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Unidade 1

As raízes
do fenômeno profético
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SUMÁRIO

Unidade 1. As raízes do fenômeno profético

Introdução: Delimitação de nosso estudo


Uma observação inicial imprescindível

Tema 1 — Origem antropológica e bíblica


1. O adivinho e o profeta
1.1. Técnicas de adivinhação
a) Adivinhação indutiva
b) Adivinhação intuitiva
2. Terminologia bíblica dos mediadores
2.1. O anjo do Senhor
2.2. O sacerdote
2.3. Os mediadores proféticos (vidente, visionário, homem de Deus, profeta)
a) Vidente (ro'eh)
b) Visionário (hozeh)
c) Homem de Deus ('îs 'elohîm)
d) Profeta (nabî')
3. Os meios de comunicação
3.1. Visões
3.2. Palavras

Tema 2 — A experiência profética: Deus e o povo


1. Êxtase, possessão, fenômenos paranormais
2. Vocação e crise
a) Vocação
b) Crise
3. O profeta e a sociedade
a) O profeta é herdeiro de sua sociedade
b) O profeta conta com um grupo que o apoia
c) O profeta vive relacionamentos polêmicos

AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 1


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Introdução: Delimitação de nosso estudo

A Bíblia Judaica está dividida em três partes: Lei, Profetas e Escritos (em hebraico Torá, Nebiim e
Ketubim). A Lei contém os cinco primeiros livros da Bíblia: o Pentateuco. A parte denominada
"Profetas" está dividida, por sua vez, em outras duas partes: "profetas anteriores" e "profetas
posteriores". Todos esses livros levam o nome de uma pessoa, exceto o dos Juízes e o dos Reis.
Entre os profetas posteriores, os judeus distinguem os profetas maiores e os doze profetas
menores.

Torá Gn Gênesis
(Lei) Ex Êxodo
Lv Levítico
Nm Números
Dt Deuteronômio
Nebiim Anteriores Jos Josué
(Profetas) Jz Juízes
Sa 1º Samuel / 2º Samuel
Re 1º Reis / 2º Reis

Posteriores Maiores Is Isaías


Jr Jeremias
Ez Ezequiel*

Menores Os Oseias
Jl Joel
Am Amós
Ab Abdias
Jo Jonas
Mi Miqueias
Na Naum
Ha Habacuc
So Sofonias
Ag Ageu
Za Zacarias
Ml Malaquias
Ketubim Sal, Jb, Pr, Rt, Ct, Qo, Lm, Est, *Daniel não é propriamente um
(Escritos) Dn, Esd, Ne, Cr livro profético, mas apocalíptico.

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Nosso estudo é especialmente orientado aos livros dos profetas posteriores, apesar de nos
referirmos frequentemente à profecia antiga, principalmente ao tratarmos da origem e da
natureza do profetismo.

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Uma observação inicial imprescindível

Acabamos de situar a literatura profética de Israel no cânone da Bíblia Hebraica; diante isso, o tema
do profetismo não é um tema marginal, acessório ou opcional quando queremos nos aprofundar na
mensagem bíblica. E ocorre que a Bíblia toda é profética. Neste estudo pretendemos mostrar que,
sob o ponto de vista "canônico", a Bíblia inteira é profética porque a Torá é profética.
O profeta por excelência é Moisés e toda a escritura, de certo modo, faz referência à experiência
fundamental de Moisés.
Como já sabemos pela introdução ao Antigo Testamento, a Bíblia Hebraica tem três partes: a Torá
(ou Lei, ou Pentateuco), os Nebiim (ou profetas) e os Ketubim (ou escritos). Conferir quadro da
página anterior).
Dessas três partes, a mais importante é a Torá. Por quê?
- Porque esses 5 livros têm um caráter normativo que os demais não têm.
- Porque, segundo a tradição, a Torá possui a marca da personalidade excepcional de Moisés…
quer dizer, que a Torá é única porque Moisés ocupa um lugar único na história da revelação de
Deus a Israel. Observe como termina a Torá:

Dt 34, 10-12: E em Israel nunca mais surgiu um profeta como Moisés — a quem o SENHOR
conhecia face a face —, seja por todos os sinais e por todos os prodígios que o SENHOR o
mandou realizar na terra do Egito, contra Faraó, contra todos os seus servidores e toda a sua
terra, seja pela mão poderosa e por todos os feitos grandiosos e terríveis que Moisés realizou
aos olhos de toda Israel!

- Moisés é o maior de todos os profetas… por isso a lei de Moisés é superior a todas as demais
palavras; seu ensinamento é incomparável, insuperável e sempre será válido. Por isso, ele
precede aos profetas anteriores (Jos, Jt, Sa, Re) e posteriores (Is-Ml).
- A superioridade de Moisés provém da superioridade de sua relação com YHWH.
- O Êxodo é o fato fundamental da história de Israel… a fundação de Israel provém de Moisés
(não de Davi ou Salomão), quer dizer, Israel é mais antiga do que a monarquia e do que a
conquista da terra.
- É verdade que, como observaram alguns estudiosos1, o Pentateuco apresenta-se como uma
"biografia de Moisés" que começa em Ex 2 e termina com sua morte em Dt 34… uma vida de
Moisés a serviço de YHWH e do povo de Israel, da qual o livro do Gn é um grande prólogo.
- Essa reunião de livros é mais importante que as outras… porque contém os elementos essenciais
da fé de Israel; os únicos elementos absolutamente essenciais para definir a identidade de Israel:
os patriarcas e Moisés:
 Israel é um povo de irmãos que descendem dos patriarcas

1
J.L. SKA, Introducción a la lectura del Pentateuco. Claves para la interpretación de los cinco primeros libros de la
Biblia, Estella (Navarra) 2001.

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 Israel é o povo que viveu a experiência do Êxodo sob o comando de Moisés (aliança)
- Os textos que delimitam as três partes principais da Bíblia Hebraica realçam essa importância
da Torá, especialmente em sua dimensão profética.
O segundo bloco da Bíblia Hebraica é composto pelos profetas (anteriores e posteriores) e
começa assim:

Jos 1, 1-8: Depois da morte de Moisés, servo do SENHOR, o SENHOR falou a Josué, filho de Nun,
ministro de Moisés, e lhe disse: "Moisés, meu servo, morreu; agora, levanta-te! Atravessa este
Jordão, tu e todo este povo, para a terra que lhes dou (aos filhos de Israel). Todo lugar que a planta
dos vossos pés pisar eu vo-lo dou, como disse a Moisés. Desde o deserto e o Líbano até o grande rio,
o Eufrates (toda a terra dos heteus), e até o Grande Mar, no poente do sol, será o vosso território.
Ninguém te poderá resistir durante toda a tua vida; assim como estive com Moisés, estarei contigo:
jamais te abandonarei, nem te desampararei. Sê firme e corajoso, porque farás este povo herdar a
terra que a seus pais jurei dar-lhes. Tão somente sê de fato firme e corajoso, para teres o cuidado
de agir segundo toda a Lei que te ordenou Moisés, meu servo. Não te apartes dela, nem para a
direita nem para a esquerda, para que triunfes aonde quer que vás. Que o livro desta Lei esteja
sempre nos teus lábios: medita nele dia e noite, para que tenhas o cuidado de agir de acordo com
tudo que está escrito nele. Assim serás bem sucedido em teu caminho e alcançarás êxito.

- Josué é o sucessor de Moisés (deverá conquistar e distribuir a terra).


- Há uma importante sequência entre a história de Josué e a de Moisés… YHWH estará com ele
como estivera com Moisés, mas o início e o fundamento é Moisés, não Josué.
- Moisés é o "servo de YHWH" e Josué é o "auxiliar de Moisés".
- O sucesso de Josué depende de sua fidelidade à Lei de Moisés (escrita num livro)…, ponto-chave
de qualquer iniciativa na história de Israel.

Os profetas terminam com o livro de Malaquias: Mal 3, 22-24

Mal 3, 22-24: Lembrai-vos da Lei de Moisés, meu servo, a quem eu prescrevi, no Horeb, para toda
Israel, estatutos e normas. Eis que vos enviarei Elias, o profeta, antes que chegue o Dia do SENHOR,
dia grande e terrível. Ele fará retornar o coração dos pais para os filhos e o coração dos filhos para
os pais, para que eu não venha e fira a terra com maldição.

- A leitura dos profetas será uma forma de "recordar " a Lei de Moisés… a profecia atualiza a Lei e a conserva
viva na memória do povo.
- A Lei de Moisés tem origem em Deus.
- Essa Lei tem seu foco sobretudo no Dt: YHWH aparece no alto do Horeb (não no Sinai).
- Entre os profetas, apenas Elias é nomeado, o que melhor se parece com Moisés: subiu o Horeb (1Re 19) e
ouviu a Deus de dentro da caverna (Ex 34)… do mesmo modo é repetido o tema dos "quarenta dias e
quarenta noites" em suas histórias.

O terceiro bloco é composto de um conjunto de livros chamados os escritos. O primeiro é o livro dos Salmos;
o último, o segundo livro das Crônicas.

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Sal 1, 1-3: Feliz o homem que não segue o conselho dos ímpios, não para no caminho dos pecadores,
nem se assenta na roda dos zombadores. Pelo contrário: seu prazer está na Torá do SENHOR, e medita
sua Torá dia e noite. Ele é como árvore plantada junto da água corrente: dá fruto no tempo devido e
suas folhas nunca murcham; tudo o que ele faz é bem sucedido.

Os escritos começam com uma alusão explícita à Torá: o critério que diferencia os justos dos injustos é a
meditação da Lei/Torá… o salmo aplica ao indivíduo o que os profetas tinham aplicado ao povo.

O salmo 1, como introdução dos salmos e dos escritos, convida a ler os salmos e os escritos como
uma meditação da Lei de YHWH (a Torá)…
… e no final… A conclusão dos escritos e da Bíblia oferece chaves para entender toda a Bíblia.

2Cr 36, 22-23: E no primeiro ano de Ciro, rei da Pérsia, para cumprir a palavra do SENHOR
pronunciada por Jeremias, o SENHOR suscitou o espírito de Ciro, rei da Pérsia, que mandou
proclamar pela palavra e por escrito, em todo o seu reino o seguinte: "Assim fala Ciro, rei da Pérsia:
"O SENHOR, o Deus dos céus, entregou-me todos os reinos da terra; ele me encarregou de construir
para ele um Templo em Jerusalém, na terra de Judá. Todo aquele que, dentre vós, pertence a seu
povo, que seu Deus esteja com ele e que se dirija para lá".

- Não fala de Moisés e da Lei, mas de Jeremias e Jerusalém…


- O que encontramos no santuário, no recinto central do templo de Jerusalém? A arca da Aliança
com as tábuas da Lei… A Lei está no coração do templo… e irá converter-se no coração da
comunidade do pós-exílio. A Bíblia termina com a chamada a todos os israelitas para voltarem a
Jerusalém e reconstruir o templo… um final aberto que pede uma resposta que cada leitor deverá
dar com sua própria vida… a última palavra da Bíblia Hebraica tem uma estrutura aberta ao
futuro, é um comando, uma forma imperativa, não indicativa.

Portanto, vimos que toda a Bíblia está orientada para a Torá — profética — e para a experiência
primordial do povo: a libertação do Egito. Moisés é o profeta por excelência… de forma que a
tradição bíblica o apresenta como origem de nossa compreensão do tema do profetismo 2 e dos
profetas bíblicos: a experiência da escravidão para a liberdade e para a descoberta do Deus que
a torna possível.

2
Walter BRUEGGEMANN, La imaginación profética, Santander 1986, 9-30.

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Tema 1 — Origem antropológica e bíblica

1. O adivinho e o profeta

Na acepção habitual, o profeta é o homem que prevê, que prediz. Colocamos toda a ênfase
no prefixo "pre"; o ver e o dizer nos parecem secundários… Ora, a profecia bíblica não é
antecipadora a não ser de um modo muito secundário. Sua evidência não está
necessariamente ligada ao futuro; tem seu valor próprio, instantâneo. Sua fala não é uma
predição; ocorre imediatamente no momento da palavra. A visão e a palavra são
certamente uma descoberta; mas o que manifestam não é o futuro, mas o absoluto… entre
todas as tentativas, reais ou ilusórias, históricas ou míticas, de relacionar o divino com o
humano, a experiência profética tem seu lugar próprio.3

O profetismo bíblico tem algo em comum com alguns fenômenos que os povos vizinhos de Israel
conhecem pelo menos em algumas de suas formas mais exóticas… entretanto, podemos fazer
uma leitura do profetismo clássico que ficará distante dessas formas.
Há quem identifique nos profetas de muitas culturas uma dimensão extática, relacionada com o
reconhecimento do Outro e uma dimensão salvífica, quer dizer, o homem religioso em sua
relação com a divindade procura por sua salvação4.

O ponto de partida de todo fenômeno profético — na visão da fenomenologia da religião — é a


constatação da precariedade da existência humana (problemas insuperáveis, males, dificuldades…)
e o impulso religioso espontâneo para ir em busca de uma resposta na divindade. A experiência
humana do enigma sobre o presente e a preocupação com o futuro.

No mundo pré-científico, a maioria das culturas tinha a convicção de que os deuses e os espíritos
estavam dispostos a revelar o futuro e a resolver os problemas da vida. Surgiu assim uma atividade
misteriosa e antiga: a arte de adivinhar o futuro; desde o começo vinculada à magia (que pretende
não apenas conhecer o futuro, mas transformá-lo). Magos e adivinhos eram a mesma pessoa na
antiguidade. Do mesmo modo o profeta bíblico, como veremos, continuará a conservar
características mágicas.

Podemos encontrar na Bíblia (reflexo da humanidade) múltiplas técnicas de adivinhação, entre as


quais algumas praticadas em Israel e outras descritas como práticas dos povos vizinhos.

3
A. NEHER, La esencia del profetismo, Salamanca 1975, 9.
4
J. MARTIN VELASCO, Introducción a la fenomenología de la religión, Madrid 1978, 141-152.

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1.1. Técnicas de adivinhação5

Os antigos dispunham de diversas técnicas para conhecer a vontade das divindades. A palavra
portuguesa adivinhação se origina da palavra latina divinatio, que traduz a palavra grega mantiké;
desta raiz grega derivam: oniromancia, quiromancia, necromancia…

a) Adivinhação indutiva

 Observação da natureza

A observação dos astros e dos fenômenos atmosféricos estão entre as técnicas mais difundidas
em todas as culturas. Seu fundamento é uma teoria que vê o céu e a terra em estreito
relacionamento. A Bíblia fala ironicamente dos astrólogos da Babilônia:

Is 47, 13: Estás cansada de tuas inúmeras consultas; apresentem-se, pois, e te salvem aqueles que
praticam a astrologia, que observam as estrelas, que te dão a conhecer mês após mês o que há de
sobrevir-te.

Com referência aos fenômenos atmosféricos, há culturas em que é dada grande importância à cor das
nuvens, ao número de trovões, à trajetória das estrelas "cadentes", assim como ao som do vento.
Encontramos ainda algo similar na Bíblia quando Davi consulta o Senhor antes de um combate contra
os filisteus:

2Sa 5, 24: Quando ouvires um ruído de passos no cimo das amoreiras, então apressa-te: é o SENHOR
que avança à tua frente para aniquilar o exército filisteu.

Há uma região em Helópia, rica em produção de grãos, com belos campos, rica em zonas de
pastagens, com touros de pernas curtas. Lá vivem homens ricos em ovelhas e vacas, em grande
número, infinitas raças de homens mortais. Lá, em suas fronteiras, foi fundada uma cidade,
Dodoma. Zeus encantou-se com ela e quis que seu oráculo fosse honrado pelos homens e
morasse no tronco de um carvalho. É dele que os mortais obtêm todos os seus oráculos; tanto
os que vêm para fazer pedidos ao deus imortal como os que lhe oferecem presentes, a todos
chegam bons vaticínios. (Hesíodo).

De acordo com alguns autores, o carvalho de Moré poderia ter uma função semelhante na Bíblia:

5
O tema é tratado extensivamente por J. L. SICRE, Profetismo en Israel, Estella 1996.

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Gn 12, 6: Abraão atravessou a terra até o lugar santo de Siquém, no carvalho de Moré. Nesse tempo
os cananeus habitavam nesa terra.

Dt 11, 30: Estes montes não estão no outro lado do Jordão, a caminho do poente, na terra dos
cananeus que habitam na Arabá, diante de Guilgal, perto do carvalhal de Moré?

identificado por alguns com o carvalho dos adivinhos:

Jz 9, 37: Gaal falou outra vez, e disse: "Eis que descem homens do lado mais alto da Terra, e outro
grupo se aproxima vindo pelo caminho do carvalho dos adivinhos".

e outras árvores são relacionadas com atividades semelhantes:

Jz 4, 4-5: Naquele tempo, Débora, uma profetisa, mulher de Lapidot, julgava em Israel. Ela tinha a
sua sede à sombra da palmeira de Débora, entre Ramá e Betel, na montanha de Efraim, e os filhos de
Israel se dirigiam a ela para obter justiça.

Observamos isso com clareza na denúncia de Oseias:

Os 4, 12: Meu povo consulta o seu ídolo de madeira, e o seu bastão faz-lhe revelações; porque um
espírito de prostituição os seduziu, eles se prostituíram, afastando-se de seu Deus.

 Observação dos animais

O comportamento e os deslocamentos dos animais muitas vezes são usados com finalidades de
predição. No 1º livro de Samuel, capítulo 6, encontramos um episódio curioso. Quando os filisteus
se apropriam da arca e não sabem o que fazer com ela, a vontade divina incide sobre o
comportamento das vacas:

1Sa 6, 7-9: Agora, pois, tomai e preparai um carro novo e duas vacas com cria, sobre as quais não
tenha ainda sido posta canga; atrelai as vacas ao carro e mandai os bezerros de volta ao curral, longe
delas. Tomai, então, a Arca do SENHOR e colocai-a no carro. Quanto aos objetos de ouro que lhe
pagareis como reparação pela culpa, colocá-los-eis num cofre, ao lado da Arca, e a deixareis partir.
Notai: se tomar o caminho da sua terra, por Bet-Sames, foi ele quem nos causou este grande mal.
Mas, se não, então saberemos que não foi a sua mão que nos atingiu, e o que nos aconteceu foi
acidental. […] As vacas tomaram diretamente o caminho de Bet-Sames e mantiveram-no, mugindo,
sem se desviar nem para a direita nem para a esquerda. Os príncipes dos filisteus as seguiram até aos
confins de Bet-Sames.

Além deste, não encontramos comportamentos semelhantes na Bíblia.

 Observação das oferendas dos sacrifícios

É possível que haja na Bíblia uma menção a um método de adivinhação frequente em outros povos:
o estudo das vísceras das vítimas dos sacrifícios. Há uma menção de hepatoscopia (observação do
fígado) como costume na Babilônia: diante da dúvida de escolher um caminho ou outro em sua
expedição bélica, Ezequiel observa Nabucodonosor servindo-se de várias técnicas:
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Ez 21, 26-27: O rei da Babilônia se deteve na encruzilhada, no começo dos dois caminhos, a fim de
recorrer à sorte. Agitou as flechas, consultou os ídolos domésticos e observou o fígado da vítima. Em
sua mão direita está a sorte de Jerusalém. Deverá atacá-la com aríetes, dar a ordem de matar, soltar
o grito de guerra e dispor os aríetes contra as portas, levantar baluartes, construir trincheiras.

 Diversos instrumentos de adivinhação

Na antiguidade foi usada uma variedade de instrumentos para a tarefa das predições: objetos da
vida cotidiana (taças, flechas, bastões, dados etc.) e em Israel, alguns objetos misteriosos que só
conhecemos de nome: os "urím" e "tummím", "terafím" e "efod".
Na Bíblia encontramos o uso da taça na história de José. Quando os irmãos retornam para Canaã
depois de haver comprado o trigo de que precisavam, José ordena a seu servo que coloque sua
taça de prata na sacola de seu irmão menor. Mais tarde, eles são detidos no caminho e lhes
dizem:

Gn 44, 5: A taça que levais convosco não é a que serve a meu senhor para beber e também para
ler os presságios? Procedestes mal no que fizestes!'

Talvez a técnica usada por José é que era a conhecida como "hidromancia", que consiste em
enchê-la com água e colocar nela pequenas pedras e cacos de madeira ou metal e, em seguida,
observar o som ou os círculos que se formam.

A Bíblia ainda mostra o uso das flechas (constatado na Mesopotâmia num período muito antigo)
como ferramentas de predição. Talvez seja o que se sugere que Nabucodonor esteja fazendo em
Ezequiel, no capítulo 21:

Ez 21, 26: O rei da Babilônia se deteve na encruzilhada, no começo dos dois caminhos, a fim de
recorrer à sorte. Agitou as flechas, consultou os ídolos domésticos e observou o fígado de uma
vítima.

Esse trecho foi associado com o episódio narrado no segundo livro dos Reis, capítulo 13:

2Re 13, 14-19: Quando Eliseu foi atingido pela doença da qual ia morrer, Joás, rei de Israel, desceu
para visitá-lo e chorou sobre o seu rosto, dizendo: "Meu pai! meu pai! Carro e cavalaria de Israel!"
Disse-lhe Eliseu: "Vai buscar um arco e flechas"; e Joás foi buscar um arco e flechas. Eliseu disse ao
rei: "Empunha o arco"; e ele o empunhou. Eliseu pôs as mãos sobre as mãos do rei, e disse: "Abre a
janela do lado do oriente", e ele a abriu. Então Eliseu disse: "Atira"; e ele atirou. Eliseu disse: "Flecha
de vitória para o SENHOR! Flecha de vitória contra Aram! Vencerás Aram em Afec até o extermínio."
Depois disse Eliseu: "Toma as flechas"; e Joás as pegou. Eliseu disse ao rei: "Fere a terra"; e ele deu
três golpes e parou. Então o homem de Deus irritou-se contra ele e disse: "Era preciso dar cinco ou
seis golpes! Então terias derrotado Aram até o extermínio. Agora, porém, vencerás Aram três vezes
só!"

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No que se refere ao uso de bastões, encontramos o testemunho de Oseias que relata certa prática:

Os 4, 12: Meu povo consulta o seu ídolo de madeira, e o seu bastão faz-lhe revelações; porque um
espírito de prostituição os seduziu, eles se prostituíram, afastando-se de seu Deus.

Mesmo assim, não sabemos que tipo de uso poderia ser feito.

Os dados, ainda em uso atualmente, são encontrados na Bíblia quando os Israelitas querem saber
quem é o culpado de uma derrota sofrida na batalha de Hai (Jos 7, 17-18)
Jos 7, 17-18: Mandou então aproximarem-se os clãs de Judá, e o clã de Zaré foi designado pela
sorte. Fez achegar-se o clã de Zaré, homem por homem, e Zabdi foi designado pela sorte. Josué fez
aproximar-se sua casa homem por homem, e Acã, filho de Carmi, filho de Zabdi, filho de Zaré, da
tribo de Judá, foi designado pela sorte.
]
ou quando querem escolher um rei entre todas as tribos (1Sa 10, 19-21)

1Sa 10, 19-21: Vós hoje, no entanto, rejeitastes o vosso Deus, aquele que vos salvou de todos os vossos
males e de todas as angústias que vos afligiam, e dissestes: 'Não! Constitui sobre nós um rei!' Agora,
pois, comparecei diante do SENHOR por tribos e por clãs". Samuel mandou que se apresentassem
todas as tribos de Israel e, tirada a sorte, foi escolhida a de Benjamim. Mandou que a tribo de
Benjamim se aproximasse, dividida por clãs, e o clã de Metri foi sorteado. Mandou então que se
aproximasse o clã de Metri, homem por homem. E Saul, filho de Cis, foi apontado no sorteio.
Procuraram-no, mas não conseguiram encontrá-lo.

Por sorteio é distribuída a terra conquistada (Jos 14, 2; 18, 1-21. 40)

Jos 14, 2: Foi por sorteio que receberam sua herança, conforme o SENHOR havia ordenado por
intermédio de Moisés, para as nove e meia tribos.

Os instrumentos especificamente israelitas merecem uma menção à parte. Seus nomes, transcritos
do hebraico, já indicam tratar-se de realidades muito desconhecidas.

O terafim, objeto misterioso usado para a arte da adivinhação. O livro de Ezequiel, capítulo 21 afirma
que Nabucodonosor o consultou antes de atacar Jerusalém:

Ez 21, 26: Com efeito, o rei da Babilônia se deteve na encruzilhada, no começo dos dois caminhos, a
fim de recorrer à sorte. Agitou as flechas, consultou os terafins (muitas traduções dizem "os ídolos
domésticos") e observou o fígado da vítima.

Parece que era hábito pedir chuva, mesmo sendo considerada uma prática pecaminosa pedi-la ao
deus Baal. (Zc 10, 1-2):

Zc 10, 1-2: Pedi ao SENHOR a chuva no tempo das chuvas tardias. É o SENHOR quem faz as
tempestades. Ele lhes dará o aguaceiro, a cada um a erva no campo. Porque os terafim predizem a
falsidade e os adivinhos veem mentiras, os sonhos falam coisas sem fundamento e consolam em vão.
Por isso eles partiram como ovelhas que sofrem porque não têm pastor.
AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 11
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No primeiro livro de Samuel, capítulo 15, o terafim aparece paralelamente ao pecado de


adivinhação:

1Sa 15, 23: Pecado de feitiçaria, eis o que é a rebelião, um crime de terafim, eis o que é a
presunção! Porque rejeitaste a palavra do SENHOR, ele te rejeitou: não és mais rei!"

Na verdade, não sabemos exatamente o que significa o terafim nem como era feita a consulta.
Sabemos alguns detalhes do modo de chamar: quando Raquel vai com Jacó para Canaã, ela rouba
o terafim de seu pai (G 31, 19. 34-35).

No livro dos Juízes, um tal Micá fez para si um efod e um terafim, consagrou um filho dele como
sacerdote e reservou para si uma espécie de santuário privado (Jz 17, 1-5).

Do mesmo modo, Mical, a mulher de Davi, para dissimular a fuga de Davi diante dos soldados de
Saul,

1Sa 19, 13: Mical apanhou o terafim, deitou-o na cama, pôs-lhe na cabeça uma pele de cabra e
estendeu sobre ele um manto.

Uma forma aceitável de combinar estes últimos dados é considerar o terafim como uma espécie de
deus familiar, como dizem algumas traduções "ídolo doméstico", pequenas estátuas que eram
pedidas pelos oráculos (Em relação aos urim e tummim, conferir adiante: Os Oráculos).
O efod é também um objeto misterioso; com esse nome foram designadas diversas realidades:
poderia ser uma espécie de vestimenta destinada ao ídolo que Israel teria conservado como
elemento de adivinhação, ao adotar o culto sem imagens (1Sa 23, 10; 30, 8; Os 3, 4).

b) Adivinhação intuitiva

A adivinhação intuitiva comporta três formas principais: a interpretação dos sonhos, a evocação
dos mortos e a comunicação da divindade mediante o oráculo.

 Oniromancia

Desde tempos muito antigos, pensava-se que os sonhos, de algum modo, continham os sinais
dos deuses (por exemplo, no conhecido poema de Gilgamesh, Enkidu fica informado da iminência
de sua morte através de um sonho).

Por isso, a maioria dos reis reserva uma parte dos recursos nacionais para manter um grupo de
adivinhos, magos e astrólogos com o dever de interpretar corretamente seus sonhos.

AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 12


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No Antigo Testamento, encontramos muitos textos que se referem a isso. O primeiro caso é o
sonho de Abimelec, o rei a quem Deus revela a qualidade de seu relacionamento com Sara, a
esposa de Abraão, através de um sonho:

Gn 20, 3: Mas Deus visitou Abimelec em sonho durante a noite, e lhe disse: "Vais morrer por causa da
mulher que tomaste, pois ela é uma mulher casada".

Um sonho levou Jacó a fundar o santuário de Betel (Gn 28, 11-16) e sonhos de diversos personagens
encontram-se na história de José (Gn 37; 40; 41). O chamado e o fortalecimento do juíz Gedeão
ocorrem devido a um curioso acontecimento de sonho e interpretação (Jz 7, 9-15).

Mas, em outras oportunidades, como no livro de Daniel (Dn 2; 4; 7), os sonhos têm funções ainda
mais amplas: revelar todo o curso da história. Mas nem todas as pessoas são capazes de interpretar
os sonhos; no caso de Daniel ou no de José, é necessária uma sabedoria especial dada por Deus. O
caso mais emblemático do Antigo Testamento é o sonho de Salomão no início de seu reinado:

1Re 3, 5: Em Gabaon, o SENHOR apareceu em sonho a Salomão durante a noite. Deus lhe disse: "Pede
o que te devo dar."

Finalmente, os sonhos, considerados às vezes como um meio eficaz de revelação divina, suscitam
outras vezes muitas reservas e, inclusive, grandes críticas; os sonhos e revelações são considerados
espaços de revelação de segunda categoria:

Nm 12, 6-8: Disse o SENHOR: "Ouvi, pois, as minhas palavras: Se há entre vós um profeta, é em visão
que me revelo a ele, é em sonho que lhe falo. Assim não se dá com o meu servo Moisés, a quem toda
a minha casa está confiada. Falo-lhe face a face, claramente e não em enigmas, e ele vê a forma do
SENHOR. Por que ousastes falar contra meu servo Moisés?"

De outro lado, os sonhos podem sempre ser manipulados, como denuncia Jeremias:

Jr 23, 25: Eu ouvi o que dizem os profetas que profetizam mentiras em meu nome, dizendo: "Eu tive
um sonho! Eu tive um sonho!"

Jr 29, 8: Porque assim disse o SENHOR dos exércitos, Deus de Israel: Não vos deixeis enganar por
vossos profetas que estão no meio de vós, nem por vossos adivinhos, e não escuteis os sonhos que
vós sonhais.

 Necromancia

A evocação dos mortos para obter deles informação é um fenômeno relativamente amplo no
mundo antigo, testemunhado nos períodos dos impérios babilônico, persa, grego e romano, entre
outros. Parece ainda estar presente entre os próprios israelitas:

1Sa 28, 3-6: Samuel tinha morrido, e toda Israel o tinha lamentado, e o sepultaram em Ramá, sua
cidade. Saul havia expulsado da terra os necromantes e os adivinhos. Entretanto, os filisteus se
congregaram e vieram acampar em Sunam. Saul reuniu toda Israel e acamparam em Gelboé. Quando
AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 13
Plano de Formação Bíblica Livros proféticos

Saul viu o exército dos filisteus acampado, encheu-se de medo e o seu coração se perturbou. Saul
consultou o SENHOR, mas o SENHOR não lhe respondeu, nem por sonho, nem pela sorte, nem pelos
profetas.

Is 8, 19: Se vos disserem: "Ide consultar os espíritos e os adivinhos, cochichadores e balbuciadores",


não consultará o povo o seu Deus? Por acaso, consultará aos mortos pelos vivos?

Um dos exemplos bíblicos mais famosos é o episódio em que Saul encontra-se com a vidente de
Endor para evocar o espírito de Samuel antes da guerra iminente com os filisteus e a ausência de
resposta da parte de Deus pelos sonhos, o urim e os profetas. Surpreendentemente ele recorre à
necromancia que ele próprio havia proibido (um texto muito intrigante que pode ser lido no 1º livro
de Samuel, capítulo 28).

 Os oráculos

Em Israel (e também na Grécia) a forma mais comum para ir em busca do conhecimento da


vontade de Deus é a consulta do oráculo, uma palavra muitas vezes enigmática que substitui os
sinais e os prodígios.

Essa técnica é usada:

- Para escolher um rei em Israel: Saul (1Sa 8), Davi (1Sa 16), ou para introduzir modificações
relacionadas com a dinastia.

- Em caso de guerra no período da monarquia é preciso saber se Deus está ou não de acordo
com a batalha (no tempo de Moisés, de Josué ou dos Juízes não era necessário fazer
consultas porque Deus falava diretamente) e, se o rei não se recordar, o sacerdote fará
com que se lembre como no caso de Saul (1Sa 14, 36-46). O rei Ajab tinha a seu redor para
essas tarefas quatrocentos profetas dirigidos por Sedecias.

- Em assuntos relacionados com a saúde e a doença, não apenas se pretende saber como
evoluirá a enfermidade, mas procura-se a cura de Deus. Um caso de espontaneidade do
oráculo profético é encontrado na doença do rei Ezequias (Is 38, 1-8); o profeta Isaías se
apresenta para lhe dizer: Assim diz o SENHOR: 'Põe tua casa em ordem porque morrerás e
não viverás'. Ezequias chorava pedindo que sua vida fosse aumentada e o Senhor o curou
por intermédio do profeta.

- No caso de outras desgraças: as desgraças no mundo antigo são causadas por


determinadas falhas; o problema é saber de qual falha se trata e como pode ser
solucionada. Por isso, o oráculo torna-se necessário. Por exemplo, é preciso saber as causas
da carestia que o reino de Davi sofre durante três anos seguidos (2Sa 21, 1).
AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 14
Plano de Formação Bíblica Livros proféticos

Nós ignoramos o procedimento exato de consulta do oráculo, a busca dos termos exatos da parte
de Deus. Podemos supor que se trata sobretudo:

 da pergunta direta feita ao sacerdote ou ao profeta;


 do uso dos urim e tummim.

Em outras oportunidades, o oráculo chega sem ser solicitado e essa orientação prevalece na
profecia hebraica.

Sobre a consulta de oráculos ao efod e aos urim e tummim

Um dos textos mais significativos sobre o uso dessa técnica é o seguinte:

1Sa 14, 41-42: Saul disse então ao SENHOR, Deus de Israel: Dá clareza perfeita. Se o pecado
recai sobre mim ou sobre o meu filho Jonatas, ó SENHOR, Deus de Israel, dá Urim; se a falta
foi cometida pelo teu povo de Israel, dá Tummim". Saul e Jonatas foram apontados, e o
povo ficou livre. Saul disse: "Lançai a sorte entre mim e o meu filho Jonatas", e Jonatas foi
apontado.

Trata-se, portanto, de uma resposta de "sim" ou "não" que vai progredindo por
eliminações ou por sucessivas restrições.

1Sa 23, 9-12: Quando Davi soube que era contra ele que Saul maquinava maus propósitos,
disse ao sacerdote Abiatar: "Traze o efod." Disse Davi: "SENHOR, Deus de Israel, o teu servo
ouviu dizer que Saul se prepara para vir a Ceila e destruir a cidade por minha causa.
Porventura os cidadãos de Ceila me entregarão nas mãos dele? Porventura Saul descerá de
fato, como entendeu o teu servo? Ó SENHOR, Deus de Israel, faze-o saber a teu servo!" E o
SENHOR respondeu: "Descerá". Davi indagou: "Entregar-me-ão os notáveis de Ceila, a mim
e aos meus homens, nas mãos de Saul?" Disse o SENHOR: "Entregarão."

Às vezes, o oráculo parece negar-se a responder:

1Sa 14, 37: Saul consultou a Deus: "Descerei para perseguir os filisteus? Ou entregá-los-ás
tu nas mãos de Israel?" Mas, nesse dia, não houve resposta

Poderia ter ocorrido o caso de não sair nada da bolsa ou de saírem juntas as duas sortes.

Parece que a consulta dos urim e tummim estava confiada aos sacerdotes (Nm 27, 21; Dt
33, 8; Ez 9, 4)

AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 15


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Nm 27, 21: Ele se apresentará diante do sacerdote Eleazar, que consultará por ele segundo
o rito do urim, diante do SENHOR. Sob a sua ordem sairão e entrarão com ele todos os filhos
de Israel, toda a comunidade.

Dt 33, 8: De Levi ele disse: Dá a Levi teus urim e teus tummim ao homem santo, que puseste
à prova em Massa e com quem lutaste junto às águas de Meriba.

e, depois de Davi, nunca mais é mencionado (exceto em Esd 2, 63).

Definitivamente, muitos povos na antiguidade estavam convencidos de que os deuses podiam e


queriam comunicar-se com os homens. Do mesmo modo, nas culturas antigas e em muitas
comunidades humanas atuais encontramos a convicção de que essa comunicação se faz por meio
de algumas pessoas especiais.

Israel conhece a existência de vários mediadores nos povos da vizinhança:

[sacerdotes e adivinhos dos filisteus (1Sa 6, 2), magos, adivinhos e astrólogos entre
os babilônios (Is 44, 25; 47, 13; Ez 21, 26), e entre os egípcios (Is 19, 3)];

… e todos esses intermediários tinham características religiosas.

Mesmo em Israel, em textos que refletem épocas antigas, encontramos esse tipo de práticas porque
"o profetismo abrange todo o extenso campo de experiências humanas… desde a magia até a
mística… mas no profetismo bíblico, além das afinidades com o fenômeno geral do profetismo,
trata-se um um único e mesmo Deus, designado sempre com o mesmo nome que, desde o início
até o final, se revela ao homem e busca sua comunhão. De etapa em etapa, vai-se descrevendo na
Bíblia uma história do profetismo, cujos atores já não são mais meras figuras legendárias, mas seres
de carne e osso… indivíduos com seus nomes, suas características, suas fisionomias próprias"6.

A religião oficial de Israel em seus períodos mais avançados nega que esses intermediários sejam
mediadores válidos entre Deus e o ser humano:

Dt 18, 10-12: Que em teu meio não se encontre ninguém que faça passar pelo fogo seu filho ou sua
filha, nem que faça presságio, oráculo, adivinhação ou magia, ou que pratique encantamentos, que
interrogue espíritos ou adivinhos, ou ainda que invoque os mortos; pois quem pratica essas coisas é
abominável ao SENHOR, e é por causa dessas abominações que o SENHOR teu Deus as desalojará
diante de ti.

6
A. NEHER, La esencia del profetismo, Salamanca 1975, 11-12.
AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 16
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Embora não negue a existência de verdadeiros mediadores, o mesmo texto do Deuteronômio citado
aqui, depois de proibir essas práticas, indica a quem os israelitas deverão dirigir-se para conhecer a
vontade de Deus:

Dt 18, 13-15: Tu serás íntegro para com o SENHOR teu Deus. Eis que as nações que vais conquistar
ouvem oráculos e adivinhos. Quanto a ti, isso não te é permitido pelo SENHOR teu Deus. O SENHOR
teu Deus suscitará um profeta como eu no meio de ti, dentre os teus irmãos; ouve-o.

2. Terminologia bíblica dos mediadores

O ponto de partida do profetismo como fenômeno religioso é a comunicação de Deus. Nos relatos
que encontramos na Bíblia, o Deus de Israel se comunica constantemente com os personagens. Nós
nos acostumamos a ver nas páginas bíblicas um Deus que fala e conversa abertamente com Adão,
com Eva, com Caím, com Noé… de modo que cria em nós a sensação de um Deus que se comunica
ininterruptamente com seu povo. E é verdade, só que, de fato, nunca o veremos falando dessa
maneira com a totalidade do povo.

Nos momentos culminantes da revelação encontraremos, na melhor das hipóteses, teofanias


impressionantes como a do Sinai. YHWH comunica sua palavra a seu povo por meio de alguns
personagens… lembra-se de alguns?

À primeira vista, os principais mediadores parecem ser o sacerdote e o profeta, mas na Bíblia
encontramos outros meios que Deus usa para comunicar-se com os seres humanos: seu "anjo", o
sacerdote, o vidente, o visionário, o homem de Deus, o profeta…

2.1. O anjo do Senhor

Em numerosas ocasiões encontramos em ação um personagem chamado "anjo do Senhor" ou "anjo


de Deus". Quem é ele? Em alguns casos, aparece transmitindo uma mensagem, dando a conhecer
o futuro ou indicando o que deve ser feito no presente.

O anjo do Senhor pode transmitir mensagens muito diversificadas, mas (diferentemente dos
sacerdotes e dos profetas), ele não só transmite mensagens, mas pode ainda agir, protegendo ou
castigando a mandado de Deus. Frequentemente, o "anjo do Senhor" é um modo de colocar em
ação o próprio Deus; mas um modo de expressão que respeita a experiência mais profunda "a Deus,
ninguém viu".

- Várias vezes encontramos "anjo do Senhor" na história de Agar, Sara e Abraão:


AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 17
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Na primeira expulsão de Agar, o anjo do Senhor lhe dá uma ordem (Volta para tua senhora e
submete-te à autoridade dela) e uma promessa (Multiplicarei a tal ponto tua descendência que será
impossível contá-la diante devido à sua multidão). — Conferir Gn 16, 7-12 e Gn 21, 17-18.

- No episódio da prova de Abraão, o anjo intervém para impedir o sacrifício do jovem e prometer a
bênção.

- No início do livro dos Juízes o anjo intervém para denunciar a desobediência do povo e anunciar o
castigo.

Jz 2, 1-5: O Anjo do SENHOR subiu de Guilgal a Betel e disse: "Eu vos fiz subir do Egito e vos trouxe
a esta terra que eu tinha prometido por juramento a vossos pais. Eu dissera: 'Jamais quebrarei a
minha aliança convosco. Quanto a vós, não fareis aliança com os habitantes desta terra; antes,
destruireis os seus altares.' No entanto, não escutastes a minha voz. Por que fizestes isso? Por isso
eu digo: não expulsarei estes povos de diante de vós. Serão vossos opressores, e os seus deuses
serão uma cilada para vós". Assim que o Anjo do SENHOR pronunciou essas palavras a todos os
filhos de Israel, o povo começou a clamar e a chorar. Chamaram a este lugar de Boquim, e ali
ofereceram sacrifícios ao SENHOR.

Um personagem surpreendente que fala como o próprio Deus… Essa figura curiosa parece estar
relacionada com o anjo que o Senhor enviará "diante de ti para te guarde pelo caminho e te
introduza no lugar que te preparei" e que expulsará os inimigos (Ex 23, 20-23).

- Talvez seja o mesmo personagem que vai ao encontro de Balaão para proteger o povo de sua
maldição (Nm 22, 23-35).
- Aparece a Gedeão e lhe ordena que salve o povo (Jz 6, 11-24-35).
- Aparece à mulher de Manué para anunciar-lhe o nascimento de um filho (Sansão), impor-lhe a
dieta que deverá seguir e a missão que realizará (Jz 13). A mulher tem a impressão de ter visto um
"homem de Deus".
- Na história de Elias aparece duas vezes. A primeira vez, para ordenar-lhe que coma quando se
dirige para Horeb, desanimado.

1Re 19, 5-7: Deitou-se e dormiu debaixo do junípero. Mas eis que um Anjo o tocou e disse-lhe:
"Levanta-te e come." Abriu os olhos e eis que, à sua cabeceira, havia um pão cozido sobre pedras
quentes e um jarro de água. Comeu, bebeu e depois tornou a deitar-se. Mas o Anjo do SENHOR veio
pela segunda vez, tocou-o e disse: "Levanta-te e come, pois do contrário o caminho te será longo
demais".

A segunda vez, para ordenar-lhe que fosse ao encontro dos mensageiros de Baal-Zebub:

AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 18


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2Re 1, 3-4: Depois da morte de Acab, Moab revoltou-se contra Israel. Ocozias caiu da sacada de seu
aposento em Samaria e adoeceu. Enviou mensageiros, dizendo-lhes: "Ide consultar Baal Zebub, deus
de Acaron, para saber se ficarei curado deste mal." Mas o Anjo do SENHOR disse a Elias, o tesbita:
"Levanta-te e vai ao encontro dos mensageiros do rei de Samaria, e dize-lhes: Porventura não há
um Deus em Israel, para irdes consultar Baal Zebub, deus de Acaron? Por isso, assim diz o SENHOR:
Não descerás do leito ao qual subiste, mas com certeza morrerás." E Elias partiu.

- No livro de Zacarias, mesmo sem citar a expressão literal "anjo do Senhor" ou "de Deus", mas
apenas "anjo", devemos entendê-lo no mesmo sentido.

Essas tradições confirmam que Deus se comunica com os seres humanos. Em alguns casos, os
próprios profetas recebem sua palavra de modo indireto, mediante um mensageiro.

2.2. O sacerdote

Os sacerdotes também aparecem como mediadores em muitas narrativas dos profetas anteriores.

A relação entre o sacerdote israelita e a arte de adivinhar o futuro ou o comportamento adequado


passa frequentemente despercebido. Devia existir em Israel algo semelhante aos sacerdotes
egípcios ou mesopotâmicos. Algumas das técnicas divinatórias que vimos anteriormente eram
tipicamente sacerdotais; por isso, não é estranho vermos sacerdotes exercendo a função de
adivinho nos relatos antigos, como na história de Saul ou Davi.
Examinemos, então, alguns textos:

Jz 1, 1-2: Ora, aconteceu que, depois da morte de Josué, os filhos de Israel consultaram o SENHOR,
dizendo: "Quem de nós subirá primeiro contra os cananeus para combatê-los?" Respondeu o
SENHOR: "Judá subirá primeiro: entregarei a terra nas suas mãos".

Jz 20, 18: Puseram-se em marcha para ir a Betel, a fim de consultar a Deus. "Quem de nós subirá
primeiro para o combate contra os benjaminitas?", indagaram os filhos de Israel. E o SENHOR
respondeu: "Judá subirá primeiro".

Jz 20, 23: Os filhos de Israel vieram chorar na presença do SENHOR até tarde, e depois consultaram
ao SENHOR, dizendo: "Devo ainda voltar a lutar contra os filhos de Benjamim, meu irmão?" E o
SENHOR respondeu: "Marchai contra ele!"

Jz 20, 28: …e Fineias, filho de Eleazar, filho de Aarão, prestava serviço junto a ela. — Eles disseram:
"Devo sair ainda para combater contra os filhos de Benjamim, meu irmão, ou devo desistir?" E o
SENHOR respondeu: "Marchai, porque amanhã o entregarei nas vossas mãos".

Nestes textos vemos uma prática habitual de consulta a Deus, mas nem o mediador nem a técnica
utilizada são citados.

AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 19


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Jz 20, 27: …e depois os filhos de Israel consultaram o SENHOR. — A Arca da Aliança de Deus estava,
naqueles dias, naquela região.

No último texto parece que a consulta está relacionada com os sacerdotes e num contexto de
santuário.
No capítulo 18 do livro dos Juízes, os danitas encontram um levita que está de passagem pela casa
de Micas e lhe pedem para fazer uma consulta. Ele lhes lhes dá a resposta, mas não é citada a técnica
utilizada:

Jz 18 ,5-6: Então lhe disseram: "Nesse caso, consulta a Deus para sabermos se o caminho que estamos
seguindo nos conduzirá a bons resultados." — "Ide em paz," respondeu-lhes o sacerdote, "o vosso
caminho está sob os cuidados do SENHOR."

Pois bem, anteriormente foi lembrada a existência de um efod e terafim no templo privado de
Micas. No final do acontecimento, o levita vai até lá com eles levando esses objetos:

Jz 18, 20: Então o sacerdote se encheu de alegria, tomou o efod, os terafim bem como a imagem de
escultura, e se encaminhou para o meio do povo.

E ainda, quando Saul e seus homens decidem batalhar contra os filisteus, o sacerdote intervém para
propor que seja feita uma consulta a Deus:

1Sa 14, 36-37: Disse Saul: "Desçamos durante a noite para perseguir os filisteus, e saqueemo-los
até ao romper do dia; não deixemos um único homem deles sobreviver". E disseram: "Faze tudo o
que te parecer bem". O sacerdote, porém, disse: "Aproximemo-nos aqui de Deus". Saul consultou
a Deus: "Descerei para perseguir os filisteus? Ou entregá-los-ás tu nas mãos de Israel?" Mas, nesse
dia, não houve resposta.

Como não conseguem uma resposta, torna-se necessário fazer uma nova tentativa de consulta
para saber a causa do silêncio de Deus. A consulta aos sacerdotes, frequente nos períodos mais
antigos, refere-se principalmente a temas militares (não de modo exclusivo). De costume a
resposta se apresenta como uma palavra autêntica de Deus, introduzida pela fórmula: "O Senhor
respondeu". Não sabemos exatamente de que modo era realizado esse tipo de consulta, mas
devemos supor que deviam ser usadas algumas das técnicas de adivinhação da época,
especialmente com os instrumentos típicos (os urim e tummin e o efod). O texto mais claro sobre
a utilização desses instrumentos é o seguinte:
1Sa 14, 41: Saul disse então: "Ó SENHOR, Deus de Israel, por que não respondeste hoje ao teu
servo? Se o pecado recai sobre mim ou sobre o meu filho Jonatas, ó SENHOR, Deus de Israel, dá
urim; se a falta foi cometida pelo teu povo de Israel, dá tummim". Saul e Jonatas foram
designados, e o povo ficou livre.

Poderíamos dizer que o anjo do Senhor é um mediador "unidirecional" (de Deus para os homens) enquanto
profetas e sacerdotes são mediadores nos dois sentidos.

AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 20


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2.3. Os mediadores proféticos (vidente, visionário, homem de Deus, profeta)

Num primeiro olhar, parece claro que, em Israel, o mediador por excelência é o profeta; essa
conclusão se baseia no texto do Deuteronômio já apresentado:
Dt 18, 14-18: Eis que as nações que vais conquistar ouvem oráculos e adivinhos. Quanto a ti, isso não
te é permitido pelo SENHOR teu Deus. O SENHOR teu Deus suscitará um profeta como eu no meio de
ti, no meio dos teus irmãos, e vós o ouvireis. É o que tinhas pedido ao SENHOR teu Deus no Horeb, no
dia da Assembleia: "Não vou continuar ouvindo a voz do SENHOR meu Deus, nem vendo este grande
fogo, para não acabar morrendo", e o SENHOR me disse: "Eles falaram bem. Vou suscitar para eles
um profeta como tu, do meio dos irmãos deles. Colocarei as minhas palavras em sua boca e ele lhes
comunicará tudo o que eu lhe ordenar".

No entanto, temos uma dificuldade terminológica. Nós usamos o termo profeta, de origem grega,
para traduzir um conjunto de termos hebraicos que têm relação com ele. Como amostra de sua
relação, às vezes sinonímica, consideremos o texto a seguir:

1Sa 9, 6-9: Mas ele lhe respondeu: "Há um homem de Deus na cidade próxima. É um homem honrado.
Tudo o que ele diz acontece com certeza. Vamos até lá: talvez nos possa ajudar quanto ao caminho
que devemos seguir". Saul disse ao criado: "Se formos, que ofereceremos ao homem? O pão já se
acabou no alforje, e nada temos para oferecer ao homem de Deus. Que temos mais?" O servo tomou
a palavra e disse a Saul: "Ocorre que tenho comigo um quarto de siclo de prata. Eu o darei ao homem
de Deus, e ele nos ajudará na nossa viagem". (Antigamente, em Israel, quando alguém ia consultar a
Deus, dizia: Vinde, vamos ao vidente; porque àquele que hoje se denomina profeta, antes se chamava
de vidente).

Outras vezes, entretanto, encontramos textos que diferenciam com grande precisão cada tipo, para
que não ousemos tratá-los como se fossem iguais:

1Cr 29, 29: A história do rei Davi, do começo ao fim, está registrada na história de Samuel, o vidente,
na história do profeta Natã e nas crônicas de Gad, o visionário, (em muitas traduções - vidente).

Para nós, trata-se de três personagens que identificamos muitas vezes como representantes da
profecia das origens. É possível encontrar o significado original de cada termo? Para alguns autores,
é impossível; nós vamos tentar estudar cada um deles.

a) Vidente (ro'eh)

O termo é utilizado 11 vezes; quatro delas aplicadas a Samuel; o episódio de 1Sa 9 é paradigmático
para a compreensão do significado primitivo do termo:

Antigamente em Israel, quando alguém ia consultar Deus, dizia: Vinde, vamos ao vidente; porque
àquele que hoje chamamos de profeta, antes chamavam de vidente. (1Sa 9, 9)

AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 21


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Subindo a ladeira da cidade, cruzaram com duas jovens que saíam para buscar água e lhes
perguntaram: "O vidente está na cidade?" — (1Sa 9, 11)

Saul se aproximou de Samuel, na soleira da porta, e lhe disse: "Peço-te que me mostres onde é a casa
do vidente". Samuel respondeu a Saul: "Sou eu o vidente. Sobe adiante de mim ao lugar alto. Comereis
hoje comigo, e amanhã de manhã te direi tudo o que preocupa o teu coração. (1Sa 9, 18-19)

Poderíamos dizer que o vidente é uma pessoa que conhece coisas ocultas e que pode ser consultada
num contexto de culto.
Por outro lado, neste outro texto de Isaías, parece constituírem um grupo que lembra ao povo sua
responsabilidade perante Deus:

Is 30, 10: …que dizem aos videntes: "Não tenhais visões" e aos profetas: "Não profetizeis o que é reto.
Dizei-nos antes coisas agradáveis, profetizai ilusões".

Não parece que se trate de pessoas que fazem consulta para resolver pequenos problemas, mas
questões que afetam toda a população, embora provoquem a ira dos concidadãos.

b) Visionário (hozeh)

O vocábulo que traduzimos como visionário é menos utilizado e muitas vezes tem conotações
negativas, inclusive em alguns textos proféticos, como o seguinte:

Mi 3, 5-7: Assim disse o SENHOR aos profetas que seduzem o meu povo: Aqueles que, se têm algo
para morder em seus dentes, proclamam: "Paz". Mas a quem não lhes põe nada na boca, eles
declaram a guerra! Por isso a noite será para vós sem visão, e as trevas para vós sem oráculo. Por-
se-á o sol para os profetas e o dia obscurecer-se-á para eles. Os videntes se envergonharão, os
adivinhos serão confundidos e todos calarão a boca, porque não há resposta de Deus.

De qualquer modo, predomina uma visão positiva dos visionários que, juntamente com os profetas,
são recursos para o povo de Judá orientar-se corretamente: eles são os olhos e a cabeça do povo.

Is 29, 10: Porque o SENHOR derramou sobre vós um espírito de sono profundo. Ele fechou vossos
olhos pelos profetas e pelos videntes cobriu vossas cabeças.

Sua função religiosa aparece claramente no texto a seguir:

2Re 17, 13: No entanto, o SENHOR tinha feito esta advertência a Israel e a Judá, por meio de todos
os profetas e visionários: "Convertei-vos de vossa má conduta e observai meus mandamentos e meus
estatutos, conforme toda a Lei que prescrevi a vossos pais e que lhes comuniquei por intermédio de
meus servos, os profetas".

E parece, muitas vezes, tratar-se de pessoas vinculadas à realeza, embora os autores concluam que
deveriam ser pouco numerosos dada a escassez de textos sobre elas. Quem sabe sua atividade
específica fosse a de "contemplar", ter "visões", de onde vem seu nome derivado do verbo hzr.

AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 22


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"Quando Samuel era pequeno, as visões não eram frequentes, mas Deus as concedeu" (1Sa 3, 1);
desde então, a mensagem dos profetas se apresenta com frequência como "visão" (Isaías, Amós,
Miqueias, Naum, Abdias e Habacuc).

c) Homem de Deus ('îs 'elohîm)

Este título é muito mais frequente que os demais (76 vezes); é usado especialmente nos livros dos
Reis. Pouco utilizado no início, é notoriamente mais frequente quando se refere a Eliseu e depois,
de repente, desaparece. Trata-se de um qualificativo usado para diversos personagens (o narrador,
pessoas anônimas, Elias…). Que aspecto essa tradição destaca? Parece que o homem de Deus
mantém uma relação tão estreita com Deus que lhe permite realizar feitos prodigiosos. O homem
de Deus é um homem da palavra, mas não tanto de uma palavra que anuncia o futuro ou pede a
conversão, mas de uma palavra poderosa, capaz de encher o recipiente inesgotável de farinha e
azeite, de ressuscitar os mortos ou de fazer brilhar a luz do sol (1Re 17).
É interessante constatar que a tradição atribui o título de "profeta" aos mais importantes dos
"homens de Deus" (Samuel, Elias, Eliseu); por outro lado, são autênticos intermediários entre Deus
e os homens; a palavra de Deus é um elemento capital de sua atividade. A única diferença com os
profetas posteriores é que a palavra de que são mensageiros é uma palavra que opera prodígios.

d) Profeta (nabî')

Trata-se do termo mais frequente (315 vezes) e esta frequência gera também suas dificuldades para
captar os sentidos e matizes do termo; de fato, aplica-se a pessoas bem variadas e em ocasiões com
características opostas. São interessantes as conclusões apresentadas sobre o tema por J. L. Sicre:

 O título de nabî' não transmite uma avaliação positiva, pois é igualmente aplicado aos
profetas de Ba'al e aos falsos profetas de Israel. Parece surpreendente que no final tenha
sido imposto para designar personagens como Isaías, Amós ou Miqueias, que nunca o
reivindicaram.
 O significado e a função do nabî' têm variado ao longo da história mas sua característica
fundamental foi a de comunicar a palavra de outro: Aarão é nabî' de Moisés (Ex 7, 1) como
outras pessoas serão nebî'îm de Ba'al ou de YHWH.
 O nabî' atua em grupo ou individualmente; as tradições antigas o apresentam para nós em
grupo.
 Dentro dessa tradição grupal, no reino do Norte, aparecem os profetas em torno do rei
enquanto no reino do Sul encontram-se em torno do templo de Jerusalém (em relação com
os sacerdotes). Isso permite falar de "profetas cultuais" embora fosse abusivo considerá-los
a todos como funcionários do culto.
 O fenômeno do "nebiismo" é um fenômeno cheio de diversidade, não é homogêneo nem na
sua mensagem nem nas suas representações.
 Do mesmo modo, é um fenômeno conflitivo até dentro do texto bíblico; a história
deuteronomista não menciona alguns dos grandes profetas como Amós, Oseias, Miqueias,
Sofonias, Habacuc, Jeremias, Ezequiel…

AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 23


Plano de Formação Bíblica Livros proféticos

 As mulheres fazem parte desse movimento, algumas com muito prestígio (Jz 4, 4; 2Re 22,
14); esse é um dado interessante, considerando que, em Israel, as mulheres não tinham
acesso ao sacerdócio.
 Em algumas correntes proféticas, como a de Isaías e Miqueias, o termo nabî' e o verbo
"profetizar" não gozam de grande prestígio e há preferência para o vocabulário relacionado
com a "contemplação" (hzr).

3. Os meios de comunicação

Parece que mostramos de modo suficiente que os profetas são pessoas que têm um papel-chave na
comunicação de Deus e dos homens, em sua dimensão histórica e encarnada. Propomos então o
aprofundamento nas formas dessa comunicação: as visões e as mensagens.

Antes de começar, proponho gastar 15 minutos para ler Nm 22-24. Três capítulos
que apresentan a comunicação de Deus com um profeta não israelita e que pode
nos oferecer as chaves dessa terceira parte do tema.

- Nm 22, 1-7: é apresentado o contexto


- Em Nm 22, 8-13, encontramos o primeiro dado curioso: Balaão não põe em risco sua resposta até
saber o que Deus quer e sabe que Deus falará com ele naquela mesma noite.
- As palavras de Deus chegam de um modo surpreendentemente ingênuo: "Quem são estes
homens?" As ordens concretas indicam que os narradores entendem a relação entre Deus e o
profeta como se fosse um diálogo entre duas pessoas.
Por outro lado, sua tarefa fica muito clara: "Pronunciarei apenas as palavras que Deus puser em
meus lábios" (22, 38); não se trata só de escutar a Deus, mas do fato de o próprio Deus colocar as
palavras em sua boca.
- Além do aspecto auditivo e verbal, surge uma certa dimensão visual. Antes de pronunciar os
oráculos, Balaão retira-se dizendo a Balac: "Fica em pé ao lado dos holocaustos que tiveres ofertado,
enquanto eu vou mais longe para aguardar que o Senhor venha ao meu encontro. Eu te direi tudo
o que ele me fará ver". Os oráculos vinculam visão e palavra; "Então o Senhor colocou nos lábios de
Balaão as palavras que deveria pronunciar…" (23, 5) e o encarregou de falar, mas o que Deus
transmitiu é uma visão que inclui uma bênção (23, 7-10). O que Deus põe em seus lábios é o
conjunto de visão e palavra (23, 12).

Por isso, quando introduz o terceiro oráculo apresenta-se como "o homem de olhar penetrante, o
que escuta os presságios de Deus, aquele que vê o que faz com que ele veja o Onipotente, quando
cai em êxtase seus olhos se abrem" (24, 3-4). Fala de uns olhos capazes de ver uma realidade
diferente da que os demais percebem, de escutar palavras que provêm de outro mundo; que
conhece "a ciência do Altíssimo" (24, 16).
AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 24
Plano de Formação Bíblica Livros proféticos

A mesma experiência básica pode ser encontrada nas tradições de Elias ou de Eliseu. Palavra e visão
são dois fenômenos relacionados:

- Os 12, 11: Eu falei aos profetas, concedi-lhes muitas visões, e vou me explicar por meio
dos profetas.
- Gn 15, 1: O Senhor comunicou sua palavra a Abraão numa visão.
- Em Is 21, 1-10, no início fala de visão (v. 2) e no final diz "o que ouvi".
- A relação entre visão e palavra é mantida em alguns títulos dos livros proféticos: "Palavras
sobre Judá e Jerusalém reveladas a Isaías, filho de Amós…" (Is 1, 1) ou em algumas
passagens: "Profecia sobre a Babilônia. Revelado a Isaías, filho de Amós" (Is 13, 1).
- O cronista qualifica como visão o livro de Isaías: "O restante da história de Ezequias e suas
obras piedosas constam na Visão do profeta Isaías, filho de Amós, e na Crônica dos reis de
Judá e de Israel" (1Cr 32, 32).

3.1. Visões

Visão que Isaías, filho de Amós, teve a respeito de Judá e Jerusalém no tempo de Ozias, Joatão, Acaz e
Ezequias, reis de Judá. (Is 1, 1)

Mensagem que foi revelada a Isaías, filho de Amós, a respeito de Judá e de Jerusalém (Is 2,1)

No ano quinto da deportação do rei Jeconias, o quinto día do quarto mês, o Senhor comunicou sua
palavra ao sacerdote Ezequiel, filho de Buzi, quando tinha trinta anos. Ezequiel se encontrava no país
da Babilônia, entre os deportados, junto ao rio Quebar. Lá a mão do Senhor se apoderou dele. Abriu-
se o céu e teve visões divinas. (Ez 1, 1)

Palavras de Amós, vencedor da cidade de Técua, que viu a respeito de Israel nos dias de Ozias, rei de
Judá e nos dias de Jeroboão, filho de Joás, rei de Israel, dois anos antes do terremoto. (Am 1, 1)

Visão de Abdias (Ab 1, 1)

Palavra do Senhor comunicada a Miqueias de Morasti na época de Joatão, Acaz y Ezequias, reis de
Judá: [palavra] que ele viu a respeito de Samaria e de Jerusalém. (Mi 1, 1)

Oráculo cuja visão o profeta Habacuc recebeu. (Ha 1, 1)

Basta vermos o título de alguns livros proféticos para termos uma ideia da importância da visão
como meio de comunicação de Deus. Assim, não é estranho que o início da história de Samuel,
quando se quer realçar o personagem, se diga que "Naquele tempo, o Senhor raramente
comunicava sua palavra: não tinha o costume de mostrar-se em visões" (1Sa 3, 1).

AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 25


Plano de Formação Bíblica Livros proféticos

Mas qualquer leitor dos profetas sabe que nem todas as visões são iguais: parece que algumas
seguem um esquema fixo; em outras aparecem os objetos mais variados (uma cesta de fruta
madura, um galho de amendoeira…) ou personagens celestiais; ocasionalmente, a visão fica mais
focada no aspecto visual; outras, no auditivo; às vezes, refere-se a um futuro próximo; outras, mais
afastado.

O problema e o significado das visões

Se tivéssemos de classificar as diversas visões dos profetas, poderíamos partir de vários critérios; se
nos fixarmos nos aspectos psicológicos dos profetas, poderemos distinguir (J. Lindblom):

- Visões extáticas: ocorrem numa situação de êxtase ou num estado mental similar. Não devem
ser confundidas com alucinações. Ainda que o vidente possa descrever com exatidão o que vê,
os elementos não mantêm relações estruturais. Não governam as leis de tempo e espaço, como
nos sonhos. Dentro dessas visões extáticas, há algumas em que a atenção se dirige a objetos ou
figuras que podem ser vistas (pictóricas) e há outras nas quais a atenção se dirige aos
personagens ou às figuras que estão atuando (dramáticas).
- Percepções simbólicas: Têm um fundamento real, objetivo, no mundo material; mas o que se
vê é interpretado como símbolo de uma realidade superior (Exemplo: Jr 1, 11-14).
- Visões literárias: não são produzidas durante o êxtase, mas num estado de exaltação. O
resultado é semelhante ao que produz a poesia visual (Exemplo: a descrição do exército do
inimigo em Jr 4, 13; 6, 22-26). Diferenciam-se das visões extáticas porque não se apresentam
como tais, não utilizam o estilo visionário, são mais realistas e menos fantasiosas.

As visões de Zacarias representam um problema específico. Parece que quatro delas são extáticas
(a mudança de paramentos do grande sacerdote, o candelabro e as duas oliveiras, o pergaminho
que voa e a mulher no recipiente), ao passo que as outras quatro são produto da imaginação do
poeta, compostas por ele, e por isso mesmo literárias.

No fundo, o problema consiste na dificuldade de vincular um fato literário (a narração da visão) com
um fato psicológico ou com seu conteúdo. Qual é a origem do conhecimento fornecido pela visão?

O canal mais importante pelo qual Deus comunica suas mensagens é a vida real e cotidiana. O
profeta percebe a mesma coisa que qualquer israelita consegue ver (Jeremias vê um galho de
amendoeira, uma caldeira com fogo), mas aquela realidade diante dos olhos dele permite-lhe ver
algo novo, invisível os olhos dos demais; entender de outro modo o mundo ou compreender com
maior profundidade a ação de Deus. Amós também é um profeta visionário; suas visões mais
dramáticas, as que dão início à sua atividade profética e determinam sua expulsão do Reino do
Norte, não são as dos capítulos 7-9, mas a visão do mercado em que os inocentes são vendidos por
AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 26
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dinheiro e os pobres por um par de sandálias (Am 2, 6), onde os pobres devem comprar o grão a um
preço exorbitante; a visão de uma cidade, Samaria, onde os ricos exploram os pobres privando-os
até do indispensável, enquanto acumulam tesouros e crimes em seus palácios (Am 3, 9-11); a visão
de alguns tribunais nos quais se ultraja o direito e a justiça converte-se num veneno que azeda a
vida dos cidadãos; a visão de alguns templos em plena atividade e êxito cultual onde se percebe que
os mesmos que participam são os que roubam e saqueiam os pobres; a visão de uma classe alta que
pode permitir todos os luxos sem preocupar-se com as desgraças do país.

 Ocasionalmente, a visão profética se caracteriza pela coragem de ver o que os outros não
querem ver.
 Outras vezes, trata-se da capacidade de ver a realidade em profundidade, oferecendo uma
nova leitura:
- ver o esquecimento e o desprezo de Deus naquilo que os outros enxergam como efeito
de uma guerra;
- descobrir a ofensa feita contra Deus e o próximo naquilo que todos só enxergam como
uma atividade comercial legal.

 Essas visões são as que precisam de uma revelação divina porque há sempre
coisas que não queremos ver e, mesmo que as vejamos, há uma espécie de véu
que cobre nossos olhos e nos impede de "contemplar" a realidade profunda.
 É necessário um dom especial de Deus para "ver" a realidade em seu sentido mais
profundo, com os olhos de Deus.

3.2. Palavras

Apesar da importância das visões, os profetas são eminentemente as pessoas da palavra e da


palavra de Deus, uma vez que os verdadeiros profetas de Israel nunca falam em nome deles
mesmos, mas pronunciam as palavras que Deus põe em seus lábios. "A palavra do Senhor está com
ele" diz Josafá quando se refere a Eliseu em 1Re 3, 12.
A expressão debar Yhwh/'elohîm (a palavra de YHWH/Deus) aparece mais de 200 vezes; pode-se
dizer que constitui um termo técnico para referir-se à revelação profética.

Entre as fórmulas utilizadas pelos profetas, encontramos:

AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 27


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- Fórmulas que comprovam que a palavra de Deus chega ao profeta: "Chegou até mim esta
palavra do Senhor"…
- Fórmulas que garantem que a palavra transmitida pelo profeta é de Deus: "Assim diz o
Senhor", "Oráculo do Senhor"…

Perto de 900 vezes enfatiza-se que a palavra do profeta não é uma iniciativa pessoal, mas palavra
de Deus e esse fenômeno está presente mais intensamente entre os profetas dos séculos VII e VI,
talvez devido às grandes polêmicas entre diferentes correntes proféticas, mas com certeza a
consciência de proclamar a palavra de Deus não pode ser posta em dúvida nem nos profetas do
século VIII nem nos anteriores.

As palavras recebidas pelos profetas são, como as visões, muito variadas: uma ordem que deixa ao
profeta toda a iniciativa da ação seguinte; ou muito detalhada, uma mensagem de acusação, de
consolo, de coragem, de confiança no futuro; ou palavras para dar ânimo à pessoa do profeta,
palavras que falam do presente, do passado ou palavras orientadas para o futuro.

Características da palavra

A palavra pode ser desprezada. O fato de a palavra vir de Deus não garante que ela seja
maravilhosamente acolhida; na verdade, o que mais ocorre é o que descreve o profeta Ezequiel:

Ez 33, 30-33: Quanto a ti, filho do homem, os filhos do teu povo põem-se a conversar a teu respeito,
junto aos muros e junto às portas das casas, dizendo entre si, cada um com o seu irmão: "Vamos ouvir
qual a palavra que vem da parte do SENHOR". Dirigem-se a ti em bando, sentam-se na tua presença
e ouvem a tua palavra, mas não a põem em prática. O que eles praticam é a mentira que está na sua
boca; o que o seu coração busca é o seu lucro. Tu és para eles como uma canção de amor, bem
cantada com voz suave ao som de instrumentos de corda: eles ouvem as tuas palavras, mas não as
praticam. Ora, quando isso acontecer — e certamente vai acontecer — saberão que um profeta
esteve no meio deles.

O desprezo pela palavra é um dos traços mais característicos da tradição bíblica: o povo não quer
ouvir a palavra de seu Deus.

O tempo de chegada da palavra não depende do profeta, mas de Deus. Um exemplo disso são os
dez dias que o Senhor demorou para dar uma resposta a Jeremias, embora a situação fosse grave e
precisasse de uma resposta urgente (Jr 42, 1-7).

A palavra é dura e exigente. Às vezes, pode ser que a palavra provoque prazer no profeta:

Jr 15, 16: Quando se apresentavam palavras tuas, eu as devorava: tuas palavras eram para mim
contentamento e alegria de meu coração. Pois teu Nome era invocado sobre mim, ó SENHOR, Deus
dos exércitos.

AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 28


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Mas é mais frequente que a palavra provoque medo no profeta, como o leão:

Am 1, 2: Amós disse: O SENHOR rugirá de Sião, de Jerusalém levantará a sua voz, e murcharão as
pastagens dos pastores e secará o cume do Carmelo.

Por isso, não é estranho que queira fugir ou esquecer, mas nesse caso a palavra converte-se num
"fogo devorador" que obriga a continuar proclamando:

Jr 20, 9: Mas se eu disser: 'Não me lembrarei dele, já não falarei em seu Nome', então isto se
transforma em meu coração como num fogo devorador, encerrado em meus ossos. Esforço-me para
suportá-lo, não aguento mais.

A palavra é clara. Esta característica diferencia o profetismo bíblico do profetismo grego, tão
ambíguo que cada um poderia interpretá-lo como quisesse e que, caso não gostasse, podia
contraatacar solicitando um novo oráculo. A palavra dos profetas, ao contrário, é clara para seus
contemporâneos e irrevogável.

A palavra chega ao profeta mediante a vida cotidiana. Não por sonhos ou visões noturnas, mas
através dos acontecimentos de cada dia, as pessoas que vivem ao redor do profeta e os fatos:
falam as mãos do ceramista que quebra um vaso, fala o galho da amendoeira, fala a cesta de figos;
falam os povos oprimidos, os camponeses que ficaram pobres levados perante o tribunal, as
famílias privadas de moradia e de terra, os filhos vendidos como escravos, as armas que serão
transformadas em ferramentas de trabalho; fala a destruição de Jerusalém, o exílio; fala o poder
e o luxo dos impérios vizinhos… como observa J. L. Sicre.

… na palavra do homem e das coisas, na palavra da história e dos povos, o profeta descobre a
palavra de Deus que se impõe.

AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 29


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Tema 2 — A experiência profética: Deus e o povo

1. Êxtase, possessão, fenômenos paranormais

Acabamos de falar dos meios de comunicação de Deus, da palavra e das visões, embora em nosso
momento histórico é muito estranho falar de visões ou mensagens da parte de Deus. Em condições
normais, ninguém fala que viu ou ouviu a Deus. Será que os profetas viviam em condições anormais
ou doentias? Escreveu-se muito sobre esse tema e, mesmo assim, continua bastante obscuro.

Certamente, alguns profetas mostram comportamentos estranhos em alguns momentos:

1 Re 18, 42-46: Enquanto Acab subia para comer e beber, Elias subiu ao cume do Carmelo, prostrou-
se em terra e pôs o rosto entre os joelhos. Disse a seu servo: "Sobe e olha para o lado do mar." Ele
subiu, olhou e disse: "Nada!" E Elias disse: "Retorna sete vezes." Na sétima vez, o servo disse: "Eis que
sobe do mar uma nuvem, pequena como a mão de uma pessoa." Então Elias disse: "Vai dizer a Acab:
Prepara o carro e desce, para que a chuva não te detenha". Num instante o céu se escureceu com
muita nuvem e vento e caiu uma forte chuva. Acab subiu no seu carro e partiu para Jezrael. A mão do
SENHOR esteve sobre Elias, ele cingiu os rins e correu diante de Acab até a entrada de Jezrael.

2 Re 3, 14-19: Eliseu retrucou: "Pela vida do SENHOR dos exércitos, a quem sirvo, se não fosse em
atenção ao rei de Judá, eu não te daria atenção, nem sequer olharia para ti! No entanto, trazei-me
agora um tocador de lira." Ora, enquanto o músico tocava, a mão do SENHOR veio sobre Eliseu, que
disse: "Assim fala o SENHOR: 'Cavai neste vale fossos e mais fossos', pois assim fala o SENHOR: 'Não
vereis vento, nem vereis chuva, mas este vale se encherá de água e bebereis, vós, vossas tropas e
vossos animais de carga'. Mas isto é ainda pouco aos olhos do SENHOR, pois ele entregará Moab em
vossas mãos. Destruireis todas as cidades fortificadas, cortareis todas as árvores frutíferas, tapareis
todas as nascentes e cobrireis de pedras todos os campos férteis.

2 Re 8, 11: Depois a expressão do seu rosto ficou imóvel, seu olhar tornou-se fixo e o homem de Deus
pôs-se a chorar.

Falam igualmente de experiências extraespaciais:

Ez 11, 24: O espírito ergueu-me e trouxe-me para junto dos caldeus, aos exilados, em uma visão
enviada pelo espírito de Deus, enquanto a visão de que eu fora testemunha se retirou de mim.

Esses textos são apresentados com frequência para argumentar que os profetas eram "loucos";
alguns autores chegam a sustentar que o êxtase é um elemento característico de todos os profetas
de Israel. Mas, o que é o êxtase? Nas palavras de Gunkel:

"O êxtase é um estado do espírito e do corpo que se apodera do homem quando experimenta uma
sensação especialmente intensa. Essa [sensação] o atinge a tal ponto que lhe dá a impressão de ser
transportado por uma corrente de água ou de que seu coração está incendiado por um fogo ardente.
Perde o domínio de seus membros, tropeça e balbucia como um ébrio, chega a desaparecer sua
sensibilidade à dor física até cessar a sensação de dor das feridas. É animado por uma sensação de
AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 30
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força sem limites: pode correr, saltar ou realizar coisas impossíveis para uma pessoa em condições
normais. Desaparece nele tudo o que lhe é particular ou pessoal; o pensamento concreto, a sensação
concreta adquirem para ele um caráter absoluto".

O êxtase, visto desse modo, é um fenômeno presente na humanidade desde sempre; vivido por
poetas, cientistas, guerreiros… na realidade, é difícil distinguir os profetas dos "loucos"; a grande
diferença, uma diferença radical é que o êxtase profético é produzido pela ação divina.

Não temos elementos suficientes para saber se em algumas atuações proféticas se trata realmente
de uma alteração da consciencia ou para descrever detalhadamente de qual tipo de alteração se
trata. Pelos estudos dos antropólogos sabemos que os comportamentos, linguagens etc.
relacionados com o êxtase em determinada sociedade, são esteriotipados e que, ao mesmo tempo,
alguns comportamentos estereotipados estão vinculados a grupos sociais específicos; portanto,
será que o profeta se indentificaria com grupos extáticos? Pode ser que sim. Mas o fato de "parecer"
que alguns profetas atuam numa situação de êxtase não permite generalizar que esse estado seja
característico de toda a profecia de Israel. O estudo de cada um dos profetas e de suas respectivas
obras nos convida a perceber mais consciência do que inconsciência, mais lucidez do que fanatismo,
mais fé do que loucura.

2. Vocação e crise

Mais do que a identificação ou incorporação a grupos proféticos extáticos, os profetas bíblicos


partem de uma experiência religiosa, uma experiência pessoal do Deus de Israel.
A Bíblia não diz nada sobre as experiências primitivas dos profetas antigos (Natã, Gad,…), exceto
Samuel (1Sa 3); no caso de Eliseu, trata-se de um chamado feito da parte de Deus por Elias (1Re 19,
16-21). Conhecemos a vocação de Amós. Ele próprio fala disso no contexto de uma situação
polêmica (Am 7, 10-17), na qual sente-se um dia retirado de seu trabalho diário e enviado por Deus
para falar ao reino do Norte. Do mesmo modo Isaías, Jeremias e Ezequiel explicam suas experiências
originais; trata-se sempre de textos que pretendem justificar a autoridade profética e indicar a linha
fundamental de sua pregação.

a) Vocação

A vocação supõe para o profeta uma experiência de Deus que marca sua existência. Estudemos
agora mais de perto a vocação de Jeremias (Jr 1, 4-10).

Podemos afirmar com alguns autores que o relato de vocação é um gênero literário que segue o
mesmo esquema em outros casos7 (como a vocação de Gedeão, em Jz 6, 11-17) e que poderia
constar dos elementos seguintes:

- encontro com Deus


- discurso introdutório

7
Em especial S. BRETÓN, vocación y misión: formulario profético, Roma 1987.

AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 31


Plano de Formação Bíblica Livros proféticos

- objeção do enviado
- ordem (com os verbos técnicos ir e ordenar)
- palavras de ânimo (eu estarei contigo)
- sinal da escolha

— Encontro com Deus (v.4)

Jr 1, 4: E chegou até mim a palavra do SENHOR dizendo:…

Sem mais preâmbulos, a experiência da comunicação de Deus é a única coisa importante de sua
vida; não comenta nem o lugar nem a forma da comunicação.

— Discurso introdutório (v. 5)

Jr 1, 5: "Antes que eu te formasse no seio materno, te conheci, e antes de nasceres, consagrei-te,


coloquei-te como profeta para as nações".

A ideia principal encontra-se no final "consagrei-te como profeta das nações", mas a decisão de
Deus é muito antiga. O aspecto mais realçado pelo texto é a ação de Deus (três verbos: te formei,
te conhecia, te consagrei) e o sujeito beneficiário desta ação (quatro vezes o pronome "tu"). No
final, rompe-se a relação eu-tu para abrir-se aos outros, às nações.

Jeremias, que muitas vezes é definido como profeta da intimidade nos diz desde o início que não foi
chamado para "usufruir" solitariamente de um relacionamento privilegiado com Deus, mas para
converter-se em algo para os outros. Esse "algo" será a atividade de um profeta, de uma pessoa que
fala em nome de Deus.

— Objeção do enviado (v. 6)

Jr 1, 6: Disse então: Ah, Senhor DEUS! Eis que eu não sei falar porque sou jovem.

Ao chamado de Deus segue a reação humana: Jeremias sente medo diante da grandeza de sua
missão, porque não se considera a pessoa adequada. Como Moisés, afirma que não sabe falar e
acrescenta outro argumento: sua idade.

— Ordem (v. 7)

Jr 1, 7: Mas o SENHOR me disse: Não digas: "Sou jovem", porque para onde quer que eu te envie, tu
irás, e dirás tudo o que eu te mandar.

Mas Deus não aceita sua objeção; não se preocupa com os valores e as qualidades de seus
mensageiros; a ordem inclui quatro verbos fundamentais: enviar e anunciar uma ordem da parte de
Deus, ir e falar como profeta.

Essa experiência é capital para Jeremias, que frequentemente acusará os falsos profetas por não
terem sido enviados e não terem recebido nenhuma mensagem de Deus (Jr 14, 14).
AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 32
Plano de Formação Bíblica Livros proféticos

Ao expor sua objeção, Jeremias se deteve nos seus problemas pessoais ignorando os interesses de
Deus e as necessidades dos demais; imediatamente o próprio Deus restabelece a relação eu-tu-eles,
a única que justifica uma vocação profética.

— Palavras de ânimo (v. 8)

Jr 1, 8: Não tenhas medo diante deles, porque estarei contigo para libertar-te -- declara o SENHOR.

Observe a fórmula típica "eu estarei contigo". O versículo revela um dado importante: o problema
de Jeremias não é sua incapacidade oratória, nem sua idade, mas o medo do que os outros poderão
fazer contra ele. Poderíamos pensar que se trata de outra fórmula, mas o restante do livro mostra
que realmente a violência dos outros foi um dos grandes problemas de Jeremias ao longo de sua
vida.

— Sinal da escolha (vv. 9-10)

Jr 1, 9-10: Então o SENHOR estendeu sua mão e tocou minha boca. E o SENHOR me disse: Observa,
pus minhas palavras em tua boca. Olha, hoje te dei autoridade sobre as nações e sobre os reinos,
para arrancar e para derrubar, para destruir e para destituir, para edificar e para plantar.

O sinal se insere no contexto: os versículos anteriores tratam da palavra e do fato de falar; por isso
Deus toca seus lábios e coloca suas palavras na boca dele. Com esta última expressão (uma fórmula)
fica alicerçada a autoridade do profeta, enfatizando que sua mensagem não é uma invenção do
profeta, mas palavra do Senhor.

No versículo 10, a missão de Jeremiass se expressa através de seis verbos; implica destruição de
algo e criação de algo novo; não é uma vocação orientada ao imobilismo ou à conservação de um
status quo. Num momento de crise, Deus está disposto a pronunciar uma palavra que não se adapta
aos modelos antigos.

Tudo está em função da palavra que deverá transmitir ao povo; palavra de condenação e de
esperança que entrará em atrito com as expectativas dos contemporâneos; essa experiência do
profeta afeta todas as dimensões de sua vida, inclusive o obrigará a aceitar um destino não
desejado. Teremos tempo para ver o que significa para Jeremias esse destino.

[Agora, é possível fazermos a comparação com a experiência de Isaías (Is 6, 1-13) e de Ezequiel (Ez
1-3].

b) Crise

AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 33


Plano de Formação Bíblica Livros proféticos

A vocação e a experiência de Deus, longe de serem um privilégio, são vividas pelos profetas como
uma coação; assim Jeremias vive essa situação quando se revolta contra sua vocação e sua missão.
Isaías e Ezequiel a aceitam, embora o cargo recebido nada tenha de atraente do ponto de vista
humano. A vocação de Samuel (1Sa 3) é paradigmática dessas dificuldades: o jovem Samuel tem o
dever de anunciar ao sacerdote Eli, que se encarregara dele desde pequeno, sua condenação e a de
seus filhos. Diz o texto que, no dia seguinte à recepção do cargo, Samuel "sentia medo de explicar a
visão" (v. 15).
Muitas vezes, o chamado de Deus traz mudanças em todos os aspectos da vida: a atividade, a forma
e o lugar de vida… (Amós, Eliseu) e não é de se estranhar que o profeta entre em crise por causa da
dureza de sua própria missão. Elias no Horeb chega a pedir: "Já basta, Senhor! Tira-me a vida…" (1Re
19, 4). Parece acontecer o mesmo com Jeremias; suas "confissões" ajudam a entender o que ocorre
no coração desse profeta. A maior parte refere-se às dificuldades externas que ele encontra; outras
estão centradas em sua vocação. Analisaremos agora quatro dessas confissões que mostram uma
evolução do que poderíamos chamar de crise profética.

A oposição dos homens (11, 18-23)

No início, Jeremias pensa que a causa de seus fracassos são os homens. Os habitantes de Anatot,
cidade de Jeremias, conspiram contra ele porque profetiza em nome do Senhor.

Jr 11, 18-23: O SENHOR me fez saber isso e assim eu o conheci. Naquela ocasião, tu me fizeste ver os
seus atos. Mas eu, como um cordeiro manso que é levado ao matadouro, eu não sabia que eles
tramavam planos contra mim: "Destruamos a árvore em seu vigor, arranquemo-la da terra dos vivos,
e seu nome não será mais lembrado!" Ó SENHOR dos exércitos, que julgas com justiça, que perscrutas
os rins e o coração, eu verei a tua vingança contra eles, porque a ti eu expus a minha causa. Por isso,
assim disse o SENHOR contra os homens de Anatot que atentam contra a minha vida, dizendo: "Não
profetizarás em nome do SENHOR, senão morrerás por nossa mão!" Por isso, assim disse o SENHOR
dos exércitos: Eis que vou castigá-los. Os seus jovens morrerão pela espada, e seus filhos e suas filhas
pela fome. E ninguém restará, porque eu trarei a desgraça sobre os homens de Anatot no ano de seu
castigo.

Todas as dificuldades vêm dos homens mas Deus está ao lado do profeta. O texto lembra os salmos
de lamentação individual: o inocente perseguido será vingado por Deus.

A oposição dos homens e o abandono de Deus (15, 10-21)

Queixa do profeta e resposta de Deus. Uma tríplice acusação: à sua mãe, a quem o ouve, a Deus.

Jr 15, 10-21: Ai de mim, minha mãe, porque tu me geraste homem de disputa e homem de discórdia
para toda terra! Não emprestei e nem me emprestaram, mas todos me amaldiçoam. Na verdade,
SENreHOR, não te servi do melhor modo possível? Não me aproximei de ti no tempo da desgraça e
no tempo da tribulação? Pode alguém acabar com o ferro, o ferro do Norte e o bronze? Tua riqueza
e teus tesouros eu entregarei à pilhagem, gratuitamente, por causa de todos os teus pecados, em
todo o teu território. Eu te farei servir a teus inimigos em uma terra que não conheces. Porque minha
cólera acendeu um fogo que queimará sobre vós. Agora tu sabes, SENHOR! Lembra-te de mim, visita-
me e vinga-me de meus perseguidores. Na lentidão de tua ira, não me destruas. Reconhece que eu
suporto humilhação por tua causa. Quando se apresentavam palavras tuas, eu as devorava: tuas
AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 34
Plano de Formação Bíblica Livros proféticos

palavras eram para mim contentamento e alegria de meu coração. Pois teu Nome era invocado sobre
mim, SENHOR Deus dos exércitos. Nunca me assentei em um grupo de gente alegre para me divertir.
Por causa de tua mão, eu me assentei sozinho, pois tu me encheste de cólera. Por que a minha dor é
contínua, e minha ferida é incurável e se recusa a ser tratada? Tu és para mim como lago enganador,
águas nas quais não se pode confiar! Por isso assim disse o SENHOR: Se retornares, eu te restaurarei
e estarás diante de mim. Se separares o que é valioso do que é vil, tu serás como a minha boca. Eles
retornarão a ti, mas tu não retornarás a eles! Eu te farei, para esse povo, uma muralha de bronze,
fortificada. Eles lutarão contra ti, mas nada poderão contra ti, porque eu estou contigo para te salvar
e te livrar, oráculo do SENHOR. Eu te livrarei da mão dos perversos e te resgatarei do punho dos
violentos.

Jeremias realça sua inocência e sua lealdade para com Deus e para com os homens, mas não
consegue nenhuma resposta: os homens o perseguem, Deus o abandona. Jeremias sente-se sem
forças para resistir e pede uma mudança radical. Deus aparece, mas não para consolá-lo e prometer-
lhe a vingança dos inimigos, mas para acusá-lo e convidá-lo a converter-se. Se Jeremias se converter,
Deus lhe faz uma promessa paradoxal: irá permitir que ele continue a seu serviço. Paradoxal porque
a renovação do chamado é também reinício das perseguições e das dificuldades.

O engano de Deus (20, 7-9)

Jr 20, 7-9: Tu me seduziste, SENHOR, e eu me deixei seduzir; tu te tornaste forte demais para mim, tu
me dominaste. Sirvo de escárnio o dia inteiro, todos zombam de mim. Porque sempre que falo devo
gritar, devo proclamar: "Violência, opressão!" Porque a palavra do SENHOR tornou-se para mim
opróbrio e ludíbrio todo dia. Quando eu pensava: 'Não me lembrarei dele, já não falarei em seu
Nome', então isto era em meu coração como um fogo devorador, encerrado em meus ossos. Estou
cansado de suportar, não posso mais!

Jeremias começa com uma metáfora muito dura: compara-se a si próprio com uma jovem inocente
que foi enganada e violada. Sua tentação constante: esquecer-se de Deus e não voltar a falar em
seu nome, mas não consegue.
Deus não volta a apresentar-se diante do acusado para falar; é apenas uma palavra oculta, "um fogo
fechado dentro de meus ossos".

Maldição da vida (20, 14-18)


Esta é a confissão mais dura.

Jr 20, 14-18: Maldito o dia em que eu nasci! O dia em que minha mãe me gerou não seja abençoado!
Maldito o homem que deu a meu pai a boa nova: "Nasceu-te um filho homem!", e lhe causou uma
grande alegria. Que este homem seja como as cidades que o SENHOR destruiu sem compaixão; que
ele ouça o clamor pela manhã e o grito de guerra ao meio-dia, porque ele não me matou desde o seio
materno, para que minha mãe fosse para mim o meu sepulcro e suas entranhas estivessem grávidas
para sempre. Por que saí eu do seio materno para ver trabalhos e penas e terminar os meus dias na
vergonha?

Jeremias já não olha para os homens nem para Deus; fecha-se em si mesmo e só vê o absurdo de
sua existência. A única solução que vê é amaldiçoar e desejar a morte. O texto é muito claro e não

AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 35


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requer comentário. Toda a experiência acaba com o silêncio de Deus; não há nem consolo nem
ameaça.

A experiência de Jeremias apresenta-se enormemente trágica, mas o livro continua e Jeremias


continua recebendo e anunciando a mensagem de Deus. Não sabemos se outros profetas têm essa
mesma experiência, mas não seria estranho. É indiscutível que nessas pessoas ocorreu uma
profunda experiência de Deus, que encontraram dificuldades para expressar-se e que nós só
conseguimos intuir. Nesta experiência, o importante não era a satisfação pessoal e a intimidade com
Deus, mas a missão e a vida de um povo, ainda que cego e pecador.

3. O profeta e a sociedade

Vimos que o profeta não escolhe a si mesmo para usufruir de um relacionamento privilegiado com
Deus, mas para cumprir uma missão que visa o povo. Não existe profeta sem povo: o povo que
receberá a mensagem, o povo que reage diante da mensagem, mas também o povo em que o
profeta cresceu e que o fez herdeiro de sua linguagem, de suas tradições e de sua fé. Vimos algumas
das dificuldades e perseguições que os profetas experimentam, mas devemos supor que os profetas
também encontram apoio em alguns grupos; na verdade, para que exista um mediador, é
necessário que um grupo de pessoas aceite sua mediação.

Assim, devemos definir três vertentes da relação entre o profeta e o povo:

a) O profeta é herdeiro de sua sociedade

Nessa relação mútua, encontramos um conjunto de fundamentos ou pontos de partida que os


profetas não inventaram, mas que receberam de seu povo; entre eles:

— YHWH, o misterioso Deus de Israel; um Deus comprometido com a história, que ama a justiça;
pai de órfãos e protetor de viúvas; Senhor da vida e da morte.
Por isso, quando Oseias critica os sacerdotes de seu tempo porque "roubam do povo o
conhecimento de Deus" não inventa o assunto; apoia-se em algo anterior, que os sacerdotes
conhecem, mas desprezam.

— Israel como povo de Deus; num reino dividido, os profetas receberam a tradição de um único
povo de Deus que reivindicam.

É impossível compreender os profetas sem ter em mente as tradições de Israel: Oseias conhece e
valoriza as tradições do deserto e do decálogo; conhece a história do povo, ainda que se mostre
crítico desse passado. A teoria política de Isaías provém das tradições sobre a inviolabilidade de
Jerusalém e a eleição da dinastia de Davi.

b) O profeta conta com um grupo que o apoia

AS RAÍZES DO FENÔMENO PROFÉTICO - 36


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No contexto das relações do profeta com seu povo, devemos tambem considerar um grupo de
apoio. Quanto a Jeremias, temos muitos dados sobre pessoas concretas que apoiam sua missão e
que lhe oferecem ajuda pessoal, até a ponto de salvar-lhe a vida (Jr 26, 24). O testemunho mais
claro que temos do apoio social é a própria existência dos livros proféticos, frutos do trabalho dos
discípulos e compiladores.

c) O profeta vive relacionamentos polêmicos

Os profetas vivem situações de grande contraposição e antagonismo especialmente com alguns


grupos e algumas pessoas.

As relações dos profetas com o rei foram sempre difíceis, como o conflito de poderes. O soberano
precisa do reconhecimento do profeta; o profeta tem a capacidade de escolher o rei e a dinastia
(Samuel unge Saul como primeiro rei de Israel e é o primeiro a condená-lo, em 1Sa 15) e isso será
uma constante fonte de tensões. Relações de crítica serão mantidas entre Natã e Davi, Isaías com
Acab e Ezequias, Jeremias com Joaquim, Ezequiel com Sedecias. As críticas proféticas à monarquia
ou aos monarcas referem-se às opções de política exterior, ou à política dos impostos, ou ao luxo
dos palácios...

Situações parecidas surgem também com os sacerdotes. Samuel deve denunciar a Eli; Miqueias
denuncia a ambição dos sacerdotes; Jeremias é feito prisioneiro pelos sacerdotes (Jr 20) que ele
qualifica como ímpios, fraudulentos e que abusam do poder. Sofonias e Ezequiel os acusa de
profanar o sagrado e de violar a lei.

Outros grupos que ostentam alguma forma de poder político, econômico ou social também são
objeto da crítica dos profetas: os chefes políticos e militares, os oficiais do rei, os anciãos ou os
juízes; às vezes, todos os que têm poder (os notáveis).

Talvez a relação mais antagônica seja a que mantêm com os falsos profetas, tanto com referência
aos profetas de divindades estrangeiras, como com referência aos que fingem falar em nome do
Deus de Israel. O fato de que sejam pessoas que pretendem falar em nome de Deus faz com que o
conflito atinja o nível teológico. Sua pretensão cria o problema dos critérios para distinguir o
verdadeiro profeta do falso. Provavelmente não existe nenhum critério definitivo; talvez o único
critério garantido seja esperar como diz o Deuteronômio:

Dt 18, 21-22: Talvez perguntes em teu coração: "Como vamos saber se tal palavra não é uma palavra
do SENHOR?" Se o profeta fala em nome do SENHOR, mas a palavra não se cumpre, não se realiza,
trata-se então de uma palavra que o SENHOR não disse. Esse profeta falou com presunção. Não o
temas!

Mas o critério não é útil o bastante quando se trata de ajudar o rei a tomar uma decisão.

Em síntese, a existência dos profetas como pessoas de Deus e do povo é sempre uma existência
perigosa, uma existência de alto risco, seja pela recusa de sua mensagem, seja pela ameaça contra
a própria vida. Como J. L. Sicre acertadamente resume, Oseias se define como um "louco". Jeremias
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é acusado de trair a pátria. Em outros casos vemos profetas perseguidos. Elias deverá fugir do rei
em diversas oportunidades; Miqueias ben Imlà termina no cárcere; Amós é expulso do Reino do
Norte; Jeremias passa alguns meses de sua vida no cárcere… Em casos extremos chega-se até à
morte: é o destino dos profetas do tempo de Ajab e Jezabel; Uriahu será também assassinado e
jogado numa fossa comum (Jr 26, 20-23). Essa perseguição não se origina apenas no rei e nos
poderosos; para ela contribuem também os sacerdotes e os falsos profetas; até o povo se revolta
contra eles, critica-os, os deprecia e persegue".

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