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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E CULTURA

DAS POSSIBILIDADES HETEROTÓPICAS PARA UMA EXPERIÊNCIA DE


LIBERDADE – UM ESTUDO DO UNIVERSO FICCIONAL AMADIANO

ANTONIO CARLOS MONTEIRO TEIXEIRA SOBRINHO

Salvador
2017
ANTONIO CARLOS MONTEIRO TEIXEIRA SOBRINHO

DAS POSSIBILIDADES HETEROTÓPICAS PARA UMA EXPERIÊNCIA DE


LIBERDADE – UM ESTUDO DO UNIVERSO FICCIONAL AMADIANO

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Literatura e Cultura, no âmbito da linha Documentos da
Memória Cultural, do Instituto de Letras da Universidade
Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção
do grau de Doutor.

Orientadora: Profa. Dra. Ívia Iracema Duarte Alves


Co-orientador: Prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte
(UFMG)

Salvador
2017
ANTONIO CARLOS MONTEIRO TEIXEIRA SOBRINHO

DAS POSSIBILIDADES HETEROTÓPICAS PARA UMA EXPERIÊNCIA DE


LIBERDADE – UM ESTUDO DO UNIVERSO FICCIONAL AMADIANO

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Literatura e


Cultura, no âmbito da linha Documentos da Memória Cultural, do
Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, como
requisito parcial para obtenção do grau de Doutor.

Orientadora: Profa. Dra. Ívia Iracema Duarte Alves


Co-orientador: Prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte (UFMG)

Tese aprovada em 08.maio.2017

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Ívia Iracema Duarte Alves (orientadora)


Universidade Federal da Bahia – UFBA

Prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte (co-orientador)


Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

Prof. Dr. Carlos Augusto Magalhães


Universidade do Estado da Bahia – UNEB

Prof. Dr. Benedito José de Araújo Veiga


Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS

Profa. Dra. Alvanita Almeida Santos


Universidade Federal da Bahia – UFBA
A Célia, minha mãe, e a Didi, minha avó,
com flores, uma saudade sem fim
e a esperança sincera de que encontros
ocorram do outro lado.

Ao silêncio das madrugadas,


com a gratidão de quem precisa sempre ouvi-lo.
AGRADECIMENTOS

A Olorum Olodumare; aos ancestrais Baba Olokotun ati Baba Alapala awon Ile Asipá,
a Exu e a Logun Edé, a todos os Orixás, com devoção e respeito.
Ao meu pai, Eduardo José Monteiro Teixeira, com grande amor e reconhecimento por
tudo o que foi feito para que eu estivesse hoje aqui.
A Aneres da Costa Santos, Nerinha, por ser igualmente minha mãe e por me acolher
igualmente como seu filho, com todo amor do mundo.
A Daiana Teixeira Nunes, pelo companheirismo paciente e cuidadoso durante todos
estes longos anos, por ter me levantado quando eu caí, com um sincero pedido de desculpas
por tanta ausência.
A Gabriela da Costa Santos, minha afilhada, pelo carinho com que tem estado ao meu
lado.
A Antenor Ferreira Leal Neto, Davi Nascimento Souza, Edvaldo Paulo das Neves
Junior, Ivan Santana Batista Soares, João Vitor Montenegro Pessanha, Leonardo Barbosa,
Leopoldo Andrade Neto, Rafael Bruni, Tiago Simões, Tiago dos Santos Lima, Quezia dos
Santos Lima e Zenon Ferreira Leal, amigos de toda uma vida, amigos para toda uma vida,
com todas as cervejas ainda por beber.
A José Félix dos Santos, Otun Alagba do Ilê Asipá, Mãe Nídia de Iemanjá e Mãe Cida
de Nanã, pelo carinho e pelos caminhos, pelas certezas que fazem seguir em frente, com um
pedido de bênção.
À Profa. Dra. Ívia Alves, minha orientadora, que soube conduzir esta pesquisa de
forma rigorosa, mas dotada da mais humana compreensão, com o sólido afeto que a
convivência construiu.
Ao Prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte, por ter apoiado este projeto quando ele ainda
era mais lacunas do que ideias e por ter feito parte de sua realização na condição de meu co-
orientador, com gratidão e respeito.
À Profa. Dra. Alvanita Almeida Santos e aos Profs. Drs. Benedito Veiga e Carlos
Augusto Magalhães pelas correções e sugestões feitas quando do exame de qualificação desta
tese, em 2015.
À Fundação Casa de Jorge Amado pela acolhida a esta pesquisa, disponibilizando o
seu acervo, inclusive material restrito, para consulta.
A Myriam Fraga pelas palavras de incentivo e de carinho com que se reportou a esta
pesquisa quando a apresentei à Fundação Casa de Jorge Amado.
A Gildeci de Oliveira Leite, cujo convívio e amizade foram (e são) fundamentais para
a minha imersão no universo amadiano.
Aos funcionários das Pós-graduações em Literatura e Cultura e Língua e Cultura da
Universidade Federal da Bahia, Cristiane P. Daltro, Maíra Vilas Boas, Ricardo Luiz dos
Santos Júnior e Thiago de Jesus Rodrigues pela atenção, competência e disposição com que
sempre trabalharam.
Aos funcionários do setor de periódicos raros da Biblioteca Pública do Estado da
Bahia.
A Roberto Rodrigues Campos pela tradução do resumo para o inglês.
A Jorge Amado, hoje e sempre, pelas esperanças que tomei de empréstimo.
[...] deve-se reconhecer que nenhuma palavra
pronunciada contra a violência e a tirania é vã
e inútil: alguém ao ouvi-la pode superar o medo
e iniciar a resistência.

Jorge Amado. O sumiço da santa.


RESUMO

Esta tese se configura como um estudo do universo ficcional de Jorge Amado, principalmente
a partir de Gabriela, cravo e canela, de 1958. Constitui-se como um exercício de
interpretação das formas com que o tema da liberdade se afigura encarnado em representações
individuais e/ou coletivas impressas pelo autor. Assume-se que a literatura amadiana não
busca apenas a denúncia de sistemas de opressão, mas também almeja encontrar alternativas
que apontem para condições de vida não tocadas por uma lógica da submissão ou por uma
dinâmica existencial repressiva. Nesta direção, procura-se mapear os sentidos concretos com
que a ideia de liberdade se apresenta tangível na ficção de Amado. Ou seja, formas específicas
de ser, estar e se relacionar com o mundo que, em função da série de posicionamentos de cada
narrativa, são veiculadas como dotadas da capacidade de reverter quadros de subjugação em
experiências possíveis de liberdade. A cartografia destas formas, que vem a ser um primeiro e
necessário passo para a posterior observação dos conteúdos dissonantes que elas encenam,
está amparada em um procedimento de leitura que funciona por contraste. Sua ênfase está
radicada na percepção da diferença instaurada por modos de vida não hegemônicos, situados
desde a margem, quando comparados ao conjunto de relações constitutivo da ordem
(econômica, social, cultural, axiológica e epistêmica) dominante nas sociedades ocidentais –
de resto, identificada como responsável pela subjugação de corpos e de espíritos, de
indivíduos e de grupalidades. O mapeamento destas experiências outras segue não apenas
pelas narrativas efetivamente publicadas por Jorge Amado. Busca-se igualmente observar
projetos que se apresentavam como importantes para o autor, mas que não foram totalmente
desenvolvidos. São os casos de A guerra dos santos, cujo plano de romance foi abandonado, e
Boris, o Vermelho, que Jorge Amado não conseguiu finalizar. O estudo destas tramas é
possível pelo cruzamento de cenas publicadas em revistas (A guerra dos santos) ou dos
datiloscritos digitalizados (Boris) com informações coletadas em entrevistas concedidas pelo
romancista ao longo da segunda metade do século XX. Com o intuito de elaborar leituras das
modalizações diferenciais de vida contidas na ficção de Amado, optou-se pela noção de
heterotopia, tal como desenvolvida por Michel Foucault (2001), como operador teórico. Isto
porque a formulação foucaultiana, preocupada em focalizar a coexistência nada harmônica de
espaços heterogêneos contíguos, permite discutir o modo como espacialidades não
hegemônicas, as heterotopias, são e produzem forças de contestação às relações imperantes –
“espaço” sendo aqui entendido não como um território delimitado por coordenadas
geográficas, mas por redes de posicionamentos. A partir das análises das narrativas de Jorge
Amado, é possível afirmar que as figurações de liberdade decorrem de um real heterotópico,
não delineado pelo modelo capitalista-burguês judaico-cristão. Trata-se de um espaço não
hierarquizado de convivência comunitária, no qual as relações humanas não se estabelecem
pelo valor monetário nem operam pela exclusão das alteridades, e organizado por uma
dinâmica existencial marcada pelo sentido de alegria-alacridade, que vem a ser um princípio
estruturante das formas de ser, estar e de se relacionar oriundas do Candomblé.

Palavras-chave: Jorge Amado. Experiências possíveis de liberdade. Heterotopia. Candomblé.


Esperança.
ABSTRACT

This thesis is a study of the fictional universe of Jorge Amado, mainly from 1958 Gabriela,
clove and cinnamon. It is an exercise of interpretation of the ways in which the theme of
freedom is embodied in individual and/or collective representations printed by the author. It is
assumed that Amadian literature makes not only the denunciation of systems of oppression,
but also seeks to find alternatives that point to conditions of life untouched by a logic of
submission or by a repressive existential dynamics. In this direction, this thesis seeks to map
the concrete senses with the idea of freedom is presented tangible in Amado’s fiction. In other
words, specific forms of being and relating to the world that, according to the number of
positions of each narrative, are transmitted as endowed with the capacity to revert contexts of
subjugation into possible experiences of freedom. The cartography of these forms, which is a
first and necessary step towards the subsequent observation of the dissonant contents that they
enact, is supported by a reading procedure that works by contrast. Its emphasis is based on the
perception of the difference established by non-hegemonic ways of life, situated from the
edge, when compared to the set of constitutive relations of order (economic, social, cultural,
axiological and epistemic) dominant in Western societies – it is indeed responsible for the
subjugation of bodies and spirits as well of individuals and groups. The mapping of these
other experiences follows not only by effectively narratives published by Jorge Amado.
Search also observe projects that were as important to the author, but that have not been fully
developed. They are A guerra dos santos, whose novel plan was discontinued, and Boris, o
Vermelho (Boris, the Red), that Jorge Amado was unable to finish. The study of these plots is
possible by crossing scenes published in magazines (A guerra dos santos) or digitalized
typewritings (Boris) with information collected in interviews given by the novelist during the
second half of the twentieth century. In order to elaborate readings of different forms of life
contained in Amado's fiction, it was chosen the concept of heterotopia, developed by Michel
Foucault (2001), as a theoretical operator. This is because the Foucaultian formulation,
concerned about focusing on the non-harmonic coexistence of contiguous heterogeneous
spaces, allows us to discuss how non-hegemonic spatialities, the heterotopias, are and produce
forces of contestation to the prevailing relations – "pace" being understood here not as a
territory delimited by geographical coordinates, but by positioning networks. From the
analysis of Amado’s narratives, it is possible to affirm that the figurations of freedom arise
from a heterotopic reality, not delineated by the Jewish-Christian capitalist-bourgeois model.
It is a non-hierarchical space of community coexistence, in which human relations are not
established through a monetary value or operated by the exclusion of otherness, and organized
by an existential dynamic marked by the sense of joy-alacrity, which comes to be a
structuring principle of the ways of being and interacting from Candomblé.

Keywords: Jorge Amado. Possible experiences of freedom. Heterotopia. Candomblé. Hope.


RIASSUNTO

Questa tesi si configura come un studio dell’universo fittizio di Jorge Amado, soprattutto da
Gabriella, garofano e cannella, 1958. La tesi si costituisce come un esercizio di
interpretazione dei modi in cui il tema della libertà appare incarnato nelle rappresentazioni
dell’individuo e/o del collettivo stampate dall'autore. Si presume che la letteratura amadiana
non solo cerca la denuncia dei sistemi di oppressione, ma anche l'obiettivo di trovare
alternative che indichino condizioni di vita non toccati da una logica di sottomissione o da una
dinamica esistenziale repressiva. In questa direzione, si cerca di mappare il modo concreto in
cui l'idea di libertà è presentata nei romanzi di Amado. Cioè, modi specifici di essere, di
vivere e di rapportarsi al mondo che, a causa della serie di posizionamenti di ogni narrativa,
sono trasmessi con la possibilità di rivertire la sottomissione in esperienze possibili di libertà.
La cartografia di queste forme, che è un primo e necessario passo per ulteriore osservazione
dei contenuti dissonanti che loro agiscono, è supportata da un procedimento di lettura che
funziona per contrasto. La sua enfasi è radicata nella percezione della differenza stabilita per
forme non egemoniche di vita, cui si trovano alle margini, quando vengono confrontati con il
set di relazioni costitutive dell’ordine (economica, sociale, culturale, assiologica ed
epistemica) dominante nelle società occidentali – identificato come responsabile per la
sottomissione dei corpi e degli spiriti degli individui e dei colletivi. La mappatura di queste
altre esperienze segue non solo le narrative effettivamente pubblicate da Jorge Amado. Questa
tesi anche osserva progetti che sono stati presentati come importanti dall'autore, ma che non
sono stati pienamente sviluppati. Questo è il caso di La guerra dei santi, il cui piano di
romanzo è stato abbandonato, e Boris, il Rosso, che Jorge Amado non è riuscito a finire. Lo
studio di queste trame è possibile incrociando scene pubblicate su riviste (La guerra dei santi)
o degli archivi originali digitalizzati (Boris) con le informazioni raccolte nelle interviste dal
romanziere nel corso della seconda metà del secolo XX. Al fine di preparare letture delle
forme differenziali di vita contenute nelle narrative di Amado, questa tesi utilizza la nozione
di eterotopia, sviluppata da Michel Foucault (2001), come operatore teorico. Questo perché la
formulazione di Foucault, preoccupata di concentrarsi nella coesistenza non armoniosa degli
spazi eterogenei e contigui, permette discutere il modo come spazialità non-egemoniche, le
eterotopie, sono e producono forze di difesa ai rapporti prevalenti – "spazio" qui significando
non un territorio delimitato per coordinate geografiche, ma come reti di posizionamento.
Dall'analisi delle narrative di Jorge Amado, è possibile affermare che le figurazioni di libertà
decorrono da una realtà eterotopica, non delineata dal modello capitalista-borghese giudaico-
cristiano. È uno spazio non gerarchizzato di convivenza comunitaria, in cui i rapporti umani
non sono stabiliti attraverso un valore monetario né operano l'esclusione di diversità, ed è
organizzato per una dinamica esistenziale marcata da un senso di gioia-alacrità, che viene ad
essere un principio strutturale delle forme di essere, di vivere e di rapportarsi al mondo
derivate del Candomblé.

Parole chiave: Jorge Amado. Esperienze possibili di libertà. Eterotopia. Candomblé.


Speranza.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12

2 DA UTOPIA À HETEROTOPIA 25
2.1 PREÂMBULO OU PREMISSA BÁSICA 25
2.2 A HETEROTOPIA E O CONTEMPORÂNEO 32

3 GABRIELA E QUINCAS, POTÊNCIAS HETEROTÓPICAS 58

4 O CANDOMBLÉ COMO HETEROTOPIA 82


4.1 DE COMO AMADO SENTE O CANDOMBLÉ 83
4.2 DE COMO AMADO SITUA A HETEROTOPIA CANDOMBLÉ 96

5 UM PROJETO REPRESENTACIONAL DO CANDOMBLÉ 108

6 O PASSADO EM PERSPECTIVA OU O ARCO FICCIONAL REVISIONISTA 143


6.1 POR UM PANORAMA DO REVISIONISMO AMADIANO 150

7 DOS TEMPOS CONTRÁRIOS À LIBERDADE 172


7.1 TENDA DOS MILAGRES E O EMBATE ENTRE MEMÓRIAS 174
7.2 TOCAIA GRANDE E O ECO DE UMA LIBERDADE INTERROMPIDA 194
7.3 CENTELHAS DE ESPERANÇA 218

8 POR UM FECHAMENTO SOLAR 221

CONSIDERAÇÕES FINAIS 252

REFERÊNCIAS 260

ANEXOS 271
ANEXO A – “DECLARAÇÃO DE GUERRA EM LÍNGUA DE SOTAQUE” 272
ANEXO B – “EPISÓDIO DE SIROCA” 282
12

INTRODUÇÃO

Mas eu não estou interessado


em nenhuma teoria
em nenhuma fantasia
nem no algo mais.
Longe o profeta do terror
que a Laranja Mecânica anuncia,
amar e mudar as coisas me interessa mais.

Belchior. Alucinação.

Ma tutta la mia opera si batte per un’unica speranza:


la libertà.

Jorge Amado. Entrevista a Remo Binossi.


Grazia, Milão, 19.fev.1984.

Nesta tese, eu apresento um exercício de interpretação do tema da liberdade tal como


ele se afigura no universo ficcional elaborado por Jorge Amado. Para tanto, adoto um
procedimento cartográfico-reflexivo em torno das representações em que o autor inscreve
uma força reversiva dos quadros de sujeição aos quais estão expostas, identificando-as na
condição de potência-devir em relação a um status quo autoritário. Assim, procuro construir
uma leitura de como são posicionadas, no conjunto da ficção amadiana, experiências
possíveis de liberdade – isto é, figurações individuais ou coletivas dotadas da capacidade de
instaurar outras formas de vida, não enfeixadas pelo signo da submissão nem dele se
constituindo como reprodutoras.
Reconheço a imprecisão polissêmica e de implicações um tanto quanto perigosas que
o uso da palavra liberdade pode acarretar. O fato de sua aporia ter se configurado como um
desafio para quase todos os sistemas de pensamento formulados pelo Ocidente proporciona
uma miríade difusa de significados, às vezes conflitantes ou contraditórios, sob a superfície de
um mesmo significante, que vem a ser objeto de discussão para as diversas correntes da
teologia e da teoria política, da metafísica e da história, do pragmatismo e da filosofia da
existência – além de uma preocupação básica para o desenvolvimento de sistemas éticos e
morais.
O sentido de liberdade, quando evocado discursivamente, só opera em modalização
forte se conectado a balizamentos referenciais capazes de projetar uma formulação conceitual
que ultrapasse a natureza abstrata que engendra o signo, inserindo-o em uma dinâmica de
pensamento que repercuta em meio à concretude do real. Em outras palavras, ao dizer
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liberdade, só produzo algum efeito realmente sério e positivo se o faço em ressonância


consciente a outros dizeres, de maneira a pôr em evidência as filiações que sustentam a
fixação de sentidos eminentemente políticos em meu discurso. Caso contrário, verbalizando-o
na vã suposição de o signo bastar a si próprio, como em geral ocorre em colocações
decorrentes do senso comum, delineio-o vazio, desprovido de qualquer relevância ou mesmo
de impacto na tessitura do dia-a-dia.
O perigo inerente às enunciações tautológicas em torno da palavra liberdade é tanto
maior no cotidiano de uma sociedade capitalista-burguesa, que a esvazia de seu significado
ético, acarretando um maior enraizamento das estruturas sociais estabelecidas e do regime de
poder instituído – o que corrobora para a salvaguarda e a consequente naturalização das
hierarquias em função das quais as posições de mando e de subserviência são dispostas.
Neste contexto, o processo de diluição da densidade semântica que anima a palavra
liberdade como afronta à ordem instalada a dociliza, reconfigurando tal termo como
sustentáculo simbólico-discursivo da configuração social vigente, posto que reduzido a
significações passíveis de serem supridas pelo cardápio de ofertas promovido pelo
establishment – muito embora os itens deste menu não se coloquem como de fato acessíveis
para todos.
O sentido de liberdade, no senso comum, é então rebaixado ao gozo mesquinho de um
individualismo egocêntrico, além de identificado com reles objetos de consumo por
intermédio dos quais é coisificado e experenciado como mercadoria – às vezes um maço de
cigarros ou os manuais para uma vida saudável e feliz; noutras uma calça jeans ou a vertigem
de uma motocicleta em velocidade. Infinitas as variáveis, pois infinitos são os deslocamentos
de desejo condicionados pela publicidade em uma sociedade de consumo, na qual a
experiência de ser livre é tratada como artigo de venda e de compra em bancas de revista ou
no shopping center.
O caráter inevitavelmente abstrato que circunscreve o substantivo liberdade,
demarcativo de sua vinculação ao campo das ideias ao invés daquele relacionado à
experiência imediata do real, tem possibilitado a emergência concreta de configurações
político-sociais assentadas em uma assimetria entre os níveis do discurso e da prática, com
este último se mostrando responsável sobretudo pela institucionalização de experiências
ilusórias e/ou fracassadas de liberdade.
Este é decerto o caso do exemplo apresentado acima, mas também pode se referir às
invasões estadunidenses a nações soberanas que, sendo estratégicas para os interesses
geopolíticos e financeiros da Casa Branca, não rezam em acordo aos preceitos de sua
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economia liberal nem se submetem às relações internacionais de matiz imperialista, agora


impostos mediante o discurso de implementação democrática e a força dos aparelhos de
guerra. Ou, para abranger o lado oposto do espectro ideológico, pode igualmente se relacionar
aos regimes totalitários de esquerda – também eles produtores de invasões a territórios
autônomos – em que a supressão das liberdades individuais se ocultava, e em alguns casos
ainda se oculta, sob o discurso de constituição paulatina de uma sociedade igualitária, onde os
seres humanos estariam livres da submissão econômica uns em relação aos outros.
Não raro, portanto, a ideia de liberdade é apropriada pelas estruturas de poder para
fazer medrar não a superação do autoritarismo, mas a sua materialização rizomática, ou seja, a
capilarização de padrões coercitivos e de servidão em todos os níveis da vida cotidiana,
inclusive os microfísicos, afetando não apenas o quadro macro das relações políticas e sociais,
públicas e privadas, mas também a instância que diz respeito aos indivíduos – as formas com
que estes significam o mundo em derredor, entre si e consigo mesmos.
Deste modo, o complexo e multifacetado conjunto de sentidos e de riscos que gravita
o signo liberdade impõe, desde logo, a urgência de situar em que direção caminho ao utilizá-
lo nesta tese. No âmbito abstrato das ideias, meu posicionamento reverbera a formatação
conceitual estabelecida por Marilena Chauí (2009, p. 58), para quem a liberdade se trata de
uma “[...] força para coexistirmos com os demais seres humanos e com a Natureza, sem
sermos por eles subjugados e sem precisarmos subjugá-los para viver. [...] A liberdade [...] é
presença a si e aos outros sem o medo da morte recíproca”.
Esta noção, que é formulada em virtude da leitura que Chauí empreende da Ética de
Espinosa, apresenta dois pontos relevantes para o argumento que pretendo construir. O
primeiro se refere à não redução da liberdade ao sentido de arbítrio, segundo o qual os seres
humanos seriam livres na medida em que pudessem viver de acordo com escolhas orientadas
pelo desejo ao invés de condicionamentos externos. O segundo, por não isolar a liberdade no
âmbito dos direitos individuais, apreendendo-a como princípio regulador de uma dinâmica de
convivência desprovida de dessemelhanças no que tange à distribuição do poder.
Com isso, que fique claro, não pretendo minorar ou desconsiderar o lugar das escolhas
movidas pelo desejo de determinar a si próprio nem, muito menos, o dos direitos individuais,
ambos com significativos desdobramentos no âmbito da ficção amadiana. Basta relembrar
uma personagem como Quincas Berro Dágua, por exemplo, para pôr em evidência o peso que
Jorge Amado confere à possibilidade de alguém decidir acerca de sua própria vida, optando
livremente pelos rumos a serem tomados, de modo a desnaturalizar o destino – com efeito, a
presença a si, de que fala Marilena Chauí. Ou, em outro plano, o tom de indignação que se
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eleva em face da violação dos direitos individuais promovida por regimes ditatoriais e por
configurações sociais excludentes, como se observa em Tenda dos milagres e em O sumiço
da santa.
A perspectiva posta por Marilena Chauí, que pensa a liberdade como impulso em
direção a relações humanas não vincadas por regimes de submissão, admite a possibilidade de
desdobrá-la em potência-devir. Isto é, como força de transformação capaz de conduzir atos de
intervenção no real concreto, de maneira a reverter uma dinâmica socioexistencial fundada no
autoritarismo em um estado de liberdade tangível, no qual é possível a coexistência do
múltiplo sem o perigo de sua redução ao um.
Neste ponto, é necessário enfrentar o problema inerente à transplantação da palavra
liberdade de um conjunto de referenciais abstratos – força de coexistência; potência-devir –
para representações concretas: o que viria a ser ou, mais precisamente, quais formas assumiria
um estado de liberdade tangível? Quais condições efetivas são necessárias para que uma
coexistência desprovida de assimetrias se instale?
A este respeito, não penso que sejam possíveis respostas pré-formatadas. Gerd
Bornheim (2002, p. 41) assinala que “[...] o único pressuposto histórico viável para que se
possa instaurar a inteireza do entendimento da questão está na ausência de liberdade”. Este é,
pois, um signo cujas possíveis representações fixadas no real concreto não comportam uma
definição em si mesmas, operando sempre em contraste àquilo que não as circunscreve – o
não é o seu ato fundador.
Sentidos objetivos para liberdade emergem e funcionam em antinomia a situações nas
quais o veto impera sobre os corpos e sobre os espíritos, seja no nível dos indivíduos ou das
grupalidades, de modo tenso e constante. Tratam-se de construções idealizadas, responsáveis
por animar um sentimento de esperança em torno de alternativas não producentes das
sensações cotidianas de barramento, que decorrem das várias censuras às quais se está
exposto, e de medo diante do perigo onipresente de punição, pelo fato de se ter ido ou de se
ter sido além do que é interditado – a instância punitiva não apenas corporificada no aparelho
repressivo constituinte do Estado, mas também identificada na figura de um deus
concomitantemente promotor e juiz.
Nesta direção, representações concretas de liberdade são elaboradas sempre em um
momento segundo, a posteriori no que concerne à apreensão intelectiva ou sensível de uma
condição cerceada, sob inflexível vigilância e em iminente risco. É, portanto, uma formulação
que se tece em função de uma atitude reativa às barragens do mundo efetivamente
experimentado, configurando-se como uma espécie de contrarrealidade ideada.
16

A investigação acerca da elaboração de uma representação palpável para o sentido de


liberdade, não mais o circunscrevendo no plano das figurações abstratas, não pode cometer o
erro de supô-lo em uma perspectiva simplista, de acordo com a qual ele se constituiria como
um espelho invertido do mundo real – normas suprimidas, ausência de limites –, o que viria a
ser uma perspectiva ingênua ou mal-intencionada. Trata-se de observar a projeção de um
outro modo de ser e de um outro modo de estar consigo e com os outros que, em contraste
com os modelos imperantes aos quais reage, tem a potência de promover o devir em direção a
uma existência (pres)sentida como menos limitada e como menos limitante. Logo, o que se
coloca em cena é a elaboração ou a aceitação de uma outra trama cotidiana de regras e de
poderes, não de sua supressão, de resto impossível.
A rigor, significações tangíveis de liberdade, responsáveis por verter o nível abstrato
das ideias em inscrições objetivas no real, não são possíveis senão mediadas pelas sensações
que a trama cotidiana de regras e de poderes oferece ao corpo e ao espírito dos sujeitos que a
vivenciam. Isto explica minha opção por experiências possíveis de liberdade para referir-me
às formas palpáveis em que a ficção amadiana introduz um sentido de ser livre, de maneira a
evidenciar o filtro de como o mundo em derredor se afigura na condição anímica de quem o
vivencia, em detrimento do signo liberdade tão somente, cujo uso poderia indicar uma
capacidade do substantivo em plasmar uma realidade em si mesma.
Isto posto, o objetivo geral desta tese é estabelecer um estudo crítico acerca das
representações engendradas em virtude de uma potência-devir libertária; dos modos pelos
quais elas rasuram ou revertem o establishment e dos conteúdos atinentes às experiências
possíveis de liberdade que vêm a ser encenadas no conjunto da ficção amadiana.
Esta tese tem por finalidade contribuir com a fortuna crítica da produção ficcional de
Jorge Amado no sentido da discussão de um ângulo até então pouco observado: as figurações
em que o tema da liberdade se desdobra encarnado no conjunto das narrativas do escritor
baiano.
Com isso, não estou insinuando que a importância do tema da liberdade na ficção de
Amado tenha passado despercebida dos críticos e pesquisadores, permanecendo como uma
temática inédita até o advento desta minha pesquisa. Decerto, não são propriamente raras as
reflexões que se debruçam sobre ela ou a reconhecem como leitmotiv do universo construído
por Amado. É o caso, por exemplo, de Rita Olivieri-Godet (2012), para quem o elemento
nuclear do pensamento amadiano se encontra em um ideal de liberdade individual e coletiva.
Embora a pesquisadora não busque detalhar as formas concretas a partir das quais depreende
o que seja esta quimera – e, se o fizesse, talvez não restasse razão de ser para esta tese –, é
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possível inferir que tenha algo a ver com o que ela designa como “ética intercultural”, ou seja,
um esforço de negociação entre as diferentes matrizes culturais constitutivas do povo
brasileiro, de maneira a “[...] transcender as diferenças sem desfazer-se delas” (OLIVIERI-
GODET, 2012, p. 176) – o que se conecta com aquela definição de liberdade como força de
coexistência trazida à baila por Marilena Chauí (2009).
Por sua vez, Jorge de Souza Araújo (2003, p. 167) destaca que “justiça social e sonho
de liberdade é a díade em que se assenta a obra de Jorge Amado nas suas múltiplas
conformações”. Para ele, os desdobramentos temáticos da literatura amadiana iniciados com
Gabriela, cravo e canela promovem a conciliação entre marxismo e liberdade, que vêm a ser
elementos divorciados na experiência real do modelo instaurado pelo comunismo soviético e
demais ditaduras comunistas.
Araújo trabalha com uma ideia de liberdade circunscrita ao âmbito do indivíduo, em
uma acepção relacionada à potência que os seres têm de determinarem a si próprios
independentemente dos condicionamentos externos aos quais estão sujeitos – flerta, neste
sentido, com o existencialismo sartreano, para o qual a liberdade de cada um em face das
escolhas conformativas da vida se coloca como princípio inalienável da existência, de modo
que se constitui como fundamento ontológico do ser. Daí o enfoque de Araújo em
personagens como Gabriela e D. Flor, nas quais a pulsão desejante reverte os cerceamentos
morais a que se encontram submetidas; o capitão de longo-curso Vasco Moscoso de Aragão,
que põe em cena a capacidade onírica de cada ser criar para si a realidade em que gostaria de
viver, e Quincas Berro Dágua, que efetivamente funda esta outra realidade a partir de uma
escolha consciente e de um gesto de ruptura com o estado anterior – a liberdade de existir em
consonância consigo mesmo, que se instala desde o interior dos seres e eclode nas
manifestações do desejo, do sonho e das escolhas pessoais.
Outra abordagem do tema consta em um ensaio produzido em 1983 pelo crítico baiano
Eduardo Portella (2011), no qual ele promove uma leitura de conjunto da produção literária
amadiana, considerando-a sob a inscrição de “o infatigável sonho da liberdade”.
O ensaio apresenta uma incursão panorâmica à ficção de Amado imbuída do intuito de
ali observar o solo em que medra a liberdade. “Não a liberdade desossada e descarnada,
elaborada mentalmente por tantos modelos ideológicos”, adverte Portella (2011, p. 67), mas
uma que se apresente partícipe do real objetivo. Assim, a literatura amadiana avança, “[...] em
diversos planos, no confronto inóspito de imaginário e dominação, o esforço por encontrar,
em qualquer lugar possível, a saída para os desempenhos emancipatórios, por cima das
estruturas de violência” (PORTELLA, 2011, p. 67).
18

Como forças instauradoras de um sentido concreto de liberdade, o crítico aponta as


muitas formas através das quais a margem – os excluídos do contrato social fixado pelo
Ocidente – impõe resistências ao expansionismo homogeneizante do centro, fluxo de poder e
de sujeição. Assim, salvaguardam sua diferença no que tange à ordem imperante,
resguardando os seus modos de vida e seus códigos simbólicos, de maneira a projetá-los
como potência-devir em relação ao autoritarismo do centro. Neste sentido, Portella (2011, p.
68) assevera: “A margem da liberdade é a liberdade da margem”.
Apoiado na polissemia do signo margem, neste contexto conotando tanto “contorno”
quanto “marginalizados”, Portella visualiza o desenho não abstrato da liberdade em meio aos
espaços outros nos quais decorre a vida situada não apenas do lado de fora do centro, mas em
resistência a ele e com potencial para desestabilizá-lo e revertê-lo.
Ainda que o tema da liberdade não se apresente como inédito no que concerne aos
estudos amadianos, acredito que esteja ainda longe de ser esgotado: há, sem dúvida, muitos
ângulos a serem buscados antes que as intervenções analíticas sobre ele comecem a se repetir
em demasia. Aquele selecionado para orientar minha leitura do tema considera as reflexões
traçadas por Rita Olivieri-Godet e por Jorge de Souza Araújo, mas adere principalmente à
perspectiva aberta por Eduardo Portella, continuando de onde ele não vai: o detalhamento
desse espaço de liberdade que vem a ser a margem. Deste modo, compete a esta tese
identificá-lo, cartografando suas formas diferenciais de ser e de estar no mundo, de relacionar-
se com ele; verificar em que sentido tais modalizações implicam um distanciamento dos
modelos centrais e, por último, constituir um gesto de interpretação acerca das causas pelas
quais Amado projeta, nestas existências outras, experiências possíveis de liberdade.
Para tanto, o fio condutor de minha abordagem será constituído da noção de
heterotopia, desenvolvida por Michel Foucault (2001) em uma conferência originalmente
proferida em 1967 – noção, aliás, já utilizada por Rita Olivieri-Godet (2004; 2012) para ler a
produção ficcional amadiana.
Neste texto, Foucault está interessado em observar como determinados espaços, aqui
entendidos como relações de posicionamento, interagem, de forma resiliente, com os espaços
dominantes, de onde emana uma espécie de poder central conformativo da lógica
hegemônica, de maneira que não restam por ele subjugados e reduzidos ao mesmo, mas
relicários de uma diferença capaz de projetar modos outros de vida.
Cabe aqui um breve parêntese. Admito que parece de todo estranho a uma perspectiva
articulada com uma noção desenvolvida pelo pensamento foucaultiano fazer uso da expressão
“poder central” quando, para ele, o poder não se encontra assentado em uma instituição ou em
19

um sujeito, mas capilarizado na trama produtiva de cada detalhe do dia-a-dia. “Deve-se


considerá-lo”, adverte Foucault (1979, p. 8) sobre o poder, “como uma rede produtiva que
atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função
reprimir”. No entanto, neste particular, penso com Terry Eagleton (1997, p. 21), para quem é
“[...] perfeitamente possível concordar com Nietzsche e Foucault a respeito de que o poder
está em toda parte, ao mesmo tempo que se busca distinguir, para certos propósitos práticos,
entre exemplos de poder mais e menos centrais”.
Desta forma, ao grafar “poder central”, não pretendo uma abordagem ossificada do
poder, vinculando-o a um estratagema de quem quer ou do que quer que seja, mas, em
contrapartida, não posso abdicar de perceber como ideologias dominantes – conceito refutado
por Foucault em função de seu sentido marxista – operam por seu intermédio, sem dúvida
instalando forças coercitivas mesmo nas camadas microfísicas do tecido social.
Findo o parêntese, Michel Foucault (2001) destaca duas modalidades espaciais
relacionadas à contestação da configuração dominante de posicionamentos: a utopia, que ele
entende como um espaço irreal, apenas idealizado, cuja diferença seria instalada no eixo do
tempo – a transformação dos espaços de hoje naqueles de amanhã –; e as heterotopias,
espaços diferenciais efetivamente localizáveis no real concreto, nas quais visualiza uma maior
potência – elas não precisam instaurar outros espaços, elas já o são.
A distinção operada por Foucault em torno das categorias da utopia e da heterotopia,
demarcando esta última como seu campo de interesse, me conduz a estabelecer um primeiro
critério para a constituição do corpus estudado nesta tese: narrativas em que a potência-devir,
capaz de reverter modelos autoritários em experiências possíveis de liberdade, emana de
espaços inscritos no real das tramas, ou de personagens a eles vinculados, que funcionam em
resiliente divergência ao padrão instituído como hegemônico, tensionando-o –
posicionamentos heterotópicos, enfim, dos quais provém a margem de que fala Portella
(2011).
Com isso, meu foco recai nas narrativas produzidas (ou planejadas e/ou apenas
rascunhadas) por Amado após o seu desligamento da militância política e, por conseguinte, o
abandono do proselitismo ideológico que enseja os romances produzidos entre 1933 e 1954,
modalizados por uma perspectiva utópica. Deste modo, procuro produzir leituras mais detidas
em torno das narrativas de Gabriela, cravo e canela (1958), A morte e a morte de Quincas
Berro Dágua (1959), Os pastores da noite (1964), Tenda dos milagres (1969), Tocaia Grande
(1984) e O sumiço da santa (1988), além de reflexões em torno dos projetos não completados
de A guerra dos santos (1958-1988) e Boris, o Vermelho (1982~1994). Dona Flor e seus dois
20

maridos (1966), Tereza Batista cansada de guerra (1972), Tieta do agreste, pastora de
cabras (1977) e A descoberta da América pelos turcos (1994) configuram romances
agenciados por uma abordagem em que não me detenho nas minudências das tramas, mas
pinço aqui e ali detalhes que agregam consistência ao argumento desenvolvido.
A distinção de tratamento entre os dois grupos de narrativas obedece a três critérios:
maior pregnância no que se refere às experiências possíveis de liberdade emanadas a partir
das margens; anterioridade em relação à figuração de determinados aspectos constitutivos da
crítica aos modelos dominantes e/ou das experiências possíveis de liberdade e, no que tange
especificamente a O sumiço da santa, a possibilidade de produzir um fechamento solar para o
encaminhamento do tema da liberdade no universo ficcional de Amado.
A completa verdade sobre as discutidas aventuras do comandante Vasco Moscoso de
Aragão, narrativa publicada no volume Os velhos marinheiros (1961), e Farda, fardão,
camisola de dormir (1979) não compõem o corpus desta tese em virtude do critério de
figuração heterotópica instituído. Na primeira, o espaço de contestação dos condicionamentos
aos quais o protagonista está exposto provém do sonho, isto é, da capacidade de imaginar-se
outro, portanto, não decorre de relações de posicionamentos inscritas na concretude do real;
na segunda, a resistência aos tentáculos do Estado Novo é focalizada no seio da Academia
Brasileira de Letras que, como espaço oficial e de poder que é, não pode ser lida na condição
de uma heterotopia.
Não se trata, é importante deixar claro, de condicionar a seleção do corpus aos limites
do que a teoria permite ou não abordar – o que sugere um movimento inicial invertido,
partindo do arcabouço teórico em busca da literatura que lhe caiba. A noção de heterotopia foi
requisitada em função das possibilidades que ela coloca para a leitura de posicionamentos
diferenciais advindos da margem, que vem a ser o objetivo desta tese. Logo, as narrativas não
contabilizadas, a despeito de apresentarem desdobramentos importantes para a discussão do
tema da liberdade, não o foram por conta do ângulo de leitura instituído.
Ainda em razão do critério de figuração heterotópica, justifico meu tratamento apenas
breve e panorâmico dos romances anteriores a Gabriela, cravo e canela – o que faço
acompanhando, em tom de resenha, o estudo deles realizado por Eduardo de Assis Duarte
(1996). Apesar de escritos em função de um compromisso com a utopia comunista, o que me
permitiria não os considerar, não posso simplesmente esquecer estes romances, uma vez que
eles instituem uma primeira experiência possível de liberdade, aquela ideada em virtude do
princípio de igualdade, construtor de uma organização social não cindida em classes, que
continua repercutindo nas formulações posteriores.
21

O livro Bahia de Todos os Santos: guia das ruas e dos mistérios da cidade do
Salvador (1944) se apresenta como uma dupla exceção. Por não ser uma narrativa literária,
apesar de se valer não raro de recursos próprios à literatura, era natural que não constasse
entre os livros que compõem o corpus deste trabalho, ademais não voltado para textos
produzidos e publicados em meio ao tempo da utopia. Apesar disto, se faz presente, pois o
interpreto na condição de uma escrita em trânsito da modalização utópica para a heterotópica,
o que implica perceber o início de uma abertura de perspectivas no que tange à maneira com a
qual Amado olha para trama dos espaços, impactando sua ficção posterior.
Para além das etapas iniciais de leitura e fichamento das narrativas produzidas por
Jorge Amado a fim de delimitar o corpus e levantar hipóteses, e de atualização em face da
fortuna crítica do escritor baiano, o processo de pesquisa e de coleta de dados para a
formulação desta tese abrangeu a consulta ao acervo da Fundação Casa de Jorge Amado, no
qual acessei:
a. Entrevistas concedidas pelo escritor a periódicos nacionais e estrangeiros, bem
como a programas de rádio ou de televisão, estas registradas em fitas K7, ao longo do período
1958-2001, a marcação temporal instituindo como limites o ano de publicação de Gabriela,
cravo e canela e o falecimento do autor.
É importante ressaltar que estas entrevistas não foram buscadas com o intuito de fazer
o escritor explicar sua própria produção literária ou de sua voz pairar como sombra mais
autorizada a legitimar a leitura empreendida por esta tese. A ida ao conjunto de entrevistas
esteve assentada em três objetivos, a saber: 1. verificar a imagem que Jorge Amado busca
construir para si, na condição de um escritor, e para a sua literatura, de maneira a observar a
defesa de um ideal de arte comprometida com a luta contra as formas de tirania e de
desigualdade, além de situadas em relação às demandas de seu tempo histórico; 2. analisar os
modos pelos quais ele se refere ao Candomblé, tanto de um ponto de vista a explicitar seu
envolvimento pessoal com a cultura africano-brasileira quanto para posicioná-la em contraste
com a tradição judaico-cristã, de forma a interpretar como e por que ele sente e apreende o
Axé na condição de uma heterotopia; 3. reconstituir os planos gerais ou as questões atinentes
a A guerra dos santos, romance abortado, e a Boris, o Vermelho, narrativa não concluída.
b. Textos não ficcionais publicados por Jorge Amado em periódicos nos anos de 1930,
inclusive aqueles editados em Boletim de Ariel, como forma de estudar os posicionamentos
assumidos pelo então jovem escritor e conferir suas reverberações nos desdobramentos do
universo ficcional constituído pelo baiano.
22

c. Datiloscritos digitalizados de Boris, o Vermelho, imbuído da perspectiva de


interpelá-los em função de produzir uma leitura possível de como estaria disposto neles o
tema da liberdade1.
d. “Declaração de guerra em língua de sotaque”, primeiro episódio do que viria a ser A
guerra dos santos, único escrito e publicado, veiculado por A Revista do Homem, atual
Playboy, em sua edição de agosto de 1975.
No capítulo de número dois, “Da utopia à heterotopia”, procuro acompanhar a
passagem de uma categoria de contestação à outra empreendida pela ficção amadiana,
identificando-a como uma movimentação entre o tempo da Modernidade, cujo paradigma
crítico é assumido pelo autor em virtude de sua adesão à metanarrativa marxista, e o da
Contemporaneidade, então emergente. O capítulo é aberto com uma seção intitulada
“Preâmbulo ou uma premissa básica, na qual adoto a categoria literatura como missão,
elaborada pelo historiador Nicolau Sevcenko (1983), como operador do olhar que se dirige
para o universo ficcional amadiano. Trata-se de colocar em evidência os protocolos de leitura
que assumo em face das narrativas de Amado, focando, em especial, no compromisso ético
que a fundamenta – seja no tempo da utopia ou da heterotopia.
Em seguida, ainda neste mesmo capítulo, introduzo a noção foucaultiana de
heterotopia, ressaltando o modo como ela dialoga com a Contemporaneidade, e argumento em
prol de sua aplicação como operador teórico para a leitura de Amado. Em paralelo, valho-me
também da ideia de contemporâneo, tal como delineada por Giorgio Agamben (2009), para
enfatizar o compromisso que o escritor baiano mantém com o seu tempo, sempre atento às
demandas postas por suas zonas de sombra.
Na sequência, “Gabriela e Quincas, potências heterotópicas” promove uma leitura
centrada nestas duas personagens, cujas narrativas em que estão situadas se configuram como
as emergências iniciais da heterotopia no universo ficcional de Amado. Desta maneira, intento
verificar como a potência-devir, oriunda dos posicionamentos heterotópicos assumidos e
encenados pela retirante sertaneja Gabriela e pelo vagabundo Quincas, rasura o quadro das
relações dominantes e instaura, em contraste a ele, experiências possíveis de liberdade.
“O Candomblé como heterotopia”, capítulo quatro, estabelece um estudo em torno do
investimento amadiano na representação do Axé. Busco compreender os sentidos pelos quais
a dinâmica simbólica e social africano-brasileira é apreendida por Amado, de forma a

1
Os datiloscritos de Boris, o vermelho se tratam de registros inéditos. Deste modo, por força de contrato junto à
Fundação Casa de Jorge Amado, não é possível anexá-los ao fim desta tese. Foi-me permitida a utilização apenas
de fragmentos.
23

observar o contraste, estruturado pelo escritor, entre as formas de vida organizadas sob a
égide da matriz colonizadora ocidental e aquelas fundadas a partir das comunidades-terreiro.
Junto a Muniz Sodré (2002), argumento que a dimensão da alegria-alacridade constitui as
existências vinculadas ao Axé, de resto desprovidas de uma axiologia fundada nos sentidos de
Culpa e de Pecado, além de dotadas de uma abertura positiva para o outro – principais
elementos galvanizadores de sua figuração heterotópica.
Em suplemento vertical a esta perspectiva, no capítulo cinco, intitulado “Um projeto
representacional do Candomblé”, estabeleço uma hipótese de leitura acerca do fato de Amado
ter abortado o projeto de romance A guerra dos santos, comentado em entrevistas desde 1958.
Após reunir as informações sobre o que viria a ser a narrativa, desenvolvo um estudo do
episódio “Declaração de guerra em língua de sotaque”, publicado em 1975 como as primeiras
cenas de um romance em desenvolvimento, com o intuito de observar a representação do
povo-de-Axé2 ali formatada. Argumento que A guerra dos santos pressupunha um retrato
radicalmente distinto daquele emoldurado nas demais narrativas elaboradas por Amado desde
1958, de maneira que não colocava em cena a possibilidade de o Candomblé favorecer uma
experiência livre pois cindido em guerras internas de poder. Assim, o não prosseguimento do
plano inicial, revertendo A guerra dos santos em O sumiço da santa, que retorna à positivação
heterotópica do Axé, oferece-me as condições suficientes para defender um projeto
representacional do Candomblé na condição arquetípica de uma heterotopia absoluta e
positiva.
O capítulo seis, “O passado em perspectiva ou o arco ficcional revisionista”, tem sua
origem na percepção da insistência com que, a partir de um determinado momento, Amado
monta a estrutura temporal de algumas tramas suas como um jogo entre presente e passado,
no qual busca recuperar memórias subterrâneas (POLLAK, 1989) responsáveis por desmontar
narrativas oficiais e instaurar outros pontos de vista. Aqui, as heterotopias são interpeladas em
função das memórias em que legam ao presente, por via oral ou literatura popular, as
experiências possíveis de liberdade nelas protegidas.
Em “Dos tempos contrários à liberdade”, capítulo sete, o arco ficcional revisionista é
lido em virtude de suas duas narrativas modelares, Tenda dos milagres e Tocaia Grande. A
2
Por “povo-de-Axé”, refiro-me ao que é popularmente designado como “povo-de-santo”. A minha opção em
trabalhar com uma nomenclatura diferente está ancorada nas diferenças que o mundo judaico-cristão e o dos
Candomblés apresentam no que concerne à percepção do Sagrado. A ideia de santidade, tal como produzida pelo
Ocidente católico, não traduz, senão com significativas perdas ou ajustes prejudiciais, os conceitos de Orixá,
Inquice e Vodun. A escolha de “Axé” para substituir “santo” se deu motivada por aquele ser um conceito básico,
no sentido de se constituir como base para todos os processos de existência do mundo, para os Candomblés. A
expressão, é necessário reconhecer, guarda o risco de ser nagô-cêntrica, uma vez que se utiliza de um signo
proveniente do vocabulário litúrgico Ketu.
24

perspectiva adotada é verificar, ao mesmo tempo, os conteúdos libertários atinentes às


memórias heterotópicas e a produção severa de interdições não apenas sobre elas, em uma
tentativa de reduzi-las ao silêncio, mas também aos espaços de diferença de onde elas
provêm. Neste capítulo, a tensa relação entre o centro e a margem é lida sob a perspectiva do
ensinamento posto pela tradição dos oprimidos, qual seja, a de que o estado de exceção
constitui, na verdade, a regra (BENJAMIN, 2012). Para atualizar o conteúdo do que Benjamin
pontua como estado de exceção, é requisitada a leitura do Brasil como uma sociedade
autoritária estabelecida por Marilena Chauí (2013). Apesar de este capítulo animar alguma
esperança em seu final, o seu tom é majoritariamente crepuscular – tanto mais em face do
desfecho de Tocaia Grande. A sensação que resta é a do triunfo do autoritarismo sobre a
liberdade.
Esta é, com efeito, a razão de ser de minha abordagem de O sumiço da santa em “Por
um fechamento solar”, último capítulo desta tese. Embora a cartografia das experiências
possíveis de liberdade se finde em Tocaia Grande, seria um tanto incongruente dar ali um
termo a este estudo. Sua arquitetura final trágica encena a violenta destruição das formas
diferenciais organizadas em função do espaço comunitário que titula o romance, o que parece
contradizer a premissa básica adotada, qual seja, a do sentimento de esperança que perpassa o
universo ficcional amadiano por inteiro. Por isso, O sumiço da santa, romance em que a
esperança retorna com força e enfeixa o tema da liberdade em uma perspectiva solar,
garantindo o direito ao sonho em torno de experiências possíveis.
25

2 DA UTOPIA À HETEROTOPIA

como parece que no tengo remedio


y estoy definitivamente perdido
para la fructuosa neutralidad
lo más probable es que siga escribiendo
cuentos no neutrales
y poemas y ensayos y canciones y novelas
no neutrales
pero advierto que será así
aunque no traten de torturas y cárceles
u otros tópicos que al parecer
resultan insoportables a los neutros
será así aunque traten de mariposas y nubes
y duendes y pescaditos.

Mario Benedetti. Soy un caso perdido.

Eu vi muitos cabelos brancos


na fronte do artista.
O tempo não para e, no entanto,
ele nunca envelhece.

Caetano Veloso. Força estranha.

2.1 PREÂMBULO OU PREMISSA BÁSICA

A despeito de o título dado a este capítulo possibilitar a leitura de uma argumentação


evolutiva e teleológica, na qual as abordagens por meio da utopia e da heterotopia ocupariam
os postos de ponto de partida e de chegada, não é esta a perspectiva aqui proposta e defendida.
Não se trata, sobremaneira, de pensar a passagem de uma à outra sob a clave do conceito
moderno de progresso, como se houvesse a migração de um estágio “inferior” a um
“superior”, mas, tão somente, de compreender dois movimentos da produção literária
amadiana que se sucedem no tempo e o respondem como podem, sem que isso implique
classificações valorativas.
Na verdade, a utopia sustentou o direcionamento dos enredos amadianos enquanto foi
possível para o autor mantê-la na condição de um equacionamento eficaz para as
desigualdades inerentes ao capitalismo, posto espelhasse, por projeção no eixo do tempo, a
transformação social então em curso na antiga União Soviética: qualquer experiência possível
de liberdade era, neste momento, entendida sob a forma de emancipação das classes
oprimidas e em uma relação sinonímica com a perspectiva de igualdade social.
Os espaços heterotópicos, por sua vez, assumem o protagonismo quando o romancista
se depara com as falhas do governo soviético, que adota uma feição totalitária e controladora
26

sob a direção de Stálin. A descoberta de que o comunismo também produzia seus presos
políticos, seus torturados, mortos e silenciados, o que se deu para Amado mais ou menos no
momento de publicação da trilogia Os subterrâneos da liberdade, de 1954, fez com que o
edifício da utopia associada ao Leste europeu desmoronasse.
Nesta paisagem em que é confrontado, ao mesmo tempo, pelo desmonte de sua crença
utópica no comunismo soviético – mas não no socialismo como modelo de justiça social – e
pela continuidade de seu inconformismo com os múltiplos cerceamentos impostos a grandes
contingentes populacionais no Brasil, o autor redefine o seu olhar para flagrar experiências
possíveis ou potenciais de liberdade em pequenos espaços de diferença – as heterotopias –
que, simplesmente por existirem de forma resiliente à sanha homogeneizadora da sociedade
em derredor, tensionam o poder hegemônico e abrem a perspectiva de outras configurações
socioculturais.
Tendo isto em vista, parto aqui de uma premissa básica para o estudo da produção
ficcional amadiana: o fato de ela ser, do primeiro ao último romance, uma literatura
eticamente comprometida, constituída sob o signo de uma missão, no sentido estabelecido por
Nicolau Sevcenko (1983, p. 199), isto é, “[...] como registro judicioso de uma época e como
projetos sociais alternativos para a sua transformação” – aliás, Carlos Augusto Magalhães
(2011) já fez uso da categoria formulada por Sevcenko para o seu estudo acerca do processo
de modernização da cidade de Salvador representado em Suor.
O estatuto de uma missão ante a realidade é incorporado pelo jovem Jorge Amado de
final dos anos 1920, quando ele fazia parte da Academia dos Rebeldes 3, grupo de jovens
intelectuais de esquerda, cujo programa literário “[...] procurava ignorar o modernismo de
importação da Semana de Arte Moderna de São Paulo e suas ramificações e ressignificações
regionais”, de acordo com Cid Seixas (2004, p. 44). Reunidos em torno de Pinheiro Viegas,
líder e mentor intelectual do grupo, os jovens baianos

[...] se voltaram contra as formas de vã-guardismo que julgaram inconsequentes e


dissociadas da realidade cultural brasileira. Deste modo, admitiram a retomada das
tradições que estivessem em consonância com as necessidades concretas do homens
(sic) no seio da vida social. Aí, a forma de comprometimento ideológico destes
Rebeldes define as fronteiras do seu processo criativo, abrindo sendas para as
questões políticas e identitárias [...] (SEIXAS, 2004, p. 45).

3
A Academia dos Rebeldes era composta por Pinheiro Viegas, Alves Ribeiro, Aydano do Couto Ferraz, Clóvis
Amorim, Da Costa Andrade, Édison Carneiro, João Cordeiro, Jorge Amado, Sosígenes Costa e Walter da
Silveira.
27

Ângelo Barroso Costa Soares (2006) destaca que o apego à tradição comentado por
Seixas não se coloca como adesão e reprodução de parâmetros artísticos e sociais
considerados eruditos, uma vez que provenientes da Europa. Antes, está relacionado ao
contato e preocupação com as camadas mais pobres de Salvador, postas à margem do sistema
capitalista, e com a cultura negra, perseguida pelo processo de modernização da cidade. Trata-
se de um fazer artístico que se coloca prioritariamente ao lado dos oprimidos.
Este é o campo intelectual que fundamenta o vetor ético da produção amadiana,
potencializado, a partir de 1932, pela adesão do autor ao socialismo. Neste sentido, Jorge
Amado se configura como um escritor engajado, que assume o lugar de representar o povo
como um conjunto de atores que assume a “[...] consciência de seu estar num mundo de
opressões e injustiças”, segundo Jorge de Souza Araújo (2003, p. 15).
A força desta adesão, além de ser observável no plano ficcional, pode também ser
verificada em textos críticos publicados pelo autor bem como em posicionamentos adotados
em entrevistas. São emblemáticos, nesta perspectiva, os artigos “Arte pela arte” e “Romance
moderno”, ambos publicados por Amado no periódico fluminense Diário de Notícias,
respectivamente nas datas de 24 de novembro e 22 de dezembro de 1935 – mesmo ano em
que é fundada, em março, a Aliança Nacional Libertadora, organização política de orientação
esquerdista e comprometida com a luta contra o avanço do nazi-fascismo, da qual Jorge
Amado passa a fazer parte.
Nestes artigos, então com 23 anos, Jorge Amado se posiciona em face das discussões
sobre os excessos cometidos ou pelas tendências estéticas ainda oitocentistas, marcadas pela
busca da perfeição das formas poéticas, ou pelas vanguardas modernas, cujos
experimentalismos as afastam do grande público e, portanto, de seus problemas. Como outros
intelectuais de seu tempo, principalmente aqueles irmanados a um pensamento de esquerda e
aderentes a um sentido de missão da produção artística, ele estabelece uma forte crítica à
dimensão estética como valor absoluto da arte. Isto porque a exacerbação do apuro formal em
detrimento de um empenho em ver e discutir a realidade social comportaria um
alheamento/falseamento do real e da experiência humana, o que configuraria tal procedimento
como um fator contribuinte para a não reflexão sobre os processos históricos em curso, seja
no âmbito internacional ou interno:

O mundo atravessa um momento essencialmente político. E é conhecida a velha


chapa que colocava o artista, o intelectual, o homem de letras, à margem dos
acontecimentos políticos. É o conceito célebre da “arte pela arte”. O artista trancado
na sua clássica torre de cristal [...] não se interessava pelos acontecimentos que se
desenrolavam cá em baixo no Velho Mundo de homens sem senso artístico, de
28

homens que lutavam no quotidiano pelas renovações políticas e sociais (AMADO,


1935a).

A observação dos recursos discursivos aplicados para estabelecer sua crítica à diretriz
“arte pela arte” aponta, logo de início, para o tempo verbal em que se diz dos artistas
vinculados à concepção puramente estética: o pretérito imperfeito. Esta escolha não pode
passar despercebida uma vez que ela estabelece, no plano linguístico, um confronto entre duas
situações, no qual a primeira sofre o impacto e a interrupção causada pelo surgimento da
segunda, deixando assim de existir. De certo modo, esta opção não deixa de suscitar um
embate entre as categorias do velho, porque fora do tempo presente, e do novo, porque nele
situado – daí o uso da expressão “velha chapa”, na qual o adjetivo, pejorativamente anteposto
ao substantivo para lhe carregar em peso, partilha do universo semântico de anacronismo.
Utilizando-se desta estratégia, o discurso amadiano, absolutamente assentado em uma
perspectiva de enfrentamento, opõe dois modelos de artista, indicando que um deles deve ser
superado, por antiquado, em prol do outro, atado de forma verdadeira e profunda às urgências
do tempo em que produz.
Nesta situação de profundo devir, o fazer artístico que se pretende a-histórico,
motivado por temas atemporais e universais ou por experimentações estéticas cada vez mais
intricadas e descompromissadas com a realidade social de seu tempo, é diretamente associado
a um traço passadista que deve ceder lugar ao artista engajado, movido por uma ideologia
política de esquerda. Este segundo modelo de escritor, aquele dotado de uma missão histórica,
é solicitado pelo próprio contexto sociopolítico, que se inscreve no que Hobsbawm (1995)
designa como “era da guerra total” e que João Luiz Lafetá (1974, p. 17) descreve como
marcado

[...] por um recrudescimento da luta ideológica: fascismo, nazismo, comunismo,


socialismo e liberalismo medem suas forças em disputa ativa; os imperialismos se
expandem, o capitalismo monopolista se consolida e, em contraparte, as Frentes
Populares se organizam para enfrentá-lo. No Brasil é a fase de crescimento do
Partido Comunista, de organização da Aliança Nacional Libertadora, da Ação
Integralista, de Getúlio e seu populismo trabalhista. A consciência de luta de classes,
embora de forma confusa, penetra em todos os lugares – na literatura inclusive, e
com uma profundidade que vai causar transformações importantes.

Assim, de acordo com a perspectiva amadiana, era necessário que o artista assumisse
sua condição de sujeito político e adotasse uma postura em prol das transformações que
estavam em curso ou, ao menos, que se posicionasse acerca dos dilemas postos pelo momento
vivido.
29

O mesmo tom é novamente utilizado em “Romance moderno”, artigo em que Amado é


ainda mais incisivo no que se refere à necessidade de os artistas se implicarem na luta contra
as opressões e a favor das mudanças em curso: “[...] quando os homens atravessam uma época
política, uma época de lutas como a nossa, o romance que seja honesto não pode deixar de ser
uma arma de luta” (AMADO, 1935b).
Jorge Amado vê a si próprio imbuído de uma missão: engajar-se, através da palavra
ficcionalizada, no fluxo histórico das lutas sociais, situando-se a partir do ponto de vista das
classes subalternizadas, dos oprimidos em geral, dos marginalizados e dos esquecidos.
A identificação do autor com esta formulação ética do ofício de romancista permanece
intocável ao longo do tempo, não se restringindo apenas às décadas em que o autor é
alimentado pela utopia política – “[...] a despartidarização não implica na desmobilização”,
afirma Eduardo Portella (1983, p. 112) sobre Jorge Amado. Também as entrevistas do
romancista entre as décadas de 1950 e 1990 evidenciam a preocupação em continuar
atrelando a si o sentimento de inconformismo e a imagem de engajado. Elas repetem o
estatuto de missão com que ele, ainda nos anos 1930, interpretava o papel do artista diante dos
conflitos do mundo. De fato, posicionamentos muito próximos àqueles enunciados em
“Romance moderno” e “Arte pela arte” aparecem em fragmentos de entrevistas datadas entre
1970 e 1980, como naquela cedida a Günter Lorenz (1973, p. 388):

Nas épocas em que a vida e a dignidade do homem correm perigo de ser violadas,
subjugadas, o autor deve alçar a voz e lutar, se não quiser ser um canalha. Para que
diabos ele tem o seu talento, sua aptidão, se não é para o benefício do homem?
Quando se tratou de me comprometer, de tomar posição, nunca hesitei nem um
momento em tomar partido. Há épocas nas quais a literatura deve ser simplesmente
literatura com objetivos, deve servir a uma finalidade.

Agora modalizado pelo duro contexto dos anos 1970 – Guerra Fria no plano
internacional; ditadura militar e AI-5, na realidade brasileira –, o discurso amadiano continua
acionando uma percepção da arte literária como missão e engajamento, caracterizando-a
como um instrumento de contestação da ordem vigente, como produto a serviço de um fim
que não se reduz a si mesma.
O mesmo posicionamento se repete em depoimento concedido ao periódico argentino
Clarín, em sua edição de 7 de setembro de 1978. Nesta ocasião, Jorge Amado é novamente
questionado a respeito do papel do escritor, se cabe a ele figurar como “testemunha
denunciante da realidade”. Jorge Amado responde: “Sim, porque um escritor é responsável
30

ante seu país e ante o mundo por essa realidade. E, como tal, [é] um fator importante para as
transformações sociais. Deve ser um professor, tanto da vida quanto da liberdade”4.
O compromisso que, na visão de Amado, o escritor precisa assumir ante a realidade é
repetido aqui, sendo suplementado pela necessidade de modificá-la. A representação do real
não deve se reduzir a uma tentativa de imprimir a realidade objetiva, mas precisa atender à
necessidade de transformá-lo. Trata-se de uma proposta representacional que acena em uma
dupla articulação temporal: para o presente, na medida em que aponta para o real a ser
modificado, e para o futuro, uma vez que movimentada pelo ideal de uma realidade outra –
perspectiva que reaparece em depoimento de Amado a O Globo, na edição de 30 de janeiro de
1982, “escrevo com o intuito de fazer algo para que a vida de nossa gente seja menos terrível
amanhã”.
Por último, uma resposta contundente dada ao Diário do povo, periódico lisboeta, de 2
de fevereiro de 1980. Seguindo uma divisão da produção literária amadiana instituída por
Wilson Martins (1962) e comum entre a crítica literária brasileira, o entrevistador questiona o
romancista acerca das duas fases de sua literatura, uma política e outra que, no seu entender,
seguia pelos “varais da vida” – conotando enredos sem peso crítico, preocupados em lidar
com as miudezas desimportantes do cotidiano, a que Jorge Amado responde:

Minha obra literária é toda ela baseada na realidade da vida do povo brasileiro
realidade cruel devida à pobreza, ao subdesenvolvimento, ao latifúndio, às
multinacionais, enfim, a uma sociedade arcaica e injusta. Nos meus livros, em todos
eles, são levantados problemas sociais que afligem o povo brasileiro. [...] O fato de
eu relatar a vida do povo torna minha literatura extremamente política por ser social
e nascer da realidade. [...] Os “varais da vida” são seus, numa repetição de um lugar
comum de críticos que com certeza não leram os livros de que falam. Se lessem,
tinham visto que, em minha obra, o livro mais revolucionário se chama “Tenda dos
milagres”, um dos mais recentes, e que o último [Farda, fardão, camisola de
dormir] tem um tema eminentemente político. A luta contra o fascismo, a ditadura, a
opressão, o militarismo. E fim de papo.

O que é posto sob suspeita aqui é o fundamento básico de toda a produção ficcional
amadiana: a sua inabalável crença na função ética, portanto crítica e transformadora, do
romancista. O tom irritadiço com o qual Jorge Amado recebe esta pergunta e a responde repõe
em cena, ainda que de viés, a sua adesão à perspectiva de uma literatura como missão, ou seja,
motivada pela finalidade de intervenção direta na realidade do mundo. O sentimento de
ofensa com o qual ele parece recobrir esta sua resposta, se bem observado, recupera e atualiza

4
“Si, porque un escritor es responsable ante su país y ante el mundo de esa realidad. Y, como tal, um factor de
importancia de las transformaciones sociales. Debe ser um maestro, tanto de al vida como de la libertad”
(Tradução minha).
31

aqueles parâmetros balizadores do fazer artístico endossados em 1935 e novamente os


reafirma.
O romancista baiano nunca aceitou a quebra da unidade entre seus livros proposta pela
crítica, como pode ser visto em sua fala acima transcrita. Para justificar e defender a unidade
de sua produção literária, Jorge Amado evidencia o compromisso ético que a recobre por
inteiro, do primeiro ao último livro, sempre e invariavelmente situado ao lado dos interesses
do povo – como classe e como identificações marginalizadas – contra os seus opressores.
Em uma perspectiva algo próxima ao discurso amadiano, e na contramão do
posicionamento assumido pelo entrevistador de O Diário do Povo, Jorge de Souza Araújo
(2003) explica a mudança de perspectiva operada a partir de Gabriela, cravo e canela,
ressaltando que Amado coloca em cena instrumentais mais eficazes para o tratamento das
lutas sociais concretas, atualizando o engajamento autoral no combate às desigualdades
inerentes à sociedade capitalista – o que possibilita ao crítico defender a permanência do ideal
socialista no romancista baiano.
Ivia Alves (2013) também se coloca no contrafluxo àquele juízo crítico comum acerca
da produção amadiana, discordando tanto de sua subdivisão em duas fases quanto da diluição
do caráter político/ideológico dos romances publicados a partir de 1958. Para ela, as
mudanças ocorridas no universo ficcional de Amado, que dizem respeito aos procedimentos
estético-formais, não acarretam em um posicionamento político distinto do autor, que
continua socialista uma vez que seus temas e suas personagens permanecem provocando
tensões na estrutura capitalista-burguesa.
Em ensaio originalmente publicado em 1983, Eduardo Portella (2011) já havia
observado uma linha de continuidade entre os textos ficcionais de Jorge Amado, de maneira
que também ele pensa o conjunto da criação ficcional do autor como dotado de coesão ética
ao invés de cindido por rupturas. Da mesma forma, Jorge de Souza Araújo (2008, p. 74-75)
sustenta que a literatura amadiana representa “[...] uma espécie de síntese transfigurativa do
Brasil no século 20 [...] sem perder de vista a marca d’água da ideologização da espécie
pensante em seu substrato estruturador de um mundo novo”.
As últimas reflexões acima transcritas se coadunam ao argumento base desta tese,
configurando uma premissa com a qual eu avanço para a leitura do universo romanesco
amadiano. O estatuto de missão com que Amado reveste sua literatura está garantido pelo
compromisso ético que sustenta sua criação ficcional na direção de um combate aos modelos
sociais, econômicos, culturais e morais dominantes e em vigência nos microcosmos abarcados
pela cena representacional – além da busca por caminhos que possibilitem uma outra
32

experiência de mundo, não tolhida ou desigual. Condicionado pelas urgências e pelas


decepções de cada tempo vivido, este fundamento ético ora se equaciona sob a forma de uma
solução utópica, ora procura pelas alternativas heterotópicas. Neste sentido, o conjunto da
construção romanesca de Amado permanece, a despeito da passagem dos anos e das
modificações contextuais inconformado e crítico; engajado e esperançoso.

2.2 A HETEROTOPIA E O CONTEMPORÂNEO

“Outros espaços” – “Des espaces autres”, no original em francês – é a conferência


publicada em 1984, mas escrita em 1967, em que Michel Foucault (2001) propõe e
fundamenta a noção de “heterotopia”, isto é, espaços que funcionam em diferença à lógica
dominante – operador teórico aqui solicitado para ler o universo ficcional amadiano em busca
de chaves para pensar as experiências possíveis de liberdade.
O ponto de partida para a discussão estabelecida por Foucault é uma reflexão sobre as
diferentes significações atreladas à categoria das espacialidades em paradigmas
epistemológicos distintos que, ao se sucederem, acarretam ressemantizações da própria
experiência do ser humano no tocante à sua inserção nos espaços constitutivos da cidade onde
habita, ou das relações que se estabelecem entre tais localidades.
O filósofo francês situa três diferentes paradigmas da história humana com a intenção
de observar como o espaço é significado em cada um deles. O primeiro é a Idade Média,
longo período de dez séculos que se estende do V ao XV. Organizada em função de uma
epistéme teológica, a partir da qual toda e qualquer dimensão da vida social e natural possui
justificação divina, tendo sido assim constituída por vontade e intermédio direto de Deus, a
leitura medieva dos espaços aponta para certa fixidez e hierarquização opositiva entre lugares,
com o que Foucault (2001, p. 412) designa o espaço medieval como “espaço de localização” –
conotando a estabilidade dos posicionamentos daquele tempo.
O segundo paradigma observado por Michel Foucault é a Modernidade, que subverte
os padrões relativamente estáticos da Idade Média em função do movimento em velocidade,
além de se organizar a partir do racionalismo científico ao invés do pensamento religioso. A
aceleração e a ciência são, com efeito, emblemas do mundo moderno, o que coloca a
dinamicidade ou a volatilidade das coisas em primeiro plano. Nem mesmo a Terra, antes
fixada no centro do universo, restará imóvel com a comprovação da teoria heliocêntrica
empreendida por Galileu Galilei: nada está parado, tudo se desloca constantemente. Neste
contexto, o espaço já não será interpretado a partir de uma concepção naturalizante, como
33

localização instituída desde o antes dos tempos, mas como extensão, isto é, como algo móvel
e relativo.
O terceiro e último paradigma, que, à época da elaboração desta conferência de
Foucault, apresentava-se ainda como emergente, é a Contemporaneidade. Para Michel
Foucault (2001, p. 411), esta nova epistéme é assim caracterizada: “[...] época do simultâneo,
[...] época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado, do disperso”.
Nesta nova configuração, ainda segundo Foucault (2001, p. 413), “[...] o espaço se
oferece a nós sob a forma de relações de posicionamento”, isto é, os lugares já não mais se
traduzem pelas suas coordenadas geográficas ou pelos seus deslizamentos em aceleração, mas
pelo modo como interagem, posicionando-se uns em relação aos outros, e pela maneira como
negociam entre si.
A compreensão estabelecida em torno das implicações da dimensão espacial na
Contemporaneidade, pensando-a em razão das relações negociadas entre posicionamentos que
se atritam, constitui uma chave de leitura do espaço como uma composição heterogênea e
atravessada por uma rede nada harmônica de configurações socioculturais e discursivas
dissonantes:

O espaço no qual vivemos e para o qual somos atraídos para fora de nós mesmos, no
qual decorre precisamente a erosão de nossa vida, de nosso tempo, de nossa história,
esse espaço que nos corrói e nos sulca é também em si mesmo um espaço
heterogêneo. Dito de outra forma, não vivemos em uma espécie de vazio, no interior
do qual se poderiam situar os indivíduos e as coisas. Não vivemos no interior de um
vazio que se encheria de cores com diferentes reflexos, vivemos no interior de um
conjunto de relações que definem posicionamentos irredutíveis uns aos outros e
absolutamente impossíveis de ser sobrepostos (FOUCAULT, 2001, p. 414).

Uma vez definido o espaço segundo sua percepção contemporânea, Foucault se mostra
particularmente interessado em observar as tensas relações originadas do choque entre as
realidades colidentes que nele residem, posto serem organizadas a partir de posicionamentos
divergentes. A situação originada deste conflito – seja ele velado, seja ele aberto – coloca em
cena o binômio subjugação/resistência, porém mediado pela constante necessidade de
negociação entre um modelo sociocultural dominante, que procura se expandir e prevalecer, e
um posicionamento outro, situado no interior do primeiro, mas em atitude resiliente, que o
afronta e o subverte por causa da especificidade de sua organização própria, sui generis:

Mas o que me interessa são, entre todas (sic) esses posicionamentos, alguns dentre
eles que têm a curiosa propriedade de estar em relação com todos os outros
posicionamentos, mas de um tal modo que eles suspendem, neutralizam ou invertem
o conjunto de relações que se encontram por eles designadas, refletidas ou pensadas.
34

Esses espaços [...] estão ligados a todos os outros, contradizendo, no entanto, todos
os outros posicionamentos (FOUCAULT, 2001, p. 414).

Estes posicionamentos destoantes, ou de resistência de um espaço ao outro, podem ser


divididos em dois grandes grupos, ambos carregando consigo uma propriedade contra-
discursiva em relação ao espaço maior em que se inserem: as utopias e as heterotopias.
No que concerne às utopias, Foucault (2001, p. 414) as entende a partir de um caráter
de irrealidade, isto porque elas se referem a “[...] posicionamentos sem lugar real”.
Evidentemente, o que está em jogo aqui é a utilização de uma ordem de significação
etimológica proveniente do u-topos grego, qual seja, “o que está em lugar nenhum”. Uma vez
relacionada a esta perspectiva, a utopia se apresenta como não-localizável no espaço “real”,
porque não-lugar, embora o tensione e nele possa e busque intervir na condição de um ideal a
ser alcançado. A utopia, então, radica-se como projeção no tempo: seu eixo opositivo básico
passa a ser o vislumbre de um futuro, no qual é depositada esperança, versus a crítica de uma
situação presente, que é confrontada. Substitui-se, assim, o combate direto entre duas
configurações divergentes e inseridas em uma mesma faixa espaço-temporal – relação
conflituosa que interessa a Foucault – pela possibilidade de transformação de um espaço em
outro, processo que só é efetivo se observado através de uma contingência temporal.
Este enquadramento geral das utopias deixa em evidência a sua concepção moderna –
no sentido de ser uma estrutura de contestação do espaço real absolutamente encaixada no
paradigma da Modernidade. Isto porque ela se apresenta como teleológica e assentada nas
noções de evolução ou progresso, motivadas por crises e rupturas às vezes revolucionárias, de
um estágio intermediário a outro, caracterizado como final porquê de algum modo superior a
todos os que o precederam. Sob outro prisma, a utopia é uma categoria moderna pois
pressupõe a possibilidade de se atingir uma sociedade ideal, perfeita, por intermédio da
racionalidade humana.
Inserido noutro contexto, o da Contemporaneidade que justapõe espaços diferentes em
um mesmo tempo ao invés de pensá-los em uma linha evolutiva, Foucault abdica de
argumentar em prol das utopias e passa a observar posicionamentos contra-discursivos
situados lado a lado ao discurso dominante, isto é, que operam no mesmo corte espaço-
temporal, porém em divergência com a rede de relações estruturante da espacialidade
hegemônica. Esses “lugares outros” que, embora demarcados no interior de uma realidade
mais extensa, negam-se à reprodução mimética da lógica imperante, são designados por ele
como “heterotopias”:
35

Há, igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer civilização,


lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da
sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias
efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais que se podem encontrar
no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos,
espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam
efetivamente localizáveis. Esses lugares, por serem absolutamente diferentes de
todos os posicionamentos que eles refletem e dos quais eles falam, eu os chamarei,
em oposição às utopias, de heterotopias (FOUCAULT, 2001, p. 415).

As heterotopias funcionam como um efetivo ponto interno de tensão na rede de


posicionamentos do sistema dominante: atuam no “desde dentro” desta contextura maior,
neutralizando-a ou revertendo-a em seu ímpeto universalizante e subjugador, uma vez que se
organizam a partir de outras lógicas. Desta forma, as espacialidades dotadas de relações
heterotópicas se configuram como “[...] uma espécie de contestação [...] do espaço em que
vivemos [...]” (FOUCAULT, 2001, p. 416).
Maurício de Oliveira (2013), ao resenhar esta noção foucaultiana, igualmente
observando como outros pesquisadores a abordaram, aponta:

[...] as heterotopias são reais; elas representam a alteridade em relação à mesmice dos
locais modernos. […] Uma vez que elas são “locais marginais da modernidade”, as
heterotopias ameaçam constantemente romper com as restrições e as certezas. As
heterotopias, então, não são subversivas porque oferecem algo novo; são subversivas
porque oferecem algo novo além dos mesmos elementos culturais encontrados nos
espaços da modernidade que contrariam (OLIVEIRA, 2013, p. 108-109)5.

Eis, então, a força inerente às heterotopias: elas não projetam uma modificação da
sociedade; elas são, com efeito, a própria organização social desde sempre já transformada
coexistindo, de forma conflituosa, no âmago da sociedade hegemônica. Dito de outro modo,
as heterotopias são diferenças corrosivas da ordem dominante instaladas desde o seu interior.
É minha suposição que a abertura do universo romanesco amadiano para a
visibilização, em primeiro plano, de espaços outros, constituídos pela diferença em relação
aos padrões reprodutores da matriz colonizadora ocidental, guarda importantes pontos de
navegação entre as nuanças que delineiam e plasmam experiências possíveis de liberdade,
anteriormente significadas como emancipação dos oprimidos do capital e veiculadas como
utopia, em um processo de atualização de um modelo de engajamento crítico resultante da
Modernidade para outro, mais adequado à Contemporaneidade.

5
“[…] heterotopias are also real; they represent otherness to the sameness of the modern sites. […] Since they
are 'marginal sites of modernity', heterotopias constantly threaten to disrupt its closures and certainties.
Heterotopias, then, are not subversive because they offer something new; they are subversive because they offer
something new out of the same cultural elements found in the sites of modernity that they counter” (Tradução
minha).
36

Há, pelo menos, dois pesquisadores que já se utilizaram da noção de heterotopia para
pensar a produção ficcional de Jorge Amado, Rita Olivieri-Godet (2004 e 2012) e Maurício de
Oliveira (2013), com os quais busco dialogar – embora operem sob prismas diferentes
daquele que motiva a leitura aqui em construção.
No que concerne ao posicionamento de Rita Olivieri-Godet, o que está em jogo é
muito mais compreender o conjunto da literatura amadiana como uma heterotopia em relação
aos paradigmas construtores das elites brasileiras, o que corresponde a uma adaptação da
noção foucaultiana, do que observar como a ficcionalização de espaços diferenciais funciona
por dentro do universo romanesco de Amado.
Rita Olivieri-Godet (2004 e 2012) procura discutir a configuração heterotópica do
pensamento amadiano. Ao investir nesta direção, ela teoriza o universo de Amado como uma
“escrita da margem”, ou seja, “[...] que faz falar deste espaço em branco da página: as
palavras salvas da condenação ao silêncio encontram seu lugar de legibilidade e podem assim
fazer face e criar fissuras na homogeneidade de um discurso elitista que se quer portador da
verdade” (OLIVIERI-GODET, 2004, p. 112).
As colocações da pesquisadora em torno do “branco da página” encontram justificação
quando encaixadas no contexto da Modernidade, em que se dá o processo de fundação das
nações latino-americanas ou, noutro momento, da permanência e reprodução de seus
discursos oficiais. Este “silêncio” detectado por Olivieri-Godet resulta da ação deletéria
levada a cabo pelas ideologias conformativas do sujeito enunciador do discurso fundacional
destes países, que “[...] teve um projeto patriarcal e elitista, que excluiu não só a mulher, mas
índios, negros, escravos, analfabetos e, em muitos casos, a quem não tinha propriedades”
(ACHUGAR, 2006b, p. 203).
A história oficial que deriva desta paisagem, de acordo com o historiador uruguaio
Hugo Achugar (1994, p. 36), “[...] não ignorava o Outro, mas o incluía em sua visão e em seu
espaço com o propósito e o resultado de desenhar uma imagem do Outro que não questionasse
a centralidade do sujeito central”6. A consequência prática desta invenção controlada e
policiada de uma alteridade envolta por corpos dóceis é o esvaziamento de sua especificidade
discursiva, portadora de outras memórias e de outros valores, em prol de uma mimetização
dos discursos dominantes, que se reproduzem ad infinitum via os aparelhos ideológicos de
Estado, responsáveis pela manutenção e administração do status quo.

6
“[...] no ignoraba al Otro pero lo incluía en su visión y en su espacio con el propósito y el resultado de diseñar
una imagem del Otro que no cuestionara la centralidad del sujeto central” (Tradução minha).
37

A memória popular – seguindo aqui conceituação de Achugar (2006b) como


repositório das histórias e dos valores não-oficiais –, no entanto, não é de todo soterrada,
sendo relegada ao âmbito do oral, que vem a ser uma modalidade desprezada pela
modernidade letrada. A emergência destas memórias populares, bem como de seus atores
sociais, na cena representacional da literatura amadiana, cumprindo um movimento de
descentralização do perfil ideológico oficial constitutivo do poder dominante, se configura
como a “escrita da margem” de que fala Rita Olivieri-Godet (2004).
O universo romanesco amadiano comporta um questionamento do paradigma moderno
na medida em que rasura a centralidade de seu sujeito enunciador: o homem branco, letrado e
burguês, proveniente de cultura católica e dotado de métodos científicos, não apenas perde o
privilégio da enunciação, como também se vê confrontado por discursos advindos das
margens subalternizadas – a mulher, o negro, o pobre, as culturas orais – que desconstroem o
discurso oficial ou, através de recursos satíricos, o expõem ao ridículo.
Com base neste painel, cabe dialogar com Walter Mignolo (2006) em sua leitura
crítica da Modernidade sob a clave da colonialidade (do ser, do saber e do poder), ou seja,
através da capilarização das estruturas epistêmicas eurocentradas no íntimo das antigas
colônias, atualizando e perpetuando, deste modo, os projetos metropolitanos de dominação
dos outros – apenas substituída a estratégia genocida pelo epistemicídio – e de universalização
de si. Neste contexto, Mignolo (2006, p. 705) situa que uma “[...] das principais tarefas do
futuro é continuar a trabalhar no desfazer do diferencial colonial e da colonialidade do poder;
isto é, continuar a trabalhar na descolonização do conhecimento em diferentes esferas”. Assim
posto, é tarefa da Contemporaneidade a visibilização e elevação das epistémes rebaixadas ou
silenciadas ao longo do período moderno, construindo, desta forma, uma perspectiva de
sociedade baseada não mais no totalitarismo de uma única forma de conhecer, mas em uma
“pluri-versalidade epistêmica” (MIGNOLO, 2006).
A emergência da alteridade na cena representacional da literatura de Amado, não
como objeto para o consumo de leitores interessados no exotismo, mas, acima de tudo, como
centro gerador da epistéme estruturante da ordem de significação narrativa, permite que o
autor tome da colonialidade como vetor de leitura da configuração social em que se insere e,
com esta não se identificando, assuma a pluri-versalidade epistêmica, apreensível a partir das
heterotopias, como forma de um engajamento crítico conectado com a Contemporaneidade.
É neste sentido que as narrativas elaboradas pelo romancista baiano se apresentam
como heterotopias para Olivieri-Godet, que afirma, tanto no texto de 2004 (p. 116), quanto no
de 2012 (p. 168), de forma enfática, que “desde os anos [19]30, o pensamento heterotópico do
38

autor desloca e contraria os paradigmas sociopolíticos, culturais e morais das elites


brasileiras”.
Sob uma outra perspectiva, mais atrelada à funcionalidade primeira da noção de
heterotopia, qual seja, a de pensar as tensões promovidas na cidade pelos lugares cuja
diferença não se consegue dirimir ou docilizar, fundamenta-se o estudo realizado por
Maurício de Oliveira (2013).
Ele procura observar como a representação da cidade de Salvador “evolui” ao longo
da produção literária amadiana, o que compreende a passagem de uma cidade em decadência,
em O país do carnaval, àquela constituída por binarismos socioeconômicos e culturais, como
em Suor, Jubiabá e Capitães da areia, chegando, por fim, à organização citadina que, a
despeito de seus impasses, guarda espaços de onde emergem projeções de uma “cidade ideal”
– traço que o pesquisador nota e procura evidenciar em Dona Flor e seus dois maridos e
Tenda dos milagres. Neste sentido, ele se apropria da discussão foucaultiana acerca destes
espaços outros para pensar de que modo as heterotopias corroboram na significação e
ressignificação do modelo ideal de cidade que vai, segundo ele, aos poucos se configurando
romance a romance.
Maurício de Oliveira (2013) detecta heterotopias já em romances amadianos da década
de 1930, principalmente a presença do Candomblé em Jubiabá. Ao meu ver, no entanto, o
lugar da religião afro-brasileira neste romance não deve ser lido sob uma condição
heterotópica, uma vez que desprovido da capacidade de promover a contestação da ordem
dominante – basta lembrar a cena em que Baldo, após invadir o terreiro de Jubiabá em noite
de festa, discursa para o povo-de-Axé ali presente, afirmando ser inócua a atitude de rezar
para os Orixás.
Acredito que as primeiras imagens heterotópicas de real impacto sobre o conjunto da
produção de Amado estão fora da ficção, sendo encontradas em Bahia de Todos os Santos:
guia das ruas e dos mistérios da cidade do Salvador, originalmente publicado em 19457 –
livro que se apresenta como uma “enciclopédia do ser/estar baiano” na visão de Jorge
Amado, de acordo com Ricardo Araújo Barbarena (2013, p. 103).
Como guia turístico, este é um livro pensado para um público de viajantes, sejam
nacionais ou estrangeiros, que deseja conhecer a cidade, penetrando-a no seu segredo mais

7
Bahia de Todos os Santos: guia das ruas e dos mistérios da cidade do Salvador teve modificações realizadas
por Amado nas décadas de 1960, 1970 e 1980, apresentando tanto supressão quanto acréscimo de conteúdo. Para
Ricardo Barbarena (2013, p. 104), no entanto, “[...] é importante observar que o livro mantém sua essência ao
longo de todos os anos, pois, se fisicamente a cidade mudou, permanece inalterada a prosa poética na elaboração
de um descritivismo sublime da ‘Roma Negra’”.
39

íntimo. Assim, a cidade apresentada ao público será a Salvador preenchida dos densos
sentidos de seu viver mais cotidiano. Jorge Amado busca fixá-la mediante uma rede de
significações que a atravessa inteira e constitui o “mistério que a escorre como um óleo” –
metáfora muitas vezes utilizada ao longo do texto. Segundo Barbarena (2013, p. 104), “[...] a
cidade de Salvador transforma-se numa territorialidade que permite aos seus passantes uma
migração em direção ao Outro: outros amores, outros estados epifânicos, outras
experimentações antilogocêntricas, outras negociações simbólicas e míticas”.
Assim, às primeiras páginas do guia, logo no convite que o autor dirige à moça,
“personagem” sem voz que é apresentada à cidade pelos olhos de seu interlocutor, Amado
situa:

Se és uma turista ávida de novas paisagens, de novidade para virilizar um coração


gasto de emoções, viajante de pobre aventura rica, então não queiras esse guia.
Mas se queres ver tudo, na ânsia de aprender e melhorar, se queres realmente
conhecer a Bahia, então, vem comigo e te mostrarei as ruas e os mistérios da cidade
do Salvador, e sairás daqui certa de que este mundo está errado e que é preciso
refazê-lo para melhor. Porque não é justo que tanta miséria caiba em tanta beleza.
Um dia voltarás, talvez, e então teremos reformado o mundo e só a alegria, e a
saúde e a fartura caberão na beleza imortal da Bahia (AMADO, 1970, p. 11).

O livro, sem perder de todo o sentido de ser um guia para aqueles que chegam a
Salvador, é configurado de modo a também veicular denúncias a respeito das misérias
decorrentes de um projeto de modernização violador de seu tecido histórico, além de
preocupado em mostrar suas profundas desigualdades sociais, advindas já do passado colonial
e agravadas pelo processo de transformação da antiga urbe em moderna capital. Como destaca
Carlos Augusto Magalhães (2011, p. 29), “[...] Jorge Amado se põe, tenazmente, ao progresso
insensível ao patrimônio histórico da Bahia. O escritor não se inscreve em princípios
positivistas de modernidade indiferentes à história, à tradição e à cultura urbanas”.
O compromisso ético amadiano com a retirada dos véus opacos, responsáveis por
camuflar a realidade de opressão experimentada por um imenso contingente de espoliados
pelo capital, orienta não só a seleção dos locais a serem dispostos no guia, mas também o
olhar que lhes é direcionado. Há uma procura em evidenciar os contrastes entre os bairros
nobres, os locais de pequeno-burgueses empobrecidos, dos operários e as invasões miseráveis
que começam a ter lugar na Salvador dos anos 1940. Deste modo, a cidade não é apenas
retratada em suas belezas naturais ou em seus esplendores advindos do processo
modernizador, é igualmente apresentada como cenário de dor e de humilhação, de luta e de
resistência:
40

Não há cidade como essa por mais que a procureis nos caminhos do mundo.
Nenhuma com as suas histórias, com o seu lirismo, seu pitoresco, sua funda poesia.
No meio da espantosa miséria das classes pobres, mesmo aí nasce a flor da poesia
porque a resistência do povo é além de toda imaginação. Dele, desse povo baiano,
vem o lírico mistério da cidade, mistério que completa sua beleza (AMADO, 1970,
p. 16, grifos meus).

Acerca da utilização que Jorge Amado faz do adjetivo “pitoresco”, Carlos Augusto
Magalhães (2011, p. 27) aponta que ele “[...] caracteriza as raízes populares da cultura
nordestina – regionalista – cuja força e valor são destacados, para fazer frente aos princípios e
aspectos paradigmáticos, niveladores e universais da modernidade” – o que solicita a noção
de heterotopia para a leitura deste guia sobre a Cidade da Bahia.
Uma análise atenta de Bahia de Todos os Santos, orientada pelo chaveamento teórico
da heterotopia, deve visualizar, a partir deste fragmento supracitado, dois aspectos
importantes: a construção de uma imagem para Salvador como cidade única, singular,
pitoresca, e a marcação do lugar social de onde se origina e emana tal estatuto, o povo. Destes
dois posicionamentos discursivos, derivam-se duas importantes implicações, a saber:
a. Se lido em função do recurso hiperbólico cujo objetivo é implementar uma imagem
de Salvador como espaço singular, o fragmento transcrito – que, aliás, encontra eco em outras
passagens do texto – possibilita ler esta cidade como uma heterotopia em relação aos outros
espaços citadinos do mundo. Isto é, como um espaço em que os posicionamentos não são
totalmente fixados pelos modelos orientadores da Modernidade e, portanto, dominantes no
Ocidente. Desta forma, assim como cabe uma função de rasura às heterotopias, também a
capital baiana está destinada a ter um papel semelhante no plano geral do guia: impactar a
jovem turista ciceroneada por Amado no sentido de fazê-la consciente das graves
contradições inerentes à ordem burguesa/capitalista, incitando-a a perceber as distâncias
sociais que compõem a cidade;
b. Embora a imagem principal de Salvador seja traçada pelo texto como uma
heterotopia, não é possível ler todos os seus espaços sob esta mesma categoria teórica. Os
bairros descritos como grã-finos, por exemplo, aderentes aos paradigmas modernos e
burgueses, quando observados inseridos no contexto sociocultural do Ocidente, operam como
reprodutores de sua lógica dominante, de modo que eles não se enquadram na noção
foucaultiana. Assim, a heterotopia Salvador é o todo que deriva da parte à qual se refere a
heterotopia povo – termo que circunscreve as margens socioculturais da cidade, constituintes
do maior contingente populacional citadino.
41

Neste sentido, é emblemática a situação com que Jorge Amado opta em abrir o seu
“guia de ruas e mistérios da cidade do Salvador”, ainda mais se considerado o título do
capítulo inicial, “Atmosfera da cidade”. Encerrado o lírico convite que o autor faz à turista
para que veja a cidade a partir de sua experiência, ele escreve:

Em certo comício, realizado quando da invasão da Abissínia pelas forças fascistas


de Mussolini, um orador, solene na sua roupa preta e no seu português castiço,
afirmou que os baianos, como latinos dos melhores e mais puros, estavam ligados à
Roma Imperial que o Duce queria reviver às custas dos negros abexins. Foi aí que
subiu à tribuna um majestoso mulato e declarou que os baianos como descendentes
dos africanos, mestiços dos melhores, estavam ligados sentimentalmente à sorte da
Etiópia (AMADO, 1970, p. 13).

O fato histórico aludido neste fragmento, a guerra de conquista movimentada pelas


tropas italianas contra o território da Abissínia, atual Etiópia, durou de outubro de 1935 a
maio de 1936, tendo terminado com a vitória das tropas invasoras, embora com severa
resistência do exército etíope, e a anexação do território africano – situação que perdurou até
1941. Trata-se de um evento significativo, do ponto de vista da escalada para a Segunda
Guerra, pois, além de tornar sem efeito os encaminhamentos da Liga das Nações, minorando
sua capacidade de resolução de atritos entre seus países-membro, representa ainda a fundação
do Império Italiano – Il Impero Italiano – sob diretriz fascista, o que acarreta em um
incremento de poder não só territorial, mas também simbólico ao governo de Mussolini.
Coloca-se, afinal, como uma demonstração de força ante as demais nações ocidentais.
A situação com que Jorge Amado abre o seu Bahia de Todos os Santos não é fortuita;
possui lastro histórico concreto, sendo observada em diversos artigos publicados nos jornais
baianos da época, cuja inclinação de parte significativa dos intelectuais, da terra ou não, pende
para o lado da Itália, seja como defesa apaixonada ou como simpatia mal disfarçada. São os
casos, por exemplo, dos artigos “Política africana”, publicado por Fernando Magalhães na
edição de 21 de outubro de 1935 de A Tarde, e “O Brasil não pode ser contra a Itália”, de Pery
Guimarães, veiculado em 25 de outubro de 1935, também em A Tarde. No primeiro, o autor
repudia a perspectiva de uma tomada de posição em favor da Abissínia por defender a
inexistência de qualquer vínculo entre o Brasil e a nação africana. No segundo, cujo título é
sintomático por si só, o argumento se situa na esfera de uma comparação entre as
contribuições italiana e abissínia para a humanidade, rejeitando a esta última qualquer valor.
No registro amadiano, porém, após o orador solene afirmar a “íntima” relação entre
Itália e Bahia, um mulato, não sem simpatia descrito como “majestoso” e vindo das camadas
populares, toma da palavra e revela a contradição. Seu discurso, oriundo dos espaços
42

heterotópicos constituídos pelo povo, posiciona a Cidade da Bahia ao lado da Etiópia, posto
que seu território e população são descendentes do continente africano e a ele estão
irmanados.
Se observado o encadeamento dos discursos, o segundo se opondo ao primeiro, ao
qual não é facultada a tréplica, e as questões laterais e simbólicas atinentes às leituras dos dois
lados do conflito – Europa e África; imperialismo e autonomia; autoritarismo e liberdade;
racismo e antirracismo; universalização epistêmica e pluri-versalidade epistêmica – não resta
dúvida sobre qual posicionamento Amado procura reverberar nas páginas de seu “Guia das
ruas e dos mistérios da cidade do Salvador”: a urbe heterotópica.
A dimensão majoritária que os espaços de trânsito, de moradia e de cultura populares e
de negros têm neste livro, isto é, a parte de diferença que constitui o todo da heterotopia
citadina, coloca em cena o lado rejeitado, excluído e silenciado da cidade pelos paradigmas
eurocêntricos que regem os processos de adequação – do tecido e dos costumes urbanos – à
Modernidade. Deste modo, por exemplo, o autor ciceroneia sua amiga viajante pelo
Pelourinho, uma vez que “[...] a zona central da cidade da Bahia é um signo mais amplo em
cujo espaço construído se mescla o caldo cultural que lhe desenha a identidade”
(MAGALHÃES, 2011, p. 29). Noutro plano, acompanha-a também pelas invasões de terreno,
pelos bairros proletários, de onde destaca a resistência das pessoas que neles habitam:

Se quereis uma qualidade destes bairros, destes casarões infames, destas moradias
desgraçadas, eu vos direi apenas: resistência. Resistência à fome e à enfermidade, ao
trabalho mal remunerado, às mortes dos filhos, ao hospital, à desgraça da vida.
Resistência. A resistência do povo é além de todos os limites. Apesar de tudo ele
sobrevive. E dá aos seus bairros imundos esses nomes de esperança que são como a
bandeira que ele levanta em suas mãos magras mas ainda assim poderosas [...]
(AMADO, 1970, p. 35).

Em função deste processo de evidenciar os espaços heterotópicos de Salvador, Jorge


Amado dedica uma atenção significativa – ainda mais em se tratando do contexto da época –
aos Candomblés baianos. Para tanto, realizou, inclusive em parceria com estudiosos, pesquisa
de natureza antropológica, contabilizando os Terreiros da capital, separando-os por nação e
por grau de pureza do ritual – sem estabelecer com isso leituras do tipo “melhor/pior” – e
informa a respeito da estrutura hierárquica dos maiores templos, suas lideranças e
personalidades, bem como as divindades que os regem.
Noutro plano, agora já pensando a interação entre estes espaços e o todo citadino,
Jorge Amado, embora não consiga demonstrar como os valores culturais e morais afro-
baianos configuram a heterotopia da Salvador negra e popular, talvez por não possuir ainda o
43

aprofundamento da experiência da “porteira para dentro”, evidencia o grau de capilarização


que os Candomblés têm: “Não penseis que o poder dos pais-de-santo se estenda somente
sobre os negros pobres, sobre os mulatos desta cidade. Brancos ricos, grã-finos da Barra e da
Graça, gente da Vitória [...] palmilham os caminhos da Goméia, e os caminhos também
difíceis de outros candomblés [...]” (AMADO, 1970, p. 61).
Tal retrato ratifica um processo lento de modificação no que se refere à maneira pela
qual Jorge Amado percebe o Candomblé, mas também os espaços populares e negros não
religiosos, e os plasma em seus livros futuros, constituindo Bahia de Todos os Santos como
um texto de transição entre posicionamentos; um elo entre o tempo da utopia e o tempo das
heterotopias. Aqui, utopia e heterotopia se interpenetram, uma mutuamente capitaneando a
outra: os espaços heterotópicos já não mais precisam sê-los em concordância estrita com os
encaminhamentos estreitos da utopia; eles, a partir da potência de suas diferenças, já
começam a modalizá-la.

***

A transição de uma construção ficcional irmanada à utopia àquela que mapeia e


reverbera espaços de diferença, constituindo-se a partir de e mediada por estas heterotopias,
corresponde à passagem de um universo romanesco marcado pela vinculação crítica à
Modernidade, posto que aderente à metanarrativa proposta pelo comunismo soviético, para
uma literatura mais adequada ao paradigma emergente da Contemporaneidade, que começa a
aparecer por volta dos anos 1950/1960.
Ao procurar ser um escritor que acompanha o tempo em que vive em uma perspectiva
de responder às demandas postas pelo presente, Jorge Amado pode ser lido sob a clave do
contemporâneo, segundo a conceituação elaborada por Giorgio Agamben (2009). Sem se
preocupar em definir o sujeito oriundo da Contemporaneidade, o filósofo italiano, na esteira
das Considerações Intempestivas de Friedrich Nietzsche, busca pensar as relações que o ser
humano mantém com o instante em que existe, atuando nele, a partir dele, mas contra ele.
Em outras palavras, o enfoque proposto implica observar os sentidos da atuação de alguém
em relação ao seu presente; de alguém que observa o tempo a partir das faltas e falhas que lhe
são inerentes com vistas a modificá-lo. Assim, de acordo com o filósofo:

[...] o contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro do presente,


nele apreende a resoluta luz; é também aquele que, dividindo e interpolando o
44

tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros


tempos, de nele ler de modo inédito a história, de “citá-la” segundo uma necessidade
que não provém de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual
ele não pode responder. É como se aquela invisível luz, que é o escuro do presente,
projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por esse facho de sombra,
adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora (AGAMBEN, 2009, p. 72).

Esta é mesmo uma característica importante dos romances de Amado, a forte relação
que eles detêm com o momento histórico em que são escritos ou no qual as narrativas se
processam – sempre caracterizados como tempos em que o ser humano se encontra submetido
a formas sistêmicas de opressão. Em face a este contexto, tais narrativas procuram intervir ou
conscientizar o leitor da realidade representada, não apenas a denunciando, mas também
criando meios através do quais ela possa ser revertida.
A introdução do pensamento de Agamben serve-me como operador teórico para
propor dois pontos a serem desenvolvidos: o primeiro se refere a como ser contemporâneo, na
perspectiva aqui resenhada, em relação à Contemporaneidade, na condição de um paradigma
emergente a partir da década de 1960. E, o segundo, à maneira pela qual esta chave de leitura
possibilita pontos de navegação para pensar acerca das experiências possíveis de liberdade.
As respostas para os pontos propostos acima passam, necessariamente, por discutir em
que medida a transição da utopia para a heterotopia acarreta uma passagem da Modernidade à
Contemporaneidade, de maneira que é preciso compreender as diferenças existentes entre
estes dois tempos. Neste caminho, apesar de longa, cabe a citação de Marilena Chauí (2007),
cujo painel dissociativo se apresenta bastante completo e detalhado:

A modernidade, nascida com a Ilustração, teria privilegiado o universal e a


racionalidade; teria sido positivista e tecnocêntrica, acreditando no progresso linear
da civilização, na continuidade temporal da história, em verdades absolutas, no
planejamento racional e duradouro da ordem social e política; e teria apostado na
padronização dos conhecimentos e da produção econômica como sinais da
universalidade. Em contrapartida, o pós-modernismo [a Contemporaneidade]
privilegiaria a heterogeneidade e a diferença como forças libertadoras da cultura;
teria afirmado o pluralismo contra o fetichismo da totalidade e enfatizado a
fragmentação, a indeterminação, a descontinuidade e a alteridade, recusando tanto as
“metanarrativas”, isto é, filosofias e ciências com pretensão de oferecer uma
interpretação totalizante do real, quanto os mitos totalizadores, como o mito futurista
da máquina, o mito comunista do proletariado e o mito iluminista da ética racional e
universal.
Se a modernidade havia se caracterizado pela confiança iluminista na razão como
força que libera o homem do medo causado pela ignorância e pela superstição, a
pós-modernidade proclama a falência da razão para cumprir a promessa
emancipatória e exibe sua força opressora sobre a natureza e sobre os homens [...].
Se a modernidade havia apostado na diferença entre sujeito e objeto como garantia
de um saber objetivo não permeado pelas paixões e pelos interesses subjetivos, a
pós-modernidade nega a validade dessa separação e proclama o reino do desejo e da
sensibilidade contra as ilusões da objetividade. Se a modernidade acreditara na
importância de construir o poder público como esfera pública impessoal separada da
45

sociedade civil e capaz de regulá-la por intermédio do Estado, tido tanto como
instrumento de racionalização (pelos liberais) quanto como instrumento de
dominação de classe (pela esquerda socialista e comunista), a pós-modernidade
afirma que o poderio do Estado é ilusório e ilusória a dominação de classe, pois a
realidade social é tecida por micropoderes capilares e disciplinadores da vida
privada e sociopolítica. Se a modernidade trabalhava com grandes categorias como o
indivíduo e o homem (no liberalismo) ou as classes sociais (no socialismo e no
comunismo) ou o homem e os movimentos sociais (no anarquismo), a pós-
modernidade fala nas pessoas, cuja identidade importa pouco porque seu ser é dado
pelo sistema de diferenças que cria a alteridade ou o “outro”: mulheres,
homossexuais, negros, índios, crianças, idosos, sem-teto, religiosos (CHAUÍ, 2007,
p. 489-490).

Elencados por Chauí, os componentes estruturantes da epistéme moderna são


facilmente localizáveis nos romances amadianos construídos sob o signo da utopia política,
isto é, aqueles publicados entre Cacau, de 1933, e a trilogia Subterrâneos da liberdade, de
1954. Nestes livros, a arquitetura do universo romanesco, empreendida através da
modalização do real pelo ficcional, é pensada de maneira a espelhar os operadores teóricos
que compõem a interpretação da história humana e da sociedade capitalista/burguesa
organizada pelo marxismo-leninismo soviético, como demonstra Eduardo de Assis Duarte
(1996). Vale a pena relembrá-lo em suas linhas gerais, uma vez que ele se constitui como
ponto de partida para pensar os engajamentos da produção de Amado.
Em Romance em tempo de utopia, Duarte realiza uma extensa e detalhada leitura das
produções ficcionais amadianas entre 1931 e 1954, de maneira a observar como estas
narrativas veiculam um posicionamento político de esquerda, alinhado à União Soviética e ao
Partido Comunista8.
Os romances são estudados pelo pesquisador em uma dupla abordagem, tanto vertical
quanto horizontal. Assim, ele busca um enfoque não apenas intratextual, isolando uma
narrativa para analisar e decupar, a partir de uma lupa, o discurso ideológico e os recursos
estético-formais adotados, mas também intertextual, considerando os elos e as rupturas que se
estabelecem nas passagens de um romance a outro. Neste sentido, consegue dar conta do
discurso amadiano, possibilitando perceber o modo como a utopia política se desdobra no
universo ficcional do romancista baiano – um “[...] progressivo movimento de partidarização,
culminante em Subterrâneos da liberdade” (DUARTE, 1996, p. 35) – e também do modelo
narrativo utilizado para ficcionalizar o horizonte utópico – a estrutura básica do romance
romanesco suplementada pelo bildungsroman e pelo romance histórico e de tese.

8
De acordo com os critérios adotados por Eduardo de Assis Duarte (1996), ficam fora de sua análise os
seguintes textos: Mar morto (1936), por se constituir como um ponto fora da curva do então projeto autoral, uma
vez que não irmanado diretamente à perspectiva de romances de formação proletária; Bahia de Todos os Santos
(1945), ABC de Castro Alves (1941) e O cavaleiro da esperança (1942), pois não se apresentam como ficção.
46

Observado o conjunto da produção literária de Amado até 1954, Duarte divide os


romances em função de suas similitudes e diferenças em relação uns aos outros. Assim, O
país do carnaval, Cacau e Suor são introduzidos como “cadernos de aprendiz de romancista”,
com o que o pesquisador segue a definição traçada pelo próprio Jorge Amado. Trata-se aqui
de compreender a ruptura ideológica ocorrida entre O país do carnaval e Cacau, além de
observar como a perspectiva de um romance proletário se desenha em Cacau e Suor, ou seja,
como “[...] confluência de certas posturas ficcionais do modernismo com o empenho realista
em voltar-se para a existência das multidões oprimidas no trabalho” (DUARTE, 1996, p. 30).
Noutro plano, Jubiabá e Capitães da areia, são lidos como romances de formação proletária,
uma vez que a ação pretende encenar as trajetórias dos protagonistas da condição de lúmpens
à de atores sociais engajados na transformação política, o que pressupõe um processo de
conscientização e aprendizagem dos modos de engajamento a partir dos quais se tece a luta
dos trabalhadores.
Terras do sem fim (1943) e São Jorge dos Ilhéus (1944) são lidos como um único
romance, porém dividido em duas partes, constituindo-se como uma saga em que se narra
“[...] a ascensão, o apogeu e a decadência dos antigos senhores” (DUARTE, 1996, p. 122).
Estes romances colocam em cena a interpretação da realidade rural brasileira movimentada
pela tese do etapismo endossada pelo Partido Comunista, segundo a qual a “[...] agricultura
‘feudal’ ou ‘semifeudal’ deveria ser ultrapassada não pela revolução operário-camponesa, mas
pela implantação efetiva das relações capitalistas de produção, etapa indispensável ao
estabelecimento das condições necessárias à revolução socialista” (DUARTE, 1996, p. 137).
Terras do sem fim, configurado de acordo com os padrões do romance histórico,
evidencia o processo de constituição da monocultura cacaueira e os consequentes poder e
fortuna dos coronéis. Uma vez sedimentadas as relações “feudais”, São Jorge dos Ilhéus
procura ultrapassá-las via diálogo com a burguesia nacional, opondo-se ao imperialismo
estrangeiro. Este é alçado à condição de grande vilão, posto que manipulador dos preços do
cacau, ocasionando a falência do sistema de monocultura exportadora e o agravamento das
condições de vida dos trabalhadores. É este cenário que sustenta a luta dos oprimidos
conduzida pelo operário Joaquim, personagem ligada ao Partido Comunista e responsável por
galvanizar os trabalhadores em torno da ideologia partidária e da perspectiva revolucionária –
possibilidade com a qual se fecha o romance.
É em São Jorge dos Ilhéus que tem início uma representação do Partido Comunista
como farol que aponta para um novo futuro, aquele alimentado pela utopia. Esta mesma base
está presente tanto em Seara Vermelha quanto na trilogia Subterrâneos da liberdade, onde o
47

Partido é mesmo posicionado de acordo com a condição de herói. Em Seara vermelha, Jorge
Amado assume integralmente a perspectiva de elaboração de um romance-tese, cujo plano
argumentativo é assim descrito por Duarte (1996, p. 170):

Logo se conforma a tese propagada pelo romance, que se desdobra em três


proposições. A primeira – a violência do opressor gera a violência do oprimido –
focaliza a barbárie do latifúndio (e da riqueza construída em função da miséria)
como elemento que detona três tipos de reações igualmente violentas: o êxodo, o
cangaço e a formação messiânica. A segunda – atitudes isoladas são ineficazes,
mesmo quando violentas – aponta para a incapacidade desses três movimentos em
promover transformações de vulto no sistema. E a terceira – só a revolução porá fim
à opressão – reconhece o sentido subversivo das formas de rebeldia primitiva [no
sentido proposto por Hobsbawm, desprovidas de uma sistematização política], mas
propõe superá-las ao mostrar a “direção justa”, vislumbrada na utopia socialista e
consubstanciada na ação do partido.

Nesta paisagem, é interessante observar que Seara Vermelha, ao propor, a partir da


personagem Juvêncio, um exame dos erros de avaliação cometidos pela esquerda na
fracassada Intentona Comunista, de 1935, exime a instituição partidária de qualquer
responsabilidade, direcionando sua crítica aos quadros dirigentes, tidos como despreparados
intelectual e politicamente para administrar uma revolução.
Já em Subterrâneos da liberdade, a partidarização chega ao seu ponto máximo, posto
que o próprio Partido Comunista passa à condição de oprimido, dado o enfoque narrativo na
perseguição, prisão e tortura de seus líderes e militantes durante o Estado Novo. Novamente
de acordo com Eduardo de Assis Duarte (1996, p. 210):

Subterrâneos não se configura como romance do trabalhador, uma vez que não se
dedica preferencialmente a dramatizar o mundo da exploração econômica. Este é
apenas tangenciado, quase um pano de fundo para dar espaço à ação política da
vanguarda operária, na verdade o grande protagonista. O texto termina por
reduplicar, em seu esquema construtivo, o centralismo dominante no apogeu da era
stalinista. Assim, o partido substitui a massa trabalhadora como centro da
representação, e isto faz da trilogia muito mais um texto de proselitismo político do
que propriamente romance proletário, voltado para a denúncia da reificação.

O resumo da linha de pensamento fixada por Duarte em sua abordagem da literatura


amadiana, focalizando-a a partir de sua adesão à utopia comunista, lança luz sobre uma
experiência possível de liberdade. Esta se estabelece em comunhão com a utopia política e,
portanto, adequada às determinações centralizadas na União Soviética e no Partido
Comunista, enfatizando, sobretudo, uma perspectiva econômica e social. Trata-se do que se
poderia configurar como uma emancipação coletiva: igualdade de acesso e de fruição das
produções intelecto-materiais, o que só é possível por via da superação de um modelo social
48

organizado a partir da propriedade privada dos meios de produção, o capitalismo-burguês.


Somente a título de ilustração do equacionamento proposto, quero observar como o
coletivo passa a ser encenado no universo romanesco de Amado, o que acontece já em Cacau,
e como – ainda nesta narrativa, mas também, e principalmente, em Jubiabá – se estabelece
uma tensão entre a representação de classe, dotada de potência-devir, e do indivíduo,
desprovida desta condição.
Em substituição aos pontos de vista burgueses enunciados em O país do carnaval, que
acompanha o dândi Paulo Rigger, o mito do proletariado, cujo conteúdo aponta para a
potência das classes trabalhadoras como força de progresso rumo à superação do capitalismo,
e a luta de classes, tensão entre detentores dos meios de produção e seus explorados, que se
apresenta como motor das transformações históricas para a dialética marxista, passam a
constituir, a partir de Cacau, o núcleo gerador das representações plasmadas nas narrativas de
Jorge Amado.
A mudança entre o enfoque em personagens burguesas e a representação positiva das
classes trabalhadoras se dá por meio de um narrador-personagem, José Cordeiro, o Sergipano,
um homem que vivencia, em sua infância, a queda dos padrões abastados em que nasceu, e
que lhe garantiram algum estudo, à pobreza absoluta, que o obriga a engajar-se como
trabalhador nos cacauais do sul da Bahia. A narração feita em primeira pessoa, que se
apresenta como um recurso estranho à ficção de Amado, é, neste sentido, estratégica: espelha
a internalização dos posicionamentos de esquerda pelo autor, que passa a tecer o seu universo
ficcional tendo por base o ponto de vista dos oprimidos.
Noutro plano, o foco narrativo, ao partir da experiência de um ex-alugado, cumpre a
função de emular uma descrição que se pretende verdadeira, e não apenas verossimilhante,
das condições de trabalho e de vida daqueles que plantam, colhem, secam, ensacam e
conduzem os frutos dos cacauais baianos, produzindo uma riqueza da qual não partilham
sequer minimamente. A realidade, denunciada a partir do ângulo do trabalhador, é moldada
como uma forma de não somente imprimir enquadramentos que evidenciem a miséria e as
humilhações a que os alugados são submetidos, mas, indo além, de revelar seus efeitos
desqualificadores na alma e no comportamento desses homens – o que é realizado, ainda que
de maneira não muito bem elaborada, via reflexões do narrador a respeito de sua condição. É
através deste artifício que elementos como a pertença a um coletivo, desenvolvida a partir de
uma rudimentar consciência de classe, e a percepção dos mundos distintos e inconciliáveis de
fazendeiros e trabalhadores, visando dar lastro para o painel da luta de classes, são postos em
cena.
49

O ponto de vista assumido em Cacau permanece estabelecendo o tom nas narrativas


posteriores, embora Jorge Amado passe a adotar outro foco narrativo. A denúncia da
sociedade de classes estruturada em torno do capitalismo burguês é realizada sob o ponto de
vista dos oprimidos pelo sistema que, em um processo de construção da consciência política e
do reconhecimento de laços históricos semelhantes, se veem coletivamente como classe,
partilhando de uma realidade e de uma potência em comum. Em face deste aspecto, e
adotando a perspectiva teórica do “herói positivo” elaborada por Lukács, Eduardo de Assis
Duarte (1996, p. 55) aponta um procedimento constante no conjunto de romances amadianos,
qual seja, “[...] a representação positiva do oprimido. O texto não se limita a deixá-lo falar,
mas se incumbe de fazê-lo crescer e afirmar sua dignidade; não se contenta com a mera
denúncia da opressão, mas leva-o ao ponto de superá-la [...]”.
Ainda que se admita, com Terry Eagleton (1999), que a teoria marxista não implica no
apagamento do indivíduo em prol de uma coletividade sem face, é inegável que a categoria
classe social possibilita uma chave de leitura homogeneizante – o que vem ser uma
característica típica do pensamento moderno. Este traço pode ser observado, por exemplo, em
Jubiabá, quando o babalorixá ensina a Antonio Balduíno que “branco pobre também é
negro”, eliminando assim qualquer divergência entre as realidades vivenciadas por grupos
específicos dentro do contingente maior dos espoliados do capitalismo – proletários e
lúmpens.
As categorias indivíduo e classe social, aliás, são posicionadas por Jorge Amado em
Jubiabá de modo que o arco existencial do protagonista cumpre o percurso ascendente da
primeira em direção à segunda, na qual Antonio Balduíno une forças aos demais
trabalhadores, irmanando-se a eles na luta por condições mais justas de trabalho e de vida.
Trata-se do romance de formação proletária, de que fala Eduardo de Assis Duarte (1996), no
qual o enredo, disposto segundo o modelo narrativo do romance romanesco, acompanha as
diversas etapas do processo de aprendizagem política vivenciada pela personagem, desde a
malandragem, como recusa consciente à sujeição, mas inócua do ponto de vista de um efetivo
rompimento com as estruturas opressoras, ao engajamento sindical e grevista, que acena para
a utopia.
É a partir deste segundo lugar que o romance, enfim, confere importância política para
o desejo de liberdade estruturante da personagem que, desde menino, já havia escolhido ser
livre – opção que, ainda não direcionada pela consciência política, significava apenas não se
submeter ao mundo do trabalho formal, entendido como atualizador da escravidão. A greve,
grande força de mobilização coletiva como via de contestação do status quo e libertação do
50

proletariado, não havia ainda sido introduzida na vida de Baldo, que alimentava uma
experiência de liberdade situada meramente no plano individual, desconectada de qualquer
anseio de classe por transformação das estruturas sociais.
Jubiabá coloca em cena dois sentidos de liberdade, um baseado na ação individual e
outro fundamentado na organização coletiva, priorizando o segundo em detrimento do
primeiro. Estes dois modelos, tal como postos pela narrativa, parecem apontar para as formas
de uma liberdade aparente e de uma real liberdade. A liberdade aparente se coloca como
uma ilusão de liberdade, tal como aquela experimentada por Balduíno durante a maior parte
de seu arco existencial, porque sem qualquer reverberação na tessitura da sociedade. A
personagem julgava-se livre por não se submeter às condições difíceis e reificantes que
envolviam o trabalho formal, eximindo-se de receber ordens e movendo-se sempre de acordo
com sua própria vontade. Baldo experimenta, então, uma sensação de liberdade, uma vez que
o seu desejo guia as suas escolhas. O que não percebe, porém, é que o horizonte destas
escolhas é sempre demarcado pelos limites impostos por sua condição social precária.
Embora o segundo sentido não se enraíze na concretude do real em que vivem as
personagens de Jubiabá, situadas em meio às relações capitalistas e burguesas e por elas
atravessadas, o fato de ele existir na condição de um horizonte utópico as afeta positivamente.
A real liberdade, possível apenas por meio da transformação social, se faz presente no
romance uma vez que os meios para alcançá-la são assumidos pelo conjunto de trabalhadores,
que, dotados de consciência política e de classe, organizam-se em torno de uma greve geral,
cujo triunfo simboliza a potência transformadora inerente à ação coletiva.
É nesta direção que o romance, finalmente, reconhece Antonio Balduíno como um
veículo/arauto de uma experiência possível e válida de liberdade, construindo-o agora como
um sujeito consciente das estruturas que o oprimem, de modo a canalizar o feérico instinto de
liberdade e o aguçado senso de justiça que o guiam em prol do embate político no qual se
processa a substituição do capitalismo pelo comunismo.
Ao longo dos romances das décadas de 1940 e 1950, como já resenhado, há alterações
no modo de trabalhar com o comunismo, como a entrada em cena da tese do etapismo,
elaborada pelo Partido Comunista para a interpretação da realidade brasileira em função dos
passos a serem cumpridos para o êxito da revolução proletária-camponesa, ou o protagonismo
do Partido Comunista, que passa ao estatuto de galvanizador das lutas dos trabalhadores.
Estas variações não implicam senão no adensamento da crença em torno desta primeira
formulação de uma experiência possível de liberdade, constituída por via da utopia e oriunda
51

da crença moderna na história. Este modelo persiste até as publicações de Gabriela, cravo e
canela, em 1958, e A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, de 1959.
Em meio ao processo de escrita e publicação da trilogia Subterrâneos da liberdade,
romances nos quais se narra o período do Estado Novo a partir de um contra-discurso
organizado sob o olhar dos perseguidos e torturados, Jorge Amado começa a ser informado
acerca da estrutura totalitária e ditatorial da sociedade soviética na era stalinista, vindo a
conhecer depoimentos de seus também presos políticos e torturados, bem como de seus
exilados e sobre os seus mortos. Esta realidade, terrivelmente próxima àquela denunciada no
contexto da ditadura Vargas, contrastava de maneira ampla com o ideário utópico, que se
supunha em estágio de implementação no Leste Europeu – e se distanciava tanto mais do
retrato desta sociedade elaborado pelo próprio Jorge Amado em O mundo da paz, de 1952,
texto de culto à personalidade de Josef Stálin, posicionado como “Grande Líder”, e de elogio
ao regime soviético9. Quando, em fevereiro de 1956, Nikita Khrushchov, então no comando
da União Soviética após a morte de Stálin, revelou os crimes cometidos pelo regime, o
romancista baiano já se encontrava a par dos fatos, de modo que já havia decidido retirar-se
dos quadros políticos do Partido Comunista do Brasil, deixando de exercer a militância. Jorge
Amado relembra este momento em entrevista a Alice Raillard (1990, p. 139-141):

Ele [um escritor húngaro] disse: “Prenderam fulano”, e acrescentou: “Ele foi
terrivelmente torturado...”
Para mim, isto era totalmente impensável: num regime socialista um homem jamais
poderia ser torturado, estava fora de cogitação. Fiquei pasmo... Ele me olhou,
perguntando se eu estava me fazendo de idiota – será que eu não sabia que se usava
a tortura? que se torturava tanto quanto antes? Passei não sei quanto tempo em
estado de abatimento total, já não dormia mais, estava aniquilado. [...]
Naquele tempo eu vi o medo, era algo alucinante, como se fosse algo concreto,
tangível. Todo mundo tinha medo; medo de ser preso a qualquer momento, medo de
ser liquidado a qualquer instante.

Desiludido ante o desmonte da imagem em que se assentavam os alicerces da utopia,


mas ainda imbuído daquele princípio ético que fundamenta o exercício da literatura como
missão, Jorge Amado abdica das soluções até então ficcionalizadas como elemento de
sustentação de seu universo romanesco e desliza, a partir de Gabriela e Quincas para

9
É importante destacar que Jorge Amado nunca permitiu a republicação deste livro, de modo que este se
constitui como o único veto autoral aos seus textos efetivamente editados. Não se trata, porém, de uma produção
de silêncio no sentido de esconder, por errado ou vergonhoso, o conteúdo do livro. Sempre que solicitado em
entrevistas, Amado se reportava a O mundo da paz, inclusive explicando suas razões para não permitir uma
republicação. Em suma, o que motiva o impedimento à republicação de O mundo da paz é, justamente, seu teor
de publicidade positiva do regime soviético e da louvação de Stálin.
52

posicionamentos que, advindos de pequenos espaços de diferença, confrontam ou debatem a


estrutura capitalista-burguesa dominante.
É neste sentido que a literatura amadiana passa a dialogar com temas da
Contemporaneidade. Elementos anteriormente ficcionalizados em função de uma linha de
pensamento moderna passam a ser relativizados ou substituídos por outros, mais adequados
ao contexto que se observa no Ocidente a partir dos anos 1960, período em que Michel
Foucault (2002) detecta uma “insurreição dos saberes sujeitados”:

E, por “saber sujeitado”, entendo duas coisas. De uma parte, quero designar, em
suma, conteúdos históricos que foram sepultados, mascarados em coerências
funcionais ou em sistematizações formais. Concretamente, se preferirem, não foi
certamente uma semiologia da vida em hospício, não foi tampouco uma sociologia
da delinquência, mas sim o aparecimento de conteúdos históricos o que permitiu
fazer, tanto do hospício como da prisão, a crítica efetiva. E pura e simplesmente
porque apenas os conteúdos históricos podem permitir descobrir a clivagem dos
enfrentamentos e das lutas que as ordenações funcionais ou as organizações
sistemáticas tiveram como objetivo, justamente, mascarar. [...]
Por “saberes sujeitados” eu entendo igualmente toda uma série de saberes que
estavam desqualificados como saberes não conceituais, como saberes
insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores,
saberes abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade requeridos
(FOUCAULT, 2002, p. 11-12, grifos meus).

A explicação acima traçada por Michel Foucault o orienta a constituir uma linha de
pesquisa designada por genealogia, que se caracteriza por ser uma anticiência, na perspectiva
de se valer dos conteúdos históricos não oficiais e pelas formas de saber desqualificadas pela
Modernidade, e que visa, por isso mesmo, a estabelecer uma crítica à ciência moderna,
abrindo outras possibilidades. Noutro plano, mas em perspectiva algo semelhante, Jorge
Amado acolhe, em sua ficção, esta mesma “insurreição dos saberes sujeitados”, igualmente
utilizando-se dela para reorganizar a sua crítica em relação à configuração social hegemônica,
herdeira e atualizadora do paradigma moderno.
Ao se estabelecer o diálogo entre o diagnóstico de Michel Foucault e as informações
anteriormente transcritas de Marilena Chauí, assumindo a produção literária amadiana a partir
de Gabriela como eixo articulador desta relação, é possível observar, em visada horizontal, as
modificações operadas pelo autor em seu universo ficcional em razão da nova atmosfera. Para
Roberto DaMatta (1991, p. 120), “[...] a partir de Gabriela, Amado não mais sabe das coisas,
mas assume uma posição empírica diante delas. Deixa de ditar normas e decide captar
sentido, significado e valores por meio de seus personagens”.
Em primeiro lugar, a crença em uma verdade absoluta, cujos veículos de
ficcionalização se materializavam em um narrador engajado e em uma trama maniqueísta,
53

organizada em torno do conflito entre polos representativos de opressores e oprimidos, do


justo e do injusto, cede lugar a narradores parciais, que adotam uma atitude irônica, capazes
de jogar com os discursos e os múltiplos pontos de vista das personagens, relativizando as
certezas, mas ainda desmascarando injustiças.
Ainda na clave de um desmonte da crença em uma verdade absoluta, agora sob a
perspectiva de sua redução à história oficial, enunciada a partir das esferas de poder e
reproduzida de cima para baixo via aparelhos ideológicos, tem-se o surgimento de um
importante filão na produção literária do romancista baiano, diretamente relacionado com a
observação foucaultiana: textos que tensionam o discurso oficial, fazendo emergir outras
versões e outras verdades por intermédio da recuperação de fontes alternativas, postas em
descrédito pela Modernidade porque orais, populares ou expressas em uma lógica não
ocidental. Fazem parte deste segmento “Os amigos do povo”, terceira parte de Os pastores da
noite; os romances Tenda dos milagres (1969) – que, talvez, possa ser justamente qualificado
como uma narrativa genealógica –, Tocaia Grande (1984), além do incompleto e não
publicado Boris, o Vermelho.
Um terceiro aspecto corresponde à perspectiva homogeneizante característica da
estrutura do pensamento moderno, endossada por Amado em sua apropriação romanesca da
categoria classe social, que dá lugar à valorização e ficcionalização do heterogêneo,
configurado a partir da ascensão das alteridades como tais, e não como partícipes de algo
maior que as englobe e reduza ao mínimo comum. Nesta linha, Tocaia Grande figura como
romance paradigmático, uma vez que se apresenta como recuperação imaginária do processo
histórico da formação híbrida de uma cidadezinha no sul baiano, constituída por levas
diversas de pessoas oriundas das margens socioculturais em migração – outridades em relação
umas às outras.
A abertura das alteridades e das minorias, agora observado sob um prisma mais
específico, comporta a elevação do protagonismo feminino – ou a centralização da trama em
torno de personagens mulheres – em Gabriela, cravo e canela; Dona Flor e seus dois
maridos, Tereza Batista cansada de guerra, Tieta do Agreste e O sumiço da santa. Da mesma
forma, Amado procede em relação à raça/etnia. O negro (sempre presente em toda a sua
produção) e o mestiço, além das religiões e culturas de matrizes africanas, têm destaque, na
condição de personagens condutoras da trama ou de núcleo gerador de valores, em Os
pastores da noite, Tenda dos milagres e também em O sumiço da santa. É necessário
reconhecer que Antonio Balduíno é o primeiro herói negro da literatura brasileira, conduzindo a trama
de Jubiabá – o que já posiciona a potência afro-brasileira no universo ficcional amadiano desde o
54

tempo da utopia. No entanto, neste romance a condição heterotópica fundante da personagem é


revertida, ao longo da trama, para que passe a constituir-se como veículo da leitura comunista da
sociedade e das estratégias de luta política de esquerda para sua transformação.Os vagabundos e as
prostitutas, por sua vez, sustentam A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, Os pastores
da noite e Tereza Batista cansada de guerra.
Por último, a diretriz racionalizante, que organiza as narrativas dentro dos limites de
uma lógica do mundo dito natural e social, cede espaço para que o autor realize o cruzamento
do real com o onírico, em Os velhos marinheiros, e do real com o fantástico em Quincas,
baralhando de forma tal a percepção da realidade, que se vai de um a outro sem que se
percebam quais as suas linhas limítrofes. Neste mesmo caminho, o universo amadiano vai
entrar a fundo na cultura e na religiosidade afro-baiana ao se apropriar da constante tensão
dialética entre o Àiyé, mundo terreno, e o Orun, mundo transcendente, que vem a ser uma
relação estrutural da lógica interpretativa dos eventos que têm lugar na realidade humana, de
acordo com a cosmovisão do Candomblé. Assim, Amado estabelece uma interpenetração de
ambos que será a base para “O compadre de Ogum”, segunda narrativa de Os pastores da
noite; Dona Flor e seus dois maridos, Tenda dos milagres, Tereza Batista cansada de guerra
e O sumiço da santa10.
Assim como a utopia foi a base segura em que a literatura amadiana se desenvolveu
sob o tempo da Modernidade, as heterotopias constituem agora o terreno fértil a partir do qual
o romancista pode responder às demandas postas pela fragmentação contemporânea. Afinal,
delas emanam as alteridades ficcionalizadas como personagens, além dos conteúdos
históricos, sociais e culturais que orientam os enredos, dispõem as relações entre os elementos
em cena e fixam os valores assumidos pelas narrativas; é destes espaços outros, lugares da
diferença, que advêm as formas de tensão aos discursos oficiais e aos modelos socioculturais
hegemônicos elaboradas pelas narrativas que se seguem a Gabriela.
Ainda assim, resta algo de um espírito indisfarçavelmente moderno em Jorge Amado,
mesmo quando seu universo ficcional já migrou da utopia para a heterotopia. Trata-se da
forma como o autor compreende o processo histórico humano, tocado ainda pelo teleologismo

10
É importante situar que Mar morto, de 1936, antecipa a imbricação entre a realidade factual e a mitologia afro-
brasileira, uma vez que Lívia é constituída de maneira a espelhar Iemanjá. Na cena final, quando a personagem
reverte o destino das mulheres viúvas e toma do paquete de seu marido morto para dele arrancar o sustento, o
núcleo materialista da trama vê uma mulher modificando a história enquanto os pescadores, todos eles
pertencentes ao povo-de-Axé, mostram-se convictos de ser Iemanjá a comandar a embarcação. Como em
nenhum momento o romance se inclina para este ou para aquele lado, equilibrando-se entre os dois e suportando
ambos, aproxima-se muito mais das características do olhar amadiano motivado pelas heterotopias do que aquele
baseado na utopia, principalmente ao se levar em conta a proximidade temporal entre esta narrativa e Jubiabá,
romance no qual é operada uma desqualificação do Candomblé, ficcionalizado como “ópio do povo”.
55

da metanarrativa marxista. Declarações do romancista a vários periódicos indicam que ele


acredita, junto à crença moderna no fluxo histórico, que a humanidade segue em uma marcha
rumo a este modelo de organização social, linearmente disposto após a superação do
capitalismo:

Porque a humanidade marcha pra diante. O socialismo é fatal. O socialismo não


depende de você, nem de mim, nem de ninguém. O socialismo é a marcha
inexorável da humanidade que marcha pra frente. Agora, para se chegar ao
socialismo verdadeiro, que o indivíduo, a sua individualidade não chega a ser
esmagada, dizendo-se que é em função do coletivo, na realidade, sendo em função
dos donos do poder... aí, nós vamos andar muito caminho, eu não tenho a esperança
de ver, e nem sei se meus netos verão isso, compreende? Agora, temos que lutar por
isso. Porque a nossa luta caminha para isso. Só a luta mesquinha, daqueles que
querem o poder imediato, que lutam para se obter alguma coisa imediatamente, que
é vã. A luta real e verdadeira é aquela que se faz no desejo de se obter aquilo que um
dia será realidade (AMADO apud JORNAL DA TARDE, 3.set.1988, p. 2-3).

Jorge Amado, por mais que tenha buscado modelos alternativos de organização
sociocultural coletiva e de comportamentos individuais no âmbito mesmo da sociedade
capitalista burguesa a ser combatida, nunca deixou de acreditar no simbolismo moderno
inerente à ideia de futuro – tempo para o qual a utopia política aponta. O horizonte utópico
não se arrefece de todo na alma amadiana.
Considerar a permanência de um traço moderno no pensamento de Amado parece
impor uma contradição ao argumento desenvolvido até aqui, que procura observar sua
produção sob a perspectiva da Contemporaneidade – ou, pelo menos, uma dissonância entre o
discurso extra-ficcional e o universo romanesco. Parece-me, contudo, que nenhuma destas
implicações é correta. Se é verdade que o romancista baiano olha para o futuro mirando um
modelo de organização social pelo qual se deve lutar, é igualmente verdade que a
configuração deste ideal já não se apresenta de forma rígida como antes, mas vai aos poucos
se constituindo a partir das heterotopias e por elas mediado. Neste caso, são as heterotopias
que fornecem os conteúdos e as lutas necessárias para o balizamento e a edificação do
socialismo. Isto porque

Heterotopias podem possuir uma intenção utópica, mas elas mesmas nunca podem
ser as utopias, uma vez que suas origens estão nos espaços que elas contrariam. À
luz desta condição, elas servem como laboratórios de um lugar ideal: lugares nos
quais a mesmidade dos espaços dominantes pode ser contestada e retrabalhada com
vistas ao progresso (OLIVEIRA, 2013, p. 109)11.

11
“Heterotopias may have a utopian intent, but they may never be utopias themselves since their origins are in
the sites that they counter. In light of this condition, they serve as laboratories of an ideal place: places in which
the sameness of the dominant sites may be contested and re-worked towards improvement” (Tradução minha).
56

Não se trata aqui de submeter a produção literária de Jorge Amado ao discurso autoral
expresso fora dela, em entrevistas a periódicos, programas de televisão e de rádio. Mas, de
entrecruzá-los no sentido de abrir chaves de leitura a serem testadas nas narrativas. E, de fato,
há ressonância da crença no futuro nos romances. É sintomático, por exemplo, o refrão a
partir do qual Pedro Archanjo Ojuobá, de Tenda dos milagres, diz de si: “Eu não quero subir,
ando para a frente, camarado” (AMADO, 1971, p. 318).
A ascensão social, representada pelo verbo subir, é preterida em função de uma
perspectiva de futuro construtora da igualdade, cuja expressão “andar para a frente”
simboliza. A oposição que se coloca para Archanjo, então, diz respeito à escolha entre uma
mobilidade social situada no plano meramente individual, cujas consequências práticas são a
manutenção e a legitimação da sociedade vigente, e o engajamento por transformações
profundas na realidade, que abarquem o coletivo em uma sociedade projetada
democraticamente.
Há ressonâncias também em romances como Farda, fardão, camisola de dormir, em
que a alegoria que sustenta a relação entre a realidade e a ficção diz do embate entre ditadura
e democracia em que o amanhã deve se balizar pela superação do primeiro em prol do
segundo, e, principalmente em O sumiço da santa, narrativa em que a perspectiva socialista
volta a ser afirmada de modo direto por intermédio dos padres ligados à Teologia da
Libertação e às Comunidades Eclesiais de Base – segmentos católicos latino-americanos que
conjugam a prática religiosa cristã com uma ação política socialista.
Os romances em tempo de heterotopia12, por assim dizer, respaldam a hipótese
referente à permanência do simbolismo do futuro de igualdade no universo amadiano. A
utopia socialista, em sua versão renovada e desvinculada da União Soviética e mesmo de
partidos políticos, se mantém no conjunto da produção literária de Amado. A diferença é que
ela já não se apresenta mais como um modelo social fixado, pré-definido, mas em processo de
construção. O princípio da igualdade, cláusula pétrea de sua ideologia, continua, mas ele, por
si só, já não basta para definir o socialismo, que deve ser suplementado pela liberdade, como
o romancista baiano afirma em muitas entrevistas. E, se ele não chega a definir em nenhum
depoimento o que, neste contexto, chama genericamente de “liberdade”, seus romances o
fazem a partir das experiências diferenciais advindas da representação de espaços não
hegemônicos.

12
Trata-se de uma adaptação do título que enfeixa o estudo de Eduardo de Assis Duarte (1996) a respeito dos
romances amadianos alicerçados na utopia, Romance em tempo de utopia.
57

É neste ponto que retorno à noção de contemporâneo, tal como conceituada por
Agamben (2009). As narrativas heterotópicas amadianas são produzidas entre os anos de 1958
e 1994, buscando sempre dialogar com as demandas postas por este arco temporal e respondê-
las de acordo com o paradigma epistêmico emergente a partir dos anos 1960. Estas respostas
não são elaboradas com o intuito de estabelecer uma conformidade com o tempo a que
interpelam, mas de tensioná-lo a partir de suas trevas – as desigualdades sociais; as ditaduras
com o seu autoritarismo oficial, sua censura e tortura; a memória seletiva, que opera a
desqualificação das culturas negras e populares; a subalternização de negros e de mulheres,
além da hipocrisia moral. Neste sentido, estes romances estão contra o tempo em que e a
partir do qual são escritos. Fomentam, assim, o lastro necessário para a permanência da
utopia, porém agora modalizada pelas heterotopias e possível apenas por seu intermédio.
58

3 GABRIELA E QUINCAS, POTÊNCIAS HETEROTÓPICAS

Mas as pessoas na sala de jantar


são ocupadas em nascer e morrer

Caetano Veloso. Panis et circenses.

Me larga, não enche


Você não entende nada
e eu não vou te fazer entender
Me encara de frente
É que você nunca quis ver,
não vai querer, não quer ver
Meu lado, meu jeito
O que eu herdei de minha gente
e nunca posso perder
Me larga, não enche
Me deixa viver, me deixa viver,
me deixa viver, me deixa viver

Caetano Veloso. Não enche.

Gabriela, cravo e canela e A morte e a morte de Quincas Berro Dágua são as duas
primeiras narrativas de Jorge Amado em que as heterotopias emergem ao primeiro plano da
cena representacional. Por consequência, são também os dois primeiros textos em que o
romancista, agora desvinculado da utopia política atrelada ao modelo soviético, procura por
novas formas de rasurar e reverter os modelos sociais dominantes. Logo, não é por mero
acaso que ambos os textos apresentam um alvo em comum: a burguesia. Mais
especificamente, os valores morais e socioculturais que organizam o mundo burguês – ou o
pequeno-burguês, em se pensando a realidade da família de Quincas, composta por modestos
comerciantes e funcionários públicos de baixo escalão.
Em uma tentativa de reestruturar, em termos contemporâneos, a ética socialista em
face do desmonte do comunismo moderno, Nelson Levy (2007) busca sistematizar o que
designa por “utopia pluralista socialista”. Isto é, um modelo teórico-filosófico em que “[...] a
aspiração socialista por liberdade só pode manifestar-se eficazmente (coerentemente) pelo
respeito universal à pluralidade de valores. E que, por seu turno, o pluralismo universal daí
decorrente deve realizar-se pela ideia socialista de igualdade de oportunidades (bioculturais)”
(LEVY, 2007, p. 231). Neste sentido, as classes sociais, na condição de grandes categorias
modernas que implicam a redução do pluralismo ao homogêneo, não podem se constituir
como dínamos de uma procura por articular os princípios da igualdade e da diferença, sem
que um pese mais que o outro. De acordo com Levy (2007, p. 265-266), então, a efetivação
59

deste modelo depende de “[...] uma alternativa realmente inovadora para além da
representação humana pelo tipo burguês ou pelo tipo operário, pois, enquanto ambos
dominarem a cena humana, o cenário da modernidade continuará montado”.
Nos romances em tempo de heterotopia, em cuja permanência de um horizonte
utópico podem-se flagrar semelhanças com a perspectiva proposta por Levy, Jorge Amado
fragmenta o conjunto dos marginalizados pelo capitalismo burguês de modo a ficcionalizá-lo
sob um prisma efetivamente plural. Sem deixar de continuar trabalhando pelas margens, no
sentido delleuziano que “escrever por”13 apresenta, o romancista já não as enfeixa de maneira
claustrofóbica como classe, emulando uma unificação que, no plano do real, não consegue
superar a instabilidade oriunda das múltiplas e fortes emanações de alteridade, de que
resultam posicionamentos distintos no interior mesmo de um coletivo constituído de fora para
dentro. Como o devir social já não cabe (somente) ao proletariado, ou a instituições
partidárias que busquem representá-lo, emergem as figuras da mulher, da prostituta, do negro
e do vagabundo, da cultura afro-baiana e das memórias populares e orais, como forças
condutoras deste processo. Como destaca Jorge de Souza Araújo (2003, p. 136), a partir de
Gabriela, “[...] a obra de Jorge Amado reorienta-se no sentido de produzir identidades de
leitura extra a leitura dominante das classes privilegiadas, novas maneiras de ler o mundo a
fim de dissolver hegemonias”.
À exceção óbvia dos vagabundos, ainda que muitas destas personagens sejam
trabalhadoras – como a própria Gabriela, que exerce a função de cozinheira –, não deriva
nunca desta condição a potência rasurante e transformadora que elas encenam, mas das
heterotopias de onde vêm e que as constituem, de dentro para fora, como seres no mundo. De
acordo com Roberto DaMatta (1997, p. 128):

Não estamos mais diante de uma batalha trivial e “política” entre “direita” e
“esquerda”, pois o que temos agora é uma disputa muito mais complicada e
certamente mais real entre os que “estão embaixo” e os que “estão em cima”, os que
vivem pelos valores oficiais do Brasil como Estado-nacional, e os que transitam
pelos caminhos do Brasil sociedade, propondo novas sínteses entre essas duas
comunidades.

A superação do tipo de indivíduo burguês, proposta por Levy, não pode ser realizada
nos mesmos moldes em que ocorre a da classe proletária no universo amadiano. Isto porquê,
ao contrário das representações heterotópicas que substituem os trabalhadores como potência

13
Gilles Deleuze (1997, p. 15) aponta como grande objetivo da literatura “[...] por em evidência no delírio essa
criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, uma possibilidade de vida. Escrever por este povo
que falta... (‘por’ significa ‘em intenção de’ e não ‘em lugar de’)”.
60

veiculadora de contestação e de mudança, os valores burgueses se configuram como


construtores e como sustentáculos da estrutura sociocultural imperante. Estabelecem-se como
pressões que atravancam, seja por via dos aparelhos ideológicos ou dos repressivos, a
configuração idealizada de sociedade. É neste sentido que a burguesia permanece no centro –
mas nunca como o centro – dos romances de Amado.
É verdade que, no que tange à narrativa do romance Gabriela, cravo e canela, cabe à
burguesia, simbolizada em torno do exportador de cacau Mundinho Falcão, o papel de
atualizar o cenário político e social daquela Ilhéus de meados da década de 1920, cujo tecido
urbano já buscava espelhar, no contexto possível de uma rica cidade interiorana, os processos
de modernização experimentados pelos grandes centros. As estruturas sociopolíticas arcaicas,
fundadas sob a égide do patriarcado e consubstanciadas no poder de mando e de fogo dos
coronéis, sofrem, assim, o impacto da implementação progressiva do capitalismo liberal
burguês, que não as substitui, mas as agrega na condição de um modelo social, político e
econômico efetivamente moderno – os avanços e recuos de que fala Ivia Alves (2004) em sua
hipótese de leitura do romance.
Embora o romance dê tons positivos a esta mudança de cenário, inclusive porque
favorece modificações no que concerne à interpretação e execução de leis, além de
transformações no âmbito dos costumes e das possibilidades em relação ao estatuto social da
mulher, ela não se apresenta como suficiente. Afinal, é realizada de cima para baixo, tendo
como referência basilar a sociabilidade burguesa, assim descrita por Adolfo Sanchez Vásquez
(1983, p. 36):

[...] o culto ao dinheiro e a tendência a acumular maiores lucros constituem o terreno


propício para que nas relações entre indivíduos floresçam o espírito de posse, o
egoísmo, a hipocrisia, o cinismo e o individualismo exacerbado. Cada um confia em
suas próprias forças, desconfia dos demais, e busca seu próprio bem-estar, ainda que
se tenha de passar por cima do bem-estar dos outros. A sociedade se converte assim
num campo de batalha no qual se trava uma guerra de todos contra todos.

É por intermédio do artifício de mobilidade social de Gabriela que o romance não


apenas desmascara e desqualifica o quadro das relações burguesas acima descrito, mas
também o rasura, repelindo as suas formas de ser e de estar no mundo. Gabriela é vetor de
novas sociabilidades possíveis, pois proveniente dos espaços marginais de diferença onde
floresce a heterotopia povo, que não se alinha com a burguesia.
Na primeira parte do romance, o narrador procura acompanhar a estória a partir do
ângulo de Nacib – personagem de origem síria que busca relacionar-se com todas as classes,
61

principalmente a classe alta da cidade, perante a qual procura legitimar-se frequentando seus
espaços e adotando, ao menos em face do contexto público, os hábitos e os costumes que a
caracterizam. Na segunda parte, a narrativa muda de posicionamento, olhando para a
sociedade ilheense a partir da visão de Gabriela. Esta troca entre enfoques compreende a
passagem do ponto de vista de quem percebe a burguesia como identificação, esforçando-se
para seguir o seu modelo, para aquele que, não se espelhando nos padrões vigentes e nem se
enquadrando às limitações impostas, não entende o motivo de segui-los, embora haja uma
imposição em fazê-lo na medida que Gabriela se casa com Nacib.
As movimentações do narrador intercalam as diferentes perspectivas de Nacib e de
Gabriela, de modo a imprimir não uma imagem unilateral da sociedade burguesa, mas
nuançada, ambivalente. Os atritos que advêm do choque entre os posicionamentos através dos
quais o narrador conduz a trama ressaltam, inclusive de maneira bastante intensa, a
experiência de liberdade tolhida com a qual Gabriela se encontra no meio burguês, por efeito
de seu casamento com Nacib e da consequente obrigatoriedade em assumir os valores da
sociedade que seu marido integra.
Adicione-se ainda o gênero literário que será adotado: a comédia, em seu sentido forte,
que se origina deste cenário e afeta – ou tenta afetar – o público leitor no sentido da percepção
das máscaras sociais que a moral burguesa condiciona, o que é realizado por meio de um
narrador cujo discurso, apoiado nas armas da ironia, visa produzir um riso perspicaz e crítico,
dotado de função catártica.
Gabriela, cravo e canela inicia um procedimento comum às narrativas heterotópicas
de Amado, qual seja, a desconstrução da moral burguesa como forma de, por meio da rasura
de seus valores, questionar e desfazer a sua centralidade no que concerne à organização
estrutural da sociedade. Neste romance, a estratégia adotada para atingir tal intento se
configura a partir do desmascaramento das “fraturas entre ação e discurso, o ser e o parecer”
de que fala Olivieri-Godet (2012), além de evidenciar as restrições impostas àquela
personagem oriunda das margens heterotópicas, constitutivas de (e constituídas por) valores
diferenciais.
A leitura deste romance mediada pela chave teórica da heterotopia foucaultiana deve
partir da compreensão da protagonista como personificação metonímica dos espaços outros,
lugares de diferença conformativos da heterogeneidade popular – o que é confirmado, por
exemplo, no título do quarto capítulo do romance, “O luar de Gabriela”, que é suplementado
pela informação “(talves (sic) uma criança, ou o povo, quem sabe?)” (AMADO, 1972, p.
303).
62

Ainda que o romance não reconstitua em detalhes o lugar de onde ela provém, uma
vez que o foco é sempre o conjunto dos valores morais e das regras sociais, políticas e
culturais que moldam a cidade de Ilhéus em moderna, sua rede de relações outra é apreensível
na forma como Gabriela reage à sociedade ilheense, cujo funcionamento é de todo estranho à
retirante sertaneja, mas em meio ao qual ela passa a transitar, primeiro, como cozinheira do
Bar de Nacib, servindo seus quitutes aos clientes, e, segundo, quando passa a pertencer a ela
em função de seu casamento com o sírio. Tendo permanecido até então à margem do modelo
capitalista-burguês, no qual o dinheiro é promovido à condição de um fim em si mesmo
(BORNHEIM, 2007), não sendo subjetivamente formada ou mesmo tocada por ele, a
personagem se configura como a própria heterotopia que, uma vez deslocada para o centro
deste mundo, dialoga de forma tensa com ele, evidenciando as castrações que sofre e expondo
as fraturas que presencia.
Em decorrência disso, o conjunto de normas regulatórias da sociabilidade burguesa,
cuja metonímia se encontra na instituição do casamento, é destacado em uma caracterização
negativa porque estruturada sobre um moralismo de fachada ou proibitiva da fruição em
plenitude dos prazeres relacionados à vida.
O processo de desmontagem das máscaras sociais, revelando o descompasso entre as
instâncias do ser e do parecer, além das motivações interesseiras e preconceituosas inerentes
aos posicionamentos adotados pelas elites, se intensifica a partir do momento em que a
vontade de oficialização do relacionamento entre Nacib e Gabriela, até então mantido sob o
domínio dos prazeres de cama e de mesa, se anuncia para o sírio. Apesar de um amor sincero
já tê-lo afetado, Nacib tergiversa:

“Se eu fosse você era o que eu faria”... Fácil de dizer quando se trata dos outros.
Mas como casar com Gabriela, cozinheira, mulata, sem família, sem cabaço,
encontrada no “mercado dos escravos”? Casamento era com senhorita prendada, de
família conhecida, de enxoval preparado, de boa educação, de recatada virgindade.
Que diria seu tio, sua tia tão metida a sebo, sua irmã, seu cunhado engenheiro-
agrônomo de boa família? Que diriam os Aschar, seus parentes ricos, senhores de
terra, mandando em Itabuna? Seus amigos do bar. Mundinho Falcão, Amâncio Leal,
Melk Tavares, o Doutor, o Capitão, dr. Maurício, dr. Ezequiel? Que diria a cidade?
Impossível sequer pensar nisso, um absurdo. No entanto, pensava (AMADO, 1972,
p. 256).

O narrador, utilizando-se do discurso indireto livre, faz ecoarem duas vozes além da
sua própria, esta buscando apenas descrever a ação. Assim, dá vazão às angústias de Nacib,
que contrapõe a imagem da mulher efetivamente amada àquela idealizada como compatível
ao seu status, e à reação que o sírio imagina provável naqueles que compõem o seu círculo
63

social; burgueses que, apesar de aprovarem invejosos o seu envolvimento sexual com
Gabriela, reprovariam que esta relação viesse a resultar em casamento – “impossível sequer
pensar nisso, um absurdo”.
Ao comunicar aos leitores sobre o receio com que Nacib se descobre pensando no
matrimônio, o narrador põe a nu as clivagens étnico-raciais e de classe que imperam no seio
da burguesia, além dos limites de sua moral sexual, balizada pela axiologia judaico-cristã.
Com efeito, a amada é desprovida de todas as características apreciadas pela classe dominante
como elementos necessários para se configurar como uma “boa esposa” e mãe.
No âmbito das considerações de classe, Nacib observa o fato de Gabriela ser uma
cozinheira, isto é, alguém abaixo dele na pirâmide social, e de não ostentar sobrenome
compensatório – espécie de moeda de troca de que se valem famílias falidas em negociações
por casamentos não motivados por amor. No mercado em que se comercializam afetos súbitos
e escaladas sociais, as ausências de posses e/ou de nome relevante, se apresentam como
desqualificativos do matrimônio pretendido pelo sírio, uma vez que nada agregariam ao status
social de que ele já goza entre seus concidadãos. Seria um trunfo desperdiçado, por assim
dizer.
Noutro plano, agora pensando em torno às restrições étnico-raciais presentes no
posicionamento de Nacib, o fato de Gabriela ser mulata é também um impeditivo para que a
relação entre os dois seja reconhecida perante a sociedade ilheense. Os estigmas associados à
escravidão, que recaem sobre o modo como as elites leem a caracterização fenotípica de
Gabriela, são sem dúvida atualizados e potencializados por ela ter sido encontrada no
“mercado dos escravos”, espaço onde antes os cativos eram negociados. Ademais não custa
também lembrar que o momento histórico em que a narrativa se desenrola, o ano de 1925, é
ainda marcado pela vigência no Brasil das teorias raciais vinculadas ao moderno cientificismo
europeu, de ampla penetração do território nacional e no imaginário médio da população. O
posicionamento claudicante apresentado por Nacib, além de reverberar seus próprios
preconceitos, descortina também os ideais de branquitude e ocidentalização com os quais a
burguesia, irmanada ao projeto eurocêntrico de modernização do país, se identifica.
A virgindade – ou melhor, a falta dela – se constitui como o terceiro ponto de tensão
no que concerne à possibilidade de Gabriela vir a ser esposa de Nacib. A sociedade ilheense
está assentada em um modelo que postula um comportamento feminino caracterizado pela
subserviência e pelo recato, porque organizada sobre as bases do patriarcalismo em que o
corpo da mulher pertence antes ao homem do que a ela mesma, e do catolicismo, em que a
sua virgindade é alçada à condição de Honra. Gabriela, personagem dotada de um
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comportamento sexual livre de peias ou de dogmas, estabelece uma dissonância e uma ruptura
com a moral orientadora do padrão vigente, de maneira que não reproduz o ideal feminino
para o matrimônio.
O casamento se consuma, é verdade. Porém, não sem que medidas fossem antes
tomadas para, de um jeito ou de outro, tornar Gabriela mais palatável ao gosto da elite.
Excetuando-se a condição étnico-racial, vista como problemática por Nacib mas que restava
insolúvel, o sírio buscou regular a relação dentro dos parâmetros exigidos pela sociedade,
adequando-se à sua moral sexual e ensinando a agora noiva a se portar na condição de mulher
casada. O moralismo de fachada fica patente quando, mesmo todos sabendo e comentando do
envolvimento sexual entre os dois, é imposta a Gabriela a necessidade de dormir em casa
alheia até que o matrimônio seja, enfim, oficializado:

Desde que lhe falara em casamento, Nacib mandara Gabriela para a casa de dona
Arminda. Não ficava bem ela dormindo sob o mesmo teto que o noivo.
– Por quê? – perguntou Gabriela. – Importa não...
Importava, sim. Agora era sua noiva, seria sua esposa, todo respeito era pouco
(AMADO, 1972, p. 298-299).

Embora a situação descrita, por mais absurda que pareça, encontre respaldo no
conjunto de valores citadinos que definem o comportamento respeitoso do noivo em relação à
sua noiva, trata-se, tão somente, de uma estratégia adotada por Nacib para simular o respeito
preceituado aos olhos atentos da sociedade do que de uma firme adesão a ele. Isto porque a
escolha da casa de dona Arminda em detrimento da oferecida pelos tios do sírio, mais zelosa
do respeito necessário porque mais distante, possibilitava que à noite, quando todos já
dormissem, Gabriela saltasse o muro baixo que a separava de Nacib e continuasse a se deitar
com ele. Sob o anteparo das aparências, no secreto do por baixo dos panos – se panos
houvesse – a moral burguesa se dissolvia em noite de irrefreável prazer.
No que se refere aos aspectos concernentes à classe social, ainda que Gabriela tivesse
vindo da pobreza absoluta, ao casar-se com Nacib e agregar o sobrenome Saad ao seu Silva,
ela ascende automaticamente ao patamar ocupado pelo marido na pirâmide hierárquica da
sociedade ilheense – embora isso não implique em reconhecimento e aceitação imediatos.
Nesse sentido, precisa ser educada a comportar-se de maneira condizente com seu novo
estatuto – processo que vem a ser descrito por intermédio da metáfora do sapato:

Ela sorriu, arrancou os sapatos, começou a arrumar os pés descalços. Ele tomou-lhe
da mão, repreendeu:
– Não pode mais não, Bié...
65

– O quê?
– Andar sem sapatos. Agora você é uma senhora.
Assustou-se:
– Posso não? Andar descalça, de pé no chão?
– Pode não.
– E por quê?
– Você é uma senhora, de posses, de representação.
– Sou não, seu Nacib. Sou só Gabriela...
– Vou te educar – tomou-a nos braços, levou-a pra cama (AMADO, 1972, p. 300-
301).

Misto de prisão e desconforto, os sapatos apertam os pés de Gabriela, não


acostumados a espaços tão pequenos, tão contrários à cômoda liberdade do encontro direto e
reconfortante com o solo. Encaixada logo após o término da festa de casamento, a imagem
estabelece, por meio da metonímia-sinédoque, um espelhamento que antecipa o doloroso e
frustrante processo de adaptação da personagem às regras sociais vivenciadas pela alta e
média sociedade ilheense.
A sensação claustrofóbica motivada pelo sapato-casamento na personagem Gabriela
reverte uma imagem profundamente enraizada no imaginário ocidental, qual seja, a do
sapatinho de cristal que se encaixa perfeitamente no pé da Gata Borralheira, até então mantida
sob uma condição subalterna e degradante por sua madrasta. No conto-de-fadas, a cena
prenuncia o casamento entre Cinderela e o príncipe, ocasionando a ascensão social da ex-
cativa à condição de princesa, culminando a narrativa em um final feliz.
O contraponto se dá em duas direções: ao contrário da personagem eternizada por
Charles Perrault, Gabriela não é afetada pelos luxos de uma vida abastada, de modo que não
deseja ascender socialmente – o seu mundo é o do trabalho, lugar com o qual a Cinderela não
se identifica. Além disso, o casamento não se constitui em um happy end para a personagem
amadiana, uma vez que ela não se vincula às instituições e às normas burguesas. Gabriela é
imagem invertida da Gata Borralheira: apenas fora de um ambiente de elite e não tolhida pelas
regras impostas pelo casamento, a personagem realiza-se feliz.
Ao rasurar o desfecho da Gata Borralheira, o intento do narrador em Gabriela, cravo e
canela parece óbvio: demarcar que o casamento, na condição de símbolo máximo das
relações oficiais, se constitui muito mais como prisão do que como qualquer garantia de
felicidade para as mulheres – perspectiva sempre posta pelos contos-de-fadas e reduplicados
por romances românticos e novelas televisivas sob a forma de um “... e foram felizes para
sempre”.
Outra imagem antecipatória das limitações impostas a Gabriela em função de seu
casamento se relaciona a um presente dado por Nacib, ainda quando das dúvidas em relação a
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esposá-la ou não: um pássaro, símbolo popular de liberdade, em uma gaiola. Nesta situação, o
narrador constrói uma relação alegórica entre, de um lado, o pássaro e Gabriela, e, de outro, a
gaiola e as normas burguesas, de modo que se estabelece um paralelo entre o sofrimento
vivenciado pela ave e também aquele a ser experimentado pela personagem, uma vez que
motivados pelas barreiras levantadas contra ambos. Assim, por via da relação alegórica
estruturada naquele presente, o narrador prenuncia os desenvolvimentos ainda futuros: Nacib
oferece a Gabriela uma gaiola com um pássaro / Nacib propõe casamento a Gabriela; o
pássaro, antes experiência concreta de liberdade, agora preso / Gabriela, antes livre, agora
condicionada aos padrões burgueses por efeito de seu casamento; o pássaro triste / Gabriela
triste:

O pássaro se batia contra as grades, há quantos dias estaria preso? Muitos não eram,
com certeza, não dera tempo de acostumar-se. Quem se acostuma com viver preso?
Gostava de bichos, tomava-lhes amizade. Gatos, cachorros, mesmo galinhas. Tivera
um papagaio na roça, sabia falar. Morrera de fome, antes do tio. Passarinho preso
em gaiola não quisera jamais. Dava-lhe pena. Só não dissera pra não ofender seu
Nacib. Pensara lhe dar um presente, companhia pra casa, sofrê cantador. Canto tão
triste, seu Nacib tão triste! Não queria ofendê-lo, tomaria cuidado. Não queria
magoá-lo, diria que o pássaro tinha fugido.
Foi pro quintal, abriu a gaiola em frente à goiabeira. O gato dormia. Voou o sofrê,
num galho pousou, para ela cantou. Que trinado mais claro e mais alegre! Gabriela
sorriu (AMADO, 1972, p. 260-261).

Também o desfecho, que rompe com o tom crepuscular e restitui a liberdade em cena,
guarda uma relação análoga com os desdobramentos vivenciados por Gabriela em seu
casamento. Presa e condicionada a um modo de vida com o qual não possui qualquer
identificação, a personagem recusa-se – de forma mais instintiva do que como ação
consciente, mas nem por isso desprovida de potência – a migrar de sua condição heterotópica
para os posicionamentos social e moral hegemônicos que lhes são impostos:

Até quando Gabriela persistiria recusando-se à vida social, a conduzir-se como uma
senhora da sociedade de Ilhéus, como sua esposa? Afinal, ele não era um pobre
diabo qualquer, era alguém o sr. Nacib A. Saad, com crédito na praça, dono do
melhor bar da cidade, com dinheiro no Banco, amigo de toda gente importante,
secretário da Associação Comercial. Agora falavam em seu nome até para a diretoria
do Clube Progresso (AMADO, 1972, p. 320).

Cumpre acompanhar a sequência dos acontecimentos narrados no episódio “Dos


equívocos da senhora Saad”, em que dois espaços revestidos de simbolismos contrários
duelam: o circo, esta heterotopia por excelência, e o salão nobre da Intendência de Ilhéus,
lugar em que reverberam os posicionamentos e as regras dominantes, onde está programada
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uma conferência literária. O conflito se instaura pelos interesses opostos de Gabriela, que
deseja sinceramente reviver a alegria circense, e de Nacib que, se a bem da verdade não quer
ir à conferência, deve, por obrigação de classe, frequentá-la, sobretudo acompanhado de sua
esposa, ambos se fingindo interessados na análise de versos que nunca leram.
A imagem opositiva que se estabelece entre a conferência literária e o circo aponta
para a própria inadequação do casamento, mas não do amor, entre Nacib e Gabriela. A tensão
que ela vivencia, dividida entre a vontade, alicerçada na experiência de sua cultura, e a
obrigação solicitada pela cultura oficial; entre a identificação e a não identidade de hábitos e
desejos; entre, enfim, ser Gabriela ou ser a senhora Saad, é projetada pelo narrador nas
escolhas dos espaços popular ou oficial, ambos inseridos em um mesmo território geográfico,
a cidade de Ilhéus, mas conotativos de posicionamentos bem distintos. No circo, assim como
na vida pré-nupcial, a ausência daquelas tantas regras que caracterizam o matrimônio, como a
obrigação de conviver nos espaços burgueses, a exemplo daquele em que ocorre a conferência
literária. No espaço de diferença popular, projeta-se, então, um retorno à liberdade. Logo, não
causa estranheza a volta da metáfora dos sapatos: “No circo podia ir com os velhos sapatos
onde cabiam seus dedos esparramados. Na Intendência tinha de ser vestida de seda, de sapato
novo, apertado” (AMADO, 1972, p. 320). Liberdade em meio aos espaços populares; prisão
quando apartada deles.
Vencida pela inflexibilidade de Nacib, Gabriela, mal disfarçando o desconforto, entra
de braço dado a ele no salão da Intendência. O tempo passa, a conferência segue longa e
insuportável. Gabriela cochila, Nacib também: tudo é aparência e protocolo. Todos parecem
seguir os sábios ensinamentos que, no diálogo machadiano “Teoria do Medalhão”, Janjão
recebe de seu pai: em uma sociedade de máscaras, deve-se priorizar sobretudo o parecer. E,
nesse momento, ainda que de si para si e sem chegar a uma resposta, Gabriela pensa:

Se seu Nacib também não gostava, caía de sono, por que é que vinha? Que coisa
mais esquisita, por que é que vinha, pagava entrada, largava o bar, no circo não ia?
Entendia não... E se zangava, virava de costas, porque ela pedia pra não vir. Coisa
esquisita.
Palmas e palmas, arrastar de cadeiras, todo mundo andando para o tablado. Nacib a
levou. Apertavam a mão do homem, diziam-lhe palavras de gabação:
– Formidável! Maravilhoso! Que estro! Que talento!
Seu Nacib também:
– Como gostei...
Não tinha gostado, estava mentindo, ela sabia quando ele gostava. Dormira um
bocado, por que gabação? (AMADO, 1972, p. 324).

Mais uma vez valendo-se dos olhos de Gabriela – até mesmo porque os de Nacib
encontravam-se fechados –, o narrador desmascara as aparências e os interesses em que se
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sustenta a sociabilidade burguesa, revelando agora uma outra faceta: a bajulação. O sírio, que
anteriormente havia ensinado à sua esposa que a conferência literária é tanto melhor na
medida em que menos se entende o que nela é dito, segue à risca o papel determinado por sua
posição, aplaudindo na hora em que se deve aplaudir; elogiando na hora em que se deve
elogiar. O seu comportamento, absolutamente incompreensível para Gabriela porque falso,
contrasta com a rede de relações organizadoras do mundo dela, constituído sobre as bases do
afeto e das relações desinteressadas.
Gabriela também observa o comportamento daqueles homens, “moços bonitos” que,
noutros espaços e desacompanhados de suas esposas, lhe diziam piadas e gracejos, faziam-se
íntimos. Quisesse, deitaria com eles porque dona de seu corpo e senhora de seu desejo, livre
que sempre fora para gozar e fazer gozar. No entanto, agora casada, experimentava as
privações que nunca conhecera. Era “mulher de Nacib”, e o triste sentido de posse do corpo
alheio que esta expressão acarreta se traduzia no cerceamento da vazão de seu desejo. O
marido, ciumento e cioso de sua honra, a reprimia, impedindo-a de “[...] rir debochada, como
antes, para cada freguês do bar encontrado por acaso” (AMADO, 1972, p. 320). Censurava
até o mais mínimo acessório, sensualidade singela, como a rosa por trás da orelha. Tudo –
corpo, desejo e comportamento social – precisava agora se encaixar em padrões que Gabriela
não entendia – e não os entendia porque em tudo dessemelhantes daqueles em que cultivou
sua subjetividade.
A potência rasurante e desconstrutora advinda do posicionamento heterotópico, antes
represada pela Senhora Saad, irrompe em Gabriela logo após o término da conferência.
Escondida, após se despedir de Nacib, ela toma o caminho do circo, onde se reencontra
consigo mesma, ri e se emociona: está novamente entre os seus. De repente, o hálito quente de
Tonico Bastos, “moço bonito a valer”, também ele no circo, também ele sentado no
galinheiro, na fila por detrás da dela. O desfecho da cena apenas sugere:

Tão depressa acabava, tão gostoso que era [o circo]!


– Vou lhe levar...
Na porta [Gabriela] decidiu, era um finório o seu Tonico:
– Vamos pelo Unhão, damos a volta no morro para não passar próximo ao bar.
Andavam depressa. Mais adiante acabavam os postes, a iluminação. Seu Tonico
falava, a voz machucada, o mais bonito dos moços (AMADO, 1972, p. 325).

Ao fim e ao cabo, o circo, este espaço outro, vence a conferência, reduto dos valores
dominantes; Gabriela se sobrepõe à Senhora Saad, reverte as regras morais e de conduta que
69

lhe são impostas por uma classe dominante com a qual não se identifica. A heterotopia
cumpre a sua função – não muda a sociedade em derredor, mas também não capitula a ela.
O projeto de desconstrução dos valores burgueses prossegue de forma mais explícita
em A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, porém sob outra perspectiva. Se, em
Gabriela, Jorge Amado empreendeu um movimento de fora para dentro, deslocando
posicionamentos heterotópicos para o centro da burguesia de maneira a desmascarar os tipos
de relação que sustentam o seu mundo; nesta nova narrativa, o autor toma a direção oposta,
movendo o protagonista de dentro para fora do sistema, com o que encena rupturas.
O encaminhamento dado à estória de Quincas, diferentemente daquele proposto em
Gabriela, em que os espaços articuladores de diferenças só se apresentam por intermédio da
personagem, coloca em cena o universo da Ladeira do Tabuão e do Pelourinho, ambientes
povoados pelas margens sociais, além das culturas popular e negra como lugares
heterotópicos. Estes espaços vão ser aceitos por Joaquim Soares da Cunha, pequeno
funcionário público aposentado cuja identidade está alicerçada nos valores burgueses,
transformando-o no vagabundo Quincas Berro Dágua, que é, em si mesmo, a personificação
da liberdade – ou, pelo menos, de alguns traços componentes de seu amplo significado no
universo amadiano.
Neste cenário, novos atores são acionados como potências rasurantes dos valores
morais e da estrutura sociocultural adequados à experiência burguesa de mundo; figuras, aliás,
não apenas situadas às margens, mas efetiva e radicalmente marginais à lógica da ascensão
social e à moral sexual imperantes: os vagabundos e as prostitutas. A escrita amadiana destes
lugares sociais opera uma ressignificação do olhar depreciativo que lhes é comumente
dirigido pela ideologia constitutiva do modelo burguês capitalista, e que está enraizada no
senso comum destas sociedades.
A respeito da representação amadiana do vagabundo, não há nenhuma comunhão com
a perspectiva de realizá-la sob uma semântica pejorativa ou preconceituosa, desqualificando-a
porque existência contraproducente em termos de desenvolvimento material. Como a intenção
do autor é continuar combatendo o sistema hegemônico, eivado de limitações sociais e morais
com as quais não se identifica, o arquétipo do vagabundo vem a constituir-se como uma
experiência humana não tocada pelas estruturas do poder, com o que a ficção o reveste de um
forte posicionamento contra-dominante. Nesse sentido, de acordo com Carlos Eduardo
Meneghetti Scholles (2007, p. 660):
70

[...] o vagabundo é, acima de tudo, a personificação de uma força transformadora.


Ao mesmo tempo em que põe em questionamento diversos paradigmas que apenas
ele, na condição de alheamento a quase tudo ao seu redor, pode proporcionar,
também tem o poder de erigir novos parâmetros, de funcionar como agente criador
de novas ordens.

O vagabundo está para além das margens, situando-se, em verdade, fora das malhas
capitalistas e burguesas, uma vez que não realiza a produção de mais-valia e nem sequer se
comporta de acordo com os padrões morais hegemônicos. Desta forma, ainda de acordo com
Scholles (2007), encontra-se posicionado, ao menos no campo das representações literárias,
como uma figura apta a avaliar e julgar as relações sociais dominantes, sob uma perspectiva
mais privilegiada do que aquela em que se localiza o cidadão comum.
A construção da personagem Quincas Berro Dágua a partir do arquétipo do
vagabundo cumpre, de fato, não apenas a intenção em atualizar o engajamento autoral contra
as relações sociais hegemônicas, como também a de apontar, via positivação das redes
diferenciais de relacionamento estruturantes das heterotopias pelas quais ele transita e através
das quais é formado, para modelos alternativos de convívio social – a utopia por dentro da
heterotopia. Não causa espanto, portanto, que mais de um ano antes da primeira publicação de
A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, veiculada pela edição de junho de 1959 da
revista SENHOR, Jorge Amado tenha declarado, em entrevista publicada em 25 de janeiro de
1958 pelo Jornal do Brasil, que “[...] só os vagabundos são livres”.
É necessário prestar alguma atenção a esta fala do autor, uma vez que imersa no
contexto em que o universo ficcional de Amado migra da utopia à heterotopia, revelando,
dessa maneira, a rotação de olhar empreendida pelo romancista. Ela sugere uma realidade
posteriormente confirmada pelos desdobramentos assumidos por sua ficção a partir de 1958,
qual seja, a modificação no que se refere às experiências possíveis de liberdade.
A figura do vagabundo era visualizada como desprovida de qualquer potência
contestadora das bases sociais e, de certo modo, configurava a alienação – ainda que este
arquétipo já tivesse sido utilizado no começo do século por Charles Chaplin, na figura de
Carlitos, que também denunciava o capitalismo, ou por Mark Twain, em Huckberry Finn.
Agora, modificada a percepção do romancista em torno da figura do vagabundo, é justamente
ele que pode simbolizar a experiência de ser livre. Não sem motivo, os anos seguintes àquela
declaração são repletos de representações baseadas neste arquétipo, como em A morte e a
morte de Quincas Berro Dágua, de 1959, e em Os pastores da noite, de 1964, textos que se
apresentam totalmente voltados para esta condição humana.
71

A leitura dos vagabundos amadianos como forças heterotópicas que se constituem não
apenas como dissonâncias das estruturas hegemônicas, mas inclusive como índices de
modelos alternativos nos quais se podem fundar novas sociabilidades, dialoga também com
outra declaração do autor a periódicos, desta vez em entrevista publicada pelo paulistano
Jornal da Tarde, de 4 de maio de 1974: “ Sou apenas atento a essas formas de vida,
procurando abrir uma perspectiva, já que eu acredito no futuro”.
Também a representação amadiana das prostitutas passa por um processo de
ressignificação quando enquadrada no contexto da transição da utopia para a heterotopia.
Veiculadas como retratos da degradação humana a que eram submetidas as mulheres
violentadas e deslegitimadas pelo patriarcado e pelo capitalismo burguês, as primeiras
representações construídas pelo autor visavam acusar a condição reificada e de mero objeto a
que as prostitutas eram colocadas pela sociedade dominante, compondo, desta maneira, um
forte quadro dos graus mais baixos de humilhação a que um ser humano pode ser sujeitado.
Nas narrativas heterotópicas, não há um arrefecimento do tom de denúncia das
opressões que levam à prostituição, como pode ser observado em Tereza Batista cansada de
guerra. Este tratamento, porém, já não basta, sendo suplementado por um outro foco: o que
passa a interessar nestas mulheres não é a fixação nas condições que as levaram a viver do
sexo ou o produto que elas vendem, e que vem a ser o próprio corpo coisificado, mas a
possibilidade de representá-las com poder de decisão.
Neste plano, as prostitutas que emergem nas narrativas heterotópicas são constituídas
de sua dimensão humana, posto que representadas sob os signos das paixões, do desejo e da
afetividade – sentimentos que elas nutrem não por seus clientes, mas por seus homens ou
amigos. Ativas em uma rede de relações que dispensa o casamento como símbolo de uma
união amorosa, ainda que muitas vezes sem qualquer amor, elas são motivadas por
sentimentos que podem ser externados sem interesses, sem hipocrisias, estabelecendo o
contraponto necessário aos relacionamentos de fachada do mundo burguês.
Além das relações afetivas que vivenciam de forma verdadeira, sem falsos
moralismos, as prostitutas são também colocadas como mulheres fortes, dotadas da
capacidade de resistir à violência – seja ela simbólica ou mesmo física – e à exclusão social
que a sociedade lhes direciona – paisagem em que a personagem Tereza Batista, do romance
Tereza Batista cansada de guerra, é exemplar em função de sua “greve do balaio fechado”.
Neste episódio, a personagem utiliza das armas que tem, a recusa do próprio corpo ao ofício
de fazer gozar, para, conjuntamente com todas as outras prostitutas da região do Pelourinho,
72

impedir a remoção da zona do meretrício para um local distante e insalubre. Como destaca
Jorge de Souza Araújo (2003, p. 117):

A obra de Jorge Amado vê a prostituta, primeiramente, como pessoa. Uma pessoa


intimamente frágil, mas forte, determinada, guerreira. [...] A prostituta em Jorge
Amado não será unicamente a vitimada pelo sistema, como as que ele canta
liricamente na trajetória das três irmãs em Terras do sem fim, mas igualmente aquela
que vence as adversidades, como Tereza Batista, ou os preconceitos, como Tieta.
Será também a alegre e festeira Quitéria do Olho Arregalado, ou a solidária e
indômita Maria Machadão, ou a brava e inconformista Jacinta Coroca.

Os vagabundos e as prostitutas, representados ambos sob estas novas significações, se


encontram pela primeira vez em A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, narrativa em
que eles compõem o conjunto de vivências diferenciais, orientadas pelos modelos sociais
outros, advindos das heterotopias onde Amado situa o povo.
A estória narrada se desenvolve principalmente na Ladeira do Tabuão, centro antigo
da cidade de Salvador, onde vivem e trabalham pequenos comerciantes, bem como a massa
popular de subempregados, negros e mestiços, além do meretrício. É neste espaço que
Quincas vive, em um pequeno quarto sem chave, mobiliado apenas de uma cama e de um
latão de querosene, que faz as vezes de assento, no terceiro andar de um cortiço.
Do ponto de vista de sua estrutura material, bem como de suas condições de higiene, a
localidade se apresenta completamente degradada devido ao grau de pobreza em que vivem
seus habitantes. Referindo-se a este mesmo espaço em seu “Guia das ruas e dos mistérios da
cidade do Salvador”, Jorge Amado (1970, p. 40) descreve: “Durante o dia a vida regurgita,
pobre mas ardente, nesta Ladeira suja e velha. Durante a noite parece um hospital de
alucinação, os ratos atravessam livremente de um lado para outro. Assim é a Ladeira do
Tabuão”.
Em A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, embora a degradação física do espaço
seja retratada, ela não se estabelece como extensiva às pessoas que lá habitam, de maneira que
elas são ficcionalizadas como um contraponto moral positivo à família pequeno-burguesa de
Quincas. Este traço da narrativa faz com que Lizir Arcanjo Alves (2008, p. 213) a identifique
como portadora de um “[...] caráter eminentemente antinaturalista. O espaço e o ambiente não
são tomados como determinantes de comportamentos ou de caracteres degenerados”. Há,
portanto, uma reversão do imaginário burguês instituído acerca de localizações pobres e
miseráveis, não raro identificadas deterministicamente como povoadas por indivíduos
desprovidos de qualquer moral e/ou de bons sentimentos.
73

A forma como o convívio dos habitantes do Tabuão e de suas cercanias vai contrastar
com o convívio dos familiares de Quincas passa pela arquitetura da estória montada pelo
narrador. De maneira semelhante àquele de Gabriela, cravo e canela, o narrador de A morte e
a morte de Quincas Berro Dágua também maneja a narrativa por dois ângulos, contrapondo-
os ironicamente. O primeiro é estruturado em torno da figura de Vanda, a filha ressentida com
a atitude do pai em migrar para as margens, deixando de lado a família. Ela, zelosa dos
padrões pequeno-burgueses, quer, na morte, recuperar a figura distinta do pai.
O núcleo pequeno burguês da trama agrega ainda as personagens Leonardo Barreto,
marido e funcionário público; tio Eduardo, um modesto comerciante de tecidos, e tia
Marocas, que parece ser a única a guardar ainda algum afeto pelo irmão, além da lembrança
sempre presente de Otacília, esposa de Joaquim e mãe de Vanda, falecida pouco tempo após
se perceber definitivamente abandonada pelo marido.
O segundo ponto de vista se organiza em função dos populares que, ao longo dos
últimos dez anos de vida de Quincas – o tempo exato de sua passagem pelo Tabuão –,
estiveram junto a ele, moradores das margens da Cidade Alta e Baixa. E “junto” aqui
significa não apenas dividir o mesmo espaço, mas compartilhar laços verdadeiros de amizade,
respeito e admiração mútua – “[...] não havia quem não gostasse dele na ladeira do Tabuão”
(AMADO, 1998, p. 10), faz questão de informar o narrador, tomando da palavra dita por um
dos habitantes do lugar.
Atritados pelo narrador por causa de sua intenção em contar dos eventos que se
sucederam à morte de Quincas, os dois pontos de vista são assim veiculados:

A família, apoiada por vizinhos e conhecidos, mantém-se intransigente na versão da


tranquila morte matinal, sem testemunhas, sem aparato, sem frase, acontecida quase
vinte horas antes daquela outra propalada e comentada morte na agonia da noite,
quando a lua se desfez sobre o mar e aconteceram mistérios na orla do cais da Bahia.
Presenciada, no entanto, por testemunhas idôneas, largamente falada nas ladeiras e
becos escusos, a frase final repetida de boca em boca representou, na opinião
daquela gente, mais que uma simples despedida do mundo, um testemunho
profético, mensagem de profundo conteúdo (como escreveria um jovem autor de
nosso tempo).
Tantas testemunhas idôneas, entre as quais Mestre Manuel e Quitéria do Olho
Arregalado, mulher de uma só palavra, e, apesar disso, há quem negue toda e
qualquer autenticidade daquela noite memorável, quando, em hora duvidosa e em
condições discutíveis, Quincas Berro Dágua mergulhou no mar da Bahia e viajou
para sempre, para nunca mais voltar. Assim é o mundo, povoado de céticos e
negativistas, amarrados, como bois na canga, à ordem e à lei, aos procedimentos
habituais, ao papel selado. Exibem eles, vitoriosamente, o atestado de óbito assinado
pelo médico quase ao meio-dia e com esse simples papel – só porque contém letras
impressas e estampilhas – tentam apagar as horas intensamente vividas por Quincas
Berro Dágua até sua partida, por livre e espontânea vontade, como declarou, em alto
e bom som, aos amigos e outras pessoas presentes (AMADO, 1998, p. 1-2, grifos
meus).
74

Contrapostas as versões, não restam dúvidas a respeito de qual delas o narrador


procura legitimar. Irmanado aos vagabundos e às prostitutas do Tabuão, bem como aos
populares de outras localizações que comungam da simpatia a Quincas, o narrador os
qualifica positivamente, insistindo na idoneidade de suas figuras e de seus relatos orais ou em
folhetos de cordel. Para tanto, utiliza-se da ironia no sentido de retirar qualquer autoridade dos
documentos apresentados pela família do morto para atestar a sua versão. Ao passo que
registra a respeitabilidade das figuras de Mestre Manuel e Quitéria do Olho Arregalado,
desqualifica o núcleo capitaneado por Vanda, designando-o por cético e negativista, além de
compará-lo a “bois na canga” – imagem sardônica que veicula a estreiteza de seus
comportamentos e visão de vida.
A arquitetura do enredo pode ser dividida em três arcos, o segundo se configurando
como transição. O primeiro arco narrativo comporta os períodos da manhã e da tarde, quando
os eventos ligados ao velório e aos preparativos para o enterro de Quincas são acompanhados
sob o olhar atento de Vanda que, justamente por se encontrar no Tabuão, mantém uma postura
arrogante, visando intimidar os moradores do lugar a não prestarem suas homenagens ao
falecido.
Ao final da tarde, chegam ao cortiço os quatro grandes amigos de Quincas: Curió,
Negro Pastinha, cabo Martim e Pé-de-Vento. Desolados com a perda e movidos por
sentimentos absolutamente sinceros, vencem o impacto inicial do posicionamento censor de
Vanda, que não os quer ali, e se alojam no quarto, embora em tímido silêncio, para velar o Rei
dos Vagabundos da Bahia. Tratam-se dos instantes de transição, dotados de uma atmosfera
tensa, pois a família e os amigos ocupam o mesmo espaço e não interagem, estabelecendo-se
um cordão de isolamento entre eles: quando os quatro amigos se aproximam do corpo de
Quincas, a família recua; quando Vanda recupera seu lugar ao lado do pai, é a vez dos amigos
se afastarem.
Aos poucos a noite cai e é hora de velar o caixão. Como o Tabuão não é visto como
um lugar para ser frequentado por “mulheres de família” nas horas de lua, Vanda e tia
Marocas se retiram; Leonardo, acusando cansaço, retira-se às 22:00 horas, com recomendação
expressa a tio Eduardo de que não saísse do lado do irmão – pedido que ele não segue. Assim,
por volta da meia-noite, com os membros da família todos ausentes, o terceiro arco narrativo
se apresenta irmanado ao ponto de vista dos amigos, que reintegram Quincas ao povo do
Tabuão e adjacências, conduzindo o falecido pelas ruas do Centro Antigo e do bairro do
75

Comércio em direção ao cais e ao saveiro de Mestre Manuel e Maria Clara, cumprindo a


tradição popular de comer e beber o morto.
Assim conduzidos os arcos que sustentam e desdobram a trama, o narrador pode
alternar os pontos de vista não só os colocando em paralelo um ao outro, mas chocando-os,
explorando inclusive as percepções que um grupo tem do outro. No clima nervoso do segundo
arco narrativo, que se instaura no velho quarto de Quincas motivado pela presença dos amigos
vagabundos e da família pequeno-burguesa, o narrador assume a perspectiva de Vanda para
desnudar os seus preconceitos de classe:

[...] Vanda sentia-se melhor. Expulsara para um canto do quarto os vagabundos,


impusera-lhes silêncio. Afinal, não lhe seria possível passar a noite ali. Nem ela nem
tia Marocas. Tivera uma vaga esperança, a começo: de que os indecentes amigos de
Quincas não demorassem, no velório não havia nem bebida nem comida. Não sabia
por que ainda estavam no quarto, não havia de ser por amizade ao morto, essa gente
não tem amizade a ninguém (AMADO, 1998, p. 68).

Os leitores, já devidamente informados acerca dos laços afetivos verdadeiros entre os


vagabundos, inclusive acompanhando a procura de uns pelos outros através das ruas da
cidade, pois somente juntos era possível superar a perda daquele descrito como “[...] o pai da
gente” (AMADO, 1998, p. 54), são conduzidos a rejeitar as opiniões de Vanda, de modo a
prestarem atenção ao seu discurso, cuja adjetivação ou imagem solicitada para perceber o
grupo de amigos evidencia o seu sentimento de superioridade em relação àquela gente.
Com a família já ausente da cena, o narrador passa a assumir integralmente a
perspectiva dos amigos vagabundos de Quincas, que não se furtam de julgar Vanda e
Leonardo, tia Marocas e tio Eduardo. Via discurso indireto livre, as vozes de Curió e Cabo
Martim, Pé-de-vento e Negro Pastinha são incorporadas à fala do narrador, como em uma
indicação de que este as endossa:

Os primeiros tragos despertaram nos quatro amigos um acentuado espírito crítico.


Aquela família de Quincas, tão metida a sebo, revelara-se mesquinha e avarenta.
Fizera tudo pela metade. Onde as cadeiras para as visitas sentarem? Onde as bebidas
e comidas habituais, mesmo em velórios pobres? Cabo Martim comparecera a muita
sentinela de defunto, nunca vira uma tão vazia de animação. Mesmo nas mais pobres
serviam pelo menos um cafezinho e um gole de cachaça. Quincas não merecia tal
tratamento. De que adiantava arrotar importância e deixar o morto naquela
humilhação, sem nada para oferecer aos amigos? (AMADO, 1998, p. 73-74).

Embora a sucessão de arcos narrativos seja um recurso importante no sentido do


rebaixamento da família pequeno-burguesa de Quincas, uma vez que a trama assume uma
perspectiva ascendente quando o morto é retornado aos seus de real direito, os amigos, o
76

narrador também se vale de outros recursos além da contraposição de pontos de vista. Assim,
movimenta-se em torno de Vanda, ora se afastando com o intuito de imprimir sua imagem no
inusitado contexto em que se encontra, ora se aproximando intimamente, de modo a capturar
seus pensamentos e suas lembranças – com o que se revelam os baixos sentimentos de
vergonha e de vingança, além do interesse financeiro na aposentadoria do pai:

Primeiro chamar o médico para o atestado de óbito. Depois vestir decentemente o


cadáver, transportá-lo para casa, enterrá-lo ao lado de Otacília, num enterro que não
fosse muito caro, pois os tempos andavam difíceis, mas que tampouco os deixasse
mal ante a vizinhança, os conhecidos, os colegas de Leonardo. Tia Marocas e Tio
Eduardo ajudariam. E pensando nisso, os olhos fitos na face sorridente de Quincas,
Vanda pensou no destino da aposentadoria do pai. Eles a herdariam ou receberiam
apenas o montepio? Talvez Leonardo soubesse... (AMADO, 1998, p. 15).

É sintomático que o narrador adote o recurso da onisciência quando se aproxima de


Vanda, ao passo que não é necessário fazê-lo em torno ao grupo de amigos, cujos
posicionamentos são vazados majoritariamente em discurso direto ou indireto livre.
A filha de Quincas não assume publicamente o seu alívio com a morte do pai, nem a
sua preocupação com o destino da aposentadoria ou, muito menos, a sua intenção em vingar-
se, fazendo ressurgir a identidade pequeno-burguesa de Joaquim Soares da Cunha –
motivações que são reveladas apenas na condição de pensamentos, uma vez que é necessário
manter, ao menos minimamente em face dos outros, o papel de filha tocada pelo passamento
do pai. Esta dissociação entre ser e parecer, localizada no âmbito do comportamento burguês,
não é reproduzida entre aqueles que habitam as margens populares em torno de Quincas,
profundamente sentidos pela perda do amigo. Como eles aparentam ser o que de fato são, o
narrador não precisa adentrar suas subjetividades para expor as fraturas entre a máscara social
e as motivações interiores.
A trama se inicia no bairro burguês de Itapagipe, na casa de Vanda e Leonardo
Barreto, para onde um santeiro do Tabuão se dirige no intuito de comunicar o falecimento de
Quincas à filha e ao genro do Rei dos Vagabundos da Bahia. Localizada em um extremo da
Cidade Baixa e estruturada como um efetivo bairro residencial, a Península Itapagipana foi,
entre o final do século XIX e início do XX, uma região de classe burguesa. Encontrava-se,
naquela época, duplamente afastada da zona decadente e pobre compreendida pela Ladeira do
Tabuão e adjacências, como Pelourinho e a Baixa de Sapateiros e zona do comércio. A casa
onde moram Vanda e marido, embora alugada, é bem arrumada e confortável, imagem por
demais distante daquela Ladeira povoada pelas margens sociais – proletários e lúmpens,
vagabundos e prostitutas.
77

Os dois espaços também se distanciam um do outro quando observados pelo prisma


das relações humanas que eles concentram. Se comparadas aos verdadeiros laços de amizade
e de comunidade que organizam a vida na Ladeira do Tabuão, as vinculações afetivas e
familiares encenadas pelas personagens da zona itapagipana descortinam-se em
artificialismos, jogos de interesse e de aparência social, como se pode observar na
contraposição entre as citações abaixo:

Numerosos admiradores e amigos possuía Quincas Berro Dágua mas aqueles quatro
[Curió, Negro Pastinha, cabo Martim e Pé-de-Vento] eram os inseparáveis. Durante
anos e anos haviam-se encontrado todos os dias, haviam estado juntos todas as
noites, com ou sem dinheiro, fartos de bem comer ou morrendo de fome, dividindo a
bebida, juntos na alegria e na tristeza. Curió somente agora percebia como eram
ligados entre si, a morte de Quincas parecia-lhe uma amputação, como se lhe
houvessem roubado um braço, uma perna, como se lhe tivessem arrancado um olho.
Aquele olho do coração do qual fala a mãe-de-santo Senhora, dona de toda a
sabedoria. Juntos, pensou Curió, deviam chegar ante o corpo de Quincas (AMADO,
1998, p. 51-52).

Quando finalmente, naquela manhã, um santeiro estabelecido na ladeira do Tabuão


chegou aflito à pequena porém bem arrumada casa da família Barreto e comunicou à
filha Vanda e ao genro Leonardo estar Quincas definitivamente espichado, morto em
sua pocilga miserável, foi um suspiro de alívio que se elevou uníssono dos peitos
dos esposos. De agora em diante já não seria a memória do aposentado funcionário
da Mesa de Rendas Estadual perturbada e arrastada na lama pelos atos
inconsequentes do vagabundo em que ele se transformara no fim da vida. Chegara o
tempo do merecido descanso. Já poderiam falar livremente de Joaquim Soares da
Cunha, louvar-lhe a conduta de funcionário, de esposo e pai, de cidadão, apontar
suas virtudes às crianças como exemplo, ensiná-las a amar a memória do avô, sem
receio de qualquer perturbação (AMADO, 1998, p. 7).

Novamente, assim como já o fizera em Gabriela, cravo e canela, Jorge Amado


conflita sociabilidades populares com a da burguesia, de modo a constituir as primeiras como
efetivas heterotopias em relação à segunda. Isentas do culto ao dinheiro ou das limitações
provenientes das máscaras sociais a serem assumidas, as margens populares são
ficcionalizadas como o local em que o ser humano, tanto em sua dimensão individual quanto
em relação aos laços coletivos que estabelece, se configura como valor. Não é à toa que o
narrador faz com que o público leitor reconheça, em face da morte de Quincas Berro Dágua,
as diferentes reações ocorridas nos núcleos burguês e popular da trama. Assim, defronte ao
parente morto, Vanda, Leonardo e tio Eduardo são tomados pelo alívio, liberando-se do
sentimento de vergonha que os acompanhava. A morte de Quincas não provoca em sua
família dor ou pesar, mas uma espécie de tranquilidade, além de avivar preocupações
financeiras relacionadas às despesas do enterro, no qual se projeta gastar o mínimo possível, à
perspectiva de herança da aposentadoria (Vanda) ou aos prejuízos advindos de um dia inteiro
78

afastado da loja (tio Eduardo). De forma diferente sentiam as mulheres mais baratas dos
castelos mais pobres, prostitutas de muito trabalho e pouquíssimo lucro, que

[...] choravam como se houvessem perdido parente próximo e sentiam-se de súbito


desamparadas em sua miséria. Algumas somaram suas economias e resolveram
comprar as mais belas flores da Bahia para o morto. Quanto a Quitéria do Olho
Arregalado, cercada pela lacrimosa dedicação das companheiras de casa, seus gritos
cruzavam a ladeira de São Miguel, morriam no largo do Pelourinho, eram de cortar
o coração. Só encontrou consolo na bebida, exaltando, entre goles e soluços, a
memória daquele inesquecível amante, o mais terno e louco, o mais alegre e sábio.
[...].
Várias mulheres decidiram não buscar nem receber homem naquela noite, estavam
de luto. Como se fosse quinta ou sexta-feira santa (AMADO, 1998, p. 46-48).

O conflito entre as sociabilidades decorre em função da morte e dos encaminhamentos


para o enterro de Quincas. Falecido aos sessenta anos, dez após se ter tornado o Rei dos
Vagabundos da Bahia, a personagem funciona como uma espécie de pedra-de-toque através
da qual são aferidos os posicionamentos do núcleo familiar burguês e dos amigos, de maneira
a evidenciar o teor de autenticidade ou de falsidade presente em suas relações. Assim é que o
narrador faz saber que Joaquim, enfastiado com as regras e as limitações impostas pelo modo
de vida pequeno-burguês e pela cultura ocidental, rompe com este mundo, dirigindo-se para
além das periferias do sistema dominante, fazendo-se, em um plano, vagabundo, e, noutro,
também integrado à cultura afro-baiana.
Sob esta nova condição, passa a ser motivo de vergonha de sua família, sempre zelosa
de uma imagem social construída como “imaculada” – mesmo que isso implique em matar
simbolicamente o distinto Joaquim por intermédio do silêncio lutuoso lhe dedicado.
Neste cenário de profundo ressentimento, uma vez morto Quincas, Vanda vislumbra a
possibilidade de reintegrá-lo à família através de um sepultamento coerente com a sua classe.
Nunca mais a foto de Quincas bêbado ou preso, estampada nos jornais, com matérias e
detalhes que maculassem a respeitabilidade da família burguesa e da moral cristã defendidas
pela filha:

A morte apaga, com sua mão de ausência, as manchas do passado e a memória do


morto fulge como diamante. Essa a tese da família, aplaudida por vizinhos e amigos.
Segundo eles, Quincas Berro Dágua, ao morrer voltara a ser o antigo e respeitável
Joaquim Soares da Cunha, de boa família, exemplar funcionário da Mesa de Rendas
Estadual, de passo medido, barba escanhoada, paletó negro de alpaca, pasta sob o
braço, ouvido com respeito pelos vizinhos, opinando sobre o tempo e a política,
jamais visto num botequim, de cachaça caseira e comedida. Em realidade, num
esforço digno de todos os aplausos, a família conseguira que assim brilhasse, sem
jaça, a memória de Quincas desde alguns anos, ao decretá-lo morto para a sociedade.
Infelizmente, de quando em vez, algum vizinho, um colega qualquer de Leonardo,
amiga faladeira de Vanda (a filha envergonhada), encontrava Quincas ou dele sabia
79

por intermédio de terceiros. Era como se um morto se levantasse do túmulo para


macular a própria memória: estendido bêbedo, ao sol, em plena manhã alta, nas
imediações da rampa do Mercado ou sujo e maltrapilho, curvado sobre cartas
sebentas no átrio da igreja do Pilar ou ainda cantando em voz rouquenha na ladeira
de São Miguel, abraçado a negras e mulatas de má vida. Um horror! (AMADO,
1998, p. 6-7).

Quincas versus Joaquim. No confronto entre estas duas identidades pessoais, o


conflito entre dois coletivos situados em espacialidades organizadas a partir de visões de
mundo divergentes: a realidade do Tabuão versus os posicionamentos pequeno-burgueses da
sociedade dominante. Anuncia-se, deste modo, o embate entre a liberdade de ser como se
deseja – uma existência desprovida do sentimento judaico-cristão de culpa e do culto
capitalista/burguês ao dinheiro, constituindo-se mediada pela alegria e pelos laços afetivos
sinceros e desinteressados – e os aprisionamentos do ser advindos dos modelos socioculturais
rejeitados pela personagem.
Para entender e explorar um tanto melhor este ponto de tensão, é importante contrapor
as descrições feitas pelo narrador tanto de Joaquim Soares da Cunha quanto de Quincas. O
primeiro se identificava como pequeno-burguês de sexo, copo e horários regrados à moda
conjugal; funcionário público, homem murcho, arqueado em face da esposa e da filha, “[...]
aquele bom, tímido e obediente esposo e pai: bastava levantar a voz e fechar o rosto para tê-lo
cordato e conciliador” (AMADO, 1998, p. 32).
O narrador evidencia que Vanda tinha dificuldades de lembrar o pai em casa, tal era a
sua figura apagada/ausente. Em verdade, ele só passa mesmo a figurar na vida da família
quando incomoda pela sua ruptura com os padrões estabelecidos; apenas a partir do momento
em que, transformado em Quincas Berro Dágua, aparecem “cabeludas” estórias no cotidiano
da cidade a seu respeito.
Quincas envergonha Vanda, pois facilmente sepulta a imagem idealizada de respeito e
decência construída a tanto esforço e a tantas regras por ela em face do meio em que vivia.
Assim, quando a filha viu o corpo do pai vestido, comportado e bem-posto tal qual o de
Joaquim, sentiu-se em paz.
Submetido ao meio, à esposa e à filha, reproduções (e reprodutoras) disciplinadas das
regras sociais dominantes da sociedade, Joaquim Soares da Cunha vive em uma prisão:
limitados o alcance do riso, da alegria e da liberdade, resta-lhe uma apenas inquietação, já
quase esmaecida, de como seria rir, de como seria a alegria, de como seria a liberdade. Uma
pequena chama que, segundo a irmã Marocas, sempre o acompanhou, transbordando, enfim,
ante o rigor e a mandonice de Otacília. Assim, ela lembra à sobrinha diante do cadáver do pai:
80

“E tua mãe, minha querida, era um bocado mandona. Um dia ele arribou. Me disse que queria
ser livre como um passarinho. A verdade é que ele tinha graça” (AMADO, 1998, p. 26).
Se, por um lado, Vanda e Otacília são reproduções dos modelos sociais e morais
hegemônicos, o vagabundo Quincas se constitui como a potência do diferente que emerge em
cena. A força inerente às heterotopias é absoluta nele. O corpo antes docilizado pelas
instituições-prisões burguesas, recusa-as e torna-se outro. A medíocre existência do
funcionário público Joaquim Soares da Cunha apaga-se ante a afronta, dita com gosto, à
esposa e à filha – “jararacas”, ambas. Joaquim Soares da Cunha morre, Quincas nasce.
Como Quincas, já não há as limitações de horário, de corpo, de bebida e de riso e
desejo. Já não há a vida direcionada à promoção no ambiente de trabalho ou à aquisição de
uma casa própria, às contas a pagar e às roupas adequadas à ocasião. Na condição de
vagabundo, morando na Ladeira do Tabuão, a vida se dirige para a própria vida, no sentido de
ser experenciada em seus múltiplos prazeres e em suas específicas potencialidades, sempre
acompanhado de amigos e amigas, em plena convivência de solidariedade. As horas noturnas,
o trabalho à margem do sistema de produção capitalista, sem a perspectiva de acúmulo de
capital, o sexo desprovido de culpas, o riso alto e sem freios, os vínculos reais de integração
comunitária, os laços humanos verdadeiros de amor e de sua mais forte variante, a amizade,
se realizam nas margens ficcionalizadas por Amado.
Neste quadro, o riso vem a ser a imagem máxima da ruptura, é ele que divide o antes e
o depois, que separa a vida enfastiada e rotineira de Joaquim da vida alegre e dinâmica de
Quincas. É o riso, esta rasura, que separa a continuidade do mesmo da diferença. Não é à toa
que mesmo vestido tal como Joaquim, o defunto continua a ser Quincas pois o sorriso não se
apaga do seu rosto:

[Vanda] Viu o sorriso. Sorriso cínico, imoral, de quem se divertia. O sorriso não
havia mudado, contra ele nada tinham obtido os especialistas da funerária. [...]
Continuara aquele sorriso de Quincas Berro Dágua e, diante desse sorriso de mofa e
gozo, de que adiantavam sapatos novos [...], de que adiantavam roupa negra, camisa
alva, barba feita, cabelo engomado, mãos postas em oração? Porque Quincas ria
daquilo tudo, um riso que se ia ampliando, alargando, que aos poucos ressoava na
pocilga imunda (AMADO, 1998, p. 36).

O investimento amadiano da/na representação de liberdade em Quincas é tal que a


personagem subverte os próprios limites da vida. Afinal, uma vez recusado o viver ao lado da
família, por que aceitaria a morte de acordo com o modelo que rejeitou? Por que se permitiria
ser novamente domesticado, funcionário público integrado à classe média, não mais o sujeito
liberto que decidira ser? Quincas, então, redivivo e fugidio, bêbado de braços dados aos
81

amigos igualmente embriagados, deixa para trás o velório, o enterro e as roupas dignamente
burguesas de Joaquim Soares da Cunha. Ao invés de cova rasa no chão, espaço finito e
mínimo como aquele que sofrera ao lado de Otacília e de Vanda, Quincas escolhe o mar como
“túmulo” – espaço vasto, dinâmico, exatamente como a narrativa projeta o que seria a
experiência da liberdade em Quincas. O mar, este espaço que liga morte e vida a uma só e
mesma heterotopia.
82

4 O CANDOMBLÉ COMO HETEROTOPIA

Ilumina o mirim Orunmilá


Na estrada que vem a Cota
É um Malê é um Maleme
Quem tem santo é quem entende

Quanto mais
Pra quem tem Ogum, missão e paz
Quanto mais
Pra quem tem ideais e os Orixás

Carlinhos Brown. Muito Obrigado, Axé.

Eu sou a flecha de Oxóssi


que voa e não cai
dá a volta no mundo, meu Pai.
[...] Eu sou a flecha pronta pra voar
Oxóssi, Oke Aro
voando pro mundo, espalhando o amor

André Abujamra. Tem luz na cauda da flecha.

As recentes publicações de Gildeci de Oliveira Leite (2008, 2012 e 2013), pesquisador


das tramas arquitetadas por Jorge Amado em suas intersecções com as narrativas simbólicas
estruturantes da religiosidade afro-baiana, demonstram que o aproveitamento literário do
Candomblé pelo romancista se configura como algo muito maior do que a simples construção
de uma paisagem sem sentido, apenas dotada de certo poder de encantamento e fascínio por
causa de um suposto matiz exótico ou fantástico. O tratamento amadiano conferido às
representações ficcionais do povo-de-Axé não reproduz o olhar de um observador situado do
lado de fora da comunidade ou de alguém que a frequenta na condição de um visitante
ocasional, decerto deslumbrado com a beleza das festas e com o gosto das comidas, mas
incapaz de compreender a miríade de significados presentes em cada passo de dança, em cada
toque de atabaque, em cada palavra cantada.
Ainda que se considerasse descrente de qualquer noção transcendente do Sagrado,
como reiterado em diversas entrevistas, Amado foi alguém de dentro do Candomblé. Isto
implica reconhecê-lo como partícipe não apenas do cotidiano daqueles que tratava por
“irmãos-de-santo”, como também das regras sociais, dos valores culturais profundos e da
intricada rede de narrações mitológicas que conforma a peculiar visão/experiência de mundo
constitutiva dos homens e das mulheres intimamente relacionados ao Axé. Não à toa, este
conjunto de conteúdos alicerça parte significativa de sua produção ficcional.
83

Neste capítulo e também no próximo, quero confrontar a tese geral que orienta esta
investigação, qual seja, a de que a obra de Jorge Amado é toda ela uma busca por experiências
possíveis de liberdade, com as considerações elencadas no parágrafo anterior. Assim,
pretendo verificar a seguinte hipótese: a representação das relações sociais e simbólicas
provenientes da realidade cultural/religiosa afro-baiana se constitui como princípio
fundamental na montagem de parte do significado que liberdade conota no todo da produção
ficcional amadiana.

4.1 DE COMO AMADO SENTE O CANDOMBLÉ

Há duas formas básicas pelas quais Jorge Amado falava de si próprio quando
entrevistado a respeito de sua relação e de seu envolvimento com o Candomblé. Definia-se
igualmente como um materialista, alguém desprovido de qualquer sentimento religioso ou de
crença no transcendente, e como um Obá de Xangô no Ilê Axé Opô Afonjá, um dos mais
tradicionais Terreiros do Brasil14. Tais posicionamentos, um tanto conflitantes quando
assumidos por uma mesma pessoa, parecem apontar para uma absoluta contradição: como ser
um e outro se, por lógica, a primeira identificação, caso efetivamente verdadeira, tenderia a
excluir a segunda?
Esta é mesmo uma pergunta recorrente no conjunto de entrevistas realizadas com o
romancista entre as décadas de 1960 e 1990, quando se intensifica sua abordagem ficcional
das tradições religiosas/culturais afro-baianas, inclusive como matrizes da própria ordem de
valores das narrativas. Por outro lado, esta é também uma época em que cresce um interesse
da sociedade em geral nesta descoberta do outro, o que igualmente motiva as perguntas dos
entrevistadores – muito embora, em geral, isto se dê sob a feição de um fetiche, no qual a
alteridade afro-brasileira é o produto da moda a ser consumido, e a partir de um tratamento
que não vai além de um flerte tímido com o exótico. A invariável resposta de Amado a tal

14
“Os obás de Xangô têm funções litúrgicas, principalmente no ciclo de festas dedicado a Xangô, mas também
as exercem em todas as festas e cerimônias por sua preeminência hierárquica. Os obás, como ministros de
Xangô, orixá da casa, e rei, têm ascendência sobre os ogãs, que são ministros dos outros orixás. São os obás,
pois, uma espécie de ogãs mais graduados. [...] No Ilê Axé Opô Afonjá, os obás somente são inferiores
hierarquicamente à ialorixá e à Iyá Kekerê, a mãe pequena do Axé e eventual substituta da ialorixá na sua
ausência”, afirma Ildásio Tavares (2005, p. 56-57), ele próprio um Obá de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá. Ainda
sobre este assunto, o antropólogo Vivaldo da Costa Lima (1966, p. 15), também ele um Obá, informa: “Os Obás-
da-direita – Abiodum, Aré, Arolu, Telá, Odofim e Canfanfô –, são os que possuem direito de ‘voz e voto’ no
grupo de que são o corpo executivo. Os Obás-da-esquerda possuem uma posição claramente inferior aos da
direita no que diz respeito à estrutura do grupo e sua representação. Têm estes Obás direito apenas ‘à voz’, isto é,
possuem no grupo uma função especificamente consultiva”. Jorge Amado era Otun Obá Arolu, isto é, o Obá
suplente, desde 1959. Com o falecimento do titular do cargo, Amado é consagrado Obá Arolu em 1961.
84

questionamento evoca uma fala de Pedro Archanjo, personagem de Tenda dos milagres: “meu
materialismo não me limita”.
Ao que parece, a forma pela qual Jorge Amado sempre responde a esta mesma e
reincidente questão não se configura apenas como uma frase de efeito. Antes, ela evidencia,
em uma situação extrema, o discurso que o romancista baiano produz como uma possibilidade
de tradução de sua mais íntima personalidade: alguém avesso aos sectarismos de qualquer
espécie, atitude identificada como limitante da experiência humana.
Ainda que materialista, sem “nem mesmo possuir o sentimento de ser ateu”, como
também costumava afirmar o autor, “[...] Jorge Amado deve ser visto como alguém ‘de
dentro’, como um representante da cultura negra [...]”, destaca Gildeci de Oliveira Leite
(2012, p. 235).
O romancista requeria este posicionamento para si próprio, uma vez que era enfático
em situar seu conhecimento sobre o Candomblé: “eu o tenho desde dentro”, pontua em
entrevista a Mariela Giraldo, publicada na edição de 13 de maio de 1984 do periódico
argentino El tiempo15. Noutro momento, desta vez em depoimento concedido em 1981 a
Valdomiro Santana (2009, p. 21), Amado confirma: “Não há cerimônia de candomblé que eu
não conheça. Estive dentro das camarinhas. Há alguns anos, quando foi feita a cabeça de
minha afilhada, fui chamado para acompanhar. Conheço tudo isso como as palmas de minhas
mãos [...]”.
É necessário, sem dúvidas, desconfiar das intenções por trás da imagem que Jorge
Amado visa criar para si próprio nestes depoimentos. Talvez seja possível visualizar razões
mercadológicas no que concerne à produção deste ethos, uma vez que o Candomblé, reduzido
a um tema, vendia bem durante as décadas de 1960 e 1970, inclusive como peça turística para
o exterior – e, em se tratando de um público estrangeiro, não é difícil imaginar o fascínio que
este Outro, significado como exótico, acarreta. Atento a estes dados, o romancista atrela a si
uma imagem capaz de o legitimar na condição de um escritor apto a representar o povo-de-
Axé, posto que seu íntimo.
Se é possível discutir supostas intenções, não o é em relação ao grau de adentramento
de Jorge Amado no Candomblé. Ou seja, há verdade na posição que o escritor assume ter
junto à hierarquia do povo-de-Axé. Como afirma Gildeci de Oliveira Leite (2012, p. 236),
“[...] ser obá de Xangô [...] é ser mais que simpatizante, é pertencer ao clero nagô da Bahia”.

15
“–¿Cómo adquirió el conocimiento de estas religiones?” “Este conocimiento lo tengo no desde afuera. Yo lo
tengo desde adentro”. (Tradução minha).
85

Não quero, com isto, questionar a adesão de Amado ao materialismo, o que vem a ser
uma atitude inócua e absolutamente leviana, ao menos no que concerne ao plano das reflexões
críticas. O argumento é outro: há, sem qualquer sombra de dúvida, uma espécie de elo afetivo,
construído a partir das relações entre ele e o povo-de-Axé, mantidas desde a década de 1920.
E este elo guarda uma importante vinculação existencial, condição em que as tradições
culturais/religiosas afro-baianas tocam o íntimo do romancista. Entender as razões pelas quais
este laço se estrutura, além de como o sujeito Jorge Amado procura significá-las, é uma chave
para ler a representação do Candomblé em sua produção ficcional.
Os primeiros contatos entre Jorge Amado e a religiosidade afro-baiana, ainda
desprovidos de maior interesse por parte do futuro escritor, acontecem em sua adolescência.
Em entrevista a J. C. Thomas para a estadunidense Publishers Weekly, de 23 de junho de
1975, Amado informa: “Meu pai me levou para ver meu primeiro candomblé quando tinha 14
anos, e eu venho participando desde então”16.
É apenas por volta de 1929, quando o escritor teria entre 16 e 17 anos e já fazia parte
da Academia dos Rebeldes, que, na companhia do amigo e etnólogo Edison Carneiro,
igualmente membro do grupo literário, e também do antropólogo Artur Ramos, então
professor da Faculdade de Medicina da Bahia, que se intensifica a relação com o Candomblé.
Inicialmente, esse processo se dá via defesa do direito às festas, àquela altura proibidas pelo
governo na intenção de embranquecer e ocidentalizar a cidade de Salvador, atitude em
sintonia com o processo modernizador instaurado no Brasil.
De fato, a participação de Jorge Amado entre aqueles que compunham a Academia
dos Rebeldes é fundamental no sentido de sua penetração na vida popular afro-baiana. Isto
porquê, de acordo com Ângelo Barroso Costa Soares (2005, p. 79), “os escritores e
intelectuais que formam esse grupo valorizam a cultura africana e afro-baiana, pondo em
debate questões que dizem respeito à comunidade negra da Bahia, violentamente
discriminada, vitimizada pelo preconceito racial”.
É neste ambiente intelectual engajado, de um lado pela solidariedade com os pobres e
de outro pelos estudos de sociologia e do ideário comunista, que Jorge Amado adquire uma
consciência em relação às violências sofridas pelo povo-de-Axé e a ele se irmana na luta
contra o racismo e também contra a intolerância religiosa – duas grandes linhas de sua
produção ficcional posterior e também de sua atuação como homem público. Estas são, aliás,
questões apontadas pelo próprio romancista a Alice Raillard (1990, p. 39):

16
“My father took me to see my first candomblé when I was 14, and I have been participating ever since”
(Tradução minha).
86

Literariamente, esta época [a adolescência] foi muito importante para mim, mas
ainda mais do ponto de vista humano pelo conhecimento do povo baiano que
adquiri. Conheci sua vida, sua cultura. Para meu trabalho de escritor, esses anos
foram fundamentais. Minha intimidade com a vida do povo tomou forma nesses
anos em que vivi muito livremente. [...] Foram os anos fundamentais para tudo o que
escrevi depois. Ainda hoje as linhas mestras do meu trabalho literário repousam
sobre estes anos de minha adolescência nas ruas da cidade da Bahia.

O relacionamento de Jorge Amado com as tradições socioculturais/religiosas afro-


baianas e populares é dimensionado, no plano ficcional, em uma perspectiva politicamente
engajada de recriação literária da realidade, o que acarreta não apenas a denúncia das suas
estruturas econômicas e sociais excludentes, mas também um posicionamento autoral
irmanado e integrado às margens periféricas ao capitalismo ocidental. Neste sentido, no que
se refere à ficcionalização do real sob a ótica da Bahia popular e negra, o romancista, em
entrevista a José Antonio, publicada pelo Diário do Povo, de 2 de fevereiro de 1980, é
elucidativo: “Eu não poderia então recriar a realidade baiana sem dar ao candomblé a
importância que ele tem na vida de nosso povo”.
O processo de reelaboração ficcional do Candomblé na condição matricial do ethos de
um povo tem uma primeira versão em Jubiabá, quarto romance amadiano, embora seja
representado desprovido de qualquer positividade, potencial de resistência ou transformação.
Em escritos não ficcionais, a relação afetiva com a Bahia negra e a abordagem do tema do
Candomblé são anteriores, datando do período em que foram publicados O país do carnaval,
Cacau e Suor. Em textos veiculados por Boletim de Ariel, periódico mensal publicado no Rio
de Janeiro em que o autor exerceu a crítica literária entre os anos de 1932 e 1936, já são
notáveis seu envolvimento pessoal com as tradições religiosas/culturais afro-baianas bem
como sua afeição por elas e pela temática negra.
O artigo “Coleção” é sintomático. Publicado por Amado no número de janeiro de
1933 deste periódico, alguns meses antes da publicação de Cacau e dois anos antes de
Jubiabá, o texto se caracteriza por ser francamente irônico e crítico em relação à literatura e
aos literatos daquela Salvador dos anos 1930, rebaixados em sua qualidade poética e/ou
novelística, além de denunciados em seus esquemas de favorecimento e de elogios mediante
pagamentos. Apesar desta descrição destruidora, no último parágrafo, Jorge Amado confessa
saudades da Bahia:

Apesar de tudo isso ou talvez por isso mesmo, de quando em vez me invade o
coração uma saudade doida de minha velha Bahia. Velha Bahia de Thomé de Souza,
de ruas mal calçadas, cheia de ladeiras e igrejas, cheirando a tradição e a mistério,
87

Bahia de comidas apimentadas, acarajé, efó, abará, Bahia que adora Nosso Senhor
Orixalá do Bomfim, o santo, que admira Ruy Barbosa, o orador, que teme Jubiabá, o
macumbeiro, minha saudosa Bahia misteriosa dos candomblés, das macumbas, das
penas de galinha preta com azeite de dendê dos pais-de-santo, do feitiço, da coisa
feita... (AMADO, 1933a, p. 91-92).

As imagens que Jorge Amado evoca como representativas da Cidade da Bahia,


daquela velha Salvador da qual sente falta, são quase todas associáveis à sua densa e profunda
face negra – informação que, para os leitores apenas dos romances amadianos, deve causar
alguma estranheza dado que este texto se situa temporalmente entre O país do carnaval e
Cacau, isso para não falar em Ruy Barbosa nº 2, romance escrito em 1932, mas não
publicado, que repetiria os esquemas interpretativos da realidade brasileira presente na
narrativa de estreia.
O pronome possesivo “minha” destaca a ligação entre o escritor e a Cidade da Bahia,
relação esta que é confirmada e ganha tons afetivos pelo sentimento de saudade que a
envolve. A sequência final de imagens relacionada à “saudosa” cidade, justamente o
encadeamento responsável por plasmar o sentimento condutor do texto na memória do leitor,
é quase toda composta por significados afro-baianos. Assim é que o escritor destaca o
mistério dos “candomblés” e das “macumbas”, das “penas de galinha preta com azeite de
dendê”, dos “pais-de-santo”, “do feitiço” e da “coisa feita” – elementos negativos e
conotativos da alienação política do povo em Suor e mesmo em Jubiabá, mas que aqui
movimentam de maneira positiva o vínculo afetivo que o ainda jovem Amado tem de sua
cidade. Com isso, já é possível notar a existência, decerto em estágio embrionário, daqueles
vínculos de afetividade e de identificação com o povo do Candomblé que sustentarão, a partir
dos anos 1960, parte significativa de sua produção literária.
Noutro plano, agora propriamente no exercício de resenhista, Jorge Amado saúda as
publicações de Arthur Ramos e Edison Carneiro por se voltarem a discutir o tema do negro e
dos Candomblés no Brasil. Em “Dois ensaístas”, por exemplo, texto veiculado no número de
junho de 1933, ele faz o elogio de Artur Ramos, inclusive designando-o como “herói” em face
da mediocridade científica baiana:

Homem de ciência que escreve boa prosa, [Ramos] tem continuado a obra de Nina
Rodrigues sobre a raça negra no Brasil. Na Bahia lhe falta tudo exceto o material
que desde a morte de Nina até o aparecimento de Arthur Ramos andou abandonado.
Mas os cientistas baianos fazem discursos ao “dois de julho” e os literatos escrevem
versos dedicados a dengosíssimas damas de duvidosa jerarquia. Olham para Arthur
Ramos, que sabe psicanálise, vai a macumbas e não escreve períodos quilométricos,
boquiabertos, sem compreender.
88

Como é que um docente da Faculdade perde tempo colecionando fetiches de negros,


estudando a religião e a comida deles, quando podia fazer discursos tão bonitos e
estudar os clássicos? (AMADO, 1933b, p. 225).

A ironia, presente no segundo parágrafo do fragmento transcrito, se direciona ao


ambiente científico e literário de Salvador que, apesar de situado em uma cidade dotada de
farto e singular material para pesquisa e recriação ficcional ou poética, ainda prefere a cópia e
a repetição dos modelos passados. A crítica formulada por Jorge Amado é também um
chamamento aos baianos para que se engajem na perspectiva da observação, do estudo e da
reelaboração literária comprometida com a sua realidade e com o seu tempo – compromisso
este que fazia parte dos princípios adotados pela Academia dos Rebeldes e que, em se
tratando da Cidade da Bahia, envolve necessariamente a discussão em torno da população
negra e dos Candomblés.
Novamente em o Boletim de Ariel, desta vez no número de dezembro de 1936, Jorge
Amado publica “O jovem feiticeiro”, farto elogio a Edison Carneiro a pretexto do lançamento
de Religiões Negras, estudo etnográfico acerca dos terreiros de Candomblé. Aqui, Amado
começa por sua habitual crítica ao ambiente literário e científico baiano, distinguindo, porém,
a “geração séria, essa de Edison Carneiro e minha. [...] Agora são os estudos sérios, os
romances, os trabalhos mesmo pouco literários num certo sentido” (AMADO, 1936, p. 68). A
feição séria a que o romancista alude continua a significar o espelhamento e a discussão da
realidade baiana, tanto do ponto de vista social e econômico, o que ele já vinha fazendo desde
Cacau, quanto do prisma cultural/religioso, que passa a fazer a partir de Jubiabá e Mar morto,
narrativa esta publicada no mesmo ano desta crítica – e não custa aqui relembrar que Edison
Carneiro também havia sido um membro da Academia dos Rebeldes. Outro é, na verdade, o
aspecto realmente interessante em “O jovem feiticeiro”. Remetendo-se de forma direta ao
livro de Edison Carneiro, Jorge Amado escreve:

Observações reunidas pelo autor, documentação notável, erros de outros corrigidos,


observações de outros reafirmadas, tudo isso numa síntese admirável, numa
sobriedade e justeza de estilo raras, num rigor científico absoluto, eis o que é
Religiões Negras. Início de uma série de estudos que será qualquer coisa de muito
sério. Livro de quem conhece o assunto não só por leitura , não só pelo que leu nos
outros, mas de quem conhece de contato direto. Ele é ogan, ele viveu e vive
naqueles meios e sei mesmo que prepara novo estudo (Negros Bantus), cheio de
revelações curiosíssimas. Nos estudos sobre negros no Brasil Religiões Africanas
(sic) tem um lugar especial. É além de tudo, um estudo feito por um homem da
mesma raça dos estudados. Edison Carneiro nesses estudos nada tem de diletante.
Com a raça africana da Bahia, ele sofreu, ele riu em grandes gargalhadas, ele dançou
nas macumbas, comeu comidas de estranhos nomes, amou. É um deles e assim esse
estudo, esse depoimento, ganha em força e em verdade. Não fala um estudioso das
89

Religiões negras. Fala um membro das religiões negras [...] (AMADO, 1936, p. 68-
69, grifos meus).

De acordo com Amado, a importância que Religiões Negras assume, no parco cenário
nacional de estudos afro-brasileiros de então, deriva tanto do rigor científico que marca o
trabalho de Edison Carneiro, visível em sua fundamentação teórica e em sua capacidade de
apontar equívocos anteriormente cometidos, quanto, tanto mais, do fato de esta ser uma
investigação conduzida “desde dentro” dos Terreiros.
O fato de o romancista baiano dar valor a esta nova metodologia de pesquisa, que
acresce por si só “força” e “verdade” ao estudo, denota uma valorização do ponto de vista
autoral integrado às tradições culturais/religiosas negras, o que não deixa de ser algo
significativo em se tratando do contexto da década de 1930, quando tais manifestações eram
ainda duramente reprimidas pelo Estado. Assim, saúda a possibilidade deste outro falar sobre
si próprio. A conjunção entre o ponto de vista autoral irmanado aos Candomblés e o método
científico redime o segundo de suas abordagens estigmatizantes e pouco conhecedoras da
verdade específica do povo-de-Axé – conhecimento que Edison Carneiro, na condição de
ogan, detém e pode traduzir em seu livro.
Ainda neste mesmo caminho, não custa nada lembrar que, se observada toda a
produção ficcional amadiana, o grande modelo de intelectual projetado é Pedro Archanjo, de
Tenda dos milagres. Etnólogo formado do lado de fora dos muros da Academia, Archanjo não
é apenas profundo conhecedor e partícipe da vida popular soteropolitana, vivendo em contato
direto com a “verdade do povo”, é também Oju oba, os olhos do Rei Xangô, na hierarquia do
Candomblé. Sendo assim, ele não apenas visualiza o seu objeto de estudo a partir de uma
posição distanciada, ele o vivencia integralmente na medida em que as tradições afro-baianas
são formadoras de sua experiência e de sua visão de mundo, assim como Edison Carneiro;
exatamente assim como iria se tornar Jorge Amado.
Ainda a respeito dos anos 1930, que viriam a ser recriados em seus mínimos detalhes
em Tenda dos milagres, Amado (1992, p. 71), em suas memórias, afirma: “[...] foi-me dado a
testemunhar a violência desmedida com que os poderes do Estado e da Igreja tentaram
aniquilar os valores culturais provenientes da África”. Em entrevista a Alice Raillard (1990, p.
37), o romancista também aborda esta mesma questão:

[...] era uma repressão das mais violentas, a toda hora a polícia invadia os terreiros
de candomblé, quebrava tudo, batia em todo mundo, prendia o pai ou a mãe-de-
santo, torturava, era uma luta terrível. A perseguição religiosa era imensa: era uma
90

forma de repressão contra toda a matriz negra de nossa cultura, contra todas as
expressões de cultura negra.

As violências cometidas contra o povo-de-Axé, seja nas festas de ruas e de largo ou


nos Terreiros ao longo das décadas de 1920 e 1930, marcam profundamente Jorge Amado.
Sem dúvida, é nesse período que o escritor começa a formular uma ideia do espaço religioso
africano-brasileiro como resistente aos padrões culturais hegemônicos, o que vem a desaguar,
anos mais tarde, na construção de uma experiência de liberdade – imaginário que primeiro se
tece a partir dos exemplos de resistência empreendidos por Iyalorixás e Babalorixás aos
desmandos policiais e da Igreja; depois, pela valorização dos hibridismos afro-católicos,
conotativos de uma efetiva abertura para o outro, inexistente, porém, na instituição cristã, e,
por último, pela própria dimensão profunda dos princípios e dos valores estruturantes do ethos
cultural/religioso afro-baiano17.
O processo de construção de um ideal de liberdade alimentado pelo Candomblé
acompanha a própria inserção e o adentramento de Amado na estrutura sagrada e hierárquica
dos Terreiros, nas cerimônias e nos rituais secretos – movimento de imersão que acarreta,
com o tempo, uma experiência mais completa do ethos afro-baiano e que vem se dar quando
ele volta a morar em Salvador. Com efeito, as narrativas amadianas mais densas no tocante à
representação das tradições religiosas/culturais negras coincidem com a consagração do
escritor como Otun Oba Arolu, em 1959, e, em 1961, com o falecimento do antigo titular,
como Oba Arolu18.
Em face da violência desmedida contra o povo-de-Axé, Jorge Amado não titubeou em
assumir uma posição de defesa e de luta a favor das tradições culturais/religiosas africano-
brasileiras. Aliás, de acordo com o romancista em entrevista a Raillard (1990), é justamente
por conta deste seu importante posicionamento que se podem explicar os títulos recebidos por
ele, ao longo de sua vida, em vários Terreiros de Candomblé.

17
Nessa construção processual, há um detalhe que talvez seja significativo. Deoscóredes Maximiliano dos
Santos, Mestre Didi Axipá, Alapini, narra: “[...] no final de 1937, o escritor e etnógrafo Edison Carneiro,
perseguido pelo Estado Novo, veio refugiar-se no terreiro [Ilê Axé Opô Afonjá], sob o asilo de Mãe Aninha.
Ficou em casa de Oxum, e Aninha encarregou Senhora de velar por ele e prestar-lhe assistência. Esse fato foi,
por muitos anos, conhecido apenas de Senhora, até que o próprio Edison Carneiro deu-lhe divulgação pública”
(SANTOS, 1994, p. 14). É possível que este fato, o Candomblé assumindo um posicionamento em defesa da
liberdade de um perseguido pelo Estado Novo – aliás, regime que prendeu e exilou o próprio Jorge Amado –
tenha contribuído para a visualização amadiana de liberdades possíveis nos espaços sagrados dos Terreiros.
18
Cabe informar que muito antes de ser consagrado como Oba Arolu, Jorge Amado já detinha títulos
importantes em outros Terreiros de Candomblé, como os de Ogan de Oxossi do Ilê Ogunjá, Terreiro do
Babalorixá Procópio, que vem a ser a sua primeira honraria, e Ogan de Iansã, no Terreiro de Joãozinho da
Gomeia.
91

A atuação de Amado em prol da população negra e de suas religiões foi mesmo vasta:
publicou textos, ficcionais e não ficcionais, articulou contatos, promoveu eventos, participou
da comissão de orientação do turismo na Bahia, e, atuando como Deputado Federal
Constituinte em 1946 pelo PCB-SP, propôs e conseguiu a aprovação da Lei de Liberdade
Religiosa, vigente ainda na atual Constituição, de 1988, no inciso 6º do artigo 5º – o que vem
a ser um grande motivo de orgulho, segundo o próprio escritor em suas memórias (AMADO,
1992). A esse respeito, o romancista baiano relembra:

Eu me envolvi muito nisto [na luta em defesa dos Candomblés]; Edison [Carneiro]
também estava muito envolvido na luta pela liberdade religiosa; foi uma luta
tumultuada e muito violenta. Tive a sorte, em [19]46, quando fui deputado da
Assembleia Constituinte, de poder fazer aprovar um artigo na Constituição que
garantia a liberdade religiosa no Brasil. Pois se desde a proclamação da República,
ao menos teoricamente, havia uma separação entre a Igreja e o Estado, o catolicismo
permaneceu como religião privilegiada, uma religião semi-oficial; todas as outras
eram malvistas. Foi somente depois de [19]46, a partir desta lei que eu fiz votar, que
houve uma garantia de igualdade e liberdade religiosa completa. Até então era a
violência, os candomblés eram incendiados, os objetos de culto destruídos, todo
mundo ia para a cadeia, um horror. Acho que os títulos que me atribuíram no
candomblé, o carinho de que desfruto são devidos a estes anos em que lutei ao lado
deles contra as perseguições, isto é, contra o racismo, contra todas as manifestações
de racismo, das mais violentas (AMADO apud RAILLARD, 1990, p. 38).

Noutro contexto, aqui já na condição de Otun Oba Arolu e sob as ordens de Xangô
transmitidas por Mãe Senhora, Oxum Muiwá, Jorge Amado recepciona os convidados do IV
Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, realizado pela UFBA em agosto de
1959, em uma festa pública no Ilê Axé Opô Afonjá, onde foi servido um amalá19. Em
discurso direcionado aos professores, pesquisadores e estudantes universitários brasileiros e
estrangeiros, reunidos no barracão de festas do Terreiro do São Gonçalo, Amado foge ao
lugar-comum dos discursos laudatórios e pacíficos. Registrada por Deoscóredes Maximiliano
dos Santos (1994, p. 25-26), Mestre Didi Axipá, Alapini, a fala de Amado se apresenta, a um
só tempo, como memória dos anos de violência, como ataque e como resistência:

Hoje nós vos recebemos como hóspedes e amigos, fraternalmente. Abrimos as


portas do nosso mistério à vossa curiosidade, que esperamos sã e compreensiva.

19
“Prato predileto do cardápio ritual do orixá Xangô, o amalá é preparado com quiabos cortados em rodelas bem
finas, temperadas com cebola, camarão seco e azeite de dendê. Adicionam-se ervas, tais como taioba, mostarda,
bredo, capeba e outros. É de preceito e tradição colocar 12 quiabos inteiros na gamela de madeira onde é servido
o amalá, guarnecendo-a com acaçá, sem folhas de bananeira. É assim recebido no peji de Xangô o seu prato
principal, condicionado ao lendário desse orixá guerreiro e justo, forte pelos seus princípios vitais de controle
dos elementos meteorológicos da natureza. [...] O amalá é servido com os rigores dos rituais dos terreiros de
candomblé. Ao som do adjá, as iabás levam a gamela em entrada solene ao peji, acompanhando os ritmos com
palmas e agitando o xerê. O dirigente da cerimônia oferece o amalá em honra a Xangô, devendo o alimento ficar
no santuário por um período de seis a 12 dias” (LODY, 2010, p. 100-101).
92

Mas, em nossa dolorida e trabalhada memória, sofrida de horrores, guardamos a


lembrança dos tempos de opressão, quando vossos ancestrais – nossos opressores
de então – quiseram roubar nossa riqueza maior, os bens de cultura que
possuíamos, para impor-nos outros amores impossíveis. Ainda há bem poucos anos,
eu vi as costas do pai Procópio, de sagrada memória, marcadas com as chicotadas de
uma polícia que não parecia compreender que no Brasil há liberdade de culto e que
cada um tem o direito de saudar os seus deuses. São tempos ainda próximos mas que
jamais voltarão, pois na sua volta não consentiremos. Com a mesma consciência
inflexível e invencível que os escravos de ontem souberam preservar a sua cultura
contra a opressão colonial, e souberam guardar para nós essa cultura, envolta em
sangue e heroísmo. Eis porque vos peço respeito, o respeito que se deve à grandeza
humana, à vitória do fraco sobre o forte, da liberdade sobre a opressão (Grifos
meus).

Este fragmento, situado mais ou menos no meio do discurso proferido, rompe com o
tom elogioso que vinha sendo construído nos parágrafos anteriores, destinados à saudação ao
Ilê Axé Opô Afonjá, à Mãe Senhora, aos Orixás, ao Candomblé e ao processo de mestiçagem
ocorrido no Brasil. Aproveitando-se da solenidade, o romancista baiano, identificado de todo
com a espacialidade em que se situava, dá vazão ao seu engajamento irmanado e integrado às
populações e religiões negras na medida em que fustiga os presentes com as armas da ironia,
da memória e da afirmação do ethos afro-baiano.
Este fragmento do discurso de recepção é montado em dois tempos. No primeiro,
situado no presente da escrita, Amado opera uma relação opositiva, que conota uma tensão
social ainda persistente, entre o “nós”, ou seja, o povo-de-Axé, e o “vós”, pesquisadores e
estudantes munidos de uma lógica ocidental; no segundo, trata de um passado nunca
esquecido: o orador retoma a memória da opressão em que “vossos ancestrais” escravizaram e
tentaram “impor-nos” uma outra cultura, qual seja, aquela oriunda da metrópole colonizadora
– não sem ironia descrita como um “amor impossível”.
No eixo radicado no presente, é sintomático que Amado se dirija ao interesse dos
convidados no Candomblé como “curiosidade”, que vem a ser um signo no mínimo ambíguo
uma vez que, se de fato se relaciona com toda e qualquer pesquisa verdadeiramente científica,
é muito mais associado a um interesse menor ou menos merecedor de esforço intelectual,
posto que situado no universo das trivialidades e das amenidades cotidianas.
A desconfiança que este orador engajado detém acerca dos convidados é algo
concreto. Em face da “curiosidade” da assistência, Amado espera que ela se configure como
“sã e compreensiva”. O verbo empregado, “esperar”, conjugado na primeira pessoa do plural
e apresentando transitividade direta, denota o sentido bem demarcado de “ter esperança”.
Assim, o povo-de-Axé, que fala por meio da voz autorizada de seu representante, tem
93

esperança acerca das boas intenções daqueles recepcionados no Terreiro para o amalá de
Xangô.
A rigor, se bem observado, o sentimento de esperança não se reporta a uma condição
que seja comum na realidade vivenciada cotidianamente, mas a um desejo de alteração da
ordem instituída – refere-se a algo inexistente, ausente ou incomum no dia-a-dia de quem
espera. Deste modo, é possível perceber que um determinado conteúdo não-dito opera
fortemente por sob o discurso enunciado. Amado conhece as posições acadêmicas tradicionais
da primeira metade do século XX no tocante a qualquer expressão cultural proveniente do
povo, no caso o negro, e às tradições culturais/religiosas afro-baianas, sabe dos preconceitos
que as organizam e as fundamentam, de maneira que se posiciona acusativo em face delas: se
há a esperança de que a “curiosidade” seja “sã e compreensiva” é porque, muito
habitualmente, o pensamento científico se mostrava “doentio”, no sentido de contaminado por
restrições raciais e culturais, e incapaz de uma apreensão positiva do povo-de-Axé.
Esta discussão se torna ainda mais significativa se for atentado o fato de que o público
era constituído também por pesquisadores e estudantes portugueses que, a despeito de sua
condição periférica na Europa, representam o continente por metonímia, espacialidade-berço
dos processos coloniais e neocoloniais sustentados pela universalização do cristianismo e
pelas teorias raciais – aliás, em 1959, Portugal ainda mantinha suas colônias em território
africano, de maneira que o eixo em que o discurso de Amado se reporta ao passado do Brasil
é, com efeito, presente se transposto para o contexto das populações africanas sob o jugo
português. A desconfiança, portanto, se justifica.
Já no eixo da reconstituição do passado, o orador atualiza a memória da opressão e das
violências cometidas contra o povo negro e os terreiros de Candomblé, mas também revigora
a lembrança da resistência à capitulação dos escravizados diante do Ocidente, que se expande
munido de crenças e teorias “universais” além de chicotes bem particulares.
Os dois tempos se entrecruzam naquele conflito implicitamente instaurado, “nós”
versus “vós”, uma vez que se denunciam serem os “vossos ancestrais – nossos opressores de
então”. Dada a sua desconfiança em relação ao público presente, composto por descendentes
de escravizadores e membros de instituições assentadas em concepções teóricas modernas,
eurocêntricas e racistas, o romancista baiano novamente aproxima as temporalidades de seu
discurso, desta vez para negar qualquer possibilidade de retorno à condição opressiva anterior.
Este dado funciona também como uma forma de assumir uma posição de ataque e de afronta
com o objetivo de intimidar aqueles vistos como potencialmente perigosos: “São tempos
ainda próximos mas que jamais voltarão, pois na sua volta não consentiremos”.
94

O trecho transcrito do discurso amadiano finaliza com o orador, agora em um


posicionamento discursivo menos agressivo, solicitando o respeito da assistência ao povo-de-
Axé. Novamente, assim como em relação à argumentação construída em torno da
“esperança”, se é necessário solicitar que haja respeito é porque este sentimento não opera de
forma efetiva no tratamento que o grupo identificado como “vós” dirige ao “nós” – este ligado
às imagens de “grandeza humana”, de “vitória”, de “fraco”, porém apenas do ponto de vista
bélico e de participação no poder social, e, enfim, de “liberdade”.
É em face desta paisagem de profunda relação existencial e ética entre o romancista
Jorge Amado e o Candomblé que Muniz Sodré, Oba Aressa do Ilê Axé Opô Afonjá, por
ocasião do I Simpósio Internacional de Estudos sobre Jorge Amado, organizado em torno das
comemorações dos 80 anos do escritor, afirmou: “Amado foi o único romancista brasileiro a
acolher e dar uma estrutura civilizacional aos orixás”, fala registrada por Cáceres Monteiro e
publicada em reportagens sobre o evento, lançadas entre os dias 18 e 24 de agosto de 1992, no
Jornal de Letras, Artes e Ideias, de Lisboa20. Alberto da Costa e Silva (2012, p. 193) tem
percepção semelhante a respeito da produção ficcional de Amado: “[...] pode-se dizer que a
África, ao mudar-se para o Brasil, se instalou nos romances de Jorge Amado”.
Uma vez ciente do panorama traçado aqui em torno dos vínculos entre Amado e as
tradições religiosas/culturais afro-baianas, é possível afirmar que

O envolvimento desse notável escritor com religiões negras da Bahia vem de sua
adolescência. Atualmente [1996], além de Ogan, ministro leigo de vários terreiros,
Jorge Amado é Obá Arolu, ministro de Xangô, do Axé Opô Afonjá. É inegável sua
atuação na defesa das religiões negras da Bahia, prestigiando-as, difundindo sua
beleza, entronizando em seu lugar devido as grandes figuras negras de nossa história
que não constam nos manuais oficiais e que somente agora começam a merecer
memórias com apoio interessado de televisões estrangeiras (TAVARES, 2009, p.
23).

Em uma visada retrospectiva em torno de sua produção literária, registrada na edição


de 23 de novembro de 1980 do periódico italiano Corriere della Sera, Jorge Amado resume a
Maurizio Chierici: “Lutei, na condição de um homem da Bahia, para que a liberdade religiosa

20
Cumpre informar que o texto efetivamente publicado por Muniz Sodré traz um conteúdo parecido, mas não
exatamente igual àquele registrado por Cáceres Monteiro. De acordo com Sodré (2000, p. 151): “É preciso
reconhecer, entretanto, que a obra de Jorge Amado é a primeira a acolher o vigor dos orixás na sociedade
brasileira”. Em todo caso, a afirmação colhida e publicada por Monteiro não resta invalidada uma vez que
podem ter ocorrido alterações do texto original da apresentação para aquele publicado ou, noutra possibilidade,
que o fragmento atribuído a Muniz Sodré tenha sido coletado em uma entrevista e não retirado diretamente de
sua apresentação no Simpósio.
95

não fosse sufocada e que os espíritos das crenças africanas pudessem consolar os corações dos
que dependem deles”21.
Acredito que, nesta fala, talvez mesmo sem o saber ou perceber, Jorge Amado também
comenta de si próprio. Embora Oba de Xangô, ele não o faz na condição de um homem
religioso, posto que materialista convicto sem nem mesmo o sentimento de ser ateu, mas
como um romancista que depende bastante dos Orixás, Inquices, Voduns, Caboclos e
Ancestrais, dos princípios e valores Deles oriundos, como alicerces de uma espacialidade
heterotópica configurada no Terreiro de Candomblé, de onde emana um ethos calcado na
diferença em relação ao Ocidente, no qual ele consegue visualizar e reconhecer liberdades
possíveis.
Ainda nesta mesma perspectiva, é importante recuperar uma fala de Jorge Amado ao
escritor e jornalista Guido Guerra, por ocasião de uma entrevista publicada na revista Fatos e
Fotos de 8 de abril de 1974. Quando perguntado se de fato acreditava no Candomblé, o
romancista baiano responde:

Como poderia apresentar sua verdade, seu segredo, sua íntima ressonância, se dele
soubesse apenas por ter assistido algumas cerimônias, sentado entre os visitantes,
por vezes armado apenas de curiosidade vã, quando não de preconceito? Se posso
falar de tudo isto sem mentir nem degradar, é porque tudo isto é parte intrínseca de
minha vida, de meu ser, de minha própria vontade. Não se trata de crer ou não crer
e, sim, de ser ou não ser. Essas coisas eu as trago dentro de mim, não as obtive, não
as comprei em nenhum mercado de sentimentos ou de conhecimentos. São minhas
de direito e, de algumas, eu sei mesmo antes de tê-las visto. Eu as trago dentro de
mim. (Grifos meus).

A inversão é clara: a pergunta a ser feita não diz respeito à crença ou não na
transcendência, isto é, na religião como uma forma de suprir aquelas velhas angústias em
torno do mistério da morte, da ausência de um sentido para a vida ou da pequenez humana
diante o universo. O encaminhamento correto da questão, ser ou não ser, deveria girar em
torno da identificação com o povo-de-Axé e do pertencimento ao Candomblé – aqui, não
necessariamente vivenciado a partir de uma concepção religiosa, mas, dos valores que regem
seus adeptos e que possibilitam uma experiência sociocultural heterotópica. Dito de outro
modo, são os princípios e os valores estruturantes da especificidade afro-baiana de uma visão
de mundo e de uma experiência individual e coletiva da realidade, organizados a partir da
cultura do Candomblé, que se configuram como parte intrínseca da vida de Jorge Amado.

21
“Mi sono battuto, come uomo di Bahia, affinché la libertá religiosa non fosse suffocata e gli spiritti delle
credenze africane possano consolare i cuori di chi si affida a loro” (Tradução minha).
96

Posta nesta perspectiva, a resposta de Jorge Amado a Guido Guerra não poderia ser
mais clara: o romancista efetivamente é do Candomblé.

4.2 DE COMO AMADO SITUA A HETEROTOPIA CANDOMBLÉ

A identificação existencial cada vez mais profunda de Jorge Amado junto ao povo-de-
Axé, fazendo-o integrado e partícipe do ethos das comunidades-terreiro, favorece, ao longo da
década de 1960, que o romancista promova figurações do Candomblé a partir de uma
perspectiva de dentro. Assim, as relações sociais e simbólicas estruturantes da religiosidade
afro-brasileira emergem como uma grande força nos textos, de modo que não se restringem
apenas a mover as personagens por entre os meandros de cada trama. Elas, de fato,
configuram as narrativas em função dos valores socioculturais que estruturam a especificidade
heterotópica de sua visão de mundo.
Apesar de a literatura amadiana estar inserida em uma territorialidade profundamente
marcada pela colonização promovida pelo Ocidente, o autor tece parte de sua ficção a partir
de outras matrizes: aquelas conformativas de um continuum civilizacional africano-brasileiro,
e que se apresentam, de forma especial, como constitutivas e estruturantes do Recôncavo
Baiano22.
É mesmo nessa linha que, em entrevista concedida a Gilberto Gil para o documentário
Tempo Rei (1996), Jorge Amado afirma:

[...] eu sempre digo que são igualmente importantes a influência ibérica, influência
branca, a influência indígena e a influência negra. Mas eu sempre digo também que
o nosso umbigo é a África. Que os valores talvez mais fundamentais da nossa
cultura, aqueles que marcam profundamente nossa cultura, vieram no barco dos
escravos. E eu acho que nós devemos ser orgulhosos desses barcos de escravos –
talvez, ainda mais do que das caravelas.

A metáfora do umbigo é algo recorrente em declarações do autor a respeito das


relações entre as culturas do continente africano e o Brasil, pensado a partir da realidade
baiana. Esta imagem é ainda mais presente naquelas entrevistas que ocorrem a partir da

22
Uso aqui um derivado do signo “civilização”, mas não em seu sentido francês, fixado ao longo dos séculos
XVIII e XIX, qual seja, o de designação de um povo “superior”, porque mais “evoluído”, em relação a uma
massa “atávica”, “primitiva” e “atrasada”, sempre identificada com as populações negro-africanas. Aqui,
“civilização” deve ser entendido como o conjunto de princípios e de valores éticos, morais, simbólicos,
culturais/religiosos, estéticos e linguísticos organizadores do ethos de um povo.
97

década de 1960, quando se percebe um crescente interesse de jornalistas em questionar o


autor acerca de suas relações com as tradições afro-baianas23.
Com esta metáfora, o escritor se posiciona na contramão da formação discursiva
ocidental. Ele desloca a Europa de sua condição supostamente central no processo histórico
de formação cultural do Brasil para focalizar a África como um efetivo elemento
galvanizador. Por outro lado, através da ligação umbilical estabelecida, o romancista alude e
atualiza aquela imagem-mito da Mãe África, que se apresenta nutrida de força contestadora
uma vez que ainda e sempre provedora dos elementos compositivos da singularidade e da
resistência do ethos africano-brasileiro24. Nesse sentido, em texto publicado no periódico
baiano A Tarde, em 19 de julho de 1983, é o próprio Jorge Amado quem afirma:

Os negros vieram da África para o Brasil na mais desgraçada das condições


humanas, a condição de escravos, mas lutaram em todos os momentos com
inexcedível valentia contra a escravidão [...] e com a mesma bravura lutaram pela
preservação dos bens de cultura que chegaram à nossa terra nos infames porões dos
navios negreiros. Os orixás foram bandeiras invencíveis dessa batalha e o são ainda
hoje na afirmação dos valores culturais que nós, brasileiros, herdamos dos escravos
africanos. Considero as casas de Candomblé centros fundamentais da cultura
nacional e vejo nas mães e pais-de-santo [...] mestres admiráveis, portadores da
infinita sabedoria do nosso povo (Grifos meus).

A ligação umbilical com a África se materializa nos Terreiros de Candomblé, espaços


heterotópicos capazes de restaurar, na margem oeste do Atlântico-sul, a territorialidade
africana antes desconfigurada pelo tráfico de escravizados negros e pela máquina colonial,
ambas as ações levadas a termo pelas metrópoles colonizadoras.
Cabe observar que os espaços responsáveis pela recriação das formas tradicionais
africanas de se relacionar com o Sagrado desempenham funções que vão além daquela de
prover sentidos ao espírito humano, integrando-o ao Cosmos, e de prover princípios que
regulem a vida social. Eles se revestem da capacidade de organizar um território de
identificação em comum, inclusive agregando grupos étnicos distintos, dotado da capacidade
de instaurar, nutrir e potencializar formas sistemáticas de resistência contra o sistema de

23
Em verdade, a primeira declaração de Amado neste sentido que pude observar data de 1958, tendo sido
veiculada na edição de 11 de agosto daquele ano pelo periódico baiano Sete Dias. Nesta ocasião, comentando
políticas entre Brasil, Angola, então ainda sob dominação colonial, e Portugal, Amado afirma: “Nosso
compromisso é com Angola e não com Portugal, por sentimentalismo. Principalmente nós baianos, tão ricos
quanto às coisas africanas, temos o umbigo na África”.
24
É importante situar que a utilização que Jorge Amado faz do signo “África” pode, sim, representar um
problema, vez que dá margem a uma imagem homogeneizada do continente. No entanto, em sua produção
ficcional, fica evidente que esta África não se constitui como uma referência mítica, ou seja, sem localização no
continente real. Pelo contrário, é da África negra das tradições culturais Banto, Yorubá e Ewe-Fon, principais
civilizações africanas aportadas na Bahia, de que Amado fala.
98

submissão e violência a que os povos negros foram sujeitos no contexto da diáspora. Assim,
as ações de proteger, renovar e expandir as especificidades das leituras de mundo e de ser
humano realizadas pelas culturas africanas guardam, de acordo com o antropólogo e
babalorixá Júlio Braga (2006, p. 45), “[...] um nítido sentimento de recuperação do elo
perdido com as comunidades de origem e, com isso, a formação de uma família capaz de
reforçar a identidade negra de quem a ela pertence pelos laços de iniciação religiosa ou por
qualquer outro elo de afinidade identitária”. Trata-se, com efeito, de não se deixar reduzir ao
mesmo do Ocidente nem de se portar como vencido diante de sua biopolítica, mas de resistir
na, pela e através da diferença constituída em torno dos egbé – a comunidade litúrgica
denominada Terreiro.
Assim, a alusão aos Ilê Axé opera como uma metonímia cujo significado é
direcionado para o patrimônio simbólico africano-brasileiro, que, de acordo com Muniz Sodré
(2002, p. 53), “[...] afirmou-se aqui como território político-mítico-religioso para a sua
transmissão e preservação”. Neste sentido, o egbé, ainda segundo Muniz Sodré (2002, p. 55),
corresponde a uma “[...] África ‘qualitativa’ que se faz presente, condensada,
reterritorializada”. Marco Aurélio Luz (2011, p. 79) detalha:

[...] a religião ocupa o lugar mais relevante no processo civilizatório e cultural negro.
Em relação ao processo civilizatório, a religião é fonte e guardiã dos valores
espirituais, de visão de mundo que proporciona e impulsiona a vontade de viver. A
religião negra é depositária dos profundos conhecimentos das leis e das forças que
regem o universo e de como bem utilizá-las, possibilitando a continuidade e a
expansão da vida. Em relação ao processo cultural, a religião é fonte e dinamizadora
de um ethos, indicadora de comportamentos, hábitos, enfim, de uma maneira negra
de ser. Ela estabelece e proporciona uma ética própria. Imprime formas de relações
sociais, estipulando maneiras próprias de organização e hierarquias, estimula a vida
comunal.

Ao focalizar os Terreiros de Candomblé na condição de “centros fundamentais da


cultura nacional”, Jorge Amado faz referência ao ethos responsável por configurar “uma
maneira negra de ser”, como coloca Marco Aurélio Luz na citação logo acima. Cabe, então,
perguntar como Amado concebe esta diferença. A resposta pode ser obtida de duas maneiras,
a principal delas correspondendo a uma investigação junto aos romances elaborados pelo
escritor – tarefa à qual destinei o próximo capítulo. A segunda possibilidade se traduz na
observação do discurso produzido por ele no ambiente extra-ficcional, isto é, em entrevistas,
que vem a ser o procedimento em destaque aqui. A intenção é verificar os aspectos pinçados
pelo autor como organizadores da diferença cultural negra em relação ao mundo ocidental.
99

Um primeiro traço configurador do ethos africano-brasileiro ressaltado por Jorge


Amado diz respeito à capacidade de as comunidade-terreiro apresentarem uma abertura ao
outro, visualizando as diferenças como complementaridades ao invés de antagonismos. É o
que se pode observar, por exemplo, na entrevista concedida à revista italiana 2ª Espresso, de
13 de junho de 1993. Ante as considerações do autor em torno dos hibridismos
culturais/religiosos afro-católicos, a entrevistadora Patrizia Giancotti, questiona: “O que
significaria para a Europa uma religiosidade deste tipo [o Candomblé]?”, ao que Amado
responde, “Em primeiro lugar, a tolerância religiosa por uma compreensão mais ampla do
sagrado”25.
Enquanto o Ocidente, segundo analisa Muniz Sodré (2002), só consegue conceber as
alteridades como uma diferença extrema, isto é, como uma exterioridade completa, a qual não
raro é encerrada em incompreensões e exotismo ou combatida e exterminada, a “[...] lição do
terreiro”, ele pontua, “é do convívio de diferenças sem a perda da perspectiva de fundo
comum” (SODRÉ, 2002, p. 65).
De acordo com Pierre Fatumbi Verger, em entrevista concedida a Gilberto Gil
disponível no documentário Tempo Rei (1996), o entendimento negro-africano do outro, na
diáspora preservado sob a guarda das comunidades-terreiro, se dá por um princípio de
complementaridade existencial. Isto porque o sistema cosmogônico que alicerça a
compreensão negra de mundo prioriza o múltiplo ao invés do Um, propiciando, desta
maneira, uma tendência ao diálogo com o plural. Neste sentido discorre também Muniz Sodré
(2002, p. 182):

A comunidade-terreiro tem exibido ao longo dos tempos um antídoto para essa


dificuldade visceral do Ocidente em face da aproximação real, territorial, das
diferenças. Não se trata de nenhuma comunidade fundada em “raça” ou em
“autenticidade nacional” (projeto que tem encantado desde românticos nostálgicos
até doutrinadores totalitários), mas da afirmação de um espaço de alacridade, de
jogo do Cosmos com o mundo. Através dele, os negros instauram ritmicamente
lugares de acerto entre os homens, de reversibilidade entre os entes, e assim expõem
a ambivalência de toda identidade (que o Ocidente quer, no entanto, estável,
universal, hegemônica).

Outro aspecto apontado por Jorge Amado se refere à dimensão festiva e alegre com a
qual a existência é significada segundo uma ótica negro-africana. Na edição de 13 de janeiro
de 1980 do jornal lisboeta Correio do povo, o romancista baiano afirma:

25
“Cosa significherebbe per l’Europa una religiosità di questo tipo?”. “Innanzi tutto la tolleranza religiosa per
una più ampia comprensione del sacro” (Tradução minha).
100

Objetam-se por vezes que o povo ri em meus livros, está sempre em festa. É
verdade, ele festeja. E isso está bem, penso, porque se ele não fizesse sequer sua
festa, mesmo nas piores condições, ele não poderia ter a esperança que guarda. Ele
faz música, ele dança... mesmo no tempo da escravidão.

De acordo com o pensamento do escritor acima transcrito, a capacidade de fazer a


festa é diretamente relacionada com, e mesmo razão principal para, a possibilidade de uma
esperança no futuro. À primeira vista, este parece um raciocínio um tanto quanto ingênuo ou
ilógico, uma vez que relaciona campos da experiência humana aparentemente desvinculados
entre si, o estado de espírito, aqui coletivizado, aberto à festividade e a aptidão para
sobreviver, resistir e atuar na sociedade de modo a crer no devir; ou seja, a condição psíquica
e o fluxo histórico. É preciso compreender, antes de tudo, a especificidade do universo
semântico em que o signo “festa” está inserido no discurso elaborado e defendido por Amado.
Não se trata daquela noção mais comum – um espaço vazio de relações sociais e afetivas mais
densas, em que o vácuo das palavras não ditas, embora gritadas, é preenchido pelo som alto
de uma música que vem acompanhada por uma performance de dança para balançar tristes
corpos em uma agônica ilusão de alegria; sensação, neste contexto, totalmente alheia ao fluxo
histórico, identificada apenas como frágil experiência momentânea de todos os prazeres.
Outra é a ordem de significação que sustenta o discurso amadiano. Nesse caso, festa
alude a uma disposição anímica que aponta para a dimensão lúdica e sagrada da existência,
quando regida pelo princípio da alegria, e ao jogo com o Cosmos. Muniz Sodré (2002), a fim
de evitar confusões com a alegria-mercadoria das sociedades ocidentais, entende o Ayó, a
alegria africano-brasileira, como alacridade. Segundo ele:

Álacre é, por exemplo, o instante em que o indivíduo, abrindo-se sinestesicamente


às coisas do mundo – o sol que nasce, a água corrente, o ritmo dos seres –, abole o
fluxo do tempo cronológico, deixando o seu corpo libertar-se de qualquer gravidade
para experimentar a sensação do presente. O real não emerge da temporalidade
abstrata criada pelo valor que rege o mundo do trabalho capitalista (guiado pela
expectativa de um gozo futuro). O real surge, ao contrário, de um tempo próprio
(diferente do cronológico), como na celebração festiva. No aqui e agora do mundo
sente-se, por instantes, a presença do real, isto é, da singularidade das coisas
(SODRÉ, 2002, p. 163).

As duas noções distinguidas de festa conduzem para experiências de mundo


diferentes, senão opostas. A primeira, totalmente relacionada à contemporaneidade ocidental,
fundada nas relações humanas reificadas e enraizada na vivência de uma interminável busca
do prazer e na experiência da alegria como mercadoria, aponta para situações derivadas do
modo de produção capitalista e mesmo indissociáveis do conjunto de valores deste sistema. A
101

segunda, vinculada à percepção de mundo advinda das matrizes culturais africanas


constitutivas da afro-baianidade, se configura como espaço/momento de aprofundamento e
elevação dos laços comunais, de integração dos seres humanos em uma coletividade dirigida
para a expansão dos princípios vitais do Axé. Isto é, da energia que circula por entre os
mundos e conecta tudo a uma mesma ordem cosmogônica, e do Ayó-alegria-alacridade,
princípio ativo e mantenedor da existência humana, posto que força direcionada para a vida.
A esse respeito, em entrevista ao Jornal da Tarde, de 3 de setembro de 1988, em uma
série de perguntas realizadas por Hermes Rodrigues Nery a respeito da viabilidade de um
futuro para o Brasil e sobre o povo brasileiro, Jorge Amado comenta:

Dificilmente você verá um povo mais sofrido – que vive numa situação tão de
miséria, tão de opressão – do que o nosso. Existe, por exemplo, a Índia. Eu conheço
a Índia. A situação é semelhante, mas, qual é a diferença? É que o povo brasileiro
não está vencido. O povo de lá não tem nenhuma esperança; e ele está lá esmagado
dentro daquela coisa religiosa, tremenda, o fanatismo, que é tudo voltado para a
morte... e aqui o nosso povo? O nosso povo está voltado para a vida. Foi a África
que nos deu isso, foi o negro que nos deu esta força vital que ele tem. O português é
melancólico, o europeu em geral é voltado muito mais para a morte do que para a
vida. O próprio indígena é meio assim. Mas, o negro, esse não, esse era voltado para
a vida [...].

A distinção feita entre europeus, voltados para a morte, e africanos, voltados para a
vida, só pode ser entendida completamente se situada em relação aos valores fundacionais das
culturas a eles associadas. Em geral, a compreensão amadiana do Cristianismo tende a realçar
as condições opressivas decorrentes de sua montagem em cima das “falhas” humanas e de
suas consequentes e terríveis punições: o Pecado Original, a Queda, a Culpa, o Dilúvio,
Sodoma e Gomorra, a traição a Cristo e o Seu sacrifício, a imagem assustadora e sempre
presente do Apocalipse e do Julgamento Final. Assim é que o romancista baiano, em
entrevista a Enrico Regazzoni publicada na edição de Europeo, datada de 26 de maio de 1990,
considera: “A religião católica espanhola [...] era extremamente dramática, punitiva. Menos
punitiva em Portugal, mas igualmente triste, aviltante, alicerçada na ideia que a alegria fosse
quase um crime”26 – imagens presentes nas construções ficcionais de Perpétua, beata que não
tolera o comportamento sexual da irmã Tieta, e de Adalgisa, personagem central de O sumiço
da santa.
Neste cenário, a única esperança que resta está fora do âmbito da vida, vez que ela se
organiza basicamente como passagem para um plano melhor: a existência na Terra é apenas

26
“La relligione cattolica spagnola [...] era estremamente drammatica, punitiva. Meno punitiva in Portogallo, ma
comunque triste, avvilente, sorreta dall’idea che l’alegria fosse quasi un crimine” (Tradução minha).
102

expiação. A morte e sua possibilidade de Redenção, de ascensão ao Reino dos Céus, do


retorno a Deus é a força que anima os corações católicos.
Por outro lado, as matrizes culturais africanas conformativas do Candomblé, espaço
social e simbólico a partir do qual Amado situa a experiência do negro, prescindem totalmente
dos sentidos constitutivos da axiologia judaico-cristã. As tradições religiosas/culturais afro-
baianas plasmam uma percepção positiva da existência na medida em que a vida é entendida
como uma experiência a ser aproveitada da melhor forma possível, tanto do ponto de vista
pessoal quanto comunitário, o que só pode ser feito por meio da alegria. Neste sentido, o
sacerdote do Candomblé Roberval Falojutogun Marinho (2010, p. 171), afirma que a vida
“[...] é pra ser vivida com plenitude, harmonia e alegria, o que explica tanta festa, tantas
comidas e bebidas no âmbito religioso do candomblé. A vida deve ser uma celebração
contínua: o céu, o nirvana, é aqui e agora”.
As personagens amadianas são festivas e alegres, como também o são os espaços e as
relações sociais por elas partilhadas. Não será por isso que, em A morte e a morte de Quincas
Berro Dágua, é justamente o riso, esta imagem conotativa de uma condição existencial alegre,
que distingue o sério funcionário público Joaquim Soares da Cunha do Rei dos Vagabundos
da Bahia? Ainda nesta mesma narrativa, é sintomático que o clima denso e fechado do velório
em companhia da família católica e burguesa ceda lugar à atmosfera comemorativa de
aniversário de Quincas, quando na companhia dos amigos negros, pobres e de Axé. Não
estaria aqui em cena, novamente, aquela experiência possível de liberdade, agora organizada a
partir de uma alegria verdadeira, princípio estruturante do ethos do povo-de-Axé, em
detrimento da falsa tristeza de Vanda, Marocas, Leonardo e Eduardo? Não será por essa
escolha que, em Tenda dos milagres, o riso de Pedro Archanjo parece reverberar e intensificar
a força da personagem em sua luta contra as instituições racistas constitutivas da Bahia
moderna? Não será também por isso que, ainda nesta narrativa, a escolha do carnaval aparece
como grande força restauradora da memória popular sobre Archanjo Ojuobá? Não será esta a
escolha de Amado em Tocaia Grande, talvez o exemplo mais preciso, em que o sentido de
comunidade daquela cidadezinha constituída por excluídos raciais, sociais e culturais em
migração é efetivamente instaurado a partir de uma festa de São João, época do ano
identificada com as obrigações de Xangô, sugerida por Epifânia e organizada por Castor
Tição Abduim, personagens vinculadas ao Axé?
Cabe, então, mais uma pergunta: como as espacialidades, as personagens e as relações
narradas por Jorge Amado poderiam não ser festivas se inscritas no âmbito da cultura popular
afro-baiana em que o Ayò, a alegria-alacridade, é não só inspiração para o riso, mas também
103

alicerce para seguir em frente, contornar e vencer obstáculos? Uma vez que a dimensão da
festa é estrutural no Candomblé, uma vez que ela se irmana à condição existencial do povo-
de-Axé, “[...] ela impregna a visão de mundo de modo total, implicando um estilo de vida
marcado pelos valores festivos, como o ludismo, o dispêndio, a alegria, a sensualidade, a
transgressão, etc. que se expressam também fora do terreiro” (AMARAL, 2005, p. 110).
Retomo agora a fala do próprio Jorge Amado em que ele situa a existência de uma
crítica negativa à sua produção ficcional por conta de suas tramas apresentarem um cotidiano
permeado pela festa e pela alegria, pela música e pela dança – valores fundamentais da
dinâmica existencial do Candomblé. Em resposta, talvez caiba citar novamente Muniz Sodré
(2000, p. 151), agora falando diretamente a partir de sua condição de filho-de-santo e Obá de
Xangô:

Pode-se assim compreender que a uma certa crítica paulista desagrade por inteiro a
literatura de Jorge Amado. É possível que essa crítica não tenha entendido o que
todos nós [povo-de-Axé] entendemos sem maiores dificuldades.
O quê?
Que um deus tem de dançar, que um fiel tem de mexer.

Outro ponto a ser abordado aqui, refere-se à ausência, no Candomblé, de um


equivalente à noção de Pecado, que vem a ser a base ordenadora das relações do sujeito com o
corpo e com a sexualidade no mundo judaico-cristão.
Há toda uma apreciação negativa da crítica literária em torno da produção de Amado
que toma suas representações sexuais ora como simples pornografias, ora como estratégia de
estímulo ao gosto médio do público com vistas à vendagem dos romances, ou ainda como
planificação das personagens e das relações humanas, com o que sua literatura estaria repleta
de estereótipos depreciativos no que concerne à representação ficcional da população negra.
Devo aqui pontuar que não acredito e não me filio a nenhuma destas três leituras
acerca da abordagem do universo ficcional amadiano no que se refere à sexualidade, todas
elas construídas e enunciadas a partir de axiologia judaico-cristã em que o sexo, tomado aqui
em sua dimensão de prazer e não em sua função reprodutiva, não pode nunca deixar de ser um
efetivo ponto de tensão para a existência humana em busca da Salvação – até mesmo porque a
sexualidade (por prazer) está diretamente associada ao Pecado, noção básica e sustentáculo de
todo Cristianismo, vez que, sem ela, não há o advento do Cristo.
Diversa é a perspectiva amadiana. Perguntado por Paulo Ernesto Serpa, em entrevista
publicada pelo jornal O povo, em seu suplemento dominical de 29 de novembro de 1981, a
respeito das razões que o levavam a abordar a sexualidade, o romancista baiano responde:
104

Porque isso faz parte da vida. E é uma importante parte da vida. [...] Você não pode
esconder uma realidade da vida, porque é uma coisa normal. Sexo não tem nada de
sujo, nem de impuro, nem de degradante. Ao contrário, o sexo é o que há de mais
nobre, de mais belo. Nós nascemos disso; a humanidade existe em função disso.
Quero frisar que o sexo no meu livro é uma coisa limpa, mesmo quando é muito
forte, às vezes, e bela, e alegre.

Em face de tais críticas, é possível observar o choque entre duas projeções de mundo,
o que implica atrito entre duas ordens distintas de valores: uma erguida sobre a noção de
Pecado, em que a sexualidade, se não chega a ser uma questão negativa posto que necessária,
sofre inúmeras limitações, sendo assim circunscrita ao campo do tabu ocidental; e outra, cujo
entendimento dos corpos e da atividade sexual como natural é inclusive representado no
conjunto de narrativas simbólicas que contam das relações entre deuses e pautam a conduta
humana.
É, pois, a partir desta ordem de significação outra, derivada das matrizes culturais
africanas e protegida pelos Terreiros de Candomblé, que Jorge Amado procede à
representação da sexualidade em seu universo ficcional.
Como já explorado anteriormente, o pensamento amadiano toma da África como
“umbigo” da Bahia, isto é, como centro gerador da cultura e dos valores – o que, se
consideradas as reflexões em torno da sexualidade, projetam uma existência não tocada pelas
restrições originárias de uma moral fundada na noção de Pecado.
É interessante verificar a entrevista que Jorge Amado concede ao periódico Le Soleil,
em sua edição de 30 de outubro de 1980. Movidos pela imagem do Brasil como uma grande
nação católica, os estrangeiros Djib Diedhiou e Benjamin Pinto Bull perguntam:

Em seu trabalho há um certo erotismo. Como ele é recebido em um país tão católico
como o Brasil?
JA: Católico? Seria no sentido da alegria corresponder ao pecado. Mas para nós a
alegria não é pecado. O amor não é pecado27.

Ao demarcar as experiências da alegria e do amor, signo certamente utilizado em sua


acepção de ato sexual, fora do universo semântico estabelecido pela noção de Pecado e, por
extensão, de toda e qualquer ordem de significação cristã, Amado abre a possibilidade para
uma representação positiva da sexualidade, agora despida de estigmas: “[...] eu aprendi que o

27
“Dans vos oeuvres, on relève un certains érotisme. Comment cela est-il accueilli dans un pays aussi
catholique que le Brésil?
Catholique? Ce serait dans le sens suivant lequel tout ce qui est joie correspond au pêché. Or pour nous la joie
n'est pas pêché. L'amour n'est pas pêché” (Tradução minha).
105

amor sempre era uma festa, que a cama era uma festa”, resume o romancista baiano a Marco
Chiaretti, em entrevista publicada pela Folha de São Paulo, edição de 12 de março de 1994.
Em vista da argumentação construída neste capítulo, é também possível visualizar, na
recriação ficcional da sexualidade pelo escritor, um deliberado gesto político de projeção de
uma experiência possível de liberdade. Afinal, em depoimento a Maurizio Chierici, publicado
no periódico italiano Corriere della Sera, em 23 de novembro de 1980, o romancista qualifica
os portugueses como “[...] oprimidos pelo sentido católico de pecado”28. Ainda nesta mesma
entrevista, a propósito da distinção entre a cultura/religião dos portugueses e a dos negros
africanos, Amado afirma:

Os negros não têm tabu. Amam as coisas belas e acreditam que tudo isto que não
possuem (o dinheiro, a liberdade) seja fruto de um pecado [no sentido não religioso
de erro/mal] que os outros cometem para oprimi-los. Mas as coisas de que podem
dispor sem limitações fazem parte da vida, como o ar, e é direito seu (um pobre
direito) aproveitá-las. O sol, o mar, a música, o amor [como sentimento e como
sexualidade]. Os negros não sabem o que significa “pecado”. A religião não os
explica sobre isso. A religião é apenas um modo de comunicação com Deus, ou com
um espírito, de forma alegre. Não entendem as sutilezas filosóficas da cultura
ibérica. Não sofrem de limitações, na alegria ou na dor 29.

Sem dúvida, esta declaração pode causar alguma estranheza por parecer sugerir uma
inalcançável superioridade da cultura branca ibérica em relação à possibilidade dos negros em
decodificá-la. No entanto, é necessário observar que Amado aponta aí para o não
entendimento prático do Pecado, ou seja, desta noção como organizadora da vida humana.
Assim, não me parece que o romancista baiano sugira uma incapacidade intelectiva dos povos
negros em lidar com as abstrações do pensamento filosófico ou com a cultura europeia, mas
uma efetiva impossibilidade de tradução entre culturas uma vez que as religiões tradicionais
africanas não dispõem de concepções pecaminosas – o que está longe de ser algo ruim.
Em resposta à experiência opressiva derivada da concepção cristã de Pecado, Jorge
Amado desloca o eixo de significação em torno da sexualidade para representá-la como
figuração de liberdade, o que se dá a partir de sua percepção, interação e vivência com as
tradições religiosas/culturais afro-baianas. É, pois, nesta direção que um importante traço
componente das experiências possíveis de liberdade se torna visível: a libertação dos corpos

28
“Arrivano i portoghesi: malinconici, eleganti, oppressi dal senso cattolico del peccato” (Tradução minha).
29
“I negri sono senza tabu. Amano le cose belle e ritengono che tutto ciò che non possiedono (il denaro, la
libertà) sia frutto di un peccato che altri commettono per opprimerli. Ma le cose dicui possono disporre senza
limitazioni fanno parte della vita, come l’aia ed é loro diritto (un povero diritto) approfitarne. Il sole, il mare, la
musica, l’amore. I negri non sanno cosa vuol dire “peccato”, la religione non glielo spiega. La religione è solo il
modo per comunicare con Dio, o con uno spirito, in modo gioso. Non comprende le filosofie sotttili della cultura
iberica. Non sofre di limmitazioni, nella gioia nel dolore” (Tradução minha).
106

em relação àquela angústia originada dos pesados sentimentos de Culpa e de Pecado,


limitantes – e, às vezes, anulatórios – da experiência humana ligada à sexualidade, como se
observa na personagem Perpétua, de Tieta.
Neste cenário, com certeza não causa qualquer estranheza o fato de, na entrevista a
Anabela Paiva para a Revista Domingo, de 18 de dezembro de 1994, o escritor ter
dimensionado a sexualidade humana como “[...] a última grande liberdade. Ao mesmo tempo
a grandeza e o prazer da vida”. Sobre este tópico, o antropólogo Ordep Serra (1995, p. 325)
escreve: “[...] Ele [Jorge Amado] não enxerga na sensualidade um defeito na religião dos
orixás; pelo contrário, vê aí uma riqueza pois no que respeita a esse plano da moral sexual, ele
aparentemente considera o candomblé superior ao catolicismo, à religião cristã”.
Em entrevista concedida a Alice Raillard (1990, p. 84), Amado produz um quadro
geral de como o Candomblé se apresenta a ele que, dado o arco final desta minha exposição,
quadra aqui bem como síntese:

É uma religião popular, completamente independente de qualquer vínculo que


pressuponha uma base reacionária, como é o caso do catolicismo, onde ainda uma
grande parte da Igreja se posiciona com o partido dos ricos contra o dos pobres...
Acho até que hoje é um grande apoio para os pobres este contato com os deuses.
Além do mais, o candomblé é uma religião alegre, que não esmaga as pessoas; o
pecado não existe, nem a noção de pecado. É vida, é alegria. Os deuses vêm dançar,
cantar e dançar com os homens, e as cerimônias são de confraternização entre
deuses e homens que dançam e cantam juntos. Acho isto muito positivo.

É agora possível um esforço de sistematização dos aspectos ressaltados em torno a


cinco pontos, a saber:

a. do ponto de vista dos desdobramentos histórico-sociais, as tradições


culturais/religiosas afro-baianas acarretam uma percepção da montagem desigual
do estado brasileiro moderno a partir do prisma do oprimido, com o que ativam um
discurso outro, de resistência;
b. no que tange às sociabilidades, a reconstrução da territorialidade africana
empreendida pelos Terreiros de Candomblé implica uma rede de relações
comunais assentada no valor máximo do fortalecimento e da expansão do Axé,
princípio vital da existência, o que só é possível mediante a coesão de um grupo
reunido em função de uma família-de-santo;
c. no que diz respeito à configuração do estado anímico individual e coletivo, o
Candomblé possibilita a experiência do Ayó, a alegria-alacridade, na condição de
um valor positivo e necessário, porque vivenciado como uma efetiva dimensão
107

existencial, que aponta para a fruição, para o fortalecimento e para a expansão da


vida do indivíduo e da comunidade à qual está vinculado;
d. em relação à fruição do corpo e da sexualidade, as tradições religiosas/culturais
afro-baianas permitem uma compreensão de tais experiências como elementos
partícipes da dinâmica álacre da existência humana uma vez que prescindem da
noção de Pecado, de modo que não há qualquer imputação negativa ou
estigmatizante associada ao sexo;
e. no concernente ao estabelecimento de uma relação positiva com a outridade, o
ethos vinculado ao povo-de-Axé pressupõe uma abertura à sua diferença, posto
que sua concepção do humano está associada a uma interpretação do corpo, qual
seja sua origem ou o seu fenótipo, sua condição social, suas identificações sexuais
e de relações de gênero, como morada e extensão do Orixá, de modo que a pessoa
é uma representação infinitesimal de um Deus e desrespeitá-la é ferir a divindade
que habita a pessoa30.

Muniz Sodré (2005, p. 91) anota que “[...] a ordem originária aqui reposta [na
comunidade-terreiro] comporta um projeto de ordem humana alternativo à lógica vigente de
poder” – o que vem a ser, como argumento nesta tese, uma procura constante da ficção
amadiana. A partir da intersecção e na interpenetração dos cincos fatores elencados neste
capítulo reside um ponto de partida para entender a diferença positiva que Jorge Amado
visualiza e valoriza no Candomblé – o que possibilita sua recriação ficcional na condição de
um efetivo lugar outro; como heterotopia em que se vislumbra uma experiência possível de
liberdade.

30
Com isso, que fique claro, não estou afirmando não existirem adeptos do Candomblé que sejam racistas,
sexistas, homofóbicos ou classistas – afirmação que seria no mínimo inocente, para não dizer leviana ou mal
intencionada. Evidentemente os há, até mesmo porque os valores normativos associados à branquitude, ao
masculino, à heterossexualidade e à burguesia são derivados do próprio processo colonial empreendido pela
Europa, e que se constitui fundante das sociedades latino-americanas a partir de um gesto impositivo de cima
para baixo. Ou seja, de uma forma ou de outra, uma ordem de significação depreciativa dos povos negros,
indígenas e ciganos, das mulheres, das identidades LGBTTT e do universo popular, marcado pela pobreza
material, quando não pela total miserabilidade, atravessa, em graus diversos de consciência, todo e qualquer
cidadão inserido em pelo menos uma das instituições responsáveis por reproduzir a ideologia estruturante do
paradigma ocidental – e todo cidadão está em pelo menos uma, a família. Nesse contexto, escapar a tais malhas
discursivas exige um constante processo reflexivo, que envolve autocrítica e revisão de si mesmo. Em todo caso,
o que quero afirmar é apenas que, diferentemente do conjunto de narrativas mitológicas da cultura judaico-cristã,
os mitos afro-brasileiros não comportam imagens negativas, proibitivas ou punitivas daquelas identidades
consideradas como desviantes.
108

5 UM PROJETO REPRESENTACIONAL DO CANDOMBLÉ

Seja tenente ou filho de pescador


ou importante desembargador
se der presente é tudo uma coisa só
a força que mora n’água
não faz distinção de cor
e toda a cidade é d’Oxum.

Gerônimo; Vevé Calazans. É d’Oxum.

O meu lugar
é caminho de Ogum e Iansã,
lá tem samba até de manhã,
uma ginga em cada andar.

O meu lugar
é cercado de luta e suor,
esperança num mundo melhor
e cerveja pra comemorar

[...] O meu lugar


é sorriso é paz e prazer [...]

Arlindo Cruz. Meu lugar.

Se, no capítulo anterior, preocupei-me em expor as ordens de significação que


possibilitam a Jorge Amado compreender e representar o Candomblé na condição de uma
heterotopia, meu objetivo aqui é observar a recriação ficcional deste espaço outro.
Com isso, pretendo visualizar em Os pastores da noite, Dona Flor e seus dois maridos
e Tenda dos milagres representações positivas do Axé que reverberam em Tereza Batista
cansada de guerra, Tocaia Grande e O sumiço da santa. Na verdade, procuro contrastar tais
representações, vistas em conjunto como uma totalidade, com aquela perceptível em um
romance anunciado no final dos anos 1950, mas que nunca foi escrito e publicado: A guerra
dos santos31.
O desafio de estudar um projeto de romance abortado, que nunca se concretizou para
além de suas cenas iniciais, implica um esforço em reconstruir o plano geral de sua trama, o
que só é possível mediante as entrevistas em que o autor o torna público. Interessam-me
sobretudo as declarações em que Amado dá pistas acerca do como representaria o Candomblé
neste romance. Após o cumprimento desta etapa, cumpre estudar, de forma mais

31
Entre 1958, quando anunciado pela primeira vez, e 1988, quando se deu por encerrado o projeto devido à
publicação de O sumiço da santa, pequenas variações no título foram realizadas: Guerra de santo, A guerra de
santo, Guerra dos santos e A guerra dos santos. As mudanças parecem caminhar no sentido da demarcação de
que o conflito não se dá por intermédio de uma única divindade, mas que envolve todo o panteão sacro, além de
progredir para uma maior especificidade, o que é garantido pelo acréscimo dos artigos definidos “a” e “os”.
Seguirei o título A guerra dos santos por ter sido o último a ser registrado.
109

verticalizada, o seu episódio inicial, publicado em agosto de 1975 por A Revista do Homem,
atual Playboy, sob o título de “Declaração de guerra em língua de sotaque”32.
O texto foi republicado na edição de número 16 de Exu, em 1990, agora na forma de
um conto, mas não o lerei sob a perspectiva de uma narrativa curta. Devo mesmo encará-lo
em sua condição primeira, qual seja, a de trechos iniciais de um romance em potencial que,
por algum motivo, foi cancelado por seu autor. Afinal, o que de fato motiva este capítulo é a
construção de uma chave de leitura para o não prosseguimento de A guerra dos santos, tal
como a narrativa fora inicialmente desenhada em entrevistas e no episódio publicado.
Assim, é minha hipótese que o descarte de A guerra dos santos obedece, sobretudo, a
uma deliberada intenção de Jorge Amado em ficcionalizar o Candomblé na condição
arquetípica de uma heterotopia absoluta e positiva – isto é, um espaço que se apresenta como
dotado de uma diferença radical em relação à sociedade capitalista/burguesa/judaico-cristã, e
que vem a ser positivado como uma alternativa ao modelo social dominante, instaurando
experiências possíveis de liberdade.
Cumpre estabelecer aqui uma advertência: é verdade que, em 1988, quando publicado
O sumiço da santa, Jorge Amado declarou à imprensa – e fez constar em uma espécie de nota
introdutória ao romance – a informação de que, enfim, teria realizado o projeto “[...]
anunciado há cerca de vinte anos, sob o título de A guerra dos santos [...]” (AMADO, 2010b,
p. 13).
Não é possível descobrir a razão pela qual ele afirmava que O sumiço da santa era a
realização de A guerra dos santos – talvez se tratasse apenas de uma estratégia para livrar-se
da reincidência de perguntas sobre o projeto. O fato é que as duas tramas são tão distantes
entre si quanto Jubiabá seria de Farda, Fardão, Camisola de dormir. Esta conclusão se deu
pela pesquisa e cotejo entre o romance efetivamente publicado e as informações esparsas,
encontradas aqui e ali em entrevistas a jornais e revistas entre os anos de 1958 e 1988, além
do já referido trecho publicado em 1975, a respeito das ideias e dos esboços, dos avanços e
dos recuos em torno de A guerra dos santos.
Em depoimento a Marcos Barrero, presente na Folha de São Paulo de 13 de agosto de
1988, Jorge Amado repete a informação de O sumiço da santa ser A guerra dos santos e
acrescenta: “Mais tarde, mudei o nome. Nesse tempo todo [1958-1988] houve várias
transformações”. Na ocasião, o romancista não elucida quais seriam estas mudanças, se
superficiais ou estruturais, nem, muitos menos, adentra em considerações acerca do peso de

32
Cf. Anexo A.
110

cada uma delas no que se refere à adequação em traçar uma equivalência entre a narrativa
publicada e o projeto anunciado décadas antes. O leitor de O sumiço da santa, se desprovido
do acesso às entrevistas ou ao episódio publicado em 1975, é levado a supor que este romance
de fato concretiza o projeto anterior.
Acontece que uma abordagem comparativa, atenta às modificações ocorridas ao longo
das décadas que levam do projeto ao efetivo romance, facilmente demonstra que nada resta da
trama ou da estrutura pensadas entre o final dos anos 1950 e o início da década de 1960
naquela narrativa realmente publicada em 1988. Não há qualquer dúvida: o projeto
identificado como A guerra dos santos, tantas vezes anunciado e discutido junto à imprensa,
foi mesmo descartado.
Mas... por quê?
Considerando a hipótese que guia esta parte da investigação, talvez seja possível
formular uma resposta: a trama pensada para A guerra dos santos destoaria tanto das demais
representações do Axé, ao menos aquelas formuladas por Amado a partir dos anos 1960, que
implicaria uma fratura na imagem do Candomblé como uma heterotopia absoluta e positiva,
pois as contradições da sociedade burguesa estariam atravessando o espaço dos Terreiros pela
dissenção dos próprios filhos-de-santo.

***

Para verificar a viabilidade desta resposta, é necessário primeiro compreender como a


imagem do Candomblé é construída nos romances da década de 1960, de modo a reverberar
mais intensamente naqueles posteriores para, só então, analisar os dados obtidos acerca do
projeto A guerra dos santos. O encaminhamento aqui é mesmo contrastivo: na minha
observação, há, de fato, um importante distanciamento de A guerra dos santos e as
representações do Axé elaboradas pelo autor em sua ficção.
Começo por localizar o projeto do livro temporalmente. Apesar de, na introdução a O
sumiço da santa, Jorge Amado situar o anúncio de A guerra dos santos por volta do ano de
1968, esta trama já perseguia o autor desde, pelo menos, uma década antes, o que a encaixa
logo antes ou pouco depois do lançamento de Gabriela, cravo e canela. É o que se pode
constatar a partir de uma matéria de jornal baseada em um contato com o autor, a notícia
intitulada “Jorge Amado planeja três novos romances; um deles: ‘Guerra de santo’”,
publicada pelo Jornal do Brasil, de 25 de novembro de 1958.
111

Devo admitir que meu primeiro impulso foi desconfiar da datação feita pelos
arquivistas da Fundação Casa de Jorge Amado, uma vez que deslocada dez anos antes em
relação a toda informação colhida sobre A guerra dos santos, que remonta ao final da década
de 1960. No entanto, é mesmo possível e provável que a datação esteja correta. O texto da
reportagem refere-se a três ideias de novos romances a serem desenvolvidas pelo autor àquela
época, Guerra de santo, uma trama sobre caminhoneiros – há poucas informações sobre este
projeto em outras entrevistas, de modo que creio ter sido logo abandonado – e um livro sobre
vagabundos – que poderia vir a ser Os pastores da noite, de 1964, ou mesmo A morte e a
morte de Quincas Berro Dágua, novela originalmente publicada em 1959 e republicada em
1961 no volume Os velhos marinheiros. Ademais, a reportagem ainda se preocupa em
destacar um trecho da carta enviada pelo escritor português Ferreira de Castro a Jorge Amado
em que o autor luso faz referências a Gabriela, cravo e canela – o que indicia ter sido esta a
última publicação de Amado antes da matéria do Jornal do Brasil.
Pensada nesta época, a narrativa de A guerra dos santos abriria ou viria a se localizar
em meio a uma série de romances publicados por Jorge Amado na década de 1960, textos em
que há um forte investimento autoral em tematizar e construir representações do Candomblé
de forma sistematicamente positiva, com um tratamento ficcional que perdura nos decênios
seguintes.
Já na novela A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, embora o narrador não torne
explícita em nenhum momento a adesão da personagem às formas religiosas afro-baianas, é
possível visualizar certos traços, pequenas sugestões, que indicam a formação daquela outra
família à qual alude Júlio Braga (2006). Além da migração entre classes sociais e entre
culturas, também haveria a possibilidade de Quincas ter-se deslocado de uma concepção de
família ocidental-burguesa, composta por uma célula pai/esposo – mãe/esposa – filhos para
uma outra, responsável pela recriação de um universo simbólico africano, organizada a partir
de vinculações míticas e iniciáticas: a família-de-santo.
A favor desta leitura, pesam certas nuanças presentes tanto na caracterização de
Quincas Berro Dágua como de seu grupo de amigos, além da própria construção da atmosfera
em que a trama se desdobra nos seus acontecimentos noturnos, sempre ao som de atabaques
ao fundo. Por exemplo, considerando-se a vivência religiosa de Curió e Negro Pastinha,
ambos ligados às tradições afro-baianas, é no mínimo ambíguo o fato de eles se referirem a
Quincas como “paizinho” ou “pai da gente” – expressões certamente dotadas de carinho e
reveladoras dos laços afetivos que atam aquele grupo, mas também comuns na ambiência dos
112

Terreiros como indicativas de uma efetiva ligação espiritual e hierárquica ou de respeito por
alguém reconhecido como um mais-velho.
Noutro plano, as circunstâncias em que o corpo de Quincas fora encontrado fornecem
mais um indício de que há não apenas um relacionamento casual entre a personagem e o
Candomblé, mas uma ligação mais densa e profunda:

O santeiro, velho magro, de carapinha branca, estendia-se em detalhes: uma negra,


vendedora de mingau, acarajé, abará e outras comilanças tinha um importante
assunto a tratar com Quincas naquela manhã. Ele havia-lhe prometido arranjar certas
ervas difíceis de encontrar, imprescindíveis para obrigações de candomblé. A negra
viera pelas ervas, urgia recebê-las, estavam na época sagrada das festas de Xangô
(AMADO, 1998, p. 7-8).

O trato com as folhas e com as ervas, desde o conhecimento necessário para distingui-
las em função das divindades a serem cultuadas e das obrigações a serem cumpridas,
passando pelos locais onde procurá-las, as condições com certos horários para a colheita e de
como fazê-la, em meio aos cânticos rituais necessários, é cargo de profunda responsabilidade
em qualquer Terreiro de Candomblé, de modo que há sempre alguém dedicado quase que
exclusivamente ao aprendizado desta atividade – até mesmo porquê, como os mais-velhos
ensinam, kò sí ewé, kò sí Òrìṣà, isto é, “sem folhas, não há Orixá”. Nesse sentido, o fato de
Quincas ter se responsabilizado por obter as ervas necessárias para a obrigação de Xangô
insinua – e o verbo é mesmo apenas esse – seu adentramento na estrutura hierárquica de um
Ilê Axé, o que implica obrigatoriamente sua inserção em uma família-de-santo.
Naquele mesmo trecho transcrito, há um segundo detalhe que corrobora para a leitura
da inserção de Quincas em uma família-de-Axé. O verbo que o narrador utiliza para situar a
necessidade das folhas e das ervas para as festas sagradas de Xangô está conjugado na terceira
pessoa do plural, eles, com o que se abrange tanto a personagem vendedora de alimentos
típicos da culinária baiana, que é derivada da comida sacra dos Candomblés, quanto Quincas
– estavam. Deste modo, as obrigações do Axé recaem igualmente sobre ambas personagens,
relacionando-as a uma mesma vivência – Quincas pode não ter se comprometido a conseguir
o material necessário apenas por apreço à sua amiga, mas também por estar, assim como ela,
intimamente vinculado às obrigações religiosas de Xangô.
Em todo caso, estas reflexões são apenas conjeturas em torno da narrativa de A morte
e a morte de Quincas Berro Dágua. É em Os pastores da noite, publicado em 1964, que Jorge
Amado realmente descortina e aprofunda os efetivos laços religiosos como norteadores de
uma noção de família heterotópica em relação àquela configurada pela matriz ocidental-
burguesa. A ambiência humana deste romance é a mesma da novela de 1959, inclusive com a
113

reutilização de algumas de suas personagens – as tramas giram em torno de Curió, cabo


Martim e Pé-de-Vento, além das inclusões de Massu (decerto Negro Pastinha apenas
renomeado), e Jesuíno Galo Doido, alta referência religiosa posto que Obá de Xangô.
Em verdade, Os pastores da noite é constituído por três narrativas independentes umas
das outras, mas que, quando lidas em conjunto, plasmam um só e mesmo universo. A
primeira estória, intitulada “Curió, o romântico, ou as desilusões do amor perjuro”, situa o seu
ponto de tensão no triângulo amoroso Curió-Marialva-cabo Martim, no qual a personagem
feminina é pivô da possibilidade de ruptura dos elos da mais sincera amizade entre os dois
homens.
Esposa de Martim, em face do afastamento e da perda de interesse graduais do marido
no casamento, Marialva arquiteta um plano de sedução de Curió, sempre muito predisposto ao
romantismo e à paixão, para mexer com os brios do cabo. No entanto, os laços entre os
amigos são mais fortes do que ela jamais poderia supor: além da relação de amizade, por si só
quase inviolável, Curió e Martim possuem um vínculo maior, pois são irmãos-de-santo,
relação baseada na vivência, na partilha e na expansão do Axé: “Juntos fizeram bori mais de
uma vez, a mãe de santo derramando o sangue dos animais sacrificados sobre suas cabeças, o
mesmo sangue a limpar um e outro. [...] Como então podia deitar com a mulher de Martim
[...]? Não, Martim para ele era sagrado [...]” (AMADO, 2009, p. 109).
A última frase transcrita é mesmo sintomática, uma vez que desloca o conflito para
uma dimensão sacralizada dos vínculos de amizade. A relação que ata os dois a um mesmo
sentimento – um mesmo pertencimento –, se desfeita, não implica apenas na ruptura da
solidariedade entre dois homens, mas favorece o enfraquecimento daquela força vital à
sustentação da dinâmica do mundo afro-brasileiro, o Axé – constantemente renovado e
expandido, por exemplo, na cerimônia do bori mencionada33.
Ainda que sagrada sua relação com Martim, Curió se vê atravessado e tentado pelo
amor que sente por Marialva – sentimento alimentado dia após dia por um jogo de negações
em que ora eles alargavam, ora diminuíam os limites permissíveis de abraços, beijos e
palavras. Em meio ao conflito íntimo que vivenciava, Curió é tomado pela angústia e decide
expor os fatos ao seu amigo e irmão-de-santo. Vestido nos limites dos parcos recursos, como

33
Em relação ao ritual do Bori, o filósofo e comunicólogo Marco Aurélio Luz, Elobogi ati Ilê Asipá e Oju Oba
ati Ilê Axé Opô Afonjá, pontua: “[...] a cabeça, ori, se interliga ao destino. Destino único daquela pessoa em
razão da combinação única de suas partes constituintes que existem no orun. [...] O ori-orun que caracteriza o
destino pessoal é venerado nas cerimônias do bori, bo + ori = adorar a cabeça. Nessa ocasião, é restituído axé ao
ori-orun e assim fortalecido o fluxo do destino pessoal” (LUZ, 2000, p. 46).
114

em dia de grande solenidade, Curió adentra a moradia do casal Martim e Marialva. Alegre
com a visita, o cabo convida:

– Senta aí, mano, vem comer uns bagos de jaca. Tá suculenta.


Curió aproximou-se no mesmo passo medido, o rosto funéreo, uma postura enfática,
quase majestosa. [...] Martim provava um bago de jaca, o perfume enchia a sala,
quem podia resistir a esse cheiro? Curió resistia, impávido. [...]
– Aconteceu alguma coisa?
– Não, nada... Tava querendo lhe falar. Para resolver um assunto...
– Pois tome assento e vá falando que estando em minhas mãos tu tá servido...
– É troço sério, é melhor esperar que tu acabe...[...]
– Tu parece até que engoliu uma vassoura... Pois tá certo, a gente primeiro dá conta
da jaca, depois conversa... Senta aí e mete os dedos...
Por entre os dedos do cabo, o mel da jaca escorria, os bagos cor de ouro e o
perfume. [...] pairava no ar aquele perfume embriagador, que importavam uns
minutos a mais, uns minutos a menos?
Curió retirou o paletó, abriu a gravata, não se pode comer jaca todo vestido de
etiqueta. Sentou-se, enfiou os dedos, retirou um bago, meteu-o na boca, cuspiu o
caroço:
– Porreta!
– Retada! – apoiou Martim (AMADO, 2009, p. 125).

A cena acima culmina com a afirmação da amizade inquebrantável e sacralizada entre


os irmãos. Final que, de certo modo, contraria as expectativas suscitadas pelo desenrolar do
drama vivenciado pelo romântico camelô, uma vez que tudo parecia indicar o confronto com
Martim ao invés da confraternização ocorrida. O ponto de inflexão dos rumos narrativos
encontra-se, justamente, no fragmento transcrito e, talvez, seja passível de uma leitura a partir
do viés simbólico relacionado ao momento do ajeum, isto é, da partilha do alimento –
momento que, na dimensão ritual dos Terreiros de Candomblé, implica expansão e circulação
de Axé.
De acordo com Raul Lody (1992, p. 61), é “[...] altamente socializante o ato de
compartilhar do mesmo alimento em grupo, quando servido ao término das festas públicas
dos terreiros. A união das pessoas que têm os mesmos objetivos religiosos e as mesmas
crenças é reforçada pelo ato de ingerir os alimentos [...]” (Grifos meus). Obviamente, o
antropólogo ressalta tal sentido dentro de um contexto específico, o da festa ou da obrigação
ritual, em que a comida é preparada de maneira especial e por pessoas cujo conhecimento
detém os segredos específicos e necessários para o preparo dos alimentos.
Esta “cena da jaca” está estrategicamente posicionada como o ponto de virada entre
um desfecho previsível, a inimizade entre Curió e Martim, e aquele pouco provável, mas que
mostra a força das relações sagradas entre estas personagens, de modo que resguarda a
amizade entre ambos. Aliás, não há apenas a continuidade, mas, o seu reforço e a sua
115

elevação. Assim, talvez não seja exagero considerar que o narrador projeta nessa cena o
simbolismo próprio da partilha do alimento quando do ajeum, promovendo o reforço dos
laços de união de que fala Lody.
A segunda narrativa, “O compadre de Ogum”, apresenta outro contexto e amplia ainda
mais a abordagem em torno das relações existentes entre o grupo solidário de amigos e a
família-de-santo. Nesta estória delineiam-se dois conflitos, sendo que o primeiro, quando
resolvido, é desencadeador do segundo, que vem a ser a trama principal. O conflito inicial
está associado ao plano dos elos de afetividade e de comunidade, organizadores do sentido de
unidade daquele grupo; o outro focaliza as tensões que se instauram no atrito entre a Igreja
Católica e o Candomblé, interpenetração à qual a instituição cristã se mostra hostil.
A trama se inicia com a notícia do batizado de Felício, filho de Massu e de Benedita, e
ganha relevo na busca de um padrinho. Entre Jesuíno Galo Doido e Curió, cabo Martim, Pé-
de-Vento e Cravo na Lapela, todos iguais em amizade, todos pertencentes à mesma família-
de-santo, um não poderia ser escolhido em detrimento dos outros para a honra de batizar a
criança. Enquanto o tempo passa e Massu não se decide, “[...] pesava sobre o grupo a ameaça
de sérias dissensões. Aparentemente aquela antiga e exaltada amizade continuava perfeita,
não sofrera o menor arranhão. Mas um observador atento poderia sentir, no correr das noites e
dos tragos, uma tensão a crescer [...]” (AMADO, 2009, p. 145).
É neste cenário que Massu tem a visão de seu Orixá “[...] a dizer-lhe para ter calma
porque ele, Ogum, seu pai, resolveria o problema do padrinho do menino. Massu deveria vir
procurá-lo” (AMADO, 2009, p. 146). Massu vai, então, aconselhar-se com Mãe Doninha,
Iyalorixá do Axé da Meia Porta, venerável pela idade e pelo posto. A resposta seria
incontestável uma vez que adviria da vontade do Orixá e do jogo de búzios posto pela grande
sacerdotisa negra.
Ainda assim, continuaria a ser de apenas um a honra de ser o padrinho de Felício.
Embora incontestável, a vontade de Ogum não eliminaria a possibilidade de os não escolhidos
guardarem mágoa ou ressentimento, ou mesmo que aquele selecionado se visse acima dos
outros em uma espécie de escala na estima do Orixá. De uma forma ou de outra, existia
mesmo a possibilidade de instalação de um desequilíbrio que enfraqueceria o sentido de
comunidade. É neste plano que Ogum decide ser, Ele próprio, o padrinho: “Sim, perfeita a
solução, admirável, deixara a todos satisfeitos. Nenhum deles fora o escolhido, ninguém se
encontrara colocado mais alto na escala da amizade de Massu” (AMADO, 2009, p. 155).
A noção de amizade, tal como Amado a constrói em Os pastores da noite, não se
refere somente às relações de profunda afinidade entre suas personagens, mas reveste-se em
116

expressão de uma identidade em comum baseada em valores culturais/religiosos, uma vez que
está assegurada também pelos laços organizadores de uma família-de-santo. Assim, ela se
constitui em um dos elementos que estruturam a própria experiência da ancestralidade
africana reconstituída na espacialidade heterotópica dos espaços de vida em comum e nos
Terreiros de Candomblé, de modo que preservá-la significa, antes de mais nada, manter
intactos os valores que alicerçam o cotidiano da comunidade como um lugar outro real. Não é
outra a razão pela qual Ogum decide intervir, declarando a Si próprio como padrinho, senão a
de salvaguardar esses vínculos familiares que organizam e sustentam o povo-de-Axé, uma vez
que, na cosmovisão negra, “[...] a ação regula-se pelo princípio do indivíduo total, ou seja, de
um indivíduo articulado consigo mesmo e com os outros em comunidade” (SODRÉ, 2002, p.
158).
Há um significativo ponto em comum entre as duas primeiras estórias, qual seja, a
preservação dos laços de amizade, em concomitância com os vínculos religiosos e simbólicos
estruturantes de uma família-de-santo. Em ambas as tramas, tais elos são testados, tensionados
e constantemente reafirmados e revigorados, o que configura a diferença positiva deste
modelo familiar de solidariedade, confiança e honestidade, assentado nos valores
provenientes das matrizes culturais africanas.
Diferença positiva em relação a quê? A resposta vem na terceira estória do romance,
intitulada “A invasão do Morro do Mata Gato ou os Amigos do povo” 34. Entrecortada por
intensa ironia, esta trama situa a formação de um bairro popular no Morro do Mata Gato,
tomado por invasão, e descortina as artimanhas e os estratagemas de utilização da imagem do
povo como formas de manutenção e acréscimo de prestígio e poder para a classe política
burguesa. Esta é a única das três narrativas que faz referência à amizade já em seu título e é
igualmente a única em que os laços de afinidade são postos em cena na forma de relações
apenas aparentes, aleivosias atravessadas por interesses sociais, financeiros e
políticos/eleitoreiros. Ou melhor: são postas em contraste as vinculações sinceras, sagradas e
heterotópicas da comunidade que habita o Morro do Mata Gato, composta pelas mesmas
personagens das outras duas tramas, e a rede de relações vivenciadas pela sociedade burguesa,
já denunciadas em Gabriela e Quincas. Tal ponto de corte entre o mundo burguês e a sua
heterotopia, o espaço popular, negro e de Axé, sugere as possibilidades de união e
solidariedade presentes entre os desbravadores do Mata Gato, mas que se tornam impossíveis

34
Abordarei esta narrativa com mais detalhes no capítulo intitulado “O passado em perspectiva ou o arco
ficcional revisionista”.
117

em outro contexto por causa dos conchavos existentes entre governadores, prefeitos,
deputados, vereadores, jornalistas, policiais e respectivas esposas.
Se observada pelo prisma das relações interpessoais, a estrutura de Os pastores da
noite parece mesmo montada para atender a dois fins. No primeiro, o narrador aponta
insistentemente para a força e para o caráter verdadeiro dos vínculos de afetividade possíveis
em um contexto heterotópico. Assim, as duas estórias iniciais dão conta de evidenciar os laços
comunais efetivos existentes entre aquelas personagens irmanadas umas às outras em uma
família-de-santo enquanto a última trama os contrasta com os falseamentos inerentes ao modo
de vida burguês, sua instituição familiar e suas relações de poder.
Por outro lado, as narrativas “Curió, o romântico ou as desilusões do amor perjuro” e
“O compadre de Ogum” podem ser lidas como espécies de narrativas-ritos pelas quais as
vinculações comunitárias são fortalecidas, consolidando ainda mais o estado de coesão
sociocultural para o grande desafio de resistir e vencer os aparelhos ideológicos e repressores
do Estado que desembocam na terceira trama, onde se dá o enfretamento pela manutenção das
terras conquistadas do Mata Gato.
Neste panorama, uma vez que o sentido de comunidade é dado pelos laços advindos
da experiência religiosa, o Candomblé se configura como matriz da sobrevivência do Mata
Gato, apesar da desproporção bélica dos moradores em face do arsenal em uso pela polícia
militar.
E já que eu adentrei na perspectiva da resistência cultural e étnica condensada em
torno das formas religiosas negras e por elas capitaneada, retorno a “O compadre de Ogum”.
Da solução encontrada para o problema do padrinho, decorre o principal ponto de tensão da
narrativa: como fazer com que um padre da Igreja Católica aceite batizar um menino que
tenha um Orixá por padrinho?
A despeito de “O compadre de Ogum” ser comumente identificada como uma
narrativa em que se encontra um elogio amadiano ao sincretismo cultural/religioso baiano, o
que esta trama efetivamente coloca em cena é, de forma precisa, o exato oposto: a histórica
problemática da intolerância religiosa e das tentativas de epistemícidio negro promovidas,
mantidas e sempre atualizadas pela ordem dominante.
É bem verdade que o veto ao povo-de-Axé não é, em momento algum da narrativa,
enunciado explicitamente pela instituição cristã, ele opera na condição de um não-dito, isto é,
como um conteúdo latente no nível de um sub-discurso, mas que é apreensível na experiência
da realidade cotidiana dos baianos – interdição esta que os adeptos do Candomblé bem
conhecem.
118

Uma vez decidida a querela a respeito da identidade do padrinho, salvas as ligações de


amizade e de Axé daquela comunidade, o narrador passa a observar e a descrever os
estratagemas do povo-de-Axé para que Ogum possa, enfim, batizar o Seu afilhado. São
evidenciadas, então, as estratégias pensadas e levadas a cabo pelo Orixá, por Mãe Doninha e
por Jesuíno Galo Doido no sentido da realização do batismo de modo que, justamente pela
necessidade de tais medidas, é revelado o não-dito do discurso. A despeito de o padre Gomes,
responsável pela Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, onde está marcado o
sacramento de Felício, ser descrito como um “baiano cordial” e “nada dogmático” (AMADO,
2009, p. 163), os cuidados para que ele não desconfie da verdade por trás do padrinho –
Ogum cavalgando um seu filho, Artur da Guima – dão conta de explanar o clima de não
aceitação da Igreja em face da religião afro-baiana.
Como forma de sustentar esse argumento, é interessante ressaltar o sacrifício de
Josefa, mãe do Padre Gomes, que paga com a própria vida, vítima de bexiga, a incúria com
seu Omolu, Deus da saúde e da doença, da morte e da vida. De filha cauta e primorosa, Josefa
passa a descuidar do seu Orixá à medida que o filho vai avançando no Seminário. Recusa a
fazer a iniciação de Teresa, filha sua e também de Omolu, igualmente vitimada pela varíola.
Por fim, denega completamente o Orixá, não frequenta mais as festas nem se submete às
obrigações rituais, com o que vem a falecer. Tanto sacrifício e sofrimento por respeito “[...] ao
filho seminarista, preparando-se para padre [...]” (AMADO, 2009, p. 163). Ora, qual o motivo
de tanta expiação senão um interdito da Igreja aos adeptos do Candomblé?
O narrador então contrasta Igreja e povo: fora do âmbito oficial do catolicismo, cuja
instituição religiosa é tocada tão intensamente pela intolerância ao outro, as configurações
híbridas entre as tradições afro-brasileiras e cristãs têm lugar no povo da Bahia. Em “O
compadre de Ogum”, todas as personagens vinculadas ao Candomblé, inclusive aquelas
localizadas no topo da hierarquia religiosa, mantém, no mínimo, uma relação de respeito e
proximidade com o catolicismo. Isto não significa, sobremaneira, que a narrativa projete uma
fusão entre as duas matrizes culturais/religiosas de forma que os adeptos da religiosidade afro-
baiana migrassem, aos poucos, para a fé em Cristo. Não obstante os processos de
hibridização, o povo-de-Axé é narrado como consciente de sua diferença, uma vez que
distingue o Padre Gomes como “[...] sacerdote dos orixás de branco, como designavam os
santos católicos. Com tal designação marcavam sua comunidade com seus orixás africanos, e,
ao mesmo tempo, sua diferença” (AMADO, 2009, p. 164).
119

O que o texto amadiano realmente projeta é a possibilidade de uma efetiva


convivência entre alteridades, o que seria não apenas uma relação de respeito mútuo, mas de
interpenetrações baseadas em uma apreensão do outro como complementar a si mesmo.
O segundo conflito existente na narrativa “O compadre de Ogum” já adentra a
discussão do Candomblé como matriz de resistência negra. Mas, como visualizá-la nesta
estória de hibridização cultural/religiosa? De que modo a resistência se configura aqui?
O argumento é relativamente simples: se à unidade da família-de-santo, construída em
torno dos vínculos de iniciação religiosa, corresponde a recriação da territorialidade negro-
africana como fundamento de uma identidade étnica coletiva, que vem a ser absolutamente
heterotópica no contexto da diáspora, preservá-la é, sem dúvida, resistir ao conjunto
sistemático de violências praticado pelo Ocidente contra as outridades. Neste sentido, a
intervenção de Ogum colocando-Se como padrinho de Felício. A solução esbarra no veto não-
dito, mas atuante, da Igreja em relação à experiência do Sagrado formulada pelo povo-de-
Axé. Como resistir a ele e revertê-lo senão pelo jogo da sedução religiosa, na qual se estabelece
uma aparente negociação entre deuses católicos e afro-baianos?
É nesta paisagem que o romancista recupera a ideia de resistência associada ao
desenvolvimento de uma correlação afro-católica no nível das divindades, tomando-a ainda
como estratégia válida para que Ogum, Orixá relacionado tanto à guerra quanto à civilização,
atue em favor da defesa e da manutenção dos vínculos responsáveis pela unidade do povo-de-
Axé.
Para além da imagem de resistência da religiosidade afro-baiana, a trama de “O
compadre de Ogum” guarda, ainda pela abordagem do hibridismo cultural, o vislumbre de
uma outra sociabilidade possível, desta vez baseada no ethos disseminado pelos adeptos do
Candomblé, compreendido aqui como dotado da capacidade de transigir e de uma abertura
positiva para as alteridades.
A respeito da história de Dona Flor, Vadinho e Teodoro, Gildeci de Oliveira Leite
(2008) já mostrou ser possível uma leitura da narrativa em diálogo com a simbologia dos
Orixás, de modo a fazer coincidirem as personagens com os enredos das relações entre Oxum,
Exu e Oxalá. Segundo ele, a “[...] A presença das liturgias afro-brasileiras na obra é um fato
neste romance. Esta apropriação não pode ser percebida a olho nu, faz-se necessária uma
convivência com estes conceitos, uma práxis afro-brasileira” (LEITE, 2008, p. 23).
Com certeza, um dos conceitos a que alude Gildeci Leite se refere à moral sexual
específica do Candomblé contraposta àquela pequeno-burguesa, reprodutora da axiologia
120

judaico-cristã, que tem o Pecado como elemento fundador da experiência ocidental em torno
da sexualidade.
Dona Flor, criada com dedicação e recato à moda pequeno-burguesa, uma vez iniciada
por Vadinho – um filho de Exu, Orixá patrono da atividade sexual – nas artes e nos prazeres
da vadiação, desabrocha para dimensões da existência feminina nunca antes por ela
vislumbradas. A descoberta do corpo e da possibilidade do prazer a despeito da incapacidade
do casal em gerar filhos – objetivo único e realização final de toda relação sexual segundo a
ótica cristã – é de tal modo significativa que Flor não admite retornar às limitantes regras de
cama da burguesia católica. Nem sequer quando, uma vez viúva de Vadinho, estas vêm a ser
retomadas em seu segundo casamento, agora com o farmacêutico Teodoro, para quem a
esposa deveria ser tratada seguindo um modelo de santidade/castidade e respeito.
Nesse contexto, feliz com a tranquilidade financeira da vida de casada35, fato
inexistente quando com Vadinho, mas absolutamente insatisfeita e decepcionada com os
rumos de seus parcos momentos sob lençóis (literalmente), Flor ultrapassa as regras: deseja e
permite o retorno de Vadinho do Orun – plano do transcendente na cosmovisão nagô – de
modo a continuar usufruindo dos prazeres que Teodoro se mostrava incapaz de lhe oferecer:

Se deixas Vadinho partir, será fácil esquecer aquelas poucas noites de descaração, a
louca cavalgada e os ais de amor. Tudo isso pode ter sido tão-somente um sonho,
um delírio de febre, uma alucinação ou apenas simples e tolos pensamentos nas
horas vazias de uma vida inteira de decência e de felicidade. Nada te será cobrado,
não terás remorsos, viverás na paz com teu esposo e com tua consciência. A
derradeira chance, dona Flor, de praticares a virtude, de permaneceres sustentáculo
da moral, dos bons costumes. Deixa Vadinho em sua paz de morto, és ou não mulher
honesta?
Para onde vais, dona Flor, e com que forças? Para que libertá-lo do não ser?
Sem amor não poderei viver, sem o seu amor. Melhor será morrer com ele. Se eu
não o tiver comigo, irei em desespero procurá-lo em quanto homem passe em minha
frente, buscarei teu gosto em cada boca, ululante, esfomeada, loba correrei as ruas.
Minha virtude é ele (AMADO, 1995, p. 393).

Entre a tranquilidade de um lar burguês, com um marido cuidadoso, amoroso e


dedicado, mas pouco eficiente no importante tópico de fazê-la gozar o bom da vida, e a
inesquecível dimensão do prazer vivenciada ao lado de Vadinho, ainda que com todos os
desdobramentos conflituosos desta relação, Flor opta por nenhum isoladamente, mas pelos

35
Por “tranquilidade da vida” não se entenda uma casa mantida financeiramente pelo homem, modelo instituído
por uma divisão do trabalho em que cabe ao marido o papel de provedor e à esposa o de gerenciamento do lar,
mas uma existência desprovida das consternações motivadas por Vadinho. Também neste sentido Dona Flor se
mostra contrária às regras sociais de sua classe, aproximando-se muito mais do universo das mulheres negras
que, embora pertençam a um grupo étnico-racial rebaixado socioeconomicamente como um todo, sempre
exerceram o papel de esteio da família.
121

dois em conjunto: ela quer Teodoro, ela quer Vadinho. Para o antropólogo Roberto DaMatta
(1997, p. 132), “Dona Flor é uma construção originalíssima da ambiguidade e do hibridismo
como valores sociais. Proposta original e pioneira que rompe com a tradição dualística,
aristotélica-cartesiana do Ocidente”.
A substituição do esquema ou...ou pelo aditivo e é possível na medida em que uma
outra ordem de sentido se instaura na narrativa, rompendo com a lógica de mútua exclusão de
opostos que funda a consciência ocidental. O romance equilibra a dualidade de Dona Flor sem
ter de expulsar de cena Teodoro ou Vadinho, ambos coexistindo no leito da personagem, cuja
felicidade reside no fato de ter ambos – ou de poder ser duas.
Lida sob a perspectiva do confronto entre dois conjuntos culturais e morais distintos e
absolutamente em choque no íntimo da personagem título, que só os vem a hibridizar ao fim
de seu arco existencial, o que Dona Flor encena é uma acusação de que o modelo aristotélico-
cartesiano, que prima pela unidade e pela indivisibilidade, não dá conta da experiência
humana, marcada por miríades de desejos e de identificações. Esta crítica é agenciada por
intermédio da desestabilização dos ideais de felicidade conjugal e de comportamento
formatados pela moral dominante, apontados como insuficientes e limitantes. A completude
da personagem só é possível a partir de uma visão de mundo desprovida de quaisquer culpas
pelo ato de desejar.
Com efeito, em entrevista publicada no jornal português A capital, de 6 de novembro
de 1968, Jorge Amado afirma: “No ‘D. Flor’ [...] o problema das limitações e dos
preconceitos da pequena burguesia e da luta contra essas limitações e contra esses
preconceitos é tomada do ponto de vista do problema do amor, problema que me parece
fundamental”.
Não é à toa que o narrador se utiliza do discurso indireto livre para fazer emergir a voz
da pequena-burguesia em cena, incitando Flor ao retorno às “[...] leis morais de tua rua, de tua
gente, de tua classe” (AMADO, 1995, p. 393) apenas para, uma vez consolidada a decisão da
personagem em permanecer ao lado de Vadinho (e de Teodoro), registrar:

Deu o revertério na batalha. Exu sem forças, cercado pelos sete cantos, sem
caminhos. O egun em seu caixão barato, em sua cova rasa, adeus, até jamais.
Foi quando uma figura atravessou os ares, e, rompendo os caminhos mais fechados,
venceu a distância e a hipocrisia – um pensamento livre de qualquer peia: dona
Flor, nuinha em pelo. Seu ai de amor cobriu o grito de morte de Yansã. Na hora
derradeira quando Exu já rolava pelo monte e um poeta compunha o epitáfio de
Vadinho.
Uma fogueira se acendeu na terra e o povo queimou o tempo da mentira (AMADO,
1995, p. 395, grifos meus).
122

À hipocrisia da moral católica pequeno-burguesa, opõe-se agora o “pensamento livre


de qualquer peia” de dona Flor, que é alçado à sintomática categoria de instaurador de um
novo tempo, identificado como da “verdade” posto que em sua fogueira – metáfora poderosa
do desejo como agente purificador – queimou-se “o tempo da mentira”, em que as fogueiras,
nem sempre metafóricas, purgavam os desejos.
Em 1969, Jorge Amado publica Tenda dos milagres. Este romance, assim como Os
pastores da noite, recria o Candomblé em seus movimentos de resistência/sobrevivência aos
processos de silenciamento e epistemicídio promovidos pela sociedade hegemônica ao seu
redor, além de intensificar a construção de personagens a partir dos referenciais simbólicos
que traçam filiações míticas – neste caso, uma relação entre Pedro Archanjo e Exu, princípio
dinâmico da cosmogonia nagô e, portanto, agente de todo devir.
Ao contrário do que ocorria em Os pastores da noite, desta vez o conflito é aberto,
declarado, violento e envolve não apenas os aparelhos ideológicos do Estado, mas também os
repressores, condensados na figura do delegado-auxiliar Pedro Gordilho, alcunhado Pedrito
Gordo – o que efetivamente amplia aquela necessidade de uma absoluta coesão entre o povo-
de-Axé com vistas à manutenção e resistência de sua identidade.
Nesse processo, é sintomático que ganhe relevo a figura do Babalorixá Procópio de
Oxóssi, líder máximo do Ilê Ogunjá36. Oxóssi é simbolicamente identificado como Obá
Alaketu, isto é, Rei e Senhor de Ketu, posição que O faz protetor e responsável pelos ara
Ketu, povo de Ketu – nomenclatura que, no Brasil, designa a nação de Candomblé de culto
nagô, aquela que se correlaciona aos Orixás, o que estende a proteção de Oxóssi a todo o
povo-de-Axé, independentemente do eleda (Orixá pessoal) ou do patrono do Terreiro a que se
vincula37.
Em contraposição àquela parcela dos Terreiros que se deslocavam para lugares pouco
habitados, quase inacessíveis ao olhar dos moradores, para outras cidades, ou mesmo àqueles
que fechavam as portas devido à violência policial e à sanha crescente de Pedrito, apoiada
pela maior parte da sociedade e inclusive pelos jornais, Pai Procópio de Oxóssi representa os

36
O Babalorixá Procópio Xavier de Souza bem como o Ilê Ogunjá são referências reais retiradas da história
negra de Salvador – inclusive, são inúmeras as citações que Amado, em seus discursos não ficcionais, faz ao pai-
de-santo, sempre destacando sua força e seu enfrentamento à violência instituída contra o povo-de-Axé. No
entanto, Pai Procópio não era de Oxóssi, mas de Ogum. Com certeza Jorge Amado tinha conhecimento disso,
uma vez que tinha cargo no Ilê Ogunjá, Ogan de Oxóssi. Acredito que a troca do Orixá na construção da
personagem em Tenda dos milagres se deva pelo simbolismo atrelado à condição de Obá Alaketu de Oxóssi.
37
Sobre o conceito de nação de candomblé, Cf: LIMA, Vivaldo da Costa. O conceito de “nação” nos
candomblés da Bahia. Afro-Ásia, Salvador, n. 12, p. 65-90. 1976. Sobre Oxóssi, Barretti Filho (2010, p. 101)
afirma que “[...] Òsóòsì continua protegendo e propiciando ao homem seu sustento e lhe dando morada e, ainda,
se possível, fartura com qualidade de vida e prosperidade”.
123

que resistem e lutam pela sobrevivência das tradições africanas reterritorializadas nos
Candomblés baianos:

[Procópio] Enfrentou Pedrito e foi por ele perseguido e castigado sem tréguas.
Constantemente preso, tinha nas costas as marcas de chicote de couro cru, lanhos de
sangue. Nada o abateu, não se deixou derrotar. [...]
Procópio não silenciou os atabaques, não fugiu de casa para o mato ou para o Rio de
Janeiro. A roda das feitas diminuiu, de enorme ficou pequena, ogans se recolheram à
espera de melhores tempos. Procópio prosseguiu:
– Meu santo ninguém vai me impedir de festejar.
[...]
– Ouça, cabra ruim: santo de igreja faz milagre, por isso é santo. Esses santos de
vocês só fazem barulho, são uns santos de merda. No dia em que eu ver um milagre
desses putos, nesse dia me demito do cargo – riu, tocou com a ponta da bengala o
peito rasgado do negro: – Daqui a poucos dias vai fazer seis anos que baixo o pau
em candomblé, já acabei com quase todos, vou acabar com o resto de uma vez.
Nesse tempo todo nunca vi um milagre de orixá. Muito falatório e só.
– Meu santo ninguém vai me impedir de festejar (AMADO, 1971, p. 395-396).

A reiteração enfática de Procópio, o que implica em enfrentamento à ordem social


racista, traduz, pela defesa da tradição, a preservação da identidade. Na condição de
Babalorixá, Procópio é o principal responsável por manter o ciclo ritual de festas aos Orixás,
que, como comentado anteriormente, renova e potencializa o Axé e os vínculos entre aqueles
que participam da comunidade-terreiro. Desse modo, ao defender o Candomblé, Pai Procópio
mantém incólume o compromisso, assumido ante os Orixás, de preservar o culto e o seu
peculiar modo de ver e de viver o mundo, além de acatar e de fazer cumprir a
responsabilidade que lhe foi confiada diretamente pelo Orun, qual seja, a de estar junto ao
povo-de-Axé para guiá-lo, protegê-lo e conservá-lo em função dos princípios e dos valores
conformativos da identidade afro-baiana.
O embate que põe em polos conflitantes Pedrito Gordo e Procópio de Oxóssi, este
ladeado por Pedro Archanjo Ojuobá, tem o seu arremate no Ilê Ogunjá, em noite de festa do
Rei de Ketu, com todos os Orixás presentes. O delegado auxiliar, escoltado por “sua horda de
assassinos”, não tarda a adentrar o Terreiro de Procópio. Traz consigo Zé Alma Grande, assim
chamado “[...] pela franqueza no falar e a tranquilidade no matar” (AMADO, 1971, p. 309).
Um inevitável clima de tensão toma conta do terreiro Ilê Ogunjá. Oxóssi cavalga
Procópio, dança os mitos da terra de Ketu quando Pedrito se dirige ao Babalorixá ordenando
interromper o toque dos atabaques. Procópio/Oxóssi desafia, continua a dança, atira suas
flechas:

– Vou acabar com você agora mesmo, santo de merda! – Pedrito Gordo apontou
Procópio a Zé Alma Grande: – Aquele. Vá buscá-lo, vivo ou morto.
124

Adiantou-se o negro maior do que um sobrado, Ojuobá percebeu com os olhos de


Xangô um átimo de vacilação no passo do facínora ao penetrar no recinto sagrado
do Terreiro. [...]
Contam que, nessa hora exata, Exu, de volta do horizonte penetrou na sala. Ojuobá
disse: Laroiê, Exu! Foi tudo muito rápido. Quando Zé Alma Grande deu mais um
passo em direção a Oxossi, encontrou pela frente a Pedro Archanjo. Pedro Archanjo,
Ojuobá ou o próprio Exu conforme opinião de muitos. A voz se abriu imperativa no
anátema terrível, na objurgatória fatal!
– Ogun kapê dan meji, dan pelú oniban!
Do tamanho de um sobrado, os olhos de assassino, o braço de guindaste, as mãos de
morte, estarrecido, o negro Zé Alma Grande parou ao ouvir o sortilégio. Zé de Ogun
deu um salto e um berro, atirou longe os sapatos, rodopiou na sala, virou orixá, no
santo sua força duplicava. Ogunhê!, gritou, e todos os presentes responderam:
Ogunhê, meu pai Ogun! [...]
Quando Zé Alma Grande, cão de fila, assassino às ordens, homem de toda
confiança, virou Ogun e partiu para o delegado, Pedrito necessitou do orgulho
inteiro para erguer a bengala na tentativa última de se impor. De nada serviu. Os
pedaços de junco estalaram nos dedos do encantado [...]. Não coube a Pedrito Gordo
outro recurso senão correr vergonhosamente, em pânico, gritando por socorro [...]
(AMADO, 1971, p. 309-311)38.

O trecho acima é sintomático da ficcionalização do Candomblé promovida pelo


escritor em Tenda dos milagres. Nela, é possível observar a presença beligerante dos Orixás
em função da defesa de sua cultura e de seu povo. Nesse contexto, o grito do Obá Alaketu
Oxóssi é a convocação para a guerra contra a polícia, chamado a que respondem todas demais
divindades do panteão nagô – inclusive o Ogum de Zé-Alma-Grande. Assim, as personagens
confundem-se com as forças simbólicas de que descendem: é Oxóssi, Rei Caçador de Ketu,
quem enfrenta o delegado-auxiliar e não apenas Pai Procópio; são os olhos de Xangô, olhos
de justiça, que percebem o titubeio do “assassino às ordens” e não apenas Pedro Archanjo e já
também não é Archanjo quem lança o sortilégio sobre o filho de Ogum, mas Exu. Por último,
ainda que reincorporado ao povo-de-Axé, não cabe a Zé-Alma-Grande avançar contra Pedrito,
mas a seu Orixá, Ogum, o dono da casa já que “Ilê Ogunjá” significa “Casa de Ogunjá”, uma
das qualidades de Ogum. A derrota de Pedro Gordilho, portanto, impõe a retomada do
território invadido, espaço heterotópico matricial da diferença sobre a qual se configura o
ethos do povo-de-Axé.
Quero ressaltar que um dos títulos que Exu ostenta é Elegbara, correspondente a
Senhor do Poder. Tudo que acontece, toda diferença que se instaura, toda mudança que ocorre
só acontece, só se instaura e só ocorre por intermédio de Exu.

38
Lühning (1996, p. 197) em sua pesquisa sobre Pedro Gordilho escreve: “Jorge Amado, que aborda o ‘reinado’
de Pedrito no seu romance Tenda dos Milagres, descreve uma cena (pp. 308-111) em que um dos acompanhantes
de Pedrito, na ocasião da batida, teria ‘dado santo’ na casa de Procópio, e até atentado contra o próprio delegado,
o que teria levado ao já mencionado pedido de demissão. Outras informações pessoais já contam que o próprio
delegado teria ‘dado santo’, ou na casa de Procópio ou de uma mãe-de-santo de nome ignorado”.
125

Por tal potência, Exu representa a própria possibilidade de resistência ao e


transformação do contexto opressor vivenciado pelas populações negras no Brasil. Configura
um arquétipo de não submissão e se apresenta como o mais ativo e audaz agente de libertação
dos povos e das culturas afrodescendentes, segundo o antropólogo Raul Lody (2010).
Reginaldo Prandi (2005, p. 74) destaca o caráter de transformador inerente a Exu, uma vez
que “Exu é que tem o poder de quebrar a tradição, pôr as regras em questão, romper a norma e
promover a mudança”.
Não é possível desconsiderar estes dados ao se observar o papel de liderança que cabe
a Archanjo no que concerne à resistência do povo negromestiço contra uma ordem racista,
bem como em relação à transformação de uma sociedade eivada de racismo para outra, liberta
de tais restrições. Afinal, “[...] não era Pedro Archanjo filho predileto de Exu, senhor dos
caminhos e das encruzilhadas” (AMADO, 1971, p. 154)?
Em Tenda dos milagres, a relação de convergência entre os planos material e
transcendente, própria da cosmovisão afro-baiana, é posta em cena. As personagens, ao
menos aquelas nas quais o romancista investe heroicidade, são sujeitos que, na justa medida
em que são homens, ultrapassam a condição meramente humana e encerram em si as
potencialidades dos seus Orixás.
Os pastores da noite, Dona Flor e seus dois maridos e Tenda dos milagres, cada um à
sua maneira, introduzem imagens do Candomblé que reverberam, sem fissuras, na produção
ficcional amadiana dos anos 1970 e 1980, como se pode resumir:

a. a experiência comunal absoluta, baseada nas inquebrantáveis vinculações entre os


membros de uma mesma espacialidade, renovada e expandida segundo os
preceitos e os rituais do Candomblé, construída primeiramente em Os pastores da
noite, reaparece em Tereza Batista, em especial no vitorioso movimento grevista
organizado pelas prostitutas que, protegidas por Exu e por Ogum, pelejam contra a
ordem de despejo emitida pela prefeitura de Salvador, e também em Tocaia
Grande, uma vez que é uma festa de São João, período associado às obrigações de
Xangô, organizada pelas personagens vinculadas ao Axé, que possibilita a
integração dos moradores daquela cidadezinha em torno a um real sentido coletivo;
b. o ethos do povo-de-Axé, dotado da capacidade de transigir e de uma abertura
positiva para o outro em contraste com a posição dogmática e intolerante do
catolicismo, perspectiva também elaborada inicialmente em Os pastores da noite,
em especial em “O compadre de Ogum”, é uma das bases sobre as quais se ergue o
126

conflito ordenador da própria narrativa de O sumiço da santa, toda ela baseada


nesta oposição;
c. A representação dos Orixás como interventores no plano terreno em prol do
sentido de comunidade estruturante dos Terreiros, da proteção e do cuidado aos
Seus filhos, e da resistência e da luta pela preservação da identidade coletiva cuja
matriz é o Candomblé, formulada em Os pastores da noite e, de forma intensa, em
Tenda dos milagres, retorna em Tereza Batista cansada de guerra, narrativa em
que entidades afro-brasileiras protegem e guiam a heroína em suas tantas batalhas,
e em O sumiço da santa, quando Iansã aparece, Ela mesma em terra, para
reconduzir Adalgisa e Manela ao povo-de-Axé, além da onipresença de Exu a zelar
pelos caminhos e pela vida de Padre Abelardo Galvão;
d. a experiência da sexualidade a partir de uma visão de mundo desprovida da noção
de Pecado certamente não é algo formulado apenas em Dona Flor e seus dois
maridos, mas encontra neste romance um conjunto referencial de valores culturais,
apresentados à protagonista por Vadinho, que organizam o texto em uma lógica
afro-baiana, o que não é necessariamente visualizado em romances anteriores39.
Nesse sentido, a libertação sexual de Flor é, sim, conduzida pelos valores culturais
relacionados à moral sexual do Candomblé, perspectiva também presente e, aliás,
bastante aprofundada, em O sumiço da santa, em que o trânsito empreendido por
Adalgisa do catolicismo dogmático às tradições culturais/religiosas afro-baianas é
acompanhado de uma efetiva possibilidade de fruição do corpo;
e. a construção de personagens e enredos a partir das narrativas simbólicas do
Candomblé, bem como dos arquétipos dos Orixás, o que pode ser visto em Dona
Flor e especialmente em Tenda dos milagres – nesse caso, a heroicização das
personagens correspondendo à heroicização das divindades –, está também
presente em Tereza Batista, em que a filha reproduz o arquétipo guerreiro da mãe
Iansã; em Tocaia Grande, quando o agente civilizador, isto é, instaurador do
sentido de unidade a um povo, é um filho de Xangô; e em O sumiço da santa, na
filiação mítica de Adalgisa e de Manela novamente a Iansã;
39
Com efeito, o questionamento da noção de Pecado como valor fundante da experiência sexual humana já está
presente em Gabriela, cravo e canela e em A morte e a morte de Quincas Berro Dágua. No entanto, na primeira
narrativa este tensionamento não é formulado a partir da entrada em cena dos valores culturais provenientes do
Candomblé. É bem verdade que, em determinado momento do romance, Gabriela encontra apoio junto à
simbologia das tradições religiosas afro-baianas, mas, de tão isolado, esse trecho se assemelha mais a um ponto
fora da estrutura da narrativa – não é daí que Gabriela deriva o seu sentido de liberdade sexual. Já em Quincas,
não há dúvidas de que o Candomblé funda os valores norteadores da narrativa. No entanto, a questão sexual aí
não ganha um apelo tão forte quando em Dona Flor.
127

f. a associação do Candomblé a um espaço histórico de resistência à sociedade


opressora em derredor, no qual são visualizadas experiências guiadas por valores e
regras sociais identificadas como menos repressoras do que aquelas instituídas
como hegemônicas – configuração heterotópica largamente tematizada em Os
pastores da noite, Dona Flor e em Tenda dos milagres –, é novamente articulada
em O sumiço da santa, quando do embate entre esta visão de mundo e aquela
proveniente da matriz colonizadora ocidental.

Este conjunto de seis vetores estruturantes, obtidos a partir da leitura dos romances da
década de 1960, constituem os eixos da representação do Candomblé realizada, sem desvios,
até o Sumiço da santa, narrativa em que as tradições culturais/religiosas afro-baianas são
tematizadas pela última vez, sendo desenvolvida ao máximo a sua representação como uma
heterotopia absoluta e positiva:

Quem for de boa noite, poderá ver de golpe e pela rama a beleza e a liberdade. Se
for da bênção, vai enxergar muito mais longe, vai vadiar com os orixás. [...].
O viajante, seja rico ou pobre, negro ou branco, moço ou velho, erudito ou
analfabeto, seja quem for desde que de paz, poderá participar da festa do candomblé,
onde deuses e homens são iguais, cantam e dançam a fraternidade universal
(AMADO, 2010b, p. 393, grifos meus).

***

Uma vez instituído este panorama, posso agora voltar à matéria do Jornal do Brasil,
publicada em 1958, e que já dava notícias de A guerra dos santos. De acordo com o jornal:

A primeira tentação – que acreditamos, será a vitoriosa – é a de escrever um


romance contando uma guerra que se desenvolveu no seio de um dos maiores
terreiros da Bahia, o de Afonjá. A guerra de santo (o livro teria esse título
provisório) começou quando morreu a mãe-de-santo Aninha. Três filhas-de-santo
começaram a disputar o lugar da falecida. A luta se desenvolve entre os santos, dura
oito anos, com muitas mortes, tendo como elemento exterminador os despachos.
Por fim, sai vitoriosa a mais famosa mãe-de-santo da Bahia dos nossos dias –
Bibiana da Conceição, conhecida por Senhora.
– Estou muito tentado por este assunto – disse-nos JA [Jorge Amado]. – Mas se trata
de um romance que vai requerer um esforço tremendo: vou ter de me aprofundar
muito na terminologia do terreiro; e ter de dar à obra um sentido de mistério e de
fantasia, colocando-a num plano onde será difícil distinguir as fronteiras da
realidade e da imaginação.
MM – Você já tem muito material?
JA – Uma boa parte. Agora mesmo, nos próximos dias, Senhora vem ao Rio passar
uma temporada. Nessa ocasião, espero que ela me dê novos elementos.
128

As informações apresentadas nessa matéria já acarretam alguma dessemelhança em


relação àquele conjunto de vetores constitutivos das representações amadianas do Candomblé.
Em primeiro lugar, o título, aqui anunciado como Guerra de santo, propõe uma ação
beligerante e aberta dos Orixás. Ao contrário de outras narrativas em que este posicionamento
indica um processo de resistência, aqui a batalha se daria no âmbito interno dos Ilê Axé,
cindindo e extremando em posições conflitivas a própria comunidade-terreiro.
Em entrevista publicada em Programe, na edição de 31 de outubro de 1981, mais uma
vez comentando sobre o projeto de A guerra dos santos, Jorge Amado situa que a “[...] guerra
é quando as facções de um candomblé entram em dissidência, aí a sucessão [da Iyalorixá ou
do Babalorixá] não se dá de forma pacífica”.
Nesse contexto, o romancista baiano estaria interessado em flagrar e discutir as
tensões existentes na rígida estrutura hierárquica dos Terreiros – tensões, às vezes, latentes ou
contornadas quando do exercício da autoridade de uma Mãe-de-Santo ou de um Pai-de-Santo,
mas que eclodem terríveis quando fica vago, por morte, o posto de liderança máxima do
Terreiro. Nesse sentido, é importante observar a fala de Jorge Amado em entrevista a
Valdemir Santana, publicada no Correio da Bahia de 31 de março de 1981:

C.B.: [Em A guerra dos santos] O senhor pretende mostrar o emaranhado


político que domina os terreiros hoje?
J.A.: Sim, isso teria que aparecer sempre. É uma luta pelo poder, como em toda
parte. O poder por exemplo de uma mãe de santo é um poder imperial, que não tem
discussão possível, ela manda mesmo. Só pode ser uma grande mãe de santo, ou um
grande pai de santo, quem tenha uma grande capacidade de comando (Grifos meus).

A montagem das relações de posicionamento do povo-de-Axé, de acordo com o


revelado nestes depoimentos, não destoaria em nenhum grau daquela sempre reincidente nos
espaços da porteira para fora dos Terreiros, uma vez que “é uma luta pelo poder, como em
toda parte” – e, se é “como em toda parte”, não há, decerto, heterotopia possível. Reduzidas a
um enfrentamento mesquinho pelo poder, as organizações sociais dentro e fora dos Ilê Axé
restariam equivalentes:

Não há nada que corrompa mais do que o poder; é uma coisa monstruosa, é a coisa
que mais me apavora no mundo. O poder tem uma força de corrupção que degrada
os caracteres mais puros, aniquila qualquer lealdade, tanto em relação à pátria,
quanto à vida, às ideias, à luta pela esperança; o poder degrada tudo, corrompe,
acaba com o homem. Dificilmente se resiste ao poder – Chefe de Estado, ministro –
ou mesmo a um pequeno poder de uma direção num partido, um cargo, uma
posição... Vi tanta gente se transformar a partir do momento em que tiveram a
menor parcela de poder... É o que eu mais temo no mundo, o poder é degradante,
terrível, terrível... (AMADO apud RAILLARD, 1990, p. 218).
129

A despeito deste depoimento estar datado da década de 1990, o que o distancia por
demais de 1958, quando Amado revela suas pretensões com A guerra dos santos, não creio
que reste invalidado no que se refere à construção do argumento aqui exposto. Isto por três
grandes motivos: primeiro, a desilusão de Amado com o poder se dá ainda nos anos 1950,
com a descoberta dos crimes cometidos por Stálin em nome da União Soviética ou mesmo
com a reação de diversos membros do PCB em face de sua ruptura com a militância
política/partidária; em segundo, por causa da longevidade do projeto de romance, que
atravessa três décadas inteiras e acompanha as transformações do próprio homem Jorge
Amado ao longo desse tempo; em terceiro, porque as representações amadianas figurativas de
liberdade a partir de Gabriela, cravo e canela orbitam sempre fora dos grandes eixos de
poder: a retirante, o vagabundo, a prostituta, o negro, etc. – o que aponta para a percepção de
uma antonímia entre poder e liberdade.
No plano do romance que se delineia, não há qualquer possibilidade de se visualizar,
de forma consistente, aquele sentimento de coletividade irmanada, de laços inquebrantáveis
porque sagrados, existentes em Os pastores da noite ou em Tenda dos milagres no que viria a
ser A guerra dos santos. Aqui, a unidade do povo-de-Axé, imagem que aponta para a
possibilidade de experiência comunal, estaria cindida em pequenos grupos que se combatem –
“facções” para usar o termo posto pelo próprio escritor –, uns hostis aos demais, em intensa e
triste disputa pelo poder.
A temática dos conflitos em torno da sucessão da posição máxima em um Terreiro
vinha mesmo chamando a atenção de Amado no contexto dos anos 1960, período em que sua
inserção nas significações mais densas do Candomblé se intensifica devido ao seu alto posto
de Obá Arolu. Um exemplo desse interesse no tema pode ser observado em “Enterro da
Iyalorixá”, texto narrativo-descritivo publicado pela revista Manchete de 18 de março de
1967, em que o romancista baiano aborda o cortejo fúnebre de Mãe Senhora, Oxum Muiwá:

Senhora fez santo aos nove anos de idade e foi Aninha que lhe raspou a cabeça e a
consagrou a Oxum. Quando Aninha morreu, em 1938, deixara Senhora preparada
para sucedê-la na direção do grande candomblé. Mas outras filhas-de-santo também
desejam o posto e uma guerra-de-santo se desencadeou durando anos e anos até
que a confirmação de Senhora fosse assunto pacífico e que sua personalidade se
impusesse numa presença respeitada por todos40. Jamais uma iyalorixá foi tão

40
Deoscóredes Maximiliano dos Santos (1994, p. 16), Mestre Didi Axipá, Alapini, filho biológico de Mãe
Senhora, produz uma outra narrativa em torno da sucessão de Eugência Ana dos Santos, Iyá Obá Biyi, mais
conhecida como Mãe Aninha: “Depois de realizadas todas as obrigações e preceitos de acordo com a liturgia da
seita (sic), e tudo regularizado dentro do Axé Opô Afonjá, Maria Bibiana do Espírito Santo – Senhora –, filha
legítima de Félix dos Espírito Santo e Claudiana do Espírito Santo, nascida no dia 31 de março de 1900, na
130

poderosa e reinou com poder absoluto no mundo complexo e mágico do candomblé


da Bahia quanto mãe Senhora. Altas honrarias lhe foram concedidas, e seu poder
atingia distâncias e alturas de espantar. Na fímbria da cidade da Bahia, ela se
levantava sobre a vida e a morte; sobre a alegria e a tristeza, sobre o ódio e o amor.
Sua sucessão trará outra guerra-de-santo? Quem vai tomar seu posto no trono de
mistérios, quem a sucederá na guarda do segredo? Os cochichos começam no átrio
da igreja (AMADO, 1967, p. 108-109, grifos meus).

Em 1992, quatro anos após o romancista dar por publicado o projeto A guerra dos
santos sob título O sumiço da santa – romance em que, devo adiantar, não há nenhuma
“guerra de santo” tal como pensada/arquitetada – Jorge Amado, no livro de memórias
Navegação de cabotagem, volta a narrar o enterro de Mãe Senhora e, novamente, dá destaque
aos conflitos entre o povo-de-Axé:

Na madrugada o telefone me desperta, a voz em lágrimas de Stela de Oxóssi, minha


irmã de santo quase não pode falar:
– Meu irmão, nossa Mãe morreu...
Era domingo, por acaso sou o único obá que se encontra na cidade, devo assumir
sozinho os encargos da morte de mãe Senhora, a soberana. No axé reinam o
desespero e a confusão, a iyakekerê, Ondina, a desafeta, que só aparece uma vez por
ano na festa de Xangô, está presente, as rivais se olham de través, palavras de
sotaque em meio ao pranto, a guerra dos santos pela sucessão já começou, devo
decidir o que fazer, não posso tomar partido, se bem Stela seja minha irmã e
candidata.
– Esta mulher não pode tocar a cabeça de minha mãe! (AMADO, 1992, p. 64).

Nos dois relatos – o de 1967, publicado em Manchete, e o de 1992, em Navegação de


cabotagem – é possível encontrar fortes semelhanças com a temática proposta em 1958 para o
projeto então identificado como “Guerra de santo”. O primeiro, aponta o embate quando da
sucessão de Mãe Aninha, Obá Biyi, e sugere o anúncio de um novo conflito em face do
falecimento de Mãe Senhora, Oxum Muiwá; fato que o segundo depoimento confirma,
extremando de um lado Mãe Ondina, Iwintonã, e de outro Mãe Stela de Oxóssi, Odé
Kayodê41. Em ambos, emerge um Ilê Axé Opô Afonjá dividido em função do processo de
sucessão ao cargo de Iyalorixá, possível base real para a elaboração ficcional da trama, do
espaço e das personagens a ganharem vida em A guerra dos santos.
Neste caso, é natural especular que a razão – ou, pelo menos, uma das razões – para o
cancelamento deste romance tenha se dado em função de um possível mal-estar que o projeto

Ladeira da Praça, em Salvador, ficou, como era de direito, devido à sua tradicional família da nação Ketu, com o
título de Iyalaxé Opô Afonjá (mãe da força espiritual que mantém o Axé Opô Afonjá), dirigindo os destinos do
terreiro, ao lado de uma senhora filha de africanos, muito amiga de Iyá Obá Biyi, de nome Maria da Purificação
Lopes, ou Badá Olufan Deiyi”.
41
Cumpre informar que novamente Deoscóredes Maximiliano dos Santos (1994), Mestre Didi Axipá, Alapini,
ao tratar das mortes e sucessões de Mãe Senhora (p. 32-34) e de Mãe Ondina (p. 37-38) como Iyalorixás do Ilê
Axé Opô Afonjá, não registra qualquer situação de conflito entre as filhas e os filhos da casa.
131

tivesse causado no Ilê Axé Opô Afonjá, onde Jorge Amado era Oba Arolu. Em entrevista a
Quirino Teixeira (1985), no entanto, Amado descredencia esta leitura, informando que não
sofreu qualquer restrição vinda do povo-de-Axé. A declaração parece-me plausível, uma vez
que as cenas iniciais de A guerra dos santos foram publicadas em duas ocasiões, 1975 e 1990,
o que talvez não ocorresse se houvesse de fato um veto sobre tal estória.
Para além da quebra na estrutura unitária do povo-de-Axé, há ainda um segundo
agravante em relação ao projeto de A guerra dos santos: a matéria de 1958 do Jornal do
Brasil situa que, do conflito entre os grupos rivais na disputa pelo posto de Iyalorixá,
resultariam “muitas mortes, tendo como elemento exterminador os despachos”. É verdade que
– e isto é realmente importante de ressaltar – o “despacho” como elemento dinamizador da
trama não aparece em outras entrevistas do autor sobre seus planos para a narrativa. No
entanto, a considerar o caráter sempre lacônico com que o romancista baiano falava sobre A
guerra dos santos, muitas vezes, inclusive, repetindo a mesmíssima informação de entrevista
em entrevista ao longo dos anos, não é mesmo possível descartar de todo o seu
aproveitamento literário.
Caso de fato presente, este seria um segundo dado a compor a dissonância com que o
romance, se realmente escrito, se encaixaria por entre as demais ficções produzidas durante a
década de 1960. Afinal, ao invés de desconstruir o imaginário médio negativo e depreciativo
em torno das religiões negras, qual seja, o de conhecimento dotado do poder de manipular
forças ocultas malfazejas, sempre dispostas a transportar doenças e a cometer assassinatos
encomendados, Amado o reproduziria.
Para não faltar com os documentos reunidos em torno deste assunto, em entrevista
concedida a Lena Frias, publicada na edição de 18 de maio de 1978 do Jornal do Brasil, Jorge
Amado apresenta o que seria a estrutura espaço-temporal de A guerra dos santos:

Eu comecei um romance – Guerra dos Santos – que se desenvolve em dois tempos


e dois espaços. Embora se passe no intervalo de um ano – entre a morte de uma mãe
de santo e a confirmação de sua sucessora – o livro se estende da abolição da
escravatura, até os tempos atuais. Seria uma tentativa de mostrar a evolução da
nação baiana. É um plano audacioso que pode até se desdobrar em mais de um livro.
Embora meu livro comece no momento da morte da mãe de santo, ele não se
desenrola todo dentro de um terreiro de candomblé, ele se passa em todo o estado da
Bahia [...]42.

42
Em complementação ao que já foi apontado anteriormente do ponto de vista da trama, em relação à estrutura
temporal também nada resta de A guerra dos santos em O sumiço da santa, que se passa na virada dos anos 1960
para 1970, período de ditadura militar sob as bases do AI-5.
132

Nesta nova declaração, concedida vinte anos após as primeiras informações também
publicadas pelo mesmo periódico, A guerra dos santos reaparece com uma estrutura
organizada em dois eixos temporais e duas espacialidades. A trama central, idêntica àquela
anunciada duas décadas antes, está relacionada ao presente da escrita e se situa da porteira
para dentro de um Ilê Axé. Nela, seriam narrados os desdobramentos da luta pelo poder em
torno da morte e da sucessão da Iyalorixá. Para além deste plano inicial, é revelada uma
segunda linha narrativa, que se configuraria como reconstituinte do fluxo histórico da Bahia
pós-escravocrata até os anos 1960/1970 – o que ampliaria o leque de conflitos a serem
explorados ao longo do romance.
Vista à luz destas poucas informações, A guerra dos santos parece se assemelhar à
estrutura narrativa de Tenda dos milagres, também montada em torno de duas temporalidades
paralelas, uma de caráter sincrônico, que situa os eventos relacionados ao momento da escrita
e apresenta a construção da figura de Archanjo em um discurso oficial para ser lido e
conhecido pela população dominante, e outra, organizada diacronicamente a partir de
testemunhos orais, que cobre o período de vida de Archanjo, de 1868 a 1943, correspondendo
aos 75 anos da existência de Pedro Archanjo Ojuobá.
Os dois romances se aproximariam também do ponto de vista temático, ao menos no
que concerne àquele segundo plano narrativo de A guerra dos santos, pois, de acordo com a
entrevista de Jorge Amado concedida a Oliviero Beha e publicada no periódico italiano La
Fiera Letteraria, de 7 de novembro de 1976, a perspectiva diacrônica apresentaria “[...] um
corte em profundidade de 80 anos na vida brasileira, desde o pós-abolição até hoje, sobre os
problemas raciais”43. Não é sem razão, portanto, que o romancista revela, em O Pasquim
(13/2/1985) que A guerra dos santos “[...] tem algo a ver com Tenda dos Milagres”.
Por outro lado, se é possível afirmar que a tensão maior de Tenda dos milagres opera
na justaposição dos tempos narrativos, uma vez que é pelo confronto entre as duas versões da
estória de Ojuobá que é desvelado o falseamento promovido pela construção artificial de uma
memória sob o signo da oficialidade, o mesmo não pode ser dito sobre A guerra dos santos.
Isto porque há muito pouca informação acerca do que Amado de fato pretendia ao investir em
uma recuperação histórica tão próxima àquela já estabelecida na narrativa sobre Archanjo, o
que impede qualquer tentativa de observar seus níveis de articulação com o plano narrativo
voltado para a sucessão da Mãe-de-santo.

43
“‘A guerra dos santos’, un romanzo come spaccato di 80 anni di vita brasiliana da dopo l’abolizione della
schiavitù a oggi, sui problemi razziali” (Tradução minha).
133

O único episódio publicado de A guerra dos santos, intitulado “Declaração de guerra


em língua de sotaque”, cujo conteúdo provavelmente remete às primeiras cenas do potencial
romance44, está fixado na temporalidade relativa à morte e à sucessão de Mãe Leocádia de
Oxum, Iyalorixá do Axé Obá Kossô.
A narrativa é aberta com a imagem de Mãe Leocádia de Oxum, já falecida, deitada
sobre um catre no quarto de Oxalá, espaço que situa os acontecimentos da trama na ambiência
do Ilê Axé. Nesta situação, de acordo com a tradição nagô, é necessário proceder logo à
retirada do oxu45. Este conjunto de elementos simbólicos, plantado na cabeça dos filhos-de-
santo quando da iniciação religiosa, representa a sacralização. Sua retirada é uma etapa
necessária no processo de preparação do corpo para os desdobramentos do axexê, ciclo de
cerimônias fúnebres.
A forma pela qual o narrador opta por iniciar a trama é mesmo significativa. De um
lado, valendo-se da descrição, ele procura demarcar a grandeza e a importância de Mãe
Leocádia, características que, por extensão, se associam também ao Axé Obá Kossô, por ela
presidido:

Enorme, estendida morta no catre, na sala principal da casa de Oxalá, a mãe-de-


santo parece um navio prestes a desatracar nas ondas dos seios libertos de panos e
colares. Mãe-de-santo deve possuir peito desmedido, seios assim imensos onde
recolher as dores do mundo, as aflições de filhos e filhas, e aquela ali dormida sem
retorno iniciara mais de cem iawôs, Iyalorixá famosa (AMADO, 1975, p. 32).

A imagem metafórica dos “seios assim imensos”, com a qual o narrador enfeixa uma
condição necessária ao sacerdócio afro-baiano, remete menos aos delineamentos físicos do
corpo desnudo da Iyalorixá falecida do que à sua responsabilidade diante do compromisso em
lidar com as angústias daqueles que a procuram. A esta metáfora, correspondem, então, os
sentidos de conforto e de cuidado, comumente atrelados ao simbolismo da maternidade.
Conotativas do zelo com as vidas e com os destinos alheios, estas sensações circunscrevem
uma efetiva possibilidade de “paz de espírito” para as filhas e os filhos-de-santo sob a
44
A Revista do Homem, periódico responsável pela publicação do texto, identifica-o como “ficção de Jorge
Amado” e como “um trecho do livro Guerra dos santos, ainda em preparo”. A inferência de que o texto
apresenta as primeiras cenas do romance se dá pela entrevista de Jorge Amado ao jornal O Liberal, de 21 de
agosto de 1977, uma vez que nela o romancista baiano afirma “[...] há menos de dois anos, escrevi duas cenas,
aquelas que serão, talvez, as duas cenas iniciais”. Como o texto publicado em A Revista do Homem data de 1975,
é razoável supor que Amado estivesse se referindo a “Declaração de guerra em língua de sotaque”.
45
“Falecida a olóriṣà, qualquer que seja sua hierarquia, deverá proceder-se a retirar seu oṣù por meio do qual,
precisamente, a individualização, o nascimento da adóṣù foram possíveis. Um sacerdote altamente preparado
manipulará sua cabeça de maneira que retire os cabelos do lugar onde o oṣù fora implantado, esses cabelos com
outras substâncias apropriadas que se passam nesse lugar, formarão um conteúdo que, cuidadosamente enrolado
em algodão (símbolo de existência genérica), será depositado num lugar previamente consultado para que Èṣù
Ẹlèrù os leve” (SANTOS, 2008, p. 230).
134

responsabilidade da Iyalorixá. Assim, ao focar hiperbolicamente as “ondas dos seios libertos”,


o narrador não olha para o corpo feminino de Leocádia, mas para sua exemplar atuação como
sacerdotisa máxima de um Terreiro de Candomblé, com o que a dimensiona em graus
elevados, afinal, “iniciara mais de cem iawôs”.
A grandeza da Iyalorixá falecida é reiterada ainda nos parágrafos subsequentes, em um
movimento descritivo que avança de dentro para fora do Axé Obá Kossô, mostrando a
repercussão da morte não apenas entre o povo do Terreiro, mas também no enquadramento
geral da cidade. O narrador flagra o desespero das filhas e dos filhos espirituais de Mãe
Leocádia de Oxum em face de sua perda física, notícia que, ao adentrar outras espacialidades,
“[...] afeta pobres e ricos, ligados ou não ao candomblé [...]” (AMADO, 1975, p. 34). E
registra:

Clamor de preceito, ritual obrigatório, maior ou menor conforme a importância e


projeção do defunto – incomensurável em honra de Mãe Leocádia, a legendária
Leocádia de Oxum, do Axé Obá Kossô, Iyá Nassô de título e direito; desespero a
atravessar roças e ladeiras, a desabar sobre a cidade, despertando a população antes
da hora (AMADO, 1975, p. 34).

Aqui, a construção da grandeza de Leocádia como Iyalorixá se dá pelo recurso da


adjetivação: uma vez que o narrador já situou o seu público leitor em relação à dimensão da
sua importância e do desespero do povo-de-Axé, tanto maior “conforme a importância e
projeção do defunto”, o clamor em honra da líder do Axé Obá Kossô é qualificado como
“incomensurável”, de modo que fica estabelecida uma implicação lógica em sugerir a própria
incomensurabilidade da figura de Leocádia de Oxum. Em todo caso, o narrador procura se
assegurar da transmissão da imagem elaborada, isto porquê, logo em sequência, ele reincide
no uso do adjetivo, agora diretamente associado à mãe-de-santo, tida como “legendária”, com
o que reafirma e fixa a sua posição de destaque.
Noutro plano, decerto incompreensível para um público leigo em termos da dinâmica
simbólica, existencial e hierárquica do Candomblé, o narrador descreve a personagem não
“apenas” como uma Iyalorixá, posição a ser herdada por sua sucessora e passível de ser
ocupada por outras mulheres em outros Terreiros, mas também como portadora do alto título
de Iyá Nassô46, com o que ela é singularizada em relação às outras Mães-de-santo. O cuidado

46
De acordo com Raul Lody (2010, p. 44), “Iya Nassô, segundo a tradição oral da Bahia, é o cargo mais
significativo de uma mulher no sistema social e cerimonial voltado ao culto do orixá Xangô”. Marco Aurélio
Luz (2000, p. 39) situa que, no contexto de Oyo, espaço africano de onde provém o culto a Xangô, “[...] é uma
sacerdotisa, a Iya-Nasô, que zela pelo assentamento de Xangô”. Ildásio Tavares (2005, p. 49), por sua vez,
informa que em “[...] Oyó, o poder supremo está com o Alafin, ao mesmo tempo chefe religioso e político.
135

com que o narrador formula a dimensão da personagem, não só no contexto religioso, mas
também como reconhecida na cidade, funciona como um apelo dramático que busca atar o
leitor à trama apenas iniciada.
Se o texto for confrontado com os depoimentos de Jorge Amado sobre o que viria a ser
este eixo narrativo, uma terrível luta em torno do processo sucessório – a própria “guerra dos
santos” que intitularia o romance –, é possível observar uma estratégia discursiva do narrador
em, por meio do enaltecimento da Mãe-de-santo, distinguir e elevar também o Axé Obá
Kossô, o que implica, por consequência, no incremento da representação de poder inerente à
posição a ser disputada entre as filhas-de-santo em conflito.
Para além da intenção narrativa em construir a imagem de uma posição de poder
inigualável, exercido por Mãe Leocádia e agora vago, o fato de a trama se iniciar com o
narrador enquadrando a falecida funciona como uma espécie de gatilho para que ele possa
acessar as fissuras existentes entre as filhas e os filhos daquele Ilê Axé. Atento aos cochichos
e às insinuações ditas em voz alta, o narrador vê e ouve:

O médico, ao chegar, apenas constata o óbito. Pergunta pelas doenças da finada de


quem só conhece o renome. Responde-lhe voz inesperada, áspera, pejada de ódio,
superando o crescente coral das carpideiras:
– Doença nenhuma, tinha uma saúde de ferro, foi o coração carregado demais, não
suportou tanta ruindade, tanta traição. Mataram ela de desgosto.
Um curto silêncio, o suficiente para que a acusação de Almerinda não se perca no ar,
seja recolhida e se fixe incômoda na memória dos presentes, para que todos lhe
apreendam o significado (AMADO, 1975, p. 34).

O alvo da acusação não é nominado por Almerinda, mas parece ser reconhecido ou
minimamente adivinhado por aqueles presentes no Terreiro, uma vez considerada a atmosfera
de mal-estar ocasionada pela resposta ao médico e que aparenta sugerir a autoria de “tanta
ruindade” e de “tanta traição” como, de algum modo, integrada ao convívio daquela
comunidade. É mesmo possível suspeitar que a razão de tão profundo “desgosto” se encontre
próxima da ambientação da cena, posto que a voz “pejada de ódio” de Almerinda não assume
a condição de um pesado e dorido desabafo, mas provoca a sensação de ser dotada dos
objetivos de atingir e de constranger.
Seja como for, os leitores da narrativa já aqui suspeitam que as relações e o ambiente
interno do Terreiro não se configuram como pacíficas ou desprovidas de tensão. Há qualquer
coisa de não resolvido, uma mágoa e um ressentimento construídos em algum momento do

Liturgicamente, o poder estaria dividido entre a Iyá Nassô, sacerdotisa suprema, e o Balé Xangô, contrapartida
masculina”.
136

passado que se configuram como sentimentos significativos o suficiente para eclodirem em


atitudes violentas, atualizados com a força desmedida do ódio e do desprezo na acusação de
Almerinda. A quem se destinam tais reações e qual a razão de elas existirem? A primeira
parte da pergunta é respondida, de forma indireta, pela própria arquitetura do relato
construído, em que o narrador, logo após dar voz à acusação de Almerinda, descreve a entrada
em cena de Alvina, Iyakekerê47 daquele Ilê Axé:

Nas sombras do corredor, vindo (sic) das camarinhas, aparece Alvina, a face
anuviada, o passo firme, revestida de recobrada autoridade. Retomando de vez e por
completo os direitos e os deveres que durante tantos anos foram sonegados a seu
posto e condição de iyakekerê, a segunda pessoa do Axé. Agora a primeira, pois a
iyalorixá faltara. Algumas cabeças inclinam-se respeitosas a seu passo, outras
erguem-se insolentes (AMADO, 1975, p. 34).

As “sombras do corredor” aludem à condição de relegada à qual Alvina havia sido


exposta em face da ascensão de Leocádia de Oxum ao posto de Iyalorixá do Axé Obá Kossô.
Embora possuidora de alta posição na organização hierárquica daquele Terreiro, o exercício
de seu posto como mãe-pequena, ao que tudo indica, sofria rebaixamentos vários além de uma
constante e duradoura minoração – fatos que tornam apreensível uma atitude de rejeição de,
ao menos, uma significativa parte do grupo à sua Iyakekerê. Com efeito, ainda que alçada
provisoriamente à categoria de primeira pessoa na estrutura litúrgica e de comando, sua
presença no Ilê Axé não é bem quista. Os atritos não pequenos em torno da figura de Alvina
acarretam o afrontoso desrespeito à rígida disciplina hierárquica, que vem a ser um princípio
estruturante e mantenedor da prática religiosa do Candomblé: nem todas as cabeças se
inclinam respeitosas, como reza o padrão de comportamento adequado; algumas se erguem
“insolentes”.
Ainda assim, com bastante altivez, a Iyakekerê Alvina sai das “sombras” para, em um
movimento de reintegração à dinâmica hierárquica e simbólica do Axé Obá Kossô, recuperar
o lugar e a autoridade que lhe competem. Reinvestida de sua condição, ela abre passagem por
entre as filhas e os filhos do Terreiro, uns respeitosos, outros insubmissos, e para ante o corpo
sem vida da Iyalorixá Leocádia de Oxum. O narrador, que vinha conduzindo a estória como

47
“Substituta da mãe, sua sucessora eventual, a mãe-pequena (iyá kêkerê em nagô, exatamente mãe-pequena) lhe
está imediatamente abaixo na escala da hierarquia, como administradora civil e religiosa do candomblé. Salvos
casos especiais (e muito raros) de profunda amizade ou de parentesco próximo, a mãe-pequena é sempre a filha
mais velha em relação à feitura-do-santo, por isso mesmo mais autorizada a substituí-la. Lugar-tenente da mãe, a
mãe-pequena está em contato mais direto com os filhos, especialmente nas cerimônias religiosas, e com as
iniciadas, pois a mãe apenas fiscaliza, aconselha e dirige nestas ocasiões, enquanto a mãe-pequena, executando,
acompanha atentamente a marcha das cerimônias. Também a mãe pequena é chamada de mãe pelos filhos, que
lhe tomam a bênção e lhe fazem a mesma reverência devida à mãe”, informa Edison Carneiro (1926, p. 92-93).
137

quem a olha e observa de forma atenta, isto é, a partir de uma perspectiva absolutamente
externa ao desenrolar dos fatos, aproxima-se, via utilização do discurso indireto livre, do
ponto de vista de Alvina, cuja interioridade, ora revelada, põe em cena a tensão existente entre
ela e Iyá Nassô:

[...] demora-se parada e silenciosa ante a morta, de quem recebera tantos agravos.
Normalmente, deveria arrancar os cabelos, gritar junto com as filhas-de-santo e mais
alto que todas pois é a mãe-pequena, a iyakekerê, a imediata – mas tem alguém o
direito de ser tão falso a si mesmo? Sem perder o respeito próprio e o respeito dos
demais, dos filhos e filhas a pedir-lhe a bênção no terreiro plantado no Rio de
Janeiro quando, vencida e humilhada, tomara dos seus santos e partira em fuga?
Devia compostura àqueles cuja cabeça tocara com a navalha, no recesso do barco,
Mãe reverenciada. Tantos agravos, tantos!, e a permanente hostilidade, como então
representar saudade e dor, anunciando ao povo a perda terrível? Terrível, sem
dúvida, mas hoje tudo terminou, hoje começa tudo de novo (AMADO, 1975, p. 35).

A partir da entrada em cena de Alvina, o narrador muda sua observação em torno dos
conflitos a cindirem o Axé Obá Kossô para acolher a perspectiva da Iyakekerê. Nesta nova
mirada, em oposição às imagens de “ruim”, “traidora” e de motivo de “desgosto”,
identificadas como razões do falecimento de Iyá Nassô, é ela, a Mãe-pequena, quem sofre a
ofensa, quem é posta na condição de “humilhada” e de vítima de uma “permanente
hostilidade”.
Dividida em dois pontos de vista, a narrativa ora registra a versão de Mãe Leocádia de
Oxum, estendida às demais personagens e por elas endossada, ora demarca a posição solitária
da Iyakekerê Alvina, cuja estória é reconstituída parcialmente pelo narrador:

Cônscia de suas prerrogativas, Alvina espera, fora levantada e confirmada mãe-


pequena por Agripina, no início do esplendor do Axé Obá Kossô ou Candomblé da
Roça Velha. Prerrogativas lesadas anteriormente, há mais de vinte e cinco anos,
quando da morte e da sucessão da inesquecível iyá. Agora, porém, ela não é mais a
jovem ingênua e vaidosa, deslumbrada com o posto de iyakekerê recebido de Xangô
por causa dos merecimentos de Jairo, seu pai, na época o primeiro do corpo dos
obás.
Nos vinte e cinco anos decorridos da confirmação de Leocádia, Alvina, superando o
impacto inicial, fizera-se mãe-de-santo respeitada e o Axé Ilê Ajaká, num subúrbio
do Rio, reunia na roda dos santos, nos dias de grande festa para mais de trinta filhas,
sem falar nas ausentes, outro tanto. A débil mão incapaz de empunhar o gládio na
peleja transformara-se em pulso forte no trato da navalha. A moça enfatuada, sem
malícia, fácil presa para Leocádia e mesmo para a finada Cora, crescera em
experiência e saber – apenas o orgulho conservava-se igual. Ah! Desta vez será
diferente, a serva de Xangô tem cabeça, pulso, voz firme e aliados poderosos
(AMADO, 1975, p. 36).

O que sustenta o ressentimento mútuo, bem como as hostilidades também de via dupla
entre a Iyalorixá Leocádia de Oxum e a Iyakekerê Alvina de Xangô são os permanentes
138

resíduos, indissociáveis de suas memórias, da disputa empreendida pelas duas em torno do


processo sucessório de Mãe Agripina, fato acontecido há vinte e cinco anos do presente da
escrita.
Naquele contexto, o narrador descreve Alvina como “ingênua”, “vaidosa”,
“deslumbrada”, “sem malícia” e “incapaz de empunhar o gládio na peleja”, imagens que
conotam o seu despreparo para lidar com as estratégias próprias de uma “guerra de santo”,
tornando-se “fácil presa” para outras concorrentes ao poder, personificado na figura de uma
Iyalorixá. Agora, as qualificações indicativas da imaturidade de Alvina jazem no passado,
sepultadas naquela primeira batalha. Com o cargo novamente vago, e munida da experiência
acumulada e maturada ao longo dos anos, a Mãe-pequena está apta a guerrear novamente – o
que projeta uma imagem do povo do Candomblé como uma espacialidade atravessada por
guerras sazonais entremeadas por períodos de tensão latente.
Do outro lado do embate, a perspectiva de Mãe Leocádia de Oxum é remontada,
embora com menos detalhes, por Mário, Obá Telá, único dos Ministros de Xangô presente no
Ilê Axé quando da morte de sua líder. Além de filho sacerdotal, Obá Telá é amigo íntimo e de
longa data de Iyá Nassô, o que lhe assegura a condição de portador de significativas memórias
sobre ela. Nesse sentido, da mesma forma que o narrador se aproximou na observação de
Alvina para poder reproduzir suas lembranças e seus sentimentos mais íntimos, o faz em
relação a Mário para reconstruir a perspectiva de Leocádia, uma vez considerada a
impossibilidade de fazê-lo através da própria Iyalorixá, já falecida. Nesse processo, se o tom
adotado para registrar o ponto de vista de Alvina tende a ressaltar os sentimentos de mágoa,
frustração, revolta e vingança; aquele utilizado para recriar o lado da Mãe-de-santo é
francamente atravessado pelo ódio e pelo desprezo:

[Leocádia de Oxum] Cuspia groso ao pronunciar certos nomes, cuspia desprezo e


condenação, mas o nome de Alvina ela não o pronunciava nunca. A desavença a
separá-las prolongara-se além da disputa pela sucessão da Mãe Agripina, talvez
tivesse a ver com Manu, Mário não tem certeza, mas, fosse o que fosse, levantara
um muro de ódio, intransponível. Alvina subia as ladeiras no caminho da roça
apenas uma vez por ano, em junho, no ciclo das festas de Xangô, vinha do Rio
cumprir a obrigação. Certa feita, numa dessas ocasiões, Mãe Leocádia surpreendera
Mário em amistosa conversa com a iyakekerê. Mais tarde, no barracão, lhe disse, a
voz fria, distante, sem apelação:
– Quem é de minha amizade não pode rir para aquela tipa. Nem rir nem tratar. –
Mário jamais vira ou supusera tamanha violência (AMADO, 1975, p. 37).

Ao iniciar esta leitura de “Declaração de guerra em língua de sotaque”, comentei que o


modo pelo qual o narrador opta por abrir a estória, construindo a imagem de grandeza e de
poder da Iyalorixá que, uma vez morta, espera o procedimento de retirada do oxu, é
139

duplamente significativo. Desde então, venho trabalhando um mesmo desdobramento daquele


primeiro enquadramento, qual seja, a relação entre a posição simbólica de Leocádia de Oxum,
a “guerra de santo” que a elevou a esta condição e os terríveis resquícios deste confronto, que
levantaram “um muro do ódio intransponível” entre ela e a “humilhada” Iyakekerê Alvina de
Xangô. Isto porque é absolutamente imprescindível compreender a inimizade brutal, bem
como o cultivo mútuo de baixos sentimentos, entre Leocádia e Alvina para, só então,
visualizar a intensidade do conflito que se estabelece ante a necessidade ritual, pois “[...]
repouso e glória vão depender de quem lhe toque na cabeça [de Leocádia] e desamarre o oxu”
(AMADO, 1975, p. 36). Esta atribuição caberia à Iyakekerê Alvina de Xangô, agora a
iniciada com maior cargo litúrgico no Ilê Axé. E é mesmo esta a pretensão da Mãe-pequena, o
que deflagra uma primeira batalha entre ela e a personagem Stela de Oxóssi – possivelmente,
os polos opostos da nova guerra de santo do Axé Obá Kossô:

– É preciso tratar das obrigações. Tirar logo o oxu da cabeça dela – [Alvina] Diz
finalmente em voz alta, numa ordem.
Ao ouvi-la, Stela prende os soluços, atravessa a sala lado a lado até o canto onde
Mário, Obá Telá, contido, mudo, a cabeça baixa, curte sua aflição.
Com os dedos longos, Stela toca-lhe o ombro:
– Vai permitir que ela dirija o axexê? – Acento de sotaque ao dizer “ela” como se
dissesse “aquela tipa” repetindo a falecida. – Que ela toque na cabeça de nossa Mãe?
Que ela – levanta a voz, sibila o sotaque – tire o oxu. Ela? (AMADO, 1975, p. 35).

Stela se sabe desprovida do respaldo hierárquico necessário para impedir a Iyakekerê


da casa, aliás situada liturgicamente acima de todos, de proceder à retirada do oxu fixado na
cabeça de Leocádia de Oxum. No entanto, ela vê em Mário, Obá Telá – um dos seis obás da
direita48 – a possibilidade dessa intervenção. Isto porque, ainda que em posição inferior à da
Mãe-pequena, os obás gozam de poder e de prestígio na rede de sociabilidades do Ilê Axé:

Alvina, de costa para Mário e Stela, permanece silenciosa e imóvel, aparentando não
ter ouvido. Falara, agora espera; é a iyakekerê da casa, mas nem assim se atreve a
tomar da navalha sem a concordância de Mário. Onde andam Vítor, o presidente [da
sociedade civil], e Salvador, Obá Aré? Onde os velhos ogãs há anos afastados do
terreiro, os que a procuram para ainda comentar os acontecidos antigos cada vez que
ela vem à Bahia? Levantados e confirmados por Mãe Agripina, com eles pode
contar. Mas ainda não chegaram e nesse embate inicial ela depende de Obá Telá, o
primeiro obá levantado por Leocádia, quando o posto vagara com a morte do velho
Manfredo (AMADO, 1975, p. 35).

48
Cf. nota de rodapé número 14.
140

Neste cenário, a representação do Axé Obá Kossô é organizada em meio às delicadas e


conflituosas relações hierárquicas e interpessoais que configuram a especificidade da política
de alianças condicionante do destino de Leocádia.
Stela de Oxóssi, assim como todos presentes no Terreiro, conhece o “muro
intransponível de ódio” que separa Alvina e a Mãe-de-santo, de modo que se investe da
obrigação de impedir, em honra e cuidado da Iyalorixá, que o axexê seja presidido pela
Iyakekerê que, no entanto, tem, por sua posição, o direito de fazê-lo. Stela apela para Obá
Telá, filho sacerdotal de Leocádia e, também por isso, vinculado a ela politicamente. Se ela,
por si só, não pode impedir que o oxu seja retirado pela Mãe-pequena, Mário pode, aliando
sua posição na estrutura de poder do Axé Obá Kossô com seu prestígio pessoal.
É importante observar que o texto deixa claro que Alvina também detém a amizade e o
apoio político de muitos filhos do Ilê Axé. Além do presidente da sociedade civil, Vítor, e de
Obá Aré, citados nominalmente, há ainda a referência aos “velhos” ogãs da casa, decerto não
qualificados desta forma apenas para ressaltar suas idades biológicas. O narrador se utiliza
desta adjetivação para afirmar a força e o local de proeminência daqueles que ladeiam Alvina,
uma vez que o princípio de senioridade “[...] é um elemento importante no equilíbrio e na
hegemonia da organização dos candomblés”, segundo o antropólogo Vivaldo da Costa Lima
(2006, p. 102). Mas, por que tais mais-velhos, portadores de cargos na estrutura funcional dos
Terreiros, não estão presentes? Aqui, o narrador é deliberadamente impreciso, pois apenas
situa que estão “há anos afastados” e não deixa claro se é por uma decisão pessoal ou se o
foram por ação de terceiros. Da mesma forma, resta a dúvida sobre por que Alvina poderia
contar com eles, que foram “levantados e confirmados por Mãe Agripina”. Também não são
do conhecimento do leitor as situações advindas da primeira guerra de santo, sobre o quanto
foi violenta a disputa entre Leocádia e Alvina.
Em todo caso, as preocupações de Stela são justificáveis e o narrador, utilizando-se
mais uma vez do discurso indireto livre, aproxima-se da Iyakekerê Alvina de Xangô e revela
as motivações íntimas da personagem:

Se nenhum dos doze obás estivesse presente, ela, Mãe Alvina, imporia sua vontade,
a mão na cabeça da morta para retirar o oxu e libertar o santo. Que vingança melhor?
Cadê a soberbia, minha senhora, quem lhe desfaz o nó, quem a manda embora?
Imporia sua vontade, tomaria da navalha, as filhas quisessem ou não, Stela inclusive,
essa arrogante Stela de Oxóssi, inimiga declarada, arco retesado, flecha venenosa
(AMADO, 1975, p. 35).
141

Mário, de natural avesso a tomar posicionamentos que possam pôr em risco sua ampla
rede de amizades, que inclui tanto Stela quanto Alvina, além da falecida Iyalorixá, concorda
com a filha de Oxóssi, embora muito incomodado com seu inesperado estatuto de juiz e
executor. Todavia, não é possível passar a navalha a nenhuma outra no Axé Obá Kossô, uma
vez que todas estão submetidas pela presença da Mãe-pequena.
É neste momento de extrema aflição que Obá Telá se recorda de uma fala privada de
Mãe Leocádia de Oxum, que aqui ganha ares de premonição: “Meu filho, no dia que eu faltar
não deixe que ninguém toque em sua cabeça a não ser minha irmã Mocinha. Só ela, mais
ninguém” (AMADO, 1975, p. 37). Mário, então, se desloca para o Ilê Opô Dadá, também
conhecido como grande Candomblé do Muzuê, evidenciando a importância de sua Iyalorixá,
que Leocádia respeita ao dizer ser a “[...] única a lhe comparar em saber e poderio”
(AMADO, 1975, p. 37). No diálogo entre Mãe Mocinha e Obá Telá, novamente entram em
cena as tensões existentes entre Alvina e Leocádia:

– Vim lhe buscar, minha tia. Estou com um táxi na porta para levar vosmicê. Para
começar os trabalhos, tirar o oxu da cabeça dela, sinão...
– Sinão o que? [...]
– A parte vosmicê não vejo quem possa tomar a frente. Tem Stela e Veveva, são as
de mais preceito, sem falar nas tias velhas, Miquelina, Barda, Fúlvia, sem falar em
Alvina, mas...
– Alvina está no Axé? Nessa época do ano? Não é seu costume. A que veio?
– Não sei a que nem como veio, mas está. Faz dias que chegou. Vosmicê conhece a
situação. Muitos acham que ela não pode tocar na cabeça da velha. Eu também acho,
a mão dela está pesada de ofensas, não pode dar descanso à minha Mãe. Por isso
vim buscar vosmicê, sua irmã. Ela mesma me disse: quando eu faltar não deixe que
outra ponha a mão em sua cabeça a não ser minha irmã Mocinha. Na minha, quanto
mais na dela (AMADO, 1975, p. 38).

Em face da presença de Alvina no Axé Obá Kossô, Mãe Mocinha, embora portadora
de grave doença e impedida pelos médicos de sair do quarto, decide tomar da navalha e cuidar
do axexê de sua irmã, Leocádia de Oxum.
A solução apaziguadora e negociada de Mário, Obá Telá, satisfaz tanto a Stela de
Oxóssi, que “desabrocha meio sorriso de vitória”, quanto a Alvina de Xangô, “que conserva
levantadas a cabeça e a voz” (AMADO, 1975, p. 37). Embora parcialmente conduzida ao
triunfo, Stela sabe, como também o sabe a Mãe-pequena, ter só se tratado de uma primeira
batalha, a verdadeira guerra dos santos estaria apenas começando.
Uma vez lido e estudado o texto de “Declaração de guerra em língua de sotaque”, em
sua condição primeira de episódio inicial de um romance em produção, é possível observar
que, fora a aparente desistência de ficcionalizar os “despachos” como elemento exterminador
142

das rivais ao pretendido posto de Iyalorixá, a narrativa segue, sem muitos desvios, as
informações pontuais dadas por Jorge Amado na entrevista de 1958 publicada pelo Jornal do
Brasil.
Seja como for, independentemente do aproveitamento literário dos “despachos” como
um efetivo e exitoso arsenal de guerra, a própria perspectiva de uma divisão interna da
comunidade-terreiro, fundada na franca disputa pelo posto de Iyalorixá, já seria suficiente, por
si só, para descaracterizar aquela possibilidade de construção ficcional em torno de uma
representação arquetípica do Candomblé como uma heterotopia absoluta e positiva.
Incluída no universo romanesco amadiano, a representação de uma guerra de santo, tal
como aí esboçada, deslocaria o conflito entre as duas organizações socioculturais distintas – a
burguesa-cristã e a das tradições culturais/religiosas afro-baianas – para tratar dos conflitos na
própria interioridade dos Ilê Axé, então reprodutores das mesmas relações situadas da porteira
para fora e sinalizadas de forma negativa.
Neste cenário atípico para a literatura amadiana, os Terreiros já não seriam espaços
outros, onde poderiam ser gestadas experiências de liberdade, mas a triste imagem da
desesperança de quem procura por alternativas e não as encontra.
143

6 O PASSADO EM PERSPECTIVA OU O ARCO FICCIONAL REVISIONISTA

Digo não quando dizem sim em coro uníssono.


Quero descobrir e revelar a face obscura,
aquela que foi varrida dos compêndios de história por infame
e degradante.

Jorge Amado. Tocaia Grande.

Será que nunca faremos senão confirmar


a incompetência da América católica
que sempre precisará de ridículos tiranos?

Caetano Veloso. Podres Poderes.

A noção de heterotopia, na condição de um operador teórico para a leitura do universo


romanesco amadiano, foi utilizada por mim, nos capítulos anteriores, em função de uma
abordagem sincrônica. Isto é, com o enfoque no presente ficcional das narrativas analisadas,
busquei observar as tensões decorrentes da negociação entre grupalidades diferentes;
desiguais tanto no que concerne à sua legitimação perante o poder político e econômico,
quanto em função dos valores morais e das regras sociais em torno das quais se estabelecem.
Outra é a perspectiva deste capítulo e do próximo, que pretendem pensar as
heterotopias sob o prisma da recuperação de histórias silenciadas em favor de uma história
oficial. A priori, este objetivo aparenta uma certa incongruência em face da teoria, uma vez
que a noção foucaultiana emerge, no contexto dos estudos contemporâneos, com o intuito de
investigar espaços tensionantes da estrutura social hegemônica, situados na mesma faixa
temporal daqueles que se alinham a ela. Em essência, o seu interesse é entender as
negociações e os conflitos que envolvem o simultâneo, o sincrônico, não acarretando em
pensar como estas realidades se reportam ao passado ou se constituem dialeticamente através
do tempo.
Ainda assim, não acredito que o uso pretendido desta noção se coloque aqui para além
do que ela pode circunscrever. Afinal, e este é o ponto, as heterotopias, na condição de
pequenos espaços de diferença que o são, se pensadas a partir das experiências em relação ao
passado que podem vir a enunciar, apresentam-se como repositórios em potencial de
memórias outras, que se caracterizam por conflitantes e suplementares àquela estabelecida
como oficial.
Não se trata, pois, de estudar diacronicamente as heterotopias, o que talvez
requisitasse uma metodologia impossível, mas, admitindo-as e reconhecendo-as como
144

fundamentos do texto amadiano, de relacioná-las ao aparecimento, na década de 1960, de um


importante segmento de sua produção literária, qual seja, o desmonte de narrativas oficiais
sobre o passado – o que é realizado sempre de acordo com o ponto de vista dos silenciados.
Para fins de uma melhor economia, tratarei coletivamente destes textos como arco ficcional
revisionista.
O traço em comum deste arco ficcional amadiano, dedicado à revisão histórica,
dialoga com as reconfigurações operadas no campo historiográfico ao longo do século XX,
principalmente aquelas situadas a partir de sua segunda metade. Ao que parece, Jorge Amado
se apropriou das discussões em torno das novas possibilidades de se narrar o passado para
tomar delas próprias como uma espécie de programa literário.
Tal como organizada pelo espírito moderno dos Oitocentos, a História se apresenta
segundo o paradigma tradicional rankeano, também designado historicismo, que suprime
todos aqueles situados nos níveis mais baixos da estrutura hierárquica de poder político-social
da condição de agentes históricos, isto é, atores através dos quais a história também tece os
seus enredos. Não é à toa que Walter Benjamin (2012, p. 244-245), em texto que remonta ao
ano de 1940, descreve o método historicista como “empatia pelo vencedor” e coloca a
necessidade de se “[...] escovar a história a contrapelo”, ou seja, expor os “documentos da
barbárie” no lugar em que as forças dominantes postulam “documentos da cultura” –
perspectiva que, como se verá, é sem dúvida abraçada por Jorge Amado no segmento de seu
universo ficcional, principalmente em Tenda dos milagres e em Tocaia Grande.
De maneira mais aprofundada e visando uma sistematização, Peter Burke (2011, p. 10-
15) procura delimitar o paradigma tradicional rankeano em torno de seis pontos, os quais
resumo a seguir: 1. “a história diz respeito essencialmente à política”, o que implica
considerar toda atividade humana alheia aos aparelhos de Estado como não pertencente ao
conjunto de interesses do historiador; 2. “narrativa dos acontecimentos”, que vem a ser uma
abordagem não problematizante das estruturas sobre as quais as bases sociais estão
assentadas; 3. “visão de cima”, com o que se eliminam relatos não vinculados aos “grandes
homens”, tanto mais se circunscritos a grupos de minorias ou a margens sociais; 4. “baseada
em documentos oficiais”, de modo que qualquer outra fonte para reconstituição histórica resta
deslegitimada, o que silencia o passado daqueles que guardam e transmitem suas memórias
via oralidade; 5. modelo de explicação dos acontecimentos históricos sustentado na inquirição
das motivações pessoais dos “grandes homens” em face de suas tomadas de decisão; e 6. “a
história é objetiva”, o que pressupõe a possibilidade de se alcançar uma verdade dos fatos,
supostamente não contaminada por qualquer subjetividade humana.
145

Se é verdade que o paradigma rankeano já sofria ataques e reconfigurações desde pelo


menos 1929, com a fundação da corrente historiográfica dos Annales, tendo sido também
criticado em 1940 por Walter Benjamin, é igualmente verdade que sua crítica mais
contundente se dará a partir da segunda metade do século XX, quando o modelo epistêmico
que engendra a Contemporaneidade desconstrói as categorias modernas.
Entre o final dos anos 1960 e o início da década de 1970, por exemplo,
desenvolveram-se correntes historiográficas que, rompendo em absoluto com o paradigma
tradicional rankeano, ampliaram o alcance da História como campo de estudos. Operou-se a
rotação de perspectiva analítica – do alto para o “baixo” e do “macro” para o “micro” –,
buscando, assim, reconstituir a experiência das classes subalternizadas e dos grupos
minoritários, além de assumir o prosaico e o privado como efetivas dimensões partícipes e
produtoras da história. Foram introduzidos novos métodos de pesquisa e desenvolvidas novas
abordagens das fontes, inclusive as clássicas, os documentos oficiais, agora vistos sob
suspeição por serem compreendidos como veículos de ideologias dominantes. Outras
modalidades possíveis de relato, antes desprovidas de legitimidade, ascenderam à categoria de
fontes; uma delas, as narrativas orais.
Filosoficamente ligado aos Annales, constituindo-se como uma terceira geração sua,
este grupo heterogêneo e múltiplo de vertentes historiográficas ficou conhecido sob a
designação coletiva de Nova História. Porém, o único elo entre suas várias tendências se
refere ao que todas elas se opõem. “A nova história”, diria Peter Burke (2011, p. 10), “é a
história escrita como uma reação deliberada contra o ‘paradigma’ tradicional [...]”.
Neste cenário, o ideal de objetividade elaborado pelo espírito científico moderno,
entendido aqui como a possibilidade de se alcançar uma verdade inerente aos fatos históricos,
é desmantelado ante a percepção de que tal estatuto remonta, em realidade, a não mais que
interpretações fundamentadas nos posicionamentos ideológicos e teórico-metodológicos
assumidos pelo historiador. Reportando-se a esta descoberta, Peter Burke (2011, p. 16)
afirma:

Por mais que lutemos arduamente para evitar os preconceitos associados a cor,
credo, classe ou sexo, não podemos evitar olhar o passado de um ponto de vista
particular. O relativismo cultural obviamente se aplica, tanto à própria escrita da
história, quanto a seus chamados objetos. Nossas mentes não refletem diretamente a
realidade. Só percebemos o mundo através de uma estrutura de convenções,
esquemas e estereótipos, um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra.
146

O caráter profundamente idealizado que envolve o discurso da natureza objetiva do


ofício de historiador fica ainda mais patente quando se considera, junto com Hayden White
(1995), a história como narrativa. Vista sob este prisma, ela se anuncia essencialmente
dependente da subjetividade de quem a produz; de quem seleciona e organiza os fatos a
balizarem a narração, dispondo-os, de uma maneira muito próxima à atividade imaginativa
própria à ficção e influenciada pelas Ciências Naturais, em uma cadeia evolutiva cujo sentido
último já está posto desde o início do processo de montagem. O teleologismo é, ele próprio,
contrário a qualquer pretensão de objetividade.
Inserida neste contexto de modificação de paradigmas, e referindo-se a ele, a
historiadora oral Eugenia Meyer (2009, p. 32) pontua que já “[...] não se tratava de buscar a
verdade, mas de atender, escutar e observar as diferentes verdades”. Dito de outro modo, o
que entrava em cena naquele momento era a necessidade de se pensar a história na condição
de um relato multifacetado e não-hierarquizado, tal qual um coro de vozes múltiplas, não raro
dissonantes ou mesmo em franca desafinação, cuja beleza é justamente nunca cantar em
uníssono. Ou, como resume Peter Burke (2011, p. 16), os historiadores se deslocaram “[...] do
ideal da Voz da História para aquele da heteroglossia, definida como ‘vozes variadas e
opostas’”.
Assumindo as perspectivas contemporâneas da História, Meyer (2009) afirma que a
responsabilidade política do historiador se irmana à democratização das regras narrativas em
função das quais as identidades coletivas se estruturam. Em face deste imperativo ético, Hugo
Achugar (2006c, p. 141), pensando os instrumentos e as fontes atuais para atendê-lo, situa que
“[...] a memória, para um amplo setor da sociedade contemporânea, teria a possibilidade de
resgatar os esquecimentos a que haviam sido submetidos indivíduos, obras e fatos históricos”.
Ao contrário da História moderna, fundada em uma crença na objetividade e
identificada com uma perspectiva homogeneizante, as investigações levadas a cabo sob a
epistéme da Contemporaneidade perseguem o ideal de construção de uma verdadeira memória
democrática. Isto é, a possibilidade de se constituírem narrativas históricas menos lacunares,
no sentido das vozes que nelas faltam, do que aquelas produzidas sob a ótica do paradigma
tradicional rankeano.
Achugar (2006a, p. 160) aponta para as dificuldades de efetivação deste ideal de
contar a história, não só “[...] por uma impossibilidade fática, mas por uma impossibilidade
ideológica e discursiva”. Para ele, por mais que se tente desequilibrar a balança em favor do
ato de lembrar, é impossível não incorrer em esquecimentos. E, ainda que não o fosse, ainda
147

que fosse possível contemplar todos os atores e grupos sociais, seria tarefa inatingível
textualizar todos os ângulos e pontos de vista.
Estas considerações de Achugar não devem ser entendidas como um manifesto de
oposição à perspectiva de uma memória democrática, afinal, não são direcionadas para o
campo da História, mas para o historiador; para o sujeito que se investe desta
responsabilidade. Argumenta o historiador uruguaio que

Do ponto de vista ético, e para quem narra, essa escolha/seleção [dos eventos
históricos] é tremenda. Não para aquele que tenta narrar sem estar consciente da
tensão esquecimento-memória implícita no trabalho que vai empreender, mas para
quem tenta um relato democrático da história coletiva, para quem se propõe narrar a
partir de uma perspectiva democrática da memória (ACHUGAR, 2006a, p. 160).

Se pensado sobre o prisma do conflito ético vivenciado pelo historiador ante a


inevitabilidade de ele, como sujeito, produzir quantitativamente mais esquecimentos do que
lembranças, a perspectiva de uma memória democrática se evidencia realmente como uma
tarefa impossível. Por outro lado, se pensada não a partir do chaveamento individual, mas da
configuração epistemológica do campo relativo aos estudos históricos, a busca por este ideal
mostra-se fértil, uma vez que promove a sua abertura no sentido de acolher diversos locais de
enunciação, diferentes verdades. Talvez a memória democrática não se concretize na
formulação de uma narrativa que dê conta de todos os ângulos e represente a todos os agentes
da história, mas na garantia não hierarquizada de um direito à enunciação, ainda que por
intermédio do historiador que a escuta e registra.
Cabe àquele que pretende assumir tal responsabilidade desemaranhar-se dos passados
já confortavelmente instalados em narrativas oficiais para relativizá-los, ampliá-los ou mesmo
desmontá-los em face de relatos ainda inauditos para além dos pequenos espaços em que
sobrevivem, sejam como um corpo de narrativas efetivamente fixado como tradição oral ou
mesmo na condição de reminiscências pessoais ou de grupos diminutos – as “memórias
impedidas”, tal como Meyer (2009) as denomina. Isto é, narrativas mnemônicas que, oriundas
das múltiplas fímbrias do tecido social, restam silenciadas pois remontam e dão um sentido
lógico ao transcurso do tempo em uma ordem de significação diversa daquela regulada pelas
ideologias oficiais. Segundo Michael Pollak (1989, p. 8),

A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa [...]


uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada, de uma memória
coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o
Estado desejam passar e impor.
148

A História Oral, área a que se vincula a própria Eugenia Meyer, tem se dedicado,
desde a década de 1970, à recolha e ao registro destas memórias não contempladas pelas
narrativas oficiais como documentos. De acordo com Michael Pollak (1989, p. 4), também
associado a esta linha investigativa,

Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história


oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante
das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à “memória oficial”, no caso a
memória nacional. Num primeiro momento, essa abordagem faz da empatia com os
grupos dominados estudados uma regra metodológica e reabilita a periferia e a
marginalidade. [...] ela acentua o caráter destruidor, uniformizador e opressor da
memória coletiva nacional.

De conceituação semelhante àquela concebida por Meyer (2009) acerca de memórias


impedidas, as memórias subterrâneas também remetem às experiências históricas pessoais
e/ou coletivas que não compõem o quadro de referências canônico responsável por instituir
narrativas oficiais ou dominantes a respeito do passado. A minha opção por seguir Pollak ao
invés de Meyer, sem, no entanto, esquecê-la, passa pela compreensão de que o adjetivo
“subterrâneas” agrega uma maior força simbólica a estas memórias do que o particípio
passado “impedidas”. Isto porque o segundo termo consegue representar o processo de
silenciamento, mas falha em dar evidência ao fato de que, mesmo submetidas a um processo
de dominação, essas memórias permanecem e se perpetuam em redes específicas de
sociabilidade, sejam elas familiares, afetivas ou políticas. É esta sobrevivência que
“subterrâneas” flagra muito bem, além de permitir visualizar, por meio da implícita oposição
superfície x subterrâneo, uma configuração desigual de poder e uma consequente existência
de censuras a determinadas recordações:

Embora na maioria das vezes esteja ligada a fenômenos de dominação, a clivagem


entre memória oficial e dominante e memórias subterrâneas, assim como a
significação do silêncio sobre o passado, não remete forçosamente à oposição entre
Estado dominador e sociedade civil. Encontramos com mais frequência esse
problema nas relações entre grupos minoritários e sociedade englobante (POLLAK,
1989, p. 5).

Pollak (1989), a partir de fontes orais cujas experiências no passado se relacionam à


Alemanha nazista e à União Soviética stalinista, classifica três tipos de memórias
subterrâneas: as proibidas, pois capazes de provocar crises nos aparelhos de Estado ou na
imagem estabelecida por eles para a sociedade englobante/dominante; as indizíveis, que
denotam sujeitos deslocados em relação ao conjunto de padrões constitutivos da estrutura
149

social legitimada, de modo que o silêncio resulta em estratégia para minimizar a exclusão, e,
por último, as vergonhosas, que remetem a sujeitos forçados a agir contra seus grupos de
origem, de modo que já não podem mais se encaixar neles senão camuflando o passado na
recusa em contá-lo. De acordo com estes modelos, é possível observar que o silêncio se
constitui como uma determinação imposta, mas também como estratégia de resistência que
opera por baixo da censura, subterraneamente:

O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência


que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo
tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares
e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e
ideológicas (POLLAK, 1989, p. 5).

Hugo Achugar (2006b) igualmente assevera que a memória coletiva de uma sociedade
é sempre um espaço em negociação, ainda que desigual, entre dominantes e dominados. A
história, ao contrário do que pretendem as versões oficiais, não é dotada de fixidez, deixando
em aberto a possibilidade de memórias subterrâneas ascenderem à superfície. Tempo em
constante litígio, o passado é, desta maneira, mais uma arena em que o ideal de uma sociedade
democrática sofre violentos abortos ou galga avanços parcimoniosos – o que justifica o
interesse de Jorge Amado em abordá-lo.
Antes de fechar este parêntese histórico/conceitual, gostaria de retomar Walter
Benjamin (2012, p. 244), que afirma: “O dom de despertar no passado as centelhas da
esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que tampouco os mortos estarão
em segurança se o inimigo vencer”.
O universo ficcional de Amado, desde sua guinada à esquerda com Cacau, sempre
buscou emular as experiências posicionadas às margens, seja por via da utopia ou da
heterotopia. Desta forma, mantém-se irmanado a elas e em função delas em um embate
constante contra um inimigo único, embora representado sob diversas faces: a supressão da
liberdade humana, tanto de um ponto de vista coletivo quanto individual. A partir da década
de 1960, este posicionamento se desdobra para além de uma abordagem sincrônica,
ramificando-se em um arco ficcional próprio que se dedica à revisão dos tempos de ontem
cujos mortos permanecem inseguros. Com isto, a formatação de um ideal de liberdade é
suplementada por um novo componente, em torno do qual a produção literária amadiana se
empenha: o direito irrestrito de acesso a uma memória democrática. Nesta paisagem, aquelas
centelhas de esperança às quais Benjamin alude, e cuja ausência resulta em inevitável derrota
em qualquer batalha, crepitam em torno das memórias subterrâneas que animam as
150

experiências históricas dos espaços heterotópicos – este eixo de significação positiva do


universo ficcional amadiano.

6.1 POR UM PANORAMA DO REVISIONISMO AMADIANO

A abordagem do passado se apresenta como uma perspectiva obsedante para a ficção


amadiana em tempo de heterotopia, de modo que merece algum esforço de sistematização.
Dos dez romances produzidos a partir da década de 1960, três deles – Tenda dos milagres;
Tocaia Grande e, em certa medida, A descoberta da América pelos turcos – se colocam como
narrativas estruturadas em torno da desconstrução de passados oficiais, instituídos sob a
chancela das ideologias dominantes e dos grupos políticos estabelecidos no poder. Dos sete
restantes, ao menos outros três se apresentam de alguma maneira tocados por este programa.
É o caso, por exemplo, de Os pastores da noite, cuja terceira estória, intitulada “Os amigos do
povo”, se aparta das versões impressas em periódicos, contaminadas todas pelos interesses de
grupos políticos e econômicos diversos, para narrar, sob a ótica dos desabrigados, os eventos
centrados na ocupação do Morro do Mata Gato. Também em O sumiço da santa são
perceptíveis traços que conectam o romance a esta preocupação com o conteúdo oficial fixado
sobre o passado; neste caso, a ditadura militar. Mesmo em Farda, fardão, camisola de
dormir, que escapa à chave teórica aberta aqui para a leitura do universo amadiano, vez que a
Academia Brasileira de Letras não se configura como um espaço heterotópico, é possível que
se localize algum nível de reconstrução do passado, embora este feito não se dê em função de
uma experiência advinda das margens.
Para além destes romances escritos e publicados, Jorge Amado ainda deixou
incompleto Boris, o Vermelho – narrativa iniciada por volta de 1982 e comentada pelo autor
em periódicos até pelo menos doze anos depois –, cujos datiloscritos se encontram
digitalizados na Fundação Casa de Jorge Amado49. A leitura dos originais, quando acrescida
das informações concedidas pelo autor em entrevistas a periódicos, possibilita, sem qualquer
margem de dúvida, visualizar o projeto como vinculado ao segmento ficcional em debate
neste capítulo. Isto porquê, de acordo com o próprio Jorge Amado, em depoimento concedido

49
Zélia Gattai, em depoimento publicado pela Veja Bahia em 24 de julho de 1991 sob o título “Histórias do
baiano Jorge Amado”, relata ter primeiro ouvido falar da intenção em escrever Boris, o Vermelho por volta dos
anos de 1977 e 1978. No entanto, na pesquisa realizada junto ao acervo de entrevistas amadianas, não foi
encontrada nenhuma referência a este projeto ao longo deste biênio; apenas a partir de 1982, ano que Jorge
Amado, em entrevista a Quirino Teixeira (1985), situa como sendo o de início da escrita. Zélia Gattai, no mesmo
depoimento concedido à Veja Bahia, informa que a tentativa de produção do romance se iniciou em 1984, tendo
sido realizado apenas um capítulo.
151

a Maria José Quadros e publicado pela edição de 23 de junho de 1991 de O Globo, o romance
traria

[...] o perfil de um jovem brasileiro do início dos anos [19]70, época dos “hippies”,
da liberação sexual, da pílula e também de uma ditadura militar no Brasil. Boris não
tem nada de político, também não chega a ser um “hippie” completo. Fuma
maconha, envolve-se com a chamada liberação sexual, não trabalha, tem um amigo
rico envolvido com surf, mas a circunstância da ditadura vai levá-lo a praticar certos
atos que fazem com que parte da Polícia, do Governo Militar, etc., o considere
subversivo, um traidor da pátria a serviço de Moscou, “comuna” vendido. Até que o
caso chega ao conhecimento do Ministro da Guerra, que, como era comum naquele
tempo, tira logo suas conclusões pelo nome do rapaz – Boris, apelidado o
“Vermelho”, já dizia tudo. Por outro lado, dentro do mesmo jogo de mentiras, Boris
também é visto como herói do proletariado, que se bate contra a ditadura. [Mas ele]
É apenas um jovem brasileiro que está na dele.

Em face das versões estabelecidas pelo inquérito policial-militar, respaldada pelo


regime político em vigor e com estatuto oficial, e aquela montada e defendida pelos ideólogos
do Partido Comunista, o narrador busca enfatizar o caráter de artificialidade de ambas, posto
que nenhuma delas corresponde à figura real de Boris. Esta, como Amado informa a Marcos
Bezerra, em entrevista publicada pela Folha de São Paulo em 13 de agosto de 1988, seria
recuperada de acordo com as memórias de um grupo de amigos.
Excetuando-se desta lista Farda, fardão, camisola de dormir, pelos motivos já
explicitados, tem-se o núcleo duro de narrativas em que o passado é disposto como um
problema a ser revisto, uma vez que instaurado a partir de uma negociação deliberadamente
arquitetada entre o esquecimento e a memória. Tratam-se, pois, dos textos “Os amigos do
povo”, Tenda dos milagres e Tocaia Grande, além do projeto inacabado de Boris, o
Vermelho. A descoberta da América pelos turcos também pode figurar nesta lista, mas de uma
forma um tanto diferente dos demais: seu revisionismo se dá em uma perspectiva algo
próxima àquela assumida por Tzvetan Todorov (2010), o narrador deste romancinho tendendo
mais ao papel de um moralista no tocante às relações entre alteridades do que propriamente ao
de um historiador.
Quando separadas dos demais romances publicados pelo autor e posicionadas
sequencialmente umas em relação às outras, permitindo desta forma isolar um arco específico
da produção literária amadiana, estas tramas se apresentam sob a clave de um constante
adensamento no que concerne à ficcionalização crítica do ato de instituir e narrar passados,
inclusive percebendo-os como loci temporais engendrados a espelho das zonas de conflito e
de exclusão que configuram o presente. O romancista se mostra bastante consciente do fato de
a escrita sobre os tempos idos estar condicionada aos vários posicionamentos de quem a
152

produz, que é sempre responsável por escolher o que e como negociar a lembrança e o
esquecimento – não raro, agenciando o passado como forma de legitimação do presente,
assim como demonstra o historiador britânico Eric Hobsbawm (2011, p. 18):

[...] a história é a matéria-prima para as ideologias nacionalistas ou étnicas ou


fundamentalistas, tal como as papoulas são a matéria-prima para o vício da heroína.
O passado é um elemento essencial, talvez o elemento essencial nessas ideologias.
Se não há nenhum passado satisfatório, sempre é preciso inventá-lo. [...] O passado
legitima. O passado fornece um pano de fundo mais glorioso a um presente que não
tem muito o que comemorar.

Em 1964, Jorge Amado publica Os pastores da noite, texto dividido em três partes
cuja ambientação humana garante a coesão de seu universo interno, mas cujas tramas
carregam total independência entre si. É justamente a última e maior destas três narrativas
presentes no livro, ironicamente intitulada “Os amigos do povo”, que inaugura o arco
ficcional revisionista. Aqui, o choque entre versões, com aquela oriunda do “baixo”
desmontando a oficial produzida pelo alto, se coloca como estratégia de desnudamento do
desinteresse do Estado em relação às populações marginalizadas – ou, dito de outro modo, do
interesse em reprimi-las ou manipulá-las sempre em proveito das elites, das classes política e
jornalística.
O desenvolvimento da trama ocorre por volta de meados da década de 1940, época em
que surgem as primeiras invasões de terrenos por uma população sem-teto em Salvador50. As
terras em questão se tratam do Morro do Mata Gato, espaço ficcional situado entre os bairros
de Amaralina e da Pituba, de propriedade do milionário José Perez, mais conhecido pela
alcunha de Pepe Oitocentas, “[...] dono de uma rede de padarias, de fazendas de gado e de
léguas e léguas de terreno, sem falar nos prédios de aluguel” (AMADO, 2009, p. 187).
Configurada como uma propriedade privada assegurada em documento de comprovação de
posse, esta longa faixa territorial encontrava-se desocupada, posto que reservada para a
especulação imobiliária quando o crescimento da cidade avançasse naquela direção, seguindo
o fluxo da orla.

50
De acordo com Inaiá de Carvalho e Gilberto Pereira (2014, s.p.), a “[...] primeira invasão de terras para a
construção de habitações ocorreu em 1946, a denominada invasão do Corta Braço, hoje bairro de Pero Vaz.
Tornando-se comuns e recorrentes, essas ocupações e o tratamento que lhes foi dispensado pelo poder público
tiveram uma significativa influência na expansão e conformação territorial da capital baiana. A depender da
conjuntura, da resistência e de negociações políticas, algumas vezes os ocupantes conseguiram permanecer nas
áreas onde se haviam instalado, que terminaram se consolidando como bairros populares. Mas, na maioria dessas
ocorrências, eles terminaram sendo expulsos ou transferidos pelo poder público para espaços mais distantes
[...]”.
153

Ao ter as suas terras invadidas, o espanhol, cujo acesso às esferas mais altas do poder
político é feito de forma direta, aciona o governador da Bahia, que movimenta o Estado, por
meio de seu aparelho repressivo configurado na polícia, para restituir a propriedade privada,
inclusive com uso desproporcional e sistemático de violência, do que resultam casebres ao
fogo ou ao chão, espancamentos e mortes.
Este é o pano de fundo para que políticos da oposição e jornalistas – estes motivados
pela possibilidade de prêmios ou pela perspectiva de angariar votos para uma futura
candidatura à Câmara de Vereadores –, se valham da imagem de defensores do povo
oprimido, que é surrado e vilipendiado em seu direito básico de ter uma moradia. Campanhas
são organizadas para pressionar o Governo a resolver o impasse, de modo a possibilitar que os
ocupantes do Morro do Mata Gato continuassem lá instalados – o que é efetivamente
conseguido, mas às custas de negociatas entre o poder público e Pepe Oitocentas, que é
fartamente indenizado.
No entanto, para a memória oficial acerca do Mata Gato estabelecida pelos jornais, os
dois parágrafos acima não existem.
O narrador de “Os amigos do povo” se encontra temporalmente distanciado dos
eventos em torno do Mata Gato, observando-os retrospectivamente a partir do instante em que
outras invasões, seguindo o modelo daquela inicial, já se haviam realizado, alterando a
configuração espacial citadina: “[...] cresceram bairros inteiros para o lado da Liberdade, no
nordeste de Amaralina, houve a invasão de Chimbo no Rio Vermelho, e os Alagados com sua
cidade sobre as águas” (AMADO, 2009, p. 189). Em todo caso, mostra-se vinculado aos
acontecimentos que tiveram lugar naquelas extensões de terra, colocando-se como portador de
memórias pessoais, originárias de sua própria experiência, do embate entre o poder público e
os ocupantes do Mata Gato, já que afirma tê-lo vivenciado – ou, no mínimo, presenciado:
“[...] ali estávamos e sabemos de tudo” (AMADO, 2009, p. 188)51.
A posição que o narrador ocupa é, de fato, estratégica: ele pode agenciar tanto o
passado, reconstituindo os eventos em torno da ocupação a partir da memória que detém
deles, quanto, aludindo ao presente no qual está inserido, se reportar à versão da história que
se fixou como verdadeira, uma vez que instituída por um poderoso aparelho ideológico, a
imprensa:

51
No início do romance, em uma espécie de preâmbulo lírico, o narrador afirma: “Conto o que sei por ter vivido
e não por ouvir dizer. Conto de acontecidos verdadeiros” (AMADO, 2009, p. 14).
154

A discussão está nas gazetas, governistas e oposicionistas acusam-se, xingam-se,


elogiam-se, cada um quer tirar maior proveito da invasão das terras do Mata Gato,
além de Amaralina, por detrás da Pituba. Pelo visto houve desde o início, e até
mesmo antes de dar-se a invasão, uma completa e total solidariedade para com os
invasores, ninguém se colocou contra eles, e alguns, como o deputado Ramos da
Cunha, da oposição, e o jornalista Galub, correram perigos sérios para defendê-los
(AMADO, 2009, p. 187).

A ironia com a qual o narrador se refere à suposta solidariedade de políticos e


jornalistas com os invasores – aliás, já presente no próprio título da narrativa –, antecipa o
desmonte que esta versão da história irá sofrer. Testemunha ocular dos acontecidos, o
narrador os vivenciou, se não como um dos ocupantes do Mata Gato, no mínimo como
alguém estabelecido na mesma faixa social que eles. Afinal, diz de si mesmo a partir de uma
qualificação extensiva às demais personagens, principalmente àquele grupo de amigos que
conduz as três estórias de Os pastores da noite: “Quem somos nós, suspeitos vagabundos da
Rampa do Mercado” (AMADO, 2009, p. 187, grifos meus).
O narrador, que se posiciona a partir de uma heterotopia, detém uma memória não
veiculada pelos jornais para a sociedade englobante, tendo sido relegada aos subterrâneos da
história citadina. Ao romper o silêncio e apartar-se do tom laudatório destinado aos
mandatários da terra, ele reivindica o passado sob uma perspectiva diversa, cujo enfoque recai
sobre as fraturas entre o discurso construído e as ações efetivamente realizadas pelo poder
público e pela imprensa – a violência e o jogo de interesses. As memórias subterrâneas
provenientes deste narrador vagabundo da rampa do Mercado, de todo identificado com os
ocupantes do Mata Gato, tensionam os discursos oficiais estabelecidos, expondo-os antes
como “documentos da barbárie” do que como “documentos da civilização”:

Não culparemos a nenhum, não somos um tribunal, e ninguém procurou saber se


havia um responsável, ou vários, pela morte de Jesuíno Galo Doido, estavam todos
muito ocupados com as comemorações. Mas também não iremos tomar parte no
coro de elogios ao governador ou aos deputados, os do governo e os da oposição,
nem ao espanhol dono dos terrenos, o velho Pepe Oitocentas, como era conhecido o
milionário José Perez (AMADO, 2009, p. 187).

Os fatos lançados às zonas de sombra pelos discursos oficiais são trazidos ao primeiro
plano da cena representacional a partir deste lugar de falar outro, heterotópico, que é
instituído em acordo com as memórias subterrâneas enraizadas na experiência do narrador.
Com isso, opera-se a desconstrução das versões legitimadas pelo poder, que comunicavam um
exercício verdadeiro de política em prol dos não-abastados ou um engajamento sincero dos
jornais ao lado do povo ou, ainda, um ato de desapego e altruísmo decorrente das elites. No
155

lugar destas ideologizações, descoladas por completo da concretude do real, o narrador


procura estabelecer o que seria, de um ponto de vista situado fora da estrutura capilar do
poder dominante, a verdade dos acontecimentos – ou, pelo menos, a verdade possível sob o
prisma daqueles que ocuparam o Mata Gato. Desta maneira, todos aqueles que, tendo as
esferas centrais do poder político e social como cúmplices, se arvoraram “amigos do povo”,
porque supostamente engajados em seu favor, são destronados desta condição – seja através
do recurso da ironia, que tem por objetivo tensionar as versões oficiais em face do real
recontado, seja pela denúncia do jogo de interesses privados que assalta o espaço público e
secundariza o bem comum.
Para além disso, o narrador procura também romper o silêncio em torno do assassinato
de Jesuíno Galo Doido, espécie de comandante e estrategista da resistência montada no Morro
do Mata Gato com fins de repelir os avanços do cerco policial capitaneado por Chico Pinóia.
A cena se desenvolve simultânea ao pronunciamento público do governador acerca da cessão
das terras aos invasores, o que resulta em momento de júbilo para todos aqueles que, de uma
forma ou de outra, vestiram-se como “amigos do povo”. O paralelismo em que ocorrem o
assassinato e a comemoração alude ao descaso com que a sociedade, agora vista sem
máscaras, reservava à gente do Morro.
Olhando os fatos a partir de uma outra visão de mundo, o narrador não se permite não
responsabilizar o assassino: “A figura de Jesuíno Galo Doido projetou-se contra o horizonte
vermelho do crepúsculo. ‘Fogo!’, comandou Chico Pinóia, e a metralhadora varreu os
arbustos, levantou terra, comeu o peito de Jesuíno” (AMADO, 2009, p. 289).
Não só de revisar os eventos propriamente relacionados à invasão do Morro do Mata
Gato e aos desdobramentos do jogo político que legaliza a ocupação vive o narrador de “Os
amigos do povo”. Ele se detém também em contrapor o absoluto desconhecimento que marca
a média e alta sociedade soteropolitana em relação ao nome de Jesuíno Galo Doido com a
permanência de sua memória no âmbito dos espaços populares e negros.
O fato de o narrador evidenciar a desimportância concedida ao assassinato da
personagem implica revelar o seu estatuto de ninguém ante os poderosos da cidade, que lhe
reservam o silencio e o mais completo esquecimento. Imagem diametralmente oposta é
produzida na esfera dos antigos companheiros, onde Jesuíno não era apenas mais um sem
nome. Além de amigo, era irmão e Oba de Xangô. Irmanado a esta ambiência, o narrador
registra:
156

O corpo de Jesuíno nunca foi encontrado. Houve mesmo quem duvidasse de sua
morte, dissesse ter ele partido e mudado de nome, como sucedeu com o cabo
Martim, que virou sargento Porciúncula. Tais boatos circularam durante alguns
meses até quando, numa grande festa do candomblé Aldeia de Angola – onde o pai
de santo Jeremoabo recebe o caboclo Maré Alta e distribui passes e saúde –, baixou
na moça Antônia da Anunciação, iaô ainda sem santo definido, um pedaço de
mulata sem exemplo, nela baixou um novo caboclo antes desconhecido.
Pela primeira vez descia num terreiro e declarou chamar-se Caboclo Galo Doido
(AMADO, 2009, p. 291).

A cena em destaque, por um lado, põe em evidência o fato de a personagem não ter
sido esquecida pelos seus, uma vez que o desaparecimento do corpo é acompanhado pela
incredulidade diante de sua possível morte e pelo rumor acerca de seu destino – atitudes
vinculadas a um sentimento de não aceitação da perda de Jesuíno e conotativas da estima da
qual ele gozava entre aquelas pessoas. Os boatos funcionam segundo uma lógica da
esperança, através da qual as notícias inventadas aqui e ali sobre o paradeiro da personagem
implicam pressupô-la e mantê-la viva.
Por outro lado, a dissipação da dúvida em relação à morte de Jesuíno é acompanhada
da perenização de sua memória, uma vez que ele é sacralizado, sob o nome de Galo Doido,
como força divinizada a ser cultuado nos Terreiros de Candomblé que recebem Caboclos.
Dialeticamente, a narrativa se processa atritando esquecimentos oficiais com as
permanências localizadas nas memórias subterrâneas, que vêm a ser organizadas por lógicas
distintas daquelas que encimam o poder político e econômico. O resultado deste confronto é
um texto comprometido com o desmascaramento do conjunto de relações que sustentam os
“podres poderes”, para lembrar Caetano Veloso, e com o espaço de diferença – relações
sociais, cultura, memória – engendrado por aqueles habitantes do Morro do Mata Gato, esta
heterotopia incrustada no tecido urbano da Salvador capitalista, burguesa e católica.
Sugeri anteriormente que as tramas constitutivas deste arco ficcional compreendem
um processo constante de adensamento de sua perspectiva revisionista da história, do que
resultam diversas estratégias de abordagem do passado e múltiplas estruturas narrativas. Com
esta afirmação, não pretendo dar a entender que Tocaia Grande – a rigor, o último romance
revisionista – seja melhor formatado do que Tenda dos milagres ou que Boris, o Vermelho, se
escrito, o viria a ser. A questão não se coloca neste nível, não se tratando de uma leitura
evolucionista cuja orientação seja dada pelas ciências naturais. Procuro apenas sinalizar um
procedimento adotado pelo autor em relação ao seu trato ficcional com o passado, o ir mais
além. Deste modo, narrativa a narrativa, o passado a ser revisto pode ser deslocado mais para
trás, tornando-se remoto ao ponto de se configurar como mito de fundação (Tocaia Grande);
ser organizado em paralelo a outro, apenas aludido, para estabelecer um jogo entre dois
157

modelos distinto de contato com a alteridade, submetendo-a ou integrando-se a ela (A


descoberta da América pelos turcos), ou, noutra perspectiva, ser algo recente, porém múltiplo,
contendo duas versões a serem desestabilizadas (Boris, o Vermelho).
Tenda dos milagres se insere nesse contínuo de forma singular. Segunda narrativa a
compor o arco ficcional revisionista, ela efetivamente se constitui como um adensamento em
relação à anterior, mas o é em um nível não repetido por Tocaia Grande e que –
provavelmente, a julgar pelos datiloscritos – também não o seria por Boris, o Vermelho52.
Este meu posicionamento está embasado em uma observação da estrutura temporal de Tenda
dos milagres, que não toma do presente ficcional como uma condição previamente
estabelecida, deixando-o à margem do próprio desenvolvimento narrativo, cujo enfoque, tal
como em “Os amigos do povo” e em Tocaia Grande, recai todo no passado – embora sob
outra perspectiva neste último romance. Tenda dos milagres agencia os dois tempos,
intercalando-os na medida mesma em que se vão tecendo narrativamente.
Posto deste modo, Tenda dos milagres não se contenta em romper com os processos
de silenciamento, mas, indo além, procura mostrar o que é silenciado, as razões nunca
assumidas para a produção do silêncio e o como ele é institucionalizado, não deixando de
apontar também quem é responsável por este processo. Para tanto, é constituída uma
articulação temporal que procura enfatizar, por contraste, as incongruências presentes entre a
história oficial, que é flagrada quando de sua montagem pelos aparelhos de Estado, e aquela
memória subterrânea, mantida por via da oralidade, a partir da qual se pode reconstituir o
passado sob um viés heterotópico.
Em paralelo a este aspecto concernente à estrutura do romance, há ainda um segundo
fator de adensamento em relação a “Os amigos do povo”: a abrangência temática. Uma
afirmação como essa, se confrontada com uma leitura pela rama de Tenda dos milagres, pode
soar como um contrassenso, uma vez que aparentemente tal narrativa se dedica a revisar a
história de um indivíduo, Pedro Archanjo Ojuobá, ao passo em que aquela se ocupava de um
bairro inteiro. No entanto, a superficialidade de uma tal suposição não resiste ao entendimento
de Archanjo como instrumento por intermédio do qual o romance acessa o passado de
Salvador; mais precisamente, o período de vigência de um projeto modernizador atrelado a
um modelo eurocêntrico, as primeiras décadas do século XX. Sob este ângulo, Tenda dos
milagres recupera as narrativas subterrâneas que contam de Pedro Archanjo para nelas

52
A seguir pelos datiloscritos de Boris, o Vermelho, não é possível retirar nenhuma conclusão a este respeito. No
entanto, acredito que a importância de qualquer sequência narrativa situada no presente fosse minorada, uma vez
que Boris já está morto e as versões sobre a personagem – subversivo; herói do proletariado – já estão montadas.
158

observar não apenas a personagem, mas as memórias que narram a Cidade da Bahia sob o
prisma daqueles que foram silenciados – não raro, perseguidos, violentados e mortos – pela
modernização citadina: o amplo contingente populacional de pobres, negros e mulatos, além
das culturas popular e do Candomblé.
Tocaia Grande, por sua vez, retorna a uma estrutura temporal mais simples,
constituindo-se como uma sequência narrativa em que os cerca de sete anos durante os quais a
trama se desenrola, mais ou menos situados entre as décadas de 1910 e 1920, são contados de
forma linear e progressiva. Assim, o romance é dividido em seis partes, que procuram
organizar, a partir de um tom épico, os estágios de desenvolvimento alcançados pela
cidadezinha que dá título ao livro – “o lugar”, “o ponto de pernoite”, “o arruado”, “o
lugarejo”, “o povoado” e “o arraial” – além de um pequeno preâmbulo, situado no presente do
narrador. Há ainda uma sétima e última parte, esta dotada de arquitetura trágica, na qual o
modo específico de vida ali constituído – desprovido de hierarquias, fundado na solidariedade
e no respeito ao outro – é violentamente destruído para dar lugar à implantação de um modelo
baseado nos dogmas da Igreja e nas leis do Direito. A narrativa, assim procedendo, alude e
atualiza os genocídios decorrentes da imposição dos padrões ditos civilizados de cultura e
sociedade nos territórios coloniais; “documentos da barbárie” onde, em geral, as histórias
oficiais veem “documentos da cultura”.
Ainda assim, é possível sustentar a existência de um adensamento relativo à
perspectiva revisionista do passado, dessa vez não diretamente localizado na estrutura em que
o tempo é articulado narrativamente, mas no sentido que lhe é conferido. Neste romance,
Jorge Amado procura revisar o tempo das origens, desarticulando o mito fundacional de
Irisópolis; cidade próspera, porém erguida sobre os mortos inseguros do antigo arraial de
Tocaia Grande.
A este respeito, cabe recuperar um depoimento do autor sobre uma cidade do interior
da Bahia, Itajuípe, cuja história serve de modelo para Irisópolis. Em entrevista concedida a
Any Bourrier e publicada pelo O Globo em 30 de janeiro de 1982, quando ainda pensava o
formato que daria à narrativa e maturava o texto a ser escrito, Jorge Amado comunica aquele
que, em essência, viria a se constituir, dois anos depois, como o tema de Tocaia Grande:

Quero mostrar [...] que não foram propriamente os homens que receberam
homenagens, os que têm bustos erigidos nas praças públicas, que se gabaram ou se
gabam de terem feito isto ou aquilo, não são eles os verdadeiros construtores de
Itajuípe. Quem construiu, de fato, minha cidade, foram os trabalhadores, as
prostitutas, os bandidos, o povão. Eles chegaram, cavaram, levantaram muros,
construíram, lutaram contra doenças, enfrentaram perigos, formaram uma
159

comunidade e, quando tudo estava feito, apareceram os grandes, os brancos, e se


apossaram da situação. Desejo, pois, restaurar uma verdade histórica, pois o Zé
Povinho foi expulso da história de Itajuípe.

O “[...] começo histórico é baixo. Não no sentido de modesto ou de discreto como o


passo da pomba, mas de derrisório, de irônico, próprio a desfazer todas as enfatuações [típicas
das narrativas de origem]”, observa Michel Foucault (1979, p. 18) ao retomar as
considerações de Nietzsche a respeito da história. É mesmo este o efeito de sentido
ocasionado pela emergência das memórias subterrâneas recuperadas pelo narrador, a
produção de uma anti-história de origem. Isto porque o romance não se vincula à perspectiva
de narrar uma “alta origem”, mas de destronar esta versão do estatuto de mito fundacional de
Irisópolis, tensionando-a de baixo para cima. O narrador procura reverberar as memórias
subterrâneas resgatadas no contexto do septuagésimo aniversário da cidade, momento
propício para a celebração ritual dos mitos de origem e para saudar antigos heróis:

Foram escritos artigos laudatórios, recordando, com a ênfase e a retórica necessárias,


os feitos do coronel [Boaventura Andrade] e do doutor [Venturinha, filho do
coronel], páginas de civismo, lições da História, exemplos para as gerações
vindouras. Tudo como manda o figurino, para gáudio dos notáveis, da
intelectualidade, da juventude – a esperança da pátria –, enfim de todos que são
capazes de reconhecer e aplaudir o heroísmo e o devotamento dos ínclitos
antepassados à causa pública.
Assim, o Brasil inteiro, do Oiapoque ao Chuí, pôde contemplar, ao clarão do
foguetório comemorativo, a refulgente face de Irisópolis, comunidade nascida do
arco-íris em longínquo dia de bonança, de paz e fraternidade entre os homens [...].
Em seus textos comemorativos, literatos, políticos e jornalistas omitiram quase
sempre o nome primitivo do burgo; razões óbvias relegaram-no ao esquecimento.
Antes de ser Irisópolis, foi Tocaia Grande (AMADO, 2008, p. 12).

Ao contrário de Tenda dos milagres, romance cujo narrador, o poeta Fausto Pena,
possui, em certa medida, um trânsito natural entre aqueles que lhe servem como fontes para
recuperar a memória de Archanjo, não há indícios, em Tocaia Grande, que seu narrador
disponha desta mesma condição – até mesmo porque a maior parte dos que viviam naquele
arraial foi dizimada. Esta situação leva a crer que a instância narrativa é composta por um
historiador de ofício, cuja concepção e abordagem da história, além de seu posicionamento
político-ideológico, revelam-no identificado com as perspectivas enunciadas a partir do baixo.
Suas fontes envolvem os folhetos de cordel, nos quais “[...] deu-se a condenação unânime do
massacre, numa evidente tomada de posição ao lado do povo de Tocaia Grande” (AMADO,
2008, p. 453), e as narrativas orais produzidas pelos poucos sobreviventes – aliás, corrobora
para esta leitura o fato de uma epígrafe ao romance ser creditada a Lupiscínio, personagem
160

integrado àquele arraial e que resistiu ao seu extermínio: “A gente pôde com a enchente e com
a peste; com a lei não pôde não: sucumbiu” (AMADO, 2008, p. 10).
Acessando a história anterior a Irisópolis a partir dos subterrâneos que revelam Tocaia
Grande, e em face do cenário montado para reencenar esquecimentos e atualizar a farsa
elevada ao estatuto de verdade oficial, o narrador, logo após referir-se brevemente e com
alguma ironia à efeméride que tem lugar no presente da escrita, anuncia o seu propósito em
buscar o passado:

Digo não quando dizem sim em coro uníssono. Quero descobrir e revelar a face
obscura, aquela que foi varrida dos compêndios de história por infame e degradante;
quero descer ao renegado começo, sentir a consistência do barro amassado com lama
e sangue, capaz de enfrentar e superar a violência, a ambição, a mesquinhez, as leis
do homem civilizado. Quero contar do amor impuro, quando ainda não se erguera
um altar para a virtude. Digo não quando dizem sim, não tenho outro compromisso
(AMADO, 2008, p. 13).

Com efeito, está aí formulado não apenas o leitmotiv do romance, mas uma verdadeira
profissão de fé que, estendendo-se de forma retrospectiva às investidas anteriores de Amado
em relação ao passado, recobre e se aplica a todo o arco ficcional revisionista.
Em função do Quinto Centenário da invasão e consequente conquista da América
pelos povos europeus, uma empresa estatal italiana encomendou a Jorge Amado uma
narrativa para ser publicada conjuntamente com outras duas, produzidas por Norman Mailer e
Carlos Fuentes, as três girando em torno do tema motivador da efeméride. A partir deste
convite, Jorge Amado recuperou algumas sobras do material produzido para Tocaia Grande
relativas ao núcleo libanês da trama, organizou-as a partir de uma lógica narrativa distinta e
entregou A descoberta da América pelos turcos, que veio a ser o seu último romance53.
Como a própria razão da encomenda sugere, o recuo ao passado que esta narrativa
promove se dirige para o instante em que o continente americano passa a ser conhecido pelos
povos europeus. No entanto, isto não é feito de modo com que a trama se desenrole nos idos
de 1492 ou nos anos subsequentes à invasão/conquista, quando o contato entre nativos e
invasores se deu pela lógica da subjugação e do extermínio dos primeiros pelos segundos. A
descoberta da América pelos turcos apenas alude a este evento histórico, contrapondo a ele
outra relação entre alteridades, desta vez mediada por uma integração harmônica.

53
O livro, escrito em português, foi inicialmente lançado na França, em 1992; a publicação no Brasil ocorrendo
apenas dois anos depois, em 1994. Isto porque a empresa italiana contratante se viu envolvida em escândalos de
corrupção e abortou o projeto, mas manteve os direitos de comercialização do texto nas línguas italiana,
portuguesa, inglesa e espanhola por três anos.
161

Em texto publicado no Brasil pela primeira vez em 1983, o hoje clássico A conquista
da América, Tzvetan Todorov (2010) propõe uma reflexão que me parece ser matriz do
posicionamento emulado por Jorge Amado em A descoberta da América pelos turcos. Neste
livro, mais preocupado com o presente do que com o passado, o pesquisador búlgaro toma do
choque entre europeus e americanos como uma estória exemplar, ou seja, como um evento
histórico dotado de força o suficiente para ser instituído como um modelo – ou, no caso, como
um anti-modelo – do contato entre alteridades. Por isto, ele delimita o seu interesse como
pertencendo ao ofício de um moralista, para quem a história serve como uma forma de retirar
do passado formas a servirem de balizas para pensar a sociedade de hoje e de amanhã.
Neste sentido, Todorov toma do fato extremo da descoberta/invasão/conquista para
retirar uma espécie de ensinamento: o de que é necessário descobrir o outro, uma vez que a
recusa às alteridades implica conflitos interessados em sua supressão, sempre permeados por
violência e mortes.
A aproximação possível entre A descoberta da América pelos turcos com a
perspectiva posta por Todorov se dá no plano das formas de relacionamento com as
alteridades que as duas descobertas colocam em cena. O búlgaro, salvas algumas raras
exceções, visualiza anti-modelos na história, ou seja, formas de contato nas quais o presente e
o futuro não podem se espelhar, sob pena de se repetirem as iniquidades ocorridas no
processo colonial. A narrativa amadiana, por sua vez, desloca a expressão “descoberta da
América” no tempo e no espaço, acionando outro contexto e outros atores. Focaliza a
integração harmônica de sírios, libaneses e turcos na região do sul baiano, o que se deu por
volta de final de século XIX e início do XX. Assim, em lugar da lógica de opressão vinculada
ao domínio europeu sobre a América, Jorge Amado procura por um modelo de “descoberta”
em que tenham vigorado sobretudo os princípios de respeito e de integração – “viver a
diferença na igualdade”, como projeta Todorov (2010, p. 363).
Algo inusitada, a perspectiva aberta por Amado permite que o romance traga o signo
da “descoberta” sem que isso implique, de nenhuma maneira, um posicionamento do autor ao
lado da versão oficial da história acerca das relações entre os continentes europeu e
americano. Isto porque a entrada de árabes, libaneses, sírios e turcos na América não acarreta
em conquista, no sentido mais beligerante que o termo aceita, de modo que eles não são
responsáveis por uma atualização dos processos sistemáticos de genocídio e de epistemicídio
característicos de toda engrenagem colonial conduzida por portugueses e espanhóis no Novo
Mundo. Pelo contrário: esses povos árabes, também estrangeiros, quando em contato
profundo com a região grapiúna, integram-se a ela, negociando suas regras sociais e culturais
162

com aquelas que já constituem o local – não é à toa, portanto, que o narrador os designa como
“a boa nação turca”:

A referência à descoberta da América vai por conta das comemorações atuais,


onipresentes: hoje em dia não pode o pacato cidadão dar o menor passo, soltar o
menor peido sem que lhe tombe sobre a cabeça o Quinto Centenário. Da Descoberta,
dizem os descendentes dos impávidos que descobriram o outro lado do mar, da
Conquista exclamam os descendentes dos índios massacrados, dos negros
escravizados, das culturas arrasadas à passagem de mercenários e missionários
conduzindo a Cruz de Cristo e a pia batismal.
A discussão está posta, polêmica violenta, sem meio-termo, sem previsão de acordo,
o sectarismo predomina nos dois partidos, quem quiser que se meta e se exponha a
levar as sobras, não serei eu que o faça, eu, mestiço brasileiro, fruto da descoberta e
da conquista, da mistura (AMADO, 1994, p. 7).

Jorge Amado posiciona o narrador no mesmo espaço de negociação entre


possibilidades supostamente antitéticas e conflitantes que antes destinara a personagens como
Dona Flor e Pedro Archanjo, através das quais se ocupou em dirimir as oposições existentes
entre Vadinho e Teodoro; a ascendência negra e a branca; o Catolicismo e o Candomblé.
Trata-se de um posicionamento que visa integrar ao invés de separar; que se constitui a partir
do e ao invés do ou...ou.
No caso da narrativa em questão, o narrador se define na condição de um “mestiço
brasileiro”, espécie de palavra-chave que indicia sua própria configuração marcada pelo e,
logo, constituído a partir das duas versões históricas sobre a entrada dos europeus na América.
Deste modo, aponta para a necessidade de não apenas postular uma ou outra leitura deste
processo, mas de entender como a realidade brasileira é moldada em função de uma e de
outra.
A postura adotada por este narrador não implica na assunção de um tom acrítico em
relação às violências inerentes aos desdobramentos históricos da colonização do Brasil nem,
muito menos, a um olhar irmanado ao poder instituído desde então.
É possível observar que, apesar da acolhida de ambas as versões sobre o fato histórico
da chegada dos europeus a este continente, o narrador, por meio da adjetivação, dá mais vazão
ao ponto de vista dos submetidos ao processo colonial do que àquele de quem o realiza –
como, de resto, é notório e invariável o posicionamento da ficção amadiana, sempre ao lado
dos oprimidos e espoliados.
O comportamento discursivo do narrador é bastante econômico ao se referir
positivamente aos agentes da colonização, qualificando-os apenas como “impávidos”, ao
passo em que cuida de registrar, com mais ênfase, os aspectos negativos de sua investida no
163

Novo Mundo, o que fica impresso nos particípios “massacrados”, “escravizados” e


“arrasadas”, termos relacionados às populações e culturas indígenas e negras.
Se observado por este ângulo, o “romancinho”, como o próprio Amado o chama, se
revela como um texto inscrito no âmbito da revisão dos fatos decorrentes da
conquista/invasão do continente americano pelos europeus. Ao se valer das “comemorações”
em torno dos quinhentos anos da viagem de Colombo para frustrar/surpreender as
expectativas em torno da expressão “Descoberta da América”, deslocando-a de seu uso
oficial, cujo neutralidade de tom encoberta equívocos, ganância e massacres, para significar a
entrada pacífica e harmoniosa dos turcos no Brasil, Jorge Amado registra sua disposição sobre
o tema – e não é a favor da história oficial, nem irmanado aos dominantes. Trata-se de buscar
neste encontro entre alteridades um modelo de convivência, o que não é identificável no início
do período colonial.
Apesar disso, quando iniciei esta sistematização do que venho chamando de arco
ficcional revisionista, informei que A descoberta da América pelos turcos se filiava a este
segmento apenas em certa medida. Acontece que a narrativa em si não aborda as questões
pontuadas nos parágrafos anteriores, reduzindo-as ao primeiro capítulo do romancinho, que
assume a condição de prólogo – a trama gira em torno do casamento entre Jamil Bichara e
Adma Jafet, duas personagens de origem árabe e integradas de todo à região cacaueira.
No que concerne ao projeto não terminado de Boris, o Vermelho, embora não haja
qualquer dúvida em relação ao seu encaixe no conjunto de textos aqui em estudo, é possível
apenas tentar algumas aproximações com o que viria a ser sua trama, uma vez que os
datiloscritos não compõem uma sequência narrativa lógica. Tratam-se de registros esparsos,
rascunhos descartados, alguns com anotações manuscritas ilegíveis, e muitas páginas
reescritas54. Junte-se a isto o fato de este projeto ter sofrido uma série de modificações ao
longo do tempo em que Jorge Amado tentou realizá-lo, como pontua o autor em várias
entrevistas, mudando de enfoque algumas vezes.
Para abordar Boris, o Vermelho, estou desconsiderando o fato de a revista Playboy, em
sua edição de agosto de 1982, ter publicado, sob cessão de Jorge Amado, um episódio do
romance, intitulado “O episódio de Siroca” – republicado como conto na edição número 8 de
54
Os datiloscritos de Boris, o Vermelho estão digitalizados em duas pastas, intituladas “Boris, o Vermelho –
Diversos”, subdividida em três outras, totalizando 10 arquivos, e “Boris, o Vermelho – Versão Indefinida”, que
contém 152 arquivos – número não correspondente à quantidade real de páginas da narrativa, isto porque a
imensa maioria é constituída de rascunhos e anotações. Não ficou claro para mim o critério de divisão das pastas,
pois os arquivos existentes na pasta “Diversos” também se encontram na outra. Os arquivos encontram-se
organizados apresentando o nome do romance seguido da abreviatura da pasta em que está localizado e o
número representativo da sequência em que foi digitalizado, por exemplo: Boris o Vermelho V.I._001, indicando
que se trata do primeiro arquivo digitalizado presente na pasta Versão Indefinida do projeto Boris, o Vermelho.
164

Exu e na coletânea Cinco histórias, de 200455. Procedo desta maneira levando em


consideração dois motivos: 1982 é o ano em que ocorre a primeira tentativa de escrever Boris,
o Vermelho, de modo que o projeto não estava ainda suficientemente maduro para Jorge
Amado. Aliás, o autor faz questão de mencionar isto no texto de apresentação que produziu
especialmente para a edição de Playboy:

“Boris, o Vermelho” ainda é uma ideia minha [...]. Uma ideia que está em suspenso,
mas que me atrai. Voltarei a ela em breve, com certeza. “O episódio de Siroca” é um
dos diversos começos com os quais tentei colocar em pé a história ainda imatura de
Boris. Cumpro, assim, uma promessa que fizera a PLAYBOY, de ceder-lhes os
primeiros capítulos de “Boris”. E entrego aos leitores uma curiosidade em matéria
de ficção: a tentativa de um primeiro capítulo de romance que de futuro será ou não
aproveitado (AMADO, 1982, p. 67, grifos meus).

O episódio em questão destoa do tom utilizado pelo romancista na maioria dos


datiloscritos de Boris, o Vermelho, além de as personagens – à exceção de Siroca e do próprio
Boris – não figurarem nos arquivos digitalizados. Trata-se de uma narrativa leve acerca do
compromisso de amor que ela devota a José Daniel, com quem fora impedida de se relacionar
por ser homem casado e com filhos. Para afastá-la, a família mudou-se do Rio de Janeiro para
Salvador, onde a jovem conhece Boris. Ainda que tocada pelo rapaz, e por ele envolvida, ela
se recusa a perder a virgindade com o Vermelho, narrando o seu sentimento e sua vontade de
fugir de volta para o Rio de Janeiro.
O fragmento não tem inserção alguma na trama de Boris, o Vermelho a não ser como
uma possível razão pela qual a polícia está atrás do jovem rapaz, uma vez que, em segredo,
ele teria planejado e executado a sua fuga. Ainda assim, novamente a julgar pela maioria dos
datiloscritos, o episódio se ajusta mal. Ao que parece, o caso de Siroca foi posteriormente
esquecido: entre os originais do romance, ganha relevância o defloramento de Clarinha, filha
do reitor da Universidade, como fato que incialmente acarreta a perseguição ao jovem Boris56.
O segundo motivo se dá pelo fato de o mesmo texto ter sido publicado, em 1989,
como um conto. Nesta nova condição, o fragmento ganha contornos de uma narrativa
finalizada, que não se relaciona a qualquer outro projeto.
Há, reconheço, a necessidade de alguma cautela em face desta segunda razão, uma vez
que a publicação de “Declaração de guerra em língua de sotaque” como um conto não me
impediu de identificar a narrativa com o projeto de A guerra dos santos. Acontece que, neste
caso, a publicação como conto se deu após Jorge Amado ter transformado o projeto em O

55
Cf. Anexo B.
56
Esta informação pode ser visualizada no datiloscrito Boris o Vermelho V.I._006.
165

sumiço da santa e tê-lo lançado sob esta forma, ou seja, já não existia mais A guerra dos
santos. Com “O episódio de Siroca” é diferente: produzido ainda nas primeiras tentativas de
escrever Boris, o Vemelho, a publicação como conto – desgarrando-se da trama projetada para
o romance – deu-se ainda em meio às tentativas de realizar o projeto, o que parece sugerir o
abandono dos fatos ali narrados.
Considerando apenas os datiloscritos, é possível defender que o adensamento da
perspectiva revisionista se manteria em Boris, o Vermelho. E não o seria apenas na direção já
anotada do desmonte de duas versões, mas também, e principalmente, no que concerne a uma
crítica das ideologias políticas, sejam de direita ou de esquerda, que resultaram em regimes
ditatoriais, organizados em torno de um partido único e centralizados na figura de um Grande
Líder.
A partir do final da década de 1970 e o início dos anos de 1980 – contexto em que se
acentua a derrocada do modelo soviético, mas não a sua influência ideológica sobre os
movimentos de esquerda no Brasil – se torna relativamente comum observar um conjunto de
depoimentos em que Jorge Amado se posiciona de forma crítica às ideologias. Isto porque o
autor as entende de acordo com a tradição marxista, segundo a qual seu propósito é “[...]
ocultar a verdade da sociedade de classes. É menos uma força ativa na constituição da
subjetividade humana que uma máscara ou véu que impede um sujeito já constituído de
compreender o que está diante dele” (EAGLETON, 1997, p. 86). Inserida nesta mesma
linhagem de pensamento, Marilena Chauí (1981, p. 116-117) comenta:

[...] as ideias dominantes em uma sociedade numa época determinada não são todas
as ideias existentes nessa sociedade, mas serão apenas as ideias da classe dominante
dessa sociedade dessa época. Ou seja, a maneira pela qual a classe dominante
representa a si mesma (sua ideia a respeito de si mesma), representa sua relação com
a natureza, com os demais homens, com a sobrenatureza (os deuses), com o Estado,
etc., tornar-se-á a maneira pela qual todos os membros dessa sociedade irão pensar.
[...]
A ideologia consiste precisamente na transformação das ideias da classe dominante
em ideias dominantes para a sociedade como um todo, de modo que a classe que a
domina no plano material (econômico, social e político) também domina no plano
espiritual (das ideias).

Jorge Amado não pode, então, deixar de registrar a alienação e a dominação como
corolário da ideologia; o primeiro termo se constituindo como uma pré-condição para que o
segundo se exerça. Por conseguinte, se a legitimação e a perpetuação das classes dominantes
no poder de Estado correspondem ao fim último das ideologias, não é possível que elas se
constituam como arautos de um modelo social fundamentado em uma experiência concreta de
liberdade. Afinal, a ideologia não oferece mais do que uma representação ideologizada do
166

real, em que a desigualdade inerente às relações de força que cindem uma sociedade em
hierarquias é ocultada, dificultando aos dominados se reconhecerem como tais – o que, na
maioria das vezes, implica a reificação de sujeitos, tornados títeres da ordem dominante.
É movimentando tal conjunto de sentidos, que, em suas memórias de infância
originalmente publicadas em 1981, Jorge Amado (2010a, p. 53) questiona: “Não serão as
ideologias por acaso a desgraça do nosso tempo?”. Na década seguinte, agora em seu segundo
livro de memórias, escrito em paralelo ao fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas,
o romancista volta à questão:

Teorias, ideologias – teorias ditas científicas, ideologias consideradas de pureza


incontestável – que seduziram intelectuais, mobilizaram multidões, massas
populares, comandaram lutas, revoltas, guerras em nome da felicidade do homem,
dividiram o mundo em dois, um bom, um ruim, se revelam falsas, pérfidas,
limitadoras: conduziram à opressão e não à liberdade e à fortuna (AMADO, 1992,
p. 3).

Ainda em Navegação de cabotagem, mas agora com o enfoque direcionado para os


efeitos da ideologia sobre os quadros diretivos de partidos políticos com orientação
comunista, Jorge Amado (1992, p. 31-32) escreve:

[...] intelectuais, em sua maioria medíocres e presunçosos, pequeno-burgueses


arrogantes e vazios, ditam ordens com acento portunhol, arrogam-se representantes
do proletariado, em seu nome sonham assumir o poder e mandar brasa. Fardam-se
com uniforme de dirigentes revolucionários, leem, sem muito entender, brochuras
traduzidas do russo ou do chinês para o espanhol, consideram-se sábios, arrotam
teorias, juram por Marx e Lenine, por Stalin ou (Trotsky) e Mao, seriam grotescos se
não fossem perigosos: no poder não há quem os segure, serão capazes de qualquer
estupidez, de qualquer monstruosidade, como está sobejamente provado – Stalin
continua a ser o ídolo a imitar.
Conheci e tratei com muitos desses indivíduos, em escalões diversos do poder – por
vezes o pequeno poder de uma célula do Partido –, alguns não eram más pessoas,
mas estavam todos deformados. De repente perdiam a fisionomia humana, bonecos
repletos de ideologia de segunda mão, de marxismo, de leninismo, de maoísmo,
aprendida de oitiva, pois não são muito de ler [...].

Em entrevista cedida ao jornalista Homero Primeiro em 13 de agosto de 1992, cujo


registro em áudio se encontra disponível em fita K7 no acervo da Fundação Casa de Jorge
Amado, o romancista volta ao tema das ideologias e de seu impacto sobre os seres humanos
ao longo do século XX. Segundo Amado, os intelectuais

[...] estão, em geral, amarrados nas teias das ideologias, de todas essas ideologias
que vieram abaixo [com o modelo soviético]. Agora você vê como elas eram
167

pequenas e como elas eram um estorvo para o homem e não força que colocava os
homens para adiante, que fazia marchar, etc.; que ela dificultava essa marcha 57.

“A ideologia é uma merda”, resumia um Jorge Amado visivelmente afetado em


documentário dirigido por João Moreira Salles (1995). Este pequeno apanhado de citações
procura evidenciar o lugar de destaque que uma revisão crítica das ideologias ocupa no
pensamento amadiano nas duas últimas décadas do século XX. Esta é uma preocupação ainda
mais presente quando o autor se vê confrontado com a queda do mundo soviético, fato ao qual
as classes dominantes do Ocidente procuram associar ao fim de qualquer socialismo. Neste
ponto, o romancista destaca que o que veio abaixo foi um sistema autoritário montado na
ideologia, constituindo-se de um falseamento do que seria uma verdadeira sociedade
socialista. Na mesma entrevista a Homero Primeiro, Jorge Amado defende que

[...] o que faliu foi a má aplicação, a tentativa de utilização de um sonho socialista


feito na base das ideologias. Isso faliu. A falta de democracia conduziu à ditadura. O
que acabou no mundo leste não foi o socialismo. O socialismo não acabou. O que
acabaram foram as ditaduras. Não foi o fim, não foi o último combate na guerra
histórica entre o capitalismo e o socialismo, não. Foi uma batalha entre a ditadura e
a democracia. Quem venceu foi a democracia58.

Além da óbvia relação com o tempo vivido, que solicita de imediato uma revisão do
que a União Soviética efetivamente significou na história humana, é possível acessar uma
outra chave de leitura para a reiterada ocorrência desta crítica das ideologias no discurso
amadiano, ao menos naquele em que está emulada a posição sujeito ao invés de
autor/romancista. Trata-se de uma estratégia para salvaguardar, em face da emergência da tese
do fim da história59, a crença no futuro – aquele laivo de espírito utópico que nunca abandona
Jorge Amado. O escritor tenta separar o joio do trigo, distinguindo entre ideologia e ideal, este
último termo às vezes aparecendo também como sonho e esperança. Enquanto a primeira
conduziu a regimes autoritários, responsáveis por esmagar as liberdades individuais, o
segundo continuaria a animar os corações humanos no sentido da busca por um modelo social
em que as dimensões coletiva e individual se estabelecessem em justo equilíbrio – uma
revolução sem ideologia, como Amado registra em O menino grapiúna.

57
Fita K7 R2 Studio 13. Lado A.
58
Fita K7 R2 Studio 13. Lado B.
59
No contexto da queda do muro de Berlim e, posteriormente, da fragmentação e dissolução da União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas, o economista estadunidense Francis Fukuyama defendeu a teoria de que a
história, na condição de um desenvolvimento das sociedades humanas em torno a mudanças de modos de
produção, havia terminado com a vitória do capitalismo baseado em uma democracia liberal sobre os regimes
fascistas e comunistas. Neste sentido, o modo de vida representado e defendido pelos Estados Unidos
corresponderia ao ponto culminante da história humana.
168

Seja como for, o fato é que a crítica das ideologias políticas não figura como elemento
galvanizador dos romances publicados por ele entre as décadas de 1980 e 1990, embora seja
recorrente nas entrevistas concedidas pelo autor neste período, o que é estranho, pois as
entrevistas sempre espelham temas que ou foram explorados em livros ou estão sendo
maturados para tal. É bem verdade que, a grosso modo, esta crítica pode ser notada aqui e ali,
nas fímbrias de um parágrafo ou outro. No entanto, não é ela que sustenta a narrativa de
Tocaia Grande, nem a de O sumiço da santa, muito menos de A descoberta da América pelos
turcos.
O estranhamento que esta ausência acarreta é minimizado diante da leitura dos
datiloscritos de Boris, o Vermelho. Iniciado antes de Tocaia Grande, e sendo atravessado
pelos dois últimos romances publicados por Jorge Amado, o referido projeto faria, de sua
revisão do passado, um pretexto para a crítica das ideologias políticas, transpondo para a
ficção aquela espécie de inquietação ou mesmo angústia autoral detectada não só nas
entrevistas, mas também em textos de cunho memorialístico.
De fato, um dos datiloscritos de Boris, o Vermelho traz o seguinte trecho:

Cansado antes mesmo de iniciar a briga de foice com a máquina de escrever e o


papel em branco, vejo-me em assustadora companhia de policiais e ideólogos, duas
categorias que abomino. Detestáveis, uns e outros, tiras e teóricos, apóstolos e
soldados da opressão, trabalham para liquidar os direitos individuais, praticam o
desrespeito, o desprezo ao ser humano, sua meta é a supressão da liberdade 60.

Em se considerando o dado recorrente de os romances amadianos apresentarem um


preâmbulo no qual se enunciam o teor da narrativa e a perspectiva assumida pelo narrador,
não é de todo infundado supor que o fragmento transcrito comporia parte desta seção. O
narrador se apresenta localizado em um espaço intersticial, a partir do qual rejeita aproximar-
se tanto de policiais – metonímia que aponta para o regime militar, uma vez que o romance
estaria situado entre o final dos anos 1960 e o início da década de 1970 – quanto de ideólogos,
independentemente do espectro político ao qual se filiam. Ou seja, a narrativa procuraria
emular um ponto de vista apartado das restrições impostas seja pela força bruta ou pela
instituição de construtos teóricos organizados sob a forma de uma ideologia.
Ideólogos é, em sua origem, um termo de acepção pejorativa. De acordo com Marilena
Chauí (1981, p. 77), remete ao sentido que Napoleão Bonaparte atribuiu ao conjunto de
senadores que ele próprio nomeou após o 18 Brumário, e que foi conservado por Marx em sua
crítica à ideologia alemã, qual seja, “[...] o ideólogo é aquele que inverte as relações entre as

60
Datiloscrito digitalizado sob inscrição Boris o Vermelho V.I._028.
169

ideias e o real”. Deste modo, ao invés de as ideias serem fundamentadas em uma base
material e em função da realidade imediata, elas estariam próximas ao domínio da metafísica,
fundando uma leitura do real descolada da base material que o constitui.
Estas duas forças das quais o narrador procura se desgarrar produzem as duas versões
instituídas sobre o jovem Boris, que já se encontraria morto no presente da narrativa. A
primeira, e oficial, é montada pelo regime militar, considerando-o como um subversivo e
traidor da pátria. A segunda, formulada pelos ideólogos/dirigentes do Partido Comunista, o vê
como um herói do proletariado, sentinela avançada na luta contra as injustiças capitalistas e o
regime ditatorial instalado no Brasil. A estas duas, se oporia uma terceira, aquela produzida,
sem desvios de força ou de ideologia, pelo narrador:

[...] inicio devagar a pequena história de Boris, o Vermelho. Mísero vilão, traidor da
pátria, vendido ao comunismo internacional, às ordens de Moscou, a serviço de
Cuba, profissional do terrorismo, bandido sem entranhas e daí por diante, conforme
ficou patenteado na devassa – a maioria dos inqueridos confessou, dois deles, mais
(ou menos) resistentes, bateram as botas no curso dos interrogatórios – estabelecida
a mando dos Generais. Lídimo paladino da Revolução Proletária, filho glorioso da
classe trabalhadora, invencível campeão das lutas do povo brasileiro contra a
ditadura militar, dita a Redentora, estupendo, incorruptível, sublime e por aí afora
pois o biógrafo, senhor de rico vocabulário, não poupou adjetivos. Duas imagens do
mesmo fulano, duas interpretações de um mesmo acontecimento, contraditórias
decerto mas nem por isso menos corretas. Assim se escreve a História, assim ela é
ensinada nas escolas a bambinos ou a pioneiros.
Quanto a mim, cidadão vulgar, literato de baixa extração, de escrita emperrada e
sensibilidade tacanha, recordo um rapazola brasileiro, adolescente, quase um
menino, alegre e arrebatado, sem outro apetite na vida senão vivê-la. Sem qualquer
outra ambição, sem projetos de nenhuma espécie. A vida lhe bastava.
O acontecido ocorreu naqueles anos, ainda próximos e já tão distantes, anos
confusos quando os jovens repetiam um slogan condenado pelas sociedades
assentadas e governos estabelecidos, todas as sociedades, todos os governos, e o
slogan era o verso de uma canção: “faça o amor, não faça a guerra” 61.

A origem eslava do nome “Boris” atrelada à polissemia do signo “vermelho”, gerada


em função da cor adotada pelos comunistas como representação, constituem o fundamento
básico que sustenta as duas versões já instituídas sobre o jovem rapaz. Tanto o militar
responsável por conduzir o inquérito contra o subversivo traidor da pátria, quanto o ideólogo
com a importante tarefa de redigir a biografia daquele novo cavaleiro da esperança partem do
mesmo princípio: a despeito de qualquer investigação real, o nome já diz tudo. No entanto,
acerca do nome e do apelido, Jorge Amado informa, em entrevista dada a Maria José Quadros
de O Globo, e publicada pela sua edição de 23 de junho de 1991, que

61
Datiloscrito digitalizado sob inscrição Boris o Vermelho V.I._024.
170

O nome foi escolhido pela mãe dele, uma humilde costureira, leitora de romances,
que trabalhava para casas ricas. Ela pôs o nome Boris no filho porque havia um
folhetim que contava a história de um nobre russo que tocava balalaica e tinha esse
nome. O apelido “Vermelho” é porque o nosso Boris é um mulato sarará e tem o
cabelo vermelho.

A discrepância entre as narrativas formatadas, em um contexto de Guerra Fria e de


ditadura militar brasileira, a partir do universo simbólico que circunscreve o nome e a cor e,
noutro plano, o real que lastreia a opção materna por chamar o seu filho de Boris e a razão
pela qual é apelidado de Vermelho provoca o riso. O recurso é de matiz farsesco, pois a
denúncia do absurdo se assenta em uma representação aumentada, na qual erros e vícios são
exagerados de forma deliberada para que se tornem visíveis ao grande público que, de outro
modo, não os perceberia uma vez que por demais imiscuídos ao cotidiano mais comum.
No caso em questão, o exagero serve de maneira bastante adequada ao propósito de
estabelecer uma crítica à ideologia. Isto porque ele flagra o ponto em que, a partir de um dado
concreto do real – a dupla identificação do rapaz como Boris e como Vermelho –, as
narrativas instituídas se apartam do real para remontá-lo como um real ideologizado. Isto é,
como uma narrativa sobre o real que é organizada com o objetivo único de validar a própria
ideologia. Trata-se de uma montagem teleológica na qual são desconsideradas quaisquer
tensões com potencial dialético, uma vez que originadas de um confronto contraditório entre
as premissas ideológicas adotadas e a concretude do real histórico. Ao invés disso, o discurso
ideológico fala só e em uníssono consigo mesmo. Não importa quem tenha sido este rapaz de
nome Boris e apelido Vermelho: conhecido desta maneira, só pode ser um traidor da pátria,
como também só pode ser um herói do proletariado. A ideologia de quem escreve sobre o real
o determina:

Na falta de epitáfio, sobram os massudos volumes dos inquéritos, das devassas.


Postos em marcha pelas múltiplas polícias políticas, nas delegacias, nos serviços
secretos, no quartel-general das operações especiais, nos clandestinos DOI-CODES,
siglas sinistras, os inquéritos se estabeleceram, prosseguiram e engordaram entre
sutilezas de linguagem e porrada grossa.
Indagações, interrogatórios, pistas, revelações, denúncias, confissões,
impressionante conjunto de documentos autênticos e falsificados, os relatórios finais
serviram apenas para comprovar a correção das conclusões encontradas e
fornecidas antes de qualquer procedimento pelas autoridades detentoras do poder,
os mandatários a quem cabe a responsabilidade pela ordem pública e pela
estabilidade do governo. A investigação se arrastou anos a fio pois a lei deve ser
cumprida e as verbas dotadas com largueza para a defesa da pátria e do regime
devem ser despendidas no vigor do suborno e da corrupção: como abandonar o fio
da meada, a suculenta mamata?
Com idêntica consciência do dever assumido ante a História, as conclusões do livro
dedicado à vida exemplar e à luta heroica e consequente de Boris, o Vermelho – a
infância de fome conduzindo o jovem proletário à revolta e, a seguir, ao justo
posicionamento político, à consciência da luta-de-classes e à militância –, tais
171

conclusões corretas, corretíssimas, foram estabelecidas pela sábia direção


partidária bem antes que eminente teórico partisse para a redação do texto vibrante
de entusiasmo e de ortodoxia, nem um milímetro de desvio. O autor, celebrado
pensador político marxista-leninista (ainda recentemente marxista-leninista-
stalinista), provado dirigente, não é dado a vacilações e dúvidas (grifos meus) 62.

Como o projeto pouco avançou em romance, pouquíssimos são os datiloscritos que


configuram uma sequência narrativa de fato, com o que todas perguntas a respeito de como a
trama se desenvolveria restam sem resposta e uma curiosidade permanece fadada a nunca ser
suprida: qual seria o desfecho? Não me pergunto sobre o destino de Boris, pois este é sabido
morto em virtude da repressão policial, mas em relação à angústia que anima o romance, qual
seja, a crítica das ideologias. O que adviria de uma revisão do passado cujo enfoque principal
é desmontar leituras do real sustentadas apenas no discurso ideológico, seja ele de esquerda
ou de direita? Haveria alguma liberdade fora do domínio das ideologias, no sentido específico
em que elas aparecem nos datiloscritos? Caberia à comunidade hippie, heterotopia que é,
figurar esta experiência possível de liberdade? Impossível saber, Boris, o Vermelho jaz
inacabado.

62
Datiloscritos digitalizados sob inscrições Boris o Vermelho V.I._036 e Boris o Vermelho V.I_037.
172

7 DOS TEMPOS CONTRÁRIOS À LIBERDADE

O dom de despertar no passado as centelhas da esperança


é privilégio exclusivo do historiador convencido de que tampouco
os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer.
E esse inimigo não tem cessado de vencer.
Walter Benjamin. Sobre o conceito da história.

Olhos sujos no relógio da torre:


Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo ainda é de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

Carlos Drummond de Andrade. A flor e a náusea.

Uma vez observado, em suas linhas gerais, o que venho designando como arco
ficcional revisionista, pretendo agora estudá-lo, a partir de suas narrativas modelares Tenda
dos milagres e Tocaia Grande, sob uma perspectiva mais vertical, conduzida pela verificação
de três hipóteses:
1. O arco revisionista da ficção amadiana, ao reconstituir o passado sob o ponto de
vista dos oprimidos e relacioná-lo às limitações de liberdade ainda detectáveis no presente a
partir do qual os narradores produzem suas narrativas, confirma Benjamin (2012, p. 245)
quando ele afirma que a “[...] tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’
[...] em que vivemos é a regra”;
2. Admitindo-se a necessidade de atualizar a tese benjaminiana, ampliando-a para
além do contexto de expansão das tropas ítalo-germânicas pelo continente europeu, fato que
sugeria à época um triunfo iminente e inevitável do horror advindo dos regimes nazifascistas,
o estado de exceção, posto em cena por Amado através da articulação passado-presente, se
constitui da estrutura autoritária em que a sociedade brasileira está assentada, entendendo esta
configuração junto a Marilena Chauí (2013);
3. A despeito do tom crepuscular inerente às implicações práticas decorrentes da
confirmação das hipóteses anteriores, e mesmo considerando a arquitetura trágica que
engendra o desfecho de Tocaia Grande, não é correto supor que, ao fim e ao cabo, este arco
ficcional aponte na direção de um pessimismo ou, tanto menos, de uma derrocada da
modalização utópica da literatura amadiana. A recuperação de resistências e de liberdades
experienciadas em pequenos espaços heterotópicos, ainda que sejam suprimidas e silenciadas,
funcionam como aquelas centelhas de esperança que animam novas resistências e novas
173

buscas por liberdade. Como afirma Pollak (1989, p. 11), o “[...] passado longínquo pode [...]
tornar-se promessa de futuro e, às vezes, desafio lançado à ordem estabelecida”.
Antes de prosseguir a Tenda dos milagres e a Tocaia Grande, cabe delimitar, de
acordo com a leitura estabelecida por Marilena Chauí, o que se está aqui designando por
“sociedade autoritária”. A leitura do Brasil como uma sociedade autoritária é sustentada por
uma argumentação que envolve nove aspectos estruturantes da realidade nacional e que
apontam, todos eles, para a observância das relações fortemente hierarquizadas entre classes,
cuja mediação se efetua através da exclusão e da violência. Assim, para Marilena Chauí
(2013, p. 262-267), a dimensão autoritária funda

[...] uma sociedade que conheceu a cidadania através de uma figura inédita: o
senhor-cidadão, e que conserva a cidadania como privilégio de classe, fazendo-a ser
uma concessão regulada e periódica da classe dominante às demais classes sociais,
podendo ser-lhes retirada quando os dominantes assim o decidem (como durante as
ditaduras).
[...] uma sociedade na qual as diferenças e assimetrias sociais e pessoais são
imediatamente transformadas em desigualdades, e estas, em relações de hierarquia,
mando e obediência. [...] Todas as relações tomam a forma da dependência, da
tutela, da concessão, da autoridade e do favor, fazendo da violência simbólica a
regra da vida social e cultural.
[...] uma sociedade na qual as leis sempre foram armas para preservar privilégios e o
melhor instrumento para a repressão e a opressão, jamais definindo direitos e
deveres.
[...] [uma sociedade em que] não existem nem ideia nem a prática da representação
política. Os partidos sempre tomam a forma clientelística [...], populista [...] e, no
caso das esquerdas, vanguardista [...].
[...] uma sociedade, consequentemente, na qual a esfera pública nunca chega a
constituir-se como pública, definida sempre e imediatamente pelas exigências do
espaço privado, de sorte que a vontade e o arbítrio são as marcas do governo e das
instituições “públicas”.
[...] uma sociedade na qual a luta de classes é identificada apenas com os momentos
de confronto direto entre as classes – situação na qual é considerada “questão de
polícia” – sem que se considere sua existência cotidiana através das técnicas de
disciplina, vigilância e repressão realizadas por meio das instituições dominantes
[...].
[...] uma sociedade na qual a população das grandes cidades se divide entre um
“centro” e uma “periferia”, o termo periferia sendo usado não apenas no sentido
espacial-geográfico, mas social, designando bairros afastados nos quais estão
ausentes todos os serviços [...].
[...] uma sociedade na qual a estrutura da terra e a implantação da agroindústria
criaram não só o fenômeno da migração, mas também figuras novas na paisagem
dos campos: os sem-terra, volantes, boias-frias, diaristas sem contrato de trabalho e
sem as mínimas garantias trabalhistas.
[...] uma sociedade que não pode tolerar a manifestação explícita das contradições,
justamente porque leva as divisões e desigualdades sociais ao limite e não pode
aceitá-las de volta [...], é uma sociedade em que a classe dominante exorciza o
horror às contradições produzindo uma ideologia da indivisão e da união nacionais
[...].

Está aí configurado o “estado de exceção” – entendido pela invalidação dos direitos


básicos atrelados ao exercício da cidadania, além da supressão da liberdade em todos os níveis
174

da vida social – cotidianamente, e através dos tempos, experimentado pelas camadas


dominadas da população brasileira.
Uma tal percepção corresponde a uma leitura a contrapelo do Brasil e do brasileiro,
cujas fórmulas interpretativas mais profundamente enraizadas no imaginário coletivo
nacional, ainda que não se abstenham de reproduzir cenários de violência, remetem à imagem
de um país edulcorado pela transigência, posto que fundado a partir de “[...] zonas de
confraternização entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos”, como postula
Gilberto Freyre (2006, p. 33).
Como narrativa que, em certos meios, ainda goza do estatuto de ter desvendado uma
verdade inerente ao caráter nacional, tal formulação continua a balizar as representações de
Brasil situadas no mainstream. E não é raro que se lance mão dela para interpelar a produção
amadiana, como se observa, por exemplo, em Ilana Seltzer Goldstein (2003), cujo título dado
a um capítulo designa Amado como “freiriano” (sic).
Não se trata de negar validade a aproximações deste tipo, que certamente encontram
eco em alguns posicionamentos adotados pelo autor – tanto mais naqueles enunciados fora do
contexto ficcional, quando o homem às vezes trai o romancista. Acredito apenas que uma
leitura mais atenta aos romances permite observar, com algum grau de clareza, uma
abordagem muito mais voltada para a realidade dos conflitos que contradizem o mito da zona
de confraternização do que, propriamente, de um endosso a ele – como bem podem
demonstrar Tenda dos milagres e Tocaia Grande.

7.1 TENDA DOS MILAGRES E O EMBATE ENTRE MEMÓRIAS

Como já comentado anteriormente, Tenda dos milagres compreende dois eixos


temporais distintos. O primeiro deles se refere ao período de 1868 a 1943, correspondente aos
75 anos vividos por Pedro Archanjo Ojuobá, e confere maior ênfase entre as décadas de 1920
e 1940, quando se dá o processo de modernização da cidade de Salvador. Esta sequência
narrativa é formulada a partir das memórias subterrâneas recuperadas pelo narrador Fausto
Pena quando da realização de pesquisa biográfica encomendada em 1968, segundo eixo
temporal do romance, e que vem a ser o ano das comemorações oficiais em torno do
centenário de Archanjo.
Embora, à primeira vista, pareça existir alguma contradição no que foi dito acima, não
há qualquer contrassenso no fato de o nome de Archanjo ser celebrado oficialmente e, ao
mesmo tempo, a narrativa sobre ele operar em torno de memórias subterrâneas. O Archanjo
175

erguido como monumento da nação não corresponde àquele cuja memória circula nas ruas,
ladeiras e vielas do Pelourinho e dos territórios adjacentes, mantida com zelo e afeto pelo
povo-de-Axé e por populares em mesas de bar e em prostíbulos, em rodas de samba e
capoeira, em repentes e em cordéis. O Archanjo que vai ser comemorado é um homem
branco, formado e autor renomado de vários livros de antropologia; imagem bem diferente do
bedel da Faculdade de Medicina, que escreveu livros que foram ignorados porque destoavam
da tese científica do momento em relação às populações afrodescendentes.
Assim construído, Tenda dos milagres pode ser lido de acordo com duas ordens de
significação não excludentes, mas complementares uma em relação à outra. A primeira delas,
e que se mostra apreensível para qualquer leitor, está situada no nível dos discursos
defendidos pelas personagens, com Pedro Archanjo operando como porta-voz das posições a
serem assumidas pelo romance. A possibilidade inicial de significação da narrativa se
encontra no próprio desenrolar da trama, na solução dos embates que configuram o conflito
interno que a movimenta.
Nesta linha, o romance é significado como uma arena em que dois projetos distintos e
opostos de sociedade se enfrentam. De um lado, aquele que se apresenta como correlato ao
real histórico da capital baiana, o processo modernizador atado a uma concepção cientificista
legitimada e posta em prática pelos aparelhos de Estado – Faculdade e imprensa, no campo
ideológico; polícia, na esfera repressiva. Segundo esta perspectiva, quanto mais uma
sociedade se afastasse dos parâmetros europeus – seja no nível da epistéme, da cultura ou
naquele do fenótipo – menos apta ao progresso e à civilização ela o seria, o que colocava em
xeque o destino do povo baiano.
O doutor Nilo Argolo, Catedrático de Medicina Legal da Faculdade de Medicina da
Bahia, e o delegado-auxiliar Pedro Gordilho, alcunhado Pedrito Gordo, são os obedientes
seguidores desta concepção. A primeira personagem é inspirada na figura real de Raimundo
Nina Rodrigues, maranhense radicado na Bahia, excedendo-a no que se refere aos
desdobramentos violentos da teoria na prática social. Apesar de Nina Rodrigues ser um
convicto defensor do conjunto de teorias hoje denominadas como racismo científico, é
necessário também considerar que ele nunca defendeu ou encorajou a violência sistemática do
Estado contra a população negra; inclusive, colocava-se contra a perseguição aos
Candomblés, mesmo visualizando-os como sintomas da inferioridade racial negra. Na medida
em que Nilo Argolo ultrapassa a referência Nina Rodrigues, a personagem é construída na
condição de uma representação arquetípica do racismo, com o que o romance procura
176

evidenciar as implicações de uma adesão a uma concepção de sociedade alicerçada na crença


em uma desigualdade racial.
Jorge Amado faz convergirem para esta personagem várias perspectivas de racismo
que extrapolam o tipo específico de preconceito que se cultivou no Brasil – sem dúvida,
presente no processo de configuração da sociedade, constituindo-se como um seu elemento
estruturante, mas, em geral, de forma velada e mesmo negada. Ecoam no catedrático de
Medicina Legal não só as reverberações das teorias cientificistas da virada do século XIX
para o XX, como também as diversas experiências racistas que tiveram lugar no mundo ao
longo dos Novecentos: a política de negação dos direitos civis, adotada pelos Estados Unidos
da América, a experiência do apartheid sul-africano e, também, a ideia de uma superioridade
ariana da Alemanha Nazista. No contexto da Segunda Guerra Mundial, Nilo Argolo chega
mesmo a saudar Adolf Hitler como o novo redentor da humanidade, comparando-o inclusive
a Cristo.
O evidente exagero presente na construção da personagem Nilo Argolo, que parte da
figura real de Nina Rodrigues mas descola-se dela, parece cumprir uma função distinta
daquela exercida pelos simples maniqueísmos, a de separar em blocos estanques o bem e o
mal. Acredito se tratar de um recurso que visa conectar a fundação de um Brasil moderno a
modelos de sociedade já constituídos em torno de um fundamento racista, como a aproximá-
los à revelia de um discurso oficial que minora a existência de conflitos raciais no país.
O fato de o Brasil não ter tornado o apartheid sul-africano uma política oficial ou
mesmo de não ter implementado, a exemplo da Alemanha nazista em relação aos judeus, uma
solução final no concernente à população negra, igualmente vista como nociva e indesejada,
não implica em organizar-se em torno a uma estrutura menos tocada pelo racismo na condição
de um elemento fundante da dinâmica social63. Trata-se de uma sociedade pensada a partir do
mesmo fundamento epistêmico racista responsável por engendrar modelos sociais
autoritários, nos quais parte significativa da população, quando não sua esmagadora maioria, é
reduzida a condições de total sub-humanidade, cerceada no que tange a seus direitos como
cidadã e alvo constante de prisões arbitrárias e reiteradas chacinas.

63
Aliás, esse é um exemplo claro em que há dissonâncias entre o discurso ficcional amadiano e aquele produzido
pelo autor quando entrevistado. Jorge Amado posicionou-se reiteradas vezes acerca da inexistência de uma
filosofia racista imperante no Brasil, ao contrário do que ele visualizava nos Estados Unidos, ainda que
admitindo inúmeros racistas no país, principalmente entre as elites – como se pode ler no depoimento a Alice
Raillard (1990). A despeito disso, seu universo ficcional, tanto mais Tenda dos milagres, mostra exatamente o
contrário. Talvez, este seja um caso de supor que a arte, embora produto do intelecto e da sensibilidade humana,
não se reduz ao domínio consciente do criador, movimentando percepções do real que, paradoxalmente, lhe
restam de todo imperceptíveis.
177

A base ideológica constitutiva deste modelo social é reivindicada pela Faculdade de


Medicina, descrita como uma instituição decadente e retrógrada, onde “[...] desfraldaram-se
as bandeiras do preconceito e do ódio” (AMADO, 1971, p. 170). Neste cenário, Nilo Argolo é
o principal galvanizador destes sentimentos para a formulação de uma teoria com estatuto (à
época) de científica. Fortemente influenciado pela linha de pensamento estabelecida pelo
francês Arthur de Gobineau, que creditava o declínio dos grandes impérios a uma suposta
ação maléfica da mestiçagem, responsável pelo influxo de sangue vicioso (advindo das “raças
inferiores”, não-brancas) àquele virtuoso (das “raças superiores”), Argolo entende os mestiços
como seres degenerados e, portanto, obstáculos insuperáveis no que tange ao ingresso do
Brasil no conjunto das nações “civilizadas” – aliás, nesse aspecto, de modo semelhante à
posição sustentada por Nina Rodrigues (2010, p. 14-15): “A Raça Negra no Brasil [...] há de
constituir sempre um dos fatores de nossa inferioridade como povo”.
Para além de uma teoria da desigualdade entre raças, o catedrático de Medicina Legal
também articula conexões entre tais premissas e os índices de criminalidade no seio de
populações negras e mestiças, desconsiderando para tanto qualquer hipótese de ordem
socioeconômica. O romance aponta que Nilo Argolo desenvolveu e publicou, em 1904, uma
monografia intitulada “A degenerescência psíquica e mental dos povos mestiços – o exemplo
da Bahia”. É uma referência direta ao artigo produzido por Nina Rodrigues e veiculado pelos
Archives d’Anthropologie Criminelle em 1899, intitulado “Mestiçagem, degenerescência e
crime”. Aproximando-se de uma perspectiva lombrosiana, segundo a qual a criminalidade se
constituiria antes como um evento do mundo natural do que como uma consequência direta
das desigualdades sociais, e sem perder de vista as conclusões de Gobineau acerca da
mestiçagem, este texto se apresenta como um arrazoado em que o legista procura evidenciar a
relação existente entre os três fenômenos que articulam o título. Antes reverberando as
premissas teóricas assumidas do que efetivamente estudando a comunidade de Serrinha, na
Bahia, que lhe serviu de objeto, Nina Rodrigues (2008, p. 1161) afirma:

O cruzamento de raças tão diferentes antropologicamente, como são as raças branca,


negra e vermelha, resultou num produto desequilibrado e de frágil resistência física
e moral, não podendo se adaptar ao clima do Brasil nem às condições da luta social
das raças superiores.

A certeza de se tratarem de conclusões pré-estabelecidas, legitimadas a partir de uma


abordagem apriorística na qual a hipótese é reafirmada por si própria, mesmo quando
contestada por experimentos, fica patente quando Nina Rodrigues parte para defender a
178

correlação entre as supostas condições degeneradas das populações mestiças, que ele entende
como inatas, e sua tendência (também inata) ao crime. De acordo com as premissas
assumidas, era de se esperar um elevado grau de criminalidade em Serrinha, o que não ocorre:
a realidade factual contradiz os resultados esperados pelo modelo proveniente das teorias
cientificistas da época. Apesar do dado objetivo apontar para a refutação da hipótese
palmilhada, inclusive com medições cranianas contrárias às expectativas geradas pelos
parâmetros estipulados pela Antropologia Criminal lombrosiana para o criminoso nato, ele
escolhe fechar os olhos para a verdade científica que se descortinava diante de si: “Mas do
fato de que em Serrinha a criminalidade seja baixa, não se pode concluir que a
degenerescência, tão nitidamente existente nesse local com seus traços mórbidos, não exerça
uma influência muito forte nas manifestações criminosas” (RODRIGUES, 2008, p. 1167).
As citações de Nina Rodrigues justificam-se na medida em que se observa o modo
pelo qual elas penetram na tessitura dos sentidos de Tenda dos milagres, ainda que não
diretamente textualizadas pelo romance. As remissões a Os africanos no Brasil e a
“Mestiçagem, degenerescência e crime”, solicitadas pelo dialogismo em que a personagem
Nilo Argolo é montada, além de novamente estabelecer o vínculo do texto ficcional com o
real histórico, dimensiona, com um maior grau de exatidão, as inevitáveis implicações
autoritárias decorrentes de uma tal perspectiva teórica – aliás, visíveis na legislação formulada
e proposta pelo catedrático como única saída para o Brasil:

Tal corpo de leis a prever e ordenar tudo quanto se relacionasse a negros e mestiços,
centralizava-se em dois projetos fundamentais.
O primeiro referia-se à localização e isolamento de negros e mestiços [...]. Esse
confinamento não possuía caráter definitivo, destinava-se a manter a “raça inferior”
e a “sub-raça aviltante” apartadas do resto da população enquanto não lhes fosse
dado definitivo destino. O professor previa a aquisição pelo governo de território
africano capaz de acolher toda a população negra e mestiça do Brasil. Uma espécie
de Libéria, sem os erros da experiência norte-americana, naturalmente.
O segundo projeto, de claríssima urgência, lei ou decreto de salvação nacional,
proibiria o casamento entre brancos e negros, entendidos por negros todos os
portadores de “sangue afro”. Proibição absoluta, capaz de pôr freio à mestiçagem
(AMADO, 1971, p. 319-320).

Este modelo, obviamente, necessita mais do que a ideologia racial constituída pelo
cientificismo europeu para se concretizar, fazendo uso constante da repressão – seja pelo
conjunto dos tribunais, em que julgamentos viciados ocorrem, ou pela força policial. É neste
contexto que Tenda dos milagres lança mão de uma outra personagem decalcada do real
histórico soteropolitano, esta com um maior grau de fidelidade: o delegado auxiliar de polícia
Pedro de Azevedo Gordilho. Alcunhado Pedrito Gordo, esta figura de triste memória atuou
179

como delegado auxiliar da 1ª Circunscrição de Polícia, nas imediações da Piedade, entre os


anos de 1920 e 1926, sendo descrito como “[...] um dos mais violentos e temidos [a perseguir
o Candomblé], e de certa forma tornou-se símbolo da perseguição durante uma certa época”
(LÜHNING, 1996, p. 195).
Diferentemente do tom hiperbólico conferido à personagem Nilo Argolo, a
representação de Pedro Gordilho se apresenta sob o domínio perfeito da mimese – o que
talvez se explique pelo fato de Amado ter vivenciado, quando jovem, o seu contexto de
atuação, presenciando todo o processo de violência e de injustiça inerente à perseguição aos
Candomblés. Assim, registra em Tenda dos milagres:

A guerra santa do delegado auxiliar Pedrito Gordo prosseguiu anos afora e aos
poucos a tenaz resistência de mães e pais-de-santo começou a ceder. [...]
Os secretas, às vezes sob o comando do próprio Pedrito, infestavam a noite da Bahia
em busca de candomblés e batuques, o pau comia solto [...].
De 1920 a 1926, enquanto durou o reinado do todo-poderoso delegado auxiliar, os
costumes de origem negra, sem exceção, das vendedoras de comida até os orixás,
foram objeto de violência contínua e crescente. O delegado mantinha-se disposto a
acabar com as tradições populares, a porrete e a facão, a bala se preciso.
O samba de roda foi exilado para o fim do mundo, ruelas e casebres perdidos. As
escolas de capoeira fecharam suas portas, quase todas. Budião andou uns tempos
escondido, Valdeloir comeu da banda podre. Com os capoeiristas, a coisa fiava mais
fino, os secretas não os enfrentavam de peito aberto, tinham medo. De longe e pelas
costas, era mais seguro. De quando em vez o corpo de um capoeirista aparecia
crivado de balas na madrugada, tiros de tocaia, obra da malta de facínoras. Assim
morreram Neco Dendê, Porco Espinho, João Grauçá, Cassiano do Boné (AMADO,
1971, p. 303-304).

Eis aí, impresso e em detalhes, o “estado de exceção” vivenciado por populares,


negros e de Axé no contexto da sociedade autoritária baiana em vias de modernização.
Nina Rodrigues e Pedro Gordilho foram contemporâneos um do outro apenas por um
breve período – o médico maranhense faleceu em 1906, quando o futuro delegado-auxiliar
tinha ainda 21 anos e estava longe de exercer a truculência que caracteriza a sua memória. No
entanto, a representação baseada no legista é deslocada no tempo para atuar em conjunto à do
delegado no universo ficcional de Tenda dos milagres, decerto com o intuito de tornar mais
evidente os elos entre ideologia e repressão na dinâmica cotidiana de uma sociedade
autoritária.
O segundo modelo de sociedade, que vem a ser positivado pelo romance e enunciado
por intermédio de Pedro Archanjo, se apresenta como a perfeita antípoda daquele capitaneado
por Nilo Argolo e operacionalizado por Pedrito Gordo. Trata-se de uma sociedade
efetivamente democrática, organizada em função de grupos socioculturais dispostos em um
mesmo patamar hierárquico, de modo que possam negociar trocas sem que assimetrias se
180

coloquem como agentes de uma imposição. Do ponto de vista de sua formação cultural, seria
uma sociedade marcada pelos hibridismos provenientes dos contatos entre o catolicismo e as
religiões de matrizes africanas, sendo estas o vetor de orientação. No que tange ao aspecto
étnico-racial, o modelo defendido por Archanjo se configura muito próximo ao discurso de
uma democracia racial, mas com a importante diferença de não ser posto na condição de um
mito fundador e, sim, na de uma utopia, responsável por acusar as fragilidades e os equívocos
do modelo vigente, além de apontar na direção em que se deve superá-los.
Como forma de engajar-se neste projeto, Archanjo entra em confronto aberto com
ambas as personagens ligadas à teorização do racismo científico e à execução de suas
implicações diretas no cotidiano, Nilo Argolo e Pedrito Gordo. Em relação ao primeiro, o
embate se dá no terreno das teses acadêmicas, ocasião em que Pedro Archanjo, bedel da
Faculdade de Medicina, produz três livros: A vida popular na Bahia, Influências africanas
nos costumes da Bahia e Apontamentos sobre a mestiçagem nas famílias baianas, datados
respectivamente de 1907, 1918 e 1928.
Afigurava-se, nas páginas de A vida popular na Bahia, uma descrição mais
generalizada do cotidiano da velha Salvador, daquela cidade ainda de casas coloniais que
fragilmente resistem à passagem do tempo e do povo que a movimenta e vivifica. Já em
Influências africanas nos costumes da Bahia, ocorre uma abordagem mais pormenorizada em
relação aos aspectos negro-africanos deste mesmo povo, inclusive elevando-o à condição de
poderoso – com o que se estabelece um contraponto, ainda que não diretamente verbalizado,
às teorias advindas do racismo científico: “Da miscigenação nasce uma raça de tanto talento e
resistência, tão poderosa, que supera a miséria e o desespero na criação quotidiana da beleza e
da vida” (AMADO, 1971, p. 291-292).
A perspectiva abraçada por Pedro Archanjo é concebida dentro de um projeto político
de contraposição ao eurocentrismo e consequente afirmação das identidades alijadas do
discurso hegemônico, silenciadas e abafadas. Talvez mesmo por este intento, os primeiros
livros repercutiram pouco para além dos muros da Faculdade de Medicina. Aliás, mesmo na
Instituição pouco despertaram além da curiosidade acerca de certos fatos da cultura popular
negromestiça que já se julgavam extintos ou nunca existentes em terras brasileiras. Por certo,
houve o interesse e a acolhida de muitos estudantes, todavia, menos pelas proposições de
Archanjo no campo de um pensamento racial do que pela perspectiva de afrontar o
intransigente Nilo Argolo, em geral detestado pelo corpo discente da Faculdade.
Outra é a repercussão do terceiro livro, Apontamentos sobre a mestiçagem nas
famílias baianas: “O mundo veio abaixo” (AMADO, 1971, p. 324), resume o narrador. Com
181

diminuta tiragem – 142 exemplares, apenas – e publicado com grande sacrifício na tipografia
de Mestre Lídio Corró, inestimável companheiro de Archanjo, tal estudo vem a se configurar
como contraponto ao já referido anteprojeto de lei do professor Nilo Argolo, apresentado à
Câmara um ano antes e que visava institucionalizar a total segregação racial no estado.
O argumento base desta investigação, que funciona como uma ironia aos arroubos de
branquitude das elites baianas, é a impossibilidade de se separarem brancos e negros por
critério de pureza racial, uma vez considerada a extensão da mestiçagem na Bahia. A
dimensão e a exatidão dos fatos trazidos à tona por Archanjo desta vez reverberam em toda a
classe dominante, ciosa do silêncio acerca de certos avós não brancos, como ilustra a seguinte
passagem:

Em seu terceiro livro, Pedro Archanjo analisou as fontes da mestiçagem e


comprovou sua extensão, maior do que ele próprio imaginara: não havia família sem
mistura de sangue [...]. Fechando o volume, a grande lista, o motivo da grita, do
escândalo, da perseguição ao autor. Pedro Archanjo relacionara as famílias nobres
da Bahia e completara as árvores genealógicas em geral pouco atentas a certos avós,
a determinados conúbios, a filhos bastardos e ilegítimos. Assentados em provas
irrefutáveis lá estavam, do tronco aos ramos, brancos, negros e indígenas, colonos,
escravos e libertos, guerreiros e letrados, padres e feiticeiros, aquela mistura
nacional. Abrindo a grande lista, os Ávilas, os Argolos, os Araújos, os ascendentes
do professor de Medicina Legal, o ariano puro, disposto a discriminar e deportar
negros e mestiços, criminosos natos (AMADO, 1971, p. 323-324).

Como já advertido anteriormente, em face dos segredos guardados com tanto zelo
durante décadas e mesmo séculos, “o mundo veio abaixo”. A despeito da ovação recebida por
Archanjo por parte dos estudantes da Faculdade de Medicina e das vaias direcionadas a Nilo
Argolo, agora em descrédito, o autor dos Apontamentos foi demitido do cargo de bedel, que
ocupara por exatos trinta anos, em razão de ter agredido o catedrático em sua honra.
A retaliação, por parte das elites baianas ofendidas e prontamente escudadas pelo
poder público, tem, na demissão do antigo bedel, apenas o seu início. O caráter autoritário
desta sociedade é evidenciado na medida em que Archanjo é preso e a oficina tipográfica de
Mestre Lídio Corró destruída. De todo o material ali impresso ou em vias de impressão, nada
havia sobrado. Não fossem alguns poucos exemplares que Lídio secretamente enviara para
universidades estrangeiras, entre elas a Columbia University, o esforço para a produção de
esquecimento levado a cabo pelo Governador da Bahia teria completa eficácia.
Noutro campo de atuação se dá o embate com Pedrito Gordo, qual seja, no da
resistência cotidiana à violação sistemática do direito à cidadania. Nesta direção, Archanjo,
como Ojuobá – os olhos do Rei Xangô –, está ao lado daqueles que não abdicam das rodas de
182

samba e de capoeira, muito menos dos toques de atabaque que conectam o indivíduo ao
Sagrado.
Em noite de possibilidades trágicas, uma vez que Pedrito fora cumprir promessa de
liquidar Procópio de Ogunjá, que não acatava as ordens de silenciar os instrumentos sacros,
Ojuobá intervém ante o avanço da escolta do delegado auxiliar. Reconhecendo Zé de Ogum
entre eles, Archanjo faz uso de palavras rituais para que o Orixá se faça presente no corpo
daquele assassino. Montado em seu cavalo, Ogum, Ele próprio, se volta contra Pedrito Gordo,
fazendo-o correr amedrontado pela cidade, ocasionando o seu pedido de demissão do cargo –
fato este que, inclusive, faz parte do acervo de estórias que circulam via oralidade entre os
mais velhos do povo-de-Axé, em Salvador.
Em face dos desfechos apontados, o impulso inicial é acreditar no triunfo de Archanjo
sobre Nilo Argolo e Pedro Gordilho, o que, por consequência, indicaria o sucesso do projeto
de sociedade defendido por Ojuobá em detrimento daquele idealizado pelos partidários de
uma concepção racista. No entanto, esta é uma leitura cuja apenas uma pequena parcela se
apresenta como correta. Se é verdade que o catedrático de Medicina Legal e o delegado
auxiliar restam desacreditados após os eventos narrados, é igualmente verdade que tais
ideologias não são apagadas do cotidiano da cidade, permanecendo entranhadas como uma
estrutura de longa duração na mentalidade baiana – ou, pelo menos, nos posicionamentos
adotados pelas classes dominantes. Neste sentido, é sintomática uma resposta de Archanjo a
Mestre Lídio Corró, quando este lhe pergunta, após a derrocada de Pedrito e Argolo, se algum
dia a luta contra o caráter excludente da sociedade em que viviam teria fim: “Um dia vai se
acabar, meu bom, não será no nosso tempo, camarado! [...] Vamos morrer brigando”
(AMADO, 1971, p. 313).
Por um lado, Archanjo – como, de resto, também Lídio – se mostra consciente que o
fundamento autoritário da sociedade baiana, na acepção anteriormente resenhada junto a
Chauí (2013), não se resume às figuras de Nilo Argolo e de Pedro Gordilho, que emergem
muito mais como sintomas de um tempo do que na condição de agentes dinamizadores de sua
instauração. Esta configuração social hierarquizada, desigual e cerceadora das liberdades de
indivíduos ou de grupos que se encontram na base da pirâmide social está para além de
médicos-professores e de delegados auxiliares, não bastando derrotá-los para que os mortos
durante as batalhas tenham alguma segurança, ainda que mínima. Por isso, a angústia de Lídio
Corró, desde muito jovem junto a Archanjo no enfrentamento às restrições impostas ao
segmento popular, a negros e mestiços, ao povo-de-Axé. Também por isso, o acento de
183

alguma recôndita dor, ou de uma pontiaguda mas disfarçada tristeza, por baixo do aspecto
solar daquela certeza tão firme.
Por outro lado, e apesar de tudo em contrário, Archanjo responde a Lídio com um
aceno de esperança. A luta há de ter um fim, embora certamente não quando ambos ainda em
vida – toda esta de mais pura e verdadeira resiliência.
A certeza sem dúvidas que anima a esperança da personagem no futuro não se
confirma na representação do real baiano impresso em Tenda dos milagres; nem na sequência
dos últimos anos vividos por Pedro Archanjo, quando sob a ditadura Vargas e os movimentos
de aproximação do Estado Novo com as forças (e os fundamentos epistêmicos) do nazi-
fascismo, nem após a sua morte, que ocorre em 1943. Também não se verifica em 1968,
segundo eixo temporal do romance e presente em relação ao narrador, quando ocorrem as
celebrações oficiais do centenário de Pedro Archanjo em meio ao contexto da ditadura militar
brasileira.
A própria natureza do regime estabelecido pelos generais evidencia o estado de
exceção e a configuração autoritária que funda a sociedade nacional, embora sob uma
perspectiva diversa daquela pretendida por Argolo e Gordilho. Gostaria de enfatizar que não
me refiro aqui às supressões das liberdades políticas e civis ocasionadas pela sucessão de Atos
Institucionais, nem à repressão e à censura deles decorrentes, que são fatos também presentes
em Tenda dos milagres, ainda que não emerjam com toda força ao primeiro plano da cena
representacional. Antes, continuo pensando em termos étnico-raciais e de cultura, além,
evidentemente, do aprofundamento da desigualdade socioeconômica.
Sob este prisma, se é verdade que o ano de 1968 não se coloca como uma
intensificação das políticas oficiais adotadas durante o período abarcado pelo primeiro eixo
temporal do romance, não se configurando de acordo com o projeto de lei formulado por Nilo
Argolo nem abraçando novas versões de Pedrito Gordo, é igualmente verdade que se situa
mais próximo a este modelo do que em relação àquele pretendido por Pedro Archanjo. Os
vetores que orientam a fundação da estrutura social se mantêm os mesmos, mudando apenas
aqueles conformativos de sua fina camada de superfície.
A aderência antes assumida de discursos oficiais a um proselitismo racista, porque em
consonância com os paradigmas norteadores do início do século, é substituída por
posicionamentos ocultos sob a desfaçatez dos não-ditos. Os epistemicídios constituídos a
reboque de uma sistemática violência aos corpos dominados, não raro desdobrando-se em
torturas e assassinatos, atualiza-se por via da produção de silêncio – ao invés da morte sobre a
vida, impõe-se a não-existência. Pedro Archanjo não se encontra apenas morto há 25 anos,
184

falecido em uma ladeira do Pelourinho em 1943, mas esquecido de forma deliberada pelos
grupos instalados nas esferas de poder político e econômico-social; desconhecido dos jovens
em idade escolar e ignorado por intelectuais e acadêmicos, cuja dependência das teorias
vindas de antigas metrópoles coloniais, ou de potências como os Estados Unidos, opera como
uma forma de deslocamento em relação à possibilidade de uma produção própria de
pensamento. Em uma palavra, Archanjo fora varrido da história oficial que narra o passado da
Bahia, que institui modelos a serem seguidos pelas novas gerações, que fornece conteúdos
para a legitimação da estrutura social de qualquer tempo presente.
Não demanda muito esforço compreender o hiato que se estabelece entre a morte de
Pedro Archanjo e a efeméride de seu centenário como uma estratégia – bastante eficiente,
cabe reconhecer – dos setores dominantes em silenciar conteúdos que provocassem uma
tensão na organização social constituída, salvaguardando deste modo a própria estrutura que
engendra o autoritarismo presente na sociedade brasileira – e, por consequência, também na
baiana, como mostra a ficção de Amado. Aliás, é justamente este o fio condutor do segundo
eixo temporal de Tenda dos milagres, cujo segmento narrativo expõe ao leitor como se dá a
produção de silêncios ou de apagamentos estratégicos a fim de neutralizar possíveis forças em
contrário à ordem vigente.
É em função da especificidade deste desdobramento que se deve observar aquela
segunda ordem de significação do romance, anteriormente anunciada. Ela se apresenta
disponível apenas aos que se perguntam sobre as razões pelas quais a trama não prossegue de
forma linear de um eixo temporal ao outro, iniciando-se em 1868 e sendo concluída cem anos
depois, mas interpola a ambos em um contínuo movimento passado-presente-passado.
Portanto, está além das formações discursivas e ideológicas movimentadas pelas personagens,
não se localizando no mesmo plano em que se situam os conteúdos vazados por intermédio
delas, mas, sim, na estrutura temporal que enforma o romance.
É devido a esta segunda ordem de significação que se pode estudar Tenda dos
milagres como uma narrativa pertencente ao arco ficcional revisionista amadiano. Isto porque
ela acarreta a possibilidade de que um outro conflito emerja, não se tratando este do modo
como as personagens se atritam e se resolvem, mas da formulação oficial de uma narrativa
sobre o passado e de suas vinculações ideológicas com os setores que a produzem no
presente. Lido deste modo, o enfoque do romance recai nas contradições existentes entre os
dois eixos temporais, pondo em evidência os conteúdos apagados e as razões que orientam
tais esquecimentos.
185

Em 1968, o intelectual estadunidense James D. Levenson é convidado a ministrar uma


série de conferências na Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de
Janeiro, situada na capital carioca. Ao fim de seus compromissos profissionais, ele reserva um
período para conhecer Salvador, onde é recebido no aeroporto com grande pompa, os
professores e repórteres da terra fazendo-se de seus fãs64. Na entrevista coletiva, organizada
ainda no saguão do aeroporto, Levenson afirma estar na Bahia para conhecer a terra e o povo
que motivaram uma das mais importantes contribuições teóricas do século XX, aquela
produzida por Pedro Archanjo, “[...] um homem notável, de ideias profundas e generosas, um
criador de humanismo [...]” (AMADO, 1971, p. 30).
Apesar de grávidos de todos os construtos teóricos possíveis em línguas francesa,
inglesa e alemã, sejam de outros séculos ou os que lhes eram mais contemporâneos, os
intelectuais da terra presentes naquele saguão, como de resto também os que não estavam,
ignoravam completamente o nome citado – exceção feita ao professor Ramos que, em vão, já
havia tentado introduzir os estudos de Archanjo no meio acadêmico baiano. O narrador
comenta:

Ora, de súbito, não só jornalistas mas os poderes públicos, a Universidade, os


intelectuais, o Instituto, a Academia, a Faculdade de Medicina, os poetas, os
professores, os estudantes, a classe teatral, a numerosa falange da etnologia e da
antropologia, o Centro de Estudos Folclóricos, a turma do turismo e outros
desocupados, todos se deram conta de que possuíamos um grande homem, um autor
ilustre e o desconhecíamos, não lhe dávamos serventia sequer em discursos,
relegando-o ao anonimato mais completo, sem nenhuma promoção. Começou então
a corrida em torno de Archanjo e de sua obra. Muito papel, muita tinta e muito
espaço em jornal foram gastos, a partir da entrevista de Levenson, para saudar,
analisar estudar, comentar, louvar o injustiçado escriba. Era necessário tirar o atraso,
corrigir o erro, apagar o silêncio de tantos anos (AMADO, 1971, p. 36).

No átimo em que uma palavra é dita (com forte acento estadunidense), o nome de
Pedro Archanjo, antes relegado aos subterrâneos, se eleva ao lugar de glória e monumento da
nação.
Levenson estranha o fato de não se conseguir qualquer dado biográfico sobre o
intelectual baiano, o que se apresenta como uma lacuna em seu intento de traduzi-lo para o
inglês. Por isso, encomenda a Fausto Pena uma pesquisa sobre a vida de Archanjo, o que é
realizado pelo poeta via as memórias oriundas das margens heterotópicas da cidade de
64
Não se pode ignorar a engenhosa ironia presente na aproximação fônica entre o nome da personagem
amadiana e o ator estadunidense James Dean, falecido precocemente em 1955, aos 24 anos, mas que se
constituiu (e ainda se constitui) como um dos símbolos máximos da indústria hollywoodiana, responsável por
vincular sua imagem à juventude daquela década. Nesse sentido, Jorge Amado ri de determinados segmentos da
intelectualidade baiana – talvez os mesmos que ele já criticava nos anos de 1930, quando escrevia artigos para
Boletim de Ariel.
186

Salvador. A rigor, a narração do primeiro eixo temporal, que abarca os 75 anos de Ojuobá,
corresponde à história resgatada e publicada pelo próprio Fausto Pena. Levenson a ignorou
completamente, preferindo seguir a versão instituída como oficial – narrativa esta que Fausto
Pena faz questão de permitir que o leitor a flagre em seu processo de montagem:

Em seu prefácio, Archanjo é promovido a professor, a membro eminente da


Congregação da Faculdade de Medicina (“distinguished Professor, member of the
Teacher’s Council”), por cuja conta e encargo realizara suas pesquisas e publicara
seus livros, imagine-se! Quem impingiu tais patranhas a Levenson, não o sei, mas
houvesse ele ao menos folheado meus originais, não teria incorrido em erro assim
grosseiro – de bedel a professor, ah! meu pobre Archanjo, só te faltava mais esta
(AMADO, 1971, p. 25).

O fato de Levenson incialmente não dispor de notas biográficas sobre Archanjo se dá


pela inexistência de uma memória oficial sobre a personagem, os parcos documentos
históricos apenas remontando aos inquéritos policiais movimentados contra ela. Antes uma
solução engendrada pelo Estado para neutralizar a potência e o alcance das revelações
archanjianas, este deliberado esquecimento agora se coloca, dado o novo estatuto de
Archanjo, como um problema a ser superado. Se não havia uma memória oficial sobre a
personagem, se fazia necessário agora instituí-la e, tanto mais, organizá-la de uma maneira
que não ferisse os posicionamentos assumidos pelas classes no poder – daí a modificação no
que se refere ao papel desempenhado, de bedel a professor.
Esta urgência, que corre tácita por dentro da necessidade em narrar o novo herói
nacional, solicita constantes processos de depuração das marcas que o conectam aos espaços
heterotópicos da sociedade soteropolitana, o que é feito de acordo com duas frentes
aparentemente não articuladas entre si, mas cuja conexão se realiza no nível da epistéme que
orienta a ambas.
Em primeiro lugar, observa-se a ingerência do poder público no concernente aos
preparativos de um seminário acadêmico para promover, discutir e celebrar o pensamento
archanjiano, considerado por representantes do regime como perigosamente subversivo pois
questionador dos sistemas de segregação racial – modelos de sociedade em vigor nos Estados
Unidos e na África do Sul, consideradas como nações amigas e com as quais a ditadura
militar possuía importantes compromissos diplomáticos. Após uma série de censuras prévias,
o seminário foi reduzido a uma simples sessão solene no Salão Nobre do Instituto Histórico e
Geográfico. Compuseram a mesa o governador do Estado da Bahia na condição de seu
presidente; o professor Calazans, que fez a leitura de uma carta assinada por James D.
Levenson; o doutor Benito Mariz, representante da Associação dos Médicos Escritores; a
187

folclorista Edelweiss Vieira; Zezinho Pinto, diretor do Jornal da Cidade e responsável pelo
“furo de notícia” que colocava 1968 como o ano do centenário de Archanjo. O orador
principal da noite era o acadêmico Batista, sujeito identificado com o regime militar, “[...]
homem de proa da situação, responsável, segundo diziam, por muitas denúncias e muitos
processos de elementos subversivos” (AMADO, 1971, p. 365).
Tendo assumido há poucos dias a presidência da Benemérita Associação de Defesa da
Tradição, da Família e da Propriedade, o professor Batista ocupou “[...] a maior parte do
discurso no elogio da ‘verdadeira tradição, única efetivamente digna de culto, a da família
brasileira e cristã’” (AMADO, 1971, p. 366). Desta forma, era natural que o orador viesse a
polemizar com Pedro Archanjo:

A seu ver, o homenageado da noite, alvo do generoso aplauso dos presentes, jamais
deveria ter ultrapassado os limites das pesquisas folclóricas: “ainda que eivadas de
imperfeições quantiosas, representam tentativa promissora e merecem ser admitidas
na prática dos eruditos”. Ao querer, porém, lavorar em messe de grandes sábios da
estatura de Nilo Argolo e Oswaldo Fontes, “grafou extravagâncias sem a mais
reduzida base de infrágil sustentação” (AMADO, 1971, p. 366).

Ainda que destoante de todos os outros discursos da noite, principalmente aquele


realizado por Edelweiss Vieira, a fala de Batista traz consigo o peso que o faz, de certa
maneira, inquestionável – evidentemente não pela legitimidade científica de suas posições,
mas pelo cenário de fundo que o sustenta, o regime dos generais.
As teorias raciais alardeadas por Nilo Argolo e por Oswaldo Fontes são validadas por
um representante do poder oficial instituído, com o que se pode inferir a continuidade de uma
diretriz racista a reger a dinâmica social do país. É sintomático ainda o fato de este ter sido o
único discurso reverberado na edição do dia seguinte do Jornal da Cidade, tendo sido
definido como uma “[...] peça magistral de erudição e patriotismo” (AMADO, 1971, p. 366).
Estou ciente de que esta parte de meu argumento pode sofrer ao menos duas objeções,
uma se referindo às pressões externas às quais o periódico pode ter sucumbido para veicular o
discurso oficial de um membro do regime militar; a outra em forma de questionamento acerca
da insuficiência de elementos para demonstrar, a partir dos últimos trechos citados do
romance, o caráter autoritário que engendra a sociedade brasileira. Para evitá-las, é necessário
discutir o segundo – e principal – processo de depuração sofrido pela memória de Archanjo,
desta vez movimentado pelo próprio Jornal da Cidade, metonímia-sinédoque do aparelho
ideológico imprensa, e pela agência publicitária Dopping S.A., de funda penetração no
188

contexto de uma sociedade de consumo, que visa explorar a “marca” Archanjo para promover
produtos diversos.
Como já informado, coube ao Jornal da Cidade anunciar que se vivia o ano do
centenário de Archanjo, furo obtido a partir de uma entrevista do Major Damião, personagem
muito próxima ao homenageado. Este fora o único ponto positivo da conversa entre o rábula e
Zezinho Pinto, uma vez que a narrativa evocada pela memória subterrânea do major trazia à
tona fatos não condizentes com a imagem idealizada para uma glória nacional.
Os episódios relatados por Damião versam sobre a perseguição a Procópio e sobre o
triunfo diante de Pedrito; contam dos Afoxés indo às ruas, mesmo proibidos, descrevem a
Tenda dos Milagres de Mestre Lídio; revelam o cotidiano de uma Bahia popular, dizem de um
Pedro Archanjo negromestiço, que também atende pelo posto de Ojuobá – desde sempre, uma
referência para o povo negro e pobre da sociedade baiana. “Muita coisa, certamente”,
comenta Fausto Pena, “mas toda aquela lengalenga do Major derrota o dono do jornal: de
pouco vale, não possui o mínimo caráter científico” (AMADO, 1971, p. 79).
Gostaria de pinçar a referida sensação de derrota que acomete Zezinho Pinto, pois
acredito que ela se constitua como uma possibilidade de sondar as mentalidades em jogo
naquela Cidade da Bahia. O empresário do ramo de notícias é um homem arguto e bem-
sucedido, que sabe ler a sociedade em que está inserido e antecipar-se a ela de maneira a
adivinhar os fatos passíveis de repercussão (e aumento da tiragem do jornal) ou não. Se
pensado por esta linha, o seu desânimo é revelador do desinteresse citadino em estórias
relacionadas a negros e mestiços, ao povo-de-Axé, aos pobres. Por consequência, a recusa de
Zezinho Pinto em veicular a trajetória de Archanjo pela perspectiva também heterotópica do
Major Damião sugere uma sociedade que, uma vez organizada a partir de valores e princípios
etnocêntricos, desvaloriza, por infame, tudo aquilo que não é burguês, branco ou cristão; tudo
o que não é espelho das antigas metrópoles coloniais.
Esta leitura ganha força na medida em que se observa a reincidência de Zezinho Pinto
em rejeitar a memória subterrânea acerca de Archanjo, desta vez expressa por meio das
pesquisas de Fausto Pena, de todo coincidentes com os fatos narrados pelo major. Desta vez, a
reação do empresário é ainda mais sintomática:

Quando, porém, lhe exibi minhas notas, por pouco não fatura uma crise histérica.
“Isto é exatamente o que não quero: essa falta de respeito com um grande homem,
com um espírito superior. Esse achincalhe, esse apequenamento da figura de
Archanjo. Não admito! Se lhe compramos essas laudas de tagarelices e
maledicências é exatamente para pô-las fora, para que não sejam usadas e não
189

maculem a imagem de Pedro Archanjo. Meu caro Fausto, pense nas crianças das
escolas”.
[...] Doutor Zezinho, ainda nervoso, completou: “Polígamo, que infâmia! Não era
sequer casado! Meu caro poeta, aprenda esta lição: um grande homem tem de
possuir integridade moral e se, por acaso, transigiu e prevaricou, cabe-nos repô-lo
em sua perfeição. Os grandes homens são patrimônios da Pátria, exemplos para as
novas gerações: devemos mantê-los no altar do gênio e da virtude” (AMADO, 1971,
p. 129, grifos meus).

Ao se considerar as razões que fundamentam a recusa de Zezinho Pinto, aí não


importando se relacionadas a uma convicção ideológica ou associadas às estratégias de
comercialização de seu jornal, é possível perceber certa confluência de seu discurso em
direção ao status quo estabelecido. Sua preocupação em salvaguardar a estrutura social da
potência rasurante advinda da figura de Archanjo, depurando-a de qualquer contra-discurso
possível e instituindo uma imagem alinhada à ordem dominante, se desvela na frase “pense
nas crianças das escolas” – aqui já é possível ao menos suspeitar que a veiculação, pelo Jornal
da Cidade, do discurso proferido pelo acadêmico Batista não tenha se dado em função
(apenas) da pressão política.
E, talvez, tenha mesmo sido pensando “nas crianças das escolas”, mas na perspectiva
de configurá-las como artífices da reprodução das relações de força estruturantes de uma
sociedade autoritária, que Zezinho Pinto lançou o Prêmio Pedro Archanjo. Sintomaticamente
voltado para os estudantes de escola pública, grupo que agrega os jovens oriundos de classes
não abastadas, e oferecendo bolsas em instituições privadas de ensino, o concurso
movimentaria a construção de um imaginário em torno de Archanjo, que seria tema de aulas e
objeto de redações. É na esteira deste prêmio que o romance evidencia os apagamentos
constitutivos da imagem oficial de Pedro Archanjo, a glória da nação.
Como já se observou, não é de todo estranha a possibilidade de se considerar Zezinho
Pinto, e consequentemente o seu Jornal da Cidade, como um sujeito assujeitado pelas
formações ideológicas e discursivas relativas aos posicionamentos assumidos pelas classes
detentoras do poder do Estado. Deste modo, se observada sob a clave da suspensão de
qualquer ingenuidade, a promoção do concurso de redações se apresenta como uma estratégia
de penetração nas escolas para, a partir delas, legitimar Archanjo como uma espécie de Herói,
formatando-o como um modelo de virtude consoante às ideologias dominantes; exemplo no
qual crianças e adolescentes, independentemente de suas individuações étnico-culturais e de
classe, devem se espelhar e o qual precisam reproduzir.
No que concerne à operacionalização do Prêmio Pedro Archanjo, o Jornal da Cidade
conta com o importante apoio da agência de publicidade Dopping S.A., de propriedade de
190

Gastão Simas – de resto, empresa também responsável por toda a efeméride do centenário. E
aqui é necessário considerar a ironia com que Jorge Amado nomeia a agência, remetendo a
uma ideia de falseamento do real para fins de obtenção de vantagens escusas, quais sejam.
Outra chave de leitura aponta para os efeitos decorrentes da produção de uma falsa realidade,
relacionando-os a uma sensação de entorpecimento e de descontinuidade em que, não raro, os
sujeitos se perdem, tornando-se alheios ao seu derredor. Trata-se de uma razão social que
alegoriza uma ação alienante sobre o povo, condição propícia para a legitimação e a
perpetuação dos que se situam no poder do Estado.
Como forma de oferecer um suporte à escola, são solicitadas algumas notas
biográficas ao professor Calazans, um dos poucos profissionais de fato a conhecer e estudar o
pensamento de Archanjo. Estas informações seriam vertidas em um texto narrativo pela
Dopping destinado às professoras de ensino primário da rede pública de Salvador, a fim de
prepará-las com o conteúdo necessário – e adequado – para uma aula sobre o ilustre baiano, a
partir da qual as crianças deveriam produzir suas redações.
Neste momento, a sequência narrativa de Tenda dos milagres sofre um corte,
colocando em suspenso a voz de Fausto Pena para reproduzir, um logo após o outro, os
discursos veiculados sobre Archanjo. Inicialmente são introduzidas as notas biográficas
produzidas pelo professor Calazans, que se dividem em torno de seis elementos: “nome”,
“data e local de nascimento”, “filiação”, “estudos”, “livros”, “outros dados” e “morte”. Em
seguida, o leitor tem acesso ao texto escrito por profissionais da Dopping S.A., que serve de
fonte de consulta para a professora Dida Queiroz, lotada na Escola Pública Jornalista
Giovanni Guimarães, preparar sua aula, cuja preleção vem a ser também veiculada pelo
romance. Por último, é transcrita a redação de um estudante, Rai, de nove anos.
A comparação entre as quatro versões – notas biográficas; texto narrativo; preleção e
redação –, às quais se deve ainda somar uma quinta, aquela que vem sendo produzida pelo
próprio Fausto Pena, coloca em evidência os processos sistemáticos de apagamento e
falseamento de dados relativos à vida e ao pensamento de Archanjo. Destas ações, decorre
uma deliberada produção de esquecimento que visa relegar às sombras – e aos subterrâneos
da memória coletiva – todos os traços heterotópicos constitutivos da personagem, além de
também obliterar a potência rasurante do status quo que deles deriva. Em paralelo, erige-se
um outro Archanjo, este de todo docilizado pelo poder instituído, a ele vinculado e dele
reprodutor, cuja versão vem a ser entronizada no ambiente escolar – este aparelho ideológico
de Estado.
191

Um primeiro apagamento, que ocorre inclusive nos dados produzidos pelo professor
Calazans, se dá na ligação da personagem com o Candomblé – elo importante para situá-la em
termos de identidade ou em relação ao contexto em que se travou a batalha contra Pedrito
Gordo, também não referenciada.
Embora Fausto Pena dê voz a Archanjo para que este afirme possuir dois nomes, um
cristão e outro nagô, Ojuobá, este segundo, que o conecta às tradições religiosas afro-baianas,
não é textualizado em nenhuma versão além daquela enunciada pelo narrador. De maneira
semelhante, o nome de Rosa de Oxalá, que vem a ser o grande e irrealizado amor de
Archanjo, não consta nem sequer nos dados do professor Calazans; fato que talvez se explique
pela referência a um Orixá, conotativa de um pertencimento religioso não interessante de ser
mencionado.
O mesmo se aplica à filiação materna de Ojuobá, apesar de o professor Calazans
registrar o nome “[...] Noêmia de Tal, mais conhecida por Noca de Logunedê” (AMADO,
1971, p. 206). O texto produzido pela Dopping não a nomeia, referindo-se a ela pela condição
de “esposa grávida”. Na sequência, Dida Queiroz não faz qualquer menção a ela; lacuna
também notada na redação de Rai, que, a exemplo da professora, classifica Archanjo como
órfão – já Noca de Logun inexiste.
Aliás, o apagamento do nome materno está diretamente relacionado ao
engrandecimento do pai de Ojuobá, Antônio Archanjo. Nomeado apenas pelo professor
Calazans e relacionado à posição de recruta na Guerra do Paraguai, Antônio Archanjo é
promovido a herói pela Dopping e a General por Dida Queiroz. Ademais, o texto produzido
pela agência de publicidade faz de Pedro Archanjo “herdeiro das gloriosas tradições paternas”
(AMADO, 1971, p. 209), com o que eleva a figura de Antônio e dirime a de Noca.
É necessário considerar que, no contexto da guerra contra Solano López, o Exército
Brasileiro recrutou muitos negros escravizados sob a promessa de alforria uma vez terminado
o conflito. Sendo assim, a referência ao nome e à real posição desempenhada por Antônio
Archanjo no Paraguai podem servir como rastros que revelem a ascendência negra de Ojuobá.
Não são desprovidos de intenções, portanto, o esquecimento dos nomes (da mãe e do pai) e a
ascensão post mortem de Antônio a General; constituem-se como estratégias para distanciar a
nova glória nacional de posições que denotem uma genealogia negra e um pertencimento
cultural/religioso ligado ao Candomblé.
Em contraposição ao esquecimento em torno de Noca de Logunedê naquela que vai
sendo constituída como a história oficial de Pedro Archanjo, Fausto Pena faz o leitor saber, de
antemão, a importância singular que a mãe teve na vida do filho, que aprendeu em sua
192

companhia “[...] em vida tão parca e dura [...] a não ceder, a não desanimar, a seguir em
frente” (AMADO, 1971, p. 226).
Noutro plano, apesar de o professor Calazans registrar o fato de Pedro Archanjo ser
um mulato, este dado não aparece no texto fornecido pela agência publicitária nem na fala de
Dida Queiroz, com o que também não surge na redação de Rai. Para a Dopping e a
professora, vale apenas o registro de ter sido Archanjo alguém nascido em meio pobre e
pouco propício à cultura – classificação esta última também presente nas notas biográficas
originais, a partir das quais se podem observar critérios de hierarquização cultural, as
tradições negras não sendo abrangidas pelo conceito formulado de acordo com uma razão
eurocêntrica.
No que se refere aos livros produzidos por Pedro Archanjo, ainda que o professor
Calazans traga os títulos e informe se constituírem como materiais importantes para a “[...]
compreensão do problema de raças no Brasil” (AMADO, 1971, p. 207), ele próprio não
localiza em que perspectiva os trabalhos abordam a questão nem sequer os situa
historicamente, em meio ao debate com o racismo científico defendido por Nilo Argolo. A
Dopping segue na mesma esteira, porém ocultando os títulos. A professora Dida Queiroz, por
sua vez, reduz as pesquisas archanjianas a simples e pueris “[...] histórias de bichos e de
gente, mas [que] não servem para menino ler” (AMADO, 1971, p. 213) – a advertência
funcionando com estatuto simbólico de veto através do qual a escola, como aparelho
ideológico de Estado, busca cercear o acesso a posicionamentos contrários àquele
estabelecido pela ideologia oficial.
Outro ponto a ser observado corresponde ao sucesso profissional que, excetuando-se
Calazans e Fausto Pena, atribuem a Archanjo. Na fala da professora Dida Queiroz, por
exemplo, não tendo sido nunca bedel, Pedro Archanjo fez vestibular foi aluno e professor da
Faculdade de Medicina, talvez até amigo de Nilo Argolo, quem sabe? E não somente isso, foi
também professor de James D. Levenson nos Estados Unidos, mais precisamente na
Columbia University.
Por último, cumpre observar o estatuto conferido a Kirsi, escandinava que passa de um
dos breves e inúmeros amores de Archanjo – sendo a não comentada Rosa de Oxalá o maior
dentre eles – à condição de esposa do baiano, com quem viveu feliz na Europa e nos Estados
Unidos, além de no Brasil, como sugere Dida Queiroz. Não é difícil inferir nesta alteração
histórica, ainda mais quando associada ao apagamento da condição mulata de Archanjo, um
processo de branqueamento de Ojuobá, utilizando-se para isso a pele da estrangeira, “branca,
mas branca de alvaiade” (AMADO, 1971, p. 95).
193

Quando separados e observados em comparação uns aos outros, os


esquecimentos/apagamentos dos textos se mostram bastante conectados a uma perspectiva de
silenciar qualquer reverberação negra ou contra-discursiva em Pedro Archanjo, de modo a
denegar aos jovens e mesmo aos nascituros a possibilidade de reconhecerem, em um herói da
nação, triunfos e sentidos relacionados à matriz afro-baiana, além de posicionamentos
destoantes das formações ideológicas e discursivas oficiais, veiculadas por intermédio dos
aparelhos ideológicos de informação, a imprensa, representada no Jornal da Cidade, e
escolar, através da professora Dida Queiroz.
Distante quarenta anos daquele já longínquo 1928, quando Archanjo publicou os
Apontamentos sobre a mestiçagem nas famílias baianas, o ano do seu centenário já não
destoa tanto assim daquele vivenciado pela personagem: os discursos governamentais
coincidem e, portanto, também o corolário excludente se repete, embora desta vez não o seja
em função prioritária dos agentes da repressão. A despeito de as leis segregacionistas
pretendidas por Nilo Argolo não terem vigorado e de não ter sido extinto o Candomblé (nem
o samba, nem a capoeira), como projetava fazê-lo Pedrito Gordo, há de se reconhecer, no
contexto da sociedade narrada em 1968, uma realidade extremamente hierarquizada. Os
fatores socioeconômicos e étnico-raciais convergem, de modo a se estruturar em torno de uma
pequena elite branca e um amplo contingente populacional de pobres negros e mestiços.
Cabe novamente retornar à sessão solene, mais precisamente ao momento em que o
acadêmico Batista termina a sua fala laudatória a Nilo Argolo e às teorias da Faculdade de
Medicina. Lá estava o Major Damião, amigo íntimo de Pedro Archanjo, com quem crescera e
aprendera sobre a vida. Acompanhava uma “[...] mal vestida mulata, em adiantado estado de
gravidez [...]” (AMADO, 1971, p. 367). Pede a palavra e discursa:

[...] tanta festa, tanto discurso, tanto elogio a Archanjo, merecedor disso tudo e de
muito mais ainda – mas eis o reverso da medalha! A família, os descendentes de
Archanjo, seus parentes, esses morriam à míngua, vegetavam na maior miséria, na
fome e no frio. Ali mesmo, minhas bondosas Senhoras, meus ilustres Senhores,
naquela sala em festa tão grandiosa, ali mesmo padecia uma parenta próxima de
Archanjo, mãe de sete filhos, às vésperas do oitavo, viúva ainda a chorar a morte do
esposo estremecido, necessitada de médico, hospital, remédios, dinheiro para
comida dos meninos... Ali, naquela sala onde eram ouvidos tantos louvores a Pedro
Archanjo, ali...
Apontava a mulata na cadeira:
– Levante-se, minha filha, ponha-se de pé para que todos vejam em que estado se
encontra uma descendente, uma parenta próxima do imortal Pedro Archanjo, glória
da Bahia e do Brasil, glória da Pátria! (AMADO, 1971, p. 368).
194

A cena é toda ela permeada de fina ironia, uma vez que torna porosos os limites entre
a mentira e a verdade. A mulher a quem o Major se refere não é filha de Pedro Archanjo, nem
sequer o conheceu, talvez nem guarde qualquer memória, ainda que de oitiva, do seu nome.
Ao mesmo tempo, ninguém presente ali naquele Salão Nobre, à exceção do próprio rábula,
guardava tanta relação com o homenageado. A imagem evocada pela presença da mulata
grávida e necessitada atualiza, por via alegórica, a descrição feita pelo próprio Archanjo a
respeito das condições de vida da população negromestiça na Cidade da Bahia,
invariavelmente posta às margens do Estado. Estabelece, deste modo, uma continuidade entre
os eixos temporais do romance: a sociedade autoritária dos tempos de Pedro Archanjo Ojuobá
permanece, ainda que nuançada, nos dias vivenciados por aquela mulata grávida, além de se
projetar na experiência ainda futura que aquele embrião possivelmente virá a ter. Não deixa
de ter razão Fraga Neto, também ele próximo a Archanjo e presente na sessão solene, que
comentou: “[...] nessas comemorações tudo fora farsa e embuste, um colar de absurdos.
Talvez a única verdade tenha sido a invencionice do Major, a mulata prenhe e sem comida,
precisada e sestrosa, falsa parenta, parenta verdadeira, gente de Archanjo, universo de
Archanjo” (AMADO, 1971, p. 369-370).
Ao fim e ao cabo, os tempos não são tão outros assim; o estado de exceção que a
tradição dos oprimidos põe em cena se perpetua. De certo modo, Argolo e Pedrito continuam
vivos no discurso oficial do Batista, no texto da Dopping, na fala da professora Dida Queiroz;
nas hierarquias estruturais da cidade e no repúdio a tudo que não seja branco e proveniente da
matriz colonizadora ocidental. O Archanjo que dá nome a ruas e escolas e que segue sendo
homenageado pelas instâncias oficiais do poder não é o mesmo que viveu no Pelourinho,
combateu Argolo e Pedrito, que em vida já era pai e herói do povo negromestiço e pobre da
Bahia; não é o mesmo que se mantém como reminiscência presente nas memórias
subterrâneas, nas quais é recordado pelo nome nagô, Ojuobá. Trata-se, enfim, de um
monumento construído a espelho das ideologias dominantes, como flagra Fausto Pena: “[...]
na estátua, quase branco puro, sábio oficial da Faculdade, capado e mudo, vestido com a
túnica de soldado, Pedro Archanjo, glória do Brasil” (AMADO, 1971, p. 334).

7.2 TOCAIA GRANDE E O ECO DE UMA LIBERDADE INTERROMPIDA

O narrador deste romance está posicionado na cidade de Irisópolis, na faixa dos


cacauais baianos, em pleno contexto do aniversário de setenta anos da cidade. A efeméride, na
condição de uma data oficial, funciona como pretexto para reafirmar o orgulho ou a sensação
195

de pertença dos nativos em relação às suas supostas altas origens, o que é feito através de
reencenações do mito de fundação local bem como a partir da rememoração em forma de
bustos, ruas e praças daqueles instituídos como heróis – sujeitos cujos sobrenomes, sem
dúvida, ressoam nas famílias que se perpetuam como a elite do lugar.
Em meio às comemorações, o narrador se descola da história oficial da cidade para
remontar o seu começo sob uma perspectiva diversa da que narra altas origens, interpelando-a
a partir do passado que fora apagado e esquecido, a pequena comunidade de Tocaia Grande –
face obscura que, uma vez trazida à tona, tensiona e desmonta a face refulgente sobre a qual
se erige o mito da cidade grapiúna.
Imbuído de tal perspectiva, o narrador pouco se dirige de forma direta a Irisópolis,
fazendo-o apenas em um breve preâmbulo, quando situa os festejos de seu aniversário, e no
último parágrafo do romance, apenas para dar um ponto final à narrativa:

E aqui se interrompe em seus começos a história da cidade de Irisópolis quando


ainda era Tocaia Grande, a face obscura. O que aconteceu depois – o progresso, a
emancipação, a mudança de nome, a comarca, o município, a igreja, os bangalôs, os
palacetes, os paralelepípedos ingleses, o intendente, o vigário, o promotor e o juiz, o
fórum e a cadeia, a loja maçônica, o clube social e o grêmio literário, a face
luminosa – não paga a pena contar, não tem graça (AMADO, 2008, p. 459).

O interesse do narrador não é a cidade que completa setenta anos, mas o pequeno
arraial que ali existia no antes de qualquer origem a ser celebrada. Toda a narrativa gira em
torno da formação de Tocaia Grande, localidade que vem a ser descrita como um território de
“[...] liberdade e sonho” (AMADO, 2008, p. 428).
À primeira vista, uma narrativa assim delineada coloca em apuros a possibilidade
antes aventada de ler o revisionismo amadiano como revelador de estados de exceção,
configurados como sociedades autoritárias. Ao que parece, o retorno ao passado, pelo menos
neste romance, busca desencavar o exato oposto do que seria a imagem formulada por Chauí
(2013), trazendo à tona uma organização social constituída como uma efetiva comunidade, na
qual não haveria “[...] obrigação nem horário de trabalho. Nem feitor nem capataz, nenhum
patrão. [...] Ninguém mandava em ninguém” (AMADO, 2008, p. 191).
Esta caracterização positiva de Tocaia Grande não é posta em cena apenas pelo ponto
de vista do narrador, resultante das narrativas orais a que teve acesso e dos cordéis coligidos,
mas também enunciado, como um estratégico reforço, pelas personagens. Quando do início
do assédio ao pequeno arraial, simbolizado na chegada de dois missionários católicos, a voz
de Carlinhos Silva, representante de uma firma exportadora de cacau e apaixonado pelo lugar,
196

emerge com a autoridade de quem conhece não só aquele pedaço de chão, mas boa parte do
mundo ocidental:

Os habitantes de Tocaia Grande [...] ali viviam à margem de ideias preconcebidas,


desobrigados das limitações e dos constrangimentos decorrentes das leis, livres dos
preconceitos morais e sociais impostos pelos códigos, fosse o código penal, fosse o
catecismo. [...] aqui ninguém manda em ninguém, tudo se faz em comum acordo e
não por medo de castigo (AMADO, 2008, p. 418).

Ao estabelecer uma leitura crítica do romance, atentando para a construção de Tocaia


Grande como um território ficcional em que Amado projeta a sua utopia de uma sociedade
culturalmente heterogênea, solidária e inclusiva, Rita Olivieri-Godet (2006, p. 47) pontua:

Isolado do mundo, nascido sob o signo da violência e da morte, Tocaia Grande se


transforma num lugarejo ativo, lugar de refúgio e de abrigo para toda uma população
de excluídos da sociedade, uma espécie de Eldorado, não somente pela beleza do
lugar, mas também pelo convívio tolerante, solidário que pouco a pouco reina entre
os habitantes pertencentes a diferentes culturas e etnias. Esses componentes diversos
se imbricam e se expressam de maneira livre e imprevisível, ignorando os códigos
da “civilização”, suas leis morais ou religiosas, sua dominação opressiva. Anárquica,
libertária, primitiva, esta sociedade ideal surge cheia de energia e de vida. Sem lei,
sem rei, sem fé, mas pluricultural, aberta e solidária, é assim que o romancista
imagina a vida nesse vilarejo cujos costumes desafiam os preconceitos e a hipocrisia
da moral pequeno-burguesa.

Em face de como o arraial que dá título ao romance se apresenta ao leitor, devo


mesmo reconhecer algum estranhamento por solicitar, para a sua leitura, a chave teórica
aberta por Marilena Chauí (2013). No entanto, não o faço com a pretensão de enquadrar a
pequena comunidade de Tocaia Grande na definição do que seja uma sociedade autoritária.
Antes, quero mesmo entendê-la na condição do que ela efetivamente é, ou seja, uma potente
heterotopia – aqui não importando se este espaço outro alguma vez correspondeu a uma
realidade exterior à ficção, posto que se inscreve na concretude do real que sustenta o
romance, nele funcionando de acordo com a noção foucaultiana.
Não custa lembrar que as heterotopias, justamente por representarem distinções de
posicionamentos em relação àqueles admitidos pela sociedade englobante/dominante, a
tensionam e por ela são tensionadas, as bordas de ambas se materializando como espaços de
conflito entre formações ideológicas e discursivas, quando não propriamente de corpos e
armas. Ler aquela pequena comunidade sob uma condição heterotópica pressupõe entendê-la
em divergência com a sociedade organizada em derredor a ela, ainda que o romance não se
dedique a explorar de forma minuciosa este ambiente situado no entorno do arraial. É baseado
197

em uma abordagem a partir desta divergência que acredito ser possível sustentar a leitura do
modelo social configurado em volta da comunidade como autoritário.
Decerto, não se apresenta como um exagero estender um tal modelo inclusive à
própria Irisópolis, mesmo ela pouco se concretizando em texto. Apesar do quantitativo de
páginas dedicadas à cidade ser realmente ínfimo, ela se projeta, como sombra, em todo o
romance, podendo ser interpelada em função da inferência de contrastes que se estabelecem
quando pensada a partir do que Tocaia Grande efetivamente representa. Irisópolis pode
corresponder ao reverso exato da comunidade anteriormente assentada naquela faixa de terra
onde a cidade veio a ser edificada; a substituição de uma pela outra ocorrendo de forma não
pacífica ou natural, mas por intermédio do assédio, da submissão e do extermínio – “[...] a
iniquidade esmagando a liberdade”, como faz saber o narrador ao recuperar a voz de poetas e
cantadores populares, responsáveis pela denúncia do massacre ocorrido (AMADO, 2008, p.
453).
Ademais, ainda que óbvio, há um dado que não pode ser desconsiderado de todo.
Corrobora para esta leitura o fato de o recurso da memória funcionar como uma estratégia
simbólica de suprir ausências, entrando em cena apenas quando o objeto da rememoração já
não se encontra presente; a memória evidencia o que falta. Em Tocaia Grande, o retorno
mnemônico ao passado tem por objetivo principal fazer emergir, na memória coletiva, o
genocídio que sustenta a fundação de Irisópolis, fato ocultado pela história oficial do lugar, e
que tensiona a construção idílica de uma cidade supostamente nascida sob os signos da paz e
da fraternidade. Em paralelo a este intento, outras memórias são reivindicadas, liberando
conteúdos que igualmente faltam à convergência espaço-temporal em que o narrador se situa
– entre eles, a reiterada afirmação de uma estrutura social em que todos os seres humanos se
equivalem, com possíveis assimetrias individuais não incorrendo em hierarquizações,
desigualdades ou em conflitos.
Se correta esta chave de leitura, Irisópolis corresponderia ao exato oposto de Tocaia
Grande não apenas no instante dos eventos que fundam a urbe, o autoritarismo vencendo a
liberdade, mas também e ainda no presente a partir do qual o narrador a observa, cuja
flagrante existência de uma produção constante de silêncio é índice maior de uma relação
desigual de forças entre os grupos sociais ali estabelecidos.
Cabe seguir uma argumentação em duas linhas distintas. A primeira delas, com o
enfoque recaindo nas seis partes iniciais do romance, deve investigar os rastros que permitem
elucidar o mundo deixado para trás por aqueles que migraram em direção a Tocaia Grande,
bem como observar o sentido que eles dão àquela comunidade, comparando suas vidas antes e
198

depois de ali se instalarem. A outra precisa interpelar a sétima e última parte da narrativa,
aquela anteriormente referida como dotada de uma arquitetura trágica, para nela entender o
extermínio do arraial não apenas como motivado pela ambição em torno de férteis terras de
cacau, mas também como um ato de expurgo a uma organização social que prescinde de
hierarquias e preconceitos, que é avessa às exclusões.
Nascida como ponto de pernoite de tropeiros em trânsito, a localidade de Tocaia
Grande, situada em um amplo descampado entre duas fazendas de cacau, se desenvolve
acolhendo uma população composta de margens sociais e étnicas em migração, sujeitos que
trazem consigo memórias que narram da opressão circundante àquele espaço de terra
devoluta, onde podem ter a experiência de alguma liberdade.
A passagem de um ponto de pernoite de tropeiros no qual algumas poucas prostitutas
trabalhavam sem pouso fixo, além dos que ali ficavam pelo ofício de proteger um depósito de
cacau, à condição de um arruado se dá pela chegada e instalação dos primeiros reais
moradores da localidade. Entre outros, assentam-se em Tocaia Grande o mascate libanês
Fadul Abdala, convencido de que havia sido conduzido até ali por Deus, na perspectiva do
catolicismo maronita65, para se que estabelecesse feliz e enriquecesse; o ferreiro Castor
“Tição” Abduim, fugido da condição de escravizado que, no Recôncavo Baiano, perdurava
para além de 1888, e a velha prostituta Jacinta Coroca, já sem idade para exercer a profissão
de povoado em povoado.
À parte o Capitão Natário da Fonseca, proprietário da Fazenda da Boa Vista e uma
espécie de patrono de Tocaia Grande, é por intermédio destas três personagens que, de pouco
em pouco, se vai tecendo o sentido de comunidade responsável por animar as relações entre
os habitantes do lugar – sentimento a partir do qual se pode observar aquela região limítrofe
entre a heterotopia ali constituída e a sociedade autoritária em derredor.
Antes de acompanhar as trajetórias do trio de personagens acima destacado,
principalmente as de Tição e de Coroca, convém dar alguma atenção a um conjunto de
sergipanos migrantes, oriundo de Maroim, e primeira família a se fixar naquele lugarejo. De

65
De acordo com as informações contidas no site oficial da Igreja Maronita no Brasil, “A Igreja Maronita é uma
Igreja católica, de rito oriental, em plena comunhão com a Sede Apostólica Romana, ou seja, ela reconhece a
autoridade do Papa. Tradicional no Líbano, essa Igreja Oriental possui ritual próprio, diferente do rito Latino
adotado pelos católicos ocidentais. O rito maronita prevê a celebração da missa em língua siro-aramaico, a
língua que Jesus Cristo falava. ٍA Igreja Católica possui duas raízes: a ocidental ou romana e a oriental. Dentro
desta segunda, quatro são as sedes patriarcais que marcaram sua história: Jerusalém, Alexandria (Egito),
Antioquia e Constantinopla. Dentro do grupo de Igrejas antioquenas existem dois grupos: sírio-ocidental e sírio-
oriental. A Igreja Maronita forma parte do grupo sírio-oriental, sendo o siríaco sua língua litúrgica. Integra-se,
pois, na tradição cristã oriental, sendo seu povo das raízes mais antigas de toda a Cristandade”. Cf.
www.igrejamaronita.org.br
199

feição alquebrada e espírito sem muita esperança, este grupo, composto por dez pessoas e
organizado em torno do casal de idosos Ambrósio e Vanjé, dá ensejo e vazão a uma estória
comum a praticamente todos aqueles que se dirigem à região grapiúna:

Mais uma vez o capitão [Natário da Fonseca] escutou a corriqueira crônica dos
corumbas. Homens e mulheres, do velho ao molecote, cavoucavam medidas braças
de terra à meia com o dono e senhor, fazendeiro de gado, chefe político, senador
estadual. A vida transcorria plácida, plantavam e colhiam, levavam a parte que lhe
tocava à feira de Maroim, vendiam e barganhavam. Aos domingos as mulheres
acudiam à igreja, os homens ao botequim.
Um dia, sem quê nem por quê, o velho regressou com a paga estipulada pelo
senador – não adianta discutir, é pegar ou largar –, o prazo para arrumar a trouxa e
buscar outra pousada, uma ardência nos olhos, um nó na garganta. Queixar-se a
quem? Ao bispo?
Para as mulheres no desatino da aflição houve, bem certo, o conforto do padre-
mestre, ele próprio afetado pela medida inesperada que vinha privá-lo dos gordos
capões, das frutas escolhidas, dos tenros aipins, dádivas semanais daquela boa gente,
temente a Deus. Aconselhou resignação e obediência. De certa maneira – opinou
semicerrando os olhos, entrelaçando os dedos sobre a pança – deviam considerar-se
criaturas de sorte dado o natural bondoso do senador. Dono da terra – ou a terra era
deles, por acaso? –, se o senador quisesse, poderia tê-los posto fora sem pagamento
de nenhuma espécie, sem prazo, sem aperto de mão. Precisava daquele massapê para
transformá-lo em pasto para o gado, capim-gordura em lugar de mandioca e feijão.
O rebanho tinha preferência, nada mais justo. O senador fora duplamente
magnânimo; primeiro, ao lhes permitir lavrar e colher por tanto tempo; depois, ao
pagar pelo que não devia. Recordou ainda o prazo concedido, suficiente para que
pudessem ir à feira no sábado vender os produtos derradeiros, antes da mudança.
Cabia agradecer. Deitou-lhes a bênção, Deus é grande (AMADO, 2008, p. 208,
grifos meus).

A frase com que se inicia o trecho citado dá a medida da recorrência com que levas e
levas de imigrantes são expulsas das terras que lavravam, nelas cultivando suas próprias
vidas. Não era a primeira vez que o Capitão Natário da Fonseca tomava conhecimento de tais
experiências; não seria a última. Drama cotidiano em um país cujos solos férteis, não
importando quais, sempre têm donos e no qual o regime de terras é baseado no latifúndio, não
raro improdutivo e muitas vezes obtido por meio das armas ou de estratagemas de grilagem
legitimados por um judiciário cúmplice dos crimes que julga, a sorte dos sergipanos é, por si
própria, imagem impressa da sociedade autoritária a que estavam submetidos.
Validada pelo padre-mestre, que parece enxergar mais necessidade no rebanho bovino
do que naquele da parábola bíblica que narra o rebanho de Deus, a ação do senador não pode
ser compreendida de acordo com o argumento que busca guarida na propriedade privada, sob
pena de esta ser uma posição irmanada à arbitrariedade cometida, endossando-a a partir de um
ordenamento jurídico cuja razão maior de existir é a salvaguarda de privilégios senhoriais em
prejuízo dos mais pobres.
200

Aliás, em se comentando o padre-mestre, é interessante observar a reação em que ele é


flagrado pelo relato dos corumbas. Ante a notícia infeliz, a natureza do sentimento que
percorre a alma do sacerdote não se mede na escala das mais nobres, no patamar onde
deveriam se encontrar o amor fraternal, a compaixão e a solidariedade. Também não se
localiza nele qualquer indignação, nem sequer o mais mínimo movimento em se pôr ao lado
dos injustiçados – até mesmo porquê, segundo a sua concepção, não há qualquer injustiça
sendo cometida. Afeta-o tão-somente a mesquinha tristeza de se saber privado dos saborosos
regalos semanais que lhe eram ofertados pelas mulheres daquela família.
A imagem pode ser jocosa, debitando o riso ao caráter glutão daquele que deveria se
constituir como um pastor para o rebanho de Maroim. No entanto, ela funciona como crítica,
apontando para o estado de total alheamento do sacerdote em relação às demandas daqueles
que o procuram – ou, ao menos, dos que se mostram como mais necessitados. Comprometido
com os poderosos, com os donos de terra, o padre-mestre não tem outro conselho a não ser a
resignação diante da decisão do senador. Trata-se de um discurso que visa legitimar o status
quo na medida mesma em que procura aplacar, por via de uma ideologia religiosa, qualquer
possibilidade de revolta dos grupos dominados contra os dominantes.
É interessante observar que a figura do padre-mestre pode ser lida como uma
metonímia-sinédoque da Igreja Católica como instituição, a ausência de um nome próprio
para o sacerdote funcionando como indicativo da perda de sua individualidade para dar lugar
à representação de um lugar social – recurso também visualizado em relação ao senador
sergipano, que talvez abarque uma generalização da classe política. Este dado é relevante uma
vez que o posicionamento da Igreja ao lado dos poderosos não se altera ao longo do romance,
independentemente dos indivíduos que portam seu discurso. Da mesma forma que ela,
acumpliciada com o senador, dá lastro à opressão vivenciada por aquela família de
sergipanos; anos depois, novamente de mãos dadas com os interesses de poderosos, agora na
versão daqueles que assediam Tocaia Grande, penetra no território do arraial para convertê-lo
e condená-lo – o que, de forma emblemática, acontece imediatamente antes de a comunidade
ser dizimada. Com isto, decerto não é exagero concluir que a Igreja é representada como um
pilar de sustentação do estado de exceção ao qual o amplo contingente populacional dos
sujeitados está relegado.
Se interpelada a partir da tradição dos oprimidos, alocada aqui na experiência coletiva
daquela família sergipana, a sociedade da qual ela provem se apresenta como dotada de uma
estrutura fortemente hierarquizada, do que decorre uma dinâmica social apoiada no mando e
na obediência, para a qual a Igreja concorre recomendando resignação aos submetidos. O
201

poder público, em verdade, se configura como uma extensão da esfera privada, com partidos e
políticos exercendo o governo em benefício próprio, não alcançando nem tentando alcançar
constituírem-se como representação popular. Todos os direitos são reivindicados pelas classes
dominantes e por elas administrados, não cabendo qualquer segurança jurídica àqueles que se
encontram na base da pirâmide social, fato que ocasiona severas dificuldades no que tange à
gerência das próprias vidas, cujos destinos estão sempre condicionados aos humores do
senhor de terras.
Eis a imagem a que se chega quando apuradas as memórias subterrâneas mantidas
pelo grupo liderado por Vanjé e Ambrósio, ainda mais em se considerando a recordação
aguda e pontual do volume de poder exercido pelo senador, cuja experiência, transmitida por
quem o sofreu, remete às sensações de ubiquidade e de claustrofobia. “Seus domínios: o
estado de Sergipe, chão e águas, as árvores, os bichos, os caminhos, a justiça. Tinha alguns
sócios menores, ricos senhores de engenho. Os demais eram servos” (AMADO, 2008, p.
209).
Neste modelo de organização social, a posse da terra coincide, via exercício de um tal
poder, com a autoridade sobre o destino das vidas humanas, de resto coisificadas, que nela
vivem e que dela retiram o viver. Assim, os “servos” não representam mais do que peças
quaisquer a serem movimentadas – em sacrifício, inclusive – de acordo com a vontade e os
interesses econômicos daquele que se lhes apresenta como senhor, porque dono do chão em
que trabalham. “A vida das criaturas continuava sem valer um ai”, reflete o capitão Natário da
Fonseca, dando o tom e a medida da opressão experimentada pelos dominados (AMADO,
2008, p. 211).
Assentada em Tocaia Grande, com terra para plantar e colher sem o risco iminente de
ser expulsa dali, sem a necessidade de se submeter aos mandos e desmandos de um poderoso
qualquer, sem estar acima ou abaixo de quem quer que fosse, a família sergipana passa a
vivenciar uma realidade até então desconhecida. A lembrança da sociedade autoritária, de
onde viera, recua cada vez mais ao passado, sendo aos poucos suplantada pela experiência
nova de convivência em uma comunidade. A mudança de ares, com a esperança se
apresentando como possível naquelas terras, operava transformações no próprio grupo, antes
abatido.
Embora já seja possível visualizar, no triste quadro montado pelas experiências dos
corumbas, os cerceamentos inerentes à estrutura de uma sociedade autoritária e, por
intermédio da nova condição anímica de tais personagens, a potência de Tocaia Grande como
um verdadeiro espaço outro, é necessário ir além. Cumpre agora pensar acerca da personagem
202

Castor “Tição” Abduim, que traz questões responsáveis por conectar o romance à discussão já
realizada em torno de Tenda dos milagres, colocando em evidência o fundamento racista que
organiza a sociedade autoritária brasileira.
De acordo com Rita Olivieri-Godet (2009, p. 78), “Tição Abduim faz parte da plêiade
de personagens amadianos corajosos, destemidos, que se libertam do vínculo da submissão,
capazes de lutar pela liberdade, mesmo que o preço a pagar seja o da própria morte”. Nascido
servo nas plantações de cana do Recôncavo Baiano, onde o regime de trabalho escravo
perdurou para muito além da abolição, Tição carrega consigo a memória do tempo em que era
tratado como não pertencente à espécie humana, sendo alocado na condição jurídica de um
bem semovente, ou, quando muito, como um ser humano inferior, de segunda categoria, mas
dotado de boa serventia para a cama. Assim o viam, respectivamente, o barão Adroaldo,
Senhor de Itauaçu, e sua esposa, Marie-Claude, Madame la Baronne:

Um dia, quando dissertavam sobre a pureza e a beleza das raças equinas e similares,
andando pelos arredores do banguê, o barão Adroaldo apontara um negro
adolescente, envolto em fagulhas, na oficina do ferreiro, chamando a atenção de
Madame La Baronne para aquele magnífico espécime de animal de raça:
– Repare no torso, nas pernas, nos bíceps, na cabeça, ma chère: um belo animal.
Exemplar perfeito. Observe os dentes.
[...] Mas Marie-Claude aprendera com as freiras do Sacré-Coeur que os negros
também têm alma, adquirem-na com o batismo. Alma colonial, de segunda classe,
mas suficiente para distingui-los dos animais: a bondade de Deus é infinita,
explicava sóror Dominique dissertando sobre o heroísmo dos missionários no
coração da África selvagem (AMADO, 2008, p. 53).

Assim como também ocorre por intermédio da família sergipana imigrante, cuja
memória recupera a imagem de uma sociedade estratificada e violenta, a narrativa se utiliza
da personagem Castor Abduim como uma forma de suplementar esta configuração a partir de
um outro matiz, as divisões étnico-raciais. Através dele, e utilizando-se do flashback, o
romance pode deslocar provisoriamente o seu cenário base, movimentando-se da ambientação
dos cacauais em direção às extensas plantações de cana do Recôncavo Baiano, para ali flagrar
uma situação de opressão, salvaguardadas as suas especificidades, muito próxima àquela já
registrada no interior de Sergipe.
Trata-se, com efeito, de uma pequena cartografia de, pelo menos, duas modalidades de
estado de exceção experimentadas por grupos diversos, mas constituintes das camadas mais
baixas de suas respectivas hierarquias estruturais. Se o traço da dominação é comum a ambas,
com a vida humana correspondendo a posses das quais os poderosos podem dispor sem peia
ou conflito moral, porque legitimados pelo exercício do poder e em acordo com as ideologias
dominantes, o fator básico de submissão é diverso.
203

Já não se trata, na experiência reconstruída pela memória de Tição, de uma clivagem


social sustentada na disparidade entre domínios territoriais, a posse da terra funcionando
como dínamo da opressão – ou, pelo menos, não com este elemento na condição de principal
agente regulador da estratificação. O ponto de disjunção entre dominantes e dominados se
localiza em outro lugar, qual seja, nas ideologias eurocêntricas (primeiro religiosas, depois
ligadas à filosofia secular e, por último, cientificistas), responsáveis por classificar, de acordo
com critérios supostamente capazes de observar a essência trans-histórica dos seres, os grupos
étnico-raciais humanos a partir das relações binomiais estabelecidas entre “eleitos” e
“amaldiçoados”; “civilizados” e “bárbaros”; “evoluídos” e “primitivos”; “superiores” e
“inferiores”.
O barão e a baronesa divergem acerca da condição humana de Tição, mas não o fazem
no concernente ao estatuto que os separa em relação a ele. Para o senhor de Itauaçu, o negro
Castor Abduim não é mais do que um animal, embora de belo espécime; para sua esposa,
Marie-Claude, um homem de segunda classe, cuja alma houvera ganho em função de ser
batizado. A diferença entre um pensamento e outro, com a posição de Madame la Baronne
conotando alguma comiseração, não é significativa. Ambas se encontram inseridas em uma
mesma formação ideológica, que significa a parcela branca da humanidade como superior às
outras, principalmente em relação àquela oriunda do continente africano ou que, no âmbito da
diáspora, se revela afrodescendente. Desta maneira, ambos naturalizam os lugares de mando e
obediência que fundamentam a estrutura hierárquica da sociedade em questão.
Em um regime escravocrata, no qual a assimetria de poder é de uma tal dimensão que
os corpos dos escravizados é coisificado e tornado objeto de posse, a figura do senhor se serve
deles não apenas como mão-de-obra, mas também dentro de uma economia sexual regulada
pelo estupro – como o romance sugere ao afirmar que o barão Adroaldo se mantinha “[...]
ocupado em derrubar cabrochas do banguê, delas usando e abusando como se ainda
perdurasse a escravidão” (AMADO, 2008, p. 54). De forma algo semelhante agia também a
baronesa, servindo-se fartamente dos negros ainda escravizados do engenho; tanto mais de
Castor Abduim, que fora deslocado do eito e da forja para o serviço de mordomo – decerto,
uma posição menos afeita à tradição dos castigos aplicados.
Dito isto, não estou estabelecendo uma equivalência entre os lugares reservados ao
homem e à mulher no bojo de uma sociedade patriarcal, ironicamente desestabilizados pelo
romance através do ato mútuo de pôr cornos, nem pretendo desconsiderar o dado textual que
aponta para a satisfação adolescente com que Tição, em pleno vigor de seus dezenove anos,
atendia à volúpia da francesa. Mas, acredito ser possível visualizar tensões em cena, mesmo
204

em estado latente, que se localizam na ausência de uma margem viável para que as mucamas
e o próprio Tição recusem o barão e a baronesa – leitura para a qual é necessário evitar a
sedução risonha emitida pelo detalhamento do como e porque Marie-Claude fazia cumprir-se
a natureza de cabrão do marido, esta espécie de dobra da malha narrativa que se sobrepõe a
uma abordagem mais vertical dos conflitos em jogo.
Da mesma forma que, no contexto da sociedade organizada em torno daquele engenho
e montada ainda sobre as bases da escravidão, o sexo poderia vir a se configurar como uma
estratégia, ao mesmo tempo desesperada e arguta, das mulheres escravizadas para obter algum
nível de defesa para seus corpos, de resto desprotegidos pela sua redução a mercadorias,
poderia sê-lo também para Tição, a despeito de o narrador informar que a personagem se
sentia melhor com os trajes mínimos de ferreiro do que adornado nas chiques vestimentas
requisitadas por sua nova função. Se, para Madame la Baronne, alocar Castor Abduim no
papel de mordomo possibilitava tê-lo por perto de uma maneira mais discreta, melhor
disfarçando a sistemática traição ao marido; para Tição, que a servia em mesa e cama, talvez
esta se mostrasse como uma saída possível à onipresença do açoite.
Tição representava para Marie-Claude o que a mucama Rufina significava para o
barão de Itauaçu, ambos requisitados pelos senhores para dar corpo ao desejo. Neste sentido,
se pensada sob a clave da economia sexual estabelecida naquele engenho, talvez a
aproximação entre Castor e Rufina comporte algum nível, simbólico ou inconsciente, de
vingança – as arbitrariedades do barão e da baronesa sendo duplamente punidas por ambos, ao
mesmo tempo.
As tensões, até então em estágio de latência, podem ser percebidas com maior força a
partir do momento em que o barão Adroaldo, duas vezes feito corno por ação do negro Castor
Abduim da Assunção, flagra-o em regalo de cama com Rufina, a predileta entre as mucamas
com quem o senhor de engenho se deitava:

Desvairado, o barão exemplava-a com denodo. Castor arrancou-lhe o chicote das


mãos, partiu-o em dois pedaços e atirou-o longe. Em troca recebeu o tapa, o insulto
e a ameaça.
– Vou mandar arrancar teus ovos, Príncipe de Merda, negro imundo.
A face ardendo, a vista turva, o Príncipe fosse-lá-do-que-fosse – de ébano ou de
merda – com a mão esquerda segurou o barão pela jaqueta de montaria, com a
direita encheu-lhe a cara de porrada. Só parou de bater quando acudiu gente, vinda
da casa-grande e do banguê num alvoroço que tinha algo de festivo: não é todos os
dias que se assiste ao espetáculo do esbofeteamento de um senhor de engenho
(AMADO, 2008, p. 56).
205

Não quero interpelar esta cena pelo teor de violência explícita que ela apresenta – o
barão açoitando o corpo de Rufina ou a ameaça de castração e morte direcionada a Tição.
Apesar de relevante para o meu argumento, uma vez que ela evidencia o tratamento
dispensado àqueles que ousam contrariar os privilégios do senhor, sua força pode ser reduzida
a um simples esquema ação-reação, a reviravolta ocorrendo como uma forma de impulso
contrário à imagem dos rasgos sendo abertos por todo o corpo da mucama. Visto sob este
prisma, o justiçamento empreendido por Tição estaria privado de sentimentos acumulados ao
longo dos anos em que serviu ao engenho, também em outros momentos presenciando o
azorrague descer sobre corpos negros.
Ao deslocar o enfoque conferido à análise desta cena, movimentando-me da ação que
lhe é central para as insinuações periféricas, introduzidas com alguma sutileza pelo narrador,
os conflitos, antes velados nas maledicências da cozinha ou do banguê, emergem em torno a
um potente sentimento coletivo de catarse. Vindo do eito e da casa-grande, um alvoroço que
tinha algo de festivo se organiza para presenciar Adroaldo Muniz Saraiva de Albuquerque,
senhor de Itauaçu, apanhar de um negro. Por intermédio de Tição, aquela população de
escravizados purgava as humilhações e violências sofridas ao longo dos anos, fossem elas
físicas ou situadas no nível discursivo, vingando-se a cada golpe desferido contra um barão
agora indefeso, momentaneamente despido de seu poder.
Era festa, era espetáculo. Porém, era igualmente um breve instante. Castor Abduim
conhecia a dimensão do poder que insultara, sabia-se capado e morto se por ali permanecesse.
Fugido, desembarcou em Salvador, onde, acolhido por Mãe Gertrudes de Oxum, foi
aconselhado a se dirigir para o sul, nas terras do cacau, uma vez que a Cidade da Bahia era
por demais próxima de Santo Amaro, território em que se localizava o engenho do barão e da
baronesa. Consistia, assim, de um espaço ainda tocado pela influência do senhor de Itauaçu,
perigoso para Tição. Zelosa de sua vida, a personagem embarca imediatamente em um saveiro
que seguia na direção de Ilhéus, de onde partiria para o terreiro de Pai Arolu, situado entre as
praias de Pontal e de Olivença. Posto sob a proteção do babalorixá, que gozava de tão ou mais
força que o bispo da região, Castor Tição Abduim recomeça a vida junto ao coronel
Robustiano de Araújo, muito relacionado ao pai-de-santo. Na Fazenda Santa Mariana, de
propriedade do referido coronel, Tição trabalhou como ferrador de cavalos por cinco anos até
que, um dia, acompanhando um grupo de tropeiros, conheceu a localidade de Tocaia Grande,
em cuja organização não hierarquizada, visualizou o que, enfim, poderia significar como
liberdade.
206

Assim como se deu com aquela família de sergipanos, a especificidade do modo de


vida estabelecido em Tocaia Grande tocava ao coração de Castor Abduim pelo contraste que
produzia em relação a sua experiência passada, profundamente marcada pela submissão.
Antes reduzidos à servidão, rebaixados como seres humanos à condição de coisas e de
mercadorias, tais personagens assumem um novo – e desconhecido – estatuto a partir do
momento em que se fixam naquele território, o de serem agora donas de seus destinos; a vida
não lhes sendo tangida pelo poder de outrem.
Para além de uma estrutura social não hierarquizada, na qual todos os moradores se
encontram no mesmo patamar e se equivalem, não ocorrendo ingerências de uns sobre os
demais, Tocaia Grande apresenta ainda um outro diferencial em relação à sociedade
circundante: o respeito à alteridade, sentimento fundado na concretude de um convívio
desprovido de preconceitos.
A diversidade é um fator de constituição de Tocaia Grande como uma heterotopia.
Seja do ponto de vista étnico-racial, seja sob o prisma das referências culturais, a localidade
não se configura como homogênea, mas pela “[...] aceitação do outro e de suas diferenças
[...]”, como destaca Olivieri-Godet (2009, p. 79). Neste sentido, a dupla condição de homem
negro e de Axé ostentada por Tição Abduim não o significam a mais ou a menos no pequeno
território do povoado de Tocaia Grande; diferentemente do que acontecia na sociedade do
Recôncavo Baiano, para a qual tais pertencimentos identitários o estabeleciam como um ser
inferior, de segunda classe. Era a primeira vez que ele se inseria em um modelo de sociedade
que não lhe imputava restrições, reconhecendo-o como um igual.
Mas, verdade seja dita, mesmo se apresentando como um espaço desprovido das
restrições étnico-raciais e de cultura corriqueiras noutros lugares, além da ausência de uma
divisão estrutural montada sobre assimetrias de poder, o principal fator de identificação de
Tocaia Grande como uma heterotopia não se encontrava ainda formatado quando da chegada
de Tição ao lugar. De fato, o traço de coesão social era inexistente, não havendo muitas
ligações entre os parcos moradores do lugarejo.
Embora todos estimassem o libanês/grapiúna Fadul Abdala, apelidado Grão-turco,
sendo a sua bodega parada obrigatória para os tropeiros da região, além de também para os
responsáveis pela segurança do depósito de cacau instalado nas proximidades, não se havia
cultivado ainda, em Tocaia Grande, um sentimento comum de pertença a uma coletividade
responsável por uma percepção do outro como uma extensão de si próprio – a agressão a um
recaindo também nos demais. Este dado se torna bastante perceptível quando do assalto ao
estabelecimento comercial de Fadul, em noite na qual ele se encontrava ausente por motivo de
207

viagem a Itabuna para renovar o estoque de mercadorias. Ao saber do que se passava,


Bernarda, jovem prostituta que nutria carinho pelo estrangeiro, instiga os homens
responsáveis pelo depósito – todos armados e em maior número – a intervirem, evitando
prejuízos ao comerciante e protegendo também as mulheres do lugar, ameaçadas de estupro:

– Nós não tá aqui pra garantir mercadoria de turco nem boceta de mulher-dama. O
que é que tu pensa? Que isso aqui é uma cidade? Isso aqui é uma tapera com uma
bodega, quatro putas e com nós no barracão do coronel: é cada um por si e Deus por
todos (AMADO, 2008, p. 150).

É claro que, em última instância, Bernarda estava também motivada por uma
preocupação com a sua própria sorte, afinal, sentia medo da possibilidade de ser estuprada.
Havia, no entanto, alguma proximidade e mesmo ternura na relação entre o libanês e a jovem
prostituta, não se reduzindo a uma ligação reificada, mantida pelo elo comercial da compra e
venda do sexo. Isto abre mesmo a possibilidade de que seu pedido por Fadul fosse sincero e
não apenas uma estratégia desesperada para comover aqueles homens, que talvez dessem mais
valor ao dono da venda do que a ela, mulher e prostituta – apesar de jovem, Bernarda já
conhecia as consequências do ofício que, por força do destino, desempenhava; para além da
cama, já se habituara ao desprezo que lhe era conferido.
À parte as motivações mais íntimas de Bernarda, se preocupação sincera com o Grão-
turco ou justificado desespero diante da ameaça iminente de violência sobre o seu corpo, o
fato é que não se haviam instituído ainda vínculos entre as pessoas que ensejassem uma tácita
lei moral do cuidado com o próximo. Simples conhecidos uns dos outros, as relações
interpessoais se reduzindo ao comércio de produtos e de prazeres entremeado por breves
conversas casuais, os habitantes e trabalhadores de Tocaia Grande não tinham ainda
desenvolvido a percepção de si próprios como uma comunidade – sentido para o qual
concorre Castor Abduim, talvez o seu principal articulador: “Para não se transformar num
vivente sombrio e triste, miserável, precisava modificar com urgência os hábitos e o
procedimento dos minguados habitantes: implantar o convívio onde medrava a indiferença”
(AMADO, 2008, p. 165).
Assentado na localidade após o evento do assalto e tendo-a percebido bastante carente
de união, Tição toma para si o intento de produzir um sentimento comum àquela gente,
responsável por dar liga às relações interpessoais e envolvê-las em um sentido profundo de
complementaridade. De fato, é mesmo em torno do ferreiro filho de Xangô que se desenvolve
um espírito de coletividade a enlaçar a população do lugarejo, o que se dá por intermédio de
208

instantes de congraçamento festivo – o primeiro deles se fixando na confraternização


dominical do almoço, para a qual todos devem contribuir; seja provendo o alimento, seja
preparando-o.
Neste ponto, ainda que se reconheça a força simbólica que o ato coletivo de sentar à
mesa para a partilha do alimento tem nas culturas cristãs, e sem negar a validade desta
referência para o contexto analisado, o fato de Tição Abduim ser vinculado ao povo-de-Axé
implica a necessidade de também se considerar uma outra matriz de sentido, aquela
relacionada ao Candomblé, como constituinte do conjunto híbrido de significados postos em
cena.
Ao movimentar toda a (diminuta) população de Tocaia Grande em torno da instituição
do almoço dominical, desde a colheita e a caça até o preparo do alimento, o ferreiro reproduz,
em um ambiente não religioso, o simbolismo que aprendera no plano da experiência com o
Sagrado. Trata-se do ajeum, procedimento suplementar aos rituais litúrgicos do Candomblé,
no qual o Terreiro se reúne em torno do alimento para compartilhá-lo, renovando e reforçando
os vínculos espirituais e afetivos entre seus membros, com isso concorrendo para a expansão e
circulação do Axé – força vital que anima e sustenta a comunidade. O ajeum se configura
como um elemento central na dinâmica existencial da comunidade religiosa, constituindo-se
como um momento agregador, propício à solidificação dos laços entre desconhecidos que
passam, pela vivência conjunta do lugar, a ser irmãos.
Assim “[...] nasceu a ideia do almoço dominical. Animado como ele só, Tição foi o
autor da proposta que mereceu caloroso aplauso dos comensais: um almoço que os reunisse
uma vez por semana para encher o bandulho, conversar e rir” (AMADO, 2008, p. 174). O
compartilhamento do dia-a-dia, das estórias pessoais de cada um e da alegria em forma de riso
vai cimentando, de pouco a pouco, uma proximidade cada vez maior entre os habitantes de
Tocaia Grande, antes simples vizinhos sem quaisquer laços mais sólidos uns com os outros.
Com isso, na medida em que os dias passam, aquele sentimento de indiferença que fizera com
que ninguém, exceto Bernarda, mostrasse qualquer preocupação em defender aquilo que não
lhe coubesse diretamente, vai cedendo lugar a um espírito de irmanação coletiva fundado no
respeito e na solidariedade.
A partir daqueles almoços coletivos – daqueles momentos de ajeum, eu diria –, o
sentido de uma verdadeira comunidade vai se impondo aos habitantes de Tocaia Grande,
ainda que não verbalizado. A culminância deste processo se dá no primeiro festejo de São
João do povoado, época das festas sagradas de Xangô, cujo filho fora novamente responsável
209

pela ideia. Sem distinções étnicas ou sociais, todos os habitantes do lugar se irmanam como
podem para realizar a festa.
Na condição de um homem ligado ao Axé, Castor Abduim não concebe a ideia de
festa como mero divertimento, não se tratando de um momento sem maiores impactos nas
vidas individual e coletiva daqueles que dela participam. Para o ferreiro, que transpõe a sua
experiência do Sagrado para o campo da vida secular, a dimensão festiva se coloca como um
ponto imprescindível à dinâmica existencial de uma comunidade, uma vez que implica uma
ação conjunta em prol de um fim em comum, para o qual todos devem estar não apenas
unidos, mas irmanados – condição que deve ser compreendida no sentido forte do termo, qual
seja, o de se ter tornado irmão. A festa é, ao mesmo tempo, fator de congraçamento da
comunidade e celebração dos laços fraternais que, de fato, a sustentam.
O São João foi organizado no depósito de cacau, provisoriamente transformado em
salão para o forró ao ritmo da sanfona de Pedro Cigano, artista nômade do sul baiano com
profundo apreço por Tocaia Grande. Para celebrar aquele momento, integradas de todo à
comunidade, as prostitutas do lugar decidiram não exercer o ofício de se deitar com quem lhes
pagasse o serviço, trancando os balaios, no que foram prontamente respeitadas pelos homens
do povoado – a compreensão mútua já se enraizava entre eles. No entanto, forâneos se
encontravam entre os habitantes do local, atraídos pelo rumor que anunciava, boca a boca, a
realização da festa. Tratavam-se dos boiadeiros Misael, Totonho e Aprígio que, bêbados,
queriam forçar as mulheres à cama, uma vez que, na opinião deles, mulher-dama não teria
direito a recusar cliente. A citação é longa, mas valiosa:

Apesar da cara fechada de Fadul, Misael aguardou confiante e sorridente quando viu
os homens [de Tocaia Grande] encaminharem-se em sua direção. Certo de encontrar
neles compreensão e estímulo, ajuda para domar aquelas pestes e obrigar as
insubordinadas a cumprirem os deveres inerentes ao mister de putas: arreganhar a
racha para quem manda e paga, sem discutir ocasião e preferência. Disso não abria
mão. Onde já se viu mulher da vida ter vontade, horário de trabalho, dia de
descanso?
[...]
– O amigo não para de provocar baderna? Veio aqui a fim de quê? Vamos acabar
com isso.
Houve uma trégua no furdunço, as unhadas e os tapas cederam lugar à discussão. O
boiadeiro começou por mostrar-se cordato. Contemporizou:
– Nós não tá querendo barulho. Nós só quer que umas putas metidas a besta vão
com a gente pro mode nós aliviar o cacete.
– Eles tão querendo pegar mulher na marra e nós tá de balaio fechado – interrompeu
Epifânia, o sangue escorrendo do canto da boca.
– Não vou nem morta – reafirmou Bernarda.
– Puta não tem querer! – replicou o velho Totonho aproximando-se da bela
prometida.
Coroca suspendera a surra de tamanco no rapazola:
210

– Nós é puta, não é escrava – disse e encarou Fadul como se o desafiasse: – Não é
mesmo, seu Fadu? Ou vancê pensa igual com eles?
Convencido do apoio dos homens, considerando-se coberto de razão, na
predisposição de pagar uma rodada de cachaça antes de ausentar-se com os
tangerinos e as escolhidas, Misael ficou atônito ao ouvir negro Castor Abduim
perguntar e garantir:
– Ocês não sabe que a escravidão se acabou vai pra mais de vinte anos? Elas vão se
quiser, se não quiser não vão.
Misael olhou em derredor, correu a vista de Tição a Zé Luiz, do cafuzo Balbino ao
branquicela Bastião da Rosa, de Guido a Lupiscínio, de Gerino a Fadul, dos cabras
do depósito aos tropeiros e aos passantes, de Pedro Cigano com a sanfona a
Merência, grandalhona e compenetrada, por fim fitou cara a cara o ferrador de
burros:
– Não devera ter acabado para não ter negro ousado como tu. Não sei onde tou que
não lhe parto a cara. – Depois, virou-se para os outros: – Se vancês não quer arruaça,
não se metam.
Com o que levou a mão ao cinto largo; o velho e o rapazola se acercaram
confirmando o agravo. Antes que o boiadeiro puxasse do revólver, Fadul, após sorrir
para Coroca, falou em tom sereno como se estivesse conversando amenidades e não
ditando ordens:
– Deixe a arma em paz, seu Misael: não é o seu nome? E trate de ir-se embora antes
que seja tarde. – Conteve do outro lado o negro indócil: – Fica quieto, Tição!
Mantendo a mão no coldre, Misael ainda duvidou:
– Ocês vão brigar por essas escrotas?
– Se o amigo quiser obrigar elas, a gente briga. Fique sabendo de uma coisa. Aqui é
assim: mexeu com um, mexeu com todos.
– É isso mesmo. Se não gostou, dê seu jeito – interveio Merência, tão ciosa de sua
condição de mulher casada que não aceitara, vejam só, habitar nas vizinhanças das
raparigas para manter distância, impor respeito. As mãos na cadeira, comprava briga
como se aquelas perdidas fossem parentes suas, primas, sobrinhas, irmãs.
Fadul resumiu:
– É a regra do lugar (AMADO, 2008, p. 199-200).

O sentimento de pertença a uma comunidade, já de todo assentado no recôndito mais


íntimo daquele povoado, enfim emerge à consciência na condição de um ordenamento moral,
cláusula pétrea do lugar: a solidariedade em relação aos dramas que afligem ao outro. Já não
há qualquer margem para titubeios frente a uma situação em que um semelhante corre perigo,
mas um sincero dever em ampará-lo, em pôr-se ao seu lado, inclusive arriscando a vida, se
preciso. Procedendo de tal maneira, o povo de Tocaia Grande não está obedecendo a uma
regra imposta em um duplo movimento, de fora para dentro e de cima para baixo, mas, de
acordo a um consenso que fora germinado no dia-a-dia, na convivência por igual em um
mesmo espaço e na partilha de estórias com um fundo em comum. Para esta população, a
solidariedade não é uma obrigação moral porque está prevista em alguma lei, mas, torna-se lei
porque já se constitui como uma efetiva experiência cotidiana.
A cena transcrita, primeiro ponto de convergência da estrutura épica conferida às seis
partes iniciais do romance, decorre como um momento de provação. O pequeno povoado, à
feição de um herói coletivo, é fortemente testado naquele sentimento que corresponderia à sua
virtude maior, a solidariedade, cujo desenvolvimento o leitor acompanhou desde o zero, o
211

bem-sucedido assalto à venda de Fadul Abdala. Da tensão que se instala, ou Tocaia Grande
sucumbe de vez à indiferença, igualando-se à sociedade em derredor, ou se afirma como
potente heterotopia, comprovando a força verdadeira de suas virtudes, ao evitar em uníssono
que a violação da liberdade se consuma.
É sintomático que este momento de provação ocorra em função de um tensionamento
promovido de fora para dentro, no qual os elementos externos assumem, na condição de uma
premissa, o fato de o pequeno povoado replicar o mesmo conjunto de regras que orienta suas
formas de se relacionar com os outros. Por intermédio de uma representação metonímica, os
três boiadeiros simbolizando a sociedade ao derredor a Tocaia Grande, a narrativa confronta
dois conjuntos de regras sociais, um que se constitui como hegemônico/dominante e o outro
que figura como diferença.
A expressão “puta não tem querer”, com a qual Misael entende encerrar uma verdade,
é deliberadamente generalizante: a modalização do verbo no indicativo aponta para uma
realidade que, não sendo completada por nenhuma especificação adverbial de tempo ou de
lugar, se apresenta como atemporal e universal. Não importando quem, onde ou quando, o
corpo prostituído é sempre significado como privado de qualquer autonomia no que tange ao
seu próprio desejo, constituindo-se reificado sob a condição de uma reles mercadoria. Nestes
termos, despida de qualquer feição humana, a prostituta é reduzida a meros relacionamentos
objetais, comportando-se segundo a vontade do sujeito/comprador. Eis a tácita e ubíqua
verdade à qual Misael, a despeito da expressão carregada dos homens locais frente à sua
atitude, pressupõe a aderência. É justamente na ação em pressupor uma concordância irrestrita
no que concerne ao estatuto das putas que reside a senha para observar o comportamento dos
boiadeiros como espelhado da sociedade circundante a Tocaia Grande.
É relevante recuperar, neste ponto, um trecho específico da longa entrevista que Jorge
Amado concedeu a Alice Raillard (1990, p. 270), no qual o romancista afirma que as
prostitutas “[...] são banidas da sociedade pelos regimes capitalistas, socialistas, feudais; são
perseguidas em todos os regimes, consideradas uma doença social”. Com efeito, este é o
entendimento comum que os boiadeiros Misael, Totonho e Aprígio mimetizam naquele
espaço. E não é sem importância atentar para a diferença de idade entre o segundo e o terceiro
forâneos, descritos respectivamente como “velho” e “rapazola”, a diferença conotando a
permanência de um tal sentido através dos tempos.
Em Tocaia Grande, no entanto, as prostitutas não são meros objetos para o bel-prazer
dos homens, quais sejam. De uma perspectiva centrada nas relações interpessoais que
configuram a dinâmica existencial do lugar, elas estão integradas de forma orgânica àquele
212

microcosmos social. Esta condição fornece o lastro necessário para a coragem com que
rejeitam e resistem aos três forasteiros e para pressuporem que os homens do lugar agiriam de
modo diferente, reconhecendo-as como seres humanos livres para decidir sobre o próprio
corpo. Daí a confirmação/provocação lançada por Jacinta Coroca, espécie de matriarca entre
elas: “Não é mesmo, seu Fadu? Ou vancê pensa igual com eles?”.
Penso ser necessário interpor aqui um parêntese, desta vez abordando a trajetória
ascensional de Maria Jacinta da Imaculada Conceição, nome propositalmente irônico, talvez a
personagem mais significativa do romance. Primeira a assentar pouso fixo na localidade,
quando Tocaia Grande estava ainda se formando como um simples ponto de pernoite, Jacinta
Coroca funciona como um símbolo do lugar. Ela não só acompanha todo o processo de
erguimento do povoado, dele participando ativamente, e de sua queda, após os assassinatos de
Tição e de Fadul, nela comportando-se como último bastião, ao lado do capitão Natário da
Fonseca. Acima de tudo, ela antecipa o exercício de um espírito comunitário, que ainda
demoraria a germinar no coração dos outros.
Do início ao fim da narrativa, Coroca se estabelece como aquela que ampara, tendo
cuidado das prostitutas mais jovens quando dos começos da localidade, aconselhando a todos
os moradores e salvando a vida de Tição, quando este se encaminhava ao suicídio após a febre
ter levado Diva, sua amásia: “Tu se esquece, desgraçado, que tem um filho pra criar?”
(AMADO, 2008, p. 363).
Dentre todos, talvez o evento mais importante tenha se dado em momento anterior
inclusive à instituição das confraternizações dominicais, cuja relevância para o surgimento de
uma verdadeira experiência comunitária já foi ressaltada. Logo após o retorno de Fadul
Abdala quando do episódio do assalto à sua venda, Coroca o procura sem qualquer outro
interesse a não ser o de ajudar, colocando-se à disposição do libanês quando este necessitasse
de nova viagem para repor o estoque. Dormiria no balcão, venderia, receberia e daria troco,
prestando contas ao comerciante quando voltasse a Tocaia Grande. De início desacreditando
no que ouvia, desconfiado da capacidade da velha prostituta em cuidar de seu armazém, Fadul
compreendeu, naquele instante, que “[...] bravura, sabedoria e decência não são privilégios
dos machos, dos ricos e dos fortes, são apanágio de qualquer mortal, mesmo em se tratando de
uma puta velha e descarnada” (AMADO, 2008, p. 156-157). Inicia-se, assim, no território de
Tocaia Grande, a ressignificação do entendimento geral acerca das mulheres que vivem do
sexo.
Quando, enfim, aportada naquele ainda ponto de pernoite, Jacinta Coroca era já uma
prostituta experiente, sabedora da falta de valor com que a sociedade a significava:
213

– Quem não tem entendimento não deve escolher ofício de puta, que não é ofício
singelo, é bem mais dificultoso. Ela [Bernarda] pensa que basta catar piolho,
arreganhar os dentes se rindo, botar cheiro nas partes, tá muito errado. Mulher da
vida é igual a freira: quando entra pro convento, larga tudo. Pai e mãe, irmã e irmão,
o nome verdadeiro e o direito de emprenhar e de parir. Só que freira vira santa e vai
pro céu sentar na mão de Deus e a gente não passa nunca de puta, condenada sem
salvação (AMADO, 2008, p. 213).

Irônica desde a raiz, a declaração de Coroca é engenhosa: compara termos


supostamente antitéticos, ao mesmo tempo aproximando e separando as esferas do que a
sociedade legitima como santo e sentencia como maldito. Se os ofícios de puta e de freira se
tocam no que concerne aos sacrifícios inerentes ao exercício da função, por outro se afastam,
de forma irremediável, no que tange ao reconhecimento social que lhes é facultado. Às freiras,
cabem as graças do Senhor – e, talvez, não coubesse aqui o “s” maiúsculo, uma vez que esta é
a representação de um modelo social que cria o seu deus a espelho das relações que a
constituem, não uma figuração do Sagrado. Às putas, por sua vez, nada cabe além do
desprezo e o limbo social que precede o inferno.
No pequeno povoado de Tocaia Grande, a situação se apresenta diferente. Ainda que
alocadas, por decisão da própria Coroca, na rua de trás, a da frente sendo reservada
exclusivamente às famílias, as prostitutas não estão à margem da dinâmica social estruturante
do lugar. Pelo contrário, interagem e têm a voz e os direitos resguardados pelo restante da
parca população, que as vê como iguais.
Esta ressignificação, que teve o seu começo no gesto de solidariedade de Jacinta
Coroca ao libanês Fadul Abdala, é coroada quando a velha prostituta acumula, aos cinquenta
e quatro anos, o ofício de parteira, sendo titulada como “mãe da vida” (AMADO, 2008, p.
363). Se a personagem traz, em sua larga experiência, a percepção de que, não importando
quantos sacríficos a relacionem às vidas abnegadas das freiras, seu destino inevitavelmente se
aparta do delas, o texto amadiano reconhece e reitera em Maria Jacinta da Imaculada
Conceição virtudes. Tocaia Grande, este espaço outro, dotado de regras próprias e com uma
sociabilidade específica, singular, contradiz a velha Coroca, antes resignada ao desprezo e à
condenação aos quais o resto do mundo certamente a relegaria.
A trajetória ascensional de Jacinta Coroca, de um fatídico destino envolto em desdém
à respeitabilidade, atinge o seu ápice com o nascimento da nona criança por intermédio de
suas mãos, filha de Zeferina, da família de sia Leocádia, imigrantes da cidade de Estância, em
Sergipe:
214

Nasceu menina já depois das nove da noite e sia Leocádia anunciou o nome
escolhido: Jacinta. Jacinta, ai, não me diga! Sim, senhora, o nome da comadre
responsável pelos partos das três estancianas, quem mais merecedora? Tomada de
surpresa, Coroca perdeu o rebolado, viram-na por fim encabulada (AMADO, 2008,
p. 325).

Com efeito, é esta a mulher que interpela Fadul Abdala. Certamente não necessitava
que o libanês a defendesse; solta de Aprígio, ela já o disciplinava com o próprio tamanco.
Mas, era a provação. No posicionamento dos homens dali, Tocaia Grande se reduziria à
mimese do mesmo ou dele se desgarraria como diferença.
Jacinta mira Fadul, mas uma palavra utilizada por ela cala fundo em Tição Abduim.
Assim como ele o fizera anos antes, a velha prostituta rompia agora os elos de qualquer
servidão; assim como ele, também ela encontrava em Tocaia Grande a possibilidade de se
sentir livre; assim como ele, também ela já não aceitava a condição escrava. No átimo em que
Fadul processa a cena e em que Misael enxerga, no vacilo do libanês, a certeza de ser
endossado pelos homens do lugar, o filho de Xangô, Orixá da justiça, irrompe do silêncio
(re)afirmando a liberdade: “Elas vão se quiser, se não quiser não vão”.
Voltando à cena ocorrida na festa de São João, o posicionamento tomado por Castor
Abduim é chave para que a sociedade autoritária ao redor de Tocaia Grande novamente fale
pela boca-metonímia de Misael, expondo desta vez suas restrições étnico-raciais. O lamento
pelo fim do regime escravocrata é seguido de um insulto muito provavelmente articulado com
um acento de quase cuspe, “negro ousado”. A intensidade da provação aumenta.
Insultado, Tição quer partir para a briga, mas é impedido por Fadul Abdala. No sorriso
do Grão-turco para Coroca, o aceno de que ele, assim como anos antes havia compreendido
não ser ela menor ou menos digna do que qualquer homem, finalmente entendera a regra do
lugar: “mexeu com um, mexeu com todos”.
A frase cai com o peso de uma revelação sobre os habitantes de Tocaia Grande;
revelação esta não de algum mistério da ordem do transcendente, mas como uma verdade
tácita já por demais enraizada na experiência cotidiana daquela, enfim, comunidade. O efeito
é imediato. Merência, muito católica, antes ciosa da distância em relação à zona do pecado em
que se constituía, a seu ver, a rua das putas, deixa os dogmas de lado, as reconhece como
semelhantes e faz coro a Fadul. É a primeira a intervir, a arriscar a sua vida, se preciso, para
salvaguardar a heterotopia que é aquele lugar.
Ainda no episódio da enchente, quando o Rio das Cobras varre Tocaia Grande do
mapa, e no da epidemia da febre, que atingiu os moradores do povoado quando em plena
215

reconstrução de suas moradias, a solidariedade daquele povo foi novamente posta à prova. E,
mais uma vez, o agora arraial se mostrou virtuoso, distinguindo-se da sociedade ao seu redor.
Antes de o Rio das Cobras multiplicar o seu volume, ultrapassando os limites de suas
margens, o Rio Cachoeira transbordara “[...] inundando fazendas, destruindo roças,
transformando-as em imenso lamaçal [...]” (AMADO, 2008, p. 321). Neste contexto, o
narrador faz saber da falta de interesse que as vidas humanas perdidas no desastre ocasionam,
as atenções todas voltadas para as perdas materiais, financeiras:

Escutando, constatava que ninguém se referia ao destino dos viventes. Calculavam o


montante dos prejuízos causados pela enchente do rio Cachoeira, mas com a sorte
dos retirantes sem pouso e sem comida, apinhados em Ferradas, ninguém se
preocupava nem deles se compadecia (AMADO, 2008, p. 322).

Outro é o cenário quando o Rio das Cobras desce sobre Tocaia Grande. As casas, as
plantações, os poucos pertences de cada um já não importam tanto. No momento decisivo
ante a morte iminente e certa, em face da chance de o desespero minar a solidariedade e cada
um buscar salvar a si próprio primeiro e só, Fadul Abdala novamente levantou a voz para
recordar a quem, talvez, na aflição esquecesse: “[...] em Tocaia Grande eram todos por um e
um por todos, eis a divisa do lugar” (AMADO, 2008, p. 328). Se antes, quando enunciada
naquela noite de São João, tal frase calou em quem a ouviu como revelação de uma
experiência muito profunda do real, agora, na hora derradeira e fatal, soava como um “[...]
pacto de vida triunfante sobre a morte” (AMADO, 2008, p. 328).
A comunidade manteve-se unida durante e após o dilúvio, que durou mais de trinta
horas. Estiada a chuva, novamente baixas e mansas as águas do rio, a paisagem era de “[...]
ruína e de abandono: as plantações alagadas, o cultivo destruído, a criação dizimada”
(AMADO, 2008, p. 344). A devastação do local, no entanto, não se estendia à condição
anímica daqueles que ali assentaram as suas vidas, muito pelo contrário: “Em lugar de ir-se
embora, o povo juntara-se solidário. Virou uma família, explicou em Ilhéus o coronel
Robustiano de Araújo, testemunha idônea. Com pouco tempo renasceram plantações e
casario” (AMADO, 2008, p. 348).
Da mesma forma, a comunidade venceu sua segunda sentença capital: a febre sem
nome. Durante quinze dias de medo, ela matou nove pessoas, a última sendo Diva, amásia de
Tição. É bem verdade que, em função da peste, muitos arribaram de Tocaia Grande, mas não
aqueles verdadeiramente enraizados no lugar, os que ali viveram as confraternizações
dominicais, o São João, os que se sobrepuseram à enchente. E, se ainda fosse o caso de se
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perguntar o por que de tanto apreço pelo lugar, a razão de ali permanecerem, a resposta não
poderia vir a não ser sob a forma de uma outra pergunta: Por que o fariam, senão por se
saberem servos e párias em qualquer outro espaço; senão por reconhecerem ali uma
sociabilidade distinta daquela que rege as sociedades autoritárias que trazem na memória de
suas experiências pregressas de vida; senão por terem fundado uma heterotopia onde podem
ser iguais uns aos outros e, acima de tudo, livres?
Apesar do tom celebratório que cerca a existência de Tocaia Grande, o desfecho do
romance é crepuscular; a liberdade não apraz às sociedades autoritárias. Após vencer a
indiferença, a enchente e a peste, o lugar se defronta com uma quarta e terrível ameaça: o
Estado. “Era mais difícil – ai, muito mais, sem comparação! – do que enfrentar a enchente;
mais mortal a lei do que a peste” (AMADO, 2008, p. 442).
Ao contrário das demais partes em que o romance é dividido, cuja estrutura épica
acompanha o desenvolvimento da comunidade sob a ótica de seus moradores, a sétima e
última, dotada de uma arquitetura trágica, narra a sua queda abrupta. Aqui, a perspectiva da
narração é modificada para que emerja o posicionamento do Estado acerca da heterotopia
Tocaia Grande, o que primeiro é feito por intermédio do aparelho ideológico religioso, nas
figuras do frei Zygmunt von Gotteshammer e do frei Theun da Santa Eucaristia, e, depois, em
função dos aparelhos repressivos jurídico e policial. A liberdade e o sonho, termos
anteriormente utilizados por um narrador que emulava as vozes provenientes do pequeno
arraial, são agora substituídos pelas palavras oficiais: “A cidadela do pecado, o couto dos
bandidos” (AMADO, 2008, 395).
A mudança de perspectiva não implica uma aderência do narrador ao ponto de vista
oficial. Pelo contrário. Operando por contraste em relação ao desenvolvimento das seis partes
anteriores, o novo prisma funciona como uma denúncia do assalto arbitrário àquela
comunidade. O narrador continua irmanado às memórias subterrâneas que contam de Tocaia
Grande.
Como consequência do deslocamento executado no ângulo narrativo, que se
movimenta do baixo para o alto, o enfoque também se modifica. Antes centrada nas etapas de
formação, provação e afirmação da heterotopia onde é possível que experiências de liberdade
sejam cultivadas, a abordagem agora recai em sua total supressão – seja pela condenação
simbólica, por missionários católicos, do modo de vida ali fixado, seja pela lei forjada de
acordo com os interesses dos grupos políticos instalados no poder público ou, em última
instância, pelas armas de jagunços travestidos em policiais com salvo-conduto para pilhar,
prender e matar.
217

A chegada dos missionários católicos a Tocaia Grande é posicionada, de forma


estratégica, imediatamente antes do advento da lei e dos jagunços-policiais que a fariam
cumprir-se a custo do massacre da população local. Perante a sociedade autoritária, a
violência, ainda que desmedida, contra aquela heterotopia já figurava como legítima, uma vez
que solicitada, em sermão ao próprio povo do lugar, pela voz inconteste do frei Zygmunt von
Gotteshammer, o Martelo de Deus:

Em resumo acusou Tocaia Grande de ser cidadela do pecado, couto dos bandidos.
Terra sem lei, nem a de Deus nem a dos homens, território da degradação, da
luxúria, da impiedade, do sacrilégio, das imundas práticas do demônio, reino da
danação de Satanás. Sodoma e Gomorra reunidas, desafiando a ira do Senhor. Um
dia a cólera de Deus irromperá em fogo, castigando os infiéis, destruindo os muros
da maldade e da profanação, transformando em cinzas aquele covil de escândalo e
de iniquidade. Assim profetizou.
Na hora da bênção, na agonia do crepúsculo, frei Zygmunt Martelo de Deus ergueu
a garra adusta, traçou no ar a cruz da excomunhão, amaldiçoou o lugar e os
habitantes (AMADO, 2008, p. 427).

Convalidado via ideologia religiosa, o extermínio de Tocaia Grande já não é


significado como mesquinha ambição por mais terras onde plantar o cacau, nem por uma
profunda aversão à diferença ou, muito menos, por uma sintomática necessidade em docilizar
os corpos segundo as regras estabelecidas pelas classes dominantes e conformativas de uma
sociedade autoritária. É, acima de tudo, a ira divina, justa e mortal; os jagunços-policiais
como que inspirados por um Deus que ainda não havia aprendido, com o Seu único filho, a
amar ao próximo como a Si mesmo.
Com a chegada da lei, a notícia reprisada de velhos tempos: algum papel forjado no
calor da hora, com estatuto de documento oficial, anunciava que as terras sem dono onde
aqueles seres haviam assentado suas vidas pertenciam, desde sempre, ao coronel Boaventura
Andrade e, com a sua morte, passavam ao herdeiro, Venturinha, que as requeria.
Seria luta inglória, perdida desde o começo; que poderia aquela pouca população
contra o Estado? A maioria, enfim, debandou. Resistir só “[...] pagava a pena para aqueles que
tinham um pacto a honrar. Um pacto com Deus, com o bom Deus dos maronitas, era o caso de
Fadul. Ou com a liberdade, era o de Castor. Com a terra ganha com o suor do rosto, no caso
de Vanjé. No de Coroca, um pacto firmado com a vida” (AMADO, 2008, p. 442). Diante da
situação, Vanjé, a velha matriarca daquela primeira família a se instalar em Tocaia Grande,
expulsa de Maroim por motivo que agora se repetia, toma da palavra:

– Se lembra, capitão, quando vosmicê encontrou nós na estrada, corridos de


Sergipe? Comigo era pela segunda vez, já tinha acontecido com a terra do meu pai.
218

Sei o pensar de Agnaldo, ele nunca se esqueceu. Não sei dos outros, cada um sabe
de si. Mas posso lhe dizer, capitão Natário, a vosmicê que foi um pai pra nós: do
proveito dessa terra que era mato fechado quando nós chegou, não vou dar a
ninguém nem meia nem terça. A ninguém. E só saio morta (AMADO, 2008, p. 441).

O confronto se deu. Em dez horas de tiroteio, quarenta e oito mortos, sendo vinte e
dois habitantes do lugar. A sociedade autoritária se impunha onde antes medrava o sonho e a
liberdade. Um a um, todos caíram: Vanjé, com a sua repetição em punho e na companhia dos
filhos; Castor “Tição” Abduim e Fadul Abdala. Apenas Jacinta Coroca e o capitão Natário da
Fonseca restavam, atocaiados no alto da mesma colina em que a primeira tocaia, a que deu
nome ao lugar, fora montada. Esperavam a entrada triunfal de Venturinha, cavalgando
vitorioso sobre aquele chão em que lama e sangue se misturavam. Um estampido surdo cortou
o ar, Natário nunca errou um tiro.
No entanto, o espaço outro em que a experiência de liberdade pôde acontecer já não
mais existia; ali se fundava Irisópolis e Tocaia Grande se diluía no sem palavras de uma
desmemória oficial.

7.3 CENTELHAS DE ESPERANÇA

Aqui se fecha a argumentação acerca do como se dão os desiguais enfrentamentos


ideológicos e bélicos entre a ordem instituída, organizada em torno de uma sociedade
autoritária, de ação repressora e violenta, e pequenas heterotopias, onde a liberdade cresce
como uma efetiva dimensão da experiência cotidiana. E, ao fazê-lo, devo confessar algum
incômodo – ainda que este não seja bem o lugar apropriado para confissões. Tudo apurado, a
sensação que resta após o esforço em analisar o arco ficcional revisionista da produção
amadiana parece ser muito próxima a um denso e triste pessimismo; os mortos do presente se
somando aos mortos do passado, ainda e sempre inseguros, em um contínuo sem fim. Algo
como se aqueles romances, cada um a seu jeito, me dissessem, ao fim e ao cabo, não ser
possível a liberdade.
Os datiloscritos da incompleta narrativa de Boris, o Vermelho dão a entender que o
romance seguiria na mesma direção, confirmando a liberdade como algo inacessível. Focado
em desmontar duas versões sobre o jovem Boris Prazeres da Anunciação, o narrador se
mostra incomodado por estar em companhia de policiais e ideólogos, duas categorias de gente
que diz abominar. Isto por que ambas teriam uma só função, suprimir a experiência concreta
da liberdade. Assim, em face das narrativas montadas pelos inquéritos policiais-militares e
219

pelos ideólogos do Partido Comunista, as duas manipulando a memória do falecido rapaz de


acordo com as prefigurações de seus quadros axiológicos, o narrador considera:

Liberdade? A que e a quem serve a liberdade?


Serve à subversão, dela se utilizam os inimigos da Pátria e do regime para propor e
atingir objetivos criminosos – garantem, sem dúvida cumulados de razões, os
esbirros pagos para combatê-la e suprimi-la.
De que serve a liberdade a quem vive na miséria, morrendo à míngua, sem acesso
aos bens essenciais, à comida, à habitação, ao trabalho? – argumentam, assentados
em razões indiscutíveis, os guardiões da doutrina, fardados de teses e teorias,
dispostos a impor outra ditadura.
Liberdade, palavra vã. Narra-se com ela para que se estabeleçam governos fortes,
autoritários, de direita ou de esquerda: nesses e naqueles manda quem pode, obedece
quem tem juízo. Os ditadores, os generais e os coronéis, os pais da Pátria, os líderes
dos partidos únicos, os guias geniais pensam e resolvem por nós e pelo povo, é
simples e fácil.
Liberdade, palavra vã. Em troca, ditadura e dirigentes, que asco66.

Seria, enfim, o caso de rever o breve preâmbulo desta tese, que corresponde à
assunção de uma premissa para a leitura do universo romanesco amadiano, a esperança como
um sentimento perene? Afinal, o ethos autoral que emana da discussão realizada aqui, em
função da leitura do arco ficcional revisionista, se assemelha ao de um homem derrotado em
sua própria invenção de liberdade, talvez agora desprovido de qualquer possibilidade em nela
crer. Ou, talvez se trate da imagem de alguém que, ainda procurando saídas e despido das
certezas de antes, sabe ao menos onde não é possível localizar a liberdade: não o será no
conjunto de regras e de valores que configura a sociedade dominante, montada como
constante atualização da matriz colonizadora ocidental, nem nas ideologias políticas que
orientaram e ainda orientam ditaduras de direita e de esquerda ao longo do século XX e nas
primeiras décadas do atual.
Por sua vez, ainda que de forma contrária ao pessimismo cinzento que por ora domina
o desfecho deste capítulo, é possível acessar alguma esperança, ainda que ela se coloque entre
parênteses. Georges Didi-Huberman (2011, p. 42) ensina:

[...] uma coisa é designar a máquina totalitária, outra coisa é lhe atribuir tão
rapidamente uma vitória definitiva e sem partilha. Assujeitou-se o mundo, assim,
totalmente como o sonharam – o projetam, o programam e quem no-lo impor –
nossos atuais “conselheiros pérfidos”? Postulá-lo é, justamente, dar crédito ao que
sua máquina quer nos fazer crer. É ver somente a noite escura ou a ofuscante luz dos
projetores. É agir como vencidos: é estarmos convencidos de que a máquina cumpre
seu trabalho sem resto nem resistência. É não ver mais nada. É, portanto, não ver o
espaço – seja ele intersticial, intermitente, nômade, situado no improvável – das
aberturas, dos possíveis, dos lampejos, dos apesar de tudo.

66
Datiloscrito digitalizado sob inscrição Boris o Vermelho V.I._028.
220

A força descomunal com que a sociedade autoritária estabelece um continuado estado


de exceção é flagrada pela produção literária amadiana. No entanto, o triunfo da violência
sobre a liberdade não implica que os dominados, mortos ou não, sejam de todo vencidos.
Novamente Didi-Huberman (2011, p. 149):

Os reinos, “governabilidades” segundo Foucault ou, ainda, “polícias” segundo


Rancière, tendem certamente a reduzir ou subjugar os povos. Mas essa redução,
ainda que fosse extrema como nas decisões de genocídio, quase sempre deixa restos,
e os restos quase sempre se movimentam: fugir, esconder-se, enterrar um
testemunho, ir para outro lugar, encontrar a tangente...

É justamente dos restos, dos fragmentos que sobram nos espaços intersticiais onde a
diferença se resguarda de todos os leviatãs, que se compõe o arco ficcional revisionista de
Amado. Ele é forjado a partir daquilo que, mesmo não se sabendo muito bem como, sobrevive
aos sistemáticos massacres e se prolonga no tempo por intermédio dos subterrâneos de uma
memória coletiva, sobrepondo-se à própria vida dos que foram sacrificados e driblando todas
as vigilâncias em silêncio e em espera. Estes restos contam de outras estórias, veiculam outras
perspectivas, situam desconhecidas heterotopias e narram de outras experiências possíveis. Na
insurgência destas memórias, no indesejado passado que elas comunicam apesar de tudo,
encontram-se as chaves para uma experiência de liberdade ainda futura. Se, como adverte o
poeta em epígrafe, certamente não é chegado o tempo de completa justiça, sendo o presente
ainda contrário à liberdade, a sobrevivência daquelas memórias subterrâneas ao menos
mantém a salvo a esperança de que um dia este tempo outro chegue.
221

8 POR UM FECHAMENTO SOLAR

Mandei plantar
folhas de sonho no jardim do solar
as folhas sabem procurar pelo sol
e as raízes procurar, procurar

Caetano Veloso. Panis et circenses.

Mas sei
que uma dor assim pungente
não há de ser inutilmente.
A esperança
dança
na corda bamba de sombrinha
e em cada passo dessa linha
pode se machucar.
Azar!
A esperança equilibrista
sabe que o show de todo artista
tem que continuar.

Aldir Blanc e João Bosco. O bêbado e a equilibrista.

Caso houvesse alguma pressa em pôr um termo às reflexões que engendram esta tese,
seria possível ceder à tentação de assumir Tocaia Grande na condição de um romance-síntese
das figurações que o tema da liberdade admite na ficção amadiana – e, então, este seria o
espaço das considerações finais, ao invés desta espécie de post scriptum deslocado para antes
do fim. No entanto, não me sinto confortável diante desta possiblidade de encerramento, que
parece produzir alguma forma de aporia.
Não pretendo deslegitimar a leitura que empreendi no capítulo anterior: a questão
passa ao largo de uma autossabotagem, é bom deixar claro. Mantenho o meu posicionamento
acerca daquela pequena comunidade, nela enxergando a expressão mais completa do que
Jorge Amado projeta como experiência possível de liberdade – seja no âmbito da vivência
coletiva ou das idiossincrasias individuais.
Acontece, e este é o ponto em que a garganta se faz em nó, que o modelo heterotópico
ali configurado sofre dura interdição, sendo reduzido às memórias subterrâneas recuperadas
pelo narrador. E, ainda que eu tenha argumentado em prol da relevância de esta versão outra
da história comunicar o jaez libertário que um dia demarcou a existência do arraial, abrindo
assim um caminho para que a esperança não se esvaia em derrotismo, devo reconhecer que
este não é um sentimento inscrito no corte da realidade constitutivo do romance, que se
conclui sob um tom crepuscular.
222

Apesar de eu aderir às considerações teóricas que colocam em cena a potência de um


pensamento não convencido pela produção de invisibilidades, permanecendo atento à força do
que quer que reste apesar de tudo, não nego certo travo frente à perspectiva de me valer desta
circunstância para salvaguardar Tocaia Grande na condição de fecho desta tese. A sombra do
massacre ocorrido, responsável por relegar à memória as experiências de liberdade antes
existentes naquele território, é por demais impactante para que não contamine de luto
qualquer margem de esperança que advenha dos relatos sobreviventes.
A aporia se instaura na medida em que o romance, ao mesmo tempo que me fornece o
conteúdo necessário para que sejam ancoradas minhas conclusões em torno do tema desta
pesquisa, adota uma arquitetura trágica cujo desfecho aponta para o extermínio do modelo
que se estabelecia em regime de diferença ao matiz autoritário da sociedade em derredor.
Nesta narrativa, as figurações da liberdade e de seu contrário são posicionadas com
igual pregnância, mas com capacidades dessemelhantes de confronto, o que acarreta a
derrocada daquela configuração heterotópica. Deste modo, o balanço final das imagens
textualizadas faz com que a queda do arraial rivalize em potência de ressonância com a sua
ascensão.
A minha recusa em tomar de Tocaia Grande na condição de uma insígnia por
intermédio da qual o sentido definidor de liberdade restaria enfeixado atende, pois, ao risco
não pequeno de, ao fazê-lo, situar em relevo não o que pretendo visualizar, mas a sua
completa negação.
É neste sentido que recorro a O sumiço da santa67, publicado quatro anos após Tocaia
Grande, em 1988, para dar um encaminhamento final às considerações elaboradas ao longo
deste estudo.
Um pouco acima, classifiquei a leitura contida aqui na condição de um p.s. fora de
lugar, ou seja, como um conteúdo que, a despeito de impor uma necessidade em ser dito, não
se apresenta como um elemento que justifique a remodelagem do que já foi expresso, de
maneira que o enquadramento como apêndice cabe-lhe bem.
À parte o tom de brincadeira, há mesmo algo de sincero nesta colocação. Minha opção
pelo desenvolvimento deste oitavo capítulo não decorre de uma expectativa em torno de
novas experiências de liberdade possíveis de serem flagradas em O sumiço da santa. Não há,

67
O romance apresenta dois subtítulos, “Uma história de feitiçaria” e “Romance baiano”, e três variações de
título: Visitação de Iansã à Cidade da Bahia, Execração pública de fanáticos e puritanos e A guerra dos santos
– este último, aludindo àquele projeto já estudado e discutido no capítulo cinco.
223

em sua essência, qualquer acréscimo de ângulo às figurações já veiculadas em narrativas


anteriores, sendo fixadas em Tocaia Grande como um modelo de sociedade ideal.
Mas, se é assim, por qual razão se coloca a necessidade de abordar esse romance? É
natural que a pergunta surja. A resposta é simples e, de certo modo, encontra-se já no título
conferido a este capítulo: a sua condição de narrativa dotada de um desfecho solar, que vem a
ser um traço faltante em Tocaia Grande. Com efeito, em O Sumiço da santa, a esperança não
precisa ser elaborada a partir de protocolos de leitura acerca do que já feneceu; ela se coloca
como potência-devir, não apenas conduzindo o texto, mas também se afirmando em meio à
resolução dos conflitos que movimentam a trama.
Este oitavo capítulo se trata, portanto, não de um suplemento às formas em que são
representadas experiências de liberdade, mas à perspectiva com a qual elas se projetam para
além do fim das páginas em que vivem. Diferentemente do que ocorre com aquele pequeno
arraial heterotópico, aqui a liberdade resiste como esperança palpável ou, enfim, triunfa sobre
os sistemas de repressão que buscam docilizá-la ou extingui-la – o que me parece uma
solução mais adequada ao conjunto da produção amadiana.
A estrutura de O sumiço da santa é montada em torno de três tramas simultâneas, que
se desdobram, às vezes aproximando-se, outras vezes seguindo de forma paralela. A que se
apresenta como central gira em torno das personagens Adalgisa e Manela, respectivamente tia
e sobrinha, com ênfase maior no arco existencial da primeira, protagonista do romance.
Refere-se ao processo de superação dos preconceitos de raça, cultura e religião por ela
professados, além das limitações morais impostas à dimensão corpórea, desejante, de sua
existência. Isto é possível mediante a ressignificação dos valores culturais que alicerçam a
experiência de mundo de Adalgisa, vinculada a uma versão excessivamente dogmática da
axiologia judaico-cristã, a partir da assunção de uma identidade tecida com os fios
constitutivos do ethos do povo-de-Axé, para a qual é conduzida por Oyá-Iansã.
O segundo eixo narrativo funciona como uma espécie de pano de fundo da estória
principal, dependendo dos desdobramentos desta para atingir a resolução de seu conflito. D.
Maximiliano von Gruden, curador da Exposição de Arte Religiosa e responsável pela exibição
da imagem de Santa Bárbara do Trovão – peça singular porquê representativa de uma
religiosidade híbrida, afro-católica, da qual o sacerdote se mostra admirador – vê-se em
situação difícil por causa de seu súbito desaparecimento. Embora a polícia, quando acionada
para investigar o caso, tente explicá-lo a partir de uma hipótese de simonia, ou seja, comércio
ilícito de objetos sagrados, a escultura, na verdade, não havia sido roubada; apenas
224

metamorfoseara-se em Oyá-Iansã, vinda ao Àiyé, mundo terreno, para libertar Manela e


Adalgisa: a primeira, do cativeiro imposto pela tia; a segunda, de si própria.
O terceiro eixo narrativo, apesar de entrar em contato com as outras tramas pela
proteção que Iansã dedica ao Padre Abelardo Galvão e pela atuação das polícias na tentativa
de deslindar o sumiço da imagem da santa, desenvolve-se como uma estória paralela às
demais, posto que sua temática não está relacionada à solução do conflito existente na trama
central, nem lhe é dependente. Aqui, o narrador segue o Pe. Abelardo Galvão, cura de
Piaçava, cidadezinha localizada no Sertão baiano. O sacerdote, envolvido com os setores mais
progressistas da Igreja Católica, vinculado à Teologia da Libertação e às Pastorais da Terra,
entende seu lugar de homem religioso como atado a uma atuação política em prol da
emancipação do povo de injustas condições socioeconômicas – alistara-se “[...] sob as ordens
de Deus no exército dos pobres, engajara-se nas fileiras dos mais pobres de todos, os sem-
terra, os servos”, informa o narrador (AMADO, 2010b, p. 317). É com a figura deste padre,
ou por meio dela, que o romance se irmana a uma perspectiva resiliente de atuação
contestatória e de engajamentos por mudanças no que concerne à estrutura autoritária em que
se funda o Brasil.
As três tramas se desdobram em um período de 48 horas e estão situadas mais ou
menos entre o ano de 1969 e o início da década de 1970. Esta época se constitui como o
momento mais agudo da ditadura militar, posto que a sociedade brasileira se encontra sob
jugo do general Emílio Garrastazu Médici e já estava em vigor o Ato Institucional nº. 5, de
dezembro de 1968, além de um aparato repressivo montado em torno de órgãos de segurança,
como os funestos DOPS e DOI-CODI68. Esta situação política correspondia à perda da
liberdade civil e individual, à intensificação da censura de imprensa, dos meios de
comunicação televisivos e dos atos culturais, além da repressão política e da tortura de
estudantes e jovens profissionais de esquerda que resistiam ao golpe, transformando o
sequestro e a morte em uma rotina e o termo “desaparecido” em um eufemismo.
Este é o quadro político que organiza parte da dimensão autoritária da sociedade
brasileira, ainda naquela acepção estabelecida por Chauí (2013), que deve ser complementada
por uma economia capitalista não preocupada em dissimular as assimetrias sociais,

68
O Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), criado em 1924 e com atuação marcante durante o
Estado Novo e a ditadura militar, tinha o objetivo de censurar e reprimir movimentos políticos contrários à
ordem estabelecida. Foi extinto em 1983. O Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações
de Defesa Interna (DOI-CODI), que compreende dois órgãos de inteligência e repressão, surgiu em decorrência
da Operação Bandeirante (OBAN), institucionalizando-a em 1970 e sendo extinto em 1976.
225

principalmente no que concerne à polarização entre as zonas urbanas e rurais, estas ainda
sustentadas por um regime de terras baseado no latifúndio.
Uma vez traçadas as linhas gerais em que o romance se desdobra, quero devotar
alguma atenção à primeira e à terceira – enfocando esta última de maneira um pouco mais
detalhada. Prescindo de comentar a segunda pois a sua leitura, se realizada por intermédio da
clave repressão versus figurações de liberdade, retorna resultados semelhantes à empreendida
em função dos arcos existenciais de Adalgisa e Manela ou, ao menos, a uma parte desta, a
abertura positiva para o outro, com quem se estabelece contatos responsáveis por tornar
fluídos os limites entre uma e outra realidade cultural.
Opto por iniciar em função da linha narrativa cujo foco se encontra na resistência ao
regime dos generais, isto devido ao fato de nela emergirem roupas novas para vestir modelos
antigos: a ditadura militar para figurar o Estado opressor; e os padres engajados em uma
perspectiva política de esquerda, atualizando o sonho de sociedades organizadas
igualitariamente, tanto no que se refere às condições materiais quanto de poder69. Nesse
contexto, cabe verificar a partir de quais procedimentos é feita a denúncia da ditadura e de que
modo o romance projeta uma alternativa a ela.
O narrador de O sumiço da santa adota três estratégias narrativas distintas para se
reportar às forças e instituições repressivas construídas pelo Estado ou a situações em que elas
atuam.
A primeira destas estratégias se dá pela utilização de procedimentos figurativos
farsescos. O expediente não é exatamente uma novidade no universo ficcional amadiano, cuja
mudança de tom, a partir de Gabriela, cravo e canela, assume o humor como potência
desestabilizadora da ordem dominante. Para Jorge de Souza Araújo (2003, p. 166-167):

É refugiando-se no riso, na sátira de costumes, na picaresca, paródia ou burla que a


narrativa amadiana pós-Gabriela se instala, instilando, de forma talvez mais sutil, o
mesmo espírito revolucionário da dita primeira fase, permanecendo o mesmo retrato
emblemático da luta do povo brasileiro por assegurar suas resistências às sucessivas
ameaças urdidas pelos poderes de exceção.

Em face da arquitetura épico-trágica de Tocaia Grande, o tom narrativo adotado não


privilegia o riso como instância dessacralizante do poder – até mesmo porquê, nesta narrativa,
a ordem dominante se impõe e prevalece. Mas, o que falta à estória de Fadul, Jacinta e Tição

69
É bem verdade que a ditadura militar já havia se feito presente em outros romances, como Tenda dos milagres,
Tiêta do Agreste e, por via alegórica, em Farda, fardão, camisola de dormir. Entretanto, em nenhum destes
recebera o tratamento direto e incisivo com o qual figura em O sumiço da santa.
226

sobra em O sumiço da santa, romance com o intuito de divertir, segundo nota introdutória que
o autor faz constar no livro.
Neste ponto, é importante que se diga que este tipo de discurso não se confunde com a
gargalhada fácil e automática das comédias que se utilizam de cenas repletas de situações
absurdas, de maneira a fazer rir daquilo que é construído como absolutamente idiota e
desprovido de qualquer significação mais densa. Pelo contrário: o humor pretendido pela
representação amadiana se coloca como comprometido eticamente, posto que tem a função
não apenas de divertir, mas de, por meio do riso, apontar para as falhas da sociedade de forma
a possibilitar ou instigar uma consciência crítica acerca da realidade vivenciada pelos leitores.
Em O sumiço da santa, a exposição ao ridículo por meio do exagero de traços
caricaturais se coloca como o principal recurso pelo qual a ordem dominante e repressora é
destronada de seu lugar de poder – o cômico de tais representações recaindo não apenas sobre
os indivíduos, mas estendendo-se também sobre as instituições às quais estão relacionados e
às ideias que as sustentam.
É o caso, por exemplo, dos agentes secretos do serviço de inteligência do regime, que
concluem todas as explicações em torno do desaparecimento da imagem de Santa Bárbara
como uma iminente subversão comunista. Assim, os leitores, já cientes do que sucedera à
escultura sagrada, veem o coronel Raul Antônio, responsável pela Polícia Federal e
absolutamente integrado à paranoia anticomunista do regime, deslindar o caso em virtude de
uma conspiração subversiva internacional bancada pelo tráfico de peças religiosas:

– Sabe o senhor para onde vai o dinheiro obtido com os roubos praticados nas
igrejas, sobretudo as divisas vindas do estrangeiro? Não sabe? Vou lhe dizer: vai
para a subversão, o terrorismo, a guerrilha urbana, para os comunistas e para os
padres-melancias, esses que são verdes por fora, vermelhos por dentro. Espanta-se?
Poderia lhe dar detalhes, provas concretas, não o faço para não prejudicar as
investigações que estamos levando a cabo. [...] Mas nós vamos acabar com eles,
com eles e com os comunistas, com toda essa corja de celerados. Com todos eles
(AMADO, 2010b, p. 92).

A cena é formulada com o intuito de, por intermédio das suposições infundadas acerca
de possíveis levantes comunistas, falar ao leitor sobre as inverdades que sustentam os
inquéritos policiais-militares em que se acusam, e sob alegação dos quais são presos e
torturados, quando não mortos/desaparecidos, os civis que se opõem ao governo. A assimetria
entre o fato real, a transfiguração da peça em Iansã, e a lógica oficial, montada com o intuito
de legitimar o estado de exceção e, portanto, nada preocupada em apresentar-se como atada à
227

realidade, ocasiona uma situação absurda, solicitando um riso punitivo, pois conotativo de
descrédito.
Situação dotada de maior comicidade é vivenciada pelo comissário Ripoleto, cujo
nome parece ser retirado de alguma trama policial canhestra. Destacado, por sua inteligência
rara e por seu faro agudo, para cumprir investigação em Santo Amaro da Purificação, cidade
do Recôncavo Baiano a cuja paróquia pertencia a imagem de Santa Bárbara, o detetive se vê
envolto em uma grande manifestação popular, interpretando-a como um potencial levante
comunista quando, na verdade, tratava-se apenas de uma acalorada reunião para discutir
acerca do sumiço da peça, muito estimada por todos.
No encalço do movimento, interrogando a um e a outro a respeito de onde estariam os
líderes, que haviam desaparecido para conspirar em segredo, o grande Ripoleto, mestre na
arte do disfarce e da espionagem (que, no entanto, havia sido identificado desde sua chegada à
cidade), provoca a reação de alguns rapazes – descritos, com simpatia, como brincalhões –
que o despacham em uma canoa atirada ao rio Paraguaçu:

Não navegou grande distância o novel marinheiro. Pouco adiante, onde, numa curva,
o rio se alarga, a canoa aportou em vasta touceira de baronesas – reino das
muriçocas – entre as margens em verdade próximas. Jogou-se no Paraguaçu o
comissário e em poucas e rápidas braçadas atingiu a terra firme? Não o fez? Aqui
entre nós, que ninguém nos ouça, segrede-se em confidência secretíssima: o argos da
polícia estadual não sabia nadar. [...].
A roupa encharcada secando no corpo, o zumbido atroz dos mosquitos, [...] o vento
a soprar, as sombras indistintas e os ruídos furtivos, a impotência, o medo, em
resumo, a solidão dos intelectuais, comissário Ripoleto [...] atravessou a noite a
espirrar e a tiritar de frio apesar do calorão reinante (AMADO, 2010b, p. 264).

A máquina repressiva da ditadura, veiculada por metonímia através do comissário


Ripoleto, é fortemente desancada nesta cena – o rebaixamento sendo operado não apenas em
função da sequência narrativa, mas também pelo tom adotado; pela ironia que a atravessa e
pela inversão carnavalizante que a organiza.
As expressões “aqui entre nós” e “que ninguém nos ouça”, com a quais o narrador
incita a curiosidade em torno de um fato que supostamente não deveria ser contado, evocam
um certo ar de fuxico para a cena, sugerindo uma aproximação com os pequenos mexericos
não ingênuos da vida cotidiana, através dos quais se opera a desestabilização de figuras
públicas ou íntimas com a exposição risível de suas falhas ou de situações embaraçosas das
quais participaram. No caso em questão, o diz-que-diz-que funciona como uma margem de
manobra à censura instituída, segundo a qual qualquer posicionamento crítico acerca do
regime ou de seus membros restava proibido. Com o grau de enraizamento próprio das
228

fofocas, o rumor se capilariza e, de boca a ouvido, segue descontruindo “respeitabilidades”.


Se a ditadura impunha o silêncio oficial, punindo duramente a quem o rompesse em atos
públicos ou clandestinos, o texto amadiano propõe rir-se dela desde onde sua vigilância
panóptica não pode alcançar: a trama diária e ininterrupta dos zunzunzuns.
Outro aspecto desta cena se coloca na fina ironia com a qual o narrador estabelece
uma associação entre o comissário Ripoleto e o gigante Argos Panoptes – literalmente, “O
que tudo vê”. Dotado de cem olhos que nunca se fecham ao mesmo tempo, nem sequer
durante o sono, quando cinquenta deles permanecem abertos, o servo fiel da deusa Hera se
traduz como o arquétipo helênico da vigilância constante, incansável, infalível – simbologia
adequada a um sistema totalitário como o são os governos ditatoriais. A vinculação Ripoleto-
Argos, no entanto, não é realizada no sentido de reconhecer no comissário as qualidades
narradas no mito grego, senão como uma forma de deboche que, novamente, procura o riso
dessacralizante. Os poucos olhos do detetive, somente os dois de que é composta a espécie
humana, perdem-se fácil em meio à multidão santo-amarense; veem de forma confusa,
delirante: antes inventam uma realidade do que a apreendem. Não veem, nem pressentem, o
fato de o disfarce à la Sherlock Holmes nunca ter protegido o seu ofício, entregando a todos a
presença de um secreta. Corrosiva, a identificação irônica parece sugerir que a centena de
olhos deste não-Argos padece, toda ela, da mais profunda miopia,
Todo o episódio envolvendo o comissário Ripoleto é atravessado por uma inversão
carnavalizante constituída pelo tratamento que o texto confere à personagem, braço de uma
estrutura de poder baseada no regime de força, que, no entanto, se mostra frágil e incapaz –
mesmo impotente, como se encontra grafado no trecho transcrito.
No que tange especificamente à cena citada, o seu processo de construção é paródico.
A situação em que se encontra o detetive alude à realidade trágica dos torturados nos porões
da ditadura militar, mas o faz de maneira a punir o correligionário da tortura, agora
comicamente instalado na condição de torturado por mosquitos. O sentimento de medo que
acomete os seviciados pelo regime diante dos vultos destroçados de outros presos políticos,
ou da reprodução de seus gritos como fator psicológico de reduplicação do terror, se encontra
parodiado na sensação do secreta em face de “sombras indistintas” e de “ruídos furtivos”, que
potencializam o temor que o domina. Reduzido ao ridículo de sua debilidade e à picadura de
famintos pernilongos, o comissário Ripoleto é desancado pelo riso libertário promovido pelo
texto.
O sumiço da santa apresenta ainda uma segunda estratégia narrativa para abordar a
situação política do país no contexto do AI-5: a construção de uma imagem panorâmica da
229

realidade vivenciada ao longo do período. Nestas passagens, o narrador adota uma postura
discursiva desprovida do humor, como se, diante de fatos tão negativos e perversos, a terrível
realidade o impedisse de rir. A leveza cômica bem-humorada de outros trechos cede, então, à
gravidade do tom do discurso impresso nessas espécies de fotografias do regime, o que traduz
a intenção do texto em gravar na memória dos leitores, para jamais ser esquecida, a
experiência crua e sistemática das limitações, censuras e violências impostas ao povo
brasileiro durante a ditadura:

Havia uma realidade oculta, um país secreto, não noticiados. Gazetas, estações de
rádio e de televisão encontravam-se limitadas, nas seções informativas, a fatos em
geral pouco palpitantes. Reduzidas nas opinativas ao louvor incondicional do
sistema de governo e dos governantes. Proibição total de qualquer noticiário, da
menor alusão, a respeito do quotidiano de prisões, torturas, assassinatos políticos,
violações dos direitos humanos, de comentários sobre a censura de espetáculos e
livros, assim como referências a greves, manifestações, passeatas, protestos,
movimentos de massa e tentativas de guerrilha. Nada disso acontecia na pátria feliz
sob a égide dos generais e coronéis, a acreditar-se na leitura dos jornais. [...]
A censura, a corrupção e a violência eram as regras do governo, carece recordar pois
existe quem já tenha se esquecido. Tempo de ignomínia e do medo: os cárceres
repletos, a tortura e os torturadores, a mentira do milagre brasileiro, as obras
faraônicas e a comilança, a impostura e o venha a nós – há quem tenha saudade, é
natural (AMADO, 2010b, p. 139).

O tempo da construção do romance já não coincide com o dos fatos narrados. O


sumiço da santa só vem a público no período de redemocratização do Brasil, quando o
narrador se mostra atento à deliberada produção de silêncio e de esquecimento em torno dos
crimes perpetrados pelo Estado Brasileiro durante o regime militar.
A composição das relações de forças no cenário político brasileiro, no período de saída
do regime de exceção, freou, à época, qualquer avanço dos setores da esquerda na direção de
um investimento oficial do Estado em revisar a sistemática violação da dignidade humana
promovida pela ditadura militar70. Afinal, forças políticas conservadoras, inclusive originárias
da ditadura militar e vinculadas às suas antigas bases de sustentação, seguiram no poder nos
anos subsequentes ao fim do regime, espraiando-se pelos diversos níveis do Legislativo,

70
Não custa lembrar que, somente em 2011, quarenta e sete anos após o fatídico golpe militar, teve início um
importante processo de revisão e de investigação oficial em torno dos crimes políticos cometidos a mando dos
generais da ditadura. Trata-se da Comissão Nacional da Verdade, criada em função da Lei 12.528, de 18 de
novembro de 2011, e instituída em 16 de maio de 2012 pelo governo da Presidenta Dilma Roussef (PT), ela
própria uma ex-presa política. Entre outros objetivos, o texto da Lei destaca: “VII - promover, com base nos
informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como
colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações” (BRASIL, 2011).
A Comissão Nacional da Verdade atuou, entre 2012 e dezembro de 2014, percorrendo todo o território brasileiro,
de modo a colher depoimentos daqueles que sofreram, de forma direta, a desmedida violência do regime militar.
Desta forma, o relatório final produzido, que se encontra disponível gratuitamente no site da CNV, reconstrói a
versão oficial da história da ditadura, agora não mais sob o prisma dos verdugos, mas dos oprimidos.
230

quase que como em uma perigosa atualização/extensão dos quadros da antiga ARENA,
partido político que apoiava o regime militar, hoje denominado Democratas (DEM).
Em paralelo à reorganização das forças políticas no quadro geral dos poderes oficiais,
também os grandes grupos empresariais do ramo da comunicação impressa e televisiva,
profundamente relacionados com o regime e cúmplices de seus crimes, não movimentaram
qualquer esforço no sentido da elucidação dos torturados, mortos e desaparecidos políticos
entre 1964 e 1985 – exceção feita ao Jornal do Brasil e à imprensa alternativa.
Dono de uma percepção arguta em relação ao seu tempo, em 1988, Jorge Amado já
vislumbrava o hiato que se estruturava como produção de silêncio/esquecimento em torno dos
desmandos promovidos pelos militares. Aí percebendo o jogo do poder político para
salvaguardar a si próprio de uma condenação promovida por via de revisões históricas, e não
disposto a esta concessão, que viria a ser contrária à perspectiva de uma memória
democrática, o autor procura enxertar, de forma incisiva, testemunhos críticos ao longo da
narrativa. Assim, o seu narrador é sintomático: “carece recordar, pois existe quem já tenha
esquecido”.
A posição assumida pelo narrador de O sumiço da santa é mesmo engajada em favor
dos oprimidos: em face de sua exposição das situações reais vivenciadas no período do
regime militar, ele se reporta às vozes suprimidas dos perseguidos, torturados e assassinados
pelo Estado. Convida, então, a sociedade brasileira à reflexão e à discussão acerca da
experiência ditatorial, com o intuito mesmo de construir uma efetiva consciência em torno de
seu legado absolutamente negativo para o país: “censura, corrupção e violência eram as regras
do governo”. Veste-se, então, acusador e denunciante do regime:

[...] surras de criar bicho, sessões requintadas de tortura até ser obtida a completa
confissão dos crimes contra a pátria, os nomes dos cúmplices, dos maiorais,
demorada permanência nos porões dos aparelhos de segurança, os DOI-CODI da
vida, quer dizer, da morte (AMADO, 2010b, p. 263).

A expressão popular “da vida”, significando eventos corriqueiros, é transfigurada em


“da morte”, revelando a natureza sombria que engendra a existência dos Destacamentos de
Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, onde se processavam
investigações acerca de grupos e indivíduos da esquerda combativa além da tortura e morte de
presos políticos. A colocação é aguda, agregando, junto à descrição panorâmica do sistema
repressivo montado pelo regime militar, a especificidade de uma instituição que, segundo o
projeto Brasil: Nunca mais (1985), era a principal responsável pela repressão a grupos
231

contrários ao regime dos generais, sendo também o órgão mais denunciado no que tange à
violação dos Direitos Humanos.
A penetração do real no ficcional, não mais no sentido de uma mimese que busca a
verossimilhança, mas ganhando ares de reportagem se intensifica quando a narrativa se
reporta ao assassinato do Padre Antônio Henrique Pereira da Silva Neto, sacerdote vinculado
a Dom Hélder Câmara e opositor da ditadura militar, crime cometido na noite de 27 de maio
de 1969:

[...] a notícia viera de Pernambuco, era medonha. Junto com monges e amigos, o
cura de Piaçava dedicara-se à prece e à reflexão em memória de um padre
assassinado dias antes no Recife pelos esbirros da polícia. Haviam-lhe cortado as
mãos antes de matá-lo, assim contou o enviado de dom Hélder Câmara, um senhor
Paulo Loureiro, ele próprio recém-saído da cadeia.
A vítima chamava-se padre Henrique Pereira, auxiliar de confiança do arcebispo de
Recife e Olinda. Um dos idealizadores das comunidades de terra mas, sobretudo,
presença prestigiosa junto aos jovens que, superando divergências ideológicas, se
organizavam em torno dele na luta contra o Estado militarista, autoritário.
Infatigável em sua pregação democrática, padre Henrique tornara-se símbolo da
resistência à ditadura. Desaparecera ao voltar de uma reunião com estudantes, o
corpo fora encontrado dias depois no desvão de uma sarjeta, as mãos decepadas, o
rosto uma pasta sanguinolenta. Padre Loureiro trouxera fotos do cadáver: viam-se
marcas de tortura no torso nu do padre (AMADO, 2010b, p. 273).

Em suplementação à característica mais generalizante utilizada no primeiro quadro


apresentado, que visa produzir uma imagem panorâmica da ditadura militar, aqui o narrador
adota uma terceira estratégia, movimentando-se em close-up a um caso específico, com o que
potencializa sua construção crítica sobre o regime, vez que fixa, na memória dos leitores, uma
experiência concreta da violência sistemática movida pelo Estado. O fato é real, e é assim
descrito pela página virtual em memória do Padre Henrique, mantida pela Prefeitura de
Recife:

No seu trabalho com jovens [Padre Antônio Henrique] também mantinha contato
com estudantes cassados e destacava-se por ser um grande opositor aos métodos de
repressão utilizados pelo Regime Militar, o que lhe rendeu várias ameaças vindas do
Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Como não se rendia, padre Henrique
pagou com sua vida.
Na noite de 26 de maio de 1969, depois de participar de uma reunião com grupo de
jovens católicos, no bairro de Parnamirim, foi sequestrado numa Rural verde escura.
Seu corpo foi encontrado, na manhã do dia seguinte, num matagal na Cidade
Universitária, com marcas de espancamento, queimaduras, cortes profundos por
todo o corpo e ferimentos produzidos por arma de fogo (PREFEITURA DO
RECIFE).

De acordo com entrevista publicada na Folha de São Paulo, de 13 de agosto de 1988,


Jorge Amado revela que se decidiu pela construção de padres como personagens de O sumiço
232

da santa motivado por “[...] certos episódios reais da vida brasileira, nos quais muitos
sacerdotes foram presos, assassinados, expulsos do País”. Com efeito, o projeto Brasil: Nunca
mais (1985, p. 63) registra que, a partir de 1969, a Igreja passa a ter dificuldades em sua
relação com o Estado que ajudara a instalar, o que resulta na “[...] prisão de sacerdotes e
freiras, torturas, assassinatos, cerco a conventos, invasões de templos, vigilância contra
bispos”.
A dura imagem impressa por Jorge Amado em O sumiço da santa, à exceção de
mencionar as mãos decepadas, corresponde à descrição das circunstâncias da morte do Pe.
Antônio Henrique narradas também no terceiro volume do relatório produzido pela Comissão
Nacional da Verdade (2014), dedicado aos mortos e desaparecidos políticos, que aponta a
vítima como torturada inclusive por mais de um agente.
A memória do assassinato do Padre Antônio Henrique Pereira da Silva Neto não é
escolhida ao acaso. Primeiro, documenta um fato real da história do país na perspectiva de
construção da figura de um mártir, que vem a ser uma imagem sempre muito poderosa no que
se refere à comunicação de uma atmosfera opressiva intensa, que não se limita a civis
“subversivos” mas atinge também a instituição religiosa – o que, ao menos no plano ficcional,
funciona, uma vez que a repercussão causada pela notícia parece irmanar ainda mais os
religiosos em torno de uma perspectiva de resistência à ditadura.
Ao contar o óbvio, que o assassinato foi cometido por agentes da ditadura militar em
clara repressão às atividades políticas e sociais do sacerdote, o narrador desconstrói as versões
oficiais mantidas pelo regime em torno de sua morte, que buscavam explicar o homicídio a
partir de linhas investigativas voltadas para civis71. Novamente, entra em cena uma atitude de
combate à negação da memória, que vem a ser um ardil para proteger o estado ditatorial e
seus agentes, diretamente acusados pelo texto.
Se o objetivo do narrador é atuar de forma a não permitir que sejam esquecidas as
atrocidades do período, não bastam a desconstrução risível ou o olhar panorâmico que alerta
sobre os crimes do regime, mas não os mostra na concretude do real: o impacto da atualização
da realidade no plano ficcional é potencializado com a descrição da cena contida na fotografia
portada pelo Padre Loureiro, expondo o corpo violentado, sem vida de Padre Henrique.
É mesmo em torno da imagem do corpo assassinado de Padre Antônio Henrique,
veiculada através de uma reprodução fotográfica, que o narrador põe os leitores em contato

71
Apenas no ano passado, 2014, portanto 45 anos após o assassinato, o caso ganhou uma conclusão. A Comissão
da Verdade de Pernambuco atestou a natureza política do crime, que visava coibir a atuação de Dom Hélder
Câmara.
233

com a análise da paisagem política e social brasileira empreendida pelos monges beneditinos
reunidos no Mosteiro de São Bento, em Salvador. Neste quadro, observa-se um empenho de
tais religiosos em associar uma práxis libertária e transformadora, comprometida com a
emancipação socioeconômica dos oprimidos, ao exercício de seus sacerdócios:

[...] ali, diante dele, à mão e à vista, na notícia trazida de Recife pelo senhor Paulo
Loureiro. Durante o relato do crime e a análise política da situação nacional, o
pernambucano dissera: voltamos ao tempo dos mártires, e usara a palavra
companheiros referindo-se aos presentes.
Padre Abelardo concordava. Voltava-se aos tempos heroicos da difusão do
Evangelho, os mártires cristãos pagavam com a vida a missão sagrada. Tempos
perigosos e exaltantes os da Igreja dos Pobres no mundo de hoje dividido ao meio, a
Igreja de Roma vacilando entre os ricos e os despossuídos, tão dividida quanto a
sociedade. Um punhado de padres progressistas enfrentando a legião de sotainas
reacionários. Conjuntura ameaçadora e apaixonante, Padre Abelardo contemplara o
reduzido círculo de clérigos e leigos, a palavra companheiro tinha uma vibração
fraterna, rompia barreiras, congregava diferenças, extinguia distâncias (AMADO,
2010b, p. 317).

As referências aos nomes do Pe. Antônio Henrique, a Dom Hélder Câmara e a Dom
Timóteo Amoroso Anastácio72, também citado no romance, funcionam narrativamente como
a instituir modelos éticos, porque dotados de potencial transformador dentro do
comportamento político-social da Igreja Católica, a serem seguidos. Assim, por um lado, com
o intuito de dar o peso necessário à memória documental da ditadura militar, o narrador a
mostra em toda sua estrutura vil e opressiva, o que faz, seja em visada panorâmica, seja
descendo a fatos ocorridos na realidade concreta; por outro, assumindo a perspectiva de abrir
saídas, provoca o riso carnavalizante e recorre a nomes-símbolos cujas ações corajosas devem
inspirar e se refletir nas personagens que conduzem o romance. É o caso, por excelência, do
padre Abelardo Galvão, personagem para a qual o narrador faz convergirem os modelos
éticos instituídos, de modo a construí-la como a forma engajada na libertação daqueles que
são oprimidos e subalternizados pela configuração política, econômica e social do país.
Neste ponto, é necessário admitir: ao se observar a construção do universo ficcional
amadiano como um todo, causa certa estranheza o fato de, em O sumiço da santa, a função de
veicular um posicionamento político com viés libertário, comprometido com o combate às

72
O abade do Mosteiro de São Bento, em Salvador, é lembrado em O sumiço da santa através de seu corajoso
enfrentamento às polícias Civil e Militar ao abrir o templo religioso para proteger os estudantes que se
manifestavam contra o regime na Praça Castro Alves. Neste sentido, vale aqui transcrever uma pequena parte de
um artigo escrito conjuntamente por Zélia Gattai e Jorge Amado, publicado no dia 5 de julho de 1990 por A
Tarde, intitulado “missiva de amor escrita a quatro mãos”: “Abriu as portas do mosteiro para abrigar os
estudantes em passeata de protesto, para protegê-los da sanha policial; postou-se contra os latifúndios na
trincheira dos servos da terra; abrigou os heróis na luta subterrânea da democracia, deu-lhes pouso e ânimo:
elevou a essência de sua missão religiosa, exercendo-a na dimensão do tempo imediato, das necessidades da hora
e do momento; fez do pastor o combatente. Timóteo Amoroso, símbolo da luta pela democracia”.
234

estruturas socioeconômicas responsáveis por produzir uma legião de miseráveis, ser destinada
para os sacerdotes católicos, geralmente associados, em outros romances, às perspectivas mais
reacionárias.
Tudo apurado, o espanto não se delonga na alma do leitor. O posicionamento político
de tais padres não deve ser confundido com uma tomada de posição da Igreja como
instituição. Na verdade, eles estão ligados a determinados setores latino-americanos do
catolicismo que, em face do contexto de opressão política e degradação social vivenciado pelo
continente, veem, nas teorias socialistas ou de viés marxista, um forte aliado ao cumprimento
sagrado do chamamento de Cristo – a Teologia da Libertação. Leonardo Boff e Clodovis Boff
(2010, p. 44), religiosos irmanados à Igreja dos Pobres, pontuam: “Quando se trata do pobre e
do oprimido e se busca sua libertação, como evitar o encontro com os grupos marxistas (na
luta concreta) e com a teoria marxista (no nível da reflexão)?”.
Neste ponto, talvez seja possível pensar os setores ligados à Teologia da Libertação,
bem como às Pastorais da Terra, como heterotopias que se instalam e funcionam por dentro
de um catolicismo majoritariamente marcado por um compromisso com os mais abastados,
recomendando a resignação diante da pobreza e a caridade como forma de amainá-la – não de
combatê-la. A posição assumida pelos teólogos da libertação é antipódica àquela verificada
nos setores mais conservadores da Igreja, uma vez que baseada em uma interpretação do
Evangelho que repõe o compromisso de Cristo com os injustiçados, argumentando em favor
de uma opção preferencial (e radical) pelos pobres. Desta forma, não caberia à Igreja
propiciar apenas a salvação espiritual do ser humano, mas responsabilizar-se também pela
ruptura com um sistema econômico-social que o oprime e vitimiza – “Estamos a favor dos
pobres somente quando, junto a eles, lutamos contra a pobreza injustamente criada e imposta
a eles”, postulam novamente Leonardo Boff e Clodovis Boff (2010, p. 15).
Como posicionamento tensionante da estrutura hegemônica em relação à qual destoa,
o que vem a ser uma característica das heterotopias, a proposta de revisão dos ensinamentos
de Cristo a partir dos mais pobres sofreu duras reprimendas oriundas do poder central da
Igreja durante os pontificados de João Paulo II (1978-2005) e Bento XVI (2005-2013), que a
identificavam como uma perigosa inversão entre as instâncias do corpo espiritual, à qual
caberia à Igreja cuidar prioritariamente, e do corpo material. A Teologia da Libertação, no
entanto, não trata de inverter a ordem do que compete à instituição religiosa, mas de imbricá-
las – não no sentido de uma condicionar a outra, como parecem propor vertentes
neopentecostais ligadas à teologia da prosperidade, mas de uma pressupor a outra.
235

O encontro entre o compromisso diante do Sagrado e a responsabilidade social, pondo


o Evangelho em diálogo com as posições teórico-políticas de correntes do marxismo,
ressignificando a estas sob o âmbito da fé cristã, é responsável por desenvolver, em Amado,
um sentimento de “muita admiração” pelos sacerdotes ligados à libertação, como se nota em
entrevista publicada pelo lisboeta Diário Popular, de 3 de junho de 1971. Com efeito, há uma
grande semelhança entre o que é proposto por esta vertente teológica, ao menos no que tange
ao engajamento junto aos não apaniguados pelo sistema, e o que se depreende da ficção
amadiana como compromisso ético. A perspectiva de mudança da realidade social, revertendo
as injustiças que nela operam, se constitui como base de ambas. Daí a simpatia que o
narrador de O sumiço da santa nutre pelos membros da Igreja dos Pobres – ou por outros
sacerdotes que, mesmo sem estarem diretamente vinculados à proposta latino-americana,
empenham seu ofício de religiosos em prol de valores como a justiça social.
A aproximação empática que o texto amadiano promove com os setores mais
progressistas da Igreja Católica não deve ser confundida, sob nenhuma hipótese, com uma
mudança de posição no que se refere aos caracteres mais gerais com que o autor representa a
instituição como um todo, ou à axiologia que a constitui por dentro. Pelo contrário. Constitui-
se de um veículo através do qual as fraturas do modelo dominante são novamente expostas:

Entre o bispo auxiliar da Arquidiocese Primaz do Brasil e o obscuro pároco de


Piaçava, situou-se, em formação de combate, o exército de Cristo. O exército ou os
exércitos? Bem diversos um do outro, o do bispo, o do cura: opostos, inimigos.
Para dom Rudolph não cabia dúvida, e o afirmava, autoritário: o exército de Cristo,
trincheiras erguidas nos cinco continentes, tinha a missão de sustentar, como vinha
fazendo através dos séculos, o direito à propriedade das classes dominantes. Abusos,
se houvesse, a caridade se encarregaria de corrigi-los: para isso existe a caridade,
padre Galvão, uma das três virtudes teologais. A Igreja é sustentáculo da ordem e
não promotora da desordem. Exerça a caridade, padre.
Padre Abelardo, ao contrário, considerava que essa Igreja da submissão e da
obediência cega, a serviço dos ricos e dos poderosos – para eles os bens do mundo,
para os pobres a esperança do reino dos céus –, era a negação da palavra do Messias:
a Igreja devia servir à justiça e aos necessitados. O autêntico exército de Cristo,
recrutado nas favelas das cidades e na miséria dos campos do Terceiro Mundo em
desespero por padres e bispos portadores de uma prédica nova, devia sustentar a
ação insubmissa, a resistência e a luta.
Frente a frente as duas formações, mesmo se fardadas ambas com a tradicional
batina, impossível não distinguir entre o velho e o novo, a contradição que conduz,
inexorável, o avanço da sociedade (AMADO, 2010b, p. 155).

O conservadorismo radical de d. Rudolph Kluck, de resto expresso também em suas


posições acerca de questões étnico-raciais e de cultura (nas quais o contraponto é d.
Maximiliano von Gruden), repõe em cena a caracterização mais comum da Igreja Católica na
ficção de Amado – e não custa aqui comentar que, na composição do jogo de forças em que a
236

instituição é flagrada, cabe ao posicionamento político de d. Rudolph ser endossado pela


estrutura central de poder, tanto que ele “[...] fora designado bispo auxiliar para compensar a
escolha do novo cardeal da Bahia, primaz do Brasil, considerado simpático às posições
progressistas de certa parte do clero [...] no que se refere ao social e ao político” (AMADO,
2010b, p 94).
O confronto entre d. Rudolph e Padre Abelardo Galvão é montado sobre um
esquematismo dialético que, modalizado pela recuperação do traço utópico enfraquecido em
Tocaia Grande, aponta para um fluxo histórico orientado pela superação do pensamento
político do primeiro, aderente ao status quo, em prol do segundo, que enseja uma sociedade
por vir, fundada na democracia e na justiça social.
O sumiço da santa não traz, é bem verdade, no desfecho de sua narrativa, a utopia
concretizada de uma sociedade não autoritária – nem sequer a supõe em implementação.
Entretanto, não se coloca como que derrotado pela configuração política e socioeconômica
imperante, mantendo-se atado à crença moderna de uma marcha histórica qualificada como
“inexorável”. Deste modo, o sentimento de esperança se coloca como novamente pulsante,
dotado de potência para recuperar o riso não inocente, que desestabiliza os poderes instituídos
através de uma resistência carnavalizante, e uma ação política engajada na construção de uma
sociedade em cujo real as experiências de liberdade se apresentem como traços compositivos
do cotidiano.
A leitura construída até aqui vem colocando o Pe. Abelardo Galvão em local de
destaque, entendendo-o como veículo por intermédio do qual um posicionamento libertário
emerge em cena. O argumento é correto, mas é imperioso reconhecer que o sacerdote católico
não se configura como o único elemento instaurador de liberdades no texto – e nem sequer se
apresenta como o principal. Este papel deve ser reservada a Iansã, Orixá cujo arquétipo
assinala uma “[...] guerreira que subverte as regras estabelecidas, alimenta a rebeldia, convida
à libertação”, de acordo com Ordep Serra (1995, p. 305).
Há, pelo menos, duas grandes razões que justificam a centralidade do Orixá. A
primeira delas diz respeito ao fato de Iansã, comprometendo-Se com um pedido feito por
Patrícia das Flores, jovem atriz enamorada pelo Pe. Galvão, estender Sua bênção e proteção a
ele, ademais também tocada pela adesão sincera do sacerdote à luta ao lado dos excluídos.
O pedido foi realizado junto à grande sacerdotisa negra Mãe Olga do Alaketu, filha de
Iansã e responsável pelo tradicional templo Ilê Maroiá Laji, conhecido como Terreiro do
Alaketu, situado no bairro Matatu de Brotas, em Salvador. Patrícia das Flores, além de
alinhada a grupos teatrais de esquerda, conhecendo de perto a força repressiva movimentada
237

pelo Estado contra seus opositores, sabia da extensão do poder de Joãozinho Costa, principal
latifundiário da região de Piaçava, acostumado a resolver suas contendas de terra com o
assassinato de quem lhe desafiasse. Temerosa pela sorte do cura, de quem compartilha os
ideais de justiça social e por quem havia se apaixonado, Patrícia dedica um ebó a Iansã, que o
aceita.
De fato, Padre Abelardo Galvão encontrava-se condenado à prisão, à tortura e à morte.
De um lado, os policiais ligados à inteligência do regime estavam em seu encalço, pois o viam
como peça fundamental para o deslindamento do roubo da imagem de Santa Bárbara do
Trovão, bem como das intenções conspiratórias por trás do crime. Do outro, Zé do Lírio,
matador sem igual, a mando de um Joãozinho Costa já cansado das ineficientes soluções
pacifistas tentadas pela Igreja, impossibilitada de transferir o cura de paróquia devido ao
respeito de que gozava junto às suas comunidades de atuação. Ambos os braços da sociedade
autoritária instituída, policiais e assassino de aluguel, seguiam o clérigo na espera do melhor
momento para prisão e posterior interrogatório ou para a inapelável execução:

Enquanto o cura de Piaçava se detinha a admirar o Palácio Municipal [...], os


comparsas aguardaram: os tiras em posição de sentido, o pistoleiro em posição de
descanso, o comissário num pé e noutro. Os policiais seguiam-no para determinar-
lhe a hospedaria, saber para onde se dirigia, ao encontro de quem, recolher novas
pistas antes de tomá-lo preso. O assassino para fixá-lo na retina e não errar o tiro.
Então a negra subiu no balaústre, abriu os braços sobre o mar e a cidade: na manhã
de sol, límpida, esplendorosa, aconteceu a insólita fulguração de um raio, um corte
de punhal. O céu se tingiu de roxo com as tintas dos colares e pulseiras de Oiá, se
cobriu de sombras, espessas e pesadas. A negra dissolveu-se em trevas.
O rugido dos trovões rolou sobre os palácios, ensurdeceu o mundo. Por trás do
padre, noite fechada; o padre desapareceu na claridade. Oxente! (AMADO, 2010b,
p. 171-172).

A cena não é um evento isolado: na guerra que Iansã veio travar em prol da liberdade
e contra qualquer tirania, por mais de uma vez interviu em favor da vida de Padre Abelardo
Galvão, evitando que caísse nas mãos do regime ou de Zé do Lírio. Desta maneira, o Orixá
garantiu que a esperança, agora reposta na ficção de Amado através do engajamento político
do sacerdote, não refluísse em função de seu possível extermínio.
A outra razão se aloca na hierarquia dos conflitos encenados pelo romance. A despeito
da força com que a paisagem da ditadura militar brasileira se afigura em O sumiço da santa, a
estrutura narrativa confere maior proeminência às tensões circundantes ao âmbito dos valores
morais e de cultura, no qual Iansã veio à terra originalmente para intervir.
O que é dialeticamente processado em O sumiço da santa é a síntese da configuração
cultural própria ao paradigma da liberdade, no sentido da produção dos valores fundacionais
238

de uma existência coletiva não opressora nem oprimida nos níveis de sua interpretação
simbólica da existência humana, de suas axiologias e regras sociais. No confronto entre os
conjuntos de valores judaico-cristãos e africano-brasileiros, principais matrizes simbólicas
componentes do espaço híbrido da Cidade da Bahia, o romance encena o que procurei discutir
no capítulo quatro desta tese, quando argumentei em torno das razões pelas quais Amado
procede à ficcionalização do Candomblé, alçando-o à condição de uma potente heterotopia.
Enquanto o sistema judaico-cristão é transposto para a narrativa na medida do que faz
pesar sobre os ombros de simples seres humanos, produzindo uma experiência de mundo
marcada pelo signo da expiação e incapaz de processar qualquer bem-estar, o segundo se
apresenta como instaurador do exato oposto, a leveza inerente a uma apreensão alegre-álacre
da existência. Para Jorge Amado, não resta dúvida, cabe a esta axiologia heterotópica
constituir-se como vetor de uma mediação libertária dos seres com o mundo, com os outros e
consigo próprios.
O crítico baiano Cid Seixas (1996, p. 91) já procedeu à leitura de O sumiço da santa
como uma espécie de síntese da produção ficcional amadiana, na qual “[...] a dicotomia dos
valores que desemboca na demolição do eurocentrismo é tema recorrente”. O fundamento
contemporâneo, na perspectiva traçada por Agamben (2009), não apenas solicita a denúncia
de estruturas de pensamento e vida eurocêntricas, mas também reivindica a necessidade de
uma abertura ao que Walter Mignolo (2006) designa como pluri-versalidade epistêmica, ou
seja, experiências de mundo não ditadas pela lógica ocidental, que implicam formas outras de
ser, pensar e conhecer. É, pois, em direção a estas outras modalizações possíveis que O
sumiço da santa fixa os arcos existenciais de Adalgisa Perez Correia e de Manela Perez
Belini, tia e sobrinha, principalmente da primeira, protagonista do romance, a quem Iansã
pretende ensinar a “[...] tolerância e a alegria, o bom da vida” (AMADO, 2010b, p. 42).
A apresentação de ambas se dá em meio a uma situação bastante conflituosa, que é
evocada via flashback. Pela televisão, a tia havia visto Manela em plena Festa de Nosso
Senhor do Bomfim. Sempre rindo e dançando, ora a jovem aparecia com água de cheiro sobre
a cabeça, somando-se ao conjunto daquelas que lavariam as escadarias da igreja,
simbolizando uma homenagem a Oxalá, ora de braços dados com Miro, olhos de alguma
malícia, encantada pelos trios elétricos. Diante da cena, a cabeça reincidindo em agônica crise
de enxaqueca, Adalgisa cospe fogo:

– Juro pelas cinco chagas de Cristo que acabo com este namoro nem que seja a
última coisa que faça em minha vida. Deus há de me dar forças para enfrentar essa
gentinha que quer levar uma criança pro mau caminho, pra perdição. O Senhor está
239

comigo, não tenho medo de nada, nada me pega, comigo não adianta negrinhagem,
não sou da mesma laia, não me misturo com gente à toa. Tiro o vício do corpo da
moleca nem que me custe o restinho de saúde (AMADO, 2010b, p. 51).

Deixarei este trecho em suspenso por alguns instantes. Antes de comentá-lo, é


necessário compreender as ideologias que permeiam a formação em sujeito de Adalgisa e a
forma como ela se relaciona com Manela, de maneira a melhor situar a reação acima. A
personagem é filha de Andreza de Iansã e do espanhol Francisco Romero Perez y Perez, mas
pouco retém dos pais em si, valorizando apenas a ascendência hispânica, com a qual se julga
superior à “gentinha” da Bahia – miríade de negros e de mestiços, além do povo-de-Axé.
Adalgisa identifica-se desde criança com a madrinha, doña Esperanza, tendo crescido
sob sua influência ao invés daquela exercida pelos pais. Assim, cumpre com rigor o papel que
lhe fora destinado por ela: o de ser uma senhora, corpo docilizado e aderente a padrões
tradicionais de comportamento e moral. Neste mister, doña Esperanza contou com a
importante atuação do Padre José Antônio Hernandez, seu confessor, que vem a ser um
sacerdote vinculado às concepções mais conservadoras e sectárias do catolicismo, tornado
também guia espiritual da afilhada.
Configurada a partir das ideologias religiosa e de classe constitutivas de sua madrinha
e de seu padre confessor, Adalgisa Perez Correia se apresenta como personagem em grave
tensão com a sociedade à sua volta e, principalmente, consigo mesma. Por um lado, eivada de
fortes preconceitos de raça, classe e cultura, ela lida mal com a realidade não binária
constitutiva da Cidade da Bahia, descrita como uma terra “[...] onde tudo se mistura e se
confunde” (AMADO, 2010b, p. 48), pouco se integrando aos espaços e às gentes da urbe –
era “[...] o pesadelo, o terror da rua” (AMADO, 2010b, p. 52). Por outro, ela é interpelada por
uma rígida moral sexual, em tudo puritana, condenatória de qualquer mediação erótica por
entender o corpo como intrinsecamente negativo, mostrando-se barrada de elaborar a
dimensão do prazer – “Quem mandava mesmo no corpo de Adalgisa, traçava-lhe os limites da
cama, era Cristo Nosso Senhor” (AMADO, 2010b, p. 54).
De forma semelhante à qual doña Esperanza a educara, baseada nos mesmos
princípios e com os mesmos rigores, Adalgisa procura educar Manela, sua sobrinha. Esta
passa aos cuidados da tia aos trezes anos, logo após um trágico acidente de automóvel ter
vitimado seus pais, Dolores e Eufrásio.
Com o objetivo de criá-la como “[...] uma senhora de princípios, como ela própria”
(AMADO, 2010b, p. 56), Adalgisa, tão logo assume a guarda da menina, põe-se a discipliná-
la nas severidades de suas próprias ideologias e da taca de couro, instrumento pedagógico
240

ofertado pelo Pe. José Antônio Hernandez acompanhado da instrução de utilizá-lo sem
qualquer piedade, pois “[...] corrigir quem prevarica não é pecado, não ofende a Deus, é de
seu agrado. Está na Bíblia, mi hija: punir com firmeza é uma das maneiras de demonstrar
misericórdia” (AMADO, 2010b, p. 77).
Em tudo destoante do ambiente experenciado ao lado dos pais, que viviam de acordo
com concepções de mundo nada repressivas, o novo lar e, por consequência, a nova vida de
Manela se mostram claustrofóbicos desde cedo. Com o instrumento de suplício já posicionado
sempre à vista, ameaça constante a se destacar na parede da sala, o narrador assume o ponto
de vista de Adalgisa para, por via do discurso indireto livre, anunciar as regras a serem
seguidas pela jovem em sua nova morada, situada na avenida Ave-Maria, no Barbalho:

Não se deve perder tempo, adiar para amanhã o que se pode fazer hoje: no dia
seguinte ao enterro de Dolores e Eufrásio, quando Manela regressou das aulas, os
olhos ainda inchados de chorar, Adalgisa a pôs em confissão e lhe rezou o credo.
Vamos aproveitar e esclarecer as coisas de uma vez, botar em pratos limpos para
depois não dizer que não sabia. Se for obediente e comportada, se tiver boas notas
no colégio, se proceder com decoro e pudonor, demonstrar temor a Deus e devoção,
não der desgosto aos tios, nada lhe faltará e terá direito a regalias.
Quais seriam as regalias nunca soube, mas tomou conhecimento imediato da extensa
relação do que lhe era proibido. Frequentar más companhias; comparecer a matinês,
auditórios de televisão, bailaricos, festas de largo ou quaisquer outras, a não ser
acompanhada dos tios, bater pernas pelas ruas, dar trela a rapazes, namorar. De
candomblé, umbanda, essas feitiçarias, guardar a maior distância, nem ouvir falar,
são centros de perdição onde o demônio se apossa das almas dos cristãos (AMADO,
2010b, p. 77).

Como demonstra Michel Foucault (2012), a produção de corpos dóceis está assentada
em uma base dupla: uma estrutura panóptica de vigilância, que dissemina em níveis
microfísicos a sensação de não haver espaço destituído de sentinelas, e um rigoroso sistema
de punição, responsável por disciplinar aquele que, infenso a qualquer aspecto coercitivo, se
apresenta como desviante em relação ao padrão de conduta estabelecido.
O modelo baseado na intimidação e no castigo – ou, como consagrado por Foucault
(2012), o esquema vigiar e punir – é experimentado sem descanso ao longo da adolescência
de Manela. A jovem é submetida a um cotidiano de aflições, no qual é condicionada a temer.
Com efeito, na disposição dos afetos que Manela nutre em relação a Deus e à tia, o medo
efetivamente assoma em lugar de afeições positivas, como o amor. No que se refere à figura
de Deus, por tê-la apreendido junto aos ensinamentos do Padre José Antônio Hernandez, que
priorizam um Ser vigilante e punitivo ao invés de misericordioso. Assim, Manela O sentia
como uma espécie de compilador dos erros humanos, mesmo os mais mínimos, cujo sistema
panóptico de observação era livre de eventuais falhas, pois onisciente e onipresente. Na
241

mesma medida, tinha-O como inapelável algoz, uma vez que pronto para condenar no
momento do Juízo Final. À tia, por sua vez, temia por identificá-la de acordo com sua
interpretação do divino, mas sem a longevidade necessária para punir apenas no Fim dos
Tempos: “[...] atenta e bisbilhoteira, ao ver ou ao saber de alguma situação diferente, cobrava
na hora, no grito e na taca de couro” (AMADO, 2010b, p. 60).
De acordo com Marilena Chauí (2009, p. 59), a origem e os efeitos do medo “[...]
fazem com que [ele] não seja uma paixão isolada, mas articulada a outras formando
verdadeiro sistema do medo, determinando a maneira de sentir, viver e pensar dos que a ele
estão submetidos”. O medo se configura como sentimento modalizador da personagem, que
passa a uma postura derreada sob o peso de culpas e pecados: “a Manela verdadeira, aquela
que se escondera após a morte dos pais, se apagara no receio do castigo” (AMADO, 2010b, p.
60). Ao longo dos anos, a postura tirânica de Adalgisa e o recurso constante à taca de couro
foram vencendo a alegria que Manela havia herdado dos pais, ambos partidários de uma
dimensão álacre da existência. Em seu lugar, consolidou-se o medo como condição psíquica
dominante, raiz de um comportamento marcado pela mais completa subserviência: “[...] pobre
menina, infeliz. Oprimida, sem vontade própria, sempre na defensiva: medrosa, embusteira,
esmorecida, fingida, submissa. Sim, tia. Ouvi, tia. Já vou, tia. Bem-mandada” (AMADO,
2010b, p. 59).
Cabe agora retomar o ponto antes deixado em suspenso, a reação enfurecida de
Adalgisa ao ver, pela televisão, sua sobrinha em meio à festa do Bomfim, integrada ao povo-
de-Axé e de xodó com um rapaz de estilo black power.
Manela havia ido às escondidas para a Colina Sagrada, mas não por vontade própria
ou deliberada afronta. Somando agora dezessete anos, há quatro na companhia de Adalgisa e
da taca de couro, a jovem não mais se mostrava capaz de produzir quaisquer negativas,
apresentando-se de cabeça baixa em deferência a quem quer que fosse. Assim, em face do
convite feito por Gildete, sua tia pelo lado paterno, ademais complementado pela advertência
da impossibilidade de um não como resposta, a adolescente cede, mesmo temerosa de ser
descoberta pela outra tia.
Em tudo oposta a Adalgisa, Gildete se apresenta como uma figura “bonachona,
cordial, amorosa, um doce de côco [...]” (AMADO, 2010b, p. 59). Assim como Dolores e
Eufrásio, também ela é pertencente ao povo-de-Axé – o que, por si só, garante a antipatia de
Adalgisa, que tinha “[...] horror a candomblé. Horror sagrado, o adjetivo se impõe”
(AMADO, 2010b, p. 60). Esta condescendia que ambas se encontrassem, embora
esporadicamente e sob sua tutela, pois, quando do falecimento dos pais de Manela, Gildete
242

havia permanecido com a guarda de Marieta, irmã da menina, e, apesar de tudo, Adalgisa não
pretendia separá-las.
Já na Festa de Nosso Senhor do Bomfim, sem entender o universo simbólico que
sustenta a celebração, mas encantada pela alegria reinante no lugar, Manela ouve a tia narrar o
mito nagô que dá origem às Águas de Oxalá, ritual parcialmente encenado ao longo do cortejo
das baianas até a Colina Sagrada e durante a lavagem das escadarias da igreja.
As versões circulantes na tradição oral das comunidades-terreiro acerca deste mito
contam de uma visita que Oxalá fez ao reino de Xangô, Seu filho, a despeito de ter sido
comunicado dos perigos que a viagem acarretaria, de modo que seria melhor evitá-la. Por uma
série de infortúnios, Oxalá acaba confundido com um ladrão e é preso. Vários anos após o
incidente, com o reino devastado por secas e pragas, Xangô consulta Ifá para saber o que
havia motivado tamanha calamidade sobre o Seu território, com o que só então toma
conhecimento da injustiça cometida contra Oxalá, que é prontamente retirado da prisão e
limpo, sendo restituído ao Seu lugar de Rei – atitude que traz de volta a prosperidade para o
reino antes devastado.
Em O sumiço da santa, a versão narrada por Gildete, filha de Oxalá, se apresenta
substancialmente modificada, suplementada por um discurso final que faz do Orixá um
paladino da justiça social e da liberdade:

– Contam os antigos, ouvi de minha avó, negra grunci, que Oxalá saiu um dia
percorrendo as terras de seu reino e dos reinos de seus três filhos, Xangô, Oxóssi,
Ogum, para saber como vivia o povo, na intenção de corrigir injustiças e castigar os
maus. Para não ser reconhecido, cobriu o corpo com trapos de mendigo e partiu a
perguntar. Não percorreu muito caminho: acusado de vadiagem, levaram-no preso e
o espancaram. Por suspeito, meteram-no no xilindró, onde, ignorado, viveu anos
inteiros, na solidão, na sujeira.
Um dia, passando por acaso defronte da mísera cadeia, Oxóssi reconheceu o pai
desaparecido, dado por morto. Libertado às pressas, cercado de honrarias, antes de
retornar ao palácio real, foi lavado e perfumado. Cantando e dançando, as mulheres
trouxeram água e bálsamo e o banharam; as mais belas aqueceram-lhe o leito, o
coração e as partes.
Aprendi em carne própria as condições em que o povo vive no meu reino e no reino
de meus filhos; aqui e lá e em toda parte, campeiam o arbítrio e a violência, as regras
da obediência e do silêncio: trago as marcas no meu corpo. As águas que apagam o
fogo e lavam as chagas, vão apagar o despotismo e o medo, a vida do povo vai
mudar: empunhou sua palavra, pôs em jogo seu poder de rei (AMADO, 2010b, p.
61-62).

Assim contou Gildete, sendo suplementada pelo narrador, que comenta: “Oxalá não
conseguiu mudar a vida do povo, é fácil conferir. Ainda assim deve-se reconhecer que
nenhuma palavra pronunciada contra a violência e a tirania é vã e inútil: alguém ao ouvi-la
pode superar o medo e iniciar a resistência” (AMADO, 2010b, p. 62).
243

As alterações promovidas no mito podem soar estranhas a quem procurar ler O sumiço
da santa como registro antropológico do Candomblé – aliás, Ordep Serra (1995) já comentou
sobre os vários equívocos aos quais este tipo de abordagem pode conduzir. No entanto, não se
apresentam como desconectadas em relação às condições de produção que ensejam a narração
realizada por tia Gildete, de modo que produzem efeitos de sentido que se articulam
estrategicamente com a perspectiva solar empreendida pelo romance.
De início, convém destacar mais uma vez o cenário político-social em que a narrativa
se desdobra, o horror de uma ditadura militar no auge da repressão e subserviente a um
sistema econômico incapaz de distribuir as riquezas que produz. Neste cenário, a modificação
operada no mito de Oxalá, ainda mais quando lida em função da potência atualizadora que o
narrador lhe confere, corresponde a uma intervenção que visa assegurar a capacidade de ter
esperança diante de um real desabonador de qualquer sentimento de fundo otimista, provendo
o estímulo necessário para que floresçam resistências ao autoritarismo em derredor.
Aqui é necessária alguma cautela para que o argumento não pareça forçado, uma vez
que Gildete não se constitui atrelada aos desdobramentos da trama diretamente relacionados
ao regime dos generais, passando ao largo de tais discussões. A interpretação mais óbvia e
segura para o acréscimo de sentido operado no mito de Oxalá se assenta, sem dúvida, em uma
intenção da personagem em afetar Manela, que a ouvia de forma atenta, no sentido de fazê-la
agir sobre o sistema do medo lhe imposto por Adalgisa, libertando-se dele. Trata-se de uma
interferência que, ao mesmo tempo em que preserva a razão pela qual o povo-de-Axé procede
à lavagem das escadarias e do adro da basílica, agrega um certo ideal de luta e de liberdade,
comunicando-o a quem já se encontrava não apenas presa, mas principalmente rendida. Ou
seja, o campo de ação natural desta cena é reduzido ao particular: o destino de Manela.
Ainda assim, acredito ser possível defender um entrelaçamento desta leitura com
aquela mais ampla, que faz o mito, na forma como narrado por Gildete e suplementado pelo
narrador, dialogar com o espaço público atravessado pelo autoritarismo do regime instituído.
Afinal, se é verdade que a estória de Oxalá fez especial sentido para Manela por conta da
repressão vivenciada dentro de casa, em sua experiência particular, é igualmente verdade que
a jovem também se encontrava submetida ao sistema repressivo oficial, como ademais
qualquer brasileiro. Junte-se a isto o fato de a adolescente não ser a única a escutar Gildete,
que também narra para a filha Violeta e a sobrinha Marieta, livres da influência nefasta de
Adalgisa, mas sujeitas aos desígnios dos generais no poder.
De uma forma ou de outra, direcionada à experiência pública ou à particular, o adendo
instaura solaridades, impede a capitulação em trevas. O fato é que aquela “[...] quinta-feira no
244

Bonfim foi decisiva na vida de Manela” (AMADO, 2010b, p. 58). Alguns instantes antes de a
tia lhe explicar o sentido da festa – e de lhe sugerir o de liberdade –, ainda dominada pelo
medo de Adalgisa, que a castigaria por não estar à mesa na hora em que já deveria ter
retornado do colégio, Manela deixava, por instantes, de ser Manela:

Enxugou a face de tia Gildete e, sem pensar, como se obedecesse ordens – quem
sabe as ordens resmungadas de Oxalá –, acompanhou-a ao longo da dança triunfal
do encantado, comemorativa da liberdade conquistada, do fim da solidão e da
sujeira. Foi ficando tonta, sentia uma comichão nos braços e nas pernas, tentava
equilibrar-se, não conseguia, dobrou o corpo, deixou-se ir. Como num sonho,
percebeu-se outra, pairando no ar, e deu-se conta de que não precisava inventar
desculpas, astuciar mentiras, pois não estava cometendo crime, delito, erro ou falta,
nenhum pecado. Não havia culpa a confessar, motivo para pedir perdão e merecer
castigo. Num passo de alforria, Manela dançou defronte de Oxalá, Babá Oquê, pai
da colina do Bonfim [...]. Como sabia aqueles passos, onde aprendera aquele ponto,
adquirira aquele fundamento? Lépida e leve, posta de pé contra o cativeiro, já não
lhe pesavam no lombo a culpa e o medo.
Oxalufã, Oxalá velho, o maior de todos, o pai, veio para ela e a abraçou e abraçada a
manteve contra o peito, estremecendo e fazendo-a estremecer. Ao afastar-se, salvou
bem alto para que soubessem: Eparrei!, e as baianas repetiram, curvando-se diante
de Manela: Eparrei!
Iansã partiu tão de súbito como veio. Levou embora, para enterrar no mato, a
imundice acumulada, toda aquela porcaria: a pusilanimidade e a submissão, a
ignomínia e o fingimento, o medo das ameaças e dos gritos, dos tapas na cara, da
taca de couro pendurada na parede e, pior que tudo, dos pedidos de perdão. Oiá
limpara o corpo de Manela, fizera-lhe a cabeça.
Ao susto e à mortificação que a dominaram quando os sinos marcaram a hora do
meio-dia sucedeu um completo desafogo: tomada de alegria, na repulsa à canga e ao
cabresto, Manela rediviva. Assim rolaram naquela Quinta-Feira do Bonfim as águas
de Oxalá. Apagaram o fogo do inferno, axé (AMADO, 2010b, p. 63-64, grifos
meus).

Manela ouviu as palavras de liberdade proferidas por tia Gildete, tendo-as já sentido
em si mesma quando já não era mais si mesma, mas Iansã que lhe viera salvar em vida e para
a vida, repondo a Glória no júbilo do aqui e do agora – o sentido alegre de existir. Nos ventos
de Oyá, a jovem varreu longe qualquer sistema do medo em que fora encerrada até então,
iniciou a resistência aos desmandos de Adalgisa.
Livre dos condicionamentos que a docilizavam, desacreditados os dogmas que lhe
incutiam o temor, Manela não baixou a cabeça em desculpas ao ver a tia à sua espera, rosto
cerrado na mais violenta das raivas, taca de couro a descer-lhe sobre os rins, boca de
impropérios: “Cadela!” (AMADO, 2010b, p. 81). Tencionava fazer cumprir as juras arrotadas
com ódio ao ver a sobrinha pela televisão: discipliná-la com rigor ainda maior, impedir
namoros que colocassem em risco a virgindade-honra. Mas, a jovem já não se submetia:
rediviva no arquétipo libertário de Oyá-Iansã, “[...] Manela segurou com a mão direita o pulso
245

da tia, com a esquerda abriu-lhe os dedos: tomou da taca de couro e atirou longe” (AMADO,
2010b, p. 82). Estava proclamada a liberdade – ou, pelo menos, assim parecia.
Após reconstruir em extenso flashback (p. 55-82) os eventos que, ao longo de quatro
anos, acarretaram na submissão de Manela ao regime de controle imposto por Adalgisa com a
ajuda do Padre José Antônio Hernandez, o narrador retorna ao presente da narrativa, poucos
meses após aquela quinta-feira de janeiro, quando a sujeição foi exterminada do íntimo da
jovem. Trata-se do momento em que a imagem de Santa Bárbara do Trovão está sumida, pois
transfigurada em Oyá-Iansã, vinda ao Àiyé, mundo terreno, para novamente intervir por
Manela.
Liberta do sistema do medo ao qual esteve cativa ao longo dos últimos quatro anos, a
jovem encontra-se agora encerrada entre as tristes paredes do Convento da Lapa,
cognominado no romance de Clausura das Arrependidas, local de expiação para as mulheres
que, tendo transigido em pecado, mostram-se compungidas – ou, mais frequentemente, “[...]
pai de donzela que cometia o mau passo, arrastando na lama da desonra o nome da família, ali
encerrava a filha desnaturada pelo resto da vida” (AMADO, 2010b, p. 211).
Após os eventos ocorridos em janeiro, na quinta-feira do Bomfim, Manela não mais se
permitiu ser alvo da taca de couro, destituindo-a do lugar de símbolo do poder que a tia
possuía sobre o seu corpo e espírito. Entretanto, isto não significa que Adalgisa tenha aceitado
a liberdade de sua sobrinha, pelo contrário: impedida de castigá-la, intensificou a vigilância e
a censura sobre a jovem. A tia a proibia de sair em companhia que não fosse a sua ou a de seu
esposo, Danilo, além de vasculhar diariamente bolsos e mochilas, livros e cadernos da jovem
em busca de pistas acerca do que quer que fossem. Preocupava-se principalmente em relação
ao namoro com Miro, que, sendo negro, pobre e de Axé, destoava em absoluto do perfil
pretendido por ela como ideal de marido para Manela. Ademais, o relacionamento punha em
risco a virgindade da moça, que, para a tia, correspondia a uma insígnia de pureza e de
virtude, não podendo ser rompida em ato pecaminoso de simples luxúria, apenas para fins de
reprodução e mediante a sagração do matrimônio.
Em uma dessas devassas, Adalgisa encontrou no banheiro um pequeno fragmento de
bilhete, roto porém legível. Por um acaso qualquer, que a personagem logo interpreta como
intervenção divina, Manela não o houvera destruído por inteiro, arremessado ao vaso
sanitário. Tratava-se de um recado de Miro, a quem Adalgisa só se referia utilizando de
ofensas: cão-tinhoso, chipanzé. Eram planos românticos e sensuais de fuga e de libertação, de
prazeres e de amor:
246

Na mão trêmula a tira de papel, Adalgisa se perguntou se ainda haveria tempo de


intervir e evitar o irreparável. Talvez, se agisse com presteza e eficácia. Por sorte,
não: por obra da divina providência o retalho salvo da descarga continha indicações
precisas sobre a fuga, dia e hora: o cão-tinhoso estaria à espera com o carro às sete
da noite daquele mesmo dia. O chipanzé não usara subterfúgios: hoje tu vai
conhecer o bom e o melhor, vai ser uma noite maravilhosa, meu amor. Você não
pode continuar sujeita a essa... Essa o quê? Não era difícil adivinhar. Miro
qualificava de escravidão as condições de vida de Manela, de carrasca e algoz a
tutora e tia (AMADO, 2010b, p. 213).

Mediante o iminente perigo, o encerramento provisório na Clausura das Arrependidas,


o tempo suficiente para que Manela desistisse ou esquecesse Miro, é proposto como medida
profilática pelo Padre José Antônio Hernandez – “Si, mi hija, el local propio para la
penitencia y el convencimiento” (AMADO, 2010b, p. 215). O plano é posto em prática por
Adalgisa que, com a ajuda do sacerdote, obteve junto ao dr. Mendes d’Ávila, Juiz de Menores
com posicionamentos morais semelhantes ao do clérigo espanhol, a ordem de internamento.
É justamente neste contexto – e por causa deste contexto – que Oyá vem habitar o Àiyé
por 48 horas: filha Sua não haveria de permanecer sob aquelas condições. O Orixá intervém,
de maneira a garantir a revogação da ordem anteriormente expedida. Manela é solta da
Clausura das Arrependidas, espaço que reproduz a opressão outrora vivenciada em casa, e,
conduzida por Iansã, migra em direção ao Ilê Iyá Omin Axé Iyamassê, mais conhecido como
Gantois, onde a lendária Mãe Menininha a aguardava para iniciar um novo barco de iaôs.
Naquele início de noite, a “[...] a brisa cresceu em pé de vento, raios e trovões rasgaram o céu
límpido, a noite serena, na proclamação da liberdade. Oiá Iansã dançava nas ruas da Cidade
da Bahia” (AMADO, 2010b, p. 293, grifos meus).
Em se considerando a argumentação construída até aqui, não é difícil emoldurar
Adalgisa Perez Correia no papel de uma grande antagonista, afinal, ela se afigura como
veículo de uma grande força repressora que visa barrar experiências possíveis de liberdade, tal
como elas são significadas pela ficção de Amado. No entanto, não é correto observar a
personagem apenas sob este prisma, pois sua construção não é vazia de complexidade
psicológica. De fato, Adalgisa age sobre Manela de maneira a discipliná-la, anulando
paulatinamente sua potência de liberdade ao longo do processo de formatação de um corpo
dócil, reprodutor do sistema que lhe é imposto. Mas, ao mesmo tempo, descortina-se também
como vítima da axiologia com a qual oprime a sobrinha – fosse diferente, seria razoável supor
que o ponto de vista da narração acompanharia Manela ao invés de sua tia, como, aliás, é de
praxe em se tratando do narrador amadiano, sempre irmanado àqueles que sofrem as
restrições.
247

Acontece que Adalgisa é uma personagem atormentada e frágil, atravessada pela


incapacidade de produzir para si mesma uma sensação de bem-estar com o mundo e, de resto,
adoecida em função de suas fortes e intermináveis crises de enxaqueca, além de
absolutamente tangida por frustrações oriundas do corpo e do bolso. Permeada por
preconceitos de matizes diversos, ela não consegue elaborar de forma muito positiva o fato de
ser uma mulher mulata, acentuando ao máximo os traços de sua ascendência espanhola como
estratégia de branqueamento, nem, muito menos, o de possuir compromissos junto ao mundo
afro-baiano, pois é uma abiku73, condição sintomaticamente esquecida em algum desvão da
memória.
A respeito da condição de abiku, o narrador situa:

[...] a liberdade do abicum é limitada e dependente. Se o abicum cumpre as


obrigações no rigor do zelo pela grandeza do orixá, será uma pessoa igual às outras,
com regalias e direitos. Se, porém, não reconhece sua condição, se a renega, não
guarda os preceitos, almoça e janta alimentos proibidos, não salva o encantado, não
lhe oferece o ossé e o despacho, vira clandestino, sujeito a desconfortos e embaraços
de saúde, não tem sossego, não usufrui de paz e de alegria, só escuta o que é ruim,
só enxerga o que é feio. Macho broxará ainda jovem garanhão, a rola murcha,
muxiba inútil, fêmea, jamais sentirá na xoxota seca o úmido orvalho do prazer. O
abicum que abjura do orixá e o ignora anda pelo mundo como se fosse cego, surdo e
desumano, clandestino: um robô, um monstro, um cazumbi, em vez do coração tem
uma pedra no vão do peito (AMADO, 2010b, p. 222).

É necessário demandar alguma atenção ao fragmento citado. À primeira vista, ele


parece derrubar a argumentação construída até aqui a respeito de Adalgisa, já que estabelece
uma relação causal entre sua natureza de abiku, a personalidade azeda que a constitui e a
frustração corpórea-sexual que, com o tempo, assume os ares de um incômodo mal disfarçado
em indiferença – o que torna secundário ou mesmo desimportante o estudo das implicações
advindas do acatamento à ideologia religiosa católica, em sua forma mais dogmática e
conservadora, na vida cotidiana da personagem.
Seria irresponsável negar a conexão estabelecida pelo romance, de modo que o
antropólogo baiano Ordep Serra (1995, p. 301) está correto ao afirmar que a “[...] frigidez se
relaciona com as enxaquecas, o mau humor e o rigorismo de Adalgisa; mas a explicação de

73
“[...] a criança que sofre a iniciação no seio materno é considerada um abicun (abiku) pelo povo do
candomblé. Ao pé da letra, o abiku é alguém que ‘nasceu só para morrer’.
Na mitologia nagô (como na ewe), os neonatos que logo perecem são considerados crianças prodigiosas, cuja
passagem rápida por este mundo manifesta um compromisso especial com o outro; “retê-los” aqui vem a ser um
desafio doloroso para os pais... No entanto, segundo se acredita nos candomblés, um abicun pode ter mudado seu
destino, ganhando a possibilidade de permanência normal no mundo dos vivos, quando uma mulher se inicia em
estado de gravidez. A criança que seria (ou fora) abiku vem à luz já iniciada – e comprometida –, e caso cumpra
as exigências do deus, terá garantidas a sobrevivência, por longos anos, e a felicidade. Do contrário, estará
condenada...” (SERRA, 1995, p. 301).
248

tudo isso, o romancista faz remontar a sucessos muito anteriores. Há um preliminar mítico,
teológico [...]”.
Da mesma forma, é importante reconhecer que o tratamento dispensado pelo texto
amadiano à condição de abiku causa algum embaraço à perspectiva de leitura do Candomblé
como uma heterotopia absoluta e positiva, a partir da qual experiências de liberdade se
projetam como possíveis. Afinal, à semelhança de uma evidência em forte contraprova, o
mundo simbólico do povo-de-Axé parece receber aqui uma modalização relativamente
próxima àquela conferida à axiologia judaico-cristã, qual seja, a de representar, ainda que em
um nível bem específico, um sistema de controle e punição.
A questão é delicada, mas acredito ser possível argumentar em contrário à
possibilidade acima. Com isso, devo ressaltar, não pretendo camuflar a tensão instaurada pelo
texto, que estabelece rígidas condições para que o abiku goze de um bem-estar, de maneira
que imprime limites aos quais seria necessário que Adalgisa se adequasse.
De início, gostaria de recordar o fato de, logo na introdução a esta tese, ter demarcado
que minha utilização do termo liberdade não se coadunaria ao sentido ilusório e perigoso,
embora comum, que se refere à projeção de formas de vida desprovidas de códigos ou de
regras, à mercê das pulsões. Antes, seu significado se relacionaria a outros códigos e outras
regras, responsáveis por regimes menos tensos no que tange à mediação entre os seres
humanos ou deles consigo próprios.
Isto posto, e procedendo a uma leitura mais atenta do fragmento citado, é possível
observar que a qualidade de abiku não se coloca como raiz do comportamento acre que
Adalgisa apresenta, mas, sim, o fato de a personagem não se mostrar aderente ao conjunto de
regras que sua condição solicita. Caso o fizesse, seu mal-estar em relação ao mundo e a si
mesma restaria resolvido, seria “uma pessoa igual às outras, com regalias e direitos”, como o
narrador faz saber.
A questão da liberdade, portanto, deve ser abordada por um outro ângulo, não se
referindo aos efeitos que o descumprimento das obrigações rituais acarreta em sua vida, mas
às razões pelas quais ela não procede ao exercício das tarefas que aliviariam sua agônica
existência. Neste sentido, se é verdade que o estado em que Adalgisa se encontra reproduz
fielmente as consequências previstas para um abiku que não atenta para suas obrigações
rituais, é igualmente verdade que ela se configura como ideologicamente barrada de cumprir
tais ritos, uma vez que perpassada, de forma íntima e profunda, por discursos que concebem
as práticas religiosas negras como demoníacas, primitivas e bárbaras: a personagem é, pois,
censurada em relação à possibilidade de desejar ser uma outra.
249

O elemento repressor e punitivo não se localiza na matriz simbólica afro-brasileira,


que vem a ser detentora da possibilidade de uma experiência não marcada pelo sofrimento, de
resto impossível na axiologia judaico-cristã assumida pela personagem, pois baseada em uma
expiação contínua. O avesso da liberdade se fixa, sem qualquer dúvida, no espaço intersticial
do entre que a separa daquela potência heterotópica constitutiva de uma forma outra de vida,
até então não experimentada. Em outras palavras, o impeditivo se encontra na barreira que
obstaculiza o reencontro da protagonista com a metade recalcada de si mesma, de modo que
“Jorge Amado se vale do símbolo mítico do abiku para assinalar a violência que ela
[Adalgisa] comete contra a própria identidade” (SERRA, 1995, p. 313).
Cumpre ainda observar que, se o fato de Adalgisa ser uma abiku que falha com o
cumprimento de suas obrigações com o Orixá pode explicar determinados sintomas presentes
em seu cotidiano, noutro plano, não se coloca como razão para o comportamento autoritário e
repressivo que ela impinge à sua sobrinha – o que certamente aponta para o fato de as
restrições à liberdade não serem dimanadas do Candomblé em nenhum nível, mas vinculadas
à reprodução de uma atitude negativa quanto às alteridades e do fundamentalismo puritano do
catolicismo professado por doña Esperanza e pelo Pe. José Antônio Hernandez,
posicionamentos ancorados em Adalgisa Perez Correia. É, pois, neste sentido que Oyá-Iansã
veio ao Àiyé “[...] por Adalgisa e por Manela, cobrar o que lhe era devido, exemplar quem lhe
faltara, proclamar o direito à vida e ao amor” (AMADO, 2010b, p. 145-146, grifos meus).
Uma vez cumprido o objetivo de libertar Manela – primeiro do sistema do medo que a
condicionava à sujeição, depois da Clausura das Arrependidas –, conduzindo-a ao povo-de-
Axé, faltava a Iansã cuidar ainda de Sua abiku, mulher de trato difícil mas Sua filha. Era
necessário discipliná-la nas regras do Candomblé, não para tê-la cativa pela vigência de
qualquer teologia baseada no temor, mas livre “[...] da dor de cabeça, do fanatismo, da
ruindade [...]” (AMADO, 2010b, p. 368); para tê-la partícipe da “beleza e da liberdade”, da
“fraternidade universal” – termos com os quais o narrador qualifica o Axé (AMADO, 2010b,
p. 393).
De forma irônica, Jorge Amado situa a teomaquia em que se processa o duelo entre as
experiências relativas ao sistema do medo judaico-cristão e a alegria-alacridade do
Candomblé, reunidas em torno do embate entre o conjunto Adalgisa-Pe. José Antônio
Hernandez e os Orixás invocados ao toque do adarrum, na Av. Cardeal da Silva, no bairro da
Federação, que leva o nome do Arcebispo Primaz do Brasil D. Augusto Álvaro da Silva –
sacerdote falecido em 1968 e reconhecido por seu pensamento conservador, sua moral austera
e sua postura autoritária, tendo conduzido o arcebispado com mãos de ferro.
250

Munidos de uma nova ordem de internamento para Manela, lá se encontravam


Adalgisa e seu padre confessor, além de “[...] dois esbirros a serviço do juizado [de menores]
[...] com a missão de fazer cumprir a ordem por bem ou por mal, usando a força da lei e da
polícia, se necessário fosse” (AMADO, 2010b, p. 353). Caminhavam em direção ao Ilê Iyá
Omi Axé Iyamassê, o Terreiro do Gantois, de onde pretendiam retirar a jovem e reconduzi-la
à Clausura das Arrependidas. Porém, o panteão nagô também já lá se encontrava disposto, à
espera do início da batalha – a guerra dos santos à qual alude um dos títulos alternativos do
romance. Tão logo estiveram frente a frente, Exu pôs os olhos de brasa em Adalgisa,
encarando-a fixamente. Ela estremeceu e rodopiou sem controle sobre o próprio corpo,
sentindo-se como em ausência de si mesma, incapaz de articular os sentidos que se escapavam
da boca em língua que, um dia, sua mãe houvera tentado lhe ensinar.
A pedido de Iansã, que se encontrava no interior das camarinhas do Gantois ocupada
com os momentos decisivos da feitura de Manela, coube a Exu, princípio dinâmico da
cosmogonia nagô, sem o Qual nada se processa, nem a existência nem o devir, recobrar a
ovelha desgarrada, disciplinar a abiku – daí o recurso alegórico da cangalha, peça utilizada
por animais de carga que Iansã havia mandado fixar em Adalgisa como forma de simbolizar a
sua sujeição.
Em face daquelas insubmissas deidades africanas, de absolutamente nada adiantaram
as palavras de esconjuro ou a cruz de Cristo brandida como uma espada dos antigos cruzados
pelo clérigo espanhol: seu único poder, aliás de natureza triste e mesquinha, era o medo que
destilava em humanos corações; desprovido dele, era frágil e indefeso. Atônito diante de um
corpo que era mas não era Adalgisa, incapaz de fazer uso das armas de que já não dispunha, o
padre viu-se rendido. Como acreditava na natureza maléfica daquelas entidades, pôs-se a
suplicar pela própria vida. Mas os Orixás, talvez assim o tenha aprendido o sacerdote, são
brincalhões, não assassinos: despiram-no por inteiro, preservando apenas as meias sujas e a
corrente com o crucifixo em torno do pescoço, e o puseram a correr pelas ruas de Salvador,
transformando-o de figura respeitada e temida em motivo de mofa e de riso – a Execração
pública de fanáticos e puritanos a que se refere outro título alternativo de O sumiço da santa.
Também Adalgisa foi exposta à galhofa pública, desfilando de cangalha nas costas até
ser entregue ao babalorixá Luís Alves de Assis, Ogum Tosí, responsável pelo Ilê Axé Ibá
Ogun, situado no Vale da Muriçoca, em Salvador. Pelas mãos do pai-de-santo, Adalgisa Perez
Correia aprenderia a ser Adalgisa de Iansã. Ao longo dos quarenta dias na camarinha do
Terreiro, não somente os cânticos e as danças seriam ensinados, mas também, e
251

principalmente, uma forma outra de ser e de estar no mundo, de relacionar-se com ele: uma
experiência heterotópica e álacre da existência; uma experiência possível de liberdade.
252

CONSIDERAÇÕES FINAIS

ARTIGO FINAL: Fica proibido o uso da palavra liberdade,


a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

Thiago de Mello. Os estatutos do homem (Ato Institucional Permanente).

Ao longo desta tese, busquei estudar a produção literária de Jorge Amado em função
dos desdobramentos que o tema da liberdade apresenta em seu universo ficcional. Para tanto,
utilizei-me de um método de análise por via negativa: enfocar o que não é para flagrar o que é
(ou o que pode vir a ser). Assim, mantive meu foco inicial nas representações de regimes de
submissão (socioeconômica, política, cultural e moral) aos quais o autor se opõe e os quais
denuncia, na tentativa de identificar as razões pelas quais o faz.
Por outro lado, admitindo que a postura amadiana não se resume às acusações, mas
assume o compromisso de abrir um horizonte (utópico ou heterotópico) para alternativas aos
modelos vigentes, formulei a hipótese de que a leitura atenta destas opções outras tornaria
factível a visualização de formas dotadas de uma potência-devir no que tange à reversão de
sistemas coercitivos. Estas formas, responsáveis por comunicar um sentimento de esperança
frente aos cerceamentos da vida cotidiana, eu as designei experiências possíveis de liberdade.
Cumpre agora reuní-las mediante algum esforço de sistematização.
Apesar de seu desfecho, Tocaia Grande ainda me parece ser a melhor escolha por
intermédio da qual conduzir estas considerações finais, funcionando como uma espécie de
dínamo da síntese pretendida. Com efeito, em função da caracterização heterotópica daquele
pequeno arraial, a narrativa formata uma espécie de organização social fundada em um
espírito de coletividade irmanada, em cuja realidade interna vicejam os princípios da
igualdade material e de uma horizontalidade do poder. Na localidade de Tocaia Grande, o
coletivo prima pela ausência de cisões em classes e em níveis de hierarquia, de maneira que
não se estabelece o imperativo da submissão de uns em relação a outros.
A esta perspectiva, assim como defendido na premissa básica assumida para esta tese,
corresponde a permanência da ideologia socialista como um substrato estruturante da
idealização amadiana de um real outro – ao menos no que se refere ao seu conteúdo mais
253

fundamental, a projeção de uma sociedade não crivada por desigualdades. Nesta realidade em
diferença, a dinâmica social coletiva seria, portanto, definida por uma igual possibilidade de
fruição do comum. A nenhum contingente populacional seriam imputados cerceamentos
relativos às condições materiais para uma existência digna ou, noutro plano, no concernente à
dimensão política em que se discutem e se decidem os rumos do lugar.
Sob o prisma do modo como as relações econômicas e de poder são organizadas, a
estrutura não-piramidal, conformativa da dinâmica coletiva que sustenta a pequena
comunidade de Tocaia Grande, apresenta-se na condição de um elemento-base para que um
modelo não opressor de sociedade seja factível.
Um conjunto específico de narrativas, o qual designei arco ficcional revisionista,
parece propor, como um fator de construção desta organização ideal de sociedade, o acesso
democrático ao passado, acedendo a ele desde o fora das narrativas oficiais, estabelecidas pela
ordem vigente. Neste sentido, memórias subterrâneas poderiam conter conteúdos capazes de
inspirar a rasura e a reversão do quadro político-social instituído, pois capazes de comunicar
formas outras de vida que, não obstante terem sido silenciadas, manipuladas ou mesmo
violentamente exterminadas, constituíram experiências possíveis de liberdade no tempo em
que viveram.
Embora conditio sine qua non, esta formulação baseada no princípio da igualdade, que
diz das possibilidades de cada um em relação ao todo no qual se está inserido, não esgota o
que a ficção amadiana idealiza como experiência possível de liberdade. Como argumentei ao
longo do capítulo dois, a projeção de desenhos de organização social baseados em uma
perspectiva socialista não deixa de intervir na concretude do real que lastreia o universo
literário produzido pelo escritor. Mas, ao invés de retroalimentar-se, bastando a si próprios,
como o é no caso dos escritos sob a égide da militância ideológico-político-partidária (1933-
1954), tais conteúdos passam a ser mediados pelas formas de pensar, sentir, ser e estar no
mundo que se desprendem de pequenos espaços de diferença ao padrão ocidental capitalista-
burguês judaico-cristão, as heterotopias – o que traduz uma aderência do autor às aberturas de
pensamento e de engajamento social promovidas pela Contemporaneidade.
Assim, Jorge Amado desloca-se das grandes categorias modernas que enfeixam a
utopia política – o proletariado; o Partido Comunista – em direção a formas resilientes de vida
e de cultura não-hegemônicas que, organizadas sob outros valores e sob outras regras,
rasuram o status quo desde o seu interior. Como expus no capítulo três, as narrativas
Gabriela, cravo e canela e A morte e a morte de Quincas Berro Dágua se afiguram como
marcos desta transição.
254

O posicionamento crítico em relação ao sistema capitalista-burguês permanece, mas


sob outras vestes. Não mais se coloca através da ficcionalização de um embate direto entre
detentores do capital e trabalhadores organizados ou por intermédio da elevação do PC,
assumido como esperança e herói. O rebaixamento da ordem dominante, sem deixar de operar
por meio do enfoque em seu caráter violento e excludente, passa a ocorrer também por via da
demolição sardônica do conjunto de valores e de regras que compõe a sua espinha dorsal, a
sua forma de pensar e organizar a existência.
O expediente utilizado é o contraste entre a sociedade oficial e as heterotopias, de
maneira a demarcar como aquela se assenta em artifícios e ardis, em entraves e dor. Deste
modo, entram em cena representações diferenciais cujas atuações põem a nu as fraturas
internas do modelo hegemônico. Por meio do estranhamento que causam ou sentem em
relação àquele ambiente, o qual vivenciam como claustrofóbico, evidenciam uma estrutura
social montada como um regime de aparências, no qual as pessoas, interpeladas pelas
formações ideológicas dominantes, apresentam-se como docilizadas em acordo às máscaras
que devem vestir, ainda que estas não lhes caibam com perfeição e as cores não se coadunem
às desejadas em íntimo segredo. Ato contínuo, desvelam o falseamento corriqueiro das
relações interpessoais, quase sempre estabelecidas mediante interesses não afetivos e sob o
risco constante de aleivosias.
Estas figurações moldadas em diferença tensionam o poder estabelecido a partir dos
desvios de comportamento que encenam em relação às normas vigentes, podendo estes se
constituírem como verdadeiros atos de consciência (Quincas, Pedro Archanjo, Tereza Batista)
ou não (Gabriela, Boris). Fazem-no também através da rede de posicionamentos e de
conteúdos divergentes que se tornam visíveis em função mesmo da existência e afirmação de
seus corpos outros, que ocupam o centro da cena representacional amadiana – o negro e a
mulher; o pobre e o vagabundo; a prostituta e o povo-de-Axé. Na medida em que sofrem as
restrições que lhe são direcionadas pelo establishment, tais representações fazem emergir os
preconceitos de classe, raça, gênero, cultura, além das ressalvas morais que fundamentam o
imaginário constitutivo da ordem dominante, pondo em relevo o complexo de Narciso que
anima sua dificuldade em lidar com o que não é espelho.
Ao observar as alteridades que se espraiam na produção literária amadiana pós-1958,
defendi que os espaços ocupados por elas, não centrais no que se refere à disposição do poder
social e simbólico, funcionam como poderosas heterotopias em relação aos modelos
imperantes. Constituem-se como territórios-relicários de identificações rebaixadas pelo
espírito ocidental moderno e/ou pela doxa judaico-cristã, mas emergentes na cena
255

representacional amadiana desprovidas de quaisquer senões, pois instauradoras de lógicas


outras, que vêm a ser positivadas pelo autor.
As personagens que derivam destas outras espacialidades encenam experiências
individuais e coletivas que reverberam modos de vida não definidos pelo valor monetário,
reificante inclusive do estabelecimento de vínculos entre pessoas, ou pela obrigatoriedade de
uma aparência que quadra mal a quem a veste. Oriundas ou partícipes de grupalidades
organizadas a partir de lógicas diferenciais, fundantes de um sentido menos coisificado ou
restritivo de vida, elas podem reger-se segundo a ordem dos afetos e dos desejos, constituindo
vínculos detentores de um significado real e/ou comportamentos que vazam seus modos de
ser mais íntimos e sinceros.
Em virtude do contraste que se arroja do contato entre estas formas de vida não
coincidentes, Amado modela uma experiência possível de liberdade da qual Gabriela e
Quincas se colocam como personagens-arautos. Esta se delineia pela ausência de
identificação com a sociedade burguesa, ficcionalizada na medida de sua hipocrisia estrutural,
e com o imperativo capitalista de acúmulo de riquezas, na condição de um princípio regulador
da existência que coisifica inclusive as relações humanas, transformando-as em mercadorias a
serem negociadas nos mercados em que se compram e vendem prestígio e ascensão social.
Em Tocaia Grande, o espaço heterotópico em torno do qual se organiza aquela
pequena comunidade é preenchido por experiências de liberdade tais quais aquelas anunciadas
por Gabriela e por Quincas no simples ato de existirem. As relações internas do arraial
operam sob um ordenamento diverso daquele de sua circunvizinhança, integrada ao recém-
implantado capitalismo e aderente ao quadro das relações burguesas – configuração
econômico-social da qual a figura caricata e sorrateira de Venturinha vem a ser um símbolo,
uma vez que disposta a emular sentimentos e a trair lealdades mediante a manutenção de seu
padrão de vida, o ganho financeiro e o incremento de prestígio que podem decorrer de suas
ações.
Neste lugar outro, modalizado a partir dos excluídos em migração, a vivência
comunitária não possibilita que o contato com o próximo seja mediado por vínculos escusos
de interesse e de poder, de maneira que o afeto se encontra livre para estabelecer elos não
frágeis entre os seus coabitantes, de todo desobrigados de fingir-se o que não são. Aqui, as
trajetórias ascensionais não se medem pelo acúmulo de capital e sua consequente escalada na
pirâmide social ou, muito menos, pelo jogo das aparências, tão bem lido por Machado de
Assis em “Teoria do medalhão” e posto a nu em Memórias póstumas de Brás Cubas. O que
efetivamente vigora é o grau de penetração dos seres na dinâmica afetiva do lugar; o valor
256

pelo qual se pesam aquelas personagens diz dos elos de amizade, respeito e admiração a partir
dos quais significam-se umas em relação às outras, através dos quais mutuamente implicam-
se – e não custa lembrar a lei que rege aquele espaço de diferença, “mexeu com um, mexeu
com todos”, responsável não apenas por enlaçar em equilíbrio as individualidades ao coletivo
no qual se integram, como também por evidenciar a solidariedade como regra decorrente dos
vínculos ali constituídos.
O foco dos capítulos quatro e cinco se manteve nos valores culturais/religiosos que
formatam a imagem segundo a qual o Candomblé se apresenta para Jorge Amado, bem como
na maneira em que eles são transpostos para a ficção – o que me possibilitou perceber a
potência-devir que o Axé instaura na dinâmica existencial do universo produzido pelo
romancista baiano. Ou seja, as formas de vida que decorrem ancoradas nos sentidos oriundos
da interpretação negra da existência, marcada por uma abertura positiva em relação ao outro e
pela alegria-alacridade, recebem um tratamento ficcional que as posiciona como forças
libertadoras de modalizações fundadas no medo e na dor, na Culpa e no Pecado, na Verdade e
no componente demoníaco de tudo quanto lhe seja destoante.
Ao longo daquelas páginas, apoiado no fato de as comunidades-terreiro representarem
um continuum civilizacional africano-brasileiro, cuja matriz simbólica recupera e institui um
ethos negro-africano em contexto diaspórico, defendi a hipótese de que Amado as ficcionaliza
sob a condição arquetípica de uma heterotopia absoluta e positiva. Isto é, como loci dos quais
são emanadas existências radicalmente outras em relação àquelas organizadas a partir do
Ocidente judaico-cristão – estas sendo vazadas em figurações ambivalentes, sob o prisma das
repressões que sofrem desde o íntimo e reproduzem sobre corpos alheios, de modo que põem
em movimento uma reação em cadeia em tudo contrária a uma efetiva experiência de
liberdade.
De fato, salvaguardadas aquelas que conseguem relativizar o peso da axiologia
judaico-cristã, as representações amadianas que se apresentam como fundadas em um
espelhamento da doxa religiosa ocidental (Perpétua, Adalgisa) descortinam-se como vidas em
triste agonia, uma vez que vertem os represamentos pelos quais são interpeladas em uma
condição anímica atravessada por um mal-estar em relação ao mundo; em uma atitude
restritiva ante o corpo e em um comportamento social não aberto às diferentes percepções do
Sagrado.
Do lado de fora de um ponto de vista estritamente religioso, as formas modernas de
racionalização estabelecidas pelo Ocidente sob os signos da filosofia secular ou do
cientificismo, ambos com larga penetração no imaginário social dos séculos XX e ainda XXI,
257

perpetuaram a dificuldade de uma apreensão positiva da alteridade, que veio a ser reduzida a
condições infra-humanas, não raro organizando sociedades segregadas ou eivadas de
preconceitos não-ditos.
A comunidade de Tocaia Grande, por sua vez, se estabelece como um espaço dotado
de pluralidade étnica e cultural em que o regime de contato entre as diferenças não ocorre
através da regulação ou imposição de uma configuração racial identificada como superior ou
de uma cultura entendida como civilizada sobre as demais, relegadas à condição de inferiores
ou de atrasadas/primitivas. Ao invés da subtração do diferente, seja por via do extermínio ou
da aculturação, o que se processa no lugar é uma soma de alteridades cujo resultado não
ignora ou evanesce as partes que o constituem. O outro é percebido como um semelhante – ou
como um próximo – sem que, para tanto, sinta-se pressionado a disfarçar o conjunto de traços
fenotípicos ou a abrir mão do universo simbólico demarcativos de sua diferença. Na
heterotopia em que se assenta aquela pequena comunidade, o outro, na inteireza de sua
alteridade, é vivido como um igual. Trata-se da concretização, no passado, do sonho que
Pedro Archanjo vislumbrava em um ainda distante futuro.
De acordo com a argumentação construída nos capítulos quatro e cinco desta tese, é
possível analisar esta forma outra de contato com a diferença através do fato de Jorge Amado
ancorar, como alicerces de parte significativa de seu universo ficcional, os valores
constitutivos da cosmovisão do Candomblé; entre eles, uma abertura positiva para o outro – o
que implica não apenas a tolerância, em cuja atitude resta mal disfarçado o sentimento de
aversão, mas a aceitação irrestrita da diferença.
Como já debatido, não é à toa que Tição Abduim, personagem por intermédio do qual
os valores culturais negros se fixam no arraial que titula o romance, figura como o principal
vetor para a coesão em comunidade dos agrupamentos humanos ali aportados. Não fosse por
ação dele, para quem o outro não é percebido como completa exterioridade, mas como parte
constitutiva de um todo no qual ambos estão inseridos e para o qual ambos precisam
concorrer, a indiferença reinante entre os habitantes do lugar talvez nunca houvesse realmente
cedido ao sentimento de coletividade irmanada em afeto e solidariedade.
Da mesma forma, e também por inventiva de Tição, a dinâmica existencial da
comunidade se consolida sob o signo do Ayó, a alegria-alacridade, princípio fundamental para
o ser e estar no mundo específico do povo-de-Axé. E aqui não custa lembrar que o sentido de
coesão social de Tocaia Grande se fixou em meio (ou, talvez fosse mais correto, em função
de) ambientes festivos: os almoços-ajeum de todos os domingos, em que a partilha do
alimento se fazia acompanhada por afetos alegres, e o São João. A festa, como expressão
258

simbólica de um existir álacre, efetivamente funda as relações entre os seres do arraial,


revelando o Ayó como princípio estruturante das formas de vida ali instaladas.
Esta percepção álacre da existência, em cuja axiologia não vigoram restrições aos
domínios de Eros sobre a vida humana, repõe a dimensão do prazer, aqui grafado em sentido
amplo, como instância de significação positiva, produtora de saúde. O bem-estar do corpo e o
bem-estar da alma são interligados por uma relação de dependência, o segundo ocorrendo
apenas em função do primeiro.
O sem-tempo no qual o Eterno se instala não apraz às comunidades litúrgicas afro-
brasileiras, que optam pelo dinamismo dos instantes em que a vida decorre. Para esta
axiologia outra, heterotópica, não há qualquer sentido na separação antagônica entre a
materialidade corpórea, intrinsecamente má, e a idealização do espírito, posto em situação
constante de ameaça por sua contraparte física. O sacrifício de uma em prol da
elevação/salvação da outra simplesmente não se apresenta como lógico, pois nenhuma glória
deriva do padecimento do corpo.
O Ayó, a alegria-alacridade, irrompe no universo ficcional amadiano como uma
potência desrepressora, capaz de devir existências tangidas pelo signo da sujeição corpórea
e/ou espiritual em experiências possíveis de liberdade (Quincas, Manela, Adalgisa). Liberadas
das instituições ou do sistema do medo que as aprisionavam em tensão e agonia constantes,
tais personagens, por meio do contraste entre as duas modalizações sob as quais se
apresentam, potencializam o bem-estar de uma relação saudável e positiva com os prazeres
que a vida, apesar de tudo, ainda tem o poder de oferecer.
Tudo apurado, o microcosmos social encenado em Tocaia Grande parece mesmo
emoldurar, e com sucesso, as experiências possíveis de liberdade que figuram no universo
ficcional amadiano: o espaço não-hierarquizado do comum, em cuja dinâmica vigoram as
igualdades material e de poder; as relações interpessoais não-mercantilizadas e/ou não-
baseadas em um regime de aparências, favorecendo um autêntico enlace afetivo e o
enraizamento da solidariedade como princípio mediador entre as instâncias do indivíduo e do
coletivo; a garantia de acesso a uma memória democrática, responsável por não subtrair ou
falsear passados em função dos interesses do poder instituído; a partilha de valores e de regras
que estabelecem a vida como alegria-alacridade, constituindo uma experiência sinestésica de
bem-estar com o mundo; uma atitude de abertura positiva para o outro, cuja diferença não
vem a ser rebaixada de acordo com critérios de infra-humanidade, e para si mesmo, no que
toca às pulsões desejantes que emergem, desde o íntimo, no corpo.
259

Se, por um lado, Tocaia Grande permite agenciar a formulação da síntese acima, e
nela está contido um modelo ideal de sociedade em que a liberdade viceja como experiência
cotidiana; por outro, o tom final em que o romance enfeixa o destino da comunidade,
procedendo à sua capitulação e subsistência apenas como memória subterrânea, causa certa
dissonância no que concerne à constituição solar da ficção de Jorge Amado. Ainda que se
argumente acerca da força inerente à permanência dos relatos orais e populares que contam do
arraial, mantendo a possibilidade de aquela heterotopia inspirar esperanças, é amargo o gosto
desta apenas compensação, incapaz de mudar o fato de a sociedade autoritária ter, ao fim e ao
cabo, vencido.
Caso a tese se encerrasse naquele sétimo capítulo, haveria uma certa incoerência entre
o seu início, em cuja premissa básica destaquei o fato de a esperança ser um sentimento
presente na produção de Amado, e o seu desfecho, que a dissolvia em uma perspectiva
crepuscular: o extermínio da liberdade. Por esta razão, a necessidade de um oitavo capítulo. O
sumiço da santa repõe em cena o aspecto solar que não se encontra em Tocaia Grande, de
modo que produz um fechamento mais adequado ao “[...] esforço persistente, quotidiano, do
plumitivo na tentativa de levar a cabo o compromisso de contar para divertir e, divertindo-se
ele próprio, mudar os termos do teorema e melhorar o mundo” – Amado (2010b, p. 383)
falando de si próprio, talvez?
No embate contra as violações sistemáticas da dignidade humana, a liberdade entre
elas, Jorge Amado utilizou das únicas armas de que poderia dispor sem que sua ação
incorresse em gerar violência: a sua romântica capacidade de ter esperança e o seu talento
como escritor. Construiu um universo ficcional comprometido com o devir das formas
autoritárias das quais a vida se encontra ainda cativa, com o intuito de transformá-las em
experiências possíveis de liberdade.
Se obteve êxito? A pergunta é capciosa, afinal que poder teria a literatura para tanto?
Jorge Amado não conseguiu mudar a vida do povo, é fácil conferir. Ainda assim, deve-se
reconhecer que nenhuma palavra pronunciada contra a violência e a tirania é vã e inútil:
alguém ao ouvi-la pode superar o medo e iniciar a resistência. Axé!
260

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271

ANEXOS
272

ANEXO A
“Declaração de guerra em língua de sotaque”
273
274
275
276
277
278
279
280
281
282

ANEXO B
“Episódio de Siroca”
283
284
285
286
287
288

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