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Nas experiências posteriores à da Santa Casa do Pará, comecei a perceber que o aporte
teórico que havíamos utilizado na formulação do “modelo de gestão” não dava conta de
1
vários aspectos da vida do hospital. Era isso que eu queria entender melhor. Por isso, fui
fazendo o que chamei de segundo deslocamento, isto é, a partir das questões que eu ia
vendo/vivenciando na prática de gestão do hospital, fui progressivamente me interessando
pelo campo da teoria organizacional em si. E esse é um campo muito vasto, cheio de
possibilidades para ser percorrido, com muita literatura disponível. Por onde começar então?
Que caminhos percorrer nos estudos?
Em boa medida, fui muito autodidata nesse percurso, embora a idéia de “ser
autodidata” precise ser relativizada. Mesmo que não tenhamos consciência, as informações
nos chegam, recebemos influência de autores, de colegas, de leituras. Já reconheci a
influência teórica que recebi durante toda a minha vivência no LAPA. O desafio é dar ordem
a tudo isso. Como compor um quadro teórico, sempre precário e incompleto, mas com algum
poder de iluminar um “objeto de trabalho” que pensa? Qual teoria construir para entender
melhor o trabalho que eu fazia?
Antes de falar do itinerário teórico que fui construindo, quero pontuar algumas coisas.
1. A primeira é que a teoria esteve, desde sempre, nesses anos todos, intimamente
comprometida, contaminada, alimentada por uma prática de gestão. Isso resulta
no que já comentei antes: teoria e prática se misturam o tempo todo. Então, o
deslocamento da “gestão” para a “teoria organizacional” significa apenas
destacar a importância crescente que a reflexão sobre minha prática foi
assumindo importância para mim, e não qualquer idéia de hierarquia entre
teoria e prática.
“A maioria das práticas operacionaliza alguma teoria, por mais implícita, vaga e
contraditória que ela possa ser. De fato, ‘prática’ é um constructo teórico e a teorização,
em si mesma, é uma prática. Qual a relação entre a teorização dos acadêmicos e prática
daqueles que constituem as organizações”? 1
1
Marsden, R; Townley, B. “Introdução: a coruja de Minerva: reflexões sobre a teoria na prática”. In: Handbook
de estudos organizacionais. 2001. Op.cit..
2
caleidoscópio de teorias.
“Todos mis libros, ya sea ‘La historia de la locura em la época clásica’ o este (Vigilar y
castigar), son, si ustedes quierem, pequeñas cajas de herramientas. Si la gente desea
abrirlos y hacer uso de tal o cual frase o idea, de este análisis o de aquel outro, como si
fuera um destornillador o uma llave inglesa, a fin de hacer cortocircuitos o descalificar
los sistemas de poder, incluyendo aquellos de donde mis libros han surgido, me parece
perfecto” 3.
“Compartilhar teoria” foi ficando uma marca do meu trabalho e penso que ela tem
algumas implicações. A mais problemática é que o “trazer a teoria para o serviço” quase
sempre é vivido pelas pessoas como um saber que eu “desenvolvo na universidade, lá onde se
estuda e pesquisa”. Há uma espécie de admiração, de fascínio mesmo, de muitos
profissionais do serviço pelo “que se faz lá na academia”, “onde se estuda e se pesquisa e,
2
Marsden, R; Townley, B. Op.cit.. p.32
3
Citação por Halérin, D. San Foucault. Para uma hagiografia gay. Córdoba: Ediciones Literales, 2004. P.74.
3
portanto, se sabe das coisas”. A academia é o lugar da produção do saber, enquanto “nós,
aqui, só ralamos, não refletimos sobre nossas práticas, não produzimos conhecimento, não
mandamos um trabalho para um congresso”. É um lugar de poder esse. O lugar do que sabe.
O que traz o conhecimento da academia para o serviço. Não há muito como escapar disso.
Reconhecer tal fato e que a demanda foi feita pela direção faz parte da minha análise de
implicação. Ou seja, não entro neutro no campo de forças da organização, entro posicionado:
sou o que sabe, sou o professor, sou aliado da direção, sou pago pela instituição e
provavelmente minha hora-trabalho tem valor superior à maioria dos que estão ali presentes.
Ocupo um lugar no campo de poder da organização. Por isso que para Ranci4,
À medida que eu ia adquirindo uma maior segurança teórica, fui aprendendo a fazer
uma coisa que acho muito positiva para o meu trabalho, e que eu chamaria de “depuração de
conceitos”. Depurar conceitos seria o esforço para lapidar idéias-sínteses, metáforas, imagens,
pequenas definições, com alto poder de comunicação com os atores institucionais. Esses
“conceitos depurados”, fortemente comunicativos, são uma chave importante da dimensão
pedagógica da consultoria. Dois exemplos de conceitos depurados que eu ia compartilhando
na experiência do HMIPV, por exemplo, são o de “pauta de indulgência” e a metáfora da
“rede que construímos e nos aprisiona, como a rede da aranha”. Como veremos, estes dois
conceitos, com alto poder de comunicação, são devedores de uma reflexão teórica bastante
elaborada. Freqüentemente, havia o pedido dos atores institucionais para que eu
disponibilizasse, para eles, o “texto onde eu havia lido aquilo”. Nem sempre eu dispunha de
um texto que falasse de algum tema específico, à medida que o conceito que eu apresentava
“depurado” era fruto de muitas leituras, mas, com o tempo, fui aprendendo a selecionar alguns
artigos, capítulos de livros, que não fossem muito longos e de fácil leitura. Um exemplo
recente: os apoiadores distritais e os coordenadores da Secretaria Municipal de Saúde de
Campinas, que eu supervisiono mensalmente, se encantaram com a “descoberta” de Dejours
de que os trabalhadores produzem e fazem a gestão de mecanismos de defesa, coletivos e
inconscientes, para se defenderem do sofrimento que a organização lhes impinge. Essa idéia
encontrou forte ressonância entre os coordenadores e apoiadores porque lhes ajudou a
4
Ranci, C. “Relações difíceis: a interação entre pesquisadores e atores sociais”. In: Melucci, A. 2005, Op.cit.
4
compreender fenômenos da vida cotidiana. O Centro de Educação de Trabalhadores de Saúde
(CETS) reproduziu e distribuiu, para todos os distritos e centros de saúde, um texto do autor
que selecionei.
Feitas essas considerações, vou tentar reconstruir de modo bem sintético elementos
que considero como os mais marcantes do meu itinerário teórico, que, como eu disse, teve um
forte componente de autodidatismo e significou fazer determinadas opções de estudo, de
autores, mais ou menos arbitrárias, quase sempre insuficientes, em permanente esforço de
aprimoramento e aprofundamento. Retomo, sob novos ângulos, alguns temas que já explorei
preliminarmente quando me ocupei em mostrar o que entendo por “micropolítica” e
“hospital”. A disciplina “Administração e planejamento em saúde” que coordenei no
Departamento de Medicina Preventiva e Social da Unicamp, de 1994 a 2003, e que mantenho
agora na Unifesp, foi espaço privilegiado para o amadurecimento das minhas reflexões. Nas
longas leituras para a seleção dos textos, a discussão com os alunos, os trabalhos finais da
disciplina, muito contribuíram para eu ir compondo o quadro teórico que apresento na
seqüência.
Poderia ser questionado, de saída, por que esses temas e não outros? Não haveria
outros blocos temáticos importantes para se pensar a gestão hospitalar? É certo que sim. Posso
citar o exemplo de uma nova área de interesse para mim: psicanálise e organização, por onde
tenho iniciado novos estudos. Poderia, também, haver um bloco intitulado “grupos e
organização”. Enfim, haveria outras possibilidades de agrupamento. Então, por que essas?
Penso que, ao sistematizar as três experiências analisadas nesse trabalho, fui dando indicações
sobre quais fenômenos da vida organizacional me chamavam a atenção, que aspectos da
vida do hospital parecem desafiar uma compreensão melhor: as regularidades na vida dos
hospitais, em particular as práticas e os discursos dos médicos e da enfermagem, a
“recalcitrância” dos trabalhadores, os aspectos da vida organizacional que nos parecem
“irracionais”, o conflito, as disputas, a insuficiência das respostas das consultorias para o
5
tratamento dos “recursos humanos”, etc. Foi a partir de problemas práticos que fui compondo
um caminho de estudos. O resultado é o que apresento a seguir. Precário e insuficiente, mas
um caminho “da gestão para a teoria”, o segundo deslocamento desse itinerário.
O estrutural-funcionalismo
Para Friedberg10, o que caracterizaria o que ele denomina de “visão clássica das
organizações” seria o caráter racional e instrumental da organização em relação a fins
exógenos, predeterminados e fixos, aos serviços dos quais ela é uma simples correia de
5
Joas, H. A teoria parsoniana hoje: a busca de uma nova síntese. In: Giddens, A.; Turner, J. (org) Teoria social
hoje. São Paulo: Editora UNESP, 1999.
6
Buckley, W. A sociologia e a moderna teoria dos sistemas. São Paulo: Cultrix, 1971, p.49.
7
Katz, D; Kahn, RL.Psicologia social das organizações. São Paulo:Atlas, 1970.
8
Joas, H. Op.cit..
9
Lins, A.M.. Produções teóricas na área de gestão e avaliação em saúde: o esforço de construção de um novo
paradigma. Campinas: 250f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Faculdade de Ciências Médicas,
Universidade Estadual de Campinas, 2004. Tese realizada sob minha orientação.
10
Friedberg, Op.cit. Primeira parte.
6
transmissão transparente, passiva e obediente e a idéia da coesão interna dos trabalhadores e
sua adesão a um projeto “maior” da organização.
Eu diria que essa visão, por mais simplificada e contestável que aparentemente seja à
primeira vista, ainda continua sendo o modelo hegemônico para se pensar as organizações. Os
dirigentes, do setor privado e governamental, sabem que as coisas não funcionam bem assim,
mas desejam que sejam assim. Fazem tudo para que seja assim.
11
Parsons apud Buckley, W. Op.cit..
12
Katz, D; Kahn, RL. Op.cit.. pp53-54.
13
Silverman, D. Teoria de las organizaciones. Buenos Aires: Nuevas Visiones, 1975.
7
Por exemplo, estou convencido, entre quase tudo o que leio, de que boa parte dos
modelos de gestão em voga, das consultorias às empresas e do modo hegemônico de se
ensinar nas escolas de administração ainda está presa a tal paradigma. Como conseqüência, os
modelos de gestão hospitalar, mesmo os que se apresentam como mais “modernos”, ainda
operam esse paradigma. O gerencialismo, como já caracterizei antes, traz implicitamente
todos os componentes do estrutural-funcionalismo. Todos!
Sinteticamente, eu diria que boa parte das estratégias gerenciais se assenta na busca
da compatibilização dos três elementos, ora com mais ênfase em um, ora em outro, mas
sempre tentando compor uma equação adequada desses elementos aos “objetivos
organizacionais”. Para Katz e Kahn,
“Apesar de que a função, a norma e a integração de valor possam ser separadas para
propósitos analíticos, elas se acham inter-relacionadas em uma organização em
funcionamento. Não obstante, em diferentes sistemas, a ênfase relativa pode ser maior
sobre um componente do que sobre outro. A linha de montagem pode dar maior peso aos
requisitos da tarefa ou desempenho da função; a agência de pesquisa às normas de
procedimento rigorosamente científico e o partido político à salvação do país da ruína”
(p.55).
Eu diria que a função gerencial ainda se assenta sobre esses três elementos: mostrar
ao trabalhador sua função; fazê-lo saber que o gerente tem o poder legal-formal para aplicar a
sanção, que no caso do setor privado é, no caso extremo, muito simplesmente a demissão, ou
seja, a exclusão do “indesejado”; ao mesmo tempo, fazer de tudo para o trabalhador “vestir a
camisa da empresa”, compartilhar seus valores de crescimento e competitividade no mercado,
mesmo que ele não compartilhe dos maiores lucros. O “núcleo operatório” do estrutural-
funcinalismo. Uma tensão permanente que retomarei ao discutir o poder nas organizações.
8
alinhamento de todos os trabalhadores em torno da “missão da organização”. Trabalha-se,
assim, na perspectiva de uma reificada macrorracionalidade organizacional, sempre desejada,
nunca plenamente conseguida, fato já bem conhecido e problematizado na literatura de teoria
organizacional15. Como provoca Silverman16:
“Algo que os sociólogos atribuem às organizações (sua função para a sociedade), sem
nenhuma referência aos fins que perseguem efetivamente dentro delas, tem alguma
influência sobre a natureza das relações internas? Os funcionários de uma prisão estão
realmente comprometidos com uma suposta função parsoniana, ou, na prática, a função
integrativa da sua organização tem um caráter coercitivo para eles?”
O poder
15
Há uma boa revisão sobre o tema feita por Vieira, MMF; Carvalho, CAP. “Qualidade e objetivos: implicações
teóricas e metodológicas para a análise das organizações”. São Paulo: Atlas, 1999.
16
Silverman, D. Op.cit. p. 82-83.
17
Enriquez. E. As figuras do poder. São Paulo: Via Lettera , 2005.
9
O poder comporta muitas definições e ênfases distintas, conforme o campo de
conhecimento. Do Leviatã de Hobbes, na teoria política, à atualização de relações
fantasmáticas, na psicanálise, o tema aparece abordado de várias formas na literatura. Por
onde começar?
Meu ponto de partida foi identificar os autores mais utilizados por teóricos brasileiros
que estavam se utilizando, explicitamente, do conceito de poder em suas discussões. Os mais
freqüentemente citados eram Weber e neoweberianos, Michel Foucault e, em parte, Hannah
Arendt. Iniciei meus estudos por aí. Silveira18, em revisão sobre a utilização de Foucault nos
estudos organizacionais, identificou uma utilização quase sempre eclética de fontes, sendo
que Weber e Foucault aparecem em utilização simultânea em vários trabalhos, em companhia
de Habermas (muito freqüente), Marx, Derrida, Guiddens, Freud. Aqui vale um comentário:
por não ter formação formal na área de Ciências Humanas19, é sempre um desafio o estudo de
autores “incontornáveis” para quem se propõe a pesquisar e trabalhar com teoria
organizacional. Como eu costumo brincar com meus alunos: “tropecei em Weber”. Não dá
para estudar teoria da organização sem ter uma compreensão mínima da obra de Weber e suas
contribuições para os estudos sociológicos, assim como de vários outros autores.
18
Silveira, EA. Michel Foucault. Poder e análise das organizações. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2005.
19
Concorri, em 2003, com dois sociólogos, a uma vaga na disciplina “Ciências sociais e saúde” do
DMPS/Unicamp. Na banca presidida pelo professor Everardo Duarte Nunes, estavam Amélia Cohn , Regina
Marcília e Solange L´Abatte. Todos sociólogos, com excessão da professora Marilisa Berti Barros. Fui aprovado
em segundo lugar, com média de 8,35, apenas três décimos abaixo do primeiro colocado.
20
Cecilio, LCO & Moreira, ME. Mecanismos de controle, disputa de interesses e conflitos: a trama de poder nas
organizações de saúde. Rio de Janeiro. Fundação Getúlio Vargas: Revista de Administração Pública, vol.36, n.4,
jul./agosto 2002.
10
a sistematização feita nesse trabalho que tenho utilizado nas minhas reflexões. Leituras
posteriores que eu continuo fazendo não me parecem colocar em cheque aquele estudo, mas
sim enriquecê-lo. Na seqüência, apresento o eixo analítico da tese que orientei e foi uma
oportunidade especial para eu sistematizar e aprofundar minha compreensão do poder nas
organizações.
“As relações de poder se enraízam no conjunto da rede social. Isto não significa,
contudo, que haja um princípio de poder, primeiro e fundamental que domina até o
21
Maria Elisa Moreira. “Autoridade/ordem, disciplina/controle e cooperação/consenso: as dimensões imanentes
das organizações: um estudo teórico para pensar a gestão em saúde”. Tese de doutorado. Saúde
Coletiva/Unicamp. 2002.
22
Weber, M. Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Vol.1. Brasília: Editora UnB,
1991. pp.144-147.
11
menor elemento da sociedade; mas que há, a partir desta possibilidade de ação sobre a
ação dos outros (que é co-extensiva a toda relação social), múltiplas formas de
disparidade individual, de objetivos, de determinada aplicação do poder sobre nós
mesmos e sobre os outros, de institucionalização mais ou menos setorial ou global,
organização”.23 (p.247).
Foucault faz a seguinte afirmação, que ajuda a esclarecer o que seria uma alternativa à
concepção do poder soberano e de grande potência para entendermos a micropolítica do
hospital:
“portanto, não o rei em sua posição central, mas os súditos em suas relações recíprocas:
não a soberania em seu edifício único, mas as múltiplas sujeições que existem e
funcionam no interior do corpo social. Logo, não se trata de analisar as formas
regulamentares e legítimas do poder em seu centro, no que possam ser seus mecanismos
gerais e seus efeitos constantes. Trata-se de captar o poder em suas extremidades, em
suas últimas ramificações, lá onde ele se torna capilar; captar o poder nas suas formas e
instituições mais regionais e locais”24 (181-2).
23
Foucault. M. O sujeito e o poder, pp. 231-249. In: Rabinow P; Dreyfus, H. Michel Foucault, uma trajetória
política: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1995. 299p.
24
Foucault, M. Soberania e Disciplina In: Microfísica do Poder, 18a ed., Graal, Rio de Janeiro. 2003.
25
Carapinheiro, G. Op.cit..
26
Foucault, M.. O panoptismo,. In: Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes. 2000. p.162-187.
12
possíveis os espaços de autonomia dos trabalhadores, em particular dos médicos.
“Um dos termos mais úteis que entram nos estudos organizacionais é o conceito de
disciplina de Foucault. As demarcações fornecem formas de comportamento normativo
apoiadas em reivindicações de conhecimento. Treinamentos, rotinas de trabalho,
autovigilância e especialistas compreendem a disciplina na qual fornecem os recursos
para a normalização. Especialistas normativos em particular e o conhecimento que eles
criam provêem um disfarce para as práticas discursivas arbitrárias e geradoras de
vantagens e facilitam a normalização” (p.253).
A partir das idéias de Foucault, tenho adotado a imagem de uma rede para pensar as
relações de poder no hospital.
“O poder não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detêm
exclusivamente e aqueles que não o possuem e são submetidos. O poder deve ser
analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. O
poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas
estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo
inerte e consentido do poder, são sempre centros de transmissão”28 (p.183) (grifos
meus).
Gilles Deleuze29, em belo livro em que comenta a obra de Foucault, destaca o conceito
de “diagrama” que Foucaul havia explicitado em Vigiar e punir, isto é, como “um
funcionamento que se abstrai de qualquer obstáculo ou atrito... e que se deve destacar de
qualquer uso específico”.
27
Alvesson, M. ; Deetz, S. “Teoria crítica e abordagens pós-modernas para estudos organizacionais”. In: Clegg,
SR; Hardy, C. ; Nord, WR. Op.cit.
28
Foucault, M. 2003. Op.cit.
29
Deleuze, G. Foucault. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995.
13
(...) Vimos que as relações de forças, ou de poder, eram microfísica, multipontuais,
difusas, que determinavam singularidades e constituíam funções puras. O diagrama, ou
máquina abstrata, é o mapa das relações de forças, mapa de densidade e intensidade,
procede por ligações primárias não localizáveis, e que passa a cada instante por todos
os pontos (...) E essas relações de forças passam, ‘não por cima’, mas pelo próprio
tecido dos agenciamento que produzem” (p.46) (grifos meus).
-“Governar, neste sentido, é estruturar o eventual campo de ação dos outros. O modo de
relação próprio ao poder não deveria, portanto, ser buscado do lado da violência e da
luta, nem do lado do contrato e da aliança voluntárias, (...) porém deste modo de ação
singular – nem guerreiro nem jurídico – que é o governo” (p.244).
-“Eu diria que é perfeitamente legítimo analisá-las (as relações de poder) em instituições
bem determinadas; estas últimas consituindo-se em observatório privilegiado para as
atingir – diversificadas, concentradas, ordenadas e levadas, parece, ao seu mais alto
grau de eficácia; numa primeira abordagem, é aí que podemos pretender ver aparecer a
forma e a lógica de seus mecanismos elementares” (p.245).
“Dirá Foucault que o poder remete a uma ‘microfísica’. Com a condição de não
entendermos ‘micro’ como uma miniaturização das forma visíveis ou enunciáveis, mas
como um outro domínio, um novo tipo de relações, uma dimensão do pensamento
irredutível ao saber: ligações móveis e não localizáveis” (p.82).
Parece que ele consegue sintetizar o porquê do meu encantamento com a leitura de
Foucault, em particular o “Foucault genealógico”, à medida que suas reflexões nos lançam
para “outro domínio”, a microfísica das organizações, lá onde há
30
Foucault, M. 1995. Op.cit.
31
Deleuze, G. 1995. Op.cit.
14
“uma lógica das práticas. Há um impulso em direção a um objetivo, mas ninguém
impulsionando (...) desejo e cálculo foram envolvidos. O efeito global, contudo, escapou
às intenções dos atores, assim como de todos. Como afirmou Foucault, ‘as pessoas
sabem aquilo que fazer; freqüentemente sabem porque fazem o que fazem; mas o que
ignoram é o efeito produzido por aquilo que fazem’. Não se trata de uma nova forma de
funcionalismo. O sistema não está, de modo algum em equilíbrio; nem, a não ser no
sentido mais amplo, um sistema. Não há uma lógica de estabilidade inerente. Ao
contrário, no nível das práticas, há uma orientação produzida por cálculos mesquinhos,
confronto de desejos, emaranhados de interesses menores”32 (p.205-206).
Porém, consideramos ainda uma terceira dimensão do poder nos hospitais e que
estamos denominando de cooperação/consenso. Por essa dimensão, está-se mais atento à
idéia de poder de do que poder sobre (presente nas duas dimensões anteriores), tal como
apontado em trabalho clássico de Lukes33. Podemos encontrar indicações para pensarmos tal
dimensão do poder em autores tão diferentes como Hannah Arendt e Talcott Parsons.
Arendt34, criticando
“a convicção de que o tema político mais crucial é, e sempre foi, quem domina quem”,
afirma que “o poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para
agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo, pertence a um grupo e
permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido” (p.36).
Ou ainda, “o poder emerge onde quer que as pessoas se unam e ajam em concerto, mas
sua legitimidade deriva mais do estar junto inicial do que qualquer ação que possa
seguir-se” (p.40).
32
Foucault, M. 1995. Op.cit.
33
Lukes, S. O poder: uma visão radical. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília. 1980. 72p.
34
Arendt, H.. Sobre a violência. . Rio de Janeiro, Relume Dumará. 2001. 114p.
15
Por isso afirmei, ao revisitar a experiência da Santa Casa do Pará, que a concepção
implicitamente adotada pelo grupo do LAPA, nas suas formulações originais, era a concepção
arendtiana de poder. Para Parsons (apud Lukes35), por sua vez,
35
Lukes, S. O poder: uma visão radical. Op.cit.
36
Barnard, C.. As funções do executivo. São Paulo: Editora Atlas. 1971. 322p.
37
Cecilio, LCO. “Autonomia versus controle dos trabalhadores: a ‘gestão’ do poder do poder no hospital’. Rio
de Janeiro: ABRASCO, Ciência & Saúde Coletiva, 4 (2): 1999. p.15-329.
16
em torno de convocatórias para a ação, em torno dos “objetivos organizacionais”.
Alinhamento de vetores dissonantes em relação ao grande vetor da macrorracionalidade
pretendida pela organização. Rozendo38, de alguma forma, tematiza essa
preocupação/contradição ao defender a necessidade de se buscar, no conceito de poder
construído por Hannah Arendt, embasamento para uma nova prática da enfermagem pautada
por uma postura de liderança, a partir da competência de se fazer a convocatória para ação de
sujeitos “em concerto”, muito mais do que partir da utilização da violência e da banalização
da enfermagem no mundo do trabalho. Esses são aspectos típicos das atuais práticas
gerenciais. Minha indagação é sobre o quanto se trata de fazer um movimento “substitutivo”
de uma prática da violência, do exercício da autoridade visando à construção e manutenção de
uma determinada “ordem organizacional” por uma prática mais concertada, consensuada, ou,
se, inapelavelmente, teremos que conviver com o exercício das três dimensões na função
gerencial e, mais do que isso, fazer, dessa tensa convivência, matéria-prima para a gestão39.
Tenho me ocupado em tentar compreender melhor essa relação, tema desde sempre
presente no debate sociológico, a partir do que fui observando em vários hospitais, muitos
deles com bastante intimidade com sua vida cotidiana. A história que contei do espanto dos
rosarinos ao verem como eu sabia da vida do hospital deles, mesmo fazendo uma primeira
visita, foi para mostrar o quanto já percebia que há regularidades na vida dos hospitais, por
mais que estejam inseridos em contexto sociopolíticos muito diferentes entre si. A principal
regularidade é o comportamento dos seus mais expressivos corpos profissionais: os médicos e
os enfermeiros. Médicos e enfermeiros apresentam uma semelhança espantosa na forma
como vêm o hospital, se vêm no hospital e vêm os outros atores hospitalares. E esse me
parece ser um tema central para a gestão dos hospitais.
Por outro lado, essa regularidade convive com ordens locais muito diferenciadas, com
múltiplos arranjos, modos de operar, modos de organizar fluxos e práticas de trabalho nas
várias unidades do hospital, formas de relacionamento interpessoal, interunidades ou
38
Rozendo, CA.. “A liderança no cotidiano da enfermagem hospitalar: entre luzes e sombras”. Ribeirão Preto.
229f. Tese (doutorado). Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, 2000.
39
Cecilio, LCO. É possível trabalhar o conflito como matéria-prima da gestão? Cadernos de Saúde Pública
(Fiocruz), v.21, pp.508-516, 2005.
17
interequipes, muito próprias de cada hospital. Por isso tudo, cada hospital é diferente e só
pode ser compreendido na sua ordem local e contingente. O mais contrastante com a
regularidade que apontei antes é o que vou chamar de uma incapturável margem de manobra e
de liberdade que os trabalhadores zelam por manter. Algo que sempre escapa ao desejo de
controle da direção. E esse me parece ser o problema central para quem faz a gestão dos
hospitais.
Esse foi o ponto de partida para minha curiosidade para estudar o tema. Já esbocei a
discussão da relação entre determinação e liberdade, estrutura e ação, reprodução e criação
quando fiz a discussão macro/micropolítica. O que vou fazer agora, depois de ter apresentado
o material empírico, é apenas realçar alguns pontos, apresentando os “conceitos depurados”
que tenho utilizado com os gerentes com os quais trabalho, visando contribuir para que
ampliem sua “caixa de ferramenta conceitual”. Isso porque acho que a compreensão dessa
relação é central no processo gerencial, em particular se considerarmos que é essa “dobra”
autonomia/controle é o território nuclear da gestão em saúde. O gerente hospitalar exerce sua
função entre os pólos determinação e liberdade, constitutivos da vida hospitalar.
Comecemos pelo pólo da liberdade. Uma frase de Castoriadis sintetiza com perfeição
essa dimensão:
“Tudo o que precede mostra a enorme parte de indeterminação que toda organização do
trabalho, inclusive a mais ‘científica’, comporta, mesmo quando se fixou a base material
e o conjunto das outras condições, exceto aquelas que são relativas ao comportamento
dos homens, dos indivíduos, dos grupos”40.
“a ordem ou estabilidade social deve ser explicada, não pelo compromisso consensual
normativo dos indivíduos do grupo, nem pela integração das próprias normas, (como
pensa Parsons) senão como resultado de um processo cumulativo caracterizado pelo
dissenso, decorrendo da tensão de papel, da dificuldade normalmente sentida de
satisfazer às suas exigências, e a conseqüente barganha de papéis, que serve para
organizar os sistemas totais de papéis de atores e seu desempenho. As ‘instituições’ são o
40
Castoriadis, C. As encruzilhadas do labirinto. Vol. 1. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1997, p.323.
18
estado cumulativo atual desse processo em curso, especialmente morfogênico”41 (grifos
meus).
“Turner sustenta que o papel formal, primordialmente é um ‘esqueleto’ das regras que
evocam e põem em movimento os papéis mais completos, estruturados e mais ou menos
consensualmente validados (...) O comportamento de papel só é relativamente fixo
enquanto proporciona uma coerência percebida e uma estrutura estável para a
interação, mas sofre revisão cumulativa no processo (...) As intenções e opiniões dos
atores constituem elemento unificador na gênese e manutenção dos papéis e, por
conseguinte, a assunção de papéis deve ser vista como envolvendo grande dose de
percepção seletiva do comportamento alheio e de ênfase diferencial na elaboração do
padrão dos papéis”43.
41
Goode, WJ. Apud Buckley. Op.cit.. p.219.
42
Turner, RH apud Buckley, W. Op.cit.
43
Buckley, W. Op. Cit. p.212.
44
Strauss, A. apud Buckley, W. Op.cit..
19
O interessante dos trabalhos de Strauss é que eles se baseiam em amplos estudos
realizados em hospitais ainda na década de 1960 e permanecem válidos, na minha opinião,
para se compreender a micropolítica do hospital no seu componente de “ordem construída e
contingente”, com ênfase na irredutível captura da ação humana a papéis e regras rigidamente
estabelecidas. Como reitera Turner:
O que há em comum entre esses atores é a defesa de que as intenções e opiniões dos atores
constituem elemento unificador na gênese e manutenção de papéis e, por conseguinte, a
assunção de papéis deve ser vista envolvendo grande dose de percepção seletiva do
comportamento alheio e de ênfase diferencial na elaboração do padrão de papéis. Espaço de
liberdade, de opção e de criatividade que escapa, ou tenta escapar, o tempo todo, da lógica
capturante e normalizadora da direção.
para usar expressão de Pierre Bourdieu. Mesmo que se concorde com Isaac Joseph48
quando ele afirma que
“as ações recíprocas não implicam nenhuma simetria dos interagentes em seu poder de
interagir”(p.19),
é inegável que há uma margem de liberdade da ação humana no hospital e é ela que
tem sido o “alvo” das ações gerencialistas.
45
Turner, RH. Apud Beckley, W. Op.cit.. (p214).
46
Friedberg, E. Op.cit.. p.. 60.
47
Bourdieu, P. O poder simbólico. Rio de |Janeiro: Bertand Brasil, 2000. cap. III.
48
Joseph, I. Erving Goffman e a microssociologia. Rio de Janeiro: Fundação FGV, 2000.
20
“os trabalhadores contratados reterão um discernimento último sobre si mesmos, sobre o
que fazem e como o fazem. Conseqüentemente, uma fonte potencial de resistência reside
nessa inescapável e irredutível essência da força de trabalho. O lapso entre a capacidade
de trabalho e sua efetiva realização implica poder e organização do controle” (p.263).
Por fim, busco em Dejours50 uma formulação que me parece fazer eco em tudo o que
apresentei até agora para falar do “pólo liberdade”:
Penso, então, que, para nós que, direta ou indiretamente, nos ocupamos da gestão em
saúde, trata-se de assumirmos a existência desse espaço de liberdade irredutível dos
trabalhadores de saúde, produtor de sentidos que, muitas vezes, são a reprodução de
instituídos, e parecem ir na direção oposta às propostas que julgamos inovadoras e
necessárias, como no caso das experiências analisadas nesse trabalho.
Até agora, tentei apresentar reflexões teóricas que embasassem minhas observações
empíricas sobre a margem de liberdade e criatividade que existe nas organizações. E como
explicar que, havendo liberdade e criatividade, há, ao mesmo tempo, regularidades e
reprodução de comportamentos quando estudamos hospitais tão diferentes entre si?
Ricardo Bruno51 apontava que expor o problema das relações entre ciência, prática
médica e estrutura social se constitui em marca registrada da escola brasileira da Medicina
Social. Na verdade, elucidar tal relação será a tarefa central de um conjunto referencial de
estudos realizados no Brasil nos anos 70 e 80, incluindo aí o próprio Mendes Gonçalves52 e,
por exemplo, Luz53.
49
Hardy, C; Clegg, SR. “Alguns ousam chama-lo de poder”. In:Clegg, SR; Hardy, C; Nord, WR. (org.)
Handbook de estudos organizacionais. Reflexões e novas direções. Volume 2. São Paulo: Atlas, 2001.
50
Dejours,C; Abdoucheli, E. “Itinerário teórico em psicopatologia do trabalho”. In: Dejours, C; Abdoucheli, E;
Jayet, C. (Org.) Psicodinâmica do trabalho. Contribuições da Escola Dejouriana à análise da realação prazer,
sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas, 1994.
51
Mendes Gonçalves, RB. Tecnologia e organização social das práticas de saúde. Características tecnológicas
do processo de trabalho na rede estadual de centros de saúde de São Paulo. São Paulo: Hucitec/Abrasco, 1994.
52
Além do trabalho já citado, incluo nessa mesma linha de análise sua tese de mestrado: Mendes Gonçalves, RB.
“Medicina e história - raízes sociais do trabalho médico. São Paulo: FMUSP, (dissertação de mestrado), 1979.
53
Luz, MT. Medicina e Ordem Política Brasileira. (Introdução). Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982.
21
Para Schraiber54,
“Pode-se dizer que há dois tipos de limitantes para essa autonomia individual (do
médico). Eles, porém, não se apresentam de modo igual, porque apenas um deles mostra
ser mais evidentemente um obstáculo para a liberdade de ação. O primeiro é constituído
por elementos estruturadores do desempenho pessoal, qua homogenizam os
procedimentos e aproximam os médicos de uma mesma identidade profissional. Por
isso mesmo, uma vez estruturando socialmente os comportamentos pessoais, não
parecerão seus conformadores” (p.79) (grifos meus).
54
Schraiber, L. O médico e seu trabalho. Limites da liberdade. São Paulo: Hucitec, 1993.
55
Lapassade, G; Lourau, R. Chaves da sociologia. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1972.
22
Os analistas institucionais identificam, sob um enfoque teórico de assumida inspiração
hegeliana, três momentos do conceito de instituição: o momento da universalidade, tendo por
conteúdo os sistemas de normas, os valores que orientam a socialização, a ideologia, o
instituído, enfim; o momento da particularidade, em que seu conteúdo se resume às
determinações materiais e sociais que negam a universalidade dada no primeiro, sendo o
momento instituinte; o momento de singularidade, no qual o conceito de instituição tem por
conteúdo as formas organizacionais, jurídicas ou anônimas necessárias para atingir
determinado objetivo ou determinada finalidade, o momento, por fim, da institucionalização.
Dialeticamente, um momento está contido no anterior e o nega na ação concreta dos
indivíduos e das coletividades, ou seja,
“toda idéia é tão verdadeira quanto sua contrária, desde que encarnada a ação
concreta”56.
56
Lourau,R. A análise institucional. Petrópolis: Editora Vozes, 1996.
57
Lourau, R. Libertad de movimientos – Una introducción al análisis institucional. Buenos Aires: Ed.
Universitária, 2001.
23
“os conjuntos práticos não são totalidades fechadas e acabadas em si mesmas e sim que
o seu sentido é sempre externo a ela, na história, no modo de produção e na formação
social em que está constituída” 58.
Por outro lado, as instituições se realizam e se atualizam pela ação dos atores
institucionais. Baremblitt61 propõe usar o termo organização para designar as formas
materiais nas quais as instituições se realizam. Ele propõe, ainda, a utilização do conceito de
estabelecimento para designar um hospital, uma escola. A organização seria, por exemplo,
uma secretaria municipal de saúde ou o próprio Ministério da Saúde. Mas, como ele mesmo
se encarrega de ressaltar:
58
Lourau & Lapassade, 1972, Op.cit..
59
Baremblitt, 1996. Op.cit..
60
Foucault. M. 1995. Op.cit..
61
Baremblitt, 1996. Op.cit..
24
autoridade que está acima das micropráticas localizadas dos membros organizacionais.
DiMaggio e Powell62 sustentam que o “novo institucionalismo” representa uma
“rejeição dos modelos de atores racionais, um interesse nas instituições como variáveis
independentes, uma volta às explicações cognitivas e culturais, e um interesse em
propriedades de unidades de análise supra-individuais que não podem ser reduzidas a
agregações ou tratadas como conseqüência direta de atributos individuais”.
Vou concluindo por aqui essa sistematização do itinerário teórico que construí nos
últimos anos. Tenho bastante consciência da insuficiência dele, tanto pela complexidade dos
temas que ele teve que enfrentar, todos centrais no debate das ciências sociais, como por
minha formação autodidata e incompleta na área. Só uma coisa me deu segurança de fazer
esse caminho, e coragem para prosseguir meus estudos: o compartilhamento de muito do que
fui compreendendo com os coletivos com os quais trabalho. Vou construindo “conceitos
depurados”, que penso ter forte poder de comunicação e vou “testando” sua eficácia
explicativa com os profissionais dos serviços de saúde. Ao reproduzir a réplica que fiz para a
Interface, e que citei acima, me dei conta que, nela, fiz uma síntese dos meus focos de atenção
nos últimos anos: explorar uma concepção de poder mais elaborada, de forma a contempla
melhor as múltiplas dimensões do poder existentes nas organizações; valorizar mais o peso
das Instituições na vida das organizações de saúde, em particular a Instituição Médica e seu
poder de reprodução; explorar uma teoria da ação que valorize a margem de liberdade e
criação que todos os atores institucionais preservam, apesar de todas as
“sobredeterminações”.
É disso que falo com gerentes e dirigentes. Chamo a atenção para as dimensões de
poder existentes nas organizações e suas manifestações inevitáveis na forma de conflito e
mal-estar organizacional. Alerto que o gerente terá que conviver com uma margem de
liberdade dos trabalhadores que não será nunca possível controlar, incluindo aí uma “pauta de
indulgência” de tamanho variado. Que é preciso reconhecer a presença das Instituições
62
DiMaggio e Powell citados por Reed, M. “Teorização organizacional: um campo historicamente contestado.
In: Handbook de estudos organizacionais. 1996. Op. cit. (p.79).
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Médica e de Enfermagem, com suas lógicas e seus modos de se enunciarem, por isso
concordo quando Ferraz63 afirma que
63
Ferraz, CA. Ensaio sobre reforma político-administrativa hospitalar. Análise sociológica da transição de
modelos de gestão. Ensaio teórico apresentado à Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto. 2002.
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