Prefácio...................................................................................9
Os intelectuais e a organização da cultura . ............................ 13
Cultura e sociedade no Brasil.................................................. 35
Dois momentos brasileiros da escola de Frankfurt. ................... 73
O significado de Lima Barreto em nossa literatura.................... 89
Graciliano Ramos................................................................. 141
O povo na literatura de Jorge Amado................................... 195
A imagem do Brasil na obra de Caio Prado Júnior.................. 201
Marxismo e “imagem do Brasil” em Florestan Fernandes. ....... 221
O legado de Octavio Ianni.................................................... 241
Nota bibliográfica................................................................ 255
Índice onomástico.......................................................................... 257

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Prefácio

Reúno nesta coletânea os principais ensaios que escrevi, ao lon-


go de mais de 40 anos, sobre as relações entre cultura e sociedade
no Brasil. Durante um tão extenso período de tempo, certamente
se alteraram tanto o âmbito de meus interesses temáticos quanto,
muito provavelmente, alguns de meus juízos estéticos e ideoló-
gicos sobre figuras e movimentos da cultura brasileira. Contudo,
não proporia uma leitura conjunta destes ensaios se não estivesse
convencido de que eles possuem uma unidade substancial, tanto
de método como de conteúdo.
Embora o uso de categorias gramscianas se acentue nos ensaios
mais recentes, matizando e requalificando a ortodoxia lukacsiana
facilmente perceptível nos mais antigos (sobretudo os de crítica
literária), a unidade de método me parece residir num pressuposto
comum a todos eles, ou seja: só é possível entender plenamente
os fenômenos artísticos e ideológicos quando estes aparecem
relacionados dialeticamente com a totalidade social da qual são,
simultaneamente, expressões e momentos constitutivos. Enquanto
marxistas, Lukács e Gramsci nos ensinam a ver nas formas e nas
ideias algo mais do que as leis da escrita ou a coerência do discurso:
formas e ideias são também expressão condensada de constelações
sociais, meios privilegiados de reproduzir espiritualmente as con-
tradições reais e, ao mesmo tempo, de propor um modo novo de
enfrentá-las e superá-las. Os ensaios desta coletânea, ainda que
busquem respeitar a especificidade e a autonomia relativa das
produções culturais que abordam, estão todos dirigidos para um
objetivo principal: o de desvendar a problemática social que tais
produções contribuem para elevar à consciência ou à autocons-
ciência.
No plano do conteúdo, por outro lado, penso haver um fio
vermelho que atravessa os ensaios, dando-lhes relativa unidade: em
todos eles, empenho-me sempre por demonstrar que o problema

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central da cultura brasileira – ou seja, em termos gramscianos, a


escassa densidade nacional-popular de seus produtos – tem sua
gênese na ausência de um “grande mundo” democrático em nossa
sociedade (para repetir a expressão lukacsiana que utilizo no en-
saio sobre Graciliano Ramos), ausência que resulta dos processos
de transformação pelo alto (“via prussiana”, “revolução passiva”)
que marcaram a história brasileira, impedindo ou dificultando
a participação popular criadora nas várias esferas do nosso ser
social. A principal consequência dessa constelação sócio-histórica
no plano da vida cultural brasileira foi a preponderância de uma
cultura “ornamental”, elitista, que muito dificultou a construção
de uma efetiva consciência crítica nacional-popular entre nós. Essa
preponderância, contudo, jamais significou monopólio: muitos
dos ensaios aqui reunidos visam precisamente a resgatar figuras
que se colocaram contra a corrente dominante, empenhando-se
por revelar em suas obras as graves distorções humanas e sociais
geradas em nosso país pela “via prussiana”. Ao fazerem isso, tais
figuras criaram ao mesmo tempo as bases para o florescimento
de uma arte e de uma consciência social alternativas. Também
busco indicar, em alguns ensaios, a emergência das novas condi-
ções sociais que tornaram possível hoje elevar essa cultura crítica
alternativa à condição de cultura hegemônica – o que nada tem a
ver, é importante sublinhar, com cultura “única” ou “oficial”.
Ao reunir aqui os ensaios, preferi dispô-los não na ordem cro-
nológica em que foram escritos, mas segundo dois eixos temáticos
principais:
1) Os dois primeiros, sobretudo o que dá título à coletânea, têm
como meta discutir os problemas gerais da relação entre cultura e
sociedade no Brasil, examinando, em particular, o peculiar modo
de formação de nossa intelectualidade. Eles fornecem, de certa ma-
neira, o enquadramento histórico-conceitual introdutório para os
demais textos. O terceiro, dedicado à recepção brasileira da Escola
de Frankfurt, permite-me ilustrar, com um exemplo concreto, uma
tese que defendo ao longo de todo o livro, em particular nos dois
primeiros ensaios: a de que é impossível construir uma verdadeira

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cultura democrática e nacional-popular no Brasil sem recorrer aos


melhores momentos do patrimônio cultural universal.
2) Os seis ensaios seguintes abordam momentos privile­giados
da construção daquilo que poderíamos chamar de “imagem
alternativa do Brasil”. Os dedicados a Lima Barreto, Graciliano
Ramos e Jorge Amado, além de analisarem algumas determinações
gerais de nossa evolução literária, tentam mostrar como a gran-
deza das formas romanescas criadas pelos três escritores resulta,
em grande parte, do fato de que tais formas simbolizam não só
os impasses humanos provocados por esse modelo perverso de
modernização, mas também os impulsos orientados no sentido
da criação de modos alternativos de vida e de organização social.
Nesse mesmo eixo é que se situam os ensaios sobre Caio Prado
Júnior, Florestan Fernandes e Octávio Ianni: o objetivo central
das obras dos três escritores paulistas me parece ser a compreensão
conceitual dessa via “não clássica” de transição para o capitalismo,
bem como de suas deletérias consequências no presente brasileiro.
Embora utilizem diferentes meios cognoscitivos (formas simbó-
licas ou conceitos científicos), as imagens do Brasil construídas
por Lima Barreto, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Caio Prado
Jr., Florestan Fernandes e Octávio Ianni convergem num ponto
essencial: elaboram uma dura crítica da modernização “prussiana”
ou “passiva” de que fomos vítimas e, ao mesmo tempo, propõem
o esboço de uma alternativa nacional-popular e democrática para
o nosso país.
Embora não tenha alterado essencialmente meu modo de
pensar durante as quatro décadas que separam o ensaio sobre
Graciliano Ramos daquele sobre Octávio Ianni – continuo, mesmo
com o risco de me converter num “animal em extinção”, a me
considerar marxista –, modifiquei muitas das minhas posições:
afinal, para nós, marxistas, o único modo de não sermos “animais
em extinção” é assumirmos plenamente a condição de “animais
em mutação”. Foi grande, assim, a tentação de rescrever os en-
saios mais antigos, fazendo-os coincidir integralmente com meus
atuais pontos de vista. Contudo, salvo no caso de umas poucas

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revisões estilísticas e da supressão de uma formulação que hoje


julgo claramente equivocada (isto é, a caracterização do Brasil
como “semifeudal”, contida na primeira versão do ensaio sobre
Graciliano), preferi conservar os ensaios em sua forma original,
mesmo quando eles falam de coisas hoje tão fora de moda, como
“realismo socialista”. Tomei a mesma decisão no que se refere
à presença de formulações semelhantes em diferentes ensaios:
suprimi-las talvez evitasse repetições, mas com o risco de, muitas
vezes, empobrecer ou tornar obscura a argumentação de cada en-
saio tomado isoladamente. Além do mais, isso impediria o leitor
de julgar se, em tais possíveis repetições, já não estarão contidos
alguns indícios daquela necessária mutação a que me referi. É o
que sinceramente espero.*

Carlos Nelson Coutinho


Rio de Janeiro, fevereiro de 2011

*
A primeira edição desta coletânea (Belo Horizonte, Oficina do Livro, 1990) continha um
ensaio sobre “A recepção de Gramsci no Brasil”, agora incluído, numa versão atualizada,
como apêndice ao meu livro Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político (Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 1999, p. 279-305). Esta nova edição da Expressão Popular,
além de reproduzir o ensaio sobre Florestan Fernandes (já contido nas duas edições da
coletânea publicadas pela editora DP&A, Rio de Janeiro, 2000 e 2005,), inclui ainda
os ensaios sobre Jorge Amado e Octavio Ianni.

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Os intelectuais e a organização
da cultura

1
Gostaria de começar com uma questão terminológica. O
título que me foi sugerido para esta exposição, “Os intelectuais
e a organização da cultura”, é – como se sabe – o título de uma
coletânea de escritos do cárcere de Antonio Gramsci, que reúne
precisamente os textos relativos à questão dos intelectuais e da
relação deles com os mecanismos de reprodução cultural da rea-
lidade (sistema educacional, jornalismo etc.). Mas esse título não
é do próprio Gramsci.
Os famosos Cadernos do cárcere foram publicados a partir
de 1948, sob a orientação editorial de Felice Platone e Palmiro
Togliatti, não na ordem em que haviam sido escritos, mas agru-
pados segundo grandes temas, divididos em seis volumes, cujos
títulos foram escolhidos pelos próprios editores1. Pois bem: no
caso que nos interessa aqui, não só o título não é de Gramsci,
como também não é muito frequente em suas notas a expressão
“organização da cultura”.
Mas isso não quer dizer que ela seja infiel ao espírito da reflexão
gramsciana. Ao contrário: tem um forte vínculo com o conceito de
“sociedade civil”, que, como se sabe, é um conceito central na obra
do fundador do Partido Comunista Italiano. Em certo sentido,
podemos mesmo dizer que, sem uma “organização da cultura”,
não existe sociedade civil no sentido gramsciano da expressão.
Vamos resumir alguns tópicos conhecidos. O maior mérito
de Gramsci consiste em ter “ampliado” a teoria marxista clássica
1
Somente em 1975, sob os cuidados editoriais de Valentino Gerratana, foi publicada
(Quaderni del carcere, Turim, Einaudi) uma edição crítica, que não apenas apresenta os
cadernos na ordem em que foram escritos, mas fornece também as variantes dos textos
e recolhe na íntegra os apontamentos de Gramsci.

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do Estado. Ele viu que, com a intensificação dos processos de


socialização da política, com algo que ele chama algumas vezes
de “estandardização” dos comportamentos humanos gerada pela
pressão do desenvolvimento capitalista, surge uma esfera social
nova, dotada de leis e de funções relativamente autônomas e es-
pecíficas e – o que nem sempre é observado – de uma dimensão
material própria. É essa esfera que ele vai chamar de “sociedade
civil”, introduzindo uma novidade terminológica com relação a
Marx e Engels (para os quais “sociedade civil” é sinônimo de rela-
ções de produção econômicas), mas retomando alguns aspectos do
conceito tal como aparece em Hegel (que introduzia na sociedade
civil as “corporações”, isto é, associações político-econômicas que,
de certo modo, podem ser vistas como formas primitivas dos
modernos sindicatos).
Nessa nova situação, ou seja, nas formações sociais que Gramsci
chama de “ocidentais” por contraste com as “orientais” e mais pri-
mitivas, o Estado – os mecanismos de poder – não se limita mais
aos institutos de dominação direta, aos mecanismos de coerção; em
suma, ao que Gramsci chama ora de “Estado em sentido estrito”,
ora de “sociedade política”, e que ele identifica com o governo,
com a burocracia executiva, com os aparelhos policial-militares,
com os organismos repressivos em geral.
É claro que tais institutos continuam a existir nas sociedades
“ocidentais” mais complexas; continuam a ter papel fundamental
na reprodução da sociedade segundo os interesses de uma classe
dominante. Mas, ao lado deles, Gramsci vê a emergência da
“sociedade civil”. E o que especifica essa sociedade civil é o fato
de, através dela, ocorrerem relações sociais de direção político-
ideológica, de hegemonia, que – por assim dizer – “completam” a
dominação estatal, a coerção, assegurando também o consenso dos
dominados (ou assegurando tal consenso, ou hegemonia, para as
forças que querem destruir a velha dominação).
Pode-se observar que também as formas anteriores de domi-
nação de classe, as formas abertamente ditatorais ou autoritárias,
apoiavam-se na ideologia, careciam de algum modo de legitimação

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e consenso para poderem funcionar. Papel decisivo, na conquista


dessa legitimidade por um Estado, digamos, de tipo absolutista,
vinha da ideologia religiosa: a Igreja era um “aparelho ideológico
de Estado”, fundamental na época do absolutismo. Basta pensar,
por exemplo, na teoria do “direito divino” dos reis, da origem
divina da soberania do monarca.
Não usei por acaso o termo de Louis Althusser, “aparelhos
ideológicos de Estado”, que a meu ver não é sinônimo do termo
gramsciano “aparelhos ‘privados’ de hegemonia”, com o qual
Gramsci denomina os organismos da sociedade civil. Não quero
aqui entrar na discussão sobre o valor do conceito de Althusser,
mas apenas me servir dele para indicar uma diferença histórica.
Na época absolutista, é justo dizer que a Igreja, por exemplo, é
um “aparelho ideológico de Estado”. E por quê? Porque havia
uma unidade indissolúvel entre Estado e Igreja: a Igreja não se
colocava como algo “privado” em face do Estado como entidade
“pública”. A ideologia que ela veiculava (e não se deve esquecer
que ela controlava todo o sistema escolar) não tinha nenhuma
autonomia em relação ao Estado propriamente dito. O Estado
impunha a sua ideologia de modo tão coercitivo como impunha a
sua dominação em geral: quem discordava dessa ideologia cometia
um crime contra o Estado.
Com as revoluções democrático-burguesas, com o triunfo do
liberalismo, acontece um fato novo: o que poderíamos chamar de
laicização do Estado. As instâncias ideológicas de legitimação pas-
sam a ser algo “privado” em relação ao “público”: o Estado já não
impõe uma religião, ou uma visão do mundo em geral; a religião
deve conquistar consciências, deve confrontar-se, entrar em luta
contra outras ideologias, contra outras visões do mundo. Criam-se
assim, enquanto portadores materiais dessas visões de mundo, o
que Gramsci chama de “aparelhos ‘privados’ de hegemonia”. Por
um lado, velhos “aparelhos ideológicos de Estado” (como as igrejas,
as universidades) tornam-se autônomos, passam a fazer parte da
“sociedade civil”; e, por outro, com a própria intensificação das
lutas sociais, criam-se novas organizações, novos institutos também

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autônomos em face do Estado – os sindicatos, os partidos de massa,


os jornais de opinião etc. –, os quais, embora possam ter como
objetivo a defesa de interesses particulares, “privados”, tornam-se
também portadores materiais de cultura, de ideologias.
Vemos assim que a sociedade civil tem, por um lado, uma
função social própria: a de garantir (ou de contestar) a legitimidade
de uma formação social e de seu Estado, os quais não têm mais le-
gitimidade em si mesmos, carecendo do consenso da sociedade civil
para se legitimarem. E, por outro, que ela tem uma materialidade
social própria: apresenta-se como um conjunto de organismos ou
de objetivações sociais, diferentes tanto das objetivações da esfera
econômica quanto das objetivações do Estado strictu sensu. Diga-
mos que, entre o Estado que diz representar o interesse público
e os indivíduos atomizados no mundo da produção, surge uma
esfera pluralista de organizações, de sujeitos coletivos, em luta
ou em aliança entre si. Essa esfera intermediária é precisamente
a sociedade civil, o campo dos aparelhos privados de hegemonia,
o espaço da luta pelo consenso, pela direção político-ideológica
(não é aqui necessário falar sobre o papel dos partidos políticos
nesse quadro: o de agregar as correntes dominantes na sociedade
civil, de promover uma síntese política que sirva como base para
a conservação da velha dominação ou para a construção de um
novo poder de Estado). Quando surge esse mundo intermediá-
rio da “sociedade civil”, e quando ele não está totalitariamente
subordinado a um Estado despótico, podemos dizer que a socie-
dade passou de seu período meramente liberal para um período
liberal-democrático.
O que tem tudo isso a ver com a questão da “organização da
cultura”? Embora Gramsci tenha usado apenas esporadicamente
o termo, ele me parece indicar um momento necessário do seu
sistema categorial; ele vê que, numa formação social de tipo
“ocidental”, a organização da cultura já não é algo diretamente
subordinado ao Estado, mas resulta da própria trama complexa
e pluralista da sociedade civil. Mais que isso: aparece como um
momento necessário da articulação e da afirmação da própria

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sociedade civil. Desse modo, os intelectuais já não são mais neces-


sariamente ligados ao Estado ou aos seus aparelhos ideológicos; eles
podem se articular agora com essa esfera de organismos “privados”,
exercendo suas atividades (e, entre elas, a de lutar pela hegemonia
política e ideológica do grupo social que representam) através e no
seio dessas formas autônomas de criação e de difusão da cultura.
Esta, aliás, me parece uma acepção, talvez a mais importante,
da noção gramsciana de “intelectual orgânico”. Com a emergência
da sociedade civil e de sua organização cultural, os intelectuais
ligam-se predominantemente às suas classes de origem ou de ado-
ção – e, por meio delas, à sociedade como um todo – através da
mediação representada pelos aparelhos “privados” de hegemonia.
Começam a surgir fenômenos desconhecidos em épocas anterio-
res: o intelectual de partido, o intelectual ligado ao sindicato, o
intelectual que trabalha nos jornais, nas editoras etc., de partidos
ou de sindicatos, de associações de variado tipo, de correntes de
opinião; em suma: o intelectual que já não é funcionário direto do
Estado (um burocrata executivo), nem tampouco um intelectual
“sem vínculos” (Mannheim), que – em sua atividade cultural –
julga comprometer apenas a si mesmo (este seria o caso típico do
“intelectual tradicional”: e um Voltaire, na França do século 18,
poderia bem expressar o que Gramsci figura com esse termo). Sem
necessariamente perder sua autonomia e sua independência de
pensamento, o “intelectual orgânico” tem uma maior consciên­
cia do vínculo indissolúvel entre sua função e as contradições
concretas da sociedade.
A “organização da cultura”, em suma, é o sistema das institui-
ções da sociedade civil cuja função dominante é a de concretizar o
papel da cultura na reprodução ou na transformação da sociedade
como um todo. Um momento básico da organização da cultura
é o sistema educacional: cada vez mais, com o crescimento da
sociedade civil, o sistema educacional deixa de ser uma simples
instância direta da legitimação do poder dominante para se tornar
um campo de luta entre as várias concepções político-ideológicas
(basta pensar, por exemplo, na luta entre ensino laico e ensino

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religioso). E até mesmo nas organizações de ensino ligadas di-


retamente ao Estado ocorre hoje uma ampla batalha de ideias:
se a sociedade civil é realmente autônoma, as universidades, por
exemplo, tornam-se um campo de luta pela hegemonia cultural
de determinados projetos de conservação ou de transformação
das relações sociais. A luta de classes se trava também no interior
das universidades. E “organizações culturais” são também as insti-
tuições que servem para difundir ideologia de um modo geral: as
editoras, os jornais, os grupos teatrais etc., estejam ou não ligados
diretamente a algum organismo (tipo sindicato ou partido) da
sociedade civil.
Para simplificar: não pode existir sociedade civil efetivamente
autônoma e pluralista sem uma ampla rede de organismos cultu-
rais; e, vice-versa, não pode existir organização da cultura efetiva-
mente democrática sem estar apoiada numa sociedade civil desse
tipo. E a luta de classes, sob a forma da batalha de ideias, da luta
pela hegemonia e pelo consenso, atravessa tanto a sociedade civil
quanto esse sistema de “organização da cultura” (não é preciso
insistir aqui sobre o fato de que o Estado, enquanto permanecer
sob controle capitalista e/ou burocrático, interfere nessa batalha
de ideias, obstaculizando sua livre dialética imanente: tão somente
numa sociedade socialista fundada na democracia política é que
podem se criar as condições para um relacionamento verdadeira-
mente autônomo entre as organizações culturais e o Estado).

2
Como Marx disse, a chave da anatomia do macaco está na
anatomia do homem. Tracei aqui, conscientemente, as linhas gerais
das relações entre Estado e sociedade civil, entre sociedade civil
e organização da cultura, entre intelectuais e sociedade civil etc.,
tal como se manifestam numa sociedade desenvolvida, sob uma
forma que – ainda segundo uma indicação metodológica de Marx
– poderíamos chamar de “forma clássica”. Essa forma clássica mais
desenvolvida nos permite pensar a anatomia do caso brasileiro, ou
seja, de uma forma mais primitiva e menos explicitada, bem como

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examinar como ela se criou no passado e vem se transformando


até nossos dias. Diria, antecipando minha conclusão, que o Brasil
conhece uma trajetória que leva de uma situação de completa de-
bilidade (ou mesmo ausência) de sociedade civil até outra situação,
a presente, caracterizada por uma sociedade civil mais ativa, mais
complexa, mais articulada. E é preciso lembrar que essa trajetória
é expressão do progressivo ingresso do Brasil, ainda que por vias
transversas, na era do capitalismo industrial.
Vou esboçar aqui um quadro histórico-evolutivo extremamente
esquemático; repetirei muitas coisas já ditas em outros trabalhos
meus, nos quais creio que esse esquematismo aparece – se me
permitem o jogo de palavras – um pouco menos esquemático2.
Se examinarmos o Brasil da época colonial, uma sociedade
pré-capitalista (ainda que articulada com o capitalismo através do
mercado mundial), veremos facilmente a completa inexistência
de uma sociedade civil. Não tínhamos parlamento, nem partidos
políticos, nem um sistema de educação que fosse além das escolas
de catequese; não tínhamos sequer o direito de imprimir livros
ou publicar jornais. Em suma: a organização da cultura, se é que
se pode falar de “organização” nesse caso, era tosca e primitiva.
Os intelectuais, os poucos que havia, eram diretamente ligados à
administração colonial, à sua burocracia, ou então à Igreja (que
era na época um aparelho ideológico direto do Estado colonialis-
ta). Há indícios de novidade na época imediatamente anterior à
Independência, mas não passam de indícios.
O modo pelo qual se processou nossa Independência não
alterou substancialmente o quadro: a Independência resultou de
uma manobra “pelo alto”, de um golpe palaciano, e não de uma
ativação prévia da sociedade civil (ainda inexistente). Mas as pró-
prias necessidades políticas do país tornado independente, bem
como o desenvolvimento econômico, colocaram novas questões:
surgiu a necessidade de elaborar uma camada de intelectuais capaz
de servir ao novo Estado. Isso impôs, por exemplo, a criação de ins-
2
Cf. principalmente o ensaio sobre “Cultura e sociedade no Brasil”, infra, p. 35-72.

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tituições de ensino superior (principalmente jurídicas) no próprio


país, em contraste com a situação colonial, quando os intelectuais
eram formados na metrópole portuguesa. Surge também, com o
aparecimento de um incipiente mercado cultural, a necessidade
de criar os primeiros rudimentos de um sistema de organização da
cultura: publicam-se jornais, editam-se livros, montam-se peças
de teatro etc.
É preciso lembrar que vivíamos então sob um modo de
produção escravista. Um escravismo certamente peculiar, já que
articulado no nível internacional com o capitalismo, com suas exi-
gências mercantis e, portanto, capaz de “importar” um certo tipo
de cultura (e de instituições) próprias do capitalismo liberal; mas
se tratava sempre, no plano interno, de um regime escravista.
Isso gera importantes consequências para a situação do inte-
lectual. O escravismo cria um grande vazio entre as duas classes
fundamentais da sociedade brasileira: por um lado, os escravos que,
evidentemente desorganizados e carentes de um projeto político
global, não podem absorver os intelectuais como seus intelectuais
orgânicos3; e, por outro, os latifundiários escravocratas, que preci-
savam dos intelectuais apenas como mão de obra qualificada para
a implementação das atividades administrativas do Estado que
controlavam. Não precisando legitimar sua dominação através da
batalha de ideias, as classes dominantes de então incentivavam uma
cultura puramente ornamental, que serviu para conceder status
tanto aos intelectuais quanto aos seus mecenas, mas que não tinha
incidência efetiva sobre as contradições reais do povo-nação.
Em tal atmosfera social rarefeita, era difícil para o intelectual
encontrar o meio próprio para seu florescimento independente,
para sua autonomia relativa. Restavam-lhe poucas opções; a
principal, quase exclusiva, era aceitar a sua cooptação pelas classes
dominantes, tornar-se funcionário do aparelho de Estado. E não
3
É claro que houve intelectuais abolicionistas; mas, em geral, seu vínculo cultural com
os escravos era exterior, retórico – basta pensar na poesia de Castro Alves –, e a luta
abolicionista não se fazia em nome de um projeto cultural e político dos escravos, mas
de uma nova ordem liberal que garantiria o desenvolvimento do capitalismo.

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Cultura e sociedade no Brasil 21

podia ser de outro modo, numa situação em que praticamente


não havia sociedade civil: o parlamento, eleito pelo voto censitário
de uma exígua minoria, não podia ser considerado uma entida-
de autônoma em face do Estado em sentido estrito; os partidos
políticos não eram partidos de massa, mas simples apêndices do
Estado. Por outro lado, o mercado cultural era extremamente
restrito; se hoje é quase impossível ao intelectual sobreviver no
Brasil com a venda de suas obras, pode-se facilmente imaginar o
que ocorria no século 19.
E mais: a cooptação assumia frequentemente o traço do favor
pessoal. Ligando-se a um poderoso, a um proprietário influente, o
intelectual era agraciado com empregos, prebendas etc. É verdade
que essa situação de subordinação pessoal às classes dominantes era
disfarçada pelo status relativamente elevado atribuído à condição
de intelectual. A posse da cultura era um meio de distinção para
homens livres mas não proprietários, que não queriam se dedicar
a um trabalho efetivo, já que o trabalho era marcado pelo estigma
da condição escrava. Ser intelectual era ser ocioso; e precisamente
na possibilidade de desfrutar desse ócio é que residia o traço de
distinção, o status superior do intelectual. E esse status, ao mesmo
tempo em que servia de disfarce para a posição dependente do
intelectual, acentuava o caráter ornamental da cultura dominante
da época.
É nesse clima que surge o que tenho chamado (usando um
termo de Thomas Mann recolhido por Lukács) de “intimismo à
sombra do poder”. O intelectual cooptado não tem necessariamen-
te de ser um apologeta direto do regime social que o mantém e do
Estado ao qual está ligado. Ele pode, em sua criação cultural ou
artística, cultivar sua própria intimidade, ou seja, dar expressão a
ideologias ou estilos estéticos que lhe pareçam os mais adequados
à sua subjetividade criadora. Mas o fato é que a própria situação
de isolamento em face dos problemas do povo-nação, a “torre de
marfim” voluntária ou involuntária em que é posto pela situação
de cooptação (e pela ausência da sociedade civil), faz com que
essa cultura elaborada pelos intelectuais “cooptados” evite pôr em

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discussão as relações sociais de poder vigentes, com as quais estão


direta ou indiretamente comprometidos.
Por exemplo: o romantismo, com seu culto da subjetividade,
funciona certamente como estímulo à evasão. O próprio indianis-
mo, como Nelson Werneck Sodré mostrou, é um modo de deixar
na sombra a questão mais candente da vida nacional da época: a
questão da escravidão negra (não me parece casual que o romântico
José de Alencar, “vanguardista” literário, fosse – além de político
conservador – um convicto escravista). O naturalismo, tão diverso
do romantismo sob tantos aspectos, tem um ponto semelhante: ao
dizer que a “miséria brasileira” é fruto de condições fatais, naturais,
eternas, de raça e de clima, os naturalistas desviam a atenção dos
pontos concretos, histórico-sociais, portanto modificáveis, que
estão na raiz daquela miséria.
Esses dois exemplos parecem-me indicar bem a caracterís-
tica central da cultura que nasce no solo da cooptação: trata-se
de uma cultura que promove uma “apologia indireta” (Lukács)
do existente, que justifica a estrutura social não mediante a sua
defesa direta, mas mediante a sua mistificação ou ocultamento
(caso do romantismo); ou mediante a afirmação de que, embora
feia e desumana, ela é imutável, e que devemos nos resignar a ela
(como no naturalismo). É evidente que existem exceções, e não é
casual que elas sejam precisamente as maiores figuras do período­,
do ponto de vista cultural; basta pensar em Manuel Antônio
de Almeida ou em Machado de Assis, que souberam – em suas
criações literárias – escapar dos impasses gerados pela cultura do
“intimismo”4.
Essa situação não se alterou radicalmente durante a Primeira
República. Também a República, como a Independência, foi fruto
de uma mudança “pelo alto”; foi pouco mais do que um golpe
militar; as grandes massas, que continuavam desorganizadas,
não participam de sua proclamação. O arremedo de instituições

4
Tento apontar algumas das causas de tais “exceções” em meu ensaio sobre Lima Barreto,
infra, p. 89-139.

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republicanas criado em seguida não era de molde a fortalecer a


sociedade civil. O parlamento continuou a ser um mero apêndice
do Executivo; os partidos eram nada mais que confrarias locais a
serviço de alguns coronéis envolvidos na política. No essencial,
a vida intelectual continua restrita a poucos setores das camadas
médias; continua em grande parte a ser uma “cultura ornamental”,
algo que Afrânio Peixoto expressou muito bem quando, ingenua­
mente, definiu a literatura como sendo “o sorriso da sociedade”.
As polêmicas culturais abrem fissuras na superfície homogênea
da camada intelectual, mas não tocam nas questões de fundo:
não passam, no mais das vezes, de tempestades em copo d’água.
Parnasianos, simbolistas, românticos tardios: todos se identificam
numa comum concepção de cultura, ou seja, uma concepção
elitista, aristocratizante, ornamental.

3
Mas seria errado não ver que algo começa a se mover, algo
que explodiria à luz do sol sobretudo a partir dos anos de 1920.
A sociedade brasileira vai se tornando mais complexa (ou menos
simples), o capitalismo vai se tornando o modo de produção
dominante também nas relações internas. Nossa estrutura social,
com a Abolição, com os primeiros inícios da “via prussiana” no
campo, começa a se tornar mais próxima da estrutura de uma
sociedade capitalista, ainda que continue atrasada e fortemente
marcada por restos pré-capitalistas; novas classes e camadas sociais
se apresentam no cenário político do País. Antes de mais nada,
começa a surgir uma classe operária formada ainda essencialmente
por semiartesãos; os primeiros esboços de industrialização, a gran-
de imigração de finais do século passado, criam um bloco social
contestatário, que põe em discussão de modo organizado (o que
talvez ocorra no Brasil pela primeira vez) o modelo “prussiano”,
elitista e marginalizador de dominação política, econômica e social
até então dominante.
Começa assim a surgir, com a introdução do capitalismo,
com o início das lutas operárias e com as agitações das camadas

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médias, um germe do que se poderia chamar de “sociedade civil”.


Multiplicam-se as associações proletárias; em consequência, surge
uma ainda rarefeita mas ativa imprensa operária, de orientação
predominantemente anarquista. Temos assim que, a um embrião
de sociedade civil (associações sindicais e primeiros grupos políticos
de artesãos e operários), corresponde um embrião de organização
cultural exterior ao Estado (a imprensa e as associações culturais
dos proletários).
É nesse quadro, a meu ver, que se pode explicar o “fenômeno”
Lima Barreto; Lima é o primeiro grande intelectual brasileiro a se
beneficiar diretamente dessa maior explicitação das contradições
sociais, dessa primeira (ainda que incipiente) tentativa de organizar
a partir de baixo a vida política e cultural brasileira. Lima publicou
grande parte de sua produção cultural, sobretudo jornalística,
nessa nova imprensa operária que surgia em sua época. E em
seu principal romance, Policarpo Quaresma, ele faz uma crítica
demolidora da sociedade brasileira, atingindo-a em seu ponto
talvez mais típico: no modelo de desenvolvimento “prussiano”,
“pelo alto”, que o florianismo e o militarismo (tema central do
romance) encarnavam tão bem.
E tampouco é casual que, em 1922, assista-se a um fato da
maior importância na vida do país: a fundação do Partido Co-
munista do Brasil. Temos com isso, pela primeira vez em nossa
história, a criação de um partido político feita a partir de baixo;
e de um partido não só independente do Estado, mas até mesmo
antagônico a ele. O PCB, embora ainda não fosse um organismo de
massa, representava o embrião de um autêntico partido moderno,
que é momento básico de uma sociedade civil efetiva.
O modo “prussiano” pelo qual se deu a chamada Revolução de
1930 – mais uma manobra “pelo alto”, fruto da conciliação entre
setores das classes dominantes e da cooptação das lideranças polí-
ticas das camadas médias emergentes (expressas no “tenentismo”)
– quebrou em grande parte as tendências que se vinham esboçando
antes. Mas não as destruiu inteiramente. É certo que o Estado
pós-1930 lutou para extinguir a autonomia da sociedade civil

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nascente, incorporando corporativamente os sindicatos à estrutura


do Estado (e destruindo sua autonomia), instalando em 1937 uma
ditadura aberta que fechou partidos e parlamentos, criando, com
o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), um arremedo
de organismo cultural totalitário (ou seja, uma tentativa de pôr
a cultura diretamente a serviço do Estado). Mas a diversificação
da formação social brasileira prosseguia; o próprio capitalismo “à
prussiana”, impulsionado pelo Estado getulista, encarregava-se
de promover essa diversificação. Tinha-se agora um pressuposto
(que se podia certamente reprimir, porém não mais eliminar) para
a criação de uma sociedade civil, de uma organização da cultura
menos vinculada a um Estado onipotente.
O romance nordestino – um grande protesto literário contra
o modo “prussiano” de modernizar o país – é um exemplo vivo
de que então se tornara possível, e não mais apenas como exceção
que confirma a regra, criar uma cultura não elitista, não intimista,
ligada aos problemas do povo e da nação5. Uma cultura, em suma,
nacional-popular.
E não me parece possível desligar a irrupção de fenômenos
como a floração de importantes estudos sociais no período (é de
1933 a primeira tentativa séria de interpretar a história do Brasil
à luz do marxismo: o ensaio pioneiro sobre a Evolução política do
Brasil de Caio Prado Júnior) da tendência à socialização da política
que, apesar dos evidentes limites, começa a se manifestar nos anos
de 1930. A Aliança Nacional Libertadora e a Ação Integralista
Brasileira são movimentos políticos de massa de proporções até
então desconhecidas em nossa história. Essa socialização da política
indica que já estavam em andamento os processos que levariam
à criação no Brasil de uma sociedade civil autônoma e pluralista.
Mas que se tratava ainda de embriões débeis, com raízes recentes
e tenras, é algo que o próprio golpe de 1937 iria comprovar: mais
5
A crítica romanesca da “via prussiana” não aparece apenas nos excelentes romances de
Graciliano Ramos. Basta pensar nos romances de José Lins do Rego que tratam das
devastações humanas provocadas pela capitalização do latifúndio, pela conversão do
velho engenho na moderna usina.

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uma vez foi possível às classes dominantes se servirem do Estado,


de mecanismos de dominação “de cima para baixo” (e que agora
apresentavam traços terroristas e totalitários tomados de emprés-
timo ao fascismo internacional), para empreenderem um processo
de modernização capitalista conservadora, afastando o povo de
qualquer decisão, quebrando qualquer veleidade de autonomia
da sociedade civil nascente.
Essa debilidade da sociedade civil – é bom não esquecer –
revela-se também pelo lado oposto: no caráter abertamente “gol-
pista”, igualmente autoritário e elitista, que marcou a atuação das
forças políticas renovadoras do período. Longe de apostarem no
fortalecimento da sociedade civil, as forças populares apostavam
no golpe, no putsch blanquista, na ação de exíguas minorias, como
se viu em 1935, quando o movimento de massas esboçado na
ANL – que fora posto na ilegalidade – é abandonado em favor
de uma quartelada.

4
Esses embriões de sociedade civil, esses pressupostos de uma
autonomia da cultura, favorecidos ademais pela situação interna-
cional, apareceriam de modo mais claro em 1945, com a rede-
mocratização do país. Fato significativo é que, pela primeira vez,
o Partido Comunista do Brasil, legalizado, torna-se um partido
de massas; e revela, na época, compreender melhor do que em
1935, embora de modo ainda insuficiente, a importância da luta
democrática, do fortalecimento da sociedade civil nos combates
pelo socialismo em nosso país6. Os sindicatos operários, embora
continuassem atrelados à tutela do Ministério do Trabalho, co-
meçam a ter um peso crescente não só nas lutas econômicas, mas
inclusive na vida política nacional. Também as camadas médias
buscam formas de organização independentes, nos partidos e
fora deles: escritores, advogados, jornalistas criam associações

6
Sobre o PCB em 1945, cf. Leandro Konder, A democracia e os comunistas no Brasil, Rio
de Janeiro, Graal, 1980, p. 49-61.

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para a defesa de seus interesses e de seus ideais. Tudo isso amplia


o campo da organização material da cultura; uma ampla e muitas
vezes fecunda batalha das ideias começa a ter lugar entre nós. Há
um acentuado empenho social da intelectualidade, um maior
comprometimento com as causas populares e nacionais.
A possibilidade de subsistir fora da cooptação e do favor dos
poderosos, graças à rede de organizações culturais que se amplia
(com a publicação de jornais e revistas independentes, com o au-
mento do número de editoras, com uma crescente autonomia das
recém-criadas universidades etc.), permite ao intelectual escapar
mais facilmente dos impasses a que é levado pela situação, pouco
confortável em muitos casos, do “intimismo à sombra do poder”.
E isso não vale apenas para os intelectuais desligados do aparelho
de Estado: muitos produtores de cultura que retiram seu sustento
material de cargos públicos, ao poderem agora se beneficiar do
clima de ativação da sociedade civil, colocam-se claramente ao lado
das forças progressistas, comprometem-se com posições políticas
e visões de mundo que colidem frontalmente com a dominação
de classe encarnada pelo Estado do qual são funcionários.
Isso demonstra, a meu ver, o caráter mecanicista e esquemá-
tico das teses que afirmam ser o intelectual brasileiro, enquanto
intelectual, um membro das classes dominantes; ou que afirmam
ser ele obrigado a assumir posições elitistas, ou mesmo reacio-
nárias, tão somente por ser funcionário público. Basta lembrar
que Lima Barreto, “maximalista” radical, violento crítico do
militarismo, foi por muitos anos um pacato funcionário do
Ministério da Guerra. A questão é muito mais complexa. Em
primeiro lugar, é certo que há uma tendência dos intelectuais
ligados diretamente ao Estado no sentido de adotarem uma cul-
tura intimista, elitista; mas essa tendência só se impõe na média,
permitindo naturalmente as exceções, que não são poucas. E, em
segundo lugar, essas exceções aumentam, tendem mesmo a deixar
de ser exceções, no momento em que se estrutura uma sociedade
civil, em que começam a se formar diferenciações no mundo da
cultura: surge para o intelectual, mesmo para aquele que con-

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tinua ligado “profissionalmente” ao Estado, uma possibilidade


bem mais concreta de romper as paredes do mundo fechado do
“intimismo” e de ser influenciado pela riqueza da vida cultural,
pelo ambiente pluralista da batalha democrática das ideias. A
relação de dependência entre cooptação e adoção de uma cultura
elitista tende a relaxar, a deixar de ser uma tendência dominante,
no momento em que surge ou se fortalece uma sociedade civil
articulada. Com amarga lucidez, Carlos Drummond de Andrade
lembrou que não se deve confundir “servir sob uma ditadura”
com “servir a uma ditadura”.
O clima favorável à democratização da vida cultural aberto em
1945 sofreu altos e baixos (basta pensar no fechamento do PCB
em 1947, no clima de guerra fria que marca o governo Dutra),
mas pode-se dizer que a tendência no sentido de uma democrati-
zação geral da vida brasileira continua a se impor, ampliando-se
bastante no final do período pré-1964, sobretudo a partir do
governo Kubitschek7. Mas, mesmo assim, ainda são pouco sólidas
as bases de um novo caminho (democrático) para a vida nacional
e de uma nova hegemonia (nacional-popular, e não mais elitista)
na cultura brasileira.

5
Isso se tornou evidente quando, em 1964, uma aliança entre
os vários segmentos das classes dominantes conseguiu truncar o
processo de democratização em curso, impondo mais uma vez uma
solução “prussiana” para os problemas decorrentes da necessidade
de levar o país a um novo patamar de acumulação capitalista. O
novo regime ditatorial, particularmente no período que se seguiu

7
Em 1958, o PCB indicou claramente essa tendência, que considerava – malgrado os
seus altos e baixos – “uma tendência permanente”: “As forças novas que crescem no
seio da sociedade brasileira, principalmente o proletariado e a burguesia, vêm impondo
um novo curso ao desenvolvimento político do país (...). Esse novo curso se realiza no
sentido da democratização, da extensão dos direitos políticos a camadas cada vez mais
amplas.” (“Declaração do CC do PCB”, março de 1958, in: PCB: Vinte anos de política,
São Paulo, Ciências Humanas, 1980, p. 8).

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ao AI-5, tentou por todos os meios destroçar o embrião de socie-


dade civil autônoma que se vinha esboçando. E é evidente que a
organização da cultura não foi poupada. Não é casual que, entre
as primeiras medidas do regime ditatorial implantado em 1964,
estivesse o fechamento dos principais institutos democráticos de
organização cultural da época, os Centros Populares de Cultura
(CPCs) e o Instituto Superior de Estudos Brasileitos (Iseb), bem
como a dissolução do Comando dos Trabalhadores Intelectuais
(CTI) e intervenções nas universidades.
Todo o esforço da “política cultural” do regime se voltou no
sentido de dar força às correntes elitistas e/ou escapistas no plano
cultural. E isso era obtido principalmente de dois modos: por
um lado, reprimindo e censurando os intelectuais que defendiam
uma orientação cultural nacional-popular, com o que se abria
espaço para o monopólio de fato das correntes “intimistas”; por
outro, quebrando a autonomia da sociedade civil, autonomia
que, como vimos, é a base necessária para uma cultura pluralista
e democrática.
Outro fator conspirou ainda para obstaculizar a democrati-
zação da cultura. O regime ditatorial-militar criou as condições
políticas necessárias à passagem do capitalismo brasileiro para
uma nova etapa: a etapa da dominação dos monopólios, a etapa
do capitalismo monopolista de Estado. Com isso, introduziu-se
um fato novo no sistema de organização da cultura: uma parte
substancial deste, a dos meios de comunicação de massa, passou a
ser dominada por grandes monopólios. A televisão é o caso mais
evidente, mas o fenômeno se manifesta também em outras áreas,
como a grande imprensa, o cinema etc. O “capital mínimo” (Marx)
necessário à criação de um organismo cultural tornou-se agora tão
elevado, em setores fundamentais, que somente os grandes grupos
monopolistas podem dispor dele.
Mas devo advertir que não penso como Theodor W. Adorno;
não acho que a indústria cultural seja um sistema monolítico, sem
brechas. Mesmo antes que se chegue a uma radical inversão de
tendência, a uma situação na qual os organismos de difusão cultu-

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ral sejam apropriados coletivamente pela comunidade, através dos


produtores culturais associados, o que só ocorrerá numa sociedade
socialista fundada na democracia política – mesmo antes disso,
e para que possamos chegar a isso, a luta pela democratização da
cultura pode e deve obter ganhos parciais de grande importância
e significação.
Por um lado, é preciso lembrar que há ainda setores culturais
em que pequenas e médias empresas podem operar, garantindo
assim uma maior variedade de orientações, um maior pluralismo; é
o caso da indústria editorial, da chamada imprensa alternativa, da
montagem teatral etc. E, por outro lado, à medida que a resistência
democrática vai pondo fora de funcionamento os instrumentos de
repressão e de censura, os próprios monopólios da cultura – penso
particularmente na televisão e na grande imprensa escrita – co-
meçam a abrir mais espaços às exigências da sociedade civil, a dar
passagem relativa ao pluralismo que nela tem lugar. Além disso,
com a conquista de um regime de efetivas liberdades democráticas,
podem-se conceber formas diretas de controle – exercidas tanto
pelos próprios produtores culturais quanto pelos organizadores da
sociedade civil – sobre a geração dos programas televisivos e sobre
a informação em geral.
E mais: malgrado o caráter deletério da “política cultural” da
ditadura, nem tudo foram sombras na cultura brasileira durante os
anos do regime militar. Não quero me referir apenas à resistência
passiva ou ativa da esmagadora maioria dos intelectuais, que – in-
dependentemente de suas posições ideológicas – colocaram-se em
oposição às medidas repressivas do regime no plano da cultura. Há
um fato que me parece ainda mais significativo, já que está na raiz
dessa resistência: é que o regime militar – modernizando o país,
promovendo um intenso desenvolvimento das forças produtivas,
ainda que a serviço do capital nacional e multinacional, ainda que
conservando traços essenciais do atraso no campo – deu impulso
aos fatores objetivos que levam a uma diferenciação social e, como
tal, à construção de uma autêntica sociedade civil entre nós. A
intensa sede de organização que, nos últimos anos, atravessou

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o país, envolvendo operários, mulheres, jovens, setores médios,


intelectuais, até mesmo setores das classes dominantes, atesta a
presença já efetiva dessa sociedade civil.
É certo que o regime militar tudo fez para abafar esse flores-
cimento da sociedade civil desde o momento em que percebeu
as imensas potencialidades democráticas de sua atuação. Mas a
ditadura brasileira não foi uma ditadura fascista “clássica”, ou
seja, um regime reacionário com base de massas organizada. Não
dispôs de organismos de massa capazes de lutar e conquistar a
hegemonia na sociedade civil, para depois destruir sua autonomia
e fazer funcionar seus organismos como “correias de transmissão”
de um Estado totalitário, como ocorreu na Itália ou na Alemanha
fascistas. É certo que a ditadura brasileira lutou para conquistar – e,
em alguns momentos (quando da sua implantação e nos anos do
“milagre”), conseguiu até mesmo obter – o consenso de ponderá-
veis parcelas da população. Mas se tratou sempre de um consenso
passivo, que pressupunha a atomização das massas e não se expres-
sava mediante organizações de apoio ativo à ditadura. O regime
militar, em suma, era desmobilizador; sua tentativa de legitimação
não se fundava numa ideologia claramente fascista, mas na luta
contra as ideologias em geral, contra a própria política, acusadas
de “dividirem a nação” e de impedirem assim a “segurança” que
“garante o desenvolvimento”. E, na mesma medida em que era
obrigada a dispensar a organização das massas, a luta no interior
da sociedade civil, a ditadura dispensou também o concurso de
intelectuais orgânicos que elaborassem uma ideologia totalitária
a seu serviço: o que ela exigia dos intelectuais, do mesmo modo
como o haviam feito os velhos regimes autoritários brasileiros, é
que eles continuassem a cultivar o seu “intimismo à sombra do
poder”, deixando aos tecnocratas “anti-ideológicos” a discussão e
o encaminhamento das questões decisivas da vida política.
Ora, durante a fase do chamado “milagre econômico”, essa
“ideologia da não ideologia” (de fundo neopositivista) pôde
desfrutar de um relativo consenso entre setores médios e servir à
legitimação parcial do regime. Mas, a partir do início da crise do

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“modelo” e da reativação e reorganização da sociedade civil – o


que tem lugar em meados dos anos de 1970 –, essa ideologia
entrou em bancarrota. Como vimos, o regime militar não tinha
(e não podia criar) movimentos de massa capazes de organizar
o consenso na sociedade civil, de torná-lo relativamente estável,
mesmo em épocas de dificuldades e crises. Para lutar pela obtenção
desse consenso, ele se viu forçado a empreender uma tentativa de
“autorreforma”, a abandonar a repressão como único instrumento
de governo; e essa autorreforma, para ser exequível, implica de
certo modo a necessidade, por parte do regime, de fazer política.
Mesmo lutando para conservar o seu monopólio de decisão, a
ditadura foi obrigada a respeitar em certa medida os espaços con-
quistados pelas forças democráticas na sociedade civil, a conviver
com a presença de algo que escapava ao seu controle. Confirma-
se assim, de certo modo, a tese do PCB em 1958: malgrado os
retrocessos, a democratização da vida brasileira – que se apoia no
desenvolvimento da sociedade civil gerada objetivamente pela
modernização capitalista – parece ser uma tendência permanente
e, a longo prazo, irreversível.
O próprio desenvolvimento do capitalismo, ao criar um
mercado de força de trabalho intelectual, alterou a situação dos
produtores de cultura: a possibilidade de que eles exerçam sua
função já não depende do favor pessoal, já não resulta da coopta-
ção. O velho intelectual elitista, prestigiado por possuir cultura,
converte-se cada vez mais em trabalhador assalariado. Experimenta
agora a necessidade de se organizar, como qualquer outro grupo
social, para lutar por seus interesses específicos, entre os quais
não se situa apenas a melhoria das condições de trabalho; e, entre
essas últimas, ocupa lugar de destaque a sua autonomia enquanto
criador. A luta pelo específico articula-se aqui com a luta geral,
ou seja, com a luta pela liberdade de expressão, de criação e de
crítica, que só podem ser asseguradas plenamente num regime
democrático aberto à renovação social. De casta fechada, de cor-
poração de notáveis, os intelectuais passam a ser uma parcela do
mundo do trabalho.

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Criaram-se assim as condições para que os intelectuais com-


preendam de dentro, como uma exigência de sua própria sobrevi-
vência como produtores de cultura, a necessidade da construção
de uma sociedade democrática. A conquista da democracia – de
um sistema de organizações culturais aberto e pluralista, apoiado
numa sociedade civil autônoma e dinâmica – torna-se a base para
o florescimento de uma cultura nacional-popular entre nós; mas a
elaboração e difusão de tal cultura, contribuindo para a hegemonia
dos trabalhadores (do braço e da mente) na vida nacional, é por
seu turno um momento ineliminável na conquista, consolidação
e aprofundamento da democracia, de uma democracia de massas
que seja parte integrante da luta e da construção de uma sociedade
socialista em nosso país.

(1980)

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Cultura e sociedade no Brasil

O presente ensaio não tem a menor pretensão de esgotar – nem


histórica nem sistematicamente – os muitos e complexos proble-
mas que aborda. Deve ser lido como um conjunto de anotações
mais ou menos fragmentárias sobre alguns tópicos que me pare-
cem decisivos para a correta colocação e o justo encaminhamento
da questão cultural entre nós. O que unifica relativamente essas
anotações é que elas partem de um pressuposto – o de que não
é possível compreender a problemática da cultura brasileira sem
examinar algumas características da nossa intelectualidade, ligadas
ao modo específico do desenvolvimento social em nosso país – e
desembocam numa perspectiva: a maneira pela qual a “questão
cultural” se resolverá no futuro imediato vai depender, em medida
não desprezível, da resolução dos complexos problemas colocados
pela renovação democrática e social de nosso país.
Isso não quer dizer, contudo, que essas anotações pretendam
ser “normativas” no sentido estreito da palavra. Ou seja: não têm
a intenção de ditar ao criador cultural certas regras estéticas e/ou
determinados procedimentos político-morais sem cuja observância
“não haveria salvação” para ele. Na criação artística ou cultural em
geral, “não há salvação” para o criador se ele não se comprometer
radicalmente com os valores e princípios que considera os mais
adequados à sua personalidade enquanto criador. Nesse sentido, se
há alguma “norma” proposta neste ensaio, é a defesa intransigente
da mais ampla e radical liberdade de criação cultural.
Todavia, mesmo com o risco de repetir o óbvio, gostaria de
advertir que essa liberdade de criação me parece condicionada por
dois “limites”. Em primeiro lugar, operando sempre num quadro
histórico-social concreto, a liberdade de criação implica condi-
cionamentos sociais, dos quais o criador pode ou não estar cons-
ciente. E, dado que a liberdade em geral é também conhecimento
da necessidade, como queriam Hegel e Engels, então a específica

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36 Carlos Nelson Coutinho

liberdade de criação não será restringida – mas, ao contrário, será


potenciada – se o criador tomar consciência das implicações sociais
(tanto do ponto de vista da gênese quanto dos efeitos) de sua pro-
dução cultural. Um dos objetivos deste ensaio é precisamente o de
tentar esboçar alguns desses condicionamentos concretos no caso
brasileiro e, com isso, contribuir para uma tomada de consciência
destes por parte dos produtores de cultura.
Em segundo lugar, a mais ampla liberdade de criação tem como
contrapartida necessária a mais ampla liberdade de crítica: se só ao
criador cabe, em última instância, definir os conteúdos e as formas
de sua criação (o que ele fará de modo tanto mais livre quanto
mais for consciente dos condicionamentos sociais a que me referi),
ao crítico cultural cabe o direito de exercer a sua plena liberdade
de avaliar – em nome dos critérios que considerar válidos – os
resultados concretos dessa criação. É evidente que a prática dessa
dupla liberdade, de criação e de crítica, implica de ambas as partes
a possibilidade do acerto ou do fracasso (com todas as suas gamas
intermediárias). Mas a decisão quanto a isso não pode, em nenhum
caso, depender de outra instância que não seja a própria dialética
da vida cultural, na pluralidade de suas orientações e tendências.
Talvez possa parecer supérfluo insistir nisso; mas houve e há fatos
concretos que tornam necessário eliminar dúvidas e preconceitos,
se é que efetivamente desejamos criar em nosso país, também no
plano da vida cultural, uma efetiva democracia pluralista.

1. Subordinação formal e subordinação real:


ou como as ideias “entram no lugar”
Um dos primeiros tópicos para uma justa conceituação da
“questão cultural” no Brasil é a análise da relação entre cultura
brasileira e cultura universal. Em sua dimensão ontológico-social,
é este um problema que não pode ser resolvido no plano de uma
análise imanente das “fontes” e “influências”. Há uma prévia ques-
tão histórico-genética a exigir resposta: de que modo se articulou
a evolução das formações econômico-sociais brasileiras, de cuja
reprodução e transformação a nossa cultura é momento determi-

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Cultura e sociedade no Brasil 37

nado e determinante, com o desenvolvimento do capitalismo em


nível mundial?
Colocando na pergunta a questão do capitalismo, já indicamos
boa parte da resposta. Enquanto formação social específica e rela-
tivamente autônoma, o Brasil emerge na época do predomínio do
capital mercantil, na época da criação de um mercado mundial.
Nossa pré-história como nação – os pressupostos de que somos
resultado – não residem na vida das tribos indígenas que habita-
vam o território brasileiro antes da chegada de Cabral: situam-se
no contraditório processo da acumulação primitiva do capital, que
tinha seu centro dinâmico na Europa Ocidental. Os efeitos culturais
desse processo foram assim descritos por Marx e Engels:
Em lugar do antigo isolamento de regiões e nações que se bastavam a si próprias,
desenvolvem-se um intercâmbio universal, uma universal interdependência das
nações. E isso se refere tanto à produção material quanto à produção intelectual.
As criações culturais de uma nação tornam-se propriedade comum de todas. A
estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; das
inúmeras literaturas nacionais e locais, nasce uma literatura universal.8

O objetivo central do colonialismo, na época do predomínio do


capital mercantil, consistia em extorquir valores de uso produzidos
pelas economias não capitalistas dos povos colonizados, com a fina-
lidade de transformá-los em valores de troca no mercado internacio-
nal. A subordinação dessas economias agora “periféricas” ao capital
mercantil metropolitano se dava no terreno da circulação: era, para
usarmos com certa liberdade um célebre conceito de Marx, uma
subordinação formal 9, que mantinha essencialmente intocado o modo

8
K. Marx e F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, in: Id., Obras escolhidas, Rio de
Janeiro, Vitória, 1956, vol. 1, p. 29.
9
Para os conceitos de subordinação (ou subsunção) formal e real, cf. K. Marx, O capital,
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, Livro 1, p. 585 e ss; e Id., O capital, Livro
1, Capítulo VI (inédito), São Paulo, Ciências Humanas, 1978, p. 51-70. A passagem da
subordinação formal para a real, garantindo a socialização das forças produtivas, cria
os pressupostos materiais para que a produção se liberte de sua forma social capitalista;
do mesmo modo, poderíamos dizer que a passagem correspondente, numa economia
“periférica”, faz com que surjam as bases materiais internas – nacionais – para a superação
da dependência ao capital internacional.

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de produção do povo colonizado. O fato de que a extorsão crescente


de valores de uso levasse, com o passar dos tempos, a uma alteração
das bases econômicas e sociais do modo de produção interno num
sentido mercantil e mesmo capitalista (ou seja, que gradualmente se
passasse da subordinação formal à subordinação real) é um resultado
não intencional do processo de colonização, não sendo característico
de seus inícios (voltarei depois a essa questão).
O esquema acima indicado vale também para o caso brasileiro;
mas apresenta aqui uma especificidade da maior importância, que
não pode ser negligenciada na avaliação de nossa dependência colo-
nial e que tem amplas consequências no plano da cultura. Não havia
em nosso território uma formação econômico-social que, mesmo
primitiva, fosse capaz de fornecer excedentes de vulto ao processo
de circulação do capital mercantil colonialista. O problema, assim,
era o de criar um aparelho produtivo que se articulasse diretamente
com o mercado mundial. Mas o fato de que o modo de produção
vigente na era colonial tivesse sido posto e reposto pelo movimento
internacional do capital não significa, como pensam muitos de
nossos historiadores, que se tratasse de um modo de produção capi-
talista, ainda que “imperfeito” ou “incompleto”10. Tais historiadores
não levam na devida conta o fato de que a característica essencial
do modo de produção capitalista – característica que está na base
da lei do valor-trabalho e, por conseguinte, de todas as demais leis
que operam nesse modo de produção − é a existência do trabalho
“livre”, do trabalho assalariado, que praticamente inexiste no Brasil
durante toda a era colonial. Mas tampouco me parece correto que,
numa justa reação à teoria do “capitalismo colonial”, outros histo-
10
Um dos principais defensores da tese do “capitalismo colonial brasileiro” é Caio Prado Jr.
Fernando Henrique Cardoso, por sua vez, fala em “capitalismo incompleto” (cf. Autori-
tarismo e democratização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975, p. 104-106). A consequência
mais problemática da definição do modo de produção colonial como capitalista é que
assim se termina por reduzir o problema geral da transição para o capitalismo no Brasil
ao problema mais específico da industrialização; com isso, perde-se a possibilidade de
operar de modo fecundo com a categoria de “via prussiana”, que denota precisamente
um processo no qual a transição para o capitalismo se dá com a conservação de elementos
pré-capitalistas, tanto na infraestrutura quanto no Estado.

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riadores insistiam excessivamente na tese da autonomia do nosso


modo de produção, chegando mesmo a afirmar que o processo de
circulação no período colonial era posto pelo modo de produção
interno, em vez de ser – como penso – o ponto através do qual esse
modo de produção tornava-se formalmente subordinado ao capital
(mercantil) internacional.
Sem entrar aqui nos detalhes da ampla polêmica acerca da
natureza desse modo de produção pré-capitalista da era colo-
nial, assumo como hipótese a de que se tratava de um modo de
produção escravista (de resto, o adjetivo colonial não me parece
caracterizar o modo de produção, no sentido de atribuir-lhe novas
leis, mas indica precisamente o seu vínculo de subordinação for-
mal ao capital internacional: uma subordinação que certamente
sobredetermina essas leis, que são porém as leis gerais de todo
modo de produção escravista com dominância mercantil11). É o
elemento escravista que fornece a marca determinante da formação
econômico-social. Ele interfere, por um lado, na produtividade
econômica do sistema, que se mantém estacionária (ao contrário
do que ocorreria no feudalismo12), com todas as consequências
que disso resultam para a criação ulterior de um mercado interno
e, portanto, para a forma “prussiana” que prevaleceria quando da
transição para o capitalismo13. E, por outro lado, vale ressaltar
11
De qualquer modo, parece-me de grande interesse o livro de Jacob Gorender, O escra-
vismo colonial, São Paulo, Ática, 1978, certamente uma das mais lúcidas reflexões sobre
o nosso modo de produção na época colonial.
12
Sobre os estímulos ao aumento da produtividade no feudalismo, em contraste com o
bloqueio tecnológico do escravismo, cf. Perry Anderson, Dall’antichità al feudalesimo,
Milão, Mondadori, 1978, p. 116 e ss.
13
Todavia, do ponto de vista dessa transição, a questão não se altera essencialmente se se
confirmasse a presença do feudalismo no Brasil. O decisivo é constatar que essa transição
“prussiana” se deu com a conservação de formas de trabalho fundadas na coerção extrae-
conômica, formas que, como se sabe, são características tanto do escravismo quanto do
feudalismo. Referindo-se ao sul dos Estados Unidos, Lenin observou: “As sobrevivências
econômicas do escravismo não se distinguem absolutamente em nada das do feudalismo
(...). Encontramos aí passagem da estrutura escravista – ou feudal, o que no caso dá no
mesmo – da agricultura para a estrutura mercantil e capitalista” (V. I. Lenin, “Nouvelles
donnés sur les lois du dévelopement du capitalisme dans l’agriculture”, in: Id., Oeuvres,
Paris, Éditions Sociales, 1973, vol. 22, p. 21 e 106).

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a marca escravista sobre a estrutura de classes: a degradação do


trabalho manual, que é muito mais intensa no escravismo do que
no feudalismo, opera no sentido de criar faixas “médias” margi-
nalizadas pelo sistema (tanto nas cidades quanto no campo), que
só podem se reproduzir através do “favor” dos poderosos. Mais
adiante, veremos a fundamental importância do “favor” na for-
mação da intelectualidade brasileira.
O fato de que os pressupostos da nossa formação econômico-
social estivessem situados no exterior teve uma importante
consequência para a questão cultural. Isso significa que, no caso
brasileiro, a penetração da cultura europeia (que se estava trans-
formando em cultura universal) não encontrou obstáculos prévios.
Em outras palavras, não existia uma significativa cultura autóctone
anterior à colonização que pudesse aparecer como o “nacional”
em oposição ao “universal”, ou o “autêntico” em contraste com o
“alienígena”. Basta pensar no mundo árabe, na China e na Índia,
ou mesmo no Peru e no México, para compreender imediatamente
a diferença com o caso brasileiro. No Brasil, mesmo na época da
subordinação formal, ou seja, mesmo quando o modo de pro-
dução interno ainda não era capitalista, as classes fundamentais
de nossa formação econômico-social colonial encontravam suas
expressões ideológicas e culturais na Europa14. Com sua habitual
lucidez, Antonio Candido registra o fato (o qual, em sua faticidade,
independe de juízos de valor):
Imitar, para nós, foi integrar, foi nos incorporarmos à cultura ocidental, da
qual a nossa era um débil ramo em crescimento. Foi igualmente manifestar a
tendência constante de nossa cultura, que sempre tornou os valores europeus
como meta e modelo15.

14
É evidente que a cultura indígena e, em particular, a cultura negra desempenham um
papel decisivo na formação de nossa fisionomia cultural especificamente brasileira. Mas
tal papel ocorreu sempre no quadro de um amálgama com as matrizes europeias (basta
pensar, por exemplo, no processo ocorrido na música popular). Quando resistiram contra
esse amálgama, independentemente do valor moral dessa resistência, as culturas índia
e negra transformaram-se ou em folclore ou na expressão de grupos marginais.
15
A. Candido, Introducción a la literatura de Brasil, Caracas, Monte Ávila, 1968, p. 27.

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A cultura universal, assim, não era algo externo, imposto pela


força, à nossa formação social, mas algo potencialmente interno, que
ia se tornando efetivamente interno à medida que (ou nos casos em
que) era recolhido e assimilado por uma classe ou um bloco de classes
ligados ao modo de produção brasileiro. Nascido no momento em
que se forma o mercado mundial, e como consequência de sua ex-
pansão, o Brasil – desde sua origem – já é herdeiro potencial daquele
patrimônio cultural universal de que falam Marx e Engels. A história
da cultura brasileira, portanto, pode ser esquematicamente definida
como sendo a história dessa assimilação – mecânica ou crítica, passi-
va ou transformadora – da cultura universal (que é certamente uma
cultura altamente diferenciada) pelas várias classes e camadas sociais
brasileiras. Em suma: quando o pensamento brasileiro “importa”
uma ideologia universal, isso é prova de que determinada classe ou
camada social de nosso país encontrou (ou julgou encontrar) nessa
ideologia a expressão de seus próprios interesses brasileiros de classe.
Quando surgiu no Brasil a classe operária, por exemplo, não foi
nos mitos bororos ou nas religiões africanas que ela foi buscar sua
expressão teórica adequada.
Antes de prosseguir, cabe dissipar um possível mal-entendido.
Embora condicionado pela relação de dependência (ou de subordi-
nação econômica), esse vínculo com a cultura universal não impõe
necessariamente um caráter dependente ou “alienado” à totalidade
de nossa cultura16. Por um lado, no interior de nossa formação
social, há a presença de classes antagônicas, com perspectivas
diferentes diante do problema da dependência política e econô-
mica, da subordinação (formal ou real) ao capital mundial; por
outro, no seio da cultura universal, surgem correntes ideológicas
diversas que refletem no plano das ideias – para nos expressarmos
de modo simplificado – o antagonismo entre progresso e reação.
Ora, é natural que se formem “afinidades eletivas” entre as classes
anticoloniais e anti-imperialistas e as correntes ideológicas pro-
16
Essa ideia de uma “alienação” estrutural da cultura brasileira, por causa da situação colonial
ou semicolonial, foi a posição dominante entre os intelectuais ligados ao Iseb. Sobre isso,
cf. Caio Navarro de Toledo, Iseb: fábrica de ideologias, São Paulo, Ática, 1977, p. 81-90.

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gressistas; ou entre os beneficiários da dependência e as correntes


reacionárias. O processo não é certamente mecânico, comportando
a possibilidade de “erros” ou “desvios”: mas me parece justo dizer
que, quando “transplantada” para o Brasil por uma classe pro-
gressista e anticolonial, uma corrente cultural avançada contribui
para formar em nosso país uma consciência social efetivamente
nacional-popular, contrária ao espírito da dependência, àquilo que
Nelson Werneck Sodré chamou de “ideologia do colonialismo”
(ou seja, a adoção por brasileiros de correntes culturais – como o
racismo – que justificam a nossa situação de dependência)17.
Como quase toda reprodução social, também a da dependência
é uma reprodução ampliada, que implica a longo prazo transfor-
mações de qualidade. Ocorre, assim, uma progressiva conversão
da dependência através da subordinação formal em dependência
através da subordinação real; isso se dá quando o próprio modo
de produção interno, sob a ação combinada de fatores endógenos
e exógenos, vai se tornando efetivamente capitalista e se subor-
dinando não mais ou apenas ao capital mercantil ou comercial,
mas também, e sobretudo, ao capital industrial ou financeiro
internacionais. Essa conversão cria novas condições para a nossa
história cultural. Quanto mais passa a predominar a subordinação
real, tanto mais vai desaparecendo aquele fenômeno que Roberto
Schwarz, em sua lúcida análise da cultura brasileira do século 19,
chamou de “ideias fora do lugar”.
Segundo Schwarz, o mais claro exemplo dessa “inadequação”
entre ideia europeia e realidade brasileira é a importação do libe-
ralismo no século 19. O vínculo do modo de produção interno
(ainda não capitalista) com o capital mundial, sobretudo na época
imediatamente anterior e posterior à Independência, levou o bloco
das classes dominantes no Brasil de então – formado pela junção
da oligarquia latifundiária e escravocrata com os representantes
internos do capital comercial – a adotar uma ideologia liberal

17
Nelson Werneck Sodré, A ideologia do colonialismo, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1965, p. 11-16.

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burguesa. Schwarz observa: “Era inevitável (...) a presença entre


nós do raciocínio econômico burguês – a prioridade do lucro,
com seus corolários sociais –, uma vez que dominava no comércio
internacional, para onde a nossa economia era voltada”18. Mas,
como aquela ideologia liberal não se adequava inteiramente ao
modo de produção interno (que não era capitalista), revela-se
objetivamente como uma “ideia fora do lugar”: “Esse conjunto
ideológico [liberal] iria chocar-se contra a escravidão e seus de-
fensores, e o que é mais, viver com eles”19.
Há assim – se bem interpreto Schwarz – uma curiosa e
paradoxal dialética de adequação e inadequação. É certo que o
liberalismo expressa interesses efetivos das camadas dominantes:
livre-cambismo no comércio internacional, cálculo racional na
comercialização dos produtos de exportação, garantia de igual-
dade jurídico-formal entre os membros das oligarquias rural e
comercial etc. E, em outro nível, expressa também os interesses
dos homens livres, mas não proprietários, que viam assegurados
pela ideologia liberal seus direitos formais à igualdade com os
senhores e sua diferença em face dos escravos. Mas, diante do
fenômeno da escravidão, da desigualdade estabelecida como fato
natural, do trabalho fundado sobre a coerção extraeconômica e não
sobre a livre contratação no mercado, o liberalismo brasileiro de
então revela sua face “inadequada” e “fora do lugar”. Além disso,
tampouco se pode falar em regulamentação liberal no relaciona-
mento entre os “grandes” e os homens livres sem propriedade.
O “favor”, que marca tal relacionamento, consagra vínculos de
dependência pessoal, de tipo pré-capitalista; é, por conseguinte,
um modo de relacionamento autoritário (mesmo quando pater-
nalista) e antiliberal.
É essa dialética de adequação e inadequação que, a meu ver,
altera-se com a passagem à subordinação real. Com o início da
18
Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas, São Paulo, Duas Cidades, 1977, p. 14. Pelos
motivos que indicarei em seguida, não concordo com a generalização que Schwarz faz
para o século 20 (cf. por exemplo, ibid., p. 19 e 24) de sua tese de “ideias fora de lugar”.
19
Ibid., p. 14.

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industrialização, ou, mais precisamente, com a transição do modo


de produção interno à fase propriamente capitalista (o que já se ve-
rifica também em certos setores da agricultura na época da abolição
da escravatura, ainda que isso se dê de modo “prussiano”, ou seja,
com a conservação de traços pré-capitalistas), as ideias importadas
vão cada vez mais “entrando em seu lugar”, tornando-se mais ade-
rentes às realidades e aos interesses de classe que tentam expressar.
E isso porque a estrutura de classes da sociedade brasileira vai se
tornando essencialmente análoga àquela da sociedade capitalista
em geral. Com isso, as contradições ideológicas que marcam a
vida cultural brasileira do século 20 aproximam-se cada vez mais –
ainda que sem jamais se igualarem inteiramente – às contradições
ideológicas próprias da cultura universal do período.
Já não se pode dizer, por exemplo, que o “maximalismo”
libertário de Lima Barreto esteja simplesmente “fora do lugar”;
na verdade, a ideologia de Lima expressa – e precisamente em
sua contraditoriedade interna, em seus limites, em seus eventuais
“desvios” com relação às matrizes europeias – a concreta proble-
mática das camadas urbanas subalternas que vão sendo geradas
direta ou indiretamente pelo crescimento da indústria. Para usar
uma expressão de Lucien Goldmann, essa ideologia aparece
como o máximo de “consciência possível” dessas camadas nas
duas primeiras décadas do século 20. Uma observação análoga
valeria para o movimento modernista de 1922: sem discutir aqui
o conteúdo ideológico desse movimento, parece-me que a ten-
tativa de renovação das técnicas artísticas a partir da importação
do vanguardismo europeu pode ser interpretada como a expressão
do necessário esforço de adequação das “forças produtivas” da
arte ao novo universo cotidiano que o capitalismo, em sua forma
moderno-industrial, ia introduzindo na vida brasileira, sobretu-
do em São Paulo. Os exemplos poderiam ser multiplicados, até
mostrar como a irrupção do neopositivismo ou da contracultura
na vida cultural brasileira mais recente correspondem – sem “estar
fora do lugar” – à passagem do capitalismo brasileiro para a etapa
do capitalismo monopolista de Estado.

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2. Os efeitos da “via prussiana” sobre a intelectualidade


brasileira
Somente se tivermos em mente esse vínculo estrutural da
cultura brasileira com a cultura universal é que poderemos ava-
liar corretamente o sentido e a atualidade do problema de uma
cultura nacional-popular em nosso país, sem com isso cairmos
na armadilha de um falso “nacionalismo cultural”. Mas, antes
de abordar esse problema, é preciso indicar outra determinação
histórico-genética essencial da cultura brasileira, gerada dessa feita
não tanto no nível do caráter dependente de nossas relações de
produção, mas – através da mediação dessa base econômica – no
nível do tipo de articulação entre as classes e o poder político que
foi característica da evolução histórica do Brasil.
Essa problemática pode ser resumida na ideia de que o processo
de modernização econômico-social no Brasil seguiu uma “via prus-
siana” (Lenin) ou uma “revolução passiva” (Gramsci). Recordemos
as características centrais do fenômeno: as transformações ocorridas
em nossa história não resultaram de autênticas revoluções, de movi-
mentos provenientes de baixo para cima, envolvendo o conjunto da
população, mas se processaram sempre através de uma conciliação
entre os representantes dos grupos opositores economicamente
dominantes, conciliação que se expressa sob a figura política de
reformas “pelo alto”. É evidente que o fenômeno da “via prussiana”
– tal como Lenin o formula – tem sua expressão central na questão
da passagem para o capitalismo, no modo de adequar a estrutura
agrária às necessidades do capital20. Mas, generalizando o conceito,
pode-se dizer que – na base de uma solução “prussiana” global para
a questão da transição ao capitalismo – todas as grandes alternativas
concretas vividas pelo nosso país, direta ou indiretamente ligadas
àquela transição (Independência, Abolição, República, modificação
do bloco de poder em 1930 e 1937, passagem para um novo patamar
de acumulação em 1964), encontraram uma resposta “à prussiana”;

20
Cf. V. I. Lenin, O programa agrário da social-democracia na primeira revolução russa de
1905-1907, São Paulo, Ciências Humana, 1980.

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uma resposta na qual a conciliação “pelo alto” jamais escondeu a


intenção explícita de manter marginalizadas ou reprimidas – de
qualquer modo, fora do âmbito das decisões – as classes e camadas
sociais “de baixo”21. Portanto, a transição do Brasil para o capita-
lismo (e de cada fase do capitalismo para a fase subsequente) não
se deu apenas no quadro da reprodução ampliada da dependência,
ou seja, com a passagem da subordinação formal à subordinação
real em face do capital mundial; em estreita relação com isso (já
que uma solução não prussiana da questão agrária asseguraria as
condições para o desenvolvimento de um capitalismo nacional não
dependente), essa transição se processou também segundo o modelo
da “modernização conservadora” prussiana22.
Entre as várias consequências da “via prussiana” ou da “revolução
passiva”, há uma de particular relevância também no plano da cultura:
dado que o instrumento e o local da conciliação de classes foi sempre

21
Esse conceito “ampliado” de via prussiana aparece em György Lukács. “Não é por acaso
que Lenin indica essa via [seguida pela Alemanha] como um caso típico de alcance inter-
nacional, como uma via desfavorável para o surgimento da moderna sociedade burguesa;
ele a chama de via prussiana. Essa observação de Lenin não deve ser limitada à questão
agrária em sentido estrito, mas aplicada a todo o desenvolvimento do capitalismo e à
superestrutura política que ele assumiu na moderna sociedade burguesa da Alemanha”
(G. Lukács, La distruzione della ragione, Turim, Einaudi, 1959, p. 50). Em muitas de suas
análises concretas da sociedade e da cultura da Alemanha e da Hungria, Lukács aplicou
de modo fecundo seu conceito “ampliado” de via prussiana: cf., por exemplo, o seu ensaio
sobre Béla Bartók (“Il mandarino meraviglioso contro l’alienazione”, in: Rinascita, n. 37,
18/09/1970, p. 18-20), onde ele relaciona organicamente os conceitos de “via prussiana” e
de “intimismo à sombra do poder”. É interessante observar ainda que o conceito lukacsiano
de “via prussiana” é essencialmente análogo ao conceito gramsciano de “revolução passiva”
(ou “revolução-restauração”, ou “ revolução pelo alto”), com o qual Gramsci pretende
sintetizar a ausência de participação popular e o tipo de modernização conservadora que
foram próprios do caminho italiano para o capitalismo. Nem se deve esquecer que tais
conceitos foram desenvolvidos por Lukács e por Gramsci na tentativa de determinar as
raízes históricas do fascismo, respectivamente, na Alemanha e na Itália.
22
Ou, em outras palavras: se tivesse ocorrido uma solução diversa para a nossa secular
questão agrária, uma solução democrático-revolucionária e não “prussiana”, isso teria
aberto o espaço efetivo para uma industrialização centrada no mercado interno popular;
uma tal industrialização – expandindo-se de baixo para cima – poderia ter evitado a
monopolização precoce e a dependência tecnológica ao exterior, que estão na raiz do
modelo capitalista dependente-associado que efetivamente triunfou.

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o Estado, verificou-se um fortalecimento do que Gramsci chama de


“sociedade política” (os aparelhos burocráticos e militares que exer-
cem a dominação através do governo) em detrimento da “sociedade
civil” (do conjunto de aparelhos ideológicos através dos quais uma
classe, ou um bloco de classes, luta pela hegemonia ou pela capacidade
de dirigir o conjunto da sociedade). Ora, esse modelo de evolução
política e seus resultados sobredeterminam – e consequentemente
alteram – o modo de relacionamento “clássico” (no sentido que Marx
dá a essa palavra) entre os intelectuais e as classes sociais.
Em primeiro lugar, a debilidade da sociedade civil é responsável
pela minimização de um dos papéis essenciais da cultura, precisa-
mente o de expressar a consciência social das classes em choque e
de organizar a hegemonia ideológica de uma classe ou de um bloco
de classes sobre o conjunto dos seus aliados reais ou potenciais. A
cultura brasileira tornou-se assim em grande parte uma cultura “or-
namental”, já que não existia (ou era excessivamente débil) o medium
próprio da vida cultural: a sociedade civil. Em segundo lugar, um
dos modos de isolar os grupos populares dos processos políticos
constitui precisamente em “assimilar” os seus virtuais representantes
ideológicos, incluindo-os – naturalmente em posição subordinada
– nos novos blocos de poder que iam resultando dos processos de
conciliação pelo alto. Isso se faz, essencialmente, através dos vários
mecanismos de cooptação das camadas médias (em particular dos
intelectuais) pelas classes dominantes. Esses mecanismos vão desde o
“favor” concedido a homens livres, mas não proprietários, na época
da escravidão, passam pelo recrutamento da burocracia civil e mi-
litar a partir da época do Segundo Império e sobretudo do período
varguista e chegam até a criação pelo regime militar – mediante
mecanismos de redistribuição de renda – de um setor privilegiado
de tecnocratas dotado de alto poder de consumo.
O escasso peso dos aparelhos privados de hegemonia e dos
partidos políticos de massa na formação social brasileira – em que
“o Estado era tudo [e] a sociedade civil era primitiva e gelatinosa”23
23
A. Gramsci, Cadernos do cárcere, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, v. 3, 2000, p. 262.

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– condenou os intelectuais que se recusavam à cooptação pelo


sistema dominante à marginalidade no plano cultural e, para nos
expressarmos com certa vulgaridade, a seríssimos problemas no
plano da subsistência econômica24. E isso para não falar na repres-
são política direta contra os intelectuais que tentaram se ligar às
camadas populares (ou que são por elas produzidos), repressão que
não foi um fenômeno marginal na história das relações entre os
intelectuais e o Estado no Brasil. Temos assim um claro “desequi-
líbrio” na luta cultural: enquanto as classes dominantes encontram
com relativa facilidade os seus representantes ideológicos ou os
seus “intelectuais orgânicos” (veremos logo mais que até mesmo a
cultura “ornamental” serve ideologicamente à conservação social),
as camadas populares são frequentemente “decapitadas” e lutam
com grandes dificuldades para dar uma figura sistemática à sua
autoconsciência ideológica. Basta pensar nos países que não segui-
ram uma “via prussiana” para o capitalismo (como a França) ou
que superaram posteriormente os seus efeitos (como a Itália pós-
fascista) para compreender as diferenças com o caso brasileiro.
O conjunto desses pressupostos prepara um clima favorável a
que a cultura se desenvolva naquele clima asfixiante que – valendo-
me de uma expressão de Thomas Mann recolhida por Lukács –
chamei em outro local de “intimismo à sombra do poder”25. Esse
“intimismo” liga-se diretamente ao problema da ornamentalidade
da cultura. O processo de cooptação não obriga necessariamente
24
O vínculo de dependência do intelectual brasileiro ao Estado foi bem observado por
Antonio Candido, que chega por isso a constatar, em nossa literatura oitocentista, “um
certo conformismo de forma e de fundo” (Candido, Literatura e sociedade, São Paulo,
Nacional, 1965, p. 99). De modo ainda mais incisivo, Walnice Nogueira Galvão observa:
“O Estado (...) se encarrega de dispensar o intelectual de qualquer papel na produção,
sustentando-o por meio de empregos burocráticos, doações, prêmios, prebendas etc. É
assim que o intelectual se torna peça do aparelho de Estado, com as consequências para
sua obra que se podem prever. (...) Então, o que se pode imaginar é que, com maior ou
menor boa vontade, voluntariamente ou a contragosto e mesmo com raríssimas exceções
honrosas, os intelectuais brasileiros aderem à ideologia da classe dominante e procuram
não enfrentar o Estado, do qual depende diretamente sua subsistência” (W. N. Galvão,
Saco de Gatos, São Paulo, Duas Cidades, 1976, p. 40-41).
25
Cf. C. N. Coutinho, “O significado de Lima Barreto em nossa literatura”, infra, p. 89-95.

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Cultura e sociedade no Brasil 49

o intelectual cooptado a se colocar diretamente a serviço das clas-


ses dominantes enquanto ideólogo; ou seja, não o obriga a criar
ou a defender apologias ideológicas diretas do existente. O que
a cooptação faz é induzi-lo – através de várias formas de pressão,
experimentadas consciente ou inconscientemente – a optar por
formulações culturais anódinas, “neutras”, socialmente assépticas.
O “intimismo à sombra do poder” lhe deixa um campo de ma-
nobra ou de escolha aparentemente amplo, mas cujos limites são
determinados precisamente pelo compromisso tácito de não pôr
em discussão os fundamentos daquele poder a cuja sombra ele é
livre para cultivar a própria “intimidade”26.
No interior desse espaço fechado a um contato orgânico com a
realidade do povo-nação, o intelectual cooptado pode experimen-
tar o seu isolamento não como uma aprazível “torre de marfim”,
mas como uma “danação” da qual não pode se libertar. Se a maior
parte das ideologias ou das obras de arte criadas no terreno do
“intimismo” são apologéticas, elas o são naquele sentido media-
tizado que Lukács – partindo da ideia de que não há ideologia
socialmente “inocente” – resumiu na expressão “apologia indireta”
do existente27. Por exemplo: no caso brasileiro, o culto da evasão
subjetivista no velho romantismo ou na novíssima contracultura,
o pessimismo ontológico dos naturalistas, o cientificismo (que
se pretende anti-ideológico) dos estruturalistas etc. são apologia
do existente apenas na medida em que afastam da ótica da arte
ou da ciência social as contradições concretas da realidade, em
que transformam o essencial em inessencial ou vice-versa, obs-
curecendo ou impedindo uma justa consciência dos problemas
efetivos do povo-nação (para evitar mal-entendidos: a relação

26
“Contudo, seria prova de esquematismo entender essa tendência como manifestação
de uma clara adesão imediatamente político-ideológica ao poder estabelecido, às for-
mas mais reacionárias de dominação social, embora também essa adesão ocorresse em
alguns casos. O ‘intimismo à sombra do poder’ combinou-se frequentemente com um
inconformismo declarado, com um mal-estar subjetivamente sincero diante da situação
social dominante” (ibidem, p. 92).
27
G. Lukács, La distruzione della ragione, cit., p. 5 e 205-206.

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50 Carlos Nelson Coutinho

que estabeleço aqui entre cooptação e “intimismo” é uma relação


tendencial, que, se é válida para a média, não o é evidentemente
para cada caso singular).
A tendência objetiva da transformação social no Brasil a se
realizar por meio da “conciliação pelo alto” marca de vários modos
o conteúdo da cultura brasileira. Antes de mais nada, surgem entre
nós manifestações explícitas da ideologia “prussiana”, que – em
nome de uma visão abertamente elitista e autoritária – defendem
a exclusão das massas populares de qualquer participação ativa nas
grandes decisões nacionais. Citando declarações nesse sentido de
pensadores como Farias Brito, Gilberto Freyre, Oliveira Vianna,
Miguel Reale, Francisco Campos, Eugênio Gudin e outros, Lean-
dro Konder assim sintetiza a essência do pensamento autoritário
e de direita entre nós:
O pluralismo da ideologia da direita pressupõe uma unidade substancial profun-
da, inabalável: todas as correntes conservadoras, religiosas ou leigas, otimistas ou
pessimistas, metafísicas ou sociológicas, moralistas ou cínicas, cientificistas ou
místicas, concordam em um determinado ponto essencial. Isto é: em impedir
que as massas populares se organizem, reivindiquem, façam política e criem
uma verdadeira democracia28.

Mas o elitismo antipopular não aparece apenas em pensadores


autoritários e de direita. A conciliação social e política encontra
um reflexo ideológico na tendência do pensamento brasileiro ao
ecletismo, ou seja, à conciliação igualmente no plano das ideias.
Fortes contaminações de “prussianismo” aparecem também em
nosso pensamento liberal, tornando-o por vezes acentuadamente
moderado e mesmo conservador29. O liberal defende a mudança que
se tornou necessária, valendo-se para tanto de formulações ideoló­
gicas progressistas; mas, ao mesmo tempo, recusa as con­sequên­
cias últimas do progresso, por temor explícito da “anarquia” e do
“caos” que vêm “de baixo”, das forças populares ainda “imaturas”.
28
Leandro Konder, “A unidade da direita”, in: Jornal da República, 20/ 09/1979, São Paulo,
p. 4.
29
Essa tendência foi bem analisada, para o século 19, por Paulo Mercadante, A consciência
conservadora no Brasil, Rio de Janeiro, Saga, 1965.

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Cultura e sociedade no Brasil 51

Podemos encontrar, na vida ideológica brasileira, toda uma série de


formulações que – por seu espírito e até por sua letra – antecipam
a célebre declaração do político mineiro Antônio Carlos antes da
Revolução de 1930: “Façamos a revolução antes que o povo a faça”.
Vejamos uns poucos exemplos. Na véspera da Independência, o
liberal Hipólito da Costa – de seu exílio londrino – já afirmava:
“Ninguém deseja mais do que nós as reformas úteis, mas ninguém
se aborrece mais do que nós que essas reformas sejam feitas pelo
povo”. E quando, após a Independência, um liberal considerado
avançado como Evaristo da Veiga defende a Constituição contra o
perigo do absolutismo, não hesita em dizer: “Modifique-se o nosso
pacto social, mas conserve-se a essência do sistema adotado. (...)
Faça-se tudo quanto é preciso, mas evite-se a revolução”30.
Essa tendência ao ecletismo – à conciliação ideológica – não se
manifesta apenas nos pensadores liberais moderados. Até mesmo
intelectuais progressistas, nada ligados em sua atividade cultural
ou política às tendências intimistas e ao espírito de conciliação/
coopta­ção, são pressionados pela situação objetiva a confusas sín-
teses ecléticas, que minimizam ou danificam seriamente o caráter
em última instância progressista de ideologia que professam. Nel-
son Werneck Sodré registrou processos desse tipo na produção de
Euclides da Cunha, que combinava declarações de simpatia pelo
socialismo com a aceitação de elementos ideológicos de fundo
racista31. Poderíamos lembrar ainda outros exemplos. Basta pen-
sar no modo pelo qual os líderes da Revolução Praieira de 1848,
como Antônio Pedro de Figueiredo, tentavam combinar elementos
do socialismo utópico com o ecletismo espiritualista moderado,
inspirado em Victor Cousin; na bizarra síntese de marxismo e
positivismo tentada por Leônidas de Rezende, nos anos de 1930;
na infiltração de posições irracionalistas na pesquisa sociológica e
filosófica do Iseb, essencialmente voltada para uma análise crítica
e racional de nossa realidade; ou na “coexistência pacífica”, em

30
Ambas as citações estão em Mercadante, op. cit., p. 62 e 117.
31
N. W. Sodré, A ideologia do colonialismo, cit., p. 101-161.

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alguns dos intelectuais estruturalistas de nossos dias, de posição


política de esquerda com uma metodologia de tipo neopositivista
(e, como tal, filosoficamente reacionária)32.
Todos esses exemplos pretendem mostrar que a tendência ao
confusionismo ideológico, ao ecletismo teórico objetivamente
“moderado” (no qual elementos progressistas são “temperados”
com elementos reacionários), não resulta simplesmente de uma
escolha subjetiva dos intelectuais, de um eventual oportunismo
constitutivo deles, mas sim de condicionamentos objetivos de
nossa formação histórica e social. Escapar da “via prussiana” e de
suas sequelas anticulturais não é um movimento que dependa
apenas da disposição pessoal dos intelectuais. A coragem e a reti-
dão moral são certamente necessárias, mas não suficientes. Dado
que na raiz do “intimismo” está a separação entre os intelectuais
e a realidade nacional-popular, uma separação posta e reposta
pela “via prussiana”, o antídoto contra tal veneno não pode ser
produzido simplesmente no laboratório imanente da própria cul-
tura: a superação do “intimismo”, tanto no nível pessoal quanto
social, passa pela orgânica integração dos intelectuais com a luta
das classes subalternas para se afirmarem como sujeitos efetivos
de nossa evolução social e política. Uma luta que tem por meta
a destruição do elitismo implícito na “via prussiana”, com a con-
sequente abertura de um processo de renovação democrática que
envolva todas as esferas do ser social brasileiro.

3. O nacional-popular como alternativa à cultura


“intimista”
Sem a menor pretensão de esgotar a questão, vamos a seguir
enumerar algumas determinações essenciais do nacional-popular

32
Cf., respectivamente: para os líderes da Praieira, P. Mercadante. A consciência conserva-
dora, cit., p. 146-161; para L. de Rezende, Antônio Paim, História das ideias filosóficas
no Brasil, São Paulo, Grijalbo, 1967, p. 223 e ss.; para o Iseb, Jacob Gorender, “As
correntes sociológicas no Brasil”, in: Estudos Sociais, n. 3-4, 1958, p. 335-352; e, para o
estruturalismo, Ferreira Gullar, “Vanguardismo e cultura popular no Brasil”, in: Temas
de Ciências Humanas, São Paulo, 1979, vol. 5, p. 80-81.

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enquanto tendência alternativa no seio da cultura brasileira. Antes


de tudo, é fundamental ressaltar que tais determinações – pelo
menos é esta minha convicção – não resultam de uma escolha
pessoal, não são normas arbitrárias que eu pretenda impor de fora
à prática criadora de artistas e ideólogos. São determinações postas
e repostas por um movimento cultural efetivamente existente ao
longo da história do Brasil, ainda que em posição quase sempre
subalterna: um movimento que, apesar de (ou graças a) suas inú-
meras diversidades internas, unifica-se enquanto alternativa real à
cultura “ornamental” ou “intimista”, a qual, pelas razões expostas,
ocupou uma posição tendencialmente hegemônica ao longo da
história de nossa vida cultural. Nesse sentido, o nacional-popular
aparece objetivamente como oposição democrática, no plano da
cultura, às várias configurações concretas assumidas pela ideologia
do “prussianismo” ao longo da evolução brasileira.
Embora a situação italiana divirja em muitos pontos da bra-
sileira, acredito que a definição gramsciana do nacional-popular
– precisamente na medida em que Gramsci o concebe como
alternativa à cultura elitista, gerada na Itália pela predominância
da “revolução passiva” como forma de transformação social e
pelo consequente processo de “transformismo” (de cooptação)
dos intelectuais33 – possa contribuir grandemente para iluminar
algumas contradições também da nossa vida cultural.
Na Itália, o termo “nacional” – observa Gramsci – tem um significado muito restrito
ideologicamente; de qualquer modo, não coincide com “popular”, já que na Itália
os intelectuais estão distantes do povo, isto é, da ‘nação’, ligando-se, ao contrário,
a uma tradição de casta, que jamais foi rompida por um forte movimento político
popular ou nacional que atuasse de baixo para cima (...). Os intelectuais não surgem
do povo, ainda quando acidentalmente algum deles é de origem popular, não se
sentem ligados ao povo (a não ser de modo retórico), não conhecem nem sentem
suas necessidades, aspirações e sentimentos difusos; ao contrário, aparecem diante
do povo como algo separado, suspenso no ar, ou seja, como uma casta e não como
uma articulação, com funções orgânicas, do próprio povo.34
33
Cf. Gramsci, Cadernos, cit., v.5, p. 286-287.
34
Ibid., v. 6, 2002, p. 41-43. Num sentido positivo, Gramsci definiu o nacional-popular
ligando-o explicitamente ao historicismo: “Humanidade ‘autêntica’, ‘fundamental’, pode

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54 Carlos Nelson Coutinho

A descrição gramsciana adequa-se muito bem ao caso brasi-


leiro: o nacional-popular, assim, é – visto pelo lado negativo – a
quebra desse distanciamento entre os intelectuais e o povo, distan-
ciamento que está na raiz do florescimento da cultura “intimista”
ou do elitismo cultural e que, no mais das vezes, não resulta de
uma escolha voluntária do intelectual.
Mas se trata desde já de desfazer um possível mal-entendido
quanto à natureza do nacional-popular. Como vimos, a cultura
brasileira vincula-se organicamente – tanto em sua face reacionária
quanto em sua face democrática e progressista – ao patrimônio
cultural universal, que lhe serviu e serve de inspiração e alimentação
permanente. Assim, se o nacional-popular é essencialmente um
modo de articulação entre os intelectuais e o povo (que faz desses
intelectuais – na expressão de Gramsci – “intelectuais orgânicos” das
correntes populares), ele não pode ser entendido, no que se refere
às suas figuras concretas e ao seu conteúdo, como algo oposto ao
universal, como simples afirmação de nossas pretensas raízes cultu-
rais “autônomas” contra a penetração do “cosmopolitismo alienado”
etc. Decerto, não se trata de afirmar que tal postura abstratamente
cosmopolita não exista entre nós: ela se manifesta sempre que a re-
cepção de uma corrente cultural universal se faz de modo abstrato,
sem nenhuma tentativa de concretizá-la e enriquecê-la no confronto
com a realidade brasileira. Em palavras mais precisas: há cosmopo-
litismo abstrato todas as vezes que a “importação” cultural não tem
como objetivo responder a questões colocadas pela própria realidade
brasileira, mas visa tão somente a satisfazer exigências de um círculo
restrito de intelectuais “intimistas”. Nesse sentido, podemos afirmar
que essa postura “cosmopolita” é uma das manifestações da cultura
elitista e não nacional-popular: é por estarem separados do povo,
emparedados nos limites do “intimismo”, que certos intelectuais são
incapazes de proceder àquela concretização e àquele enriquecimento
do patrimônio universal.

significar concretamente, no campo artístico, uma única coisa: ‘historicidade’, ou seja,


caráter ‘nacional-popular’ do escritor” (ibid., p. 122).

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Por isso, é preciso insistir resolutamente no fato de que o nacio-


nal-popular não se confunde – antes conflita – com o fechamento
provinciano e popularesco diante das conquistas efetivamente
progressistas da cultura mundial35. Pelas razões genético-sociais a
que já aludi, um tal fechamento seria simplesmente impossível.
Quando defendido por artistas ou pensadores progressistas, esse
“nacionalismo cultural” conduz a sérios equívocos, que se expres-
sam no empobrecimento da expressão estética e/ou na limitação
das potencialidades críticas da consciência ideológica das forças
populares. Por isso, na verdade, o “nacionalismo cultural” encon-
tra afinidades eletivas muito maiores com as forças reacionárias,
assumindo quase sempre os traços de uma ideologia retrógrada.
Nesse caso, não é que se defenda uma suposta cultura nacional
autônoma contra a cultura estrangeira, mas antes se designa
como “nacional” o atraso brasileiro, os elementos anacrônicos de
nossa estrutura social, ao mesmo tempo em que se luta contra o
“idealismo” e a “falta de realismo” da cultura progressista mundial
quando comparada à nossa vida social concreta. Isso é muito claro,
por exemplo, em Azevedo Amaral, um dos principais teóricos do
autoritarismo no Brasil: “Contra essa orientação [da democracia
liberal], no sentido da universalização artificial de um regime
político, ergue-se a reação vigorosa do espírito contemporâneo
com a afirmação da ideia nacional”36.
Os exemplos poderiam ser multiplicados. Se observarmos nossa
história, veremos facilmente que tal “nacionalismo cultural”, desde
a época da luta da Coroa portuguesa contra a penetração de ideias
iluministas no Brasil até os recentes ataques da ditadura contra
o marxismo em combinação com a defesa de uma “democracia

35
Lukács viu bem os dois momentos do processo: “O particular caráter do desenvolvimento
do povo alemão [isto é, segundo uma via prussiana] apresenta, também em literatura, os
falsos polos a) de um abstrato cosmopolitismo (contraposto ao real internacionalismo) e
b) de um provincianismo restrito, que frequentemente se manifesta como chauvinismo
reacionário (contraposto ao real patriotismo)” (G. Lukács, Realisti tedeschi del XIX secolo,
Milão, Feltrinelli, 1965, p. 19).
36
Azevedo Amaral, “Realismo político e democracia”, in: Cultura Política, n. 1, 1943, p. 31.

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relativa” (“adequada” à realidade brasileira), serviu sempre para


impedir – em nome da recusa de “ideologias exóticas” contrárias
à “índole” do nosso país – a concreta assimilação dos instrumentos
ideológicos capazes de conduzir efetivamente o povo brasileiro à
sua afirmação nacional e democrática. Por isso, tem razão Mer-
cadante quando observa: “A preocupação de adaptar, de ajustar a
experiência estrangeira às condições nacionais, decorre do próprio
espírito de conciliação”37. Em outras palavras: o “nacionalismo
cultural” é uma das principais manifestações ideológicas da “via
prussiana” antipopular (é claro que nada tem a ver com esse
“nacionalismo cultural” retrógrado a luta contra a penetração de
produtos culturais alienados, impostos ao nosso povo sobretudo
através dos modernos meios de comunicação de massa; como
veremos adiante, uma das características do nacional-popular é
precisamente a capacidade de distinguir entre o válido e o não
válido no seio do patrimônio cultural universal).
Um outro erro seria o de identificar o nacional-popular com
um determinado estilo ou com uma determinada temática, no
plano estético, ou com uma única posição ideológica, no plano
do pensamento social38. São expressões do nacional-popular, por
exemplo, tanto As memórias de um sargento de milícias de Manuel
Antônio de Almeida, que se vale de um estilo realista tradicional,
quanto A meditação sobre o Tietê de Mário de Andrade, que recorre
às conquistas técnico-expressivas do modernismo e da vanguarda.
Mas pode-se dizer que, através dessas variações estilísticas neces-
sárias, há um método artístico comum – o método do realismo
crítico (na acepção que Lukács dá a esse conceito) – que unifica
na diversidade as várias expressões concretas do nacional-popular
no terreno estético. Essa ideia da unidade do nacional-popular,

37
P. Mercadante, A consciência conservadora, cit., p. 260.
38
Não é aqui o local para expor as necessárias diferenças que a qualificação de nacional-
popular apresenta quando referida à arte ou ao pensamento social. O nacional-popular,
decerto, refere-se apenas à ideologia, no sentido de concepção do mundo; liga-se assim
à ciência social e à arte apenas na medida em que essas se ligam, de diferentes modos,
a constelações ideológicas.

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porém, não deve levar de nenhum modo à negação do seu radical


pluralismo. Como Lukács observou, “a obra de arte autêntica – e
somente esta pode se tornar a base de uma fecunda universalização
histórica ou estética – satisfaz as leis estéticas apenas na medida
em que, ao mesmo tempo, as amplia e aprofunda”39. Não há as-
sim normas a priori para a arte de inspiração nacional-popular:
é direito e dever de cada artista exercer a máxima liberdade de
criação, no sentido de encontrar o seu modo peculiar e próprio
de ampliar e de aprofundar as leis estéticas do gênero dentro do
qual trabalha. Portanto, a unidade da arte nacional-popular é algo
apenas tendencial, que só pode ser estabelecido post festum, e que
por isto está em permanente modificação; além do mais, é uma
unidade na diversidade, que retira sua força e vitalidade do mais
amplo pluralismo de estilos artísticos, de temáticas, de tendências
ideológicas etc.
O mesmo pluralismo constitutivo pode ser indicado no caso
do pensamento social. Assim, é possível constatar a presença de
uma consciência nacional-popular tanto nas teorias pedagógicas de
Paulo Freire, inspiradas numa concepção existencialista de fundo
cristão, quanto nas pesquisas ou nas propostas políticas baseadas
nos princípios do materialismo histórico. Enquanto o realismo
como método (e não como estilo) pode ser considerado o fator que
unifica a posteriori o nacional-popular no terreno estético, no caso
do pensamento social esse fator me parece residir numa concepção
humanista e historicista do mundo, ou seja, numa concepção que
afirma o papel da práxis na transformação das estruturas sociais e
que concebe a ciência como um dos instrumentos para iluminar
e guiar essa práxis transformadora (e cabe aqui recordar ainda a
eficácia do conceito engelsiano-lukacsiano da “vitória do realismo”:
tanto no plano do pensamento social quanto, sobretudo, no da
arte, não é condição necessária para a realização de um produto
nacional-popular a adoção consciente pelo produtor cultural de

39
G. Lukács, Estetica, Turim, Einaudi, 1970, vol. 1, p. 579. Para o necessário pluralismo
da esfera estética, cf. ibidem, p. 629-654.

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uma ideologia ou concepção do mundo explicitamente progressis-


ta; também aqui, só post festum é possível – a partir de uma análise
concreta de cada caso concreto – definir o caráter nacional-popular
ou não de um produto cultural singular).
Por outro lado, deve-se evitar cuidadosamente que – no plano
da objetivação estética – se confunda o nacional-popular com a
imposição de uma temática predeterminada. A consciência artís-
tica nacional-popular se manifesta não na temática, mas sim no
ângulo de abordagem, no ponto de vista a partir do qual o criador
estrutura sua obra. Ao que eu saiba, foi Machado de Assis – em
seu célebre ensaio sobre o Instinto de nacionalidade – quem pri-
meiro indicou explicitamente entre nós essa determinação básica
do nacional-popular:
Nesse ponto, manifesta-se às vezes uma opinião que tenho por errônea: é a que
só reconhece espírito nacional nas obras que tratem de assunto local (...). O
que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que
o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos
remotos no tempo e no espaço40.
Uma questão importante é saber qual o conteúdo social, de clas-
se, desse ângulo nacional-popular de abordagem do real. Mas também
aqui vale o princípio dialético de que “a verdade é sempre concreta”.
Tão somente a análise concreta de cada período é capaz de indicar
qual classe (ou bloco de classes) é capaz de se constituir em classe
efetivamente nacional – isto é, de superar uma visão fundada em
seus estreitos interesses “econômico-corporativos” – e, desse modo,
de servir de suporte para a formulação de uma figura cultural de tipo
nacional-popular, ou seja, com dimensão “ético-política” (valho-me
aqui de categorias gramscianas.) E esse vínculo com a concreticidade
nacional-popular não entra de modo algum em contradição com o
caráter universalizante de toda grande criação artística. Ao contrário
de uma objetivação de ciência natural, cuja validade imanente nada
40
Machado de Assis, “Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade”,
in: Id., Obra completa, Rio de Janeiro, Aguilar, 1992, vol. III, p. 803-804. Cf. também
as interessantes observações de Astrojildo Pereira sobre esse texto machadiano, in: Id.,
Machado de Assis, Rio de Janeiro, São José, 1959, p. 45-85.

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tem a ver com as condições históricas ou nacionais que tornaram


possível seu surgimento, todo produto estético incorpora os seus
pressupostos – a sua gênese histórico-nacional – como momento
ineliminável de sua estrutura especificamente artística. Assim, quan-
to mais um artista se vincular à totalidade das contradições do seu
povo e de sua nação, quanto mais se tornar (como diria Machado)
“homem de seu tempo e de seu país”, tanto mais lhe será possível
elevar-se àquele nível de particularidade – de universalidade concreta
– sem a qual não existe grande arte.
Há ainda outra determinação do nacional-popular que me
parece importante destacar. Refiro-me à capacidade de distinguir,
a partir do ângulo de visão próprio de uma classe concretamente
nacional-popular, entre os elementos da cultura universal que
servem efetivamente ao povo-nação (no sentido de aumentar-lhe o
grau de autoconsciência) e os que conduzem ao beco sem saída do
“intimismo” indiretamente apologético ou a posições claramente
reacionárias. Também nesse ponto, o exemplo de Lima Barreto
me parece significativo. Apesar da debilidade de sua formação
teórica, Lima sempre revelou um profundo instinto nacional-
popular em suas avaliações do patrimônio cultural universal. Foi o
caso quando, em contraste com muitos dos seus contemporâneos
envolvidos pelo “intimismo”, ele ridicularizou as bravatas pré-fas-
cistas do “modernista” D’Annunzio no Fiume, contrapondo-lhes
a solidez nacional-popular da ação de Lenin e de Trotski à frente
do jovem Estado soviético; ou quando, referindo-se a Nietzsche,
tratou-o como um dos responsáveis ideológicos pelo espírito be-
licista que culminou na Primeira Guerra Mundial imperialista;
ou ainda quando expressou, antes de morrer, uma posição cética
diante da importação acrítica de certas modas literárias europeias
(como o futurismo), mas sem por isso deixar de recomendar aos
jovens escritores que se inspirassem nos exemplos “europeus” de
Dostoievski­, Tolstoi e Gorki41. Para Lima Barreto, assim, não se
41
Cf., respectivamente, Lima Barreto, Feiras e mafuás, São Paulo, Brasiliense, 1961, p.
202-207; Id., Impressões de leitura, São Paulo, Brasiliense, 1960, p. 119-120; e Id., Feiras
e mafuás, cit., p. 68-69, e carta a Jaime A. da Câmara, 27/07/1919 (cit. em Francisco de

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60 Carlos Nelson Coutinho

tratava de contrapor o “nacional” ao “estrangeiro”, mas de distin-


guir, no seio do patrimônio cultural tornado universal, entre o que
poderia se tornar elemento organicamente nacional-popular de
nossa própria cultura ou, ao contrário, o que serviria para reforçar
o predomínio das correntes elitistas e “intimistas”.
E, como toda manifestação cultural significativa, o nacional-
popular apresenta também aquilo que poderíamos chamar de sua
“doença infantil” (“infantil” não em sentido cronológico, mas
enquanto expressão de um escasso nível de maturidade: o que quer
dizer que a “doença infantil” pode coexistir ou mesmo suceder
manifestações maduras do nacional-popular). Podemos considerar
essa versão “infantil”, esquematicamente, como manifestação da
“má consciência” do intelectual intimista, que deseja mais ou me-
nos sinceramente se identificar com o povo, mas que é incapaz de
fazê-lo “de dentro”, assumindo a “consciência possível” das classes
populares como ponto de vista estruturador de suas criações: a
ligação desse intelectual com o povo é assim – para usarmos uma
expressão de Gramsci anteriormente citada – “apenas retórica”.
Dessa identificação retórica, “de fora”, surge uma atitude paterna-
lista, que pode se expressar concretamente de diversos modos: as
reais contradições populares aparecem dissolvidas num ambiente
de fantasia; atribuem-se ao povo valores idealizados próprios da
camada intelectual; as figuras populares são tratadas como crian-
ças simpáticas, mas sempre como crianças etc. Essa variedade não
impede que a versão “infantil” do nacional-popular – que seria
mais justo chamar de populismo – desemboque quase sempre, do
ponto de vista estilístico, numa espécie de retórica romântica e/ou
de naturalismo fundado na exploração do pitoresco. Exemplos: os

Assis Barbosa, A vida de Lima Barreto, Rio de Janeiro, José Olímpio, 1975, p. 321). A
produção jornalística de Lima Barreto, reunida em vários volumes de suas obras com-
pletas editadas por F. de A. Barbosa (São Paulo, Brasiliense, 1958 e ss.) é um precioso
instrumento para analisar a formação de uma ideologia nacional-popular no Brasil. São
pouquíssimos, até agora, os estudos dedicados a essa parte de sua atividade cultural; é
de ressaltar o belo ensaio de Astrojildo Pereira, “Posições políticas de Lima Barreto”, in:
Id., Crítica impura, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963, p. 34-54.

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Cultura e sociedade no Brasil 61

romances indianistas de Alencar, o “romantismo revolucionário”


do primeiro Jorge Amado, certas produções teatrais do CPC,
muitas das canções de protesto de inícios e meados dos anos de
1960, um modo de conceber a “poesia engajada” do qual Thiago
de Mello tornou-se talvez a mais típica expressão etc.
Talvez não fosse equivocado – diante de certos fenômenos cul-
turais contemporâneos – falar também de uma “doença senil” do
nacional-popular. Ela se manifesta quando certos elementos dessa
orientação realista e historicista, despojados, porém, de sua inten-
ção crítica e totalizadora, são utilizados em produtos característicos
de uma arte puramente “agradável”, digestiva ou comercial, cujo
valor estético é praticamente nulo e cujas implicações ideológicas
são frequentemente negativas. O meio de propagação privilegiado
dessa “doença senil” é certamente a indústria cultural; é assim que
podemos facilmente detectar o uso castrado do nacional-popular
em várias novelas de televisão ou em muitos dos filmes produzidos
para o chamado grande público. O fenômeno também se manifesta
no campo da literatura ou da música popular42.

4. As condições atuais da luta pela democratização da


cultura
Sob muitos e fundamentais aspectos, o golpe de 1964 – e a
nova situação que ele instaurou no país – marcou um divisor de
águas também na esfera da vida cultural. O ingresso do Brasil na
época do capitalismo monopolista de Estado (CME) – ingresso
facilitado e impulsionado pelo regime militar – trouxe alterações
importantes na esfera da superestrutura, tanto no Estado em
sentido restrito quanto no conjunto dos organismos da sociedade
civil; e isso não poderia deixar de ter consequências no terreno da
produção cultural.

42
Cf., para a literatura, Walnice Nogueira Galvão, “Amado: respeitoso, respeitável”, in:
Id., Saco de gatos, cit., p. 13-22; e, para a música popular, Gilberto Vasconcellos, “O
sambão-joia”, in: Id., Música popular: de olho na fresta, Rio de Janeiro, Graal, 1977, p.
75-82.

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Não pretendo me deter aqui em certos fenômenos que se


expressam do modo mais evidente na generalização da censura
como prática de relacionamento entre o poder e a cultura; tais
fenômenos, refletindo a tentativa de quebrar a autonomia da
sociedade civil e de reprimir o seu pluralismo em nome da oni-
potência do Estado, são apenas o aspecto mais saliente da ação do
novo regime político exigido para a implantação do CME num
país de capitalismo hipertardio e, por isso mesmo, dependente43.
A prática sistemática da censura, aliada a um claro terrorismo
ideológico, pode ser considerada como a face aberta da “política
cultural” vigente após 1964 e, em particular, no período posterior
a 1968, ou seja, à decretação do AI-5. Seria simplista reduzir a isso
o quadro das relações entre a cultura e a sociedade nos últimos
anos; mas seria ainda mais perigoso esquecer que tal face condi-
cionou, através certamente de múltiplas mediações, a totalidade
da produção cultural sob a vigência do regime militar.
Não se pode esquecer, porém, que a eficácia – relativa – dessa
face abertamente repressora operou num quadro para cuja ca-
racterização global contribuíram também outras determinações,
tanto as legadas pelo passado (e que foram reproduzidas e am-
pliadas, no que tinham de negativo, depois de 1964) quanto as
geradas pelos novos elementos introduzidos em nossa formação
econômico-social pelo processo de crescente monopolização do
capital. O papel das determinações herdadas e reproduzidas é de
imediata identificação: reforçando os traços autoritários da “via
prussiana”, elevando a um nível superior a exclusão das camadas
populares dos processos de decisão política, o novo regime refor-
çaria também – direta, mas sobretudo indiretamente – o papel

43
J. Chasin (O integralismo de Plínio Salgado, São Paulo, Ciências Humanas, 1978, p.
628 e ss.) foi − ao que eu saiba − o primeiro a empregar o conceito de “capitalismo
hipertardio”, indicando com ele um processo de industrialização que se dá quando o
capital monopolista já domina em escala mundial (ou seja, na época do imperialismo).
Enquanto o capitalismo tardio leva o país que o experimenta a uma monopolização
precoce, que pode transformá-lo em potência imperialista (Alemanha, Japão), o capita-
lismo hipertardio torna-se necessariamente dependente do imperialismo.

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das tendências culturais “intimistas”, estimulando o florescimento


de uma cultura neutralizadora e socialmente asséptica (o que era
feito, em particular, através da repressão às correntes nacional-
populares, abrindo assim espaço para um quase monopólio de fato
das correntes “intimistas”). A época do chamado “vazio cultural”,
que seria melhor designar como época da cultura esvaziada – e que
domina, digamos, no período entre 1969 e 1973 –, representou o
momento em que a confluência da censura/repressão com as tradi-
ções “intimistas”/neutralizadoras atingiu aquilo que um tecnocrata
poderia chamar de “ponto ótimo” na tentativa de marginalização
das correntes nacional-populares e, consequentemente, de remoção
do pluralismo como traço dominante de nossa vida cultural.
Quando aludi a novas determinações, pensei essencialmente no
grande estímulo emprestado pelo CME à expansão e consolidação
de uma poderosa indústria cultural em bases não só capitalistas
(o que já vinha ocorrendo antes de 1964), mas também cada vez
mais monopolistas. O processo atinge mais duramente, decerto, os
grandes meios de comunicação de massa, como a televisão, a grande
imprensa, a produção de discos, o cinema etc. Mas os efeitos da
monopolização se fazem igualmente sentir sobre a indústria editorial
e a produção teatral, embora aqui a presença de empresas médias
e até mesmo de pequeno porte assegure um maior pluralismo de
orientações e, por conseguinte, uma faixa de autonomia bem mais
consistente. Por outro lado, a universidade – enquanto importante
fator de produção e reprodução cultural – foi submetida não só a
processos repressivos diretos, mas também a uma crescente “racio-
nalização” em sentido capitalista, a formas de divisão do trabalho
intelectual que, adequando-se aos mecanismos da reprodução do
capital, dificultam enormemente, em seu interior, a formação e
sistematização de uma cultura crítica e globalizante. Portanto, as
duas tendências – repressiva e monopolista “racionalizadora” –
contribuíram para deprimir fortemente a presença de um quadro
pluralista também na pesquisa e no ensino universitários.
De imediato, esse processo de monopolização da indústria
cultural gerou uma forte expansão quantitativa dos chamados

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bens culturais, o que, antes de mais nada, serviu para ocultar o


fenômeno do vazio cultural, que é obviamente um fenômeno de
natureza qualitativa (um processo similar ocorre na produção
universitária; aqui, a “moderrnização conservadora” possibilitou
um nível de formação técnico-formalista ou empirista elevado,
mas que esconde a pobreza conteudística e o esvaziamento social
que marcam com frequência o ensino e as obras geradas no âmbito
universitário). Além disso, seria ocioso lembrar o fato de que a
generalização da “lógica” capitalista e monopolista no plano da
cultura provoca um espontâneo privilegiamento do valor de troca
sobre o valor de uso dos objetos culturais, o que abre caminho
para a criação e difusão de uma pseudocultura de massas que,
transmitindo valores alienados, serve como instrumento de ma-
nipulação das consciências a serviço da reprodução do existente.
Tal privilegiamento não se manifesta apenas na difusão da “doença
senil” do nacional-popular a que já me referi; mais grave é o fato
de que ele leva à importação em série de produtos pseudoculturais
gerados nos países imperialistas, frequentemente preferidos pelos
mass media por serem mais baratos que os produtos nacionais. E
isso não tem consequências deletérias apenas no terreno cultural e
ideológico em si; essa importação ameaça também o trabalho e a
sobrevivência de inúmeros artistas e intelectuais brasileiros. Todos
esses fatos negativos da indústria cultural – comuns a qualquer for-
ma de capitalismo monopolista – assumiram entre nós proporções
ainda mais catastróficas na medida em que ocorreram no quadro
de um regime político fundado na repressão e no arbítrio.
Um outro fator negativo que não pode absolutamente ser
subestimado – tanto mais que reproduz uma das tendências mais
negativas na formação da intelectualidade brasileira – é que a in-
dústria cultural monopolista aparece como um novo e poderoso
meio de cooptação dos intelectuais pelo sistema de dominação,
do qual essa indústria cultural é hoje peça de destaque. Em outras
palavras: essa indústria cultural aparece como uma nova e eficiente
forma de cortar a ligação dos intelectuais com a realidade nacional-
popular, da qual poderiam ser – se os organismos culturais da so-

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ciedade civil fossem mais pluralistas – uma “articulação orgânica”,


como disse Gramsci. Os altos salários pagos pelos monopólios
da cultura funcionam como um poderoso atrativo. Por outro
lado, a divulgação da cultura requer agora um “capital mínimo”
(Marx) impensável em épocas anteriores, quando predominavam
métodos que poderíamos chamar de artesanais ou semiartesanais.
Desaparece assim em grande parte a possibilidade, para o produtor
de cultura, de manter-se autônomo e, como tal, independente; de
profissional liberal, o produtor da cultura torna-se cada vez mais
assalariado de grandes empresas, submetido em última instância
à “lógica” do lucro máximo e às exigências anticulturais de tais
empresas. É certo que se trata de um processo contraditório, já
que também a indústria cultural apresenta “brechas” e tolera mar-
gens de manobra; e essas “brechas” e margens poderão ampliar-se
substancialmente à medida que o processo de transição para um
regime de liberdades democráticas avançar em nosso país, ou seja,
à medida que diminua a ação repressiva direta do Estado sobre os
mass media e estes se vejam obrigados – pela própria pressão dos
consumidores – a satisfazer demandas culturais de uma sociedade
civil mais aberta e pluralista. Mas seria perigoso esquecer, em nome
dessas contratendências, o fato de que a monopolização capitalista
dos meios de divulgação cultural aumenta objetivamente as já
antigas dificuldades para a criação e divulgação entre nós de uma
cultural nacional-popular democrática e pluralista44.
Não quero de modo algum traçar um quadro unilateralmente
pessimista. Apesar dessa tríplice oposição – da censura/repressão,
da herança elitista da intelectualidade, da expansão monopolista
da indústria cultural –, seria absolutamente equivocado ignorar a
presença da corrente nacional-popular, ou, mais amplamente, de
uma corrente cultural de oposição democrática durante os anos
do regime militar. Essa presença foi decisiva sobretudo em termos
qualitativos. O que de mais expressivo se criou nessa época – do
44
Sobre o caráter contraditório da liberdade de criação no capitalismo, cf. o belo ensaio
de G. Lukács, “Arte livre ou arte dirigida?”, in: Id., Marxismo e teoria da literatura, São
Paulo, Expressão Popular, 2010, p. 267-285.

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Inquisitorial de José Carlos Capinam ao Poema sujo de Ferreira


Gullar, do Quarup de Antônio Callado a Gota d’água de Paulo
Pontes e Chico Buarque, da Revista Civilização Brasileira às pes-
quisas do grupo Cebrap, para darmos apenas alguns exemplos –
inclui-se certamente, através de uma ampla pluralidade de estilos
e de orientações ideológicas, na tendência cultural que definimos
como nacional-popular.
E não só isso: até mesmo a parcela mais significativa dos
autores (consciente ou inconscientemente) ligados a correntes
“intimistas” não hesitou em se colocar claramente em oposição
às tendências totalitárias e antipluralistas da “política cultural” da
ditadura. E essa postura, em muitos casos, foi além do engajamento
desses intelectuais enquanto cidadãos, envolvendo também a sua
produção cultural como tal. Vejamos um exemplo concreto: sob
muitos aspectos, o movimento tropicalista em seus inícios – na
medida em que tendia a desistoricizar as contradições concretas
da realidade brasileira e a eternizá-las numa abstração alegórica e
irracionalista (o Brasil como “absurdo” etc.) − pode ser considerado
expressão do “intimismo”. Mas não se deve deixar de registrar a
presença, na evolução do tropicalismo, de um saudável esforço no
sentido de conquistar para a arte brasileira novos meios expressivos
e, sobretudo, de figurar uma nova temática, resultante do modo
“prussiano” de implantação do CME entre nós (coexistência de um
sofisticado capitalismo de consumo com a conservação do atraso
nos meios rurais e nas periferias urbanas). Malgrado um elemento
de unilateralidade, a produção “tropicalista” – como podemos
avaliar hoje, muitos anos após seu aparecimento – contribuiu para
superar os evidentes limites de um “populismo” que se comprazia
em “cantar” um otimismo ingênuo e, em última análise, desmo-
bilizador, na esperança vazia de que esse “canto” exorcizasse o
“escuro” dominante. Na verdade, o tropicalismo não se opunha ao
nacional-popular, mas àquilo que antes chamamos de sua “doen­
ça infantil”. Essa dialética interna do movimento tropicalista – a
contradição dinâmica entre a conquista de uma nova temática
e seu tratamento ainda tendencialmente alegórico – levaria os

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Cultura e sociedade no Brasil 67

seus melhores representantes a abandonar progressivamente, em


muitas de suas produções, a alegoria irracionalista e a optar por
uma dura crítica, nada populista nem ingênua, da cotidianidade
capitalista moderna que o CME ia implantando em nosso país.
Foi assim que produções como Janelas abertas de Caetano Veloso
(para darmos apenas um exemplo) convergiram objetivamente
com Sinal fechado de Paulinho da Viola ou com Cotidiano de
Chico Buarque (e também aqui me limito a exemplos singulares)
para criar em nosso país uma música nacional-popular de alto
nível, adequada – em seu pluralismo e em sua complexidade – às
exigências dos novos tempos.
Essa tendência oposicionista predominante na cultura bra-
sileira pós-1964 reflete, antes de qualquer coisa, o fato de que o
regime militar jamais desfrutou de um consenso estável junto às
camadas médias urbanas, de onde provêm – em sua esmagadora
maioria – os nossos intelectuais. Mas reflete também, ao que
parece, o processo de complexificação e de diferenciação que o
desenvolvimento do capitalismo introduziu na sociedade brasi-
leira e, por conseguinte, na própria camada de intelectuais. Esse
processo começa a se manifestar já antes de 1964; o crescimento
de uma sociedade civil mais rica e articulada, apoiada em grande
parte na dinamização do movimento de massas, é responsável
pela radicalização política dos intelectuais a partir do final dos
anos de 1950, uma radicalização que – malgrado alguns limites
nacionalistas ou “populistas” – apontava no sentido de inverter a
hegemonia até então desfrutada pelas correntes “intimistas” (é um
período no qual, por exemplo, o Instituto Superior de Estudos
Brasileiros e os Centros Populares de Cultura exercem um papel
importantíssimo na produção cultural e artística.) Assim, o regime
implantado em 1964 já encontra os intelectuais numa posição de
hostilidade e mesmo de oposição aberta.
É certo que as medidas imediatamente tomadas pelo novo regi-
me – desde o restabelecimento aberto de um modo de dominação
política imposto de cima para baixo até a tentativa ditatorial de
quebrar a autonomia dos organismos da sociedade civil (partidos,

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68 Carlos Nelson Coutinho

sindicatos, universidades, associações profissionais, organismos


culturais etc.) – representaram um duro golpe nos pressupostos que
se vinham criando, ainda que de modo embrionário, no sentido de
uma hegemonia cultural das correntes democráticas ou nacional-
populares45. Direta ou indiretamente, o regime militar lutou para
impor as condições favoráveis ao predomínio da cultura elitista.
Mas foram vários os fatores que obstaculizaram, no conjunto do
período iniciado em 1964, a emergência efetiva dessa hegemonia
cultural do “intimismo”. Antes de mais nada, cabe recordar a
resistência ideológica e política, ativa ou passiva, da esmagadora
maioria dos intelectuais. E, em segundo lugar, deve-se lembrar que
a própria modernização econômica promovida pelo regime – ainda
que fosse uma modernização conservadora, de tipo “prussiano” e
dependente e, por isso, antipopular e antinacional – abalou seria-
mente uma das bases sociais mais sólidas da cultura “intimista”:
o caráter de “favor” pessoal de que se revestiam os processos de
cooptação da intelectualidade pelo sistema dominante.
O mercado de força de trabalho intelectual – impulsionado pela
emergência da indústria cultural monopolizada – faz com que os
intelectuais não mais sejam, pelo simples fato de serem intelectuais,
“mandarins” privilegiados aos quais a posse da cultura fornece pres-
tígio e status. A generalização das relações capitalistas no âmbito da
cultura os vai convertendo, no momento mesmo em que aumenta
seu número e complexifica suas funções, em trabalhadores assala-
riados a serviço da reprodução do capital. Ora, se ainda existe coop-
tação, esta opera agora através dos mecanismos impessoalizados do
mercado; e esse mercado produz, entre outras coisas, diferenciações
salariais extremadas entre as diferentes categorias intelectuais. E isso
para não falarmos no surgimento do que poderíamos chamar de
“exército cultural de reserva”, que se expressa no amplo desemprego
ou subemprego de intelectuais, contribuindo ademais para rebaixar

45
Sobre a natureza e os limites dessa “hegemonia da esquerda” na vida cultural brasileira
da época, cf. Roberto Schwarz, “Cultura e política, 1964-1969”, in: Id., O pai de família
e outros estudos, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978, p. 61-92.

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os salários dos que conseguem obter uma colocação46. Assim é que,


ao lado de uma minoria tecnocrática privilegiada, vai se ampliando
um setor da intelectualidade – particularmente o setor ligado às
chamadas “humanidades”, ou seja, à produção ideológica e à criação
artística – para o qual a expectativa de cooptação perde inteiramente
sua razão de ser47. Em sua grande maioria, os intelectuais passam a
compreender, mais ou menos difusamente, que seu destino pessoal
está ligado organicamente ao fim da “via prussiana”; à construção
de uma sociedade efetivamente democrática, em que a riqueza e
o pluralismo da sociedade civil abram espaços para a sua atuação
autônoma; à realização de um “modelo” de desenvolvimento eco-
nômico não marginalizador, que tenha nas camadas assalariadas
da população (nas quais os intelectuais estão hoje incluídos) o seu
destinatário e o seu sujeito.
Em suma: criaram-se os pressupostos infraestruturais para
uma identificação entre os intelectuais e o povo-nação. Mas o
que fazer para que tais pressupostos se convertam em resultado,
levando a uma efetiva democratização da cultura brasileira? Antes
de mais nada, há uma batalha a travar no próprio plano da cul-

46
O problema do desemprego de diplomados – com a consequente formação de um
“exército cultural de reserva” – é um dos frutos da desastrosa e demagógica política
universitária do regime militar. É certo que, em parte, o espetacular aumento das vagas
universitárias ocorrido após 1964 correspondeu às exigências do desenvolvimento ca-
pitalista. Mas um dos objetivos da política de aumento das vagas foi a de criar entre as
camadas médias uma expectativa de mobilidade social ascendente, que pretendia servir
à ampliação de uma atitude favorável ao regime entre tais camadas. O colapso dessa
política não se manifesta apenas no desemprego de diplomados (que resulta na negação
daquela expectativa); revela-se também na deterioração radical das condições do ensino
universitário, que se tornou majoritariamente ministrado em instituições privadas, com
prejuízo inclusive de sua função na reprodução do sistema econômico social vigente.
47
Por outro lado, até mesmo os intelectuais privilegiados que obtêm altos salários tendem a
não mais encarar a sua “cooptação” como um “favor” dos poderosos. É certo que podem
surgir nesse caso fenômenos de corrupção intelectual; mas o fato é que a situação de
assalariado leva espontaneamente ao estabelecimento de conflitos de interesse entre os
intelectuais bem remunerados (mas subordinados ao capital) e os patrões. Em muitos casos,
tais conflitos podem assumir a forma de uma luta desses intelectuais pela sua autonomia
enquanto produtores de cultura. Em suma: o conceito de “aristocracia intelectual”, aplicado
sem mediações, é tão problemático quanto o de “aristocracia operária”.

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tura. E a tarefa primordial dessa batalha ideológica, no Brasil de


hoje, é precisamente a de contribuir para a superação do elitismo
cultural e para uma transformação em sentido nacional-popular
da cultura e da intelectualidade brasileiras. Estimulando as obras
que se encaminham no sentido do nacional-popular e revelando
ao mesmo tempo o beco sem saída (ideológico e estético) da visão
do mundo elitista ou “intimista”, a crítica – se feita no quadro do
respeito ao pluralismo e à diversidade, que são traços inelimináveis
de toda cultura autêntica – poderá contribuir para a expansão
hegemônica de uma nova cultura brasileira efetivamente demo-
crática, efetivamente nacional-popular. Essa crítica não pode se
basear em critérios estéticos estreitos e normativos; não se trata
de impor aos criadores certas “regras” arbitrariamente escolhidas.
Gramsci coloca a questão com grande lucidez:
Parece evidente que devemos falar de luta por uma nova ‘cultura’ e não por uma
‘nova arte’ (em sentido imediato). (...) A arte é sempre ligada a determinada
cultura; e é lutando para reformar a cultura que se chega a modificar o ‘conteúdo­’
da arte, não de fora (pretendendo uma arte didática, de tese, moralista), mas
sim de dentro, porque assim se modifica o homem inteiro, na medida em que
se modificam seus sentimentos, suas concepções, bem como as relações das
quais o homem é expressão necessária.48

Por outro lado, lutar pela expansão hegemônica de uma orien-


tação cultural – no caso, da orientação nacional-popular – não
pode significar de nenhum modo a negação do pluralismo. A luta
pela hegemonia respeita o pluralismo e dele se alimenta em dois
níveis. Em primeiro lugar, concebe a unidade do nacional-popular
como uma unidade na diversidade, como uma unidade que retira
sua força e sua capacidade expansiva da mais ampla variedade de
manifestações individuais. E, em segundo, não só reconhece a
necessidade social e o direito à existência de correntes não nacional-
populares, mas também – mesmo no quadro de uma crítica global
de seus eventuais limites artísticos e/ou ideológicos – admite a pos-
sibilidade concreta de que produções culturais “intimistas” possam
48
A. Gramsci, Cadernos, cit., v. 6, 2002, p. 70.

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contribuir para o desenvolvimento de aspectos de uma arte ou de


uma concepção do mundo efetivamente ligadas à vida da nação e
do povo (já nos referimos ao fato de que correntes originariamente
“intimistas”, como o tropicalismo, contribuíram decisivamente
para a superação do “populismo” e para o amadurecimento do
nacional-popular na música brasileira; uma mesma argumentação
poderia ser desenvolvida em relação ao papel do modernismo na
evolução da literatura brasileira posterior a 1922)49.
Mas, como a própria formulação de Gramsci deixa claro, os
problemas da democratização da cultura não se esgotam na defi-
nição de uma justa perspectiva para a batalha das ideias. Há todo
um quadro social, econômico e político que tem de ser criado para
que a cultura brasileira possa efetivamente se desenvolver de forma
não elitista. É o quadro de uma democracia pluralista de massas.
Enquanto regime que assegura as liberdades formais fundamentais,
a democracia de massas garante o clima necessário para o amplo
florescimento da liberdade de criação e de crítica, um clima no
qual a influência ou hegemonia dessa ou daquela corrente se pro-
cesse cada vez mais conforme os critérios imanentes ao próprio
mecanismo da dialética cultural. Por outro lado, na medida em
que assegura os canais necessários para que a produção cultural
responda aos problemas colocados pelas grandes massas e retorne a
elas para enriquecer-lhes a autoconsciência, a democracia de massas
faz com que o pluralismo da cultura seja expressão do pluralismo
dinâmico e da riqueza efetiva da vida concreta das várias classes e
camadas nacionais. Finalmente, já que seu caráter progressivo (de
constante ampliação e aprofundamento) leva a democracia de
massas a propor concretamente a democratização da economia,
49
Já em 1957, Palmiro Togliatti – o dirigente comunista italiano – se valia de possibilidades
desse tipo para defender a liberdade de criação nos países socialistas: “Há outro motivo
que aconselha, nesse campo, a não pôr freios à investigação e à criação artística; e é que
uma determinada orientação de pesquisa formal, por exemplo, mesmo se no momento
se apresenta estéril e negativa, e como tal pode e deve ser criticada, poderá amanhã apa-
recer como uma etapa que foi necessário atravessar para atingir novas e mais profundas
formas de expressão e, portanto, um progresso de toda a criação artística” (P. Togliatti,
Opere scelte, Roma, Riuniti, 1977, p. 869).

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72 Carlos Nelson Coutinho

com a luta para pôr fim à dominação dos monopólios, ela abre
com isso a possibilidade concreta de que os produtores de cultura
se apropriem socialmente dos meios de difusão cultural de massa,
hoje em grande parte sob poder dos monopólios; e não é preciso
dizer o que isso significaria no sentido de tornar real e efetiva a
liberdade de criação assegurada no plano formal.
Em outras palavras: só a construção de uma democracia de
massas pode quebrar definitivamente os estreitos limites de casta
em que a “via prussiana” emparedou a grande maioria dos nossos
intelectuais e, desse modo, criar um novo tipo de relacionamento
– de dupla mão – entre os intelectuais e o povo-nação; momento
decisivo nesse processo será assegurado pela autogestão dos or-
ganismos de difusão cultural pelos próprios produtores culturais
associados. Ora, nesse ponto, a “questão cultural” – convertendo-se
em momento privilegiado da “questão democrática” – encontra a
base para a sua solução. Lutando pela democratização da cultura, os
intelectuais combatem efetivamente pela renovação democrática da
vida nacional em seu conjunto; e, ao mesmo tempo, lutando por
essa renovação democrática, asseguram condições mais favoráveis
à expansão e florescimento de sua própria práxis cultural.50

(1977-1979)
50
Este ensaio foi concluído e publicado pela primeira vez em 1979. Se deixarmos de lado a
repressão aberta e a censura explícita, todas as demais tendências identificadas em sua última
parte continuam a caracterizar a vida social brasileira e, em particular, a sua vida cultural.
Algumas delas até mesmo se acentuaram depois do fim, em 1985, do regime militar. A adoção
no Brasil de políticas abertamente neoliberais nos governos civis de Fernando Collor de Mello
e de Fernando Henrique Cardoso reforçou a monopolização do capital e a dependência
em face do imperialismo. Isso vale particularmente em relação à indústria cultural, que se
tornou cada vez mais monopolista e desnacionalizada. Se há um fato novo é que agora a
indústria cultural não só coopta intelectuais “tradicionais”, mas também cria seus próprios
intelectuais “orgânicos”, certamente mais inclinados a considerar os bens culturais como
meras mercadorias. Em relação à universidade, registra-se um aumento crescente do setor
privado e uma clara deterioração do setor público, hoje amplamente minoritário. Existem,
como sempre, resistências, mas o fato é que esta relativa hegemonia do neoliberalismo no
período pós-ditatorial (inclusive no governo Lula) não permitiu que as condições abertas
pelo processo de democratização política fossem capazes de modificar substancialmente,
entre outras coisas, a vida cultural brasileira. [Adendo à presente edição]

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Dois momentos brasileiros
da escola de Frankfurt

Uma definição sumária da Escola de Frankfurt é tarefa irreali­


zável: não somente por causa da riqueza dos temas abordados por
seus integrantes (que vão dos pressupostos epistemológicos da teo-
ria social à sociologia da música, do conceito de Estado autoritário
às relações entre psicanálise e marxismo, da filosofia da história à
indústria cultural), mas também – e talvez sobretudo – por causa da
variedade de posições assumidas por seus principais representantes.
Felizmente, para o objetivo destas notas (o de examinar alguns
aspectos da recepção da Escola no Brasil), posso deixar de lado
essa definição, tomando como pressuposto a unidade relativa da
problemática frankfurtiana: ou seja, a crítica da cultura moderna à
luz de algumas categorias (como as de reificação e alienação) reco-
lhidas essencialmente da tradição hegeliano-marxista que se inicia
com História e consciência de classe, a obra juvenil de Lukács51.
Mas, se não é aqui o local adequado para uma avaliação das
diversidades internas da Escola (tanto sincrônicas quanto, sobre-
tudo, diacrônicas), parece-me importante começar por registrá-las:
na medida em que a influência de Frankfurt no Brasil levou, como
veremos, a resultados substancialmente diversos, cabe perguntar
se tal diversidade é fruto da própria heterogeneidade imanente à
Escola, se é motivada pela variação histórica do contexto em que
ocorreu entre nós a recepção dos frankfurtianos, ou – o que me
parece mais verossímil – se resulta de uma combinação das duas
coisas. O fato é que, no interior da unidade relativa que indica-
51
Uma visão fortemente crítica da Escola de Frankfurt, apontada como manifestação de
Kulturkritik romântica, pode ser encontrada em J. G. Merquior, Western marxism, Londres,
Paladin, 1986, p. 111-138, 155-185. Embora concorde em muitos pontos com a análise
de Merquior, não sou tão cético quanto ele sobre o valor analítico positivo de muitas
formulações “crítico-culturais” da Escola de Frankfurt, como se verá em seguida.

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74 Carlos Nelson Coutinho

mos acima, a Escola de Frankfurt passou no Brasil da condição


de estímulo intelectual à contracultura irracionalista, no início
dos anos de 1970, para a de base teórica de uma vigorosa defesa
da razão contra o surto irracionalista do atual “pós-moderno”. A
contradição parece à primeira vista tão gritante que cabe indagar
se, por trás das aparências, não haverá pelo menos algum elemento
de continuidade.

1. Marcuse e a contracultura tupiniquim


A Escola de Frankfurt chegou ao Brasil no final dos anos de
1960. Ao lado de muitos livros de Marcuse, foram então publi-
cados importantes ensaios de Benjamin, Adorno e Horkheimer;
na mesma época, Roberto Schwarz empregava com brilho cate-
gorias frankfurtianas em suas análises literárias, e José Guilherme
Merquior – então heideggeriano – publicava o primeiro estudo
brasileiro de conjunto sobre os principais pensadores da Escola52.
O processo se inseria numa saudável tendência à abertura do
pensamento social brasileiro para as mais importantes correntes da
cultura universal contemporânea; uma tendência que, apesar do
golpe de 1964, manifestou-se com intensidade ao longo de toda
a década de 1960. Para falarmos apenas no marxismo, foi este o
período em que – quebrando um quase monopólio anterior dos
manuais soviéticos – a bibliografia marxista brasileira se enriqueceu
52
De Herbert Marcuse, foram publicados no Brasil, entre 1968 e 1973, os seguintes
livros: O homem unidimensional, Eros e civilização, Ideias sobre uma teoria crítica da
sociedade, Contrarrevolução e revolta (todos pela Zahar), O fim da utopia (Paz e Terra),
O marxismo soviético e Razão e revolução (pela Saga, depois Paz e Terra). De Walter Ben-
jamim, apareceram pelo menos três versões do ensaio “A obra de arte na época de sua
reprodutividade técnica” e, em 1975, uma coletânea, A modernidade e os modernos (Rio
de Janeiro, Tempo Brasileiro), que contém um importante estudo sobre Baudelaire. De
Horkheimer e Adorno, foi publicado um capítulo da Dialektik der Auflkläurung sobre
“A indústria cultural”; e, do último, além de duas versões do ensaio “Moda sem tempo:
sobre o Jazz” e de uma do texto “Ideias para uma sociologia da música”, apareceu em
1975 uma coletânea. Os ensaios de Roberto Schwarz estão em A sereia e o desconfiado,
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965; e o estudo de Merquior é Arte e sociedade em
Marcuse, Adorno e Benjamin, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969. Essa bibliografia
não pretende ser exaustiva.

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não só com os textos frankfurtianos citados, mas também com


trabalhos de Lukács, Gramsci, Goldmann, Althusser, Baran e
Sweezy, Adam Schaff e muitos outros.
Foi a peculiar situação brasileira dessa agitada segunda metade­
dos anos de 1960 que determinou, em grande parte, o modo
como se deu essa primeira recepção da Escola entre nós. Por
exemplo: dependeu dessa situação, e não da eventual superiori-
dade intrínseca dos textos de Marcuse, o fato de que esse autor
tenha desfrutado, na vida intelectual brasileira da época, de uma
influência incomparavelmente superior à de seus companhei-
ros de Escola. Já conhecido internacionalmente como uma das
principais fontes ideológicas das rebeliões estudantis europeias e
norte-americanas, Marcuse chegava ao Brasil no momento em
que um amplo setor da intelectualidade de esquerda não julgava
mais encontrar nas posições do Partido Comunista Brasileiro (e da
cultura marxista que lhe era próxima) uma resposta adequada aos
desafios da realidade. A “Grande Recusa” proposta por Marcuse
parecia contribuir para o encontro de tal resposta, naquele clima
de “impaciência revolucionária”53 em que estava imersa boa parte
da nossa intelectualidade. Assim, num primeiro momento, um
Marcuse lido apressadamente tornou-se componente não secun-
dário da sopa eclética que formou a bagagem teórica da pretensa
“nova esquerda” brasileira: misturado com Mao Tsé-tung, Régis
Debray e Louis Althusser, com os quais pouco ou nada tinha em
comum, Marcuse parecia fornecer elementos para uma contestação
radical que envolvia, ao mesmo tempo, a ditadura (identificada
tout court com o capitalismo) e o establishment marxista encarnado
pelo “velho” PCB (que, embora em alguns casos buscasse renovar
seu patrimônio cultural com autores como Lukács e Gramsci,
continuava essencialmente preso às tradições esclerosadas da
Terceira Internacional). Se, no plano político, a tática da “acumu-
lação de forças” proposta pelo PCB aparecia a esses intelectuais

53
O termo foi cunhado pelo lukacsiano alemão Wolfgang Harich, Critica dell’impazienza
rivoluzionaria, Milão, Feltrinelli, 1972.

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76 Carlos Nelson Coutinho

como reformismo oportunista, o racionalismo humanista de


Lukács e o projeto nacional-popular de Gramsci eram vistos, no
plano da cultura, como demasiadamente vinculados a propostas
estético-ideológicas conservadoras e/ou populistas. Não é assim de
surpreen­der (embora talvez seja de lamentar) que Marcuse, cujas
edições se multiplicavam, tenha sido certamente bem mais lido
na época do que Lukács ou Gramsci, que tinham suas traduções
brasileiras vendidas em estantes de saldo a preço de banana.
Com o rápido fracasso da luta armada, à qual alguns desses
intelectuais “impacientes” aderiram e com a qual muitos sim-
patizaram, o espírito da “Grande Recusa” sofreu uma alteração
profunda. Por um lado, a vertente althusseriana – sob a cobertura
de um falso revolucionarismo teórico que se reduzia a decretar
“cortes epistemológicos” radicais – refluiu para uma escolástica
acadêmica e estéril que, combinada e fundida com a do estru-
turalismo, passou a dominar uma parte substancial da produção
universitária e editorial no campo das ciências humanas. Por
outro lado, entre os que mantiveram o espírito da “Grande
Recusa”, a “impaciência revolucionária” rapidamente assumiu
uma nova feição: de oposição política (ainda que equivocada)
a uma opressão concreta, ela se converteu numa rejeição tão
global quanto abstrata à “cultura” em geral. O mal já não seria
tanto a ditadura ou mesmo o capitalismo enquanto formação
econômico-social, mas todo um legado cultural que, baseado
na razão e na ciência, funcionaria essencialmente, segundo os
defensores dessa corrente, como uma instância repressora da
subjetividade humana. E foi então que a obra de Marcuse, lida
apressadamente, serviu como ponto de partida para essa passa-
gem do gauchisme ao irracionalismo aberto: de estímulo para
a contestação armada à ditadura, Marcuse tornou-se fonte de
inspiração para os movimentos da chamada contracultura, ou,
mais precisamente, daquela versão tropicalista da Kulturkritk
romântico-anticapitalista que floresceu e se desenvolveu aqui
no início dos anos de 1970.

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Não posso me deter na questão de saber até que ponto a obra


de Marcuse foi lida corretamente pelos que a transformaram em
base ideológica do irracionalismo “contracultural”. Diria apenas,
brevemente, que – se tomarmos os ensaios marcusianos dos anos
de 1930 (não casualmente inéditos, em sua esmagadora maioria,
no Brasil da época) – essa leitura unilateralmente “contracultural”
dificilmente se sustenta: apoiado numa interpretação hegeliana do
marxismo, Marcuse fornece nesses ensaios importantes contribui-
ções para uma crítica concreta das tendências totalitárias que vê
florescer no “capitalismo organizado” da época, indicando com
precisão as suas raízes culturais. Contudo, se analisarmos seus tex-
tos mais divulgados entre nós, Eros e civilização (1955) e O homem
unidimensional (1964), as coisas se complicam: identificando de-
senvolvimento científico-tecnológico com dominação repressiva,
valorizando Orfeu e Narciso contra Prometeu, desqualificando o
trabalho produtivo (para ele, necessariamente alienado) em nome
de um trabalho lúdico ou libidinal, pregando uma “sexualidade
polimórfica” e uma “nova sensibilidade” como antídotos con-
tra a repressora razão instrumental, esses trabalhos de Marcuse
– malgrado os seus indiscutíveis pontos de interesse – deitam
raízes numa concepção do mundo essencialmente romântica e
irracionalista. Não foi assim casual que a contracultura brasileira
dos anos de 1970 se tenha valido abertamente de Marcuse (basta
pensar nos artigos de Luiz Carlos Maciel, publicados sobretudo
em O Pasquim)54; e se, no final, essa contracultura terminou por
se tornar cada vez mais “orientalista” e abertamente mística em
suas formulações teóricas, a ponto de não mais se reconhecer na
inegável sofisticação teórica “ocidental” de Marcuse, isso não anula
o fato de que o autor de Eros e civilização desempenhou um papel
importante no florescimento do irracionalismo brasileiro dos anos
de 1970. Um irracionalismo com o qual, diga-se de passagem, o
54
Os artigos de Luiz Carlos Maciel foram depois recolhidos em Nova consciência. Jornalismo
contracultural 1970/1972, Rio de Janeiro, Eldorado, 1973. Lendo-se essa coletânea,
pode-se facilmente perceber a “evolução” da contracultura brasileira de Marcuse e Reich
para Heidegger e o orientalismo.

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dos anos de 1980 – malgrado todas as inovações “pós-modernas”


– conserva uma marcante linha de continuidade.
Deve ser creditada à lucidez de Marcuse a sua preocupação
final, expressa sobretudo em Contrarrevolução e revolta (1972,
edição brasileira de 1973), no sentido de denunciar os excessos
antirracionalistas que ele agora enxergava nos movimentos con-
traculturais da outrora “nova esquerda” internacional. Mas, infe-
lizmente, quando esse livro foi publicado no Brasil, a influência
marcusiana já entrara aqui em franco declínio (a defesa da razão
entre nós, na sombria primeira metade dos anos de 1970, foi
em grande parte – embora, decerto, não exclusivamente – obra
dos lukacsianos: escolhendo travar uma luta em duas frentes,
contra a “miséria da razão” dos estruturalistas e contra o aberto
irracionalismo da contracultura, os lukacsianos brasileiros, então
ligados ao PCB, terminaram isolados e, nesse isolamento, não
foram infrequentes da parte deles manifestações de sectarismo e
de intolerância55). Por conseguinte, o primeiro momento de Frank-
furt no Brasil – um momento ligado essencialmente ao nome de
Marcuse – serviu sobretudo ao fortalecimento do irracionalismo.
Um analista superficial jamais poderia prever que o seu segundo e
atual momento, capitaneado essencialmente pelo brasileiro Sérgio
Paulo Rouanet, viesse vinculado a uma radical defesa da razão;
e a uma defesa que se manifesta, como veremos, no combate a
tendências culturais que, em alguns casos, podem ser apontadas
como sequelas da antiga influência marcusiana.

2. Rouanet e a defesa da razão


O ocaso de Marcuse foi também, por algum tempo, o ocaso da
Escola de Frankfurt entre nós56. Com a reativação da vida política
a partir de meados dos anos de 1970, o espaço intelectual – que
55
O grupo lukacsiano brasileiro era formado na época por Leandro Konder, Luiz Sérgio
Henriques, José Paulo Netto, Gilvan P. Ribeiro e por mim. O leitor perceberá que, se a
observação acima comporta um autoelogio, comporta também uma autocrítica.
56
Há, pelo menos, duas exceções. Nesse período, Roberto Schwarz publica o seu excelente
ensaio sobre o primeiro Machado, Ao vencedor as batatas (São Paulo, Duas Cidades,

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era essencialmente “estético-cultural” no período anterior, em


função da dura censura ditatorial – foi ampliado com o retorno
de temas explicitamente políticos. É o momento, por exemplo, em
que Antonio Gramsci – que fora quase esquecido durante todo o
período que vai de 1968 a 1976 – emerge como um dos pontos
obrigatórios da reflexão marxista entre nós57. Parece-me supérfluo
insistir no valor positivo dessa ampliação temática para a reflexão
intelectual no Brasil e, em particular, para a reflexão que se ins-
pira no marxismo. Mas cabe também registrar que, num curioso
movimento pendular, ocorreu por algum tempo uma excessiva
“politização” do espaço cultural, com uma relativa “desativação”
das problemáticas estéticas e crítico-culturais que marcaram as
polêmicas do período anterior. Decerto, essa transitória “desati-
vação” era resultado da urgência de encaminhar e aprofundar a
transição da ditadura à democracia, uma tarefa na qual se empe-
nhou a grande maioria da intelectualidade, independentemente da
diversidade de suas concepções do mundo e da cultura. Mas era
também natural que, uma vez alcançado um regime de liberdades
democráticas, a polêmica especificamente cultural e ideológica
voltasse à superfície e reconquistasse o lugar que lhe é de direito
no espaço intelectual brasileiro. Digo “de direito” porque, sem
polêmica sobre concepções do mundo e da cultura, não há luta
pela hegemonia; e, sem luta pela hegemonia, não existe uma vida
política saudável, ou seja, democrática e pluralista.
É precisamente nesse quadro de reativação do debate especi-
ficamente ideológico-cultural que tem lugar o segundo momento
brasileiro da Escola de Frankfurt. Cabe notar, antes de mais nada,
que esse segundo momento é muito mais amplo e diversificado do
que o primeiro: em vez do quase monopólio marcusiano de final
dos anos de 1960 e início de 1970, vemos agora serem editados
no Brasil alguns dos mais importantes trabalhos de Horkheimer,
1977), onde utiliza amplamente categorias frankfurtianas. E Flávio R. Kothe publica
Benjamin & Adorno: confrontos (São Paulo, Ática, 1978).
57
Cf. C. N. Coutinho, “A recepção de Gramsci no Brasil”, in: Id., Gramsci. Um estudo
sobre seu pensamento político, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999, p. 279-305.

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80 Carlos Nelson Coutinho

Adorno, Habermas e, sobretudo, Benjamim58. Por outro lado,


com Sérgio Paulo Rouanet, a Escola se “naturalizou” definitiva-
mente: seus últimos livros59, de marcada inspiração frankfurtiana,
contribuem não somente para consolidar a elevação da ensaística
brasileira ao nível de sua melhor congênere internacional, mas
chegam mesmo, em minha opinião, a dar uma significativa con-
tribuição para o enriquecimento da problemática frankfurtiana
em termos universais. E mais: com seus instigantes artigos sobre a
cultura brasileira de hoje60, Rouanet colocou a Escola de Frankfurt
no centro de uma das mais importantes polêmicas culturais desse
início da mal chamada “Nova República”. É a esses artigos que
vamos dedicar o restante deste ensaio.
De certo modo, o que primeiro poderíamos dizer, num co-
mentário sobre esses artigos polêmicos de Rouanet, é que neles
Frankfurt se pôs contra Frankfurt: quando Rouanet critica o
irracionalismo que entrevê em muitas “subculturas jovens”, que
reconstituem “a polarização clássica entre a vida e a teoria que
floresceu (…) no romantismo”, certamente está criticando uma

58
Também sem nenhuma pretensão exaustiva, citaria: de Horkheimer e Adorno, Dialética
do esclarecimento (Rio de Janeiro, Zahar, 1985); de Benjamim, Haxixe, Origem do drama
barroco alemão e Obras escolhidas, v. 1, 2 e 3 (todos pela Brasiliense, São Paulo, 1984-
1989); de Habermas, Conhecimento e interesse (Zahar), Para a reconstrução do materia-
lismo histórico (Brasiliense), Mudança estrutural da esfera pública e Crise de legitimidade
no capitalismo tardio (Tempo Brasileiro). Cabe ainda registrar duas antologias, sobre
Habermas (organizada por S. P. Rouanet e B. Freytag) e sobre Benjamin (por Flávio
R. Kothe), publicadas na coleção “Grandes Cientistas Sociais”, da editora Ática, São
Paulo, respectivamente em 1980 e 1985, bem como a coletânea de textos frankfurtianos
publicados pela Abril Cultural, São Paulo, na coleção “Os Pensadores”, vol. XLVIII,
1975, com várias reedições posteriores.
59
Refiro-me a Édipo e o anjo. Itinerários freudianos em Walter Benjamin (Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, 1981); Teoria crítica e psicanálise (Rio de Janeiro-Fortaleza, Tempo
Brasileiro-Universidade Federal do Ceará, 1983); A razão cativa (São Paulo, Brasiliense,
1985); e As razões do iluminismo (São Paulo, Companhia das Letras, 1987).
60
Cf. Sérgio Paulo Rouanet, “Verde-amarelo é a cor do nosso irracionalismo”, in: Folhetim,
17 de novembro de 1985; e Id., “Blefando no molhado”, ibid., 15 de dezembro de 1985
(republicados em As razões do iluminismo, cit., p. 124-146). Mas cf. também a entrevista
de Rouanet publicada em Veja, de 29 de janeiro de 1986. Todas as citações de Rouanet
contidas neste ensaio são retiradas desses seus três trabalhos.

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Cultura e sociedade no Brasil 81

ressurreição “pós-moderna” da velha contracultura brasileira dos


anos de 1970, a qual, como vimos, sofreu forte influência do
frankfurtiano Marcuse. Talvez possa ser interpretado como um
“ato falho” o fato de que Rouanet, quando enumera as vertentes
teóricas que estariam na raiz dessas “subculturas” antirracionalis-
tas, cite explicitamente Foucault e os nouveaux philosophes, mas
omita o nome de Marcuse e (por que não lembrar?) de um certo
Benjamin fascinado por suas experiências com drogas. E é curioso
que o único Marcuse a que ele se refira seja o do último período,
precisamente o Marcuse autocrítico de Contrarrevolução e revolta.
Todavia, recordar tais omissões pode aparecer como uma mesqui-
nharia diante do que é mais importante nos ensaios de Rouanet:
eles nos recordam que a Escola de Frankfurt, liberada de seus
momentos mais “dionisíacos”, mais romântico-anticapitalistas,
possui alguns instrumentos eficientes para denunciar o irraciona-
lismo e propor soluções culturais bastante próximas da tradição
dialético-racionalista que me parece estar contida na produção de
Gramsci e do melhor Lukács da última fase. E é a essa vertente
frankfurtiana – que se propõe liberar a razão das repressões que
a aprisionam, e não identificá-la com a repressão e, portanto,
condená-la sumariamente – que Rouanet pertence.
São muitos os pontos em que concordo plenamente com
Rouanet­. Por exemplo: quando ele aponta no “nacionalismo cul-
tural”, na crítica xenófoba à cultura universal, uma manifestação
não só irracionalista, mas objetivamente reacionária61. Compartilho
igualmente seu combate ao chamado “pós-moderno”, ou seja, seu
empenho em conservar a necessária distinção entre a alta cultura,
por um lado, e, por outro, a cultura popular e de massas: somente
através da alta cultura (e, muito em particular, da grande arte) é
possível ao indivíduo elevar-se à autoconsciência de sua partici-
pação no gênero humano, na medida em que por meio dela se
apropria dos instrumentos capazes de romper a falsa consciência
alienada e particularista que o impede de desenvolver uma ade-
61
Cf. supra, “Cultura e sociedade no Brasil”, p. 54 e ss.

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82 Carlos Nelson Coutinho

quada postura crítica diante do mundo em que vive. Também


me parece corresponder a uma política cultural efetivamente
democrática sua atitude em face da língua culta (que me recorda
o combate similar de Gramsci pela língua nacional e contra o fe-
tichismo do dialeto); ou sua corajosa denúncia das manifestações
de anti-intelectualismo que vicejam hoje entre alguns setores do
movimento operário brasileiro (em particular, mas não apenas, em
algumas correntes minoritárias do PT). Em todos esses pontos, que
são decisivos em seus ensaios, Rouanet demonstra que pode haver
uma convergência de princípio entre uma postura gramsciana e
lukacsiana em face da cultura e um frankfurtianismo “apolíneo”,
baseado no que há de mais lúcido nas reflexões de Adorno, de
Benjamin e de Habermas.
Mas, de um ponto de vista gramsciano (que, diga-se de passa-
gem, pode e deve ser enriquecido com algumas reflexões lukacsia-
nas), sinto-me tentado a levantar algumas objeções às formulações
da Escola de Frankfurt, mesmo em seus melhores momentos. Em
primeiro lugar, diria que a colocação geral de Rouanet pressupõe
distinções demasiado rígidas entre os vários níveis da cultura e,
mais concretamente, da consciência social que se expressa através
das obras culturais. Decerto, ele nos adverte para o fato de que
“a alta cultura e a cultura popular são as duas metades de uma
totalidade cindida”; mas, ao mesmo tempo, afirma um pouco resig-
nadamente que essa totalidade “só poderá recompor-se na linha de
fuga de uma utopia tendencial”. Em segundo lugar, revelando uma
forte influência adorniana, parece considerar como essencialmente
alienada toda a cultura de massas (que ele distingue corretamente
da cultura popular), isto é, a cultura gerada pelos modernos meios
de comunicação62. É o que me parece resultar de sua afirmação
de que “a ameaça à sobrevivência da literatura de cordel não é o
62
Além dos explícitos motivos de crítica tendencialmente marxista, creio que não é difícil
perceber na radical oposição de Adorno à indústria cultural também uma posição eli-
tista, ou seja, um indisfarçável mal-estar diante do “agradável”, do mero divertissement.
É interessante observar que, em sua Estética (Turim, Einaudi, vol. 2, p. 1.288-1.336),
Lukács também insiste na substancial distinção entre o “agradável” e o “estético”; no

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Finnegan’s Wake, e sim a telenovela”. Uma análise menos abstrata,


mais diferenciada, deveria não só levar em conta a possibilidade
de que a consciência alienada e o irracionalismo se manifestem
também no interior da alta cultura (e este me parece precisamente
o caso da obra de Joyce tomada como exemplo por Rouanet), mas
também, inversamente, como veremos a seguir, a possibilidade de
que obras da cultura de massa (como algumas telenovelas) expres-
sem elementos de uma consciência crítica e não alienada. Embora
certamente não seja essa a intenção de Rouanet, o fato é que sua
posição frankfurtiana conduz a um certo imobilismo: por um
lado, devemos proteger a cultura popular, que ele identifica, em
mais de uma oportunidade, com o folclore (literatura de cordel,
artesanato nordestino etc.); por outro, trata-se de valorizar os
produtos da alta cultura, operando extraculturalmente (por meio
da democratização da sociedade) no sentido de que o povo tenha
acesso a seus produtos. E, finalmente, cabe proteger ambas contra
“a cultura de massas, nacional ou estrangeira”, adornianamente
concebida como o reino da alienação e da manipulação.
Com Gramsci, eu diria que uma política cultural democráti-
ca – sem deixar de lado, evidentemente, os fatores extraculturais
de democratização – deve operar de modo que a “recomposição
da totalidade cindida” se processe também por meio de um pro-
gressivo potenciamento das virtualidades de pensamento crítico
contidas nos níveis culturais inferiores. Mais explicitamente: o
que Rouanet designa como cultura popular é, essencialmente, o
que Gramsci chama de “folclore”, ou seja, um amálgama bizarro
de elementos heterogêneos provenientes da cultura superior do
passado (é o caso, muito claramente, do romance de cordel, cita-
do por Rouanet). Através dessa cultura popular, forma-se o que
Gramsci chama de “senso comum”: um conjunto de concepções
do mundo heterogêneas e contraditórias que organizam a práxis
dos “simples”, fornecendo-lhes normas para a ação. Para Gramsci­,

entanto, ele não condena o uso do agradável em obras culturais, mas sim a sua confusão
com o especificamente estético.

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84 Carlos Nelson Coutinho

a luta por uma nova cultura (momento da luta por uma nova
hegemonia) implica um esforço no sentido de “depurar” o “sen-
so comum” e elevá-lo ao nível do “bom senso”, ou seja, a uma
concepção do mundo mais organizada e sistemática que, liberta
de anacronismos e mesclas bizarras, coloque-se à altura da mo-
dernidade e se converta em instrumento de uma práxis crítica.
Todos sabem o imenso papel que Gramsci atribuía aos “grandes
intelectuais” – e, como tal, à alta cultura – nesse processo de
elevação da consciência folclorista ao nível do bom senso (ou, se
quisermos, da cultura nacional-popular). Mas tal processo não
pode ser confiado à simples esperança numa “utopia tendencial”:
sem jamais propor o desprezo ou o abandono da alta cultura,
Gramsci chega a dizer que – no nível da consciência social – o fato
de que uma concepção do mundo já elaborada seja difundida
entre as massas, tornando-se “bom senso”, é mais importante do
que a realização de uma descoberta teórica específica que reste
limitada a um círculo restrito. Por outro lado, para o autor dos
Cadernos do cárcere, essa obra de difusão e renovação cultural não
só não é incompatível com a grande arte, mas é mesmo uma de
suas condições: “É lutando por uma nova cultura – diz ele – que
se chega a modificar o ‘conteúdo’ da arte”63.
Ora, no mundo moderno (que deve certamente ser criticado,
mas não romanticamente recusado em bloco), a difusão de massa
de uma cultura crítica pode encontrar nos meios eletrônicos de
comunicação um instrumento privilegiado. Refiro-me, em pri-
meiro lugar, ao caráter positivo da difusão pela mídia de obras
culturais de nível superior (algo com o que o próprio Rouanet
talvez concorde, já que afirma que “até certo ponto a indústria
cultural é neutra em matéria de conteúdos”); com o perdão de
Adorno, citado por Rouanet, parece-me muito importante que
63
Resumo aqui conceitos gramscianos expressos nos Cadernos do cárcere, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1999-2002, em particular nos vs. 1, 2 e 6. Nas velhas edições
brasileiras, eles podem ser encontrados em Concepção dialética da história, Literatura e
vida nacional e Os intelectuais e a organização da cultura (Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, respectivamente 1966, 1968 e 1968).

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Cultura e sociedade no Brasil 85

milhares de pessoas escutem a Nona Sinfonia pelo rádio ou pela


televisão, mesmo que essa audição se dê entre duas propagandas
de dentifrício, caso a alternativa para isso seja a de que jamais a
escutem, por não poderem frequentar uma adequada sala de con-
certos. Mas, em segundo lugar, penso também na possibilidade de
que determinados gêneros culturais criados pelos meios de comu-
nicação possam contribuir para elevar progressivamente o gosto
artístico popular (tornando assim menos utópica a “recomposição
da totalidade cindida”) e, sobretudo, para operar aquela difusão
massiva de determinadas concepções do mundo de teor crítico
desejada por Gramsci. Gostaria de sublinhar que se trata de uma
possibilidade, que coexiste com a (e é frequentemente derrotada
pela) possibilidade contrária, ou seja, a de que tais gêneros sirvam
para difundir uma cultura alienada, regressiva e manipuladora
(Gramsci apontou uma ambiguidade similar quando analisou o
romance-folhetim e o melodrama italiano). Entretanto, se admitir-
mos que, apesar de tudo – ou seja, de suas limitações intrínsecas e
de seu atual controle pelos monopólios –, os meios eletrônicos de
comunicação comportam aquela possibilidade positiva, então se
trata de lutar para que ela se converta em realidade, suplantando
a possibilidade negativa contrária.
Quando falamos em gênero criado pela mídia eletrônica, é
claro que logo nos vem à mente, no caso brasileiro, a telenovela,
aliás fartamente citada por Rouanet. Ao contrário do que supõe
o radicalismo de Horkheimer e Adorno, para os quais não há
diferença entre Victor Mature e Charles Chaplin, ambos subme-
tidos à barbárie de uma indústria cultural que eles veem como
globalmente alienada e alienante, considero um progresso que as
telenovelas brasileiras não sejam mais escritas por Glória Magadan
e, sim, digamos, por Dias Gomes. Não posso me alongar aqui sobre
a questão, mas creio que muitas de nossas recentes telenovelas,
com todas as insuperáveis limitações formais do gênero e com
todos os esquematismos que sempre podem ser apontados em
seus conteúdos concretos, difundem grande número de elementos
culturais críticos, os quais – embora óbvios ou mesmo banais para

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86 Carlos Nelson Coutinho

os que são familiarizados com a alta cultura – chegam através


delas, pela primeira vez, a uma massa de milhões de telespecta-
dores. Produções desse tipo podem diminuir a defasagem entre o
folclorismo anacrônico, hoje predominante na cultura do povo, e
uma consciência nacional-popular mais rica e desenvolvida. Nesse
sentido, considero manifestação de elitismo a condenação prévia da
telenovela enquanto gênero, sob a alegação de que, por operar no
nível do agradável e não do estético, ela jamais poderá alcançar o
patamar artístico-ideológico de obras como, por exemplo, Doutor
Faustus ou Viva o povo brasileiro64.
Por tudo isso, no plano da política cultural, a concepção
gramsciana de uma inter-relação dinâmica e retroalimentadora
entre os vários níveis culturais me parece mais fecunda do que a
visão estática e, em última instância, conservadora que resulta das
concepções de Horkheimer e Adorno. É nesse ponto que julgo
entrever uma linha de continuidade, no seio de uma marcada
descontinuidade, entre os dois momentos da recepção da Escola
de Frankfurt no Brasil: na medida em que opta por trabalhar num
nível demasiadamente abstrato, “filosófico-universal”, a Escola de
Frankfurt – seja em sua versão “contracultural” marcusiana, seja
em sua atual figura racionalista encarnada por Rouanet – tende
a deixar de lado muitas mediações sociais concretas, sem as quais
é impossível realizar uma análise histórico-materialista da cultura
e, como consequência, propor uma política cultural democrática
e socialista, que não perca de vista a questão da luta pela hege-
monia entre diferentes blocos de classe. Porque, afinal, quando
Rouanet nos diz que o irracionalismo brasileiro “se apropriou
(...) das três tendências mencionadas [anticolonialista, antielitis-
ta e antiautoritária], usando-as para seus próprios fins”, não me
parece manifestação de sociologismo vulgar lembrar-lhe que o
64
Um discurso semelhante seria também válido, certamente em maior medida, para a nossa
música popular: num país onde a alta literatura quase sempre expressou um escasso grau
de consciência nacional-popular, foi através dessa música – de Noel Rosa a Caetano
Veloso e Chico Buarque – que grande parte da população encontrou instrumentos para
forjar o seu “bom senso”, ou seja, a sua consciência crítica.

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“irracionalismo” não tem fins, mas que é apenas a manifestação


ideológica de uma classe (ou de um bloco de classes) historica-
mente concreta. A que interesses sociais serve o irracionalismo
que Rouanet tão lucidamente denuncia e combate? Na medida
em que o marxismo frankfurtiano, com sua declarada predileção
pela crítica cultural “epocal”, deixa inteiramente de lado a questão
da luta de classes, não é de surpreender que não haja nos ensaios
de Rouanet nenhuma resposta a essa questão.
Seria uma ilusão ingênua supor que se possa fazer uma “reforma
intelectual e moral” (Gramsci) de modo exclusivo, ou automa-
ticamente, através da difusão propiciada pela mídia eletrônica:
devemos à Escola de Frankfurt, e em particular a Horkheimer
e Adorno, uma consciência mais lúcida e perspicaz dos imensos
riscos regressivos contidos na indústria cultural. A adoração bas-
baque das virtudes da mídia, tão bem denunciada por Rouanet, é
certamente uma manifestação equivocada, que deve ser duramente
combatida. Mas também me parece perigoso ignorar as potencia-
lidades dos meios de comunicação de massa, quando submetidos à
pressão e ao controle de uma sociedade civil forte e democrática, no
processo de elevação do senso comum folclorístico ao “bom sen-
so” crítico. Enquanto aparelhos de hegemonia, também os meios
eletrônicos são terreno de uma “guerra de posições” entre blocos
sociais conflitantes. Numa vertente frankfurtiana diversa daquela
de Adorno, foi esta a conclusão a que chegou Benjamin, em seu
belo ensaio sobre A obra de arte na época de sua reprodutibilidade
técnica. Se quisermos evitar o espírito de Kulturkritk romântica
que condena inapelavelmente o desenvolvimento tecnológico,
e se temos de reconhecer que a expansão dos meios de comu-
nicação é algo inexorável no mundo moderno, então temos de
atualizar, parodiando, a lição de Benjamin: diante das tentativas
de “pseudoestetização” da mídia a serviço da alienação e do em-
brutecimento, a resposta do comunismo é politizar a cultura de
massas. Contudo, para que essa arriscada operação não se converta
em populismo, ou mesmo em cinismo (“se o estupro é inevitável,
relaxe e aproveite”), mas se mantenha gramscianamente no nível

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de uma proposta nacional-popular aberta à alta cultura e aos seus


insubstituíveis valores estéticos e ideológicos, as advertências da
Escola de Frankfurt são indispensáveis. E temos de agradecer a
Rouanet por nos tê-las recordado, com lucidez e coragem.

(1986)

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O significado de Lima Barreto
em nossa literatura

A fortuna crítica da obra de Lima Barreto é um dos fenô-


menos mais desconcertantes da historiografia literária nacional.
Com efeito, desde o seu aparecimento até hoje, no momento em
que transcorre o cinquentenário da morte do escritor, essa obra
vem despertando reações extremamente contraditórias, que vão
do entusiasmo apaixonado de alguns à rejeição mais ou menos
categórica de muitos. Deve-se ainda observar que esse entusiasmo
se expressa frequentemente sob a forma de uma simpatia calorosa
mas pouco atenta ao essencial, enquanto a rejeição assume muitas
vezes o aspecto de um desprezo “aristocrático” pelas pretensas
debilidades “formais” do grande romancista popular.
O modo pelo qual se processa essa fortuna, assim, evidencia
em primeiro lugar como o pensamento progressista brasileiro –
apesar dos avanços realizados – ainda está distante de uma correta
e adequada reavaliação crítica de nossa própria herança cultural.
Na verdade, mesmo da parte de seus admiradores, habitualmente
situados à esquerda, a exata significação de Lima passou desperce-
bida; o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma – uma das poucas
obras-primas com que conta o romance brasileiro – é elogiado
enquanto notável “cronista” do mundo urbano carioca, enquanto
corajoso defensor das camadas populares etc., mas sem que se
avalie o seu significado real no fortalecimento e aprofundamento
de uma tradição realista autenticamente nacional-popular. Por
outro lado, tal como ocorre em relação a Graciliano Ramos, não
são poucos os que insistem erroneamente no caráter “memorialista”
da obra de Lima, na pretensa natureza biográfica dos seus roman-
ces; esse biografismo, ademais, em mãos de analistas superficiais,
leva à afirmação de que o caráter profundamente crítico da obra
de Lima decorreria dos “ressentimentos de um derrotado”, das

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90 Carlos Nelson Coutinho

“amarguras de um homem de cor”, dos “desequilíbrios de um


alcoólatra” etc. Em suma, mesmo nos casos em que se ressalta
o valor documental de suas “crônicas” ou o interesse humano
de suas “confissões”, deixa-se de lado o que distingue Lima do
naturalismo populista que caracteriza grande parte da literatura
brasileira “de esquerda”.
Em segundo lugar, é interessante observar como a intermitên-
cia do seu prestígio e de sua influência pode ser tomada como claro
indício do quadro geral apresentado, em cada época concreta, pela
cultura brasileira. Assim, nos períodos em que se destaca a função
crítico-social da arte, o papel que ela desempenha na formação
da autoconsciência da humanidade, Lima Barreto encontra o
elevado posto que lhe é devido no quadro de nossa literatura. Ao
contrário, nas épocas em que floresce uma visão formalista ou
esteticista da arte, desce sobre a obra do romancista um absoluto
silêncio, interrompido apenas pelas desdenhosas afirmações de
que ele desconheceria os “instrumentos específicos da escrita”. Isso
não é de modo algum casual. Lima Barreto não pode ser “reinter-
pretado”, ou seja, mutilado ou empobrecido a fim de servir aos
propósitos das correntes esteticistas ou reacionárias no campo da
literatura; o inequívoco caráter realista e democrático-popular de
sua obra se impõe com tal evidência, de modo tão absolutamente
insofismável, que os cultores brasileiros do esteticismo só podem
reagir diante dela com o silêncio ou a mistificação.

1
A exata determinação do significado de Lima Barreto na evo-
lução da literatura brasileira requer, como condição preliminar,
o estabelecimento – ainda que sumário – de algumas linhas de-
terminantes dessa evolução, não apenas no específico campo dos
problemas estéticos, mas igualmente no que se refere ao quadro
histórico-social em que ela se processa.
O caminho do povo brasileiro para o progresso social – um
caminho lento e irregular – ocorreu sempre no quadro de uma
conciliação com o atraso, seguindo aquilo que Lenin chamou de

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“via prussiana” e Gramsci designou como “revolução passiva”. Em


vez das velhas forças e relações sociais serem extirpadas através de
amplos movimentos populares de massa, como é característico da
“via francesa”, a alteração social se fez aqui mediante conciliações
entre o novo e o velho; ou seja, se consideramos o plano imediata-
mente político, mediante um reformismo “pelo alto”, que excluiu
inteiramente a participação popular. Como consequência desse
“modelo” de evolução, difunde-se a impressão de que a mudança
social assemelha-se a um “destino fatal”, inteiramente independen-
te da ação humana; e, como contrapartida desse fatalismo, ganha
força em outras áreas a suposição – igualmente equivocada – de
que aquela mudança resulta tão somente da ação singular de “in-
divíduos excepcionais”. No quadro desse profundo divórcio entre
povo e nação, torna-se assim particularmente difícil o surgimento
de uma autêntica consciência democrático-popular.
Esse fato, decerto, tem profundas repercussões negativas
também na formação e no caráter da intelectualidade brasileira.
Desenvolveu-se entre ela, praticamente desde os inícios do Bra-
sil independente, uma forte tendência a situar-se naquilo que
Thomas Mann, referindo-se aos intelectuais alemães, chamou de
“intimismo à sombra do poder”65. Descrentes da possibilidade de
influir decisivamente sobre as mudanças sociais, que se processam
sempre mediante acordos de cúpula entre as classes dominantes,
os intelectuais tendem a evadir-se da realidade concreta, a colocar-
se num terreno aparentemente autônomo, mas cuja autonomia é
respeitada precisamente na medida em que não se põem em jogo
as questões decisivas da vida social, as concretas relações sociais
de poder. Essa situação é agravada pelos traços característicos da

65
O termo aparece no ensaio manniano Grandeza e sofrimento de Richard Wagner, citado
e comentado por György Lukács, Thomas Mann, Paris, Maspero, 1967, p. 162 e ss.
Este conceito foi amplamente utilizado por Lukács em suas análises literárias (sempre
em relação com o problema da “via prussiana”), servindo-lhe como fio condutor na
compreensão de muitos problemas da história literária alemã e húngara. No presente
ensaio, valho-me dessas ideias e sugestões lukacsianas, na tentativa de esclarecer problemas
específicos da cultura brasileira.

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formação social de nossa intelectualidade: num período em que


predominava uma radical separação entre as classes e em que o
trabalho permanecia sob o estigma da condição servil, os inte-
lectuais – oriundos quase sempre da classe média – utilizavam
a cultura como meio de diferenciação, de prestígio e elevação
social, acentuando assim o seu isolamento com relação à concreta
realidade nacional-popular. Se a isso acrescentarmos o fato de que
os intelectuais dependiam, para o seu sustento, quase sempre de
uma integração no aparelho burocrático do Estado, teremos as
linhas histórico-sociais gerais da específica modalidade brasileira do
“intimismo à sombra do poder”. Do romantismo ao concretismo,
sob formas aparentemente variadas, essa tendência caracterizou
uma corrente significativa e quase sempre dominante da intelec-
tualidade brasileira.
Contudo, seria prova de esquematismo entender essa tendência
como manifestação de uma clara adesão imediatamente político-
ideológica ao poder estabelecido, às formas mais reacionárias de
dominação social, embora também essa adesão ocorresse em muitos
casos. O “intimismo à sombra do poder” combinou-se frequen-
temente com um inconformismo declarado, com um mal-estar
subjetivamente sincero diante da situação social dominante. O que
determina os limites do “intimismo”, em última instância, é o fato de
que ele capitula diante dos preconceitos ideológicos gerados espon-
taneamente pela “via prussiana”, ou seja, ao subjetivismo extremado
que vê nos indivíduos excepcionais as únicas forças da história, por
um lado, e, por outro, ao fatalismo pseudo-objetivo que amesquinha
ou dissolve o papel da ação humana na criação histórica. Facilmente
se perceberá que esses dois preconceitos, no plano estético, dão
origem respectivamente ao romantismo e ao naturalismo. O fato
de que o “modelo” prussiano seja algo permanente na evolução
brasileira, por sua vez, explica a razão por que essas duas tendências
antirrealistas – sob formas estilísticas extremamente variadas – se
manifestam ao longo de toda a nossa história cultural.
Tomemos inicialmente o caso do nosso romantismo em sen-
tido estrito. Nelson Werneck Sodré descreveu com acuidade os

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complicados meios pelos quais a insatisfação romântica inicial,


expressa em sua tentativa de desvincular-se do passado colonial,
terminou por desembocar numa forma específica daquilo que antes
chamamos de “intimismo à sombra do poder”. Na opinião de So-
dré, o indianismo – voltado contra o elemento colonial encarnado
pelo português – ocultava na verdade um desprezo pela realidade
social concreta do então presente brasileiro, pelo elemento popular
encarnado na figura do escravo negro66. Transformando o índio
no autêntico representante da nação brasileira, o indianismo
ressaltava o seu valor ideal – expresso através das deformações de
um subjetivismo romântico – em oposição à mesquinha e prosaica
realidade da época; mas, ao mesmo tempo, cumpria uma função
social claramente escapista, ao deixar na sombra as contradições
sociais concretas do Brasil de então. O culto romântico de um
índio mitificado (que vemos se expressar tão claramente na prosa
de José de Alencar ou na lírica de Gonçalves Dias) situava-se
perfeitamente no interior daquela esfera de suposta autonomia
tolerada pelo poder estabelecido. Por outro lado, nos casos em que
o pathos romântico voltava-se para os problemas do presente, ele
servia claramente a finalidades de ocultamento das contradições
essenciais da realidade (como ocorre nos romances de Joaquim
Manuel de Macedo) ou à expressão quase exclusiva de problemas
privados e superficiais de uma subjetividade isolada (como em
grande parte da nossa lírica romântica). Em todos esses casos, o
romantismo não escapa essencialmente aos limites estreitos do
“intimismo à sombra do poder”.
Uma tendência similar revela-se também em nosso natura-
lismo, embora fosse pretensão explícita da corrente naturalista a
ruptura com o monopólio romântico da época. É indiscutível que
o naturalismo europeu, em seus melhores representantes, como
Émile Zola, parte de uma recusa subjetiva da prosaica realidade
do capitalismo. No caso brasileiro, essa recusa volta-se contra o
66
Cf. N. W. Sodré, História da literatura brasileira, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1964, p. 199-294, bem como o seu belo ensaio sobre José de Alencar, em Id., Ideologia
do colonialismo, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965, p. 41-59.

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Segundo Reinado, no qual predomina um estagnado equilíbrio


de classes, com predomínio da pseudoaristocracia rural escravista.
Mas, no plano objetivo da criação artística, o naturalismo capi-
tula diante do aspecto imediato dessa estagnação, ao considerar
a realidade que descrevia – a repressão e alienação das mais ín-
timas potencialidades humanas – como algo eterno e imutável.
O predomínio fatalista do “ambiente” fetichizado sobre a ação
humana, que foi ainda mais intenso no naturalismo brasileiro do
que em sua matriz europeia, terminava por transformar o protesto
originário dos naturalistas em conformismo real, numa resignada
aceitação das misérias humanas que descreviam em seus romances.
Essa tendência à resignação e ao imobilismo conformista aparece,
em última instância, como uma capitulação da intelectualidade
diante do aspecto fatalista que a “via prussiana” emprestava ao
nosso desenvolvimento. O fenômeno é bastante evidente no mais
importante (inclusive sob o aspecto estético) de nossos romances
naturalistas, O cortiço de Aluísio Azevedo. Descrevendo as desuma-
nas condições em que vive a população pobre do Rio de Janeiro,
o romancista descreve ao mesmo tempo a paulatina capitulação
de todos os personagens às pressões dissolutoras do “ambiente”, à
pretensa fatalidade de leis de hereditariedade entendidas de modo
fetichista, com o que termina por amesquinhar e empobrecer
radicalmente todas as figuras humanas que constrói.
Do ponto de vista estético, deve-se observar que o naturalismo
brasileiro revelou-se absolutamente incapaz de criar autênticos
tipos humanos que pudessem se inscrever na autoconsciência na-
cional; essa incapacidade congênita do naturalismo já havia sido
observada pelo marxista Paul Lafargue, ao comparar os persona-
gens de Balzac com os de Zola, mas se acentua decisivamente no
Brasil, em decorrência da pobreza humana objetiva e da escassa
integração nacional que caracterizavam nossa sociedade semico-
lonial. E, do ponto de vista ideológico geral, essa resignação final
implícita na figuração naturalista do mundo, ainda que muitas
vezes involuntariamente, desembocava numa nova versão do “in-
timismo à sombra do poder”: as contradições sociais e humanas,

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fruto das vicissitudes histórico-concretas de nosso país, aparecem


no naturalismo como produto de uma “fatalidade” ambiental
e biológica, sobre a qual a ação efetiva dos homens não teria
nenhum poder. Assim, no sentido ideológico mais profundo, o
episódio naturalista – tanto em suas versões urbanas quanto nas
“sertanistas” – não representa uma ruptura essencial com a tradição
romântica. Essa continuidade, ademais, expressa-se igualmente no
nível estético-formal, dado que – como já se observou repetidas
vezes – o nosso naturalismo herda não apenas a ênfase romântica
no plano do estilo, mas igualmente a preferência temática (também
de origem romântica) pelo pitoresco e pelo exótico.
Em tais condições sociais, ou seja, nas condições de um país
semicolonial imerso na “via prussiana” de desenvolvimento, a cria-
ção de autênticas obras estéticas realistas torna-se muito difícil. A
quase completa estagnação social e a impossibilidade de captar no
plano fenomênico imediato ações humanas significativas (capazes
de servir de objeto à figuração artística) acentuam ainda mais a ten-
dência dos criadores a situar-se no plano do “intimismo à sombra
do poder”. O romantismo, por um lado, busca na evasão subjeti-
vista diante do prosaísmo desumanizante da realidade concreta o
seu específico material poético, ao passo que o naturalismo, por
outro, recusando o subjetivismo dessa evasão, limita-se a descrever
a estagnação e a considerá-la como algo “fatal” e imutável.
Contudo, essa marcada oposição à arte que surge espontanea-
mente da atrasada realidade brasileira apresenta influências diversas
em cada gênero literário específico. No caso dos gêneros “objeti-
vos”, como a épica e o drama, que se centram na representação de
ações humanas significativas, esse prosaísmo antiartístico derrota
ou prejudica seriamente a maioria dos artistas brasileiros. Mas na
lírica, que se constrói a partir da explicitação de uma subjetividade
elevada à universalidade concreta, as tendências aludidas – tanto o
“intimismo à sombra do poder” quanto a pobreza humana obje-
tiva da realidade social – podem mais facilmente ser contornadas,
dando lugar a algumas expressivas “vitórias do realismo” (reside
aqui a razão de dois fatos até agora não muito bem explicados: a

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superioridade estética da lírica no seio da literatura brasileira; e,


em estreita relação com isso, a existência de uma expressiva conti-
nuidade evolutiva no caso desse gênero, continuidade inteiramente
inexistente no plano do romance e, em particular, do drama).
Essas “vitórias do realismo” ocorrem frequentemente já na lírica
de inspiração romântica, em que um intenso pathos subjetivo de
recusa e inconformismo diante do sufocante ambiente imposto
pela “via prussiana” encontra em muitos casos um elevado teor
poético e humano; embora o realismo de Castro Alves apareça
muitas vezes mesclado com uma retórica romântica abstrata, a
obra abolicionista do poeta baiano pode ser apontada como um
concreto exemplo de superação lírica dos limites impostos pelo
‘intimismo” dominante.
Aqui nos interessam mais de perto – dadas as suas relações com
a obra de Lima Barreto – as “vitórias do realismo” que se expressam
no plano específico da criação épico-narrativa. A primeira delas
aparece em Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antô-
nio de Almeida. Situando a ação de seu romance numa época em
que a mobilidade social parecia tornar-se uma possibilidade con-
creta, ou seja, na época imediatamente anterior à Independência,
Almeida consegue emprestar a seus personagens – quase sempre
provenientes das camadas populares da época – uma sagacidade
prática e uma alta capacidade de iniciativa, o que faz de Memó-
rias o digno representante brasileiro das melhores tradições do
romance picaresco universal. Mais concretamente: o romance de
Almeida aproxima-se da forma aberta do grande realismo inglês do
século 18, em particular de Fielding (Tom Jones) e de Defoe (Moll
Flanders­), ou seja, de um tipo de romance que expressa uma época
na qual o capitalismo – liberando as potencialidades humanas
reprimidas pelo feudalismo e incentivando uma ampla mobilidade
social – ainda não revelara inteiramente sua face contraditória e
repressora da individualidade. Se as Memórias conseguem alcançar
um tão significativo nível de realismo, isso se deve, antes de mais
nada, ao fato de que Manuel Antônio de Almeida conservou-se
fiel às promessas de progresso anunciadas no período das lutas pela

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Independência, sem se comprometer com as formas “prussianas”


que caracterizaram efetivamente a realização da Independência e
que já dominavam soberanamente na época em que ele viveu e
criou. A profunda verdade estética de Leonardo – o primeiro tipo
autenticamente nacional-popular na literatura brasileira – decorre
precisamente dessa específica verdade do seu conteúdo histórico e
humano. E isso acentua ainda mais o elemento fortemente crítico
do realismo de Almeida: o seu romance figura concretamente, de
modo imediatamente estético, as alternativas democráticas do povo
brasileiro, as potencialidades humanas que poderiam florescer caso
fossem efetivamente rompidas as ataduras retrógradas e sufocantes
impostas pela “via prussiana”.
Bem mais complexo e completamente diverso (em seus aspec-
tos estéticos e ideológico-históricos) é o modo pelo qual Machado
de Assis, em sua obra da maturidade, logrou alcançar uma plena e
profunda vitória do realismo. Machado não se vale do anacronismo
histórico de Almeida para escapar às dificuldades impostas pelo
prosaísmo de sua época; a matéria de seus romances é o tempo
presente, a época do Segundo Reinado, quando as devastações
humanas causadas pela “via prussiana” haviam alcançado um ponto
extremo. Na sufocante atmosfera de uma falsa “segurança”, parece
não haver mais lugar para nenhuma ação humana independente
e significativa, capaz de revelar esteticamente o núcleo humano
dos homens. Graças à universalidade da sua concepção do mundo
e do homem, porém, Machado tornou-se o implacável crítico
romanesco dessa falsa segurança, dessa insensata forma de vida
baseada no “intimismo à sombra do poder”; com uma aguçada
sensibilidade realista para a distinção entre a máscara superficial
e a essência íntima dos homens, Machado vai paulatinamente
revelando – através da espantosa descoberta de Bentinho, das
amargas experiências de Brás Cubas e de Rubião – como eram
hipócritas e precárias as bases daquela estabilidade obtida às custas
do aprisionamento numa mesquinha vida privada. Derrubando
com seu humor sereno mas explosivo as paredes que protegiam
aquele “intimismo à sombra do poder”, Machado foi capaz de

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emprestar às suas figuras a universalidade concreta requerida pela


autêntica configuração épica do mundo. A similaridade temática
imediata com o naturalismo de tipo flaubertiano não deve ocultar
esta diferença essencial: Machado atinge o núcleo essencial dos
problemas que aborda, enquanto o naturalismo limita-se à des-
crição de suas cascas superficiais.

2
Essa rápida alusão às obras de Manuel Antônio de Almeida e de
Machado de Assis, os dois maiores exemplos de vitória do realismo
na arte narrativa brasileira do século 19, tem um objetivo preciso:
indicar o fato de que não existe entre os dois romancistas nenhu-
ma continuidade orgânica, que os seus meios estilísticos e os seus
recursos ideológicos – embora se orientem em ambos os casos para
o realismo e para o humanismo – são basicamente diversos. Em
outras palavras: o modo pelo qual cada um deles alcança a vitória
do realismo aparece como um fenômeno singular e irrepetível, ca-
rente de qualquer exemplaridade. É indiscutível que não existe, na
literatura universal, nenhum exemplo de continuidade homogênea,
de exemplaridade absoluta; não ocorre jamais, por parte dos realistas
expressivos, uma simples repetição das soluções estéticas e ideológicas
encontradas pelos seus antecessores. Mas, nos países que seguiram
uma via não prussiana de desenvolvimento, nos quais a contínua
intervenção popular na criação da vida nacional assegura a formação
de um amálgama sócio-humano relativamente homogêneo e con-
tínuo, a literatura apresenta também uma marcada continuidade:
os novos escritores tomam como ponto de partida, ainda que para
superá-los dialeticamente, os problemas e as soluções encontrados
por seus antecessores. Basta aqui lembrar, como exemplos, as linhas
que levam de Balzac a Roger Martin du Gard, na literatura francesa,
ou de Pushkin a Gorki (ou, ainda, de Dostoievski a Soljenitsin) na
literatura russa: apesar de grandes diversidades, os romancistas fran-
ceses e russos evidenciam uma marcante unidade e homogeneidade,
que decorre essencialmente da profunda ligação entre eles e a vida
nacional-popular de seus respectivos países.

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Uma continuidade desse tipo inexiste nos países que adotaram


a “via prussiana” ou a “revolução passiva” como forma de desen-
volvimento. Em primeiro lugar, isso decorre da radical separação
entre os intelectuais e o povo-nação; em segundo, da fragmentação
e da heterogeneidade sociais decorrentes da ausência de um sujeito
nacional-popular unitário, que intervenha continuadamente na
criação da história (gerando, entre outros, o fenômeno da divisão
do país em “regiões” mais ou menos autônomas); e, finalmente,
como consequência, da ausência de tipos humanos exemplares que
se expressem através de ações independentes e significativas. Por
isso, em tais países, o realismo assume quase sempre um caráter
excepcional, não apenas no sentido estrito de não habitual, mas
também naquele de fenômeno irrepetível. Assim, não se pode dizer
que Machado tenha recolhido a tradição de Manuel Antônio de
Almeida, ou seja, que tenha adequado aos novos tempos – como
Soljenitsin em relação a Dostoievski, ou como Martin du Gard
em relação a Balzac – os meios estilísticos e ideológicos utilizados
pelo autor de Memórias. Na verdade, ele recriou por sua própria
conta (a partir, quando muito, de certas constelações estilísticas e
ideológicas da literatura universal) instrumentos basicamente di-
versos dos de Almeida em sua tentativa de alcançar o realismo.
É esta a razão essencial pela qual a obra de Machado, apesar
da profunda influência imediata que exerceu, não foi capaz de
inverter a tendência dominante, ou seja, a tendência a cultivar
a arte no estéril terreno do “intimismo à sombra do poder”.
Esse efeito liberador tornou-se ainda mais problemático por
Machado, obrigado a lutar contra grandes obstáculos pessoais
e sociais, ter sido impelido a algumas conciliações exteriores,
assumindo enquanto personalidade literária certas formas da-
quele “intimismo à sombra do poder” que, em seus romances e
novelas, desmistificara impiedosamente (nesse sentido, o destino
pessoal de Machado aproxima-se bastante das vicissitudes de
outro humanista: Goethe­.) Mais do que isso: a “serenidade” e
a distância irônica do estilo machadiano, instrumentos de sua
crítica social mordaz e profunda, foram frequentemente confun-

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didas com desumanidade, com uma “impassibilité” flaubertiana


equivocadamente transposta de sua vida pessoal para o interior
de sua obra criativa67. Aquela excepcionalidade que caracteriza
o realismo brasileiro, aliada às conciliações exteriores e a essa
característica ideológico-estilística de sua obra, impediram que
Machado de Assis exercesse uma influência positiva imediata no
sentido de dissolver a continuidade das tendências “intimistas”,
nas quais se situara (e continuava a situar-se) a maior parte da
intelectualidade brasileira.
Reside aqui a razão profunda dos ataques que Lima Barreto,
ao longo de sua vida, não cessou de dirigir a Machado de Assis.
O ponto central desses ataques não seria, como ocorreria pouco
após entre os primeiros modernistas, o pretenso passadismo da lin-
guagem romanesca de Machado. Lima Barreto – empenhado num
combate desapiedado e quase solitário contra todas as manifesta-
ções do “intimismo à sombra do poder”, contra todas as formas
de esteticismo aristocratizante – escolheria um outro alvo: o que
lhe desagrada, no autor de Brás Cubas, é precisamente a aparente
falta de humanidade, o suposto abandono das específicas funções
sociais e humanistas da literatura. Numa carta a Austregésilo de
Ataíde, escreveu Lima:
Gostei que o senhor me separasse de Machado de Assis. Não lhe negando os
méritos de grande escritor, sempre achei no Machado muita secura de alma,
muita falta de simpatia humana, falta de entusiasmos generosos, uma porção
de sestros pueris. Jamais o imitei e jamais me inspirou. Que me falem de Mau-
passant, de Dickens, de Swift, de Balzac, de Daudet – vá lá, mas Machado,
nunca! Até em Turguenieff, em Tolstoi, podiam ir buscar os meus modelos;
mas, em Machado, não!68

67
A crítica desses equívocos pode ser encontrada em Astrojildo Pereira, Machado de Assis,
Rio de Janeiro, São José, 1959, particularmente p. 89-112. Mas certamente a mais lú-
cida “leitura” de Machado de Assis já produzida no Brasil é aquela contida em Roberto
Schwarz, Ao vencedor as batatas, São Paulo, Duas Cidades, 1977, e Id., Um mestre na
periferia do capitalismo, São Paulo, Duas Cidades, 1990.
68
Carta a Austregésilo de Ataíde, 19/01/1921, in: Lima Barreto, Correspondência, São
Paulo, Brasiliense, 1956, tomo II, p. 256-257.

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Cultura e sociedade no Brasil 101

Não é casual que Lima, ao buscar um modelo para opor-se a


Machado, indicasse o nome de sete escritores estrangeiros69. Isso
evidencia até que ponto ele estava consciente do seu isolamento,
da singularidade de sua missão literária no quadro de uma lite-
ratura em que o realismo era algo excepcional, ao passo que as
tendências contínuas e permanentes orientavam-se decisivamente
para o escapismo e para o antirrealismo. Assim, embora objeti-
vamente injusto, o combate de Lima à herança machadiana faz
parte de sua luta mais geral, histórica e esteticamente correta, por
um autêntico realismo crítico nacional-popular. Carecendo de
instrumentos teóricos adequados (que, em sua época, ninguém
possuía no Brasil), ele não foi capaz de perceber o fato de que a
obra de Machado representava objetivamente um movimento na
mesma direção.
Todavia, além dessa justificativa geral, a compreensão por
parte de Lima Barreto do seu antagonismo em relação a Machado
manifesta ainda um outro elemento correto. Embora de modo
confuso, Lima captou um traço essencial da diferença estilística
(determinada em última instância por questões de conteúdo)
entre sua própria práxis literária e aquela de Machado. Os efeitos
da “via prussiana” sobre o desenvolvimento literário brasileiro
manifestavam-se concretamente: a criação de um novo realismo,
adequado aos novos tempos, não podia se fazer a partir de Ma-
chado, mas implicava a necessidade de um rompimento com a sua
herança. Mais precisamente: o desenvolvimento da herança realista
de Machado requeria, paradoxalmente, o completo abandono
de sua temática, de seu estilo e de sua visão do mundo. A nova
realidade impunha um estilo menos sereno, menos “equilibrado”,
no qual as preocupações “artísticas” não mais podiam ocupar o
lugar dominante. Lima extrai, ainda que sem plena clareza teó-
rica, as conclusões desse fato, capacitando-se assim – como diria
69
Na literatura universal, Lima sentia-se particularmente ligado aos russos. Assim, em
carta a um escritor estreante, escrita em 19/08/1919, dizia ele: “Leia sempre russos:
Dostoievski, Tolstoi, Turguenieff, um pouco de Gorki; mas, sobretudo o Dostoievski
da Casa dos mortos e do Crime e Castigo” (ibid., p. 171).

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Francisco de Assis Barbosa – a “inaugurar revolucionariamente a


fase do romance moderno no Brasil”70.
A prática demonstraria, ademais, que a conservação do modelo
machadiano para além das condições concretas que lhe deram
origem deveria conduzir paulatinamente ao seu esvaziamento
maneirista. Os três grandes romances machadianos, precisa-
mente aqueles que inscrevem o seu nome no cume da literatura
nacional (Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro), têm
como objeto imediato de sua figuração a época da estabilização
imperial, embora tenham sido publicados no período que vai da
desintegração do Segundo Reinado à República pós-florianista.
Entretanto, Machado já percebe o modo pelo qual os elementos
capitalistas modernos penetram no velho mundo escravocrata; e
indica como essa penetração, longe de representar uma ampliação
dos horizontes humanos, contribui para reforçar – na medida em
que se processa nos quadros da “via prussiana” – a miséria humana
da vida social brasileira. Desse modo, a extraordinária universa-
lidade de sua obra é paradoxalmente beneficiada pelo aparente
desconhecimento das agitações ideológicas e políticas republicanas
que se iniciariam já a partir dos anos de 1870; ao abandonar essas
agitações superficiais (que muito prometiam, mas que cumpriram
tão pouco) em troca da representação da continuidade da “via
prussiana”, Machado captou um traço essencial e duradouro da
evolução histórica brasileira. Contudo, quando o ingresso do
Brasil na era imperialista (que coincide com o advento da Repú-
blica) aguça intensamente as contradições, levando o “modelo
prussiano” a uma nova fase, o equilíbrio assegurado pela ironia e
pelo distanciamento com os quais Machado forjara o seu estilo
da maturidade deveria romper-se. Isso já se revela na própria obra
machadiana; com efeito, é inegável que em seus últimos romances,
particularmente em Esaú e Jacó, no qual pretende captar mais de
perto as agitações republicanas dos novos tempos, o grande realista

70
Francisco de Assis Barbosa, “Prefácio” a Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías
Caminha, São Paulo, Brasiliense, 1970, p. 14.

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não mais alcança o nível estético e a verdade histórico-humana de


seus três romances citados.
Ainda mais significativo, todavia, parece ser o completo esva-
ziamento que o estilo de Machado – rompido o equilíbrio dialético
de seus vários componentes (equilíbrio assegurado pela especifi-
cidade do conteúdo que expressava) – haveria de sofrer em mãos
dos seus inúmeros imitadores da época parnasiana. Temos aqui
uma comprovação negativa, mas altamente expressiva, daquela
descontinuidade a que aludimos: para continuar efetivamente o
realismo de Machado, era preciso – como Lima o intuiu – romper
decisivamente com a sua herança imediata. Com efeito, na obra
dos epígonos, o “distanciamento” machadiano será acentuado, mas
com inteiro abandono da cortante crítica social que ele expressava
originariamente; a “serenidade” ganha a fisionomia da pose aristo-
crática, ao ser esvaziada da universalidade histórico-humana que
assumia em Machado; e, finalmente, a “artisticidade” converte-se
num objetivo em si, numa nova versão do “intimismo à sombra
do poder”, não mais aparecendo como o resultado estilístico (não
artificialmente buscado) de uma profunda verdade do conteúdo
humano e ideal. Tudo isso desembocaria na concepção de Afrânio
Peixoto da literatura como o “sorriso da sociedade”, concepção
contra a qual Lima – com lucidez crítica exemplar – combateria
implacavelmente.
Reagindo contra a herança imediata de Machado, Lima Bar-
reto expressa a sua categórica rejeição ao “intimismo” e, ao mes-
mo tempo, lança as bases de sua luta – solitária na época – pela
retomada da linha realista no que ela tinha de essencial. Como
poucos críticos profissionais de seu tempo, Lima soube avaliar
corretamente a pobreza estética e humana dessas novas versões,
cada vez mais envilecidas, do “intimismo à sombra do poder”.
Diz-nos ele, no Gonzaga de Sá:
A nossa emotividade literária só se interessa pelos populares do sertão unica-
mente porque são pitorescos e talvez não se possa verificar a verdade de suas
criações. No mais, é uma continuação do exame de português, uma retórica a
se desenvolver por este tema sempre o mesmo: Dona Dulce, moça de Botafogo

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em Petrópolis, que se casa com o Doutor Frederico. O comendador seu pai


não quer, porque o tal Frederico, apesar de doutor, não tem emprego. Dulce
vai à superiora do colégio das irmãs. Essa escreve à mulher do ministro, antiga
aluna do colégio, que arranja um emprego para o rapaz. Está acabada a história
(...). Está aí um grande drama de amor em nossas letras, e o tema do seu ciclo
literário. Quando tu terás, na tua terra, um Dostoievski, uma George Elliot, um
Tolstoi – gigantes desses, em que a força da visão, o ilimitado da criação, não
cedem passo à simpatia pelos humildes, pelos humilhados, pela dor daquelas
gentes donde às vezes não vieram – quando?71

É evidente que Lima propõe a criação de uma literatura desse


tipo (cujos modelos, sintomaticamente, vai mais uma vez buscar
na literatura universal), ou seja, de uma literatura que conjugue
indissoluvelmente a grandeza estética com um profundo espírito
popular e democrático, com uma aberta tomada de posição em
favor dos “humilhados e ofendidos”. Ao contrário da maioria
dos seus contemporâneos, ele está consciente da necessidade de
encontrar, para a adequada representação dos novos tempos, um
estilo diverso daquele que caracteriza a obra machadiana.
Com efeito, o início da Primeira República – na medida em
que dera seguimento à “via prussiana”, promovendo apenas um
reagrupamento de forças no seio da oligarquia dominante – frus-
trara decisivamente as esperanças de renovação democrática vividas
pelos melhores representantes da geração de 1870 (como vimos, já
na época, Machado tivera a lucidez de acolher com ceticismo essas
esperanças e ilusões). A simples mudança de regime político, como
Lima sempre ressaltou, em nada alterara os vícios fundamentais da
formação histórica brasileira. Mas isso não significa, de nenhum
modo, que o período desconheça a irrupção de fatos novos. Ao
contrário: coincide com a implantação da República tanto o
aguçamento da dependência brasileira ao capital internacional,
inclusive através da indústria nascente, quanto o tumultuado
surgimento das primeiras lutas de classe entre o proletariado e a
oligarquia dominante. O país ingressava na era capitalista (que

71
Lima Barreto, Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, São Paulo, Brasiliense, 1956, p.
133-134.

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já atingia no plano mundial a fase imperialista) sem ter resolvido


os impasses históricos decorrentes da “via prussiana”. Com isso,
dissolver-se-iam inteiramente os aparentes traços de “estabilidade”
da época imperial, ainda hoje louvados pelos historiadores reacio-
nários, que os assumem como fetiches (basta pensar no mito da
“democracia coroada”). Com a República, iniciava-se uma época
aguda de contradições sociais tornadas evidentes; o fim do regime
de trabalho escravo, com o consequente surgimento de uma classe
de trabalhadores assalariados, fazia ingressar um novo protagonista
na história brasileira, o que, pela primeira vez, fundava a possi-
bilidade objetiva de se encontrar uma alternativa concreta para a
“via prussiana”. A tentativa “republicana” de prosseguir nessa via
antidemocrática já não podia mais se processar no quadro de uma
aparente “estabilidade social”; as formas burocrático-ditatoriais da
“via prussiana” deveriam substituir as modalidades “paternalistas”
próprias do Segundo Império. Do seu ângulo de visão profun-
damente nacional-popular, alheio a qualquer conciliação com o
“modelo prussiano”, Lima Barreto captaria corretamente a essência
classista do novo regime:
Sem ser monarquista, não amo a república (...). O nosso regímen atual é da
mais brutal plutocracia, é da mais intensa adulação aos elementos estranhos,
aos capitalistas internacionais, aos agentes de negócios, aos charlatães tintos
com uma sabedoria de pacotilha72.
O aguçamento dessas contradições reflete-se também na lite-
ratura brasileira. A sutil ironia machadiana deve ser substituída
pela amarga sátira contra os poderosos, uma sátira que não hesite
em converter-se em impiedoso sarcasmo. O “distanciamento”, o
peculiar modo encontrado por Machado para se manter fiel ao
humano numa época em que as camadas populares permaneciam
esmagadas e imobilizadas pelo regime do trabalho escravo, tem
de se converter agora numa clara tomada de posição em favor
das classes sociais que apontavam para um caminho novo, em
favor daqueles “humilhados e ofendidos” que já começavam a se
72
Lima Barreto, Coisas do Reino do Jambon, São Paulo, Brasiliense, 1956, p. 80.

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anunciar como sujeitos políticos. Não é casual que Lima Barreto


seja contemporâneo do surgimento das primeiras manifestações do
proletariado organizado em nosso país; somente esse surgimento
podia possibilitar ao escritor aquele “ponto de Arquimedes” situado
fora da “via prussiana”, capaz de revelar-lhe a integralidade das
contradições sociais e humanas decorrentes dessa via.
Em sua tomada de posição diante da realidade social, Lima
Barreto não se situaria apenas, como muitos dos seus contempo-
râneos progressistas, ao lado dos “industrialistas” modernizadores
contra o passadismo “agrarista”. Ele não se limitou a denunciar a
aliança entre a “moderna” República nascente e o imperialismo;
enxergou também a tendência de “agraristas” e “industrialistas”
a se fundirem numa nova coalizão, continuadora da tradicional
“via prussiana”, ou seja, uma coalizão que continuaria a excluir
qualquer autêntica participação popular (essa nova coalizão, após
inúmeros atritos entre os seus componentes, chegaria ao poder
com a chamada Revolução de 1930). Decerto, não pretendemos
afirmar que Lima tenha compreendido e assimilado uma visão
marxista ou mesmo coerentemente socialista do mundo; nem
tampouco que, em sua simpatia pelas classes populares, tivesse
alcançado uma clara consciência do papel específico que nelas
desempenhava o proletariado industrial. Não apenas isso seria
praticamente impossível em seu tempo, como – o que é mais
importante – não era de modo algum condição necessária para o
êxito realista de sua obra. Esse êxito podia ser alcançado através
de seu anarquismo mais ou menos sentimental, de seu bizarro
“maximalismo”, pois eles expressavam a íntima adesão de Lima
a uma perspectiva nacional-popular decisivamente contrária a
qualquer conciliação com a “via prussiana”73.

73
De qualquer modo, Lima nunca hesitou em apontar no capitalismo a origem de todos
os nossos males e de defender a revolução dos “maximalistas” (ou seja, dos bolchevi-
ques), desejando-a também para o Brasil. Num artigo escrito em maio de 1918, ele diz:
“Nós, os brasileiros, devemos iniciar a nossa Revolução Social (...) Confesso que foi a
revolução russa que me inspirou tudo isso. (...) A face do mundo mudou. Ave Rússia!
(...)” (Lima Barreto, Bagatelas, São Paulo, Brasiliense, 1956, p. 96). Em março de 1919,

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A determinação dos problemas ideológicos e históricos vividos


por Lima Barreto não é de modo algum tarefa externa à análise
imanente de sua obra literária; com efeito, é a partir dessa recusa
global do “modelo prussiano” – tanto em suas versões tradicionais
quanto “modernizadoras” – que Lima figura e critica, no plano
especificamente estético, a realidade social de seu tempo. Em sua
obra, ele não se limita a apontar algumas “mazelas” sociais, capazes
de correção por meio de reformas no interior do sistema, como
frequentemente ocorre no naturalismo brasileiro (basta mencionar
aqui, como exemplo, o interessante romance O Ateneu, de Raul
Pompéia). A sua demolidora denúncia da imprensa, da burocracia,
das formas políticas da época republicana, inclusive do militarismo
florianista, são momentos dessa crítica histórico-universal, feita
em nome de um novo caminho alternativo para a evolução brasi-
leira. É assim possível que ele tenha, algumas vezes, tratado com
demasiado “rigor” certas manifestações culturais ou políticas que,
vistas à luz das tarefas imediatas do período (consolidação da forma
republicana de governo), desempenhavam um papel relativamente
positivo. Talvez seja o caso do jornal que escolheu para combater
(no Isaías Caminha) e, mais amplamente, do movimento florianista
(contra o qual se volta particularmente no Policarpo Quaresma).
Mas essa aparente “injustiça”, que podia ser problemática para
um dirigente político, não o prejudica absolutamente enquanto
romancista: ao contrário, faz dele não um interessante “cronista”
da época ou da cidade, não um panfletário de valor relativo e
transitório, mas um dos maiores representantes da linha humanista
e democrático-popular na literatura brasileira.

volta ao tema: “Todo o mal está no capitalismo, na insensibilidade moral da burguesia,


na sua ganância sem freio de espécie alguma, que só vê na vida dinheiro, dinheiro,
morra quem morrer, sofra quem sofrer (...). Cabe bem aos homens de coração desejar
e apelar para uma convulsão violenta que destrone e dissolva de vez esta societas sceleris
de políticos, comerciantes, industriais, prostitutas, jornalistas ad hoc, que nos saqueiam,
nos esfaimam, emboscados atrás das leis republicanas. É preciso, pois não há outro meio
de exterminá-la” (ibid., p. 163-164). Sobre a ideologia de Lima, cf. o belo ensaio de
Astrojildo Pereira, “Posições políticas de Lima Barreto”, incluído em Crítica impura,
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963, p. 34-54.

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3
Entretanto, apesar de intuir corretamente os problemas esté-
ticos e ideológicos da literatura da nova época, Lima nem sempre
conseguiu resolver adequadamente, em sua práxis criativa, as tare-
fas a que se propusera. Seria uma explicação equivocada – diante
do autor de Triste fim de Policarpo Quaresma, uma das maiores
realizações estéticas da literatura brasileira – falar em “falta de
talento”74. As causas dos desníveis internos que podemos indicar
na produção narrativa do romancista devem ser buscadas num
nível mais profundo, ou seja, naquela ausência de continuidade
substancial na evolução do realismo brasileiro, ausência que impõe
uma linha fragmentária e cheia de altos e baixos. Essa descontinui-
dade obriga o escritor a recomeçar sempre “do início”, a descobrir
por sua própria conta os meios estético-ideológicos adequados à
reprodução da realidade; e, mais que isso, ela se insinua frequen-
temente no próprio interior da produção de cada escritor tomado
isoladamente. Assim, forçando um pouco a mão, poderíamos
dizer que “recomeçar do início” não vale apenas para cada escritor
singular, mas até mesmo para cada obra singular (ou, pelo menos,
para cada etapa singular na produção do escritor, como é o caso
em Machado de Assis). Em outro local, analisando a obra de
Graciliano, mostrei não apenas o evidente desnível existente entre
Caetés e os demais romances, mas indiquei também o fato de que
74
Em seu péssimo ensaio sobre Lima Barreto, Eugênio Gomes (Aspectos do romance brasi-
leiro, Salvador, Progresso, 1958, p. 153-173) não se limita a defender essa tese insusten-
tável. Afirma ainda que Lima seria consciente dessa sua “falta de talento”, representando
na ridícula figura de Floc – um cronista literário que, no Isaías Caminha, se suicida
ao convencer-se de suas debilidades criativas – a própria problemática pessoal. Mas o
absurdo das análises de Eugênio Gomes não para aí: nas 20 páginas do seu ensaio, nem
sequer uma vez é mencionado o Policarpo Quaresma, enquanto o único texto de Lima
que, na opinião do crítico, apresentaria indícios de talento literário seria… o Gonzaga
de Sá. Não me parece casual que um pretenso “machadiano”, como era Eugênio Gomes,
preferisse o Gonzaga, nem tampouco que, a partir de suas concepções estéticas “intimis-
tas”, deixasse inteiramente de lado o Policarpo. Esse ensaio pode ser tomado assim como
um claro sintoma da incapacidade dos críticos conservadores, mesmo quando sensíveis e
inteligentes (como é o caso de Eugênio Gomes), de compreenderem e aceitarem a obra
de Lima Barreto no que ela tem de específico.

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São Bernardo, Angústia e Vidas Secas, cada um a seu modo, recriam


diferentes estruturas romanescas, surgidas na literatura universal
em épocas históricas bastante diversas75. Uma mesma defasagem,
mutatis mutandis, ocorre entre a etapa romântico-juvenil de Ma-
chado e o seu período da maturidade. Dependendo apenas dos
próprios recursos para a conquista do amadurecimento humano e
expressivo, ou seja, carentes de uma sólida tradição onde se apoiar,
os realistas brasileiros – até mesmo os de maior grandeza – estão
sempre sujeitos a esses desníveis e fraturas.
Nesse sentido, a irregular trajetória de Lima não é um fato
excepcional. O pleno amadurecimento obtido no Policarpo
Quaresma representa um cume a dividir uma interessante e
significativa via ascendente (Gonzaga de Sá, Isaías Caminha)
de um período final extremamente problemático (Numa e a
ninfa, Clara dos Anjos). Não estou negando, decerto, que o
extremo isolamento de Lima, aliado à forma autodissolvente (o
alcoolismo­) que encontrou para reagir à hostilidade crescente do
meio, influíram de algum modo sobre essas fraturas internas,
sobretudo na medida em que contribuíram para diminuir-lhe a
força criativa nos últimos anos de vida. O que estou afirmando é
que essa problemática pessoal é em grande parte o efeito, na vida
do escritor, daquelas tendências histórico-sociais hostis à arte,
características da sociedade brasileira. Ou, em outras palavras:
que tanto a problemática pessoal do escritor quanto os desníveis
da sua obra, sem deixarem de se influenciar reciprocamente,
devem ser relacionadas enquanto momentos parciais à totalidade
concreta da vida social e cultural brasileira. Por outro lado, de-
vemos recordar que, embora a plena realização estética de Lima
só tivesse ocorrido no Policarpo, isso não anula a importância
e a significação – inclusive estéticas – dos demais romances do
escritor carioca. Ainda que tenhamos a intenção de concentrar
nossa análise no Policarpo, aludiremos aqui brevemente às demais
tentativas romanescas de Lima.
75
Cf. “Graciliano Ramos”, infra, p. 141-194.

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Gonzaga de Sá – publicado em 1919, mas concluído ao que


tudo indica em 1906-1907 – pode ser considerado o primeiro
romance de nosso autor. Além dos dados documentais de que
dispomos hoje, contribui para estabelecer essa cronologia a cons-
tatação de uma contradição interna que vemos na obra: com
efeito, embora já assuma no conteúdo as tarefas “participantes”
da literatura da nova época, Gonzaga de Sá se apresenta ainda
sob a decisiva influência dos preconceitos estéticos impostos pelo
epigonismo machadiano, ou seja, pela ideia equivocada de que a
serenidade e o distanciamento são a única forma concreta (inde-
pendentemente do conteúdo) para o romance, ou mesmo para
a arte em geral. Assim, de modo certamente involuntário, Lima
pagou nesse primeiro romance um pesado tributo ao “culto ma-
chadiano” então em vigor, embora já o denunciasse – até mesmo
no interior de Gonzaga de Sá – como um profundo descaminho.
Temos aqui um caso, para parodiarmos o famoso conceito de
Engels e de Lukács, de “derrota do realismo”.
Pode-se observar, ao longo de Gonzaga de Sá, a completa inca-
pacidade do autor para criar uma “fábula” romanesca, para dispor a
narrativa de tal modo que o protagonista pudesse explicitar na ação
e através da ação os conteúdos humanos e ideológicos (profunda-
mente críticos) de sua personalidade. Decerto, Lima já evidencia
ter percebido na bizarrice – na extravagância do caráter – um traço
típico do peculiar modo brasileiro de reagir ao ambiente mesqui-
nho imposto pela sociedade (essa problemática, como veremos, irá
ocupar o centro do Policarpo). Mas, apesar disso, ainda se revela
incapaz de estruturar um mundo concreto no qual essa bizarrice
possa se explicitar de modo autenticamente romanesco. Para obter
a aparência de “serenidade”, para encontrar um estilo “equilibrado”,
Lima deve renunciar inteiramente à figuração de ações concretas e
à estruturação efetivamente narrativa de um enredo. Ao contrário
dos romances de Machado, em que essa ação e esse enredo ocupam
o posto central, no Gonzaga de Sá vemos uma coleção fragmentária
de comentários do autor e de “opiniões” do personagem, aos quais
o “cenário” exterior – a calorosa e terna descrição da cidade do Rio

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de Janeiro – não consegue fornecer um quadro épico orgânico e


adequado. Assim, enquanto os epígonos de Machado simulavam
a “serenidade” na medida em que criavam pseudoações em torno
dos problemas “petropolitanos” de dona Dulce e do doutor Fre-
derico, Lima – que evita completamente essa mistificação, mas
que permanece influenciado pelo mito da “serenidade” estilística
– termina por alcançar essa “serenidade” ao preço de abandonar
qualquer tentativa de figuração romanesca. O novo conteúdo – o
marcado protesto humanista contra a burocracia, contra as classes
dominantes etc. – não encontra ainda uma forma adequada.
É curioso constatar que Lima, embora reconhecesse explicita-
mente o caráter “desequilibrado” do Isaías Caminha, escrito quase
simultaneamente ao Gonzaga, tenha preferido publicá-lo antes
que este último. Numa carta que escreveu a Gonzaga Duque, em
7 de fevereiro de 1909, explicando as razões dessa preferência,
ele põe em evidência alguns problemas estéticos essenciais de sua
produção inicial:
Era um tanto cerebrino, o Gonzaga de Sá, muito calmo e solene, pouco aces-
sível, portanto. Mandei [para publicação] as Recordações do escrivão Isaías
Caminha, um livro desigual, propositalmente mal feito, brutal por vezes, mas
sincero sempre (...). [Ele] tenciona dizer aquilo que os simples fatos não di-
zem, de modo a esclarecê-los melhor, dar-lhes importância, em virtude do
poder da forma literária, agitá-los, porque são importantes para o nosso destino.
Querendo fazer isso e fazer compreender aos outros que há importância na
questão que eles tratam com tanta ligeireza, eu não me afastei da literatura,
conforme [a] concebo­(...)76.

Vemos aqui, como sempre, uma correta intuição de Lima:


o Isaías Caminha, ainda que “desigual”, correspondia melhor
não apenas à própria concepção que o autor tinha das tarefas da
literatura (“agitar questões importantes para o nosso destino”),
mas também, e sobretudo, às necessidades objetivas da arte e da
sociedade brasileiras da época. Em suma: o Gonzaga pode ser
considerado, apesar da novidade do seu conteúdo, como um
76
Lima Barreto, Correspondência, cit., tomo I, p. 169-170. Os grifos são meus.

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prolongamento epigonal da velha concepção “calma” e “solene”


do ofício literário; o Isaías, ao contrário, marca o início de uma
nova etapa – especificamente moderna – do realismo brasileiro e,
graças a isso, já expressa o concreto significado de Lima Barreto
no seio de nossa evolução literária.
As Recordações do escrivão Isaías Caminha podem ser conside-
radas como tentativa de criar um romance brasileiro de “ilusões
perdidas”. Com efeito, Lima propõe-se figurar nele o modo pelo
qual a mesquinha sociedade da época destrói paulatinamente os
projetos de realização humana e de elevação social do protagonista.
Como Lucien de Rubempré, o personagem de Balzac, Isaías é um
moço pobre provinciano que – confiante nas promessas demo-
cráticas da época republicana e na mobilidade social prometida
pela ascensão do capitalismo – dirige-se para a metrópole na ten-
tativa de expandir sua personalidade, de fruir adequadamente as
potencialidades pessoais que experimenta subjetivamente. E, tal
como em Ilusões perdidas, as desilusões se sucedem: não apenas a
“brilhante” sociedade metropolitana vai revelando paulatinamente
sua essencial vacuidade interna, sua mesquinhez objetiva, como
também o mito democratizante da elevação social evidencia
dolorosamente seu caráter meramente ideológico. E o romance
de Lima introduz um elemento especificamente brasileiro nessa
problemática universal das “ilusões perdidas”: as vicissitudes de
Isaías comprovam que as afirmações “oficiais” sobre a igualdade
social dos negros brasileiros, difundidas na época republicana,
pós-abolicionista, escondem os mais desumanos preconceitos
raciais. O jovem provinciano mulato, apesar da superioridade que
apresenta diante dos bem-nascidos que encontra, apesar da sua
sagacidade e inteligência, deve permanecer sempre numa posição
subalterna, sujeito a constantes humilhações. Com a habilidade
compositiva de um grande romancista, Lima Barreto – na pri-
meira parte dessa obra – constrói um rico e articulado mundo
romanesco, colocando seu personagem em contato com alguns
tipos significativos do ambiente social metropolitano, os quais,
na medida em que expressam alternativas humanas concretas, vão

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educando o protagonista – no bem e no mal – a ver o mundo sem


ilusões. O romancista lança as bases de um importante “romance
de formação” brasileiro.
Nessa sua trajetória de desilusões, o jovem Isaías termina por
ingressar, como contínuo, num dos principais jornais da grande
cidade. Trata-se de uma excelente oportunidade para Lima apre-
sentar, com um tom de devastador sarcasmo, o quadro humano
e social da imprensa capitalista moderna. Não parece casual que
Lima tenha escolhido, como fonte de inspiração para essa apre-
sentação, precisamente o mais moderno jornal brasileiro da época,
no qual os traços capitalistas se evidenciavam com maior destaque
não apenas no estrito sentido técnico-jornalístico, mas também
no que se refere à sua posição política “modernizadora”. Mas o
jornal tomado como modelo serve-lhe apenas de pretexto para
a criação de um autêntico símbolo realista: ao contrário do que
afirma a maioria dos críticos, essa escolha não prejudicou – antes
favoreceu – a universalidade concreta, o nível de particularidade
realista com a qual ele figurou o fenômeno humano e social da
imprensa moderna. Assim, Lima é capaz de perceber e evidenciar
esteticamente alguns dos traços mais caraterísticos da imprensa
capitalista, tais como a intencional manipulação da opinião pública
a serviço de mesquinhos interesses, a corrupção e a prostituição de
grande parte dos jornalistas etc. Ademais, apesar do modo carica-
tural (“misto de suíno e símio” etc.) através do qual representa a
maior parte dos integrantes do jornal, não são poucas as autênticas
figuras humanas, elevadas à condição de tipos realistas, que ele
nos apresenta na segunda parte da obra.
Gostaríamos de recordar aqui o diretor do jornal, Ricardo Lo-
berant, no qual se misturam sugestivamente traços de generosidade
paternalista com uma constante tentativa de manipular despotica-
mente os seus empregados. Oscilação bastante expressiva do caráter
contraditório, simultaneamente progressista e reacionário (ou,
numa palavra, “prussiano”), da burguesia brasileira (nesse sentido,
Loberant é um precursor de Paulo Honório, o protagonista de São
Bernardo de Graciliano Ramos). Podemos também lembrar a figura

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e o destino de Floc, um medíocre colunista literário – inteiramente


envolvido no ambiente do “intimismo à sombra do poder” – que
termina por encontrar no suicídio um meio de escapar à dolorosa
autoconsciência de sua mediocridade. Em suma: não apenas na
figuração de alguns tipos, mas inclusive na explicitação das carac-
terísticas humanas e sociais da imprensa moderna, o Isaías Caminha
alcança um alto nível de realismo, de universalidade estética.
Mas, apesar disso, o romance não consegue elevar-se, no con-
junto da composição, à totalidade orgânica que caracteriza a grande
arte épico-narrativa. Em sua cuidadosa biografia do romancista,
Francisco de Assis Barbosa observa argutamente:
Da história do fracasso de um rapaz de cor, inteligente, bom e honesto, enfim,
com todas as qualidades para vencer na vida, o livro como que se transforma,
do meio para o fim, num verdadeiro panfleto contra a imprensa da época, em
contraste, até certo ponto chocante, com o desenvolvimento harmonioso dos
primeiros capítulos77.
Esse caráter desarmônico, porém, não reside tanto no modo
“panfletário” pelo qual Lima desmistifica impiedosamente o fenô-
meno social da imprensa moderna; em Ilusões perdidas, Balzac realiza
uma desmistificação similar, talvez ainda mais implacável, sem com
isso comprometer em nada – ao contrário, até aprofundando – o
amplo e harmonioso realismo do seu notável romance. Por outro
lado, também seria errado atribuir a fratura interna do Isaías ao seu
indiscutível caráter de roman à clef, visto que, como dissemos, Lima
consegue elevar os tipos e as situações reais ao nível de símbolos
estéticos realistas.
As razões dessa fratura interna de Isaías Caminha devem ser
buscadas, ao contrário, num defeito interno da composição es-
trutural, do qual Lima – ao referir-se a seu romance como sendo
“desigual” – revela estar consciente: tão logo Isaías ingressa no jornal,
o romancista altera inteiramente o seu foco narrativo, praticamente
abandonando o personagem e concentrando-se na apresentação

77
Francisco de Assis Barbosa, A vida de Lima Barreto, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1964, p. 251.

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dos bastidores do jornal. Por um lado, a evolução de Isaías não


mais se processa, na segunda parte da obra, em orgânica relação
com a realidade social objetiva; ele se torna um quase espectador
dos eventos, não sendo assim casual que o seu destino final – ou
seja, sua completa desilusão pessimista diante do mundo – decorra
praticamente de uma crise de melancolia puramente subjetiva, que
coincide (de modo paradoxal) com o momento no qual obtém,
graças à “generosidade” paternalista de Loberant, a tão ambicionada
ascensão social. E, por outro lado, a figuração da vida no jornal –
apesar dos momentos típicos e realistas que apresenta – termina,
em última instância, por se tornar a mera descrição naturalista de
uma objetividade morta, na exata medida em que aparece como
simples cenário exterior desligado da ação do protagonista. Em vez
da firme integração épico-narrativa entre o herói e o mundo, que
vemos no citado romance de Balzac (assim como no romance rea-
lista em geral), temos no Isaías Caminha uma fratura compositiva
que prejudica essencialmente, sobretudo em sua segunda parte, a
verdade estético-humana e o poder evocativo do romance.
Isso não significa, todavia, que esse romance de estreia repre-
sente, como é o caso do Gonzaga de Sá, um completo fracasso.
No quadro de uma literatura objetivamente pobre, como a nossa,
o Isaías – ao colocar com profundidade realista alguns problemas
decisivos da nossa vida social em sua nova fase, inaugurada com a
proclamação da República – desempenha um destacado papel na
formação de uma autoconsciência estética brasileira efetivamente
nacional-popular. Além disso, nunca será demais insistir sobre
a sua fecunda novidade, e não apenas estilística, no quadro de
nossa evolução literária; com o Isaías, pela primeira vez, surge na
literatura brasileira uma criação estética valiosa e moderna, isto é,
adequada aos novos tempos, na qual a vida social é representada
à luz de uma perspectiva ideológica concretamente nacional-
popular78. Todavia, é inegável que a primeira tentativa de Lima no
78
Que me seja permitida uma comparação anacrônica: apresentando desequilíbrios esté-
ticos similares, o romance Quarup, de Antônio Callado, publicado em 1966, apresenta
uma importância e possui um significado do mesmo tipo que os do Isaías, na medida

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sentido de elaborar o novo estilo exigido pela época – um estilo


“participante”, “antiartístico”, “brutalmente” realista – não alcança
plenamente o justo termo médio aristotélico entre as “exigências
do dia” e as leis estéticas universais da grande arte.
Isso aconteceria, como já dissemos, no Policarpo Quaresma.
Mas, antes de analisarmos esta obra-prima mais de perto, gosta-
ríamos de fazer algumas breves observações sobre as duas mais
ambiciosas produções do último período de Lima (posteriores ao
Policarpo), ou seja, Numa e a Ninfa e Clara dos Anjos. Publicado
em folhetins num jornal da época, Numa e a Ninfa pretende
desmistificar os figurões da Primeira República, denunciando
o modo covarde e mesquinho pelo qual capitularam diante das
pressões militaristas contidas na candidatura Hermes da Fonseca.
Muitos dos seus temas, ademais, são retomados claramente do
Policarpo, como é o caso do combate ao bonapartismo militarista
e à insensatez burocrática, para não falarmos na problemática da
bizarrice, aludida a propósito da interessante figura de Bogóloff.
Todavia, muito mais que o Isaías Caminha, esse folhetim ressente-
se dos defeitos do roman à clef, de uma vinculação demasiadamente
estreita aos “eventos do dia”, aproximando-se bem mais de uma
reportagem satírica dos costumes políticos da época do que de uma
autêntica figuração romanesca do real. O seu interesse, assim, é
puramente documental.
Já Clara dos Anjos – onde o autor resume numa novela suas
ambições juvenis de um amplo romance histórico sobre os proble-
mas raciais do povo brasileiro, que chegara a conceber como um
Germinal negro – apresenta uma problemática diversa. Parece que
Lima o projetou como uma das suas obras mais importantes, nela
colocando todo o seu ódio plebeu contra a injustiça, o calor do
seu generoso pathos de solidariedade aos humilhados e ofendidos.
Mas, apesar do profundo interesse humano da novela, centrada
sobre a sedução de uma jovem de cor por um personagem branco
em que assinala o reinício de uma nova etapa realista em nossa literatura, situando-se
em clara oposição a um período marcado pela influência das versões “vanguardistas” do
velho “intimismo à sombra do poder”.

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e rico, é impossível considerá-la como uma realização estética


bem-sucedida; Lima perde-se frequentemente na simples acusa-
ção, o que o impede de criar tipos humanos autênticos. A figura
de Cassi, por exemplo, na qual se centra a novela, não consegue
atingir o poder de convicção literária, já que se trata de mera
caricatura, incapaz de ganhar autonomia diante do demolidor
ódio que o romancista experimenta contra ele. Clara, por sua
vez, aparece como uma vítima indefesa, sem afirmar em nenhum
momento uma interioridade própria, uma autenticidade humana
convincente. Uma concepção maniqueísta do mundo atravessa a
novela, prejudicando decisivamente o seu nível de realismo. Há,
porém, uma figura que – pelo seu poder evocativo – eleva-se sobre
as demais: a digna figura do bizarro Marramaque. Como vemos,
desde Gonzaga de Sá até Clara do Anjos, passando sobretudo pelo
Policarpo, o tema da bizarrice desempenha um papel decisivo no
universo estético de Lima. Mas o que significa exatamente, tanto
no plano social objetivo quanto na obra de Lima, essa questão da
bizarrice? É o que tentaremos esclarecer agora, analisando mais
de perto a sua obra-prima.

4
Antes de mais nada, cabe afastar alguns possíveis equívocos: a
transformação da bizarrice em leitmotiv, ao longo de toda a obra
de Lima Barreto, não expressa uma simples preferência pessoal
do autor, algo como uma idiossincrasia; tampouco pode ser vista,
ao modo dos defensores do caráter “memorialista” da produção
do romancista, como a imediata transposição para a obra de uma
experiência pessoal. Não há dúvida de que a biografia de Lima
– como se pode ver não apenas em seu modo extravagante de
tentar conservar a dignidade pessoal, mas também na sua singular
e contraditória ideologia política – apresenta alguns traços mar-
cadamente bizarros. Mas não é difícil perceber que essa bizarrice
pessoal de Lima é somente a expressão, na vida do escritor, de
um fenômeno social objetivo mais amplo. A expressão literária
desse fenômeno, assim, decorre do profundo realismo do autor

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do Policarpo (de sua figuração estética da realidade objetiva), e não


de uma abstrata tendência ao autobiografismo.
Será útil definirmos, desde logo, o fenômeno que aqui nos
interessa. E, para fazê-lo, recorreremos a Lukács:
Com efeito, a bizarrice é uma certa adaptação, que se faz no interior do sujeito e
que decorre das possibilidades de prática social própria que lhe é permitida pela
ordem específica da realidade. Mais corretamente: decorre do fato de que, se um
homem pode se revelar capaz, em seu foro íntimo, de enfrentar a transformação
negativa das formas fenomênicas dadas de uma sociedade (...), de modo tal que
sua integridade interior, ameaçada por tais formas, consiga resistir à prova, se
isso ocorre, então a conversão dessa recusa numa prática social propriamente
dita (conversão que se torna humanamente necessária) não pode ultrapassar –
por causa de sua incompatibilidade socialmente determinada – os limites de
uma interioridade abstrativa mais ou menos deformante. Disso decorre que o
caráter desemboca na excentricidade, na extravagância79.
Pode-se já constatar como a descoberta e a figuração da pro-
blemática da bizarrice indicam a profundidade com que Lima
penetrou no âmago da realidade social brasileira, criticando em
sua atividade romanesca as específicas deformações humanas de-
correntes da “via prussiana” seguida pelo Brasil. Mais do que isso: a
figuração das deformações bizarras da ação humana, que ocorrem
necessariamente nesse quadro histórico-social “prussiano”, indica
o modo peculiar através do qual Lima alcançou uma expressiva
vitória do realismo. Com efeito, no seio de uma realidade mar-
cada pela fragmentação nacional, pelo caráter “espontâneo” das
transformações sociais, as ações humanas significativas – capazes
de simbolizar esteticamente a essência da realidade – tendem a
assumir formas extremamente peculiares, muitas vezes bizarras,
requerendo do romancista que as quer descobrir e representar
uma grande sensibilidade artístico-ideológica. Diante dessas difi-
culdades, capitularam em maior ou menor medida, como vimos,
os românticos (que se refugiaram numa “ação” mítica puramente
subjetiva) e os naturalistas (que substituem a ação pelo “ambiente”
fetichizado). Por outro lado, as vitórias do realismo obtidas por
79
G. Lukács. Soljenitsyne, Paris, Gallimard, 1970, p. 122-123.

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Manuel Antônio de Almeida e por Machado de Assis basearam-


se em meios expressivos que já não podiam servir aos propósitos
específicos (historicamente determinados) que nortearam a práxis
criativa de Lima Barreto.
Já observamos como a época da Primeira República, acen-
tuando os impasses e os limites estruturais da “via prussiana”,
impusera o abandono das formas estilístico-narrativas de Almeida
ou de Machado. A necessidade de criar um novo realismo, fun-
dado clara e diretamente na crítica social, impôs a Lima a tarefa
de encontrar, no seio da realidade brasileira, uma forma de ação
que se revelasse objetivamente contrária ao modelo de desenvol-
vimento dominante, mas que conservasse simultaneamente a sua
tipicidade, ou seja, que correspondesse a uma possibilidade social
concreta, e não a um desejo subjetivo do escritor. Pela descrição
de Lukács, vimos que a bizarrice representa uma manifestação
peculiar do caráter humano, decorrente da necessidade (livremente
adotada) de atuar objetivamente num meio social cujas formas
fenomênicas obstaculizam ou impedem a atividade autônoma
comunitariamente respaldada, isto é, a atividade capaz de explicitar
sem conflitos o núcleo humano do agente. A bizarrice, assim, é
um modo peculiar pelo qual se manifesta a incapacidade – histó-
rica e socialmente determinada – de adequar esse núcleo humano
subjetivamente preservado a um mundo social objetivamente
alienado. Em sua luta para conservar a autenticidade subjetiva
sem se isolar completamente do mundo, o bizarro sofre uma de-
formação de personalidade que o aproxima da extravagância, da
excentricidade, até mesmo da patologia. Desde o Dom Quixote de
Cervantes até os principais romances de Soljenitsin ou de Heirinch
Böll, passando por O idiota de Dostoievski, essa possibilidade de
deformação bizarra da personalidade ocupa um destacado papel
no mundo da figuração romanesca. Mais do que isso: nos casos
em que a defasagem entre interioridade e exterioridade assume
formas extremadas, o que ocorre nas épocas de intensa alienação
social, é quase inevitável que o romance realista – fundado na
representação de ações significativas em sua relação com o mundo

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objetivo – assuma, na configuração dos seus personagens, a repre-


sentação de comportamentos mais ou menos bizarros (é evidente
que a bizarrice é uma ampla faixa que pode ser superada “para
cima”, no sublime, como ocorre no Quixote, ou “para baixo”, na
mera patologia individual, como em muitos romances naturalis-
tas; mas que pode também constituir, como no citado romance
de Dostoievski, nas obras de Soljenitsin, no Opiniões de um clown
de Heinrich Böll ou na obra-prima de Lima Barreto, um correto
particular dialético de tipo simbólico-realista).
A bizarrice aparece assim, para empregarmos a terminologia do
jovem Lukács, como um modo peculiar de manifestação do “herói
problemático”, ou seja, daquele herói que busca valores autênticos
em um mundo degradado, mas que, precisamente por causa dessa
degradação objetiva, relativiza ou deforma os próprios valores au-
tênticos que norteiam subjetivamente sua ação80. É precisamente
através dos seus traços bizarros que Policarpo Quaresma eleva-se
à universalidade concreta do autêntico tipo romanesco realista, ou
seja, converte-se em “herói problemático”. E Lima obteve essa ele-
vação, essa correta realização das leis estéticas do gênero romanesco,
na exata medida em que o seu tipo expressava adequadamente,
simbolicamente, uma relação humano-social específica e peculiar
da realidade brasileira. Enquanto tipo bizarro, Policarpo Quaresma
torna-se o símbolo das contradições humanas impostas pela “via
prussiana” seguida pelo Brasil: através da figuração do seu triste
destino, Lima concretiza – com meios especificamente artísticos
– uma demolidora e implacável crítica àquela sociedade que con-
dena ao ridículo, à extravagância e à bizarrice as mais profundas
e autênticas inclinações do nosso povo no sentido de realização
humana e, mais concretamente, da realização humana através da
participação criadora no melhoramento da sociedade.
O invulgar talento que Lima evidencia no Policarpo não se
revela apenas nessa sua apreensão da bizarrice como tema privile-
giado de um romance crítico-realista especificamente brasileiro.
80
G. Lukács, A teoria do romance, São Paulo, Duas Cidades/ Editora 34, 2000.

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Essa apreensão já aparece no Gonzaga de Sá, sem impedir que esse


projeto de romance, apesar do seu interesse documental, represente
objetivamente um completo fracasso estético. Esse talento revela-
se, sobretudo, na habilidade com que Lima constrói agora o quadro
épico-narrativo da ação do seu tipo bizarro, cumprindo assim,
simultaneamente, as duas exigências básicas do gênero romanesco:
por um lado, essa relação com o mundo objetivo explicita, tanto
em sentido positivo quanto negativo, o núcleo subjetivo do herói,
ou seja, no caso concreto, aquela complexa dialética pela qual a
bizarrice, surgida subjetivamente a partir da luta para conservar
o núcleo da personalidade, desemboca objetivamente – num
movimento que vai da comicidade à mais profunda tragicidade
– no completo esfacelamento desse núcleo; e, por outro, com a
construção desse quadro épico, Lima nos apresenta a “totalidade
de objetos” que Hegel e Lukács apontam como exigência da repre-
sentação romanesca do mundo, ou seja, apresenta aquele quadro
humano-institucional no qual e através do qual ganha conteúdo e
sentido, no bem como no mal, a interioridade do herói. A ausência
dessa “totalidade de objetos” em face da trajetória do herói, que
vemos ganhar corpo na segunda parte do Isaías Caminha, pode ser
apontada como a causa estético-estrurural do caráter problemático
desse importante e significativo romance.
No Triste fim de Policarpo Quaresma, ao contrário, encontramos
a síntese orgânica do herói e do mundo, da ação individual repre-
sentativa e da “totalidade de objetos”, síntese que aparece como
condição estética básica da vitória do realismo no romance. Mas
cabe ainda uma concretização: é evidente que essa “totalidade de
objetos” não pode ser figurada, como supõe o naturalismo, através
de uma catalogação extensiva de todos os seus traços. O romance
realista deve selecionar os momentos significativos, hierarquizando-
os em função da específica problemática humana típico-simbólica
que pretende abordar; com essa seleção e hierarquização, o mundo
criado no romance pode elevar-se à condição de “microcosmo”, de
símbolo evocador de uma totalidade intensiva de relações humanas.
Ora, esses procedimentos seletivos de composição estão na base

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do Policarpo; com efeito, o que interessa a Lima, na totalidade


extensiva da sociedade brasileira, são aquelas conexões capazes
de expressar, do modo mais significativo possível, os traços do
“modelo prussiano” que pretende combater. Esquematizando um
pouco, poderíamos dizer que essas conexões expressivas, tal como
se configuram no universo do Policarpo, são a burocracia (que
aparece concretamente, no romance, não apenas na representa-
ção do mundo das repartições burocráticas, mas também através
das deformações que esse mundo impõe a vários personagens
secundários) e o militarismo (ou, mais propriamente, aquela
manifestação de “transformação pelo alto”, sem participação po-
pular, que é representada aqui no movimento florianista). Tanto
a burocratização quanto a “transformação pelo alto” são formas
sociais voltadas para a eliminação das massas populares na criação
da história: aparecem assim como expressões emblemáticas da “via
prussiana”, da “revolução passiva” e, desse modo, manifestam-se
também, de forma acentuada e típica, na vida social brasileira.
Já no início do romance, Lima nos apresenta a figura do Major
Policarpo como a de um homem que, incapaz de explicitar seu
núcleo no vazio mundo burocrático em que é forçado a viver, de-
senvolve no isolamento de sua subjetividade um profundo amor
pelo seu país, um profundo desejo de empregar seus talentos e
capacidades a serviço do progresso nacional. Assim, ironizado
pelos que querem “levar ao ridículo aqueles que trabalham em
silêncio para a grandeza e a emancipação da Pátria”81, o herói de
Lima Barreto vai “levando a vida, metade na repartição [burocrá-
tica], sem ser compreendido, e a outra metade em casa, também
sem ser compreendido”. Suas melhores qualidades humanas, a
inteireza de caráter e um profundo desejo de participação social,
conseguem se manter incólumes diante daquilo que Lukács cha-
mou de “transformação negativa das formas fenomênicas dadas
da sociedade”; mas o preço dessa manutenção, precisamente por

81
Salvo indicação em contrário, todas as citações daqui para a frente são extraídas de Lima
Barreto, Triste fim de Policarpo Quaresma, São Paulo, Brasiliense, 1956.

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causa do isolamento da personalidade (obrigada a se ocultar por


trás dos papéis sociais objetivos impostos pela vida burocrática),
esse preço é a deformação bizarra daquelas qualidades. Desligado
do contato criador com a realidade, incapaz de explicitar-se numa
práxis social adequada, o pathos nacional-popular de Policarpo as-
sume a forma extravagante de um nacionalismo fanático, ufanista,
fundado em mitos romântico-reacionários.
Ainda que sem jamais pôr em dúvida a retidão subjetiva do
seu personagem, Lima Barreto dissolve no humor os elementos
equivocados desse nacionalismo. O importante é ressaltar que essa
crítica autenticamente democrática ao falso nacionalismo ufanista
assumido por Policarpo é realizada com meios especificamente
estéticos, ou seja, através da figuração narrativa de sua completa
inadequação à realidade (que assume estilisticamente a forma do
humorismo); essa inadequação culmina na proposta, claramente
bizarra, de adoção do tupi-guarani como língua nacional brasi-
leira. Deve-se observar que, na representação dessa ambivalência
do herói, expressa na contraditoriedade entre suas corretas inten-
ções de participação social e os conteúdos equivocados que ela
assume, Lima figura aquele elemento “problemático” assinalado
por Lukács na personalidade dos heróis romanescos, nos quais a
busca de valores autênticos, em função da solidão e do isolamento
a que são socialmente condenados, assume traços objetivamente
degradados. Já nessa primeira parte, portanto, assistimos aos mo-
mentos iniciais da crítica humanista que Lima faz da bizarrice,
uma crítica que – sem ocultar as qualidades humanas preservadas
pela bizarrice – indica os seus limites essenciais. Trata-se, mais
do que de uma crítica, de uma profunda autocrítica, fundada na
tentativa democrática de compreender a razão dos fracassos em
que têm culminado as melhores ações do povo brasileiro. Ao con-
trário, a crítica de Lima à burocracia – que também já se expressa
na primeira parte do romance – é simples e direta: a burocracia é
apresentada como força social essencialmente contrária ao huma-
no, como um elemento próprio do mundo da alienação. Não é
casual que, enquanto a crítica à burocracia assume estilisticamente

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a forma do sarcasmo, a autocrítica da bizarrice pode ser expressa


através do humor.
Voltando à figura de Policarpo, podemos ver como a sua
primeira tentativa de converter o bizarro núcleo interior em ação
objetiva imediatamente social (a proposta de adoção do tupi-
guarani como língua nacional) desemboca no absoluto fracasso
tragicômico. Rompe-se o seu precário equilíbrio, até então assegu-
rado por seu isolamento, pela redução do personagem aos limites
de um “pequeno mundo” puramente pessoal: essa ruptura leva
Policarpo às portas da loucura, da patologia. Porém, graças aos
seus recursos interiores e à solidariedade de um reduzido círculo
de amigos e parentes, ele retoma rapidamente o seu equilíbrio
psicológico perdido. Mas essa “cura” de Policarpo, como a de Dom
Quixote no início do romance cervantino, é apenas aparente: a
sua fuga no campo não impede o prosseguimento da dialética da
bizarrice, a qual, pouco depois, iria conduzi-lo novamente à ação e,
mais uma vez, à ruptura – desta feita definitiva – de seu superficial
equilíbrio. Com excepcional talento compositivo, Lima utiliza
esse período da tentativa de “cura” para ampliar decisivamente a
figuração crítica da “totalidade de objetos” na qual se processa a
ação do herói.
Tão logo abandona o hospício, o major Policarpo, aconselhado
pela afilhada, resolve instalar-se no campo. Mas a manutenção da
bizarrice revela-se desde o início: enquanto a afilhada supunha
que a ida para o campo iria afastá-lo de seus antigos propósitos,
Policarpo aproveita a oportunidade para pôr novamente em
prática suas teses nacionalistas abstratas. Pretende demonstrar
de modo concreto as “maravilhas” do solo brasileiro, pois – tal
como os ufanistas – está convencido de que temos uma terra na
qual “em se plantando tudo dá”. Paulatinamente, porém, esse
nacionalismo ufanista – em contato com a prática concreta do
trato da terra – começa a sofrer importantes alterações: o major
não apenas descobre a falácia objetiva dos mitos ufanistas como
começa a descobrir também, o que é mais importante, as causas
reais do atraso brasileiro. Assim, enxerga com clareza o problema

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social da terra: “E a terra não era dele [de quem a trabalhava]. Mas
de quem era então, tanta terra abandonada que se encontrava por
aí? Ele vira até fazendas fechadas com as casas em ruínas… Por que
esse acaparamento, esses latifúndios improdutivos?” Além disso,
descobre que as instituições jurídicas consagram e defendem o
latifúndio:
Aquela rede de leis, de posturas, de códigos e de preceitos, nas mãos desses
regulotes, de tais caciques se transformavam em potro, em polé, em instrumento
de suplícios para torturar os inimigos, oprimir as populações, crestar-lhes a
iniciativa e a independência, abatendo-as e desmoralizando-as.
Mas, embora já perceba alguns elementos essenciais da proble-
mática social brasileira, a visão do mundo de Policarpo está longe
de libertar-se das deformações impostas pela sua bizarrice e pelo
seu isolamento (no plano subjetivo) e pela “prussianização” da
sociedade brasileira (no plano objetivo). Em vez de enxergar num
caminho democrático-popular, numa autêntica transformação “a
partir de baixo”, a solução para os problemas que agora percebia,
Policarpo – em função de sua falta de vinculações concretas com
a vida social – começa a se tornar entusiástico defensor de “um
governo forte até a tirania”. Em outras palavras: o major “des-
cobrira” – e, em sua bizarrice, assumira com exacerbado pathos
subjetivista – a problemática da “revolução pelo alto”, ou seja,
da típica modalidade de transformação social nos países que
seguem a “via prussiana”. Essa modalidade implica a crença de
que alguns indivíduos excepcionais, ou quando muito uma elite
esclarecida, podem substituir – enquanto sujeito histórico – as
massas populares, que se supõe condenadas à apatia e à ignorância.
Não há dúvida de que essa “solução” aparece e se difunde, muitas
vezes, entre círculos “progressistas”; no plano objetivo, contudo,
ela reforça a continuidade da “via prussiana”, na medida em que
conserva o povo afastado das grandes decisões histórico-políticas.
Trata-se, em suma, apesar das eventuais aparências em contrário,
de uma solução reacionária e antipopular.
É evidente, porém, que Policarpo – como muitos dos integran-
tes do movimento florianista – não tem clara consciência, num

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primeiro momento, dessas limitações essenciais do “despotismo


iluminado”. Movido pela coerência e retidão subjetivas do seu
caráter bizarro, o major não hesita em passar imediatamente à
ação concreta, tão logo elabora suas novas posições. Uma aparente
coincidência – mas que Lima explora como elemento estrutural
rigorosamente necessário no quadro do romance – permite-lhe
essa passagem: a sua “segunda incursão” no mundo da ação so-
cial processa-se agora no seio do amplo quadro histórico-social
definido pelas lutas entre o movimento florianista (que defendia a
República recém-instaurada) e os membros rebelados da Armada
(que se punham a favor da monarquia). Policarpo julga descobrir
em Floriano o Henrique IV brasileiro, ou seja, o déspota iluminado
capaz de promover a “revolução pelo alto” necessária ao progresso
social da Pátria. Sem atentar para mesquinhos interesses egoístas ou
para sua comodidade pessoal, o major – cheio de novas esperanças
e ilusões – dirige-se ao telégrafo e escreve: “Marechal Floriano,
Rio. Peço energia. Sigo já. – Quaresma”. Essa feliz passagem hu-
morística não deve ser vista como uma simples boutade: o modo
pelo qual Policarpo manifesta sua adesão ao florianismo é o meio
estilístico encontrado por Lima para evidenciar, com notável força
plástica, a continuidade da bizarrice como traço ainda dominante
na nova fase de atuação objetiva que se abre para o personagem.
Neste ponto, seria interessante chamar a atenção para um
elemento do romance, bastante expressivo da aguda sensibilidade
estético-ideológica de Lima: tanto em seu nacionalismo ufanista
quanto em sua adesão à “revolução pelo alto”, o Major Policarpo
apenas radicaliza – de modo bizarro – os elementos ideológi-
cos degradados da realidade que o envolve. O que o diferencia
radicalmente dos personagens “médios” do romance, ou seja,
dos conformistas e dos acomodados, é o fato de que ele assume
tais elementos com radical sinceridade subjetiva, com completa
coerên­cia, não hesitando em conduzi-los às últimas instâncias. O
nacionalismo ufanista, nos burocratas, era apenas a capa ideológica
para cobrir hipocritamente o atraso social objetivo da Nação; em
Policarpo, ao contrário, torna-se uma crença profunda, que o

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leva a propor o tupi-guarani como língua nacional brasileira. O


mesmo se pode dizer do florianismo: enquanto a maioria dos seus
aderentes visa apenas a objetivos egoístas, Policarpo o assume como
o real caminho para a “salvação da Pátria”. A bizarrice, portanto,
não reside tanto no conteúdo das posições de Policarpo (que são,
na verdade, elementos ideológicos próprios da realidade contra a
qual se choca), mas sim na forma pela qual tais elementos são as-
sumidos. Essa similaridade de fundo entre Policarpo e a sociedade
ainda mais acentua a crítica radical implícita no romance de Lima:
a radicalização das ideologias dominantes através da bizarrice do
major não revela apenas a falácia objetiva delas, o seu caráter de
meras ideologias, mas também acentua a hipocrisia burocrática
dos personagens conformistas, que não são capazes de assumir
coerentemente nem mesmo os preconceitos ideológicos que de-
fendem e difundem. Esse modo especificamente romanesco de
criticar as ideologias dominantes não é uma peculiaridade de Lima:
em seus romances, Balzac e Stendhal – para ficarmos apenas em
exemplos maiores – efetuam uma crítica semelhante, na medida
em que mostram como a sociedade do capitalismo individualista
deve condenar ao fracasso todos os personagens que assumem o
individualismo, de modo amplo e consequente, como norma vital
e como conteúdo da ação. Levando as contradições da ideologia
nacionalista abstrata ao seu paroxismo, Policarpo Quaresma torna-
se uma encarnação viva da insensatez humana da “via prussiana”
seguida pelo povo brasileiro.
Mas voltemos às vicissitudes do nosso personagem. A partici-
pação de Policarpo no movimento florianista é uma trajetória de
desilusões, explicitando amplamente a dialética entre a bizarrice
subjetiva e a ação objetiva no mundo social: a integridade do
personagem choca-se duramente com as “acomodações” do meio.
A bizarrice, tratada por Lima no nível do humor, vai convertendo-
se paulatinamente numa dolorosa consciência trágica, tal como
sucedera outrora ao Cavaleiro da Triste Figura. Muito cedo, Poli-
carpo desilude-se com a eficácia da “revolução pelo alto”. Cheio
de esperanças, o major elabora um memorial sugerindo medidas

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128 Carlos Nelson Coutinho

concretas para enfrentar os problemas nacionais, sobretudo os


agrários; mas, ao expor pessoalmente seus projetos ao Marechal-
Presidente, este – tomado pelo “aborrecimento mais mortal” e
revelando um espírito profundamente antipopular (“mas pensa
você, Quaresma, que eu hei de pôr a enxada nas mãos de cada
um desses vadios?” ) – termina por definir secamente o seu então
entusiástico partidário como um simples “visionário”.
E as decepções se acentuam, culminando no momento em que
Policarpo, já convencido da insensatez no movimento de que fazia
parte, assume conscientemente o risco de denunciar abertamente,
numa carta ao Presidente, o massacre dos marinheiros revoltosos.
Nesse momento, sua ação e sua personalidade superam os quadros
da bizarrice, conservando desta – o que não é casual – tão somente
a correção e a retidão interiores. Lima revela aqui, com profundo
realismo, a complexa dialética da bizarrice: a extravagância como
forma solitária de conservar o núcleo humano revela os seus limites
essenciais no exato momento em que – sem alteração da estrutura
bizarra e, consequentemente, do isolamento em face de qualquer
sujeito social efetivamente comunitário – passa-se ao domínio da
ação objetiva no “grande mundo” da vida social. Nesse momento,
a bizarrice pode converter-se em simples patologia (como ocorre
em O idiota de Dostoievski) ou em tragédia (é o caso do Policarpo
Quaresma). Ao abandonar a ação romanesca em troca da “sereni-
dade” do estilo, o Gonzaga de Sá não pudera figurar essa dialética.
No Policarpo Quaresma, ao contrário, em que a explicitação da
bizarrice se processa em ligação orgânico-narrativa com a “tota-
lidade dos objetos”, a verdade estética e a verdade do conteúdo
humano encontram uma exemplar síntese realista.
Essa dialética da bizarrice articula-se assim, no romance de
Lima, com uma demolidora crítica social das misérias e dos
impasses humanos da sociedade brasileira. A autocrítica de Po-
licarpo – expressa não apenas na patética carta à irmã Adelaide,
mas sobretudo em suas reflexões finais antes de ser executado
– converte-se numa violenta acusação à realidade social “que se
vai fazendo inexoravelmente, com sua brutalidade e fealdade”.

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Cultura e sociedade no Brasil 129

Embora já demasiadamente tarde, Policarpo descobre no fim


do romance – tal como Quixote – que norteara a sua vida por
uma ilusão: o seu fanático nacionalismo ufanista, como ele agora
compreende, baseava-se num mito, em um conceito de pátria
que “certamente era uma noção sem consistência racional e que
precisava ser revista”. Essa tardia autoconsciência da inutilidade
dos próprios esforços – ou, em outras palavras, a compreensão
por parte do “herói problemático” do caráter ilusório de sua bus-
ca solitária de valores autênticos num mundo degradado – não
é apenas uma singularidade de Policarpo Quaresma. Trata-se, ao
contrário, de uma característica estrutural permanente do gênero
romanesco, como podemos ver não apenas no Quixote, mas tam-
bém nas obras de Balzac, Stendhal, Dostoievski, Thomas Mann
etc. Porém, através desse elemento formal, Lima pôde transpor
para o seu universo romanesco um importante conteúdo de sua
visão do mundo: aquele amplo internacionalismo humanista que,
embora de fundo anárquico-libertário, permitiu-lhe assumir uma
posição correta diante da Primeira Guerra Mundial (cujo conteúdo
imperialista enxergou com clareza) e da Revolução Socialista de
1917 (que saudou com entusiasmo).
Do ponto de vista imediato, a crítica de Lima à realidade
social brasileira concentra-se no movimento florianista. Coloca-
se aqui uma importante questão: até que ponto é historicamente
justa a caracterização do florianismo (e, em particular, do próprio
Marechal Floriano) empreendida por Lima? Antes de tudo, é pre-
ciso repetir algo bem conhecido: a verdade poética, que eleva os
eventos ao nível da universalidade concreta, do símbolo evocador
da autoconsciência humana, não se identifica mecanicamente
com a verdade historiográfica. Como já Aristóteles observara, não
interessa ao artista o que efetivamente ocorreu, a singularidade
em sua nudez factual; interessa-lhe sobretudo o que poderia – e,
dadas certas condições, até mesmo deveria – ter ocorrido. Em
outras palavras: a arte autêntica não figura a realidade imediata,
mas sim o “verossímil”, aquilo que Hegel chamou de “possibili-
dade objetiva”, que é um modo ontológico mais essencial e mais

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130 Carlos Nelson Coutinho

profundo da realidade como um todo. Por outro lado, a grande


arte não apenas reproduz o real, como ocorre nas ciências (in-
clusive na história), mas também – e simultaneamente – avalia
e julga a realidade a partir de um ponto de vista genericamente
humano (histórica, classística e nacionalmente determinado).
Assim, quando um fato histórico aparece em uma obra de arte,
o que interessa não é saber se os seus detalhes estão fielmente
reproduzidos, mas sim até que ponto o artista representou cor-
retamente a relação entre o fato histórico (entendido em sua
dimensão essencial, universal e concreta) e o desenvolvimento
do gênero humano (da classe, da nação etc., através das quais
esse gênero se concretiza historicamente).
Tomemos um exemplo concreto: é evidentemente “injusta”,
do ponto de vista biográfico-historiográfico, a caracterização que
Tolstoi nos apresenta, em Guerra e paz, da figura de Napoleão
Bonaparte. O general que conquistou a Europa e consolidou as
aquisições essenciais da Revolução Francesa não poderia, eviden-
temente, ter sido aquela mesquinha figura que André Bolkonski
contempla no final do romance. Todavia, isso não anula a ver-
dade superior dessa caracterização, se a analisarmos no conceito
estético-humano da obra de Tolstoi; essa verdade decorre da justeza
essencial da posição tolstoiana, expressa esteticamente ao longo
do romance, segundo a qual o verdadeiro sujeito da história, o
real criador dos valores humanos, não é o “indivíduo superior”,
mas sim a própria comunidade popular em movimento. Assim,
à luz do desenvolvimento do gênero humano, bem como das leis
estéticas que expressam esse desenvolvimento, aquela “diminuição”
de Bonaparte aparece como uma colocação correta e fecunda.
Se avaliarmos o Policarpo em nome de uma mesquinha exa-
tidão documental, talvez possamos considerar injusta a crítica
de Lima ao florianismo, bem como exagerada e “caricatural” a
sua figuração do chamado “Marechal de Ferro”. Com efeito,
sob alguns aspectos imediatos, o florianismo apresentou traços
progressistas, sobretudo na medida em que contribuiu para con-
solidar definitivamente, contra a revolta restauradora da Armada,

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Cultura e sociedade no Brasil 131

a forma republicana de governo. Mas também é inegável que,


visto à luz de uma perspectiva nacional histórico-universal, o
florianismo não apresentou nenhuma ruptura essencial com a
“via prussiana” antidemocrática seguida pelo nosso país; além de
não tocar na questão do monopólio da terra, que era na época
a base da dominação oligárquica de tipo prussiano, tampouco
criou os elementos necessários para encaminhar uma efetiva
participação popular na vida pública brasileira. Mais do que isso:
com o florianismo, inaugurou-se entre nós uma nova variante
da “via prussiana”, da “transformação pelo alto”, ou seja, o mi-
litarismo aberto. Como muito poucos na época, Lima enxergou
plenamente os perigos dessa variante. Logo após o Policarpo,
voltaria a denunciar asperamente o militarismo em Numa e a
ninfa, tomando já aqui como pretexto a candidatura presidencial
de Hermes da Fonseca (no mesmo sentido, deve ser entendida a
sua adesão política à campanha “civilista” de Rui Barbosa). Assim,
ao “esquecer” os eventuais lados positivos do florianismo e ao
concentrar-se na representação de sua essência antidemocrática,
Lima estava expressando, como Tolstoi no caso de Napoleão, uma
verdade humana superior: combatendo o movimento florianista,
o escritor combatia – com um pressentimento histórico-universal
digno de um grande realista – os impasses e as deformações
humanas geradas por essa variante militarista da “via prussiana”
(seria um equívoco entender o antiflorianismo de Lima, como
alguns já o fizeram, ligando-o ao suposto, mas jamais compro-
vado, “monarquismo” do escritor.)
Mas, embora esteja no centro da ação, a figuração crítica da
dialética da bizarrice (em suas relações com o “caminho prussiano”)
não esgota o universo histórico-estético criado pelo Policarpo Qua-
resma. O caráter participante do realismo de Lima impunha-lhe
a busca de alternativas concretas, a elaboração de uma perspectiva
de superação, através da criação estética de tipos e de destinos
humanos. No quadro da estagnação social da Primeira República,
era bastante difícil, sem cair numa utopia romântica, encontrar
figuras humanas positivas capazes de representar essa alternati-

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132 Carlos Nelson Coutinho

va82. O movimento operário, como vimos, já era suficiente para


fornecer ao romancista um “ponto de Arquimedes” situado fora
da “via prussiana”, ou seja, para lhe fornecer uma base ideológica
histórico-universal para sua crítica radical de nossa sociedade. Mas
essa base era ainda na época bastante abstrata; alheio ao romantis-
mo, Lima não poderia encontrar no mundo proletário de então,
que mal começava a nascer, a universalidade concreta requerida
para a criação de autênticos tipos realistas. Na verdade, somente
na década de 1930, em particular no romance nordestino, a classe
operária começa a aparecer, como força humana autônoma, em
nossa literatura realista; mas, mesmo então, não é casual o fato
de que esse aparecimento quase sempre ocorra no quadro de
tendências românticas (como no primeiro Jorge Amado), nem
tampouco – o que é o outro lado da medalha – que o proletariado
continue ausente na obra da figura máxima do romance nordesti-
no, Graciliano Ramos. Ligado profundamente ao mundo urbano,
por outro lado, Lima não poderia enxergar alternativas concretas
no mundo camponês, como frequentemente o fizeram – e aqui
com pleno êxito realista – os romancistas nordestinos.
Entretanto, no mundo das cidades, particularmente entre os
“humilhados e ofendidos” com os quais está a simpatia plebeia de
Lima, surgem alguns tipos humanos que aparecem objetivamente
como alternativas concretas à vacuidade e à deformação ética que
vemos se manifestar nos membros das classes dominantes e dos
meios burocráticos. A maior expressão literária dessa alternativa
popular, no mundo romanesco de Lima, é a simpática figura de
Ricardo Coração dos Outros. O poeta popular é uma clara expres-
são daquilo que Marx, a partir de observações de Goethe, designa

82
Para evitar mal-entendidos: não é necessário que o realismo formule alternativas concretas.
Em muitos casos, basta-lhe propor – como diria Tchekov – “questões razoáveis”, que
ponham em causa as soluções falsas do mundo que descreve; para citarmos um exemplo
concreto, é este o caso de Machado de Assis. Todavia, no tipo de realismo proposto por
Lima (ou seja, no realismo fundado na explícita tomada de posição), que corresponde
a períodos históricos marcados por contradições sociais intensas, a formulação de alter-
nativas torna-se elemento estrutural necessário da composição.

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Cultura e sociedade no Brasil 133

como “plenitude limitada”: um tipo popular que, embora incapaz


de se apropriar amplamente de todas as potencialidades do gênero
humano em dada época (apropriação que, nos períodos de alienação,
permanece como concreta possibilidade apenas para alguns indiví-
duos excepcionais), logra não apenas conservar o núcleo humano,
mas também evitar as unilateralidades provocadas pela divisão
do trabalho e, desse modo, desenvolver-se harmoniosamente no
interior de certos limites socialmente determinados. Ao contrário
do bizarro, cuja tentativa solitária de ultrapassar os limites conduz
ao desequilíbrio de caráter, o tipo popular “limitadamente pleno”
alcança uma harmonia capaz de convertê-lo, muitas vezes, numa
figura relativamente exemplar. O camponês Platão Karataiev, que
aparece em Guerra e paz de Tolstoi como uma concreta alternativa
popular à vacuidade humana dos indivíduos aristocráticos ou buro-
cratizados, é talvez a mais bem realizada concretização literária desse
tipo humano. O encontro entre ele e Pierre Bezukhov, ocorrido no
final do romance, representa para este último uma profunda expe-
riência moral, um exemplo alternativo a indicar novos caminhos,
embora tanto Pierre quanto o próprio Tolstoi tenham compreendido
claramente as limitações desse tipo humano. Em outras palavras: a
exemplaridade reside na harmonia, enquanto a limitação encontra-
se no “primitivismo”, na ausência de desenvolvimento de certas
potencialidades já alcançadas pelo gênero humano.
Essa duplicidade, essa complexa dialética de plenitude e limita-
ção, aparece claramente na figura de Ricardo Coração dos Outros.
Manifesta-se, por exemplo, no fato de que a sua extraordi­nária
simpatia por Policarpo (em quem reconhece imediatamente a
generosidade de caráter) não se faz acompanhar por uma adequa-
da compreensão da problemática humana do amigo: por outro
lado, essa limitação se revela na incapacidade de Ricardo em
orientar-se adequadamente no complexo mundo no qual vive,
em dar respostas para além do seu “pequeno mundo” pessoal.
Mas que a sua “plenitude limitada” o coloque eticamente acima
da “sagacidade” maquiavélica dos exploradores e dos burocratas
é algo que Lima evidencia, com notável força plástica, através

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da límpida decisão final de Ricardo de colocar-se firmemente ao


lado do major em desgraça. Enquanto todos os falsos amigos de
Policarpo afastam-se dele, pretextando “dificuldades pessoais” ou
apelando para um “bom-senso” conformista, Ricardo − ao lado
apenas de Olga − não hesita em empenhar-se, mesmo com o risco
de prejuízos pessoais, na luta para salvar o major. Através do para-
lelo entre a covarde reação dos Genelícios e do Dr. Armando, que
se pretendem “sábios” e intelectuais, e a correta decisão moral de
Ricardo, um ingênuo e simplório cantor popular, Lima Barreto
expressa – com meios puramente literários de caracterização – sua
clara e decidida tomada de partido: apesar de suas limitações, a
“plenitude” popular é uma efetiva alternativa humana à corrupção
moral das classes dominantes.
É também diante da decisão moral ocasionada pela prisão de
Policarpo que a figura de Olga – cuja inteireza humana aparecera
até então de modo claro, mas ainda discretamente – assume a sua
plena explicitação. Seria dar provas de um sociologismo vulgar e
esquemático querer determinar essa inteireza moral da afilhada
do major a partir de sua vinculação com essa ou aquela classe
social. Lucien Goldmann, analisando o fenômeno da reificação,
observou corretamente:
O desenvolvimento da produção capitalista, fundado sobre o fator puramente
quantitativo do valor de troca, eliminou progressivamente a compreensão dos
homens para os elementos qualitativos e sensíveis do mundo natural. A sensi-
bilidade para tais elementos tornou-se cada vez mais o privilégio ‘dos poetas,
das crianças e das mulheres’, ou seja, dos indivíduos situados à margem da
vida econômica83.

A conservação do núcleo humano em Olga e a sua sensibili-


dade para os problemas éticos têm suas raízes nessa possibilidade
marginal contida no desenvolvimento do mundo da alienação;
desligada da vida econômica, Olga consegue afirmar eticamente
a sua interioridade, colocando em segundo plano mesquinhas
considerações de interesse egoísta (nesse sentido, Olga pode ser
83
L. Goldmann, Recherches dialectiques, Paris, Gallimard, 1959, p. 77.

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considerada como uma precursora do humanismo que marca a


atuação de Madalena, importante personagem de São Bernardo,
de Graciliano). Encarnando essas possibilidades, ela aparece no
mundo de Lima Barreto – um escritor falsamente acusado de
misoginia84 – como um autêntico tipo positivo. Desde o início,
somente Olga compreende adequadamente o major Policarpo;
somente ela é capaz de perceber, por trás ou através das aparên-
cias bizarras, a infinita grandeza humana do seu padrinho, mas
distanciado-se ao mesmo tempo, com sagacidade e lucidez, dos
conteúdos equivocados em que se manifesta essa grandeza. Inca-
paz de romper com a mesquinhez e o convencionalismo da “boa”
sociedade em que vive, Olga assume exteriormente, durante algum
tempo, as aparências do conformismo e da alienação (casamento de
conveniência etc.); mas, apesar dessa resignação, conserva íntegro
o núcleo humano, o seu agudo senso moral, que se explicitariam
plenamente por ocasião da sua aquiescência ao pedido de Ricardo
para ajudar o major depois de sua prisão.
Já anteriormente, quando todos ironizavam a adesão bizarra
de Quaresma ao florianismo, Olga havia sido capaz de avaliá-la
corretamente, embora as suas simpatias estivessem com os opo-
sitores de Floriano:
A moça adivinhou logo o motivo, o modo de agir e reagir do fato sobre as ideias
e sentimentos de Quaresma. Quis desaprovar, censurar: sentiu-o, porém, tão
coerente com ele mesmo, tão de acordo com a substância da vida que ele mesmo
fabricara, que se limitou a sorrir complacente: − O padrinho…
O que a moça admira no major Quaresma é exatamente essa
capacidade de fabricar por si mesmo a substância da própria
vida, essa disposição interior que o faz – contra a aceitação con-
formista e alienada da moral burocrática vigente – conservar-se

84
É surpreendente que até mesmo Francisco de Assis Barbosa, a quem devemos um importan-
tíssimo trabalho de levantamento biográfico e de edição da obra de Lima, afirme o seguinte:
“Ao contrário dos personagens masculinos, de traços vigorosos, gente viva, de carne e osso, as
mulheres que transitam nos seus romances são apenas desenhadas, vagas, imprecisas, faltando-
lhes a densidade, por causa talvez desse desconhecimento da alma feminina” (Barbosa, A vida
de Lima Barreto, cit., p. 278). O biógrafo, naturalmente, esqueceu-se da figura de Olga.

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preso à essência humana dos homens. Essa aguda compreensão


da problemática de Policarpo prepara Olga para a sua decisão de
enfrentar o marido, de romper finalmente com a crosta da alie-
nação sob a qual vivera, afirmando também ela – mas, neste caso,
sem nenhuma bizarrice – o próprio núcleo conservado íntegro.
Não é casual que, ao aceitar a proposta de Ricardo para ajudar o
padrinho, Olga tenha motivado no trovador (apesar das profundas
diferenças sociais entre ambos) as seguintes reflexões:
Ele então pensou com admiração naquela moça que, por simples amizade, se
dava a tão arriscado sacrifício, que tinha a alma tão ao alcance dela mesma; e
a sentiu bem longe desse mundo, desse nosso egoísmo, dessa nossa baixeza, e
cobriu a sua imagem com um grande olhar de reconhecimento.
O encontro desses dois personagens, simbolizando a aliança
entre a “plenitude limitada” das camadas populares e a revolta
contra a alienação, não é simples casualidade: expressa-se aqui, de
modo concretamente estético, a visão do mundo de Lima Barreto.
Olga e Ricardo, com efeito, significam para o romancista alterna-
tivas concretas à mesquinha atmosfera burocrática que dissolve a
humanidade dos homens. É fruto da justeza estética e ideológica
da concepção de Lima o fato de que Olga seja escolhida para en-
carnar a perspectiva final – de confiança no humano – esboçada
pelo seu romance. Embora reconhecendo os méritos da “pleni-
tude limitada” de Ricardo, embora afirmando inequivocamente
a grandeza ética oculta pela bizarrice de Policarpo, Lima enxerga
ao mesmo tempo os limites e as contradições essenciais dessas
duas possibilidades humanas. Mas seria quase impossível, sem
cair no romantismo, construir o seu romance em torno da figura
de Olga: em contato direto com a alienação vigente, a inteireza
do seu caráter sofreria deformações (como é o caso de Policarpo)
ou perderia aquela capacidade de simbolizar a conservação do
núcleo humano. Assim, é graças à lucidez artística de Lima que a
dialética da bizarrice ocupa o centro da composição, enquanto a
conservação íntegra e harmoniosa do humano aparece de modo
marginal, ainda que para assumir no fim da obra o sentido de uma
ampla perspectiva histórico-universal.

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Deve-se observar que a trágica e pessimista autocrítica de


Policarpo (que desemboca num desespero sem perspectivas) não
aparece como desfecho do romance. Para esse posto e função,
Lima escolheu as considerações finais de Olga, posteriores à sua
fracassada tentativa de ajudar o major, considerações que, de
acordo com a concepção do mundo do romancista, orientam-se
para o futuro. Após ouvir ofensas ao seu padrinho, chamado de
“traidor” e de “bandido”, Olga.
(...) ergueu-se orgulhosamente e teve vergonha de ter ido pedir, de ter descido
do seu orgulho e de ter enxovalhado a grandeza moral do padrinho com o seu
pedido. Com tal gente, era melhor tê-lo deixado morrer só e heroicamente num
ilhéu qualquer, mas levando para o túmulo inteiramente intacto o seu orgulho,
a sua doçura, a sua personalidade moral (...). Saiu e andou. Olhou o céu, os ares,
as árvores de Santa Teresa, e se lembrou que, por estas terras, já tinham errado
tribos selvagens, das quais um dos chefes se orgulhara de ter no sangue o sangue
de dez mil inimigos. Fora há quatro séculos. Olhou de novo o céu, os ares, as
árvores de Santa Tereza, as casas, as igrejas: viu os bondes passarem; uma locomo-
tiva apitou; um carro, puxado por uma linda parelha, atravessou-lhe na frente,
quando já a entrar no campo. Tinha havido grandes e inúmeras modificações.
Que fora aquele parque? Talvez um charco. Tinha havido grandes modificações
nos aspectos, na fisionomia da terra, talvez no clima… Esperemos mais, pensou
ela: e seguiu serenamente ao encontro de Ricardo Coração dos Outros.

Para além das trágicas contradições que ainda dilaceram a


sociedade, Lima nos ensina a confiar nos recursos de que a huma-
nidade dispõe para superar tais contradições. Como Olga, também
sem alimentar ilusões, pôde ele concluir seu romance com uma
afirmação de confiança na humanidade.

5
Com Lima Barreto, iniciou-se para a literatura brasileira uma
nova etapa – moderna e popular – do realismo. Tanto em sua
obra estética quanto em sua produção jornalística, o romancista
carioca rompe decisivamente com qualquer versão do “intimismo
à sombra do poder”, afirmando com clareza a dimensão humanista
do ofício literário. Diante de todas as questões que enfrentou,
como escritor ou periodista, ele sempre tentou encontrar (e, na

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esmagadora maioria dos casos, efetivamente encontrou) uma


resposta autenticamente democrática e popular, capaz de abrir
novos horizontes – ideológicos e estéticos – para a cultura e para
a arte de nosso país.
Lima Barreto é assim um divisor de águas na evolução literária
brasileira. Rompendo radicalmente com as tendências esteticistas
e escapistas predominantes em sua época, propôs teórica e pratica-
mente um novo realismo. Seria bastante oportuno, nesse sentido,
compará-lo com o movimento modernista, que continua a ser
considerado – com um radicalismo unilateral – o único iniciador
da literatura contemporânea no Brasil. O modernismo, na verdade,
teve o mérito de pressentir e propor a necessária renovação de nossa
literatura; mas, pelo menos em seus mais significativos representan-
tes iniciais, colocou as questões ligadas a essa renovação em bases
preponderantemente formalistas85. Lima Barreto, ao contrário,
compreendeu e formulou a necessidade também de uma renovação
do conteúdo humano, ligada a uma proposta de transformação da
sociedade. Propôs assim aos escritores a tarefa, que continua atual,
de relacionar organicamente a literatura às grandes questões huma-
nas e histórico-sociais da nação e do povo brasileiros.
Nessa oposição, por conseguinte, é que deve ser buscada a
razão do frontal ataque que Lima, num dos seus últimos artigos,
dirigiu à Semana de Arte Moderna e, mais concretamente, à
versão futurista do então nascente vanguardismo86. Não é casual
que esse ataque, em muitos pontos, se aproxime essencialmente
da autocrítica do modernismo realizada em 1942 por Mario de
Andrade87, que já então – graças ao seu profundo humanismo –
afastara-se decisivamente das tendências “experimentalistas” que
dominavam a obra e a agitação literária de Oswald de Andrade,

85
Não é aqui o lugar para uma avaliação exaustiva da problemática do modernismo. Valiosas
indicações nesse sentido estão no ensaio de Luís Sérgio N. Henriques, “Contradições
do modernismo”, incluído em Vários Autores, Realismo e antirrealismo na literatura
brasileira, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974, p. 57-74.
86
Cf. Lima Barreto, Feiras e mafuás, São Paulo, Brasiliense, 1956, p. 67-68.
87
Mario de Andrade, Aspectos da literatura brasileira, São Paulo, Martins, 1943.

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o mais expressivo e talentoso representante de nosso “vanguardis-


mo”. Enquanto o modernismo, na figura de Oswald, tornava-se o
precursor da nova vanguarda brasileira, Lima Barreto inaugurava
uma linha oposta, a linha do realismo crítico nacional-popular,
na literatura contemporânea de nosso país.
Infelizmente, os antigos obstáculos histórico-sociais à formação
de uma linha contínua na evolução do nosso realismo não foram
inteiramente removidos após a morte de Lima. Apesar de já encon-
trar agora resistências maiores, a “via prussiana” terminou sempre
por predominar nos movimentos de transformação ocorridos nos
últimos 50 anos, impedindo consequentemente a continuidade da
linha realista. O romance nordestino – o mais expressivo movi-
mento realista em nossa história literária do século 20 – não pôde
partir diretamente da temática urbana de Lima; mas é indiscutível
que recolhe dele (consciente ou inconscientemente) tanto a visão
do mundo democrático-popular quanto o conceito “participante”
do ofício literário. O pioneirismo de Lima evidencia-se quando
observamos o seguinte fato: depois dele, já não mais foi possível
construir o realismo crítico com base na “serenidade” estilística
ou no humanismo “distanciado” de Machado de Assis. Em José
Lins do Rego ou em Graciliano Ramos, em Antônio Callado ou
no último Érico Veríssimo, podemos sempre constatar a retomada
do espírito “participante” e da profunda consciência social que
marcaram a práxis literária do autor do Policarpo Quaresma. Nes-
se sentido, Lima continua a ser um modelo – o que não implica
evidentemente a ideia de “cópia” ou “imitação” – para o realismo
brasileiro de hoje. Retirar Lima do injusto esquecimento em que
o querem sepultar, reexaminar sua obra em função dos problemas
gerais da literatura brasileira, não são assim tarefas acadêmicas ou
meramente “literárias”: fazem parte da necessária e urgente rea-
valiação crítica de nossa herança cultural progressista, entendida
como ponto de partida para a construção de uma nova cultura
brasileira democrática e nacional-popular.

(1972)

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Graciliano Ramos

Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.
(...) Ilhas perdem o homem.
Drummond

1
A obra romanesca de Graciliano Ramos abarca o inteiro pro-
cesso de formação da sociedade brasileira contemporânea, em suas
íntimas e essenciais determinações. Nada existe nele em comum
com aquele regionalismo estreito que foi uma das manifestações
brasileiras do naturalismo “sociológico”. O destino de seus perso-
nagens, seu modo de agir e reagir em face das situações concretas
em que se encontram inseridos, são manifestações típicas de toda
a realidade brasileira. No “regional”, a Graciliano interessa apenas
o que é comum a toda a sociedade brasileira, o que é “universal”.
Mas não um universal abstrato e absoluto, pretensamente válido
em qualquer circunstância; a universalidade de Graciliano é uma
universalidade concreta, que se alimenta e vive da singularidade,
da temporalidade social e histórica. O que lhe interessa não é a
exemplificação, através da literatura, de teses e concepções aprio-
rísticas; é a narração do destino de homens concretos, socialmente
determinados, vivendo em uma realidade concreta. Por isso, pôde
ele descobrir e criar verdadeiros tipos humanos, diversos tanto da
média cotidiana como da caricatura abstrata.
A crise da sociedade brasileira apresentava-se no Nordeste
com cores mais vivas e intensas do que no resto do Brasil. Os
movimentos de renovação e de transformação que começavam a
esboçar-se (apenas a esboçar-se) por todo o país – expressando-se,
entre outras coisas, na chamada Revolução de 1930 –, chocavam-

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se no Nordeste com barreiras mais firmes, com obstáculos quase


intransponíveis. As esperanças de renovação democrática da
sociedade eram violentamente cortadas; a ausência de uma classe
social efetivamente (e não apenas potencialmente) revolucionária
condenava os que pretendiam lutar por uma nova comunidade
à solidão e à incompreensão. De certo modo, na medida em que
aí as contradições eram mais “clássicas” (no sentido de Marx), o
Nordeste era a região mais típica do Brasil; a sua crise expressava,
em toda a sua crueza, a crise do conjunto do país. Não é assim um
acaso que tenha sido o romance nordestino da década de 1930
o movimento literário mais profundamente realista da história
de nossa literatura. E, no seu interior, Graciliano é a figura mais
alta e representativa. Foi ele quem mais radicalmente se libertou
da mistura de romantismo (“revolucionário” ou reacionário) e
de naturalismo que ainda vemos existir em grande parte de seus
contemporâneos. Neste sentido, Caetés funciona, em sua produção
literária, como uma catarse: escrevendo-o, Graciliano se liberta
do naturalismo, percebendo na prática as suas limitações para
representar as determinações mais profundas da realidade humana
do povo brasileiro. Com São Bernardo, Graciliano marca – em
sua obra e na história do romance brasileiro posterior a Lima
Barreto – a passagem da crônica à história concreta, a superação de
um naturalismo que se contentava em descrever a superfície da
realidade por um realismo verdadeiro como a vida.
Na época, a sociedade brasileira se apresentava como uma
formação social semicolonial em crise. O esgotamento das po-
tencialidades de nossa economia pré-capitalista não fora seguido
por uma renovação radical, pela criação de uma forma moderna
de economia e de relações sociais. A ausência de uma economia
integrada, estruturada em torno de um mercado interno único,
era causa e efeito da inexistência de uma classe burguesa orgânica,
que estivesse em condições de promover uma autêntica revolução
democrática. A fragmentação de nossa sociedade, típica de uma
economia pré-capitalista, impedia a formação de uma verdadeira
comunidade humana, de uma vida pública democrática, afastando

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Cultura e sociedade no Brasil 143

o povo de qualquer participação criadora em nossa histórica. A


estagnação social condenava os homens a uma vida medíocre, ao
cárcere de um “pequeno mundo” restrito e sem perspectivas, sepa­
rado de uma autêntica vida social e comunitária por paredes bastante
espessas. Esta realidade mesquinha, que impunha aos indivíduos
uma radical alienação, afastando-os da evolução histórica concreta,
era comum a todas as classes sociais brasileiras; mas enquanto umas
se sentiam à vontade nos estreitos limites deste “pequeno mundo”,
outras compreendiam que só com a destruição de tal cárcere seria
possível a abertura para uma vida autêntica e humana.
O desenvolvimento do capitalismo, que se processava sem
rupturas com a economia pré-capitalista e dependente, não
apresentava as mesmas características revolucionárias que tivera
na Europa Ocidental: em vez de contribuir para romper as pa-
redes daquele “pequeno mundo”, mais ainda as fortalecia, cola-
borando para transformar o isolamento e a solidão passivos em
individualis­mo ativo e prático. Impossibilitada de realizar a sua
revolução democrática, a nossa burguesia jamais chegou a tentar
a criação do citoyen (do homem que sintetiza em si a vida pública
e a vida privada) ou da comunidade humana autêntica (na qual
os interesses individuais e os interesses coletivos formam uma to-
talidade orgânica). Esses sonhos do humanismo burguês europeu
revolucionário revelaram-se, com o processo de desenvolvimento
de economia capitalista, uma ilusão utópica: o egoísmo indivi-
dualista da luta pelo lucro, a cisão radical entre o bourgeois e o
citoyen, a redução do homem a simples mecanismo da produção
capitalista, o consequente fracionamento da comunidade – eis o
que substitui, na realidade, os ideais grandiosos do homem total
e da comunidade democrática. Contudo, a simples formulação
desta ideologia humanista, bem como as trágicas tentativas de
levá-la radicalmente à prática (Robespierre e outros), marcaram
profundamente a realidade europeia. Mesmo como ideologia utó-
pica, o humanismo revolucionário desempenhou um papel ativo
nas sociedades ocidentais, ensinando os homens a verem além dos
estreitos horizontes de um “pequeno mundo” filisteu. A tragédia

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144 Carlos Nelson Coutinho

dos que pretenderam, mesmo após a vitória do “burguês” sobre o


“cidadão” no interior da revolução democrática, guiar suas vidas
por essas ilusões grandiosas de realização humana, vem represen-
tada nos realistas franceses do século 19, em Balzac, Stendhal e
Flaubert (que se pense nos destinos de Lucien de Rubempré, de
Julien Sorel e de Frédéric Moreau).
No Brasil, bem como na quase generalidade dos países colo-
niais ou dependentes, a evolução do capitalismo não foi antecedida
por uma época de ilusões humanistas e de tentativas – mesmo utó-
picas – de realizar na prática o ideal do “cidadão” e da comunidade
democrática. Os movimentos neste sentido, ocorridos no século
passado e no início deste século, foram sempre agitações super-
ficiais, sem nenhum caráter verdadeiramente nacional e popular.
Aqui, a burguesia se ligou às antigas classes dominantes, operou
no interior da economia retrógrada e fragmentada. Quando as
transformações políticas se tornavam necessárias, elas eram feitas
“pelo alto”, através de conciliações e concessões mútuas, sem que
o povo participasse das decisões e impusesse organicamente a sua
vontade coletiva. Em suma, o capitalismo brasileiro, em vez de
promover uma transformação social revolucionária – o que im-
plicaria, pelo menos momentaneamente, a criação de um “grande
mundo” democrático –, contribuiu para acentuar o isolamento
e a solidão, a restrição dos homens ao pequeno mundo de uma
mesquinha vida privada.
Tudo isso torna extremamente problemática, entre nós, a
criação de autênticas obras épicas realistas. Também na Europa,
com o triunfo da burguesia sobre o proletariado em 1848 e com
a trivialização ou abandono do antigo humanismo clássico, o
romance tende cada vez mais ao naturalismo estreito, à mera
descrição do “pequeno mundo’; só com o realismo russo, com o
surgimento de um herói não individualista – expressão de uma
época de crise radical dos valores burgueses –, é possível a recriação
de uma nova estrutura romanesca realista. Entre nós, a penetração
e evolução do capitalismo ganha características bastante originais,
pela existência simultânea e contraditória de vários de seus estágios:

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em determinados casos, ele representa um estímulo à perpetuação


de nossa velha sociedade estagnada; em outros, apresenta-se como
possibilidade de renovação e de progresso; finalmente, revelando
prematuramente as suas naturais limitações e contradições inter-
nas, cria condições para a abertura de uma perspectiva – ainda
abstrata nos anos de 1930 – rumo à nova sociedade pela qual será
superado, o socialismo.
Assim, não obstante todas as suas limitações, o capitalismo
não deixou de trazer elementos novos para o quadro de nossa
reali­dade. Esses elementos constituíam o novo que brotava no seio
da velha sociedade semicolonial: contra a estagnação e a inércia
dominantes, surgem aqui e ali determinados indivíduos incon-
formados, possuídos por uma força interior que os leva a romper
com uma existência mesquinha e a buscar um sentido autêntico,
ainda que individualista, para as suas vidas. Essa “inquietação”, esse
“inconformismo” – que o jovem Lukács, usando a terminologia
de Goethe, chama de “demonismo” –, tem uma de suas fontes
principais, aqui como na Europa, no desenvolvimento do capi-
talismo. O fato de que Graciliano tenha percebido esse elemento
novo – e que o tenha configurado artisticamente em suas devidas
proporções, sem exageros românticos ou reduções naturalistas – é
mais uma prova do seu profundo realismo.
A contradição entre um mundo alienado e indivíduos incon­
formados que lutam contra a alienação, aliás, é o conteúdo essencial
do gênero romanesco. Quebrando as barreiras e as estratificações
fossilizadas da sociedade feudal, superando a mediocridade da
vida rural, contribuindo para a unificação do mundo em torno
de um mercado único, promovendo o domínio e a conquista da
natureza, o capitalismo representou um formidável estímulo às
potencialidades criadoras do homem. Por outro lado, estabele-
cendo uma sociedade rigidamente individualista, dilacerada pela
luta de todos contra todos pelo lucro e pela riqueza pessoal, esta
formação social fracionou a comunidade humana, destruiu a so-
lidariedade e a fraternidade, condenando os homens a uma vida
solitária. Qualquer transcendência – seja religiosa, seja histórico-

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geral – é destruída: os valores universais desapareceram no céu


vazio do homem burguês. O sentido da vida – outrora dado ou
pela participação na comunidade humana (como na Antiguidade
clássica) ou pela crença em dogmas religiosos (como na Idade
Média) – é agora uma busca individual e solitária, voltada para
valores mediatos e problemáticos.
O jovem Lukács definiu a estrutura deste novo gênero épico,
surgido com o advento da burguesia e do capitalismo, como uma
pesquisa de valores autênticos em um mundo convencional e
vazio, por parte de heróis problemáticos88; ou, numa linguagem
histórico-concreta, como uma luta pela realização individual
num mundo burguês, no qual inexiste a comunidade humana
e o homem está condenado à alienação e à solidão. Lukács nos
informa ainda que esta busca de valores é sempre votada ao
fracasso enquanto inexistir a comunidade humana autêntica
(ou seja, o socialismo ou a luta concreta pela sua criação), já
que a realização humana individual só é possível em uma so-
ciedade comunitária na qual, como diriam Marx e Engels, “o
livre desenvolvimento de cada um é pressuposto para o livre
desenvolvimento de todos”89 (está em jogo, naturalmente, a
verdadeira realização individual – que implica o homem total,
harmonicamente desenvolvido, não alienado –, e não a falsa
“realização” burguesa, que consiste numa autoflagelação e au-
tolimitação consentidas). Goldmann observou argutamente a
existência de uma homologia entre a forma romanesca, descrita
pelo jovem Lukács, e a estrutura da sociedade capitalista, bem
como entre a evolução desta forma e a evolução do capitalismo90.
O próprio Lukács, em sua fase marxista, fala da “estreita conexão
entre a forma romanesca e a estrutura específica da sociedade
capitalista”, com a vantagem – em relação a Goldmann – de
88
G. Lukács, A teoria do romance, São Paulo, Duas Cidades/ Editora 34, 2000, em parti-
cular p. 23-96.
89
K. Marx e F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, in: Vários Autores, O Manifesto comunista
150 depois, Rio de Janeiro-São Paulo, Contraponto-Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 29.
90
L. Goldmann, Pour une sociologie du roman, Paris, Gallimard, 1964, p. 16-37.

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acrescentar que esta conexão “de modo algum significa que o


romance só possa refletir esta realidade tal como ela se apresenta
direta e empiricamente”91.
Ora, como veremos, é precisamente esta a forma estrutural
dos romances de Graciliano Ramos. Representando uma reali-
dade fragmentada (a nossa sociedade semicolonial, penetrada
por elementos capitalistas), que desconhece um “grande mundo”
comunitário, Graciliano representa também as lutas individuais
por descobrir, no interior deste mundo alienado e/ou em oposi-
ção a ele, um sentido para a vida. Através da estrutura romanesca
clássica, ele representa a realidade profunda – e não apenas as
aparências empíricas – da sociedade brasileira, na qual a lenta
evolução do capitalismo, em alguns casos, entrava em contradição
com o nosso ancien regime; em outros contribuía para solidificá-lo,
e, finalmente, já começava a apresentar o seu caráter limitador e
a determinar uma abertura para o sistema social que o superará.
Essa evolução determinava uma nova tomada de posição por
parte das classes sociais brasileiras, fazendo surgir, em algumas
delas, o “inconformismo” e a “inquietação” que tornam possível
o aparecimento do “herói problemático”, que não mais aceita
passivamente a estagnação e o marasmo da sociedade anterior, do
“mundo convencional e vazio”. A diferente natureza dessa reação
contra a alienação, dessa busca de valores autênticos, bem como o
seu resultado, decorrem da diferente classe social a qual se vincula
o “herói problemático”. Nessa fusão de indivíduo e classe, reside
um dos pontos mais altos do realismo de Graciliano. Seus perso-
nagens são sempre tipos autênticos precisamente na medida em
que expressam em suas ações o máximo de possibilidades conti-
das nas classes sociais a que pertencem. A obra de Graciliano, em
sua totalidade, apresenta-nos um painel desses diferentes “heróis
problemáticos”, ou seja, uma representação literária das diversas
atitudes típicas das classes sociais brasileiras (com exceção do
proletariado) em face do “mundo alienado”.
91
G. Lukács, Le roman historique, Paris, Plon, 1965, p. 156.

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2
Caetés, o primeiro romance de Graciliano, foi escrito entre
1925 e 1928. Essa época representa, na história do romance
brasileiro, um período de domínio quase incontrastado do na-
turalismo, que encontrara no “regionalismo” modernista, isto é,
na reconstrução superficial de ambientes e de costumes exóticos,
um forte incentivo. Embora contenha elementos que anunciam o
vigoroso realismo da década de 1930, Caetés é – em sua estrutu-
ra, em seu conteúdo e nas técnicas literárias que manipula – um
romance naturalista.
O naturalismo representa, com relação à estrutura romanesca
clássica, a supressão de uma das duas dramati personae que com-
põem o grande romance realista: o herói problemático. As obras
estruturalmente naturalistas limitam-se à descrição do mundo
convencional e vazio, isto é, à reprodução superficial de ambientes
e de indivíduos médios (cotidianos). Trata-se da primeira mani-
festação literária da decadência burguesa, isto é, de uma época na
qual a rígida divisão capitalista do trabalho, alienando os homens
com relação à história, dificulta-lhes uma visão de conjunto da
realidade global. O naturalismo limita-se a reproduzir a superfície
da realidade, jamais transcendendo (pelo menos de uma maneira
orgânica) o fenômeno empírico imediato. Ora, a realidade imedia-
ta de uma sociedade capitalista é a total mutilação do indivíduo,
sua transformação em “coisa”, em joguete de um determinismo
fatalista; a maioria dos homens adapta-se às condições de alienação
vigentes, aceitando passivamente a sua redução a meras peças de
uma engrenagem que eles não compreendem e que, por isso, os
determina do exterior. Assim, descrever apenas a realidade cotidia-
na, como pretendem os naturalistas, significa mutilar a realidade
global, desconhecendo as forças que reagem – mesmo que de uma
forma igualmente alienada – contra a alienação capitalista. Em
outras palavras, significa desconhecer aquele “incorformismo”,
aquela inquietação “demoníaca”, aquela manifestação evidente
de uma práxis humana criadora, que não aceita passivamente a
alienação e que representa, consequentemente, um outro momen-

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to da totalidade do real. Só uma literatura que represente esses


dois momentos – a saber, o mundo alienado e os homens que
lutam contra a alienação, podendo esta luta ser trágica, cômica,
tragicômica ou vitoriosa – tem condições de reproduzir a dialética
essencial da contraditória realidade moderna.
Essa negação da práxis humana criadora leva o naturalismo a
considerar os homens como mecanicamente determinados pelas
circunstâncias exteriores, notadamente pelo “ambiente”, enten-
dido como um fetiche independente da ação humana. É o que
ocorre a Graciliano, em Caetés. O universo desse romance não
ultrapassa a representação da superfície da realidade; trata-se de
uma crônica, do relato quase jornalístico de uma cidade do inte-
rior nordestino. Um tênue enredo, disposto em torno de um fait
divers, não consegue organizar e unificar o universo do romance,
criando-lhe uma estrutura que fosse análoga à estrutura global do
real. Naturalmente, parcelas da realidade, isoladas do conjunto,
estão reproduzidas em Caetés; não, porém, o movimento da to-
talidade do real, único conteúdo que pode permitir ao escritor a
construção de uma forma épica verdadeiramente artística. Insis-
timos: a estrutura romanesca – com seus dois momentos: o herói
problemático e o mundo alienado – é a única capaz de reproduzir,
do ponto de vista da grande arte narrativa moderna (literária ou
cinematográfica), a essência da realidade contemporânea. Aban-
donando um daqueles momentos, tanto o conteúdo quando a
forma se fragmentam, dando origem a uma obra problemática
ou inteiramente fracassada.
Os personagens de Caetés são todos determinados mecanica-
mente pelo ambiente em que vivem, inteiramente adaptados ao
“pequeno mundo” filisteu que é sua realidade imediata. Preocu­
pado apenas em fazer o inventário de um ambiente provinciano,
Graciliano passa a nos apresentar uma coleção de figuras inexpres-
sivas, todas elas passivas e acomodadas em face da inércia do meio
em que vivem. João Valério, que narra a ação, é o personagem
central. Esta centralização não decorre, contudo, como nos ro-
mances realistas, de uma verdadeira hierarquização do real, isto

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150 Carlos Nelson Coutinho

é, de uma escolha consciente do autor entre os indivíduos de que


trata no sentido de contrapô-los uns aos outros, como represen-
tantes de diferentes atitudes típicas em face da realidade. O tipo
central realista, por isso, é sempre excepcional: representa, contra
os demais personagens do romance – muitos dos quais, como
tipos cotidianos, encarnam o mundo convencional –, um outro
aspecto do real, uma possibilidade de ação contra a alienação
implícita no próprio movimento da sociedade. Essa hierarquia,
condição básica da composição do romance realista, tem como
fundamento o movimento do herói problemático, que vai da
ascensão (decorrente da esperança em triunfar na luta contra o
mundo) ao desfecho desta luta (pela derrota, ou – em casos mui-
to raros – pela relativa vitória). Esse movimento torna possível,
por um lado, o desenvolvimento épico da ação e, por outro lado,
o “fechamento” da forma, a necessária resolução dos problemas
contidos no desenvolvimento da ação.
Inexistindo em Caetés o “movimento” do herói, o romance
resulta em mero acúmulo inorgânico de fatos superficiais, sem
ligações íntimas entre si. Na busca de uma forma que “feche” o
universo do romance, o naturalismo é obrigado a praticar aqui-
lo que Hegel chamou de má infinitude: a totalidade poética é
confundida com a catalogação de múltiplos eventos singulares,
buscada numa extensão impossível e não na concentração intensiva
das tendências essenciais. Por isso, não obstante o conflito central
que existe em Caetés, o narrador é obrigado – em sua tentativa
de abarcar a totalidade, requisito da narração épica – a inserir no
romance uma infinidade de eventos sem nenhuma ligação com
a ação central, destinados somente a reproduzir o “ambiente” (a
descrição do banquete na casa de Vitorino, as relações entre Marta
Varejão e o pai, o noivado do promotor etc.). Além dos eventos
“inúteis”, há também os personagens “inúteis”, que nenhuma
importância apresentam para o desenvolvimento e o desfecho
da ação central: nesse sentido, aliás, são inúteis quase todos os
personagens de Caetés, mesmo os mais bem caracterizados (como
Evaristo Barroca, por exemplo).

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Nem mesmo no apagado e tênue conflito central (o amor de


Valério pela mulher de seu patrão) é expressa uma tendência pro-
funda da realidade, ou tampouco revelada, através dele, uma atitude
que se opusesse à cotidianidade superficial e imediata. Por isso,
Graciliano não consegue atingir nenhuma generalização artística
verdadeira e orgânica: a ação se restringe ao mundo convencional,
aos faits divers da vida cotidiana. A atitude inesperada de Adrião
Tavares, suicidando-se ao saber que é “traído”, é realmente uma
quebra do cotidiano, um fato excepcional; contudo, tal como vem
descrita no romance, essa atitude é inexplicável: a partir da vida do
personagem, nada poderia justificar tal comportamento. Ademais,
a sua ocorrência não lança nenhuma luz sobre os outros problemas
aflorados no romance; ao que me parece, o fato foi inserido com
a única finalidade de, fazendo Luísa viúva, colocar João Valério
diante de uma nova realidade, que comprovasse mais uma vez a
sua mesquinhez e a sua fraqueza humana (as quais, no romance,
são apresentadas como decorrendo apenas das limitações do “am-
biente”). Apresentando uma realidade estática, que não se move em
nenhuma direção, Caetés apresenta também personagens estáticos,
sem nenhuma modificação essencial do princípio ao fim do roman-
ce; como principal consequência dessa estaticidade, tais personagens
não têm uma gênese social concreta, não tem nem pré-história nem
história. A ação e as situações não são mais do que pretextos para
que características apriorísticas se manifestem exteriormente. Ao
contrário do romance realista, que é sempre simultaneamente uma
biografia do herói problemático e uma crônica social (como será o
caso de São Bernardo e de Angústia), Caetés é apenas uma crônica.
Além disso, ou por isso mesmo, Caetés se caracteriza pelo
predomínio quase absoluto do que Lukács chamou de “método
descritivo”92. Desconhecendo a unidade do real, o método des-
critivo reproduz uma série de quadros isolados, servindo a ação
(que é o objeto da épica) como mero pretexto para ligar entre si

92
G. Lukács, “Narrar ou descrever?”, in: Id., Marxismo e teoria da literatura, São Paulo,
Expressão Popular, 2010, p. 149-185.

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152 Carlos Nelson Coutinho

esses fragmentos autônomos, que podem ser psicológicos, socioló-


gicos etc. Já o “método narrativo”, que predomina nos romances
realistas, reduz tudo à ação, englobando nela todos os momentos
– exteriores e interiores – do personagem e do mundo dos objetos
(que se pense na relação orgânica que o narrador estabelece, em
São Bernardo, entre o desenvolvimento psicológico da ambição
de Paulo Honório e a construção da fazenda em todos os seus
aspectos objetivos). Tendo como finalidade não a descrição de
tipos vivos e concretos, mas a reprodução de “ambientes”, Caetés
faz uso exagerado das técnicas descritivas, aptas a reproduzir coisas
(ou homens-coisas), mas não concretas ações humanas.
Lukács, no mesmo ensaio, também nos fala sobre a estreita
ligação entre o método descritivo naturalista e as tendências ao
formalismo abstrato, alegórico. Após ter reduzido a realidade à
sua pura imediaticidade fenomênica, o naturalismo enfrenta a
necessidade de generalizar os eventos descritos, os quais, como
vimos, não possuem íntimas ligações dialéticas entre si; em vez
de uma generalização concreta, obtida pela relação dos eventos e
de uma ação típica, que seja a síntese particular do singular e do
universal, o naturalismo é obrigado a recorrer a alegorias, isto é,
a transformar o evento singular fetichizado em simples portador
de uma ideia abstrata, existente apenas na consciência do autor.
O Graciliano naturalista não fugiu à regra: obrigado a generalizar
a miséria moral do “pequeno mundo” dos personagens, a bruta-
lidade e a selvageria de Valério, ele recorre à imagem dos caetés,
estabelecendo um paralelo não orgânico entre a realidade presente
e a vida dos índios selvagens. Aquele “romance histórico” sobre
os caetés que João Valério inutilmente tentava escrever – e cuja
existência no romance não apresentava nenhuma ligação com a
caracterização do personagem ou com a ação central, sendo um
mero evento solto e isolado – revela a sua “necessidade”: tratava-se
de uma alegoria, de um recurso não orgânico de que o autor lança
mão para tentar uma generalização e provar uma tese.
Comparado com a generalidade dos nossos romances natura-
listas, Caetés revela indubitavelmente um saldo positivo. Inexiste

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Cultura e sociedade no Brasil 153

nele, o que é um dos seus maiores méritos, aquela tendência a


superar a mediocridade naturalista através da descrição de qua-
dros patológicos e exóticos. O romance apresenta uma contenção
estilística positiva, uma reação salutar contra a “ênfase” romântica
dos nossos naturalistas. Por outro lado, a profunda ironia do autor
revela uma atitude crítica em face da realidade, uma insatisfação em
face da estagnação social. Mas esta insatisfação é apenas do autor,
já que não se encarna concretamente em nenhum personagem:
Graciliano ainda não percebera o novo que brotava da velha rea-
lidade brasileira, não conseguindo transcender, por isso, a simples
descrição de um “pequeno mundo” estático e morto. O próprio
Graciliano, posteriormente, foi um dos que mais acentuaram as
fraquezas do seu primeiro romance. Contudo, mais importante
do que isso é o fato de ter ele realizado uma autocrítica também
prática, e de nos ter dado, após Caetés, três das maiores obras-
primas do realismo crítico brasileiro.

3
Com São Bernardo, publicado em 1934, opera-se uma comple-
ta reviravolta na obra de Graciliano: superando a visão ideológica
e artística do seu primeiro romance, ele cria uma das obras mais
autenticamente realistas da literatura brasileira. Penetrando nas
determinações essenciais de nossa realidade, Graciliano reencontra
a estrutura romanesca clássica e a visão humanista que haveria de
ser o fundamento de sua práxis artística ulterior. Ao lado das ra-
zões biográficas que tornaram possível esse salto, acreditamos que
foram as próprias transformações ocorridas na realidade brasileira
a sua causa fundamental. Entre Caetés e São Bernardo, situa-se a
Revolução de 1930: apesar de suas notórias limitações, de seu
caráter de transformação “pelo alto”, ela permitiu perceber com
mais precisão as forças sociais em choque na realidade brasileira,
revelando o quanto era aparente e superficial a solidez daquela
sociedade estagnada e mesquinha e indicando as tendências
renovadoras latentes e encobertas. Em estreita ligação com esses
movimentos da renovação, Graciliano passa a ter uma ação efetiva

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154 Carlos Nelson Coutinho

na vida social, não só exercendo cargos públicos, como tomando


posição prática em face dos problemas do seu tempo.
Essa passagem da observação à participação, ao que nos
parece, é o aspecto pessoal – socialmente determinado – do
processo que conduz Graciliano do naturalismo pessimista ao
realismo crítico e humanista. Sempre que o escritor se coloca
em face de sua sociedade como um simples observador, ainda
que irônico, perde a possibilidade de utilizar os critérios seletivos
que permitam superar o contingente e o inessencial, no sentido
de uma penetração profunda no real e da descoberta das forças
essenciais que o determinam; o verdadeiro realismo cede lugar às
vulgares descrições naturalistas ou às “profundas” pseudoanálises
psicológicas93. Só a defesa dos valores humanistas – a luta contra
as forças que mutilam o homem, destruindo sua integridade –
pode permitir ao escritor a criação de uma estrutura romanesca
orgânica e viva (não importa se ele está ou não consciente de
que defende tais valores). Tal como na arte em geral, também
no romance o fundamento da universalidade artística é a defesa
da humanitas contra a alienação.
Essa defesa é o núcleo de São Bernardo. À transformação do
conteúdo corresponde, em Graciliano – como em todo verdadeiro
artista –, uma transformação formal: a composição frouxa e inor-
gânica de Caetés cede lugar a uma intensa concentração dramático-
novelística, a uma estrutura “fechada” e análoga à estrutura global
do real. Em vez da descrição extensiva de fragmentos do real (como
em Caetés), São Bernardo apresenta – como seu núcleo central – o
conflito que opõe, por um lado, as forças que reduzem o homem
a uma vida mesquinha e miserável no interior da alienação do
“pequeno mundo” individual e, por outro, as que impulsionam o
homem a descobrir um sentido para a vida mediante uma “abertura”
para a comunidade e a fraternidade e da consequente superação da
solidão. Em suma, trata-se do conflito entre as forças da alienação

93
Sobre o vínculo entre “observação” e “descrição”, por um lado, e entre “participação” e
“narração”, por outro, cf. G. Lukács, “Narrar ou descrever ?”, cit.

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e do humanismo, encarnadas nas classes sociais brasileiras. Essa


captação concentrada do movimento da realidade deve se estruturar
em torno de tipos excepcionais, superiores à média cotidiana, que
encarnem em si o máximo de possibilidades concretas contidas em
cada uma daquelas forças sociais em contradição. É o que ocorre
em São Bernardo: Paulo Honório e Madalena são verdadeiros sím-
bolos de suas classes precisamente na medida em que expressam,
em suas ações decisivas, as atitudes típicas mais profundas que elas
comportam. Não é o mero “ambiente” externo, desligado da ação
concreta dos homens, que determina o universo e a problemática
humana desse romance; é justamente enquanto reagem ao “ambien-
te” que os tipos criados se definem e modelam a sua personalidade.
O background de São Bernardo é um ambiente humano: a história
concreta em sua evolução contraditória, a oposição de homens
contra homens, de classes contra classes (encarnadas concretamente
em indivíduos singulares), e não a adaptação de homens-coisas a
um determinismo mecânico e exterior.
É na luta contra o seu primitivo status quo, a miséria e a baixa
condição social, que Paulo Honório começa a definir sua persona-
lidade. Ele não aceita passivamente a realidade dada: sua ambição
poderosa, em que estão evidentes os traços da penetração capitalista
em nossa sociedade, leva-o a buscar na riqueza e no domínio – em
suma, na ascensão social – o sentido para a sua vida. Graciliano
captou aqui um dos traços essenciais do capitalismo nascente: o
crescimento da mobilidade social, o rompimento com as barrei-
ras coaguladas do pré-capitalismo. Essa luta pela ascensão social,
naturalmente, é solitária e individualista; ela define os valores
que regem a atividade de Paulo Honório, ou seja, a propriedade
sobre as coisas e sobre os homens. Ora, quando inexiste o nós,
a fraternidade e a solidariedade, a relação entre os indivíduos –
como Hegel brilhantemente observou – não pode deixar de ser a
relação entre o servo e o senhor94. Paulo Honório reduz tudo ao

94
“O individual perante o individual só se conserva mediante o sacrifício do outro” (Hegel,
Estética, Lisboa, Guimarães, 1959, v. 1, p. 97).

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seu interesse egoísta: os homens são apenas instrumentos de sua


ambição, meios que ele utiliza para a obtenção do próprio fim,
ou seja, a realização individual a que se propõe.
A construção de um burguês: eis o conteúdo da primeira parte
de São Bernardo. Note-se que Graciliano, ao contrário dos natura-
listas, não nos apresenta um burguês acabado, estático e definido
de uma vez por todas: ele narra a evolução psicológica de Paulo
Honório, o desenvolvimento de sua violenta e apaixonada ambi-
ção, em estreita ligação com a “totalidade dos objetos” que torna
possível a realização de seus desejos. Essa desenfreada ambição
capitalista é o conteúdo do “demonismo” de Paulo Honório. Sua
necessária solidão determina a unilateralização de sua personali-
dade: ele aliena-se à fazenda, é possuído por sua própria paixão. A
construção de um burguês: essa construção é, simultaneamente,
a criação de um novo “pequeno mundo” de paredes tão espessas
quanto o anterior, que a inquietação de Paulo Honório superara.
Nesse novo “pequeno mundo”, contudo, ele julga por algum
tempo estar inteiramente realizado.
Trata-se, porém, de uma trágica ilusão. Levado ainda por
uma finalidade egoísta, típica de um proprietário, Paulo Honório
pretende se casar: é preciso ter um filho que seja o herdeiro das
riquezas que acumulou. Não é o amor que o move, pois os egoístas
não conhecem o amor; ele busca a mulher como quem busca um
objeto, uma propriedade. Este fato corriqueiro, porém, é transfor-
mado por Graciliano num momento rigorosamente necessário no
desenvolvimento da ação romanesca: através dele, revela-se toda
a limitação dos valores egoístas construídos por Paulo Honório.
Madalena, a esposa que escolhe, é o seu oposto radical: para ela,
uma vida verdadeiramente humana se confunde com a superação
do egoísmo na realização da fraternidade autêntica. O sentido
de sua vida é por ela buscado no rompimento com o “pequeno
mundo”, na abertura para uma autêntica comunidade humana;
seu profundo humanismo chega mesmo a implicar, ainda que
abstratamente, a aceitação do socialismo. Deformado e mutilado
pelo seu egoísmo, Paulo Honório não compreende e não se integra

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com Madalena. Desenvolve um ciúme doentio – que é próprio


dos que veem a pessoa amada como um objeto, como uma posse
–, impedindo assim Madalena de levar uma vida autêntica, con-
forme as suas convicções. Personagem trágica, dilacerada entre um
mundo vazio e alienado e um ideal (ainda) utópico de solidarie-
dade, Madalena recusa o compromisso com a inautenticidade e
se suicida. Esse ato repercute, na vida de Paulo Honório, através
de uma dolorosa tomada de consciência: sua solidão ainda mais
se acentua (inclusive com o abandono da fazenda por parte de
outros personagens), e ele percebe a inutilidade de seus esforços,
centrados na busca de uma realização humana apoiada na pura
ambição egoísta. Seu “pequeno mundo” revela-se um cárcere, uma
“danação”. O momento trágico encerra o romance: nem Paulo
Honório nem Madalena conseguem se realizar humanamente.
Esse desfecho trágico, embora formalmente idêntico para am-
bos, possui uma natureza social e humana inteiramente antagônica.
Tal diversidade decorre da diferente atitude de ambos em face da
realidade, o que decorre por sua vez da diferente classe social a que
pertencem. São Bernardo é um romance de “ilusões perdidas”: por
um lado, da ilusão de que uma vida solitária e o pequeno mundo
do proprietário possam proporcionar uma realização humana
digna e autêntica; por outro, da ilusão em conciliar um ideal de
solidariedade humana com a existência solitária no interior de um
mundo vazio e prosaico. Dessa forma, Graciliano – mesmo reco-
nhecendo e analisando os aspectos positivos do capitalismo – põe
a nu seu caráter contraditório e autolimitador, sua incapacidade
de destruir efetivamente, e não apenas aparentemente, o cárcere
de solidão. Contudo, por outro lado, não podem ainda deixar de
ser abstratas as perspectivas que apontam para um mundo novo.
Na ausência de uma classe social verdadeiramente revolucionária,
permanecem solitários e impotentes os indivíduos que se opõem ao
capitalismo: o socialismo aparece ainda como uma pura aspiração
subjetiva, sem encontrar na realidade as possibilidades concretas
de sua execução. O humanismo abstrato de Madalena, típico de
setores progressistas de nossa classe média urbana, apesar de apon-

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tar para um futuro mais humano, revela-se igualmente incapaz


de quebrar as paredes do pequeno mundo da prosa cinzenta e
alienada da sociedade brasileira da época.
O caráter excepcional de Paulo Honório, entre outras coisas,
expressa-se na complexa integração dos valores pré-capitalistas
e dos valores capitalistas que formam a sua personalidade95.
Movido por uma sede de lucro e de domínio que é própria do
capitalista, Paulo Honório é – no essencial – um burguês típico;
mas permanecem em sua mentalidade certos aspectos arcaicos,
como, por exemplo, o seu apego à vida rural e a sua incapacidade
de ambientação na cidade. Ora, limitado pela estreiteza do meio
rural brasileiro, ainda essencialmente dominado por relações pré-
capitalistas, ele está impedido de dirigir a sua ambição “demoníaca”
para horizontes mais amplos, tão amplos quanto pudesse permitir
o capitalismo urbano; por isso, mais ainda se acentuam as paredes
de seu pequeno mundo e de sua solidão. Mas, precisamente por
causa desta permanência de valores arcaicos, Paulo Honório é o
representante típico da burguesia brasileira, de uma burguesia que
se ligou organicamente à mesquinhez da sociedade pré-capitalista e
que renunciou, talvez definitivamente, aos princípios democráticos
e humanistas do seu período de ascensão revolucionária nos países
hoje desenvolvidos. Na estrutura romanesca de São Bernardo, Paulo
Honório representa – se visto do ângulo de Madalena – o “mun-
do convencional e vazio”, aquela espessa realidade que condena
ao fracasso as melhores aspirações do “herói problemático”. Ao
mesmo tempo, porém, ele também é um “herói problemático”,
precisamente na medida em que os elementos capitalistas que
formam a sua personalidade condicionam a busca de um sentido
novo para a vida, fundado em sua ambição de elevação social, busca
que o leva a se chocar-se com o mundo estagnado e a adotar uma
atitude diversa da média cotidiana dos demais fazendeiros.
95
Nelson Werneck Sodré, referindo-se a Paulo Honório, observa argutamente que seu “ciúme
traduz o sentimento possessivo de uma figura em que se verifica a influência de uma fase
de mudança de relações capitalistas substituindo velhas relações de semisservidão” (N. W.
Sodré, Ofício de escritor, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965, p. 20).

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Essa originalidade estrutural do romance de Graciliano – a


saber, que um mesmo personagem seja simultaneamente elemen-
to do “mundo convencional” e “herói problemático” – tem suas
raízes na própria realidade brasileira, em sua especificidade com
relação à europeia. Decorre, a meu ver, do duplo caráter da nossa
burguesia e de nosso capitalismo nascente: ao mesmo tempo em
que representa um papel progressista, criando condições para o
surgimento do “inconformismo” em face da estagnação anterior,
o capitalismo brasileiro – por causa de sua debilidade e de sua
incapacidade de organizar a inteira sociedade a partir de um
ponto de vista globalmente hegemônico e inovador – é obrigado
a conciliar com o velho e o caduco, com as forças que mantêm
o nosso atraso secular, e a se opor, consequentemente, às novas
forças verdadeiramente renovadoras. Em suma, o capitalismo
brasileiro, desde o seu surgimento, já apresenta manifestações de
crise estrutural, convivendo com a gestação de perspectivas que o
transcendem. O herói do romance europeu da época de consoli-
dação da burguesia podia se basear, em sua luta contra o filisteís-
mo e a vacuidade do mundo burguês triunfante, nos valores do
humanismo individualista da burguesia revolucionária. O Brasil,
como vimos, não conheceu sequer um esboço desse humanismo;
mesmo os mais consequentes entre os nossos burgueses, os que
encarnam a mais alta possibilidade de ambição e de progresso
contida em sua classe, são obrigados a conciliar com o cárcere do
“pequeno mundo”, a limitar os seus esforços ao restrito campo
permitido pelo desenvolvimento vacilante e conciliador de sua
classe (referimo-nos, naturalmente, aos indivíduos que, embora
excepcionais, se mantêm no interior das possibilidades burguesas,
sem romper com essa classe e buscar horizontes mais amplos fora
dela). Assim, a força que se opõe e derrota as suas ambições não é
apenas, como no romance europeu do princípio do século 19, a
realidade circundante: essa força é sua própria limitação interior, a
incapacidade – que é a de sua classe – de superar o que neles existe
de “mundo convencional e vazio”, ou seja, o “pequeno mundo” da
solidão e do egoísmo, a conciliação interior com o atraso social.

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160 Carlos Nelson Coutinho

Aliás, o próprio Paulo Honório – que é o narrador fictício


de São Bernardo – adquire, no final do romance, uma rigorosa
consciência de sua condição e de sua problemática (consciência
que é a determinante direta daquilo que o jovem Lukács chama de
“conversão”, isto é, da descoberta da inutilidade de seus esforços
anteriores). Assim, ele nos diz:
Coloquei-me acima da minha classe, creio que me elevei bastante (...). Julgo
que me desnorteei numa estrada (...). Não consigo modificar-me, é o que mais
me aflige (...). Os sentimentos e os propósitos [de Madalena] esbarraram com
a minha brutalidade e o meu egoísmo. Creio que nem sempre fui egoísta e
brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins96.
Ou, em outras palavras, o tributo pago à “elevação” acima da
própria classe – à inquietação “demoníaca” – é a condenação a
viver na solidão e no egoísmo. O destino trágico de Paulo Honório
é o destino típico da burguesia brasileira, incapaz – pelas próprias
limitações sociais e humanas – de superar o “pequeno mundo”
do interesse privado e de abrir-se para uma vida comunitária e
autenticamente humana.
Madalena, ao contrário, apresenta uma problemática humana
inteiramente diversa. Ela se opõe radicalmente ao mundo aliena-
do, buscando um sentido para a vida, uma verdadeira realização
humana, na fraternidade e na solidariedade com os seus semelhan-
tes. Este é, naturalmente, um tipo novo na história da evolução
da estrutura romanesca: o do “herói problemático” individual
que pesquisa um valor autêntico comunitário e transcendente.
Os heróis individualistas do grande realismo francês do século
passado são problemáticos na medida em que, ignorando os va-
lores transindividuais, centram o sentido de suas vidas – e de sua
oposição ao mundo prosaico e alienado – na realização individual,
na ambição de progresso pessoal. Ora, toda realização individual
autêntica (isto é, não filisteia) no mundo burguês, onde inexiste
a comunidade humana e onde a alienação se tornou a realidade
imediata, é impossível, estando a luta por ela necessariamente
96
Graciliano Ramos, São Bernardo, São Paulo, Martins, 1964, p. 165-167.

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condenada ao fracasso. Com a evolução da sociedade burguesa na


Europa Ocidental, com a estabilização sempre maior do capitalis-
mo, esse individualismo se transforma cada vez mais em egoísmo
filisteu, perdendo assim a grandeza e a autenticidade que ainda
possuía nos personagens de Balzac e Stendhal (grandeza e auten-
ticidade que permitiam a esses escritores a criação de autênticos
“heróis problemáticos”) e dissolvendo-se nos conflitos mesquinhos
e limitados de que iria se alimentar o naturalismo. Só no realismo
russo, notadamente em Tolstoi e Dostoievski, vemos surgir um
novo tipo de “herói problemático” (ao lado de uma renovação
do antigo tipo): o indivíduo que busca realizar-se através da in-
tegração na comunidade humana, superando o individualismo,
mas que – graças à inexistência objetiva desta comunidade – está
também condenado ao fracasso (que se pense na trágica derrota
do Príncipe Mishkin e na impotência de Aliocha Karamazov e de
Nekludhov)97. Essa modificação da estrutura romanesca correspon-
de ao período de crise radical dos valores burgueses, notadamente
os do humanismo individualista.
Ao que nos parece, Madalena é um “herói problemático” do
segundo tipo. Sua impotência trágica decorre, igualmente, de
sua solidão: mas de uma solidão socialmente diversa daquela de
Paulo Honório. Ela é solitária porque ainda não existe, como fato
objetivo e histórico, a comunidade humana autêntica; ou, em
outras palavras, sua solidão decorre da inexistência, na sociedade
brasileira de então, das classes sociais que tornariam possível, se
não o estabelecimento, pelo menos a possibilidade concreta da
criação efetiva de uma nova sociedade, de um “grande mundo”
humanista e democrático. Neste sentido, ela é o oposto de Julien
Sorel, o protagonista de O vermelho e o negro: a solidão de Julien,
seu total distanciamento do mundo e dos demais homens, resulta
da fidelidade que manteve ao jacobismo tardio, encarnado na
figura de Napoleão, que a evolução histórica já havia superado e
97
Examinei mais detalhadamente esta problemática em meu ensaio “Atualidade de Dos-
toievski”, incluído em C. N. Coutinho, Literatura e humanismo, Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1967, p. 191-215.

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162 Carlos Nelson Coutinho

destruído. Em Madalena, ao contrário, a solidão decorre do seu


caráter pioneiro, do fato de ter ela antecipado os valores que ainda
permaneciam implícitos na classe social (ou conjunto de classes) a
que ela se ligava: sua tragédia é a tragédia do revolucionário – no
caso, do revolucionário possível – que se antecipa à história. Por
outro lado, ao contrário de Padilha (assim como Julien Sorel ao
contrário de alguns heróis balzaquianos), ela não aceita o com-
promisso com a realidade vigente, a adequação (mesmo que mo-
mentânea e apenas tática) à vacuidade e a imoralidade do “mundo
convencional”. Uma autenticidade apenas parcial, pela metade, é
para ela – como para os grandes heróis da tragédia, tal como esta
foi estudada pelo jovem Lukács e por Goldmann98 – sinônimo de
uma total inautenticidade. O universo dos seus valores é regido
pela categoria do “tudo ou nada”; esse radicalismo impotente é a
expressão, ao que nos parece, de uma das atitudes típicas da classe
média, de indivíduos solitários que, desligados da história concreta,
não compreendem as suas mediações dialéticas, aquilo que Lenin
chamou de “astúcia do real”.
É bastante problemática, a partir de uma tal caracterização, a
criação de um personagem romanesco realista, não romântico. A
profundidade de Graciliano, sua fidelidade simultânea aos prin-
cípios da arte e à realidade que pretende expressar, afasta este pro-
blema. Em primeiro lugar, fazendo de Madalena um personagem
central, por certo, mas secundário com relação a Paulo Honório;
e, principalmente, em segundo lugar, apresentando-a inicialmente
como portadora de uma ilusão – e, como tal, de uma esperança –,
qual seja, a de poder viver autenticamente, sem compromissos, no
interior de um mundo inautêntico e alienado. Com isso, inclui-
se a dimensão temporal na caracterização de sua problemática, o
que não ocorre no caso da problemática do herói trágico; trata-se
98
Cf. G. Lukács, “Metafisica della tragedia”, in: Id., L’anima e le forme, Milão, Sugar,
1963, p. 305-347; e L. Goldmann, Le dieu caché, Paris, Gallimard, 1955, p. 71-94.
Há uma diferença, para a qual chamo a atenção do leitor, entre o herói da tragédia (do
gênero literário específico) e o destino trágico do herói problemático, isto é, do herói
do romance.

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do tempo que vai da esperança e da ilusão que ela inicialmente


alimenta, ao casar com Paulo Honório, à perda dessas ilusões, à
compreensão da vacuidade de suas esperanças. Graciliano figura
aqui, como grande realista, o triunfo da necessidade social objetiva
sobre as aspirações e os sonhos meramente subjetivos. Ao tomar
consciência do caráter ilusório de sua busca de realização humana,
Madalena prefere o suicídio à conciliação com a inautenticidade;
mas, como em todo grande romance, há também aqui uma evo-
lução que a conduz, da falsa consciência inicial, à consciência de
si como personagem trágica.
Madalena, como dissemos acima, é a expressão extrema das
possibilidades contidas em um segmento da classe média urbana
que tinha como ideologia um humanismo sincero, mas abstrato, e
que – por sua própria condição de classe média e pelas condições
do atraso brasileiro – permanecia isolada e desconhecia os meios
de levar à prática os seus ideais de solidariedade e de fraternida-
de. Em São Bernardo, nos personagens secundários, vemos ainda
encarnadas outras atitudes típicas de nossa classe média: em “seu”
Ribeiro, o saudosismo impotente da classe média rural; em Padi-
lha, o recalque e a frustração como bases para a aceitação, ainda
abstrata, do socialismo; em D. Glória, o autossacrifício pela família
como forma de emprestar um sentido à vida etc. Por não terem
interesse direto na determinação da estrutura romanesca de São
Bernardo, deixamos de analisar aqui com mais vagar essas atitudes
e esses personagens.
Dois conflitos dialeticamente inter-relacionados – o conflito
entre Paulo Honório e Madalena e o conflito entre as forças da
reação e do progresso tal como se apresentavam em nossa realidade
– formam o núcleo de São Bernardo. O desenvolvimento desigual
e duplamente contraditório do nosso capitalismo, determinando
uma especificidade nas contradições humanas e sociais, leva Gra-
ciliano à criação de uma estrutura romanesca bastante original,
em que – em orgânica síntese dialética – coexistem elementos de
dois níveis diversos da evolução da forma romanesca: o “herói pro-
blemático” individualista, típico do romance francês da primeira

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metade do século 19, e o “herói problemático” que busca valores


comunitários, ainda que de forma abstrata e solitária, surgido com
o realismo russo da segunda metade do mesmo século. Apesar
disso, ou exatamente por isso, São Bernardo me parece ser o mais
perfeito, o mais “clássico” dos romances de Graciliano: foi nele
que, com maior perfeição, o romancista alagoano soube encontrar
– para expressar a contraditória realidade brasileira – uma estrutura
romanesca orgânica e profundamente realista.

4
Após a “classicidade” de São Bernardo, pode parecer estranho,
ao leitor superficial, que Graciliano tenha escrito um romance
bastante diverso do ponto de vista técnico, no qual são mais evi-
dentes as afinidades com a chamada “vanguarda”. Na realidade,
Angústia é um romance tecnicamente “vanguardista”: além do uso
frequente do monólogo interior, em sua forma da livre associação
de ideias, encontramos nele uma radical fragmentação do tempo,
o que o aproxima das mais audaciosas experiências do romance
de vanguarda. Contudo, se aprofundarmos nossa análise, supe-
rando o nível imediato dos processos técnicos, reencontraremos
em Angústia a estrutura clássica acima descrita, o respeito às leis
universais da grande arte épica: em suma, o profundo realismo
que Graciliano, com São Bernardo, já introduzira na literatura
brasileira contemporânea. Como o dissemos acima, nenhuma
inovação formal importante, num verdadeiro artista, é pura expe-
rimentação: ela decorre da necessidade de expressar um conteúdo
novo, de concretizar artisticamente a abordagem de um novo
aspecto da realidade.
Esse novo conteúdo, em Angústia, expressa-se por uma acen-
tuação dramática das paredes do “pequeno mundo”, do cárcere
da solidão e da impotência em que está encerrado o homem
brasileiro. Em Caetés, há sempre a perspectiva – ainda que tênue
e mal esboçada – de que a superação do provincianismo, a ida
para uma grande cidade, possa propiciar uma realização humana,
uma expansão das potencialidades esmagadas pela limitação no

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meio rural. Tipos cotidianos e médios, nenhum personagem de


Caetés dispõe-se a realizar a experiência, abandonando o interior
agreste e atrasado pela vida em uma metrópole. O humanismo
de Madalena e a eclosão de um movimento revolucionário, em
São Bernardo, podem fazer crer que – embora a vida no meio
rural esteja necessariamente condenada ao fracasso e ao estan-
camento – talvez na cidade, de onde vem Madalena e onde se
inicia a “revolução”, exista alguma esperança, alguma perspectiva
de abertura para uma vida mais rica e autêntica. Na realidade, o
universo de São Bernardo não autoriza tal crença: é evidente que
aquela “revolução” mudou muito pouco (por exemplo, permane-
cem intactas as relações de propriedade rural), e que Madalena,
também na cidade, era uma solitária, obrigada a ir para o interior
em busca da estabilidade econômica mínima. Contudo, São Ber-
nardo não é o romance das contradições que o capitalismo traz à
vida nas cidades, dos problemas específicos da nossa classe média
urbana, de nossos “humilhados e ofendidos”. Angústia seria este
romance. Situando os problemas num nível mais avançado do
desenvolvimento capitalista – embora para isso não seja necessário
um avanço no tempo, mas apenas um deslocamento no espaço
sociogeográfico –, esse romance já nos mostra a impossibilidade
da própria ascensão social individual, que ainda fora possível no
caso de Paulo Honório.
Angústia é o relato da história de Luís da Silva, último mem-
bro de uma família rural em decadência, que tenta “vencer na
vida” abandonando o campo pela cidade. Ele logo compreende o
caráter ilusório desta tentativa; nem em Maceió, nem mesmo no
Rio de Janeiro, Luís da Silva consegue se afirmar. Ao contrário:
aí ele conhece a miséria mais extrema, inclusive a mendicância.
Trata-se de um novo elemento na obra de Graciliano, o da miséria
econômica; nem em Caetés (onde inexiste qualquer ligação entre
a situação econômica e o destino dos personagens) nem em São
Bernardo (já que Paulo Honório ainda pôde superar a sua inicial
condição de miséria, ascendendo na escala social) a miséria de-
sempenha um papel decisivo na tragédia dos personagens centrais.

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166 Carlos Nelson Coutinho

Não é o caso em Angústia (como não o será em Vidas Secas); aqui,


as deformações psíquicas do personagem, sua frustração agressiva
e sua incapacidade de equilíbrio, estão todas centradas sobre a sua
miséria, sobre a sua inferioridade econômica e social. As dificulda-
des econômicas haviam-no levado a prostituir todos aqueles valores
que Madalena, por viver desligada da necessidade de sustento ou
por ter sido amparada por D. Glória em sua juventude, pudera
conservar: a solidariedade humana, a honra, a dignidade pessoal.
Para conseguir um precário equilíbrio econômico, Luís da Silva
foi obrigado às mais graves concessões e compromissos: a bajular,
a se vender como jornalista e como artista. A se tornar, em suma,
um “bicho”, uma “coisa”, como ele mesmo diz. Obrigado a um
trabalho alienado (ou diretamente a serviço de convicções que não
eram as suas, enquanto jornalista, ou inteiramente desprovido de
sentido criador, como era o trabalho burocrático), Luís da Silva
é obrigado a renunciar às suas esperanças anteriores, a destruir o
“demonismo” que o havia feito emigrar para a cidade e buscar a
própria realização como intelectual.
É nesta acomodação aparente com o “pequeno mundo”,
com a alienação e o filisteísmo, que encontramos Luís da Silva
antes de conhecer Marina – “um cidadão como os outros, um
diminuto cidadão que vai para o trabalho maçador, um Luís da
Silva qualquer”.99 Graciliano, através do seu autoirônico narrador
fictício, descreve com exatidão a vida mesquinha de seu persona-
gem, dividido entre a repartição onde trabalha mecanicamente
e a redação do jornal onde vende, não sem conflitos íntimos, a
sua consciência. Um fato novo, contudo, surge neste aparente
marasmo, quando ele já não mais alimenta ilusões: Marina. É
sem dúvida um fato importante, digno de registro, que tanto
em São Bernardo como em Angústia tenha sido a tentativa mais
imediata de superar o isolamento e a solidão, a ligação amorosa
individual, a causa imediata da tragédia dos dois personagens
centrais. Naturalmente, Graciliano não nos quer dizer que foi
99
G. Ramos, Angústia, São Paulo, Martins, 1961, p. 18.

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a ligação amorosa em si o agente determinante da tragédia dos


personagens; ela não faz mais do que tornar realidade o que já era
uma possibilidade implícita em ambos, a saber, a incapacidade de
superar a solidão, de quebrar as paredes do cárcere do egoísmo,
descobrindo a verdadeira comunidade com os outros homens.
Pois nenhum dos dois conhece realmente o amor, a integração
com a pessoa amada em uma verdadeira comunidade espiritual
e sensual. Em Paulo Honório, o casamento se confunde com a
transmissão da propriedade (e o desejo de amar vem muito mais
tarde para modificá-lo); em Luís da Silva, com o puro erotismo.
Onde inexiste a comunidade humana e os homens estão atomiza-
dos entre si, como na sociedade burguesa, também o amor sexual
se torna cada vez mais problemático. Ele tende, agora, a ser a ex-
clusividade dos que o fundamentam em uma comum identidade
de projetos, dos que buscam uma integração da vida privada com
a vida pública (evitando que o amor se transforme em uma paixão
mórbida e monomaníaca), dos que conseguem superar o egoísmo
e o individualismo. Os solitários e os egoístas não conhecem o
amor; e Paulo Honório e Luís da Silva, bem como Marina, são
solitários e egoístas.
Com o aparecimento de Marina, Luís da Silva volta a experi-
mentar uma esperança, superando o marasmo em que se encon-
trava: durante algum tempo, a ideia de casamento domina seus
pensamentos. Reduzido a não poder ambicionar senão pequenas
coisas, Luís da Silva aprende que nem mesmo estas lhe são permi-
tidas: Marina é seduzida por Julião Tavares, um rico comerciante
acidentalmente ligado a Luís; fascinada pelos prazeres mundanos
e pelo dinheiro que Tavares lhe oferecia, ao contrário de Luís, ela
desfaz o casamento, não sem antes consumir as parcas economias
do “noivo”. Toda a carga de frustração e de agressividade, que Luís
da Silva recalcara e disfarçara através de uma vida mesquinha e
“acomodada”, agora volta à tona: Julião Tavares lhe aparece, numa
contraditória dialética psicológica, como aquilo que no fundo ele
ambicionara ser e, ao mesmo tempo, como tudo o que despreza e
repugna. Nessa atitude, Graciliano retrata magistralmente a psi-

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cologia típica do pequeno-burguês: a luta por atingir a condição


de grande burguês, por subir na hierarquia social, e o profundo
recalque que decorre da constatação de que é impossível essa
ascensão (salvo em casos cada vez mais raros), o que conduz à
revolta e à frustração agressiva. Tal revolta se acentua na luta que
Luís empreende por não cair nas esferas mais baixas, por não se
proletarizar inteiramente: o seu passado de mendicância e a pre-
sença decadente de “seu” Ivo estão em face dele, permanentemente,
como possibilidades ameaçadoras.
Luís da Silva, após o rompimento do noivado, agarra-se a uma
ideia fixa, torna-se um monomaníaco: só destruindo o seu rival – e
Julião Tavares personifica tudo o que ele não é, tudo aquilo que
o conduziu a uma vida inútil e sem sentido – é possível recuperar
o equilíbrio perdido, afirmar-se como homem autêntico, superar
a sua condição de coisa inerte e desprezível. O assassinato lhe
aparece como a única maneira de afirmar uma liberdade sempre
desejada e jamais alcançada, a única forma autêntica possível de
romper com a alienação:
Nas redações, na repartição, no bonde, eu era um trouxa, um infeliz, amarrado.
Mas, ali, na estrada deserta, [Julião Tavares] voltar-me as costas como a um
cachorro sem dentes! Não. Donde vinha aquela grandeza? Por que aquela segu-
rança? Eu era um homem. Ali eu era um homem (...). A obsessão ia desaparecer.
Tive um deslumbramento. O homenzinho da repartição e do jornal não era
eu (...). Tinham-me enganado. Em trinta e cinco anos haviam-me convencido
de que só me podia mexer pela vontade dos outros. Os mergulhos que meu
pai me dava no poço da Pedra, a palmatória do mestre Antônio Justino, os
berros do sargento, a grosseria do chefe da repartição, a impertinência macia
do diretor, tudo virou fumaça.100
Aqui, como em todos os grandes romances do realismo críti-
co, manifesta-se o caráter ambíguo, simultaneamente autêntico
e degradado, do valor pesquisado pelo herói problemático. Em
um mundo onde, como diria o jovem Lukács, Deus está ausente
– ou seja, onde inexistem valores universais, onde não tem lugar
a comunidade autêntica –, toda pesquisa de valores é sempre de-
100
Ibid., p. 176-177.

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moníaca, necessariamente marcada pela degradação, pelo caráter


puramente negativo e inessencial (o jovem Lukács chega mesmo
a dizer que o herói do romance ou é louco, ou criminoso). Essa
degradação decorre da solidão do herói, de sua impotência, de
seu desligamento da vida popular, de seu egoísmo: a luta contra
o mundo hostil não é revolucionária, coletiva, mas sim a mani-
festação de uma revolta individual, necessariamente marginal.
Contudo, apesar das formas degradadas que assume, essa luta
“demoníaca” é uma manifestação do que há de mais humano
no homem: sua insatisfação em face do real alienado, sua busca
desesperada da realização individual autêntica. A ação de Luís da
Silva – o assassinato de Julião Tavares – revela, com evidência, a
ambiguidade a que nos referimos. Ela contém o que de melhor
existe em Luís: a sua aspiração à liberdade e à autonomia, o seu
ódio contra a opressão e a indignidade. Mas, ao mesmo tempo, a
solidão do personagem – que o impede de transcender o aparente
e encontrar os fundamentos essenciais de sua aspiração e de seu
ódio – condena-o a uma ação degradada e impotente: liquidan-
do Tavares, um simples indivíduo, Luís da Silva não destruirá a
máquina capitalista de exploração, a deificação do dinheiro, que
são os fatores que possibilitam a existência e a ação do repelente
comerciante; nem tampouco – e este é o conteúdo da “conversão”
final de Luís, da tomada de consciência da inutilidade de seu ato
gratuito – lhe permitirá reconquistar a dignidade perdida, atingir
a liberdade e a verdadeira realização individual. Extinto o brilho
passageiro de sua ação extrema, Luís da Silva recai na monotonia
de sua vida mesquinha, na absoluta e integral falta de sentido em
que já o encontráramos antes dos eventos descritos no romance.
Imediatamente após o assassinato, ele já nos diz: “(...) Veio-me
a certeza de que me havia tornado velho e impotente. – Inútil,
tudo inútil”.101
Assim, aquela possibilidade de libertação e de realização, que
havia consumido as melhores energias ainda existentes em Luís da
101
Ibid., p. 179.

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Silva, revela-se uma possibilidade abstrata, falsa e inconsistente.


Nesta distinção entre possibilidade concreta e possibilidade abs-
trata, reside uma das características mais profundas do realismo
de Graciliano. Ao contrário do romance antirrealista – que, des-
ligando o personagem da concreta realidade humana e social, não
mais tem critérios (se não os puramente subjetivos) de hierarquizar
as ações humanas, pelo seu confronto com o real –, Graciliano
sabe relacionar a aspiração com a realidade, distinguindo entre
a possibilidade puramente subjetiva e abstrata e a possibilidade
objetiva e concreta. Assim, ele nos mostra que, longe de conduzir
a uma solução, o ato puramente individual de Luís da Silva não
altera a realidade, nem sequer a sua própria realidade individual.
Os indivíduos, enquanto átomos, são impotentes: a possibilidade
de mudar o curso das coisas, de influir sobre a realidade e sobre
si mesmo, está intimamente ligada à participação na vida social,
ao fato de não mais ser o indivíduo um sujeito isolado, mas um
momento do sujeito histórico coletivo. A concepção do mundo
subjacente à “vanguarda” literária, ao fazer da solidão e do iso-
lamento do indivíduo uma realidade metafísica e “eterna”, eleva
igualmente o desespero e a impotência à condição de realidades
eternas, não apenas históricas e sociais. Em Graciliano, como no
realismo em geral, esta solidão e esta derrota – embora socialmente
necessárias a partir da “situação” concreta em que determinados
personagens estão inseridos – não são transformadas em metafísica
condição humana; decorrem de certas condições objetivas e histó-
ricas, notadamente da posição de classe dos tipos representados e
da alienação do mundo em que vivem.
Desta forma, o pequeno-burguês, enquanto pequeno-burguês,
não pode se libertar da miséria e da limitação do “pequeno mun-
do”. Historicamente solitário, ele está socialmente condenado à
impotência e a uma liberdade puramente abstrata. E Luís da Silva
é um típico representante de nossa classe média; típico, inclusive,
na medida em que – transcendendo com sua ação a média coti-
diana de sua classe – encarna uma possibilidade máxima de ma-
nifestação contida na revolta individualista. Seu ódio à burguesia,

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à indignidade e à corrupção moral não o conduz a uma atitude


verdadeiramente revolucionária, mas à revolta vazia e à frustração
agressiva. A condição de revolucionário – de efetivo transformador
da realidade e, como tal, de homem verdadeiramente livre – é
própria dos que, transcendendo a solidão e o individualismo,
colocam-se do ângulo de uma comunidade revolucionária, de
uma consciência-práxis de classe, já que só um sujeito-totalidade
pode penetrar e transformar a totalidade do real: só enquanto
participante de uma comunidade é que o homem pode se realizar
integralmente, abrindo livre curso à manifestação da integralidade
de suas possibilidades. Como Madalena e Paulo Honório, ainda
que por razões diversas, Luís da Silva permanece solitário – e a
solidão, determinando a radical impotência, equivale a uma “da-
nação”, a um inapelável fracasso.
Como Caetés e São Bernardo, também Angústia é um romance
narrado na primeira pessoa. Esta aparente identidade, porém, não
nos deve fazer perder de vista as radicais diversidades. Em Caetés, a
narração na primeira pessoa tem a única finalidade de destacar um
personagem, fazendo dele o tipo central; como vimos, trata-se de
um processo de composição inteiramente arbitrário e inorgânico.
Em São Bernardo, jamais o narrador perde a objetividade, apesar
de tratar de sua própria vida: o fato de a narração ocorrer após o
desenrolar dos acontecimentos garante ao narrador a onisciência
épica necessária ao processo de hierarquização e seleção da realida-
de, isto é, à objetividade estrutural do romance. Por outro lado, o
duplo tempo – o da ocorrência dos eventos e o da narração – tem
por finalidade não só garantir esta “distância” do narrador diante
dos fatos, como também ressaltar a patética “conversão” final de
Paulo Honório. Trata-se, portanto, de dois romances tecnicamente
não problemáticos: um ligado às técnicas específicas do naturalis-
mo, outro às do romance realista tradicional.
Angústia é um caso inteiramente diverso: aqui, o monólogo
interior (em sua forma radical da stream of consciousness) substitui
frequentemente, como técnica narrativa, a narração épica tradi-
cional; ademais, o emprego de um tríplice tempo – o da narração

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do presente, o da recordação da infância e do passado e o dos


devaneios subjetivos, o tempo subjetivo interior – introduz-nos
em um fantástico universo de fragmentação e estilhaçamento. A
substituição do tempo real pelo tempo subjetivo é um processo já
antigo no romance, sendo uma das características de muitas narra-
tivas de “vanguarda”. A partir do momento em que, colocando-se
passivamente em face da alienação do indivíduo com relação ao
mundo histórico (alienação que é o nível imediato da realidade no
capitalismo), alguns romances de “vanguarda” transformam a sub-
jetividade individual fetichizada na única matéria de suas análises,
desaparece também – ao lado do mundo e da realidade – o tempo
histórico objetivo no qual se inserem as ações humanas, tempo do
qual o tempo subjetivo é apenas um momento subordinado. Por
isso, a fragmentação e o estilhaçamento – que são apenas a expressão
de um ponto de vista subjetivo sobre o real – tornam-se a própria
realidade: a restrição do indivíduo à sua estreita subjetividade não
é apenas o tema central, mas o princípio de composição estrutural,
a visão artística e ideológica do mundo. Naturalmente, o resul-
tado de tal procedimento não pode deixar de ser a dissolução da
objetividade épica, da relação orgânica entre a ação do sujeito e a
“totalidade dos objetos” do mundo exterior histórico; como con-
sequência, temos a liricização do gênero romanesco e a dissolução
daquela forma que permite o realismo verdadeiro e profundo. A
arte se confunde então com o depoimento pessoal.
Não é isso o que ocorre em Graciliano. Tal como seu grande
contemporâneo, Thomas Mann, ele não confunde as técnicas de
“vanguarda” – o monólogo interior e a fragmentação do tempo
– nem com o conteúdo nem com a forma estrutural. A estrutura
formal de Angústia se funda sobre a dialética do herói (problemá-
tico) e do mundo (alienado); e isto, em primeira instância, porque
a solidão dos seus personagens não é mais do que uma modalidade
possível de sua integração no social. Por isso, nesse romance, as
técnicas de “vanguarda” são englobadas pela narrativa épica tra-
dicional, que representa as ações humanas como uma dialética de
sujeito e de objeto, de consciência e de realidade.

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Cultura e sociedade no Brasil 173

Graciliano relaciona com a realidade – dando primazia a esta


– todas as fantasias imaginárias e as evasões subjetivas do tempo
interior de Luís da Silva. As fantasias imaginárias decorrem da
aspiração, objetivamente explicada, de transcender – ainda que
apenas subjetivamente – os limites de sua vida mesquinha e mi-
serável: “Esse passatempo idiota dá-me uma espécie de anestesia:
esqueço as humilhações e as dívidas, deixo de pensar”. Por outro
lado, elas sofrem o crivo do confronto com a realidade, o que
mostra a sua falsidade e inconsistência (que se recorde o próprio
assassinato e sua inutilidade): “Quando a realidade me entra pelos
olhos, o meu pequeno mundo desaba”. Os recuos no tempo, a
narração interpolada da infância e do passado do personagem,
têm como finalidade a ampliação da objetividade épica, isto é,
o fornecimento da pré-história do personagem, das razões e dos
condicionamentos de algumas de suas ações atuais. Por exemplo:
“Sempre brinquei só. Por isso cresci assim, besta e mofino”. Além
disso, tais recuos se fundamentam também no desejo de evasão do
presente, que é uma das componentes psíquicas mais profundas
de Luís da Silva (sendo, por isso, um dos meios usados para a sua
caracterização). Também aqui, porém, Graciliano está consciente
do caráter puramente subjetivo e abstrato dessa evasão, da sua
impossibilidade de modificar a realidade presente:
Tenho me esforçado por tornar-me criança – e em consequência misturo coisas
atuais a coisas antigas (…). Procuro um refúgio no passado. Mas não posso
me esconder inteiramente nele. Não sou o que era naquele tempo. Falta-me
tranquilidade, falta-me inocência, estou feito um molambo que a cidade puiu
demais e sujou.102
Finalmente, o monólogo interior jamais é aqui um fetiche,
um objetivo em si: Graciliano não visa à mera reprodução na-
turalista de uma associação de ideias, dos mecanismos psíquicos
de um homem ontologicamente isolado, sem nenhuma relação
orgânica com a realidade objetiva; nem busca tampouco, através
do monólogo interior, a “revelação” alegórica de abstrações vazias
102
Ibid., respectivamente p. 141, 87, 107, 14-18.

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e pseudoprofundas. Ao contrário, Graciliano busca precisamente,


com o auxílio da stream of consciousness, tornar imediatamente
evidente uma realidade concreta e essencial: o desequilíbrio e a
dissolução psíquica do personagem, reproduzindo com maior
intensidade dramática o seu desespero e a sua derrota socialmente
condicionados. Trata-se, portanto, do emprego de uma técnica vi-
sando a acentuar a realidade para melhor narrá-la (para reproduzi-
la artisticamente), e não da substituição da realidade essencial
pela reprodução mecânica de associações mentais fetichizadas
ou por alegorias metafísicas; em suma, em Angústia, o monólogo
interior é sempre um instrumento do realismo, nunca um fim em
si. Por outro lado, nos momentos em que se acentua a dissolu-
ção interior do personagem-narrador, Graciliano – para evitar a
perda da objetividade – recorre à ironia: em face de suas próprias
fantasias e aspirações, Luís da Silva mantém quase sempre uma
atitude irônica, autoirônica, que lhe garante, enquanto narrador,
o necessário “distanciamento”.
Assim, através de técnicas vanguardistas, Graciliano constrói
um dos romances mais realistas da literatura brasileira, cuja estru-
tura muito se aproxima daquela dos romances dostoiesvskianos
de herói individualista (como Crime e castigo, por exemplo). Em
vez da mera descrição paranaturalista ou alegórica da solidão e do
desespero de homens abstratos, como ocorre em grande parte dos
romances da “vanguarda” subjetivista, Graciliano nos apresenta
uma interpretação poética, que implica a representação da gênese
social e das consequências humanas, da solidão e do desespero de
um homem concreto, típico: um pequeno-burguês brasileiro.

5
São Bernardo e Angústia, que viemos de analisar, têm como
conteúdo temático a contradição, que se estabelecia em nosso
país, entre uma sociedade semicolonial em decadência e o desen-
volvimento de elementos capitalistas; também estes elementos
capitalistas – por força da especificidade de nossa formação histó-
rica e da natureza geral do próprio capitalismo – revelavam desde

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logo a sua interior ambiguidade e contraditoriedade. Já observa-


mos, na análise de São Bernardo, como esta complexa estrutura
dialética da realidade determinou, igualmente, o nascimento de
uma complexa estrutura romanesca, não obstante a identidade
fundamental (na diversidade) entre ela e a do romance realista
tradicional. Em Vidas Secas, seu último romance, Graciliano nos
apresenta um setor da realidade brasileira que ainda não fora (ou
o fora apenas em proporções mínimas) penetrado pelos elementos
capitalistas em sua forma moderna: a realidade agropastoril da
região nordestina assolada pelas secas. Em São Bernardo, a fazen-
da que serve de título ao romance é um empreendimento que a
ambição de Paulo Honório – através da introdução de inovações
tecnológicas – transforma num típico exemplo de penetração de
elementos capitalistas modernos no campo brasileiro; Vidas Secas,
ao contrário, nos apresenta um quadro evidente da decadência
de nossa estrutura agrária pré-capitalista, decadência que, nesse
caso, não foi seguida por nenhuma renovação capitalista (inclu-
sive no estrito sentido tecnológico). Daí o papel preponderante
da seca, o seu caráter de fatalidade trágica: os homens concretos
que formam a realidade econômica estão socialmente desapa-
relhados para enfrentá-la. A baixa rentabilidade econômica da
região é causa e efeito do desinteresse e do conservadorismo do
proprietário; as formas semisservis de remuneração do trabalho,
bem como, na maioria esmagadora dos casos, o fato de que o
trabalhador rural não dispõe da propriedade, fazem deste um
nômade, sempre obrigado a abandonar a terra no momento em
que a seca anuncia a destruição. Em suma, inexistem condições
sociais (e, consequentemente, tecnológicas) de resistir vitoriosa-
mente à seca. Essa decadência econômica, aliada à inexistência
de uma economia mercantil integrada e integradora, rarefaz ao
extremo a realidade social que nos é apresentada no romance: os
camponeses estão condenados a uma vida nômade e solitária, à
luta contra um mundo inóspito, cuja hostilidade aparentemente
se encarna no desencadeamento de forças naturais incontroláveis.
Como vemos, embora num universo social bastante diverso,

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176 Carlos Nelson Coutinho

ressurge aqui a problemática central de Graciliano: a solidão do


homem como determinante de sua impotência trágica em face dos
problemas que a sociedade lhe coloca, como obstáculo que se opõe
à realização humana e a uma vida autenticamente vivida.
O enredo de Vidas secas, correspondendo a esta realidade relati-
vamente simples e pouco densa, apresenta-se também ele simples:
em vez dos longos desdobramentos que caracterizam o romance
realista do período de formação e ascensão da burguesia, temos
aqui uma realidade quase linear, sem conflitos dramáticos intensos
e restrita a um curto período temporal na vida de uma família
de retirantes. Tangidos pela seca, Fabiano e os seus migram em
busca de uma região mais favorável; terminam por se fixar numa
fazenda abandonada, na qual Fabiano passa a trabalhar após entrar
em acordo com o patrão, sempre ausente e distante; com a volta
da seca, eles são novamente obrigados a abandonar a fazenda e
retomar a migração. O romance situa a ação entre essas duas secas,
isto é, no período do estabelecimento provisório de Fabiano. A
profundidade de Graciliano, entre outras coisas, revela-se no fato
de que – nesse curto período de tempo e nesse limitado espaço
– ele aflorou e reproduziu a totalidade dos problemas implícitos
no desdobramento da ação, sem necessidade de recorrer a largos
panoramas e ações paralelas, o que não corresponderia ao baixo
nível psicológico dos personagens nem à pouco densa realidade
na qual eles atuam. Temos assim, relacionados em uma estrutura
organicamente coerente, os vários problemas que generalizam e
tipificam o universo agrário brasileiro, representados em situações
e destinos humanos concretos: a exploração social, a solidão dos
personagens, a consciência contraditória (entre passividade e
revolta) do trabalhador rural brasileiro, a frustração de suas mais
ínfimas aspirações, as possibilidades (concretas e abstratas) de
transcender a situação de miséria etc.
Como dissemos acima, só aparentemente o nomadismo de
Fabiano decorre de um fenômeno natural, ou seja, da seca: ele se
liga, em primeira instância, ao fato de Fabiano não ser proprietá-
rio, o que o impede de vincular-se definitivamente à terra; e, em

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seguida, ao baixo nível tecnológico da exploração agropecuária, o


que torna os homens impotentes na luta contra os fatores naturais
(como a seca). Em suma: a problemática de Fabiano decorre dire-
tamente do caráter retrógrado e improdutivo da nossa estrutura
agrária, inteiramente inadequada para proporcionar um nível de
vida até mesmo medíocre aos trabalhadores rurais brasileiros.
Obstaculizando o avanço das forças produtivas e dispersando os
camponeses, o latifúndio – o monopólio da terra – torna-se a causa
da exploração e da miséria no campo brasileiro; é o latifúndio – e
não a seca, que só tem efeitos catastróficos por causa da estrutura
social de dominação da natureza, que tem no monopólio da terra a
sua peça central – que encarna o “mundo convencional e vazio” que
impede Fabiano de levar uma vida autêntica e humana. Solitário,
consequentemente impotente, Fabiano é presa fácil da exploração
e do embuste, impossibilitado de reagir não só às trapaças de seu
patrão (nas quais a exploração se faz evidente e imediata), como
às violências do “soldado amarelo”, que representa o governo que
garante e protege a dominação latifundiária.
Por isso, Fabiano é obrigado a aceitar e transigir com as condi-
ções adversas que o mundo lhe impõe. Não pode comprar a cama
de lastro de couro, única aspiração de Sinha Vitória; não pode
reagir à cobrança de impostos, manifestação imediata da ação de
um governo do qual não participa e que lhe aparece como um
fetiche exterior e distante; não pode se livrar da absurda prisão,
daquela kafkiana irrupção em sua vida de um ordenamento social
que ele não tem condições de compreender, já que não contribuiu
para criá-lo. É sua solidão radical, sua marginalização involuntária
da comunidade humana, sua falta de integração com seus seme-
lhantes, que o tornam impotente e passivo, obrigado a aceitar e a
capitular em face das regras de um jogo que lhe parece absurdo,
regras que ele não discutiu, de cuja confecção não participou e
cujos autores ignora. Desligadas do “grande mundo” da história,
da participação criadora na vida pública, as camadas trabalhadoras
do campo brasileiro – da qual Fabiano é um típico representan-
te – estão igualmente condenadas (socialmente condenadas) ao

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restrito “pequeno mundo” da solidão, o qual, neste caso, não


possui nem mesmo os “refinados atrativos” do seu equivalente
nas classes dirigentes.
Contudo, a passividade se combina em Fabiano com um
profundo sentimento de revolta. Este sentimento de insatisfação
revela-se frequentemente: em sua contraditória atitude em face do
“soldado amarelo” (e do governo que ele representa), no seu difícil
desafio lançado a todos quando está bêbado nas festas da cidade,
no seu desejo irrealizado de abandonar aquela vida de miséria e
humilhações pelo cangaço etc. Todas essas atitudes revelam, cer-
tamente, possibilidades de reação ao mundo hostil e desumano;
contudo, ainda que Fabiano não execute nenhuma delas (nem
mate o soldado, nem brigue com todos, nem se torne cangaceiro),
sabemos – como também Graciliano o sabia – que elas não passam
de possibilidades abstratas, formuladas a partir de um projeto pu-
ramente individual e que, por isso, são impotentes para modificar
a realidade. A execução de qualquer delas revelaria, mais cedo ou
mais tarde, sua abstratividade, contribuindo assim para tornar
definitivamente insolúvel a problemática do nosso personagem.
Apesar da passividade exterior (da não execução de seus “pla-
nos”), em nenhum momento Fabiano desiste de lutar, de resistir
ao mundo hostil, de buscar uma situação que o arranque da
condição de animal e o conduza a um mínimo de dignidade que
torne possível uma vida realmente humana. O conteúdo de seu
inconformismo – a força “demoníaca” que o impele para a frente,
mantendo sempre viva a esperança – não é a complexa busca de
valores autênticos (individualistas ou comunitários) que caracteriza
o romance do capitalismo evoluído: é a manifestação imediata
do que há de mais elementar no homem, o seu desejo de viver. E
é este simples desejo de viver, de autoconservar-se, que o opõe
decisivamente a um mundo inóspito, a um sistema de morte e
destruição, pois a acomodação ao sistema do latifúndio significa,
para o trabalhador rural brasileiro, uma morte lenta e inexorável. A
passividade absoluta, a adequação àquele mundo vazio e estático, é
uma opção – consciente ou não – pela autodestruição: para viver,

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para garantir as condições mínimas que possibilitem a manuten-


ção da vida humana, é preciso se opor à realidade e buscar uma
via que aponte para fora daquele universo de miséria e de morte.
Portanto, o valor buscado por Fabiano, que o leva a contrapor-se
a um mundo alienado – busca e contraposição que fazem dele, em
sentido bastante lato, um “herói problemático” –, é simplesmente
a vida como realidade imediata. Desligado da classe social à qual
pertence, Fabiano não pode compreender claramente os meios
pelos quais é possível a realização do seu desejo de viver. Por isso,
este desejo se apresenta nele como uma aspiração problemática,
como uma busca solitária.
Não levando à prática nenhuma das possibilidades abstratas de
reação acima expostas, Fabiano permanece disponível para se en-
gajar na única possibilidade de resolução dos seus problemas, que,
no universo do romance, apresenta-se como concreta: a integração
na economia capitalista, ou pelo acesso à pequena propriedade
da terra, ou pela sua transformação em operário urbano. Este
é o conteúdo das reflexões de Fabiano, quando de sua segunda
“retirada”: “Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi
esboçando (...). Cultivariam um pedaço de terra. Mudar-se-iam
depois para uma cidade, e os meninos frequentariam escolas,
seriam diferentes deles”.103
Naturalmente, a longo prazo, essa integração no capitalismo
seria a fonte de novos problemas, que Fabiano ainda não pode
perceber. Contudo, dentro do universo do romance, isto é, em face
do valor buscado – a vida, pura e simplesmente –, essa perspectiva
representa uma possibilidade concreta de superação dos problemas
essenciais que são aí aflorados (ainda que os substitua por outros),
já que pode criar as condições que permitam a Fabiano ou aos seus
descendentes manterem uma vida minimamente digna. Deve-se
frisar que essa perspectiva não é justa apenas do ponto de vista da
estrutura formal de Vidas Secas, da coerência interna da obra; ela
representa o próprio movimento essencial da realidade brasileira,
103
G. Ramos, Vidas secas, São Paulo, Martins, 1963, p. 169.

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na medida em que o desenvolvimento capitalista pode – o que não


significa necessariamente que o fará – elevar o nível de vida dos
trabalhadores rurais levando-os a uma condição mínima de sub-
sistência de que eles hoje não desfrutam. A forma, em Graciliano,
é uma maneira justa de representar artisticamente o movimento
e a estrutura da realidade.
Assim, na obra do romancista alagoano, Fabiano é o único
“herói positivo”, não no sentido de que se realize humanamente,
triunfando na luta contra o mundo hostil aos seus projetos (como
o Tom Jones de Fielding, por exemplo); mas no sentido de que é o
único que tem a possibilidade concreta de fazê-lo, ou seja, o único
cuja solidão – mesmo no interior de sua situação concreta presente
– não é necessariamente trágica, já que pode ser superada. E essa
possibilidade decorre, naturalmente, não de Fabiano enquanto in-
divíduo, mas da classe social à qual pertence. Pois todo indivíduo,
enquanto indivíduo, possui uma ampla margem de liberdade para
adotar este ou aquele ponto de vista de classe. Ao contrário do
que pensa o mecanicismo – ou, em literatura, o naturalismo –, a
participação do indivíduo em uma determinada classe social não
é um fato mecânico, estabelecido de uma vez por todas. Esta par-
ticipação revela-se, precisamente, nos momentos decisivos da vida
de um homem: na atitude e na maneira de reagir em face de um
problema vital colocado pela realidade, atitude e reação que podem
diferir das assumidas normalmente na vida cotidiana. Dessa forma,
Paulo Honório, Madalena e Luís da Silva, enquanto indivíduos,
não são aprioristicamente condenados à tragédia; sua tragicidade
se torna necessária no momento em que, diante de determinado
problema, eles assumem a posição de determinada classe – e esta
classe, enquanto classe, não comporta nenhuma perspectiva ou
possibilidade (concreta) de solução para o problema em questão.
Paulo Honório não consegue superar o seu egoísmo burguês, Ma-
dalena permanece em seu radicalismo solitário pequeno-burguês
e Luís da Silva não transcende a revolta marginal e inconsequente
que é a única que o seu isolamento igualmente pequeno-burguês
permite: daí a tragicidade de suas vidas.

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Cultura e sociedade no Brasil 181

Fabiano, tomado isoladamente, individualmente, pode por


certo fracassar, não conseguindo resistir à nova seca, ou jamais
se tornar um pequeno proprietário ou um trabalhador urbano.
Mas sua classe conseguirá – tem a possibilidade concreta de fazê-
lo – destruir o sistema social que a oprime, atingindo um nível de
vida com condições mínimas de dignidade. Na medida em que
o verdadeiro tipo realista é uma fusão dialética (não mecânica)
de indivíduo e de classe, de singular e de universal, Fabiano –
mesmo enquanto indivíduo – possui a possibilidade de realizar
objetivamente os valores mínimos a que se propõe. Por isso, em
Vidas secas, seu futuro é um futuro aberto, contendo a possibili-
dade da realização ou do fracasso. E essa abertura para o futuro,
ao contrário da necessária tragicidade de Paulo Honório e Luís
da Silva, é dada – em ambos os casos – pela própria realidade
brasileira: enquanto a burguesia latifundiária e a classe média
tradicional não podem transcender, enquanto classes, o “pequeno
mundo” da miséria brasileira104 – sendo necessariamente trágicas
ou grotescas em sua tentativa de fazê-lo –, a camada trabalhadora
rural é uma classe potencialmente revolucionária, que participa do
conjunto de classes sociais que tem real interesse na destruição da
miséria brasileira e na criação de um “grande mundo” democrático.
Naturalmente, Fabiano – e mesmo toda a classe a que pertence
– podem fracassar em sua busca de realização humana, tendo as
suas (ainda confusas) esperanças convertidas em trágicas ilusões
(como tem sido o caso até nossos dias); entretanto, há a possibi-
lidade concreta de que isto não ocorra. Tal possibilidade, assim,
é suficiente para permitir a Graciliano esboçar uma perspectiva
otimista em seu último romance, sem com isto sair dos amplos
limites do verdadeiro realismo.
Trata-se de um caso raro, não muito comum na história do
romance, essa criação de “heróis positivos”, isto é, de heróis que
realizem os valores implícitos na sua ação, triunfando do mundo
hostil, ou que, simplesmente, apresentem uma possibilidade
104
Uso o termo no sentido em que Heine usou “miséria alemã”.

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182 Carlos Nelson Coutinho

concreta de fazê-lo, não tendo a sua “busca” um caráter necessa-


riamente trágico. Este foi o caso, por exemplo, do grande romance
inglês do século 18 (que se pense em Tom Jones, de Fielding, ou
em Moll Flanders, de Defoe). Tratava-se de uma época de ascensão
da burguesia, de rompimento das limitações feudais, sendo a vi-
tória do herói a expressão da vitória dos valores individualistas da
burguesia sobre os valores estratificados do feudalismo. Quando a
sociedade burguesa se solidificou, revelando sua própria limitação
e vacuidade, essa vitória do indivíduo contra o mundo, contra as
formas vigentes da alienação, tornou-se cada vez mais problemá-
tica: o individualismo se faz trágico e revela o seu caráter ilusório
(que se pense em Balzac, Stendhal ou Flaubert). Graciliano, em
Vidas secas, reencontra elementos da forma estrutural do roman-
ce inglês, naturalmente com diversidades gritantes e profundas:
aqui não se trata, certamente, da concretização de uma vitória,
como em Fielding e Defoe, mas de sua possibilidade (como é o
caso, ademais, de grande parte dos romances socialistas, em que
o combatente pelo novo mundo – mesmo que parcialmente der-
rotado – tem a possibilidade concreta de triunfo futuro: que se
pense, por exemplo, na heroína de A mãe, de Gorki); e não se trata
também do capitalismo como realidade efetiva, triunfante – como
no romance inglês –, mas sim como horizonte, como perspectiva
de solução (para insistir no paralelo: como o socialismo aparece
em alguns romances socialistas).
Essa estrutura e esse universo determinam, em Vidas secas,
novas diversidades técnicas, estilísticas: a concentração novelística
e dramática, própria dos romances em que fracassam as tentativas
do herói (Balzac, Stendhal, o Graciliano de São Bernardo e An-
gústia), cede lugar a uma composição aberta, relativamente linear,
em que as partes possuem uma maior autonomia relativa, embora
se mantenha a organicidade (como é o caso em Tom Jones e em
Moll Flanders). A diminuição da dramaticidade – aliada à solidão
dos personagens, à sua dificuldade de comunicação – determina
de imediato, em Vidas secas, a supressão quase total do diálogo.
A possível “positividade” do herói torna esta composição aberta

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mais adequada, já que mais próxima do pathos positivo da epo-


peia (na qual a “positividade” do herói é absoluta). Além disso,
para que o personagem contivesse em si as várias possibilidades,
para que fosse um personagem “aberto” (de positividade possível),
Graciliano aproxima Fabiano – mais do qualquer outro de seus
personagens realistas – do universal, da “média”. Fabiano não
realiza nenhuma das possibilidades extremas contidas em sua
classe (por exemplo, a revolta consciente, a adesão ao cangaço, ao
beatismo etc.); mas, com isso, não perde a sua singularidade, a
sua individualidade, ainda que não seja – como Paulo Honório,
Madalena e Luís da Silva – um tipo excepcional. Mas ele tam-
pouco é uma encarnação alegórica de princípios abstratos, como
o são, por exemplo, os “camponeses” do romance Corpo vivo, de
Adonias Filho. Ao lado da exigência formal, estrutural, a própria
realidade permitia essa caracterização: ela se baseia, sobretudo, na
baixa complexidade da psicologia de nosso trabalhador rural, o
que torna difícil e problemática, ainda que não impossível (como
o demonstram alguns romances de José Lins do Rego), uma ca-
racterização mais singularizada e individualizada. Mesmo como
tipo médio – e, no caso, talvez precisamente por isto –, Fabiano
é um tipo autêntico e realista, um tipo particular, ainda que mais
voltado para a universalidade do que para a singularidade (que se
recorde a afirmação de Lukács, segundo a qual a particularidade
– a tipicidade – é um ponto cuja fixação varia no interior de um
campo, o qual tem por limites extremos a universalidade abstrata
e a singularidade hipostasiada).105

6
Trabalhando sobre uma realidade social e humana extrema-
mente complexa – que comporta em si, em situação de simultânea
contradição e integração, sistemas sociais diversos e em diversas fases
de evolução –, Graciliano recorre, em sua tentativa de captá-la artis-

105
G. Lukács, Introdução a uma estética marxista, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1970, p. 242 e ss.

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184 Carlos Nelson Coutinho

ticamente, a diversas formas de estrutura romanesca. Ele recria, ao


reproduzir a totalidade brasileira em seus vários níveis de evolução,
algumas das formas básicas que a estrutura romanesca assumiu em
seu processo histórico-sistemático de desenvolvimento. A necessária
tragédia do individualismo burguês determina, em São Bernardo e
em Angústia, a recriação da estrutura própria de Balzac e Stendhal,
com o “herói problemático” que busca a realização humana a partir
da sua individualidade, sendo derrotado no combate com o mundo
alienado e prosaico, mas tomando consciência, no final, da inutili-
dade de seus esforços. Essa mesma problemática, intensificada ao
ponto da dissolução interior do indivíduo, determina em Angústia
a absorção de recursos técnicos desenvolvidos pela vanguarda (do
mesmo modo como, por exemplo, nos últimos romances de Tho-
mas Mann). A crise do individualismo, a luta por encontrar um
sentido transindividual para a vida – expressão de uma época em
que o indivíduo, enquanto indivíduo, já não é mais um valor em
si –, encarna-se no tipo de “herói problemático” representado por
Madalena, o qual busca um valor comunitário, mas que, dada a
inexistência objetiva da comunidade e o caráter solitário da busca,
é impotente em face da realidade e fracassa igualmente (este tipo de
herói surge, no romance moderno, com O Idiota de Dostoievski).
A complexa dialética que relaciona, em São Bernardo, os dois tipos
de “herói problemático” fundamenta a criação de uma estrutura
romanesca original, que expressa a especificidade de nossa contra-
ditória realidade (uma originalidade similar pode ser encontrada
em Os irmãos Karamazov, na relação entre os dois tipos de Ivã e
de Aliocha.) Finalmente, com Vidas secas, temos o esboço de um
“herói positivo” – cuja problematicidade pode se tornar acidental,
deixando de ser necessária –, com a consequente criação de uma
estrutura aberta, mais próxima da composição livre da épica clássica
do que da concentração novelística típica do romance do século 19
(este é o caso, também, do romance picaresco do século 18 e, em
circunstâncias diversas, de alguns romances socialistas).
Em todos esses casos, Graciliano procurou transcrever artisti-
camente aspectos da nossa realidade, daquela complexa realidade

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na qual, em alguns casos, o capitalismo já surge como limitação e


como fator de intensificação da alienação (determinando assim,
ainda que abstratamente, uma aspiração e uma tendência para o
socialismo); e, em outros, como fator de progresso e de liberta-
ção em face da velha sociedade semicolonial. O fato de que esta
procura tenha sido em Graciliano coroada de êxito – graças ao
reencontro da estrutura formal dos grandes clássicos, não como
forma vazia e mecanicamente aplicada, mas como forma concreta
de um conteúdo concreto, como reflexo artístico da realidade bra-
sileira – faz dele, ao mesmo tempo, um clássico e um realista, o
construtor de uma obra na qual os princípios artísticos universais
e a reprodução do hic et nunc não estão em contradição, mas em
orgânica e viva unidade.
A relação entre a estrutura romanesca e a realidade, contudo,
não é uma relação direta, fundada apenas sobre uma homologia
acidental, mas uma relação dialética mediatizada por uma visão
do mundo. Esta visão não é jamais, no caso da verdadeira arte,
uma visão puramente individual: o verdadeiro sujeito da criação
artística (ou cultural em sentido amplo) é o gênero humano clas-
sística e historicamente determinado, isto é, um sujeito-totalidade
cujo ponto de vista permita uma visão totalizante das relações
humanas globais, garantindo assim a universalidade necessária
à criação da grande arte. O conteúdo mais geral da visão do
mundo que se expressa de modo sensível (não conceitual) nas
obras de arte realistas é o humanismo: a defesa da humanitas – da
integridade e da unidade do homem –– contra a alienação e a
mutilação do indivíduo e da comunidade autêntica. No caso
concreto do romance, este humanismo expressa-se sobretudo,
salvo raras exceções, em sua forma negativa: na crítica radical dos
fundamentos de um mundo alienado, que obstaculiza ou impede
as melhores aspirações do homem, condenando-o à solidão e à
impotência trágica. Ao lado desse aspecto negativo e crítico, en-
tretanto, a defesa da humanitas expressa-se também numa forma
parcialmente positiva na criação do “herói problemático”, isto é,
na representação da práxis criadora e prometeica do homem que

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não se conforma passivamente à alienação e luta por encontrar


um sentido autêntico para a vida, mesmo que, em muitos casos,
seja esta luta igualmente alienada – porque fundada em seus
próprios recursos individuais – e, por isso, impotente e trágica.
Em suma, as lutas do herói problemático, sua busca desesperada
e sua impotente oposição à alienação – desespero e impotência
decorrentes sobretudo de sua solidão –, constituem um violento
protesto contra a alienação capitalista e uma afirmação, ainda que
por vezes igualmente alienada e abstrata, das profundas aspirações
do homem a uma vida autêntica e comunitária.
Entendido em sua generalidade, é este humanismo o fun-
damento ideológico da estrutura romanesca. Entretanto, com a
evolução da vida social, tal humanismo adquire formas concretas
e diversas, em relação com a classe social e com a época histórica
que constitui sua infraestrutura. Em outras palavras: o humanismo
implícito na forma romanesca como gênero literário está sujeito
a variações históricas que determinam dialeticamente as variações
no interior da própria estrutura romanesca, ou seja, as diversidades
históricas tanto da natureza do herói quanto da sua relação com
o mundo e com os valores implícitos em sua ação. Desde logo,
devemos advertir que a visão do mundo humanista quase nunca é
a expressão da consciência real de uma classe, mas de sua consciên­
cia possível106; isto é, o escritor (ou o artista, ou o pensador) torna
coerente e orgânica, levando às últimas consequências, a visão do
mundo apenas esboçada ou intuída – e sempre heterogeneamente,
em composições não orgânicas com outras visões do mundo – pe-
las classes sociais das quais são os representantes ideológicos. Daí
porque o romance realista burguês, ou crítico, é o oposto radical da
visão do mundo real da burguesia dominante; ele se fundamenta
ideologicamente no humanismo burguês clássico, que é o máximo
de consciência possível do gênero humano em dada etapa de sua
evolução histórica. Da mesma forma, o romance socialista – que

106
Para a distinção entre consciência de classe real e possível, cf. L. Goldmann, Le dieu caché,
cit., p. 97-114.

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se baseia no humanismo militante do proletariado – fundamenta-


se, em muitos casos, na consciência possível da classe operária,
sempre que esta, por condições históricas determinadas, aliena-se
à ideologia burguesa vulgar e trai o humanismo militante que é a
sua verdadeira expressão ideológica.
Voltemos a Graciliano. Enquanto sua visão do mundo se ex-
pressava em um pessimismo impotente107, que negava a ação do
homem sobre o “meio ambiente”, ele revelou-se incapaz de criar
uma verdadeira estrutura romanesca realista: daí o naturalismo,
e a consequente dissolução da forma, que vemos em Caetés. Sua
verdadeira criação romanesca corresponde ao período no qual
Graciliano assimilou e defendeu os valores do humanismo. Mas
essa defesa só se tornou possível porque Graciliano se colocou
do ponto de vista de um grupo social que criticava a sociedade,
que expressava em sua práxis uma potencial subversão da ordem
vigente, do mundo alienado e do cárcere da solidão. Ao que nos
parece, o humanismo de Graciliano, sua visão do mundo, são o
máximo de consciência possível do povo brasileiro, isto é, do conjunto
de classes sociais que se opõem à realidade semicolonial e que lutam
pelo desenvolvimento independente, nacional e democrático de
nosso país, não hesitando, nesta luta, em formular uma perspec-
tiva socialista, ainda que abstrata (tal como as próprias condições
permitiam). Acreditamos que só a adesão ao ponto de vista deste
conjunto de classes poderia permitir, a um escritor brasileiro da
década de 1930, a criação de uma estrutura romanesca realista.
A definição por esta ou aquela classe no interior dessa frente

107
De uma maneira errônea, a meu ver, dois inteligentes críticos de Graciliano Ramos
generalizaram esse pessimismo para toda a obra do romancista, transformando-o em sua
visão do mundo geral. Trata-se de Antonio Candido (“Ficção e confissão”, in: G. Ramos,
Caetés, São Paulo, Martins, 1961, p. 53) e Rolando Morel Pinto (Graciliano Ramos: autor
e ator, Assis, s. e., 1962, p. 25), que falam, respectivamente, em “pessimismo radical”
e em “ceticismo, pessimismo e negativismo”. Além disso, une esses dois críticos uma
acentuação exagerada do aspecto autobiográfico dos romances de Graciliano – o que, em
minha opinião, contribui pouco para a análise literária e sociológica de tais romances.
Não obstante, o belo ensaio de Cândido continua sendo uma importante contribuição
para o conhecimento da obra do romancista alagoano.

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188 Carlos Nelson Coutinho

única (equivalente brasileira do Terceiro Estado europeu) traria


consequências altamente problemáticas. A partir da consciência,
mesmo possível, do conjunto dos trabalhadores rurais ou da classe
média urbana, seria bastante difícil a criação de uma grande arte:
essas classes não possuíam um ponto de vista global, universal,
sobre a realidade brasileira, já que estavam interessadas apenas
em transformações parciais, em reformas (os trabalhadores rurais,
por exemplo, não tinham condições de formular claramente, pelo
menos de imediato, uma perspectiva socialista; os seus interesses
se confundiam com o acesso à pequena propriedade, com uma
reforma agrária capitalista). O proletariado, por sua vez, ainda era
entre nós uma classe majoritariamente desorganizada, impotente
e marginalizada; a adesão explícita aos seus pontos de vista – à
sua consciência possível – levaria quase necessariamente, no plano
da criação artística, a uma queda na utopia, à negação radical da
realidade e, consequentemente – como foi o caso dos nossos “rea-
listas socialistas”, como o primeiro Jorge Amado –, ao romantismo
“revolucionário”, ao antirrealismo. A adesão à burguesia, em seu
sentido estrito, determinaria limitações não menos evidentes, já
que a nossa burguesia jamais formulara – nem tinha condições
potenciais de fazê-lo – uma visão do mundo humanista própria,
rigorosamente independente tanto da ideologia do colonialismo
quanto do humanismo militante do proletariado. Graciliano
transcende o humanismo burguês possível à burguesia brasileira,
na medida em que rejeita qualquer compromisso com o mundo
decadente, com o colonialismo em crise, com o “pequeno mundo”
da solidão e do egoísmo, e em que aceita, ainda que abstratamente,
a perspectiva do socialismo; mas também não atinge, em sua obra
de ficção, a concreticidade do humanismo proletário, já que era
impossível, a partir de um ponto de vista inteiramente crítico do
capitalismo nascente, a formação de uma perspectiva globalizante
e a fidelidade ao real. Precisamente na medida em que se apoia
sobre um conjunto de classes realmente revolucionário – e que não
se isola da sociedade, não se marginaliza de uma práxis concreta,
mas tampouco concilia com a “miséria brasileira” –, Graciliano

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atinge uma perspectiva simultaneamente positiva e negativa, sem


a qual o romance realista é impossível. Pois é preciso criticar o
mundo em sua degradação, em sua vacuidade alienada; mas é
preciso reconhecer também que, apesar de tudo, ele é ainda su-
ficientemente positivo para permitir e condicionar o nascimento
de “heróis problemáticos”, isto é, para manter um mínimo de va-
lores que fundamentem o “inconformismo demoníaco” de alguns
indivíduos ou grupos.
Aliás, a nosso ver, não é Graciliano o primeiro pensador ou
escritor a fundar uma visão coerente sobre um conjunto de classes
(sendo esta visão coletiva diversa das visões particulares das classes
que compõem o conjunto). Este é o caso, mutatis mutandis, de
Rousseau e dos revolucionários jacobinos franceses. A ideologia
democrática de Rousseau era o máximo de consciência possível
de todo o povo, do Terceiro Estado que se opunha ao feudalismo
e ao filisteísmo, mas que já apontava também para uma crítica do
próprio capitalismo. A burguesia repudiou a ideologia democrá-
tica de Rousseau e de sua encarnação jacobina (que se pense na
reação termidoriana), enquanto o proletariado, em sua evolução,
superou-a dialeticamente (basta lembrar Babeuf e a Conjuração
dos Iguais). Disso resultou o trágico isolamento dos jacobinos em
1793, seu dilaceramento interior, a manifestação concreta da real
contraditoriedade que Rousseau e Robespierre ignoravam. Mas,
apesar desse fracasso prático-político, o democratismo igualitário
de Rousseau representou, em seu tempo, um dos pontos de vista
mais elevados e profundos que a humanidade havia alcançado, o
máximo de consciência possível no interior da sociedade europeia
de então. Como ideologia, como visão do mundo (e também como
fator de organização da vontade coletiva, como diria Gramsci),
apesar de seu caráter politicamente utópico, o igualitarismo re-
volucionário – a expressão politicamente mais radical do grande
humanismo clássico – cumpriu a sua missão histórica.
O mesmo pode ser dito da visão do mundo democrático-
humanista de Graciliano. Também a realidade brasileira, em sua
evolução, demonstrou a contraditoriedade implícita na aliança das

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forças anti-imperialistas e democráticas; nem por isto, contudo, o


ponto de vista do humanismo democrático popular deixou de ser
o mais adequado, em dado momento histórico, para a criação de
grandes obras realistas capazes de figurar a complexa e contraditória
sociedade brasileira. E cabe ainda observar que, não obstante esta
contraditoriedade, o humanismo de Graciliano abre-se para o
futuro e tem os elementos para superar a necessária ilusão sobre a
qual se assenta: como Rousseau, Graciliano não se recusa a criticar
violentamente o filisteísmo burguês, jamais confundindo o grande
humanismo com a defesa dos interesses particulares da burguesia;
como Thomas Mann, este lúcido humanista de nosso tempo,
Graciliano não se recusa a enxergar no socialismo o horizonte
no qual o humanismo burguês, conservando-se e superando-se,
desemboca necessariamente108.
E aqui se coloca um problema fundamental na análise da obra
de Graciliano: qual o lugar que ele ocupa na história da evolução
do realismo? É ele um realista crítico ou um realista socialista? A
distinção entre as duas formas de realismo não é, de modo algum,
um problema puramente estilístico, ou de tema, ou mesmo do
método: é um problema de estrutura. No caso do romance, a passa-
gem do realismo crítico ao realismo socialista tem como principal
característica a substituição do “herói problemático” individual
por um herói comunitário; ou seja, no realismo socialista, o “herói
problemático” que busca valores autênticos, entrando em choque
com o mundo vazio e alienado, não é mais um indivíduo solitá-
rio, mas uma comunidade problemática. Enquanto indivíduos, os

108
Esta mesma visão do mundo, ao que me parece, não encontrou uma expressão conceitual
(filosófica) tão coerente quanto a artística, devida a Graciliano. Isto foi tentado por alguns
teóricos do extinto Iseb, notadamente por Álvaro Vieira Pinto, em seu interessante livro
Consciência e realidade nacional, Rio de Janeiro, Iseb, 2 v., 1960. Contudo, escrevendo
quase 30 anos após Graciliano – num período no qual as contradições internas entre as
classes que compõem o povo brasileiro já haviam atingido um nível bem mais elevado
–, Vieira Pinto parece-me ter elaborado não uma “filosofia”, ou uma visão do mundo,
do povo brasileiro, mas uma expressão do máximo de consciência possível dos setores
mais radicais da burguesia. Por exemplo, a aceitação do socialismo é muito mais clara e
evidente em Graciliano romancista do que neste livro do digno professor Vieira Pinto.

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principais personagens do romance socialista não são mais pro-


blemáticos (a não ser na medida em que a sua problematicidade
decorra do caráter problemático da comunidade da qual partici-
pam): os seus valores são claros, definidos pela sua participação
na comunidade. Essa comunidade, entretanto, manifesta a sua
problematicidade em dois casos: 1) na medida em que não são
inequívocos, mas sim ambíguos e contraditórios, os meios pelos
quais os valores – a revolução socialista e o humanismo proletário –
devem ser conquistados na realidade (que se pense na comunidade
revolucionária dos comunistas chineses, em A condição humana de
Malraux: ela está dilacerada entre o espontaneísmo revolucionário
e a disciplina imposta pela Internacional); 2) na medida em que
a própria formação da comunidade é problemática, estando ela
permanentemente ameaçada de dissolução pelas forças do mundo
hostil (recorde-se a difícil formação da comunidade dos colcoses,
em Terras desbravadas de Cholokhov). Não importam aqui as
variações interiores da estrutura do romance socialista, mas sim
sua característica diferenciadora essencial: o caráter comunitário,
não meramente individual, do “herói problemático”109.
Inexiste na obra romanesca de Graciliano este tipo de “herói
problemático comunitário” (ou, sob outro ângulo, heróis indi-
viduais ligados organicamente a uma comunidade). É certo que
dois romances de Graciliano – São Bernardo e Angústia – possuem
109
Coube a Goldmann a descoberta e descrição dessa forma estrutural do romance, de-
senvolvendo e ampliando o esquema geral elaborado por Lukács em 1916, em A teoria
do romance. Em Goldmann, entretanto, tal estrutura é colocada como momento de
transição entre a dissolução do individualismo (Dostoievski, os primeiros romances de
Malraux) e o que ele chama de “romance não biográfico de sujeito inexistente” (que
iria de Kafka ao nouveau roman). Cf. L. Goldmann, Pour une sociologie du roman, cit.,
p. 33, 103 e n. e 193. A meu ver, esta estrutura – com suas diversas manifestações – é
o momento de transição entre as diversas modalidades de realismo crítico e a futura
epopeia socialista, isto é, o gênero épico que poderá substituir o romance e do qual o
Poema pedagógico de Anton Makarenko é o primeiro esboço. Admitida nossa hipótese,
tal momento ganha assim uma grande importância na tipologia histórico-sistemática
das formas romanescas, sendo a estrutura do que se tem chamado até aqui de “realismo
socialista” (cf. meu ensaio “Problemas da literatura soviética”, in: C. N. Coutinho,
Literatura e humanismo, cit., p. 227-253).

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uma clara, embora abstrata, perspectiva socialista: Madalena e


Moisés apontam para um universo novo, para uma comunidade
humana autêntica. Entretanto, em nenhum dos dois romances
esta perspectiva se concretiza ao ponto de determinar o inteiro
universo da obra, transformando o herói problemático em uma
comunidade e o socialismo em um valor concreto e efetivo. O
humanismo de Madalena é abstratamente socialista, contém o
socialismo como uma possibilidade, como uma tendência; mas
Madalena permanece uma heroína individual, buscando sua
realização humana no plano individual (ainda que aspirando à
fraternidade e à comunidade). Por isso, ela é uma solitária, uma
impotente, necessariamente condenada à tragédia. Também Moi-
sés, personagem secundário de Angústia, é um solitário, dissociado
da comunidade, antes ansiando pelo socialismo do que lutando
concretamente por ele. Graciliano, por certo, critica a sociedade
capitalista, denuncia a alienação que lhe é inerente, a brutal redu-
ção dos homens aos estreitos limites de sua vida privada, pondo a
nu suas insolúveis contradições (embora evitando, como realista,
qualquer anticapitalismo romântico, isto é, reconhecendo o que
o capitalismo representava de progressista na estagnada sociedade
brasileira). Essa crítica, no entanto, como é o caso nos realistas
críticos, permanece no interior do universo do capitalismo: a co-
munidade humana autêntica e o homem novo (literariamente: o
herói positivo) são possibilidades, aspirações subjetivas para onde se
dirigem alguns personagens; ainda não são, contudo, uma realidade
efetiva, o sujeito da ação romanesca, como é o caso nas verdadeiras
obras-primas do romance socialista (A mãe, Terras desbravadas, A
condição humana etc.).
Gostaríamos de sublinhar que este afastamento de Graciliano
do realismo socialista não implica, de nenhum modo, uma dimi-
nuição do seu valor artístico ou ideológico. Um escritor socialista
não é artisticamente superior, por uma necessidade a priori, a um
escritor realista crítico: cada um deles, quando verdadeiro artista,
reproduz a essência da realidade através de destinos e situações tí-
picas, criando a estrutura romanesca adequada a reproduzi-la. Seria

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Cultura e sociedade no Brasil 193

um absurdo colocar Cholokhov esteticamente acima de Thomas


Mann pela simples razão de ser o primeiro um comunista militante
e o segundo, um burguês humanista e consciente. O humanismo
marxista, naturalmente, fornece ao artista um ponto de vista mais
adequado sobre o real, possibilitando-lhe mais facilmente superar
a alienação e descobrir as relações humanas essenciais; mas isto
pode ocorrer, em determinadas condições históricas, também com
o humanismo crítico e democrático que se fundamenta em uma
concepção burguesa do mundo. Em suma, a evolução histórico-
sistemática da estrutura romanesca – do realismo crítico ao realis-
mo socialista – não implica uma correspondente evolução do valor
artístico, como pensam os marxistas vulgares: cada uma dessas
estruturas, idênticas na diversidade, representa a forma coerente e
orgânica de reproduzir artisticamente – através de uma visão do
mundo universal – um determinado e específico “estado geral do
mundo” (Hegel). Desta forma, é o universo da obra, sua coerência
interna fundada no reflexo da realidade essencial, e não a posição
ideológica do autor – a qual pode, ademais, estar em contradição
com a visão do mundo subjacente à obra –, é o universo imanente
da obra que define o seu valor artístico.
Mantendo-se no interior das estruturas “clássicas” do roman-
ce, centradas sobre o herói problemático individual, Graciliano é
um realista crítico, um dos maiores realistas críticos na literatura
brasileira. Seu otimismo problemático, que compreende a tragédia
como um dos seus momentos dialéticos, é a componente funda-
mental do seu humanismo, de sua visão do mundo literária; esta
visão, como vimos, é o máximo de consciência possível do povo
brasileiro em determinada época, isto é, do conjunto de classes que
– do proletariado aos setores mais radicais da burguesia, passando
pelo campesinato e pelas classes médias progressistas – esteve real-
mente interessado em destruir o velho Brasil, substituindo o cárcere
do “pequeno mundo” mesquinho por uma renovação democrática,
pelo “grande mundo” de uma comunidade autêntica. É essa visão
do mundo que permite a Graciliano representar os conflitos hu-
manos típicos de uma sociedade duplamente contraditória, já que

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dilacerada não só pela contradição entre o pré-capitalismo caduco


e o capitalismo moderno, como também pelas novas contradições
internas que o capitalismo traz necessariamente consigo.
Daí a atualidade permanente do velho Graça, a grandeza do
seu realismo vigoroso e profundo. O esmagamento dos melhores
anseios e das melhores esperanças, a derrota trágica dos que lutam
por superar um mundo vazio e alienado e por encontrar o caminho
da comunidade humana democrática são constantes na história
brasileira. Mas, por sobre as tragédias momentâneas e individuais
(embora socialmente necessárias), Graciliano Ramos ensina-nos a
ver a perspectiva de um futuro mais brilhante, ainda que sem nos
iludir sobre os obstáculos e as dificuldades na luta por alcançá-lo.
Analisando o Doktor Faustus de Thomas Mann, Lukács concluiu
com uma frase que se aplica, mutatis mutandis, ao nosso caso: “O
momento trágico permanece em toda a sua obscura tristeza: no
entanto, observado do ponto de vista do desenvolvimento da hu-
manidade, [o romance manniano] é tão pouco pessimista quanto
as grandes tragédias de Shakespeare”.110

(1965)

110
G. Lukács, “Thomas Mann e a tragédia da arte moderna”, in: Id., Ensaios sobre literatura,
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965, p. 249.

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O povo na literatura de Jorge Amado

O povo, em suas múltiplas estratificações, não tem sido objeto


privilegiado de representação na literatura brasileira; ainda mais
escassas têm sido as obras significativas em que o ponto de vista
utilizado na figuração estética seja o das camadas populares. Isso é
resultado, em grande parte, como observei em outros ensaios contidos
neste volume, do modo peculiar pelo qual o Brasil se modernizou,
pelo qual evoluiu para a consolidação de uma formação econômico-
social plenamente capitalista. Valendo-se de uma terminologia di-
versificada – “via prussiana”, “revolução passiva”, “contrarrevolução
permanente”, “modernização conservadora” –, parte significativa
do pensamento social brasileiro converge na fixação dos traços
decisivos desse processo de modernização: as reformas necessárias à
consolidação do capitalismo foram sempre feitas pelo alto, através
da conciliação entre diferentes setores das classes dominantes, com
a permanente tentativa de excluir o povo de qualquer participação
decisiva nas decisões que envolvam as grandes questões nacionais.
Boa parte da nossa literatura, consciente ou inconscientemente,
adequou-se a essa modalidade antidemocrática e antipopular de
modernização, afastando as camadas populares de qualquer pro-
tagonismo efetivo no universo de suas figurações estéticas. Disso
resultou uma produção literária que, malgrado o seu eventual valor
formal, era e é muitas vezes portadora de uma visão “intimista”,
marcada objetivamente por um viés elitista. Com as muitas exce-
ções que confirmam a regra (e não é casual que essas exceções, de
Manuel Antônio de Almeida a Castro Alves, de Machado de Assis
a Lima Barreto, sejam figuras de primeiro plano na literatura bra-
sileira do século 19 e início do século 20), contribuiu escassamente
para a formação de uma autêntica consciência nacional-popular
em nosso país. Na maior parte das vezes, ela não pretendia ser (e
não foi) mais do que o “sorriso da sociedade”, na emblemática
expressão com que Afrânio Peixoto definiu a literatura em geral.

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196 Carlos Nelson Coutinho

Apesar de seus inumeráveis méritos, não me parece que o mo-


vimento modernista de 1922 – pelo menos em sua formulação
inicial – tenha representado uma efetiva ruptura com essa tendência
“intimista” dominante. Essa ruptura me parece representada de modo
inequívoco, ao contrário, pelo romance nordestino dos anos de 1930,
o mais significativo movimento realista já ocorrido em nossa prosa de
ficção. Não é casual que o romance nordestino – entre cujas figuras
mais representativas encontra-se precisamente Jorge Amado – tenha
surgido logo após a Revolução de 1930, talvez a mais típica manifes-
tação daquela modalidade de transição excludente a que me referi.
O segredo da chamada Revolução de 1930 foi muito bem revelado
por Antônio Carlos, o líder mineiro da Aliança Liberal: “Façamos
a revolução antes que o povo a faça”. A nova ordem surgida após
1930 certamente introduziu muitas das reformas modernizadoras
necessárias à expansão e consolidação do capitalismo; mas o fez
sempre no quadro da conciliação com o atraso, sobretudo com o
latifúndio, conservando assim, e projetando para o futuro, os traços
profundamente autoritários de nossa formação social anterior. O
povo já se anunciava como um possível protagonista, como o indica
o temor de Antônio Carlos; mas, precisamente por isso, tratava-se
de reprimi-lo ou de tentar manipulá-lo, mantendo-o à margem da
nova ordem “moderna” que se pretendia construir.
O romance nordestino forneceu talvez o mais lúcido testemu-
nho dos impasses e das contradições geradas por esse processo de
“revolução pelo alto”. Ninguém expressou melhor do que Gra-
ciliano Ramos, por exemplo, os limites humanos da nova classe
dominante que emerge da modernização conservadora: a figura
de Paulo Honório, personagem central de São Bernardo, na qual
se mesclam os traços mais despóticos do antigo senhor de escravos
com a ambição e o egoísmo desmedidos da nova burguesia, é talvez
a máxima expressão, em nossa literatura, das consequências éticas
e humanas da modernização promovida sem (e contra) o povo.
Também na obra de outro notável romancista da época, José Lins
do Rego, podemos vivenciar as tragédias humanas que têm lugar
quando da substituição do engenho pela usina, ou, mais preci-

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Cultura e sociedade no Brasil 197

samente, dos velhos valores de um mundo rural em decadência


pelo universo das relações capitalistas, num processo em que o
novo conserva do velho precisamente os seus traços autoritários
mais perversos, eliminando, ao mesmo tempo, algumas formas
de solidariedade humana familiar que a velha ordem ainda com-
portava. Tanto Graciliano quanto José Lins, contudo, também
percebem e figuram em suas obras as potencialidades alternativas
que emergem das camadas populares, o que lhes permite – como
à generalidade do romance nordestino – não confundir a dura
crítica do capitalismo emergente com a apologia nostálgica da
velha ordem semicolonial em extinção.
É também no interior dessa problemática que se situa a produ-
ção literária inicial de Jorge Amado. Em seus primeiros romances,
particularmente nos dedicados à região cacaueira, ele nos mostra
– sempre através da construção de destinos humanos típicos, ou
seja, com meios especificamente literários – como a introdução
de valores capitalistas no universo social, através sobretudo do
acirramento do individualismo, faz-se em estreita combinação com
a permanência do ethos autoritário da velha ordem. Ao mesmo
tempo, e com uma intensidade que talvez não encontremos em
nenhum dos seus contemporâneos, Jorge Amado se empenha na
construção de tipos populares alternativos, que apontem para a
superação daquela peculiar modalidade de capitalismo que ia se
implantando em nosso país. Decerto, em não poucos casos – o
mais típico dos quais me parece ser a última parte de Capitães de
areia –, essa busca de tipos humanos alternativos ultrapassa os
amplos limites do realismo e assume traços utópico-românticos, re-
velando menos o movimento concreto do real do que as generosas
posições políticas do escritor baiano, o que se faz em detrimento
da lógica estética imanente do universo romanesco.
Não é aqui o local para discutir em profundidade até que
ponto a adesão de Jorge Amado aos paradigmas do chamado
“realismo socialista” prejudicou sua produção romanesca dessa
primeira fase, que se encerra com Os subterrâneos da liberdade. A
criação de tipos alternativos que apenas “ilustram” a ideologia do

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198 Carlos Nelson Coutinho

autor, sem brotarem da dinâmica do universo social esteticamente


reconstruído, não é uma característica apenas de Jorge Amado:
é um limite que ele partilha com outros importantes escritores
socialistas da época. Porém, mais importante do que registrar esse
limite – que, diga-se de passagem, nem sempre prejudica o realis-
mo presente em suas principais criações do período –, é constatar
como a força criativa de Jorge Amado muitas vezes triunfou sobre
suas equivocadas concepções estético-ideológicas. Referindo-se a
Balzac, Engels cunhou a noção de “vitória do realismo”, buscando
indicar como a fidelidade ao mundo esteticamente figurado leva
todo grande escritor realista a abandonar, em sua práxis criativa,
os próprios preconceitos ideológicos. A obra de Jorge Amado é
uma confirmação da fecundidade dessa noção engelsiana. Se a
“vitória do realismo” não consegue se afirmar em todos os seus
romances iniciais (ela me parece particularmente comprometida
na trilogia Os subterrâneos da liberdade), certamente está presente
em muitos deles, em particular em Terras do sem fim, sua melhor
produção dessa primeira fase.
A denúncia do stalinismo, em 1956, por ocasião do XX Congres-
so do Partido Comunista da União Soviética, levou Jorge Amado a
rever radicalmente suas concepções estéticas e ideológicas, levando-o
ao abandono dos dogmas do chamado “realismo socialista”. Ao mes-
mo tempo em que deixa de ser um “stalinista ferrenho”, para usar sua
própria autocaracterização, Amado conserva uma visão do mundo
humanista e socialista, enriquecendo-a agora com uma explícita
e consciente adesão ao valor universal da democracia. Com isso,
fortaleceu-se a sua capacidade de criar tipos populares autenticamente
realistas. As alternativas ao capitalismo autoritário, àquela ordem
cujos valores ele continua a denunciar, são cada vez mais buscadas
na própria vida cotidiana das camadas populares, nos múltiplos
recursos éticos e culturais de que o povo dispõe para enfrentar, com
astúcia e sagacidade, as situações de opressão e humilhação a que é
submetido pelos “de cima”, pelas classes dominantes.
Isso já se evidencia claramente em Gabriela, cravo e canela, o
primeiro romance dessa nova fase. Contra o pano de fundo de um

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Cultura e sociedade no Brasil 199

processo de transformação pelo alto (no qual os velhos oligarcas vão


progressivamente abandonando o Coronel Ramiro Bastos e sendo
cooptados pela proposta só aparentemernte “modernizadora” de
Mundinho Falcão, na tentativa de, mais uma vez, “fazer a revolução
antes que o povo a faça”), destaca-se a autenticidade e sagacidade de
Gabriela: ela sabe operar nos interstícios abertos pelo impacto dos
novos costumes sobre o falso moralismo vigente, utilizando a seu
favor todas as mudanças que iam sendo geradas, ainda que lenta e
contraditoriamente, pelo processo de modernização em curso. Sua
resistência é individual, como também é individual o combate de
Tereza Batista – essa versão brasileira da Moll Flanders de Daniel
Defoe – para afirmar sua personalidade num mundo marcado
pela hostilidade contra os que vêm “de baixo”, sobretudo quando
se trata de uma mulher. Mas é esta, precisamente, a resistência
possível num universo social condicionado pelo antidemocratis-
mo, pela modernização excludente. Muitas vezes essa simpatia
pelo povo leva Jorge Amado a aceitar acriticamente muitos dos
preconceitos vigentes nas camadas populares. Mas o fato é que,
indicando quase sempre com realismo a presença dessa resistência,
Amado nos mostra – através de recursos especificamente estéti-
cos – como o povo brasileiro não é a massa amorfa manipulável
imaginada pelos defensores elitistas das transformações pelo alto,
mas sim um corpo social vivo e complexo, que detém os recursos
para se tornar um dia o principal protagonista de nossa vida social,
política e cultural.
Um outro modo de resistência, dessa feita coletiva, é a afir-
mação pelo povo, aberta ou veladamente, de seus próprios valores
culturais e simbólicos contra a marginalização ou mesmo a repres-
são impostas pelas classes dominantes. Em Tenda dos milagres, que
o autor tem razão em considerar o seu melhor romance, Amado
nos mostra exemplarmente o modo pelo qual as nossas classes
dominantes conceberam e continuam a conceber a modernidade
no Brasil: “moderno” seria impor a cultura e os valores “brancos”,
“primeiro-mundistas”, extirpando – até mediante a repressão –
o “atraso” representado pelas pretensas “superstições” negras e

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200 Carlos Nelson Coutinho

populares. A luta pela legalização e reconhecimento dos cultos


afro-brasileiros, travada por Jorge Amado também quando par-
lamentar comunista, encontra em Tenda dos milagres a sua mais
bela expressão literária: pelo menos em dado momento de nossa
história, a conquista pelo povo do direito de expressar abertamente
seus valores, sua religião e sua cultura significava um modo de
romper com um aspecto importante da ideologia da modernização
conservadora. Com lucidez realista, Jorge Amado faz com que
Pedro Arcanjo – um dos seus personagens mais bem construídos
–, ao mesmo tempo em que luta tenazmente pela legalidade dos
cultos afro-brasileiros, suspenda o juízo quanto ao seu eventual
conteúdo de verdade. O que conta – é o que parece nos dizer
Jorge Amado – não é tanto discutir o conteúdo de verdade dessa
ou daquela expressão cultural (essa é uma discussão a ser travada,
democraticamente, com instrumentos especificamente culturais);
o fundamental é assegurar ao povo, à sua cultura e aos seus valores,
condições de alcançar um pleno protagonismo na construção da
sociedade brasileira e, em particular, de uma cultura autentica-
mente nacional, democrática e pluralista.
Tanto em sua vida quanto em sua obra, Jorge Amado sempre
reafirmou sua crença – para nos valermos de suas próprias pala-
vras, em Tereza Batista – “na vida e na invencibilidade do povo,
mesmo quando levado às últimas resistências, quando restam
apenas solidão e morte”. Isso faz dele – ao lado de Lima Barreto,
de Graciliano Ramos, de João Ubaldo Ribeiro e de alguns outros
– um dos maiores porta-vozes das camadas populares na literatura
brasileira. Essa crença nos inesgotáveis recursos de que dispõe o
povo (crença que se traduz literariamente em figuras como Ga-
briela, Quincas Berro d’Água, Pedro Arcanjo, Tereza Batista, Tieta
e tantas outras) faz de Jorge Amado uma das máximas expressões
artísticas da consciência nacional-popular em nosso país.

(1992)

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A imagem do Brasil na obra
de Caio Prado Júnior

1
Embora tenha consagrado a maior parte de sua obra historio-
gráfica à análise de nosso passado, é inegável que o objetivo central
da reflexão de Caio Prado Júnior – o ponto focal a partir do qual
se articula o conjunto de sua ampla investigação histórica – é a
compreensão do Brasil moderno. Não é casual que o título de sua
história geral de nosso país – prevista para quatro tomos, mas dos
quais foi escrito apenas o primeiro, dedicado à “Colônia” – seja
Formação do Brasil contemporâneo111. Pode-se traçar uma linha con-
tínua que liga entre si a identificação do “sentido da colonização”,
efetuada no brilhante capítulo com que se inicia essa sua obra-
prima sobre a colônia (de 1942), e as propostas para a “revolução
brasileira”, explicitadas em sua última produção significativa (de
1966). Mesmo quando trata do passado, Caio Prado tem sempre
em vista a investigação do presente como história, o que implica
para ele, enquanto marxista, uma análise dialética da gênese e das
perspectivas desse presente.
Ora, se esse movimento dialético é o núcleo de sua reflexão
historiográfica, isso indica que nela estão contidos, ainda que só
implicitamente, conceitos de “transição” ou de “modernização”. Se
ele quer pensar o presente como história, tem de responder neces-
sariamente à seguinte questão: de que modo e por que vias o Brasil
evoluiu da situação colonial originária, através do Império e das
várias repúblicas, para a constelação histórico-social que apresenta
111
Os demais volumes, que estariam “em preparo” em 1957, conforme podemos ler na
“orelha” à 5ª edição de Formação do Brasil Contemporâneo. Colônia, São Paulo, Brasiliense,
1957 (1ª ed.: 1942), teriam os seguintes títulos: 1) “A Revolução e a organização do
Estado nacional (1803-1850); 2) “O Império e as instituições do Brasil Nação (1850-
1889); 3) “A República e o Brasil contemporâneo”.

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202 Carlos Nelson Coutinho

hoje? Embora exista em sua obra uma certa ambiguidade a respei-


to da caracterização do ponto de partida – ou seja, do modo de
produção e da formação econômico-social vigente no Brasil antes
da Abolição –, é indubitável que o historiador paulista não hesita
em identificar como plenamente capitalista o Brasil republicano.
Em oposição ao modelo interpretativo dominante na Terceira
Internacional e no Partido Comunista Brasileiro (pelo menos a
partir de 1930), ele insiste em que nosso país não é e jamais foi
feudal ou semifeudal e, por isso, não careceu nem carece de uma
“revolução agrária e anti-imperialista” para se tornar moderno e
capitalista112. Mas, por outro lado, Caio Prado reconhece traços
extremamente peculiares em nosso capitalismo – traços que po-
deríamos chamar de “não clássicos” –, dedicando boa parte de sua
pesquisa a identificá-los e descobrir-lhes a gênese. Nesse sentido,
a questão que antes formulamos ganha maior concretude: quais
foram as vias para o capitalismo e que consequências tiveram na
constituição de nosso presente?
Na literatura marxista, existem dois conceitos extremamente
fecundos para analisar vias “não clássicas” de passagem para o
capitalismo, ou, numa linguagem menos precisa, para a “moder-
nidade”: o de “via prussiana”, elaborado por Lenin com o objetivo
principal de conceituar a modernização agrária; e o de “revolução
passiva”, utilizado por Gramsci para determinar processos sociais
e políticos de transformação “pelo alto”. Não há, na obra de Caio
Prado, nenhuma referência explícita a tais conceitos, nem é de
supor que ele os conhecesse, sobretudo a noção de “revolução
passiva”, elaborada por Gramsci nos Cadernos do cárcere e tornada
pública somente no final dos anos de 1940. Caio Prado jamais
cita Gramsci e não é frequente (se excetuarmos as referências a O
imperialismo) que cite Lenin.
O registro dessa ausência sugere uma observação mais geral:
o estoque de categorias marxistas de que se vale Caio Prado não

112
Essa crítica ao paradigma terceiro-internacionalista está sobretudo em Caio Prado Jr.,
A revolução brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1987 (1ª ed.: 1966), p. 29-75.

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Cultura e sociedade no Brasil 203

é muito rico (essa relativa pobreza é sobretudo evidente em suas


obras de filosofia). Nos trabalhos de história, por exemplo, tem
pouco peso o conceito de “modo de produção”, o que o leva por
vezes a confundir, na análise da Colônia e do Império, o predo-
mínio inequívoco de relações mercantis com a existência de um
sistema capitalista (ainda que “incompleto”), erro derivado da
prioridade metodológica que ele conscientemente atribui à esfera
da circulação em detrimento da esfera da produção113. Isso faz
também com que ele utilize de modo pouco rigoroso a noção de
burguesia: seriam “grandes burgueses nacionais”, por exemplo, os
latifundiários escravocratas do Império114. Resulta igualmente do
desconhecimento do conceito marxista de capitalismo de Estado
(ou de capitalismo monopolista de Estado) o emprego tardio
da imprecisa noção de “capitalismo burocrático” – um termo
inventado por ex-trotskistas para definir o regime social vigente
na União Soviética stalinista – em seu esforço para identificar as
peculiaridades do presente brasileiro115.
Esse registro, naturalmente, não decorre da pretensão – que
seria mesquinha e ridícula – de submeter retrospectivamente Caio
Prado a um exame de marxismo. Ele é feito aqui não tanto para
indicar os eventuais limites de sua produção, que certamente
existem, mas sobretudo para sublinhar a sua criatividade e os seus
extraordinários méritos pioneiros enquanto intérprete marxista da
história brasileira. Nesse terreno, as categorias marxistas de que
Caio Prado dispunha – e muitas das que inventou – permitiram-
lhe chegar, na maioria dos casos, a análises lúcidas, fecundas e
quase sempre justas. Por exemplo: a prioridade atribuída à esfera
da circulação não o impediu de definir de modo substancialmente

113
Em Formação do Brasil contemporâneo, cit., p. 266, ele diz: “A análise da estrutura co-
mercial de um país revela sempre, melhor que a de qualquer um dos setores particulares
da produção, o caráter de uma economia, sua natureza e organização”.
114
Cf., por exemplo, C. P. Júnior, Evolução política do Brasil e outros estudos, São Paulo,
Brasiliense, 1957 (1ª ed. 1933), p. 81; e Id. História econômica do Brasil, São Paulo,
Brasiliense, 1959 (1ª ed. 1945), passim.
115
Cf. C. P. Júnior, A revolução brasileira, cit., sobretudo p. 122 e ss., 232 e ss. e 255 e ss.

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204 Carlos Nelson Coutinho

adequado a formação econômico-social da era colonial, identifi-


cada por ele como um escravismo mercantil fundado na grande
exploração rural, produtora de valores de troca para o mercado
internacional. Suas indicações nesse domínio, recebendo um
tratamento categorial mais adequado, foram decisivas na elabo-
ração de importantes trabalhos marxistas posteriores, como os de
Fernando Novaes, Ciro Flammarion Cardoso e Jacob Gorender.
Do mesmo modo, o desconhecimento de noções como a de “via
prussiana” tampouco foi obstáculo à formulação de contribuições
definitivas para a compreensão dos processos e das modalidades de
modernização conservadora ocorridos no Brasil. Pode-se mesmo
dizer que, graças ao aporte da experiência específica do Brasil e
de algumas regiões da América Latina, Caio Prado contribuiu
para o enriquecimento do próprio conceito marxista de vias “não
clássicas” para o capitalismo.

2
Quando Lenin tenta conceituar a diversidade de vias para
o capitalismo, inovando em relação ao marxismo evolucionista
e unilinear da Segunda Internacional, constrói sua tipologia a
partir do modo pelo qual o capitalismo resolve a questão agrária.
Recorda Lenin:
Marx já dizia que a forma de propriedade agrária que o modo de produção
capitalista encontra na história, ao começar a desenvolver-se, não corresponde
ao capitalismo. O próprio capitalismo cria para si as formas correspondentes
de relações agrárias, partindo das velhas formas de posse da terra (...). Na
Alemanha, a transformação das formas medievais de propriedade agrária se
processou, por assim dizer, seguindo a via reformista, adaptando-se à rotina, à
tradição, às propriedades feudais, que se foram transformando lentamente em
fazendas de Junkers (...). Nos Estados Unidos, a transformação foi violenta (...).
As terras [dos latifundiários] foram fracionadas; a grande propriedade agrária
feudal se converteu em pequena propriedade burguesa.116

116
Cf. V. I. Lenin, O programa agrário da social-democracia, São Paulo, Ciências Humanas,
1980, p. 63.

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Cultura e sociedade no Brasil 205

São aqui indicadas duas vias principais, que Lenin chamaria de


“americana” (ou “clássica”) e de “prussiana”. A via “clássica” implica
uma radical transformação da estrutura agrária: a antiga propriedade
pré-capitalista é destruída, convertendo-se em pequena exploração
camponesa. Nesse caso, não só desaparecem as relações de trabalho
pré-capitalistas, fundadas na coerção extraeconômica sobre o traba-
lhador, mas também é erradicada a velha classe rural dominante, já
que são eliminadas as formas econômicas em que ela se apoiava e
de cuja reprodução dependia a sua própria reprodução como classe.
Diverso é o caso da “via prussiana”: aqui a velha propriedade rural,
conservando sua grande dimensão, vai se tornando progressivamente
empresa agrária capitalista, mas no quadro da manutenção de for-
mas de trabalho fundadas na coerção extraeconômica, em vínculos
de dependência ou subordinação que se situam fora das relações
“impessoais” do mercado, e que vão desde a violência aberta até a
intromissão na vida privada do trabalhador. É evidente que isso per-
mite a conservação (ou mesmo o fortalecimento) do poder político
do velho tipo de proprietário rural, que continua a ocupar postos
privilegiados no aparelho de Estado da nova ordem capitalista.
O leitor atento de Caio Prado não terá dificuldades em reco-
nhecer a proximidade de suas análises da questão agrária brasileira
com a descrição leniniana da “via prussiana”. Para o historiador
paulista, a modernização de nossa estrutura agrária não se deu
segundo uma “via clássica”; não se pode falar, no caso brasileiro,
da supressão radical da grande propriedade pré-capitalista e de sua
substituição pela pequena propriedade camponesa. Observa ele:
A situação no Brasil se apresenta de forma distinta, pois na base e na origem de
nossa estrutura agrária não encontramos, tal como na Europa, uma economia
camponesa, e sim a grande exploração rural que se perpetuou desde os inícios da
colonização brasileira até nossos dias; e se adaptou ao sistema capitalista de produ-
ção através de um processo ainda em pleno desenvolvimento e não inteiramente
completado (...) de substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre.117

117
Caio Prado Júnior, A questão agrária no Brasil , São Paulo, Brasiliense, 1979, p. 158
(Os ensaios contidos nessa coletânea foram publicados na Revista Brasiliense, entre
março-abril de 1960 e janeiro-fevereiro de 1964).

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206 Carlos Nelson Coutinho

Penso que Lenin não hesitaria em definir como “não clássica”


essa peculiar adaptação da “grande exploração rural” escravista,
herdada da Colônia, ao capitalismo – uma adaptação que conserva,
além da grande propriedade, traços servis nas relações de trabalho.
Característica da via “não clássica”, ou “prussiana”, é precisamente
essa complexa articulação de “progresso” (a adaptação ao capitalis-
mo) e conservação (a permanência de importantes elementos da
antiga ordem). Mas, além de registrar a presença desse processo
de “modernização conservadora” (na feliz expressão de Barrington
Moore Jr.) no Brasil, Caio Prado aponta também seus traços espe-
cíficos e mesmo singulares, o que permite distingui-lo de outros
casos igualmente “não clássicos”, como o da própria Alemanha dos
Junkers, ao qual se refere Lenin. Ao contrário desse país, o que no
Brasil se adaptou “conservadoramente” ao capitalismo não foi um
domínio rural de tipo feudal, mas sim uma forma de latifúndio
peculiar: uma exploração rural de tipo colonial (ou seja, voltada
desde as origens para a produção de valores de troca para o mercado
externo) e fundada em relações escravistas de trabalho.
É errado supor – afirma Caio Prado – que os elementos do ve-
lho que se conservaram no novo sejam “restos feudais”. Diz ele:
O que existe e tem servido de comprovação e exemplificação do ‘feudalismo’
brasileiro são remanescentes de relações escravistas, o que é bem diferente,
tanto no que respeita à natureza institucional dessas relações, como, e mais
ainda, no que se refere às consequências de ordem econômica, social e
política daí decorrentes.118
Entre tais consequências, Caio Prado enumera inúmeras
formas de coerção extraeconômica sobre o trabalhador rural, o
que cria para este “uma situação toda especial de dependência e
constrangimento que não existe para o trabalhador urbano”119: o
proprietário exerce sobre a pessoa do seu morador, por exemplo,
uma dominação que vai além do uso de sua força de trabalho
adquirida no mercado, já que interfere na esfera do consumo

118
Cf. A revolução brasileira, cit. p. 104.
119
Cf. A questão agrária, cit., p. 96 e passim.

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Cultura e sociedade no Brasil 207

(obrigação de comprar no “barracão”) e no seu direito civil de


organizar a própria vida privada (impedimento de morar com a
família ou de receber visitas etc.). Tudo isso encontra sua máxima
expressão – pensa Caio Prado – na completa ausência de direitos
social-trabalhistas no campo, situação que vigorou até recente-
mente (e, de certo modo, continua a vigorar até hoje). Em seus
trabalhos dos anos de 1960, o autor de A questão agrária no Brasil
considerava a superação dessa situação como a tarefa primordial
da “revolução brasileira” no campo. Cabe registrar que essa mo-
dalidade de “via prussiana”, além de conservar o poder político
do grande proprietário rural, permitiu ao capitalismo brasileiro
exercer uma superexploração da força de trabalho, tanto rural
quanto urbana, com o que se manteve um traço marcante da era
colonial: o baixíssimo padrão de vida do produtor direto.
Um dos principais méritos dessa caracterização caiopradiana
da natureza de nossa formação social moderna, definida objeti-
vamente como um capitalismo “não clássico”, foi precisamente
o de permitir ao historiador apresentá-la como capitalista. Esta
não era uma posição consensual entre os marxistas, pelo menos
até os anos de 1960. Ignorando a problemática das formas “não
clássicas” de transição para o capitalismo (e as peculiaridades da
formação capitalista que delas resultam), os marxistas brasileiros
– sobretudo os ligados ao PCB – afirmaram durante muitos anos
que o Brasil era um país “semifeudal” e “semicolonial”, que se
defrontava ainda, por conseguinte, com a tarefa de efetuar uma
“revolução democrático-burguesa” ou de “libertação nacional”.
Nessa afirmação, estava implícita a noção – falsa – de que para
ser plenamente capitalista um país tinha que seguir uma via “clás-
sica” de transição e apresentar todos os traços de um capitalismo
igualmente “clássico”. Os inúmeros equívocos a que isso conduziu,
tanto na teoria como na prática, são apontados por Caio Prado em
A revolução brasileira. De particular importância, de resto, é sua
clara afirmação de que não só a formação econômico-social em
geral, mas também a estrutura agrária do Brasil são de natureza
capitalista:

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208 Carlos Nelson Coutinho

Os polos principais da estrutura social do campo brasileiro – diz ele – não são
o ‘latifundiário’ ou ‘proprietário senhor feudal ou semifeudal’, de um lado,
e o camponês, de outro; e sim, respectivamente, o empresário capitalista e o
trabalhador empregado, assalariado ou assimilável econômica e socialmente
ao assalariado.120

É possível que, no ardor de uma justa polêmica, Caio Prado


tenha em alguns casos superestimado a possibilidade de assimilar
determinadas formas de remuneração do trabalho rural (como a
parceria) ao assalariamento121; mas é inegável que ele definiu com
muito mais rigor do que os defensores da tese dos “restos feudais”
a real natureza da moderna estrutura agrária brasileira.
Por outro lado, graças à sua utilização tácita do conceito de
vias “não clássicas” para o capitalismo, Caio Prado combateu cor-
retamente a ideia de que esses “restos servis” constituíssem óbices
ao desenvolvimento do modo de produção capitalista entre nós,
como sempre supôs o dualismo cepalino e aquele implícito nas
propostas do PCB. Antecipando posições que pouco tempo depois
seriam retomadas e aprofundadas por Francisco de Oliveira, Caio
Prado afirma:
(...) as sobrevivências pré-capitalistas nas relações de trabalho da agropecuária
brasileira, longe de gerarem obstáculos e contradições opostas ao desenvolvi-
mento capitalista, têm pelo contrário contribuído para ele. O “negócio” da
agricultura – e é nessa base que se estrutura a maior e principal parte da eco-
nomia rural brasileira – não se mantém muitas vezes senão graças precisamente
aos baixos padrões de vida dos trabalhadores, e pois ao reduzido custo da mão
de obra que emprega.122

De passagem, poderia recordar que, nessa recusa de uma vi-


são dualista – para a qual o lado “atrasado” seria um empecilho,
e não algo funcional, ao desenvolvimento do lado “moderno” –,

120
Cf. A revolução brasileira, cit., p. 105.
121
Cf., para uma crítica dessas posições de Caio Prado, cf. Guido Mantega, A economia
política brasileira, São Paulo/Petrópolis, Polis/Vozes, 1984, p. 250 e ss.
122
Caio Prado Jr., A revolução brasileira, cit., p. 97-98. Cf. Francisco de Oliveira, “A eco-
nomia brasileira: crítica à razão dualista”, in: Estudos Cebrap, n. 2, São Paulo, outubro
de 1972, p. 3-82.

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as investigações de Caio Prado convergem objetivamente com as


análises de Gramsci acerca da “questão meridional” italiana123.

3
Ainda que a questão agrária tenha lugar de destaque na deter-
minação da via de transição à modernidade, um posto central nesse
processo pode também ser ocupado, em momentos determinados,
por uma outra “questão nacional”, inclusive de natureza superes-
trutural. É esta a posição de Lenin, ao comparar a Rússia com a
Alemanha: “É a questão agrária que encarna agora na Rússia a
questão nacional do desenvolvimento burguês (...). Na Alemanha,
entre 1848 e 1871, ela consistia na unificação [na criação de um
Estado nacional unificado], e não na questão agrária”.124 Em outras
palavras: é o modo de resolver a “questão nacional” central que irá
indicar se a implantação ou consolidação da formação econômico-
social capitalista será de tipo “prussiano” ou, ao contrário, de tipo
“clássico”. Lenin prossegue:
Os anos 1848-1871 foram [na Alemanha] a época de uma luta revolucionária
e contrarrevolucionária entre duas vias para a unificação, ou seja, para a so-
lução do problema nacional do desenvolvimento burguês na Alemanha, uma
das quais conduzia à unificação através da república da Grande Alemanha, e a
outra através da monarquia prussiana.125
Também a Itália, em meados do século passado, defrontava-
se com o desafio da construção de um Estado unificado, que era
então a questão básica de sua transição definitiva para o capita-
lismo. Como se sabe, a solução que predominou foi a de uma
transformação “pelo alto”: a casa real do Piemonte, sob a direção
de liberais moderados, liderou um processo de “arranjos políticos”
entre as várias classes dominantes das diferentes regiões italianas,
algumas das quais baseavam ainda sua dominação em formas
123
Cf. em particular, os ensaios contidos em Antonio Gramsci, A questão meridional, Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
124
V.I. Lenin, “Lettre à I. Skovorstsov-Stépanov”, in: Oeuvres, Paris, Ed. Sociales, 1973,
vol. 16, p. 122.
125
Ibid., p. 124.

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econômico-sociais de tipo feudal; com isso, as massas populares


da península foram excluídas de qualquer papel determinante no
novo Estado nacional unificado. Foi buscando compreender as
vicissitudes da unificação italiana – o chamado Risorgimento –, bem
como suas consequências para o presente da Itália, que Gramsci
elaborou o conceito de “revolução passiva”, vista por ele como
um processo de modernização oposto à revolução popular “ativa”
de tipo jacobino: enquanto esse tipo de transição ocorre quando
uma classe ou bloco de classes conquista a hegemonia, mobili-
zando efetivamente as massas populares e conduzindo-as a uma
eliminação radical da velha ordem, a “revolução passiva” consiste
numa sequência de manobras “pelo alto”, de conciliações entre
diferentes segmentos das elites dominantes, com a consequente
exclusão da participação popular. Decerto, a “revolução passiva”
opera mudanças necessárias ao “progresso”, mas o faz no quadro
da conservação de importantes elementos sociais, políticos e eco-
nômicos da velha ordem. As massas, desorganizadas e reprimidas,
fazem sentir sua presença, mas sobretudo através de movimentos
sem incidência efetiva, algo que Gramsci chamou de “subversi-
vismo esporádico e elementar”. E um dos modos pelos quais as
classes dominantes quebram a resistência à sua dominação, além
naturalmente da repressão aberta, é a cooptação das lideranças dos
grupos opositores: um processo que o pensador italiano chama
de “transformismo”126.
As analogias entre o Risorgimento italiano e os eventos que
constituem o processo da Independência e da consolidação do
Estado imperial no Brasil são significativas. Assim, não é casual
que Caio Prado Júnior, escrevendo sobre esses eventos em 1933
– praticamente no mesmo momento, portanto, em que Gramsci
elaborava no cárcere seu conceito de “revolução passiva” –, tivesse
chegado a resultados muito semelhantes aos do pensador italiano.
Antes de mais nada, tanto para ele como para Gramsci, os processos
126
Para uma síntese do conceito gramsciano de “revolução passiva”, cf. C.N. Coutinho,
Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1999, p. 191-219.

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em questão, embora conduzidos “pelo alto”, levaram a mudanças


efetivas: com a Independência, diz Caio Prado, “é a superestrutura
política do Brasil-Colônia que, já não correspondendo ao estado
das forças produtivas e à infraestrutura econômica do país, se
rompe, para dar lugar a outras formas mais adequadas”. Essas
mudanças, contudo, não anulam o fato de que, na nova ordem,
“permanece mais ou menos intacta a organização social vigente”
na época colonial. E por que isso ocorre? A resposta de Caio Prado
é taxativa:
A forma pela qual se operou a emancipação do Brasil [tem] o caráter de ‘arranjo
político’ (...), de manobras de bastidores, em que a luta se desenrola exclusi-
vamente em torno do príncipe-regente (...). Resulta daí que a Independência
se faz por uma simples transferência política de poderes da metrópole para
o novo governo brasileiro. E, na falta de movimentos populares, na falta de
participação direta das massas nesse processo, o poder é todo absorvido pelas
classes superiores da ex-colônia (...). Fez-se a independência praticamente à
revelia do povo; e isso (...) afastou por completo sua participação na nova
ordem política. A independência brasileira é fruto mais de uma classe do que
da nação tomada em seu conjunto.127

Essa explicação da Independência como transformação “pelo


alto” – que implica mudança, mas talvez sobretudo conservação
– não esgota os pontos de aproximação entre a análise de Caio
Prado e a de Gramsci. Estudando os movimentos populares
que marcaram o período de consolidação do Estado imperial, o
historiador paulista chega a conclusões semelhantes às do autor
dos Cadernos do cárcere também no que se refere à presença em
tais movimentos de um “subversismo esporádico e elementar”.
Assim, referindo-se à Balaiada – mas em observação que poderia
valer, mutatis mutandis, para todos os levantes da época regen-
cial –, diz Caio Prado: “Em vez de um levante de massa, logo
aproveitado para a realização de uma política consequente, o que
vemos (...) [são] apenas bandos armados que percorrem o sertão

127
Caio Prado Jr. Evolução política do Brasil, cit., p. 49-50.

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em saques e depredações”.128 Embora não use a gramsciana ex-


pressão “sociedade civil” (mas sim “estrutura política democrática
e popular”), Caio Prado indica na ausência de auto-organização
e de coesão dos grupos subalternos – o que os impede de se
tornarem atores políticos efetivos – as raízes da derrota de uma
via “jacobina” para a resolução de nossa questão nacional. O
principal grupo subalterno, os escravos, estava impossibilitado
por condições objetivas e subjetivas de alcançar um grau efetivo
de organização:
[Os escravos] não formam uma massa coesa (...) e, por isso, representam um
papel político insignificante (...). Faltavam aos escravos brasileiros todos os
elementos para se constituírem, apesar do seu considerável número, em fatores
de vulto no equilíbrio político nacional.
O mesmo pode ser dito da “população livre das camadas mé-
dias e inferiores”: “não atuavam sobre ela – prossegue Caio Prado
– fatores capazes de lhe dar coesão social e possibilidades de uma
eficiente atuação política”. E, logo após, ele fornece o diagnóstico
dessa situação de amorfismo, de falta de coesão: “A economia
nacional, e com ela nossa organização social, assente como estava
numa larga base escravista, não comportava naturalmente uma
estrutura política democrática e popular”.129 E, se a rebeldia das
camadas subalternas revelou-se impotente, em função da repressão
estatal e da desorganização interna, as contradições no seio das
classes dominantes podiam ser resolvidas, e efetivamente o foram,
pela via da cooptação e do transformismo:
Os governos que se seguem à Maioridade têm todos o mesmo caráter. Se bem
que, diferenciados no rótulo com as designações de ‘liberal’ e ‘conservador’,
todos evoluíram em igual sentido, sem que essa variedade de nomenclatura
tivesse maior significação. Por isso mesmo é comum, e mal se estranha, a pas-
sagem de um político de um para outro grupo.130
Poderíamos destacar aqui, numa análise comparativa entre
vias “não clássicas”, uma especificidade brasileira: enquanto na
128
Ibid., p. 74.
129
Ibid, p. 63.
130
Ibid., p. 81.

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Alemanha a solução “prussiana” da questão agrária precede a so-


lução igualmente “prussiana” da questão da unificação nacional, e
enquanto na Itália as duas questões são resolvidas “passivamente”
ao mesmo tempo, nota-se no Brasil uma sequência cronológica
diversa. A solução “pelo alto” da questão do Estado nacional unifi-
cado precede e condiciona a solução “prussiana” da modernização
agrária: conservando a grande exploração rural e o domínio polí-
tico dos proprietários de terra e de escravos, a “revolução passiva”
que se inicia com a Independência e se consolida com o golpe
da Maioridade prepara o desfecho “prussiano” para a questão da
adaptação da estrutura agrária ao capitalismo no plano interno,
no momento em que se esgotam as potencialidades das relações
escravistas de trabalho. Nesse sentido, ambos os movimentos foram
importantes degraus na lenta e “não clássica” marcha do Brasil
para o capitalismo, deixando ademais profundas marcas em nosso
presente. Caio Prado observa corretamente: “A evolução política
progressista do Império corresponde assim, no terreno econômico,
à integração sucessiva do país numa forma produtiva superior: a
forma capitalista”.131 E, quando isso ocorre de modo definitivo,
com a Abolição e a República, as condições estavam preparadas
para mais uma “revolução passiva”, aquela que leva à criação da
república oligárquica. Caio Prado não deixa de registrar o fato,
ainda que só de passagem, quando observa que a proclamação da
República mobilizou tão pouco as camadas populares que “uma
simples passeata militar foi suficiente para lhe arrancar [do Im-
pério] o último suspiro”.132

4
Com suas análises da formação do Estado nacional e da evo-
lução agrária brasileira, Caio Prado lançou os fundamentos para
uma adequada compreensão marxista da via “não clássica” de
transição do Brasil para o capitalismo. Registrou, com sagacidade e

131
Ibid., p. 91.
132
Ibid., p. 94.

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214 Carlos Nelson Coutinho

criatividade, as bases materiais e os processos políticos que geraram


uma formação social certamente capitalista, mas assinalada por
características profundamente autoritárias e excludentes. Não creio
que nenhum pensador marxista brasileiro da época tenha determi-
nado com tanta propriedade as raízes do Brasil moderno. Aliás, na
América Latina, penso que somente José Carlos Mariátegui (cujo
estoque categorial marxista, diga-se de passagem, era igualmente
reduzido e problemático) realizou uma obra semelhante para um
país concreto, ao analisar a independência peruana como uma
“revolução abortada” e ao apontar as danosas consequências desse
“aborto” nas várias esferas sociais do Peru moderno133. E não me
parece casual que esses dois pensadores tenham realizado suas
investigações à margem dos – ou mesmo em aberta oposição aos
– modelos teóricos que a Terceira Internacional, já sob direção
stalinista, tentava impor ao marxismo latino-americano, através,
sobretudo, de nossos partidos comunistas.
Mas, se Caio Prado determinou adequadamente as raízes de
nosso capitalismo, não creio que tenha sempre feito o mesmo
em relação à caracterização do Brasil de hoje. Nesse caso, sua
interpretação, expressa sobretudo em obras mais recentes, apre-
senta pontos problemáticos. As razões dessa problematicidade me
parecem residir no fato de que, se o historiador paulista captou
com acuidade o momento “conservador” de nossos processos
de transição, tendeu a minimizar e subestimar os elementos de
“modernização” que eles também trouxeram consigo. Gramsci,
quando trata dos processos de transformação “pelo alto”, emprega
em alguns casos o termo “revolução-restauração”, pretendendo
com isso indicar que o momento “restaurador” ou “conserva-
dor” desse tipo de transformação não impede que através dela
ocorram também modificações efetivas na ordem social. Diz
Gramsci: “As modificações moleculares [promovidas pelas ‘re-
voluções passivas’] modificam progressivamente a composição

133
Cf. J. C. Mariátegui, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, São Paulo,
Expressão­Popular, 2010, passim.

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anterior de forças e, por conseguinte, tornam-se matriz de novas


modificações”.134
Embora certamente reconheça que o caminho “não clássico”
para o capitalismo brasileiro gerou mudanças em nossa estrutura
social, Caio Prado tende a pôr ênfase maior no momento da
conservação, da reprodução do velho. Ainda em 1977, repetindo
uma ideia frequentemente expressa em sua obra mais recente,
afirma o seguinte:
Essencialmente, com as adaptações necessárias determinadas pelas contingências
do nosso tempo, somos o mesmo do passado. Se não quantitativamente, na
qualidade (...). Embora em mais complexa forma, o sistema colonial brasileiro
se perpetuou e continua muito semelhante. Isto é, na base, uma economia
fundada na produção de matérias-primas e gêneros alimentícios demandados
nos mercados internacionais.135

O Brasil não só continuaria essencialmente “colonial”, mas a


agricultura teria ainda, na estrutura global do país, um papel de
“primordial importância”136. Ora, para que isso possa ser afirmado,
Caio Prado Júnior é obrigado a contrariar as evidências empíricas
e a concluir que, no Brasil contemporâneo, não há “nada (...)
que se assemelhe a um processo de industrialização digno desse
nome”137.
Mesmo quando reconhece a ocorrência de fatos novos, o
historiador paulista tende a tratá-los como “aparências” que não
alteram a “essência” – ou quantidades que não mudam a quali-
dade –, isto é, como manifestações que, longe de implicarem a
superação do passado, contribuem para acentuar seus traços mais
perversos. Este me parece ser o caso, por exemplo, de sua teoria
tardia do “capitalismo burocrático”: no Brasil, ao lado de um setor
134
A. Gramsci, Cadernos do cárcere, cit., v. 5, p. 208.
135
Caio Prado Jr. A revolução brasileira, cit., p. 240.
136
Ibid., p. 30. Essa centralidade do campo é reafirmada em 1978, no prefácio que Caio
Prado escreveu para sua coletânea sobre A questão agrária, cit., p. 12-13.
137
Cf. A revolução brasileira, cit., p. 243. De certo modo, essa taxativa afirmação – feita
em 1977 – modifica suas posições anteriores, mais equilibradas, embora sempre céticas,
sobre a industrialização e suas potencialidades; cf., por exemplo, História econômica do
Brasil, cit., p. 263-274.

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burguês “ortodoxo”, que se desenvolve com base no livre mercado,


teria surgido uma burguesia gerada e alimentada pelo Estado.
Não é difícil perceber que Caio Prado mistura aqui duas ordens
de fenômenos. Ele registra corretamente a ocorrência entre nós
de manifestações de corrupção na máquina estatal, as quais, na
intensidade com que ocorreram e ainda ocorrem no Brasil, são em
parte resultado de uma visão patrimonialista do Estado, que tem
suas raízes em nosso passado e são expressões de nosso “atraso”. É
justa sua indignação contra tais fatos e, em particular, a crítica que
faz a uma certa subestimação dos mesmos pela esquerda.
Mas essa indignação o impede, por outro lado, de distinguir
entre esse fenômeno perverso, mas relativamente marginal, e um
traço básico, estrutural, de nosso capitalismo “não clássico”: o
processo de industrialização no Brasil, verificando-se tardiamente
em nível mundial, demandou – tal como ocorreu em outros países
que seguiram também vias “não clássicas”, como a Alemanha e o
Japão – uma ampla e precoce participação do Estado na acumula-
ção de capital, não só através de processos de regulação, mas tam-
bém da criação de empresas diretamente produtivas. Não é aqui o
lugar para tratar em detalhe das especificidades do capitalismo de
Estado no Brasil (que a época ditatorial posterior a 1964 contri-
buiu para transformar em capitalismo monopolista de Estado)138.
Mas cabe pelo menos sublinhar que, em vez de representar um
obstáculo para o desenvolvimento capitalista “saudável” e de ser
uma manifestação de nosso “atraso”, como supõe Caio Prado139,
a intervenção do Estado constitui elemento decisivo na acumu-
lação de capital e, em particular, no processo de industrialização,
constituindo assim um traço – e um traço substancial – de nossa
“modernidade”. Não é, pois, casual que a “revolução passiva” que
se inicia em 1930, se fortalece com o Estado Novo e prossegue na
época populista – uma “revolução” que, industrializando o país
138
Remeto, para uma discussão do problema, a meu ensaio “O capitalismo monopolista
de Estado no Brasil”, in: C. N. Coutinho, A democracia como valor universal e outros
ensaios, Rio de Janeiro, Salamandra, 1984, p. 163-195.
139
Cf., por exemplo, A revolução brasileira, cit., p. 123.

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com o apoio da intervenção estatal, consolidou definitivamente


o modo de produção capitalista no Brasil – seja subestimada (ou
mesmo ignorada) na representação caiopradiana do Brasil mo-
derno. Todo esse período parece poder ser subsumido na infeliz
expressão com que ele caracterizou o governo Goulart: um “pe-
ríodo malfadado”140. E tampouco é casual que, em sua tendência
a subestimar as novidades, ele se refira aos primeiros 12 anos da
ditadura militar – que elevaram nosso capitalismo ao estágio de
capitalismo monopolista de Estado – como um período que “não
assinala efetivamente (...) nenhum sinal significativo de mudança
essencial do passado”.141
Embora tenha sido um dos mais duros críticos do paradigma
terceiro-internacionalista, pode-se constatar que, na análise do
nosso presente, Caio Prado se aproxima em muitos pontos do
“estagnacionismo” contido em tal paradigma: o desenvolvimento
brasileiro, sua passagem definitiva para a “modernidade”, estaria
bloqueado pelo “atraso”, seja nas relações agrárias, seja no setor in-
dustrial, um “atraso” proveniente, pensa ele, da limitação estrutural
do mercado interno e da dependência ao imperialismo. E, além
dessa aproximação, ocorreu também uma curiosa convergência
objetiva entre o Caio Prado tardio e os teóricos do “desenvolvi-
mento do subdesenvolvimento”, como André Gunder Frank e
Ruy Mauro Marini, o que levou a um mal-entendido no plano
político: A revolução brasileira, publicado em 1966, terminou por
alimentar a ideologia da ultraesquerda no Brasil, a qual se baseava
na falsa alternativa entre “socialismo já” ou “ditadura fascista com
estagnação econômica”. Essa alternativa não está absolutamente
presente no livro de Caio Prado; mas a sua visão do Brasil como

140
Ibid., p. 23. Também o governo Kubitschek recebeu duríssimas críticas de Caio Prado,
não só em A revolução brasileira, mas já nos ensaios dos anos de 1950, publicados na
Revista Brasiliense. Creio que ele não só subestimou o inegável desenvolvimento da
industrialização que se inicia na era varguista e prossegue na era populista, mas ignorou
completamente o crescimento e ativação da sociedade civil nela ocorrido, sobretudo no
“período malfadado” do governo Goulart.
141
Caio Prado Jr., A revolução brasileira, cit., p. 244.

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estruturalmente atrasado e estagnado podia contribuir objetiva-


mente para alimentá-la, como de fato ocorreu.
Finalmente, cabe observar que essa visão “atrasada” pare-
ce ser responsável pela insuficiente formulação da questão da
democracia política nas análises do historiador paulista142. Se o
Brasil é plenamente capitalista, mas chegou a essa situação atra-
vés de processos de transição que configuram uma ordem social
excludente e autoritária – como nos ensina Caio Prado –, então
a principal tarefa histórica que se coloca hoje ao nosso povo, ou
seja, o conteúdo da “revolução brasileira”, consiste em inverter essa
tendência “prussiana”, por meio da consolidação daquilo que, em
sua obra de 1933, o historiador chamava de “estrutura política
democrática e popular”, agora tornada possível pela emergência de
novas condições objetivas e subjetivas. Ao limitar as metas atuais
da “revolução brasileira” à modificação das relações trabalhistas no
campo e à “libertação nacional’” em face do imperialismo, Caio
Prado pagou um tributo às concepções terceiro-internacionalistas
da democracia, que minimizam os aspectos especificamente po-
líticos desta última em favor de seus pressupostos econômicos e
sociais.
Contudo, no final do apêndice que escreveu em 1977 para
A revolução brasileira, parece esboçar-se – ainda que só embrio-
nariamente – uma formulação que situa Caio Prado, também
nessa questão, para além do horizonte da Terceira Internacional.
Definindo a democracia como “participação efetiva dos governados
na ação e no comportamento do governo”, ele conclui que “uma

142
Este é um dos pontos corretos da crítica dirigida a Caio Prado, em 1966, por Assis Ta-
vares, pseudônimo sob o qual era então obrigado a se ocultar um importante dirigente
comunista, Marco Antônio Coelho (cf. A. Tavares, “Caio Prado e a teoria da revolução
brasileira”, in: Revista Civilização Brasileira, n. 11-12, dezembro de 1966/março de 1967,
p. 79). Também é justa a observação segundo a qual Caio Prado “nem sequer cogitou
de examinar as camadas médias urbanas” (ibid., p.77). Essa ausência, a meu ver, decorre
da centralidade que ele atribui ao campo, em consequência de sua visão “atrasada” do
Brasil. Apesar de observações pertinentes, o artigo de Tavares – que mereceu uma longa
resposta de Caio Prado, incluída nas edições mais recentes de A revolução brasileira –
reproduz, no essencial, o paradigma analítico da Terceira Internacional.

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democracia só para a burguesia e os aspirantes a burguês (...) não


é realizável: [a democracia] ou será de todos ou de ninguém”.143 Se
houvesse desenvolvido essa formulação, Caio Prado teria definido
corretamente as tarefas atuais da “revolução brasileira”: somente
através da plena realização da democracia – que não é um valor
burguês, mas sim universal, “de todos” – é que chegaremos ao
socialismo. Caio Prado, como vimos, foi um notável precursor
dos marxistas que hoje buscam entender o caráter “não clássico”
da transição para o capitalismo no Brasil. Se tivesse avançado em
sua intuição sobre o valor universal da democracia, ter-se-ia tor-
nado também um estimulador dos que se empenham atualmente
em pensar de modo novo o vínculo estrutural entre socialismo e
democracia. De qualquer modo, parece-me inegável que, sem a
obra de Caio Prado, a interpretação marxista do Brasil seria hoje
substancialmente mais pobre.

(1988)

143
Caio Prado Jr., A revolução brasileira, cit., p. 267.

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Marxismo e “imagem do Brasil”
em Florestan Fernandes

1
Não são muitos os pensadores sociais que formularam, em
suas obras, o que poderíamos chamar de uma “imagem do Brasil”.
Imagens desse tipo articulam sempre juízos de fato com juízos
de valor, na medida em que não se limitam a fornecer indicações
para a apreensão de problemas específicos da vida social de nosso
país (como, por exemplo, o sistema colonial, a industrialização,
a consciência do empresariado, o movimento sindical etc. etc.),
mas se propõem – para além e/ou a partir disso – a nos dar uma
visão de conjunto, que implica não só a compreensão de nosso
passado histórico, mas também o uso dessa compreensão para
entender o presente e, mais do que isso, para indicar perspecti-
vas para o futuro. Forçando um pouco os termos, poderíamos
dizer que tais “imagens” contêm sempre uma articulação entre
ciência e “ideologia”, ou entre ser e dever-ser, o que nos permite
classificá-las – conforme sua perspectiva seja conservadora ou re-
volucionária – como de direita ou de esquerda. Para darmos uns
poucos exemplos, há “imagens do Brasil” nas obras de Gilberto
Freyre e de Oliveira Vianna, que são de direita, ou na de Caio
Prado Júnior, que é de esquerda.
Florestan Fernandes insere-se entre esses poucos pensadores
em cuja obra podemos encontrar uma “imagem do Brasil”. Diria
mesmo que o mais valioso de sua vasta produção teórica – que
abordou com competência tantos e tão variados temas, da orga-
nização social dos tupinambá aos fundamentos metodológicos da
sociologia, dos problemas do negro às mudanças sociais no Brasil,
das questões da escola pública às vicissitudes da revolução latino-
americana – é precisamente essa “imagem do Brasil” que ela nos
fornece. Tal “imagem” é apresentada, sobretudo, em A revolução

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222 Carlos Nelson Coutinho

burguesa no Brasil 144, que eu não hesitaria em definir como a sua


obra-prima, entre outras coisas pelo papel central que ocupa em
sua produção teórica, na qual representa, de resto, um claro ponto
de inflexão. Com efeito, embora Florestan retome nesse livro temas
já abordados em obras anteriores, o faz em outro nível: trata-se do
seu primeiro texto onde o marxismo é assumido explicitamente
como ponto de vista metodológico. Essa centralidade de RBB se
confirma, de resto, quando constatamos que as análises da socie-
dade e da vida política brasileiras presentes nas produções poste-
riores de Florestan, sobretudo nos livros de combate e nos muitos
artigos jornalísticos que reuniu em várias coletâneas, inspiram-se
indubitavelmente nas formulações já expostas no livro publicado
em 1975.
Antes de mais nada, é preciso sublinhar o fato de que a “ima-
gem do Brasil” proposta por Florestan é uma imagem marxista
e, portanto, revolucionária. Se não é difícil apontar a presença
hegemônica do método funcionalista nos primeiros trabalhos de
nosso autor, é também indiscutível que o seu empenho teórico-
metodológico assume, sobretudo a partir de RBB, uma explícita e
consciente dimensão marxista. Com isso, Florestan se insere numa
tradição que se inicia com Octávio Brandão (o qual, malgrado
suas evidentes debilidades teóricas, é o primeiro a tentar formular
uma “imagem do Brasil” à luz do marxismo)145, passa por Caio
Prado Júnior e pelo Partido Comunista Brasileiro146 e chega até
144
Florestan Fernandes, A revolução burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica,
Rio de Janeiro, Zahar, 1975, a seguir citada no corpo do texto como RBB, seguida,
quando necessário, pelo número da página.
145
Cf. Fritz Mayer [pseudônimo de Octávio Brandão], Agrarismo e industrialismo. Ensaio
marxista-leninista sobre a revolta de S. Paulo e a guerra de classes no Brazil, São Paulo, Anita
Garibaldi, 2006. (A edição original é de 1926). Para uma devastadora crítica desse livro
de Brandão, cf. Leandro Konder, A derrota da dialética, São Paulo, Expressão Popular,
2010, p. 181-186.
146
Em 1933, Caio Prado Jr. publica seu primeiro ensaio marxista, Evolução política do
Brasil. Em 1942 e 1945, respectivamente, publicará Formação do Brasil contemporâneo.
Colônia e História econômica do Brasil. Os três livros conheceram inúmeras reedições,
sobretudo pela Brasiliense, São Paulo. A “imagem do Brasil” presente na trajetória do
PCB pode ser reconstruída a partir dos documentos coletados em Edgard Carone, O

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Cultura e sociedade no Brasil 223

nossos dias. Certamente, seria do maior valor a realização de uma


pesquisa que situasse a obra de Florestan na história do marxismo
brasileiro. Como é óbvio, trata-se de uma tarefa que não posso
enfrentar aqui. Irei me limitar a propor algumas comparações
entre a sua “imagem do Brasil” e aquela de Caio Prado, seu mais
brilhante precursor marxista, tentando indicar tópicos concretos
nos quais Florestan, em minha opinião, avança com relação ao
autor de Formação do Brasil contemporâneo (o que não anula o fato
de que sua reflexão, como também veremos, continua a apresentar
aspectos problemáticos). Como subsídio inicial para encaminhar
essa comparação, permito-me lembrar que – tal como em Caio
Prado Jr. e outros autores marxistas –, o tema central da “imagem
do Brasil” em Florestan é a questão da “revolução burguesa”, ou,
mais precisamente: 1) dos processos que nos conduziram à “mo-
dernidade” capitalista; 2) das especificidades que, em função da
modalidade assumida por essa “revolução burguesa”, tornaram-se
próprias do nosso capitalismo; e, finalmente, 3) das tendências e
caminhos que apontam para a superação dessa formação econô-
mico-social em nosso país.

2
Uma das primeiras observações a fazer, nessa comparação
entre Caio Prado e Florestan, é que ambos divergem, em pontos
substantivos, da “imagem do Brasil” formulada pelo PCB e pela
maioria dos seus “subprodutos”. De modo extremamente esquemá-
tico, poderíamos resumir assim essa “imagem” pecebista: segundo
ela, o Brasil continuaria a ser um país “atrasado”, semicolonial
e semifeudal, bloqueado em seu pleno desenvolvimento para o
capitalismo pela presença do latifúndio e da dominação imperia-
lista. Em consequência, careceríamos ainda de uma “revolução
democrático-burguesa”, que deveria ser feita com a participação
de uma “burguesia nacional” supostamente anti-imperialista e
PCB, São Paulo, Difel, 1982, 3 v. Para uma “imagem do Brasil” próxima àquela do PCB,
cabe também consultar as significativas obras de Nelson Werneck Sodré, sobretudo as
escritas a partir da década de 1960.

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224 Carlos Nelson Coutinho

antifeudal. Em grande parte, tratava-se da aplicação ao Brasil


do modelo de análise dos países periféricos elaborado pelo VI
Congresso da Internacional Comunista, realizado em 1928, um
modelo cujos principais elementos foram extraídos de uma abusiva
generalização da realidade chinesa da época147. Independentemente
do caráter mais ou menos sofisticado com que foi apresentada essa
“imagem” pecebista, o que se pode constatar é que, em todas as suas
variantes, ela desconhece o fato de que o Brasil já havia realizado
sua revolução burguesa e que, em consequência, pelo menos desde
a República, nossa formação econômico-social já era, ainda que
com importantes especificidades, de tipo capitalista. Ora, tanto
Caio Prado quanto Florestan rompem com essa visão: para eles,
o Brasil contemporâneo é um país plenamente capitalista, que já
teria experimentado portanto uma “revolução burguesa”, mas – e
é esse “mas” que torna tão significativas as suas obras, inclusive
no quadro do nosso marxismo – uma revolução burguesa de tipo
“não clássico”.
Na tradição marxista, há pelo menos dois conceitos elabora-
dos para apreender processos de transição “não clássica” para o
capitalismo, ou seja, processos que não seguiram o paradigma das
revoluções inglesas do século 17 ou da Grande Revolução Francesa
do século 18: refiro-me à noção de “via prussiana”, elaborada por
Lenin, e à de “revolução passiva”, cunhada por Gramsci. Em Lenin,
a noção serve sobretudo para definir os processos de transição para
o capitalismo no campo, evidenciando o fato de que, nos casos de
“via prussiana”, conservam-se na nova ordem fundada pelo capital
claras sobrevivências das formas pré-capitalistas, como, por exem-
plo, o uso da coerção extraeconômica na extração do excedente
produzido pelos trabalhadores rurais; em Gramsci, o conceito é
usado para conceituar processos de modernização promovidos pelo
147
Para a exposição e crítica dessa “imagem” pecebista, cf. Caio Prado Júnior, A revolução
brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1987 (1ª ed., 1966), sobretudo p. 29 e ss.; e Jacob
Gorender, “A revolução burguesa e os comunistas”, in: M. A. D’Incao (org.), O saber
militante. Ensaios sobre Florestan Fernandes, São Paulo, UNESP-Paz e Terra, 1987, p.
250-259.

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alto, nos quais a conciliação entre diferentes frações das classes


dominantes é um recurso para afastar a participação das massas
populares na passagem para a “modernidade” capitalista.
Embora Caio Prado não conhecesse nenhum desses dois
conceitos, certamente chegou em sua obra a muitas conclusões
análogas às de Lenin e de Gramsci, podendo-se assim dizer que
ele “reinventou” os conceitos dos dois pensadores marxistas. Basta
recordar aqui, por um lado, suas brilhantes análises da “questão
agrária” no Brasil, nas quais mostra como a transição para a mo-
dernidade se deu entre nós não só com a conservação da grande
propriedade rural herdada da Colônia, mas também com a ma-
nutenção de restos pré-capitalistas (corretamente definidos por ele
como escravistas e não como feudais); e, por outro, sua instigante
exposição do processo da Independência brasileira, definida como
uma revolução pelo alto, produzida por meio de “arranjos” de
cúpula entre as classes dominantes, com completa exclusão do
protagonismo das camadas populares148.
Decerto, Florestan Fernandes dispõe de um estoque de cate-
gorias marxistas bem mais rico do que aquele utilizado por Caio
Prado: Florestan não só conhece muito bem a produção teórica
de Marx e Engels149 como também revela ter estudado profunda-
mente Lenin, cuja presença, de resto, é marcante em sua produ-
ção teórica a partir de RBB. Nessa obra, encontramos ainda uma
referência a Gramsci, autor que Caio Prado, mesmo em sua obra
posterior à publicação dos Cadernos gramscianos (final dos anos
de 1940), parece desconhecer inteiramente. Contudo, mesmo
reconhecendo a grande familiaridade de Florestan com a literatura
marxista, é importante fazer aqui dois registros. Embora cite várias
obras de Lenin na substanciosa bibliografia contida em RBB, é
surpreendente que não conste entre elas O programa agrário da
social-democracia, escrito em 1907, que é o texto em que o revolu-
148
Cf. “A imagem do Brasil na obra de Caio Prado Júnior”, supra, p. 201-219.
149
Basta recordar aqui a longa “Introdução” que Florestan escreveu para o volume sobre
Marx-Engels. História, Coleção “Grandes Cientistas Sociais”, São Paulo, Ática, 1983,
p. 9-144.

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cionário russo apresenta de modo mais sistemático o seu conceito


de “via prussiana”, ou seja, de um caminho “não clássico” para o
capitalismo. Talvez por isso, Florestan – embora se valha em sua
análise do Brasil de determinações muito próximas daquelas conti-
das no conceito de Lenin – jamais emprega explicitamente, como
tampouco o faz Caio Prado, a noção de “via prussiana”. Por outro
lado, embora o único texto de Gramsci indicado na mencionada
bibliografia seja o volume da edição temática dos Cadernos do
cárcere referente a Il Risorgimento – ou seja, precisamente aquele
onde estão contidas as principais observações do autor italiano
sobre “revolução passiva” –, Florestan tampouco se vale, pelo me-
nos explicitamente, desse conceito gramsciano. Mais do que isso,
ele parece não ter apreendido corretamente o sentido dessa noção
gramsciana, já que afirma (embora com a cautela de dizer “pro-
vavelmente”) o seguinte: “Se se considerar a Revolução Burguesa
na periferia como uma ‘revolução frustrada’, como fazem muitos
autores (provavelmente seguindo implicações da interpretação de
Gramsci sobre a Revolução Burguesa na Itália), é preciso proceder
com muito cuidado” (RBB, 294, grifo meu). Na verdade, Gramsci
não se refere à “revolução passiva” como uma “revolução frustrada”,
isto é, fracassada ou inexistente; ao contrário, trata-se para ele de
um tipo específico de revolução exitosa, ainda que feita através de
conciliações pelo alto e da exclusão do protagonismo popular, o
que gera um processo de transformações político-sociais do qual
resulta, em suas palavras, uma “ditadura sem hegemonia”150. Ora,
é precisamente este o tipo de revolução burguesa que Florestan
julga ter ocorrido no Brasil, sendo evidente, ademais, a analogia
entre a “ditadura sem hegemonia” de Gramsci e sua própria noção
(sobre a qual voltaremos em seguida) de “autocracia burguesa”.
Cabe ainda observar que, quando Florestan emprega em sua obra
(o que, aliás, faz com frequência) os termos “hegemonia” e “so-
ciedade civil”, nunca os emprega no sentido específico com que
os mesmos são utilizados na obra de Gramsci.
150
A. Gramsci, Cadernos do cárcere, cit., v. 5, p. 330.

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Cultura e sociedade no Brasil 227

De qualquer modo, como já disse, é indiscutível que Florestan


elabora a sua “imagem do Brasil” mediante um estoque categorial
marxista bem mais rico do que aquele presente na produção de
Caio Prado. Ao contrário de Florestan, que quase sempre se apoia
em conceitos, Caio constrói suas análises de modo bem mais “in-
tuitivo”, o que as torna muitas vezes ambíguas ou pouco precisas.
Vejamos um exemplo concreto. Florestan diz explicitamente que o
Brasil evoluiu para o presente capitalista a partir de uma formação
econômico-social que não era capitalista. No autor de Formação
do Brasil contemporâneo, ao contrário, a definição da natureza
econômico-social de nosso passado aparece de modo impreciso, ou
seja, atribuindo à circulação a prioridade ontológica na definição
de uma estrutura econômica, uma atribuição que contradiz clara-
mente a lição marxiana. Isso, evidentemente, prejudica sua “ima-
gem do Brasil” não só no que se refere ao passado, mas também
ao presente. Por exemplo: embora ele diga, superando os limites
da “imagem” pecebista, que o Brasil moderno já é plenamente
capitalista, ainda que conservando “prussianamente” elementos
da velha ordem colonial, termina por subestimar as novidades
introduzidas em nosso país e por construir assim uma imagem do
Brasil contemporâneo onde o que predomina não é a emergência
do novo, mas sim a conservação do velho151.
Florestan, ao contrário, afirma explicitamente que o Brasil, nas
épocas colonial e imperial, não era capitalista, razão pela qual sua
classe dominante – formada pelos latifundiários escravistas – não se
movia, ao contrário do que supunha Caio, com base numa lógica
capitalista, mas se orientava por outra “racionalidade”, chamada
por ele de “patrimonialista”. É precisamente essa correta percep-
ção que lhe permite constatar a emergência, a partir da expansão
de relações comerciais na época imperial, de duas novas camadas
sociais: a dos fazendeiros de café e a dos imigrantes (RBB, sobre-
tudo 86 e ss.). Tais camadas, embora sem romper inteiramente

151
Para um maior desenvolvimento desses aspectos da reflexão do autor de A revolução
brasileira, cf. também “A imagem do Brasil na obra de Caio Prado Júnior”, supra.

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228 Carlos Nelson Coutinho

com a “velha ordem” patrimonialista, começam a agir segundo


uma racionalidade propriamente capitalista, o que lhes possibilita
desempenhar o papel de protagonistas da “revolução burguesa”
que se processou em nosso país.
Mas, com efeito, tampouco Florestan escapa de algumas
ambiguidades. Revelando estar ainda preso ao “ecletismo bem
temperado”152 que marca sua produção inicial (mas do qual, a
meu ver, liberta-se quase inteiramente a partir da última parte de
RBB), Florestan – seguindo nisso Max Weber – define essa or-
dem pré-capitalista como uma “sociedade estamental e de casta”,
reservando apenas para o capitalismo a designação de “sociedade
de classes”. Não posso aqui me deter sobre o fato de que, segundo
o marxismo – pelo menos depois de A ideologia alemã, em que
Marx e Engels parecem ainda supor que classes sociais só existem
no capitalismo –, a presença de estamentos ou de ordens, isto é,
de segmentos fundados numa explícita desigualdade jurídica, não
implica de nenhum modo a negação da realidade econômico-social
das classes153. Se é verdade, como lemos no Manifesto comunista,
que “a história de todas as sociedades até agora tem sido a histó-
ria das lutas de classe”, então é tarefa dos marxistas definir com
precisão quais eram as classes sociais que formavam a estrutura
do Brasil nas épocas colonial e imperial e como se processavam
as lutas entre elas.
Na verdade, já em RBB, Florestan não se recusa a enfrentar essa
tarefa: embora se valha de uma terminologia weberiana (“patri-
monialismo”, “estamento” etc.), ele nos apresenta nesse livro uma
análise das motivações comportamentais dos senhores de escravos
que se aproxima em muitos casos de uma análise marxista, já que
tais motivações são por ele vinculadas à sua gênese nas relações
sociais de produção. De resto, quando analisa os processos de
152
Gabriel Cohn, “O ecletismo bem temperado”, in: O saber militante, cit., p. 48-53.
153
Aliás, é isso o que Florestan parece supor em trabalhos imediatamente posteriores a
RBB: “Ao se evitar o emprego simultâneo de conceitos como ‘casta’, ‘estamento’ e ‘classe’,
perde-se aquilo que seria a diferença específica na evolução da estratificação social no
Brasil” (F. Fernandes, Circuito fechado, São Paulo, Hucitec, 1976, p. 47).

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transição da “sociedade estamental” para o capitalismo, Florestan


não deixa de fazer intervir nessa análise a noção da luta de classes,
o que novamente o aproxima do marxismo. Por outro lado, cabe
anotar que o uso de noções weberianas em RBB restringe-se, es-
sencialmente, às partes I e II do livro, que Florestan nos adverte,
na “Nota explicativa” (RBB, p. 9), terem sido escritas em 1966; na
parte III, redigida em 1973-1974, como ele também nos informa,
a noção de “sociedade estamental” cede lugar aos conceitos de “es-
cravismo” ou “escravismo colonial”, oriundos da tradição marxista.
Tudo indica – mas se trata apenas de uma sugestão para posterior
exame – que, entre 1966 e 1973, Florestan aprofundou os seus
estudos marxistas, em particular do pensamento de Lenin, cujos
conceitos, de resto, estão fortemente presentes nessa parte III de
RBB, precisamente aquela mais madura do livro em questão.
Há ainda um outro tópico no qual Florestan vai certamente
além de Caio Prado. Enquanto este último deixa o problema da
especificidade de nossa “revolução burguesa” na sombra – mais
sugerindo pistas do que efetivamente formulando conceitos –,
o primeiro coloca explicitamente a questão e busca dar-lhe um
tratamento teórico adequado. Ele diz com clareza, tendo prova-
velmente como alvo os autores pecebistas:
Não existe, como se supunha a partir de uma concepção europocêntrica (váli-
da para os casos ‘clássicos’ da Revolução Burguesa), um único modelo básico
democrático-burguês de transformação capitalista. (...) Até recentemente, só se
aceitavam interpretativamente como Revolução Burguesa manifestações que se
aproximassem tipicamente dos ‘casos clássicos’. (...) Tratava-se, quando menos,
de uma posição interpretativa unilateral” (RBB, p. 289-290).

Florestan coloca assim, com plena consciência, o mesmo proble-


ma já enfrentado por Lenin e por Gramsci, ou seja, o da definição
de vias “não clássicas” para o capitalismo.
Ora, essa consciência lhe permite, sempre em comparação
com Caio Prado, o uso de recursos teóricos mais precisos para
entender não apenas o específico modo da revolução burguesa
no Brasil, mas também a particularidade do capitalismo que irá
resultar dessa revolução. Sem negar que a conservação do “atraso”,

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da dependência externa, da “selvagem” exploração do trabalho,


do “autocratismo” etc. gera importantes determinações específi-
cas de nosso “moderno” capitalismo, Florestan evita, porém, ao
mesmo tempo, a tendência caiopradiana de dar prioridade a tais
elementos “atrasados” na caracterização de nosso presente: graças
a uma visão mais mediatizada, ele ressalta também os traços novos
que o capitalismo introduz na vida social brasileira, destacando
entre eles a industrialização e a urbanização, o revolucionamento
do universo de valores, a nova estratificação social etc. Com isso,
a “imagem do Brasil” elaborada pelo nosso marxismo dá um sig-
nificativo passo à frente, possibilitando uma visão mais precisa e
complexa não só das contradições do nosso presente, mas também
das tarefas estratégicas que se colocam aos que pretendem construir
um novo futuro.

3
Lenin, na definição dos pressupostos de uma via “não clássica”
para o capitalismo, recorre sobretudo ao modo de resolução da
“questão agrária”. Florestan, ao contrário, sublinha uma outra
característica para explicar a “não classicidade” brasileira: para
ele, com efeito, a peculiaridade de nossa revolução burguesa re-
sultaria essencialmente do fato de que esta se processa num país
dependente, primeiro do colonialismo, hoje do que ele chama
de “imperialismo total”. Para Florestan, residiria sobretudo nesse
caráter dependente e subalterno de nossa formação social a razão
por que não seguimos uma “via clássica” para a modernidade; ou,
mais precisamente, foi por termos sempre ocupado uma posição
dependente no quadro do capitalismo internacional que não pu-
demos conhecer uma revolução burguesa capaz de forjar em nosso
país uma superestrutura política que, referindo-se a Barrington
Moore Jr., nosso autor chama de “liberal-democrática”. Ao elencar
os traços mais perversos do que define como a “autocracia burgue-
sa” brasileira, Florestan nos adverte para o fato de que tais traços
“são típicos da organização e do funcionamento da sociedade de
classes sob o capitalismo dependente e subdesenvolvido (e não se

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manifestam da mesma forma onde a Revolução Burguesa segue


seu curso ‘clássico’ ou liberal-democrático)” (RBB, p. 327). Além
dessa dependência ao colonialismo e ao imperialismo, Florestan
menciona também, como fator explicativo da via “não clássica”
no Brasil, o caráter tardio de nosso desenvolvimento capitalista,
que se processaria num momento histórico no qual, já tendo o
socialismo ingressado na agenda política mundial, ocorreria uma
batalha de vida ou morte entre ele e o imperialismo (RBB, p.
352). Ora, segundo Florestan, isso faz com que a burguesia bra-
sileira prefira se aliar às velhas classes dominantes e aos segmentos
militares em vez de tentar um compromisso permanente com as
classes subalternas, compromisso que, se realizado, implicaria uma
ampliação dos direitos de cidadania entre nós. Em estreita articu-
lação com a dependência, que torna a burguesia brasileira carente
de autonomia, o temor ao proletariado e ao socialismo contribuiu
ainda mais para fazer com que essa classe adotasse, na busca da
consolidação de seu domínio, o caminho de uma “contrarrevolução
prolongada” (RBB, p. 310 e ss.), que utiliza politicamente formas
mais ou menos explícitas de poder “autocrático”.
Decerto, esse caráter dependente e tardio de nosso desenvol-
vimento capitalista explica muito do caráter de nossa “revolução
burguesa”, mas – ao contrário de Florestan – penso que não explica
tudo154. A Alemanha e o Japão, por exemplo, embora não fossem
países dependentes, experimentaram vias “não clássicas” para o
capitalismo, marcadas também, pelo menos durante um longo
período, pela construção e preservação de estruturas políticas
abertamente ditatoriais; além disso, embora em ambos os casos
154
Parece-me importante registrar que há autores marxistas brasileiros que, embora por
caminhos nem sempre semelhantes aos de Florestan, também insistem em definir nossa
“não classicidade” na transição para o capitalismo recorrendo prioritariamente a tais
determinações provenientes da dependência do Brasil ao mercado internacional. É o
caso, por exemplo, de J. Chasin (O integralismo de Plínio Salgado, São Paulo, Ciências
Humanas, 1978), de Ricardo Antunes (Classe operária, sindicatos e partido no Brasil, São
Paulo, Cortez-Ensaio, 2ª ed., 1988) e de Antonio Carlos Mazzeo (Estado e burguesia no
Brasil, Belo Horizonte, Oficina do Livro, 1989), que se referem a uma “via colonial” ou
“colonial-prussiana” para definir a modalidade de nossa “revolução burguesa”.

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estivéssemos diante de capitalismos “tardios”, isso não impediu


que Alemanha e Japão se tornassem, por sua vez, países imperia-
listas. Como vimos, para Lenin (e, de certo modo, também para
Gramsci­), o fator decisivo na geração de uma via “não clássica” para
o capitalismo é um fator interno, residindo sobretudo no modo
pelo qual o capitalismo resolve a “questão agrária”: a via clássica
implica uma solução revolucionária, com a destruição da grande
propriedade pré-capitalista e a criação de um campesinato livre,
enquanto o caminho “não clássico” tem lugar quando a grande
propriedade e a velha classe latifundiária se conservam, introdu-
zindo progressivamente e “pelo alto” novas relações capitalistas.
Ora, a percepção disso é um dos pontos fortes da “imagem do
Brasil” presente na obra de Caio Prado, que dedicou importantes
estudos à analise de nossa “questão agrária”155, nos quais mostra
que o velho latifúndio se tornou capitalista sem perder muitas
de suas velhas características, em particular o uso e o abuso de
formas de “coerção extraeconômica” sobre o trabalhador. Penso
assim que a definição florestaniana da especificidade da “revolução
burguesa” no Brasil ganharia ainda mais em densidade se, além
das determinações resultantes do caráter dependente e tardio do
desenvolvimento capitalista entre nós, incorporasse também as
determinações provenientes do modo de resolução (ou de não
resolução) da nossa “questão agrária”, tão bem conceitualizado
na obra de Caio Prado.
Mas, independentemente disso, o fato é que, com base em
seu conceito de uma revolução burguesa de tipo “não clássico”,
Florestan não só reexaminou momentos essenciais de nosso pas-
sado, mas também propôs uma brilhante interpretação marxista
– talvez a mais lúcida de que dispomos até hoje – daquilo que,
na época em que RBB foi publicado, constituía o nosso presente
histórico. Essa análise florestaniana do presente desdobra-se em
três complexos problemáticos estreitamente articulados entre si.

155
Cf., por exemplo, os textos reunidos em Caio Prado Júnior, A questão agrária no Brasil,
São Paulo, Brasiliense, 1979.

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Cultura e sociedade no Brasil 233

No primeiro deles, Florestan disseca as lutas de classe que culmi-


naram no golpe de 1964, por ele corretamente definido como
uma “contrarrevolução preventiva”, desfechada por uma burguesia
finalmente unificada pelo temor comum de seus vários segmentos
à tumultuosa ascensão dos movimentos populares no início dos
anos de 1960. No segundo, ele conceitua os principais traços
político-institucionais do regime que resultou do golpe, regime
ao qual dá o nome de “autocracia burguesa”156; segundo Florestan,
esse regime – que Gramsci certamente subsumiria sob o tipo
geral definido por ele como “ditadura sem hegemonia” – seria a
expressão da impossibilidade estrutural da burguesia brasileira de
ampliar minimamente suas bases de consenso junto aos segmentos
subalternos, o que a obrigaria a recorrer de modo sistemático e
permanente à coerção aberta contra os “de baixo”.
Finalmente, no terceiro de tais complexos problemáticos,
Florestan já se revelava capaz – embora estivesse escrevendo em
1973-1974 – de apontar as principais características do “projeto
de abertura” que então apenas se iniciava, um projeto proposto
pelo regime militar para enfrentar as crescentes dificuldades eco-
nômicas e políticas em que estava sendo envolvido. Para nosso
autor, a implementação desse projeto significaria apenas que “a
autocracia burguesa leva a uma democracia restrita típica, que se
poderia designar como uma democracia de cooptação” (RBB, p.
358-359). Ou seja: mediante um processo que Gramsci chamaria
156
Embora Florestan tenha indicado com precisão os traços essenciais do regime ditatorial
implantando no Brasil depois de 1964, inclusive negando corretamente que ele pudesse
ser caracterizado como “fascista” (já que não recorria à organização das massas), parece-me
impróprio o seu emprego do termo “autocracia burguesa”. Recorrendo a uma perió-
dica mudança de “Presidentes”, o poder ditatorial brasileiro da época não se encarnou
numa única pessoa e, nessa medida, não pode ser chamado de “autocrático”. Indagado
sobre as razões do uso desse termo por Florestan, o amigo Octávio Ianni me deu uma
explicação convincente: o autor de RBB teria se valido de uma expressão cunhada por
Lenin para caracterizar a autocracia tsarista em sua última fase, quando – sem deixar
de ser autocrático (o tsar se dizia mesmo “autocrata de todas as Rússias”) – o tsarismo
já atuava essencialmente como um Estado burguês. Insisto, porém, em que a “licença
poética” a que Florestan recorreu não anula de nenhum modo a sua correta caracterização
conteudística do poder ditatorial resultante do golpe de 1964.

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234 Carlos Nelson Coutinho

de “transformismo”, o regime buscava perpetuar-se no poder por


meio da cooptação de alguns segmentos moderados da oposição,
mas sem abandonar – um fato sobre o qual nosso autor insistia sem
vacilações – a sua natureza essencialmente autocrática. Com base
em sua análise das características específicas da nossa burguesia,
Florestan negava enfaticamente a possibilidade de que ela pudesse
se reciclar estruturalmente, adotando formas mais consensuais ou
democráticas (hegemônicas, como diria Gramsci) no exercício do
seu poder de classe. Por isso, ele nos adverte que “não se pode dizer
que tal ditadura de classe [implantada em 1964] seja transitória”
(RBB, p. 350). De resto, como veremos, essa negação se mantém
em seus escritos posteriores a RBB: até sua morte, Florestan sem-
pre supôs que – embora pudesse alterar alguns traços inessenciais
do seu modo de dominação – a burguesia brasileira seria incapaz
de renunciar a estruturas autocráticas de dominação, já que tal
renúncia poria seriamente em risco não só o seu poder, mas a sua
própria existência como classe.

4
Essa suposição me parece estar na raiz de concepções equivocadas
presentes na produção teórica e jornalística do último Florestan.
Embora denunciasse com lucidez os limites “transformistas” do
projeto de “abertura”, Florestan parece ter subestimado – em seus
trabalhos posteriores a RBB – o fato de que tal projeto foi atraves-
sado e contraditado por um processo de abertura, isto é, por um
movimento social objetivo que resultou da ativação da sociedade
civil, em particular dos segmentos ligados às classes trabalhadoras157.
O “processo” de abertura, atuando de baixo para cima, abriu e con-
quistou espaços que nem de longe estavam previstos no “projeto”
geiseliano-golberiano, que previa apenas uma reforma da autocracia
“pelo alto”, com a conservação de suas características essenciais.
Ora, em 1974, no momento em que escreveu a última parte de

157
Para a dialética entre “projeto” e “processo” de abertura, cf. C. N. Coutinho, Contra a
corrente. Ensaios sobre democracia e socialismo, São Paulo, Cortez, 2000, p. 87 e ss.

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Cultura e sociedade no Brasil 235

RBB, era absolutamente compreensível que Florestan subestimas-


se as potencialidades desse processo de abertura, já que ele só iria
efetivamente tomar corpo e dimensão nacional a partir das greves
do ABC, ocorridas entre 1978 e 1980, e da memorável campanha
pelas “diretas-já”, que culmina em 1984. Por isso, também é com-
preensível – embora isso expresse mais um wishfull thinking do que
uma análise realista – que sua obra-prima se encerre sugerindo que
tínhamos apenas uma alternativa: ou a permanência da “autocracia
burguesa” (ainda que sob as novas vestes da “democracia de coop-
tação”) ou a “revolução socialista” (concebida, de resto, como uma
explosão violenta). Vejamos o que ele diz, no último parágrafo de
sua obra-prima:
No contexto histórico de relações e conflitos de classe que está emergindo, tanto
o Estado autocrático poderá servir de pião para o advento de um autêntico
capitalismo de Estado, stricto sensu, quanto o represamento sistemático das
pressões e das tensões antiburguesas poderá precipitar a desagregação revolu-
cionária da ordem e a eclosão do socialismo (RBB, p. 366).
Os fatos subsequentes à publicação de RBB, embora tenham
confirmado algumas das previsões ali formuladas, parecem ter
desmentido outras tantas. Por não ter avaliado adequadamente
as potencialidades do processo de abertura, Florestan continuou
subestimando, em seus últimos trabalhos, o peso que os setores
populares – e, em particular, a nova classe trabalhadora – tiveram
nos fenômenos da transição democrática e, consequentemente, na
definição das instituições políticas (sobretudo a Constituição de
1988) que dele derivaram. Dada a concreta correlação de forças que
então se manifestou, essa nova institucionalidade foi fortemente
marcada pelas lutas das classes subalternas; a meu ver, a transição
– ainda que, em seu momento resolutivo, tenha reproduzido a
velha tradição brasileira dos “arranjos” pelo alto – foi também de-
terminada, pelo menos em parte, pelas pressões que provinham “de
baixo”. Por isso, não é de modo algum casual que a Constituição
de 1988, que recolheu em seu texto muitas dessas pressões, tenha
se tornado – desde o governo Collor até o governo Cardoso – um
dos principais alvos da luta que a burguesia vem travando para

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236 Carlos Nelson Coutinho

consolidar entre nós uma nova forma de dominação de classe. Em


sua caracterização do período, Florestan reteve apenas o momento
da “reforma pelo alto”, tanto assim que designou o contraditório
processo de transição como uma “transação conservadora”; em
consequência, a nova institucionalidade lhe aparecia como nada
mais do que uma enésima manifestação da “autocracia burguesa”,
ou, em suas próprias palavras, como o “último e surpreendente
refúgio [da ditadura]”.158 Por isso, ele continuou a supor até o fim
que o único caminho para a luta pela democracia e pelo socialismo
no Brasil seria o de uma revolução explosiva e violenta. Num texto
escrito em final de 1985, por exemplo, ele nos diz:
O que se destroçou? A ilusão de que um país como o Brasil possa expungir-se
de iniquidades seculares por meios pacíficos (...). A democracia exige uma
revolução social [que] rebenta de baixo (...). Os caminhos pacíficos estão blo-
queados e as ‘esquerdas’ (...) precisam aprender a avançar revolucionariamente
na direção de sua organização institucional.159
Desse modo, Florestan parece não ter visto que as novas
condições abertas pela derrota da ditadura impunham às forças
populares a adoção de uma nova estratégia de luta, estratégia que
– para usar os conhecidos conceitos de Gramsci – já não devia
recorrer à “guerra de movimento”, ao choque frontal, mas sim
à “guerra de posição”. O que, se essa minha avaliação é correta,
implica a necessidade de substituir a proposta de uma revolução
“explosiva” e violenta pela de uma revolução “processual”, fundada
numa luta permanente pela hegemonia.
Esses limites da “imagem do Brasil” no último Florestan
parecem-me resultar, de resto, não só dessa subestimação do
processo de abertura na avaliação da nova institucionalidade cons-
truída depois de 1985, mas também de uma discutível afirmação
já presente em RBB. Nesse livro, a correta análise florestaniana da
revolução burguesa no Brasil como manifestação de uma via “não
158
F. Fernandes, Nova República?, Rio de Janeiro, Zahar, 1986, p. 8 e passim. Cf. também
os artigos e intervenções reunidos em id., A Constituição inacabada, São Paulo, Estação
Liberdade, 1989, passim.
159
F. Fernandes, Que tipo de República?, São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 54.

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Cultura e sociedade no Brasil 237

clássica”, que implicou em momentos decisivos o uso sistemático


de formas abertamente ditatoriais e coercitivas, combina-se com
uma generalização problemática, isto é, com a afirmação de que
a nossa burguesia careceu e carecerá sempre, para poder exercer
seu domínio de classe, dessas formas ditatoriais ou “autocráticas”
de poder político (uma análise empírica constata que o recurso a
formas “não clássicas” de revolução burguesa não impede que o
país que as adotou conheça, em determinadas etapas de sua his-
tória, estruturas políticas liberal-democráticas; basta recordar aqui
os casos do Japão, da Alemanha, da Itália ou da Espanha). Essa
generalização faz com que Florestan não leve em consideração,
em suas análises, alguns períodos históricos em que a burguesia
brasileira se viu obrigada a recorrer a formas de dominação que
implicam elementos de hegemonia (no sentido gramsciano), ou
seja, à busca de um relativo consenso junto às classes subalternas.
Penso que um movimento desse tipo ocorreu durante o chamado
“período populista”, quando a burguesia – através da ideologia
nacional-desenvolvimentista – buscou (e em grande medida
obteve) uma hegemonia “seletiva” junto a segmentos das classes
subalternas, em particular aos trabalhadores urbanos enquadrados
na CLT160. Mas é outra a opinião de Florestan. Para ele, “a ‘de-
magogia populista’ (...) era uma aberta manipulação consentida
das massas populares. (...) Não existia uma democracia burguesa
fraca, mas uma autocracia burguesa dissimulada” (RBB, p. 340).
Também o período que se inicia com o “processo de abertura” e
que chega até nossos dias pode ser caracterizado, a meu ver, como
um contexto no qual a burguesia – constrangida pelas condições
impostas não só pela nova correlação de forças entre ela e as
classes subalternas no plano interno, mas também pelo contexto
internacional – volta a buscar formas hegemônicas para consolidar
sua dominação. Mas, assim como afirma que a época populista
não passou de uma “autocracia burguesa dissimulada”, Florestan
160
Sobre essa “hegemonia seletiva” na época populista, cf. C. N. Coutinho, “Crise e redefi-
nição do Estado brasileiro”, in: A. M. Peppe e I. Lesbaupin (orgs.), Revisão constitucional
e Estado democrático, São Paulo, Loyola, 1993, p. 84 e ss.

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238 Carlos Nelson Coutinho

também supõe, como vimos, que o período iniciado em 1985 é


apenas o “último refúgio da ditadura”.
Ao fazer essas observações críticas, não pretendo de modo al-
gum negar o fato indiscutível de que, com seu salutar radicalismo,
Florestan desmistificou muitas das ilusões que dominavam setores
importantes da esquerda em sua avaliação da situação aberta com
a chamada “Nova República”, uma expressão que, lucidamente,
ele sempre fazia acompanhar ou de aspas ou de um ponto de in-
terrogação. Quando hoje – à luz do que agora sabemos sobre os
governos Sarney, Collor e Cardoso – reexaminamos a denúncia
florestaniana das tendências regressivas e conservadoras contidas
na nova fase histórica que então se iniciava, somos forçados a
constatar que muito daquilo que a alguns de nós parecia na época
manifestação do “sectarismo” do velho Florestan era, ao contrá-
rio, a confirmação da sua lucidez analítica e da sua capacidade de
previsão. Decerto, continuo pensando que as alternativas contidas
na conjuntura que se inicia no Brasil depois de 1985 não cabem
no estreito dilema formulado no final de RBB e reproduzido nos
últimos textos de Florestan: ou “autocracia burguesa”, ainda que
mascarada sob novas formas, ou “revolução socialista”, concebida
ademais como um processo explosivo que rompe radicalmente
com a nova institucionalidade que resultou da transição. Essa
institucionalidade, que os trabalhadores contribuíram para criar,
parece-me ser o ponto de partida da nossa difícil luta para derrotar
a reestruturação do poder burguês (que agora tenta se consolidar
sob a hegemonia do neoliberalismo) e, ao mesmo tempo, para
construir – por meio de uma estratégia reformista-revolucionária
– as condições para a implantação do socialismo em nosso país.
Mas agora sabemos, graças, entre outras coisas, ao radicalismo de
Florestan, que a esquerda brasileira não pode travar essa luta se não
se libertar de uma dupla ilusão: por um lado, a de que os avanços
obtidos na construção de nossa democracia já estejam definitiva-
mente consolidados, mesmo no nível da superestrutura política;
e, por outro, a de que, ainda que os consigamos consolidar, tais
avanços sejam suficientes para realizar a verdadeira emancipação

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Cultura e sociedade no Brasil 239

humana do nosso povo. A democracia que começamos a cons-


truir na época da transição só se consolidará de modo definitivo
e só realizará plenamente seu valor universal no horizonte da
sua progressiva radicalização, ou seja, da sua transformação em
democracia socialista.

5
As críticas que sugerimos aqui, ao tentar analisar a herança
teórica e política de Florestan, não pretendem ser mais (nem tam-
pouco ser menos) do que propostas de autocrítica. Embora talvez
nenhum marxista tenha elaborado uma “imagem do Brasil” tão
rica e lúcida como a que Florestan nos legou, sabemos – como ele
também o sabia – que “o proletariado não deve recuar diante de
nenhuma autocrítica, pois só a verdade pode levá-lo à vitória e, por
isso, a autocrítica deve ser seu elemento vital”.161 A tarefa coletiva
de elaborar uma “imagem do Brasil” com base no marxismo – para
a qual, depois de Caio Prado Júnior e de Nelson Werneck Sodré,
Florestan Fernandes deu certamente a maior contribuição – é uma
tarefa sempre em aberto, pelo que jamais poderemos nos satisfazer
com os resultados já obtidos. Para o cumprimento de tal tarefa,
Florestan não contribuiu apenas com suas brilhantes reflexões
teóricas, mas também com o seu extraordinário exemplo moral.
O radicalismo com que ele empreendeu sua atividade intelectual e
política, sobretudo na última fase de sua vida, é uma lição que nós,
intelectuais marxistas (mas não só marxistas), não podemos e não
devemos esquecer. Contra os trânsfugas e os capitulacionistas, contra
os que optaram pela falsa “democracia de cooptação”, o exemplo de
Florestan Fernandes nos recorda que o lugar dos intelectuais dignos
desse nome é ao lado das classes subalternas, na difícil, mas cada vez
mais necessária, luta pela revolução democrática e socialista.

(1998)

161
György Lukács, História e consciência de classe, Porto-Rio de Janeiro, Escorpião-Elfos,
1989, p. 107.

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O legado de Octavio Ianni

A obra de Octavio Ianni, que é o tema deste Colóquio, mere-


ce ser discutida em profundidade: trata-se de uma obra extensa,
que abordou diferentes temas e passou por diferentes fases. Ela
deve servir como inspiração e desafio para novos estudos que
aprofundem suas ideias e também corrijam alguns de seus limi-
tes, mas que, sobretudo, deem continuidade à imagem do Brasil
que ele construiu nos seus trabalhos. É um enorme prazer poder
rememorar aqui a figura de Octavio Ianni, que aprendi não só a
admirar como intelectual, mas também a estimar profundamente
como ser humano.
Podemos abordar a sua obra de diferentes ângulos, já que ele
se dedicou a inúmeros campos do saber. Escreveu livros tratando
dos processos de modernização capitalista no Brasil, de questões
de teoria, de nossa produção cultural e de nossas relações raciais,
de fenômenos sociopolíticos da América Latina e, finalmente, dos
problemas da globalização. Mas cabe registrar que, se ele abordou
vários e múltiplos temas, sempre o fez valendo-se metodologica-
mente do ponto de vista da totalidade, ou seja, do ponto de vista
do marxismo.
Tal como seu mestre Florestan Fernandes, Octavio sempre se
disse um sociólogo. Tenho dúvidas, porém, se um marxista, como
era o seu caso, pode aceitar a atual divisão acadêmica do trabalho
científico e dizer-se simplesmente um “sociólogo”. Com base em
Gramsci e em Lukács, creio que a sociologia é um modo limitado
de abordar a realidade social. Não vou aqui entrar nessa discus-
são – longa, profunda, complexa – das relações entre marxismo
e sociologia, mas creio que há na sociologia, qualquer que seja a
sua orientação teórico-metodológica, uma tendência a desisto-
ricizar a análise do real e a desvincular os fenômenos sociais de
sua base econômica. Já que Ianni nunca fez isso, não me parece
inteiramente adequado caracterizá-lo, tal como ele mesmo o fazia,

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como um sociólogo. Ele era mais do que isso, na exata medida


em que, enquanto marxista, abordava os fenômenos sociais numa
dimensão bem mais ampla do que a dos “estudos sociológicos”,
ou seja, precisamente naquela dimensão dada pelo ponto de vista
historicista da totalidade.
Devemos lembrar que Octavio foi um dos primeiros sociólo-
gos, com aspas ou sem aspas, a adotar explicitamente no Brasil o
método histórico-dialético na abordagem dos fenômenos sociais.
Como se sabe, formou-se nos anos de 1950 na USP, em torno
de Florestan Fernandes, um importante grupo depois conhecido
como Escola Paulista de Sociologia. Dele faziam parte dois jovens
pensadores, certamente brilhantes, ambos preocupados em utilizar
nas suas pesquisas o método histórico-dialético. Refiro-me, é claro,
a Octavio Ianni, mas também a Fernando Henrique Cardoso, de
quem – apesar de sua tardia solicitação neste sentido – não de-
vemos esquecer o que ele escreveu nesta época e mesmo algumas
décadas depois. De Cardoso, recordo, em particular, o belo livro
sobre Capitalismo e escravidão, publicado em 1962, no qual há uma
longa introdução em que ele expõe com brilho, valendo-se sobre-
tudo de Lukács e de Sartre, os princípios do método dialético.162
Diria mesmo que Octavio e Fernando Henrique, nesses primei-
ros trabalhos, aplicam um pensamento dialético mais rigoroso do
que aquele que Florestan aplicava à época. É claro que Florestan se
apropriou mais tarde das categorias marxistas, particularmente no
final dos anos de 1970, o que se expressa, sobretudo, em sua obra-
prima, A revolução burguesa no Brasil.163 Mas, até o início dos anos
de 1960, quando seus dois jovens assistentes já eram marxistas,
Florestan ainda adotava em seus estudos o método funcionalista,
ou, mais precisamente, como diria Gabriel Cohn, um “ecletismo

162
F. H. Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, São Paulo, Difusão Europeia
do Livro, 1962. A mencionada introdução está nas p. 9-33.
163
F. Fernandes, A revolução burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica, Rio de
Janeiro, Zahar, 1975. Sobre este livro seminal, cf. supra, “Marxismo e imagem do Brasil
em Florestan Fernandes”, p. 221-239.

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bem temperado”.164 Octavio e Fernando Henrique chegaram mes-


mo a publicar, em 1960, um livro em comum.165 Mas não se deve
esquecer que, quando alguém pensou em reeditar o livro, num
momento em que Cardoso já era presidente da República, Octa-
vio recusou-se a fazê-lo por discordar radicalmente das posições
teóricas e políticas então adotadas pelo seu antigo colega.
É certamente em grande medida por causa dessa base me-
todológica que a obra de Octavio Ianni é tão importante para a
compreensão do passado, do presente e (não hesitaria em dizê-lo)
do futuro do Brasil. Em seus primeiros trabalhos (sobretudo no
já clássico As metamorfoses do escravo, de 1962), ele nos forneceu
contribuições decisivas para a compreensão do período colonial
brasileiro.166 Em obras mais tardias, ele nos revelou alguns dos
traços fundamentais da constituição do Brasil moderno, no
período que vai de 1930 até o golpe de abril de 1964.167 Em
A ditadura do grande capital168, finalmente, encontramos uma das
mais lúcidas análises da natureza de classe da ditadura implantada
no Brasil em 1964, uma análise que, como veremos adiante, evita
claramente o uso de categorias ambíguas – como “autoritarismo”
e “burguesia de Estado”, então desenvolvidas por seu ex-colega
Fernando Henrique Cardoso169 – e desvenda o vínculo estrutural
entre aquela ditadura e os interesses privados do grande capital
nacional e internacional.
Do conjunto dessas importantes obras, que abrangem uma
análise do passado e do presente de nosso país, com projeções
164
G. Cohn, “O ecletismo bem temperado”, in: M. A. D’Incao (org.), O saber militante.
Ensaios sobre Florestan Fernandes, São Paulo, UNESP-Paz e Terra, 1987, p. 48-53.
165
O. Ianni e F. H. Cardoso, Cor e mobilidade social em Florianópolis, São Paulo, Companhia
Editora Nacional, 1960.
166
O. Ianni, As metamorfoses do escravo. Apogeu e crise da escravatura no Brasil meridional,
São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1962; 2ª edição, revista e ampliada, São Paulo-
Curitiba, Hucitec-Scientia et Labor, 1988.
167
Cf., entre outros, O. Ianni, O colapso do populismo no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1978; e id., Estado e planejamento econômico no Brasil, Rio de Janeiro, Civi-
lização Brasileira, 1971 (nova edição, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2010).
168
O. Ianni, A ditadura do grande capital, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1981.
169
Cf. F. H. Cardoso, Autoritarismo e democratização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975.

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244 Carlos Nelson Coutinho

para o futuro, emerge o que poderíamos chamar de uma “imagem


do Brasil”. Entendo por “imagem do Brasil” não a descrição de
elementos parciais de nossa realidade social, ou mesmo de nossa
realidade global, mas a tentativa de compreender a gênese histórica
desta realidade e de identificar as tendências contraditórias que ela
comporta no presente e que apontam para o futuro. Há grandes
pensadores que contribuíram, em maior ou menor medida, para
a elaboração de uma imagem do Brasil. Uma imagem de direita,
por exemplo, pode ser encontrada na obra de Gilberto Freyre ou
de Oliveira Vianna; uma imagem de esquerda, ao contrário, apa-
rece, sobretudo, nas obras de Caio Prado Júnior, Nelson Werneck
Sodré e Florestan Fernandes.
Com sua produção, Ianni colaborou decisivamente para en-
riquecer essa imagem de esquerda, ou, mais precisamente, uma
imagem marxista do Brasil. Nesse sentido, cabe lembrar que,
além de contribuir para uma correta compreensão dos processos
de modernização capitalista que ocorreram em nosso país, sobre-
tudo a partir de 1930, ele teve uma forte preocupação no sentido
de esclarecer as raízes coloniais do Brasil moderno. Lembro aqui
de novo de um de seus primeiros trabalhos, As metamorfoses do
escravo, importante contribuição para a compreensão da pré-
história da modernidade brasileira. Nele, Ianni mostra que os
escravos no Brasil formam uma casta (ou um estamento) e não
podem ser considerados membros de uma mesma classe social.
Todos os escravos se identificam, no plano jurídico, pela falta de
liberdade, de direitos, constituindo assim uma casta ou estamento;
mas eles se inserem diversamente nas relações sociais de produção
e, portanto, integram diferentes classes sociais. Isso explica, entre
outras coisas, a razão por que os escravos brasileiros nunca foram
capazes de construir uma autêntica consciência de classe, que se
manifestasse através de uma vontade e de uma ação coletivas. Em
consequência, o principal grupo subalterno de nossa formação
econômico-social da época da Colônia e do Império não foi ca-
paz de opor uma efetiva resistência coletiva, a partir de baixo, à
dominação das classes que ocupavam o poder. Entre outras coisas,

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Cultura e sociedade no Brasil 245

isso inviabilizou a possibilidade de uma revolução jacobina em


nosso país.
Temos aqui uma das raízes dos recorrentes processos de mo-
dernização pelo alto, com exclusão das classes subalternas, que
marcaram a história brasileira. Chamados de “via prussiana” por
Lenin ou de “revolução passiva” por Gramsci, a análise de tais
processos ocupa um lugar de destaque na obra de Ianni. Recordo
aqui, em particular, um pequeno grande livro seu, O ciclo da revo-
lução burguesa170, em que ele discute as formas que a modernização
capitalista assumiu no Brasil. Chamando tais formas de “revolução
de cima para baixo”, ou mesmo de “contrarrevolução”, ele apre-
senta nesse livro uma importante resenha crítica dos autores que
forneceram subsídios para a elucidação desta peculiar via seguida
pela modernização burguesa no Brasil.
O tema que me foi proposto é a questão do Estado na obra
de Octavio Ianni. Creio que não me afastei do tema ao fazer
essas observações iniciais, voltadas, sobretudo, para esclarecer a
metodologia usada por nosso autor e o quadro de conjunto em
que se inserem suas reflexões sobre o Estado. Com efeito, Ianni
sabe que é impossível abordar a questão do Estado sem vinculá-
la organicamente com a totalidade social. Como marxista, ele
recusa a ideia de que o Estado possa ser tratado como um sujeito
autônomo, situado acima do movimento das classes sociais. Ao
contrário, Ianni sempre nos mostra a relação de dependência que
existe entre o Estado e os movimentos da sociedade, em particular
os movimentos das classes e das frações de classe. Isso não significa
que ele subestime o papel do Estado na formação da ordem social
capitalista e, muito particularmente, da ordem social capitalista
brasileira, na qual o Estado se reforçou em função precisamente
dos processos de “revolução de cima para baixo”.
Em uma de suas primeiras obras171, ele insiste na importância
de estudar o papel do Estado na história de nosso país. Já no
170
O. Ianni, O ciclo da revolução burguesa, Petrópolis, Vozes, 1984.
171
O. Ianni, Estado e capitalismo. Estrutura social e industrialização no Brasil, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1965.

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246 Carlos Nelson Coutinho

prefácio a esse importante livro, adverte: “As relações do Estado


com a estrutura social e o progresso econômico é fenômeno pouco
examinado pela sociologia. No Brasil, ele não foi senão objeto de
reflexões esparsas”172. Quando fala em “reflexões esparsas”, penso
que Octavio estava se referindo ao tratamento inadequado que
a questão do Estado recebeu entre nós e não tanto à ausência
desse tratamento. Por exemplo, na obra de Oliveira Vianna e de
Azevedo Amaral, o Estado ganha grande destaque, mas aparece
como demiurgo das relações sociais. Para esses pensadores, o Brasil
seria uma sociedade amorfa, carente de uma organização social
sólida, cabendo a um Estado autoritário a tarefa de organizar a
sociedade e a nação de cima para baixo; essa formulação, como
se sabe, inspirou a prática política do Estado Novo varguista e
pode ser considerada uma justificativa ideológica da “revolução
de cima para baixo”.
Ianni se opõe claramente a esta fetichização do Estado. Sem
negar sua importância, como vimos, ele liga o fenômeno estatal à
totalidade social. Com efeito, na parte final deste seu livro, lemos:
“A interpretação que eu aqui proponho vai num crescendo, ou
seja, da atividade real do Estado ao fluxo histórico do sistema em
que aquela [atividade do Estado] ganha sentido”173. Portanto, com
base na sua metodologia dialética, ele mostra como é impossível
conceituar adequadamente o Estado fora do que ele chama de
“fluxo histórico”, ou seja, fora do contexto das lutas de classes, às
quais, de resto, é dedicado o capítulo IV de Estado e capitalismo.174
Houve sempre na produção teórica de Ianni esta insistência no fato
de que a luta de classes, em suas inúmeras formas e mediações, tem
um papel central na explicação não só dos fenômenos estatais, mas
também dos demais fenômenos históricos, ou seja, na explicação
do movimento de conjunto da totalidade social.
Este reconhecimento da centralidade da luta de classes é outro
ponto em que Ianni se liga, de modo consciente e explícito, à tradi-
172
Ibid., p. XIII.
173
Ibid., p. 261. Grifo meu.
174
Intitulado precisamente “As lutas de classe”, Ibid., p.129-169.

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Cultura e sociedade no Brasil 247

ção marxista. Pode-se mesmo dizer que, em sua imagem do Brasil,


ele deu mais atenção às classes sociais do que Caio Prado Júnior
e, de certo modo, do que o próprio Florestan Fernandes. Caio
Prado, por exemplo, tem uma noção de burguesia extremamente
imprecisa; ele se referia aos proprietários de terras e de escravos da
época imperial como “grande burguesia nacional”, o que eviden-
temente é um equívoco. Na análise do Brasil contemporâneo, o
grande historiador paulista subestima o papel da classe operária;
assim, num livro tão interessante como A revolução brasileira175,
praticamente não aparecem as figuras do proletariado industrial
e das camadas médias urbanas, já que a atenção do historiador
paulista para nossas classes subalternas está quase toda concentrada
no trabalhador rural assalariado. Ianni, ao contrário, deu maior
atenção, em suas análises do Brasil moderno, à pluralidade das
classes e frações de classe, tratando com maior rigor sua inserção
na moderna estrutura social brasileira.
Cabe, portanto, insistir: embora sempre dedicasse grande aten-
ção ao papel do Estado em nossa formação histórico-social, Ianni
nunca o abordou como um organismo autônomo; ao contrário,
sempre relacionou a estrutura e a ação do Estado ao movimen-
to contraditório das classes sociais. De resto, refletindo sobre o
Brasil, ele não poderia deixar de dar atenção ao importante papel
que o Estado teve em nossa história. Precisamente em função
do que ele chamou de “revolução de cima para baixo”, tivemos
quase sempre no Brasil uma situação que Gramsci chamaria de
“oriental” – ou seja, “na qual o Estado é tudo e a sociedade civil é
primitiva e gelatinosa” –, uma situação que gera com frequência o
que o pensador italiano chamou de “ditadura sem hegemonia”176.
Uma importante corrente do pensamento social brasileiro busca
explicar este fortalecimento do Estado como herança do iberismo,
175
Caio Prado Júnior, A revolução brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1966. Para uma análise
menos sumária deste livro, cf., supra, “A imagem do Brasil na obra de Caio Prado Júnior”,
sobretudo p. 201-219.
176
A. Gramsci, Cadernos do cárcere, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 6 v., 1999-2002,
respectivamente v. 3, p. 262, e v. 5, p. 330.

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248 Carlos Nelson Coutinho

do patrimonialismo etc.; estou pensando aqui, sobretudo, num


brilhante analista do Brasil, o weberiano Raymundo Faoro, que
tende a explicar esse Estado forte apenas a partir das raízes ibéricas
e do caráter patrimonialista de nossa burocracia.177 Ao contrário,
Octavio Ianni vai buscar nos processos específicos da revolução
burguesa no Brasil a origem deste fortalecimento do Estado, como
já vimos ao falar de seu livro O ciclo da revolução burguesa.
Neste ponto, ele partilha com Caio Prado Jr. e Florestan
Fernandes uma importante conclusão: o Brasil transitou para o
capitalismo, é certamente um país capitalista, pelo menos desde a
Abolição e a República, mas operou esta transição mediante o que
poderíamos chamar de uma via não clássica, ou seja, daquilo que
Lenin designou como “via prussiana” e Gramsci, como “revolução
passiva”. Nem Caio nem Florestan parecem ter conhecido, ou pelo
menos não empregaram em suas obras, esses conceitos de Lenin e
de Gramsci; Ianni, ao contrário, refere-se a eles em alguns momen-
tos de sua reflexão. De qualquer modo, independentemente do
nome usado para designá-la, a ideia de que o Brasil transitou para
a modernidade capitalista através de uma via não clássica (e não de
uma revolução jacobina, desencadeada de baixo para cima) parece
ser hoje um sólido patrimônio da imagem marxista do Brasil. E a
obra de Octavio Ianni certamente contribuiu para isso.
Podemos constatar a centralidade das lutas de classes também
nas muitas análises que Octavio dedicou ao populismo no Brasil
e na América Latina. “Populismo” é certamente um conceito
ambíguo. Com efeito, tem sido frequente na literatura sobre o
populismo a tentativa de usar o termo para esconder duas coisas:
primeiro, o caráter de classe do Estado na época dita populista; e,
segundo, o fato de que ocorreu nessa época uma intensa luta de
classes, disfarçada pelo fato de que os subalternos apareciam – e
eram assim tratados não só pelos líderes populistas, mas também
por alguns dos intérpretes do período – sob a forma de uma
massa amorfa a que se dava o nome genérico de “povo”. Aliás,
177
R. Faoro, Os donos do poder, Porto Alegre, Globo, 1958.

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Cultura e sociedade no Brasil 249

“populismo” hoje virou xingamento: qualquer governo ou ten-


dência política que não aceite os ditames neoliberais do mercado
desregulado e leve em conta os interesses das camadas populares
recebe a alcunha supostamente infamante de “populista”.
Ianni recusa claramente essa leitura asséptica do populismo.
Ele nos diz claramente, em O colapso do populismo no Brasil e em
muitos outros de seus trabalhos sobre o tema, inclusive os que
tratam de outros países da América Latina, que o populismo é
um peculiar modo de luta e de aliança de classes, bem como uma
ideologia que justifica um modo próprio de dominação burguesa.
Ele é bastante claro: “O populismo terá sido apenas uma etapa na
história das relações entre as classes sociais no Brasil (...). O po-
pulismo é um sistema de antagonismos. Como política de aliança
de classes, é uma política de aliança de contrários”178.
Escrito logo após o golpe de 1964, O colapso do populismo
mostra exatamente como este golpe foi a resultante da crise dessa
instável aliança de classes, uma aliança que se expressava no fato
de que alguns segmentos da classe operária urbana foram hege-
monizados pelo projeto nacional-desenvolvimentista dos setores
mais industrializados da burguesia. Com a politização crescente
das massas, porém, Ianni acredita que “ampliavam-se as condições
para uma solução propriamente revolucionária; constituíam-se as
condições para uma revolução socialista”179. O golpe é precisamen-
te o resultado da ação das várias frações da burguesia no sentido
de cortar pela raiz essas tendências socialistas, para as quais – na
opinião de Ianni – já apontava o movimento popular, sobretudo
depois da ativação política dos trabalhadores rurais. Em suma,
para ele, o populismo e seu colapso são fenômenos que só podem
ser explicados a partir da luta de classes.
Uma outra obra na qual o Estado aparece claramente articulado
com a análise dos processos sociais é Estado e planejamento econô-

178
O. Ianni, O colapso do populismo no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968,
p. 213.
179
Ibid., p. 240.

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250 Carlos Nelson Coutinho

mico no Brasil180, que busca mostrar o papel do Estado brasileiro na


construção dos pressupostos e dos fundamentos da modernização
capitalista de nosso país. Embora este papel resulte em grande
parte do tipo de modernização “pelo alto” a que já nos referimos,
que implica o recurso permanente à coerção (à “ditadura sem
hegemonia” de Gramsci), o balanço que esse livro nos apresenta
da ação do Estado brasileiro pós-1930 não é um balanço inteira-
mente negativo. Além de criar as condições para uma intensa e
rápida modernização das forças produtivas, segmentos das classes
trabalhadoras – embora quase sempre privados de direitos políticos
e, em muitos casos, até mesmo de direitos civis – obtiveram no
período alguns importantes direitos sociais.
Não posso aqui me deter no tema, mas lembro que Gramsci,
ao caracterizar o que chama de “revolução passiva” (e o período
histórico tratado por Ianni nesse livro pode ser considerado como
uma revolução passiva de longa duração), dizia que esta modali-
dade de transformação pelo alto expressa o movimento pelo qual
as classes dominantes, para conservar o seu poder, concedem algo
aos “de baixo”, que apresentam suas reivindicações de modo ainda
“esporádico e elementar”181. Não me parece casual que, pouco
antes de tomar posse na presidência da República, Fernando
Henrique Cardoso tenha afirmado que um dos objetivos de seu
governo seria pôr abaixo o que chamou de “Estado varguista”. Na
verdade, o que ele tinha em vista era, precisamente, destruir os
poucos elementos positivos deste Estado pós-1930, já que isso era
condição para empreender uma aberta política neoliberal, fundada
na privatização do patrimônio público e na implementação de
contrarreformas antipopulares.
Porém, mesmo ressaltando traços positivos no “Estado
varguista”, Ianni não esquece sua natureza de classe. Permitam-
me citar neste sentido uma passagem de Estado e planejamento
econômico:

180
Cf., supra, nota 167.
181
A. Gramsci, Cadernos do cárcere, ed. cit., v. 1, p. 393.

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Cultura e sociedade no Brasil 251

Deliberadamente ou não, os membros da tecnoestrutura estatal põem em


prática objetivos econômicos e técnicas de controle das relações de produção
e de apropriação por meio das quais se preserva ou modifica o modo pela qual
as diferentes classes sociais e certos grupos sociais representantes de cada classe
participam da renda nacional182.

Portanto, não é em nome da modernidade, ou da construção


da nacionalidade, que o Estado brasileiro interferiu durante tanto
tempo na esfera da economia: ao contrário, o fez para garantir os
interesses de determinadas classes e frações de classe.
Essa natureza de classe do Estado brasileiro pós-1930 volta a
ser reafirmada com ênfase em A ditadura do grande capital, no qual
Ianni tenta caracterizar a forma e o conteúdo social do Estado que
vigorou no período que se inicia com o golpe de 1964. Esse livro foi
publicado em 1981. Poucos anos antes, em 1975, Fernando Hen-
rique Cardoso havia publicado Autoritarismo e democratização183,
no qual formula – ao lado de algumas interessantes observações
tópicas – uma estranha teoria. Segundo ele, com a ampliação da
intervenção estatal na economia, reforçada pelo regime pós-1964,
teria se criado no Brasil uma suposta “burguesia de Estado”, forma-
da pelos executivos das empresas estatais. Estaríamos diante, para
ele, de uma nova classe social, cujos interesses seriam antagônicos
àqueles do capital privado; seria precisamente essa “burguesia de
Estado” a verdadeira responsável pela ditadura (que ele prefere
chamar de “autoritarismo”), ao passo que a burguesia privada seria
liberal (inclusive em política!) e defenderia o fim do “autoritaris-
mo”. Ora, dizer que a participação do Estado na economia é causa
do autoritarismo, enquanto a ação do capital privado favorece a
democracia, é levar claramente água para o moinho do liberalis-
mo privatista. É até possível que, na época, Cardoso não tivesse
plena consciência das implicações liberais ou neoliberais desta sua
formulação, mas o fato é que, anos depois, já na presidência da
República, não hesitou em pôr tais ideias em prática.

182
O. Ianni, Estado e planejamento econômico, ed. cit., p. 316.
183
Cf., supra, nota 169.

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252 Carlos Nelson Coutinho

A ditadura do grande capital, ao tentar caracterizar o período


pós-1964, não se vale absolutamente deste falso conceito de “bur-
guesia de Estado”. Para Ianni, com efeito, é muito evidente que
a ditadura pós-1964 (designação diante da qual não tergiversa) é
uma ditadura a serviço do grande capital privado, seja ele nacional
ou internacional. Como já havia mostrado em obras anteriores, ele
sabe que o papel do Estado na economia brasileira foi, na maioria
esmagadora dos casos, o de sustentação e fomento à acumulação
privada. Se as empresas estatais não eram lucrativas, isso ocorria
porque sua função não era a de obter lucro para si mesmas, mas,
ao contrário, a de repassar a mais-valia nelas geradas para os seto-
res privados do capital, que num primeiro momento não tinham
condições ou não estavam interessados em investir nos setores-
chave da economia.
Ianni mostra isso muito bem em seus livros, mas o faz particu-
larmente em A ditadura do grande capital. Prosseguindo o que já
fora iniciado na era Vargas, a ditadura militar adotou elementos de
planejamento econômico e interveio na economia com o objetivo
de assegurar condições de maior lucratividade para o capital pri-
vado, nacional e internacional. O aparelho estatal foi reforçado e
concentrado no Poder Executivo como instrumento para favorecer,
orientar e dinamizar a acumulação privada do capital. Juntamente
com Brasil: radiografia de um modelo (1974)184, de Nelson Werneck
Sodré, A ditadura do grande capital foi e continua a ser uma das
principais contribuições marxistas para a compreensão da natureza
da ditadura militar brasileira.
Gostaria de concluir sublinhando que Octavio Ianni, em seus
quase 50 anos de atividade intelectual, sempre se manteve fiel ao
princípio metodológico básico do marxismo, que consiste em
adotar, na tentativa de entender os fenômenos sociais, o ponto de
vista da totalidade, o que tem como consequência dar centralidade
à historicidade contraditória do real e, portanto, à luta de classes.
Mas gostaria de ressaltar também que essa coerência metodoló-
184
N. W. Sodré, Brasil: radiografia de um modelo, Petrópolis, Vozes, 1974.

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Cultura e sociedade no Brasil 253

gica de Ianni está organicamente ligada à coerência da sua ação


ético-política ao longo da vida. Octavio não contribuiu apenas
para a nossa compreensão da realidade brasileira e mundial: ele é
também um exemplo moral para os que buscam, através da defesa
das causas populares e da emancipação humana, uma vida mais
digna e dotada de sentido.

(2006)

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Nota bibliográfica

Os ensaios reunidos neste livro, reproduzidos aqui com modi-


ficações, foram publicados pela primeira vez, quase sempre com
diferentes títulos, nos seguintes locais:

I. “Os intelectuais e a organização da cultura”, in: Temas de


ciências humanas, São Paulo, n. 10, 1981, p. 93-110. Conferência
pronunciada em São Paulo, em 28 de junho de 1980, como parte
do curso de História do Brasil promovido pela Auphib (Associação
de Universitários e Pesquisadores de História do Brasil).
II. “Cultura e sociedade no Brasil”, in: Encontros com a Civi-
lização Brasileira, Rio de Janeiro, n. 17, novembro de 1979, p.
19-48 (reproduzido em C. N. Coutinho, A democracia como valor
universal, São Paulo, Ciências Humanas, 1980, p. 61-92).
III. “Dois momentos brasileiros da Escola de Frankfurt”, in:
Presença. Revista de política e cultura, Rio de Janeiro, n. 7, março
de 1986, p. 100-112.
IV. “O significado de Lima Barreto em nossa literatura”, in:
Vários autores, Realismo e anti-realismo na literatura brasileira, Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1974, p. 1-56.
V. “Graciliano Ramos”, in: Revista Civilização Brasileira, Rio
de Janeiro, n. 5-6, março de 1966, p. 107-150 (reproduzido em C.
N. Coutinho, Literatura e humanismo. Ensaios de crítica marxista,
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967, p. 139-190).
VI. “O povo na literatura de Jorge Amado”, in: Vários Auto-
res, Um grapiúna no país do carnaval, Salvador, Edufba-Casa das
Palavras, 2000, p. 57-62. Conferência pronunciada em Salvador
no I Simpósio Internacional sobre a obra de Jorge Amado, 10 a
13 de agosto de 1992.
VII. “A imagem do Brasil na obra de Caio Prado Júnior”, in:
Maria Ângela D’Incao (org.), História e ideal. Ensaios sobre Caio
Prado Júnior, São Paulo, Editora da Unesp-Brasiliense, 1989, p.

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256 Carlos Nelson Coutinho

115-131. Conferência pronunciada em Marília na II Jornada de


Ciências Sociais da Unesp, 26 a 28 de maio de 1988.
VIII. “Marxismo e imagem do Brasil em Florestan Fernandes”,
in: Gramsci e o Brasil, <www.gramsci.org>, seção “Textos/Brasil”.
Conferência pronunciada em São Paulo no simpósio “Florestan
Fernandes e o Brasil”, promovido pela Fundação Perseu Abramo,
26 a 28 de agosto de 1998.
IX. “O legado de Octávio Ianni”, in: M. V. Iamamoto e E. R.
Behring (orgs.), Pensamento de Octávio Ianni, Rio de Janeiro, 7
Letras, 2009, p. 55-65. Conferência pronunciada no Rio de Janeiro
no “Colóquio sobre o pensamento de Octávio Ianni”, promovido
pela Uerj, 22 a 23 de novembro de 2006.

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Índice onomástico*

A BARBOSA, Rui – 131


ADONIAS Filho – 183 BARTÓK, Béla – 46
ADORNO, Theodor W. – 29, 74, BAUDELAIRE, Charles – 74
79, 80, 82, 84-87 BENJAMIN, Walter – 74, 79-82, 87
ALENCAR, José de – 22, 61, 93 BÖLL, Heirinch – 119, 120
ALMEIDA, Manuel Antonio – 22, BRANDÃO, Octávio – 222
56, 96-99, 119, 195 BUARQUE DE HOLANDA,
ALTHUSSER, Louis – 15, 75 Chico­– 66, 67, 86
AMADO, Jorge – 11 ,12, 61, 132,
188, 195-200, 255 C
AMARAL, Azevedo – 55, 246 CALLADO, Antonio – 66, 115, 139
ANDERSON, Perry – 39 CAMPOS, Francisco – 50
ANDRADE, Mário – 56, 138 CANDIDO, Antonio – 40, 48,
ANTUNES, Ricardo – 231 187
ARISTÓTELES – 129 CAPINAM, José Carlos – 66
ATAÍDE, Austregésilo – 100 CARDOSO, Ciro Flammarion –
AZEVEDO, Aluísio – 94 204
AZEVEDO AMARAL, Antônio CARDOSO, Fernando Henrique –
José de – 55, 246 38, 72, 242, 243, 250, 251
CARLOS, Antônio – 51, 196
B CARONE, Edgard – 222
BABEUF, Grachus – 189 CASTRO ALVES, Antônio – 20,
BALZAC, Honoré de – 94, 98-100, 96, 195
112, 114, 115, 127, 129, 144, CERVANTES, Miguel de – 119
161, 182, 184, 198 CHAPLIN, Charles – 85
BARAN, Paul – 75 CHASIN, J. – 62, 231
BARBOSA, Francisco de Assis – CHOLOKHOV, Mikhail
102, 114, 135 Alexandrovitch­– 191, 193

*
Este índice relaciona apenas os nomes de pessoas; não foram incluídos neste índice
nomes de personagens literários ou mitológicos, nem títulos de livros

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258 Carlos Nelson Coutinho

COELHO, Marco Antonio (Assis FONSECA, Hermes da – 116, 131


Tavares) – 218 FOUCAULT, Michel – 81
COHN, Gabriel – 228, 242, 243 FRANK, André Gunder – 217
COSTA, Hipólito da – 51 FREIRE, Paulo – 57
COUSIN, Victor – 51 FREYRE, Gilberto – 50, 221, 244
CUNHA, Euclides da – 51
G
D GALVÃO, Walnice Nogueira – 48,
D’ANNUNZIO, Gabriele – 59 61
DAUDET, Alphonse – 100 GERRATANA, Valentino – 13
DEBRAY, Régis – 75 GOETHE, Johann Wolfgang – 99,
DEFOE, Daniel – 96, 182, 199 132, 145
DIAS GOMES, Alfredo – 85 GOLDMANN, Lucien – 44, 75,
DICKENS, Charles – 100 134, 146, 162, 186, 191
DOSTOIEVSKI, Fiodor GOMES, Eugênio – 108
Mikhailovitch­– 59, 98, 99, GONÇALVES DIAS, Antônio – 93
101, 104, 119, 120, 128, 129, GORENDER, Jacob – 39, 52, 204,
161, 184, 191 224
DUTRA, Eurico Gaspar – 28 GORKI, Maximo – 59, 98, 101, 182
GOULART, João – 217
E GRAMSCI, Antonio – 9, 12-17,
ELIOT, George (pseudônimo de 45-47, 53, 54, 60, 65, 70, 71,
Mary Ann Evans) – 104 75, 76, 79, 81-85, 87, 91, 189,
ENGELS, Friedrich – 14, 35, 37, 202, 209-211, 214, 215, 224-
41, 110, 146, 198, 225, 228 226, 229, 232-234, 236, 241,
245, 247, 248, 250
F GUDIN, Eugênio – 50
FAORO, Raymundo – 248 GULLAR, Ferreira – 52, 66
FARIAS BRITO, Raimundo de – 50
FERNANDES, Florestan – 11, 12, H
221-239, 241-244, 247, 248, 256 HABERMAS, Jürgen – 80, 82
FIELDING, Henry – 96, 180, 182 HARICH, Wolfgang – 75
FIGUEIREDO, Antonio Pedro de HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich
– 51 – 14, 35, 73, 77, 121, 129, 150,
FLAUBERT, Gustave – 144, 182 155, 193

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Cultura e sociedade no Brasil 259

HEIDEGGER, Martin – 74, 77 M


HEINE, Heinrich – 181 MACEDO, Joaquim Manuel – 93
HENRIQUES, Luiz Sérgio – 78 MACIEL, Luis Carlos – 77
HORKHEIMER, Max – 74, 79, 80, MACHADO DE ASSIS, Joaquim
85-87 Maria – 22, 58, 97, 98, 100,
108, 119, 132, 139, 195
I MAGADAN, Glória – 85
IANNI, Octavio – 11, 12, 233, MAKARENKO, Anton – 191
241-253 MALRAUX, André – 191
MANN, Thomas – 21, 48, 91, 129,
K 172, 184, 190, 193, 194
KAFKA, Franz – 191 MANNHEIM, Karl – 17
KONDER, Leandro – 26, 50, 78, MANTEGA, Guido – 208
222 MARCUSE, Herbert – 74-78, 81
KOTHE, Flavio – 79, 80 MARIÁTEGUI, José Carlos – 214
KUBITSCHEK, Juscelino – 28, 217 MARINI, Ruy Mauro – 217
MARTIN DU GARD, Roger – 98,
L 99
LAFARGUE, Paul – 94 MARX, Karl – 14, 18, 29, 37, 41,
LENIN, Vladimir Ilitch Ulianov – 47, 65, 132, 142, 146, 204,
39, 45, 46, 59, 90, 162, 202, 225, 228
204-206, 209, 222, 224-226, MATURE, Victor – 85
229, 230, 232, 233, 245, 248 MAUPASSANT, Guy de – 100
LIMA BARRETO, Afonso Henri- MAZZEO, Antonio Carlos – 231
ques de – 11, 22, 24, 27, 44, MELLO, Fernando Collor – 72,
48, 59, 60, 89, 90, 96, 100-108, 235, 238
111, 112, 114, 117, 119, 120, MELLO, Thiago de – 61
122, 123, 134-139, 142, 195, MERCADANTE, Paulo – 50-52, 56
200 MERQUIOR, José Guilherme – 73,
LUKÁCS, György – 21, 22, 46, 48, 74
49, 55-57, 65, 73, 75, 76, 78, MOORE Jr., Barrington – 206,230
81, 82, 91, 110, 118-123, 145-
147, 151, 152, 154, 160, 162, N
168, 169, 183, 191, 194, 239, NAPOLEÃO Bonaparte – 130, 131,
241, 242 161

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260 Carlos Nelson Coutinho

NETTO, José Paulo – 78 RIBEIRO, João Ubaldo – 200


NIETZSCHE, Friedrich – 59 ROBESPIERRE, Maximilien – 143,
NOVAES, Fernando – 204 189
ROUANET, Sérgio Paulo – 78,
O 80-88
OLIVEIRA, Francisco de – 208 ROUSSEAU, Jean-Jacques – 189, 190
OLIVEIRA VIANNA, Francisco S
José – 50, 221, 244, 246 SCHAFF, Adam – 75
SCHWARZ, Roberto – 42, 43, 68,
P 74, 78, 100
PAULINHO DA VIOLA (pseudô- SODRÉ, Nelson Werneck – 22, 42,
nimo de Paulo César de Faria) 51, 92, 158, 223, 239, 244,
– 67 252
PEIXOTO, Afrânio – 23, 103, 195 SOLJENITSIN. Alexander – 98, 99,
PEREIRA, Astrojildo –58, 60, 100, 119, 120
107 STENDHAL (psedônimo de Hanri
PINTO, Álvaro Vieira – 190 Beyle) – 127, 129, 144, 161,
PLATONE, Felice – 13 182, 184
POMPÉIA, Raul – 107 SWEEZY, Paul – 75
PONTES, Paulo – 66 SWIFT, Jonathan – 100
PRADO Junior, Caio – 11, 25, 38,
201-219, 221-229, 232, 239, T
244, 247, 248 TCHEKOV, Anton – 132
PUSHKIN, Alexander – 98 TOGLIATTI, Palmiro – 13, 71
TOLEDO, Caio Navarro de – 41
R TOLSTOI, Leon Nikolaievitch –
RAMOS, Graciliano – 10-12, 25, 59, 100, 101, 104, 130, 131,
89, 108, 109, 113, 132, 135, 133, 161
139, 141-194, 196, 197, 200 TROTSKI, Leon – 59
REALE, Miguel – 50 TSÉ-TUNG, Mao – 75
REGO, José Lins do – 25, 139, 183, TURGUENIEFF, Ivan – 100, 101
196
REICH, Wilhelm – 77 V
REZENDE, Leônidas – 51 VEIGA, Evaristo – 51
RIBEIRO, Gilvan P. – 78 VELOSO, Caetano – 67, 86

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Cultura e sociedade no Brasil 261

VERÍSSIMO, Érico – 139


VOLTAIRE (pseudônimo de
François-Marie Arouet) – 17

W
WEBER, Max – 228

Z
ZOLA, Émile – 93

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