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|A maioria das profiseses, de uma forma ou de outra, Presta servigo & satide e ao bem-estar da humanidade. Porém as atividades do médico, do padre, do professor, do psicoterapeuta e do assistente social envolvem um. trabalho especializado ¢ deliberado para ajudar os infelizes, os doentes, aqueles que de algum modo se perderam. A presente obra analisa como e por que 0s membros dessas “profissSes de ajuda” podem também ‘causar enormes danos, devido a seu proprio desejo de ajudar, a, Avour Gucci t-Cuata mice ¢analistajunguiano ‘adieado em Zurigce Dingo Cursterio do asttutaC. ©, Jing ee Sociedade internacional de Pricologia Analiuca Pasta: pata: DES RS One! ERE 3 i : i g | 0 ABUSO DO POD NA PSICOTERAPIL ena medicina, servico soci sacerdécic e magistério Adolf Guggenbithl-Craig INDICE Prefécio &edieso brasilira Introdupso: Livral-nos do msl? Servigo social eTnquisigao Peicoterapeuta: charlatho e falso profeta (© contato nical entre analista« analisando Relaclonamanta & fantasia ‘Avid extraanaliion do analits do pacients ‘Sexualidade o andlise ‘O med destrativo da homoesexualidads © onalita oa ona O abso da bases de sentido (0 médico todo-podaroco e 6 paciante puerit (0 arauétipo de “tarapeute-pacionte? eo poder Acinto de arquétipo (O fechamenta da caso por meio do poder Médico, pslcoterapouts, assistente social professor ‘Acoaors, a destrusividade eo mal Eatard a andlie condenada a fracasso? ‘Andlise nfo adianta Bros Individuapto 0 peleaterapeuta impotente Bon de nove Coleco AMORE PSIQUE, a eee eee ADOLF GUGGENBUHL-CRAIG ee pete PEE mae on igoumanvnies Eimear econ s potneopea note et ae mnt mitt O ABUSO DO PODER NA PSICOTERAPIA ena medicina, servigo social, sacerdécio e magistério ‘opqutus ~ 2004 ua Fraeico Gan 299 = 04147281 S0 Paso rast) any ssfeae27 «To rt) s08r a7 ‘wanupauliscomta = este @pavs cote INTRODUCAO A COLEGAO AMOR E PSIQUE Na busca de sua alma e do sentido de sua vida, 0 homem desoobriu noves caminhos que o levam para a sua interioridade: 0 seu préprio espago interior torne-se ‘um lugar nove de experiéncia. Os viajantes destes cami- thos nos revelam que somente o amor é capaz de gerar ‘a alma, mas também amor precisa de alma. Assim, em lugar de busear causas, explicagées psicopatolégicas as nossas feridas e aos nossos sofrimentos, precisamos, em primeiro lugar, amar & nossa alma, assim como ela 6. Deste modo ¢ que poderemos reconhecer que estas feridas fe estes sofrimentos nasceram de uma falta de amor. Por outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um. centro pessoal e transpessoal, para a nossa unidade e a Fealizapao de nossa totalidade. Assim a nossa propria vida earrega em si um sentido, o de restaurar 8 nossa unidade primeira, ‘Finalmente, néo é 0 espiritual que aparece primeiro, mas 0 psiquico, e depois o espiritual. Ea partir do olhar do imo espiritual interior que a alma toma sou sentido, ‘0 que significa que a psicologia pode de novo estender & mio para a teologia. Esta perspectiva psicolégica nova 6 fruto do esforgo para libertar a alma da dominagto da psicopatologia, do espirito analitico e do psicologismo, para que volte a si 5 ‘mesma, & sua prépria originalidade. Ela nasceu de refle- xGes durante a prétiea paicoterdpica, e esta comegando fa renovar o modelo e a finalidade da peicoterapia. ‘uma nova visio do hometn na sua existéncia cotidiana, do seu tempo ¢ dentro de seu contexto cultural, abrindo dimensées diferentes de nossa existéncia para podermos reencontrar a nossa alma. Ela poder alimentar todos aqueles que sao sensiveis a necessidade de inserir mais, ‘alma em todas as atividades humanas. "A finalidade da presente coleso ¢ precisamente res tituira alma a si mesma e “ver aparecer uma geragao de sacerdotes capazes de entender novamente a linguagem da alma”, como C. G. Jung o desejava. Léon Bonaventure PREFACIO A EDICAO BRASILEIRA. (0 Abuso do Poder na Psicoterapia 6 hoje um eléssico da moderna literatura junguiana. Publicado pela primeira ‘vezem 1971 na Suiga, no original aleméo, logo em seguida, em inglés ¢ em 1979 em portugués, este livro desempenhou ‘um papel inestimsvel na formagao dos analistas eontempo- ‘raneos que seguem a linha de trabalho inaugurada por Carl ‘Gustav Jung no inicio do século XX. A edigdo brasileira logo ‘se cogotou, mas tal era a demanda pelo texto em aulas, semi nrios e supervisdes que um sem-niimero de cdpias passou a circular em lugar do livre que no se encontrava mais. ‘Seu assunto central é omal que o analista involunta- riamente pode eausar a seus pacientes quandose prope a ajuda-los. Que ousadia! A quem ocorreu a inusitada idéia de escrever tal Livro? "Adolf Guggenbuhl-Craig, analista experiente © di- ferenciado, sempre pautou sua vida, sua reflexio © sua ‘pratica pela tentativa incossante- sistematica de detectar fas mil formas sob as quais se oculta a sombra do analista, Go médico, do assistente social e do professor. Sombra, como jé havia dito Jung, esse avesso das boas intengées, tessa outra face do discurso edificante e da agio filantré- pica. Sua andlise ¢ cirirgica: arde, quando passo a pass © autor remove a pele e expe o nervo de uma relagao, “especialmente aquela entre analista e analisando—fa- dada ao progressive desnudamento e nunca a sossegadas, conclusées. Tratar, ensinar, ajudar sfo apes que exigem de seu praticante tm eterno vollar-se A crigem do gesto ‘Gaggenbubl compele o sujeito ingénuo a examinar-se num, ‘espelho implacével que desmascare persistentemente a vontade de poder que sutilmente se disfarra de huma- nismo desinteressado, um espelho apto a delatar o lobo ‘escondido sob pelagem macia de cordeiro. O Abuso do Poder na Psicoterapia estabelece a origem da ética terapéutica, médica, pedagégica ou assistencial, no em cédigos oficisis, mas no honesto reconhecimento de intengSes sombrias inconfessas. Simples como aluz do dia, e no entanto tio dificil de realizar como deseer um. barranco numa noite escura. Este livro 6 uma ligdo de andlise, seus percalpos & seus perigos. Ficl a seu tema, o autor nfo assume ares de quem tudo sabe, mas de quem choca. Detecta, delata, ‘constrange, envergonha, ridiculariza e por fim explica. ‘Suas conclusses so banhos de égua fria que nos ensopam ‘a roupa de trabalho. Pela via do choque, este livre eontribui para que os profissionais da ajuda se tornem mais conscientes do que de fato fazem. Mas nfo eaiamos mais uma vez na ilusio de acreditar numa resolusgo suficiente e aceitavel dos in- caleulaveis perigos do poder, principio antagonico, na visae de Jung, ao de Bros. A negatividade que emana do poder exereido sem a contrapartida de Bros e da autoconsciéncia 86 pode ser pereebida pela remorao constante e continua ‘das camadas que a dissimulam. B isso a conscincia 56 é capaz de perceber se adotar Bros como contraponto. Eros ¢ a tinica cura para a patologia do poder. B sua medida, seu norte e seu limite. Eros 6 a nudez do poder sua possivel evolugao. Roberto Gambini ‘Sto Paulo, 2004 INTRODUGAO. LIVRAI-NOS DO MAL? Amaioria das profissdes, de uma forma ou outra, presta um servigo a satide e ao bem-estar da humanidade. Porém as atividades do médico, do padre, do professor, do psicoterapeuta e do assistente social envolvem um trabalho especializado ¢ deliberado para ajudar os infelizes, o8 doentes, aqueles que de algam modo se perderam.’Nos capitulos que seguem, gostaria de exa- ‘minar como @ por que os membros dessas “profissdes de ajuda” podem também causar enormes danos, devido a seu préprio desejo de ajudar. Sou médico psicoterapeuta. Ao preparar relatérios peiquistrices, entro em contato regular com agsisten- tes sociais e freqtientemente me sinto um deles. Varios pacientes meus sto professores e clérigos. Ao escrever ‘este livro, procurei encarar os problemas existentes também em mim e ndo apenas nos outros, E por essa razlio que me concentrei especialmente nos problemas, Ge poder do médico e do psicoterapeuta, Entretanto, para introduzir a questo da destrutividade nas profissdes de ajuda, explorei um pouco os antecedentes psicolégicos 0 servigo social e abordei as atividades dos religiosos e professores. Contudo, 20 referir-me aos médicos e psicoterapeutas 6 que tento explorar em detalhe a possibilidade de superar 9 0s problemas fundamentais deasas proficsdes. 0 que eu queria mesmo era arrumar minha prépria casa, deixan- do que meus vizinhos cuidassem das suas. Ocorre, porém, ‘que o problema do poder e seu exerescio 6 semelhante em todas as profissces de ajuda, ainda que cada uma possua caracteristicas especificas. ste pequeno livro dirige-se assim no apenas a médicos © psicoterapeutas, mas ‘também a assistentes sociais, professores e ao clero. Por ‘essa razdo, procurei utilizar o menor niimero possivel de ‘termos peicol6gicos especializados. Nos casos em que isso do foi possivel, acrescentei uma pequena explicarao do termo em questao. Espero que alguém ligado a uma profissdo de ajuda distinta da medicina procure a seu modo lidar em maior profundidade com os problemas basicos e pessoais de seu proprio campo, indicando as solupes que Ihe parecerem possiveis. ‘As referéncias bibliogréficas estao praticamente ausentes neste livro. Meu objetivocentral nao é estimular oleitor aler ainda mais, mas antes fazer com que se volte para dentro e examine a si proprio. Evitei igualmente tentar provar minhas assergées citando experimentos, estatisticas e trechas de outros autores. Espero que a apresentagao de minhas proprias experiéneias e das que tive com meus colegas colaboradoros seja estimulante para o leitor, Nao estou necossariamente interessado em provar que tenho razio. ‘Nas paginas que seguem, 6 frequente 0 uso das palavras andlise, psicoterapia, analista e psicotera pewta, Para evitar equivoces: psicoterapia para mim ‘quer dizer, em termos bastante amplos, um tratamento que lida com a psique, desde a orientarao psicolégica de apenas poucas horas até uma andlise prolongada de ‘algumas centenas de horas, na qual sao exploradas as profundezas do inconsciente e discutidos em detalhe 10 fendmenos como transferéncia, contratransferéncia e relacionamento entre analista e analisando. O analis- ta, portanto, traballia com uma forma especializada de peicoterapia, Os problemas de poder com que se defron- ‘tam este e 0 psicoterapeuta em geral slo basicamente 0s mesmos. Para o leiter, portanto, néio deve fazer muita diferenga se numa passagem em particular nos referimos ‘a paicoterapia ou andlise. Para coneluir este prefiicio: nés, das profissées de ajuda, ndo ficaremos nunca livres do mal. Mas podemos aprender a lidar com ele. u SERVICO SOCIAL E INQUISICAO No trabalho social muitas vezes € necosedrio agit ontia‘avantado do cliente, visto que com bustante fre «tiencia este ndo écapaz de resonhecer 9 que é hom pasa 51 Em cortas ercunatancias oassatents socal diopde de ‘oh logis para oxeoutar medidas deve tipo com bass fm seu proprio julgamento —e eles sempre relarats Auando ais meion nto podem ser utlizadon Por exormpie as criangas maltratadas ou abandonadas pelos pals pocess fer removidas de casa, Freqientomonte portreapeoar de estar porfeitamente claro para as autaridades ue uoea crianga safe os estos de condigbes dsfavortvess naoha tima base legal para se interforit no caso. 83 mais tarde, uandg eno lescntetalvor entre en cot com #lei nd qualidade de delinquent, que urge a porter Fidade do pér em pratica as devidas medians conera ‘ontade, soa do over, seja de seus pas. Varias pecsoas ae trabatham com servige socal laraontarno fate de due ‘nuitas vezess6 se pode agir quand ja arco demate 40 lado da extrema difewidade de afastar os Shos dos pas cm ne. préprio benef, ‘Adotar medidas coorves contr adultos ¢ ainda mais ditt, Na Suiga,porém, uma peasoe que tna sloceds ‘sou a sua familia om sitnagio de pergo, dengraga ou Pentiria devido a esbanjamento,alesolismo, deprasegae 12 ou dissipagéo do patrimdnio familiar pode ser eolocada sob tutela, Segundo as leis da Sufga e de muitos outros paises, no & sempre que o assistente social pode interferir onde © quando julgar necessério; hé, porém, varias situagbes em que certas medidas podem ser tomadas contra os pais em beneficio dos filhos. Um adulto eolocade sob tutela, por exemplo, nao pode agir contrariamente ao que for estabelecido pelo assistente social responsével. E jovens menores de 18 anos que tenham cometide até mesmo uma leve infragao podem ser forcados a submeter-se & orientapéo das autoridades competentes. & preciso ter muita convieyio para agir contra a von- tade de um cliente, Deve-se estar seguro de que as préprias idéias esto corretas. O seguinte caso pode ilustrar esse onto: uma garota de 17 anos, quechamaremos de Ana, vivia com a mae duas vezes divorciada, Apés 0 segundo divério, la foi colocada sob tutela (em decorréncia de reclamagées apresentadas por pessoas ligadas a familia), Parecia existir ‘uma dependéncia pouco sadia entre mac filha, sendo esta, completamente mimada. Ao sair da escola, Ana teve varios empregos sem importancia e por fim parou de trabalhar Apecar de lamentar o comportamento da filha, a mée pare- ia apoiar sua inatividade, sem diivida por néo querer que ola crescesse e se tornasse independente. O assistente social que meticulosamente estudou 0 caso chegou & conclusso, juntamente com um psiquistra, de que mae efilha deveriam ser separadas. A satide mental da garota estava em risco. Eo fato de que ambas resistissem a idéia de separacao, ro deveria absolutamente ser levado em conta. ‘Mesmo apés a separacao, foi impossivel aumentar © interesse de Ana pelo trabalho. Tudo parecia indicar {que ela preferia deixar que os homens cuidassem de seu. sustento. Para evitar o recurso a prostituigso, sua tutela, {foi prolongada até que completasse 20 anos, 13 0s profissionais envolvidos concordavam todos que 0 caso tinha sido tratado corretamente sob todos os pontos de vista. Em que so baseava essa corteza? Nao devemos esquecer que eertas medidas foram tomadas contra a vontade declarada das pessoas intoressadas. Aatividade do assistente social se baseia numa filoso- fia oriunda de Tluminismo, a qual sustenta que as pessoas, podem e devem ser racionais e socialmente adaptadas e que o objetivo da vida consiste num desenvolvimento até certo panto “normal” e feliz dentro dos limites do poten- cial da pessoa. Um bebe tratado por uma mae earinhosa deveria assim tornar-se ums crianga satisfeita, eabendo ao pai responsavel assegurar-lhe uma juventude alegre e saudavel. Depois de um periodo feliz na escola, ojovem deveria gradualmente desligar-se dos pais, abragar uma profissio e, na qualidade de individuo nfo-neurstico, equilibrado e socialmente ajustado, escolher uma mu: Ther com quem por sua vez terd filhos, os quais, como pai satisfeito, conduzira 4 maturidade. Quando os Alhos estiverem crescidos e comegarem a formar suas proprias familigs, ele sentiré a alegria de ser ave. objetivo de todos os nossos esforges, segundo essa filosofia basica, 6 criar pessoas sauddveis, cocialmente ajustadas e felizes em seus relacionamentos pessoais, O desenvolvimento neurdtico, 0 desajuste social, a excen- tricidade e o relacionamento familiar atipico devem sor evitados e combatidos. Se a pessoa no se torna feliz e normal nesses termos, presume-se que algo de errado deve ter ocorrido na infincia. Se educadas “adequadamente”, a5 criangas tornam-me adultos equilibrados e felizes. Deve- se estar atento para que o desenvolvimento transcorra de acordo com esses conceitos amplamente aceitos, com ou sem o assentimento do individuo, A primeira vista, parece inquestionavel que tal flo- sofia, aqui apresentada de forma um tanto simplificada, 4 Gevesse ser a pedra fundamental de nossas apbes. Mas a filosofia de “normalidade e ajuste social” nem sempre des- frutou sua atual predomindneia. Os cristios primitives medievais, por exemplo, tinham um ponto de vista bastan- te diverso, Seu alvo primordial nAo era produzir pessoas saudéveis, ndo-neuréticas @ socialmente ajustadas, mas salvar suas almas e ajudar os outros a alcangar o Reino dos Céus. Conceitos como emocionalmente sadio ou no, socialmente ajustado on desajustado, relagdes inverpes- soais, independencia em relagtio aos pais ete. ou tinham ‘um papel muito eecundario ou ndo tinham mesmo papel algum, O modo pelo qual um cristo, até a Idade Média, procurava a salvag#o do sua alma hoje seria considerado como pareialmente neurético e socialmente desajustado. Os modelos prevalecentes eram os santos, pessoas que nada temiam em sua tentativa de chegar a Deus por seu préprio caminho. Havia, por exemplo, os assim chamados éestilitas ou santos do pilar, piedosos cristaios do Oriente ‘Medio que procuravam servir a Deus passando a maior parte da vida no topo de uma montanha. Estes, assim come certos homens de Deus que viviam como eremitas no deserto, no eram por certo muito bem ajustados ou. socialmente integrados. Os santos que distribufam todos 08 seus bens materiais aos pobres e viviam como mendi- fgos seriam, de acordo com o artigo 370 do Cédigo Civil Suigo, postos sob tutela por se colocarem em condigdes de infortsinio © destituipao, Segundo nossa filosofia de normalidade e ajustamento, og agcetas que jejuavam ese ‘mortificavam seriam quando muito vistos como exeéntri- tos infelizes, ou entado camo doentes mentais necessitando de tratamento. ‘Quando o Cristianismo assumiu sua forma medieval, ‘muitos néo puderam esposar seus princfpios predominan- tes, Para estes, havia outros valores importantes além da salvagdo da alma no sentido cristéo — atitude esta que 15 ‘em muitos casos se tornou fatal. Bm certos momentos © ‘sob certas circunstncias, aqueles que assim recusavam, 1s padrées coletivos ou advogavam uma diferente hierar- quia de valores eram perseguidos, martirizados e morios pela Igreja oficial. Hoje a palavra "inquisigo” tem uma conotagao sinisira, Mas os inquisidores cristaos podiam jnstificar seus feitos com absoluta conviesao e eram tidos ‘como bem-intencionados tanto a seus préprios olhos como pela sociedade. Certos cristaos proeminentes tinham absoluta certeza de que seu entendimento sobre a salvs {g80 da alma era o tinico correto, Nesse sentido, os inquisi- dores tinham uma dupla missao: por um lado, proteger 8 sociedade como um todo de perigosas heresias tidas como ‘omais grave perigo para a alma, e par outro proteger os hereges de sua propria e iminente danagao. Mediante 0 choque da prisio e da tortura, estes eram forgadas a per- ceber que suas almas precisavam de salvagto. O perigo para a gociedade era eliminado queimando-se a pessoa em questo. Mesmo ce admitisse diante das ehamas o erro de sseu modo de agir, o relapso herege seria da mesma forma ‘queimado para salvar-se de eventuais recaidas —receben- do, porém, em tempo a mercé do estrangulamento. Assim a tarefa bésica da Inquisieo ndo era nem perseguir, nem. torturar, nem matar; seu sublime objetivo consistia em proteger e ajudar a humanidade em geral e o individuo om particular. E os inquisideres acreditavam que todos os meios possiveis se justificavam para promulgar a doutrina oficial, a tinica correta, ‘Nao se pode evidentemente afirmar que o servigo social de hoje descende da Inquisigso medieval; a fogueira ea tortura ja néo so mais usadas, Procura-se comba- ter situagbes familiares nfo saudaveis, corrigir estru- turas sociais insatisfatdrias, ajustar os desajustados — em summa, procurames impor aquilo que consideramos “correto” para os outros. E freqtientemente tentamos 16 ececentepenmeste arr rereertiemyintetreete fazé-lo até mesmo quando nossa ajuda 6 rejeitada pe- los interessados. Em geral, impingimos certa conceppio de vida, quer os outros concordem ou néo. Preferimos nndo reconhecer 0 direito & doenca, & neurose, a relagdes familiares nao saudaveis, a degeneragao social ¢ & excen+ tricidade. Os paralelismos entre a Inquisigao ¢ o servigo social no devem ser tomados de modo excessivamente literal 0 que quero dizer € que manipular noasos semelhantes contra sua vontade, mesmo quando isso nos parece a tics ‘via adequada, pode ser altamente problemstico. Nunca se pode saber ao certo qual o sentido real de uma vida huma- na individual. O objetivo da individuagao e dos esforgos coletivos aparece sob um Angulo distinto para diferentes pessoas em diferentes épocas. Nossos valores atuais no ‘Go tinicos nem definitivos. Talvez daqui a duzentos anos, ‘les sejam vistos como primitivos e ridfeulos. Atualmento, ‘existe certos movimentos no interior da sociedade oci- dental que desprezam e combatem os valores de normali- dade ¢ ajustamento social. Os hippies, com todas as suas, variagtes e subgrupos, sdo um bom exemplo. Os andarilhos cabeludos que partem em peregrinagio até a {ndia, man- tendo-se & base de trabalho ocasional ou mendicancia e ‘encontrandoa felicidade no haxixe, por certo nao encaram, a normalidade social como alvo de sua vida. “Aconsciéncia do carater questionavel de nosso siste- ‘ma de valores deveria nos tornar mais cautelosos quando tentamos impingi-lo aos outros. A esse respeito, os inqui- sidores eram bem pouco escrupulosos. Em retrospecto, achamos que teria sido melhor se cles tivessem se apro- fundado um pouco mais nas motivagses que orientavam suas agbes. Ao estudar a Inquisieao hoje, difciimente se pode deixar de suspeitar que os impulsos psicol6gicos que ‘motivavam esses santos cruzados ndo eram tao puros quanto pretendiam e declaravam; parece-me claro que wv portrés havia muita crueldade inconsciente e um enorme desajo de poder. Para muitos de nés, a Inquisi¢éo medieval representa © epttome de uma ansia-de poder sddiea e oficialmente sancionada. No servigo social moderno, nostos motives or certo sto melhores quando &s vezes impomos a um. individuo algo que ele proprio rejeita. Ou sera que nic? ‘Durante varios anos de trabalho analitico com assistentes sociais notei repetidas vezes que, quando algo deve ser ‘imposto pela forga, a motivapdo consciente e inconsciente das pessoas envolvidas ¢ multifacetada. Um sinistro desejo de poder furtivamente espreita por tras das aparéncias; sonhos e fantasias revelam motivos que a consciéncia pre~ fore ignorar. Determinado assistente social, por exemplo, ‘sonhout que passava com seu carro por cima de uma pessoa, ‘a quem, na verdade, havia imposto eertas coisas. No sonho cle temia que descobrissem a intencionalidade de eua apo. E nem mesmo as emopGes abertamente expreseas durante 4 psicoterapia indieavam um puro desejo de ajudar. “Bstévamos sentados frente a frente e ela insistia em me contradizer. Tive vontade de lhe mostrar no fim das contas quem é que mandava. Ela nie pereebia que nao podia fazer nada contra a minha vontade.” Declara- ‘g0e8 desce tipo, por parte de assistentes sociais, deserevem, ‘com bastante precisto a situagao emocional subjacente. Frequentemente, o problema em questo parece ser nao © bem-estar do protegido, mas o poder do protetor. A im- posigdio de uma medida criteriosamente justificada contra a vontade do interessado edstuma produzir profanda satisfagio no profissional que trata do caro — a mesma ue sente um menino de escola que consegue bater em outro e provar sua forpa, pensando: “Agora ele aprendeu. que é melhor nao se meter comigo”. Outro fenémeno psicolégico muito interessante me impressioncu. Quanto maior sua contaminagao por mo- 18, tivagdes obscuras, mais o profissional parece apegar-se a uma suposta “ohjetividade”, Nesse caso, a discussao sobre que atitudes tomar torna-se deslavadamente dog- matica, como se s6 pudesse haver uma solugdo correta para 0 problema. Um assistente social muito inteligente ‘que fazia andilise comigo certa ver declarou: “Sempre que consigo provar a meus colegas que determinada medida ‘impositiva 6 tao absclutamente certa como dois e dois sa0 ‘quatro, tenho sonhos desagradaveis & noite e as opinides divergentes se transformam em ataques pessoas" ‘Todos os que atuam nas profissdes sociais, trabalhan- do para “ajudar a humanidade”, apresentam motivagses psicoldgicas extremamente ambiguas para as suas agbes. Em sua propria consciéncia ediante do mundo, oassisten- te social vé-se forcado a encarar 0 desejo de ajudar como sendo sua motivagéo primordial. Mas nas profundezas de sua alma o oposto simultaneamente se conatela — nfo 0 desejo de ajudar, mas o de ter poder e sentir alegria em despotencializar o “cliente”. Especialmente nos casos em que o assistente social & forgado a operar contra a vontade do interessado, a andlise cuidadosa das profundezas do inconsciente revela que 0 desejo de poder é um fator extremamente importante, De modo geral, este pode agir livremente quando acohertado pela fachada de retidao moral e objetividade. Acrueldade chega ao extremo quando as pessoas fazem dela urn ins trumento para assegurar 0 “bem”. Na vida cotidiana, a consciéncia nos incomoda quando nos entregamos além da conta ao desejo de poder. Mas 0 sentimento de culpa desaparece por completo da conseiéneia quando nossas ages, ainda que inconscientemente motivadas pelo de- sejo de poder, stio conscientemente justificadas por algo supostamente correto e bom, © problema da “sombra do poder” 6, portanto, de suprema importancia para o assistente social, o qual por 19 vezes se vé obrigado a tomar decisées fundamentais con- tra a vontade dos individuos diretamente interessados, ‘Mas neste ponto seria bom evitar equivocos, pois ninguém, ‘age por motives completamente puros. Mesmo 0s feitos ‘mais nobres se baseiam em motivagdes ao mesmo tempo puras e impuras, luminosas e sombrias. Por causa disso, muitas pessoas e suas agdes sio injustamente ridicula- ritadas ou mal entendidas. O filantropo generoso quase sempre € motivado, dentre outras coisas, pelo desejo de ser respeitado e honrado pela generosidade que ostenta. ‘Nem por isco sua filantropia tem menos valor. Analoga- mente, um assistente social movido pelo desejo de poder pode ainda assim tomar decisies uteis para um cliente. ‘Mas existe um grande perigo: quanto mais este se iludir que opera exclusivamente a partir de razoes altruistas, mais sua sombra de poder se tornars influent, acabando por trai-lo ¢ levando-o a tomar decisdes altamente que tionaveis, Na Sutia, hé quem advogue a extensiio do Cédigo Pe- ‘nal do Menor para além dos 20 anos. Pode-se questionar se esse ponto de vista, como outros similares, nao seria uma expressio da sombra de poder do assistente social (que naturalmente também se encontra em profissdes afins, come o promotor publico, ojuiz de menores delinqientes ete.). O Codigo Penal do Menor impede a aplicago de uma penalidade formal sobre o jovem contraventor, enfatizan- do a necessidade de reoducagso ou reabilitagdo. Mas a0 ‘mesmo tempo —e isso ¢ inevitavel — submete-o a vontade ‘mais ou menos arbitraria das autoridades competentes. Se esse Cédigo passasse a abranger pessoas até a idade de 25 anes, por exemplo, um jover de 22 que cometesse até mesmo uma leve infragto nfo poderia meramente pagar por seu crime, mas seria forgado a aceitar um programa de reabilitago mais longo e duro que a punigso corres pondente para adultos estabelecida pelo Cédigo, Penal 20 : znormal. Em lugar de sujeitar-se & penalidade estipulada por lei, o jovem estaria pedagogicamente & mercé das autoridades, que presumivelmente procurariam forgé-lo ‘a mudar por meio da reeducagao. ‘Aqui se podem dar asae & imaginagao, Numerosos assistentes sociais e alguns juristas interessados vém pro- ppondo que o Cédigo Penal como um toda seja reformulado, climinando-se por completo as penalidades expecificas ‘¢ mantendo-se unicamente as medidas educativas. Em vez de punido, o infrator seria reeducado para tornar-se socialmente ajustado, Isso significa que qualquer cidadiio ‘que violasse a lei poderia ser examinadono que coneerne a seu cardter © suas stitudes sociais; easo fosse apurado {que seu carter nao corresponde aos padrées e valores de seus examinadores, ele poderia ser forgado a reesber uma ceducagiio que o transformasse interiormente, Formulando ‘mais precisamente a questao: sob certas crcunstincias, « violagdo de uma norma de estacionamento publico poderia evar a varios anos de reabilitagao! O assistente social enearregado de encaminhar ou exeeutar tais medidas es- taria de posse de inigualdvel poder. Por essa razio é que sugeri acima que essas propostas de reforma poderiam ‘om parte exprezsar a existéncia de uma sombra de poder Beneralizada. Volta e meia me impressiono com a dificuldade que assistentes soviais dedicados tam em acsitar a forte pro- tepdo que cerca o direito dos pais. Na Suiga, mesmo que as autoridades screditem como algo evidente que cortas ceriangas estio sendo mal-educadas por seus pais © que com toda a probabilidade tordo sérias dificuidades no futuro, 6 se pode intervir quando se trata de um caso de patente negligéncia ou maus-tratos, “Mas isso ndo faz 0 ‘menor sentido”, sustentam intimeros assistentes sociais, “Deveria ser possivel brecar os pais antes que arruinem os flhos!” 21 Novamente surge a questo de saber se por tris dessa’ eloqtiente reivindicagao de uma chance de invervir ro se esconde a sombra de poder do assistente social. ‘Uma profissional se empenhou bastante em afastar uma crianga de seus pais, por ela considerados completamente inadequados, fracassando por falta de base legal. Ao me relatar tal fato, ela disse com admiravel ingenuidade: “Acoisa mais forte quo sinto agora ¢ fliria ¢ Sdio desses pais. Gostaria realmente de Thes dizer umas boas!" Sua feustragdo por nfo ter podido mostrar-se mais forte ‘que os pais’era muito maior que sua pena por nio ter podido ajudar a crianga. Para jlustrar esse ponto de modo ainda mais claro, gostaria de yoltar so caso de Ana. Naquela ocasiao, fa. Zia-se necessério um exame completo de nossas préprias motivagées. Talver nao se tivesse tanta certeza assim de que algo benéfico resuitaria da separacio. Reconhe- cidamente, ela ea mae tinham um relacionamento pouco sadio. Mas podia ser que nossa interferéncia forgada fi esse mais mal do que bem. Comojé tentei indicar, nossas {deias de sade ¢ normalidade podem néo representar a sabedoria absoluta. Nao poderia a filha viver uma vida significativa mesmo ligada a mae? Seriamos nés mais capazes do que elas de vislumbrar o que viria a ser uma vida "signifieativa”? Querfamos realmente ajudé-las? Ou nos haviamos tornado vitimas de nossos préprios impul- ‘805 inconscientes de poder? Eu até iria mais longe: por ‘que estévamos téo certos de que seria absolutamente ‘correto prolongar a tutela da jovem para além dos 20 anos para salvé-la da prostituieso? Poderiamos de fato saber ‘se colocé-la em tal posigdo nao acabaria lhe eausando um grande mal? Na verdade, nem a tutela prolongada nem ‘um ano num reformatériomudaram sou comportamento, Os assistentes sociais costumam lamentar que as pessoas ‘96 procuram as autoridades competentes quando jé esto 22 com a corda no peseogo. B entéo, ao receber crientagao, ‘escutam atentamento e depois fazem tudo ao contrario, ‘$6 voltando quando suas ages acabam eriando uma situagio calamitosa. Ficam entéo furiosos com esse comportamento, deplorando a inexisténcia de meios que garantam a obediéncia a seus conselhes. Mas serdo essa raiva e essa queixa realmente uma expresso de eros social, ow apenas uma pretenstio frustrada de poder? © verdadeiro eros no tem nada a ver com a vontade de impor nosso préprio plano e nossas préprias idéias sobre os outros. A presenga de um problema de poder no campo do servigo social ¢ também confirmada pelo seguinte: a estrutura basica da maioria das profisstes é refletida, pela opiniao publica. Existem pontos de vista coletivos bastante definidos sobre o caréter profissional de assis- tentes sociais, médicos, padres, advogados, politicos ete. Aimagem coletiva 6 usualmente daplice, com um lado ‘Sombrio ¢ outro luminoso. Em geral, a imagem coletiva negativa de uma profissdo particular é mais unitéria © padronizada que sua contrapartida positiva. Os padres, sio vistos como hipéeritas, os professores eomo infantis, fora do mundo, os médieos como charlataes e assim por diante. Naturalmente, essas imagens positivas negativas devem ao menos em parte ser encaradas como preconceitos. Mas, se examinadas com cuidado, muitas vezes essas idéias coletivas revelam reflexses vélidas, ainda que distorcidas, das profissdes em causa. © problema da sombra de poder desempenha um. papel proeminente na imagem coletiva negativa do assis- tente social. Nela este aparece como alguém que interfere sempre que possivel, forgando sua vontade sobre os outros, ‘sem de fato entender o que se passa, procurando por tudo nos eixos segundo padries estreitos, moralistas e burgue- ses, alguém movido por um desmedido gosto pelo poder, 23 que se sente insultado e pode se tornar malévolo se este no for reconhecido, Coneretizada numa situaréo, essa “mitologia ne- gativa" do assistente social seria algo mais ou menos assim: As dez da manba ela (ou ele) bate a porta de um, apartamento; entra, bisbilhoteia um pouco observa se 5 camas estio feitas e a louga da noite anterior lavada. Adona da casa ainda nao est arrumada; de penhoar, ela apenas inicia sua faxina diaria, Com hase nessa visita, 2 ascistonté social conclai que a familia em questo nao esta suficientemente ajustada para mantar o filho adoti- vo. Este, amado com paixao pelos pais adotivos, é levado ‘embora para ser colocado numa casa burguesa adequada. Aoopinido da assistente social é negativa devido ndo #6 & desordem que viu, mas também porque a dona da casa rejeltou sua interforéncia e de infcio até se inclinava a lo deixé-la entrar, Neste ponio, talvez se objete que o quo foi dito até aqui se aplica quando muito ao profissional antiquado tradicional, que de fato pode ter tido grande sombra de poder, mas que problema é muito menos agudone servigo ‘social moderno. O profissional de hoje, esclarecido e psi- cologicamente treinado, procura compreender e ajudar os ‘outros com base em sen conhecimento paicolégico— tanto que suas atitudes basicas e as do psicoterapeuta jé nem Giferem tanto. Segundo minha experiencia, entretanto, conhecer um pouco de psicologia pode refinar 0 problema de poder, mas de modo algum eliminé-lo. Com efeito, tal conhecimento pode em larga medida ser oolocado a ser- vigo da sombra de poder, eriando uma situagaa na qual o cliente é destitufdo do controle de sua propria alma, Nao apenas a situagdo social’e financeira do cliente mas sua prépria psicologia tornam-se transparentes-e manipuldveis pelo assistente social. E quando os testes psicologiens sso adicionados & sua bateria de instrumentos, 0 infeliz cliente 24 se vé totalmente impotente. Apenas muito vagamente pode ele entzio perceber que sua alma foi radiografada e quo, indiretamente, o mais {ntimo de seu ser foi revelado agueles que supostamente irdo ajudé-lo, O assistente social torna-se assim capaz de dizer a uma mulher que diz amar seu filho que na verdade ela nem se liga a ele, ‘Como poders dizer a um jovem que desesperadamente vern resistindo a varios anos de reabilitagdo que na verdade ele gosta de tor certas limitagées. O individuo em questoj4 iio tem mais nada a dizer, pois oraio X do assistente social ‘enzergou através dele. Este ponto ja toca nos problemas de sombra de outra profissio, a do psicoterapeuta, na verdade o foco deste livre. Veltaremos ao assunto no préximo capitulo. Antes disso, porém, gostaria de acrescentar algumas reflexces, num tom menos negative, ‘As pessoas escalhem a dificil e responsével profissio de assistente social par varias razses psicologicas que diferem de um individuo para outro. Apesar do acaso ‘também ter um papel, hé certas motivagées comune que Tevam a essa escolha. Nao me refiro aqui aos que exereem ‘essa profissao cinicamente, apenas como um meio de ga- shar a vida. Para estes, de qualquer forma, o problema, a sombra de poder néo 6 especialmente agudo. Os assis tentes sociais assiduos, entusidsticos e verdadeiramente devotados 6 que costumam tornar-se vitimas da sombra, de poder. 0 individuo cinico e indiferente simplesmente desempenha suas tarefas de modo formal e correto, ndo se sentindo atingido pelos aspectos positives ou negatives de seu trabalho. (© que leva uma pessoa a se interessar pelo lado escuro da vida social? O que é que Ihe torna possivel Ii dar dia apés dia com pessoas infelizes, desafortunadas e desajustadas? O que tanto The fascina nesse lado depri- mente da vida? Em ultima andlise, essa pessoa deve ser 25 de um tipo especial. O individuo medianamente “sadio” prefere ignorar e esquecer os inforttinios e sofrimentos de seus semelhantes quando no se encontra diretamente envolvido, ou talvez olhar para eles esporadicamenta, de uma boa distancia, por meio do jornal e da televisdo. Somente uns poucos procuram expor-se diariamente aos problemas alheios; a maioria das pessoas se limita a seus proprios. Dizer que os assistentes sociais sdo pessoas abengoadas com um amor pelos semeihantes maior que 0 normal ngo nos leva a parte alguma, pois néo ¢ verdade. ‘Tampouco so eles cristios fervorosos para quem o amor 20 préximo, expresso no ato de ajudar os desafortunades, éomandamento supremo de Deus. Ao mesmo tempo, no devemos encarar o desejo de ajudar como apenas uma racionalizaedo do lado sombrio da profissio, ou seja, do desejo de poder: £ sem divide muite tentador reduzir algo admiravel a algo nem tanto, Varios estudos psicolégicos tm procurado demonstrar que uma expresso de eros, por exemplo, nao passa de sublimagdio de algum instinto menos elevado. Dessa perspectiva, 0 pintor ndo passa de ‘um rabiscador infantil, o professor de um sedutor de erian- as reprimido, o psicoterapeuta de um voyeur ete. ‘A pessoa que escolhe como trabalho de uma vida confronto didrio com algumas das polaridades fandamen- tais da humanidade — ajustamento/desajustamento, ‘sucesso social/fracasso social, satide mental/doenga men- tal — deve ser um tipo muito especial. Os que atuam nas profiss6as de ajuda certamente se sentem mais fascina7os por essas polaridades que todos os demais. 26 PSICOTERAPEUTA: CHARLATAO E FALSO PROFETA Apsicoterapia, na sua forma atual, é relativamente Jovem. Os modelos em que se baseiam as atividades do terapeuta derivam de varias outras profissbes e s6 podem ser compreendidos em relagdo a artes mais antigas. Quer se queira ou ndo, a psicoterapia de fato se liga & ‘medicina. Os modelos profissionais e éticos que guiam 0 ‘médico sfo.em parte os meamos do paicoterapeute, assim ‘come o lado sombrio do analista até certo ponto tem a ver ‘com o cardter médico de seu trabalho. (© médico tem por objetivo ajudar os doentes e os {que sofrem, O juramento de Hipserates diz: “O regime que adoto serd para o bem de meu paciente segundo minha habilidade e julgamento e nunca para Ihe causar sofrimento ou dor... Aonde quer que eu v4, irei para 0 bem do enfermo, afastando-me da corrupsso e do mal minha vida e minha arte serao sagradas para mim’, Em suas linhas gerais, essa edificante concepgo do médico 6 bastante difundida no Ocidente. (0 lado sombrio da atividade do médico nao consta desse juramento. Esse aspecto foi habilmente caricatu- rado por Jules Romain em sua pega'O Dr. Knock. Esse personagem nao tem o menor desejo de curar 0s demais de modo desinteressado; usa seus conhecimentos médicos em proveito proprio, néo hesitando em provocar doengas 27 em pessoas até entdo sadias, Segundo sua filosfia, “no bbe pestons sadias, mas apenas doentes que igneram set mal". 0 Dr. Knock ¢ um charlatao. Esse termo, para mim, nao designa alguém que use métodos nao-ortndoxos on extracofciis para ajudar os necessitados, mas sim xm tipo demedico que na melhor das hipoteses engana tanto a sicomo.a seus pacientes, ou, na pion, apenas a seus pacien- ten, Trnta-se de on individvo ue ajuda mais st mesm, palo dnhetre prestigioqus reeehe, do que aos doentes qu procuram seus préstimos. Compreendidas nesse sentido, bs atividades de um charlatio podem, conforme 0 ¢380, ser benéfeas, maléficas ou inteiramente neutras. © charlatanismo ¢ um tipo de sombra que acomps- nha permanentemente @ médico, £ uum de seus irmaos Sones 6 como fal ode vier dato on fora de Al fquns médicos veer esa sombra apenas na pestoa de um Obscure curandeiro, mas o fato ¢ que, em sua maioria, Scabam eles mesmes ve tornano vitimas da sombra do Gharlatdo po decorrer de suas atividades profissiona Os préprios pacientes exercem considersvel pressto para Gque 0 modico traia.o modelo hipocratico © passe a agit Gomo um Dr. Knock. Em geral, as infindaveis queixas Ge cariter indeterminado que oclinico geral ove a cada dia, para as quais ainda nfo fi descoberta uma terapia genuina —fadiga eréniea, cortas dores nae cosas e noe fntas, vagas perturbagoes eardiacas e estomacai, dor deeabsea permancate ere, costumnan ser tratadaa por mcioe aforciontiices. A modida que deta de esclarever dos pacientes os componentcs emocionais de males em granule parte pelguieos na origem, omédico comum acaba por estimulé-los a enfatizar einda mais os aspect e0- Itioos de seus problemas emocionais. Caso os sintomas Zumentem, ele sera visto como um grande médic; caso Togridam, 6 Sbvie que o peclente nao soube observar sue instrupies. 28 As ponderadas recomendagtes de Arquimateu de Salerno, médieo do século XI, nos fornecem um bom ‘exemplo histérico do mode como funciona essa sombra, charlata: “Ao paciente, promete a cura; aos membros de sua familia, anuneia uma grave enfermidade. Se 0 paciente nao se recuperar, dirdo que previste sua morte; Se aleangar a cura, teu renome crescers”. ‘Apenas em parte, porém, busca o psicoterapeuta seu modelo no campo da medicina. Outra vocagao, a do sacerdote, também inffuencia seus ideais. “Aimagem do homem de Deus sofreu varias mudangas no decorrer da histéria endo é sempre amesma nas diver- Sas religides. A mais importante para nossos propésitos Ga do lider religioso na tradigto judaico-erista. Acredita- ‘se qute este, pelo menos aa vezes, entra em contato com ‘Deus, Nao se espera, 6 claro, que todos os clérigos,comoos, profetas do Velho Testamento, recebam sua vocagéo dire- famente da Divindade, mas que procurem honestamente gir em nome de Deus e conforme sua vontade. © lado sombrio dessa nobre imagem do homem de Deus é0 hipéerita, aquele que prega ndo porque acredita, mas para ter influéncia ¢ poder. Assim como no caso do médieo e seus pacientes,.com o elérigo também ocorre Serer os metnbros de aua congregapio os responsdveis in- ‘Voluntarios pela ativagao do irmfio abscuro, pois exercem Considerdvel pressio para que ele desempenthe o papel de bipécrita, A davida 6 companheira da fé. Mas ninguém quer ouvi-la da boca de um sacerdote — as nossas ja bas- tam. Assim, este acaba nao tendo outra alternativa a no ‘ser tornar-se hipéerita de quando em vez, escondendo suas préprias duvidas e magcarando um momentaneo vazio, Interior com palavras eloglientes. Se seu carater for fraco, este poder tornar-se um trago habitual Em termos ideais, o homem de Deus deve testemu- nnhar sua fé com seus proprios atos. O que ele prega néo : 29 pode ser provado. & por meio de seu proprio comporta- mento que dever surgir um fundamento para a f8 que representa. E tal fato abre as portas para outro irmao do sacerdote — aquele que procura parecer ao mundo (e a si proprio) melhor do que realmente 6. A sombra do falso profeta acompanha o sacerdote por toda a vida. Por vezes, ela aparece externamente, na figura do pregador de alguma seita obscura ou de um colega que se popularizon por meio da demagogia; por outras, é dentro dele mesmo que desponta. Hoje em dia, |na muitos religiosos que temem essa sombra hipécrita de falso profeta. Recusam-se a ser vistos como “homens de Deus” a partir de tragos interiores ou exteriores e fazem seus sermdes sem nenhuma vestimenta especial, numa atitude de conversa social informal Com bastante freqiéncia, nés analistas lidamos com distirbios da sade — neuroses ¢ paicoses — para os uais, tantoem termos de tratamento como de uma posst- vel cura, praticamente nao existem controles experimen- tais reconhecidos. E virtualmente impossivel acumular estatisticas de tratamentos bem-sucedidos desses males. © que vem a ser melhora ou recaida quando se trata, desses problemas? Deveria 0 grau de ajustamento social ser tido como eritério? Ou a capacidade de traballar? O que significam intensificagso, diminuigao ou superagio. de sintomas neuréticos? Os gentimentos subjetivos do aciente? O progresso no desenvolvimento psicalégico, no rocesso de individuago, no contato com o inconseiente? Até mesmo os critérios sd incertos, em visivel contraste com um problema somtico bem caracterizado, quando a medida inequivoca de sucesso do tratamento € dada pela recuperagao de um funcionamento adequado. No easo de problemas emocionais, incluindo os males psicossomé- ‘icos, os resultados so sempre insatiafatérics, qualquer que seja o critério utilizado. Mesmo usando amplas amos- 30 tragens estatisticas, é muito dificil fazer julgamentos qua- litativos sobre o desenvolvimento dos distirbios em questo, ‘quer sejam eles tratados com psicoterapia intensiva, tran- uilizantes, quer sejam simplesmente ignorados. ‘Talver os critérios que melhor indiquem 0 sucesso da psicoterapia sejam o grau de proximidade ou distancia com relagao ao “si-mesmo” ou ao “sentido da vida” ou 0 tipo de contato estabelecido com o inconsciente. Mas como medir e estudar estatisticamente esses fatores? Qualquer profissional poderé registrar um trata. mento bem-sucedido se por acaso for procurado na hora certa, se puder trabalhar com o paciente por tempo sufi ciente e se este for alguém que de fato procurava ajuda e que teria melhorado de qualquer jeito, segundo os eritérios que enumeramos, Nesse caso, a sombra de charlatéo da dimensdo médica do analista pode operar mais ou me- nos livremente. Além disso, termos como doente e sadio, necessitado ou néo de tratamento ete. costumam ser muito mais dificeis de aplicar ao estado emocional de uma pessoa do que & sua condido fisica. O desenvolvimento psiquico de um individuo € altamente complexo e somos, todos de alguma forma neursticos. O psicoterapeuta que agisse como o Dr. Knock poderia, sem maior dificuldade, provar para meio mundo que tedos precisam fazer uma longa anélise. A coisa pode ser levada tao Tonge que quem, nnunea fez anélise passa a ce sentir meio doente, ou pelo menoe nao completamente desenvolvido em termos pai- col6gicos. ‘A sombra do analista se amplia ainda mais devido a0 denominador comum existente entre 0 seu oficio © © do sacerdote. Nés analistas, qualquer que seja nossa orientagio, nao defendemos uma f6 especifica ou uma religio organizada, mas, como osacerdote, quase sempre recomendamos eerta atitude basica diante da vida. Nao representamos uma filosofia, mas uma psicologia que aL abragamos por conviesao, visto que tanto em nossa vida ‘como em nossa propria anélise tivemos experiéncias que nos persuadiram e nos formaram em termos dessa psi- cologia. O analista junguiano, por exemplo, 6 alguém que vvivetto profuundo abslo produzido pela confrontagao com o itracional eo ineonsciente. Entretanto, poucos insights psicolégicos podem ser eatatisticamente provados no sen- tido empfrico, 86 podendo ser confirmados pelo testemu- ho honesto ¢ sincero dos que se empenham na mesma busca, Nossa unica prova é nossa propria experiencia ea de outros, uma vea que a realidade psiquica nao pode ser apreendida estatistica ou carnalmente como ocorre nas ciéncias naturais. Sob esse aspecto, encontramo-nos em ‘posigao similar a do sacerdote. Mas essa extremada con- fianga na propria experiéncia pessoal ou alheia inevitavel- merite dé margem a sérias diividas, E se nés mesmos, ou ‘outros come nés, estivermos enganados? Afinal de contas, hd muitos psicoterapeutas integros que defendem escolas: de pensamento completamente distintas. Estariam todos ‘se enganando? Seriam todos, cegos? Ou talvez a situasao seria como a deserita no romance de Mary MeCarthy, O Grupo, por uum psiquiatra decidido a sbandonar a profis- so e pesquiser a bioquimica do cérebro: “E por isso que feu estou caindo fora {da psiquiatria); quem ficar, que ‘escolha entre ser um efnico ou um impostor ingénuo”. Sera que somos capazes de admitir essas dividas para nds mesmos @ para 0 resto do mundo? Ou seré que nds psicoterapeutas fazemos com nossas prdprias diividas © medos o que faz o sacerdote, suprimindo-os e pondo uma pedra em cima? ‘Da mesma forma que o sacerdote, trabalhamos com nossa alma, nosso ser; os métodos, as técniens e o aparato utilizado sio secundérios. Nés, nossa honestidade e au- tenticidade, nosso contato pessoal com o inconsciente e 0 irracional — so esses os nossos inatrumentas. E grande 32 f pressdo que sofremos para apresenté-los melhores do ue sfo; mas, nesse caso, tornamo-nos vitima da sombra do psieoterapeuta Hé ainda outro paralelo com respeito 20 padre: nds, analistas somos de um modo geral impelidos a desem- penhar um papel de onisciéneia. Trabalhamos com 0 Inconseiente, com sonhos e com a psique, esferas em que ‘se manifesta o transcendental — pelo menos na concep- ‘40 dos leigos e até mesmo de alguns terapeutas: Dessa forma, hé toda uma expectativa de que o analista saiba ‘mais sobre agsuntos fundamentais do que o comum dos mortais, Se formos fracos, acabaremos por acreditar que estamos mais profundamente inieiados na vida ena morte do que nossos semelhantes, N&o 86 imagens mais nobres da medicina e do sa- cerddcio convergem sobre o analista, mas também eeus aspectos sombrios, o charlatao e o falso profeta. © problema da sombra do analista se intensifica ainda mais devido a algo que lhe ¢ peculiar e nao neces- sariamente vinculado aos modelos basicos das outras profissdes. Trata-se do fato de que uma de suas tarefas, consiste em ajudar os pacientes a se tornarem mais, conscientes. ‘Assim como o conhecimento de Deus desempenha uum papel central no modelo ideal de sacerdote, © 0 de terapeuta altruista na imagem do médico, ha no modelo de psicoterapeuta uma figura crucial que poderiamos vineular ao ato de criar consciéncia ou de langar luz. Mas, ‘as imagens profissionais sempre tem um aspecto sombrio,, © qual representa 0 oposto do ideal luminoso. A sombra profissional do analista contém nio apenas ocharlataoe faleo profeta, mas também a contrapartida daquele que lumina, ow'seja, uma figura que vive imersa no incons- ciente e visa cempre ao contrério do que conscientemente pretende o analista. Temos af uma situagao paradoxal, na aa qual o analista 6 mais ameagado pelo inconseiente que 0 nio-analista. O psieoterapeuta honesto de vez em quando leva um choque ao descobrir que age inteiramente a partir, do inconsciente em seu trabalho. Em geral,o analista nfo recebe aviso algum por par- te de seu paciente de que inconscientemente esta sendo destrutivo. E que o proprio paciente busca o charlatao © 0 falso profeta ne analista ¢ inclusive incentiva esses aspectos. Muitas vezes o terapeuta tem a impressio de que seu trabalho vai indo as mil maravilhas, impress40 tanto mais forte quanto mais tenha cafdoem sua prépria, sombra. Assim como o médico é forgado por seus pacientes a desempenhar o papel de charlatdo, ¢ 0 sacerdote o de Falso profeta por sua congregacao, 0 anelista ¢ levado a ‘esses papéis inconscientes por seus analisandos, ‘Uma objepao importante poderia ser levantada aq ‘© analista profissionalmente sincoro se encontra om per- _manente contato com seu proprio inconsciente, estudando cuidadocamente sous sonhos ¢ quaisquer outras mani- Festaptes. Podor-se-in pensar que isso com toda a certeza ‘afastaria o;papel de charlato, falso profeta ou snalista in- conscientemente destrutivo, Mas n4o¢ assim. Assim como fas demais pessoas, nés analistas também costumamos ter ‘um ponto cego com respeito & nossa prépria sombra. Néo ‘a vemos nem em nossos sonhos, nem em nossas agdes. Freqilentemente, nem mesino nossos amigos conseguem vvé-la por algum tempo, tornando-se to cogos quanto nés. mesmos, 0 que acaba produzindo algo como uma folie @ deux. Bm tais casos os inimigos podem ser muito titeis e deveriamos sempre refietir sobre o que dizem. ‘Seguimos certas regras para interpretar as manifes- tages do inconsciente. Em ultima andlise, porém, essa interpretagio é mais uma arte que um ofiejo e pode muito bem ocorrer que nosea prépria equasao pessoal nos leve a desprezar algo fundamental. 34 Além disso, ha também o problema de que as mani- festagbes do inconsciente, como as do Oréculo de Delfos, quase sempre eo ambivalentes. O modo de compreen- der 0 inconsciente acaba assim dependendo do ego. O ‘que acontecou com Croesus no Oraculo pode acontecer ‘com qualquer um de-nés; ou seja, podemos interpretar o inconseiente segundo os desejos do ego e dessa forma ‘compreendé-lo mal. “Antecipando algo que sera desenvolvido mais adian- te, gostaria neste ponto de lembrar o que acontece quando 0 cai sob o poder da sombra profissional. Exigimos sinceridade de nossos pacientes. Procura- ‘mos ajudé-los em sua confrontag8o com o inconsciente mediante nossas explicagies, nossas interpretagdes de sonhos e, acima de tudo, nossas préprias atitudes. Ao olhar de frente nossa propria sombra profissional, mos tramos aos analisandos que o8 aapectos desagradaveis, da vida também devem ser reconhecidos. Como proc rej indicar, as figuras completamente inconscientes da sombra de charlatio ¢ falso profeta desempenham um, papel muito importante em nosso trabalho analitico ¢ portanto em nosso relacionamento com os pacientes. Se estes forem atingidos por essa sombra, ¢ fundamental para o progresso da terapia que sejamos capazes do admitir diante deles que escorregamos na sombra in- consciente e profissional, por mais doloroso que possa ser reconhecer tal fato. O paciente, afinal de contas, tem de encarar cortas revelagdes dolorosas. Ao procu- rar detectar a cada pusso a atuagao de nossa sombra psicoterapéutica, apanhando-a com as mios na massa, auxiliamos nossos pacientes em suas préprias confron- tagées com o irmdo obscuro. Se deixarmos de fazé-lo, 0 paciente aprender apenas a enganar a si mesmo e 20 resto do mundo, tornando-se assim altamente questio- navel o préprio valor da andlise. 35 © problema da sombra profissional se liga a outros aspectos fundamentais da atividade terapéutica. Na qualidade de anelistas, defrontamo-nos constantemente com o sofrimento e com destinos tragicos e incomuns. Com bastante freqiéncia, o que temos a fazer é ajudar ‘uma ‘pessoa em dificuldade a compreender a si mesma tanto quanto possivel, néo s6 para que entre em contato ‘com 0 inconaciente, mas simplesmente para que suporie ‘8 aspectos tragiens da vide em toda a sua incompreen- sibilidade, Para ajudar uma pessoa que sofre devido a ‘uma situagao existencial trégiea — que ndo se alterard, ‘mesmo que aumente 0 contato com o inconsciente— deve- ‘moa igualmento confrontar nosea prépria situagabo trégica, expresea pelo fato de que quanto mais procuramos ser ‘bong psicoterapeutas, ajudando nossos pacientes a am= pliar sua conseiéneia, mais nos ocorre cair no lado oposto de nosso luminoso ideal profissional. Em certo sentido, 0 destino das que lutam por algo — e nostos pacientes so em geral pessoas desse tipo — tem uma dimensao inegavelmente tragiea. E sempre ‘0 oposto do que se quer atingir ou evitar que acaba se constelando. Isso 6 verdade tanto em nivel coletivo como individual. A Revolugdo Francesa pretendia libertar © homem e deu lugar titania napoleénica. No séeulo XIX, varios sufgos amantes do canto tentaram promo- ver essa atividade fundando corais masculinos; mas, de fato, a existéncia de tais grupos destruiu por completo 0 canto como passatempo popular, transformando-o em algo que precisava da estrutura orgenizada de um coral dirigido para acontecer. O Cristianismo, pregando a,paz 0 amor, deu origem a cruzadas sanguindrias que no af de conquistar a Terra Santa comegaram por exterminar (08 judeus da Europa, Como sempre repetia C. G. Jung, ‘sempre que um contetido luminoso se instala na cons- cigneia, seu oboste se constela no inconsciente ¢ procura 36 atrapalhar a partir dessa posigio estratégica. O médico se torna um charlato exatamente por querer curar 0 maior mimero possivel de pessoas; 0 sacerdote se torna, ‘um hipécrita por querer converter as pessoas & verdadeira, 8; ¢ 0 psicoterapeuta se torna um charlatéo ¢ um falso profeta apesar de trabalhar dia e noite para ampliar sua Até aqui, minhas afirmagses parecem um tanto pessimistas, como as de um pregador calvinista ou de tum teGlogo da velha Islandia — se € que havia teslogos, naquele tempo. Odin* faz o que pode, apesar de saber ‘muito bem que as raizes de Iggdrasil, a érvore do mundo, estdo sendo lenta mas inexoravelmente destraidas pela serpente, ‘Mas a existéncia dessa sombra também tem aspectos menos tragicos. Nem sempre as agdes de um terapeuta quetrabalhe a partir da combra edo negativas, Freqien- temente os charlatées conseguem minorar o sofrimonto muito mais do que médicos sérios e respeitaveis. EZ um. terapeuta que temporariamente caia no inconsciente trabalhe exclusivamente a partir da sombra pode, pelo ‘menos por algum tempo, aparar as arestas mais agudas, {do sofrimento dos pacientes com hase em sua precisa © sguranga exterior. ‘Um de meus analisandos teve certa ver 0 seguinte sonho: num jornal aparecia uma caricatura minha, no estilo de Daumier, com a seguinte legenda: “Infelizmente nosso colega Dr. A. G.-C. fez mau uso da nobre arte da medicina, portando-se como um chariatio em busca de vantagens’” Naquela ocasiio, nfo pensei que o sonho de fato se referisze a’mim eo interpretei como expressao de uma rota germane (No) 37 resisténcia do paciente baseada em preconceitos coletivos contra a psicologia, a psicoterapia e o inconsciente. Re- Jeitel a critica que me era dirigida e o retrato de minha ‘Sombra profissional como uma caricatura & la Daumier, encarando-os como um problema subjetivo do paciente. No decurso da andlise voltamos a esse sonho e pereebemos claramente que ele se referia ao meu proprio problema de sombra profissional, Meu paciente disse que ficou contente por néo termos conseguido compreender 0 s0- ‘ho por completo naquela altura. A seguranga com que Ihe develvi o sonho, apesar de este basear-se no meu préprio inconsciente, produziu um efeito trangiiilizador. Elle disse que naquela ocasiao néo teris suportado o peso de lidar ao mesmo tempo com os meus problemas de sombra e com os dele. ‘Posse hem imaginar uma reagio erftica as refle- xbes até aqui apresentadas. Nao seriam elas talvez de- ‘masiado destrutivas? Por que razao deveriamos tentar nos tornar mais conscientes, se estamos condenados a recair perpetuamente, nas mais desagradéveis formas de inconseiéncia? Por que nao “viver e deixar viver” com alegria ¢ inconsciéncia, simplesmente ajudando nossos pacientes com medicamentos? Para os que se preocupam profissionalmente com a questio, o esforgo de tornar-se sais consciente parece condenado a um trégico fracasso ‘Talvea tenham razdo certas religides orientais que procuram negar por completo as exigéncias e objetivos do ego, para que o individuo assim liberado de preceupa- ‘Ges terrenas possa atingir o Nirvana, Os esforgosdo ego, por mais bem-intencionados que sejam, acabam a longo prazo por atrapalhar. ‘Mas os europeus nao podem endo pretendem renun- ciar ao ego, devendo levar muito a sério seus esforsos € objetivos. O si-mesmo — centro significative mais profun- do da psique, segundo Jung — em geral s6 pode apa 38 ever se 0 ego, em lugar de posto de lado e liminado como algo insignificante, puder levar adiante o drama de seus envolvimentos. (© Rei Edipo tentou desesperadamente viver e agir segundo a vontade dos deuses — ou seja, do inconsciente. Apolo Ihe informou, por meio do oraculo, que derramaria © sangue do pai e desposaria 2 mée. Para evitar tal even- tualidade, 0 jovem Edipo abandonou Polibo, seu pai, € ‘Mérope, sua mae, sem saber que estes nao eram seus pais verdadeires, mas adotivos, pois estes nunca The haviam dito nada sobre sua linhagem. Mas, ao tentar evitar a horrivel e maldita profecia, Edipo cai no polo oposto. No. fim da tragédia, autocondenads, ele se v8 como “o mais amaldigoado dos homens, odiado por todos os deuses”. Ao vazar o8 olhos, ele doplora: "Nada restou para ser visto ou ser amado. Nunea mais o som das saudagses daré prazer ‘20s meus ouvides. Fora! Fora daqui, fora! Ao desterro, ao, desterro!” ‘Mas 6 exatamente a partir desse tragico esfacela- mento de ego de Edipo que o si-mesmo, a centelha divina no homem comega @ transparecer. Como em qualquer tragédia, percebe-se aqui um significado que jé nfo é mais, orientado pelo ego. Algo andlogo é sentido por qualquer analista — e por seus pscientes — que procure relacio- nar-se com 0 inconsciente, vivendo tio conscientemente quanto possivel e nesses termos exercendo sua profissso, E, a0 fazé-lo, ser4 inevitavel que progressivamente cain ‘na sombraemuitas vezes desempenheo papel de charlatao ¢ falso profeta para seus pacientes. [Até este ponto, talver minhas consideragses sobre 0 irmao sombrio do psicoterapeuta tenham sido muito gerais. No capitulo seguinte voltaremos a essas figuras obscuras, obsorvando em termos praticas o que acontece ‘quando o psieaterapeuta cai no inconsciente, 39

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