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Gilles Lipovetsky A Sociedade Pos-Moralista A sociedade pés-moralista apresenta um conjunto de reflexdes que demonstram de que PROM at Ce eee ii pei eucn ey ra eect Peet tees inexisténcia de idéias em favor do retorno da moral tradicional, estrita e categérica. Alids, € Pent eon ee eons ck laces Sere arin nay mais propriamente as normas do bem-estar do Pree eer etter ere eerie free Cece tects enquanto o estimulo a sacrificar os préprios ere erence keto See eas Dee een RR ea etek indolor dos novos tempos democriticos, de acordo com o titulo deste livro de Gilles Peo ae N eek ect Transformam-se. Sacrifica-se a ilusdo de uma Sse ounce eae aes! eee eee ea sociedade. Tem-se, quem sabe, menos altruismo Breet cere aor eee e mais pritica. Mudanga de paradigma.” Vii Aysioaodry sam Pati LACO) ase fe) ed LS Lipovetsky A Sociedade P6s-Moralista © creptisculo do dever € a ética indolor dos novos tempos democraticos a1.em outro; torna a sociedade mais imoral por um lado, mais moralizada por outro. A apatia democratica se incrementa, os valores republicanos nao tém assento permanente, mas 0 espirito de pacificacio civil & predominante, novas formas de equilfbrio dos poderes ¢ de controle social se estabelecem, novas cexigéncias de justica irrompem. Em sintese, as democracias do pés-dever ainda nao disseram sua tiltima palavra. ‘A exigéncia de moralizac3o do povo foi substituida pela exigéncia de moralizagio da iniciativa publica. Praticamente nao cremos mais nos siste- mas pedagégicos do cidadao, cremos no direito como fator de moralizagao da politica. Magistrados € especialistas ocuparam os espagos das prédicas ultrapassadas sobre Educacio Moral e Civica, Antes eram os discursos de encantamento da religido civi.€ politica; hoje, empregamos nosso empenho no fortalecimento da eficécia especifica do sistema juridico. Antes, o dever era 0 ponto central da existéncias agora temos 0 “cidadao jurista”, os lobbies profissionais, o arbitramento juridico dos conflitos de interesses. Primazia da Constituicio, fragmentagio daquilo que € de algada estatal, autonomia da iniciativa piiblica em face do fator politico... Os contornos da nova de- mocracia j& no sero delimitados pela hegemonia dos encargos coletivos sobre 0s direitos de cada individuo, ¢ sim pelo Estado de direito ¢ pela concepgio jurfdica. Nossa época se caracteriza menos pelo “retorno da moral” do que pelo “retorno do direito”® do p6s-dever, a uma marcha ascendente das regulamentagbes juridicas como "Isso equivale, na sociedade democratica instincias reguladoras do porvi. » Toi, A renovacao ética Sociedade pés-moralista quer dizer sociedade que se nega a inscrever em caracteres de bronze os supremos deveres do homem ¢ do cidadio ou a entoar hinos de exaltacao a rentincia pessoal, Isso nio significa que os obje tivos morais tenham definhado. De fato, no mesmo momento em que a escola do dever declina, testemunhamos por toda parte uma redescoberta da preocupasio ética, ui reavivar da problemética ¢ da “terapia” moraliza- dora. As grandes odes moralistas caem em desuso, mas a ética volta & ordem do dia; a religiio da responsabilidade moral esté mais vazia do que nunca, ‘mas 0 “suplemento da alma” esté na ordem do dia. E a vez da maxima: “Ou 0 século XXI sera ético ou nio seré nada”. Nio ¢ apenas 0 dominio tradicional da caridade que se beneficia desse novo surto de vitalidade. Agora sio as esferas do meio ambiente, das ciéncias biomédicas, da midia, das empresas que esto envolvidas pelo discurso ¢ pela demanda ética, Por todo lado, © discurso dos valores ascende ao pri- meiro plano, correspondendo a saturagdo dos grandes projetos politicos ¢ 20 recrudescimento da inseguranca suscitada pela irrupgio das técnicas, das imagens ¢ dos interesses, Hoje, em diltima andlise, nenhuma questao é trata- da sem que o referencial ético se faca presente. Assim, se a extrema-direita faz progressos, os principios dos direitos humanos retomam vigor; se 0 Ter 186A soctenane roe-Monausta ceiro Mundo morze de fome, damos pronto atendimento, organizando charity shows e socorros de urgéncia; se nosso planeta corre algum risco, divinizamos a natureza; se a humanidade do homem esté sendo ameacada pelo tecnicismo, inventamos instincias guardias da ética; se a midia perverte a democracia, reavivamos a deontologia do jornalismo; se o capitalismo en- gendra.a corrupcio, moralizamos as liderancas €a praxe dos negécios. Quanto merior a submissio a0 espirito do dever, mais aspiramos as convencoes deontologicas; quanto mais 0 ego ¢ engrandecido, mais se impde 0 respeito a0 ambiente; quanto mais a “volipia da vontade” técnica controla o mun- do, mais se justificam as comissdes de especialistas, os cbdigos de ética, 08 chamamentos as responsabilidades individuais. O ciclo revolucionétio esti conclufdo, a primazia cabe & perestroika ética. As injungoes formas a0 dever esto carcomidas, logo € 0 momento de exaltar a responsabilidade sem fron teiras, ecoldgica, bioética, humanitiria, econdmica ou midiatica principio de responsabilidade emerge como a propria esséncia da cultura pés-moralista. Se, de um lado, os chamamentos a responsabilidade no podem ser desvinculados da idéia de dever moral, de outro, tém isso de especifico: em parte alguma conclamam a auto-rentincia sobre o altar dos ideais superiores. Nossa ética de responsabilidade é uma ética “razoavel”, inspirada nao na imposico do desprendimento em relagio aos fins pessoais, mas num esforgo de harmonizagao dos valores com as conveniéncias parti- culares, de harménizacio do principio dos direitos individuais com as coer- «des da vida social, econdmica € cientifica. O intento € tio-somente com- pensar a ampliacio da légica individualista pela legitimagao de novas obrigagdes coletivas, visando & obtencio de um ponto de equilibrio entre 0 dia de hoje ¢ 0 de amanha, entre o bem-estar individual ¢ a protecéo a0 meio ambiente, entre 0 progresso cientifico ¢ o humanismo, entre o direito de pesquisa ¢ os direitos humanos, entre os imperativos cientificos € 08 di reitos dos animais, entre a liberdade de imprensa € 0 respeito ao direito das pessoas, entre a eficacia e a justiga. ‘Nao é, em nenhuma hipétese, a cultura herdica da abnegacZo pessoal que reassume o papel ceiiéral; a responsabilidade pos-moralista é 0 dever desonerado da nocio de sactificio. A ética da responsabilidade no prescin- de dos valores individualistas, mas expressa 0 esgotamento da cultura do “é proibido proibir”'. Concomitantemente, porém, transparece a necessidade * Alusio a uma das isis da revolugao estudantil de maio de 1968, pa Sorbonne de Pais. (NT) Amenowsho ren 187 Annet cn 107 de estabelecer limites salvaguardas sociais, de estraturarsocialmente o pro- cesso de autodererminacio pessoal que, entregue asi mesmo, poria em risco a seguranca, a liberdade ¢ a competitividade nos mais diversos contextos democraticos. f, pois, com 2 recomposigdo da cultura individualista que nos deparamos. Em outras palivras, embora o ideal de aurodeterminacio nunca tenha gozado de téo alto conceito como agora, impoe-se, pela mes- ma razio, a necessidade de um contrapeso a tendéncia individualista de exi- mir-se de qualquer obrigagao coletiva, de nao prever 0 futuro, detendo-se ‘meramente na consideragZo das paixdes e interesses em conflito no momen- to atual. Miséria do Terceito Mundo, estagnacio das economias ocidentais, perdas de parcelas do mercado, ameacas ecoldgicas, perigos da engenharia ‘genética, hipertrofia do Quarto Poder... Em cada uma dessas situagdes, com- pete & iniciativa ética reagir contra os excessos do “deixa pra ld” individualis- ta, tecnol6gico, capitalista, midiético, para solidificar o espitito de responsa- bilidade, tinico meio de enfrentar os desafios do futuro, sejam eles planctérios, democraticos ou econdmicos. Desse ponto de vista, renovacio ética cor responde tanto 2 consagrasao de um universo individualista liberto do de- ver categérico quanto a manifestagio do descontehtamento em face dos alarmantes desvivs de um individualismo exacerbado. De um lado, a preeminéncia do ideal de responsabilidade (com todas as implicagdes em matéria de liberdade, iniciativa ¢ escolha individual) significa a depreciacao dos sistemas morais impregnados de preceitos dogméticos. D: ‘outro, revela a erosto social das grandes visualizac6es panorimicas do pro- aresso, associadas por séculos a fio ora a citncia e 4 técnica, ora as forcas revoluciondrias, a0 mercado ou 20 Estado, Agora, porém, jé ndo cremos em ‘nenhuma utopia hist6tica, em nenhuma solucio global, em nenhum postula- do determinista do progresso. Jé ndo vinculamos © progresso da humanidade a0 desenvolvimento progressivo das ciéncias e das técnicas, nem ligamos 0 aperfeigoamento moral & ampliagéo dos conhecimentos. A ética moral vai a0 encontro da telativiza¢do da crenga nas leis mecanicistas ou dialéticas do devir hist6rico, ¢ atesta o retorno do “clemento humano”, visto como fator capital no contexto de uma mudanga coletiva. Em outras palavns, entra em cena um novo figurante, a iniciativa ou comprometimento pessoal, isto é, uma nova conscientizacio perante o cariter imprevisivel, criativo e aberto do porvir. ‘Uma vez que a mudanga histérica deixou de ser equiparada ao desenrolar automitico de “leis objetivas”, uma vez.que o progresso do saber e das técni- «as no nos protegerdo do inferno, uma vez que nem o diigismo estatal nem 188 A socenane ros-onauista a auto-regulamentago do mercado sio aptos a sanar todos os problemas, as questdes sobre as finalidades e a responsabilidade humana, sobre as decisoes individuais e coletivas assumem uma nova importincia. Em suma, o ressurgimento ético ¢ fruto da crise em nossa representa- so do futuro, bem como do enfraquecimento da fé nas promessas de um racionalismo tecnicista e positivista. Quando os discursos sobre 0 futuro ‘humano ¢ 0 cosmos beiram o catastrofismo, assumem papel determinante 0 livre exercicio da responsabilidade humana e suas alternativas civilizadoras. Quando a estruturagio cientifica do trabalho jé no permite encarar os de- safios da concorréncia, despontam como fatores primordiais do desempe- nho empresarial a consciéncia e 0 engajamento dos homens. Quando a l6gi ca dos rendimentos da Bolsa de Valores induz a economia & ruina a longo prazo, a missio fundamental recai sobre a capacidade dos gerenciadores. Quanto mais o papel das organizagies se acentua, mais a consciéncia dos homens se deixa plasmar; quanto mais se pleiteia a livre informag0, mais, esta se submete voluntariamente ao autocontrole. Quanto mais necessario € aperfeicoar tecnologicamente ¢ cientificamente nosso mundo, mais a res ponsabilidade individual adquirira por si a dimensio de uma “construsio humana”, uma esfera de deliberacao, de risco, de retificacio, de inovagio. O “renascimento” ético no representa, assim, uma ruptura com a tradigzo democrético individualista; ele é, antes, um elemento adicional no processo moderno de secularizagao da moral Diante de suas diversas manifestagdes, os méritos da recondugao da ética 20 centro das atengdes sio dignos de nota: movimento humanititio € direito de ingeréncia, primado dos direitos do homem, desejo de motivar 0 homem ao trabalho, preocupago com o futuro do planeta e da espécie humana. Todavia, nada disso esta isento de contradigdes ¢ impasses. Assim, por exemplo, embora seja a ética que determine os legitimos contornos da atividade humana, também nao seré supérfluo realcar que 0 ideario ético comporta limitagdes, dada a sua potencialidade de capitalizar (3s vezes inad- vertidamente, diga-se) as esperangas de salvacio em nossos dias. E por isso ue certos chavdes outrora tidos como idealistas sa0 surpreendentemente readmitidos Citemos alguns exemplos. Se 0 mundo caminha errado, a auséncia de consciéncia moral estaria na origem de tudo; a resolugio dos problemas jé no comporta 0 uso da forea, pois envolve a pratica da virtude, a integridade pessoal, 0 acatamento aos direitos humanos, a respectiva parcela de respon- Arenowcho trea 189 sabilidade individual, a deontologia. Em suma, € mais ou menos como se 0 ctivo de anilise sobre as ilusdes ideolégicas cessasse de agir, em favor daqui. Jo que bem se poderia qualificar de ilusao érica * nova forma de represen- tagdo da consciéncia democritica. Isso vem presente de modo tio acentua- do que, ao menos em linhas gerais, é preciso “recomecar” a critica, repetir essas verdades consagradas ¢ ultraconsagradas mas facilmente esquecidas nestes tempos de éxtase ético. Em especial, estas que seguem. ‘As imprecagdes virtuosas contra a técnica arrogante ni vvas propriamente mais indicadas em face dos riscos de um “holocausto bio- logico”; para tanto, sero necessérias novas tecnologias e a competicio dos mercados, ¢ um poder redobrado da técnica cientifica, ainda que ecologica- mente reciclada, Os hinos aos direitos humanos de nada valerio para fazer a xenofobia regredir; com eftito, a investida contra a maré montante da into- lerdncia subentende posturas ¢ alternativas politicas inequivocas, um traba- Iho sistemético de informagio ¢ de esclarecimento acerca dos dados concre- tos, economias competitivas € politicas sociais tendentes a reduzit a marginalizagio, o sentimento de segregagdo ¢ de desajuste social, Nao sio 0s impreteriveis padrées de valores que permiticio mobilizar os homens na empresa, se no forem acompanhados de medidas coneretas de recomposi- sdo, redistribuicio de fungdes ¢ de formacio. Nio serio as homenagens & deontologia do jornalismo que, num passe de mégica, irio clevar o nivel da imprensa; importa mais discorrer sobre a competéncia profissional dos jor: nalistas e sobre a consolidacdo de uma imprensa escrita de bom nivel, capaz de contrabalancar a influéncia televisiva e de modelar um piblico de gosto mais apurado, mais bem informado. Mais do que nunca, a ética se afigura necesséria mais do que nunca se discernem seus contornos razoaveis e, por vvezes, 05 riscos que Ihe sio inerentes. A moral dos negécios é uma iniciativa salutar, desde que nio sirva de pretexto para o siibito afastamento da érbita estatal e para a extingao dos programas sociais. As interrogacdes suscitadas pela bioética sio prementes, desde que ndo alimentem os fantasmas anticientificos ¢ no déem azo ao fim das pesquisas biomédicas. Convém que nos regozijemos com a reafirmagio dos direitos humanos, desde que isso nao fomente o menoscabo e a rejeigZ0 coletiva da politica. Convém saudarmos os impetos humanitérios ¢ caritati- vos, mas sem promover o desprestigio do ideal de justica social e econémi- ca, Longe de nés desacteditar 0 refalgir atual dos valores. Contudo, impor- tando ver nisso a panacéia do momento, Na realidade, a politica ea economia so as iniciati- 100. A sooeoAse roe-monauers sem ética sio perversas; porém, sem o concurso do conhecimento, da inicia- tiva politica e da justica social, a ética também € claudicante. Querendo fazer um anjo, podemos acabar fazendo uma besta: a verdadeira defesa da ética pressupde a critica do ericismo, ‘Nao estamos precisando de exortagdes & pritica da virtude integral, mas de uma inteligéncia responsivel e de um humanismo aplicado, tnicos meios capazes de enfrentar os desafios de nossa época. Em termos pura- mente filos6ficos, seria impossivel superar a oposigao entre moral ¢ ética, imperativo categérico e imperativo hipotético, boa vontade ¢ ética do pro- * yeito pessoal. Mas de que modo os “novos” encantamentos pela generosida-~ de desinteressada? poderao dar sua contribuicao (ainda que diminuta) para operar transformacdes em nosso universo tecnolégico, em nossas formas de organizacio social, em nossos sistemas de informagao € comunicagao? Em que dirego nos poderio conduzir tais prédicas de cardter absoluto? Prova- velmente, 2 desmoralizagio, ao desalento no que concerne & entrada em cena das diversas formas de inovagio institucional, que, inevitavelmente, deverio estar em consondincia com a légica do mercado € do lucro. Por isso, quando erguemos uma barreira intransponivel entre moralidade € eficécia, centre dever e interesse, certamente nos crigimos como um paradigma de virtude. Entretanto, ao mesmo tempo se depreciam as atividades em prol de mudangas, iniciativas necessariamente “interesseiras”, menos ambiciosas mas ais eficazes, que tém como objetivo precisamente edificar um mundo mais habitavel e mais justo. Ora, desse modo, empurra-se para a vala comum do puro e simples cinismo aquilo que poderia representar uma busca realista € prudente do bem-estar coletivo. Paradoxalmente, os defensores da mio invisivel do mercado podem uufanar-se dessas investidas supermoralizantes contra a ética dos negocios, ‘Afinal, para que mudar isto ou aquilo, dedicar-se a priticas de enriqueci- mento humano, se tudo, claramente, no passa de interesse rasteiro ¢ ardil estratégico? De fato, nao seré invocando o ideal kantiano da boa vontade que avancaremos sequer um milimetro na resolucio dos grandes desafios globais, econdmicos e midisticos de nossa época. Tampouco seré por meio de ditirambos que deteremos as ameacas ecologicas ou que obteremos mais empregos, nem ser por essa via que faremos reinar uma maior eqtiidade na empresa ou melhoraremos nossa qualidade de vida. A generosidade € uma Alain Exchegoyen, La vale der ithipus, Pass, Francois Bourin, 1991. Arenowacho ¢ro 191 virtude privada; portanto, no pode servir de base para uma perfeita orde- nacio da vida coletiva. Convém insist: sem compreendermos a exata di- mensio das condiges concretas, bem como a justa adequagdo entre meios € fins, 0 cuidado com a eficicia e a busca das mais altas metas morais se esvaziardo em seu contritio. Como é bem sabido, o inferno esté cheio de boas intengdes. i Gostem ou nio 0s novos partidérios do conceito de idealismo categ6ri 0, 08 progressos jamais se fazem na hist6ria sem 0 concurso da inteligéncia como forga propulsora, assim como dos interesses e das paixdes. Claro, ha motivagoes interesseiras na sensiblicade “verde”, e € exatamente por isso ‘que se mostra capaz de modificar nossa conduta em relagdo a0 meio ambi. ente, Também € verdade que se podem colher beneficios dessas técnicas cespecificas, motivo pelo qual devem ser incrementadas. Inegavelmente, a ética dos neg6cios € orientada por obetivos de lucro, imagem e mobilizagdo do pessoal: & por isso que ela pode contribuir para forjar um novo contrato social na empresa, Existem riscos inerentes & l6gica utiltarista; contudo, merece um crédito de confianga muitissimo maior a adogio de uma ética realista conjugada ao interessee 20 respeito, a0 presente €20 faturo, do que a adogo de um idealismo moral impertivo e sublime, mas totalmente invidvel nna ordem prética, A vantagem da época fora-dever € que se enuncia uma demanda ética que no € utépica e contrétia aos interesses pessoais,e por essa ‘mesma raz3o, pode concorrer para o bom encaminhamento de um certo né- ‘mero de préticas socias e para a promogio de um mundo liberto de rigidas demarcagSes ~ nio ideal, certamente, mas quem sabe um pouco mais justo ‘Os homens so apenas homens. $6 nos cabe exultar com essa ascensio de uma ética pés-moralista consensual, eqiiidistante do moralismo “sem mao” e do cinismo da “mio invisivel”. Esté bem longe do desprendimento pessoal ¢ do Bem absoluto, mas recusa igualmente a selva de pedra do “en- riqueca ripido”. Nao é algo sublime, mas se mostra apto ao enfrentamento dos grandes perigos do fururo. Nao £ supereminente, mas se volta especifi camente para uma sociedade tecnicista ¢ democritica’. Nesse diapasio, Toxqueville ffiia novar que adoutrna do interesse bem compreendido — conquanto nko vse 06 ms exceleos fins ~ seria a eoria mais apropriada para as necessdades dos povos democr: ticos, © mais efcazinstrumento para opor diques aos excestos do individualism. Nao gera “grandes imolagdes”, mas circunscreve os “desvios mas protuberances”; “no procura atingit grandes objetivos, mas atinge sem grandes lifeuldades todos aqueles que tém em vista atin i”, De fa démocrase en Amévigue, Pats, Gallimard 1 vo. TI, p. 127-130, 192_A soosoane pos-monaista conclamemos nao ao herofsmo moral, mas ao desenvolvimento social de uma érica inteligente, de uma ética aristotélica da prudéncia orientada para a busca do ponto de equilfbrio, de uma medida justa em relacao as cizcuns- tncias hist6ricas, tecnolgicas ¢ sociais. A CONSCIENCIA VERDE A cidadania planetaria Entre as preocupasées ¢ os ideais que norteiam a consciéncia contem- pordnea, nao ha quem conteste a fungio primordial representada pela preo- cupacio com a natureza. Com efeito, a época pés-moralista corresponde & ascensdo de novas regras morais, centradas na natureza, incluindo-se af tudo. aquilo que jf se convencionou denominar de ética do meio ambiente. Assucessio de catastrofes ecolégicas provocadas pelas indistrias petrol feras, quimicas ¢ nucleares, o agravamento da poluisao relativa atmosfera do planeta (chuva écida), 0 “buraco” na camada de oz6nio (efeito estufa) geraram uma tomada de consciéncia em massa acerea dos danos causados pelo progress, bem como um grande consenso em torno da urgéncia de reservar o “patriménio comum da humanidade”. Associagdes de protegio da natureza multiplicam-se; ¢elebra-se 0 Dia da Terra; os “Verdes” obtém éxitos eleitorais... A época atual registra o triunfo dos valores ecol6gicos, é 0 momento do pacto com a natureza ¢ a era da cidadania mundial: “nosso pais €o planeta”. Ao mesmo tempo em que © papa Joo Paulo TI qualifica a crise ecolégica de “importante problema moral”, 24 chefes de Estado ¢ de Governo mostram-se oficialmente dispostos a “restringir uma parcela de sua soberania nacional para o bem comum de toda a humanidade”. Nossas obrigagdes superiores jé no tém em vista a nago, mas passam a ter por objeto a natureza. A defesa do ambiente tornou-se um objetivo prioritério de massa. Em 1990, 0s franceses colocavam 0 meio ambiente ¢ a ecologia em segundo lugar numa escala de valores das questdes a serem enfrentadas. Alidéia de que a Terra std em perigo de morte impés uma nova dimen- sto de responsabilidade, uma concepcdo inédita das obrigacdes humanas, que vai além da ética tradicional, circunscrita as relagdes inter-humanas ime diatas. Agora, a responsabilidade humana recai também sobre as coisas extrinsecas a0 homem, englobando a totalidade de dimensio da bioesfera, pois o homem jé é capaz-de pér em risco a vida futura no planeta. Conforme Aneiowrso trea 193 A revovagto tren 198 0s fundamentalistas da ecologia, devemos reconhecer ~independentemente do bem-estar humano~ o valor da esfera ecolégica em si mesma, redescobrir a dignidade intrinseca da natureza. Segundo a opinio da maioria dos ecolo- gistas radicais, deverios salvagnarda-la para nés, concebé-la como um Patriménio comum a ser transmitido para as geragbes futuras. Seja qual for © alcance dessa clivagem, € certo que a ética cléssica (entrada no bem do préximo ¢ nos objetivos imediatos) jf n30 parece suficiente; a técnica mo- derna deu ensejo a efeitos tio inesperados, tio potencialmente catastréficos, que uma transformagto dos principios éticos se tornou algo necessitio. A ivilizacao tecnicista tem necessidade de uma “ética do futuro”. Em face das ameasas de destruicao da vida, é preciso nada menos que um novo ditame categérico: “Nao comprometas as condigdes para uma inexaurivel sobrevida da humanidade sobre a Terra”, Nossa época convoca para uma responsabilidade a longo termo, para a obrigacio incondicional de preservar a existéncia da humanidade sobre a ‘Terra. Quase ndo ha mais exorta¢o aos deveres para consigo mesmo, para com 0s outros ¢ para com a nacao. Hi, isto sim, uma deificacio de Gaia, que softe devastages prometéicas, e como que uma glorificacao do principio de responsabilidade planetéria. A consagracZo da obrigasZo com o futuro aliés, o que explica o éxito das campanhas pedagégicas do comandante Cousteau — tem reflexos diretos sobre as aspirages ¢ 0 comportamento de massa, Um considerdvel néimero de pessoas jé admite pagar mais caro por produtos que nao agridam a natureza; em 1990, seis em cada dez franceses se declaravam dispostos @ pagar um imposto sobre o meio ambiente; 80% dos moradores da regio de San Francisco estariam dispostos a sacrificios financeiros para preservar o ar, o mar e a terra, A cidadania pés-moderna é mais ccol6gica que politica. Jé no temos f numa educacio moral e civica voltada para a formagzo dos sentimentos patriéticos e altruistas; aspiramos cada vez mais a uma cdadania “verde”. Aparentemente, essa reavaliacZo de importancia obrigacional estaria no contrafluxo da tendéncia a0 esvaziamento dos valores. Ao contrério, por vias transversais ¢ num sentido mais profundo, constitui uma manifestacio disso, Com efeito, na concepcao dos militantes “verdes” jos deveres de pro: tego da naturcza se sobrepSem aos deveres em 1elayd0 avs homens, Em “ Hlans Jonas, Le principe responsabilité, Pais, Cerf, 1990, p. 194A sociouoe mts MoRaisTA cutras palavras, numa escala de prioridades, eles atribuem um papel mais decisivo a salvaguarda do meio ambiente do que as questdes econémicas ¢ sociais; a polui¢ao atmosférica ou a redugdo da camada de oz6nio seriam, pois, temas mais preocupantes do que a disseminacio da pobreza, 0 subde~ senvolvimento ou o desemprego. Para os bem extremados, a presenga dos animais predadores nas extensoes territoriais desocupadas teria um alcance tas significativo do que os problemas daf resultantes para os agricultores; reservar extensdes de mata virgem onde vivem espécies em perigo de extincao seria mais proveitoso do que em propiciar wabalho para os lenha dores. No inicio de 1989, enquanto a Time escolhia a Terra como “a persona- lidade do ano”, os “sem-tetos” de San Francisco foram instados a desocupar ‘os espagos verdes pablicos. O respeito 2 meio ambiente também cria certas obtigagoes... Paralelamente, ¢ guardadas as proporsdcs, 0s inimigos fansti- ces da vivissecgaio nao hesitam em jogar sacos plisticos sobre os veiculos de cientistas, pilhar suas moradias, fazer operagdes de sabotagem contra os la boratérios de pesquisa médica, tudo em nome do direito dos animais. Al- guns chegam a propor a substituicdo dos animais por prisioneiros, imigran- tes, cientistas e seus filhos. Antes de tudo, a natureza c os animais! Aplicando © conceito de fim em sia esfera animal e & bioética, sacralizando as obriga- ses atinentes ao que nao é humano, as paixdes zoofilicas ¢ ecofilicas radi cais no ampliam a cultura humanista; a0 contrério, fazem crescer o grau de desvalorizacdo p6s-moralista dos deveres intra-humanos na escala social’. A consciéncia verde extremada exprime tanto o despertar da nogio de respon- sabilidade em face da natureza quanto uma vertente social de descompromisso em face dos homens. Seja qual for a escalada da preocupagaio ecolégica, essa ascenso ndo vem isenta de conivéncias com o aprofundamento do proceso de retracio social, junto com a introspecgao eo indiferentismo individualis ta. De fato, sob 0 invélucro da reivindicagZo de uma cidadania planetaria, descortina-se aqui ¢ ali o perfil de um novo anti-humanismo. Nao h4 como coatrapor os conceitos de consciéncia planetéria de mas sac individualismo utilitarista. Com efeito, quando se fala em proteger a natureza, € mais enquanto condigio para uma sobrevida e qualidade de vida Ver, também, Marcel Gauchet, “Sous amour de la nature, la haine des hommes”, Le Débat, 1.60, 1990, p. 278-282, e Luc Fery, Le noweel orreéclagique, Pacis, Grasset, 1992 Arenowgho trea 195 A rrtonngio enn 105 humana do que enquanto exaltacio de um ideal incondicional abstrato. A bem dizer, embora a cidadania ecolégica pressuponha deveres ¢ direitos inéditos, é deles que provém, com toda evidéncia, seu verdadeito impulso coletivo. Sob o patrocinio dos deveres para o futuro, ganham terreno as novas reivindicacdes em prol da seguranga, das conveniéncias de vida, da ampliacio dos direitos individuais. Temos, assim, 0 direito a agua pura, & manutengdo das reservas florestais, a uma atmosfera no polufda, a um am- biente natural no alterado... Apés as conquistas hist6ricas dos direitos-li- jento das reivindicastes em favor do direito a qualidade de vida, expressio caracteristica do indivi- berdades ¢ direitos sociais, presenciamos o cresci dualismo pés-moderno. fi inegavel que a cultura ecolégica ¢ sua preocupa: sao de responsabilidad para com as geragdes futuras representam uma es- tocada certeira na légica do individualismo radical, que subtrai o énus da responsabilidade. No entanto, @ mola propulsora da “consciéneia verde” das massas seré sempre a exigéncia individualista de viver melhor € mais tempo. E certo que a idéia de obrigacdo moral retoma notoriedade. Contu. do, para a maior parte das pessoas, isso significa tio-s6 respeitar os espacos verdes, fazer uso de produtos recicléveis, recusar produtos sintéticos, andar. de bicicleta, eventualmente tomar parte em desfles ¢ participar de redes de solidariedade. A moral ecolégica no dia-a-dia é minimalista; no prescreve nenhuma auto-renéincia, nenhum sacrificio supremo, somente ndo desper- digar, consumir um pouco mais ou um pouco menos. Apesar de tudo 0 que as diferencia, consciéncia ecologica e caridade midiética fazem parte de um mesmo conjunto, comprovando a irresistivel ascensio demoeritica das éti- cas individualistas indolores Eco-consumismo e eco-business ‘Também atesta a cultura pés-moralista um fato extremamente signifi- cativo, de que o ideal de “auto-restrisio das necessidades” e a dentincia dos vicios da sociedade de consumo — idéias que estavam no centro da mitologia ecolégica das décadas de 1960-1970 ~ foram relegadas ao segundo plano. Essencialmente, a mobilizagao ecolégica atual se escora na protesio da na- tureza, na gestdo equilibrada dos ecossistemas, na harmonizacio entre 0 desenvolvimento industrial ¢ a defesa do meio ambiente. No lugar da utopia contriria ao tecnicismo, cultivamos a consciéncia de consumo de massa. Jé ‘anagem ge fala em altornativn anhalt ne afer necessidades induzidas pela propaganda cederam espago em favor do shopping ecol6gico, da onda dos produtos “bio”, da dialética do saudivel, da higiene biolégica, das terapias edulcoradas, do turismo “verde”. O ideal de austeri- dade voluntaria’, presente no primeiro momento ccoldgico, saiu de moda Hoje, € um hedonismo ecolégico que prevalece nas aspiracées contemporineas, ‘numa outra forma de desdobramento da dindmica individualista de consu- mo. A cultura ecoldgica nao consegnin desviar seu curso das paixdes indivi- dualistas a0 bem-estar; foram estas que se ceciclaram e entraram em compo- sigio com a légica industrial ¢ consumista. Simultaneamente, porém, a sensibilidade ecoldgica, com suas imposigdes de qualidade ¢ saiide, em cer- to sentido possibilitou a “moralizagi0” dos processos de produsao e consu- mo, reorientando as leis de oferta e procura para demandas bio-industriais € eco-produtos, tecnologias suaves ¢ limpas. O consenso ecolégico de ne- hum modo tolheu a corrida ao crescimento ¢ a0 consumo individualista, mas gerou uma eco-produgio associada a uma ecologia do consumo. Mais uma vez, 0 “artificio da razdo” interveio. Quer dizer, nfo foram as exigén-

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