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INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E CULTURA
Salvador
2017
ANTONIO CARLOS MONTEIRO TEIXEIRA SOBRINHO
Salvador
2017
ANTONIO CARLOS MONTEIRO TEIXEIRA SOBRINHO
BANCA EXAMINADORA
A Olorum Olodumare; aos ancestrais Baba Olokotun ati Baba Alapala awon Ile Asipá,
a Exu e a Logun Edé, a todos os Orixás, com devoção e respeito.
Ao meu pai, Eduardo José Monteiro Teixeira, com grande amor e reconhecimento por
tudo o que foi feito para que eu estivesse hoje aqui.
A Aneres da Costa Santos, Nerinha, por ser igualmente minha mãe e por me acolher
igualmente como seu filho, com todo amor do mundo.
A Daiana Teixeira Nunes, pelo companheirismo paciente e cuidadoso durante todos
estes longos anos, por ter me levantado quando eu caí, com um sincero pedido de desculpas
por tanta ausência.
A Gabriela da Costa Santos, minha afilhada, pelo carinho com que tem estado ao meu
lado.
A Antenor Ferreira Leal Neto, Davi Nascimento Souza, Edvaldo Paulo das Neves
Junior, Ivan Santana Batista Soares, João Vitor Montenegro Pessanha, Leonardo Barbosa,
Leopoldo Andrade Neto, Rafael Bruni, Tiago Simões, Tiago dos Santos Lima, Quezia dos
Santos Lima e Zenon Ferreira Leal, amigos de toda uma vida, amigos para toda uma vida,
com todas as cervejas ainda por beber.
A José Félix dos Santos, Otun Alagba do Ilê Asipá, Mãe Nídia de Iemanjá e Mãe Cida
de Nanã, pelo carinho e pelos caminhos, pelas certezas que fazem seguir em frente, com um
pedido de bênção.
À Profa. Dra. Ívia Alves, minha orientadora, que soube conduzir esta pesquisa de
forma rigorosa, mas dotada da mais humana compreensão, com o sólido afeto que a
convivência construiu.
Ao Prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte, por ter apoiado este projeto quando ele ainda
era mais lacunas do que ideias e por ter feito parte de sua realização na condição de meu co-
orientador, com gratidão e respeito.
À Profa. Dra. Alvanita Almeida Santos e aos Profs. Drs. Benedito Veiga e Carlos
Augusto Magalhães pelas correções e sugestões feitas quando do exame de qualificação desta
tese, em 2015.
À Fundação Casa de Jorge Amado pela acolhida a esta pesquisa, disponibilizando o
seu acervo, inclusive material restrito, para consulta.
A Myriam Fraga pelas palavras de incentivo e de carinho com que se reportou a esta
pesquisa quando a apresentei à Fundação Casa de Jorge Amado.
A Gildeci de Oliveira Leite, cujo convívio e amizade foram (e são) fundamentais para
a minha imersão no universo amadiano.
Aos funcionários das Pós-graduações em Literatura e Cultura e Língua e Cultura da
Universidade Federal da Bahia, Cristiane P. Daltro, Maíra Vilas Boas, Ricardo Luiz dos
Santos Júnior e Thiago de Jesus Rodrigues pela atenção, competência e disposição com que
sempre trabalharam.
Aos funcionários do setor de periódicos raros da Biblioteca Pública do Estado da
Bahia.
A Roberto Rodrigues Campos pela tradução do resumo para o inglês.
A Jorge Amado, hoje e sempre, pelas esperanças que tomei de empréstimo.
[...] deve-se reconhecer que nenhuma palavra
pronunciada contra a violência e a tirania é vã
e inútil: alguém ao ouvi-la pode superar o medo
e iniciar a resistência.
Esta tese se configura como um estudo do universo ficcional de Jorge Amado, principalmente
a partir de Gabriela, cravo e canela, de 1958. Constitui-se como um exercício de
interpretação das formas com que o tema da liberdade se afigura encarnado em representações
individuais e/ou coletivas impressas pelo autor. Assume-se que a literatura amadiana não
busca apenas a denúncia de sistemas de opressão, mas também almeja encontrar alternativas
que apontem para condições de vida não tocadas por uma lógica da submissão ou por uma
dinâmica existencial repressiva. Nesta direção, procura-se mapear os sentidos concretos com
que a ideia de liberdade se apresenta tangível na ficção de Amado. Ou seja, formas específicas
de ser, estar e se relacionar com o mundo que, em função da série de posicionamentos de cada
narrativa, são veiculadas como dotadas da capacidade de reverter quadros de subjugação em
experiências possíveis de liberdade. A cartografia destas formas, que vem a ser um primeiro e
necessário passo para a posterior observação dos conteúdos dissonantes que elas encenam,
está amparada em um procedimento de leitura que funciona por contraste. Sua ênfase está
radicada na percepção da diferença instaurada por modos de vida não hegemônicos, situados
desde a margem, quando comparados ao conjunto de relações constitutivo da ordem
(econômica, social, cultural, axiológica e epistêmica) dominante nas sociedades ocidentais –
de resto, identificada como responsável pela subjugação de corpos e de espíritos, de
indivíduos e de grupalidades. O mapeamento destas experiências outras segue não apenas
pelas narrativas efetivamente publicadas por Jorge Amado. Busca-se igualmente observar
projetos que se apresentavam como importantes para o autor, mas que não foram totalmente
desenvolvidos. São os casos de A guerra dos santos, cujo plano de romance foi abandonado, e
Boris, o Vermelho, que Jorge Amado não conseguiu finalizar. O estudo destas tramas é
possível pelo cruzamento de cenas publicadas em revistas (A guerra dos santos) ou dos
datiloscritos digitalizados (Boris) com informações coletadas em entrevistas concedidas pelo
romancista ao longo da segunda metade do século XX. Com o intuito de elaborar leituras das
modalizações diferenciais de vida contidas na ficção de Amado, optou-se pela noção de
heterotopia, tal como desenvolvida por Michel Foucault (2001), como operador teórico. Isto
porque a formulação foucaultiana, preocupada em focalizar a coexistência nada harmônica de
espaços heterogêneos contíguos, permite discutir o modo como espacialidades não
hegemônicas, as heterotopias, são e produzem forças de contestação às relações imperantes –
“espaço” sendo aqui entendido não como um território delimitado por coordenadas
geográficas, mas por redes de posicionamentos. A partir das análises das narrativas de Jorge
Amado, é possível afirmar que as figurações de liberdade decorrem de um real heterotópico,
não delineado pelo modelo capitalista-burguês judaico-cristão. Trata-se de um espaço não
hierarquizado de convivência comunitária, no qual as relações humanas não se estabelecem
pelo valor monetário nem operam pela exclusão das alteridades, e organizado por uma
dinâmica existencial marcada pelo sentido de alegria-alacridade, que vem a ser um princípio
estruturante das formas de ser, estar e de se relacionar oriundas do Candomblé.
This thesis is a study of the fictional universe of Jorge Amado, mainly from 1958 Gabriela,
clove and cinnamon. It is an exercise of interpretation of the ways in which the theme of
freedom is embodied in individual and/or collective representations printed by the author. It is
assumed that Amadian literature makes not only the denunciation of systems of oppression,
but also seeks to find alternatives that point to conditions of life untouched by a logic of
submission or by a repressive existential dynamics. In this direction, this thesis seeks to map
the concrete senses with the idea of freedom is presented tangible in Amado’s fiction. In other
words, specific forms of being and relating to the world that, according to the number of
positions of each narrative, are transmitted as endowed with the capacity to revert contexts of
subjugation into possible experiences of freedom. The cartography of these forms, which is a
first and necessary step towards the subsequent observation of the dissonant contents that they
enact, is supported by a reading procedure that works by contrast. Its emphasis is based on the
perception of the difference established by non-hegemonic ways of life, situated from the
edge, when compared to the set of constitutive relations of order (economic, social, cultural,
axiological and epistemic) dominant in Western societies – it is indeed responsible for the
subjugation of bodies and spirits as well of individuals and groups. The mapping of these
other experiences follows not only by effectively narratives published by Jorge Amado.
Search also observe projects that were as important to the author, but that have not been fully
developed. They are A guerra dos santos, whose novel plan was discontinued, and Boris, o
Vermelho (Boris, the Red), that Jorge Amado was unable to finish. The study of these plots is
possible by crossing scenes published in magazines (A guerra dos santos) or digitalized
typewritings (Boris) with information collected in interviews given by the novelist during the
second half of the twentieth century. In order to elaborate readings of different forms of life
contained in Amado's fiction, it was chosen the concept of heterotopia, developed by Michel
Foucault (2001), as a theoretical operator. This is because the Foucaultian formulation,
concerned about focusing on the non-harmonic coexistence of contiguous heterogeneous
spaces, allows us to discuss how non-hegemonic spatialities, the heterotopias, are and produce
forces of contestation to the prevailing relations – "pace" being understood here not as a
territory delimited by geographical coordinates, but by positioning networks. From the
analysis of Amado’s narratives, it is possible to affirm that the figurations of freedom arise
from a heterotopic reality, not delineated by the Jewish-Christian capitalist-bourgeois model.
It is a non-hierarchical space of community coexistence, in which human relations are not
established through a monetary value or operated by the exclusion of otherness, and organized
by an existential dynamic marked by the sense of joy-alacrity, which comes to be a
structuring principle of the ways of being and interacting from Candomblé.
Questa tesi si configura come un studio dell’universo fittizio di Jorge Amado, soprattutto da
Gabriella, garofano e cannella, 1958. La tesi si costituisce come un esercizio di
interpretazione dei modi in cui il tema della libertà appare incarnato nelle rappresentazioni
dell’individuo e/o del collettivo stampate dall'autore. Si presume che la letteratura amadiana
non solo cerca la denuncia dei sistemi di oppressione, ma anche l'obiettivo di trovare
alternative che indichino condizioni di vita non toccati da una logica di sottomissione o da una
dinamica esistenziale repressiva. In questa direzione, si cerca di mappare il modo concreto in
cui l'idea di libertà è presentata nei romanzi di Amado. Cioè, modi specifici di essere, di
vivere e di rapportarsi al mondo che, a causa della serie di posizionamenti di ogni narrativa,
sono trasmessi con la possibilità di rivertire la sottomissione in esperienze possibili di libertà.
La cartografia di queste forme, che è un primo e necessario passo per ulteriore osservazione
dei contenuti dissonanti che loro agiscono, è supportata da un procedimento di lettura che
funziona per contrasto. La sua enfasi è radicata nella percezione della differenza stabilita per
forme non egemoniche di vita, cui si trovano alle margini, quando vengono confrontati con il
set di relazioni costitutive dell’ordine (economica, sociale, culturale, assiologica ed
epistemica) dominante nelle società occidentali – identificato come responsabile per la
sottomissione dei corpi e degli spiriti degli individui e dei colletivi. La mappatura di queste
altre esperienze segue non solo le narrative effettivamente pubblicate da Jorge Amado. Questa
tesi anche osserva progetti che sono stati presentati come importanti dall'autore, ma che non
sono stati pienamente sviluppati. Questo è il caso di La guerra dei santi, il cui piano di
romanzo è stato abbandonato, e Boris, il Rosso, che Jorge Amado non è riuscito a finire. Lo
studio di queste trame è possibile incrociando scene pubblicate su riviste (La guerra dei santi)
o degli archivi originali digitalizzati (Boris) con le informazioni raccolte nelle interviste dal
romanziere nel corso della seconda metà del secolo XX. Al fine di preparare letture delle
forme differenziali di vita contenute nelle narrative di Amado, questa tesi utilizza la nozione
di eterotopia, sviluppata da Michel Foucault (2001), come operatore teorico. Questo perché la
formulazione di Foucault, preoccupata di concentrarsi nella coesistenza non armoniosa degli
spazi eterogenei e contigui, permette discutere il modo come spazialità non-egemoniche, le
eterotopie, sono e producono forze di difesa ai rapporti prevalenti – "spazio" qui significando
non un territorio delimitato per coordinate geografiche, ma come reti di posizionamento.
Dall'analisi delle narrative di Jorge Amado, è possibile affermare che le figurazioni di libertà
decorrono da una realtà eterotopica, non delineata dal modello capitalista-borghese giudaico-
cristiano. È uno spazio non gerarchizzato di convivenza comunitaria, in cui i rapporti umani
non sono stabiliti attraverso un valore monetario né operano l'esclusione di diversità, ed è
organizzato per una dinamica esistenziale marcata da un senso di gioia-alacrità, che viene ad
essere un principio strutturale delle forme di essere, di vivere e di rapportarsi al mondo
derivate del Candomblé.
INTRODUÇÃO 12
2 DA UTOPIA À HETEROTOPIA 25
2.1 PREÂMBULO OU PREMISSA BÁSICA 25
2.2 A HETEROTOPIA E O CONTEMPORÂNEO 32
REFERÊNCIAS 260
ANEXOS 271
ANEXO A – “DECLARAÇÃO DE GUERRA EM LÍNGUA DE SOTAQUE” 272
ANEXO B – “EPISÓDIO DE SIROCA” 282
12
INTRODUÇÃO
Belchior. Alucinação.
eleva em face da violação dos direitos individuais promovida por regimes ditatoriais e por
configurações sociais excludentes, como se observa em Tenda dos milagres e em O sumiço
da santa.
A perspectiva posta por Marilena Chauí, que pensa a liberdade como impulso em
direção a relações humanas não vincadas por regimes de submissão, admite a possibilidade de
desdobrá-la em potência-devir. Isto é, como força de transformação capaz de conduzir atos de
intervenção no real concreto, de maneira a reverter uma dinâmica socioexistencial fundada no
autoritarismo em um estado de liberdade tangível, no qual é possível a coexistência do
múltiplo sem o perigo de sua redução ao um.
Neste ponto, é necessário enfrentar o problema inerente à transplantação da palavra
liberdade de um conjunto de referenciais abstratos – força de coexistência; potência-devir –
para representações concretas: o que viria a ser ou, mais precisamente, quais formas assumiria
um estado de liberdade tangível? Quais condições efetivas são necessárias para que uma
coexistência desprovida de assimetrias se instale?
A este respeito, não penso que sejam possíveis respostas pré-formatadas. Gerd
Bornheim (2002, p. 41) assinala que “[...] o único pressuposto histórico viável para que se
possa instaurar a inteireza do entendimento da questão está na ausência de liberdade”. Este é,
pois, um signo cujas possíveis representações fixadas no real concreto não comportam uma
definição em si mesmas, operando sempre em contraste àquilo que não as circunscreve – o
não é o seu ato fundador.
Sentidos objetivos para liberdade emergem e funcionam em antinomia a situações nas
quais o veto impera sobre os corpos e sobre os espíritos, seja no nível dos indivíduos ou das
grupalidades, de modo tenso e constante. Tratam-se de construções idealizadas, responsáveis
por animar um sentimento de esperança em torno de alternativas não producentes das
sensações cotidianas de barramento, que decorrem das várias censuras às quais se está
exposto, e de medo diante do perigo onipresente de punição, pelo fato de se ter ido ou de se
ter sido além do que é interditado – a instância punitiva não apenas corporificada no aparelho
repressivo constituinte do Estado, mas também identificada na figura de um deus
concomitantemente promotor e juiz.
Nesta direção, representações concretas de liberdade são elaboradas sempre em um
momento segundo, a posteriori no que concerne à apreensão intelectiva ou sensível de uma
condição cerceada, sob inflexível vigilância e em iminente risco. É, portanto, uma formulação
que se tece em função de uma atitude reativa às barragens do mundo efetivamente
experimentado, configurando-se como uma espécie de contrarrealidade ideada.
16
possível inferir que tenha algo a ver com o que ela designa como “ética intercultural”, ou seja,
um esforço de negociação entre as diferentes matrizes culturais constitutivas do povo
brasileiro, de maneira a “[...] transcender as diferenças sem desfazer-se delas” (OLIVIERI-
GODET, 2012, p. 176) – o que se conecta com aquela definição de liberdade como força de
coexistência trazida à baila por Marilena Chauí (2009).
Por sua vez, Jorge de Souza Araújo (2003, p. 167) destaca que “justiça social e sonho
de liberdade é a díade em que se assenta a obra de Jorge Amado nas suas múltiplas
conformações”. Para ele, os desdobramentos temáticos da literatura amadiana iniciados com
Gabriela, cravo e canela promovem a conciliação entre marxismo e liberdade, que vêm a ser
elementos divorciados na experiência real do modelo instaurado pelo comunismo soviético e
demais ditaduras comunistas.
Araújo trabalha com uma ideia de liberdade circunscrita ao âmbito do indivíduo, em
uma acepção relacionada à potência que os seres têm de determinarem a si próprios
independentemente dos condicionamentos externos aos quais estão sujeitos – flerta, neste
sentido, com o existencialismo sartreano, para o qual a liberdade de cada um em face das
escolhas conformativas da vida se coloca como princípio inalienável da existência, de modo
que se constitui como fundamento ontológico do ser. Daí o enfoque de Araújo em
personagens como Gabriela e D. Flor, nas quais a pulsão desejante reverte os cerceamentos
morais a que se encontram submetidas; o capitão de longo-curso Vasco Moscoso de Aragão,
que põe em cena a capacidade onírica de cada ser criar para si a realidade em que gostaria de
viver, e Quincas Berro Dágua, que efetivamente funda esta outra realidade a partir de uma
escolha consciente e de um gesto de ruptura com o estado anterior – a liberdade de existir em
consonância consigo mesmo, que se instala desde o interior dos seres e eclode nas
manifestações do desejo, do sonho e das escolhas pessoais.
Outra abordagem do tema consta em um ensaio produzido em 1983 pelo crítico baiano
Eduardo Portella (2011), no qual ele promove uma leitura de conjunto da produção literária
amadiana, considerando-a sob a inscrição de “o infatigável sonho da liberdade”.
O ensaio apresenta uma incursão panorâmica à ficção de Amado imbuída do intuito de
ali observar o solo em que medra a liberdade. “Não a liberdade desossada e descarnada,
elaborada mentalmente por tantos modelos ideológicos”, adverte Portella (2011, p. 67), mas
uma que se apresente partícipe do real objetivo. Assim, a literatura amadiana avança, “[...] em
diversos planos, no confronto inóspito de imaginário e dominação, o esforço por encontrar,
em qualquer lugar possível, a saída para os desempenhos emancipatórios, por cima das
estruturas de violência” (PORTELLA, 2011, p. 67).
18
maridos (1966), Tereza Batista cansada de guerra (1972), Tieta do agreste, pastora de
cabras (1977) e A descoberta da América pelos turcos (1994) configuram romances
agenciados por uma abordagem em que não me detenho nas minudências das tramas, mas
pinço aqui e ali detalhes que agregam consistência ao argumento desenvolvido.
A distinção de tratamento entre os dois grupos de narrativas obedece a três critérios:
maior pregnância no que se refere às experiências possíveis de liberdade emanadas a partir
das margens; anterioridade em relação à figuração de determinados aspectos constitutivos da
crítica aos modelos dominantes e/ou das experiências possíveis de liberdade e, no que tange
especificamente a O sumiço da santa, a possibilidade de produzir um fechamento solar para o
encaminhamento do tema da liberdade no universo ficcional de Amado.
A completa verdade sobre as discutidas aventuras do comandante Vasco Moscoso de
Aragão, narrativa publicada no volume Os velhos marinheiros (1961), e Farda, fardão,
camisola de dormir (1979) não compõem o corpus desta tese em virtude do critério de
figuração heterotópica instituído. Na primeira, o espaço de contestação dos condicionamentos
aos quais o protagonista está exposto provém do sonho, isto é, da capacidade de imaginar-se
outro, portanto, não decorre de relações de posicionamentos inscritas na concretude do real;
na segunda, a resistência aos tentáculos do Estado Novo é focalizada no seio da Academia
Brasileira de Letras que, como espaço oficial e de poder que é, não pode ser lida na condição
de uma heterotopia.
Não se trata, é importante deixar claro, de condicionar a seleção do corpus aos limites
do que a teoria permite ou não abordar – o que sugere um movimento inicial invertido,
partindo do arcabouço teórico em busca da literatura que lhe caiba. A noção de heterotopia foi
requisitada em função das possibilidades que ela coloca para a leitura de posicionamentos
diferenciais advindos da margem, que vem a ser o objetivo desta tese. Logo, as narrativas não
contabilizadas, a despeito de apresentarem desdobramentos importantes para a discussão do
tema da liberdade, não o foram por conta do ângulo de leitura instituído.
Ainda em razão do critério de figuração heterotópica, justifico meu tratamento apenas
breve e panorâmico dos romances anteriores a Gabriela, cravo e canela – o que faço
acompanhando, em tom de resenha, o estudo deles realizado por Eduardo de Assis Duarte
(1996). Apesar de escritos em função de um compromisso com a utopia comunista, o que me
permitiria não os considerar, não posso simplesmente esquecer estes romances, uma vez que
eles instituem uma primeira experiência possível de liberdade, aquela ideada em virtude do
princípio de igualdade, construtor de uma organização social não cindida em classes, que
continua repercutindo nas formulações posteriores.
21
O livro Bahia de Todos os Santos: guia das ruas e dos mistérios da cidade do
Salvador (1944) se apresenta como uma dupla exceção. Por não ser uma narrativa literária,
apesar de se valer não raro de recursos próprios à literatura, era natural que não constasse
entre os livros que compõem o corpus deste trabalho, ademais não voltado para textos
produzidos e publicados em meio ao tempo da utopia. Apesar disto, se faz presente, pois o
interpreto na condição de uma escrita em trânsito da modalização utópica para a heterotópica,
o que implica perceber o início de uma abertura de perspectivas no que tange à maneira com a
qual Amado olha para trama dos espaços, impactando sua ficção posterior.
Para além das etapas iniciais de leitura e fichamento das narrativas produzidas por
Jorge Amado a fim de delimitar o corpus e levantar hipóteses, e de atualização em face da
fortuna crítica do escritor baiano, o processo de pesquisa e de coleta de dados para a
formulação desta tese abrangeu a consulta ao acervo da Fundação Casa de Jorge Amado, no
qual acessei:
a. Entrevistas concedidas pelo escritor a periódicos nacionais e estrangeiros, bem
como a programas de rádio ou de televisão, estas registradas em fitas K7, ao longo do período
1958-2001, a marcação temporal instituindo como limites o ano de publicação de Gabriela,
cravo e canela e o falecimento do autor.
É importante ressaltar que estas entrevistas não foram buscadas com o intuito de fazer
o escritor explicar sua própria produção literária ou de sua voz pairar como sombra mais
autorizada a legitimar a leitura empreendida por esta tese. A ida ao conjunto de entrevistas
esteve assentada em três objetivos, a saber: 1. verificar a imagem que Jorge Amado busca
construir para si, na condição de um escritor, e para a sua literatura, de maneira a observar a
defesa de um ideal de arte comprometida com a luta contra as formas de tirania e de
desigualdade, além de situadas em relação às demandas de seu tempo histórico; 2. analisar os
modos pelos quais ele se refere ao Candomblé, tanto de um ponto de vista a explicitar seu
envolvimento pessoal com a cultura africano-brasileira quanto para posicioná-la em contraste
com a tradição judaico-cristã, de forma a interpretar como e por que ele sente e apreende o
Axé na condição de uma heterotopia; 3. reconstituir os planos gerais ou as questões atinentes
a A guerra dos santos, romance abortado, e a Boris, o Vermelho, narrativa não concluída.
b. Textos não ficcionais publicados por Jorge Amado em periódicos nos anos de 1930,
inclusive aqueles editados em Boletim de Ariel, como forma de estudar os posicionamentos
assumidos pelo então jovem escritor e conferir suas reverberações nos desdobramentos do
universo ficcional constituído pelo baiano.
22
1
Os datiloscritos de Boris, o vermelho se tratam de registros inéditos. Deste modo, por força de contrato junto à
Fundação Casa de Jorge Amado, não é possível anexá-los ao fim desta tese. Foi-me permitida a utilização apenas
de fragmentos.
23
observar o contraste, estruturado pelo escritor, entre as formas de vida organizadas sob a
égide da matriz colonizadora ocidental e aquelas fundadas a partir das comunidades-terreiro.
Junto a Muniz Sodré (2002), argumento que a dimensão da alegria-alacridade constitui as
existências vinculadas ao Axé, de resto desprovidas de uma axiologia fundada nos sentidos de
Culpa e de Pecado, além de dotadas de uma abertura positiva para o outro – principais
elementos galvanizadores de sua figuração heterotópica.
Em suplemento vertical a esta perspectiva, no capítulo cinco, intitulado “Um projeto
representacional do Candomblé”, estabeleço uma hipótese de leitura acerca do fato de Amado
ter abortado o projeto de romance A guerra dos santos, comentado em entrevistas desde 1958.
Após reunir as informações sobre o que viria a ser a narrativa, desenvolvo um estudo do
episódio “Declaração de guerra em língua de sotaque”, publicado em 1975 como as primeiras
cenas de um romance em desenvolvimento, com o intuito de observar a representação do
povo-de-Axé2 ali formatada. Argumento que A guerra dos santos pressupunha um retrato
radicalmente distinto daquele emoldurado nas demais narrativas elaboradas por Amado desde
1958, de maneira que não colocava em cena a possibilidade de o Candomblé favorecer uma
experiência livre pois cindido em guerras internas de poder. Assim, o não prosseguimento do
plano inicial, revertendo A guerra dos santos em O sumiço da santa, que retorna à positivação
heterotópica do Axé, oferece-me as condições suficientes para defender um projeto
representacional do Candomblé na condição arquetípica de uma heterotopia absoluta e
positiva.
O capítulo seis, “O passado em perspectiva ou o arco ficcional revisionista”, tem sua
origem na percepção da insistência com que, a partir de um determinado momento, Amado
monta a estrutura temporal de algumas tramas suas como um jogo entre presente e passado,
no qual busca recuperar memórias subterrâneas (POLLAK, 1989) responsáveis por desmontar
narrativas oficiais e instaurar outros pontos de vista. Aqui, as heterotopias são interpeladas em
função das memórias em que legam ao presente, por via oral ou literatura popular, as
experiências possíveis de liberdade nelas protegidas.
Em “Dos tempos contrários à liberdade”, capítulo sete, o arco ficcional revisionista é
lido em virtude de suas duas narrativas modelares, Tenda dos milagres e Tocaia Grande. A
2
Por “povo-de-Axé”, refiro-me ao que é popularmente designado como “povo-de-santo”. A minha opção em
trabalhar com uma nomenclatura diferente está ancorada nas diferenças que o mundo judaico-cristão e o dos
Candomblés apresentam no que concerne à percepção do Sagrado. A ideia de santidade, tal como produzida pelo
Ocidente católico, não traduz, senão com significativas perdas ou ajustes prejudiciais, os conceitos de Orixá,
Inquice e Vodun. A escolha de “Axé” para substituir “santo” se deu motivada por aquele ser um conceito básico,
no sentido de se constituir como base para todos os processos de existência do mundo, para os Candomblés. A
expressão, é necessário reconhecer, guarda o risco de ser nagô-cêntrica, uma vez que se utiliza de um signo
proveniente do vocabulário litúrgico Ketu.
24
2 DA UTOPIA À HETEROTOPIA
sob a direção de Stálin. A descoberta de que o comunismo também produzia seus presos
políticos, seus torturados, mortos e silenciados, o que se deu para Amado mais ou menos no
momento de publicação da trilogia Os subterrâneos da liberdade, de 1954, fez com que o
edifício da utopia associada ao Leste europeu desmoronasse.
Nesta paisagem em que é confrontado, ao mesmo tempo, pelo desmonte de sua crença
utópica no comunismo soviético – mas não no socialismo como modelo de justiça social – e
pela continuidade de seu inconformismo com os múltiplos cerceamentos impostos a grandes
contingentes populacionais no Brasil, o autor redefine o seu olhar para flagrar experiências
possíveis ou potenciais de liberdade em pequenos espaços de diferença – as heterotopias –
que, simplesmente por existirem de forma resiliente à sanha homogeneizadora da sociedade
em derredor, tensionam o poder hegemônico e abrem a perspectiva de outras configurações
socioculturais.
Tendo isto em vista, parto aqui de uma premissa básica para o estudo da produção
ficcional amadiana: o fato de ela ser, do primeiro ao último romance, uma literatura
eticamente comprometida, constituída sob o signo de uma missão, no sentido estabelecido por
Nicolau Sevcenko (1983, p. 199), isto é, “[...] como registro judicioso de uma época e como
projetos sociais alternativos para a sua transformação” – aliás, Carlos Augusto Magalhães
(2011) já fez uso da categoria formulada por Sevcenko para o seu estudo acerca do processo
de modernização da cidade de Salvador representado em Suor.
O estatuto de uma missão ante a realidade é incorporado pelo jovem Jorge Amado de
final dos anos 1920, quando ele fazia parte da Academia dos Rebeldes 3, grupo de jovens
intelectuais de esquerda, cujo programa literário “[...] procurava ignorar o modernismo de
importação da Semana de Arte Moderna de São Paulo e suas ramificações e ressignificações
regionais”, de acordo com Cid Seixas (2004, p. 44). Reunidos em torno de Pinheiro Viegas,
líder e mentor intelectual do grupo, os jovens baianos
3
A Academia dos Rebeldes era composta por Pinheiro Viegas, Alves Ribeiro, Aydano do Couto Ferraz, Clóvis
Amorim, Da Costa Andrade, Édison Carneiro, João Cordeiro, Jorge Amado, Sosígenes Costa e Walter da
Silveira.
27
Ângelo Barroso Costa Soares (2006) destaca que o apego à tradição comentado por
Seixas não se coloca como adesão e reprodução de parâmetros artísticos e sociais
considerados eruditos, uma vez que provenientes da Europa. Antes, está relacionado ao
contato e preocupação com as camadas mais pobres de Salvador, postas à margem do sistema
capitalista, e com a cultura negra, perseguida pelo processo de modernização da cidade. Trata-
se de um fazer artístico que se coloca prioritariamente ao lado dos oprimidos.
Este é o campo intelectual que fundamenta o vetor ético da produção amadiana,
potencializado, a partir de 1932, pela adesão do autor ao socialismo. Neste sentido, Jorge
Amado se configura como um escritor engajado, que assume o lugar de representar o povo
como um conjunto de atores que assume a “[...] consciência de seu estar num mundo de
opressões e injustiças”, segundo Jorge de Souza Araújo (2003, p. 15).
A força desta adesão, além de ser observável no plano ficcional, pode também ser
verificada em textos críticos publicados pelo autor bem como em posicionamentos adotados
em entrevistas. São emblemáticos, nesta perspectiva, os artigos “Arte pela arte” e “Romance
moderno”, ambos publicados por Amado no periódico fluminense Diário de Notícias,
respectivamente nas datas de 24 de novembro e 22 de dezembro de 1935 – mesmo ano em
que é fundada, em março, a Aliança Nacional Libertadora, organização política de orientação
esquerdista e comprometida com a luta contra o avanço do nazi-fascismo, da qual Jorge
Amado passa a fazer parte.
Nestes artigos, então com 23 anos, Jorge Amado se posiciona em face das discussões
sobre os excessos cometidos ou pelas tendências estéticas ainda oitocentistas, marcadas pela
busca da perfeição das formas poéticas, ou pelas vanguardas modernas, cujos
experimentalismos as afastam do grande público e, portanto, de seus problemas. Como outros
intelectuais de seu tempo, principalmente aqueles irmanados a um pensamento de esquerda e
aderentes a um sentido de missão da produção artística, ele estabelece uma forte crítica à
dimensão estética como valor absoluto da arte. Isto porque a exacerbação do apuro formal em
detrimento de um empenho em ver e discutir a realidade social comportaria um
alheamento/falseamento do real e da experiência humana, o que configuraria tal procedimento
como um fator contribuinte para a não reflexão sobre os processos históricos em curso, seja
no âmbito internacional ou interno:
A observação dos recursos discursivos aplicados para estabelecer sua crítica à diretriz
“arte pela arte” aponta, logo de início, para o tempo verbal em que se diz dos artistas
vinculados à concepção puramente estética: o pretérito imperfeito. Esta escolha não pode
passar despercebida uma vez que ela estabelece, no plano linguístico, um confronto entre duas
situações, no qual a primeira sofre o impacto e a interrupção causada pelo surgimento da
segunda, deixando assim de existir. De certo modo, esta opção não deixa de suscitar um
embate entre as categorias do velho, porque fora do tempo presente, e do novo, porque nele
situado – daí o uso da expressão “velha chapa”, na qual o adjetivo, pejorativamente anteposto
ao substantivo para lhe carregar em peso, partilha do universo semântico de anacronismo.
Utilizando-se desta estratégia, o discurso amadiano, absolutamente assentado em uma
perspectiva de enfrentamento, opõe dois modelos de artista, indicando que um deles deve ser
superado, por antiquado, em prol do outro, atado de forma verdadeira e profunda às urgências
do tempo em que produz.
Nesta situação de profundo devir, o fazer artístico que se pretende a-histórico,
motivado por temas atemporais e universais ou por experimentações estéticas cada vez mais
intricadas e descompromissadas com a realidade social de seu tempo, é diretamente associado
a um traço passadista que deve ceder lugar ao artista engajado, movido por uma ideologia
política de esquerda. Este segundo modelo de escritor, aquele dotado de uma missão histórica,
é solicitado pelo próprio contexto sociopolítico, que se inscreve no que Hobsbawm (1995)
designa como “era da guerra total” e que João Luiz Lafetá (1974, p. 17) descreve como
marcado
Assim, de acordo com a perspectiva amadiana, era necessário que o artista assumisse
sua condição de sujeito político e adotasse uma postura em prol das transformações que
estavam em curso ou, ao menos, que se posicionasse acerca dos dilemas postos pelo momento
vivido.
29
Nas épocas em que a vida e a dignidade do homem correm perigo de ser violadas,
subjugadas, o autor deve alçar a voz e lutar, se não quiser ser um canalha. Para que
diabos ele tem o seu talento, sua aptidão, se não é para o benefício do homem?
Quando se tratou de me comprometer, de tomar posição, nunca hesitei nem um
momento em tomar partido. Há épocas nas quais a literatura deve ser simplesmente
literatura com objetivos, deve servir a uma finalidade.
Agora modalizado pelo duro contexto dos anos 1970 – Guerra Fria no plano
internacional; ditadura militar e AI-5, na realidade brasileira –, o discurso amadiano continua
acionando uma percepção da arte literária como missão e engajamento, caracterizando-a
como um instrumento de contestação da ordem vigente, como produto a serviço de um fim
que não se reduz a si mesma.
O mesmo posicionamento se repete em depoimento concedido ao periódico argentino
Clarín, em sua edição de 7 de setembro de 1978. Nesta ocasião, Jorge Amado é novamente
questionado a respeito do papel do escritor, se cabe a ele figurar como “testemunha
denunciante da realidade”. Jorge Amado responde: “Sim, porque um escritor é responsável
30
ante seu país e ante o mundo por essa realidade. E, como tal, [é] um fator importante para as
transformações sociais. Deve ser um professor, tanto da vida quanto da liberdade”4.
O compromisso que, na visão de Amado, o escritor precisa assumir ante a realidade é
repetido aqui, sendo suplementado pela necessidade de modificá-la. A representação do real
não deve se reduzir a uma tentativa de imprimir a realidade objetiva, mas precisa atender à
necessidade de transformá-lo. Trata-se de uma proposta representacional que acena em uma
dupla articulação temporal: para o presente, na medida em que aponta para o real a ser
modificado, e para o futuro, uma vez que movimentada pelo ideal de uma realidade outra –
perspectiva que reaparece em depoimento de Amado a O Globo, na edição de 30 de janeiro de
1982, “escrevo com o intuito de fazer algo para que a vida de nossa gente seja menos terrível
amanhã”.
Por último, uma resposta contundente dada ao Diário do povo, periódico lisboeta, de 2
de fevereiro de 1980. Seguindo uma divisão da produção literária amadiana instituída por
Wilson Martins (1962) e comum entre a crítica literária brasileira, o entrevistador questiona o
romancista acerca das duas fases de sua literatura, uma política e outra que, no seu entender,
seguia pelos “varais da vida” – conotando enredos sem peso crítico, preocupados em lidar
com as miudezas desimportantes do cotidiano, a que Jorge Amado responde:
Minha obra literária é toda ela baseada na realidade da vida do povo brasileiro
realidade cruel devida à pobreza, ao subdesenvolvimento, ao latifúndio, às
multinacionais, enfim, a uma sociedade arcaica e injusta. Nos meus livros, em todos
eles, são levantados problemas sociais que afligem o povo brasileiro. [...] O fato de
eu relatar a vida do povo torna minha literatura extremamente política por ser social
e nascer da realidade. [...] Os “varais da vida” são seus, numa repetição de um lugar
comum de críticos que com certeza não leram os livros de que falam. Se lessem,
tinham visto que, em minha obra, o livro mais revolucionário se chama “Tenda dos
milagres”, um dos mais recentes, e que o último [Farda, fardão, camisola de
dormir] tem um tema eminentemente político. A luta contra o fascismo, a ditadura, a
opressão, o militarismo. E fim de papo.
O que é posto sob suspeita aqui é o fundamento básico de toda a produção ficcional
amadiana: a sua inabalável crença na função ética, portanto crítica e transformadora, do
romancista. O tom irritadiço com o qual Jorge Amado recebe esta pergunta e a responde repõe
em cena, ainda que de viés, a sua adesão à perspectiva de uma literatura como missão, ou seja,
motivada pela finalidade de intervenção direta na realidade do mundo. O sentimento de
ofensa com o qual ele parece recobrir esta sua resposta, se bem observado, recupera e atualiza
4
“Si, porque un escritor es responsable ante su país y ante el mundo de esa realidad. Y, como tal, um factor de
importancia de las transformaciones sociales. Debe ser um maestro, tanto de al vida como de la libertad”
(Tradução minha).
31
localização instituída desde o antes dos tempos, mas como extensão, isto é, como algo móvel
e relativo.
O terceiro e último paradigma, que, à época da elaboração desta conferência de
Foucault, apresentava-se ainda como emergente, é a Contemporaneidade. Para Michel
Foucault (2001, p. 411), esta nova epistéme é assim caracterizada: “[...] época do simultâneo,
[...] época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado, do disperso”.
Nesta nova configuração, ainda segundo Foucault (2001, p. 413), “[...] o espaço se
oferece a nós sob a forma de relações de posicionamento”, isto é, os lugares já não mais se
traduzem pelas suas coordenadas geográficas ou pelos seus deslizamentos em aceleração, mas
pelo modo como interagem, posicionando-se uns em relação aos outros, e pela maneira como
negociam entre si.
A compreensão estabelecida em torno das implicações da dimensão espacial na
Contemporaneidade, pensando-a em razão das relações negociadas entre posicionamentos que
se atritam, constitui uma chave de leitura do espaço como uma composição heterogênea e
atravessada por uma rede nada harmônica de configurações socioculturais e discursivas
dissonantes:
O espaço no qual vivemos e para o qual somos atraídos para fora de nós mesmos, no
qual decorre precisamente a erosão de nossa vida, de nosso tempo, de nossa história,
esse espaço que nos corrói e nos sulca é também em si mesmo um espaço
heterogêneo. Dito de outra forma, não vivemos em uma espécie de vazio, no interior
do qual se poderiam situar os indivíduos e as coisas. Não vivemos no interior de um
vazio que se encheria de cores com diferentes reflexos, vivemos no interior de um
conjunto de relações que definem posicionamentos irredutíveis uns aos outros e
absolutamente impossíveis de ser sobrepostos (FOUCAULT, 2001, p. 414).
Uma vez definido o espaço segundo sua percepção contemporânea, Foucault se mostra
particularmente interessado em observar as tensas relações originadas do choque entre as
realidades colidentes que nele residem, posto serem organizadas a partir de posicionamentos
divergentes. A situação originada deste conflito – seja ele velado, seja ele aberto – coloca em
cena o binômio subjugação/resistência, porém mediado pela constante necessidade de
negociação entre um modelo sociocultural dominante, que procura se expandir e prevalecer, e
um posicionamento outro, situado no interior do primeiro, mas em atitude resiliente, que o
afronta e o subverte por causa da especificidade de sua organização própria, sui generis:
Mas o que me interessa são, entre todas (sic) esses posicionamentos, alguns dentre
eles que têm a curiosa propriedade de estar em relação com todos os outros
posicionamentos, mas de um tal modo que eles suspendem, neutralizam ou invertem
o conjunto de relações que se encontram por eles designadas, refletidas ou pensadas.
34
Esses espaços [...] estão ligados a todos os outros, contradizendo, no entanto, todos
os outros posicionamentos (FOUCAULT, 2001, p. 414).
[...] as heterotopias são reais; elas representam a alteridade em relação à mesmice dos
locais modernos. […] Uma vez que elas são “locais marginais da modernidade”, as
heterotopias ameaçam constantemente romper com as restrições e as certezas. As
heterotopias, então, não são subversivas porque oferecem algo novo; são subversivas
porque oferecem algo novo além dos mesmos elementos culturais encontrados nos
espaços da modernidade que contrariam (OLIVEIRA, 2013, p. 108-109)5.
Eis, então, a força inerente às heterotopias: elas não projetam uma modificação da
sociedade; elas são, com efeito, a própria organização social desde sempre já transformada
coexistindo, de forma conflituosa, no âmago da sociedade hegemônica. Dito de outro modo,
as heterotopias são diferenças corrosivas da ordem dominante instaladas desde o seu interior.
É minha suposição que a abertura do universo romanesco amadiano para a
visibilização, em primeiro plano, de espaços outros, constituídos pela diferença em relação
aos padrões reprodutores da matriz colonizadora ocidental, guarda importantes pontos de
navegação entre as nuanças que delineiam e plasmam experiências possíveis de liberdade,
anteriormente significadas como emancipação dos oprimidos do capital e veiculadas como
utopia, em um processo de atualização de um modelo de engajamento crítico resultante da
Modernidade para outro, mais adequado à Contemporaneidade.
5
“[…] heterotopias are also real; they represent otherness to the sameness of the modern sites. […] Since they
are 'marginal sites of modernity', heterotopias constantly threaten to disrupt its closures and certainties.
Heterotopias, then, are not subversive because they offer something new; they are subversive because they offer
something new out of the same cultural elements found in the sites of modernity that they counter” (Tradução
minha).
36
Há, pelo menos, dois pesquisadores que já se utilizaram da noção de heterotopia para
pensar a produção ficcional de Jorge Amado, Rita Olivieri-Godet (2004 e 2012) e Maurício de
Oliveira (2013), com os quais busco dialogar – embora operem sob prismas diferentes
daquele que motiva a leitura aqui em construção.
No que concerne ao posicionamento de Rita Olivieri-Godet, o que está em jogo é
muito mais compreender o conjunto da literatura amadiana como uma heterotopia em relação
aos paradigmas construtores das elites brasileiras, o que corresponde a uma adaptação da
noção foucaultiana, do que observar como a ficcionalização de espaços diferenciais funciona
por dentro do universo romanesco de Amado.
Rita Olivieri-Godet (2004 e 2012) procura discutir a configuração heterotópica do
pensamento amadiano. Ao investir nesta direção, ela teoriza o universo de Amado como uma
“escrita da margem”, ou seja, “[...] que faz falar deste espaço em branco da página: as
palavras salvas da condenação ao silêncio encontram seu lugar de legibilidade e podem assim
fazer face e criar fissuras na homogeneidade de um discurso elitista que se quer portador da
verdade” (OLIVIERI-GODET, 2004, p. 112).
As colocações da pesquisadora em torno do “branco da página” encontram justificação
quando encaixadas no contexto da Modernidade, em que se dá o processo de fundação das
nações latino-americanas ou, noutro momento, da permanência e reprodução de seus
discursos oficiais. Este “silêncio” detectado por Olivieri-Godet resulta da ação deletéria
levada a cabo pelas ideologias conformativas do sujeito enunciador do discurso fundacional
destes países, que “[...] teve um projeto patriarcal e elitista, que excluiu não só a mulher, mas
índios, negros, escravos, analfabetos e, em muitos casos, a quem não tinha propriedades”
(ACHUGAR, 2006b, p. 203).
A história oficial que deriva desta paisagem, de acordo com o historiador uruguaio
Hugo Achugar (1994, p. 36), “[...] não ignorava o Outro, mas o incluía em sua visão e em seu
espaço com o propósito e o resultado de desenhar uma imagem do Outro que não questionasse
a centralidade do sujeito central”6. A consequência prática desta invenção controlada e
policiada de uma alteridade envolta por corpos dóceis é o esvaziamento de sua especificidade
discursiva, portadora de outras memórias e de outros valores, em prol de uma mimetização
dos discursos dominantes, que se reproduzem ad infinitum via os aparelhos ideológicos de
Estado, responsáveis pela manutenção e administração do status quo.
6
“[...] no ignoraba al Otro pero lo incluía en su visión y en su espacio con el propósito y el resultado de diseñar
una imagem del Otro que no cuestionara la centralidad del sujeto central” (Tradução minha).
37
7
Bahia de Todos os Santos: guia das ruas e dos mistérios da cidade do Salvador teve modificações realizadas
por Amado nas décadas de 1960, 1970 e 1980, apresentando tanto supressão quanto acréscimo de conteúdo. Para
Ricardo Barbarena (2013, p. 104), no entanto, “[...] é importante observar que o livro mantém sua essência ao
longo de todos os anos, pois, se fisicamente a cidade mudou, permanece inalterada a prosa poética na elaboração
de um descritivismo sublime da ‘Roma Negra’”.
39
íntimo. Assim, a cidade apresentada ao público será a Salvador preenchida dos densos
sentidos de seu viver mais cotidiano. Jorge Amado busca fixá-la mediante uma rede de
significações que a atravessa inteira e constitui o “mistério que a escorre como um óleo” –
metáfora muitas vezes utilizada ao longo do texto. Segundo Barbarena (2013, p. 104), “[...] a
cidade de Salvador transforma-se numa territorialidade que permite aos seus passantes uma
migração em direção ao Outro: outros amores, outros estados epifânicos, outras
experimentações antilogocêntricas, outras negociações simbólicas e míticas”.
Assim, às primeiras páginas do guia, logo no convite que o autor dirige à moça,
“personagem” sem voz que é apresentada à cidade pelos olhos de seu interlocutor, Amado
situa:
O livro, sem perder de todo o sentido de ser um guia para aqueles que chegam a
Salvador, é configurado de modo a também veicular denúncias a respeito das misérias
decorrentes de um projeto de modernização violador de seu tecido histórico, além de
preocupado em mostrar suas profundas desigualdades sociais, advindas já do passado colonial
e agravadas pelo processo de transformação da antiga urbe em moderna capital. Como destaca
Carlos Augusto Magalhães (2011, p. 29), “[...] Jorge Amado se põe, tenazmente, ao progresso
insensível ao patrimônio histórico da Bahia. O escritor não se inscreve em princípios
positivistas de modernidade indiferentes à história, à tradição e à cultura urbanas”.
O compromisso ético amadiano com a retirada dos véus opacos, responsáveis por
camuflar a realidade de opressão experimentada por um imenso contingente de espoliados
pelo capital, orienta não só a seleção dos locais a serem dispostos no guia, mas também o
olhar que lhes é direcionado. Há uma procura em evidenciar os contrastes entre os bairros
nobres, os locais de pequeno-burgueses empobrecidos, dos operários e as invasões miseráveis
que começam a ter lugar na Salvador dos anos 1940. Deste modo, a cidade não é apenas
retratada em suas belezas naturais ou em seus esplendores advindos do processo
modernizador, é igualmente apresentada como cenário de dor e de humilhação, de luta e de
resistência:
40
Não há cidade como essa por mais que a procureis nos caminhos do mundo.
Nenhuma com as suas histórias, com o seu lirismo, seu pitoresco, sua funda poesia.
No meio da espantosa miséria das classes pobres, mesmo aí nasce a flor da poesia
porque a resistência do povo é além de toda imaginação. Dele, desse povo baiano,
vem o lírico mistério da cidade, mistério que completa sua beleza (AMADO, 1970,
p. 16, grifos meus).
Acerca da utilização que Jorge Amado faz do adjetivo “pitoresco”, Carlos Augusto
Magalhães (2011, p. 27) aponta que ele “[...] caracteriza as raízes populares da cultura
nordestina – regionalista – cuja força e valor são destacados, para fazer frente aos princípios e
aspectos paradigmáticos, niveladores e universais da modernidade” – o que solicita a noção
de heterotopia para a leitura deste guia sobre a Cidade da Bahia.
Uma análise atenta de Bahia de Todos os Santos, orientada pelo chaveamento teórico
da heterotopia, deve visualizar, a partir deste fragmento supracitado, dois aspectos
importantes: a construção de uma imagem para Salvador como cidade única, singular,
pitoresca, e a marcação do lugar social de onde se origina e emana tal estatuto, o povo. Destes
dois posicionamentos discursivos, derivam-se duas importantes implicações, a saber:
a. Se lido em função do recurso hiperbólico cujo objetivo é implementar uma imagem
de Salvador como espaço singular, o fragmento transcrito – que, aliás, encontra eco em outras
passagens do texto – possibilita ler esta cidade como uma heterotopia em relação aos outros
espaços citadinos do mundo. Isto é, como um espaço em que os posicionamentos não são
totalmente fixados pelos modelos orientadores da Modernidade e, portanto, dominantes no
Ocidente. Desta forma, assim como cabe uma função de rasura às heterotopias, também a
capital baiana está destinada a ter um papel semelhante no plano geral do guia: impactar a
jovem turista ciceroneada por Amado no sentido de fazê-la consciente das graves
contradições inerentes à ordem burguesa/capitalista, incitando-a a perceber as distâncias
sociais que compõem a cidade;
b. Embora a imagem principal de Salvador seja traçada pelo texto como uma
heterotopia, não é possível ler todos os seus espaços sob esta mesma categoria teórica. Os
bairros descritos como grã-finos, por exemplo, aderentes aos paradigmas modernos e
burgueses, quando observados inseridos no contexto sociocultural do Ocidente, operam como
reprodutores de sua lógica dominante, de modo que eles não se enquadram na noção
foucaultiana. Assim, a heterotopia Salvador é o todo que deriva da parte à qual se refere a
heterotopia povo – termo que circunscreve as margens socioculturais da cidade, constituintes
do maior contingente populacional citadino.
41
Neste sentido, é emblemática a situação com que Jorge Amado opta em abrir o seu
“guia de ruas e mistérios da cidade do Salvador”, ainda mais se considerado o título do
capítulo inicial, “Atmosfera da cidade”. Encerrado o lírico convite que o autor faz à turista
para que veja a cidade a partir de sua experiência, ele escreve:
heterotópicos constituídos pelo povo, posiciona a Cidade da Bahia ao lado da Etiópia, posto
que seu território e população são descendentes do continente africano e a ele estão
irmanados.
Se observado o encadeamento dos discursos, o segundo se opondo ao primeiro, ao
qual não é facultada a tréplica, e as questões laterais e simbólicas atinentes às leituras dos dois
lados do conflito – Europa e África; imperialismo e autonomia; autoritarismo e liberdade;
racismo e antirracismo; universalização epistêmica e pluri-versalidade epistêmica – não resta
dúvida sobre qual posicionamento Amado procura reverberar nas páginas de seu “Guia das
ruas e dos mistérios da cidade do Salvador”: a urbe heterotópica.
A dimensão majoritária que os espaços de trânsito, de moradia e de cultura populares e
de negros têm neste livro, isto é, a parte de diferença que constitui o todo da heterotopia
citadina, coloca em cena o lado rejeitado, excluído e silenciado da cidade pelos paradigmas
eurocêntricos que regem os processos de adequação – do tecido e dos costumes urbanos – à
Modernidade. Deste modo, por exemplo, o autor ciceroneia sua amiga viajante pelo
Pelourinho, uma vez que “[...] a zona central da cidade da Bahia é um signo mais amplo em
cujo espaço construído se mescla o caldo cultural que lhe desenha a identidade”
(MAGALHÃES, 2011, p. 29). Noutro plano, acompanha-a também pelas invasões de terreno,
pelos bairros proletários, de onde destaca a resistência das pessoas que neles habitam:
Se quereis uma qualidade destes bairros, destes casarões infames, destas moradias
desgraçadas, eu vos direi apenas: resistência. Resistência à fome e à enfermidade, ao
trabalho mal remunerado, às mortes dos filhos, ao hospital, à desgraça da vida.
Resistência. A resistência do povo é além de todos os limites. Apesar de tudo ele
sobrevive. E dá aos seus bairros imundos esses nomes de esperança que são como a
bandeira que ele levanta em suas mãos magras mas ainda assim poderosas [...]
(AMADO, 1970, p. 35).
***
Esta é mesmo uma característica importante dos romances de Amado, a forte relação
que eles detêm com o momento histórico em que são escritos ou no qual as narrativas se
processam – sempre caracterizados como tempos em que o ser humano se encontra submetido
a formas sistêmicas de opressão. Em face a este contexto, tais narrativas procuram intervir ou
conscientizar o leitor da realidade representada, não apenas a denunciando, mas também
criando meios através do quais ela possa ser revertida.
A introdução do pensamento de Agamben serve-me como operador teórico para
propor dois pontos a serem desenvolvidos: o primeiro se refere a como ser contemporâneo, na
perspectiva aqui resenhada, em relação à Contemporaneidade, na condição de um paradigma
emergente a partir da década de 1960. E, o segundo, à maneira pela qual esta chave de leitura
possibilita pontos de navegação para pensar acerca das experiências possíveis de liberdade.
As respostas para os pontos propostos acima passam, necessariamente, por discutir em
que medida a transição da utopia para a heterotopia acarreta uma passagem da Modernidade à
Contemporaneidade, de maneira que é preciso compreender as diferenças existentes entre
estes dois tempos. Neste caminho, apesar de longa, cabe a citação de Marilena Chauí (2007),
cujo painel dissociativo se apresenta bastante completo e detalhado:
sociedade civil e capaz de regulá-la por intermédio do Estado, tido tanto como
instrumento de racionalização (pelos liberais) quanto como instrumento de
dominação de classe (pela esquerda socialista e comunista), a pós-modernidade
afirma que o poderio do Estado é ilusório e ilusória a dominação de classe, pois a
realidade social é tecida por micropoderes capilares e disciplinadores da vida
privada e sociopolítica. Se a modernidade trabalhava com grandes categorias como o
indivíduo e o homem (no liberalismo) ou as classes sociais (no socialismo e no
comunismo) ou o homem e os movimentos sociais (no anarquismo), a pós-
modernidade fala nas pessoas, cuja identidade importa pouco porque seu ser é dado
pelo sistema de diferenças que cria a alteridade ou o “outro”: mulheres,
homossexuais, negros, índios, crianças, idosos, sem-teto, religiosos (CHAUÍ, 2007,
p. 489-490).
8
De acordo com os critérios adotados por Eduardo de Assis Duarte (1996), ficam fora de sua análise os
seguintes textos: Mar morto (1936), por se constituir como um ponto fora da curva do então projeto autoral, uma
vez que não irmanado diretamente à perspectiva de romances de formação proletária; Bahia de Todos os Santos
(1945), ABC de Castro Alves (1941) e O cavaleiro da esperança (1942), pois não se apresentam como ficção.
46
Partido é mesmo posicionado de acordo com a condição de herói. Em Seara vermelha, Jorge
Amado assume integralmente a perspectiva de elaboração de um romance-tese, cujo plano
argumentativo é assim descrito por Duarte (1996, p. 170):
Subterrâneos não se configura como romance do trabalhador, uma vez que não se
dedica preferencialmente a dramatizar o mundo da exploração econômica. Este é
apenas tangenciado, quase um pano de fundo para dar espaço à ação política da
vanguarda operária, na verdade o grande protagonista. O texto termina por
reduplicar, em seu esquema construtivo, o centralismo dominante no apogeu da era
stalinista. Assim, o partido substitui a massa trabalhadora como centro da
representação, e isto faz da trilogia muito mais um texto de proselitismo político do
que propriamente romance proletário, voltado para a denúncia da reificação.
proletariado, não havia ainda sido introduzida na vida de Baldo, que alimentava uma
experiência de liberdade situada meramente no plano individual, desconectada de qualquer
anseio de classe por transformação das estruturas sociais.
Jubiabá coloca em cena dois sentidos de liberdade, um baseado na ação individual e
outro fundamentado na organização coletiva, priorizando o segundo em detrimento do
primeiro. Estes dois modelos, tal como postos pela narrativa, parecem apontar para as formas
de uma liberdade aparente e de uma real liberdade. A liberdade aparente se coloca como
uma ilusão de liberdade, tal como aquela experimentada por Balduíno durante a maior parte
de seu arco existencial, porque sem qualquer reverberação na tessitura da sociedade. A
personagem julgava-se livre por não se submeter às condições difíceis e reificantes que
envolviam o trabalho formal, eximindo-se de receber ordens e movendo-se sempre de acordo
com sua própria vontade. Baldo experimenta, então, uma sensação de liberdade, uma vez que
o seu desejo guia as suas escolhas. O que não percebe, porém, é que o horizonte destas
escolhas é sempre demarcado pelos limites impostos por sua condição social precária.
Embora o segundo sentido não se enraíze na concretude do real em que vivem as
personagens de Jubiabá, situadas em meio às relações capitalistas e burguesas e por elas
atravessadas, o fato de ele existir na condição de um horizonte utópico as afeta positivamente.
A real liberdade, possível apenas por meio da transformação social, se faz presente no
romance uma vez que os meios para alcançá-la são assumidos pelo conjunto de trabalhadores,
que, dotados de consciência política e de classe, organizam-se em torno de uma greve geral,
cujo triunfo simboliza a potência transformadora inerente à ação coletiva.
É nesta direção que o romance, finalmente, reconhece Antonio Balduíno como um
veículo/arauto de uma experiência possível e válida de liberdade, construindo-o agora como
um sujeito consciente das estruturas que o oprimem, de modo a canalizar o feérico instinto de
liberdade e o aguçado senso de justiça que o guiam em prol do embate político no qual se
processa a substituição do capitalismo pelo comunismo.
Ao longo dos romances das décadas de 1940 e 1950, como já resenhado, há alterações
no modo de trabalhar com o comunismo, como a entrada em cena da tese do etapismo,
elaborada pelo Partido Comunista para a interpretação da realidade brasileira em função dos
passos a serem cumpridos para o êxito da revolução proletária-camponesa, ou o protagonismo
do Partido Comunista, que passa ao estatuto de galvanizador das lutas dos trabalhadores.
Estas variações não implicam senão no adensamento da crença em torno desta primeira
formulação de uma experiência possível de liberdade, constituída por via da utopia e oriunda
51
da crença moderna na história. Este modelo persiste até as publicações de Gabriela, cravo e
canela, em 1958, e A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, de 1959.
Em meio ao processo de escrita e publicação da trilogia Subterrâneos da liberdade,
romances nos quais se narra o período do Estado Novo a partir de um contra-discurso
organizado sob o olhar dos perseguidos e torturados, Jorge Amado começa a ser informado
acerca da estrutura totalitária e ditatorial da sociedade soviética na era stalinista, vindo a
conhecer depoimentos de seus também presos políticos e torturados, bem como de seus
exilados e sobre os seus mortos. Esta realidade, terrivelmente próxima àquela denunciada no
contexto da ditadura Vargas, contrastava de maneira ampla com o ideário utópico, que se
supunha em estágio de implementação no Leste Europeu – e se distanciava tanto mais do
retrato desta sociedade elaborado pelo próprio Jorge Amado em O mundo da paz, de 1952,
texto de culto à personalidade de Josef Stálin, posicionado como “Grande Líder”, e de elogio
ao regime soviético9. Quando, em fevereiro de 1956, Nikita Khrushchov, então no comando
da União Soviética após a morte de Stálin, revelou os crimes cometidos pelo regime, o
romancista baiano já se encontrava a par dos fatos, de modo que já havia decidido retirar-se
dos quadros políticos do Partido Comunista do Brasil, deixando de exercer a militância. Jorge
Amado relembra este momento em entrevista a Alice Raillard (1990, p. 139-141):
Ele [um escritor húngaro] disse: “Prenderam fulano”, e acrescentou: “Ele foi
terrivelmente torturado...”
Para mim, isto era totalmente impensável: num regime socialista um homem jamais
poderia ser torturado, estava fora de cogitação. Fiquei pasmo... Ele me olhou,
perguntando se eu estava me fazendo de idiota – será que eu não sabia que se usava
a tortura? que se torturava tanto quanto antes? Passei não sei quanto tempo em
estado de abatimento total, já não dormia mais, estava aniquilado. [...]
Naquele tempo eu vi o medo, era algo alucinante, como se fosse algo concreto,
tangível. Todo mundo tinha medo; medo de ser preso a qualquer momento, medo de
ser liquidado a qualquer instante.
9
É importante destacar que Jorge Amado nunca permitiu a republicação deste livro, de modo que este se
constitui como o único veto autoral aos seus textos efetivamente editados. Não se trata, porém, de uma produção
de silêncio no sentido de esconder, por errado ou vergonhoso, o conteúdo do livro. Sempre que solicitado em
entrevistas, Amado se reportava a O mundo da paz, inclusive explicando suas razões para não permitir uma
republicação. Em suma, o que motiva o impedimento à republicação de O mundo da paz é, justamente, seu teor
de publicidade positiva do regime soviético e da louvação de Stálin.
52
E, por “saber sujeitado”, entendo duas coisas. De uma parte, quero designar, em
suma, conteúdos históricos que foram sepultados, mascarados em coerências
funcionais ou em sistematizações formais. Concretamente, se preferirem, não foi
certamente uma semiologia da vida em hospício, não foi tampouco uma sociologia
da delinquência, mas sim o aparecimento de conteúdos históricos o que permitiu
fazer, tanto do hospício como da prisão, a crítica efetiva. E pura e simplesmente
porque apenas os conteúdos históricos podem permitir descobrir a clivagem dos
enfrentamentos e das lutas que as ordenações funcionais ou as organizações
sistemáticas tiveram como objetivo, justamente, mascarar. [...]
Por “saberes sujeitados” eu entendo igualmente toda uma série de saberes que
estavam desqualificados como saberes não conceituais, como saberes
insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores,
saberes abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade requeridos
(FOUCAULT, 2002, p. 11-12, grifos meus).
A explicação acima traçada por Michel Foucault o orienta a constituir uma linha de
pesquisa designada por genealogia, que se caracteriza por ser uma anticiência, na perspectiva
de se valer dos conteúdos históricos não oficiais e pelas formas de saber desqualificadas pela
Modernidade, e que visa, por isso mesmo, a estabelecer uma crítica à ciência moderna,
abrindo outras possibilidades. Noutro plano, mas em perspectiva algo semelhante, Jorge
Amado acolhe, em sua ficção, esta mesma “insurreição dos saberes sujeitados”, igualmente
utilizando-se dela para reorganizar a sua crítica em relação à configuração social hegemônica,
herdeira e atualizadora do paradigma moderno.
Ao se estabelecer o diálogo entre o diagnóstico de Michel Foucault e as informações
anteriormente transcritas de Marilena Chauí, assumindo a produção literária amadiana a partir
de Gabriela como eixo articulador desta relação, é possível observar, em visada horizontal, as
modificações operadas pelo autor em seu universo ficcional em razão da nova atmosfera. Para
Roberto DaMatta (1991, p. 120), “[...] a partir de Gabriela, Amado não mais sabe das coisas,
mas assume uma posição empírica diante delas. Deixa de ditar normas e decide captar
sentido, significado e valores por meio de seus personagens”.
Em primeiro lugar, a crença em uma verdade absoluta, cujos veículos de
ficcionalização se materializavam em um narrador engajado e em uma trama maniqueísta,
53
10
É importante situar que Mar morto, de 1936, antecipa a imbricação entre a realidade factual e a mitologia afro-
brasileira, uma vez que Lívia é constituída de maneira a espelhar Iemanjá. Na cena final, quando a personagem
reverte o destino das mulheres viúvas e toma do paquete de seu marido morto para dele arrancar o sustento, o
núcleo materialista da trama vê uma mulher modificando a história enquanto os pescadores, todos eles
pertencentes ao povo-de-Axé, mostram-se convictos de ser Iemanjá a comandar a embarcação. Como em
nenhum momento o romance se inclina para este ou para aquele lado, equilibrando-se entre os dois e suportando
ambos, aproxima-se muito mais das características do olhar amadiano motivado pelas heterotopias do que aquele
baseado na utopia, principalmente ao se levar em conta a proximidade temporal entre esta narrativa e Jubiabá,
romance no qual é operada uma desqualificação do Candomblé, ficcionalizado como “ópio do povo”.
55
Jorge Amado, por mais que tenha buscado modelos alternativos de organização
sociocultural coletiva e de comportamentos individuais no âmbito mesmo da sociedade
capitalista burguesa a ser combatida, nunca deixou de acreditar no simbolismo moderno
inerente à ideia de futuro – tempo para o qual a utopia política aponta. O horizonte utópico
não se arrefece de todo na alma amadiana.
Considerar a permanência de um traço moderno no pensamento de Amado parece
impor uma contradição ao argumento desenvolvido até aqui, que procura observar sua
produção sob a perspectiva da Contemporaneidade – ou, pelo menos, uma dissonância entre o
discurso extra-ficcional e o universo romanesco. Parece-me, contudo, que nenhuma destas
implicações é correta. Se é verdade que o romancista baiano olha para o futuro mirando um
modelo de organização social pelo qual se deve lutar, é igualmente verdade que a
configuração deste ideal já não se apresenta de forma rígida como antes, mas vai aos poucos
se constituindo a partir das heterotopias e por elas mediado. Neste caso, são as heterotopias
que fornecem os conteúdos e as lutas necessárias para o balizamento e a edificação do
socialismo. Isto porque
Heterotopias podem possuir uma intenção utópica, mas elas mesmas nunca podem
ser as utopias, uma vez que suas origens estão nos espaços que elas contrariam. À
luz desta condição, elas servem como laboratórios de um lugar ideal: lugares nos
quais a mesmidade dos espaços dominantes pode ser contestada e retrabalhada com
vistas ao progresso (OLIVEIRA, 2013, p. 109)11.
11
“Heterotopias may have a utopian intent, but they may never be utopias themselves since their origins are in
the sites that they counter. In light of this condition, they serve as laboratories of an ideal place: places in which
the sameness of the dominant sites may be contested and re-worked towards improvement” (Tradução minha).
56
Não se trata aqui de submeter a produção literária de Jorge Amado ao discurso autoral
expresso fora dela, em entrevistas a periódicos, programas de televisão e de rádio. Mas, de
entrecruzá-los no sentido de abrir chaves de leitura a serem testadas nas narrativas. E, de fato,
há ressonância da crença no futuro nos romances. É sintomático, por exemplo, o refrão a
partir do qual Pedro Archanjo Ojuobá, de Tenda dos milagres, diz de si: “Eu não quero subir,
ando para a frente, camarado” (AMADO, 1971, p. 318).
A ascensão social, representada pelo verbo subir, é preterida em função de uma
perspectiva de futuro construtora da igualdade, cuja expressão “andar para a frente”
simboliza. A oposição que se coloca para Archanjo, então, diz respeito à escolha entre uma
mobilidade social situada no plano meramente individual, cujas consequências práticas são a
manutenção e a legitimação da sociedade vigente, e o engajamento por transformações
profundas na realidade, que abarquem o coletivo em uma sociedade projetada
democraticamente.
Há ressonâncias também em romances como Farda, fardão, camisola de dormir, em
que a alegoria que sustenta a relação entre a realidade e a ficção diz do embate entre ditadura
e democracia em que o amanhã deve se balizar pela superação do primeiro em prol do
segundo, e, principalmente em O sumiço da santa, narrativa em que a perspectiva socialista
volta a ser afirmada de modo direto por intermédio dos padres ligados à Teologia da
Libertação e às Comunidades Eclesiais de Base – segmentos católicos latino-americanos que
conjugam a prática religiosa cristã com uma ação política socialista.
Os romances em tempo de heterotopia12, por assim dizer, respaldam a hipótese
referente à permanência do simbolismo do futuro de igualdade no universo amadiano. A
utopia socialista, em sua versão renovada e desvinculada da União Soviética e mesmo de
partidos políticos, se mantém no conjunto da produção literária de Amado. A diferença é que
ela já não se apresenta mais como um modelo social fixado, pré-definido, mas em processo de
construção. O princípio da igualdade, cláusula pétrea de sua ideologia, continua, mas ele, por
si só, já não basta para definir o socialismo, que deve ser suplementado pela liberdade, como
o romancista baiano afirma em muitas entrevistas. E, se ele não chega a definir em nenhum
depoimento o que, neste contexto, chama genericamente de “liberdade”, seus romances o
fazem a partir das experiências diferenciais advindas da representação de espaços não
hegemônicos.
12
Trata-se de uma adaptação do título que enfeixa o estudo de Eduardo de Assis Duarte (1996) a respeito dos
romances amadianos alicerçados na utopia, Romance em tempo de utopia.
57
É neste ponto que retorno à noção de contemporâneo, tal como conceituada por
Agamben (2009). As narrativas heterotópicas amadianas são produzidas entre os anos de 1958
e 1994, buscando sempre dialogar com as demandas postas por este arco temporal e respondê-
las de acordo com o paradigma epistêmico emergente a partir dos anos 1960. Estas respostas
não são elaboradas com o intuito de estabelecer uma conformidade com o tempo a que
interpelam, mas de tensioná-lo a partir de suas trevas – as desigualdades sociais; as ditaduras
com o seu autoritarismo oficial, sua censura e tortura; a memória seletiva, que opera a
desqualificação das culturas negras e populares; a subalternização de negros e de mulheres,
além da hipocrisia moral. Neste sentido, estes romances estão contra o tempo em que e a
partir do qual são escritos. Fomentam, assim, o lastro necessário para a permanência da
utopia, porém agora modalizada pelas heterotopias e possível apenas por seu intermédio.
58
Gabriela, cravo e canela e A morte e a morte de Quincas Berro Dágua são as duas
primeiras narrativas de Jorge Amado em que as heterotopias emergem ao primeiro plano da
cena representacional. Por consequência, são também os dois primeiros textos em que o
romancista, agora desvinculado da utopia política atrelada ao modelo soviético, procura por
novas formas de rasurar e reverter os modelos sociais dominantes. Logo, não é por mero
acaso que ambos os textos apresentam um alvo em comum: a burguesia. Mais
especificamente, os valores morais e socioculturais que organizam o mundo burguês – ou o
pequeno-burguês, em se pensando a realidade da família de Quincas, composta por modestos
comerciantes e funcionários públicos de baixo escalão.
Em uma tentativa de reestruturar, em termos contemporâneos, a ética socialista em
face do desmonte do comunismo moderno, Nelson Levy (2007) busca sistematizar o que
designa por “utopia pluralista socialista”. Isto é, um modelo teórico-filosófico em que “[...] a
aspiração socialista por liberdade só pode manifestar-se eficazmente (coerentemente) pelo
respeito universal à pluralidade de valores. E que, por seu turno, o pluralismo universal daí
decorrente deve realizar-se pela ideia socialista de igualdade de oportunidades (bioculturais)”
(LEVY, 2007, p. 231). Neste sentido, as classes sociais, na condição de grandes categorias
modernas que implicam a redução do pluralismo ao homogêneo, não podem se constituir
como dínamos de uma procura por articular os princípios da igualdade e da diferença, sem
que um pese mais que o outro. De acordo com Levy (2007, p. 265-266), então, a efetivação
59
deste modelo depende de “[...] uma alternativa realmente inovadora para além da
representação humana pelo tipo burguês ou pelo tipo operário, pois, enquanto ambos
dominarem a cena humana, o cenário da modernidade continuará montado”.
Nos romances em tempo de heterotopia, em cuja permanência de um horizonte
utópico podem-se flagrar semelhanças com a perspectiva proposta por Levy, Jorge Amado
fragmenta o conjunto dos marginalizados pelo capitalismo burguês de modo a ficcionalizá-lo
sob um prisma efetivamente plural. Sem deixar de continuar trabalhando pelas margens, no
sentido delleuziano que “escrever por”13 apresenta, o romancista já não as enfeixa de maneira
claustrofóbica como classe, emulando uma unificação que, no plano do real, não consegue
superar a instabilidade oriunda das múltiplas e fortes emanações de alteridade, de que
resultam posicionamentos distintos no interior mesmo de um coletivo constituído de fora para
dentro. Como o devir social já não cabe (somente) ao proletariado, ou a instituições
partidárias que busquem representá-lo, emergem as figuras da mulher, da prostituta, do negro
e do vagabundo, da cultura afro-baiana e das memórias populares e orais, como forças
condutoras deste processo. Como destaca Jorge de Souza Araújo (2003, p. 136), a partir de
Gabriela, “[...] a obra de Jorge Amado reorienta-se no sentido de produzir identidades de
leitura extra a leitura dominante das classes privilegiadas, novas maneiras de ler o mundo a
fim de dissolver hegemonias”.
À exceção óbvia dos vagabundos, ainda que muitas destas personagens sejam
trabalhadoras – como a própria Gabriela, que exerce a função de cozinheira –, não deriva
nunca desta condição a potência rasurante e transformadora que elas encenam, mas das
heterotopias de onde vêm e que as constituem, de dentro para fora, como seres no mundo. De
acordo com Roberto DaMatta (1997, p. 128):
Não estamos mais diante de uma batalha trivial e “política” entre “direita” e
“esquerda”, pois o que temos agora é uma disputa muito mais complicada e
certamente mais real entre os que “estão embaixo” e os que “estão em cima”, os que
vivem pelos valores oficiais do Brasil como Estado-nacional, e os que transitam
pelos caminhos do Brasil sociedade, propondo novas sínteses entre essas duas
comunidades.
A superação do tipo de indivíduo burguês, proposta por Levy, não pode ser realizada
nos mesmos moldes em que ocorre a da classe proletária no universo amadiano. Isto porquê,
ao contrário das representações heterotópicas que substituem os trabalhadores como potência
13
Gilles Deleuze (1997, p. 15) aponta como grande objetivo da literatura “[...] por em evidência no delírio essa
criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, uma possibilidade de vida. Escrever por este povo
que falta... (‘por’ significa ‘em intenção de’ e não ‘em lugar de’)”.
60
principalmente a classe alta da cidade, perante a qual procura legitimar-se frequentando seus
espaços e adotando, ao menos em face do contexto público, os hábitos e os costumes que a
caracterizam. Na segunda parte, a narrativa muda de posicionamento, olhando para a
sociedade ilheense a partir da visão de Gabriela. Esta troca entre enfoques compreende a
passagem do ponto de vista de quem percebe a burguesia como identificação, esforçando-se
para seguir o seu modelo, para aquele que, não se espelhando nos padrões vigentes e nem se
enquadrando às limitações impostas, não entende o motivo de segui-los, embora haja uma
imposição em fazê-lo na medida que Gabriela se casa com Nacib.
As movimentações do narrador intercalam as diferentes perspectivas de Nacib e de
Gabriela, de modo a imprimir não uma imagem unilateral da sociedade burguesa, mas
nuançada, ambivalente. Os atritos que advêm do choque entre os posicionamentos através dos
quais o narrador conduz a trama ressaltam, inclusive de maneira bastante intensa, a
experiência de liberdade tolhida com a qual Gabriela se encontra no meio burguês, por efeito
de seu casamento com Nacib e da consequente obrigatoriedade em assumir os valores da
sociedade que seu marido integra.
Adicione-se ainda o gênero literário que será adotado: a comédia, em seu sentido forte,
que se origina deste cenário e afeta – ou tenta afetar – o público leitor no sentido da percepção
das máscaras sociais que a moral burguesa condiciona, o que é realizado por meio de um
narrador cujo discurso, apoiado nas armas da ironia, visa produzir um riso perspicaz e crítico,
dotado de função catártica.
Gabriela, cravo e canela inicia um procedimento comum às narrativas heterotópicas
de Amado, qual seja, a desconstrução da moral burguesa como forma de, por meio da rasura
de seus valores, questionar e desfazer a sua centralidade no que concerne à organização
estrutural da sociedade. Neste romance, a estratégia adotada para atingir tal intento se
configura a partir do desmascaramento das “fraturas entre ação e discurso, o ser e o parecer”
de que fala Olivieri-Godet (2012), além de evidenciar as restrições impostas àquela
personagem oriunda das margens heterotópicas, constitutivas de (e constituídas por) valores
diferenciais.
A leitura deste romance mediada pela chave teórica da heterotopia foucaultiana deve
partir da compreensão da protagonista como personificação metonímica dos espaços outros,
lugares de diferença conformativos da heterogeneidade popular – o que é confirmado, por
exemplo, no título do quarto capítulo do romance, “O luar de Gabriela”, que é suplementado
pela informação “(talves (sic) uma criança, ou o povo, quem sabe?)” (AMADO, 1972, p.
303).
62
Ainda que o romance não reconstitua em detalhes o lugar de onde ela provém, uma
vez que o foco é sempre o conjunto dos valores morais e das regras sociais, políticas e
culturais que moldam a cidade de Ilhéus em moderna, sua rede de relações outra é apreensível
na forma como Gabriela reage à sociedade ilheense, cujo funcionamento é de todo estranho à
retirante sertaneja, mas em meio ao qual ela passa a transitar, primeiro, como cozinheira do
Bar de Nacib, servindo seus quitutes aos clientes, e, segundo, quando passa a pertencer a ela
em função de seu casamento com o sírio. Tendo permanecido até então à margem do modelo
capitalista-burguês, no qual o dinheiro é promovido à condição de um fim em si mesmo
(BORNHEIM, 2007), não sendo subjetivamente formada ou mesmo tocada por ele, a
personagem se configura como a própria heterotopia que, uma vez deslocada para o centro
deste mundo, dialoga de forma tensa com ele, evidenciando as castrações que sofre e expondo
as fraturas que presencia.
Em decorrência disso, o conjunto de normas regulatórias da sociabilidade burguesa,
cuja metonímia se encontra na instituição do casamento, é destacado em uma caracterização
negativa porque estruturada sobre um moralismo de fachada ou proibitiva da fruição em
plenitude dos prazeres relacionados à vida.
O processo de desmontagem das máscaras sociais, revelando o descompasso entre as
instâncias do ser e do parecer, além das motivações interesseiras e preconceituosas inerentes
aos posicionamentos adotados pelas elites, se intensifica a partir do momento em que a
vontade de oficialização do relacionamento entre Nacib e Gabriela, até então mantido sob o
domínio dos prazeres de cama e de mesa, se anuncia para o sírio. Apesar de um amor sincero
já tê-lo afetado, Nacib tergiversa:
“Se eu fosse você era o que eu faria”... Fácil de dizer quando se trata dos outros.
Mas como casar com Gabriela, cozinheira, mulata, sem família, sem cabaço,
encontrada no “mercado dos escravos”? Casamento era com senhorita prendada, de
família conhecida, de enxoval preparado, de boa educação, de recatada virgindade.
Que diria seu tio, sua tia tão metida a sebo, sua irmã, seu cunhado engenheiro-
agrônomo de boa família? Que diriam os Aschar, seus parentes ricos, senhores de
terra, mandando em Itabuna? Seus amigos do bar. Mundinho Falcão, Amâncio Leal,
Melk Tavares, o Doutor, o Capitão, dr. Maurício, dr. Ezequiel? Que diria a cidade?
Impossível sequer pensar nisso, um absurdo. No entanto, pensava (AMADO, 1972,
p. 256).
O narrador, utilizando-se do discurso indireto livre, faz ecoarem duas vozes além da
sua própria, esta buscando apenas descrever a ação. Assim, dá vazão às angústias de Nacib,
que contrapõe a imagem da mulher efetivamente amada àquela idealizada como compatível
ao seu status, e à reação que o sírio imagina provável naqueles que compõem o seu círculo
63
social; burgueses que, apesar de aprovarem invejosos o seu envolvimento sexual com
Gabriela, reprovariam que esta relação viesse a resultar em casamento – “impossível sequer
pensar nisso, um absurdo”.
Ao comunicar aos leitores sobre o receio com que Nacib se descobre pensando no
matrimônio, o narrador põe a nu as clivagens étnico-raciais e de classe que imperam no seio
da burguesia, além dos limites de sua moral sexual, balizada pela axiologia judaico-cristã.
Com efeito, a amada é desprovida de todas as características apreciadas pela classe dominante
como elementos necessários para se configurar como uma “boa esposa” e mãe.
No âmbito das considerações de classe, Nacib observa o fato de Gabriela ser uma
cozinheira, isto é, alguém abaixo dele na pirâmide social, e de não ostentar sobrenome
compensatório – espécie de moeda de troca de que se valem famílias falidas em negociações
por casamentos não motivados por amor. No mercado em que se comercializam afetos súbitos
e escaladas sociais, as ausências de posses e/ou de nome relevante, se apresentam como
desqualificativos do matrimônio pretendido pelo sírio, uma vez que nada agregariam ao status
social de que ele já goza entre seus concidadãos. Seria um trunfo desperdiçado, por assim
dizer.
Noutro plano, agora pensando em torno às restrições étnico-raciais presentes no
posicionamento de Nacib, o fato de Gabriela ser mulata é também um impeditivo para que a
relação entre os dois seja reconhecida perante a sociedade ilheense. Os estigmas associados à
escravidão, que recaem sobre o modo como as elites leem a caracterização fenotípica de
Gabriela, são sem dúvida atualizados e potencializados por ela ter sido encontrada no
“mercado dos escravos”, espaço onde antes os cativos eram negociados. Ademais não custa
também lembrar que o momento histórico em que a narrativa se desenrola, o ano de 1925, é
ainda marcado pela vigência no Brasil das teorias raciais vinculadas ao moderno cientificismo
europeu, de ampla penetração do território nacional e no imaginário médio da população. O
posicionamento claudicante apresentado por Nacib, além de reverberar seus próprios
preconceitos, descortina também os ideais de branquitude e ocidentalização com os quais a
burguesia, irmanada ao projeto eurocêntrico de modernização do país, se identifica.
A virgindade – ou melhor, a falta dela – se constitui como o terceiro ponto de tensão
no que concerne à possibilidade de Gabriela vir a ser esposa de Nacib. A sociedade ilheense
está assentada em um modelo que postula um comportamento feminino caracterizado pela
subserviência e pelo recato, porque organizada sobre as bases do patriarcalismo em que o
corpo da mulher pertence antes ao homem do que a ela mesma, e do catolicismo, em que a
sua virgindade é alçada à condição de Honra. Gabriela, personagem dotada de um
64
comportamento sexual livre de peias ou de dogmas, estabelece uma dissonância e uma ruptura
com a moral orientadora do padrão vigente, de maneira que não reproduz o ideal feminino
para o matrimônio.
O casamento se consuma, é verdade. Porém, não sem que medidas fossem antes
tomadas para, de um jeito ou de outro, tornar Gabriela mais palatável ao gosto da elite.
Excetuando-se a condição étnico-racial, vista como problemática por Nacib mas que restava
insolúvel, o sírio buscou regular a relação dentro dos parâmetros exigidos pela sociedade,
adequando-se à sua moral sexual e ensinando a agora noiva a se portar na condição de mulher
casada. O moralismo de fachada fica patente quando, mesmo todos sabendo e comentando do
envolvimento sexual entre os dois, é imposta a Gabriela a necessidade de dormir em casa
alheia até que o matrimônio seja, enfim, oficializado:
Desde que lhe falara em casamento, Nacib mandara Gabriela para a casa de dona
Arminda. Não ficava bem ela dormindo sob o mesmo teto que o noivo.
– Por quê? – perguntou Gabriela. – Importa não...
Importava, sim. Agora era sua noiva, seria sua esposa, todo respeito era pouco
(AMADO, 1972, p. 298-299).
Embora a situação descrita, por mais absurda que pareça, encontre respaldo no
conjunto de valores citadinos que definem o comportamento respeitoso do noivo em relação à
sua noiva, trata-se, tão somente, de uma estratégia adotada por Nacib para simular o respeito
preceituado aos olhos atentos da sociedade do que de uma firme adesão a ele. Isto porque a
escolha da casa de dona Arminda em detrimento da oferecida pelos tios do sírio, mais zelosa
do respeito necessário porque mais distante, possibilitava que à noite, quando todos já
dormissem, Gabriela saltasse o muro baixo que a separava de Nacib e continuasse a se deitar
com ele. Sob o anteparo das aparências, no secreto do por baixo dos panos – se panos
houvesse – a moral burguesa se dissolvia em noite de irrefreável prazer.
No que se refere aos aspectos concernentes à classe social, ainda que Gabriela tivesse
vindo da pobreza absoluta, ao casar-se com Nacib e agregar o sobrenome Saad ao seu Silva,
ela ascende automaticamente ao patamar ocupado pelo marido na pirâmide hierárquica da
sociedade ilheense – embora isso não implique em reconhecimento e aceitação imediatos.
Nesse sentido, precisa ser educada a comportar-se de maneira condizente com seu novo
estatuto – processo que vem a ser descrito por intermédio da metáfora do sapato:
Ela sorriu, arrancou os sapatos, começou a arrumar os pés descalços. Ele tomou-lhe
da mão, repreendeu:
– Não pode mais não, Bié...
65
– O quê?
– Andar sem sapatos. Agora você é uma senhora.
Assustou-se:
– Posso não? Andar descalça, de pé no chão?
– Pode não.
– E por quê?
– Você é uma senhora, de posses, de representação.
– Sou não, seu Nacib. Sou só Gabriela...
– Vou te educar – tomou-a nos braços, levou-a pra cama (AMADO, 1972, p. 300-
301).
esposá-la ou não: um pássaro, símbolo popular de liberdade, em uma gaiola. Nesta situação, o
narrador constrói uma relação alegórica entre, de um lado, o pássaro e Gabriela, e, de outro, a
gaiola e as normas burguesas, de modo que se estabelece um paralelo entre o sofrimento
vivenciado pela ave e também aquele a ser experimentado pela personagem, uma vez que
motivados pelas barreiras levantadas contra ambos. Assim, por via da relação alegórica
estruturada naquele presente, o narrador prenuncia os desenvolvimentos ainda futuros: Nacib
oferece a Gabriela uma gaiola com um pássaro / Nacib propõe casamento a Gabriela; o
pássaro, antes experiência concreta de liberdade, agora preso / Gabriela, antes livre, agora
condicionada aos padrões burgueses por efeito de seu casamento; o pássaro triste / Gabriela
triste:
O pássaro se batia contra as grades, há quantos dias estaria preso? Muitos não eram,
com certeza, não dera tempo de acostumar-se. Quem se acostuma com viver preso?
Gostava de bichos, tomava-lhes amizade. Gatos, cachorros, mesmo galinhas. Tivera
um papagaio na roça, sabia falar. Morrera de fome, antes do tio. Passarinho preso
em gaiola não quisera jamais. Dava-lhe pena. Só não dissera pra não ofender seu
Nacib. Pensara lhe dar um presente, companhia pra casa, sofrê cantador. Canto tão
triste, seu Nacib tão triste! Não queria ofendê-lo, tomaria cuidado. Não queria
magoá-lo, diria que o pássaro tinha fugido.
Foi pro quintal, abriu a gaiola em frente à goiabeira. O gato dormia. Voou o sofrê,
num galho pousou, para ela cantou. Que trinado mais claro e mais alegre! Gabriela
sorriu (AMADO, 1972, p. 260-261).
Também o desfecho, que rompe com o tom crepuscular e restitui a liberdade em cena,
guarda uma relação análoga com os desdobramentos vivenciados por Gabriela em seu
casamento. Presa e condicionada a um modo de vida com o qual não possui qualquer
identificação, a personagem recusa-se – de forma mais instintiva do que como ação
consciente, mas nem por isso desprovida de potência – a migrar de sua condição heterotópica
para os posicionamentos social e moral hegemônicos que lhes são impostos:
Até quando Gabriela persistiria recusando-se à vida social, a conduzir-se como uma
senhora da sociedade de Ilhéus, como sua esposa? Afinal, ele não era um pobre
diabo qualquer, era alguém o sr. Nacib A. Saad, com crédito na praça, dono do
melhor bar da cidade, com dinheiro no Banco, amigo de toda gente importante,
secretário da Associação Comercial. Agora falavam em seu nome até para a diretoria
do Clube Progresso (AMADO, 1972, p. 320).
uma conferência literária. O conflito se instaura pelos interesses opostos de Gabriela, que
deseja sinceramente reviver a alegria circense, e de Nacib que, se a bem da verdade não quer
ir à conferência, deve, por obrigação de classe, frequentá-la, sobretudo acompanhado de sua
esposa, ambos se fingindo interessados na análise de versos que nunca leram.
A imagem opositiva que se estabelece entre a conferência literária e o circo aponta
para a própria inadequação do casamento, mas não do amor, entre Nacib e Gabriela. A tensão
que ela vivencia, dividida entre a vontade, alicerçada na experiência de sua cultura, e a
obrigação solicitada pela cultura oficial; entre a identificação e a não identidade de hábitos e
desejos; entre, enfim, ser Gabriela ou ser a senhora Saad, é projetada pelo narrador nas
escolhas dos espaços popular ou oficial, ambos inseridos em um mesmo território geográfico,
a cidade de Ilhéus, mas conotativos de posicionamentos bem distintos. No circo, assim como
na vida pré-nupcial, a ausência daquelas tantas regras que caracterizam o matrimônio, como a
obrigação de conviver nos espaços burgueses, a exemplo daquele em que ocorre a conferência
literária. No espaço de diferença popular, projeta-se, então, um retorno à liberdade. Logo, não
causa estranheza a volta da metáfora dos sapatos: “No circo podia ir com os velhos sapatos
onde cabiam seus dedos esparramados. Na Intendência tinha de ser vestida de seda, de sapato
novo, apertado” (AMADO, 1972, p. 320). Liberdade em meio aos espaços populares; prisão
quando apartada deles.
Vencida pela inflexibilidade de Nacib, Gabriela, mal disfarçando o desconforto, entra
de braço dado a ele no salão da Intendência. O tempo passa, a conferência segue longa e
insuportável. Gabriela cochila, Nacib também: tudo é aparência e protocolo. Todos parecem
seguir os sábios ensinamentos que, no diálogo machadiano “Teoria do Medalhão”, Janjão
recebe de seu pai: em uma sociedade de máscaras, deve-se priorizar sobretudo o parecer. E,
nesse momento, ainda que de si para si e sem chegar a uma resposta, Gabriela pensa:
Se seu Nacib também não gostava, caía de sono, por que é que vinha? Que coisa
mais esquisita, por que é que vinha, pagava entrada, largava o bar, no circo não ia?
Entendia não... E se zangava, virava de costas, porque ela pedia pra não vir. Coisa
esquisita.
Palmas e palmas, arrastar de cadeiras, todo mundo andando para o tablado. Nacib a
levou. Apertavam a mão do homem, diziam-lhe palavras de gabação:
– Formidável! Maravilhoso! Que estro! Que talento!
Seu Nacib também:
– Como gostei...
Não tinha gostado, estava mentindo, ela sabia quando ele gostava. Dormira um
bocado, por que gabação? (AMADO, 1972, p. 324).
Mais uma vez valendo-se dos olhos de Gabriela – até mesmo porque os de Nacib
encontravam-se fechados –, o narrador desmascara as aparências e os interesses em que se
68
sustenta a sociabilidade burguesa, revelando agora uma outra faceta: a bajulação. O sírio, que
anteriormente havia ensinado à sua esposa que a conferência literária é tanto melhor na
medida em que menos se entende o que nela é dito, segue à risca o papel determinado por sua
posição, aplaudindo na hora em que se deve aplaudir; elogiando na hora em que se deve
elogiar. O seu comportamento, absolutamente incompreensível para Gabriela porque falso,
contrasta com a rede de relações organizadoras do mundo dela, constituído sobre as bases do
afeto e das relações desinteressadas.
Gabriela também observa o comportamento daqueles homens, “moços bonitos” que,
noutros espaços e desacompanhados de suas esposas, lhe diziam piadas e gracejos, faziam-se
íntimos. Quisesse, deitaria com eles porque dona de seu corpo e senhora de seu desejo, livre
que sempre fora para gozar e fazer gozar. No entanto, agora casada, experimentava as
privações que nunca conhecera. Era “mulher de Nacib”, e o triste sentido de posse do corpo
alheio que esta expressão acarreta se traduzia no cerceamento da vazão de seu desejo. O
marido, ciumento e cioso de sua honra, a reprimia, impedindo-a de “[...] rir debochada, como
antes, para cada freguês do bar encontrado por acaso” (AMADO, 1972, p. 320). Censurava
até o mais mínimo acessório, sensualidade singela, como a rosa por trás da orelha. Tudo –
corpo, desejo e comportamento social – precisava agora se encaixar em padrões que Gabriela
não entendia – e não os entendia porque em tudo dessemelhantes daqueles em que cultivou
sua subjetividade.
A potência rasurante e desconstrutora advinda do posicionamento heterotópico, antes
represada pela Senhora Saad, irrompe em Gabriela logo após o término da conferência.
Escondida, após se despedir de Nacib, ela toma o caminho do circo, onde se reencontra
consigo mesma, ri e se emociona: está novamente entre os seus. De repente, o hálito quente de
Tonico Bastos, “moço bonito a valer”, também ele no circo, também ele sentado no
galinheiro, na fila por detrás da dela. O desfecho da cena apenas sugere:
Ao fim e ao cabo, o circo, este espaço outro, vence a conferência, reduto dos valores
dominantes; Gabriela se sobrepõe à Senhora Saad, reverte as regras morais e de conduta que
69
lhe são impostas por uma classe dominante com a qual não se identifica. A heterotopia
cumpre a sua função – não muda a sociedade em derredor, mas também não capitula a ela.
O projeto de desconstrução dos valores burgueses prossegue de forma mais explícita
em A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, porém sob outra perspectiva. Se, em
Gabriela, Jorge Amado empreendeu um movimento de fora para dentro, deslocando
posicionamentos heterotópicos para o centro da burguesia de maneira a desmascarar os tipos
de relação que sustentam o seu mundo; nesta nova narrativa, o autor toma a direção oposta,
movendo o protagonista de dentro para fora do sistema, com o que encena rupturas.
O encaminhamento dado à estória de Quincas, diferentemente daquele proposto em
Gabriela, em que os espaços articuladores de diferenças só se apresentam por intermédio da
personagem, coloca em cena o universo da Ladeira do Tabuão e do Pelourinho, ambientes
povoados pelas margens sociais, além das culturas popular e negra como lugares
heterotópicos. Estes espaços vão ser aceitos por Joaquim Soares da Cunha, pequeno
funcionário público aposentado cuja identidade está alicerçada nos valores burgueses,
transformando-o no vagabundo Quincas Berro Dágua, que é, em si mesmo, a personificação
da liberdade – ou, pelo menos, de alguns traços componentes de seu amplo significado no
universo amadiano.
Neste cenário, novos atores são acionados como potências rasurantes dos valores
morais e da estrutura sociocultural adequados à experiência burguesa de mundo; figuras, aliás,
não apenas situadas às margens, mas efetiva e radicalmente marginais à lógica da ascensão
social e à moral sexual imperantes: os vagabundos e as prostitutas. A escrita amadiana destes
lugares sociais opera uma ressignificação do olhar depreciativo que lhes é comumente
dirigido pela ideologia constitutiva do modelo burguês capitalista, e que está enraizada no
senso comum destas sociedades.
A respeito da representação amadiana do vagabundo, não há nenhuma comunhão com
a perspectiva de realizá-la sob uma semântica pejorativa ou preconceituosa, desqualificando-a
porque existência contraproducente em termos de desenvolvimento material. Como a intenção
do autor é continuar combatendo o sistema hegemônico, eivado de limitações sociais e morais
com as quais não se identifica, o arquétipo do vagabundo vem a constituir-se como uma
experiência humana não tocada pelas estruturas do poder, com o que a ficção o reveste de um
forte posicionamento contra-dominante. Nesse sentido, de acordo com Carlos Eduardo
Meneghetti Scholles (2007, p. 660):
70
O vagabundo está para além das margens, situando-se, em verdade, fora das malhas
capitalistas e burguesas, uma vez que não realiza a produção de mais-valia e nem sequer se
comporta de acordo com os padrões morais hegemônicos. Desta forma, ainda de acordo com
Scholles (2007), encontra-se posicionado, ao menos no campo das representações literárias,
como uma figura apta a avaliar e julgar as relações sociais dominantes, sob uma perspectiva
mais privilegiada do que aquela em que se localiza o cidadão comum.
A construção da personagem Quincas Berro Dágua a partir do arquétipo do
vagabundo cumpre, de fato, não apenas a intenção em atualizar o engajamento autoral contra
as relações sociais hegemônicas, como também a de apontar, via positivação das redes
diferenciais de relacionamento estruturantes das heterotopias pelas quais ele transita e através
das quais é formado, para modelos alternativos de convívio social – a utopia por dentro da
heterotopia. Não causa espanto, portanto, que mais de um ano antes da primeira publicação de
A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, veiculada pela edição de junho de 1959 da
revista SENHOR, Jorge Amado tenha declarado, em entrevista publicada em 25 de janeiro de
1958 pelo Jornal do Brasil, que “[...] só os vagabundos são livres”.
É necessário prestar alguma atenção a esta fala do autor, uma vez que imersa no
contexto em que o universo ficcional de Amado migra da utopia à heterotopia, revelando,
dessa maneira, a rotação de olhar empreendida pelo romancista. Ela sugere uma realidade
posteriormente confirmada pelos desdobramentos assumidos por sua ficção a partir de 1958,
qual seja, a modificação no que se refere às experiências possíveis de liberdade.
A figura do vagabundo era visualizada como desprovida de qualquer potência
contestadora das bases sociais e, de certo modo, configurava a alienação – ainda que este
arquétipo já tivesse sido utilizado no começo do século por Charles Chaplin, na figura de
Carlitos, que também denunciava o capitalismo, ou por Mark Twain, em Huckberry Finn.
Agora, modificada a percepção do romancista em torno da figura do vagabundo, é justamente
ele que pode simbolizar a experiência de ser livre. Não sem motivo, os anos seguintes àquela
declaração são repletos de representações baseadas neste arquétipo, como em A morte e a
morte de Quincas Berro Dágua, de 1959, e em Os pastores da noite, de 1964, textos que se
apresentam totalmente voltados para esta condição humana.
71
A leitura dos vagabundos amadianos como forças heterotópicas que se constituem não
apenas como dissonâncias das estruturas hegemônicas, mas inclusive como índices de
modelos alternativos nos quais se podem fundar novas sociabilidades, dialoga também com
outra declaração do autor a periódicos, desta vez em entrevista publicada pelo paulistano
Jornal da Tarde, de 4 de maio de 1974: “ Sou apenas atento a essas formas de vida,
procurando abrir uma perspectiva, já que eu acredito no futuro”.
Também a representação amadiana das prostitutas passa por um processo de
ressignificação quando enquadrada no contexto da transição da utopia para a heterotopia.
Veiculadas como retratos da degradação humana a que eram submetidas as mulheres
violentadas e deslegitimadas pelo patriarcado e pelo capitalismo burguês, as primeiras
representações construídas pelo autor visavam acusar a condição reificada e de mero objeto a
que as prostitutas eram colocadas pela sociedade dominante, compondo, desta maneira, um
forte quadro dos graus mais baixos de humilhação a que um ser humano pode ser sujeitado.
Nas narrativas heterotópicas, não há um arrefecimento do tom de denúncia das
opressões que levam à prostituição, como pode ser observado em Tereza Batista cansada de
guerra. Este tratamento, porém, já não basta, sendo suplementado por um outro foco: o que
passa a interessar nestas mulheres não é a fixação nas condições que as levaram a viver do
sexo ou o produto que elas vendem, e que vem a ser o próprio corpo coisificado, mas a
possibilidade de representá-las com poder de decisão.
Neste plano, as prostitutas que emergem nas narrativas heterotópicas são constituídas
de sua dimensão humana, posto que representadas sob os signos das paixões, do desejo e da
afetividade – sentimentos que elas nutrem não por seus clientes, mas por seus homens ou
amigos. Ativas em uma rede de relações que dispensa o casamento como símbolo de uma
união amorosa, ainda que muitas vezes sem qualquer amor, elas são motivadas por
sentimentos que podem ser externados sem interesses, sem hipocrisias, estabelecendo o
contraponto necessário aos relacionamentos de fachada do mundo burguês.
Além das relações afetivas que vivenciam de forma verdadeira, sem falsos
moralismos, as prostitutas são também colocadas como mulheres fortes, dotadas da
capacidade de resistir à violência – seja ela simbólica ou mesmo física – e à exclusão social
que a sociedade lhes direciona – paisagem em que a personagem Tereza Batista, do romance
Tereza Batista cansada de guerra, é exemplar em função de sua “greve do balaio fechado”.
Neste episódio, a personagem utiliza das armas que tem, a recusa do próprio corpo ao ofício
de fazer gozar, para, conjuntamente com todas as outras prostitutas da região do Pelourinho,
72
impedir a remoção da zona do meretrício para um local distante e insalubre. Como destaca
Jorge de Souza Araújo (2003, p. 117):
A forma como o convívio dos habitantes do Tabuão e de suas cercanias vai contrastar
com o convívio dos familiares de Quincas passa pela arquitetura da estória montada pelo
narrador. De maneira semelhante àquele de Gabriela, cravo e canela, o narrador de A morte e
a morte de Quincas Berro Dágua também maneja a narrativa por dois ângulos, contrapondo-
os ironicamente. O primeiro é estruturado em torno da figura de Vanda, a filha ressentida com
a atitude do pai em migrar para as margens, deixando de lado a família. Ela, zelosa dos
padrões pequeno-burgueses, quer, na morte, recuperar a figura distinta do pai.
O núcleo pequeno burguês da trama agrega ainda as personagens Leonardo Barreto,
marido e funcionário público; tio Eduardo, um modesto comerciante de tecidos, e tia
Marocas, que parece ser a única a guardar ainda algum afeto pelo irmão, além da lembrança
sempre presente de Otacília, esposa de Joaquim e mãe de Vanda, falecida pouco tempo após
se perceber definitivamente abandonada pelo marido.
O segundo ponto de vista se organiza em função dos populares que, ao longo dos
últimos dez anos de vida de Quincas – o tempo exato de sua passagem pelo Tabuão –,
estiveram junto a ele, moradores das margens da Cidade Alta e Baixa. E “junto” aqui
significa não apenas dividir o mesmo espaço, mas compartilhar laços verdadeiros de amizade,
respeito e admiração mútua – “[...] não havia quem não gostasse dele na ladeira do Tabuão”
(AMADO, 1998, p. 10), faz questão de informar o narrador, tomando da palavra dita por um
dos habitantes do lugar.
Atritados pelo narrador por causa de sua intenção em contar dos eventos que se
sucederam à morte de Quincas, os dois pontos de vista são assim veiculados:
narrador também se vale de outros recursos além da contraposição de pontos de vista. Assim,
movimenta-se em torno de Vanda, ora se afastando com o intuito de imprimir sua imagem no
inusitado contexto em que se encontra, ora se aproximando intimamente, de modo a capturar
seus pensamentos e suas lembranças – com o que se revelam os baixos sentimentos de
vergonha e de vingança, além do interesse financeiro na aposentadoria do pai:
Numerosos admiradores e amigos possuía Quincas Berro Dágua mas aqueles quatro
[Curió, Negro Pastinha, cabo Martim e Pé-de-Vento] eram os inseparáveis. Durante
anos e anos haviam-se encontrado todos os dias, haviam estado juntos todas as
noites, com ou sem dinheiro, fartos de bem comer ou morrendo de fome, dividindo a
bebida, juntos na alegria e na tristeza. Curió somente agora percebia como eram
ligados entre si, a morte de Quincas parecia-lhe uma amputação, como se lhe
houvessem roubado um braço, uma perna, como se lhe tivessem arrancado um olho.
Aquele olho do coração do qual fala a mãe-de-santo Senhora, dona de toda a
sabedoria. Juntos, pensou Curió, deviam chegar ante o corpo de Quincas (AMADO,
1998, p. 51-52).
afastado da loja (tio Eduardo). De forma diferente sentiam as mulheres mais baratas dos
castelos mais pobres, prostitutas de muito trabalho e pouquíssimo lucro, que
“E tua mãe, minha querida, era um bocado mandona. Um dia ele arribou. Me disse que queria
ser livre como um passarinho. A verdade é que ele tinha graça” (AMADO, 1998, p. 26).
Se, por um lado, Vanda e Otacília são reproduções dos modelos sociais e morais
hegemônicos, o vagabundo Quincas se constitui como a potência do diferente que emerge em
cena. A força inerente às heterotopias é absoluta nele. O corpo antes docilizado pelas
instituições-prisões burguesas, recusa-as e torna-se outro. A medíocre existência do
funcionário público Joaquim Soares da Cunha apaga-se ante a afronta, dita com gosto, à
esposa e à filha – “jararacas”, ambas. Joaquim Soares da Cunha morre, Quincas nasce.
Como Quincas, já não há as limitações de horário, de corpo, de bebida e de riso e
desejo. Já não há a vida direcionada à promoção no ambiente de trabalho ou à aquisição de
uma casa própria, às contas a pagar e às roupas adequadas à ocasião. Na condição de
vagabundo, morando na Ladeira do Tabuão, a vida se dirige para a própria vida, no sentido de
ser experenciada em seus múltiplos prazeres e em suas específicas potencialidades, sempre
acompanhado de amigos e amigas, em plena convivência de solidariedade. As horas noturnas,
o trabalho à margem do sistema de produção capitalista, sem a perspectiva de acúmulo de
capital, o sexo desprovido de culpas, o riso alto e sem freios, os vínculos reais de integração
comunitária, os laços humanos verdadeiros de amor e de sua mais forte variante, a amizade,
se realizam nas margens ficcionalizadas por Amado.
Neste quadro, o riso vem a ser a imagem máxima da ruptura, é ele que divide o antes e
o depois, que separa a vida enfastiada e rotineira de Joaquim da vida alegre e dinâmica de
Quincas. É o riso, esta rasura, que separa a continuidade do mesmo da diferença. Não é à toa
que mesmo vestido tal como Joaquim, o defunto continua a ser Quincas pois o sorriso não se
apaga do seu rosto:
[Vanda] Viu o sorriso. Sorriso cínico, imoral, de quem se divertia. O sorriso não
havia mudado, contra ele nada tinham obtido os especialistas da funerária. [...]
Continuara aquele sorriso de Quincas Berro Dágua e, diante desse sorriso de mofa e
gozo, de que adiantavam sapatos novos [...], de que adiantavam roupa negra, camisa
alva, barba feita, cabelo engomado, mãos postas em oração? Porque Quincas ria
daquilo tudo, um riso que se ia ampliando, alargando, que aos poucos ressoava na
pocilga imunda (AMADO, 1998, p. 36).
amigos igualmente embriagados, deixa para trás o velório, o enterro e as roupas dignamente
burguesas de Joaquim Soares da Cunha. Ao invés de cova rasa no chão, espaço finito e
mínimo como aquele que sofrera ao lado de Otacília e de Vanda, Quincas escolhe o mar como
“túmulo” – espaço vasto, dinâmico, exatamente como a narrativa projeta o que seria a
experiência da liberdade em Quincas. O mar, este espaço que liga morte e vida a uma só e
mesma heterotopia.
82
Quanto mais
Pra quem tem Ogum, missão e paz
Quanto mais
Pra quem tem ideais e os Orixás
Neste capítulo e também no próximo, quero confrontar a tese geral que orienta esta
investigação, qual seja, a de que a obra de Jorge Amado é toda ela uma busca por experiências
possíveis de liberdade, com as considerações elencadas no parágrafo anterior. Assim,
pretendo verificar a seguinte hipótese: a representação das relações sociais e simbólicas
provenientes da realidade cultural/religiosa afro-baiana se constitui como princípio
fundamental na montagem de parte do significado que liberdade conota no todo da produção
ficcional amadiana.
Há duas formas básicas pelas quais Jorge Amado falava de si próprio quando
entrevistado a respeito de sua relação e de seu envolvimento com o Candomblé. Definia-se
igualmente como um materialista, alguém desprovido de qualquer sentimento religioso ou de
crença no transcendente, e como um Obá de Xangô no Ilê Axé Opô Afonjá, um dos mais
tradicionais Terreiros do Brasil14. Tais posicionamentos, um tanto conflitantes quando
assumidos por uma mesma pessoa, parecem apontar para uma absoluta contradição: como ser
um e outro se, por lógica, a primeira identificação, caso efetivamente verdadeira, tenderia a
excluir a segunda?
Esta é mesmo uma pergunta recorrente no conjunto de entrevistas realizadas com o
romancista entre as décadas de 1960 e 1990, quando se intensifica sua abordagem ficcional
das tradições religiosas/culturais afro-baianas, inclusive como matrizes da própria ordem de
valores das narrativas. Por outro lado, esta é também uma época em que cresce um interesse
da sociedade em geral nesta descoberta do outro, o que igualmente motiva as perguntas dos
entrevistadores – muito embora, em geral, isto se dê sob a feição de um fetiche, no qual a
alteridade afro-brasileira é o produto da moda a ser consumido, e a partir de um tratamento
que não vai além de um flerte tímido com o exótico. A invariável resposta de Amado a tal
14
“Os obás de Xangô têm funções litúrgicas, principalmente no ciclo de festas dedicado a Xangô, mas também
as exercem em todas as festas e cerimônias por sua preeminência hierárquica. Os obás, como ministros de
Xangô, orixá da casa, e rei, têm ascendência sobre os ogãs, que são ministros dos outros orixás. São os obás,
pois, uma espécie de ogãs mais graduados. [...] No Ilê Axé Opô Afonjá, os obás somente são inferiores
hierarquicamente à ialorixá e à Iyá Kekerê, a mãe pequena do Axé e eventual substituta da ialorixá na sua
ausência”, afirma Ildásio Tavares (2005, p. 56-57), ele próprio um Obá de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá. Ainda
sobre este assunto, o antropólogo Vivaldo da Costa Lima (1966, p. 15), também ele um Obá, informa: “Os Obás-
da-direita – Abiodum, Aré, Arolu, Telá, Odofim e Canfanfô –, são os que possuem direito de ‘voz e voto’ no
grupo de que são o corpo executivo. Os Obás-da-esquerda possuem uma posição claramente inferior aos da
direita no que diz respeito à estrutura do grupo e sua representação. Têm estes Obás direito apenas ‘à voz’, isto é,
possuem no grupo uma função especificamente consultiva”. Jorge Amado era Otun Obá Arolu, isto é, o Obá
suplente, desde 1959. Com o falecimento do titular do cargo, Amado é consagrado Obá Arolu em 1961.
84
questionamento evoca uma fala de Pedro Archanjo, personagem de Tenda dos milagres: “meu
materialismo não me limita”.
Ao que parece, a forma pela qual Jorge Amado sempre responde a esta mesma e
reincidente questão não se configura apenas como uma frase de efeito. Antes, ela evidencia,
em uma situação extrema, o discurso que o romancista baiano produz como uma possibilidade
de tradução de sua mais íntima personalidade: alguém avesso aos sectarismos de qualquer
espécie, atitude identificada como limitante da experiência humana.
Ainda que materialista, sem “nem mesmo possuir o sentimento de ser ateu”, como
também costumava afirmar o autor, “[...] Jorge Amado deve ser visto como alguém ‘de
dentro’, como um representante da cultura negra [...]”, destaca Gildeci de Oliveira Leite
(2012, p. 235).
O romancista requeria este posicionamento para si próprio, uma vez que era enfático
em situar seu conhecimento sobre o Candomblé: “eu o tenho desde dentro”, pontua em
entrevista a Mariela Giraldo, publicada na edição de 13 de maio de 1984 do periódico
argentino El tiempo15. Noutro momento, desta vez em depoimento concedido em 1981 a
Valdomiro Santana (2009, p. 21), Amado confirma: “Não há cerimônia de candomblé que eu
não conheça. Estive dentro das camarinhas. Há alguns anos, quando foi feita a cabeça de
minha afilhada, fui chamado para acompanhar. Conheço tudo isso como as palmas de minhas
mãos [...]”.
É necessário, sem dúvidas, desconfiar das intenções por trás da imagem que Jorge
Amado visa criar para si próprio nestes depoimentos. Talvez seja possível visualizar razões
mercadológicas no que concerne à produção deste ethos, uma vez que o Candomblé, reduzido
a um tema, vendia bem durante as décadas de 1960 e 1970, inclusive como peça turística para
o exterior – e, em se tratando de um público estrangeiro, não é difícil imaginar o fascínio que
este Outro, significado como exótico, acarreta. Atento a estes dados, o romancista atrela a si
uma imagem capaz de o legitimar na condição de um escritor apto a representar o povo-de-
Axé, posto que seu íntimo.
Se é possível discutir supostas intenções, não o é em relação ao grau de adentramento
de Jorge Amado no Candomblé. Ou seja, há verdade na posição que o escritor assume ter
junto à hierarquia do povo-de-Axé. Como afirma Gildeci de Oliveira Leite (2012, p. 236),
“[...] ser obá de Xangô [...] é ser mais que simpatizante, é pertencer ao clero nagô da Bahia”.
15
“–¿Cómo adquirió el conocimiento de estas religiones?” “Este conocimiento lo tengo no desde afuera. Yo lo
tengo desde adentro”. (Tradução minha).
85
Não quero, com isto, questionar a adesão de Amado ao materialismo, o que vem a ser
uma atitude inócua e absolutamente leviana, ao menos no que concerne ao plano das reflexões
críticas. O argumento é outro: há, sem qualquer sombra de dúvida, uma espécie de elo afetivo,
construído a partir das relações entre ele e o povo-de-Axé, mantidas desde a década de 1920.
E este elo guarda uma importante vinculação existencial, condição em que as tradições
culturais/religiosas afro-baianas tocam o íntimo do romancista. Entender as razões pelas quais
este laço se estrutura, além de como o sujeito Jorge Amado procura significá-las, é uma chave
para ler a representação do Candomblé em sua produção ficcional.
Os primeiros contatos entre Jorge Amado e a religiosidade afro-baiana, ainda
desprovidos de maior interesse por parte do futuro escritor, acontecem em sua adolescência.
Em entrevista a J. C. Thomas para a estadunidense Publishers Weekly, de 23 de junho de
1975, Amado informa: “Meu pai me levou para ver meu primeiro candomblé quando tinha 14
anos, e eu venho participando desde então”16.
É apenas por volta de 1929, quando o escritor teria entre 16 e 17 anos e já fazia parte
da Academia dos Rebeldes, que, na companhia do amigo e etnólogo Edison Carneiro,
igualmente membro do grupo literário, e também do antropólogo Artur Ramos, então
professor da Faculdade de Medicina da Bahia, que se intensifica a relação com o Candomblé.
Inicialmente, esse processo se dá via defesa do direito às festas, àquela altura proibidas pelo
governo na intenção de embranquecer e ocidentalizar a cidade de Salvador, atitude em
sintonia com o processo modernizador instaurado no Brasil.
De fato, a participação de Jorge Amado entre aqueles que compunham a Academia
dos Rebeldes é fundamental no sentido de sua penetração na vida popular afro-baiana. Isto
porquê, de acordo com Ângelo Barroso Costa Soares (2005, p. 79), “os escritores e
intelectuais que formam esse grupo valorizam a cultura africana e afro-baiana, pondo em
debate questões que dizem respeito à comunidade negra da Bahia, violentamente
discriminada, vitimizada pelo preconceito racial”.
É neste ambiente intelectual engajado, de um lado pela solidariedade com os pobres e
de outro pelos estudos de sociologia e do ideário comunista, que Jorge Amado adquire uma
consciência em relação às violências sofridas pelo povo-de-Axé e a ele se irmana na luta
contra o racismo e também contra a intolerância religiosa – duas grandes linhas de sua
produção ficcional posterior e também de sua atuação como homem público. Estas são, aliás,
questões apontadas pelo próprio romancista a Alice Raillard (1990, p. 39):
16
“My father took me to see my first candomblé when I was 14, and I have been participating ever since”
(Tradução minha).
86
Literariamente, esta época [a adolescência] foi muito importante para mim, mas
ainda mais do ponto de vista humano pelo conhecimento do povo baiano que
adquiri. Conheci sua vida, sua cultura. Para meu trabalho de escritor, esses anos
foram fundamentais. Minha intimidade com a vida do povo tomou forma nesses
anos em que vivi muito livremente. [...] Foram os anos fundamentais para tudo o que
escrevi depois. Ainda hoje as linhas mestras do meu trabalho literário repousam
sobre estes anos de minha adolescência nas ruas da cidade da Bahia.
Apesar de tudo isso ou talvez por isso mesmo, de quando em vez me invade o
coração uma saudade doida de minha velha Bahia. Velha Bahia de Thomé de Souza,
de ruas mal calçadas, cheia de ladeiras e igrejas, cheirando a tradição e a mistério,
87
Bahia de comidas apimentadas, acarajé, efó, abará, Bahia que adora Nosso Senhor
Orixalá do Bomfim, o santo, que admira Ruy Barbosa, o orador, que teme Jubiabá, o
macumbeiro, minha saudosa Bahia misteriosa dos candomblés, das macumbas, das
penas de galinha preta com azeite de dendê dos pais-de-santo, do feitiço, da coisa
feita... (AMADO, 1933a, p. 91-92).
Homem de ciência que escreve boa prosa, [Ramos] tem continuado a obra de Nina
Rodrigues sobre a raça negra no Brasil. Na Bahia lhe falta tudo exceto o material
que desde a morte de Nina até o aparecimento de Arthur Ramos andou abandonado.
Mas os cientistas baianos fazem discursos ao “dois de julho” e os literatos escrevem
versos dedicados a dengosíssimas damas de duvidosa jerarquia. Olham para Arthur
Ramos, que sabe psicanálise, vai a macumbas e não escreve períodos quilométricos,
boquiabertos, sem compreender.
88
Religiões negras. Fala um membro das religiões negras [...] (AMADO, 1936, p. 68-
69, grifos meus).
De acordo com Amado, a importância que Religiões Negras assume, no parco cenário
nacional de estudos afro-brasileiros de então, deriva tanto do rigor científico que marca o
trabalho de Edison Carneiro, visível em sua fundamentação teórica e em sua capacidade de
apontar equívocos anteriormente cometidos, quanto, tanto mais, do fato de esta ser uma
investigação conduzida “desde dentro” dos Terreiros.
O fato de o romancista baiano dar valor a esta nova metodologia de pesquisa, que
acresce por si só “força” e “verdade” ao estudo, denota uma valorização do ponto de vista
autoral integrado às tradições culturais/religiosas negras, o que não deixa de ser algo
significativo em se tratando do contexto da década de 1930, quando tais manifestações eram
ainda duramente reprimidas pelo Estado. Assim, saúda a possibilidade deste outro falar sobre
si próprio. A conjunção entre o ponto de vista autoral irmanado aos Candomblés e o método
científico redime o segundo de suas abordagens estigmatizantes e pouco conhecedoras da
verdade específica do povo-de-Axé – conhecimento que Edison Carneiro, na condição de
ogan, detém e pode traduzir em seu livro.
Ainda neste mesmo caminho, não custa nada lembrar que, se observada toda a
produção ficcional amadiana, o grande modelo de intelectual projetado é Pedro Archanjo, de
Tenda dos milagres. Etnólogo formado do lado de fora dos muros da Academia, Archanjo não
é apenas profundo conhecedor e partícipe da vida popular soteropolitana, vivendo em contato
direto com a “verdade do povo”, é também Oju oba, os olhos do Rei Xangô, na hierarquia do
Candomblé. Sendo assim, ele não apenas visualiza o seu objeto de estudo a partir de uma
posição distanciada, ele o vivencia integralmente na medida em que as tradições afro-baianas
são formadoras de sua experiência e de sua visão de mundo, assim como Edison Carneiro;
exatamente assim como iria se tornar Jorge Amado.
Ainda a respeito dos anos 1930, que viriam a ser recriados em seus mínimos detalhes
em Tenda dos milagres, Amado (1992, p. 71), em suas memórias, afirma: “[...] foi-me dado a
testemunhar a violência desmedida com que os poderes do Estado e da Igreja tentaram
aniquilar os valores culturais provenientes da África”. Em entrevista a Alice Raillard (1990, p.
37), o romancista também aborda esta mesma questão:
[...] era uma repressão das mais violentas, a toda hora a polícia invadia os terreiros
de candomblé, quebrava tudo, batia em todo mundo, prendia o pai ou a mãe-de-
santo, torturava, era uma luta terrível. A perseguição religiosa era imensa: era uma
90
forma de repressão contra toda a matriz negra de nossa cultura, contra todas as
expressões de cultura negra.
17
Nessa construção processual, há um detalhe que talvez seja significativo. Deoscóredes Maximiliano dos
Santos, Mestre Didi Axipá, Alapini, narra: “[...] no final de 1937, o escritor e etnógrafo Edison Carneiro,
perseguido pelo Estado Novo, veio refugiar-se no terreiro [Ilê Axé Opô Afonjá], sob o asilo de Mãe Aninha.
Ficou em casa de Oxum, e Aninha encarregou Senhora de velar por ele e prestar-lhe assistência. Esse fato foi,
por muitos anos, conhecido apenas de Senhora, até que o próprio Edison Carneiro deu-lhe divulgação pública”
(SANTOS, 1994, p. 14). É possível que este fato, o Candomblé assumindo um posicionamento em defesa da
liberdade de um perseguido pelo Estado Novo – aliás, regime que prendeu e exilou o próprio Jorge Amado –
tenha contribuído para a visualização amadiana de liberdades possíveis nos espaços sagrados dos Terreiros.
18
Cabe informar que muito antes de ser consagrado como Oba Arolu, Jorge Amado já detinha títulos
importantes em outros Terreiros de Candomblé, como os de Ogan de Oxossi do Ilê Ogunjá, Terreiro do
Babalorixá Procópio, que vem a ser a sua primeira honraria, e Ogan de Iansã, no Terreiro de Joãozinho da
Gomeia.
91
A atuação de Amado em prol da população negra e de suas religiões foi mesmo vasta:
publicou textos, ficcionais e não ficcionais, articulou contatos, promoveu eventos, participou
da comissão de orientação do turismo na Bahia, e, atuando como Deputado Federal
Constituinte em 1946 pelo PCB-SP, propôs e conseguiu a aprovação da Lei de Liberdade
Religiosa, vigente ainda na atual Constituição, de 1988, no inciso 6º do artigo 5º – o que vem
a ser um grande motivo de orgulho, segundo o próprio escritor em suas memórias (AMADO,
1992). A esse respeito, o romancista baiano relembra:
Eu me envolvi muito nisto [na luta em defesa dos Candomblés]; Edison [Carneiro]
também estava muito envolvido na luta pela liberdade religiosa; foi uma luta
tumultuada e muito violenta. Tive a sorte, em [19]46, quando fui deputado da
Assembleia Constituinte, de poder fazer aprovar um artigo na Constituição que
garantia a liberdade religiosa no Brasil. Pois se desde a proclamação da República,
ao menos teoricamente, havia uma separação entre a Igreja e o Estado, o catolicismo
permaneceu como religião privilegiada, uma religião semi-oficial; todas as outras
eram malvistas. Foi somente depois de [19]46, a partir desta lei que eu fiz votar, que
houve uma garantia de igualdade e liberdade religiosa completa. Até então era a
violência, os candomblés eram incendiados, os objetos de culto destruídos, todo
mundo ia para a cadeia, um horror. Acho que os títulos que me atribuíram no
candomblé, o carinho de que desfruto são devidos a estes anos em que lutei ao lado
deles contra as perseguições, isto é, contra o racismo, contra todas as manifestações
de racismo, das mais violentas (AMADO apud RAILLARD, 1990, p. 38).
Noutro contexto, aqui já na condição de Otun Oba Arolu e sob as ordens de Xangô
transmitidas por Mãe Senhora, Oxum Muiwá, Jorge Amado recepciona os convidados do IV
Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, realizado pela UFBA em agosto de
1959, em uma festa pública no Ilê Axé Opô Afonjá, onde foi servido um amalá19. Em
discurso direcionado aos professores, pesquisadores e estudantes universitários brasileiros e
estrangeiros, reunidos no barracão de festas do Terreiro do São Gonçalo, Amado foge ao
lugar-comum dos discursos laudatórios e pacíficos. Registrada por Deoscóredes Maximiliano
dos Santos (1994, p. 25-26), Mestre Didi Axipá, Alapini, a fala de Amado se apresenta, a um
só tempo, como memória dos anos de violência, como ataque e como resistência:
19
“Prato predileto do cardápio ritual do orixá Xangô, o amalá é preparado com quiabos cortados em rodelas bem
finas, temperadas com cebola, camarão seco e azeite de dendê. Adicionam-se ervas, tais como taioba, mostarda,
bredo, capeba e outros. É de preceito e tradição colocar 12 quiabos inteiros na gamela de madeira onde é servido
o amalá, guarnecendo-a com acaçá, sem folhas de bananeira. É assim recebido no peji de Xangô o seu prato
principal, condicionado ao lendário desse orixá guerreiro e justo, forte pelos seus princípios vitais de controle
dos elementos meteorológicos da natureza. [...] O amalá é servido com os rigores dos rituais dos terreiros de
candomblé. Ao som do adjá, as iabás levam a gamela em entrada solene ao peji, acompanhando os ritmos com
palmas e agitando o xerê. O dirigente da cerimônia oferece o amalá em honra a Xangô, devendo o alimento ficar
no santuário por um período de seis a 12 dias” (LODY, 2010, p. 100-101).
92
Este fragmento, situado mais ou menos no meio do discurso proferido, rompe com o
tom elogioso que vinha sendo construído nos parágrafos anteriores, destinados à saudação ao
Ilê Axé Opô Afonjá, à Mãe Senhora, aos Orixás, ao Candomblé e ao processo de mestiçagem
ocorrido no Brasil. Aproveitando-se da solenidade, o romancista baiano, identificado de todo
com a espacialidade em que se situava, dá vazão ao seu engajamento irmanado e integrado às
populações e religiões negras na medida em que fustiga os presentes com as armas da ironia,
da memória e da afirmação do ethos afro-baiano.
Este fragmento do discurso de recepção é montado em dois tempos. No primeiro,
situado no presente da escrita, Amado opera uma relação opositiva, que conota uma tensão
social ainda persistente, entre o “nós”, ou seja, o povo-de-Axé, e o “vós”, pesquisadores e
estudantes munidos de uma lógica ocidental; no segundo, trata de um passado nunca
esquecido: o orador retoma a memória da opressão em que “vossos ancestrais” escravizaram e
tentaram “impor-nos” uma outra cultura, qual seja, aquela oriunda da metrópole colonizadora
– não sem ironia descrita como um “amor impossível”.
No eixo radicado no presente, é sintomático que Amado se dirija ao interesse dos
convidados no Candomblé como “curiosidade”, que vem a ser um signo no mínimo ambíguo
uma vez que, se de fato se relaciona com toda e qualquer pesquisa verdadeiramente científica,
é muito mais associado a um interesse menor ou menos merecedor de esforço intelectual,
posto que situado no universo das trivialidades e das amenidades cotidianas.
A desconfiança que este orador engajado detém acerca dos convidados é algo
concreto. Em face da “curiosidade” da assistência, Amado espera que ela se configure como
“sã e compreensiva”. O verbo empregado, “esperar”, conjugado na primeira pessoa do plural
e apresentando transitividade direta, denota o sentido bem demarcado de “ter esperança”.
Assim, o povo-de-Axé, que fala por meio da voz autorizada de seu representante, tem
93
esperança acerca das boas intenções daqueles recepcionados no Terreiro para o amalá de
Xangô.
A rigor, se bem observado, o sentimento de esperança não se reporta a uma condição
que seja comum na realidade vivenciada cotidianamente, mas a um desejo de alteração da
ordem instituída – refere-se a algo inexistente, ausente ou incomum no dia-a-dia de quem
espera. Deste modo, é possível perceber que um determinado conteúdo não-dito opera
fortemente por sob o discurso enunciado. Amado conhece as posições acadêmicas tradicionais
da primeira metade do século XX no tocante a qualquer expressão cultural proveniente do
povo, no caso o negro, e às tradições culturais/religiosas afro-baianas, sabe dos preconceitos
que as organizam e as fundamentam, de maneira que se posiciona acusativo em face delas: se
há a esperança de que a “curiosidade” seja “sã e compreensiva” é porque, muito
habitualmente, o pensamento científico se mostrava “doentio”, no sentido de contaminado por
restrições raciais e culturais, e incapaz de uma apreensão positiva do povo-de-Axé.
Esta discussão se torna ainda mais significativa se for atentado o fato de que o público
era constituído também por pesquisadores e estudantes portugueses que, a despeito de sua
condição periférica na Europa, representam o continente por metonímia, espacialidade-berço
dos processos coloniais e neocoloniais sustentados pela universalização do cristianismo e
pelas teorias raciais – aliás, em 1959, Portugal ainda mantinha suas colônias em território
africano, de maneira que o eixo em que o discurso de Amado se reporta ao passado do Brasil
é, com efeito, presente se transposto para o contexto das populações africanas sob o jugo
português. A desconfiança, portanto, se justifica.
Já no eixo da reconstituição do passado, o orador atualiza a memória da opressão e das
violências cometidas contra o povo negro e os terreiros de Candomblé, mas também revigora
a lembrança da resistência à capitulação dos escravizados diante do Ocidente, que se expande
munido de crenças e teorias “universais” além de chicotes bem particulares.
Os dois tempos se entrecruzam naquele conflito implicitamente instaurado, “nós”
versus “vós”, uma vez que se denunciam serem os “vossos ancestrais – nossos opressores de
então”. Dada a sua desconfiança em relação ao público presente, composto por descendentes
de escravizadores e membros de instituições assentadas em concepções teóricas modernas,
eurocêntricas e racistas, o romancista baiano novamente aproxima as temporalidades de seu
discurso, desta vez para negar qualquer possibilidade de retorno à condição opressiva anterior.
Este dado funciona também como uma forma de assumir uma posição de ataque e de afronta
com o objetivo de intimidar aqueles vistos como potencialmente perigosos: “São tempos
ainda próximos mas que jamais voltarão, pois na sua volta não consentiremos”.
94
O envolvimento desse notável escritor com religiões negras da Bahia vem de sua
adolescência. Atualmente [1996], além de Ogan, ministro leigo de vários terreiros,
Jorge Amado é Obá Arolu, ministro de Xangô, do Axé Opô Afonjá. É inegável sua
atuação na defesa das religiões negras da Bahia, prestigiando-as, difundindo sua
beleza, entronizando em seu lugar devido as grandes figuras negras de nossa história
que não constam nos manuais oficiais e que somente agora começam a merecer
memórias com apoio interessado de televisões estrangeiras (TAVARES, 2009, p.
23).
20
Cumpre informar que o texto efetivamente publicado por Muniz Sodré traz um conteúdo parecido, mas não
exatamente igual àquele registrado por Cáceres Monteiro. De acordo com Sodré (2000, p. 151): “É preciso
reconhecer, entretanto, que a obra de Jorge Amado é a primeira a acolher o vigor dos orixás na sociedade
brasileira”. Em todo caso, a afirmação colhida e publicada por Monteiro não resta invalidada uma vez que
podem ter ocorrido alterações do texto original da apresentação para aquele publicado ou, noutra possibilidade,
que o fragmento atribuído a Muniz Sodré tenha sido coletado em uma entrevista e não retirado diretamente de
sua apresentação no Simpósio.
95
não fosse sufocada e que os espíritos das crenças africanas pudessem consolar os corações dos
que dependem deles”21.
Acredito que, nesta fala, talvez mesmo sem o saber ou perceber, Jorge Amado também
comenta de si próprio. Embora Oba de Xangô, ele não o faz na condição de um homem
religioso, posto que materialista convicto sem nem mesmo o sentimento de ser ateu, mas
como um romancista que depende bastante dos Orixás, Inquices, Voduns, Caboclos e
Ancestrais, dos princípios e valores Deles oriundos, como alicerces de uma espacialidade
heterotópica configurada no Terreiro de Candomblé, de onde emana um ethos calcado na
diferença em relação ao Ocidente, no qual ele consegue visualizar e reconhecer liberdades
possíveis.
Ainda nesta mesma perspectiva, é importante recuperar uma fala de Jorge Amado ao
escritor e jornalista Guido Guerra, por ocasião de uma entrevista publicada na revista Fatos e
Fotos de 8 de abril de 1974. Quando perguntado se de fato acreditava no Candomblé, o
romancista baiano responde:
Como poderia apresentar sua verdade, seu segredo, sua íntima ressonância, se dele
soubesse apenas por ter assistido algumas cerimônias, sentado entre os visitantes,
por vezes armado apenas de curiosidade vã, quando não de preconceito? Se posso
falar de tudo isto sem mentir nem degradar, é porque tudo isto é parte intrínseca de
minha vida, de meu ser, de minha própria vontade. Não se trata de crer ou não crer
e, sim, de ser ou não ser. Essas coisas eu as trago dentro de mim, não as obtive, não
as comprei em nenhum mercado de sentimentos ou de conhecimentos. São minhas
de direito e, de algumas, eu sei mesmo antes de tê-las visto. Eu as trago dentro de
mim. (Grifos meus).
A inversão é clara: a pergunta a ser feita não diz respeito à crença ou não na
transcendência, isto é, na religião como uma forma de suprir aquelas velhas angústias em
torno do mistério da morte, da ausência de um sentido para a vida ou da pequenez humana
diante o universo. O encaminhamento correto da questão, ser ou não ser, deveria girar em
torno da identificação com o povo-de-Axé e do pertencimento ao Candomblé – aqui, não
necessariamente vivenciado a partir de uma concepção religiosa, mas, dos valores que regem
seus adeptos e que possibilitam uma experiência sociocultural heterotópica. Dito de outro
modo, são os princípios e os valores estruturantes da especificidade afro-baiana de uma visão
de mundo e de uma experiência individual e coletiva da realidade, organizados a partir da
cultura do Candomblé, que se configuram como parte intrínseca da vida de Jorge Amado.
21
“Mi sono battuto, come uomo di Bahia, affinché la libertá religiosa non fosse suffocata e gli spiritti delle
credenze africane possano consolare i cuori di chi si affida a loro” (Tradução minha).
96
Posta nesta perspectiva, a resposta de Jorge Amado a Guido Guerra não poderia ser
mais clara: o romancista efetivamente é do Candomblé.
A identificação existencial cada vez mais profunda de Jorge Amado junto ao povo-de-
Axé, fazendo-o integrado e partícipe do ethos das comunidades-terreiro, favorece, ao longo da
década de 1960, que o romancista promova figurações do Candomblé a partir de uma
perspectiva de dentro. Assim, as relações sociais e simbólicas estruturantes da religiosidade
afro-brasileira emergem como uma grande força nos textos, de modo que não se restringem
apenas a mover as personagens por entre os meandros de cada trama. Elas, de fato,
configuram as narrativas em função dos valores socioculturais que estruturam a especificidade
heterotópica de sua visão de mundo.
Apesar de a literatura amadiana estar inserida em uma territorialidade profundamente
marcada pela colonização promovida pelo Ocidente, o autor tece parte de sua ficção a partir
de outras matrizes: aquelas conformativas de um continuum civilizacional africano-brasileiro,
e que se apresentam, de forma especial, como constitutivas e estruturantes do Recôncavo
Baiano22.
É mesmo nessa linha que, em entrevista concedida a Gilberto Gil para o documentário
Tempo Rei (1996), Jorge Amado afirma:
[...] eu sempre digo que são igualmente importantes a influência ibérica, influência
branca, a influência indígena e a influência negra. Mas eu sempre digo também que
o nosso umbigo é a África. Que os valores talvez mais fundamentais da nossa
cultura, aqueles que marcam profundamente nossa cultura, vieram no barco dos
escravos. E eu acho que nós devemos ser orgulhosos desses barcos de escravos –
talvez, ainda mais do que das caravelas.
22
Uso aqui um derivado do signo “civilização”, mas não em seu sentido francês, fixado ao longo dos séculos
XVIII e XIX, qual seja, o de designação de um povo “superior”, porque mais “evoluído”, em relação a uma
massa “atávica”, “primitiva” e “atrasada”, sempre identificada com as populações negro-africanas. Aqui,
“civilização” deve ser entendido como o conjunto de princípios e de valores éticos, morais, simbólicos,
culturais/religiosos, estéticos e linguísticos organizadores do ethos de um povo.
97
23
Em verdade, a primeira declaração de Amado neste sentido que pude observar data de 1958, tendo sido
veiculada na edição de 11 de agosto daquele ano pelo periódico baiano Sete Dias. Nesta ocasião, comentando
políticas entre Brasil, Angola, então ainda sob dominação colonial, e Portugal, Amado afirma: “Nosso
compromisso é com Angola e não com Portugal, por sentimentalismo. Principalmente nós baianos, tão ricos
quanto às coisas africanas, temos o umbigo na África”.
24
É importante situar que a utilização que Jorge Amado faz do signo “África” pode, sim, representar um
problema, vez que dá margem a uma imagem homogeneizada do continente. No entanto, em sua produção
ficcional, fica evidente que esta África não se constitui como uma referência mítica, ou seja, sem localização no
continente real. Pelo contrário, é da África negra das tradições culturais Banto, Yorubá e Ewe-Fon, principais
civilizações africanas aportadas na Bahia, de que Amado fala.
98
submissão e violência a que os povos negros foram sujeitos no contexto da diáspora. Assim,
as ações de proteger, renovar e expandir as especificidades das leituras de mundo e de ser
humano realizadas pelas culturas africanas guardam, de acordo com o antropólogo e
babalorixá Júlio Braga (2006, p. 45), “[...] um nítido sentimento de recuperação do elo
perdido com as comunidades de origem e, com isso, a formação de uma família capaz de
reforçar a identidade negra de quem a ela pertence pelos laços de iniciação religiosa ou por
qualquer outro elo de afinidade identitária”. Trata-se, com efeito, de não se deixar reduzir ao
mesmo do Ocidente nem de se portar como vencido diante de sua biopolítica, mas de resistir
na, pela e através da diferença constituída em torno dos egbé – a comunidade litúrgica
denominada Terreiro.
Assim, a alusão aos Ilê Axé opera como uma metonímia cujo significado é
direcionado para o patrimônio simbólico africano-brasileiro, que, de acordo com Muniz Sodré
(2002, p. 53), “[...] afirmou-se aqui como território político-mítico-religioso para a sua
transmissão e preservação”. Neste sentido, o egbé, ainda segundo Muniz Sodré (2002, p. 55),
corresponde a uma “[...] África ‘qualitativa’ que se faz presente, condensada,
reterritorializada”. Marco Aurélio Luz (2011, p. 79) detalha:
[...] a religião ocupa o lugar mais relevante no processo civilizatório e cultural negro.
Em relação ao processo civilizatório, a religião é fonte e guardiã dos valores
espirituais, de visão de mundo que proporciona e impulsiona a vontade de viver. A
religião negra é depositária dos profundos conhecimentos das leis e das forças que
regem o universo e de como bem utilizá-las, possibilitando a continuidade e a
expansão da vida. Em relação ao processo cultural, a religião é fonte e dinamizadora
de um ethos, indicadora de comportamentos, hábitos, enfim, de uma maneira negra
de ser. Ela estabelece e proporciona uma ética própria. Imprime formas de relações
sociais, estipulando maneiras próprias de organização e hierarquias, estimula a vida
comunal.
Outro aspecto apontado por Jorge Amado se refere à dimensão festiva e alegre com a
qual a existência é significada segundo uma ótica negro-africana. Na edição de 13 de janeiro
de 1980 do jornal lisboeta Correio do povo, o romancista baiano afirma:
25
“Cosa significherebbe per l’Europa una religiosità di questo tipo?”. “Innanzi tutto la tolleranza religiosa per
una più ampia comprensione del sacro” (Tradução minha).
100
Objetam-se por vezes que o povo ri em meus livros, está sempre em festa. É
verdade, ele festeja. E isso está bem, penso, porque se ele não fizesse sequer sua
festa, mesmo nas piores condições, ele não poderia ter a esperança que guarda. Ele
faz música, ele dança... mesmo no tempo da escravidão.
Dificilmente você verá um povo mais sofrido – que vive numa situação tão de
miséria, tão de opressão – do que o nosso. Existe, por exemplo, a Índia. Eu conheço
a Índia. A situação é semelhante, mas, qual é a diferença? É que o povo brasileiro
não está vencido. O povo de lá não tem nenhuma esperança; e ele está lá esmagado
dentro daquela coisa religiosa, tremenda, o fanatismo, que é tudo voltado para a
morte... e aqui o nosso povo? O nosso povo está voltado para a vida. Foi a África
que nos deu isso, foi o negro que nos deu esta força vital que ele tem. O português é
melancólico, o europeu em geral é voltado muito mais para a morte do que para a
vida. O próprio indígena é meio assim. Mas, o negro, esse não, esse era voltado para
a vida [...].
A distinção feita entre europeus, voltados para a morte, e africanos, voltados para a
vida, só pode ser entendida completamente se situada em relação aos valores fundacionais das
culturas a eles associadas. Em geral, a compreensão amadiana do Cristianismo tende a realçar
as condições opressivas decorrentes de sua montagem em cima das “falhas” humanas e de
suas consequentes e terríveis punições: o Pecado Original, a Queda, a Culpa, o Dilúvio,
Sodoma e Gomorra, a traição a Cristo e o Seu sacrifício, a imagem assustadora e sempre
presente do Apocalipse e do Julgamento Final. Assim é que o romancista baiano, em
entrevista a Enrico Regazzoni publicada na edição de Europeo, datada de 26 de maio de 1990,
considera: “A religião católica espanhola [...] era extremamente dramática, punitiva. Menos
punitiva em Portugal, mas igualmente triste, aviltante, alicerçada na ideia que a alegria fosse
quase um crime”26 – imagens presentes nas construções ficcionais de Perpétua, beata que não
tolera o comportamento sexual da irmã Tieta, e de Adalgisa, personagem central de O sumiço
da santa.
Neste cenário, a única esperança que resta está fora do âmbito da vida, vez que ela se
organiza basicamente como passagem para um plano melhor: a existência na Terra é apenas
26
“La relligione cattolica spagnola [...] era estremamente drammatica, punitiva. Meno punitiva in Portogallo, ma
comunque triste, avvilente, sorreta dall’idea che l’alegria fosse quasi un crimine” (Tradução minha).
102
alicerce para seguir em frente, contornar e vencer obstáculos? Uma vez que a dimensão da
festa é estrutural no Candomblé, uma vez que ela se irmana à condição existencial do povo-
de-Axé, “[...] ela impregna a visão de mundo de modo total, implicando um estilo de vida
marcado pelos valores festivos, como o ludismo, o dispêndio, a alegria, a sensualidade, a
transgressão, etc. que se expressam também fora do terreiro” (AMARAL, 2005, p. 110).
Retomo agora a fala do próprio Jorge Amado em que ele situa a existência de uma
crítica negativa à sua produção ficcional por conta de suas tramas apresentarem um cotidiano
permeado pela festa e pela alegria, pela música e pela dança – valores fundamentais da
dinâmica existencial do Candomblé. Em resposta, talvez caiba citar novamente Muniz Sodré
(2000, p. 151), agora falando diretamente a partir de sua condição de filho-de-santo e Obá de
Xangô:
Pode-se assim compreender que a uma certa crítica paulista desagrade por inteiro a
literatura de Jorge Amado. É possível que essa crítica não tenha entendido o que
todos nós [povo-de-Axé] entendemos sem maiores dificuldades.
O quê?
Que um deus tem de dançar, que um fiel tem de mexer.
Porque isso faz parte da vida. E é uma importante parte da vida. [...] Você não pode
esconder uma realidade da vida, porque é uma coisa normal. Sexo não tem nada de
sujo, nem de impuro, nem de degradante. Ao contrário, o sexo é o que há de mais
nobre, de mais belo. Nós nascemos disso; a humanidade existe em função disso.
Quero frisar que o sexo no meu livro é uma coisa limpa, mesmo quando é muito
forte, às vezes, e bela, e alegre.
Em face de tais críticas, é possível observar o choque entre duas projeções de mundo,
o que implica atrito entre duas ordens distintas de valores: uma erguida sobre a noção de
Pecado, em que a sexualidade, se não chega a ser uma questão negativa posto que necessária,
sofre inúmeras limitações, sendo assim circunscrita ao campo do tabu ocidental; e outra, cujo
entendimento dos corpos e da atividade sexual como natural é inclusive representado no
conjunto de narrativas simbólicas que contam das relações entre deuses e pautam a conduta
humana.
É, pois, a partir desta ordem de significação outra, derivada das matrizes culturais
africanas e protegida pelos Terreiros de Candomblé, que Jorge Amado procede à
representação da sexualidade em seu universo ficcional.
Como já explorado anteriormente, o pensamento amadiano toma da África como
“umbigo” da Bahia, isto é, como centro gerador da cultura e dos valores – o que, se
consideradas as reflexões em torno da sexualidade, projetam uma existência não tocada pelas
restrições originárias de uma moral fundada na noção de Pecado.
É interessante verificar a entrevista que Jorge Amado concede ao periódico Le Soleil,
em sua edição de 30 de outubro de 1980. Movidos pela imagem do Brasil como uma grande
nação católica, os estrangeiros Djib Diedhiou e Benjamin Pinto Bull perguntam:
Em seu trabalho há um certo erotismo. Como ele é recebido em um país tão católico
como o Brasil?
JA: Católico? Seria no sentido da alegria corresponder ao pecado. Mas para nós a
alegria não é pecado. O amor não é pecado27.
27
“Dans vos oeuvres, on relève un certains érotisme. Comment cela est-il accueilli dans un pays aussi
catholique que le Brésil?
Catholique? Ce serait dans le sens suivant lequel tout ce qui est joie correspond au pêché. Or pour nous la joie
n'est pas pêché. L'amour n'est pas pêché” (Tradução minha).
105
amor sempre era uma festa, que a cama era uma festa”, resume o romancista baiano a Marco
Chiaretti, em entrevista publicada pela Folha de São Paulo, edição de 12 de março de 1994.
Em vista da argumentação construída neste capítulo, é também possível visualizar, na
recriação ficcional da sexualidade pelo escritor, um deliberado gesto político de projeção de
uma experiência possível de liberdade. Afinal, em depoimento a Maurizio Chierici, publicado
no periódico italiano Corriere della Sera, em 23 de novembro de 1980, o romancista qualifica
os portugueses como “[...] oprimidos pelo sentido católico de pecado”28. Ainda nesta mesma
entrevista, a propósito da distinção entre a cultura/religião dos portugueses e a dos negros
africanos, Amado afirma:
Os negros não têm tabu. Amam as coisas belas e acreditam que tudo isto que não
possuem (o dinheiro, a liberdade) seja fruto de um pecado [no sentido não religioso
de erro/mal] que os outros cometem para oprimi-los. Mas as coisas de que podem
dispor sem limitações fazem parte da vida, como o ar, e é direito seu (um pobre
direito) aproveitá-las. O sol, o mar, a música, o amor [como sentimento e como
sexualidade]. Os negros não sabem o que significa “pecado”. A religião não os
explica sobre isso. A religião é apenas um modo de comunicação com Deus, ou com
um espírito, de forma alegre. Não entendem as sutilezas filosóficas da cultura
ibérica. Não sofrem de limitações, na alegria ou na dor 29.
Sem dúvida, esta declaração pode causar alguma estranheza por parecer sugerir uma
inalcançável superioridade da cultura branca ibérica em relação à possibilidade dos negros em
decodificá-la. No entanto, é necessário observar que Amado aponta aí para o não
entendimento prático do Pecado, ou seja, desta noção como organizadora da vida humana.
Assim, não me parece que o romancista baiano sugira uma incapacidade intelectiva dos povos
negros em lidar com as abstrações do pensamento filosófico ou com a cultura europeia, mas
uma efetiva impossibilidade de tradução entre culturas uma vez que as religiões tradicionais
africanas não dispõem de concepções pecaminosas – o que está longe de ser algo ruim.
Em resposta à experiência opressiva derivada da concepção cristã de Pecado, Jorge
Amado desloca o eixo de significação em torno da sexualidade para representá-la como
figuração de liberdade, o que se dá a partir de sua percepção, interação e vivência com as
tradições religiosas/culturais afro-baianas. É, pois, nesta direção que um importante traço
componente das experiências possíveis de liberdade se torna visível: a libertação dos corpos
28
“Arrivano i portoghesi: malinconici, eleganti, oppressi dal senso cattolico del peccato” (Tradução minha).
29
“I negri sono senza tabu. Amano le cose belle e ritengono che tutto ciò che non possiedono (il denaro, la
libertà) sia frutto di un peccato che altri commettono per opprimerli. Ma le cose dicui possono disporre senza
limitazioni fanno parte della vita, come l’aia ed é loro diritto (un povero diritto) approfitarne. Il sole, il mare, la
musica, l’amore. I negri non sanno cosa vuol dire “peccato”, la religione non glielo spiega. La religione è solo il
modo per comunicare con Dio, o con uno spirito, in modo gioso. Non comprende le filosofie sotttili della cultura
iberica. Non sofre di limmitazioni, nella gioia nel dolore” (Tradução minha).
106
Muniz Sodré (2005, p. 91) anota que “[...] a ordem originária aqui reposta [na
comunidade-terreiro] comporta um projeto de ordem humana alternativo à lógica vigente de
poder” – o que vem a ser, como argumento nesta tese, uma procura constante da ficção
amadiana. A partir da intersecção e na interpenetração dos cincos fatores elencados neste
capítulo reside um ponto de partida para entender a diferença positiva que Jorge Amado
visualiza e valoriza no Candomblé – o que possibilita sua recriação ficcional na condição de
um efetivo lugar outro; como heterotopia em que se vislumbra uma experiência possível de
liberdade.
30
Com isso, que fique claro, não estou afirmando não existirem adeptos do Candomblé que sejam racistas,
sexistas, homofóbicos ou classistas – afirmação que seria no mínimo inocente, para não dizer leviana ou mal
intencionada. Evidentemente os há, até mesmo porque os valores normativos associados à branquitude, ao
masculino, à heterossexualidade e à burguesia são derivados do próprio processo colonial empreendido pela
Europa, e que se constitui fundante das sociedades latino-americanas a partir de um gesto impositivo de cima
para baixo. Ou seja, de uma forma ou de outra, uma ordem de significação depreciativa dos povos negros,
indígenas e ciganos, das mulheres, das identidades LGBTTT e do universo popular, marcado pela pobreza
material, quando não pela total miserabilidade, atravessa, em graus diversos de consciência, todo e qualquer
cidadão inserido em pelo menos uma das instituições responsáveis por reproduzir a ideologia estruturante do
paradigma ocidental – e todo cidadão está em pelo menos uma, a família. Nesse contexto, escapar a tais malhas
discursivas exige um constante processo reflexivo, que envolve autocrítica e revisão de si mesmo. Em todo caso,
o que quero afirmar é apenas que, diferentemente do conjunto de narrativas mitológicas da cultura judaico-cristã,
os mitos afro-brasileiros não comportam imagens negativas, proibitivas ou punitivas daquelas identidades
consideradas como desviantes.
108
O meu lugar
é caminho de Ogum e Iansã,
lá tem samba até de manhã,
uma ginga em cada andar.
O meu lugar
é cercado de luta e suor,
esperança num mundo melhor
e cerveja pra comemorar
31
Entre 1958, quando anunciado pela primeira vez, e 1988, quando se deu por encerrado o projeto devido à
publicação de O sumiço da santa, pequenas variações no título foram realizadas: Guerra de santo, A guerra de
santo, Guerra dos santos e A guerra dos santos. As mudanças parecem caminhar no sentido da demarcação de
que o conflito não se dá por intermédio de uma única divindade, mas que envolve todo o panteão sacro, além de
progredir para uma maior especificidade, o que é garantido pelo acréscimo dos artigos definidos “a” e “os”.
Seguirei o título A guerra dos santos por ter sido o último a ser registrado.
109
verticalizada, o seu episódio inicial, publicado em agosto de 1975 por A Revista do Homem,
atual Playboy, sob o título de “Declaração de guerra em língua de sotaque”32.
O texto foi republicado na edição de número 16 de Exu, em 1990, agora na forma de
um conto, mas não o lerei sob a perspectiva de uma narrativa curta. Devo mesmo encará-lo
em sua condição primeira, qual seja, a de trechos iniciais de um romance em potencial que,
por algum motivo, foi cancelado por seu autor. Afinal, o que de fato motiva este capítulo é a
construção de uma chave de leitura para o não prosseguimento de A guerra dos santos, tal
como a narrativa fora inicialmente desenhada em entrevistas e no episódio publicado.
Assim, é minha hipótese que o descarte de A guerra dos santos obedece, sobretudo, a
uma deliberada intenção de Jorge Amado em ficcionalizar o Candomblé na condição
arquetípica de uma heterotopia absoluta e positiva – isto é, um espaço que se apresenta como
dotado de uma diferença radical em relação à sociedade capitalista/burguesa/judaico-cristã, e
que vem a ser positivado como uma alternativa ao modelo social dominante, instaurando
experiências possíveis de liberdade.
Cumpre estabelecer aqui uma advertência: é verdade que, em 1988, quando publicado
O sumiço da santa, Jorge Amado declarou à imprensa – e fez constar em uma espécie de nota
introdutória ao romance – a informação de que, enfim, teria realizado o projeto “[...]
anunciado há cerca de vinte anos, sob o título de A guerra dos santos [...]” (AMADO, 2010b,
p. 13).
Não é possível descobrir a razão pela qual ele afirmava que O sumiço da santa era a
realização de A guerra dos santos – talvez se tratasse apenas de uma estratégia para livrar-se
da reincidência de perguntas sobre o projeto. O fato é que as duas tramas são tão distantes
entre si quanto Jubiabá seria de Farda, Fardão, Camisola de dormir. Esta conclusão se deu
pela pesquisa e cotejo entre o romance efetivamente publicado e as informações esparsas,
encontradas aqui e ali em entrevistas a jornais e revistas entre os anos de 1958 e 1988, além
do já referido trecho publicado em 1975, a respeito das ideias e dos esboços, dos avanços e
dos recuos em torno de A guerra dos santos.
Em depoimento a Marcos Barrero, presente na Folha de São Paulo de 13 de agosto de
1988, Jorge Amado repete a informação de O sumiço da santa ser A guerra dos santos e
acrescenta: “Mais tarde, mudei o nome. Nesse tempo todo [1958-1988] houve várias
transformações”. Na ocasião, o romancista não elucida quais seriam estas mudanças, se
superficiais ou estruturais, nem, muitos menos, adentra em considerações acerca do peso de
32
Cf. Anexo A.
110
cada uma delas no que se refere à adequação em traçar uma equivalência entre a narrativa
publicada e o projeto anunciado décadas antes. O leitor de O sumiço da santa, se desprovido
do acesso às entrevistas ou ao episódio publicado em 1975, é levado a supor que este romance
de fato concretiza o projeto anterior.
Acontece que uma abordagem comparativa, atenta às modificações ocorridas ao longo
das décadas que levam do projeto ao efetivo romance, facilmente demonstra que nada resta da
trama ou da estrutura pensadas entre o final dos anos 1950 e o início da década de 1960
naquela narrativa realmente publicada em 1988. Não há qualquer dúvida: o projeto
identificado como A guerra dos santos, tantas vezes anunciado e discutido junto à imprensa,
foi mesmo descartado.
Mas... por quê?
Considerando a hipótese que guia esta parte da investigação, talvez seja possível
formular uma resposta: a trama pensada para A guerra dos santos destoaria tanto das demais
representações do Axé, ao menos aquelas formuladas por Amado a partir dos anos 1960, que
implicaria uma fratura na imagem do Candomblé como uma heterotopia absoluta e positiva,
pois as contradições da sociedade burguesa estariam atravessando o espaço dos Terreiros pela
dissenção dos próprios filhos-de-santo.
***
Devo admitir que meu primeiro impulso foi desconfiar da datação feita pelos
arquivistas da Fundação Casa de Jorge Amado, uma vez que deslocada dez anos antes em
relação a toda informação colhida sobre A guerra dos santos, que remonta ao final da década
de 1960. No entanto, é mesmo possível e provável que a datação esteja correta. O texto da
reportagem refere-se a três ideias de novos romances a serem desenvolvidas pelo autor àquela
época, Guerra de santo, uma trama sobre caminhoneiros – há poucas informações sobre este
projeto em outras entrevistas, de modo que creio ter sido logo abandonado – e um livro sobre
vagabundos – que poderia vir a ser Os pastores da noite, de 1964, ou mesmo A morte e a
morte de Quincas Berro Dágua, novela originalmente publicada em 1959 e republicada em
1961 no volume Os velhos marinheiros. Ademais, a reportagem ainda se preocupa em
destacar um trecho da carta enviada pelo escritor português Ferreira de Castro a Jorge Amado
em que o autor luso faz referências a Gabriela, cravo e canela – o que indicia ter sido esta a
última publicação de Amado antes da matéria do Jornal do Brasil.
Pensada nesta época, a narrativa de A guerra dos santos abriria ou viria a se localizar
em meio a uma série de romances publicados por Jorge Amado na década de 1960, textos em
que há um forte investimento autoral em tematizar e construir representações do Candomblé
de forma sistematicamente positiva, com um tratamento ficcional que perdura nos decênios
seguintes.
Já na novela A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, embora o narrador não torne
explícita em nenhum momento a adesão da personagem às formas religiosas afro-baianas, é
possível visualizar certos traços, pequenas sugestões, que indicam a formação daquela outra
família à qual alude Júlio Braga (2006). Além da migração entre classes sociais e entre
culturas, também haveria a possibilidade de Quincas ter-se deslocado de uma concepção de
família ocidental-burguesa, composta por uma célula pai/esposo – mãe/esposa – filhos para
uma outra, responsável pela recriação de um universo simbólico africano, organizada a partir
de vinculações míticas e iniciáticas: a família-de-santo.
A favor desta leitura, pesam certas nuanças presentes tanto na caracterização de
Quincas Berro Dágua como de seu grupo de amigos, além da própria construção da atmosfera
em que a trama se desdobra nos seus acontecimentos noturnos, sempre ao som de atabaques
ao fundo. Por exemplo, considerando-se a vivência religiosa de Curió e Negro Pastinha,
ambos ligados às tradições afro-baianas, é no mínimo ambíguo o fato de eles se referirem a
Quincas como “paizinho” ou “pai da gente” – expressões certamente dotadas de carinho e
reveladoras dos laços afetivos que atam aquele grupo, mas também comuns na ambiência dos
112
Terreiros como indicativas de uma efetiva ligação espiritual e hierárquica ou de respeito por
alguém reconhecido como um mais-velho.
Noutro plano, as circunstâncias em que o corpo de Quincas fora encontrado fornecem
mais um indício de que há não apenas um relacionamento casual entre a personagem e o
Candomblé, mas uma ligação mais densa e profunda:
O trato com as folhas e com as ervas, desde o conhecimento necessário para distingui-
las em função das divindades a serem cultuadas e das obrigações a serem cumpridas,
passando pelos locais onde procurá-las, as condições com certos horários para a colheita e de
como fazê-la, em meio aos cânticos rituais necessários, é cargo de profunda responsabilidade
em qualquer Terreiro de Candomblé, de modo que há sempre alguém dedicado quase que
exclusivamente ao aprendizado desta atividade – até mesmo porquê, como os mais-velhos
ensinam, kò sí ewé, kò sí Òrìṣà, isto é, “sem folhas, não há Orixá”. Nesse sentido, o fato de
Quincas ter se responsabilizado por obter as ervas necessárias para a obrigação de Xangô
insinua – e o verbo é mesmo apenas esse – seu adentramento na estrutura hierárquica de um
Ilê Axé, o que implica obrigatoriamente sua inserção em uma família-de-santo.
Naquele mesmo trecho transcrito, há um segundo detalhe que corrobora para a leitura
da inserção de Quincas em uma família-de-Axé. O verbo que o narrador utiliza para situar a
necessidade das folhas e das ervas para as festas sagradas de Xangô está conjugado na terceira
pessoa do plural, eles, com o que se abrange tanto a personagem vendedora de alimentos
típicos da culinária baiana, que é derivada da comida sacra dos Candomblés, quanto Quincas
– estavam. Deste modo, as obrigações do Axé recaem igualmente sobre ambas personagens,
relacionando-as a uma mesma vivência – Quincas pode não ter se comprometido a conseguir
o material necessário apenas por apreço à sua amiga, mas também por estar, assim como ela,
intimamente vinculado às obrigações religiosas de Xangô.
Em todo caso, estas reflexões são apenas conjeturas em torno da narrativa de A morte
e a morte de Quincas Berro Dágua. É em Os pastores da noite, publicado em 1964, que Jorge
Amado realmente descortina e aprofunda os efetivos laços religiosos como norteadores de
uma noção de família heterotópica em relação àquela configurada pela matriz ocidental-
burguesa. A ambiência humana deste romance é a mesma da novela de 1959, inclusive com a
113
33
Em relação ao ritual do Bori, o filósofo e comunicólogo Marco Aurélio Luz, Elobogi ati Ilê Asipá e Oju Oba
ati Ilê Axé Opô Afonjá, pontua: “[...] a cabeça, ori, se interliga ao destino. Destino único daquela pessoa em
razão da combinação única de suas partes constituintes que existem no orun. [...] O ori-orun que caracteriza o
destino pessoal é venerado nas cerimônias do bori, bo + ori = adorar a cabeça. Nessa ocasião, é restituído axé ao
ori-orun e assim fortalecido o fluxo do destino pessoal” (LUZ, 2000, p. 46).
114
em dia de grande solenidade, Curió adentra a moradia do casal Martim e Marialva. Alegre
com a visita, o cabo convida:
elevação. Assim, talvez não seja exagero considerar que o narrador projeta nessa cena o
simbolismo próprio da partilha do alimento quando do ajeum, promovendo o reforço dos
laços de união de que fala Lody.
A segunda narrativa, “O compadre de Ogum”, apresenta outro contexto e amplia ainda
mais a abordagem em torno das relações existentes entre o grupo solidário de amigos e a
família-de-santo. Nesta estória delineiam-se dois conflitos, sendo que o primeiro, quando
resolvido, é desencadeador do segundo, que vem a ser a trama principal. O conflito inicial
está associado ao plano dos elos de afetividade e de comunidade, organizadores do sentido de
unidade daquele grupo; o outro focaliza as tensões que se instauram no atrito entre a Igreja
Católica e o Candomblé, interpenetração à qual a instituição cristã se mostra hostil.
A trama se inicia com a notícia do batizado de Felício, filho de Massu e de Benedita, e
ganha relevo na busca de um padrinho. Entre Jesuíno Galo Doido e Curió, cabo Martim, Pé-
de-Vento e Cravo na Lapela, todos iguais em amizade, todos pertencentes à mesma família-
de-santo, um não poderia ser escolhido em detrimento dos outros para a honra de batizar a
criança. Enquanto o tempo passa e Massu não se decide, “[...] pesava sobre o grupo a ameaça
de sérias dissensões. Aparentemente aquela antiga e exaltada amizade continuava perfeita,
não sofrera o menor arranhão. Mas um observador atento poderia sentir, no correr das noites e
dos tragos, uma tensão a crescer [...]” (AMADO, 2009, p. 145).
É neste cenário que Massu tem a visão de seu Orixá “[...] a dizer-lhe para ter calma
porque ele, Ogum, seu pai, resolveria o problema do padrinho do menino. Massu deveria vir
procurá-lo” (AMADO, 2009, p. 146). Massu vai, então, aconselhar-se com Mãe Doninha,
Iyalorixá do Axé da Meia Porta, venerável pela idade e pelo posto. A resposta seria
incontestável uma vez que adviria da vontade do Orixá e do jogo de búzios posto pela grande
sacerdotisa negra.
Ainda assim, continuaria a ser de apenas um a honra de ser o padrinho de Felício.
Embora incontestável, a vontade de Ogum não eliminaria a possibilidade de os não escolhidos
guardarem mágoa ou ressentimento, ou mesmo que aquele selecionado se visse acima dos
outros em uma espécie de escala na estima do Orixá. De uma forma ou de outra, existia
mesmo a possibilidade de instalação de um desequilíbrio que enfraqueceria o sentido de
comunidade. É neste plano que Ogum decide ser, Ele próprio, o padrinho: “Sim, perfeita a
solução, admirável, deixara a todos satisfeitos. Nenhum deles fora o escolhido, ninguém se
encontrara colocado mais alto na escala da amizade de Massu” (AMADO, 2009, p. 155).
A noção de amizade, tal como Amado a constrói em Os pastores da noite, não se
refere somente às relações de profunda afinidade entre suas personagens, mas reveste-se em
116
expressão de uma identidade em comum baseada em valores culturais/religiosos, uma vez que
está assegurada também pelos laços organizadores de uma família-de-santo. Assim, ela se
constitui em um dos elementos que estruturam a própria experiência da ancestralidade
africana reconstituída na espacialidade heterotópica dos espaços de vida em comum e nos
Terreiros de Candomblé, de modo que preservá-la significa, antes de mais nada, manter
intactos os valores que alicerçam o cotidiano da comunidade como um lugar outro real. Não é
outra a razão pela qual Ogum decide intervir, declarando a Si próprio como padrinho, senão a
de salvaguardar esses vínculos familiares que organizam e sustentam o povo-de-Axé, uma vez
que, na cosmovisão negra, “[...] a ação regula-se pelo princípio do indivíduo total, ou seja, de
um indivíduo articulado consigo mesmo e com os outros em comunidade” (SODRÉ, 2002, p.
158).
Há um significativo ponto em comum entre as duas primeiras estórias, qual seja, a
preservação dos laços de amizade, em concomitância com os vínculos religiosos e simbólicos
estruturantes de uma família-de-santo. Em ambas as tramas, tais elos são testados, tensionados
e constantemente reafirmados e revigorados, o que configura a diferença positiva deste
modelo familiar de solidariedade, confiança e honestidade, assentado nos valores
provenientes das matrizes culturais africanas.
Diferença positiva em relação a quê? A resposta vem na terceira estória do romance,
intitulada “A invasão do Morro do Mata Gato ou os Amigos do povo” 34. Entrecortada por
intensa ironia, esta trama situa a formação de um bairro popular no Morro do Mata Gato,
tomado por invasão, e descortina as artimanhas e os estratagemas de utilização da imagem do
povo como formas de manutenção e acréscimo de prestígio e poder para a classe política
burguesa. Esta é a única das três narrativas que faz referência à amizade já em seu título e é
igualmente a única em que os laços de afinidade são postos em cena na forma de relações
apenas aparentes, aleivosias atravessadas por interesses sociais, financeiros e
políticos/eleitoreiros. Ou melhor: são postas em contraste as vinculações sinceras, sagradas e
heterotópicas da comunidade que habita o Morro do Mata Gato, composta pelas mesmas
personagens das outras duas tramas, e a rede de relações vivenciadas pela sociedade burguesa,
já denunciadas em Gabriela e Quincas. Tal ponto de corte entre o mundo burguês e a sua
heterotopia, o espaço popular, negro e de Axé, sugere as possibilidades de união e
solidariedade presentes entre os desbravadores do Mata Gato, mas que se tornam impossíveis
34
Abordarei esta narrativa com mais detalhes no capítulo intitulado “O passado em perspectiva ou o arco
ficcional revisionista”.
117
em outro contexto por causa dos conchavos existentes entre governadores, prefeitos,
deputados, vereadores, jornalistas, policiais e respectivas esposas.
Se observada pelo prisma das relações interpessoais, a estrutura de Os pastores da
noite parece mesmo montada para atender a dois fins. No primeiro, o narrador aponta
insistentemente para a força e para o caráter verdadeiro dos vínculos de afetividade possíveis
em um contexto heterotópico. Assim, as duas estórias iniciais dão conta de evidenciar os laços
comunais efetivos existentes entre aquelas personagens irmanadas umas às outras em uma
família-de-santo enquanto a última trama os contrasta com os falseamentos inerentes ao modo
de vida burguês, sua instituição familiar e suas relações de poder.
Por outro lado, as narrativas “Curió, o romântico ou as desilusões do amor perjuro” e
“O compadre de Ogum” podem ser lidas como espécies de narrativas-ritos pelas quais as
vinculações comunitárias são fortalecidas, consolidando ainda mais o estado de coesão
sociocultural para o grande desafio de resistir e vencer os aparelhos ideológicos e repressores
do Estado que desembocam na terceira trama, onde se dá o enfretamento pela manutenção das
terras conquistadas do Mata Gato.
Neste panorama, uma vez que o sentido de comunidade é dado pelos laços advindos
da experiência religiosa, o Candomblé se configura como matriz da sobrevivência do Mata
Gato, apesar da desproporção bélica dos moradores em face do arsenal em uso pela polícia
militar.
E já que eu adentrei na perspectiva da resistência cultural e étnica condensada em
torno das formas religiosas negras e por elas capitaneada, retorno a “O compadre de Ogum”.
Da solução encontrada para o problema do padrinho, decorre o principal ponto de tensão da
narrativa: como fazer com que um padre da Igreja Católica aceite batizar um menino que
tenha um Orixá por padrinho?
A despeito de “O compadre de Ogum” ser comumente identificada como uma
narrativa em que se encontra um elogio amadiano ao sincretismo cultural/religioso baiano, o
que esta trama efetivamente coloca em cena é, de forma precisa, o exato oposto: a histórica
problemática da intolerância religiosa e das tentativas de epistemícidio negro promovidas,
mantidas e sempre atualizadas pela ordem dominante.
É bem verdade que o veto ao povo-de-Axé não é, em momento algum da narrativa,
enunciado explicitamente pela instituição cristã, ele opera na condição de um não-dito, isto é,
como um conteúdo latente no nível de um sub-discurso, mas que é apreensível na experiência
da realidade cotidiana dos baianos – interdição esta que os adeptos do Candomblé bem
conhecem.
118
judaico-cristã, que tem o Pecado como elemento fundador da experiência ocidental em torno
da sexualidade.
Dona Flor, criada com dedicação e recato à moda pequeno-burguesa, uma vez iniciada
por Vadinho – um filho de Exu, Orixá patrono da atividade sexual – nas artes e nos prazeres
da vadiação, desabrocha para dimensões da existência feminina nunca antes por ela
vislumbradas. A descoberta do corpo e da possibilidade do prazer a despeito da incapacidade
do casal em gerar filhos – objetivo único e realização final de toda relação sexual segundo a
ótica cristã – é de tal modo significativa que Flor não admite retornar às limitantes regras de
cama da burguesia católica. Nem sequer quando, uma vez viúva de Vadinho, estas vêm a ser
retomadas em seu segundo casamento, agora com o farmacêutico Teodoro, para quem a
esposa deveria ser tratada seguindo um modelo de santidade/castidade e respeito.
Nesse contexto, feliz com a tranquilidade financeira da vida de casada35, fato
inexistente quando com Vadinho, mas absolutamente insatisfeita e decepcionada com os
rumos de seus parcos momentos sob lençóis (literalmente), Flor ultrapassa as regras: deseja e
permite o retorno de Vadinho do Orun – plano do transcendente na cosmovisão nagô – de
modo a continuar usufruindo dos prazeres que Teodoro se mostrava incapaz de lhe oferecer:
Se deixas Vadinho partir, será fácil esquecer aquelas poucas noites de descaração, a
louca cavalgada e os ais de amor. Tudo isso pode ter sido tão-somente um sonho,
um delírio de febre, uma alucinação ou apenas simples e tolos pensamentos nas
horas vazias de uma vida inteira de decência e de felicidade. Nada te será cobrado,
não terás remorsos, viverás na paz com teu esposo e com tua consciência. A
derradeira chance, dona Flor, de praticares a virtude, de permaneceres sustentáculo
da moral, dos bons costumes. Deixa Vadinho em sua paz de morto, és ou não mulher
honesta?
Para onde vais, dona Flor, e com que forças? Para que libertá-lo do não ser?
Sem amor não poderei viver, sem o seu amor. Melhor será morrer com ele. Se eu
não o tiver comigo, irei em desespero procurá-lo em quanto homem passe em minha
frente, buscarei teu gosto em cada boca, ululante, esfomeada, loba correrei as ruas.
Minha virtude é ele (AMADO, 1995, p. 393).
35
Por “tranquilidade da vida” não se entenda uma casa mantida financeiramente pelo homem, modelo instituído
por uma divisão do trabalho em que cabe ao marido o papel de provedor e à esposa o de gerenciamento do lar,
mas uma existência desprovida das consternações motivadas por Vadinho. Também neste sentido Dona Flor se
mostra contrária às regras sociais de sua classe, aproximando-se muito mais do universo das mulheres negras
que, embora pertençam a um grupo étnico-racial rebaixado socioeconomicamente como um todo, sempre
exerceram o papel de esteio da família.
121
dois em conjunto: ela quer Teodoro, ela quer Vadinho. Para o antropólogo Roberto DaMatta
(1997, p. 132), “Dona Flor é uma construção originalíssima da ambiguidade e do hibridismo
como valores sociais. Proposta original e pioneira que rompe com a tradição dualística,
aristotélica-cartesiana do Ocidente”.
A substituição do esquema ou...ou pelo aditivo e é possível na medida em que uma
outra ordem de sentido se instaura na narrativa, rompendo com a lógica de mútua exclusão de
opostos que funda a consciência ocidental. O romance equilibra a dualidade de Dona Flor sem
ter de expulsar de cena Teodoro ou Vadinho, ambos coexistindo no leito da personagem, cuja
felicidade reside no fato de ter ambos – ou de poder ser duas.
Lida sob a perspectiva do confronto entre dois conjuntos culturais e morais distintos e
absolutamente em choque no íntimo da personagem título, que só os vem a hibridizar ao fim
de seu arco existencial, o que Dona Flor encena é uma acusação de que o modelo aristotélico-
cartesiano, que prima pela unidade e pela indivisibilidade, não dá conta da experiência
humana, marcada por miríades de desejos e de identificações. Esta crítica é agenciada por
intermédio da desestabilização dos ideais de felicidade conjugal e de comportamento
formatados pela moral dominante, apontados como insuficientes e limitantes. A completude
da personagem só é possível a partir de uma visão de mundo desprovida de quaisquer culpas
pelo ato de desejar.
Com efeito, em entrevista publicada no jornal português A capital, de 6 de novembro
de 1968, Jorge Amado afirma: “No ‘D. Flor’ [...] o problema das limitações e dos
preconceitos da pequena burguesia e da luta contra essas limitações e contra esses
preconceitos é tomada do ponto de vista do problema do amor, problema que me parece
fundamental”.
Não é à toa que o narrador se utiliza do discurso indireto livre para fazer emergir a voz
da pequena-burguesia em cena, incitando Flor ao retorno às “[...] leis morais de tua rua, de tua
gente, de tua classe” (AMADO, 1995, p. 393) apenas para, uma vez consolidada a decisão da
personagem em permanecer ao lado de Vadinho (e de Teodoro), registrar:
Deu o revertério na batalha. Exu sem forças, cercado pelos sete cantos, sem
caminhos. O egun em seu caixão barato, em sua cova rasa, adeus, até jamais.
Foi quando uma figura atravessou os ares, e, rompendo os caminhos mais fechados,
venceu a distância e a hipocrisia – um pensamento livre de qualquer peia: dona
Flor, nuinha em pelo. Seu ai de amor cobriu o grito de morte de Yansã. Na hora
derradeira quando Exu já rolava pelo monte e um poeta compunha o epitáfio de
Vadinho.
Uma fogueira se acendeu na terra e o povo queimou o tempo da mentira (AMADO,
1995, p. 395, grifos meus).
122
36
O Babalorixá Procópio Xavier de Souza bem como o Ilê Ogunjá são referências reais retiradas da história
negra de Salvador – inclusive, são inúmeras as citações que Amado, em seus discursos não ficcionais, faz ao pai-
de-santo, sempre destacando sua força e seu enfrentamento à violência instituída contra o povo-de-Axé. No
entanto, Pai Procópio não era de Oxóssi, mas de Ogum. Com certeza Jorge Amado tinha conhecimento disso,
uma vez que tinha cargo no Ilê Ogunjá, Ogan de Oxóssi. Acredito que a troca do Orixá na construção da
personagem em Tenda dos milagres se deva pelo simbolismo atrelado à condição de Obá Alaketu de Oxóssi.
37
Sobre o conceito de nação de candomblé, Cf: LIMA, Vivaldo da Costa. O conceito de “nação” nos
candomblés da Bahia. Afro-Ásia, Salvador, n. 12, p. 65-90. 1976. Sobre Oxóssi, Barretti Filho (2010, p. 101)
afirma que “[...] Òsóòsì continua protegendo e propiciando ao homem seu sustento e lhe dando morada e, ainda,
se possível, fartura com qualidade de vida e prosperidade”.
123
que resistem e lutam pela sobrevivência das tradições africanas reterritorializadas nos
Candomblés baianos:
[Procópio] Enfrentou Pedrito e foi por ele perseguido e castigado sem tréguas.
Constantemente preso, tinha nas costas as marcas de chicote de couro cru, lanhos de
sangue. Nada o abateu, não se deixou derrotar. [...]
Procópio não silenciou os atabaques, não fugiu de casa para o mato ou para o Rio de
Janeiro. A roda das feitas diminuiu, de enorme ficou pequena, ogans se recolheram à
espera de melhores tempos. Procópio prosseguiu:
– Meu santo ninguém vai me impedir de festejar.
[...]
– Ouça, cabra ruim: santo de igreja faz milagre, por isso é santo. Esses santos de
vocês só fazem barulho, são uns santos de merda. No dia em que eu ver um milagre
desses putos, nesse dia me demito do cargo – riu, tocou com a ponta da bengala o
peito rasgado do negro: – Daqui a poucos dias vai fazer seis anos que baixo o pau
em candomblé, já acabei com quase todos, vou acabar com o resto de uma vez.
Nesse tempo todo nunca vi um milagre de orixá. Muito falatório e só.
– Meu santo ninguém vai me impedir de festejar (AMADO, 1971, p. 395-396).
– Vou acabar com você agora mesmo, santo de merda! – Pedrito Gordo apontou
Procópio a Zé Alma Grande: – Aquele. Vá buscá-lo, vivo ou morto.
124
38
Lühning (1996, p. 197) em sua pesquisa sobre Pedro Gordilho escreve: “Jorge Amado, que aborda o ‘reinado’
de Pedrito no seu romance Tenda dos Milagres, descreve uma cena (pp. 308-111) em que um dos acompanhantes
de Pedrito, na ocasião da batida, teria ‘dado santo’ na casa de Procópio, e até atentado contra o próprio delegado,
o que teria levado ao já mencionado pedido de demissão. Outras informações pessoais já contam que o próprio
delegado teria ‘dado santo’, ou na casa de Procópio ou de uma mãe-de-santo de nome ignorado”.
125
Este conjunto de seis vetores estruturantes, obtidos a partir da leitura dos romances da
década de 1960, constituem os eixos da representação do Candomblé realizada, sem desvios,
até o Sumiço da santa, narrativa em que as tradições culturais/religiosas afro-baianas são
tematizadas pela última vez, sendo desenvolvida ao máximo a sua representação como uma
heterotopia absoluta e positiva:
Quem for de boa noite, poderá ver de golpe e pela rama a beleza e a liberdade. Se
for da bênção, vai enxergar muito mais longe, vai vadiar com os orixás. [...].
O viajante, seja rico ou pobre, negro ou branco, moço ou velho, erudito ou
analfabeto, seja quem for desde que de paz, poderá participar da festa do candomblé,
onde deuses e homens são iguais, cantam e dançam a fraternidade universal
(AMADO, 2010b, p. 393, grifos meus).
***
Uma vez instituído este panorama, posso agora voltar à matéria do Jornal do Brasil,
publicada em 1958, e que já dava notícias de A guerra dos santos. De acordo com o jornal:
Não há nada que corrompa mais do que o poder; é uma coisa monstruosa, é a coisa
que mais me apavora no mundo. O poder tem uma força de corrupção que degrada
os caracteres mais puros, aniquila qualquer lealdade, tanto em relação à pátria,
quanto à vida, às ideias, à luta pela esperança; o poder degrada tudo, corrompe,
acaba com o homem. Dificilmente se resiste ao poder – Chefe de Estado, ministro –
ou mesmo a um pequeno poder de uma direção num partido, um cargo, uma
posição... Vi tanta gente se transformar a partir do momento em que tiveram a
menor parcela de poder... É o que eu mais temo no mundo, o poder é degradante,
terrível, terrível... (AMADO apud RAILLARD, 1990, p. 218).
129
A despeito deste depoimento estar datado da década de 1990, o que o distancia por
demais de 1958, quando Amado revela suas pretensões com A guerra dos santos, não creio
que reste invalidado no que se refere à construção do argumento aqui exposto. Isto por três
grandes motivos: primeiro, a desilusão de Amado com o poder se dá ainda nos anos 1950,
com a descoberta dos crimes cometidos por Stálin em nome da União Soviética ou mesmo
com a reação de diversos membros do PCB em face de sua ruptura com a militância
política/partidária; em segundo, por causa da longevidade do projeto de romance, que
atravessa três décadas inteiras e acompanha as transformações do próprio homem Jorge
Amado ao longo desse tempo; em terceiro, porque as representações amadianas figurativas de
liberdade a partir de Gabriela, cravo e canela orbitam sempre fora dos grandes eixos de
poder: a retirante, o vagabundo, a prostituta, o negro, etc. – o que aponta para a percepção de
uma antonímia entre poder e liberdade.
No plano do romance que se delineia, não há qualquer possibilidade de se visualizar,
de forma consistente, aquele sentimento de coletividade irmanada, de laços inquebrantáveis
porque sagrados, existentes em Os pastores da noite ou em Tenda dos milagres no que viria a
ser A guerra dos santos. Aqui, a unidade do povo-de-Axé, imagem que aponta para a
possibilidade de experiência comunal, estaria cindida em pequenos grupos que se combatem –
“facções” para usar o termo posto pelo próprio escritor –, uns hostis aos demais, em intensa e
triste disputa pelo poder.
A temática dos conflitos em torno da sucessão da posição máxima em um Terreiro
vinha mesmo chamando a atenção de Amado no contexto dos anos 1960, período em que sua
inserção nas significações mais densas do Candomblé se intensifica devido ao seu alto posto
de Obá Arolu. Um exemplo desse interesse no tema pode ser observado em “Enterro da
Iyalorixá”, texto narrativo-descritivo publicado pela revista Manchete de 18 de março de
1967, em que o romancista baiano aborda o cortejo fúnebre de Mãe Senhora, Oxum Muiwá:
Senhora fez santo aos nove anos de idade e foi Aninha que lhe raspou a cabeça e a
consagrou a Oxum. Quando Aninha morreu, em 1938, deixara Senhora preparada
para sucedê-la na direção do grande candomblé. Mas outras filhas-de-santo também
desejam o posto e uma guerra-de-santo se desencadeou durando anos e anos até
que a confirmação de Senhora fosse assunto pacífico e que sua personalidade se
impusesse numa presença respeitada por todos40. Jamais uma iyalorixá foi tão
40
Deoscóredes Maximiliano dos Santos (1994, p. 16), Mestre Didi Axipá, Alapini, filho biológico de Mãe
Senhora, produz uma outra narrativa em torno da sucessão de Eugência Ana dos Santos, Iyá Obá Biyi, mais
conhecida como Mãe Aninha: “Depois de realizadas todas as obrigações e preceitos de acordo com a liturgia da
seita (sic), e tudo regularizado dentro do Axé Opô Afonjá, Maria Bibiana do Espírito Santo – Senhora –, filha
legítima de Félix dos Espírito Santo e Claudiana do Espírito Santo, nascida no dia 31 de março de 1900, na
130
Em 1992, quatro anos após o romancista dar por publicado o projeto A guerra dos
santos sob título O sumiço da santa – romance em que, devo adiantar, não há nenhuma
“guerra de santo” tal como pensada/arquitetada – Jorge Amado, no livro de memórias
Navegação de cabotagem, volta a narrar o enterro de Mãe Senhora e, novamente, dá destaque
aos conflitos entre o povo-de-Axé:
Ladeira da Praça, em Salvador, ficou, como era de direito, devido à sua tradicional família da nação Ketu, com o
título de Iyalaxé Opô Afonjá (mãe da força espiritual que mantém o Axé Opô Afonjá), dirigindo os destinos do
terreiro, ao lado de uma senhora filha de africanos, muito amiga de Iyá Obá Biyi, de nome Maria da Purificação
Lopes, ou Badá Olufan Deiyi”.
41
Cumpre informar que novamente Deoscóredes Maximiliano dos Santos (1994), Mestre Didi Axipá, Alapini,
ao tratar das mortes e sucessões de Mãe Senhora (p. 32-34) e de Mãe Ondina (p. 37-38) como Iyalorixás do Ilê
Axé Opô Afonjá, não registra qualquer situação de conflito entre as filhas e os filhos da casa.
131
tivesse causado no Ilê Axé Opô Afonjá, onde Jorge Amado era Oba Arolu. Em entrevista a
Quirino Teixeira (1985), no entanto, Amado descredencia esta leitura, informando que não
sofreu qualquer restrição vinda do povo-de-Axé. A declaração parece-me plausível, uma vez
que as cenas iniciais de A guerra dos santos foram publicadas em duas ocasiões, 1975 e 1990,
o que talvez não ocorresse se houvesse de fato um veto sobre tal estória.
Para além da quebra na estrutura unitária do povo-de-Axé, há ainda um segundo
agravante em relação ao projeto de A guerra dos santos: a matéria de 1958 do Jornal do
Brasil situa que, do conflito entre os grupos rivais na disputa pelo posto de Iyalorixá,
resultariam “muitas mortes, tendo como elemento exterminador os despachos”. É verdade que
– e isto é realmente importante de ressaltar – o “despacho” como elemento dinamizador da
trama não aparece em outras entrevistas do autor sobre seus planos para a narrativa. No
entanto, a considerar o caráter sempre lacônico com que o romancista baiano falava sobre A
guerra dos santos, muitas vezes, inclusive, repetindo a mesmíssima informação de entrevista
em entrevista ao longo dos anos, não é mesmo possível descartar de todo o seu
aproveitamento literário.
Caso de fato presente, este seria um segundo dado a compor a dissonância com que o
romance, se realmente escrito, se encaixaria por entre as demais ficções produzidas durante a
década de 1960. Afinal, ao invés de desconstruir o imaginário médio negativo e depreciativo
em torno das religiões negras, qual seja, o de conhecimento dotado do poder de manipular
forças ocultas malfazejas, sempre dispostas a transportar doenças e a cometer assassinatos
encomendados, Amado o reproduziria.
Para não faltar com os documentos reunidos em torno deste assunto, em entrevista
concedida a Lena Frias, publicada na edição de 18 de maio de 1978 do Jornal do Brasil, Jorge
Amado apresenta o que seria a estrutura espaço-temporal de A guerra dos santos:
42
Em complementação ao que já foi apontado anteriormente do ponto de vista da trama, em relação à estrutura
temporal também nada resta de A guerra dos santos em O sumiço da santa, que se passa na virada dos anos 1960
para 1970, período de ditadura militar sob as bases do AI-5.
132
Nesta nova declaração, concedida vinte anos após as primeiras informações também
publicadas pelo mesmo periódico, A guerra dos santos reaparece com uma estrutura
organizada em dois eixos temporais e duas espacialidades. A trama central, idêntica àquela
anunciada duas décadas antes, está relacionada ao presente da escrita e se situa da porteira
para dentro de um Ilê Axé. Nela, seriam narrados os desdobramentos da luta pelo poder em
torno da morte e da sucessão da Iyalorixá. Para além deste plano inicial, é revelada uma
segunda linha narrativa, que se configuraria como reconstituinte do fluxo histórico da Bahia
pós-escravocrata até os anos 1960/1970 – o que ampliaria o leque de conflitos a serem
explorados ao longo do romance.
Vista à luz destas poucas informações, A guerra dos santos parece se assemelhar à
estrutura narrativa de Tenda dos milagres, também montada em torno de duas temporalidades
paralelas, uma de caráter sincrônico, que situa os eventos relacionados ao momento da escrita
e apresenta a construção da figura de Archanjo em um discurso oficial para ser lido e
conhecido pela população dominante, e outra, organizada diacronicamente a partir de
testemunhos orais, que cobre o período de vida de Archanjo, de 1868 a 1943, correspondendo
aos 75 anos da existência de Pedro Archanjo Ojuobá.
Os dois romances se aproximariam também do ponto de vista temático, ao menos no
que concerne àquele segundo plano narrativo de A guerra dos santos, pois, de acordo com a
entrevista de Jorge Amado concedida a Oliviero Beha e publicada no periódico italiano La
Fiera Letteraria, de 7 de novembro de 1976, a perspectiva diacrônica apresentaria “[...] um
corte em profundidade de 80 anos na vida brasileira, desde o pós-abolição até hoje, sobre os
problemas raciais”43. Não é sem razão, portanto, que o romancista revela, em O Pasquim
(13/2/1985) que A guerra dos santos “[...] tem algo a ver com Tenda dos Milagres”.
Por outro lado, se é possível afirmar que a tensão maior de Tenda dos milagres opera
na justaposição dos tempos narrativos, uma vez que é pelo confronto entre as duas versões da
estória de Ojuobá que é desvelado o falseamento promovido pela construção artificial de uma
memória sob o signo da oficialidade, o mesmo não pode ser dito sobre A guerra dos santos.
Isto porque há muito pouca informação acerca do que Amado de fato pretendia ao investir em
uma recuperação histórica tão próxima àquela já estabelecida na narrativa sobre Archanjo, o
que impede qualquer tentativa de observar seus níveis de articulação com o plano narrativo
voltado para a sucessão da Mãe-de-santo.
43
“‘A guerra dos santos’, un romanzo come spaccato di 80 anni di vita brasiliana da dopo l’abolizione della
schiavitù a oggi, sui problemi razziali” (Tradução minha).
133
A imagem metafórica dos “seios assim imensos”, com a qual o narrador enfeixa uma
condição necessária ao sacerdócio afro-baiano, remete menos aos delineamentos físicos do
corpo desnudo da Iyalorixá falecida do que à sua responsabilidade diante do compromisso em
lidar com as angústias daqueles que a procuram. A esta metáfora, correspondem, então, os
sentidos de conforto e de cuidado, comumente atrelados ao simbolismo da maternidade.
Conotativas do zelo com as vidas e com os destinos alheios, estas sensações circunscrevem
uma efetiva possibilidade de “paz de espírito” para as filhas e os filhos-de-santo sob a
44
A Revista do Homem, periódico responsável pela publicação do texto, identifica-o como “ficção de Jorge
Amado” e como “um trecho do livro Guerra dos santos, ainda em preparo”. A inferência de que o texto
apresenta as primeiras cenas do romance se dá pela entrevista de Jorge Amado ao jornal O Liberal, de 21 de
agosto de 1977, uma vez que nela o romancista baiano afirma “[...] há menos de dois anos, escrevi duas cenas,
aquelas que serão, talvez, as duas cenas iniciais”. Como o texto publicado em A Revista do Homem data de 1975,
é razoável supor que Amado estivesse se referindo a “Declaração de guerra em língua de sotaque”.
45
“Falecida a olóriṣà, qualquer que seja sua hierarquia, deverá proceder-se a retirar seu oṣù por meio do qual,
precisamente, a individualização, o nascimento da adóṣù foram possíveis. Um sacerdote altamente preparado
manipulará sua cabeça de maneira que retire os cabelos do lugar onde o oṣù fora implantado, esses cabelos com
outras substâncias apropriadas que se passam nesse lugar, formarão um conteúdo que, cuidadosamente enrolado
em algodão (símbolo de existência genérica), será depositado num lugar previamente consultado para que Èṣù
Ẹlèrù os leve” (SANTOS, 2008, p. 230).
134
46
De acordo com Raul Lody (2010, p. 44), “Iya Nassô, segundo a tradição oral da Bahia, é o cargo mais
significativo de uma mulher no sistema social e cerimonial voltado ao culto do orixá Xangô”. Marco Aurélio
Luz (2000, p. 39) situa que, no contexto de Oyo, espaço africano de onde provém o culto a Xangô, “[...] é uma
sacerdotisa, a Iya-Nasô, que zela pelo assentamento de Xangô”. Ildásio Tavares (2005, p. 49), por sua vez,
informa que em “[...] Oyó, o poder supremo está com o Alafin, ao mesmo tempo chefe religioso e político.
135
com que o narrador formula a dimensão da personagem, não só no contexto religioso, mas
também como reconhecida na cidade, funciona como um apelo dramático que busca atar o
leitor à trama apenas iniciada.
Se o texto for confrontado com os depoimentos de Jorge Amado sobre o que viria a ser
este eixo narrativo, uma terrível luta em torno do processo sucessório – a própria “guerra dos
santos” que intitularia o romance –, é possível observar uma estratégia discursiva do narrador
em, por meio do enaltecimento da Mãe-de-santo, distinguir e elevar também o Axé Obá
Kossô, o que implica, por consequência, no incremento da representação de poder inerente à
posição a ser disputada entre as filhas-de-santo em conflito.
Para além da intenção narrativa em construir a imagem de uma posição de poder
inigualável, exercido por Mãe Leocádia e agora vago, o fato de a trama se iniciar com o
narrador enquadrando a falecida funciona como uma espécie de gatilho para que ele possa
acessar as fissuras existentes entre as filhas e os filhos daquele Ilê Axé. Atento aos cochichos
e às insinuações ditas em voz alta, o narrador vê e ouve:
O alvo da acusação não é nominado por Almerinda, mas parece ser reconhecido ou
minimamente adivinhado por aqueles presentes no Terreiro, uma vez considerada a atmosfera
de mal-estar ocasionada pela resposta ao médico e que aparenta sugerir a autoria de “tanta
ruindade” e de “tanta traição” como, de algum modo, integrada ao convívio daquela
comunidade. É mesmo possível suspeitar que a razão de tão profundo “desgosto” se encontre
próxima da ambientação da cena, posto que a voz “pejada de ódio” de Almerinda não assume
a condição de um pesado e dorido desabafo, mas provoca a sensação de ser dotada dos
objetivos de atingir e de constranger.
Seja como for, os leitores da narrativa já aqui suspeitam que as relações e o ambiente
interno do Terreiro não se configuram como pacíficas ou desprovidas de tensão. Há qualquer
coisa de não resolvido, uma mágoa e um ressentimento construídos em algum momento do
Liturgicamente, o poder estaria dividido entre a Iyá Nassô, sacerdotisa suprema, e o Balé Xangô, contrapartida
masculina”.
136
Nas sombras do corredor, vindo (sic) das camarinhas, aparece Alvina, a face
anuviada, o passo firme, revestida de recobrada autoridade. Retomando de vez e por
completo os direitos e os deveres que durante tantos anos foram sonegados a seu
posto e condição de iyakekerê, a segunda pessoa do Axé. Agora a primeira, pois a
iyalorixá faltara. Algumas cabeças inclinam-se respeitosas a seu passo, outras
erguem-se insolentes (AMADO, 1975, p. 34).
47
“Substituta da mãe, sua sucessora eventual, a mãe-pequena (iyá kêkerê em nagô, exatamente mãe-pequena) lhe
está imediatamente abaixo na escala da hierarquia, como administradora civil e religiosa do candomblé. Salvos
casos especiais (e muito raros) de profunda amizade ou de parentesco próximo, a mãe-pequena é sempre a filha
mais velha em relação à feitura-do-santo, por isso mesmo mais autorizada a substituí-la. Lugar-tenente da mãe, a
mãe-pequena está em contato mais direto com os filhos, especialmente nas cerimônias religiosas, e com as
iniciadas, pois a mãe apenas fiscaliza, aconselha e dirige nestas ocasiões, enquanto a mãe-pequena, executando,
acompanha atentamente a marcha das cerimônias. Também a mãe pequena é chamada de mãe pelos filhos, que
lhe tomam a bênção e lhe fazem a mesma reverência devida à mãe”, informa Edison Carneiro (1926, p. 92-93).
137
quem a olha e observa de forma atenta, isto é, a partir de uma perspectiva absolutamente
externa ao desenrolar dos fatos, aproxima-se, via utilização do discurso indireto livre, do
ponto de vista de Alvina, cuja interioridade, ora revelada, põe em cena a tensão existente entre
ela e Iyá Nassô:
[...] demora-se parada e silenciosa ante a morta, de quem recebera tantos agravos.
Normalmente, deveria arrancar os cabelos, gritar junto com as filhas-de-santo e mais
alto que todas pois é a mãe-pequena, a iyakekerê, a imediata – mas tem alguém o
direito de ser tão falso a si mesmo? Sem perder o respeito próprio e o respeito dos
demais, dos filhos e filhas a pedir-lhe a bênção no terreiro plantado no Rio de
Janeiro quando, vencida e humilhada, tomara dos seus santos e partira em fuga?
Devia compostura àqueles cuja cabeça tocara com a navalha, no recesso do barco,
Mãe reverenciada. Tantos agravos, tantos!, e a permanente hostilidade, como então
representar saudade e dor, anunciando ao povo a perda terrível? Terrível, sem
dúvida, mas hoje tudo terminou, hoje começa tudo de novo (AMADO, 1975, p. 35).
A partir da entrada em cena de Alvina, o narrador muda sua observação em torno dos
conflitos a cindirem o Axé Obá Kossô para acolher a perspectiva da Iyakekerê. Nesta nova
mirada, em oposição às imagens de “ruim”, “traidora” e de motivo de “desgosto”,
identificadas como razões do falecimento de Iyá Nassô, é ela, a Mãe-pequena, quem sofre a
ofensa, quem é posta na condição de “humilhada” e de vítima de uma “permanente
hostilidade”.
Dividida em dois pontos de vista, a narrativa ora registra a versão de Mãe Leocádia de
Oxum, estendida às demais personagens e por elas endossada, ora demarca a posição solitária
da Iyakekerê Alvina, cuja estória é reconstituída parcialmente pelo narrador:
O que sustenta o ressentimento mútuo, bem como as hostilidades também de via dupla
entre a Iyalorixá Leocádia de Oxum e a Iyakekerê Alvina de Xangô são os permanentes
138
– É preciso tratar das obrigações. Tirar logo o oxu da cabeça dela – [Alvina] Diz
finalmente em voz alta, numa ordem.
Ao ouvi-la, Stela prende os soluços, atravessa a sala lado a lado até o canto onde
Mário, Obá Telá, contido, mudo, a cabeça baixa, curte sua aflição.
Com os dedos longos, Stela toca-lhe o ombro:
– Vai permitir que ela dirija o axexê? – Acento de sotaque ao dizer “ela” como se
dissesse “aquela tipa” repetindo a falecida. – Que ela toque na cabeça de nossa Mãe?
Que ela – levanta a voz, sibila o sotaque – tire o oxu. Ela? (AMADO, 1975, p. 35).
Alvina, de costa para Mário e Stela, permanece silenciosa e imóvel, aparentando não
ter ouvido. Falara, agora espera; é a iyakekerê da casa, mas nem assim se atreve a
tomar da navalha sem a concordância de Mário. Onde andam Vítor, o presidente [da
sociedade civil], e Salvador, Obá Aré? Onde os velhos ogãs há anos afastados do
terreiro, os que a procuram para ainda comentar os acontecidos antigos cada vez que
ela vem à Bahia? Levantados e confirmados por Mãe Agripina, com eles pode
contar. Mas ainda não chegaram e nesse embate inicial ela depende de Obá Telá, o
primeiro obá levantado por Leocádia, quando o posto vagara com a morte do velho
Manfredo (AMADO, 1975, p. 35).
48
Cf. nota de rodapé número 14.
140
Se nenhum dos doze obás estivesse presente, ela, Mãe Alvina, imporia sua vontade,
a mão na cabeça da morta para retirar o oxu e libertar o santo. Que vingança melhor?
Cadê a soberbia, minha senhora, quem lhe desfaz o nó, quem a manda embora?
Imporia sua vontade, tomaria da navalha, as filhas quisessem ou não, Stela inclusive,
essa arrogante Stela de Oxóssi, inimiga declarada, arco retesado, flecha venenosa
(AMADO, 1975, p. 35).
141
Mário, de natural avesso a tomar posicionamentos que possam pôr em risco sua ampla
rede de amizades, que inclui tanto Stela quanto Alvina, além da falecida Iyalorixá, concorda
com a filha de Oxóssi, embora muito incomodado com seu inesperado estatuto de juiz e
executor. Todavia, não é possível passar a navalha a nenhuma outra no Axé Obá Kossô, uma
vez que todas estão submetidas pela presença da Mãe-pequena.
É neste momento de extrema aflição que Obá Telá se recorda de uma fala privada de
Mãe Leocádia de Oxum, que aqui ganha ares de premonição: “Meu filho, no dia que eu faltar
não deixe que ninguém toque em sua cabeça a não ser minha irmã Mocinha. Só ela, mais
ninguém” (AMADO, 1975, p. 37). Mário, então, se desloca para o Ilê Opô Dadá, também
conhecido como grande Candomblé do Muzuê, evidenciando a importância de sua Iyalorixá,
que Leocádia respeita ao dizer ser a “[...] única a lhe comparar em saber e poderio”
(AMADO, 1975, p. 37). No diálogo entre Mãe Mocinha e Obá Telá, novamente entram em
cena as tensões existentes entre Alvina e Leocádia:
– Vim lhe buscar, minha tia. Estou com um táxi na porta para levar vosmicê. Para
começar os trabalhos, tirar o oxu da cabeça dela, sinão...
– Sinão o que? [...]
– A parte vosmicê não vejo quem possa tomar a frente. Tem Stela e Veveva, são as
de mais preceito, sem falar nas tias velhas, Miquelina, Barda, Fúlvia, sem falar em
Alvina, mas...
– Alvina está no Axé? Nessa época do ano? Não é seu costume. A que veio?
– Não sei a que nem como veio, mas está. Faz dias que chegou. Vosmicê conhece a
situação. Muitos acham que ela não pode tocar na cabeça da velha. Eu também acho,
a mão dela está pesada de ofensas, não pode dar descanso à minha Mãe. Por isso
vim buscar vosmicê, sua irmã. Ela mesma me disse: quando eu faltar não deixe que
outra ponha a mão em sua cabeça a não ser minha irmã Mocinha. Na minha, quanto
mais na dela (AMADO, 1975, p. 38).
Em face da presença de Alvina no Axé Obá Kossô, Mãe Mocinha, embora portadora
de grave doença e impedida pelos médicos de sair do quarto, decide tomar da navalha e cuidar
do axexê de sua irmã, Leocádia de Oxum.
A solução apaziguadora e negociada de Mário, Obá Telá, satisfaz tanto a Stela de
Oxóssi, que “desabrocha meio sorriso de vitória”, quanto a Alvina de Xangô, “que conserva
levantadas a cabeça e a voz” (AMADO, 1975, p. 37). Embora parcialmente conduzida ao
triunfo, Stela sabe, como também o sabe a Mãe-pequena, ter só se tratado de uma primeira
batalha, a verdadeira guerra dos santos estaria apenas começando.
Uma vez lido e estudado o texto de “Declaração de guerra em língua de sotaque”, em
sua condição primeira de episódio inicial de um romance em produção, é possível observar
que, fora a aparente desistência de ficcionalizar os “despachos” como elemento exterminador
142
das rivais ao pretendido posto de Iyalorixá, a narrativa segue, sem muitos desvios, as
informações pontuais dadas por Jorge Amado na entrevista de 1958 publicada pelo Jornal do
Brasil.
Seja como for, independentemente do aproveitamento literário dos “despachos” como
um efetivo e exitoso arsenal de guerra, a própria perspectiva de uma divisão interna da
comunidade-terreiro, fundada na franca disputa pelo posto de Iyalorixá, já seria suficiente, por
si só, para descaracterizar aquela possibilidade de construção ficcional em torno de uma
representação arquetípica do Candomblé como uma heterotopia absoluta e positiva.
Incluída no universo romanesco amadiano, a representação de uma guerra de santo, tal
como aí esboçada, deslocaria o conflito entre as duas organizações socioculturais distintas – a
burguesa-cristã e a das tradições culturais/religiosas afro-baianas – para tratar dos conflitos na
própria interioridade dos Ilê Axé, então reprodutores das mesmas relações situadas da porteira
para fora e sinalizadas de forma negativa.
Neste cenário atípico para a literatura amadiana, os Terreiros já não seriam espaços
outros, onde poderiam ser gestadas experiências de liberdade, mas a triste imagem da
desesperança de quem procura por alternativas e não as encontra.
143
Por mais que lutemos arduamente para evitar os preconceitos associados a cor,
credo, classe ou sexo, não podemos evitar olhar o passado de um ponto de vista
particular. O relativismo cultural obviamente se aplica, tanto à própria escrita da
história, quanto a seus chamados objetos. Nossas mentes não refletem diretamente a
realidade. Só percebemos o mundo através de uma estrutura de convenções,
esquemas e estereótipos, um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra.
146
que fosse possível contemplar todos os atores e grupos sociais, seria tarefa inatingível
textualizar todos os ângulos e pontos de vista.
Estas considerações de Achugar não devem ser entendidas como um manifesto de
oposição à perspectiva de uma memória democrática, afinal, não são direcionadas para o
campo da História, mas para o historiador; para o sujeito que se investe desta
responsabilidade. Argumenta o historiador uruguaio que
Do ponto de vista ético, e para quem narra, essa escolha/seleção [dos eventos
históricos] é tremenda. Não para aquele que tenta narrar sem estar consciente da
tensão esquecimento-memória implícita no trabalho que vai empreender, mas para
quem tenta um relato democrático da história coletiva, para quem se propõe narrar a
partir de uma perspectiva democrática da memória (ACHUGAR, 2006a, p. 160).
A História Oral, área a que se vincula a própria Eugenia Meyer, tem se dedicado,
desde a década de 1970, à recolha e ao registro destas memórias não contempladas pelas
narrativas oficiais como documentos. De acordo com Michael Pollak (1989, p. 4), também
associado a esta linha investigativa,
social legitimada, de modo que o silêncio resulta em estratégia para minimizar a exclusão, e,
por último, as vergonhosas, que remetem a sujeitos forçados a agir contra seus grupos de
origem, de modo que já não podem mais se encaixar neles senão camuflando o passado na
recusa em contá-lo. De acordo com estes modelos, é possível observar que o silêncio se
constitui como uma determinação imposta, mas também como estratégia de resistência que
opera por baixo da censura, subterraneamente:
Hugo Achugar (2006b) igualmente assevera que a memória coletiva de uma sociedade
é sempre um espaço em negociação, ainda que desigual, entre dominantes e dominados. A
história, ao contrário do que pretendem as versões oficiais, não é dotada de fixidez, deixando
em aberto a possibilidade de memórias subterrâneas ascenderem à superfície. Tempo em
constante litígio, o passado é, desta maneira, mais uma arena em que o ideal de uma sociedade
democrática sofre violentos abortos ou galga avanços parcimoniosos – o que justifica o
interesse de Jorge Amado em abordá-lo.
Antes de fechar este parêntese histórico/conceitual, gostaria de retomar Walter
Benjamin (2012, p. 244), que afirma: “O dom de despertar no passado as centelhas da
esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que tampouco os mortos estarão
em segurança se o inimigo vencer”.
O universo ficcional de Amado, desde sua guinada à esquerda com Cacau, sempre
buscou emular as experiências posicionadas às margens, seja por via da utopia ou da
heterotopia. Desta forma, mantém-se irmanado a elas e em função delas em um embate
constante contra um inimigo único, embora representado sob diversas faces: a supressão da
liberdade humana, tanto de um ponto de vista coletivo quanto individual. A partir da década
de 1960, este posicionamento se desdobra para além de uma abordagem sincrônica,
ramificando-se em um arco ficcional próprio que se dedica à revisão dos tempos de ontem
cujos mortos permanecem inseguros. Com isto, a formatação de um ideal de liberdade é
suplementada por um novo componente, em torno do qual a produção literária amadiana se
empenha: o direito irrestrito de acesso a uma memória democrática. Nesta paisagem, aquelas
centelhas de esperança às quais Benjamin alude, e cuja ausência resulta em inevitável derrota
em qualquer batalha, crepitam em torno das memórias subterrâneas que animam as
150
49
Zélia Gattai, em depoimento publicado pela Veja Bahia em 24 de julho de 1991 sob o título “Histórias do
baiano Jorge Amado”, relata ter primeiro ouvido falar da intenção em escrever Boris, o Vermelho por volta dos
anos de 1977 e 1978. No entanto, na pesquisa realizada junto ao acervo de entrevistas amadianas, não foi
encontrada nenhuma referência a este projeto ao longo deste biênio; apenas a partir de 1982, ano que Jorge
Amado, em entrevista a Quirino Teixeira (1985), situa como sendo o de início da escrita. Zélia Gattai, no mesmo
depoimento concedido à Veja Bahia, informa que a tentativa de produção do romance se iniciou em 1984, tendo
sido realizado apenas um capítulo.
151
a Maria José Quadros e publicado pela edição de 23 de junho de 1991 de O Globo, o romance
traria
[...] o perfil de um jovem brasileiro do início dos anos [19]70, época dos “hippies”,
da liberação sexual, da pílula e também de uma ditadura militar no Brasil. Boris não
tem nada de político, também não chega a ser um “hippie” completo. Fuma
maconha, envolve-se com a chamada liberação sexual, não trabalha, tem um amigo
rico envolvido com surf, mas a circunstância da ditadura vai levá-lo a praticar certos
atos que fazem com que parte da Polícia, do Governo Militar, etc., o considere
subversivo, um traidor da pátria a serviço de Moscou, “comuna” vendido. Até que o
caso chega ao conhecimento do Ministro da Guerra, que, como era comum naquele
tempo, tira logo suas conclusões pelo nome do rapaz – Boris, apelidado o
“Vermelho”, já dizia tudo. Por outro lado, dentro do mesmo jogo de mentiras, Boris
também é visto como herói do proletariado, que se bate contra a ditadura. [Mas ele]
É apenas um jovem brasileiro que está na dele.
produz, que é sempre responsável por escolher o que e como negociar a lembrança e o
esquecimento – não raro, agenciando o passado como forma de legitimação do presente,
assim como demonstra o historiador britânico Eric Hobsbawm (2011, p. 18):
Em 1964, Jorge Amado publica Os pastores da noite, texto dividido em três partes
cuja ambientação humana garante a coesão de seu universo interno, mas cujas tramas
carregam total independência entre si. É justamente a última e maior destas três narrativas
presentes no livro, ironicamente intitulada “Os amigos do povo”, que inaugura o arco
ficcional revisionista. Aqui, o choque entre versões, com aquela oriunda do “baixo”
desmontando a oficial produzida pelo alto, se coloca como estratégia de desnudamento do
desinteresse do Estado em relação às populações marginalizadas – ou, dito de outro modo, do
interesse em reprimi-las ou manipulá-las sempre em proveito das elites, das classes política e
jornalística.
O desenvolvimento da trama ocorre por volta de meados da década de 1940, época em
que surgem as primeiras invasões de terrenos por uma população sem-teto em Salvador50. As
terras em questão se tratam do Morro do Mata Gato, espaço ficcional situado entre os bairros
de Amaralina e da Pituba, de propriedade do milionário José Perez, mais conhecido pela
alcunha de Pepe Oitocentas, “[...] dono de uma rede de padarias, de fazendas de gado e de
léguas e léguas de terreno, sem falar nos prédios de aluguel” (AMADO, 2009, p. 187).
Configurada como uma propriedade privada assegurada em documento de comprovação de
posse, esta longa faixa territorial encontrava-se desocupada, posto que reservada para a
especulação imobiliária quando o crescimento da cidade avançasse naquela direção, seguindo
o fluxo da orla.
50
De acordo com Inaiá de Carvalho e Gilberto Pereira (2014, s.p.), a “[...] primeira invasão de terras para a
construção de habitações ocorreu em 1946, a denominada invasão do Corta Braço, hoje bairro de Pero Vaz.
Tornando-se comuns e recorrentes, essas ocupações e o tratamento que lhes foi dispensado pelo poder público
tiveram uma significativa influência na expansão e conformação territorial da capital baiana. A depender da
conjuntura, da resistência e de negociações políticas, algumas vezes os ocupantes conseguiram permanecer nas
áreas onde se haviam instalado, que terminaram se consolidando como bairros populares. Mas, na maioria dessas
ocorrências, eles terminaram sendo expulsos ou transferidos pelo poder público para espaços mais distantes
[...]”.
153
Ao ter as suas terras invadidas, o espanhol, cujo acesso às esferas mais altas do poder
político é feito de forma direta, aciona o governador da Bahia, que movimenta o Estado, por
meio de seu aparelho repressivo configurado na polícia, para restituir a propriedade privada,
inclusive com uso desproporcional e sistemático de violência, do que resultam casebres ao
fogo ou ao chão, espancamentos e mortes.
Este é o pano de fundo para que políticos da oposição e jornalistas – estes motivados
pela possibilidade de prêmios ou pela perspectiva de angariar votos para uma futura
candidatura à Câmara de Vereadores –, se valham da imagem de defensores do povo
oprimido, que é surrado e vilipendiado em seu direito básico de ter uma moradia. Campanhas
são organizadas para pressionar o Governo a resolver o impasse, de modo a possibilitar que os
ocupantes do Morro do Mata Gato continuassem lá instalados – o que é efetivamente
conseguido, mas às custas de negociatas entre o poder público e Pepe Oitocentas, que é
fartamente indenizado.
No entanto, para a memória oficial acerca do Mata Gato estabelecida pelos jornais, os
dois parágrafos acima não existem.
O narrador de “Os amigos do povo” se encontra temporalmente distanciado dos
eventos em torno do Mata Gato, observando-os retrospectivamente a partir do instante em que
outras invasões, seguindo o modelo daquela inicial, já se haviam realizado, alterando a
configuração espacial citadina: “[...] cresceram bairros inteiros para o lado da Liberdade, no
nordeste de Amaralina, houve a invasão de Chimbo no Rio Vermelho, e os Alagados com sua
cidade sobre as águas” (AMADO, 2009, p. 189). Em todo caso, mostra-se vinculado aos
acontecimentos que tiveram lugar naquelas extensões de terra, colocando-se como portador de
memórias pessoais, originárias de sua própria experiência, do embate entre o poder público e
os ocupantes do Mata Gato, já que afirma tê-lo vivenciado – ou, no mínimo, presenciado:
“[...] ali estávamos e sabemos de tudo” (AMADO, 2009, p. 188)51.
A posição que o narrador ocupa é, de fato, estratégica: ele pode agenciar tanto o
passado, reconstituindo os eventos em torno da ocupação a partir da memória que detém
deles, quanto, aludindo ao presente no qual está inserido, se reportar à versão da história que
se fixou como verdadeira, uma vez que instituída por um poderoso aparelho ideológico, a
imprensa:
51
No início do romance, em uma espécie de preâmbulo lírico, o narrador afirma: “Conto o que sei por ter vivido
e não por ouvir dizer. Conto de acontecidos verdadeiros” (AMADO, 2009, p. 14).
154
Os fatos lançados às zonas de sombra pelos discursos oficiais são trazidos ao primeiro
plano da cena representacional a partir deste lugar de falar outro, heterotópico, que é
instituído em acordo com as memórias subterrâneas enraizadas na experiência do narrador.
Com isso, opera-se a desconstrução das versões legitimadas pelo poder, que comunicavam um
exercício verdadeiro de política em prol dos não-abastados ou um engajamento sincero dos
jornais ao lado do povo ou, ainda, um ato de desapego e altruísmo decorrente das elites. No
155
O corpo de Jesuíno nunca foi encontrado. Houve mesmo quem duvidasse de sua
morte, dissesse ter ele partido e mudado de nome, como sucedeu com o cabo
Martim, que virou sargento Porciúncula. Tais boatos circularam durante alguns
meses até quando, numa grande festa do candomblé Aldeia de Angola – onde o pai
de santo Jeremoabo recebe o caboclo Maré Alta e distribui passes e saúde –, baixou
na moça Antônia da Anunciação, iaô ainda sem santo definido, um pedaço de
mulata sem exemplo, nela baixou um novo caboclo antes desconhecido.
Pela primeira vez descia num terreiro e declarou chamar-se Caboclo Galo Doido
(AMADO, 2009, p. 291).
A cena em destaque, por um lado, põe em evidência o fato de a personagem não ter
sido esquecida pelos seus, uma vez que o desaparecimento do corpo é acompanhado pela
incredulidade diante de sua possível morte e pelo rumor acerca de seu destino – atitudes
vinculadas a um sentimento de não aceitação da perda de Jesuíno e conotativas da estima da
qual ele gozava entre aquelas pessoas. Os boatos funcionam segundo uma lógica da
esperança, através da qual as notícias inventadas aqui e ali sobre o paradeiro da personagem
implicam pressupô-la e mantê-la viva.
Por outro lado, a dissipação da dúvida em relação à morte de Jesuíno é acompanhada
da perenização de sua memória, uma vez que ele é sacralizado, sob o nome de Galo Doido,
como força divinizada a ser cultuado nos Terreiros de Candomblé que recebem Caboclos.
Dialeticamente, a narrativa se processa atritando esquecimentos oficiais com as
permanências localizadas nas memórias subterrâneas, que vêm a ser organizadas por lógicas
distintas daquelas que encimam o poder político e econômico. O resultado deste confronto é
um texto comprometido com o desmascaramento do conjunto de relações que sustentam os
“podres poderes”, para lembrar Caetano Veloso, e com o espaço de diferença – relações
sociais, cultura, memória – engendrado por aqueles habitantes do Morro do Mata Gato, esta
heterotopia incrustada no tecido urbano da Salvador capitalista, burguesa e católica.
Sugeri anteriormente que as tramas constitutivas deste arco ficcional compreendem
um processo constante de adensamento de sua perspectiva revisionista da história, do que
resultam diversas estratégias de abordagem do passado e múltiplas estruturas narrativas. Com
esta afirmação, não pretendo dar a entender que Tocaia Grande – a rigor, o último romance
revisionista – seja melhor formatado do que Tenda dos milagres ou que Boris, o Vermelho, se
escrito, o viria a ser. A questão não se coloca neste nível, não se tratando de uma leitura
evolucionista cuja orientação seja dada pelas ciências naturais. Procuro apenas sinalizar um
procedimento adotado pelo autor em relação ao seu trato ficcional com o passado, o ir mais
além. Deste modo, narrativa a narrativa, o passado a ser revisto pode ser deslocado mais para
trás, tornando-se remoto ao ponto de se configurar como mito de fundação (Tocaia Grande);
ser organizado em paralelo a outro, apenas aludido, para estabelecer um jogo entre dois
157
52
A seguir pelos datiloscritos de Boris, o Vermelho, não é possível retirar nenhuma conclusão a este respeito. No
entanto, acredito que a importância de qualquer sequência narrativa situada no presente fosse minorada, uma vez
que Boris já está morto e as versões sobre a personagem – subversivo; herói do proletariado – já estão montadas.
158
observar não apenas a personagem, mas as memórias que narram a Cidade da Bahia sob o
prisma daqueles que foram silenciados – não raro, perseguidos, violentados e mortos – pela
modernização citadina: o amplo contingente populacional de pobres, negros e mulatos, além
das culturas popular e do Candomblé.
Tocaia Grande, por sua vez, retorna a uma estrutura temporal mais simples,
constituindo-se como uma sequência narrativa em que os cerca de sete anos durante os quais a
trama se desenrola, mais ou menos situados entre as décadas de 1910 e 1920, são contados de
forma linear e progressiva. Assim, o romance é dividido em seis partes, que procuram
organizar, a partir de um tom épico, os estágios de desenvolvimento alcançados pela
cidadezinha que dá título ao livro – “o lugar”, “o ponto de pernoite”, “o arruado”, “o
lugarejo”, “o povoado” e “o arraial” – além de um pequeno preâmbulo, situado no presente do
narrador. Há ainda uma sétima e última parte, esta dotada de arquitetura trágica, na qual o
modo específico de vida ali constituído – desprovido de hierarquias, fundado na solidariedade
e no respeito ao outro – é violentamente destruído para dar lugar à implantação de um modelo
baseado nos dogmas da Igreja e nas leis do Direito. A narrativa, assim procedendo, alude e
atualiza os genocídios decorrentes da imposição dos padrões ditos civilizados de cultura e
sociedade nos territórios coloniais; “documentos da barbárie” onde, em geral, as histórias
oficiais veem “documentos da cultura”.
Ainda assim, é possível sustentar a existência de um adensamento relativo à
perspectiva revisionista do passado, dessa vez não diretamente localizado na estrutura em que
o tempo é articulado narrativamente, mas no sentido que lhe é conferido. Neste romance,
Jorge Amado procura revisar o tempo das origens, desarticulando o mito fundacional de
Irisópolis; cidade próspera, porém erguida sobre os mortos inseguros do antigo arraial de
Tocaia Grande.
A este respeito, cabe recuperar um depoimento do autor sobre uma cidade do interior
da Bahia, Itajuípe, cuja história serve de modelo para Irisópolis. Em entrevista concedida a
Any Bourrier e publicada pelo O Globo em 30 de janeiro de 1982, quando ainda pensava o
formato que daria à narrativa e maturava o texto a ser escrito, Jorge Amado comunica aquele
que, em essência, viria a se constituir, dois anos depois, como o tema de Tocaia Grande:
Quero mostrar [...] que não foram propriamente os homens que receberam
homenagens, os que têm bustos erigidos nas praças públicas, que se gabaram ou se
gabam de terem feito isto ou aquilo, não são eles os verdadeiros construtores de
Itajuípe. Quem construiu, de fato, minha cidade, foram os trabalhadores, as
prostitutas, os bandidos, o povão. Eles chegaram, cavaram, levantaram muros,
construíram, lutaram contra doenças, enfrentaram perigos, formaram uma
159
Ao contrário de Tenda dos milagres, romance cujo narrador, o poeta Fausto Pena,
possui, em certa medida, um trânsito natural entre aqueles que lhe servem como fontes para
recuperar a memória de Archanjo, não há indícios, em Tocaia Grande, que seu narrador
disponha desta mesma condição – até mesmo porque a maior parte dos que viviam naquele
arraial foi dizimada. Esta situação leva a crer que a instância narrativa é composta por um
historiador de ofício, cuja concepção e abordagem da história, além de seu posicionamento
político-ideológico, revelam-no identificado com as perspectivas enunciadas a partir do baixo.
Suas fontes envolvem os folhetos de cordel, nos quais “[...] deu-se a condenação unânime do
massacre, numa evidente tomada de posição ao lado do povo de Tocaia Grande” (AMADO,
2008, p. 453), e as narrativas orais produzidas pelos poucos sobreviventes – aliás, corrobora
para esta leitura o fato de uma epígrafe ao romance ser creditada a Lupiscínio, personagem
160
integrado àquele arraial e que resistiu ao seu extermínio: “A gente pôde com a enchente e com
a peste; com a lei não pôde não: sucumbiu” (AMADO, 2008, p. 10).
Acessando a história anterior a Irisópolis a partir dos subterrâneos que revelam Tocaia
Grande, e em face do cenário montado para reencenar esquecimentos e atualizar a farsa
elevada ao estatuto de verdade oficial, o narrador, logo após referir-se brevemente e com
alguma ironia à efeméride que tem lugar no presente da escrita, anuncia o seu propósito em
buscar o passado:
Digo não quando dizem sim em coro uníssono. Quero descobrir e revelar a face
obscura, aquela que foi varrida dos compêndios de história por infame e degradante;
quero descer ao renegado começo, sentir a consistência do barro amassado com lama
e sangue, capaz de enfrentar e superar a violência, a ambição, a mesquinhez, as leis
do homem civilizado. Quero contar do amor impuro, quando ainda não se erguera
um altar para a virtude. Digo não quando dizem sim, não tenho outro compromisso
(AMADO, 2008, p. 13).
Com efeito, está aí formulado não apenas o leitmotiv do romance, mas uma verdadeira
profissão de fé que, estendendo-se de forma retrospectiva às investidas anteriores de Amado
em relação ao passado, recobre e se aplica a todo o arco ficcional revisionista.
Em função do Quinto Centenário da invasão e consequente conquista da América
pelos povos europeus, uma empresa estatal italiana encomendou a Jorge Amado uma
narrativa para ser publicada conjuntamente com outras duas, produzidas por Norman Mailer e
Carlos Fuentes, as três girando em torno do tema motivador da efeméride. A partir deste
convite, Jorge Amado recuperou algumas sobras do material produzido para Tocaia Grande
relativas ao núcleo libanês da trama, organizou-as a partir de uma lógica narrativa distinta e
entregou A descoberta da América pelos turcos, que veio a ser o seu último romance53.
Como a própria razão da encomenda sugere, o recuo ao passado que esta narrativa
promove se dirige para o instante em que o continente americano passa a ser conhecido pelos
povos europeus. No entanto, isto não é feito de modo com que a trama se desenrole nos idos
de 1492 ou nos anos subsequentes à invasão/conquista, quando o contato entre nativos e
invasores se deu pela lógica da subjugação e do extermínio dos primeiros pelos segundos. A
descoberta da América pelos turcos apenas alude a este evento histórico, contrapondo a ele
outra relação entre alteridades, desta vez mediada por uma integração harmônica.
53
O livro, escrito em português, foi inicialmente lançado na França, em 1992; a publicação no Brasil ocorrendo
apenas dois anos depois, em 1994. Isto porque a empresa italiana contratante se viu envolvida em escândalos de
corrupção e abortou o projeto, mas manteve os direitos de comercialização do texto nas línguas italiana,
portuguesa, inglesa e espanhola por três anos.
161
Em texto publicado no Brasil pela primeira vez em 1983, o hoje clássico A conquista
da América, Tzvetan Todorov (2010) propõe uma reflexão que me parece ser matriz do
posicionamento emulado por Jorge Amado em A descoberta da América pelos turcos. Neste
livro, mais preocupado com o presente do que com o passado, o pesquisador búlgaro toma do
choque entre europeus e americanos como uma estória exemplar, ou seja, como um evento
histórico dotado de força o suficiente para ser instituído como um modelo – ou, no caso, como
um anti-modelo – do contato entre alteridades. Por isto, ele delimita o seu interesse como
pertencendo ao ofício de um moralista, para quem a história serve como uma forma de retirar
do passado formas a servirem de balizas para pensar a sociedade de hoje e de amanhã.
Neste sentido, Todorov toma do fato extremo da descoberta/invasão/conquista para
retirar uma espécie de ensinamento: o de que é necessário descobrir o outro, uma vez que a
recusa às alteridades implica conflitos interessados em sua supressão, sempre permeados por
violência e mortes.
A aproximação possível entre A descoberta da América pelos turcos com a
perspectiva posta por Todorov se dá no plano das formas de relacionamento com as
alteridades que as duas descobertas colocam em cena. O búlgaro, salvas algumas raras
exceções, visualiza anti-modelos na história, ou seja, formas de contato nas quais o presente e
o futuro não podem se espelhar, sob pena de se repetirem as iniquidades ocorridas no
processo colonial. A narrativa amadiana, por sua vez, desloca a expressão “descoberta da
América” no tempo e no espaço, acionando outro contexto e outros atores. Focaliza a
integração harmônica de sírios, libaneses e turcos na região do sul baiano, o que se deu por
volta de final de século XIX e início do XX. Assim, em lugar da lógica de opressão vinculada
ao domínio europeu sobre a América, Jorge Amado procura por um modelo de “descoberta”
em que tenham vigorado sobretudo os princípios de respeito e de integração – “viver a
diferença na igualdade”, como projeta Todorov (2010, p. 363).
Algo inusitada, a perspectiva aberta por Amado permite que o romance traga o signo
da “descoberta” sem que isso implique, de nenhuma maneira, um posicionamento do autor ao
lado da versão oficial da história acerca das relações entre os continentes europeu e
americano. Isto porque a entrada de árabes, libaneses, sírios e turcos na América não acarreta
em conquista, no sentido mais beligerante que o termo aceita, de modo que eles não são
responsáveis por uma atualização dos processos sistemáticos de genocídio e de epistemicídio
característicos de toda engrenagem colonial conduzida por portugueses e espanhóis no Novo
Mundo. Pelo contrário: esses povos árabes, também estrangeiros, quando em contato
profundo com a região grapiúna, integram-se a ela, negociando suas regras sociais e culturais
162
com aquelas que já constituem o local – não é à toa, portanto, que o narrador os designa como
“a boa nação turca”:
“Boris, o Vermelho” ainda é uma ideia minha [...]. Uma ideia que está em suspenso,
mas que me atrai. Voltarei a ela em breve, com certeza. “O episódio de Siroca” é um
dos diversos começos com os quais tentei colocar em pé a história ainda imatura de
Boris. Cumpro, assim, uma promessa que fizera a PLAYBOY, de ceder-lhes os
primeiros capítulos de “Boris”. E entrego aos leitores uma curiosidade em matéria
de ficção: a tentativa de um primeiro capítulo de romance que de futuro será ou não
aproveitado (AMADO, 1982, p. 67, grifos meus).
55
Cf. Anexo B.
56
Esta informação pode ser visualizada no datiloscrito Boris o Vermelho V.I._006.
165
sumiço da santa e tê-lo lançado sob esta forma, ou seja, já não existia mais A guerra dos
santos. Com “O episódio de Siroca” é diferente: produzido ainda nas primeiras tentativas de
escrever Boris, o Vemelho, a publicação como conto – desgarrando-se da trama projetada para
o romance – deu-se ainda em meio às tentativas de realizar o projeto, o que parece sugerir o
abandono dos fatos ali narrados.
Considerando apenas os datiloscritos, é possível defender que o adensamento da
perspectiva revisionista se manteria em Boris, o Vermelho. E não o seria apenas na direção já
anotada do desmonte de duas versões, mas também, e principalmente, no que concerne a uma
crítica das ideologias políticas, sejam de direita ou de esquerda, que resultaram em regimes
ditatoriais, organizados em torno de um partido único e centralizados na figura de um Grande
Líder.
A partir do final da década de 1970 e o início dos anos de 1980 – contexto em que se
acentua a derrocada do modelo soviético, mas não a sua influência ideológica sobre os
movimentos de esquerda no Brasil – se torna relativamente comum observar um conjunto de
depoimentos em que Jorge Amado se posiciona de forma crítica às ideologias. Isto porque o
autor as entende de acordo com a tradição marxista, segundo a qual seu propósito é “[...]
ocultar a verdade da sociedade de classes. É menos uma força ativa na constituição da
subjetividade humana que uma máscara ou véu que impede um sujeito já constituído de
compreender o que está diante dele” (EAGLETON, 1997, p. 86). Inserida nesta mesma
linhagem de pensamento, Marilena Chauí (1981, p. 116-117) comenta:
[...] as ideias dominantes em uma sociedade numa época determinada não são todas
as ideias existentes nessa sociedade, mas serão apenas as ideias da classe dominante
dessa sociedade dessa época. Ou seja, a maneira pela qual a classe dominante
representa a si mesma (sua ideia a respeito de si mesma), representa sua relação com
a natureza, com os demais homens, com a sobrenatureza (os deuses), com o Estado,
etc., tornar-se-á a maneira pela qual todos os membros dessa sociedade irão pensar.
[...]
A ideologia consiste precisamente na transformação das ideias da classe dominante
em ideias dominantes para a sociedade como um todo, de modo que a classe que a
domina no plano material (econômico, social e político) também domina no plano
espiritual (das ideias).
Jorge Amado não pode, então, deixar de registrar a alienação e a dominação como
corolário da ideologia; o primeiro termo se constituindo como uma pré-condição para que o
segundo se exerça. Por conseguinte, se a legitimação e a perpetuação das classes dominantes
no poder de Estado correspondem ao fim último das ideologias, não é possível que elas se
constituam como arautos de um modelo social fundamentado em uma experiência concreta de
liberdade. Afinal, a ideologia não oferece mais do que uma representação ideologizada do
166
real, em que a desigualdade inerente às relações de força que cindem uma sociedade em
hierarquias é ocultada, dificultando aos dominados se reconhecerem como tais – o que, na
maioria das vezes, implica a reificação de sujeitos, tornados títeres da ordem dominante.
É movimentando tal conjunto de sentidos, que, em suas memórias de infância
originalmente publicadas em 1981, Jorge Amado (2010a, p. 53) questiona: “Não serão as
ideologias por acaso a desgraça do nosso tempo?”. Na década seguinte, agora em seu segundo
livro de memórias, escrito em paralelo ao fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas,
o romancista volta à questão:
[...] estão, em geral, amarrados nas teias das ideologias, de todas essas ideologias
que vieram abaixo [com o modelo soviético]. Agora você vê como elas eram
167
pequenas e como elas eram um estorvo para o homem e não força que colocava os
homens para adiante, que fazia marchar, etc.; que ela dificultava essa marcha 57.
Além da óbvia relação com o tempo vivido, que solicita de imediato uma revisão do
que a União Soviética efetivamente significou na história humana, é possível acessar uma
outra chave de leitura para a reiterada ocorrência desta crítica das ideologias no discurso
amadiano, ao menos naquele em que está emulada a posição sujeito ao invés de
autor/romancista. Trata-se de uma estratégia para salvaguardar, em face da emergência da tese
do fim da história59, a crença no futuro – aquele laivo de espírito utópico que nunca abandona
Jorge Amado. O escritor tenta separar o joio do trigo, distinguindo entre ideologia e ideal, este
último termo às vezes aparecendo também como sonho e esperança. Enquanto a primeira
conduziu a regimes autoritários, responsáveis por esmagar as liberdades individuais, o
segundo continuaria a animar os corações humanos no sentido da busca por um modelo social
em que as dimensões coletiva e individual se estabelecessem em justo equilíbrio – uma
revolução sem ideologia, como Amado registra em O menino grapiúna.
57
Fita K7 R2 Studio 13. Lado A.
58
Fita K7 R2 Studio 13. Lado B.
59
No contexto da queda do muro de Berlim e, posteriormente, da fragmentação e dissolução da União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas, o economista estadunidense Francis Fukuyama defendeu a teoria de que a
história, na condição de um desenvolvimento das sociedades humanas em torno a mudanças de modos de
produção, havia terminado com a vitória do capitalismo baseado em uma democracia liberal sobre os regimes
fascistas e comunistas. Neste sentido, o modo de vida representado e defendido pelos Estados Unidos
corresponderia ao ponto culminante da história humana.
168
Seja como for, o fato é que a crítica das ideologias políticas não figura como elemento
galvanizador dos romances publicados por ele entre as décadas de 1980 e 1990, embora seja
recorrente nas entrevistas concedidas pelo autor neste período, o que é estranho, pois as
entrevistas sempre espelham temas que ou foram explorados em livros ou estão sendo
maturados para tal. É bem verdade que, a grosso modo, esta crítica pode ser notada aqui e ali,
nas fímbrias de um parágrafo ou outro. No entanto, não é ela que sustenta a narrativa de
Tocaia Grande, nem a de O sumiço da santa, muito menos de A descoberta da América pelos
turcos.
O estranhamento que esta ausência acarreta é minimizado diante da leitura dos
datiloscritos de Boris, o Vermelho. Iniciado antes de Tocaia Grande, e sendo atravessado
pelos dois últimos romances publicados por Jorge Amado, o referido projeto faria, de sua
revisão do passado, um pretexto para a crítica das ideologias políticas, transpondo para a
ficção aquela espécie de inquietação ou mesmo angústia autoral detectada não só nas
entrevistas, mas também em textos de cunho memorialístico.
De fato, um dos datiloscritos de Boris, o Vermelho traz o seguinte trecho:
60
Datiloscrito digitalizado sob inscrição Boris o Vermelho V.I._028.
169
ideias e o real”. Deste modo, ao invés de as ideias serem fundamentadas em uma base
material e em função da realidade imediata, elas estariam próximas ao domínio da metafísica,
fundando uma leitura do real descolada da base material que o constitui.
Estas duas forças das quais o narrador procura se desgarrar produzem as duas versões
instituídas sobre o jovem Boris, que já se encontraria morto no presente da narrativa. A
primeira, e oficial, é montada pelo regime militar, considerando-o como um subversivo e
traidor da pátria. A segunda, formulada pelos ideólogos/dirigentes do Partido Comunista, o vê
como um herói do proletariado, sentinela avançada na luta contra as injustiças capitalistas e o
regime ditatorial instalado no Brasil. A estas duas, se oporia uma terceira, aquela produzida,
sem desvios de força ou de ideologia, pelo narrador:
[...] inicio devagar a pequena história de Boris, o Vermelho. Mísero vilão, traidor da
pátria, vendido ao comunismo internacional, às ordens de Moscou, a serviço de
Cuba, profissional do terrorismo, bandido sem entranhas e daí por diante, conforme
ficou patenteado na devassa – a maioria dos inqueridos confessou, dois deles, mais
(ou menos) resistentes, bateram as botas no curso dos interrogatórios – estabelecida
a mando dos Generais. Lídimo paladino da Revolução Proletária, filho glorioso da
classe trabalhadora, invencível campeão das lutas do povo brasileiro contra a
ditadura militar, dita a Redentora, estupendo, incorruptível, sublime e por aí afora
pois o biógrafo, senhor de rico vocabulário, não poupou adjetivos. Duas imagens do
mesmo fulano, duas interpretações de um mesmo acontecimento, contraditórias
decerto mas nem por isso menos corretas. Assim se escreve a História, assim ela é
ensinada nas escolas a bambinos ou a pioneiros.
Quanto a mim, cidadão vulgar, literato de baixa extração, de escrita emperrada e
sensibilidade tacanha, recordo um rapazola brasileiro, adolescente, quase um
menino, alegre e arrebatado, sem outro apetite na vida senão vivê-la. Sem qualquer
outra ambição, sem projetos de nenhuma espécie. A vida lhe bastava.
O acontecido ocorreu naqueles anos, ainda próximos e já tão distantes, anos
confusos quando os jovens repetiam um slogan condenado pelas sociedades
assentadas e governos estabelecidos, todas as sociedades, todos os governos, e o
slogan era o verso de uma canção: “faça o amor, não faça a guerra” 61.
61
Datiloscrito digitalizado sob inscrição Boris o Vermelho V.I._024.
170
O nome foi escolhido pela mãe dele, uma humilde costureira, leitora de romances,
que trabalhava para casas ricas. Ela pôs o nome Boris no filho porque havia um
folhetim que contava a história de um nobre russo que tocava balalaica e tinha esse
nome. O apelido “Vermelho” é porque o nosso Boris é um mulato sarará e tem o
cabelo vermelho.
62
Datiloscritos digitalizados sob inscrições Boris o Vermelho V.I._036 e Boris o Vermelho V.I_037.
172
Uma vez observado, em suas linhas gerais, o que venho designando como arco
ficcional revisionista, pretendo agora estudá-lo, a partir de suas narrativas modelares Tenda
dos milagres e Tocaia Grande, sob uma perspectiva mais vertical, conduzida pela verificação
de três hipóteses:
1. O arco revisionista da ficção amadiana, ao reconstituir o passado sob o ponto de
vista dos oprimidos e relacioná-lo às limitações de liberdade ainda detectáveis no presente a
partir do qual os narradores produzem suas narrativas, confirma Benjamin (2012, p. 245)
quando ele afirma que a “[...] tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’
[...] em que vivemos é a regra”;
2. Admitindo-se a necessidade de atualizar a tese benjaminiana, ampliando-a para
além do contexto de expansão das tropas ítalo-germânicas pelo continente europeu, fato que
sugeria à época um triunfo iminente e inevitável do horror advindo dos regimes nazifascistas,
o estado de exceção, posto em cena por Amado através da articulação passado-presente, se
constitui da estrutura autoritária em que a sociedade brasileira está assentada, entendendo esta
configuração junto a Marilena Chauí (2013);
3. A despeito do tom crepuscular inerente às implicações práticas decorrentes da
confirmação das hipóteses anteriores, e mesmo considerando a arquitetura trágica que
engendra o desfecho de Tocaia Grande, não é correto supor que, ao fim e ao cabo, este arco
ficcional aponte na direção de um pessimismo ou, tanto menos, de uma derrocada da
modalização utópica da literatura amadiana. A recuperação de resistências e de liberdades
experienciadas em pequenos espaços heterotópicos, ainda que sejam suprimidas e silenciadas,
funcionam como aquelas centelhas de esperança que animam novas resistências e novas
173
buscas por liberdade. Como afirma Pollak (1989, p. 11), o “[...] passado longínquo pode [...]
tornar-se promessa de futuro e, às vezes, desafio lançado à ordem estabelecida”.
Antes de prosseguir a Tenda dos milagres e a Tocaia Grande, cabe delimitar, de
acordo com a leitura estabelecida por Marilena Chauí, o que se está aqui designando por
“sociedade autoritária”. A leitura do Brasil como uma sociedade autoritária é sustentada por
uma argumentação que envolve nove aspectos estruturantes da realidade nacional e que
apontam, todos eles, para a observância das relações fortemente hierarquizadas entre classes,
cuja mediação se efetua através da exclusão e da violência. Assim, para Marilena Chauí
(2013, p. 262-267), a dimensão autoritária funda
[...] uma sociedade que conheceu a cidadania através de uma figura inédita: o
senhor-cidadão, e que conserva a cidadania como privilégio de classe, fazendo-a ser
uma concessão regulada e periódica da classe dominante às demais classes sociais,
podendo ser-lhes retirada quando os dominantes assim o decidem (como durante as
ditaduras).
[...] uma sociedade na qual as diferenças e assimetrias sociais e pessoais são
imediatamente transformadas em desigualdades, e estas, em relações de hierarquia,
mando e obediência. [...] Todas as relações tomam a forma da dependência, da
tutela, da concessão, da autoridade e do favor, fazendo da violência simbólica a
regra da vida social e cultural.
[...] uma sociedade na qual as leis sempre foram armas para preservar privilégios e o
melhor instrumento para a repressão e a opressão, jamais definindo direitos e
deveres.
[...] [uma sociedade em que] não existem nem ideia nem a prática da representação
política. Os partidos sempre tomam a forma clientelística [...], populista [...] e, no
caso das esquerdas, vanguardista [...].
[...] uma sociedade, consequentemente, na qual a esfera pública nunca chega a
constituir-se como pública, definida sempre e imediatamente pelas exigências do
espaço privado, de sorte que a vontade e o arbítrio são as marcas do governo e das
instituições “públicas”.
[...] uma sociedade na qual a luta de classes é identificada apenas com os momentos
de confronto direto entre as classes – situação na qual é considerada “questão de
polícia” – sem que se considere sua existência cotidiana através das técnicas de
disciplina, vigilância e repressão realizadas por meio das instituições dominantes
[...].
[...] uma sociedade na qual a população das grandes cidades se divide entre um
“centro” e uma “periferia”, o termo periferia sendo usado não apenas no sentido
espacial-geográfico, mas social, designando bairros afastados nos quais estão
ausentes todos os serviços [...].
[...] uma sociedade na qual a estrutura da terra e a implantação da agroindústria
criaram não só o fenômeno da migração, mas também figuras novas na paisagem
dos campos: os sem-terra, volantes, boias-frias, diaristas sem contrato de trabalho e
sem as mínimas garantias trabalhistas.
[...] uma sociedade que não pode tolerar a manifestação explícita das contradições,
justamente porque leva as divisões e desigualdades sociais ao limite e não pode
aceitá-las de volta [...], é uma sociedade em que a classe dominante exorciza o
horror às contradições produzindo uma ideologia da indivisão e da união nacionais
[...].
erguido como monumento da nação não corresponde àquele cuja memória circula nas ruas,
ladeiras e vielas do Pelourinho e dos territórios adjacentes, mantida com zelo e afeto pelo
povo-de-Axé e por populares em mesas de bar e em prostíbulos, em rodas de samba e
capoeira, em repentes e em cordéis. O Archanjo que vai ser comemorado é um homem
branco, formado e autor renomado de vários livros de antropologia; imagem bem diferente do
bedel da Faculdade de Medicina, que escreveu livros que foram ignorados porque destoavam
da tese científica do momento em relação às populações afrodescendentes.
Assim construído, Tenda dos milagres pode ser lido de acordo com duas ordens de
significação não excludentes, mas complementares uma em relação à outra. A primeira delas,
e que se mostra apreensível para qualquer leitor, está situada no nível dos discursos
defendidos pelas personagens, com Pedro Archanjo operando como porta-voz das posições a
serem assumidas pelo romance. A possibilidade inicial de significação da narrativa se
encontra no próprio desenrolar da trama, na solução dos embates que configuram o conflito
interno que a movimenta.
Nesta linha, o romance é significado como uma arena em que dois projetos distintos e
opostos de sociedade se enfrentam. De um lado, aquele que se apresenta como correlato ao
real histórico da capital baiana, o processo modernizador atado a uma concepção cientificista
legitimada e posta em prática pelos aparelhos de Estado – Faculdade e imprensa, no campo
ideológico; polícia, na esfera repressiva. Segundo esta perspectiva, quanto mais uma
sociedade se afastasse dos parâmetros europeus – seja no nível da epistéme, da cultura ou
naquele do fenótipo – menos apta ao progresso e à civilização ela o seria, o que colocava em
xeque o destino do povo baiano.
O doutor Nilo Argolo, Catedrático de Medicina Legal da Faculdade de Medicina da
Bahia, e o delegado-auxiliar Pedro Gordilho, alcunhado Pedrito Gordo, são os obedientes
seguidores desta concepção. A primeira personagem é inspirada na figura real de Raimundo
Nina Rodrigues, maranhense radicado na Bahia, excedendo-a no que se refere aos
desdobramentos violentos da teoria na prática social. Apesar de Nina Rodrigues ser um
convicto defensor do conjunto de teorias hoje denominadas como racismo científico, é
necessário também considerar que ele nunca defendeu ou encorajou a violência sistemática do
Estado contra a população negra; inclusive, colocava-se contra a perseguição aos
Candomblés, mesmo visualizando-os como sintomas da inferioridade racial negra. Na medida
em que Nilo Argolo ultrapassa a referência Nina Rodrigues, a personagem é construída na
condição de uma representação arquetípica do racismo, com o que o romance procura
176
63
Aliás, esse é um exemplo claro em que há dissonâncias entre o discurso ficcional amadiano e aquele produzido
pelo autor quando entrevistado. Jorge Amado posicionou-se reiteradas vezes acerca da inexistência de uma
filosofia racista imperante no Brasil, ao contrário do que ele visualizava nos Estados Unidos, ainda que
admitindo inúmeros racistas no país, principalmente entre as elites – como se pode ler no depoimento a Alice
Raillard (1990). A despeito disso, seu universo ficcional, tanto mais Tenda dos milagres, mostra exatamente o
contrário. Talvez, este seja um caso de supor que a arte, embora produto do intelecto e da sensibilidade humana,
não se reduz ao domínio consciente do criador, movimentando percepções do real que, paradoxalmente, lhe
restam de todo imperceptíveis.
177
correlação entre as supostas condições degeneradas das populações mestiças, que ele entende
como inatas, e sua tendência (também inata) ao crime. De acordo com as premissas
assumidas, era de se esperar um elevado grau de criminalidade em Serrinha, o que não ocorre:
a realidade factual contradiz os resultados esperados pelo modelo proveniente das teorias
cientificistas da época. Apesar do dado objetivo apontar para a refutação da hipótese
palmilhada, inclusive com medições cranianas contrárias às expectativas geradas pelos
parâmetros estipulados pela Antropologia Criminal lombrosiana para o criminoso nato, ele
escolhe fechar os olhos para a verdade científica que se descortinava diante de si: “Mas do
fato de que em Serrinha a criminalidade seja baixa, não se pode concluir que a
degenerescência, tão nitidamente existente nesse local com seus traços mórbidos, não exerça
uma influência muito forte nas manifestações criminosas” (RODRIGUES, 2008, p. 1167).
As citações de Nina Rodrigues justificam-se na medida em que se observa o modo
pelo qual elas penetram na tessitura dos sentidos de Tenda dos milagres, ainda que não
diretamente textualizadas pelo romance. As remissões a Os africanos no Brasil e a
“Mestiçagem, degenerescência e crime”, solicitadas pelo dialogismo em que a personagem
Nilo Argolo é montada, além de novamente estabelecer o vínculo do texto ficcional com o
real histórico, dimensiona, com um maior grau de exatidão, as inevitáveis implicações
autoritárias decorrentes de uma tal perspectiva teórica – aliás, visíveis na legislação formulada
e proposta pelo catedrático como única saída para o Brasil:
Tal corpo de leis a prever e ordenar tudo quanto se relacionasse a negros e mestiços,
centralizava-se em dois projetos fundamentais.
O primeiro referia-se à localização e isolamento de negros e mestiços [...]. Esse
confinamento não possuía caráter definitivo, destinava-se a manter a “raça inferior”
e a “sub-raça aviltante” apartadas do resto da população enquanto não lhes fosse
dado definitivo destino. O professor previa a aquisição pelo governo de território
africano capaz de acolher toda a população negra e mestiça do Brasil. Uma espécie
de Libéria, sem os erros da experiência norte-americana, naturalmente.
O segundo projeto, de claríssima urgência, lei ou decreto de salvação nacional,
proibiria o casamento entre brancos e negros, entendidos por negros todos os
portadores de “sangue afro”. Proibição absoluta, capaz de pôr freio à mestiçagem
(AMADO, 1971, p. 319-320).
Este modelo, obviamente, necessita mais do que a ideologia racial constituída pelo
cientificismo europeu para se concretizar, fazendo uso constante da repressão – seja pelo
conjunto dos tribunais, em que julgamentos viciados ocorrem, ou pela força policial. É neste
contexto que Tenda dos milagres lança mão de uma outra personagem decalcada do real
histórico soteropolitano, esta com um maior grau de fidelidade: o delegado auxiliar de polícia
Pedro de Azevedo Gordilho. Alcunhado Pedrito Gordo, esta figura de triste memória atuou
179
A guerra santa do delegado auxiliar Pedrito Gordo prosseguiu anos afora e aos
poucos a tenaz resistência de mães e pais-de-santo começou a ceder. [...]
Os secretas, às vezes sob o comando do próprio Pedrito, infestavam a noite da Bahia
em busca de candomblés e batuques, o pau comia solto [...].
De 1920 a 1926, enquanto durou o reinado do todo-poderoso delegado auxiliar, os
costumes de origem negra, sem exceção, das vendedoras de comida até os orixás,
foram objeto de violência contínua e crescente. O delegado mantinha-se disposto a
acabar com as tradições populares, a porrete e a facão, a bala se preciso.
O samba de roda foi exilado para o fim do mundo, ruelas e casebres perdidos. As
escolas de capoeira fecharam suas portas, quase todas. Budião andou uns tempos
escondido, Valdeloir comeu da banda podre. Com os capoeiristas, a coisa fiava mais
fino, os secretas não os enfrentavam de peito aberto, tinham medo. De longe e pelas
costas, era mais seguro. De quando em vez o corpo de um capoeirista aparecia
crivado de balas na madrugada, tiros de tocaia, obra da malta de facínoras. Assim
morreram Neco Dendê, Porco Espinho, João Grauçá, Cassiano do Boné (AMADO,
1971, p. 303-304).
coloquem como agentes de uma imposição. Do ponto de vista de sua formação cultural, seria
uma sociedade marcada pelos hibridismos provenientes dos contatos entre o catolicismo e as
religiões de matrizes africanas, sendo estas o vetor de orientação. No que tange ao aspecto
étnico-racial, o modelo defendido por Archanjo se configura muito próximo ao discurso de
uma democracia racial, mas com a importante diferença de não ser posto na condição de um
mito fundador e, sim, na de uma utopia, responsável por acusar as fragilidades e os equívocos
do modelo vigente, além de apontar na direção em que se deve superá-los.
Como forma de engajar-se neste projeto, Archanjo entra em confronto aberto com
ambas as personagens ligadas à teorização do racismo científico e à execução de suas
implicações diretas no cotidiano, Nilo Argolo e Pedrito Gordo. Em relação ao primeiro, o
embate se dá no terreno das teses acadêmicas, ocasião em que Pedro Archanjo, bedel da
Faculdade de Medicina, produz três livros: A vida popular na Bahia, Influências africanas
nos costumes da Bahia e Apontamentos sobre a mestiçagem nas famílias baianas, datados
respectivamente de 1907, 1918 e 1928.
Afigurava-se, nas páginas de A vida popular na Bahia, uma descrição mais
generalizada do cotidiano da velha Salvador, daquela cidade ainda de casas coloniais que
fragilmente resistem à passagem do tempo e do povo que a movimenta e vivifica. Já em
Influências africanas nos costumes da Bahia, ocorre uma abordagem mais pormenorizada em
relação aos aspectos negro-africanos deste mesmo povo, inclusive elevando-o à condição de
poderoso – com o que se estabelece um contraponto, ainda que não diretamente verbalizado,
às teorias advindas do racismo científico: “Da miscigenação nasce uma raça de tanto talento e
resistência, tão poderosa, que supera a miséria e o desespero na criação quotidiana da beleza e
da vida” (AMADO, 1971, p. 291-292).
A perspectiva abraçada por Pedro Archanjo é concebida dentro de um projeto político
de contraposição ao eurocentrismo e consequente afirmação das identidades alijadas do
discurso hegemônico, silenciadas e abafadas. Talvez mesmo por este intento, os primeiros
livros repercutiram pouco para além dos muros da Faculdade de Medicina. Aliás, mesmo na
Instituição pouco despertaram além da curiosidade acerca de certos fatos da cultura popular
negromestiça que já se julgavam extintos ou nunca existentes em terras brasileiras. Por certo,
houve o interesse e a acolhida de muitos estudantes, todavia, menos pelas proposições de
Archanjo no campo de um pensamento racial do que pela perspectiva de afrontar o
intransigente Nilo Argolo, em geral detestado pelo corpo discente da Faculdade.
Outra é a repercussão do terceiro livro, Apontamentos sobre a mestiçagem nas
famílias baianas: “O mundo veio abaixo” (AMADO, 1971, p. 324), resume o narrador. Com
181
diminuta tiragem – 142 exemplares, apenas – e publicado com grande sacrifício na tipografia
de Mestre Lídio Corró, inestimável companheiro de Archanjo, tal estudo vem a se configurar
como contraponto ao já referido anteprojeto de lei do professor Nilo Argolo, apresentado à
Câmara um ano antes e que visava institucionalizar a total segregação racial no estado.
O argumento base desta investigação, que funciona como uma ironia aos arroubos de
branquitude das elites baianas, é a impossibilidade de se separarem brancos e negros por
critério de pureza racial, uma vez considerada a extensão da mestiçagem na Bahia. A
dimensão e a exatidão dos fatos trazidos à tona por Archanjo desta vez reverberam em toda a
classe dominante, ciosa do silêncio acerca de certos avós não brancos, como ilustra a seguinte
passagem:
Como já advertido anteriormente, em face dos segredos guardados com tanto zelo
durante décadas e mesmo séculos, “o mundo veio abaixo”. A despeito da ovação recebida por
Archanjo por parte dos estudantes da Faculdade de Medicina e das vaias direcionadas a Nilo
Argolo, agora em descrédito, o autor dos Apontamentos foi demitido do cargo de bedel, que
ocupara por exatos trinta anos, em razão de ter agredido o catedrático em sua honra.
A retaliação, por parte das elites baianas ofendidas e prontamente escudadas pelo
poder público, tem, na demissão do antigo bedel, apenas o seu início. O caráter autoritário
desta sociedade é evidenciado na medida em que Archanjo é preso e a oficina tipográfica de
Mestre Lídio Corró destruída. De todo o material ali impresso ou em vias de impressão, nada
havia sobrado. Não fossem alguns poucos exemplares que Lídio secretamente enviara para
universidades estrangeiras, entre elas a Columbia University, o esforço para a produção de
esquecimento levado a cabo pelo Governador da Bahia teria completa eficácia.
Noutro campo de atuação se dá o embate com Pedrito Gordo, qual seja, no da
resistência cotidiana à violação sistemática do direito à cidadania. Nesta direção, Archanjo,
como Ojuobá – os olhos do Rei Xangô –, está ao lado daqueles que não abdicam das rodas de
182
samba e de capoeira, muito menos dos toques de atabaque que conectam o indivíduo ao
Sagrado.
Em noite de possibilidades trágicas, uma vez que Pedrito fora cumprir promessa de
liquidar Procópio de Ogunjá, que não acatava as ordens de silenciar os instrumentos sacros,
Ojuobá intervém ante o avanço da escolta do delegado auxiliar. Reconhecendo Zé de Ogum
entre eles, Archanjo faz uso de palavras rituais para que o Orixá se faça presente no corpo
daquele assassino. Montado em seu cavalo, Ogum, Ele próprio, se volta contra Pedrito Gordo,
fazendo-o correr amedrontado pela cidade, ocasionando o seu pedido de demissão do cargo –
fato este que, inclusive, faz parte do acervo de estórias que circulam via oralidade entre os
mais velhos do povo-de-Axé, em Salvador.
Em face dos desfechos apontados, o impulso inicial é acreditar no triunfo de Archanjo
sobre Nilo Argolo e Pedro Gordilho, o que, por consequência, indicaria o sucesso do projeto
de sociedade defendido por Ojuobá em detrimento daquele idealizado pelos partidários de
uma concepção racista. No entanto, esta é uma leitura cuja apenas uma pequena parcela se
apresenta como correta. Se é verdade que o catedrático de Medicina Legal e o delegado
auxiliar restam desacreditados após os eventos narrados, é igualmente verdade que tais
ideologias não são apagadas do cotidiano da cidade, permanecendo entranhadas como uma
estrutura de longa duração na mentalidade baiana – ou, pelo menos, nos posicionamentos
adotados pelas classes dominantes. Neste sentido, é sintomática uma resposta de Archanjo a
Mestre Lídio Corró, quando este lhe pergunta, após a derrocada de Pedrito e Argolo, se algum
dia a luta contra o caráter excludente da sociedade em que viviam teria fim: “Um dia vai se
acabar, meu bom, não será no nosso tempo, camarado! [...] Vamos morrer brigando”
(AMADO, 1971, p. 313).
Por um lado, Archanjo – como, de resto, também Lídio – se mostra consciente que o
fundamento autoritário da sociedade baiana, na acepção anteriormente resenhada junto a
Chauí (2013), não se resume às figuras de Nilo Argolo e de Pedro Gordilho, que emergem
muito mais como sintomas de um tempo do que na condição de agentes dinamizadores de sua
instauração. Esta configuração social hierarquizada, desigual e cerceadora das liberdades de
indivíduos ou de grupos que se encontram na base da pirâmide social está para além de
médicos-professores e de delegados auxiliares, não bastando derrotá-los para que os mortos
durante as batalhas tenham alguma segurança, ainda que mínima. Por isso, a angústia de Lídio
Corró, desde muito jovem junto a Archanjo no enfrentamento às restrições impostas ao
segmento popular, a negros e mestiços, ao povo-de-Axé. Também por isso, o acento de
183
alguma recôndita dor, ou de uma pontiaguda mas disfarçada tristeza, por baixo do aspecto
solar daquela certeza tão firme.
Por outro lado, e apesar de tudo em contrário, Archanjo responde a Lídio com um
aceno de esperança. A luta há de ter um fim, embora certamente não quando ambos ainda em
vida – toda esta de mais pura e verdadeira resiliência.
A certeza sem dúvidas que anima a esperança da personagem no futuro não se
confirma na representação do real baiano impresso em Tenda dos milagres; nem na sequência
dos últimos anos vividos por Pedro Archanjo, quando sob a ditadura Vargas e os movimentos
de aproximação do Estado Novo com as forças (e os fundamentos epistêmicos) do nazi-
fascismo, nem após a sua morte, que ocorre em 1943. Também não se verifica em 1968,
segundo eixo temporal do romance e presente em relação ao narrador, quando ocorrem as
celebrações oficiais do centenário de Pedro Archanjo em meio ao contexto da ditadura militar
brasileira.
A própria natureza do regime estabelecido pelos generais evidencia o estado de
exceção e a configuração autoritária que funda a sociedade nacional, embora sob uma
perspectiva diversa daquela pretendida por Argolo e Gordilho. Gostaria de enfatizar que não
me refiro aqui às supressões das liberdades políticas e civis ocasionadas pela sucessão de Atos
Institucionais, nem à repressão e à censura deles decorrentes, que são fatos também presentes
em Tenda dos milagres, ainda que não emerjam com toda força ao primeiro plano da cena
representacional. Antes, continuo pensando em termos étnico-raciais e de cultura, além,
evidentemente, do aprofundamento da desigualdade socioeconômica.
Sob este prisma, se é verdade que o ano de 1968 não se coloca como uma
intensificação das políticas oficiais adotadas durante o período abarcado pelo primeiro eixo
temporal do romance, não se configurando de acordo com o projeto de lei formulado por Nilo
Argolo nem abraçando novas versões de Pedrito Gordo, é igualmente verdade que se situa
mais próximo a este modelo do que em relação àquele pretendido por Pedro Archanjo. Os
vetores que orientam a fundação da estrutura social se mantêm os mesmos, mudando apenas
aqueles conformativos de sua fina camada de superfície.
A aderência antes assumida de discursos oficiais a um proselitismo racista, porque em
consonância com os paradigmas norteadores do início do século, é substituída por
posicionamentos ocultos sob a desfaçatez dos não-ditos. Os epistemicídios constituídos a
reboque de uma sistemática violência aos corpos dominados, não raro desdobrando-se em
torturas e assassinatos, atualiza-se por via da produção de silêncio – ao invés da morte sobre a
vida, impõe-se a não-existência. Pedro Archanjo não se encontra apenas morto há 25 anos,
184
falecido em uma ladeira do Pelourinho em 1943, mas esquecido de forma deliberada pelos
grupos instalados nas esferas de poder político e econômico-social; desconhecido dos jovens
em idade escolar e ignorado por intelectuais e acadêmicos, cuja dependência das teorias
vindas de antigas metrópoles coloniais, ou de potências como os Estados Unidos, opera como
uma forma de deslocamento em relação à possibilidade de uma produção própria de
pensamento. Em uma palavra, Archanjo fora varrido da história oficial que narra o passado da
Bahia, que institui modelos a serem seguidos pelas novas gerações, que fornece conteúdos
para a legitimação da estrutura social de qualquer tempo presente.
Não demanda muito esforço compreender o hiato que se estabelece entre a morte de
Pedro Archanjo e a efeméride de seu centenário como uma estratégia – bastante eficiente,
cabe reconhecer – dos setores dominantes em silenciar conteúdos que provocassem uma
tensão na organização social constituída, salvaguardando deste modo a própria estrutura que
engendra o autoritarismo presente na sociedade brasileira – e, por consequência, também na
baiana, como mostra a ficção de Amado. Aliás, é justamente este o fio condutor do segundo
eixo temporal de Tenda dos milagres, cujo segmento narrativo expõe ao leitor como se dá a
produção de silêncios ou de apagamentos estratégicos a fim de neutralizar possíveis forças em
contrário à ordem vigente.
É em função da especificidade deste desdobramento que se deve observar aquela
segunda ordem de significação do romance, anteriormente anunciada. Ela se apresenta
disponível apenas aos que se perguntam sobre as razões pelas quais a trama não prossegue de
forma linear de um eixo temporal ao outro, iniciando-se em 1868 e sendo concluída cem anos
depois, mas interpola a ambos em um contínuo movimento passado-presente-passado.
Portanto, está além das formações discursivas e ideológicas movimentadas pelas personagens,
não se localizando no mesmo plano em que se situam os conteúdos vazados por intermédio
delas, mas, sim, na estrutura temporal que enforma o romance.
É devido a esta segunda ordem de significação que se pode estudar Tenda dos
milagres como uma narrativa pertencente ao arco ficcional revisionista amadiano. Isto porque
ela acarreta a possibilidade de que um outro conflito emerja, não se tratando este do modo
como as personagens se atritam e se resolvem, mas da formulação oficial de uma narrativa
sobre o passado e de suas vinculações ideológicas com os setores que a produzem no
presente. Lido deste modo, o enfoque do romance recai nas contradições existentes entre os
dois eixos temporais, pondo em evidência os conteúdos apagados e as razões que orientam
tais esquecimentos.
185
No átimo em que uma palavra é dita (com forte acento estadunidense), o nome de
Pedro Archanjo, antes relegado aos subterrâneos, se eleva ao lugar de glória e monumento da
nação.
Levenson estranha o fato de não se conseguir qualquer dado biográfico sobre o
intelectual baiano, o que se apresenta como uma lacuna em seu intento de traduzi-lo para o
inglês. Por isso, encomenda a Fausto Pena uma pesquisa sobre a vida de Archanjo, o que é
realizado pelo poeta via as memórias oriundas das margens heterotópicas da cidade de
64
Não se pode ignorar a engenhosa ironia presente na aproximação fônica entre o nome da personagem
amadiana e o ator estadunidense James Dean, falecido precocemente em 1955, aos 24 anos, mas que se
constituiu (e ainda se constitui) como um dos símbolos máximos da indústria hollywoodiana, responsável por
vincular sua imagem à juventude daquela década. Nesse sentido, Jorge Amado ri de determinados segmentos da
intelectualidade baiana – talvez os mesmos que ele já criticava nos anos de 1930, quando escrevia artigos para
Boletim de Ariel.
186
Salvador. A rigor, a narração do primeiro eixo temporal, que abarca os 75 anos de Ojuobá,
corresponde à história resgatada e publicada pelo próprio Fausto Pena. Levenson a ignorou
completamente, preferindo seguir a versão instituída como oficial – narrativa esta que Fausto
Pena faz questão de permitir que o leitor a flagre em seu processo de montagem:
folclorista Edelweiss Vieira; Zezinho Pinto, diretor do Jornal da Cidade e responsável pelo
“furo de notícia” que colocava 1968 como o ano do centenário de Archanjo. O orador
principal da noite era o acadêmico Batista, sujeito identificado com o regime militar, “[...]
homem de proa da situação, responsável, segundo diziam, por muitas denúncias e muitos
processos de elementos subversivos” (AMADO, 1971, p. 365).
Tendo assumido há poucos dias a presidência da Benemérita Associação de Defesa da
Tradição, da Família e da Propriedade, o professor Batista ocupou “[...] a maior parte do
discurso no elogio da ‘verdadeira tradição, única efetivamente digna de culto, a da família
brasileira e cristã’” (AMADO, 1971, p. 366). Desta forma, era natural que o orador viesse a
polemizar com Pedro Archanjo:
A seu ver, o homenageado da noite, alvo do generoso aplauso dos presentes, jamais
deveria ter ultrapassado os limites das pesquisas folclóricas: “ainda que eivadas de
imperfeições quantiosas, representam tentativa promissora e merecem ser admitidas
na prática dos eruditos”. Ao querer, porém, lavorar em messe de grandes sábios da
estatura de Nilo Argolo e Oswaldo Fontes, “grafou extravagâncias sem a mais
reduzida base de infrágil sustentação” (AMADO, 1971, p. 366).
contexto de uma sociedade de consumo, que visa explorar a “marca” Archanjo para promover
produtos diversos.
Como já informado, coube ao Jornal da Cidade anunciar que se vivia o ano do
centenário de Archanjo, furo obtido a partir de uma entrevista do Major Damião, personagem
muito próxima ao homenageado. Este fora o único ponto positivo da conversa entre o rábula e
Zezinho Pinto, uma vez que a narrativa evocada pela memória subterrânea do major trazia à
tona fatos não condizentes com a imagem idealizada para uma glória nacional.
Os episódios relatados por Damião versam sobre a perseguição a Procópio e sobre o
triunfo diante de Pedrito; contam dos Afoxés indo às ruas, mesmo proibidos, descrevem a
Tenda dos Milagres de Mestre Lídio; revelam o cotidiano de uma Bahia popular, dizem de um
Pedro Archanjo negromestiço, que também atende pelo posto de Ojuobá – desde sempre, uma
referência para o povo negro e pobre da sociedade baiana. “Muita coisa, certamente”,
comenta Fausto Pena, “mas toda aquela lengalenga do Major derrota o dono do jornal: de
pouco vale, não possui o mínimo caráter científico” (AMADO, 1971, p. 79).
Gostaria de pinçar a referida sensação de derrota que acomete Zezinho Pinto, pois
acredito que ela se constitua como uma possibilidade de sondar as mentalidades em jogo
naquela Cidade da Bahia. O empresário do ramo de notícias é um homem arguto e bem-
sucedido, que sabe ler a sociedade em que está inserido e antecipar-se a ela de maneira a
adivinhar os fatos passíveis de repercussão (e aumento da tiragem do jornal) ou não. Se
pensado por esta linha, o seu desânimo é revelador do desinteresse citadino em estórias
relacionadas a negros e mestiços, ao povo-de-Axé, aos pobres. Por consequência, a recusa de
Zezinho Pinto em veicular a trajetória de Archanjo pela perspectiva também heterotópica do
Major Damião sugere uma sociedade que, uma vez organizada a partir de valores e princípios
etnocêntricos, desvaloriza, por infame, tudo aquilo que não é burguês, branco ou cristão; tudo
o que não é espelho das antigas metrópoles coloniais.
Esta leitura ganha força na medida em que se observa a reincidência de Zezinho Pinto
em rejeitar a memória subterrânea acerca de Archanjo, desta vez expressa por meio das
pesquisas de Fausto Pena, de todo coincidentes com os fatos narrados pelo major. Desta vez, a
reação do empresário é ainda mais sintomática:
Quando, porém, lhe exibi minhas notas, por pouco não fatura uma crise histérica.
“Isto é exatamente o que não quero: essa falta de respeito com um grande homem,
com um espírito superior. Esse achincalhe, esse apequenamento da figura de
Archanjo. Não admito! Se lhe compramos essas laudas de tagarelices e
maledicências é exatamente para pô-las fora, para que não sejam usadas e não
189
maculem a imagem de Pedro Archanjo. Meu caro Fausto, pense nas crianças das
escolas”.
[...] Doutor Zezinho, ainda nervoso, completou: “Polígamo, que infâmia! Não era
sequer casado! Meu caro poeta, aprenda esta lição: um grande homem tem de
possuir integridade moral e se, por acaso, transigiu e prevaricou, cabe-nos repô-lo
em sua perfeição. Os grandes homens são patrimônios da Pátria, exemplos para as
novas gerações: devemos mantê-los no altar do gênio e da virtude” (AMADO, 1971,
p. 129, grifos meus).
Gastão Simas – de resto, empresa também responsável por toda a efeméride do centenário. E
aqui é necessário considerar a ironia com que Jorge Amado nomeia a agência, remetendo a
uma ideia de falseamento do real para fins de obtenção de vantagens escusas, quais sejam.
Outra chave de leitura aponta para os efeitos decorrentes da produção de uma falsa realidade,
relacionando-os a uma sensação de entorpecimento e de descontinuidade em que, não raro, os
sujeitos se perdem, tornando-se alheios ao seu derredor. Trata-se de uma razão social que
alegoriza uma ação alienante sobre o povo, condição propícia para a legitimação e a
perpetuação dos que se situam no poder do Estado.
Como forma de oferecer um suporte à escola, são solicitadas algumas notas
biográficas ao professor Calazans, um dos poucos profissionais de fato a conhecer e estudar o
pensamento de Archanjo. Estas informações seriam vertidas em um texto narrativo pela
Dopping destinado às professoras de ensino primário da rede pública de Salvador, a fim de
prepará-las com o conteúdo necessário – e adequado – para uma aula sobre o ilustre baiano, a
partir da qual as crianças deveriam produzir suas redações.
Neste momento, a sequência narrativa de Tenda dos milagres sofre um corte,
colocando em suspenso a voz de Fausto Pena para reproduzir, um logo após o outro, os
discursos veiculados sobre Archanjo. Inicialmente são introduzidas as notas biográficas
produzidas pelo professor Calazans, que se dividem em torno de seis elementos: “nome”,
“data e local de nascimento”, “filiação”, “estudos”, “livros”, “outros dados” e “morte”. Em
seguida, o leitor tem acesso ao texto escrito por profissionais da Dopping S.A., que serve de
fonte de consulta para a professora Dida Queiroz, lotada na Escola Pública Jornalista
Giovanni Guimarães, preparar sua aula, cuja preleção vem a ser também veiculada pelo
romance. Por último, é transcrita a redação de um estudante, Rai, de nove anos.
A comparação entre as quatro versões – notas biográficas; texto narrativo; preleção e
redação –, às quais se deve ainda somar uma quinta, aquela que vem sendo produzida pelo
próprio Fausto Pena, coloca em evidência os processos sistemáticos de apagamento e
falseamento de dados relativos à vida e ao pensamento de Archanjo. Destas ações, decorre
uma deliberada produção de esquecimento que visa relegar às sombras – e aos subterrâneos
da memória coletiva – todos os traços heterotópicos constitutivos da personagem, além de
também obliterar a potência rasurante do status quo que deles deriva. Em paralelo, erige-se
um outro Archanjo, este de todo docilizado pelo poder instituído, a ele vinculado e dele
reprodutor, cuja versão vem a ser entronizada no ambiente escolar – este aparelho ideológico
de Estado.
191
Um primeiro apagamento, que ocorre inclusive nos dados produzidos pelo professor
Calazans, se dá na ligação da personagem com o Candomblé – elo importante para situá-la em
termos de identidade ou em relação ao contexto em que se travou a batalha contra Pedrito
Gordo, também não referenciada.
Embora Fausto Pena dê voz a Archanjo para que este afirme possuir dois nomes, um
cristão e outro nagô, Ojuobá, este segundo, que o conecta às tradições religiosas afro-baianas,
não é textualizado em nenhuma versão além daquela enunciada pelo narrador. De maneira
semelhante, o nome de Rosa de Oxalá, que vem a ser o grande e irrealizado amor de
Archanjo, não consta nem sequer nos dados do professor Calazans; fato que talvez se explique
pela referência a um Orixá, conotativa de um pertencimento religioso não interessante de ser
mencionado.
O mesmo se aplica à filiação materna de Ojuobá, apesar de o professor Calazans
registrar o nome “[...] Noêmia de Tal, mais conhecida por Noca de Logunedê” (AMADO,
1971, p. 206). O texto produzido pela Dopping não a nomeia, referindo-se a ela pela condição
de “esposa grávida”. Na sequência, Dida Queiroz não faz qualquer menção a ela; lacuna
também notada na redação de Rai, que, a exemplo da professora, classifica Archanjo como
órfão – já Noca de Logun inexiste.
Aliás, o apagamento do nome materno está diretamente relacionado ao
engrandecimento do pai de Ojuobá, Antônio Archanjo. Nomeado apenas pelo professor
Calazans e relacionado à posição de recruta na Guerra do Paraguai, Antônio Archanjo é
promovido a herói pela Dopping e a General por Dida Queiroz. Ademais, o texto produzido
pela agência de publicidade faz de Pedro Archanjo “herdeiro das gloriosas tradições paternas”
(AMADO, 1971, p. 209), com o que eleva a figura de Antônio e dirime a de Noca.
É necessário considerar que, no contexto da guerra contra Solano López, o Exército
Brasileiro recrutou muitos negros escravizados sob a promessa de alforria uma vez terminado
o conflito. Sendo assim, a referência ao nome e à real posição desempenhada por Antônio
Archanjo no Paraguai podem servir como rastros que revelem a ascendência negra de Ojuobá.
Não são desprovidos de intenções, portanto, o esquecimento dos nomes (da mãe e do pai) e a
ascensão post mortem de Antônio a General; constituem-se como estratégias para distanciar a
nova glória nacional de posições que denotem uma genealogia negra e um pertencimento
cultural/religioso ligado ao Candomblé.
Em contraposição ao esquecimento em torno de Noca de Logunedê naquela que vai
sendo constituída como a história oficial de Pedro Archanjo, Fausto Pena faz o leitor saber, de
antemão, a importância singular que a mãe teve na vida do filho, que aprendeu em sua
192
companhia “[...] em vida tão parca e dura [...] a não ceder, a não desanimar, a seguir em
frente” (AMADO, 1971, p. 226).
Noutro plano, apesar de o professor Calazans registrar o fato de Pedro Archanjo ser
um mulato, este dado não aparece no texto fornecido pela agência publicitária nem na fala de
Dida Queiroz, com o que também não surge na redação de Rai. Para a Dopping e a
professora, vale apenas o registro de ter sido Archanjo alguém nascido em meio pobre e
pouco propício à cultura – classificação esta última também presente nas notas biográficas
originais, a partir das quais se podem observar critérios de hierarquização cultural, as
tradições negras não sendo abrangidas pelo conceito formulado de acordo com uma razão
eurocêntrica.
No que se refere aos livros produzidos por Pedro Archanjo, ainda que o professor
Calazans traga os títulos e informe se constituírem como materiais importantes para a “[...]
compreensão do problema de raças no Brasil” (AMADO, 1971, p. 207), ele próprio não
localiza em que perspectiva os trabalhos abordam a questão nem sequer os situa
historicamente, em meio ao debate com o racismo científico defendido por Nilo Argolo. A
Dopping segue na mesma esteira, porém ocultando os títulos. A professora Dida Queiroz, por
sua vez, reduz as pesquisas archanjianas a simples e pueris “[...] histórias de bichos e de
gente, mas [que] não servem para menino ler” (AMADO, 1971, p. 213) – a advertência
funcionando com estatuto simbólico de veto através do qual a escola, como aparelho
ideológico de Estado, busca cercear o acesso a posicionamentos contrários àquele
estabelecido pela ideologia oficial.
Outro ponto a ser observado corresponde ao sucesso profissional que, excetuando-se
Calazans e Fausto Pena, atribuem a Archanjo. Na fala da professora Dida Queiroz, por
exemplo, não tendo sido nunca bedel, Pedro Archanjo fez vestibular foi aluno e professor da
Faculdade de Medicina, talvez até amigo de Nilo Argolo, quem sabe? E não somente isso, foi
também professor de James D. Levenson nos Estados Unidos, mais precisamente na
Columbia University.
Por último, cumpre observar o estatuto conferido a Kirsi, escandinava que passa de um
dos breves e inúmeros amores de Archanjo – sendo a não comentada Rosa de Oxalá o maior
dentre eles – à condição de esposa do baiano, com quem viveu feliz na Europa e nos Estados
Unidos, além de no Brasil, como sugere Dida Queiroz. Não é difícil inferir nesta alteração
histórica, ainda mais quando associada ao apagamento da condição mulata de Archanjo, um
processo de branqueamento de Ojuobá, utilizando-se para isso a pele da estrangeira, “branca,
mas branca de alvaiade” (AMADO, 1971, p. 95).
193
[...] tanta festa, tanto discurso, tanto elogio a Archanjo, merecedor disso tudo e de
muito mais ainda – mas eis o reverso da medalha! A família, os descendentes de
Archanjo, seus parentes, esses morriam à míngua, vegetavam na maior miséria, na
fome e no frio. Ali mesmo, minhas bondosas Senhoras, meus ilustres Senhores,
naquela sala em festa tão grandiosa, ali mesmo padecia uma parenta próxima de
Archanjo, mãe de sete filhos, às vésperas do oitavo, viúva ainda a chorar a morte do
esposo estremecido, necessitada de médico, hospital, remédios, dinheiro para
comida dos meninos... Ali, naquela sala onde eram ouvidos tantos louvores a Pedro
Archanjo, ali...
Apontava a mulata na cadeira:
– Levante-se, minha filha, ponha-se de pé para que todos vejam em que estado se
encontra uma descendente, uma parenta próxima do imortal Pedro Archanjo, glória
da Bahia e do Brasil, glória da Pátria! (AMADO, 1971, p. 368).
194
A cena é toda ela permeada de fina ironia, uma vez que torna porosos os limites entre
a mentira e a verdade. A mulher a quem o Major se refere não é filha de Pedro Archanjo, nem
sequer o conheceu, talvez nem guarde qualquer memória, ainda que de oitiva, do seu nome.
Ao mesmo tempo, ninguém presente ali naquele Salão Nobre, à exceção do próprio rábula,
guardava tanta relação com o homenageado. A imagem evocada pela presença da mulata
grávida e necessitada atualiza, por via alegórica, a descrição feita pelo próprio Archanjo a
respeito das condições de vida da população negromestiça na Cidade da Bahia,
invariavelmente posta às margens do Estado. Estabelece, deste modo, uma continuidade entre
os eixos temporais do romance: a sociedade autoritária dos tempos de Pedro Archanjo Ojuobá
permanece, ainda que nuançada, nos dias vivenciados por aquela mulata grávida, além de se
projetar na experiência ainda futura que aquele embrião possivelmente virá a ter. Não deixa
de ter razão Fraga Neto, também ele próximo a Archanjo e presente na sessão solene, que
comentou: “[...] nessas comemorações tudo fora farsa e embuste, um colar de absurdos.
Talvez a única verdade tenha sido a invencionice do Major, a mulata prenhe e sem comida,
precisada e sestrosa, falsa parenta, parenta verdadeira, gente de Archanjo, universo de
Archanjo” (AMADO, 1971, p. 369-370).
Ao fim e ao cabo, os tempos não são tão outros assim; o estado de exceção que a
tradição dos oprimidos põe em cena se perpetua. De certo modo, Argolo e Pedrito continuam
vivos no discurso oficial do Batista, no texto da Dopping, na fala da professora Dida Queiroz;
nas hierarquias estruturais da cidade e no repúdio a tudo que não seja branco e proveniente da
matriz colonizadora ocidental. O Archanjo que dá nome a ruas e escolas e que segue sendo
homenageado pelas instâncias oficiais do poder não é o mesmo que viveu no Pelourinho,
combateu Argolo e Pedrito, que em vida já era pai e herói do povo negromestiço e pobre da
Bahia; não é o mesmo que se mantém como reminiscência presente nas memórias
subterrâneas, nas quais é recordado pelo nome nagô, Ojuobá. Trata-se, enfim, de um
monumento construído a espelho das ideologias dominantes, como flagra Fausto Pena: “[...]
na estátua, quase branco puro, sábio oficial da Faculdade, capado e mudo, vestido com a
túnica de soldado, Pedro Archanjo, glória do Brasil” (AMADO, 1971, p. 334).
de pertença dos nativos em relação às suas supostas altas origens, o que é feito através de
reencenações do mito de fundação local bem como a partir da rememoração em forma de
bustos, ruas e praças daqueles instituídos como heróis – sujeitos cujos sobrenomes, sem
dúvida, ressoam nas famílias que se perpetuam como a elite do lugar.
Em meio às comemorações, o narrador se descola da história oficial da cidade para
remontar o seu começo sob uma perspectiva diversa da que narra altas origens, interpelando-a
a partir do passado que fora apagado e esquecido, a pequena comunidade de Tocaia Grande –
face obscura que, uma vez trazida à tona, tensiona e desmonta a face refulgente sobre a qual
se erige o mito da cidade grapiúna.
Imbuído de tal perspectiva, o narrador pouco se dirige de forma direta a Irisópolis,
fazendo-o apenas em um breve preâmbulo, quando situa os festejos de seu aniversário, e no
último parágrafo do romance, apenas para dar um ponto final à narrativa:
O interesse do narrador não é a cidade que completa setenta anos, mas o pequeno
arraial que ali existia no antes de qualquer origem a ser celebrada. Toda a narrativa gira em
torno da formação de Tocaia Grande, localidade que vem a ser descrita como um território de
“[...] liberdade e sonho” (AMADO, 2008, p. 428).
À primeira vista, uma narrativa assim delineada coloca em apuros a possibilidade
antes aventada de ler o revisionismo amadiano como revelador de estados de exceção,
configurados como sociedades autoritárias. Ao que parece, o retorno ao passado, pelo menos
neste romance, busca desencavar o exato oposto do que seria a imagem formulada por Chauí
(2013), trazendo à tona uma organização social constituída como uma efetiva comunidade, na
qual não haveria “[...] obrigação nem horário de trabalho. Nem feitor nem capataz, nenhum
patrão. [...] Ninguém mandava em ninguém” (AMADO, 2008, p. 191).
Esta caracterização positiva de Tocaia Grande não é posta em cena apenas pelo ponto
de vista do narrador, resultante das narrativas orais a que teve acesso e dos cordéis coligidos,
mas também enunciado, como um estratégico reforço, pelas personagens. Quando do início
do assédio ao pequeno arraial, simbolizado na chegada de dois missionários católicos, a voz
de Carlinhos Silva, representante de uma firma exportadora de cacau e apaixonado pelo lugar,
196
emerge com a autoridade de quem conhece não só aquele pedaço de chão, mas boa parte do
mundo ocidental:
em uma abordagem a partir desta divergência que acredito ser possível sustentar a leitura do
modelo social configurado em volta da comunidade como autoritário.
Decerto, não se apresenta como um exagero estender um tal modelo inclusive à
própria Irisópolis, mesmo ela pouco se concretizando em texto. Apesar do quantitativo de
páginas dedicadas à cidade ser realmente ínfimo, ela se projeta, como sombra, em todo o
romance, podendo ser interpelada em função da inferência de contrastes que se estabelecem
quando pensada a partir do que Tocaia Grande efetivamente representa. Irisópolis pode
corresponder ao reverso exato da comunidade anteriormente assentada naquela faixa de terra
onde a cidade veio a ser edificada; a substituição de uma pela outra ocorrendo de forma não
pacífica ou natural, mas por intermédio do assédio, da submissão e do extermínio – “[...] a
iniquidade esmagando a liberdade”, como faz saber o narrador ao recuperar a voz de poetas e
cantadores populares, responsáveis pela denúncia do massacre ocorrido (AMADO, 2008, p.
453).
Ademais, ainda que óbvio, há um dado que não pode ser desconsiderado de todo.
Corrobora para esta leitura o fato de o recurso da memória funcionar como uma estratégia
simbólica de suprir ausências, entrando em cena apenas quando o objeto da rememoração já
não se encontra presente; a memória evidencia o que falta. Em Tocaia Grande, o retorno
mnemônico ao passado tem por objetivo principal fazer emergir, na memória coletiva, o
genocídio que sustenta a fundação de Irisópolis, fato ocultado pela história oficial do lugar, e
que tensiona a construção idílica de uma cidade supostamente nascida sob os signos da paz e
da fraternidade. Em paralelo a este intento, outras memórias são reivindicadas, liberando
conteúdos que igualmente faltam à convergência espaço-temporal em que o narrador se situa
– entre eles, a reiterada afirmação de uma estrutura social em que todos os seres humanos se
equivalem, com possíveis assimetrias individuais não incorrendo em hierarquizações,
desigualdades ou em conflitos.
Se correta esta chave de leitura, Irisópolis corresponderia ao exato oposto de Tocaia
Grande não apenas no instante dos eventos que fundam a urbe, o autoritarismo vencendo a
liberdade, mas também e ainda no presente a partir do qual o narrador a observa, cuja
flagrante existência de uma produção constante de silêncio é índice maior de uma relação
desigual de forças entre os grupos sociais ali estabelecidos.
Cabe seguir uma argumentação em duas linhas distintas. A primeira delas, com o
enfoque recaindo nas seis partes iniciais do romance, deve investigar os rastros que permitem
elucidar o mundo deixado para trás por aqueles que migraram em direção a Tocaia Grande,
bem como observar o sentido que eles dão àquela comunidade, comparando suas vidas antes e
198
depois de ali se instalarem. A outra precisa interpelar a sétima e última parte da narrativa,
aquela anteriormente referida como dotada de uma arquitetura trágica, para nela entender o
extermínio do arraial não apenas como motivado pela ambição em torno de férteis terras de
cacau, mas também como um ato de expurgo a uma organização social que prescinde de
hierarquias e preconceitos, que é avessa às exclusões.
Nascida como ponto de pernoite de tropeiros em trânsito, a localidade de Tocaia
Grande, situada em um amplo descampado entre duas fazendas de cacau, se desenvolve
acolhendo uma população composta de margens sociais e étnicas em migração, sujeitos que
trazem consigo memórias que narram da opressão circundante àquele espaço de terra
devoluta, onde podem ter a experiência de alguma liberdade.
A passagem de um ponto de pernoite de tropeiros no qual algumas poucas prostitutas
trabalhavam sem pouso fixo, além dos que ali ficavam pelo ofício de proteger um depósito de
cacau, à condição de um arruado se dá pela chegada e instalação dos primeiros reais
moradores da localidade. Entre outros, assentam-se em Tocaia Grande o mascate libanês
Fadul Abdala, convencido de que havia sido conduzido até ali por Deus, na perspectiva do
catolicismo maronita65, para se que estabelecesse feliz e enriquecesse; o ferreiro Castor
“Tição” Abduim, fugido da condição de escravizado que, no Recôncavo Baiano, perdurava
para além de 1888, e a velha prostituta Jacinta Coroca, já sem idade para exercer a profissão
de povoado em povoado.
À parte o Capitão Natário da Fonseca, proprietário da Fazenda da Boa Vista e uma
espécie de patrono de Tocaia Grande, é por intermédio destas três personagens que, de pouco
em pouco, se vai tecendo o sentido de comunidade responsável por animar as relações entre
os habitantes do lugar – sentimento a partir do qual se pode observar aquela região limítrofe
entre a heterotopia ali constituída e a sociedade autoritária em derredor.
Antes de acompanhar as trajetórias do trio de personagens acima destacado,
principalmente as de Tição e de Coroca, convém dar alguma atenção a um conjunto de
sergipanos migrantes, oriundo de Maroim, e primeira família a se fixar naquele lugarejo. De
65
De acordo com as informações contidas no site oficial da Igreja Maronita no Brasil, “A Igreja Maronita é uma
Igreja católica, de rito oriental, em plena comunhão com a Sede Apostólica Romana, ou seja, ela reconhece a
autoridade do Papa. Tradicional no Líbano, essa Igreja Oriental possui ritual próprio, diferente do rito Latino
adotado pelos católicos ocidentais. O rito maronita prevê a celebração da missa em língua siro-aramaico, a
língua que Jesus Cristo falava. ٍA Igreja Católica possui duas raízes: a ocidental ou romana e a oriental. Dentro
desta segunda, quatro são as sedes patriarcais que marcaram sua história: Jerusalém, Alexandria (Egito),
Antioquia e Constantinopla. Dentro do grupo de Igrejas antioquenas existem dois grupos: sírio-ocidental e sírio-
oriental. A Igreja Maronita forma parte do grupo sírio-oriental, sendo o siríaco sua língua litúrgica. Integra-se,
pois, na tradição cristã oriental, sendo seu povo das raízes mais antigas de toda a Cristandade”. Cf.
www.igrejamaronita.org.br
199
feição alquebrada e espírito sem muita esperança, este grupo, composto por dez pessoas e
organizado em torno do casal de idosos Ambrósio e Vanjé, dá ensejo e vazão a uma estória
comum a praticamente todos aqueles que se dirigem à região grapiúna:
Mais uma vez o capitão [Natário da Fonseca] escutou a corriqueira crônica dos
corumbas. Homens e mulheres, do velho ao molecote, cavoucavam medidas braças
de terra à meia com o dono e senhor, fazendeiro de gado, chefe político, senador
estadual. A vida transcorria plácida, plantavam e colhiam, levavam a parte que lhe
tocava à feira de Maroim, vendiam e barganhavam. Aos domingos as mulheres
acudiam à igreja, os homens ao botequim.
Um dia, sem quê nem por quê, o velho regressou com a paga estipulada pelo
senador – não adianta discutir, é pegar ou largar –, o prazo para arrumar a trouxa e
buscar outra pousada, uma ardência nos olhos, um nó na garganta. Queixar-se a
quem? Ao bispo?
Para as mulheres no desatino da aflição houve, bem certo, o conforto do padre-
mestre, ele próprio afetado pela medida inesperada que vinha privá-lo dos gordos
capões, das frutas escolhidas, dos tenros aipins, dádivas semanais daquela boa gente,
temente a Deus. Aconselhou resignação e obediência. De certa maneira – opinou
semicerrando os olhos, entrelaçando os dedos sobre a pança – deviam considerar-se
criaturas de sorte dado o natural bondoso do senador. Dono da terra – ou a terra era
deles, por acaso? –, se o senador quisesse, poderia tê-los posto fora sem pagamento
de nenhuma espécie, sem prazo, sem aperto de mão. Precisava daquele massapê para
transformá-lo em pasto para o gado, capim-gordura em lugar de mandioca e feijão.
O rebanho tinha preferência, nada mais justo. O senador fora duplamente
magnânimo; primeiro, ao lhes permitir lavrar e colher por tanto tempo; depois, ao
pagar pelo que não devia. Recordou ainda o prazo concedido, suficiente para que
pudessem ir à feira no sábado vender os produtos derradeiros, antes da mudança.
Cabia agradecer. Deitou-lhes a bênção, Deus é grande (AMADO, 2008, p. 208,
grifos meus).
A frase com que se inicia o trecho citado dá a medida da recorrência com que levas e
levas de imigrantes são expulsas das terras que lavravam, nelas cultivando suas próprias
vidas. Não era a primeira vez que o Capitão Natário da Fonseca tomava conhecimento de tais
experiências; não seria a última. Drama cotidiano em um país cujos solos férteis, não
importando quais, sempre têm donos e no qual o regime de terras é baseado no latifúndio, não
raro improdutivo e muitas vezes obtido por meio das armas ou de estratagemas de grilagem
legitimados por um judiciário cúmplice dos crimes que julga, a sorte dos sergipanos é, por si
própria, imagem impressa da sociedade autoritária a que estavam submetidos.
Validada pelo padre-mestre, que parece enxergar mais necessidade no rebanho bovino
do que naquele da parábola bíblica que narra o rebanho de Deus, a ação do senador não pode
ser compreendida de acordo com o argumento que busca guarida na propriedade privada, sob
pena de esta ser uma posição irmanada à arbitrariedade cometida, endossando-a a partir de um
ordenamento jurídico cuja razão maior de existir é a salvaguarda de privilégios senhoriais em
prejuízo dos mais pobres.
200
poder público, em verdade, se configura como uma extensão da esfera privada, com partidos e
políticos exercendo o governo em benefício próprio, não alcançando nem tentando alcançar
constituírem-se como representação popular. Todos os direitos são reivindicados pelas classes
dominantes e por elas administrados, não cabendo qualquer segurança jurídica àqueles que se
encontram na base da pirâmide social, fato que ocasiona severas dificuldades no que tange à
gerência das próprias vidas, cujos destinos estão sempre condicionados aos humores do
senhor de terras.
Eis a imagem a que se chega quando apuradas as memórias subterrâneas mantidas
pelo grupo liderado por Vanjé e Ambrósio, ainda mais em se considerando a recordação
aguda e pontual do volume de poder exercido pelo senador, cuja experiência, transmitida por
quem o sofreu, remete às sensações de ubiquidade e de claustrofobia. “Seus domínios: o
estado de Sergipe, chão e águas, as árvores, os bichos, os caminhos, a justiça. Tinha alguns
sócios menores, ricos senhores de engenho. Os demais eram servos” (AMADO, 2008, p.
209).
Neste modelo de organização social, a posse da terra coincide, via exercício de um tal
poder, com a autoridade sobre o destino das vidas humanas, de resto coisificadas, que nela
vivem e que dela retiram o viver. Assim, os “servos” não representam mais do que peças
quaisquer a serem movimentadas – em sacrifício, inclusive – de acordo com a vontade e os
interesses econômicos daquele que se lhes apresenta como senhor, porque dono do chão em
que trabalham. “A vida das criaturas continuava sem valer um ai”, reflete o capitão Natário da
Fonseca, dando o tom e a medida da opressão experimentada pelos dominados (AMADO,
2008, p. 211).
Assentada em Tocaia Grande, com terra para plantar e colher sem o risco iminente de
ser expulsa dali, sem a necessidade de se submeter aos mandos e desmandos de um poderoso
qualquer, sem estar acima ou abaixo de quem quer que fosse, a família sergipana passa a
vivenciar uma realidade até então desconhecida. A lembrança da sociedade autoritária, de
onde viera, recua cada vez mais ao passado, sendo aos poucos suplantada pela experiência
nova de convivência em uma comunidade. A mudança de ares, com a esperança se
apresentando como possível naquelas terras, operava transformações no próprio grupo, antes
abatido.
Embora já seja possível visualizar, no triste quadro montado pelas experiências dos
corumbas, os cerceamentos inerentes à estrutura de uma sociedade autoritária e, por
intermédio da nova condição anímica de tais personagens, a potência de Tocaia Grande como
um verdadeiro espaço outro, é necessário ir além. Cumpre agora pensar acerca da personagem
202
Castor “Tição” Abduim, que traz questões responsáveis por conectar o romance à discussão já
realizada em torno de Tenda dos milagres, colocando em evidência o fundamento racista que
organiza a sociedade autoritária brasileira.
De acordo com Rita Olivieri-Godet (2009, p. 78), “Tição Abduim faz parte da plêiade
de personagens amadianos corajosos, destemidos, que se libertam do vínculo da submissão,
capazes de lutar pela liberdade, mesmo que o preço a pagar seja o da própria morte”. Nascido
servo nas plantações de cana do Recôncavo Baiano, onde o regime de trabalho escravo
perdurou para muito além da abolição, Tição carrega consigo a memória do tempo em que era
tratado como não pertencente à espécie humana, sendo alocado na condição jurídica de um
bem semovente, ou, quando muito, como um ser humano inferior, de segunda categoria, mas
dotado de boa serventia para a cama. Assim o viam, respectivamente, o barão Adroaldo,
Senhor de Itauaçu, e sua esposa, Marie-Claude, Madame la Baronne:
Um dia, quando dissertavam sobre a pureza e a beleza das raças equinas e similares,
andando pelos arredores do banguê, o barão Adroaldo apontara um negro
adolescente, envolto em fagulhas, na oficina do ferreiro, chamando a atenção de
Madame La Baronne para aquele magnífico espécime de animal de raça:
– Repare no torso, nas pernas, nos bíceps, na cabeça, ma chère: um belo animal.
Exemplar perfeito. Observe os dentes.
[...] Mas Marie-Claude aprendera com as freiras do Sacré-Coeur que os negros
também têm alma, adquirem-na com o batismo. Alma colonial, de segunda classe,
mas suficiente para distingui-los dos animais: a bondade de Deus é infinita,
explicava sóror Dominique dissertando sobre o heroísmo dos missionários no
coração da África selvagem (AMADO, 2008, p. 53).
Assim como também ocorre por intermédio da família sergipana imigrante, cuja
memória recupera a imagem de uma sociedade estratificada e violenta, a narrativa se utiliza
da personagem Castor Abduim como uma forma de suplementar esta configuração a partir de
um outro matiz, as divisões étnico-raciais. Através dele, e utilizando-se do flashback, o
romance pode deslocar provisoriamente o seu cenário base, movimentando-se da ambientação
dos cacauais em direção às extensas plantações de cana do Recôncavo Baiano, para ali flagrar
uma situação de opressão, salvaguardadas as suas especificidades, muito próxima àquela já
registrada no interior de Sergipe.
Trata-se, com efeito, de uma pequena cartografia de, pelo menos, duas modalidades de
estado de exceção experimentadas por grupos diversos, mas constituintes das camadas mais
baixas de suas respectivas hierarquias estruturais. Se o traço da dominação é comum a ambas,
com a vida humana correspondendo a posses das quais os poderosos podem dispor sem peia
ou conflito moral, porque legitimados pelo exercício do poder e em acordo com as ideologias
dominantes, o fator básico de submissão é diverso.
203
em estado latente, que se localizam na ausência de uma margem viável para que as mucamas
e o próprio Tição recusem o barão e a baronesa – leitura para a qual é necessário evitar a
sedução risonha emitida pelo detalhamento do como e porque Marie-Claude fazia cumprir-se
a natureza de cabrão do marido, esta espécie de dobra da malha narrativa que se sobrepõe a
uma abordagem mais vertical dos conflitos em jogo.
Da mesma forma que, no contexto da sociedade organizada em torno daquele engenho
e montada ainda sobre as bases da escravidão, o sexo poderia vir a se configurar como uma
estratégia, ao mesmo tempo desesperada e arguta, das mulheres escravizadas para obter algum
nível de defesa para seus corpos, de resto desprotegidos pela sua redução a mercadorias,
poderia sê-lo também para Tição, a despeito de o narrador informar que a personagem se
sentia melhor com os trajes mínimos de ferreiro do que adornado nas chiques vestimentas
requisitadas por sua nova função. Se, para Madame la Baronne, alocar Castor Abduim no
papel de mordomo possibilitava tê-lo por perto de uma maneira mais discreta, melhor
disfarçando a sistemática traição ao marido; para Tição, que a servia em mesa e cama, talvez
esta se mostrasse como uma saída possível à onipresença do açoite.
Tição representava para Marie-Claude o que a mucama Rufina significava para o
barão de Itauaçu, ambos requisitados pelos senhores para dar corpo ao desejo. Neste sentido,
se pensada sob a clave da economia sexual estabelecida naquele engenho, talvez a
aproximação entre Castor e Rufina comporte algum nível, simbólico ou inconsciente, de
vingança – as arbitrariedades do barão e da baronesa sendo duplamente punidas por ambos, ao
mesmo tempo.
As tensões, até então em estágio de latência, podem ser percebidas com maior força a
partir do momento em que o barão Adroaldo, duas vezes feito corno por ação do negro Castor
Abduim da Assunção, flagra-o em regalo de cama com Rufina, a predileta entre as mucamas
com quem o senhor de engenho se deitava:
Não quero interpelar esta cena pelo teor de violência explícita que ela apresenta – o
barão açoitando o corpo de Rufina ou a ameaça de castração e morte direcionada a Tição.
Apesar de relevante para o meu argumento, uma vez que ela evidencia o tratamento
dispensado àqueles que ousam contrariar os privilégios do senhor, sua força pode ser reduzida
a um simples esquema ação-reação, a reviravolta ocorrendo como uma forma de impulso
contrário à imagem dos rasgos sendo abertos por todo o corpo da mucama. Visto sob este
prisma, o justiçamento empreendido por Tição estaria privado de sentimentos acumulados ao
longo dos anos em que serviu ao engenho, também em outros momentos presenciando o
azorrague descer sobre corpos negros.
Ao deslocar o enfoque conferido à análise desta cena, movimentando-me da ação que
lhe é central para as insinuações periféricas, introduzidas com alguma sutileza pelo narrador,
os conflitos, antes velados nas maledicências da cozinha ou do banguê, emergem em torno a
um potente sentimento coletivo de catarse. Vindo do eito e da casa-grande, um alvoroço que
tinha algo de festivo se organiza para presenciar Adroaldo Muniz Saraiva de Albuquerque,
senhor de Itauaçu, apanhar de um negro. Por intermédio de Tição, aquela população de
escravizados purgava as humilhações e violências sofridas ao longo dos anos, fossem elas
físicas ou situadas no nível discursivo, vingando-se a cada golpe desferido contra um barão
agora indefeso, momentaneamente despido de seu poder.
Era festa, era espetáculo. Porém, era igualmente um breve instante. Castor Abduim
conhecia a dimensão do poder que insultara, sabia-se capado e morto se por ali permanecesse.
Fugido, desembarcou em Salvador, onde, acolhido por Mãe Gertrudes de Oxum, foi
aconselhado a se dirigir para o sul, nas terras do cacau, uma vez que a Cidade da Bahia era
por demais próxima de Santo Amaro, território em que se localizava o engenho do barão e da
baronesa. Consistia, assim, de um espaço ainda tocado pela influência do senhor de Itauaçu,
perigoso para Tição. Zelosa de sua vida, a personagem embarca imediatamente em um saveiro
que seguia na direção de Ilhéus, de onde partiria para o terreiro de Pai Arolu, situado entre as
praias de Pontal e de Olivença. Posto sob a proteção do babalorixá, que gozava de tão ou mais
força que o bispo da região, Castor Tição Abduim recomeça a vida junto ao coronel
Robustiano de Araújo, muito relacionado ao pai-de-santo. Na Fazenda Santa Mariana, de
propriedade do referido coronel, Tição trabalhou como ferrador de cavalos por cinco anos até
que, um dia, acompanhando um grupo de tropeiros, conheceu a localidade de Tocaia Grande,
em cuja organização não hierarquizada, visualizou o que, enfim, poderia significar como
liberdade.
206
– Nós não tá aqui pra garantir mercadoria de turco nem boceta de mulher-dama. O
que é que tu pensa? Que isso aqui é uma cidade? Isso aqui é uma tapera com uma
bodega, quatro putas e com nós no barracão do coronel: é cada um por si e Deus por
todos (AMADO, 2008, p. 150).
É claro que, em última instância, Bernarda estava também motivada por uma
preocupação com a sua própria sorte, afinal, sentia medo da possibilidade de ser estuprada.
Havia, no entanto, alguma proximidade e mesmo ternura na relação entre o libanês e a jovem
prostituta, não se reduzindo a uma ligação reificada, mantida pelo elo comercial da compra e
venda do sexo. Isto abre mesmo a possibilidade de que seu pedido por Fadul fosse sincero e
não apenas uma estratégia desesperada para comover aqueles homens, que talvez dessem mais
valor ao dono da venda do que a ela, mulher e prostituta – apesar de jovem, Bernarda já
conhecia as consequências do ofício que, por força do destino, desempenhava; para além da
cama, já se habituara ao desprezo que lhe era conferido.
À parte as motivações mais íntimas de Bernarda, se preocupação sincera com o Grão-
turco ou justificado desespero diante da ameaça iminente de violência sobre o seu corpo, o
fato é que não se haviam instituído ainda vínculos entre as pessoas que ensejassem uma tácita
lei moral do cuidado com o próximo. Simples conhecidos uns dos outros, as relações
interpessoais se reduzindo ao comércio de produtos e de prazeres entremeado por breves
conversas casuais, os habitantes e trabalhadores de Tocaia Grande não tinham ainda
desenvolvido a percepção de si próprios como uma comunidade – sentido para o qual
concorre Castor Abduim, talvez o seu principal articulador: “Para não se transformar num
vivente sombrio e triste, miserável, precisava modificar com urgência os hábitos e o
procedimento dos minguados habitantes: implantar o convívio onde medrava a indiferença”
(AMADO, 2008, p. 165).
Assentado na localidade após o evento do assalto e tendo-a percebido bastante carente
de união, Tição toma para si o intento de produzir um sentimento comum àquela gente,
responsável por dar liga às relações interpessoais e envolvê-las em um sentido profundo de
complementaridade. De fato, é mesmo em torno do ferreiro filho de Xangô que se desenvolve
um espírito de coletividade a enlaçar a população do lugarejo, o que se dá por intermédio de
208
pela ideia. Sem distinções étnicas ou sociais, todos os habitantes do lugar se irmanam como
podem para realizar a festa.
Na condição de um homem ligado ao Axé, Castor Abduim não concebe a ideia de
festa como mero divertimento, não se tratando de um momento sem maiores impactos nas
vidas individual e coletiva daqueles que dela participam. Para o ferreiro, que transpõe a sua
experiência do Sagrado para o campo da vida secular, a dimensão festiva se coloca como um
ponto imprescindível à dinâmica existencial de uma comunidade, uma vez que implica uma
ação conjunta em prol de um fim em comum, para o qual todos devem estar não apenas
unidos, mas irmanados – condição que deve ser compreendida no sentido forte do termo, qual
seja, o de se ter tornado irmão. A festa é, ao mesmo tempo, fator de congraçamento da
comunidade e celebração dos laços fraternais que, de fato, a sustentam.
O São João foi organizado no depósito de cacau, provisoriamente transformado em
salão para o forró ao ritmo da sanfona de Pedro Cigano, artista nômade do sul baiano com
profundo apreço por Tocaia Grande. Para celebrar aquele momento, integradas de todo à
comunidade, as prostitutas do lugar decidiram não exercer o ofício de se deitar com quem lhes
pagasse o serviço, trancando os balaios, no que foram prontamente respeitadas pelos homens
do povoado – a compreensão mútua já se enraizava entre eles. No entanto, forâneos se
encontravam entre os habitantes do local, atraídos pelo rumor que anunciava, boca a boca, a
realização da festa. Tratavam-se dos boiadeiros Misael, Totonho e Aprígio que, bêbados,
queriam forçar as mulheres à cama, uma vez que, na opinião deles, mulher-dama não teria
direito a recusar cliente. A citação é longa, mas valiosa:
Apesar da cara fechada de Fadul, Misael aguardou confiante e sorridente quando viu
os homens [de Tocaia Grande] encaminharem-se em sua direção. Certo de encontrar
neles compreensão e estímulo, ajuda para domar aquelas pestes e obrigar as
insubordinadas a cumprirem os deveres inerentes ao mister de putas: arreganhar a
racha para quem manda e paga, sem discutir ocasião e preferência. Disso não abria
mão. Onde já se viu mulher da vida ter vontade, horário de trabalho, dia de
descanso?
[...]
– O amigo não para de provocar baderna? Veio aqui a fim de quê? Vamos acabar
com isso.
Houve uma trégua no furdunço, as unhadas e os tapas cederam lugar à discussão. O
boiadeiro começou por mostrar-se cordato. Contemporizou:
– Nós não tá querendo barulho. Nós só quer que umas putas metidas a besta vão
com a gente pro mode nós aliviar o cacete.
– Eles tão querendo pegar mulher na marra e nós tá de balaio fechado – interrompeu
Epifânia, o sangue escorrendo do canto da boca.
– Não vou nem morta – reafirmou Bernarda.
– Puta não tem querer! – replicou o velho Totonho aproximando-se da bela
prometida.
Coroca suspendera a surra de tamanco no rapazola:
210
– Nós é puta, não é escrava – disse e encarou Fadul como se o desafiasse: – Não é
mesmo, seu Fadu? Ou vancê pensa igual com eles?
Convencido do apoio dos homens, considerando-se coberto de razão, na
predisposição de pagar uma rodada de cachaça antes de ausentar-se com os
tangerinos e as escolhidas, Misael ficou atônito ao ouvir negro Castor Abduim
perguntar e garantir:
– Ocês não sabe que a escravidão se acabou vai pra mais de vinte anos? Elas vão se
quiser, se não quiser não vão.
Misael olhou em derredor, correu a vista de Tição a Zé Luiz, do cafuzo Balbino ao
branquicela Bastião da Rosa, de Guido a Lupiscínio, de Gerino a Fadul, dos cabras
do depósito aos tropeiros e aos passantes, de Pedro Cigano com a sanfona a
Merência, grandalhona e compenetrada, por fim fitou cara a cara o ferrador de
burros:
– Não devera ter acabado para não ter negro ousado como tu. Não sei onde tou que
não lhe parto a cara. – Depois, virou-se para os outros: – Se vancês não quer arruaça,
não se metam.
Com o que levou a mão ao cinto largo; o velho e o rapazola se acercaram
confirmando o agravo. Antes que o boiadeiro puxasse do revólver, Fadul, após sorrir
para Coroca, falou em tom sereno como se estivesse conversando amenidades e não
ditando ordens:
– Deixe a arma em paz, seu Misael: não é o seu nome? E trate de ir-se embora antes
que seja tarde. – Conteve do outro lado o negro indócil: – Fica quieto, Tição!
Mantendo a mão no coldre, Misael ainda duvidou:
– Ocês vão brigar por essas escrotas?
– Se o amigo quiser obrigar elas, a gente briga. Fique sabendo de uma coisa. Aqui é
assim: mexeu com um, mexeu com todos.
– É isso mesmo. Se não gostou, dê seu jeito – interveio Merência, tão ciosa de sua
condição de mulher casada que não aceitara, vejam só, habitar nas vizinhanças das
raparigas para manter distância, impor respeito. As mãos na cadeira, comprava briga
como se aquelas perdidas fossem parentes suas, primas, sobrinhas, irmãs.
Fadul resumiu:
– É a regra do lugar (AMADO, 2008, p. 199-200).
bem-sucedido assalto à venda de Fadul Abdala. Da tensão que se instala, ou Tocaia Grande
sucumbe de vez à indiferença, igualando-se à sociedade em derredor, ou se afirma como
potente heterotopia, comprovando a força verdadeira de suas virtudes, ao evitar em uníssono
que a violação da liberdade se consuma.
É sintomático que este momento de provação ocorra em função de um tensionamento
promovido de fora para dentro, no qual os elementos externos assumem, na condição de uma
premissa, o fato de o pequeno povoado replicar o mesmo conjunto de regras que orienta suas
formas de se relacionar com os outros. Por intermédio de uma representação metonímica, os
três boiadeiros simbolizando a sociedade ao derredor a Tocaia Grande, a narrativa confronta
dois conjuntos de regras sociais, um que se constitui como hegemônico/dominante e o outro
que figura como diferença.
A expressão “puta não tem querer”, com a qual Misael entende encerrar uma verdade,
é deliberadamente generalizante: a modalização do verbo no indicativo aponta para uma
realidade que, não sendo completada por nenhuma especificação adverbial de tempo ou de
lugar, se apresenta como atemporal e universal. Não importando quem, onde ou quando, o
corpo prostituído é sempre significado como privado de qualquer autonomia no que tange ao
seu próprio desejo, constituindo-se reificado sob a condição de uma reles mercadoria. Nestes
termos, despida de qualquer feição humana, a prostituta é reduzida a meros relacionamentos
objetais, comportando-se segundo a vontade do sujeito/comprador. Eis a tácita e ubíqua
verdade à qual Misael, a despeito da expressão carregada dos homens locais frente à sua
atitude, pressupõe a aderência. É justamente na ação em pressupor uma concordância irrestrita
no que concerne ao estatuto das putas que reside a senha para observar o comportamento dos
boiadeiros como espelhado da sociedade circundante a Tocaia Grande.
É relevante recuperar, neste ponto, um trecho específico da longa entrevista que Jorge
Amado concedeu a Alice Raillard (1990, p. 270), no qual o romancista afirma que as
prostitutas “[...] são banidas da sociedade pelos regimes capitalistas, socialistas, feudais; são
perseguidas em todos os regimes, consideradas uma doença social”. Com efeito, este é o
entendimento comum que os boiadeiros Misael, Totonho e Aprígio mimetizam naquele
espaço. E não é sem importância atentar para a diferença de idade entre o segundo e o terceiro
forâneos, descritos respectivamente como “velho” e “rapazola”, a diferença conotando a
permanência de um tal sentido através dos tempos.
Em Tocaia Grande, no entanto, as prostitutas não são meros objetos para o bel-prazer
dos homens, quais sejam. De uma perspectiva centrada nas relações interpessoais que
configuram a dinâmica existencial do lugar, elas estão integradas de forma orgânica àquele
212
microcosmos social. Esta condição fornece o lastro necessário para a coragem com que
rejeitam e resistem aos três forasteiros e para pressuporem que os homens do lugar agiriam de
modo diferente, reconhecendo-as como seres humanos livres para decidir sobre o próprio
corpo. Daí a confirmação/provocação lançada por Jacinta Coroca, espécie de matriarca entre
elas: “Não é mesmo, seu Fadu? Ou vancê pensa igual com eles?”.
Penso ser necessário interpor aqui um parêntese, desta vez abordando a trajetória
ascensional de Maria Jacinta da Imaculada Conceição, nome propositalmente irônico, talvez a
personagem mais significativa do romance. Primeira a assentar pouso fixo na localidade,
quando Tocaia Grande estava ainda se formando como um simples ponto de pernoite, Jacinta
Coroca funciona como um símbolo do lugar. Ela não só acompanha todo o processo de
erguimento do povoado, dele participando ativamente, e de sua queda, após os assassinatos de
Tição e de Fadul, nela comportando-se como último bastião, ao lado do capitão Natário da
Fonseca. Acima de tudo, ela antecipa o exercício de um espírito comunitário, que ainda
demoraria a germinar no coração dos outros.
Do início ao fim da narrativa, Coroca se estabelece como aquela que ampara, tendo
cuidado das prostitutas mais jovens quando dos começos da localidade, aconselhando a todos
os moradores e salvando a vida de Tição, quando este se encaminhava ao suicídio após a febre
ter levado Diva, sua amásia: “Tu se esquece, desgraçado, que tem um filho pra criar?”
(AMADO, 2008, p. 363).
Dentre todos, talvez o evento mais importante tenha se dado em momento anterior
inclusive à instituição das confraternizações dominicais, cuja relevância para o surgimento de
uma verdadeira experiência comunitária já foi ressaltada. Logo após o retorno de Fadul
Abdala quando do episódio do assalto à sua venda, Coroca o procura sem qualquer outro
interesse a não ser o de ajudar, colocando-se à disposição do libanês quando este necessitasse
de nova viagem para repor o estoque. Dormiria no balcão, venderia, receberia e daria troco,
prestando contas ao comerciante quando voltasse a Tocaia Grande. De início desacreditando
no que ouvia, desconfiado da capacidade da velha prostituta em cuidar de seu armazém, Fadul
compreendeu, naquele instante, que “[...] bravura, sabedoria e decência não são privilégios
dos machos, dos ricos e dos fortes, são apanágio de qualquer mortal, mesmo em se tratando de
uma puta velha e descarnada” (AMADO, 2008, p. 156-157). Inicia-se, assim, no território de
Tocaia Grande, a ressignificação do entendimento geral acerca das mulheres que vivem do
sexo.
Quando, enfim, aportada naquele ainda ponto de pernoite, Jacinta Coroca era já uma
prostituta experiente, sabedora da falta de valor com que a sociedade a significava:
213
– Quem não tem entendimento não deve escolher ofício de puta, que não é ofício
singelo, é bem mais dificultoso. Ela [Bernarda] pensa que basta catar piolho,
arreganhar os dentes se rindo, botar cheiro nas partes, tá muito errado. Mulher da
vida é igual a freira: quando entra pro convento, larga tudo. Pai e mãe, irmã e irmão,
o nome verdadeiro e o direito de emprenhar e de parir. Só que freira vira santa e vai
pro céu sentar na mão de Deus e a gente não passa nunca de puta, condenada sem
salvação (AMADO, 2008, p. 213).
Nasceu menina já depois das nove da noite e sia Leocádia anunciou o nome
escolhido: Jacinta. Jacinta, ai, não me diga! Sim, senhora, o nome da comadre
responsável pelos partos das três estancianas, quem mais merecedora? Tomada de
surpresa, Coroca perdeu o rebolado, viram-na por fim encabulada (AMADO, 2008,
p. 325).
Com efeito, é esta a mulher que interpela Fadul Abdala. Certamente não necessitava
que o libanês a defendesse; solta de Aprígio, ela já o disciplinava com o próprio tamanco.
Mas, era a provação. No posicionamento dos homens dali, Tocaia Grande se reduziria à
mimese do mesmo ou dele se desgarraria como diferença.
Jacinta mira Fadul, mas uma palavra utilizada por ela cala fundo em Tição Abduim.
Assim como ele o fizera anos antes, a velha prostituta rompia agora os elos de qualquer
servidão; assim como ele, também ela encontrava em Tocaia Grande a possibilidade de se
sentir livre; assim como ele, também ela já não aceitava a condição escrava. No átimo em que
Fadul processa a cena e em que Misael enxerga, no vacilo do libanês, a certeza de ser
endossado pelos homens do lugar, o filho de Xangô, Orixá da justiça, irrompe do silêncio
(re)afirmando a liberdade: “Elas vão se quiser, se não quiser não vão”.
Voltando à cena ocorrida na festa de São João, o posicionamento tomado por Castor
Abduim é chave para que a sociedade autoritária ao redor de Tocaia Grande novamente fale
pela boca-metonímia de Misael, expondo desta vez suas restrições étnico-raciais. O lamento
pelo fim do regime escravocrata é seguido de um insulto muito provavelmente articulado com
um acento de quase cuspe, “negro ousado”. A intensidade da provação aumenta.
Insultado, Tição quer partir para a briga, mas é impedido por Fadul Abdala. No sorriso
do Grão-turco para Coroca, o aceno de que ele, assim como anos antes havia compreendido
não ser ela menor ou menos digna do que qualquer homem, finalmente entendera a regra do
lugar: “mexeu com um, mexeu com todos”.
A frase cai com o peso de uma revelação sobre os habitantes de Tocaia Grande;
revelação esta não de algum mistério da ordem do transcendente, mas como uma verdade
tácita já por demais enraizada na experiência cotidiana daquela, enfim, comunidade. O efeito
é imediato. Merência, muito católica, antes ciosa da distância em relação à zona do pecado em
que se constituía, a seu ver, a rua das putas, deixa os dogmas de lado, as reconhece como
semelhantes e faz coro a Fadul. É a primeira a intervir, a arriscar a sua vida, se preciso, para
salvaguardar a heterotopia que é aquele lugar.
Ainda no episódio da enchente, quando o Rio das Cobras varre Tocaia Grande do
mapa, e no da epidemia da febre, que atingiu os moradores do povoado quando em plena
215
reconstrução de suas moradias, a solidariedade daquele povo foi novamente posta à prova. E,
mais uma vez, o agora arraial se mostrou virtuoso, distinguindo-se da sociedade ao seu redor.
Antes de o Rio das Cobras multiplicar o seu volume, ultrapassando os limites de suas
margens, o Rio Cachoeira transbordara “[...] inundando fazendas, destruindo roças,
transformando-as em imenso lamaçal [...]” (AMADO, 2008, p. 321). Neste contexto, o
narrador faz saber da falta de interesse que as vidas humanas perdidas no desastre ocasionam,
as atenções todas voltadas para as perdas materiais, financeiras:
Outro é o cenário quando o Rio das Cobras desce sobre Tocaia Grande. As casas, as
plantações, os poucos pertences de cada um já não importam tanto. No momento decisivo
ante a morte iminente e certa, em face da chance de o desespero minar a solidariedade e cada
um buscar salvar a si próprio primeiro e só, Fadul Abdala novamente levantou a voz para
recordar a quem, talvez, na aflição esquecesse: “[...] em Tocaia Grande eram todos por um e
um por todos, eis a divisa do lugar” (AMADO, 2008, p. 328). Se antes, quando enunciada
naquela noite de São João, tal frase calou em quem a ouviu como revelação de uma
experiência muito profunda do real, agora, na hora derradeira e fatal, soava como um “[...]
pacto de vida triunfante sobre a morte” (AMADO, 2008, p. 328).
A comunidade manteve-se unida durante e após o dilúvio, que durou mais de trinta
horas. Estiada a chuva, novamente baixas e mansas as águas do rio, a paisagem era de “[...]
ruína e de abandono: as plantações alagadas, o cultivo destruído, a criação dizimada”
(AMADO, 2008, p. 344). A devastação do local, no entanto, não se estendia à condição
anímica daqueles que ali assentaram as suas vidas, muito pelo contrário: “Em lugar de ir-se
embora, o povo juntara-se solidário. Virou uma família, explicou em Ilhéus o coronel
Robustiano de Araújo, testemunha idônea. Com pouco tempo renasceram plantações e
casario” (AMADO, 2008, p. 348).
Da mesma forma, a comunidade venceu sua segunda sentença capital: a febre sem
nome. Durante quinze dias de medo, ela matou nove pessoas, a última sendo Diva, amásia de
Tição. É bem verdade que, em função da peste, muitos arribaram de Tocaia Grande, mas não
aqueles verdadeiramente enraizados no lugar, os que ali viveram as confraternizações
dominicais, o São João, os que se sobrepuseram à enchente. E, se ainda fosse o caso de se
216
perguntar o por que de tanto apreço pelo lugar, a razão de ali permanecerem, a resposta não
poderia vir a não ser sob a forma de uma outra pergunta: Por que o fariam, senão por se
saberem servos e párias em qualquer outro espaço; senão por reconhecerem ali uma
sociabilidade distinta daquela que rege as sociedades autoritárias que trazem na memória de
suas experiências pregressas de vida; senão por terem fundado uma heterotopia onde podem
ser iguais uns aos outros e, acima de tudo, livres?
Apesar do tom celebratório que cerca a existência de Tocaia Grande, o desfecho do
romance é crepuscular; a liberdade não apraz às sociedades autoritárias. Após vencer a
indiferença, a enchente e a peste, o lugar se defronta com uma quarta e terrível ameaça: o
Estado. “Era mais difícil – ai, muito mais, sem comparação! – do que enfrentar a enchente;
mais mortal a lei do que a peste” (AMADO, 2008, p. 442).
Ao contrário das demais partes em que o romance é dividido, cuja estrutura épica
acompanha o desenvolvimento da comunidade sob a ótica de seus moradores, a sétima e
última, dotada de uma arquitetura trágica, narra a sua queda abrupta. Aqui, a perspectiva da
narração é modificada para que emerja o posicionamento do Estado acerca da heterotopia
Tocaia Grande, o que primeiro é feito por intermédio do aparelho ideológico religioso, nas
figuras do frei Zygmunt von Gotteshammer e do frei Theun da Santa Eucaristia, e, depois, em
função dos aparelhos repressivos jurídico e policial. A liberdade e o sonho, termos
anteriormente utilizados por um narrador que emulava as vozes provenientes do pequeno
arraial, são agora substituídos pelas palavras oficiais: “A cidadela do pecado, o couto dos
bandidos” (AMADO, 2008, 395).
A mudança de perspectiva não implica uma aderência do narrador ao ponto de vista
oficial. Pelo contrário. Operando por contraste em relação ao desenvolvimento das seis partes
anteriores, o novo prisma funciona como uma denúncia do assalto arbitrário àquela
comunidade. O narrador continua irmanado às memórias subterrâneas que contam de Tocaia
Grande.
Como consequência do deslocamento executado no ângulo narrativo, que se
movimenta do baixo para o alto, o enfoque também se modifica. Antes centrada nas etapas de
formação, provação e afirmação da heterotopia onde é possível que experiências de liberdade
sejam cultivadas, a abordagem agora recai em sua total supressão – seja pela condenação
simbólica, por missionários católicos, do modo de vida ali fixado, seja pela lei forjada de
acordo com os interesses dos grupos políticos instalados no poder público ou, em última
instância, pelas armas de jagunços travestidos em policiais com salvo-conduto para pilhar,
prender e matar.
217
Em resumo acusou Tocaia Grande de ser cidadela do pecado, couto dos bandidos.
Terra sem lei, nem a de Deus nem a dos homens, território da degradação, da
luxúria, da impiedade, do sacrilégio, das imundas práticas do demônio, reino da
danação de Satanás. Sodoma e Gomorra reunidas, desafiando a ira do Senhor. Um
dia a cólera de Deus irromperá em fogo, castigando os infiéis, destruindo os muros
da maldade e da profanação, transformando em cinzas aquele covil de escândalo e
de iniquidade. Assim profetizou.
Na hora da bênção, na agonia do crepúsculo, frei Zygmunt Martelo de Deus ergueu
a garra adusta, traçou no ar a cruz da excomunhão, amaldiçoou o lugar e os
habitantes (AMADO, 2008, p. 427).
Sei o pensar de Agnaldo, ele nunca se esqueceu. Não sei dos outros, cada um sabe
de si. Mas posso lhe dizer, capitão Natário, a vosmicê que foi um pai pra nós: do
proveito dessa terra que era mato fechado quando nós chegou, não vou dar a
ninguém nem meia nem terça. A ninguém. E só saio morta (AMADO, 2008, p. 441).
O confronto se deu. Em dez horas de tiroteio, quarenta e oito mortos, sendo vinte e
dois habitantes do lugar. A sociedade autoritária se impunha onde antes medrava o sonho e a
liberdade. Um a um, todos caíram: Vanjé, com a sua repetição em punho e na companhia dos
filhos; Castor “Tição” Abduim e Fadul Abdala. Apenas Jacinta Coroca e o capitão Natário da
Fonseca restavam, atocaiados no alto da mesma colina em que a primeira tocaia, a que deu
nome ao lugar, fora montada. Esperavam a entrada triunfal de Venturinha, cavalgando
vitorioso sobre aquele chão em que lama e sangue se misturavam. Um estampido surdo cortou
o ar, Natário nunca errou um tiro.
No entanto, o espaço outro em que a experiência de liberdade pôde acontecer já não
mais existia; ali se fundava Irisópolis e Tocaia Grande se diluía no sem palavras de uma
desmemória oficial.
Seria, enfim, o caso de rever o breve preâmbulo desta tese, que corresponde à
assunção de uma premissa para a leitura do universo romanesco amadiano, a esperança como
um sentimento perene? Afinal, o ethos autoral que emana da discussão realizada aqui, em
função da leitura do arco ficcional revisionista, se assemelha ao de um homem derrotado em
sua própria invenção de liberdade, talvez agora desprovido de qualquer possibilidade em nela
crer. Ou, talvez se trate da imagem de alguém que, ainda procurando saídas e despido das
certezas de antes, sabe ao menos onde não é possível localizar a liberdade: não o será no
conjunto de regras e de valores que configura a sociedade dominante, montada como
constante atualização da matriz colonizadora ocidental, nem nas ideologias políticas que
orientaram e ainda orientam ditaduras de direita e de esquerda ao longo do século XX e nas
primeiras décadas do atual.
Por sua vez, ainda que de forma contrária ao pessimismo cinzento que por ora domina
o desfecho deste capítulo, é possível acessar alguma esperança, ainda que ela se coloque entre
parênteses. Georges Didi-Huberman (2011, p. 42) ensina:
[...] uma coisa é designar a máquina totalitária, outra coisa é lhe atribuir tão
rapidamente uma vitória definitiva e sem partilha. Assujeitou-se o mundo, assim,
totalmente como o sonharam – o projetam, o programam e quem no-lo impor –
nossos atuais “conselheiros pérfidos”? Postulá-lo é, justamente, dar crédito ao que
sua máquina quer nos fazer crer. É ver somente a noite escura ou a ofuscante luz dos
projetores. É agir como vencidos: é estarmos convencidos de que a máquina cumpre
seu trabalho sem resto nem resistência. É não ver mais nada. É, portanto, não ver o
espaço – seja ele intersticial, intermitente, nômade, situado no improvável – das
aberturas, dos possíveis, dos lampejos, dos apesar de tudo.
66
Datiloscrito digitalizado sob inscrição Boris o Vermelho V.I._028.
220
É justamente dos restos, dos fragmentos que sobram nos espaços intersticiais onde a
diferença se resguarda de todos os leviatãs, que se compõe o arco ficcional revisionista de
Amado. Ele é forjado a partir daquilo que, mesmo não se sabendo muito bem como, sobrevive
aos sistemáticos massacres e se prolonga no tempo por intermédio dos subterrâneos de uma
memória coletiva, sobrepondo-se à própria vida dos que foram sacrificados e driblando todas
as vigilâncias em silêncio e em espera. Estes restos contam de outras estórias, veiculam outras
perspectivas, situam desconhecidas heterotopias e narram de outras experiências possíveis. Na
insurgência destas memórias, no indesejado passado que elas comunicam apesar de tudo,
encontram-se as chaves para uma experiência de liberdade ainda futura. Se, como adverte o
poeta em epígrafe, certamente não é chegado o tempo de completa justiça, sendo o presente
ainda contrário à liberdade, a sobrevivência daquelas memórias subterrâneas ao menos
mantém a salvo a esperança de que um dia este tempo outro chegue.
221
Mandei plantar
folhas de sonho no jardim do solar
as folhas sabem procurar pelo sol
e as raízes procurar, procurar
Mas sei
que uma dor assim pungente
não há de ser inutilmente.
A esperança
dança
na corda bamba de sombrinha
e em cada passo dessa linha
pode se machucar.
Azar!
A esperança equilibrista
sabe que o show de todo artista
tem que continuar.
Caso houvesse alguma pressa em pôr um termo às reflexões que engendram esta tese,
seria possível ceder à tentação de assumir Tocaia Grande na condição de um romance-síntese
das figurações que o tema da liberdade admite na ficção amadiana – e, então, este seria o
espaço das considerações finais, ao invés desta espécie de post scriptum deslocado para antes
do fim. No entanto, não me sinto confortável diante desta possiblidade de encerramento, que
parece produzir alguma forma de aporia.
Não pretendo deslegitimar a leitura que empreendi no capítulo anterior: a questão
passa ao largo de uma autossabotagem, é bom deixar claro. Mantenho o meu posicionamento
acerca daquela pequena comunidade, nela enxergando a expressão mais completa do que
Jorge Amado projeta como experiência possível de liberdade – seja no âmbito da vivência
coletiva ou das idiossincrasias individuais.
Acontece, e este é o ponto em que a garganta se faz em nó, que o modelo heterotópico
ali configurado sofre dura interdição, sendo reduzido às memórias subterrâneas recuperadas
pelo narrador. E, ainda que eu tenha argumentado em prol da relevância de esta versão outra
da história comunicar o jaez libertário que um dia demarcou a existência do arraial, abrindo
assim um caminho para que a esperança não se esvaia em derrotismo, devo reconhecer que
este não é um sentimento inscrito no corte da realidade constitutivo do romance, que se
conclui sob um tom crepuscular.
222
67
O romance apresenta dois subtítulos, “Uma história de feitiçaria” e “Romance baiano”, e três variações de
título: Visitação de Iansã à Cidade da Bahia, Execração pública de fanáticos e puritanos e A guerra dos santos
– este último, aludindo àquele projeto já estudado e discutido no capítulo cinco.
223
68
O Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), criado em 1924 e com atuação marcante durante o
Estado Novo e a ditadura militar, tinha o objetivo de censurar e reprimir movimentos políticos contrários à
ordem estabelecida. Foi extinto em 1983. O Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações
de Defesa Interna (DOI-CODI), que compreende dois órgãos de inteligência e repressão, surgiu em decorrência
da Operação Bandeirante (OBAN), institucionalizando-a em 1970 e sendo extinto em 1976.
225
principalmente no que concerne à polarização entre as zonas urbanas e rurais, estas ainda
sustentadas por um regime de terras baseado no latifúndio.
Uma vez traçadas as linhas gerais em que o romance se desdobra, quero devotar
alguma atenção à primeira e à terceira – enfocando esta última de maneira um pouco mais
detalhada. Prescindo de comentar a segunda pois a sua leitura, se realizada por intermédio da
clave repressão versus figurações de liberdade, retorna resultados semelhantes à empreendida
em função dos arcos existenciais de Adalgisa e Manela ou, ao menos, a uma parte desta, a
abertura positiva para o outro, com quem se estabelece contatos responsáveis por tornar
fluídos os limites entre uma e outra realidade cultural.
Opto por iniciar em função da linha narrativa cujo foco se encontra na resistência ao
regime dos generais, isto devido ao fato de nela emergirem roupas novas para vestir modelos
antigos: a ditadura militar para figurar o Estado opressor; e os padres engajados em uma
perspectiva política de esquerda, atualizando o sonho de sociedades organizadas
igualitariamente, tanto no que se refere às condições materiais quanto de poder69. Nesse
contexto, cabe verificar a partir de quais procedimentos é feita a denúncia da ditadura e de que
modo o romance projeta uma alternativa a ela.
O narrador de O sumiço da santa adota três estratégias narrativas distintas para se
reportar às forças e instituições repressivas construídas pelo Estado ou a situações em que elas
atuam.
A primeira destas estratégias se dá pela utilização de procedimentos figurativos
farsescos. O expediente não é exatamente uma novidade no universo ficcional amadiano, cuja
mudança de tom, a partir de Gabriela, cravo e canela, assume o humor como potência
desestabilizadora da ordem dominante. Para Jorge de Souza Araújo (2003, p. 166-167):
69
É bem verdade que a ditadura militar já havia se feito presente em outros romances, como Tenda dos milagres,
Tiêta do Agreste e, por via alegórica, em Farda, fardão, camisola de dormir. Entretanto, em nenhum destes
recebera o tratamento direto e incisivo com o qual figura em O sumiço da santa.
226
sobra em O sumiço da santa, romance com o intuito de divertir, segundo nota introdutória que
o autor faz constar no livro.
Neste ponto, é importante que se diga que este tipo de discurso não se confunde com a
gargalhada fácil e automática das comédias que se utilizam de cenas repletas de situações
absurdas, de maneira a fazer rir daquilo que é construído como absolutamente idiota e
desprovido de qualquer significação mais densa. Pelo contrário: o humor pretendido pela
representação amadiana se coloca como comprometido eticamente, posto que tem a função
não apenas de divertir, mas de, por meio do riso, apontar para as falhas da sociedade de forma
a possibilitar ou instigar uma consciência crítica acerca da realidade vivenciada pelos leitores.
Em O sumiço da santa, a exposição ao ridículo por meio do exagero de traços
caricaturais se coloca como o principal recurso pelo qual a ordem dominante e repressora é
destronada de seu lugar de poder – o cômico de tais representações recaindo não apenas sobre
os indivíduos, mas estendendo-se também sobre as instituições às quais estão relacionados e
às ideias que as sustentam.
É o caso, por exemplo, dos agentes secretos do serviço de inteligência do regime, que
concluem todas as explicações em torno do desaparecimento da imagem de Santa Bárbara
como uma iminente subversão comunista. Assim, os leitores, já cientes do que sucedera à
escultura sagrada, veem o coronel Raul Antônio, responsável pela Polícia Federal e
absolutamente integrado à paranoia anticomunista do regime, deslindar o caso em virtude de
uma conspiração subversiva internacional bancada pelo tráfico de peças religiosas:
– Sabe o senhor para onde vai o dinheiro obtido com os roubos praticados nas
igrejas, sobretudo as divisas vindas do estrangeiro? Não sabe? Vou lhe dizer: vai
para a subversão, o terrorismo, a guerrilha urbana, para os comunistas e para os
padres-melancias, esses que são verdes por fora, vermelhos por dentro. Espanta-se?
Poderia lhe dar detalhes, provas concretas, não o faço para não prejudicar as
investigações que estamos levando a cabo. [...] Mas nós vamos acabar com eles,
com eles e com os comunistas, com toda essa corja de celerados. Com todos eles
(AMADO, 2010b, p. 92).
A cena é formulada com o intuito de, por intermédio das suposições infundadas acerca
de possíveis levantes comunistas, falar ao leitor sobre as inverdades que sustentam os
inquéritos policiais-militares em que se acusam, e sob alegação dos quais são presos e
torturados, quando não mortos/desaparecidos, os civis que se opõem ao governo. A assimetria
entre o fato real, a transfiguração da peça em Iansã, e a lógica oficial, montada com o intuito
de legitimar o estado de exceção e, portanto, nada preocupada em apresentar-se como atada à
227
realidade, ocasiona uma situação absurda, solicitando um riso punitivo, pois conotativo de
descrédito.
Situação dotada de maior comicidade é vivenciada pelo comissário Ripoleto, cujo
nome parece ser retirado de alguma trama policial canhestra. Destacado, por sua inteligência
rara e por seu faro agudo, para cumprir investigação em Santo Amaro da Purificação, cidade
do Recôncavo Baiano a cuja paróquia pertencia a imagem de Santa Bárbara, o detetive se vê
envolto em uma grande manifestação popular, interpretando-a como um potencial levante
comunista quando, na verdade, tratava-se apenas de uma acalorada reunião para discutir
acerca do sumiço da peça, muito estimada por todos.
No encalço do movimento, interrogando a um e a outro a respeito de onde estariam os
líderes, que haviam desaparecido para conspirar em segredo, o grande Ripoleto, mestre na
arte do disfarce e da espionagem (que, no entanto, havia sido identificado desde sua chegada à
cidade), provoca a reação de alguns rapazes – descritos, com simpatia, como brincalhões –
que o despacham em uma canoa atirada ao rio Paraguaçu:
Não navegou grande distância o novel marinheiro. Pouco adiante, onde, numa curva,
o rio se alarga, a canoa aportou em vasta touceira de baronesas – reino das
muriçocas – entre as margens em verdade próximas. Jogou-se no Paraguaçu o
comissário e em poucas e rápidas braçadas atingiu a terra firme? Não o fez? Aqui
entre nós, que ninguém nos ouça, segrede-se em confidência secretíssima: o argos da
polícia estadual não sabia nadar. [...].
A roupa encharcada secando no corpo, o zumbido atroz dos mosquitos, [...] o vento
a soprar, as sombras indistintas e os ruídos furtivos, a impotência, o medo, em
resumo, a solidão dos intelectuais, comissário Ripoleto [...] atravessou a noite a
espirrar e a tiritar de frio apesar do calorão reinante (AMADO, 2010b, p. 264).
realidade vivenciada ao longo do período. Nestas passagens, o narrador adota uma postura
discursiva desprovida do humor, como se, diante de fatos tão negativos e perversos, a terrível
realidade o impedisse de rir. A leveza cômica bem-humorada de outros trechos cede, então, à
gravidade do tom do discurso impresso nessas espécies de fotografias do regime, o que traduz
a intenção do texto em gravar na memória dos leitores, para jamais ser esquecida, a
experiência crua e sistemática das limitações, censuras e violências impostas ao povo
brasileiro durante a ditadura:
Havia uma realidade oculta, um país secreto, não noticiados. Gazetas, estações de
rádio e de televisão encontravam-se limitadas, nas seções informativas, a fatos em
geral pouco palpitantes. Reduzidas nas opinativas ao louvor incondicional do
sistema de governo e dos governantes. Proibição total de qualquer noticiário, da
menor alusão, a respeito do quotidiano de prisões, torturas, assassinatos políticos,
violações dos direitos humanos, de comentários sobre a censura de espetáculos e
livros, assim como referências a greves, manifestações, passeatas, protestos,
movimentos de massa e tentativas de guerrilha. Nada disso acontecia na pátria feliz
sob a égide dos generais e coronéis, a acreditar-se na leitura dos jornais. [...]
A censura, a corrupção e a violência eram as regras do governo, carece recordar pois
existe quem já tenha se esquecido. Tempo de ignomínia e do medo: os cárceres
repletos, a tortura e os torturadores, a mentira do milagre brasileiro, as obras
faraônicas e a comilança, a impostura e o venha a nós – há quem tenha saudade, é
natural (AMADO, 2010b, p. 139).
70
Não custa lembrar que, somente em 2011, quarenta e sete anos após o fatídico golpe militar, teve início um
importante processo de revisão e de investigação oficial em torno dos crimes políticos cometidos a mando dos
generais da ditadura. Trata-se da Comissão Nacional da Verdade, criada em função da Lei 12.528, de 18 de
novembro de 2011, e instituída em 16 de maio de 2012 pelo governo da Presidenta Dilma Roussef (PT), ela
própria uma ex-presa política. Entre outros objetivos, o texto da Lei destaca: “VII - promover, com base nos
informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como
colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações” (BRASIL, 2011).
A Comissão Nacional da Verdade atuou, entre 2012 e dezembro de 2014, percorrendo todo o território brasileiro,
de modo a colher depoimentos daqueles que sofreram, de forma direta, a desmedida violência do regime militar.
Desta forma, o relatório final produzido, que se encontra disponível gratuitamente no site da CNV, reconstrói a
versão oficial da história da ditadura, agora não mais sob o prisma dos verdugos, mas dos oprimidos.
230
quase que como em uma perigosa atualização/extensão dos quadros da antiga ARENA,
partido político que apoiava o regime militar, hoje denominado Democratas (DEM).
Em paralelo à reorganização das forças políticas no quadro geral dos poderes oficiais,
também os grandes grupos empresariais do ramo da comunicação impressa e televisiva,
profundamente relacionados com o regime e cúmplices de seus crimes, não movimentaram
qualquer esforço no sentido da elucidação dos torturados, mortos e desaparecidos políticos
entre 1964 e 1985 – exceção feita ao Jornal do Brasil e à imprensa alternativa.
Dono de uma percepção arguta em relação ao seu tempo, em 1988, Jorge Amado já
vislumbrava o hiato que se estruturava como produção de silêncio/esquecimento em torno dos
desmandos promovidos pelos militares. Aí percebendo o jogo do poder político para
salvaguardar a si próprio de uma condenação promovida por via de revisões históricas, e não
disposto a esta concessão, que viria a ser contrária à perspectiva de uma memória
democrática, o autor procura enxertar, de forma incisiva, testemunhos críticos ao longo da
narrativa. Assim, o seu narrador é sintomático: “carece recordar, pois existe quem já tenha
esquecido”.
A posição assumida pelo narrador de O sumiço da santa é mesmo engajada em favor
dos oprimidos: em face de sua exposição das situações reais vivenciadas no período do
regime militar, ele se reporta às vozes suprimidas dos perseguidos, torturados e assassinados
pelo Estado. Convida, então, a sociedade brasileira à reflexão e à discussão acerca da
experiência ditatorial, com o intuito mesmo de construir uma efetiva consciência em torno de
seu legado absolutamente negativo para o país: “censura, corrupção e violência eram as regras
do governo”. Veste-se, então, acusador e denunciante do regime:
[...] surras de criar bicho, sessões requintadas de tortura até ser obtida a completa
confissão dos crimes contra a pátria, os nomes dos cúmplices, dos maiorais,
demorada permanência nos porões dos aparelhos de segurança, os DOI-CODI da
vida, quer dizer, da morte (AMADO, 2010b, p. 263).
contrários ao regime dos generais, sendo também o órgão mais denunciado no que tange à
violação dos Direitos Humanos.
A penetração do real no ficcional, não mais no sentido de uma mimese que busca a
verossimilhança, mas ganhando ares de reportagem se intensifica quando a narrativa se
reporta ao assassinato do Padre Antônio Henrique Pereira da Silva Neto, sacerdote vinculado
a Dom Hélder Câmara e opositor da ditadura militar, crime cometido na noite de 27 de maio
de 1969:
[...] a notícia viera de Pernambuco, era medonha. Junto com monges e amigos, o
cura de Piaçava dedicara-se à prece e à reflexão em memória de um padre
assassinado dias antes no Recife pelos esbirros da polícia. Haviam-lhe cortado as
mãos antes de matá-lo, assim contou o enviado de dom Hélder Câmara, um senhor
Paulo Loureiro, ele próprio recém-saído da cadeia.
A vítima chamava-se padre Henrique Pereira, auxiliar de confiança do arcebispo de
Recife e Olinda. Um dos idealizadores das comunidades de terra mas, sobretudo,
presença prestigiosa junto aos jovens que, superando divergências ideológicas, se
organizavam em torno dele na luta contra o Estado militarista, autoritário.
Infatigável em sua pregação democrática, padre Henrique tornara-se símbolo da
resistência à ditadura. Desaparecera ao voltar de uma reunião com estudantes, o
corpo fora encontrado dias depois no desvão de uma sarjeta, as mãos decepadas, o
rosto uma pasta sanguinolenta. Padre Loureiro trouxera fotos do cadáver: viam-se
marcas de tortura no torso nu do padre (AMADO, 2010b, p. 273).
No seu trabalho com jovens [Padre Antônio Henrique] também mantinha contato
com estudantes cassados e destacava-se por ser um grande opositor aos métodos de
repressão utilizados pelo Regime Militar, o que lhe rendeu várias ameaças vindas do
Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Como não se rendia, padre Henrique
pagou com sua vida.
Na noite de 26 de maio de 1969, depois de participar de uma reunião com grupo de
jovens católicos, no bairro de Parnamirim, foi sequestrado numa Rural verde escura.
Seu corpo foi encontrado, na manhã do dia seguinte, num matagal na Cidade
Universitária, com marcas de espancamento, queimaduras, cortes profundos por
todo o corpo e ferimentos produzidos por arma de fogo (PREFEITURA DO
RECIFE).
da santa motivado por “[...] certos episódios reais da vida brasileira, nos quais muitos
sacerdotes foram presos, assassinados, expulsos do País”. Com efeito, o projeto Brasil: Nunca
mais (1985, p. 63) registra que, a partir de 1969, a Igreja passa a ter dificuldades em sua
relação com o Estado que ajudara a instalar, o que resulta na “[...] prisão de sacerdotes e
freiras, torturas, assassinatos, cerco a conventos, invasões de templos, vigilância contra
bispos”.
A dura imagem impressa por Jorge Amado em O sumiço da santa, à exceção de
mencionar as mãos decepadas, corresponde à descrição das circunstâncias da morte do Pe.
Antônio Henrique narradas também no terceiro volume do relatório produzido pela Comissão
Nacional da Verdade (2014), dedicado aos mortos e desaparecidos políticos, que aponta a
vítima como torturada inclusive por mais de um agente.
A memória do assassinato do Padre Antônio Henrique Pereira da Silva Neto não é
escolhida ao acaso. Primeiro, documenta um fato real da história do país na perspectiva de
construção da figura de um mártir, que vem a ser uma imagem sempre muito poderosa no que
se refere à comunicação de uma atmosfera opressiva intensa, que não se limita a civis
“subversivos” mas atinge também a instituição religiosa – o que, ao menos no plano ficcional,
funciona, uma vez que a repercussão causada pela notícia parece irmanar ainda mais os
religiosos em torno de uma perspectiva de resistência à ditadura.
Ao contar o óbvio, que o assassinato foi cometido por agentes da ditadura militar em
clara repressão às atividades políticas e sociais do sacerdote, o narrador desconstrói as versões
oficiais mantidas pelo regime em torno de sua morte, que buscavam explicar o homicídio a
partir de linhas investigativas voltadas para civis71. Novamente, entra em cena uma atitude de
combate à negação da memória, que vem a ser um ardil para proteger o estado ditatorial e
seus agentes, diretamente acusados pelo texto.
Se o objetivo do narrador é atuar de forma a não permitir que sejam esquecidas as
atrocidades do período, não bastam a desconstrução risível ou o olhar panorâmico que alerta
sobre os crimes do regime, mas não os mostra na concretude do real: o impacto da atualização
da realidade no plano ficcional é potencializado com a descrição da cena contida na fotografia
portada pelo Padre Loureiro, expondo o corpo violentado, sem vida de Padre Henrique.
É mesmo em torno da imagem do corpo assassinado de Padre Antônio Henrique,
veiculada através de uma reprodução fotográfica, que o narrador põe os leitores em contato
71
Apenas no ano passado, 2014, portanto 45 anos após o assassinato, o caso ganhou uma conclusão. A Comissão
da Verdade de Pernambuco atestou a natureza política do crime, que visava coibir a atuação de Dom Hélder
Câmara.
233
com a análise da paisagem política e social brasileira empreendida pelos monges beneditinos
reunidos no Mosteiro de São Bento, em Salvador. Neste quadro, observa-se um empenho de
tais religiosos em associar uma práxis libertária e transformadora, comprometida com a
emancipação socioeconômica dos oprimidos, ao exercício de seus sacerdócios:
[...] ali, diante dele, à mão e à vista, na notícia trazida de Recife pelo senhor Paulo
Loureiro. Durante o relato do crime e a análise política da situação nacional, o
pernambucano dissera: voltamos ao tempo dos mártires, e usara a palavra
companheiros referindo-se aos presentes.
Padre Abelardo concordava. Voltava-se aos tempos heroicos da difusão do
Evangelho, os mártires cristãos pagavam com a vida a missão sagrada. Tempos
perigosos e exaltantes os da Igreja dos Pobres no mundo de hoje dividido ao meio, a
Igreja de Roma vacilando entre os ricos e os despossuídos, tão dividida quanto a
sociedade. Um punhado de padres progressistas enfrentando a legião de sotainas
reacionários. Conjuntura ameaçadora e apaixonante, Padre Abelardo contemplara o
reduzido círculo de clérigos e leigos, a palavra companheiro tinha uma vibração
fraterna, rompia barreiras, congregava diferenças, extinguia distâncias (AMADO,
2010b, p. 317).
As referências aos nomes do Pe. Antônio Henrique, a Dom Hélder Câmara e a Dom
Timóteo Amoroso Anastácio72, também citado no romance, funcionam narrativamente como
a instituir modelos éticos, porque dotados de potencial transformador dentro do
comportamento político-social da Igreja Católica, a serem seguidos. Assim, por um lado, com
o intuito de dar o peso necessário à memória documental da ditadura militar, o narrador a
mostra em toda sua estrutura vil e opressiva, o que faz, seja em visada panorâmica, seja
descendo a fatos ocorridos na realidade concreta; por outro, assumindo a perspectiva de abrir
saídas, provoca o riso carnavalizante e recorre a nomes-símbolos cujas ações corajosas devem
inspirar e se refletir nas personagens que conduzem o romance. É o caso, por excelência, do
padre Abelardo Galvão, personagem para a qual o narrador faz convergirem os modelos
éticos instituídos, de modo a construí-la como a forma engajada na libertação daqueles que
são oprimidos e subalternizados pela configuração política, econômica e social do país.
Neste ponto, é necessário admitir: ao se observar a construção do universo ficcional
amadiano como um todo, causa certa estranheza o fato de, em O sumiço da santa, a função de
veicular um posicionamento político com viés libertário, comprometido com o combate às
72
O abade do Mosteiro de São Bento, em Salvador, é lembrado em O sumiço da santa através de seu corajoso
enfrentamento às polícias Civil e Militar ao abrir o templo religioso para proteger os estudantes que se
manifestavam contra o regime na Praça Castro Alves. Neste sentido, vale aqui transcrever uma pequena parte de
um artigo escrito conjuntamente por Zélia Gattai e Jorge Amado, publicado no dia 5 de julho de 1990 por A
Tarde, intitulado “missiva de amor escrita a quatro mãos”: “Abriu as portas do mosteiro para abrigar os
estudantes em passeata de protesto, para protegê-los da sanha policial; postou-se contra os latifúndios na
trincheira dos servos da terra; abrigou os heróis na luta subterrânea da democracia, deu-lhes pouso e ânimo:
elevou a essência de sua missão religiosa, exercendo-a na dimensão do tempo imediato, das necessidades da hora
e do momento; fez do pastor o combatente. Timóteo Amoroso, símbolo da luta pela democracia”.
234
estruturas socioeconômicas responsáveis por produzir uma legião de miseráveis, ser destinada
para os sacerdotes católicos, geralmente associados, em outros romances, às perspectivas mais
reacionárias.
Tudo apurado, o espanto não se delonga na alma do leitor. O posicionamento político
de tais padres não deve ser confundido com uma tomada de posição da Igreja como
instituição. Na verdade, eles estão ligados a determinados setores latino-americanos do
catolicismo que, em face do contexto de opressão política e degradação social vivenciado pelo
continente, veem, nas teorias socialistas ou de viés marxista, um forte aliado ao cumprimento
sagrado do chamamento de Cristo – a Teologia da Libertação. Leonardo Boff e Clodovis Boff
(2010, p. 44), religiosos irmanados à Igreja dos Pobres, pontuam: “Quando se trata do pobre e
do oprimido e se busca sua libertação, como evitar o encontro com os grupos marxistas (na
luta concreta) e com a teoria marxista (no nível da reflexão)?”.
Neste ponto, talvez seja possível pensar os setores ligados à Teologia da Libertação,
bem como às Pastorais da Terra, como heterotopias que se instalam e funcionam por dentro
de um catolicismo majoritariamente marcado por um compromisso com os mais abastados,
recomendando a resignação diante da pobreza e a caridade como forma de amainá-la – não de
combatê-la. A posição assumida pelos teólogos da libertação é antipódica àquela verificada
nos setores mais conservadores da Igreja, uma vez que baseada em uma interpretação do
Evangelho que repõe o compromisso de Cristo com os injustiçados, argumentando em favor
de uma opção preferencial (e radical) pelos pobres. Desta forma, não caberia à Igreja
propiciar apenas a salvação espiritual do ser humano, mas responsabilizar-se também pela
ruptura com um sistema econômico-social que o oprime e vitimiza – “Estamos a favor dos
pobres somente quando, junto a eles, lutamos contra a pobreza injustamente criada e imposta
a eles”, postulam novamente Leonardo Boff e Clodovis Boff (2010, p. 15).
Como posicionamento tensionante da estrutura hegemônica em relação à qual destoa,
o que vem a ser uma característica das heterotopias, a proposta de revisão dos ensinamentos
de Cristo a partir dos mais pobres sofreu duras reprimendas oriundas do poder central da
Igreja durante os pontificados de João Paulo II (1978-2005) e Bento XVI (2005-2013), que a
identificavam como uma perigosa inversão entre as instâncias do corpo espiritual, à qual
caberia à Igreja cuidar prioritariamente, e do corpo material. A Teologia da Libertação, no
entanto, não trata de inverter a ordem do que compete à instituição religiosa, mas de imbricá-
las – não no sentido de uma condicionar a outra, como parecem propor vertentes
neopentecostais ligadas à teologia da prosperidade, mas de uma pressupor a outra.
235
pelo Estado contra seus opositores, sabia da extensão do poder de Joãozinho Costa, principal
latifundiário da região de Piaçava, acostumado a resolver suas contendas de terra com o
assassinato de quem lhe desafiasse. Temerosa pela sorte do cura, de quem compartilha os
ideais de justiça social e por quem havia se apaixonado, Patrícia dedica um ebó a Iansã, que o
aceita.
De fato, Padre Abelardo Galvão encontrava-se condenado à prisão, à tortura e à morte.
De um lado, os policiais ligados à inteligência do regime estavam em seu encalço, pois o viam
como peça fundamental para o deslindamento do roubo da imagem de Santa Bárbara do
Trovão, bem como das intenções conspiratórias por trás do crime. Do outro, Zé do Lírio,
matador sem igual, a mando de um Joãozinho Costa já cansado das ineficientes soluções
pacifistas tentadas pela Igreja, impossibilitada de transferir o cura de paróquia devido ao
respeito de que gozava junto às suas comunidades de atuação. Ambos os braços da sociedade
autoritária instituída, policiais e assassino de aluguel, seguiam o clérigo na espera do melhor
momento para prisão e posterior interrogatório ou para a inapelável execução:
A cena não é um evento isolado: na guerra que Iansã veio travar em prol da liberdade
e contra qualquer tirania, por mais de uma vez interviu em favor da vida de Padre Abelardo
Galvão, evitando que caísse nas mãos do regime ou de Zé do Lírio. Desta maneira, o Orixá
garantiu que a esperança, agora reposta na ficção de Amado através do engajamento político
do sacerdote, não refluísse em função de seu possível extermínio.
A outra razão se aloca na hierarquia dos conflitos encenados pelo romance. A despeito
da força com que a paisagem da ditadura militar brasileira se afigura em O sumiço da santa, a
estrutura narrativa confere maior proeminência às tensões circundantes ao âmbito dos valores
morais e de cultura, no qual Iansã veio à terra originalmente para intervir.
O que é dialeticamente processado em O sumiço da santa é a síntese da configuração
cultural própria ao paradigma da liberdade, no sentido da produção dos valores fundacionais
238
de uma existência coletiva não opressora nem oprimida nos níveis de sua interpretação
simbólica da existência humana, de suas axiologias e regras sociais. No confronto entre os
conjuntos de valores judaico-cristãos e africano-brasileiros, principais matrizes simbólicas
componentes do espaço híbrido da Cidade da Bahia, o romance encena o que procurei discutir
no capítulo quatro desta tese, quando argumentei em torno das razões pelas quais Amado
procede à ficcionalização do Candomblé, alçando-o à condição de uma potente heterotopia.
Enquanto o sistema judaico-cristão é transposto para a narrativa na medida do que faz
pesar sobre os ombros de simples seres humanos, produzindo uma experiência de mundo
marcada pelo signo da expiação e incapaz de processar qualquer bem-estar, o segundo se
apresenta como instaurador do exato oposto, a leveza inerente a uma apreensão alegre-álacre
da existência. Para Jorge Amado, não resta dúvida, cabe a esta axiologia heterotópica
constituir-se como vetor de uma mediação libertária dos seres com o mundo, com os outros e
consigo próprios.
O crítico baiano Cid Seixas (1996, p. 91) já procedeu à leitura de O sumiço da santa
como uma espécie de síntese da produção ficcional amadiana, na qual “[...] a dicotomia dos
valores que desemboca na demolição do eurocentrismo é tema recorrente”. O fundamento
contemporâneo, na perspectiva traçada por Agamben (2009), não apenas solicita a denúncia
de estruturas de pensamento e vida eurocêntricas, mas também reivindica a necessidade de
uma abertura ao que Walter Mignolo (2006) designa como pluri-versalidade epistêmica, ou
seja, experiências de mundo não ditadas pela lógica ocidental, que implicam formas outras de
ser, pensar e conhecer. É, pois, em direção a estas outras modalizações possíveis que O
sumiço da santa fixa os arcos existenciais de Adalgisa Perez Correia e de Manela Perez
Belini, tia e sobrinha, principalmente da primeira, protagonista do romance, a quem Iansã
pretende ensinar a “[...] tolerância e a alegria, o bom da vida” (AMADO, 2010b, p. 42).
A apresentação de ambas se dá em meio a uma situação bastante conflituosa, que é
evocada via flashback. Pela televisão, a tia havia visto Manela em plena Festa de Nosso
Senhor do Bomfim. Sempre rindo e dançando, ora a jovem aparecia com água de cheiro sobre
a cabeça, somando-se ao conjunto daquelas que lavariam as escadarias da igreja,
simbolizando uma homenagem a Oxalá, ora de braços dados com Miro, olhos de alguma
malícia, encantada pelos trios elétricos. Diante da cena, a cabeça reincidindo em agônica crise
de enxaqueca, Adalgisa cospe fogo:
– Juro pelas cinco chagas de Cristo que acabo com este namoro nem que seja a
última coisa que faça em minha vida. Deus há de me dar forças para enfrentar essa
gentinha que quer levar uma criança pro mau caminho, pra perdição. O Senhor está
239
comigo, não tenho medo de nada, nada me pega, comigo não adianta negrinhagem,
não sou da mesma laia, não me misturo com gente à toa. Tiro o vício do corpo da
moleca nem que me custe o restinho de saúde (AMADO, 2010b, p. 51).
ofertado pelo Pe. José Antônio Hernandez acompanhado da instrução de utilizá-lo sem
qualquer piedade, pois “[...] corrigir quem prevarica não é pecado, não ofende a Deus, é de
seu agrado. Está na Bíblia, mi hija: punir com firmeza é uma das maneiras de demonstrar
misericórdia” (AMADO, 2010b, p. 77).
Em tudo destoante do ambiente experenciado ao lado dos pais, que viviam de acordo
com concepções de mundo nada repressivas, o novo lar e, por consequência, a nova vida de
Manela se mostram claustrofóbicos desde cedo. Com o instrumento de suplício já posicionado
sempre à vista, ameaça constante a se destacar na parede da sala, o narrador assume o ponto
de vista de Adalgisa para, por via do discurso indireto livre, anunciar as regras a serem
seguidas pela jovem em sua nova morada, situada na avenida Ave-Maria, no Barbalho:
Não se deve perder tempo, adiar para amanhã o que se pode fazer hoje: no dia
seguinte ao enterro de Dolores e Eufrásio, quando Manela regressou das aulas, os
olhos ainda inchados de chorar, Adalgisa a pôs em confissão e lhe rezou o credo.
Vamos aproveitar e esclarecer as coisas de uma vez, botar em pratos limpos para
depois não dizer que não sabia. Se for obediente e comportada, se tiver boas notas
no colégio, se proceder com decoro e pudonor, demonstrar temor a Deus e devoção,
não der desgosto aos tios, nada lhe faltará e terá direito a regalias.
Quais seriam as regalias nunca soube, mas tomou conhecimento imediato da extensa
relação do que lhe era proibido. Frequentar más companhias; comparecer a matinês,
auditórios de televisão, bailaricos, festas de largo ou quaisquer outras, a não ser
acompanhada dos tios, bater pernas pelas ruas, dar trela a rapazes, namorar. De
candomblé, umbanda, essas feitiçarias, guardar a maior distância, nem ouvir falar,
são centros de perdição onde o demônio se apossa das almas dos cristãos (AMADO,
2010b, p. 77).
Como demonstra Michel Foucault (2012), a produção de corpos dóceis está assentada
em uma base dupla: uma estrutura panóptica de vigilância, que dissemina em níveis
microfísicos a sensação de não haver espaço destituído de sentinelas, e um rigoroso sistema
de punição, responsável por disciplinar aquele que, infenso a qualquer aspecto coercitivo, se
apresenta como desviante em relação ao padrão de conduta estabelecido.
O modelo baseado na intimidação e no castigo – ou, como consagrado por Foucault
(2012), o esquema vigiar e punir – é experimentado sem descanso ao longo da adolescência
de Manela. A jovem é submetida a um cotidiano de aflições, no qual é condicionada a temer.
Com efeito, na disposição dos afetos que Manela nutre em relação a Deus e à tia, o medo
efetivamente assoma em lugar de afeições positivas, como o amor. No que se refere à figura
de Deus, por tê-la apreendido junto aos ensinamentos do Padre José Antônio Hernandez, que
priorizam um Ser vigilante e punitivo ao invés de misericordioso. Assim, Manela O sentia
como uma espécie de compilador dos erros humanos, mesmo os mais mínimos, cujo sistema
panóptico de observação era livre de eventuais falhas, pois onisciente e onipresente. Na
241
mesma medida, tinha-O como inapelável algoz, uma vez que pronto para condenar no
momento do Juízo Final. À tia, por sua vez, temia por identificá-la de acordo com sua
interpretação do divino, mas sem a longevidade necessária para punir apenas no Fim dos
Tempos: “[...] atenta e bisbilhoteira, ao ver ou ao saber de alguma situação diferente, cobrava
na hora, no grito e na taca de couro” (AMADO, 2010b, p. 60).
De acordo com Marilena Chauí (2009, p. 59), a origem e os efeitos do medo “[...]
fazem com que [ele] não seja uma paixão isolada, mas articulada a outras formando
verdadeiro sistema do medo, determinando a maneira de sentir, viver e pensar dos que a ele
estão submetidos”. O medo se configura como sentimento modalizador da personagem, que
passa a uma postura derreada sob o peso de culpas e pecados: “a Manela verdadeira, aquela
que se escondera após a morte dos pais, se apagara no receio do castigo” (AMADO, 2010b, p.
60). Ao longo dos anos, a postura tirânica de Adalgisa e o recurso constante à taca de couro
foram vencendo a alegria que Manela havia herdado dos pais, ambos partidários de uma
dimensão álacre da existência. Em seu lugar, consolidou-se o medo como condição psíquica
dominante, raiz de um comportamento marcado pela mais completa subserviência: “[...] pobre
menina, infeliz. Oprimida, sem vontade própria, sempre na defensiva: medrosa, embusteira,
esmorecida, fingida, submissa. Sim, tia. Ouvi, tia. Já vou, tia. Bem-mandada” (AMADO,
2010b, p. 59).
Cabe agora retomar o ponto antes deixado em suspenso, a reação enfurecida de
Adalgisa ao ver, pela televisão, sua sobrinha em meio à festa do Bomfim, integrada ao povo-
de-Axé e de xodó com um rapaz de estilo black power.
Manela havia ido às escondidas para a Colina Sagrada, mas não por vontade própria
ou deliberada afronta. Somando agora dezessete anos, há quatro na companhia de Adalgisa e
da taca de couro, a jovem não mais se mostrava capaz de produzir quaisquer negativas,
apresentando-se de cabeça baixa em deferência a quem quer que fosse. Assim, em face do
convite feito por Gildete, sua tia pelo lado paterno, ademais complementado pela advertência
da impossibilidade de um não como resposta, a adolescente cede, mesmo temerosa de ser
descoberta pela outra tia.
Em tudo oposta a Adalgisa, Gildete se apresenta como uma figura “bonachona,
cordial, amorosa, um doce de côco [...]” (AMADO, 2010b, p. 59). Assim como Dolores e
Eufrásio, também ela é pertencente ao povo-de-Axé – o que, por si só, garante a antipatia de
Adalgisa, que tinha “[...] horror a candomblé. Horror sagrado, o adjetivo se impõe”
(AMADO, 2010b, p. 60). Esta condescendia que ambas se encontrassem, embora
esporadicamente e sob sua tutela, pois, quando do falecimento dos pais de Manela, Gildete
242
havia permanecido com a guarda de Marieta, irmã da menina, e, apesar de tudo, Adalgisa não
pretendia separá-las.
Já na Festa de Nosso Senhor do Bomfim, sem entender o universo simbólico que
sustenta a celebração, mas encantada pela alegria reinante no lugar, Manela ouve a tia narrar o
mito nagô que dá origem às Águas de Oxalá, ritual parcialmente encenado ao longo do cortejo
das baianas até a Colina Sagrada e durante a lavagem das escadarias da igreja.
As versões circulantes na tradição oral das comunidades-terreiro acerca deste mito
contam de uma visita que Oxalá fez ao reino de Xangô, Seu filho, a despeito de ter sido
comunicado dos perigos que a viagem acarretaria, de modo que seria melhor evitá-la. Por uma
série de infortúnios, Oxalá acaba confundido com um ladrão e é preso. Vários anos após o
incidente, com o reino devastado por secas e pragas, Xangô consulta Ifá para saber o que
havia motivado tamanha calamidade sobre o Seu território, com o que só então toma
conhecimento da injustiça cometida contra Oxalá, que é prontamente retirado da prisão e
limpo, sendo restituído ao Seu lugar de Rei – atitude que traz de volta a prosperidade para o
reino antes devastado.
Em O sumiço da santa, a versão narrada por Gildete, filha de Oxalá, se apresenta
substancialmente modificada, suplementada por um discurso final que faz do Orixá um
paladino da justiça social e da liberdade:
– Contam os antigos, ouvi de minha avó, negra grunci, que Oxalá saiu um dia
percorrendo as terras de seu reino e dos reinos de seus três filhos, Xangô, Oxóssi,
Ogum, para saber como vivia o povo, na intenção de corrigir injustiças e castigar os
maus. Para não ser reconhecido, cobriu o corpo com trapos de mendigo e partiu a
perguntar. Não percorreu muito caminho: acusado de vadiagem, levaram-no preso e
o espancaram. Por suspeito, meteram-no no xilindró, onde, ignorado, viveu anos
inteiros, na solidão, na sujeira.
Um dia, passando por acaso defronte da mísera cadeia, Oxóssi reconheceu o pai
desaparecido, dado por morto. Libertado às pressas, cercado de honrarias, antes de
retornar ao palácio real, foi lavado e perfumado. Cantando e dançando, as mulheres
trouxeram água e bálsamo e o banharam; as mais belas aqueceram-lhe o leito, o
coração e as partes.
Aprendi em carne própria as condições em que o povo vive no meu reino e no reino
de meus filhos; aqui e lá e em toda parte, campeiam o arbítrio e a violência, as regras
da obediência e do silêncio: trago as marcas no meu corpo. As águas que apagam o
fogo e lavam as chagas, vão apagar o despotismo e o medo, a vida do povo vai
mudar: empunhou sua palavra, pôs em jogo seu poder de rei (AMADO, 2010b, p.
61-62).
Assim contou Gildete, sendo suplementada pelo narrador, que comenta: “Oxalá não
conseguiu mudar a vida do povo, é fácil conferir. Ainda assim deve-se reconhecer que
nenhuma palavra pronunciada contra a violência e a tirania é vã e inútil: alguém ao ouvi-la
pode superar o medo e iniciar a resistência” (AMADO, 2010b, p. 62).
243
As alterações promovidas no mito podem soar estranhas a quem procurar ler O sumiço
da santa como registro antropológico do Candomblé – aliás, Ordep Serra (1995) já comentou
sobre os vários equívocos aos quais este tipo de abordagem pode conduzir. No entanto, não se
apresentam como desconectadas em relação às condições de produção que ensejam a narração
realizada por tia Gildete, de modo que produzem efeitos de sentido que se articulam
estrategicamente com a perspectiva solar empreendida pelo romance.
De início, convém destacar mais uma vez o cenário político-social em que a narrativa
se desdobra, o horror de uma ditadura militar no auge da repressão e subserviente a um
sistema econômico incapaz de distribuir as riquezas que produz. Neste cenário, a modificação
operada no mito de Oxalá, ainda mais quando lida em função da potência atualizadora que o
narrador lhe confere, corresponde a uma intervenção que visa assegurar a capacidade de ter
esperança diante de um real desabonador de qualquer sentimento de fundo otimista, provendo
o estímulo necessário para que floresçam resistências ao autoritarismo em derredor.
Aqui é necessária alguma cautela para que o argumento não pareça forçado, uma vez
que Gildete não se constitui atrelada aos desdobramentos da trama diretamente relacionados
ao regime dos generais, passando ao largo de tais discussões. A interpretação mais óbvia e
segura para o acréscimo de sentido operado no mito de Oxalá se assenta, sem dúvida, em uma
intenção da personagem em afetar Manela, que a ouvia de forma atenta, no sentido de fazê-la
agir sobre o sistema do medo lhe imposto por Adalgisa, libertando-se dele. Trata-se de uma
interferência que, ao mesmo tempo em que preserva a razão pela qual o povo-de-Axé procede
à lavagem das escadarias e do adro da basílica, agrega um certo ideal de luta e de liberdade,
comunicando-o a quem já se encontrava não apenas presa, mas principalmente rendida. Ou
seja, o campo de ação natural desta cena é reduzido ao particular: o destino de Manela.
Ainda assim, acredito ser possível defender um entrelaçamento desta leitura com
aquela mais ampla, que faz o mito, na forma como narrado por Gildete e suplementado pelo
narrador, dialogar com o espaço público atravessado pelo autoritarismo do regime instituído.
Afinal, se é verdade que a estória de Oxalá fez especial sentido para Manela por conta da
repressão vivenciada dentro de casa, em sua experiência particular, é igualmente verdade que
a jovem também se encontrava submetida ao sistema repressivo oficial, como ademais
qualquer brasileiro. Junte-se a isto o fato de a adolescente não ser a única a escutar Gildete,
que também narra para a filha Violeta e a sobrinha Marieta, livres da influência nefasta de
Adalgisa, mas sujeitas aos desígnios dos generais no poder.
De uma forma ou de outra, direcionada à experiência pública ou à particular, o adendo
instaura solaridades, impede a capitulação em trevas. O fato é que aquela “[...] quinta-feira no
244
Bonfim foi decisiva na vida de Manela” (AMADO, 2010b, p. 58). Alguns instantes antes de a
tia lhe explicar o sentido da festa – e de lhe sugerir o de liberdade –, ainda dominada pelo
medo de Adalgisa, que a castigaria por não estar à mesa na hora em que já deveria ter
retornado do colégio, Manela deixava, por instantes, de ser Manela:
Enxugou a face de tia Gildete e, sem pensar, como se obedecesse ordens – quem
sabe as ordens resmungadas de Oxalá –, acompanhou-a ao longo da dança triunfal
do encantado, comemorativa da liberdade conquistada, do fim da solidão e da
sujeira. Foi ficando tonta, sentia uma comichão nos braços e nas pernas, tentava
equilibrar-se, não conseguia, dobrou o corpo, deixou-se ir. Como num sonho,
percebeu-se outra, pairando no ar, e deu-se conta de que não precisava inventar
desculpas, astuciar mentiras, pois não estava cometendo crime, delito, erro ou falta,
nenhum pecado. Não havia culpa a confessar, motivo para pedir perdão e merecer
castigo. Num passo de alforria, Manela dançou defronte de Oxalá, Babá Oquê, pai
da colina do Bonfim [...]. Como sabia aqueles passos, onde aprendera aquele ponto,
adquirira aquele fundamento? Lépida e leve, posta de pé contra o cativeiro, já não
lhe pesavam no lombo a culpa e o medo.
Oxalufã, Oxalá velho, o maior de todos, o pai, veio para ela e a abraçou e abraçada a
manteve contra o peito, estremecendo e fazendo-a estremecer. Ao afastar-se, salvou
bem alto para que soubessem: Eparrei!, e as baianas repetiram, curvando-se diante
de Manela: Eparrei!
Iansã partiu tão de súbito como veio. Levou embora, para enterrar no mato, a
imundice acumulada, toda aquela porcaria: a pusilanimidade e a submissão, a
ignomínia e o fingimento, o medo das ameaças e dos gritos, dos tapas na cara, da
taca de couro pendurada na parede e, pior que tudo, dos pedidos de perdão. Oiá
limpara o corpo de Manela, fizera-lhe a cabeça.
Ao susto e à mortificação que a dominaram quando os sinos marcaram a hora do
meio-dia sucedeu um completo desafogo: tomada de alegria, na repulsa à canga e ao
cabresto, Manela rediviva. Assim rolaram naquela Quinta-Feira do Bonfim as águas
de Oxalá. Apagaram o fogo do inferno, axé (AMADO, 2010b, p. 63-64, grifos
meus).
Manela ouviu as palavras de liberdade proferidas por tia Gildete, tendo-as já sentido
em si mesma quando já não era mais si mesma, mas Iansã que lhe viera salvar em vida e para
a vida, repondo a Glória no júbilo do aqui e do agora – o sentido alegre de existir. Nos ventos
de Oyá, a jovem varreu longe qualquer sistema do medo em que fora encerrada até então,
iniciou a resistência aos desmandos de Adalgisa.
Livre dos condicionamentos que a docilizavam, desacreditados os dogmas que lhe
incutiam o temor, Manela não baixou a cabeça em desculpas ao ver a tia à sua espera, rosto
cerrado na mais violenta das raivas, taca de couro a descer-lhe sobre os rins, boca de
impropérios: “Cadela!” (AMADO, 2010b, p. 81). Tencionava fazer cumprir as juras arrotadas
com ódio ao ver a sobrinha pela televisão: discipliná-la com rigor ainda maior, impedir
namoros que colocassem em risco a virgindade-honra. Mas, a jovem já não se submetia:
rediviva no arquétipo libertário de Oyá-Iansã, “[...] Manela segurou com a mão direita o pulso
245
da tia, com a esquerda abriu-lhe os dedos: tomou da taca de couro e atirou longe” (AMADO,
2010b, p. 82). Estava proclamada a liberdade – ou, pelo menos, assim parecia.
Após reconstruir em extenso flashback (p. 55-82) os eventos que, ao longo de quatro
anos, acarretaram na submissão de Manela ao regime de controle imposto por Adalgisa com a
ajuda do Padre José Antônio Hernandez, o narrador retorna ao presente da narrativa, poucos
meses após aquela quinta-feira de janeiro, quando a sujeição foi exterminada do íntimo da
jovem. Trata-se do momento em que a imagem de Santa Bárbara do Trovão está sumida, pois
transfigurada em Oyá-Iansã, vinda ao Àiyé, mundo terreno, para novamente intervir por
Manela.
Liberta do sistema do medo ao qual esteve cativa ao longo dos últimos quatro anos, a
jovem encontra-se agora encerrada entre as tristes paredes do Convento da Lapa,
cognominado no romance de Clausura das Arrependidas, local de expiação para as mulheres
que, tendo transigido em pecado, mostram-se compungidas – ou, mais frequentemente, “[...]
pai de donzela que cometia o mau passo, arrastando na lama da desonra o nome da família, ali
encerrava a filha desnaturada pelo resto da vida” (AMADO, 2010b, p. 211).
Após os eventos ocorridos em janeiro, na quinta-feira do Bomfim, Manela não mais se
permitiu ser alvo da taca de couro, destituindo-a do lugar de símbolo do poder que a tia
possuía sobre o seu corpo e espírito. Entretanto, isto não significa que Adalgisa tenha aceitado
a liberdade de sua sobrinha, pelo contrário: impedida de castigá-la, intensificou a vigilância e
a censura sobre a jovem. A tia a proibia de sair em companhia que não fosse a sua ou a de seu
esposo, Danilo, além de vasculhar diariamente bolsos e mochilas, livros e cadernos da jovem
em busca de pistas acerca do que quer que fossem. Preocupava-se principalmente em relação
ao namoro com Miro, que, sendo negro, pobre e de Axé, destoava em absoluto do perfil
pretendido por ela como ideal de marido para Manela. Ademais, o relacionamento punha em
risco a virgindade da moça, que, para a tia, correspondia a uma insígnia de pureza e de
virtude, não podendo ser rompida em ato pecaminoso de simples luxúria, apenas para fins de
reprodução e mediante a sagração do matrimônio.
Em uma dessas devassas, Adalgisa encontrou no banheiro um pequeno fragmento de
bilhete, roto porém legível. Por um acaso qualquer, que a personagem logo interpreta como
intervenção divina, Manela não o houvera destruído por inteiro, arremessado ao vaso
sanitário. Tratava-se de um recado de Miro, a quem Adalgisa só se referia utilizando de
ofensas: cão-tinhoso, chipanzé. Eram planos românticos e sensuais de fuga e de libertação, de
prazeres e de amor:
246
73
“[...] a criança que sofre a iniciação no seio materno é considerada um abicun (abiku) pelo povo do
candomblé. Ao pé da letra, o abiku é alguém que ‘nasceu só para morrer’.
Na mitologia nagô (como na ewe), os neonatos que logo perecem são considerados crianças prodigiosas, cuja
passagem rápida por este mundo manifesta um compromisso especial com o outro; “retê-los” aqui vem a ser um
desafio doloroso para os pais... No entanto, segundo se acredita nos candomblés, um abicun pode ter mudado seu
destino, ganhando a possibilidade de permanência normal no mundo dos vivos, quando uma mulher se inicia em
estado de gravidez. A criança que seria (ou fora) abiku vem à luz já iniciada – e comprometida –, e caso cumpra
as exigências do deus, terá garantidas a sobrevivência, por longos anos, e a felicidade. Do contrário, estará
condenada...” (SERRA, 1995, p. 301).
248
tudo isso, o romancista faz remontar a sucessos muito anteriores. Há um preliminar mítico,
teológico [...]”.
Da mesma forma, é importante reconhecer que o tratamento dispensado pelo texto
amadiano à condição de abiku causa algum embaraço à perspectiva de leitura do Candomblé
como uma heterotopia absoluta e positiva, a partir da qual experiências de liberdade se
projetam como possíveis. Afinal, à semelhança de uma evidência em forte contraprova, o
mundo simbólico do povo-de-Axé parece receber aqui uma modalização relativamente
próxima àquela conferida à axiologia judaico-cristã, qual seja, a de representar, ainda que em
um nível bem específico, um sistema de controle e punição.
A questão é delicada, mas acredito ser possível argumentar em contrário à
possibilidade acima. Com isso, devo ressaltar, não pretendo camuflar a tensão instaurada pelo
texto, que estabelece rígidas condições para que o abiku goze de um bem-estar, de maneira
que imprime limites aos quais seria necessário que Adalgisa se adequasse.
De início, gostaria de recordar o fato de, logo na introdução a esta tese, ter demarcado
que minha utilização do termo liberdade não se coadunaria ao sentido ilusório e perigoso,
embora comum, que se refere à projeção de formas de vida desprovidas de códigos ou de
regras, à mercê das pulsões. Antes, seu significado se relacionaria a outros códigos e outras
regras, responsáveis por regimes menos tensos no que tange à mediação entre os seres
humanos ou deles consigo próprios.
Isto posto, e procedendo a uma leitura mais atenta do fragmento citado, é possível
observar que a qualidade de abiku não se coloca como raiz do comportamento acre que
Adalgisa apresenta, mas, sim, o fato de a personagem não se mostrar aderente ao conjunto de
regras que sua condição solicita. Caso o fizesse, seu mal-estar em relação ao mundo e a si
mesma restaria resolvido, seria “uma pessoa igual às outras, com regalias e direitos”, como o
narrador faz saber.
A questão da liberdade, portanto, deve ser abordada por um outro ângulo, não se
referindo aos efeitos que o descumprimento das obrigações rituais acarreta em sua vida, mas
às razões pelas quais ela não procede ao exercício das tarefas que aliviariam sua agônica
existência. Neste sentido, se é verdade que o estado em que Adalgisa se encontra reproduz
fielmente as consequências previstas para um abiku que não atenta para suas obrigações
rituais, é igualmente verdade que ela se configura como ideologicamente barrada de cumprir
tais ritos, uma vez que perpassada, de forma íntima e profunda, por discursos que concebem
as práticas religiosas negras como demoníacas, primitivas e bárbaras: a personagem é, pois,
censurada em relação à possibilidade de desejar ser uma outra.
249
principalmente, uma forma outra de ser e de estar no mundo, de relacionar-se com ele: uma
experiência heterotópica e álacre da existência; uma experiência possível de liberdade.
252
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo desta tese, busquei estudar a produção literária de Jorge Amado em função
dos desdobramentos que o tema da liberdade apresenta em seu universo ficcional. Para tanto,
utilizei-me de um método de análise por via negativa: enfocar o que não é para flagrar o que é
(ou o que pode vir a ser). Assim, mantive meu foco inicial nas representações de regimes de
submissão (socioeconômica, política, cultural e moral) aos quais o autor se opõe e os quais
denuncia, na tentativa de identificar as razões pelas quais o faz.
Por outro lado, admitindo que a postura amadiana não se resume às acusações, mas
assume o compromisso de abrir um horizonte (utópico ou heterotópico) para alternativas aos
modelos vigentes, formulei a hipótese de que a leitura atenta destas opções outras tornaria
factível a visualização de formas dotadas de uma potência-devir no que tange à reversão de
sistemas coercitivos. Estas formas, responsáveis por comunicar um sentimento de esperança
frente aos cerceamentos da vida cotidiana, eu as designei experiências possíveis de liberdade.
Cumpre agora reuní-las mediante algum esforço de sistematização.
Apesar de seu desfecho, Tocaia Grande ainda me parece ser a melhor escolha por
intermédio da qual conduzir estas considerações finais, funcionando como uma espécie de
dínamo da síntese pretendida. Com efeito, em função da caracterização heterotópica daquele
pequeno arraial, a narrativa formata uma espécie de organização social fundada em um
espírito de coletividade irmanada, em cuja realidade interna vicejam os princípios da
igualdade material e de uma horizontalidade do poder. Na localidade de Tocaia Grande, o
coletivo prima pela ausência de cisões em classes e em níveis de hierarquia, de maneira que
não se estabelece o imperativo da submissão de uns em relação a outros.
A esta perspectiva, assim como defendido na premissa básica assumida para esta tese,
corresponde a permanência da ideologia socialista como um substrato estruturante da
idealização amadiana de um real outro – ao menos no que se refere ao seu conteúdo mais
253
fundamental, a projeção de uma sociedade não crivada por desigualdades. Nesta realidade em
diferença, a dinâmica social coletiva seria, portanto, definida por uma igual possibilidade de
fruição do comum. A nenhum contingente populacional seriam imputados cerceamentos
relativos às condições materiais para uma existência digna ou, noutro plano, no concernente à
dimensão política em que se discutem e se decidem os rumos do lugar.
Sob o prisma do modo como as relações econômicas e de poder são organizadas, a
estrutura não-piramidal, conformativa da dinâmica coletiva que sustenta a pequena
comunidade de Tocaia Grande, apresenta-se na condição de um elemento-base para que um
modelo não opressor de sociedade seja factível.
Um conjunto específico de narrativas, o qual designei arco ficcional revisionista,
parece propor, como um fator de construção desta organização ideal de sociedade, o acesso
democrático ao passado, acedendo a ele desde o fora das narrativas oficiais, estabelecidas pela
ordem vigente. Neste sentido, memórias subterrâneas poderiam conter conteúdos capazes de
inspirar a rasura e a reversão do quadro político-social instituído, pois capazes de comunicar
formas outras de vida que, não obstante terem sido silenciadas, manipuladas ou mesmo
violentamente exterminadas, constituíram experiências possíveis de liberdade no tempo em
que viveram.
Embora conditio sine qua non, esta formulação baseada no princípio da igualdade, que
diz das possibilidades de cada um em relação ao todo no qual se está inserido, não esgota o
que a ficção amadiana idealiza como experiência possível de liberdade. Como argumentei ao
longo do capítulo dois, a projeção de desenhos de organização social baseados em uma
perspectiva socialista não deixa de intervir na concretude do real que lastreia o universo
literário produzido pelo escritor. Mas, ao invés de retroalimentar-se, bastando a si próprios,
como o é no caso dos escritos sob a égide da militância ideológico-político-partidária (1933-
1954), tais conteúdos passam a ser mediados pelas formas de pensar, sentir, ser e estar no
mundo que se desprendem de pequenos espaços de diferença ao padrão ocidental capitalista-
burguês judaico-cristão, as heterotopias – o que traduz uma aderência do autor às aberturas de
pensamento e de engajamento social promovidas pela Contemporaneidade.
Assim, Jorge Amado desloca-se das grandes categorias modernas que enfeixam a
utopia política – o proletariado; o Partido Comunista – em direção a formas resilientes de vida
e de cultura não-hegemônicas que, organizadas sob outros valores e sob outras regras,
rasuram o status quo desde o seu interior. Como expus no capítulo três, as narrativas
Gabriela, cravo e canela e A morte e a morte de Quincas Berro Dágua se afiguram como
marcos desta transição.
254
pelo qual se pesam aquelas personagens diz dos elos de amizade, respeito e admiração a partir
dos quais significam-se umas em relação às outras, através dos quais mutuamente implicam-
se – e não custa lembrar a lei que rege aquele espaço de diferença, “mexeu com um, mexeu
com todos”, responsável não apenas por enlaçar em equilíbrio as individualidades ao coletivo
no qual se integram, como também por evidenciar a solidariedade como regra decorrente dos
vínculos ali constituídos.
O foco dos capítulos quatro e cinco se manteve nos valores culturais/religiosos que
formatam a imagem segundo a qual o Candomblé se apresenta para Jorge Amado, bem como
na maneira em que eles são transpostos para a ficção – o que me possibilitou perceber a
potência-devir que o Axé instaura na dinâmica existencial do universo produzido pelo
romancista baiano. Ou seja, as formas de vida que decorrem ancoradas nos sentidos oriundos
da interpretação negra da existência, marcada por uma abertura positiva em relação ao outro e
pela alegria-alacridade, recebem um tratamento ficcional que as posiciona como forças
libertadoras de modalizações fundadas no medo e na dor, na Culpa e no Pecado, na Verdade e
no componente demoníaco de tudo quanto lhe seja destoante.
Ao longo daquelas páginas, apoiado no fato de as comunidades-terreiro representarem
um continuum civilizacional africano-brasileiro, cuja matriz simbólica recupera e institui um
ethos negro-africano em contexto diaspórico, defendi a hipótese de que Amado as ficcionaliza
sob a condição arquetípica de uma heterotopia absoluta e positiva. Isto é, como loci dos quais
são emanadas existências radicalmente outras em relação àquelas organizadas a partir do
Ocidente judaico-cristão – estas sendo vazadas em figurações ambivalentes, sob o prisma das
repressões que sofrem desde o íntimo e reproduzem sobre corpos alheios, de modo que põem
em movimento uma reação em cadeia em tudo contrária a uma efetiva experiência de
liberdade.
De fato, salvaguardadas aquelas que conseguem relativizar o peso da axiologia
judaico-cristã, as representações amadianas que se apresentam como fundadas em um
espelhamento da doxa religiosa ocidental (Perpétua, Adalgisa) descortinam-se como vidas em
triste agonia, uma vez que vertem os represamentos pelos quais são interpeladas em uma
condição anímica atravessada por um mal-estar em relação ao mundo; em uma atitude
restritiva ante o corpo e em um comportamento social não aberto às diferentes percepções do
Sagrado.
Do lado de fora de um ponto de vista estritamente religioso, as formas modernas de
racionalização estabelecidas pelo Ocidente sob os signos da filosofia secular ou do
cientificismo, ambos com larga penetração no imaginário social dos séculos XX e ainda XXI,
257
perpetuaram a dificuldade de uma apreensão positiva da alteridade, que veio a ser reduzida a
condições infra-humanas, não raro organizando sociedades segregadas ou eivadas de
preconceitos não-ditos.
A comunidade de Tocaia Grande, por sua vez, se estabelece como um espaço dotado
de pluralidade étnica e cultural em que o regime de contato entre as diferenças não ocorre
através da regulação ou imposição de uma configuração racial identificada como superior ou
de uma cultura entendida como civilizada sobre as demais, relegadas à condição de inferiores
ou de atrasadas/primitivas. Ao invés da subtração do diferente, seja por via do extermínio ou
da aculturação, o que se processa no lugar é uma soma de alteridades cujo resultado não
ignora ou evanesce as partes que o constituem. O outro é percebido como um semelhante – ou
como um próximo – sem que, para tanto, sinta-se pressionado a disfarçar o conjunto de traços
fenotípicos ou a abrir mão do universo simbólico demarcativos de sua diferença. Na
heterotopia em que se assenta aquela pequena comunidade, o outro, na inteireza de sua
alteridade, é vivido como um igual. Trata-se da concretização, no passado, do sonho que
Pedro Archanjo vislumbrava em um ainda distante futuro.
De acordo com a argumentação construída nos capítulos quatro e cinco desta tese, é
possível analisar esta forma outra de contato com a diferença através do fato de Jorge Amado
ancorar, como alicerces de parte significativa de seu universo ficcional, os valores
constitutivos da cosmovisão do Candomblé; entre eles, uma abertura positiva para o outro – o
que implica não apenas a tolerância, em cuja atitude resta mal disfarçado o sentimento de
aversão, mas a aceitação irrestrita da diferença.
Como já debatido, não é à toa que Tição Abduim, personagem por intermédio do qual
os valores culturais negros se fixam no arraial que titula o romance, figura como o principal
vetor para a coesão em comunidade dos agrupamentos humanos ali aportados. Não fosse por
ação dele, para quem o outro não é percebido como completa exterioridade, mas como parte
constitutiva de um todo no qual ambos estão inseridos e para o qual ambos precisam
concorrer, a indiferença reinante entre os habitantes do lugar talvez nunca houvesse realmente
cedido ao sentimento de coletividade irmanada em afeto e solidariedade.
Da mesma forma, e também por inventiva de Tição, a dinâmica existencial da
comunidade se consolida sob o signo do Ayó, a alegria-alacridade, princípio fundamental para
o ser e estar no mundo específico do povo-de-Axé. E aqui não custa lembrar que o sentido de
coesão social de Tocaia Grande se fixou em meio (ou, talvez fosse mais correto, em função
de) ambientes festivos: os almoços-ajeum de todos os domingos, em que a partilha do
alimento se fazia acompanhada por afetos alegres, e o São João. A festa, como expressão
258
Se, por um lado, Tocaia Grande permite agenciar a formulação da síntese acima, e
nela está contido um modelo ideal de sociedade em que a liberdade viceja como experiência
cotidiana; por outro, o tom final em que o romance enfeixa o destino da comunidade,
procedendo à sua capitulação e subsistência apenas como memória subterrânea, causa certa
dissonância no que concerne à constituição solar da ficção de Jorge Amado. Ainda que se
argumente acerca da força inerente à permanência dos relatos orais e populares que contam do
arraial, mantendo a possibilidade de aquela heterotopia inspirar esperanças, é amargo o gosto
desta apenas compensação, incapaz de mudar o fato de a sociedade autoritária ter, ao fim e ao
cabo, vencido.
Caso a tese se encerrasse naquele sétimo capítulo, haveria uma certa incoerência entre
o seu início, em cuja premissa básica destaquei o fato de a esperança ser um sentimento
presente na produção de Amado, e o seu desfecho, que a dissolvia em uma perspectiva
crepuscular: o extermínio da liberdade. Por esta razão, a necessidade de um oitavo capítulo. O
sumiço da santa repõe em cena o aspecto solar que não se encontra em Tocaia Grande, de
modo que produz um fechamento mais adequado ao “[...] esforço persistente, quotidiano, do
plumitivo na tentativa de levar a cabo o compromisso de contar para divertir e, divertindo-se
ele próprio, mudar os termos do teorema e melhorar o mundo” – Amado (2010b, p. 383)
falando de si próprio, talvez?
No embate contra as violações sistemáticas da dignidade humana, a liberdade entre
elas, Jorge Amado utilizou das únicas armas de que poderia dispor sem que sua ação
incorresse em gerar violência: a sua romântica capacidade de ter esperança e o seu talento
como escritor. Construiu um universo ficcional comprometido com o devir das formas
autoritárias das quais a vida se encontra ainda cativa, com o intuito de transformá-las em
experiências possíveis de liberdade.
Se obteve êxito? A pergunta é capciosa, afinal que poder teria a literatura para tanto?
Jorge Amado não conseguiu mudar a vida do povo, é fácil conferir. Ainda assim, deve-se
reconhecer que nenhuma palavra pronunciada contra a violência e a tirania é vã e inútil:
alguém ao ouvi-la pode superar o medo e iniciar a resistência. Axé!
260
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271
ANEXOS
272
ANEXO A
“Declaração de guerra em língua de sotaque”
273
274
275
276
277
278
279
280
281
282
ANEXO B
“Episódio de Siroca”
283
284
285
286
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288