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Rafael Aguirre Monasterio Antonio Rodriguez Carmona | EVANGELHOS SINOTICOS - | EATOS DOS APOSTOLOS 212 Dimensédo literaria 2, Evangelho de Mateus nos tempos modernos Esta preeminéncia de Mateus é indiscutivel até o século XVIII. Com o surgimento dos estudos criticos esfacelou-se a convicgao de que era 0 primeiro evangelho e o mais préximo das fontes. A primeira divida se fundava na opiniaio tradicional de que o texto original de Mateus tinha sido escrito em aramaico. Que confianga, entao, merecia o texto grego conhecido hoje? As dividas dos criticos logo se ampliaram. Quando sur- giu a teoria do “evangelho primitivo”, de que Mateus, Marcos ¢ Lucas nao seriam sendo desenvolvimentos secundarios, a posigao de Mateus como “primeiro evangelho” ficou radicalmente questionada. Mas a objecdo mais forte veio mais tarde com a opiniaio muito divulgada pela teoria das duas fontes, segundo a qual Marcos é 0 primei- ro evangelho. Nunca desapareceram por completo os defensores da prio- ridade de Mateus, mas a atribuigao desse papel a Marcos tornou-se a dou- trina mais comum (cf. capitulo II). Como resultado deu-se no século XIX uma mudanga importante da consideragdo do Evangelho de Mateus. Era 0 Evangelho de Mar- cos 0 mais antigo e o mais proximo das fontes, 0 que era decisivo de- vido a preocupagao histérica do momento. Com o surgimento da es- cola da Historia das Formas acentuou-se o interesse pelo Evangelho de Marcos: aceitava-se sua prioridade e se partia dele para estudar a tradig’io; uma vez que Marcos era considerado 0 “inventor” do géne- ro literario chamado evangelho. Com o advento da Histéria da Reda- iio cresce outra vez o interesse pelo Evangelho de Mateus. A maioria dos autores segue aceitando sua dependéncia de Marcos, mas consi- dera-se ser cada evangelho um projeto literario e teolégico proprio e irredutivel. A partir dos anos 50 do século XX, multiplicam-se os es- tudos sobre a redagdo do Evangelho de Mateus, significando algo de positivo. A problematica suscitada por esses trabalhos sera abordada no proximo capitulo. Nestes ultimos anos tém-se multiplicado os co- mentarios sobre Mateus (cf. bibliografia deste capitulo), que volta a ser 0 evangelho mais estudado pelos especialistas. V. QUESTOES ABERTAS: ESTRUTURA DO EVANGELHO Mateus compe cuidadosamente muitas segdes de seu evangelho, mas captar a estrutura da obra em seu conjunto é algo mais dificil. E um tema muito discutido. Vou apresentar as opinides mais representativas, Quest6es abertas: Estrutura do evangetho 213 simplificando necessariamente o debate, mas colocando em destaque as chaves do problema. Trata-se de uma questo muito importante, porque o modo de entender a estrutura literaria costuma ser acompanhado de op- gGes metodolégicas e teolégicas .7 1. Estrutura geografico-cronolégica Fundamentar a estrutura do evangelho nos dados geograficos tem sido muito freqiiente entre os autores antigos, mas menos habitual entre os modernos. E representantivo dessa opiniio é o plano proposto por W. C. Allen e L. W. Grensted: 1-2; nascimento e infancia do Messias 3,1-4,11: preparagio para o seu ministério (Mc 4,1-13) 4,12-15,20: atuagdio e ensinamento na Galiléia (Me 1,14-7,23) 15,21-18,35: atuagao fora da Galiléia (Mc 7,24-9,50) 19,1—20,3. iagem a Jerusalém (Mc 10) 21-28: tiltimos dias da vida do Messias (Me 11-16,8) Entre estes autores costuma-se discutir, sobretudo, 0 ponto exato em que co- megam 0 ministério na Galiléia (4,12 ou 4,17) ¢ a viagem para Jerusalém (normal- mente se coloca em 19,1, mas hé quem prefira 16,13 ou 16,21). Os defensoresdeste plano plano, com freqiiéncia, partem da dependéncia de Mateus em relagdio a Marcos, de quem toma 0 esquema geografico. Ao adotar-se o critério geogrifico, destaca-se o relato de Jesus, que culmina em Jerusalém. Por isso, esses autores sublinham o cardter cristolégico de Mateus, enquanto se detém pouco na eclesiologia e na escatologia. O mérito deste plano esta em realgar o aspecto narrativo do evange- Iho. Também, esta correto afirmar que os deslocamentos geograficos tem importancia teolégica em Mateus; jd vimos a diferenga entre o ministério na Galiléia e o de Jerusalém, o interesse pelo inicio da viagem em 19,1 ¢ a importancia dos deslocamentos geograficos nos capitulos 1-2. Todavia, os 7. Vou reduzir a0 mfnimo as referéncias bibliogrificas. Podem ser encontradas junto com a discusso de toda essa questi, em J. D. Kingsbury: Matthew: Structure, Christology, Kingdom (Filadétfia 1977); D. R. Bauer, The Structure of Matthew's Gospel (Sheffield 1989) 21-56; R. T. France, Matthew: Evangelist (ef. bibliografia deste capitulo) 141-153; G. Stanton, The Origin (cf. bibliografia deste capitulo) 1903-1906, 8. Introduction to the Books of the New Testament (Edimburgo 1929) 23. 214 Dimenséo literéria numerosos estudos recentes sobre a redagao de Mateus, colocam em evi- déncia que é impossivel articular a dinamica teolégica de Mateus em tor- no de suas indicagées geograficas. 2, Estrutura fundamentada nos cinco discursos O autor que mais influenciou na pesquisa sobre a estrutura do Evangelho de Mateus é B. W. Bacon.’ Considera que 0 Evangelho de Mateus depende do Evangelho de Marcos e da fonte Q, mas apresenta estrutura totalmente propria ¢ diferente. O ponto de partida fundamental esta na existéncia de cinco discursos. Conelui que Mateus consta de cinco livros, cada qual comporta uma seco narra- tiva seguida de um discurso, que termina com a frase estereotipada: “E aconte- ceu que ao terminar Jesus essas palavras”. A este corpo 0 evangelista acrescen- tou um preambulo (1—2) e um epilogo (26-28). Mateus imita a estrutura do Pentateuco, no que — segundo Bacon — cada um dos cinco livros contém uma parte narrativa, que descreve as obras poderosas de Deus, seguida de um discurso de tipo legal. Esse autor julga que Mateus é um rabi cristo, egalista, que pretende combater o antinomismo existente em sua igreja, para 0 que apresenta Jesus como 0 novo Moisés que entrega a nova Lei 4 sua comunidade. A estrutura de Mateus, segundo Bacon, é a seguinte: Preambulo 1-2 Primeiro Livro: Temitica, o discipulado A: Introdugao narrativa 34 B: primeiro discurso 57. Segundo Livro: Temitica, apostolado A: Introdugao narrativa 8-9 B: 0 discurso 10 Terceiro Livro: Temitica, 0 ocultamento da revelagaio A: Israel nio aceita Jesus 11-12 B: ensinamento em pardbolas 13 Quarto Livro: Temitica, a administragdo da Igreja A: Jesus e a fraternidade 1417 : 0 discurso 18 Quinto Livro: Temitica do juizo A: Jesus na Judéia 19-22 B: discurso sobre o juizo final 23-25 Epilogo 26-28 Essa estrutura foi aceita por muitos. Do ponto de vista metodolégico, parte da percepgao da diferenga com Marcos e de um dado claro, a existéncia indubitavel 9. The Five Books of Matthew Against the Jews em “Expositor” 15 (1918) 56-66; Studies in ‘Matthew (Nova York 1930). Questoes abertas: Estrutura do evangetho 215 dos discursos. Teologicamente se sublinha 0 elemento doutrinal do evangelho: Jesus é apresentado como mestre, ¢ se coloca em primeiro plano a eclesiologia. Diversos autores, aceitando-a fundamentalmente, introduziram algumas varian- tes. W. D. Davies, examinando extensivamente a possivel presenca em Mateus dos motivos do novo éxodo e do novo Moisés, declara que “nao sao tao domi- nantes como para dar um apoio significativo a tese de Bacon sobre 0 Pentateuco”"*; e conclui afirmando que a estrutura dos cinco discursos de Mateus “nao conduz necessariamente a uma interpretagao deliberada do evangelho como sendo novo Pentateuco, como contrapartida dos cinco livros de Moisés. Nesse aspecto, em- bora nao corretamente nos outros, seria proveitoso exorcizar o fantasma reverencial de Bacon dos estudos sobre Mateus™.'* Tém surgido discuss6es sobre o numero dos discursos. A maioria concorda com Bacon que sao cinco, mas alguns defendem que o capitulo 23 é um sexto e, inclusive, ha aqueles que encontraram sete. Mais importante é a discussaio sobre a relacao entre cada um dos discursos com a parte narrativa. Bacon vincula cada um deles com o precedente, mas muitos autores preferem conectd-los com a secdo narrativa posterior. Mateus usa com freqiiéncia temas centrais nas pericopes ou segdes determi- nadas. Ha aqueles que pensam que a estrutura de todo o evangelho responde a uma disposigao central. P, Gaechter " J. E. Fenton " opinam que a disposigao dos cinco discursos corresponde a essa figura literdria: os capitulos 5-7 correspondem a 23-25, o capitulo 10 ao do 18; se destaca-se de uma maneira especial a importén- cia do capitulo 13. Essa disposi¢ao tem sido sobriamente aceita em nossa exposi ¢ao. Também, P. F. Ellis encontra essa mesma disposigao de temas centrais em Mateus e argumenta que a divisdo fundamental encontra-se entre os versiculos 35 e 36 do capitulo 13 ¢ se refere 4 mudanga de atividade de Jesus. “Até 13,35, Jesus fala a todos os judeus. A partir de 13,35, como em Marcos 8,27-46, Jesus dedica a maior parte de sua atengdo aos discipulos que, em contraste com os judeus, escutam e o atendem, No capitulo 13, Jesus passa do pseudo-Israel que nao quer aceité-lo (cf. cap. 11-12) a Igreja, 0 verdadeiro Israel que cré nele™*. Esse autor considera que as segdes narrativas esti em fungao dos discur- sos, mas todo 0 evangelho culmina em 28,16-20, de modo que a cristologia é eixo fundamental. 10. The Setting of the Sermon of the Mount (Cambridge 1963) 30. 11, Op. cit,, 107. 12. Die literarische Kunst im Mattheius-Evangeliwn (Stuttgart 1965). 13. Inclusio and Chiasmus in Matthew (Studia evangelica I, Texte und Untersuchungen 73) (Berlim 1959) 174-179. 14, Matthew: His Mind and His Message (Collegeville 1974) 13. 216 Dimensdo literaria A Ellis podem-se fazer duas objegdes: 1") Est correto que ha em Mateus uma concentragiio progressiva de Jesus nos discipulos (foi sublinhado isto em nossa exposigao), mas nao parece que seja tao importante a ruptura de 13,35- 36, porque ja os discursos de 5~7 e 10 eram direcionados a eles. 2*) A opinido geral, aceita por Ellis, é que 0 movimento cristolégico progride nas segdes narrativas; entdo como se pode dizer que o eixo de toda a obra ¢ 0 aspecto narrativo e, ao mesmo tempo, argumentar que as seges narrativas ttm uma fungio secundaria e subordinada aos discursos? Merece atencdo mencionar H. J. B. Combrink que interpreta a estrutura fun- damentada nos cinco discursos de forma tal que faz justiga ao desenvolvimento do relato.'* Sua proposta, que também vé no capitulo 13 0 centro, é a seguinte: A 1,1-4,17 Narrativa: nascimento e preparagao de Jesus. B 4,18 —7,29 Material introdutério. Primeiro discurso: Jesus ensina com autoridade. C 8,1-9,35 Narrativa: Jesus atua com autoridade. Dez milagres. D 9,36 -11,1 Segundo discurso: os Doze sao enyiados com autoridade. E 11,2-12,50 Narrativa: 0 convite de Jesus desprezado por essa geracao. F 13,1-53 Terceiro discurso: as parabolas do Reino. E’ 13,5-16,20 Narrativa: Jesus, desprezado e aclamado, atua compassivo com judeus e gentios. D’ 16,21 -20,34 Quarto discurso com narrativa: anincio da paixao, falta de compreensio dos discipulos. C21, 1-22,46 Narrativa: a autoridade de Jesus é questionada em Jerusalém. BY 23,1-25,46 Quinto discurso: Julgamento de Israel e dos falsos profetas, a vinda do Reino. ‘A’ 26,1-28,20 Narrativa: a paixdo, morte ¢ ressurreigaio de Jesus. Combrink acrescenta algo sumamente interessante. Distingue entre as for- mas da narragao (estruturas, comentarios do editor) e a mensagem ou a trama, isto 6, o desenvolvimento mesmo do relato. A partir deste ultimo ponto de vista divide o evangelho em trés segdes: 1. A abertura do relato (1,1—4,17). 2. O desenvolvimento (4,18-25,46). 3. O desfecho (26,1-28,20). ‘As segdes A e A’ da estrutura correspondem a colocagiio em cena e a reso- lugao da trama narrativa, enquanto entre B e B’ discorre o desenvolvimento. O padrao estrutural, as formas, esto a servigo do relato, a mensagem ou a trama. 15. The Structure of the Gospel of Matthew as Narrative em TynB 34 (1983) 61-90. Foram dadas muitas interpretages & disposigdo de temas centrais de Mateus. Cf. A. Di Marco, Der Chiasmus in der Bibel, 3"Teil: LB 39 (1976) 37-58. Hé os que observam no capitulo 11 0 centro do quiasmo: H. B. Green, The Structure of St. Matthew Gospel (Studia Evangelica IV, Texte und Untersuchungen 102) (Berlim 1968) 47-59. Questdes abertas: Estrutura do evangetho 217 O que pensar dessa estrutura em torno dos cinco discursos? Fundamenta-se em dados literarios muito claros; sem ditvida, é preciso té-los em consideragao no momento de compreender a construgao do Evangelho de Mateus. Observei que enquanto Bacon relaciona cada discurso com a segiio narrativa precedente, outros autores vinculam com o que segue. Pudemos constatar que a inclusao de 4,23 e 9,35 estabelece com clareza relagao preferencial do Sermao da Montanha (5-7) com 0 relato seguinte dos capitulos 8 e 9. Mas todo esse conjunto (5-9) esta intima- mente relacionado com o que se segue (10-12), como também realgamos. Quer dizér, no momento de descobrir a construgao dos evangelhos é preciso atuar com flexibilidade, sem impor estruturas demasiadamente rigidas. A formula estereoti- pada (7,28; 11,1; 13,53; 19,1; 26,1) — como ja observamos — tem um carater ndo- conclusivo, mas de transigdo, isto é, ndo é uma ruptura, mas um meio de inserir 0 discurso na trama narrativa vinculando-a com 0 que segue, uma vez que cada um deles esta plenamente conectado com o anterior. ‘A dificuldade maior contra esta estrutura, tal como foi apresentada, € que nao recolhe o fio da trama narrativa. A obsesso por querer descobrir uma estru- tura literdria perfeita, pode fazer esquecer-se de que o Evangelho de Mateus apresenta uma narraco, que confere a seu evangelho coeréncia, desenvolvimen- to e movimento interno, nao produzido por simetria ou estrutura. 3. Estrutura fundamentada nas formulas de 1,1; 4,17 e 16,21 Alguns autores do século passado jé hayiam observado a importincia da expressio de 4,17 ¢ 16,21: “a partir desse momento comegou Jesus....” (apo tote erxato ho Jesus...). A possibilidade de que era chave para entender a estrutura do evangelho foi sugerida por N. B. Stonehouse'* e desenvolvida num artigo por E. Krentz.'? Mas foi J. D. Kingsbury, o autor mais prolifico atualmente sobre Mateus, quem mais promoveu essa opinido.'* Um diseipulo seu, D. R. Bauer, confirmou- a. partir de estudo dos recursos literarios presentes nesse evangelho."? Metodologicamente, Kingsbury se fixa na forma final do evangelho e nao nas trocas editoriais realizadas sobre suas fontes. Como é dbvio, reconhece a existéncia dos cinco discursos, mas nao Ihes atribui um papel determinante na estrutura do evangelho. A chave esté nas formulas de 4,17 € 16,21, que so 16. The Witness of Matthew and Mark to Christ (Londres 1944) 129-131. Para F. Neirynck, ‘Apo tote érkhato ‘and the Structure of Matthew em ETL 64 (1988) 21. © primeiro autor que propos esta forma de dividir 0 evangelho foi T. Keim, The History of Jesus of Nazara (Londres 1876) 71-72 (0 original, em alemao, foi publicado em 1873). 17. The Extent of Matthew's Prologue em JBL 83 (1964) 409-414, 18. Cf. a obra citada na nota 5. A sua obra posterior, Matthew as Story Filadélfia 1986), parte da mesma idéia ¢ a confirma a partir de um estudo da narratividade do evangelho, nesta se centraliza ‘mais na trama do que na estrutura. 19. Cf. a obra citada na nota 5. 218 Dimensdo literdria “superscripciones”, a partir das quais comegam segdes novas e supdem-se peri- odos, também novos, no desenvolvimento da narragaio. Como complemento, é preciso perceber no 1,1, que é uma “superscripcion” para 1,1-4,16. De modo que Kingsbury propée dividir a obra de Mateus em trés grandes partes: 1, 1,1-4,16: A pessoa de Jesus Messias 2. 4,17-16,20: A proclamagao de Jesus Messias 3. 16,21—28,20: O sofrimento, morte ¢ ressurrei¢ado de Jesus Messias. A primeira segdo apresenta a pessoa de Jesus e culmina com a proclamagiio do Filho de Deus no batismo (3,17). A segunda se¢o esta balizada por trés su- marios (4,23-25-9,35; 11,1) e permeada por uma progressao logica, que culmina na confissaio de Pedro em 16,13-20. A terceira segao esta balizada por trés anin- cios da paixao (16,21; 17,22-23; 20,17-19) e culmina com a paixao — morte e, especialmente, com o mandato final de 28,16-20. Essa estrutura sublinha o aspecto narrativo do evangelho e coloca em realce o desenvolvimento do relato. Conseqiientemente, considera que, a par- tir do ponto de vista teolégico, o eixo do evangelho é cristolégico; mas, con- cretamente, uma cristologia alicergada em Jesus como 0 Filho de Deus (3,17; 16,16; 27,40.54; 28,19). E uma proposta para compreender o evangelho de Mateus que tem muita acolhida na atualidade. Todas as estruturas mencionadas possuem uma base objetiva e tém seus méritos, evidentemente algumas mais que outras, cada qual proporcionando uma chave de leitura, mas nenhuma esgotando todas as perspectivas do evangelho. Na medida em que pretendem apresentar a estrutura da obra, so criticdveis, porque deixam sempre aspectos na penumbra: “Na busca da estrutura do Evangetho de Mateus foram propostos diversos e alternativos modelos de composico, e nenhum deles foi capaz de impor-se claramente como sendo o principio que Mateus adotou conscientemente para a organizagiio do seu material. Quanto mais claborada e simétrica é a estrutura apresentada, maior € dificuldade para explicar todo 0 material.” Numa obra unitaria e coerente como Mateus, é normal que se possam esta- belecer numerosas relagées internas entre seus textos. Por isso mesmo, requer-se muito cuidado para nao transformar determinada rede de relagdes como sendo a estrutura que explique todo o conjunto. Uma obra narrativa nunca é plenamente sistematica, Uma trama narrativa nao se capta apenas a base de indicios literari os e de formas retéricas; e se se fala de estrutura, ter-se-4 de entendé-la de forma muito flexivel. 20. R. T. France, op. cit., 153. Orientagdes para o trabalho pessoal 219 & um grande mérito de Kingsbury a insisténcia na narratividade de Mateus e seu estudo com a técnica literaria pertinente. Mas ¢ exagerada a importancia dada a 4,17 e 16,21 para conhecer a trama. Particularmente, muitos autores realgaram que literariamente nao se justifica interromper 0 texto em 16,21, como se nesse lugar comecasse uma nova etapa do relato. 16,13-28 é uma pericope unitaria:”' ha relagdes objetivas ¢ claros contrastes entre a confissao de Pedro no v. 16 e a sua tergiversagao no v. 22, entre a afirmagao positiva de Jesus sobre Pedro nos vy. 17-19 e sua afirmagao ne- gativa em 22-23. “Uma divisdo do evangelho que nfo permite que essa se- Gao seja lida como uma seqiiéncia continua é certo que nao faz justiga ao objetivo dramatico de Mateus.” ‘A interpretagio narrativa e cristolégica de Kingsbury destaca algo muito importante, mas nao faz justiga a toda complexidade do evangelho. De fato, esse autor e a obra monografica de Bauer no dao suficiente importancia aos discur- sos e, conseqiientemente, tampouco a eclesiologia. ‘© melhor no momento do estudo do evangelho é conhecer as propostas de estrutura fundamentais e realizar uma integragdo de suas melhores chaves. Ter pre- sente os dados literarios mais claros (discursos, geografia, vinculagées literarias) ¢ relacionar os diversos fios ideolégicos/teolégicos que percorrem pela trama (narra- do) e por sua interpretacao (discursos e transparéncia eclesial da narragao). VI. ORIENTAGOES PARA O TRABALHO PESSOAL 1. Propde-se a busca das fontes que Mateus utilizou nos capitulos 8 9. & um trabalho similar ao que foi realizado em II,1 para o Sermao da Montanha. Trata-se de observar como usa as suas fontes ¢ como as constréi. —Procurar a procedéncia dos materiais de Mateus 8,1-9,34. — Marcos e Lucas, no material que Ihes é comum, seguem quase exatamente a mesma ordem. Podemos pensar que Lucas segue a ordem de Marcos. Em Marcos detectamos trés blocos: jornada de Cafarnaum (1,21-39), controvérsias (2,1-3,6), série de milagres (4,35~5,43). Onde estio estes blocos em Lucas? Vislumbra-se, também, em Mateus a preexisténcia desses blocos? Mateus respeita a ordem de suas fontes? — Em Mateus 8-9 algum(ns) milagre(s) cuja presenga surpreende, especialmente, levando em consideragiio os paralelos de Marcos ¢ Lucas. Quais sdo e que explicagdio se pode dar de sua presenga? Sera que existe no inicio do capitulo 11 de Mateus um texto que possa ser chave para a interpretagdio dos milagres de 8-9? 21. R. Aguirre, Pedro en el evangelio de Mateo na obra coletiva R. Aguirre (ed.), Pedro en la Iglesia primitiva (Estella 1991) 43-59. 22. R.T. France, op. cit. 15

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