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Balanço de itinerário: o segundo deslocamento

(IN: Cecilio, LCO. Um itinerário ético-político de intervenções e estudos.


Tese de livre docência. Universidade Federal de São Paulo, 2007)

Neste ponto, e tomando o componente de “produção de teoria” da minha prática, vou


tentar caracterizar o segundo deslocamento que penso ser possível expor nesse meu itinerário
de intervenções e estudos. É o que chamei, na apresentação, de um deslocamento do foco na
gestão, no “concreto”, no “prático”, para a preocupação com a elaboração de um referencial
teórico mais elaborado do que o utilizado no Inventando a mudança. Poderia sintetizar esse
movimento dizendo que, no curso dos anos fui deslocando minha atenção da gestão
hospitalar para a teoria da organização. Há algo de fascinante na vida do hospital, quando
se está atento para isso, que é “modo de funcionar do hospital”, suas características singulares
e, em particular, a coisa surpreendente que é a percepção de que um hospital em Belo
Horizonte tem características muito parecidas com outro hospital no Rio Grande do Sul ou no
Ceará, mesmo sendo tão diferentes entre si em muitas coisas. Na consultoria que fiz a um
hospital em Rosário, na Argentina, os profissionais se surpreendiam “com o quanto eu sabia
do hospital” e me provocavam dizendo “você tem uma bola de cristal? Você já esteve aqui
antes?”. Em Rosário, quando via os médicos em seus impecáveis jalecos e gravatas, sentados,
atentos e circunspetos no salão nobre do hospital, me interrogando, eu me lembrava de outros
tantos coletivos médicos, em outros tantos hospitais, me fazendo as mesmas perguntas e, o
que é mais importante, tendo reações muito parecidas quando se iniciava, ou se pretendia
iniciar, qualquer modificação no modo de se fazer a gestão no hospital. A enfermagem
também tem um modo de atuar e se enunciar, entender “seu lugar”, zelar por sua identidade,
que é muito parecido em qualquer hospital. O “segredo” que eu não contava para os rosarinos
é que, com experiência, observação e um pouco de teoria, eu ia aos poucos entendendo
melhor um conjunto de características do hospital, compreendendo suas regularidades, seus
“segredos” também. Isso, como fruto de um itinerário prático de intervenções, mas também
de muito estudo.

Nas experiências posteriores à da Santa Casa do Pará, comecei a perceber que o aporte
teórico que havíamos utilizado na formulação do “modelo de gestão” não dava conta de

1
vários aspectos da vida do hospital. Era isso que eu queria entender melhor. Por isso, fui
fazendo o que chamei de segundo deslocamento, isto é, a partir das questões que eu ia
vendo/vivenciando na prática de gestão do hospital, fui progressivamente me interessando
pelo campo da teoria organizacional em si. E esse é um campo muito vasto, cheio de
possibilidades para ser percorrido, com muita literatura disponível. Por onde começar então?
Que caminhos percorrer nos estudos?

Em boa medida, fui muito autodidata nesse percurso, embora a idéia de “ser
autodidata” precise ser relativizada. Mesmo que não tenhamos consciência, as informações
nos chegam, recebemos influência de autores, de colegas, de leituras. Já reconheci a
influência teórica que recebi durante toda a minha vivência no LAPA. O desafio é dar ordem
a tudo isso. Como compor um quadro teórico, sempre precário e incompleto, mas com algum
poder de iluminar um “objeto de trabalho” que pensa? Qual teoria construir para entender
melhor o trabalho que eu fazia?

Antes de falar do itinerário teórico que fui construindo, quero pontuar algumas coisas.

1. A primeira é que a teoria esteve, desde sempre, nesses anos todos, intimamente
comprometida, contaminada, alimentada por uma prática de gestão. Isso resulta
no que já comentei antes: teoria e prática se misturam o tempo todo. Então, o
deslocamento da “gestão” para a “teoria organizacional” significa apenas
destacar a importância crescente que a reflexão sobre minha prática foi
assumindo importância para mim, e não qualquer idéia de hierarquia entre
teoria e prática.

“A maioria das práticas operacionaliza alguma teoria, por mais implícita, vaga e
contraditória que ela possa ser. De fato, ‘prática’ é um constructo teórico e a teorização,
em si mesma, é uma prática. Qual a relação entre a teorização dos acadêmicos e prática
daqueles que constituem as organizações”? 1

2. Embora se tenda a falar de uma genérica ‘teoria organizacional’, pode-se


afirmar que não existe uma só prática organizacional e que há também uma
variedade de teorias que chamam a atenção para algumas coisas e obscurecem
outras. A organização poderia ser vista como um cristal por meio de um

1
Marsden, R; Townley, B. “Introdução: a coruja de Minerva: reflexões sobre a teoria na prática”. In: Handbook
de estudos organizacionais. 2001. Op.cit..

2
caleidoscópio de teorias.

“O jardim zoológico dos teóricos organizacionais está abarrotado com uma


desnorteante variedade de espécimes; nós não estamos sequer olhando o mesmo animal”2.

3. A sistematização teórica que apresento a seguir não tem a pretensão de


extensividade ou o sentido de um “referencial teórico” para “analisar o
material empírico”. Ela deve ser lida na sua relação dinâmica com as
intervenções. São recortes interessados, precários, autorais do vasto campo das
“Ciências Humanas”, com todas as deficiências e problemas daí advindos.
4. Uma afirmação de Michel Foucault, em entrevista publicada pelo Le Monde,
em 1975, foi essencial, desde que a li, para eu “suportar” minhas insuficiências
teóricas e a heterodoxia na leitura de vários autores, incluindo ele próprio:

“Todos mis libros, ya sea ‘La historia de la locura em la época clásica’ o este (Vigilar y
castigar), son, si ustedes quierem, pequeñas cajas de herramientas. Si la gente desea
abrirlos y hacer uso de tal o cual frase o idea, de este análisis o de aquel outro, como si
fuera um destornillador o uma llave inglesa, a fin de hacer cortocircuitos o descalificar
los sistemas de poder, incluyendo aquellos de donde mis libros han surgido, me parece
perfecto” 3.

5. O mais importante é que fui aprendendo a apropriar-me de conceitos-sínteses,


de idéias, de metáforas que tanto me ajudassem a entender o que fazia, como
aumentassem a capacidade de análise dos coletivos que eu supervisionava. Isso
foi se tornando um componente importante da minha caixa de ferramentas
como consultor. Escutar, vincular, mediar, interrogar e produzir teoria
compondo meu modo de operar. Uma caixa de ferramentas conceituais
compartilhada!

“Compartilhar teoria” foi ficando uma marca do meu trabalho e penso que ela tem
algumas implicações. A mais problemática é que o “trazer a teoria para o serviço” quase
sempre é vivido pelas pessoas como um saber que eu “desenvolvo na universidade, lá onde se
estuda e pesquisa”. Há uma espécie de admiração, de fascínio mesmo, de muitos
profissionais do serviço pelo “que se faz lá na academia”, “onde se estuda e se pesquisa e,

2
Marsden, R; Townley, B. Op.cit.. p.32
3
Citação por Halérin, D. San Foucault. Para uma hagiografia gay. Córdoba: Ediciones Literales, 2004. P.74.

3
portanto, se sabe das coisas”. A academia é o lugar da produção do saber, enquanto “nós,
aqui, só ralamos, não refletimos sobre nossas práticas, não produzimos conhecimento, não
mandamos um trabalho para um congresso”. É um lugar de poder esse. O lugar do que sabe.
O que traz o conhecimento da academia para o serviço. Não há muito como escapar disso.
Reconhecer tal fato e que a demanda foi feita pela direção faz parte da minha análise de
implicação. Ou seja, não entro neutro no campo de forças da organização, entro posicionado:
sou o que sabe, sou o professor, sou aliado da direção, sou pago pela instituição e
provavelmente minha hora-trabalho tem valor superior à maioria dos que estão ali presentes.
Ocupo um lugar no campo de poder da organização. Por isso que para Ranci4,

“O pesquisador situa-se, realmente, numa situação paradoxal: de um lado ele está


implicado dentro do campo de observação, na relação com o ator social; de outro, ele
deve observar de fora esta mesma relação (...)” (p.63).

À medida que eu ia adquirindo uma maior segurança teórica, fui aprendendo a fazer
uma coisa que acho muito positiva para o meu trabalho, e que eu chamaria de “depuração de
conceitos”. Depurar conceitos seria o esforço para lapidar idéias-sínteses, metáforas, imagens,
pequenas definições, com alto poder de comunicação com os atores institucionais. Esses
“conceitos depurados”, fortemente comunicativos, são uma chave importante da dimensão
pedagógica da consultoria. Dois exemplos de conceitos depurados que eu ia compartilhando
na experiência do HMIPV, por exemplo, são o de “pauta de indulgência” e a metáfora da
“rede que construímos e nos aprisiona, como a rede da aranha”. Como veremos, estes dois
conceitos, com alto poder de comunicação, são devedores de uma reflexão teórica bastante
elaborada. Freqüentemente, havia o pedido dos atores institucionais para que eu
disponibilizasse, para eles, o “texto onde eu havia lido aquilo”. Nem sempre eu dispunha de
um texto que falasse de algum tema específico, à medida que o conceito que eu apresentava
“depurado” era fruto de muitas leituras, mas, com o tempo, fui aprendendo a selecionar alguns
artigos, capítulos de livros, que não fossem muito longos e de fácil leitura. Um exemplo
recente: os apoiadores distritais e os coordenadores da Secretaria Municipal de Saúde de
Campinas, que eu supervisiono mensalmente, se encantaram com a “descoberta” de Dejours
de que os trabalhadores produzem e fazem a gestão de mecanismos de defesa, coletivos e
inconscientes, para se defenderem do sofrimento que a organização lhes impinge. Essa idéia
encontrou forte ressonância entre os coordenadores e apoiadores porque lhes ajudou a

4
Ranci, C. “Relações difíceis: a interação entre pesquisadores e atores sociais”. In: Melucci, A. 2005, Op.cit.

4
compreender fenômenos da vida cotidiana. O Centro de Educação de Trabalhadores de Saúde
(CETS) reproduziu e distribuiu, para todos os distritos e centros de saúde, um texto do autor
que selecionei.

Feitas essas considerações, vou tentar reconstruir de modo bem sintético elementos
que considero como os mais marcantes do meu itinerário teórico, que, como eu disse, teve um
forte componente de autodidatismo e significou fazer determinadas opções de estudo, de
autores, mais ou menos arbitrárias, quase sempre insuficientes, em permanente esforço de
aprimoramento e aprofundamento. Retomo, sob novos ângulos, alguns temas que já explorei
preliminarmente quando me ocupei em mostrar o que entendo por “micropolítica” e
“hospital”. A disciplina “Administração e planejamento em saúde” que coordenei no
Departamento de Medicina Preventiva e Social da Unicamp, de 1994 a 2003, e que mantenho
agora na Unifesp, foi espaço privilegiado para o amadurecimento das minhas reflexões. Nas
longas leituras para a seleção dos textos, a discussão com os alunos, os trabalhos finais da
disciplina, muito contribuíram para eu ir compondo o quadro teórico que apresento na
seqüência.

Para sistematizar minhas reflexões em três grandes blocos temáticos:

• Uma caracterização do estrutural-funcionalismo por ele ser ainda o paradigma


hegemônico na gestão e estudos organizacionais;
• As dimensões do poder na organização;
• A relação entre determinação e liberdade nas organizações.

Poderia ser questionado, de saída, por que esses temas e não outros? Não haveria
outros blocos temáticos importantes para se pensar a gestão hospitalar? É certo que sim. Posso
citar o exemplo de uma nova área de interesse para mim: psicanálise e organização, por onde
tenho iniciado novos estudos. Poderia, também, haver um bloco intitulado “grupos e
organização”. Enfim, haveria outras possibilidades de agrupamento. Então, por que essas?
Penso que, ao sistematizar as três experiências analisadas nesse trabalho, fui dando indicações
sobre quais fenômenos da vida organizacional me chamavam a atenção, que aspectos da
vida do hospital parecem desafiar uma compreensão melhor: as regularidades na vida dos
hospitais, em particular as práticas e os discursos dos médicos e da enfermagem, a
“recalcitrância” dos trabalhadores, os aspectos da vida organizacional que nos parecem
“irracionais”, o conflito, as disputas, a insuficiência das respostas das consultorias para o

5
tratamento dos “recursos humanos”, etc. Foi a partir de problemas práticos que fui compondo
um caminho de estudos. O resultado é o que apresento a seguir. Precário e insuficiente, mas
um caminho “da gestão para a teoria”, o segundo deslocamento desse itinerário.

O estrutural-funcionalismo

Um primeiro momento do meu itinerário teórico foi compreender melhor o paradigma


implícito que eu via sendo usado nos estudos e consultorias organizacionais. Eu já havia
escutado várias vezes o “palavrão” estrutural-funcionalismo, mas precisava entendê-lo em
suas particularidades. Necessitava compreender melhor suas bases conceituais, seus
elementos constitutivos, se meu desejo era a investigação de uma teoria da mudança
organizacional.

O termo estrutural-funcionalismo é de Talcott Parsons, o autor que expressa suas


concepções de forma mais acabada5. Nunca consegui ler a obra principal de Parsons, The
social system, que jamais foi traduzida para o português, e é um extenso e maçante tratado.
6,7,8
Mas li comentadores e sistematizadores competentes de sua obra . O estrutural-
funcionalismo pensa a organização com as seguintes características: a ausência formal de
conflitos de interesse entre os sujeitos, uma vez que os interesses “da sociedade” são
introjetados pelos indivíduos, levando-os a buscar a integração social; a introjeção das normas
justifica a busca pelo consenso e a concepção da organização/sociedade como sistema que
tende à homeostase; as divergências são caracterizadas como disfunções a serem incorporadas
pelo sistema, o que justifica a concepção da regularidade social e, finalmente, a presença da
disciplina e do controle como eixo central dos métodos de gestão9.

Para Friedberg10, o que caracterizaria o que ele denomina de “visão clássica das
organizações” seria o caráter racional e instrumental da organização em relação a fins
exógenos, predeterminados e fixos, aos serviços dos quais ela é uma simples correia de

5
Joas, H. A teoria parsoniana hoje: a busca de uma nova síntese. In: Giddens, A.; Turner, J. (org) Teoria social
hoje. São Paulo: Editora UNESP, 1999.
6
Buckley, W. A sociologia e a moderna teoria dos sistemas. São Paulo: Cultrix, 1971, p.49.
7
Katz, D; Kahn, RL.Psicologia social das organizações. São Paulo:Atlas, 1970.
8
Joas, H. Op.cit..
9
Lins, A.M.. Produções teóricas na área de gestão e avaliação em saúde: o esforço de construção de um novo
paradigma. Campinas: 250f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Faculdade de Ciências Médicas,
Universidade Estadual de Campinas, 2004. Tese realizada sob minha orientação.
10
Friedberg, Op.cit. Primeira parte.

6
transmissão transparente, passiva e obediente e a idéia da coesão interna dos trabalhadores e
sua adesão a um projeto “maior” da organização.

Eu diria que essa visão, por mais simplificada e contestável que aparentemente seja à
primeira vista, ainda continua sendo o modelo hegemônico para se pensar as organizações. Os
dirigentes, do setor privado e governamental, sabem que as coisas não funcionam bem assim,
mas desejam que sejam assim. Fazem tudo para que seja assim.

O paradigma estrutural-funcionalista mantém elementos dessa concepção e a atualiza


nos estudos organizacionais. A visão parsoniana da organização assenta-se sobre três
componentes: valor, norma e papel, que, tomados em conjunto, resultam em uma visão
extremamente conservadora das organizações. Basta citar como Buckley caracteriza o que
Parsons está dizendo quando fala de valor:

“um sistema social é sempre caracterizado por um sistema de valores institucionalizado.


O primeiro imperativo funcional do sistema é manter a integridade do sistema de valores
e sua institucionalização. Esse processo significa estabilização contra pressões no
sentido de mudar o sistema de valores...”11 .

Katz e Kahn12 destacam os seguintes elementos no pensamento de Parsons:

“As bases sociopsicológicas dos sistemas sociais compreendem os comportamentos de


função dos membros, as normas que prescrevem e sancionam esses comportamentos e
os valores em que as normas se acham implantadas. As funções descrevem formas
específicas de comportamento associado a determinadas tarefas; originalmente elas se
desenvolvem dos requisitos da tarefa. Em sua forma pura ou organizacional, as funções
são configurações padronizadas de comportamento requeridas de todas as pessoas que
desempenham uma parte em dada relação funcional, sem que sejam levadas em conta os
desejos pessoais ou as obrigações interpessoais irrelevantes a tal relação. Normas são
as expectativas gerais com caráter de exigência, atingindo a todos os incumbidos de
desempenho de função em um sistema ou subsistema. Valores são as justificações
ideológicas mais generalizadas”.

Mesmo aceitando o alerta de Silverman13, feroz crítico do estrutural-funcionalismo,


no sentido de que tentar resumir a obra de Parsons é tarefa muito arriscada, vou considerar a
“tríade parsoniana” (função, valor e norma) como portadora de bastante potência para
embasar algumas reflexões que tenho feito.

11
Parsons apud Buckley, W. Op.cit..
12
Katz, D; Kahn, RL. Op.cit.. pp53-54.
13
Silverman, D. Teoria de las organizaciones. Buenos Aires: Nuevas Visiones, 1975.

7
Por exemplo, estou convencido, entre quase tudo o que leio, de que boa parte dos
modelos de gestão em voga, das consultorias às empresas e do modo hegemônico de se
ensinar nas escolas de administração ainda está presa a tal paradigma. Como conseqüência, os
modelos de gestão hospitalar, mesmo os que se apresentam como mais “modernos”, ainda
operam esse paradigma. O gerencialismo, como já caracterizei antes, traz implicitamente
todos os componentes do estrutural-funcionalismo. Todos!

Sinteticamente, eu diria que boa parte das estratégias gerenciais se assenta na busca
da compatibilização dos três elementos, ora com mais ênfase em um, ora em outro, mas
sempre tentando compor uma equação adequada desses elementos aos “objetivos
organizacionais”. Para Katz e Kahn,

“Apesar de que a função, a norma e a integração de valor possam ser separadas para
propósitos analíticos, elas se acham inter-relacionadas em uma organização em
funcionamento. Não obstante, em diferentes sistemas, a ênfase relativa pode ser maior
sobre um componente do que sobre outro. A linha de montagem pode dar maior peso aos
requisitos da tarefa ou desempenho da função; a agência de pesquisa às normas de
procedimento rigorosamente científico e o partido político à salvação do país da ruína”
(p.55).

Eu diria que a função gerencial ainda se assenta sobre esses três elementos: mostrar
ao trabalhador sua função; fazê-lo saber que o gerente tem o poder legal-formal para aplicar a
sanção, que no caso do setor privado é, no caso extremo, muito simplesmente a demissão, ou
seja, a exclusão do “indesejado”; ao mesmo tempo, fazer de tudo para o trabalhador “vestir a
camisa da empresa”, compartilhar seus valores de crescimento e competitividade no mercado,
mesmo que ele não compartilhe dos maiores lucros. O “núcleo operatório” do estrutural-
funcinalismo. Uma tensão permanente que retomarei ao discutir o poder nas organizações.

Estudo teórico conduzido por Lins em sua tese de doutorado, utilizando-se de


cuidadoso instrumental analítico para analisar um conjunto de teses de doutorado produzidas
nas melhores centros de pós-graduação em Saúde Coletiva do Brasil, encontrou predomínio
de trabalhos escritos ainda sob uma perspectiva muito funcionalista, apesar de ter encontrado
alguns trabalhos que exploram outros referenciais teóricos14.

Um traço comum nos trabalhos é considerarem os “objetivos organizacionais”, que


traduzem a “função social” da organização, como uma coisa clara e consensual para todos os
atores organizacionais e que tivessem, por si só, força suficiente para garantir a coesão e o
14
Lins, AM. Op.cit.

8
alinhamento de todos os trabalhadores em torno da “missão da organização”. Trabalha-se,
assim, na perspectiva de uma reificada macrorracionalidade organizacional, sempre desejada,
nunca plenamente conseguida, fato já bem conhecido e problematizado na literatura de teoria
organizacional15. Como provoca Silverman16:

“Algo que os sociólogos atribuem às organizações (sua função para a sociedade), sem
nenhuma referência aos fins que perseguem efetivamente dentro delas, tem alguma
influência sobre a natureza das relações internas? Os funcionários de uma prisão estão
realmente comprometidos com uma suposta função parsoniana, ou, na prática, a função
integrativa da sua organização tem um caráter coercitivo para eles?”

Enfim, tenho assumido que, a despeito da obra de Parsons ser considerada


ultrapassada e de que há vários autores funcionalistas pós-parsonianos que constroem um
referencial teórico muito mais sofisticado para pensar as organizações, a tríade parsoniana
segue como o “núcleo duro” do pensamento gerencial ainda hegemônico, seja ele no setor
público ou no privado e, o que é mais complicado: tem sido muito difícil escapar dele.

O poder

O tema do poder impõe-se para quem estuda as organizações. Muito rapidamente


percebi que esse era um tema que precisava compreender melhor. Na releitura que fiz da
experiência da Santa Casa do Pará, afirmei que utilizávamos uma concepção arendtiana do
poder quando formulamos aquela proposta de modelo de gestão. Porém, isso é uma
observação a posteriori, possível graças a um itinerário de estudos que cumpri nos últimos
anos. De novo, de uma forma autodidata, tentei ir construindo um programa de leituras. O
poder comporta muitas definições. Como afirma Enriquez17:

“É na própria ambigüidade do conceito de poder que se encontra a razão do seu uso


freqüente na linguagem corrente e no quadro das Ciências Humanas. Por isso, essa
noção é um verdadeiro quadro projetivo, com significações múltiplas, senão
contraditórias, conotando realidades diversas. Assim, ela induz uma comunicação
fundada em mal-entendidos não desfeitos e muitas formulados como tais. De certa forma,
é um conceito que, como um véu, possibilita a comunicação humana, ao mesmo tempo
em que a mascara” (p.13).

15
Há uma boa revisão sobre o tema feita por Vieira, MMF; Carvalho, CAP. “Qualidade e objetivos: implicações
teóricas e metodológicas para a análise das organizações”. São Paulo: Atlas, 1999.
16
Silverman, D. Op.cit. p. 82-83.
17
Enriquez. E. As figuras do poder. São Paulo: Via Lettera , 2005.

9
O poder comporta muitas definições e ênfases distintas, conforme o campo de
conhecimento. Do Leviatã de Hobbes, na teoria política, à atualização de relações
fantasmáticas, na psicanálise, o tema aparece abordado de várias formas na literatura. Por
onde começar?

Meu ponto de partida foi identificar os autores mais utilizados por teóricos brasileiros
que estavam se utilizando, explicitamente, do conceito de poder em suas discussões. Os mais
freqüentemente citados eram Weber e neoweberianos, Michel Foucault e, em parte, Hannah
Arendt. Iniciei meus estudos por aí. Silveira18, em revisão sobre a utilização de Foucault nos
estudos organizacionais, identificou uma utilização quase sempre eclética de fontes, sendo
que Weber e Foucault aparecem em utilização simultânea em vários trabalhos, em companhia
de Habermas (muito freqüente), Marx, Derrida, Guiddens, Freud. Aqui vale um comentário:
por não ter formação formal na área de Ciências Humanas19, é sempre um desafio o estudo de
autores “incontornáveis” para quem se propõe a pesquisar e trabalhar com teoria
organizacional. Como eu costumo brincar com meus alunos: “tropecei em Weber”. Não dá
para estudar teoria da organização sem ter uma compreensão mínima da obra de Weber e suas
contribuições para os estudos sociológicos, assim como de vários outros autores.

Tive a sorte de fazer uma orientação de doutorado na Unicamp de uma médica


sanitarista que fez meu curso na pós-graduação, gostou das questões que eu levantava em sala
de aula e aceitou minha proposta de fazer uma tese sobre o tema “o poder nas organizações”.
Uma tese de doutorado feita por uma médica, orientada por um médico, totalmente teórica, na
área de Ciências Humanas! Os riscos eram imensos, mas topamos. Dona de uma capacidade
de leitura e uma disciplina raras, Maria Elisa Moreira logo leu tudo o que eu tinha em casa e
passou a pesquisar cuidadosamente o que encontrava de discussão do poder nos autores que
selecionamos para o estudo: Weber, Parsons, Foucault e Arendt e toda uma extensa literatura
que tratava de “correlatos do poder”, ou seja, os mecanismos de controle, o jogo de interesses
na organização e os conflitos. Em 2002, publicamos um primeiro artigo na Revista de
Administração Pública da FGV/SP20 e, no mesmo ano, ela defendeu sua tese na Unicamp21. É

18
Silveira, EA. Michel Foucault. Poder e análise das organizações. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2005.
19
Concorri, em 2003, com dois sociólogos, a uma vaga na disciplina “Ciências sociais e saúde” do
DMPS/Unicamp. Na banca presidida pelo professor Everardo Duarte Nunes, estavam Amélia Cohn , Regina
Marcília e Solange L´Abatte. Todos sociólogos, com excessão da professora Marilisa Berti Barros. Fui aprovado
em segundo lugar, com média de 8,35, apenas três décimos abaixo do primeiro colocado.
20
Cecilio, LCO & Moreira, ME. Mecanismos de controle, disputa de interesses e conflitos: a trama de poder nas
organizações de saúde. Rio de Janeiro. Fundação Getúlio Vargas: Revista de Administração Pública, vol.36, n.4,
jul./agosto 2002.

10
a sistematização feita nesse trabalho que tenho utilizado nas minhas reflexões. Leituras
posteriores que eu continuo fazendo não me parecem colocar em cheque aquele estudo, mas
sim enriquecê-lo. Na seqüência, apresento o eixo analítico da tese que orientei e foi uma
oportunidade especial para eu sistematizar e aprofundar minha compreensão do poder nas
organizações.

Seria possível identificar, nas organizações hospitalares, três dimensões de poder


distintas, porém imanentes entre si: uma dimensão de autoridade/ordem, uma dimensão de
disciplinamento/controle e uma dimensão de cooperação/consenso. A dimensão mais
visível ou facilmente reconhecível das relações de poder existentes em uma organização é
aquela que se expressa nos arranjos hierarquizados de autoridade, do tipo legal-formal, tal
qual formulado por Max Weber22 ao trabalhar o conceito de burocracia. Essa dimensão do
poder, a da autoridade/ordem, se materializa nos organogramas formais, nos regulamentos,
nos rituais do cargo e tem como característica principal o fato de a relação de dominação ser
reconhecida como legítima pelos dominados. Estamos utilizando dominação no mesmo
sentido empregado por Weber para quem “poder” seria uma categoria sociologicamente
amorfa, preferindo, pois, utilizar o conceito de dominação.

“Dominação é a probabilidade de encontrar obediência a uma ordem de determinado


conteúdo, entre determinadas pessoas indicáveis” (p. 33).

Essa dimensão do poder/dominação, apesar de ser a mais facilmente reconhecida pelo


senso comum, ao trazer com ela o conceito de “chefe”, não é suficiente para se pensar o
conjunto das relações de poder que existem na organização hospitalar. Reconhecemos, então,
uma segunda dimensão de poder na vida organizacional, que é a dimensão que designamos de
disciplinamento/controle. Essa é uma face do poder na organização que não se expressa tão
explicitamente nos organogramas formais, mas atravessa a organização como um todo e em
todas as direções, não mais no sentido topo-base próprio da dimensão autoridade/ordem. A
produção teórica de Michel Foucault é a que mais tem contribuído para a reflexão sobre essa
dimensão do poder organizacional.

“As relações de poder se enraízam no conjunto da rede social. Isto não significa,
contudo, que haja um princípio de poder, primeiro e fundamental que domina até o

21
Maria Elisa Moreira. “Autoridade/ordem, disciplina/controle e cooperação/consenso: as dimensões imanentes
das organizações: um estudo teórico para pensar a gestão em saúde”. Tese de doutorado. Saúde
Coletiva/Unicamp. 2002.
22
Weber, M. Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Vol.1. Brasília: Editora UnB,
1991. pp.144-147.

11
menor elemento da sociedade; mas que há, a partir desta possibilidade de ação sobre a
ação dos outros (que é co-extensiva a toda relação social), múltiplas formas de
disparidade individual, de objetivos, de determinada aplicação do poder sobre nós
mesmos e sobre os outros, de institucionalização mais ou menos setorial ou global,
organização”.23 (p.247).

Foucault faz a seguinte afirmação, que ajuda a esclarecer o que seria uma alternativa à
concepção do poder soberano e de grande potência para entendermos a micropolítica do
hospital:

“portanto, não o rei em sua posição central, mas os súditos em suas relações recíprocas:
não a soberania em seu edifício único, mas as múltiplas sujeições que existem e
funcionam no interior do corpo social. Logo, não se trata de analisar as formas
regulamentares e legítimas do poder em seu centro, no que possam ser seus mecanismos
gerais e seus efeitos constantes. Trata-se de captar o poder em suas extremidades, em
suas últimas ramificações, lá onde ele se torna capilar; captar o poder nas suas formas e
instituições mais regionais e locais”24 (181-2).

Carapinheiro25, a partir do conceito de sociedades disciplinares desenvolvido por


Foucault, aponta a dimensão de disciplinamento existente no hospital, ao destacar que há todo
um fluxo de registros, desde a identificação do paciente na sua chegada ao hospital e a
disposição e enumeração dos leitos, até informações sobre o ato cirúrgico, horários, motivo da
cirurgia, motivo do cancelamento, equipe presente, fluxo do paciente após a cirurgia, se houve
óbito ou cura, anotação do todos os materiais utilizados no ato cirúrgico, exames solicitados,
receitas médicas. Constitui-se, assim, um campo documental no interior do hospital que não é
somente um lugar de cura, mas também de registro, acúmulo e formação de saber. A
disciplinarização dos atos hospitalares. Por outro lado, a construção de organizações
hospitalares cada vez mais panópticas26 através da informatização de todos os recantos e
atividades do hospital, somada a todos os processos de acreditação e demais programas de
pontuação e classificação dos hospitais, além da protocolização crescente e uso intensivo de
indicadores e incontáveis mecanismos de prestação de contas são, na nossa opinião, um
poderoso movimento de aumento de controle na vida hospitalar. Tudo aponta para o sentido
de normalizar e avaliar todos os aspectos da vida hospitalar, de capturar de todas as formas

23
Foucault. M. O sujeito e o poder, pp. 231-249. In: Rabinow P; Dreyfus, H. Michel Foucault, uma trajetória
política: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1995. 299p.
24
Foucault, M. Soberania e Disciplina In: Microfísica do Poder, 18a ed., Graal, Rio de Janeiro. 2003.
25
Carapinheiro, G. Op.cit..
26
Foucault, M.. O panoptismo,. In: Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes. 2000. p.162-187.

12
possíveis os espaços de autonomia dos trabalhadores, em particular dos médicos.

O mesmo sentido apontam Alvesson e Deetz27 quando afirmam que

“Um dos termos mais úteis que entram nos estudos organizacionais é o conceito de
disciplina de Foucault. As demarcações fornecem formas de comportamento normativo
apoiadas em reivindicações de conhecimento. Treinamentos, rotinas de trabalho,
autovigilância e especialistas compreendem a disciplina na qual fornecem os recursos
para a normalização. Especialistas normativos em particular e o conhecimento que eles
criam provêem um disfarce para as práticas discursivas arbitrárias e geradoras de
vantagens e facilitam a normalização” (p.253).

Para os mesmos autores

“Knights e Morgan usaram as práticas discursivas de Foucault para mostrar a


construção da pessoa e do mundo no discurso da estratégia corporativa. Eles sustentam
que o discurso estratatégico engaja os indivíduos em práticas por meio das quais eles
descobrem a essência da ‘verdade’ do que eles são, a saber –‘um ator estratégico’”
(p.248).

A partir das idéias de Foucault, tenho adotado a imagem de uma rede para pensar as
relações de poder no hospital.

“O poder não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detêm
exclusivamente e aqueles que não o possuem e são submetidos. O poder deve ser
analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. O
poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas
estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo
inerte e consentido do poder, são sempre centros de transmissão”28 (p.183) (grifos
meus).

Gilles Deleuze29, em belo livro em que comenta a obra de Foucault, destaca o conceito
de “diagrama” que Foucaul havia explicitado em Vigiar e punir, isto é, como “um
funcionamento que se abstrai de qualquer obstáculo ou atrito... e que se deve destacar de
qualquer uso específico”.

“O que é um diagrama? É a exposição das relações de forças que constituem o poder

27
Alvesson, M. ; Deetz, S. “Teoria crítica e abordagens pós-modernas para estudos organizacionais”. In: Clegg,
SR; Hardy, C. ; Nord, WR. Op.cit.
28
Foucault, M. 2003. Op.cit.
29
Deleuze, G. Foucault. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995.

13
(...) Vimos que as relações de forças, ou de poder, eram microfísica, multipontuais,
difusas, que determinavam singularidades e constituíam funções puras. O diagrama, ou
máquina abstrata, é o mapa das relações de forças, mapa de densidade e intensidade,
procede por ligações primárias não localizáveis, e que passa a cada instante por todos
os pontos (...) E essas relações de forças passam, ‘não por cima’, mas pelo próprio
tecido dos agenciamento que produzem” (p.46) (grifos meus).

Vou recortar, de um texto referencial de Foucault30, excertos que me parecem


esclarecer bem algumas das suas contribuições que tenho utilizado para pensar o poder nas
organizações:

-“Governar, neste sentido, é estruturar o eventual campo de ação dos outros. O modo de
relação próprio ao poder não deveria, portanto, ser buscado do lado da violência e da
luta, nem do lado do contrato e da aliança voluntárias, (...) porém deste modo de ação
singular – nem guerreiro nem jurídico – que é o governo” (p.244).

-“Eu diria que é perfeitamente legítimo analisá-las (as relações de poder) em instituições
bem determinadas; estas últimas consituindo-se em observatório privilegiado para as
atingir – diversificadas, concentradas, ordenadas e levadas, parece, ao seu mais alto
grau de eficácia; numa primeira abordagem, é aí que podemos pretender ver aparecer a
forma e a lógica de seus mecanismos elementares” (p.245).

-“Não se trata de negar a importância das intituições na organização das relações de


poder. Mas de sugerir que é necessário, antes, analisar as instituições a partir das
relações de poder, e não o inverso; e que o ponto de apoio fundamental destas, mesmo
que se incorporem e se cristalizem numa instituição, deve ser buscado aquém” (p.245).

-“Não há relação de poder onde as determinações estão saturadas” (p.244).

Finalmente, quando Deleuze31 afirma que

“Dirá Foucault que o poder remete a uma ‘microfísica’. Com a condição de não
entendermos ‘micro’ como uma miniaturização das forma visíveis ou enunciáveis, mas
como um outro domínio, um novo tipo de relações, uma dimensão do pensamento
irredutível ao saber: ligações móveis e não localizáveis” (p.82).

Parece que ele consegue sintetizar o porquê do meu encantamento com a leitura de
Foucault, em particular o “Foucault genealógico”, à medida que suas reflexões nos lançam
para “outro domínio”, a microfísica das organizações, lá onde há

30
Foucault, M. 1995. Op.cit.
31
Deleuze, G. 1995. Op.cit.

14
“uma lógica das práticas. Há um impulso em direção a um objetivo, mas ninguém
impulsionando (...) desejo e cálculo foram envolvidos. O efeito global, contudo, escapou
às intenções dos atores, assim como de todos. Como afirmou Foucault, ‘as pessoas
sabem aquilo que fazer; freqüentemente sabem porque fazem o que fazem; mas o que
ignoram é o efeito produzido por aquilo que fazem’. Não se trata de uma nova forma de
funcionalismo. O sistema não está, de modo algum em equilíbrio; nem, a não ser no
sentido mais amplo, um sistema. Não há uma lógica de estabilidade inerente. Ao
contrário, no nível das práticas, há uma orientação produzida por cálculos mesquinhos,
confronto de desejos, emaranhados de interesses menores”32 (p.205-206).

Disciplinamento e controle, portanto, como uma dimensão do poder na vida


organizacional que, para além das linhas de autoridade legal-formal impressas nos
organogramas formais, falam-nos de inumeráveis relações que formigam na micropolítica do
hospital e que precisam ser levadas em conta no desafiador processo de gestão das
organizações hospitalares. É o que provoca, o que desafia qualquer pretensão de se construir
uma macrorracionalidade organizacional. Para o bem ou para o mal, em geral para o mal, para
quem está em situação de Governo. Basta ler o material que recuperei na experriência do
Hospital Materno Infantil Presidente Vargas de Porto Alegre.

Porém, consideramos ainda uma terceira dimensão do poder nos hospitais e que
estamos denominando de cooperação/consenso. Por essa dimensão, está-se mais atento à
idéia de poder de do que poder sobre (presente nas duas dimensões anteriores), tal como
apontado em trabalho clássico de Lukes33. Podemos encontrar indicações para pensarmos tal
dimensão do poder em autores tão diferentes como Hannah Arendt e Talcott Parsons.
Arendt34, criticando

“a convicção de que o tema político mais crucial é, e sempre foi, quem domina quem”,
afirma que “o poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para
agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo, pertence a um grupo e
permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido” (p.36).
Ou ainda, “o poder emerge onde quer que as pessoas se unam e ajam em concerto, mas
sua legitimidade deriva mais do estar junto inicial do que qualquer ação que possa
seguir-se” (p.40).

32
Foucault, M. 1995. Op.cit.
33
Lukes, S. O poder: uma visão radical. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília. 1980. 72p.
34
Arendt, H.. Sobre a violência. . Rio de Janeiro, Relume Dumará. 2001. 114p.

15
Por isso afirmei, ao revisitar a experiência da Santa Casa do Pará, que a concepção
implicitamente adotada pelo grupo do LAPA, nas suas formulações originais, era a concepção
arendtiana de poder. Para Parsons (apud Lukes35), por sua vez,

“o poder, então, é a generalizada capacidade de assegurar o desempenho de obrigações


por parte de unidades, num sistema de organização coletiva, quando as obrigações são
legitimadas com referência ao seu impacto sobre metas coletivas e onde, no caso de
recalcitrância, há um pressuposto de imposição de sanções de qualquer que seja a real
agência daquela imposição”.

Ou seja, para Parsons,

“a conceituação de poder liga-se à autoridade e busca de metas coletivas, e desassocia-


se dos conflitos de interesse e, em particular da coerção e força” (p.24).

A visão parsoniana de poder é hegemônica na produção teórica sobre as organizações


que estou denominando de estrutural-funcionalista, com sua ênfase nas organizações como
“sistemas cooperativos”36. Já a concepção arendtiana pode ser identificada em autores que
advogam a possibilidade de construção de novos consensos, no interior de colegiados
organizacionais, como pressuposto fundamental para a mudança organizacional, como nas
formulações iniciais do grupo da Unicamp – que já comentei. Tenho trabalhado, então, com a
idéia das três dimensões do poder apresentadas, construídas a partir de referenciais teóricos
tão diferentes, que estão presentes, de forma imanente, em todas as organizações, e nas
hospitalares em particular. Levá-las em conta em suas especificidades constitui um dos
maiores desafios para a função gerencial. Freqüentemente, modelos de gestão do tipo
participativo, mais “democráticos”, que enfatizam a dimensão cooperação/consenso, deixam
na sombra as outras dimensões do poder, o que pode explicar certo “mal-estar da
organização”, ou seja, os trabalhadores são, de alguma forma, subestimados na sua
capacidade de percepção das contradições entre os vários tipos de sentidos da vida
organizacional sinalizados pela direção e operacionalizados, em particular, pelas gerências
que lhe são mais próximas37. Esse paradoxo está inexoravelmente presente na função
gerencial: bater, disciplinar, controlar, vigiar e punir, mas também afagar, convocar para a
cooperação, exercer a sedução e o agir comunicativo, para a construção de fugazes consensos

35
Lukes, S. O poder: uma visão radical. Op.cit.
36
Barnard, C.. As funções do executivo. São Paulo: Editora Atlas. 1971. 322p.
37
Cecilio, LCO. “Autonomia versus controle dos trabalhadores: a ‘gestão’ do poder do poder no hospital’. Rio
de Janeiro: ABRASCO, Ciência & Saúde Coletiva, 4 (2): 1999. p.15-329.

16
em torno de convocatórias para a ação, em torno dos “objetivos organizacionais”.
Alinhamento de vetores dissonantes em relação ao grande vetor da macrorracionalidade
pretendida pela organização. Rozendo38, de alguma forma, tematiza essa
preocupação/contradição ao defender a necessidade de se buscar, no conceito de poder
construído por Hannah Arendt, embasamento para uma nova prática da enfermagem pautada
por uma postura de liderança, a partir da competência de se fazer a convocatória para ação de
sujeitos “em concerto”, muito mais do que partir da utilização da violência e da banalização
da enfermagem no mundo do trabalho. Esses são aspectos típicos das atuais práticas
gerenciais. Minha indagação é sobre o quanto se trata de fazer um movimento “substitutivo”
de uma prática da violência, do exercício da autoridade visando à construção e manutenção de
uma determinada “ordem organizacional” por uma prática mais concertada, consensuada, ou,
se, inapelavelmente, teremos que conviver com o exercício das três dimensões na função
gerencial e, mais do que isso, fazer, dessa tensa convivência, matéria-prima para a gestão39.

Liberdade e determinação nas organizações

Tenho me ocupado em tentar compreender melhor essa relação, tema desde sempre
presente no debate sociológico, a partir do que fui observando em vários hospitais, muitos
deles com bastante intimidade com sua vida cotidiana. A história que contei do espanto dos
rosarinos ao verem como eu sabia da vida do hospital deles, mesmo fazendo uma primeira
visita, foi para mostrar o quanto já percebia que há regularidades na vida dos hospitais, por
mais que estejam inseridos em contexto sociopolíticos muito diferentes entre si. A principal
regularidade é o comportamento dos seus mais expressivos corpos profissionais: os médicos e
os enfermeiros. Médicos e enfermeiros apresentam uma semelhança espantosa na forma
como vêm o hospital, se vêm no hospital e vêm os outros atores hospitalares. E esse me
parece ser um tema central para a gestão dos hospitais.

Por outro lado, essa regularidade convive com ordens locais muito diferenciadas, com
múltiplos arranjos, modos de operar, modos de organizar fluxos e práticas de trabalho nas
várias unidades do hospital, formas de relacionamento interpessoal, interunidades ou

38
Rozendo, CA.. “A liderança no cotidiano da enfermagem hospitalar: entre luzes e sombras”. Ribeirão Preto.
229f. Tese (doutorado). Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, 2000.
39
Cecilio, LCO. É possível trabalhar o conflito como matéria-prima da gestão? Cadernos de Saúde Pública
(Fiocruz), v.21, pp.508-516, 2005.

17
interequipes, muito próprias de cada hospital. Por isso tudo, cada hospital é diferente e só
pode ser compreendido na sua ordem local e contingente. O mais contrastante com a
regularidade que apontei antes é o que vou chamar de uma incapturável margem de manobra e
de liberdade que os trabalhadores zelam por manter. Algo que sempre escapa ao desejo de
controle da direção. E esse me parece ser o problema central para quem faz a gestão dos
hospitais.

Esse foi o ponto de partida para minha curiosidade para estudar o tema. Já esbocei a
discussão da relação entre determinação e liberdade, estrutura e ação, reprodução e criação
quando fiz a discussão macro/micropolítica. O que vou fazer agora, depois de ter apresentado
o material empírico, é apenas realçar alguns pontos, apresentando os “conceitos depurados”
que tenho utilizado com os gerentes com os quais trabalho, visando contribuir para que
ampliem sua “caixa de ferramenta conceitual”. Isso porque acho que a compreensão dessa
relação é central no processo gerencial, em particular se considerarmos que é essa “dobra”
autonomia/controle é o território nuclear da gestão em saúde. O gerente hospitalar exerce sua
função entre os pólos determinação e liberdade, constitutivos da vida hospitalar.

Comecemos pelo pólo da liberdade. Uma frase de Castoriadis sintetiza com perfeição
essa dimensão:

“Tudo o que precede mostra a enorme parte de indeterminação que toda organização do
trabalho, inclusive a mais ‘científica’, comporta, mesmo quando se fixou a base material
e o conjunto das outras condições, exceto aquelas que são relativas ao comportamento
dos homens, dos indivíduos, dos grupos”40.

Há autores que questionam um dos elementos mais marcantes do estrutural-


funcionalismo, qual seja, a função ou papel, como definido na abordagem parsoniana. Dão
destaque para o que é denominado de processos de morfogênese. Goode desenvolve a “teoria
da tensão do papel”. Segundo seu argumento fundamental,

“a ordem ou estabilidade social deve ser explicada, não pelo compromisso consensual
normativo dos indivíduos do grupo, nem pela integração das próprias normas, (como
pensa Parsons) senão como resultado de um processo cumulativo caracterizado pelo
dissenso, decorrendo da tensão de papel, da dificuldade normalmente sentida de
satisfazer às suas exigências, e a conseqüente barganha de papéis, que serve para
organizar os sistemas totais de papéis de atores e seu desempenho. As ‘instituições’ são o

40
Castoriadis, C. As encruzilhadas do labirinto. Vol. 1. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1997, p.323.

18
estado cumulativo atual desse processo em curso, especialmente morfogênico”41 (grifos
meus).

Turner42 trabalha com o conceito de criação do papel, isto é, em vez de supor a


existência de inicial de papéis distintos, identificáveis, ele supõe uma tendência para
modificar concepções de papéis próprios e alheios num processo de orientação interativa. Para
ele, os atores se comportam como se houvesse papéis, criando-os e modificando-os à medida
que interagem entre si.

Como diz Buckley:

“Turner sustenta que o papel formal, primordialmente é um ‘esqueleto’ das regras que
evocam e põem em movimento os papéis mais completos, estruturados e mais ou menos
consensualmente validados (...) O comportamento de papel só é relativamente fixo
enquanto proporciona uma coerência percebida e uma estrutura estável para a
interação, mas sofre revisão cumulativa no processo (...) As intenções e opiniões dos
atores constituem elemento unificador na gênese e manutenção dos papéis e, por
conseguinte, a assunção de papéis deve ser vista como envolvendo grande dose de
percepção seletiva do comportamento alheio e de ênfase diferencial na elaboração do
padrão dos papéis”43.

Strauss44 é um autor que rejeita uma concepção demasiada “estrutural” do hospital ao


defender que a ordem social não é apenas normativamente especificada e automaticamente
mantida, mas alguma coisa que precisa ser “trabalhada” e permanentemente reconstituída.
Para ele, à semelhança de qualquer organização, o hospital pode ser pensado como hierarquia
de status e poder, de regras, papéis e metas organizacionais, mas, também, como local para
um complexo em curso de transações entre tipos diferentes de atores, sejam eles
profissionais como médicos, enfermeiros, residentes, psicólogos, terapeutas ocupacionais e
não-profissionais como os pacientes e suas famílias. Em estudo realizado em hospitais,
Strauss verificou que as regras que se julgavam destinadas a governar as ações dos
profissionais estavam longe de ser amplas, claramente enunciadas e compulsórias;
praticamente ninguém conhecia todas as regras existentes nem as situações e sanções
aplicáveis (p.216).

41
Goode, WJ. Apud Buckley. Op.cit.. p.219.
42
Turner, RH apud Buckley, W. Op.cit.
43
Buckley, W. Op. Cit. p.212.
44
Strauss, A. apud Buckley, W. Op.cit..

19
O interessante dos trabalhos de Strauss é que eles se baseiam em amplos estudos
realizados em hospitais ainda na década de 1960 e permanecem válidos, na minha opinião,
para se compreender a micropolítica do hospital no seu componente de “ordem construída e
contingente”, com ênfase na irredutível captura da ação humana a papéis e regras rigidamente
estabelecidas. Como reitera Turner:

“As resultantes e inevitáveis discrepâncias entre as regras e papéis formais e


institucionais de um lado, e as metas e opiniões e interpretações seletivas, nascidas da
experiência dos que realmente tentam representá-las, de outro, fazem das concepções de
papéis ‘compromissos criativos’ e asseguram que a estrutura de papéis operará como
quadros de referência ideais, imprecisamente concebidos para o comportamento, muito
mais do que como conjunto inequívoco de fórmulas”45.

O que há em comum entre esses atores é a defesa de que as intenções e opiniões dos atores
constituem elemento unificador na gênese e manutenção de papéis e, por conseguinte, a
assunção de papéis deve ser vista envolvendo grande dose de percepção seletiva do
comportamento alheio e de ênfase diferencial na elaboração do padrão de papéis. Espaço de
liberdade, de opção e de criatividade que escapa, ou tenta escapar, o tempo todo, da lógica
capturante e normalizadora da direção.

“O fato humano representa o grão de areia na máquina”

afirma concisamente Friedberg46. Mesmo que se considere que essas interações


47
ocorram num campo já marcado por relações de poder objetivadas, penso que tais estudos
conseguem pensar

“o agente na sua verdade de operador prático de construções de objeto”,

para usar expressão de Pierre Bourdieu. Mesmo que se concorde com Isaac Joseph48
quando ele afirma que

“as ações recíprocas não implicam nenhuma simetria dos interagentes em seu poder de
interagir”(p.19),

é inegável que há uma margem de liberdade da ação humana no hospital e é ela que
tem sido o “alvo” das ações gerencialistas.

Como apontam Hardy e Clegg49,

45
Turner, RH. Apud Beckley, W. Op.cit.. (p214).
46
Friedberg, E. Op.cit.. p.. 60.
47
Bourdieu, P. O poder simbólico. Rio de |Janeiro: Bertand Brasil, 2000. cap. III.
48
Joseph, I. Erving Goffman e a microssociologia. Rio de Janeiro: Fundação FGV, 2000.

20
“os trabalhadores contratados reterão um discernimento último sobre si mesmos, sobre o
que fazem e como o fazem. Conseqüentemente, uma fonte potencial de resistência reside
nessa inescapável e irredutível essência da força de trabalho. O lapso entre a capacidade
de trabalho e sua efetiva realização implica poder e organização do controle” (p.263).

Por fim, busco em Dejours50 uma formulação que me parece fazer eco em tudo o que
apresentei até agora para falar do “pólo liberdade”:

“os trabalhadores constroem verdadeiras ‘regras do trabalho’ ou de ‘ofício’ que não


estão de acordo com a organização oficial do trabalho. Não se trata apenas de macetes,
de truques e de habilidades pontuais e isoladas, mas de uma articulação coerente entre
elas, cuja soma conduz à elaboração de verdadeiros princípios reguladores para a ação
e para a gestão das dificuldades ordinárias e extraordinárias observadas no curso do
trabalho” (p.133).

Penso, então, que, para nós que, direta ou indiretamente, nos ocupamos da gestão em
saúde, trata-se de assumirmos a existência desse espaço de liberdade irredutível dos
trabalhadores de saúde, produtor de sentidos que, muitas vezes, são a reprodução de
instituídos, e parecem ir na direção oposta às propostas que julgamos inovadoras e
necessárias, como no caso das experiências analisadas nesse trabalho.

Até agora, tentei apresentar reflexões teóricas que embasassem minhas observações
empíricas sobre a margem de liberdade e criatividade que existe nas organizações. E como
explicar que, havendo liberdade e criatividade, há, ao mesmo tempo, regularidades e
reprodução de comportamentos quando estudamos hospitais tão diferentes entre si?

Ricardo Bruno51 apontava que expor o problema das relações entre ciência, prática
médica e estrutura social se constitui em marca registrada da escola brasileira da Medicina
Social. Na verdade, elucidar tal relação será a tarefa central de um conjunto referencial de
estudos realizados no Brasil nos anos 70 e 80, incluindo aí o próprio Mendes Gonçalves52 e,
por exemplo, Luz53.

49
Hardy, C; Clegg, SR. “Alguns ousam chama-lo de poder”. In:Clegg, SR; Hardy, C; Nord, WR. (org.)
Handbook de estudos organizacionais. Reflexões e novas direções. Volume 2. São Paulo: Atlas, 2001.
50
Dejours,C; Abdoucheli, E. “Itinerário teórico em psicopatologia do trabalho”. In: Dejours, C; Abdoucheli, E;
Jayet, C. (Org.) Psicodinâmica do trabalho. Contribuições da Escola Dejouriana à análise da realação prazer,
sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas, 1994.
51
Mendes Gonçalves, RB. Tecnologia e organização social das práticas de saúde. Características tecnológicas
do processo de trabalho na rede estadual de centros de saúde de São Paulo. São Paulo: Hucitec/Abrasco, 1994.
52
Além do trabalho já citado, incluo nessa mesma linha de análise sua tese de mestrado: Mendes Gonçalves, RB.
“Medicina e história - raízes sociais do trabalho médico. São Paulo: FMUSP, (dissertação de mestrado), 1979.
53
Luz, MT. Medicina e Ordem Política Brasileira. (Introdução). Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982.

21
Para Schraiber54,

“Pode-se dizer que há dois tipos de limitantes para essa autonomia individual (do
médico). Eles, porém, não se apresentam de modo igual, porque apenas um deles mostra
ser mais evidentemente um obstáculo para a liberdade de ação. O primeiro é constituído
por elementos estruturadores do desempenho pessoal, qua homogenizam os
procedimentos e aproximam os médicos de uma mesma identidade profissional. Por
isso mesmo, uma vez estruturando socialmente os comportamentos pessoais, não
parecerão seus conformadores” (p.79) (grifos meus).

É o que a autora chama de “estruturador do informal”. Também para ela,

“Na medicina tecnológica, a prática perderá progressivamente essas dimensões de


personalização e sacralização, à proporção que a medicina se estrutura
progressivamente sobre as bases impessoais e objetivas da tecnologia material. Por
conseqüência, terá uma forma de organização social cuja demarcação dos lugares e dos
períodos é mais típica da produção capitalista, e com as separações que lhe são
peculiares: tempo e espaço da vida pessoal , em contraste com o do trabalho” (p.89).

O chamado movimento institucionalista, surgido na década de 60, na França, vem


contestando as concepções positivistas, estruturalistas e subjetivistas da sociedade,
produzindo novas contribuições teóricas para a crítica ao paradigma estrutural-funcionalista
das organizações e é nele que tenho encontrado bom aporte teórico para minhas reflexões, em
particular na Análise Institucional ou socioanálise, em particular nos trabalhos de George
Lapassade e René Lourau.

Os analistas institucionais consideram importante para a compreensão da dinâmica


social as diferenças conceituais entre instituição e organização.

Em contraposição ao conceito de instituição, conforme professado pelos positivistas,


como fato, ou algo preestabelecido, enfim como uma herança de padrões culturais
transmitidos pela educação, Lapassade & Lourau55 conceituam instituição como a forma
assumida pela reprodução e produção de relações sociais num dado modo de produção. Para
esses autores, “instituição” é um reflexo da organização das relações de produção e essa
herança social é um dos efeitos da luta de classes.

54
Schraiber, L. O médico e seu trabalho. Limites da liberdade. São Paulo: Hucitec, 1993.
55
Lapassade, G; Lourau, R. Chaves da sociologia. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1972.

22
Os analistas institucionais identificam, sob um enfoque teórico de assumida inspiração
hegeliana, três momentos do conceito de instituição: o momento da universalidade, tendo por
conteúdo os sistemas de normas, os valores que orientam a socialização, a ideologia, o
instituído, enfim; o momento da particularidade, em que seu conteúdo se resume às
determinações materiais e sociais que negam a universalidade dada no primeiro, sendo o
momento instituinte; o momento de singularidade, no qual o conceito de instituição tem por
conteúdo as formas organizacionais, jurídicas ou anônimas necessárias para atingir
determinado objetivo ou determinada finalidade, o momento, por fim, da institucionalização.
Dialeticamente, um momento está contido no anterior e o nega na ação concreta dos
indivíduos e das coletividades, ou seja,

“toda idéia é tão verdadeira quanto sua contrária, desde que encarnada a ação
concreta”56.

O movimento institucionalista nega a oposição entre o particular e o geral que oblitera


o terceiro momento do conceito de instituição (o singular), afirmando, assim, a ação recíproca
dos três momentos. Ainda segundo Lourau, a oposição entre o particular e o geral, sem a
intermediação do singular, produz antinomias que só poderiam ser resolvidas pela
preponderância dada à sociedade – estrutura, ou ao indivíduo – ação.

Lourau57 demarca as diferenças da noção de instituição desta corrente com o


estrutural-funcionalismo:

“a la institución durkheimiana parsoniana que designa una estructura estática de


normas y de funciones, estructura exterior a nosotros – indivíduos y grupos – nuestro
paradigma opone el modelo dinámico de la institucionalización y de la implicación
dentro de la institucionalización”.

A análise institucional critica os autores da sociologia das organizações por


autonomizarem o terceiro momento do conceito de instituição, o momento da singularidade
ou da institucionalização, dando ênfase à racionalidade e positividade das formas sociais em
detrimento da história, das contradições e da luta de classes. A teoria das organizações, na
concepção desses analistas institucionais, não está atenta para a relação dialética de negação e
positivação de um momento pelo outro. Ela cristaliza a institucionalização, não vendo que

56
Lourau,R. A análise institucional. Petrópolis: Editora Vozes, 1996.
57
Lourau, R. Libertad de movimientos – Una introducción al análisis institucional. Buenos Aires: Ed.
Universitária, 2001.

23
“os conjuntos práticos não são totalidades fechadas e acabadas em si mesmas e sim que
o seu sentido é sempre externo a ela, na história, no modo de produção e na formação
social em que está constituída” 58.

Dos institucionalistas, tenho usado principalmente o conceito de instituição como

“árvores de decisões lógicas que regulam as atividades humanas, indicando o que é


proibido, o que é permitido e o que é indiferente”59.

Uso o conceito de Instituição Médica, Instituição Enfermagem, Instituição


Enfermagem para compreender as regularidades e comportamentos dos médicos e
enfermeiros nas organizações. Como já vimos antes com Foucault60 , as relações de poder nas
organizações só podem ser entendidas aquém das organizações, ou seja, antes mesmo das
organizações. É impossível compreender o campo de relações objetivadas de poder no
hospital, no sentido dado por Bourdieu, sem levar em conta as instituições (Médica,
Enfermagem, Burocrática) que o atravessam e o constituem.

Por outro lado, as instituições se realizam e se atualizam pela ação dos atores
institucionais. Baremblitt61 propõe usar o termo organização para designar as formas
materiais nas quais as instituições se realizam. Ele propõe, ainda, a utilização do conceito de
estabelecimento para designar um hospital, uma escola. A organização seria, por exemplo,
uma secretaria municipal de saúde ou o próprio Ministério da Saúde. Mas, como ele mesmo
se encarrega de ressaltar:

“INSTITUIÇÃO – ORGANIZAÇÃO – ESTABELECIMENTO. Tudo isso, naturalmente, só


adquire dinamismo através dos agentes. Os agentes são ‘seres humanos’, são os suportes
e os protagonistas de toda essa parafernália. E os agentes protagonizam prática (...) É
nas ações que toda essa parafernália acaba por operar transformações na
realidade”.(p..0-31).

Há uma corrente de pensamento bastante forte atualmente no campo da teoria da


organização que tem sido designada de “novo institucionalismo” que reaviva, entre outras
coisas, uma concepção da organização como estrutura institucionalizada de poder e

58
Lourau & Lapassade, 1972, Op.cit..
59
Baremblitt, 1996. Op.cit..
60
Foucault. M. 1995. Op.cit..
61
Baremblitt, 1996. Op.cit..

24
autoridade que está acima das micropráticas localizadas dos membros organizacionais.
DiMaggio e Powell62 sustentam que o “novo institucionalismo” representa uma

“rejeição dos modelos de atores racionais, um interesse nas instituições como variáveis
independentes, uma volta às explicações cognitivas e culturais, e um interesse em
propriedades de unidades de análise supra-individuais que não podem ser reduzidas a
agregações ou tratadas como conseqüência direta de atributos individuais”.

Como já afirmei antes, o estrutural-funcionalismo resiste como paradigma hegemônico


dos estudos organizacionais, mesmo com novas roupagens.

Vou concluindo por aqui essa sistematização do itinerário teórico que construí nos
últimos anos. Tenho bastante consciência da insuficiência dele, tanto pela complexidade dos
temas que ele teve que enfrentar, todos centrais no debate das ciências sociais, como por
minha formação autodidata e incompleta na área. Só uma coisa me deu segurança de fazer
esse caminho, e coragem para prosseguir meus estudos: o compartilhamento de muito do que
fui compreendendo com os coletivos com os quais trabalho. Vou construindo “conceitos
depurados”, que penso ter forte poder de comunicação e vou “testando” sua eficácia
explicativa com os profissionais dos serviços de saúde. Ao reproduzir a réplica que fiz para a
Interface, e que citei acima, me dei conta que, nela, fiz uma síntese dos meus focos de atenção
nos últimos anos: explorar uma concepção de poder mais elaborada, de forma a contempla
melhor as múltiplas dimensões do poder existentes nas organizações; valorizar mais o peso
das Instituições na vida das organizações de saúde, em particular a Instituição Médica e seu
poder de reprodução; explorar uma teoria da ação que valorize a margem de liberdade e
criação que todos os atores institucionais preservam, apesar de todas as
“sobredeterminações”.

É disso que falo com gerentes e dirigentes. Chamo a atenção para as dimensões de
poder existentes nas organizações e suas manifestações inevitáveis na forma de conflito e
mal-estar organizacional. Alerto que o gerente terá que conviver com uma margem de
liberdade dos trabalhadores que não será nunca possível controlar, incluindo aí uma “pauta de
indulgência” de tamanho variado. Que é preciso reconhecer a presença das Instituições

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DiMaggio e Powell citados por Reed, M. “Teorização organizacional: um campo historicamente contestado.
In: Handbook de estudos organizacionais. 1996. Op. cit. (p.79).

25
Médica e de Enfermagem, com suas lógicas e seus modos de se enunciarem, por isso
concordo quando Ferraz63 afirma que

“questionar a identidade profissional é tema ainda injurioso e de denegação que fere as


corporações, portanto não é tarefa fácil” (p.101).

É preciso agir com cuidado e muita negociação para propiciar os deslocamentos


necessários e possíveis das suas “auto-referência profissionais”, como alerta a própria Ferraz.
Penso que meu trabalho tem ajudado os gerentes a perceberem sua delicada situação de
“intermediários”, no entrecruzamento do projeto de Governo e da direção e os autogovernos
dos trabalhadores. Como a “função suja” do controle e disciplinamento é inevitável na função
gerencial, ao mesmo tempo em que é necessário o exercício de uma dimensão mais arendtiana
do poder, que conclama para o entendimento e uma relação mais dialógica! Discuto todas
essas questões em todos os espaços em que trabalho. E, quando esse pouco que sei de temas
tão complexos encontra ressonância nas pessoas, que vejo um brilho de compreensão no
olhar, que escuto alguém dizer “Nossa, Cecilio, me caíram tantas fichas hoje!”, me sinto
autorizado a seguir no exercício ilegal da sociologia.

63
Ferraz, CA. Ensaio sobre reforma político-administrativa hospitalar. Análise sociológica da transição de
modelos de gestão. Ensaio teórico apresentado à Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto. 2002.

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