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CAPA

Algumas reflexões sobre


a cultura do ateliê

Francesca Manfredi
ANO XI Nº 37 OUT/DEZ 2013
PÁTIO – educação infantil

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O atelierista é parte do grupo de trabalho,
planeja junto com os professores, de maneira
que o grupo de trabalho se torna um grupo
de aprendizado, e a escola, um ateliê difuso

Q
uais os mundos possíveis de entrever com as O atelierista é erroneamente considerado como um
palavras “arte” e “educação”? Os meninos e profissional que propõe às crianças experiências artísticas
as meninas vivem com entusiasmo o seu estar desvinculadas do trabalho que os professores conduzem
no mundo. Já nascem com um forte espírito nas suas aulas. A cultura do ateliê, na realidade, funciona
de indagação, perguntam sobre as coisas se é difundida na escola e o atelierista é parte do grupo
atribuindo-lhes vida, tratando-as com respeito, como de trabalho, se confronta e planeja junto com os profes-
suas iguais. Os professores e os educadores, junto com sores. As competências do atelierista, dos professores e do
as famílias, têm a delicada tarefa de acompanhar as pedagogo tornam-se, desse modo, patrimônio do grupo.
crianças no seu encontro com o mundo, tratando como Na escola se forma, assim, um senso de reciprocidade
uma coisa preciosa o sentimento de beleza que a vida entre os adultos, o grupo de trabalho se torna um grupo
provoca neles. As crianças reconhecem o que é belo, no de aprendizado, e a escola um ateliê difuso.
sentido de eticamente bom, naquilo que encontram, mas A cultura do ateliê é alegre e transgressiva, não é a
sabem também imaginar e criar o belo. aplicação de exercícios técnicos e não tem a intenção de
Uma admiração inteligente enche-os de produzir obras artísticas feitas pelas crianças.
espírito crítico, tornando-os agentes de É importante que os professores e os edu-
transformações e inventores de possi- cadores sejam apaixonados, curiosos,
bilidades. Da educação pode nascer capazes de reunir e elaborar refle-
um novo senso de cidadania e de xões sobre a cultura, a tecnologia,

Fotos: Francesca Manfredi


participação responsável e pra- as formas de comunicação e as
zerosa na realidade. A escola pesquisas científicas da con-
deveria ser um lugar feliz, que A cultura do temporaneidade.
Quando, por prazer e por
permitisse a todas as crianças
— em todos os contextos geo­ ateliê é alegre e formação pessoal, vamos a
gráficos, sociais, culturais e uma exposição, lemos um
econômicos — aprender com transgressora, não livro, assistimos a um con-
prazer junto com os outros.
As crianças têm o direito de
é a aplicação de certo, algumas vezes vemos
e sentimos coisas de que
fazer experiências positivas exercícios técnicos gostamos. E o que fazemos
de vida. Isso pode ser realizado com todos esses elementos
graças à riqueza de pensamento interessantes? Nas escolas e nas
que os adultos podem arriscar, creches de Reggio Emilia, não

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aquela que cresce onde as pessoas pedimos que as crianças imitem o
podem pensar e confrontar-se. trabalho dos artistas, que reproduzam
O professor Loris Malaguzzi, pedagogo técnicas ou formas. Os materiais e os
fundador das escolas para a infância e das cre- conceitos colocados em jogo pela arte e, em
ches municipais de Reggio Emilia, defende com vee­ geral, pela cultura são bagagens que o adulto tem
mência a inteligência das crianças e a sua capacidade de para conseguir interpretar de modo mais preciso o que as
exprimir-se e de aprender, com tempos e modos próprios, crianças fazem, para reconverter ideias e sugestões em
por meio de muitas linguagens, materiais e instrumentos. uma dimensão educativa e de aprendizado.
A presença do atelierista, nas escolas e nas creches A cultura do ateliê, assim como a artística, não é
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de Reggio, nasce de uma intuição que se inscreve nessa normativa, não tem regras que servem sempre e em
ideia de criança, de educação e de sociedade. Essa figura todas as situações. Às vezes é irreverente, possui no seu
profissional, de formação artística, tanto teórica quanto DNA a tensão para desestabilizar o que está estabelecido,
prática, inserida em turno integral no grupo de trabalho proporcionando às crianças a possibilidade de ter outros
da escola, tem dado vida, com o passar dos anos, à cultura olhares sobre a realidade.
difundida do ateliê. Frequentemente se pensa no ateliê
como um lugar específico onde acontecem coisas extra- Em uma conversa em um pequeno grupo, as crian-
ordinárias, enquanto no restante da escola transcorre ças e o professor discutem sobre como, segundo eles,
cotidianamente uma didática comum e tediosa. o nosso corpo percebe os perfumes. Margherita diz:

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“As mãos também podem cheirar... É pelas unhas que importantes que outras. Comer, lavar as mãos, dançar, rir
chega o perfume e depois vai para dentro” (Figura 1). com os amigos: cada detalhe está carregado de maravilha,
O professor aceita com interesse a teoria de Margherita inclusive aquele aparentemente mais banal.
e propõe às outras crianças discuti-la e aprofundá-la, Isso tem a ver com a dimensão estética. Nunca lhe
usando, inclusive, a linguagem gráfica. aconteceu, caminhando na sua cidade, emocionar-se
ao sentir-se, subitamente, em uma cidade que nunca
tinha visitado? A dimensão estética ilumina com uma luz
nova o que já conhecemos. Devemos procurar estimular
a qualidade do sentimento e a capacidade de conectar
experiências distantes entre si no tempo e no espaço e
que, unindo-se, produzem novos pensamentos.
A cultura do ateliê faz parte da técnica, da poética
(poiesis, do grego, como fazer, criar) e da estética, tendo,
ao mesmo tempo, emoção e conhecimento, ação e signifi-
cado no processo de aprendizagem que nos acompanhará
por toda a vida.
A relação entre as crianças e os adultos torna-se
interessante a partir do momento em que o professor
deixa de se considerar um especialista, alguém que sabe
e que transmite o seu saber, para começar a sentir-se uma
pessoa que tem ainda muito que aprender e que pode
maravilhar-se junto com as crianças.
Figura 1
Muitas vezes propomos às crianças experiências por-
que sempre se fez assim, mas são hábitos com os quais a
A cultura da arte e do ateliê são culturas do fazer, em escola construiu certezas, sobre os quais não reflete mais.
que “a teoria se fundamenta e se apoia na experiência, Perguntar-se por que e como propor às crianças alguma
tornando-se um conceito operacional, que é produzido coisa é uma atitude fundamental. A cultura na qual es-
pela obra e ao mesmo tempo a produz, em uma dialética tamos imersos está repleta de estereótipos com relação
constante entre prática sensível e significado” (Balzola ao que agrada ou não às crianças. A escola deveria evitar
e Rosa, 2011, p. 11). a banalização das experiências, priorizando um grande
Fazer significa encontrar os materiais, escutar o que esmero com relação ao uso dos materiais.
nos propõem, experimentá-los, conhecê-los e, em segui- Podemos, por exemplo, construir, junto com as crianças,
da, prová-los e conhecermos nós mesmos. A experiência múltiplas graduações da mesma cor e romper com o domínio
constante da matéria reforça a relação que as crianças redutivo das cores primárias. A variação é uma das qualida-
têm com o real, permitindo-lhes identificar problemas e des da vida e, ao confundirmos simplicidade com pressa e
procurar, juntamente com os outros, respostas provisó- simplificação, corremos o risco de perder os gostos únicos
rias. O corpo todo se envolve nessa tensão cognitiva, é e ricos das variações dos materiais, como, por exemplo, as
um corpo capaz e inteligente. diferenças táteis de diversas madeiras, ou os sabores que se
encontram sem confundirem-se em uma receita bem feita.
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Augusto e Massimo estão construindo uma planta Também o ambiente escolar deveria ser um multi-
trepadeira com fios de metal. Enquanto suas mãos plicador de sensibilidades. Na nossa escola, podemos
entrelaçam, dobram, enrolam, Augusto diz: “É muito exercitar a criação de ambientes fascinantes usando
divertido. Não é exatamente uma brincadeira, mas é meios simples, como efeitos de luz e sombra, sugestões
como se fosse um jogo, uma brincadeira de verdade. As que jogam com o verdadeiro e o falso, materiais naturais
minhas mãos estão se divertindo como loucas. Não sou que podemos encontrar nos bosques, ao longo dos rios,
eu que as estou comandando, e sim elas que estão no na praia — ramos, pedras grandes e pequenas, terra de
comando. Eu comando um pouquinho também, mas não diversas cores, materiais com odores, sugestivos da rica
muito. São elas que querem fazer isso. O polegar, que é biodiversidade do nosso planeta, que se apresentam
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o chefe, comanda os outros dedos e também o mínimo às crianças como questões importantes: o que é? Onde
ajuda um pouquinho”. e como nasce? Como cresce? Como vive? A sedução, a
fascinação e a beleza autorreferenciais não nos servem
A cultura do ateliê e da arte é transversal, matiza o porque deveriam, ao contrário, são capazes de instigar
limite entre as linguagens e as disciplinas; não separa, perguntas, observações, descobertas.
ao contrário, agrega, imerge na realidade e pode trazer As nossas escolas podem ser ateliês difusos, do macro
sempre alguma coisa interessante, uma vez que a vida ao micro, dos ambientes à qualidade das relações entre
nunca é igual. Assim, também em um dia de escola cada as crianças e entre as crianças e os adultos, dos materiais
momento é rico em valor, não existem situações mais à disposição às linguagens propostas.

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Tomemos como exemplo o desenho. Desenhar é uma na areia, a água sobre a pedra, a luz ou o computador com
linguagem universal inerente a todos os seres humanos. a mesa gráfica. A folha, com a ajuda de um retroprojetor,
Desde o momento em que começamos a atribuir significa- pode transformar a parede, o espaço da sala.
do aos acontecimentos, fazemos desenhos. O desenho é Cada tipo de suporte e de instrumento requer das crian-
uma maneira de interpretar a experiência e contá-la a si ças intuições, imaginação, soluções diferentes, uma vez que
mesmo e aos outros: ajuda a compreender o real. Para as a matéria tem em si mesma uma dimensão expressiva muito
crianças, desenhar uma árvore não é um exercício técnico, forte — a matéria comunica. Os desenhos das crianças são
mas sim algo que as ajuda a compreendê-la, a sentir o seu muito interessantes, e é sobretudo no processo para a sua
corpo, a estudar-lhe a forma, as texturas, os detalhes, para elaboração que se podem analisar as estratégias subjetivas.
descobrir como vive, como respira, como se comunica. A cultura do ateliê é uma atitude dos adultos que,
graças à formação permanente, à curiosidade, à compa-
Durante a exploração com um pequeno grupo no ração, ao aprofundamento cultural e ao conhecimento
parque, Arianna observa uma árvore estudando o tronco dos materiais e das linguagens, conseguem escutar as
com o corpo, com a pele, com o tato. Depois desenha. crianças com sensibilidade e humildade, com fidelidade
No seu desenho, podemos observar que o que mais a e sem construir interpretações pretensiosas do que essas
impressionou da árvore é a casca e a sensação tátil que crianças fazem. A cultura do ateliê é um exercício pro-
esta gerou nela: a aspereza. jetual constante, que da observação cotidiana do que as
crianças fazem desenvolve e aprofunda pontos complexos.
Desenhar é um modo de interpretar e compreender o É um exercício de escuta, empatia e intuição.
espaço para sentir como o nosso corpo o habita, como se A observação e a documentação são práticas coti-
move nele e o percebe. Passar da tridimensão do espaço dianas que nos ajudam a interpretar os processos de
para uma representação bidimensional é uma operação aprendizagem das crianças e a escolher, entre as múl-
complexa para o cérebro e para as mãos. Desenhar pode tiplas possibilidades, qual estrada percorrer, o que é
ser uma pausa reflexiva em relação às coisas, ajuda a dar verdadeiramente importante propor-lhes, considerando
voz a elas com buscas lexicais poéticas e metafóricas ou as idades, as necessidades do grupo e de cada criança,
descritivas e científicas. Desenhar apura nas crianças a para construirmos juntos experiências significativas, não
sensibilidade em relação aos materiais do próprio desenho. dispersivas e não confusas.
A capacidade de manter relações sensíveis com o
Sara e Lisa experimentam sobre uma folha de papel com mundo, a leveza e a flexibilidade de uma mente que
giz de cera. Sara faz uma grande mancha com o giz roxo, conecte vários planos de experiência são elementos que
depois passa a mão por cima. O giz de cera borra, esfuma. a escola deveria cultivar sempre para alimentar uma
“Olha!”, diz Sara. “Fiz um violeta que passa veloz” (Figura 2). educação emotiva, o verdadeiro motor do aprendizado.

REFERÊNCIA
Balzola, A.; Rosa, P. L’arte fuori di sé, un manifesto per l’età
post-tecnologica. Gênova: Feltrinelli, 2011.

l Francesca Manfredi é atelierista da Istituzione Nidi ANO XI Nº 37 OUT/DEZ 2013


e Scuole dell’Infanzia del Comune di Reggio Emilia.

+
EDWARDS, C.; GANDINI, L.; FORMAN, G. As
SAIBA cem linguagens da criança: a abordagem
de Reggio Emilia na educação da primeira
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Figura 2 infância. Porto Alegre: Artmed, 1999.


CEPPI, G.; ZINI, M. e cols. Crianças, espaços,
Em todas as escolas se desenha, mas quase nunca nos
relações: como projetar ambientes para a
damos conta do fato de que essa linguagem oferece às educação infantil. Porto Alegre: Penso, 2013.
crianças uma gama infinita de possibilidades de expressão,
aprofundamento, aprendizagem. Desenhar não requer o GANDINI, L.; HILL, L.; CADWELL, L; SCHWALL,
C. (orgs.). O papel do ateliê na educação
uso de instrumentos caros. Pode-se desenhar com muitos
infantil: a inspiração de Reggio Emilia. Porto
tipos de lápis em muitos tipos de papel; pode-se usar car- Alegre: Penso, 2012.
vão de desenho, caneta esferográfica, um galho de árvore

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