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Ebook A Destruição Da Política 1 e 2
Ebook A Destruição Da Política 1 e 2
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Ao final desta aula, espera-se que você saiba: qual o critério principal de
um regime político; por que os regimes impuros ou corruptíveis podem ser
chamados de regimes impolíticos; o que diferencia os regimes políticos dos
impolíticos; o que é a ordem; qual a função primordial da linguagem; o que é a
novilíngua; o que é a constitutio;
INTRODUÇÃO
Sejam bem-vindos a estas duas aulas sobre os regimes políticos e os
regimes impolíticos. Nessas duas aulas, eu pretendo analisar com vocês qual é
exatamente o fundamento por meio do qual os regimes políticos, na história da
civilização, entendidos como regimes legítimos, são não apenas aceitos, como
também diferenciados do que eu vou chamar aqui de regimes impolíticos.
Esta diferenciação obviamente parte de uma série de quesitos que nos
permitem estabelecer uma variedade de distinções conceituais e teóricas entre
duas matrizes ou dois grandes modelos por meio dos quais os sistemas e
regimes políticos ao longo da história se edificarem e se constituíram. De um
lado, os regimes políticos, tomados aqui como regimes legítimos e ancorados
numa perspectiva de ordem. De outro lado, os chamados regimes impolíticos,
que procuram exatamente a destruição da ordem tal como considerada.
Por isso, na primeira aula, eu gostaria de vencer com vocês aquilo que eu
entendo ser a parte mais fundamental dos regimes políticos: quais são
exatamente os seus aspectos teóricos subjacentes, qual é precisamente a sua
marca característica.
Para tal, eu vou distinguir essa primeira aula em três partes. Na primeira
parte da aula, gostaria de diferenciar os regimes políticos legítimos dos regimes
ilegítimos e explicar por que usaria a expressão “regimes impolíticos” para
qualificar estes últimos.
Na segunda parte da aula, eu gostaria de descer às peculiaridades
atinentes ao que marca esses regimes aos quais eu chamo de regimes políticos.
E, no fim, na terceira parte desta primeira aula, gostaria de explorar algumas
noções específicas sobre alguns dos modelos que são talhados ou, digamos,
considerados regimes políticos na história clássica e na história moderna.
De modo que, em nossa segunda aula, possa vencer o que são exatamente
os regimes impolíticos e quais são as suas marcas características.
2. OS REGIMES POLÍTICOS
Dado isso, em primeiro lugar, é fundamental que nós tenhamos uma
noção prévia sobre o que caracteriza, afinal de contas, os regimes políticos em
contraste com os regimes impolíticos.
2.3. A ordem
Quando nós olhamos para trás e realizamos o exercício de ler a “Política”
de Aristóteles e de outros autores, como o próprio Platão na “República”, vamos
perceber que existe, atrás dessa classificação entre os bons e os maus regimes,
um critério principal a partir do qual essa distinção sobrevém. Esse critério é o
que eu vou chamar aqui de ordem. Todos regimes políticos têm em vista uma
noção prévia e constitutiva acerca do que é a ordem.
Os clássicos gregos normalmente chamavam esta ordem usando a
expressão grega nomos. A expressão nomos, em grego, pode ser muitas coisas
como, por exemplo, regra, norma, lei, preceito, mas também ordem. O nomos, a
ordem, era tomada como o princípio fundador fundamental por meio do qual
uma comunidade humana se edificava e sobrevivia historicamente. Era tarefa
das autoridades civis, no início de uma civilização, no início de uma cidade, de
uma pólis, construir uma cidade que pudesse expressar e fazer representar, no
tempo e no espaço, esta noção primeva de ordem que repousava no horizonte
cultural e imagético dos seres humanos historicamente situados naquela
civilização específica.
1
Fil ósofo (1888 - 1985).
2.5. A ordem e a distinção entre os regimes políticos e impolíticos
Portanto, nós podemos dizer que, nessa primeira parte, a distinção
conceitual entre os regimes políticos e os regimes impolíticos está precisamente
no fato de que os regimes políticos são baseados numa concepção natural do que
é a ordem, uma ordem que, caracterizada como espontânea e aberta, vai se
expandindo no tempo e no espaço de um modo a permitir, de uma maneira
flexível e gradual, o compartilhamento das formas de vida. Há, nessa
perspectiva, sempre um aspecto comum, comunitário, que permite a comum
unidade, isto é, a comunidade e, portanto, a ação comum, ou seja, a
comunicação dos seres humanos ali presentes. Unidade comum, ação comum.
Comunidade, comunicação. Esta conexão entre comunidade e comunicação,
entre aquilo que é estático e dinâmico na história de uma sociedade humana, de
uma comunidade política na História portanto, faz com que esta ordem se
expanda para além do tempo e do espaço.
Diferentemente desta compreensão, os regimes impolíticos procuram
mitigar ou destruir essa ordem espontânea colocando no lugar uma ordem
artificial. A vontade de um soberano, o decisionismo, um formalismo mitigado
ou quaisquer outros critérios que possam de alguma forma impedir ou anular o
avanço da ordem espontânea.
Portanto, quais são os elementos que explicitam a ordem espontânea
típica dos regimes políticos? Aqui, eu me dirijo à segunda parte da nossa aula.
3. A LINGUAGEM
3.1. A linguagem e a novilíngua
Os regimes políticos supõem que subexista, no horizonte ulterior desta
ordem espontânea, que nós vamos chamar aqui de a vida histórica dos regimes
políticos, sejam eles quais forem, um vínculo constitutivo entre a linguagem e
o mundo. De modo que a linguagem, neste sentido, nesta acepção, não é tomada
como algo contingente, mas é vista como algo presente no mundo e necessário
para que os próprios seres humanos, no mundo, interpretem o mundo e a si
próprios. A linguagem, portanto, desempenha uma função primordial, aquela
segundo a qual o mundo é expressável e cognoscível pelos seres humanos que
habitam nesse mesmo mundo.
Veja como são as coisas. A melhor maneira de impedir que os seres
humanos possam compreender o mundo e possam compreender a si próprios
no mundo é justamente o contrário da língua, que é o que nós chamamos de
novilíngua. A novilíngua não é outra coisa senão o instrumento par excellence,
por excelência, dos regimes totalitários, que têm em vista precisamente a
anulação da consciência. A anulação da consciência que advém por meio de uma
nova linguagem, uma nova novilíngua que substitui a língua, digamos assim,
natural, que é uma língua convencional, por uma outra língua que é criada em
laboratório, que, no caso, é um laboratório de natureza política ideológica.
De modo, portanto, que, quando nós falamos nos caracteres principais,
nos postulados adjacentes a todos os regimes políticos, nós falamos num
envolvimento constitutivo entre a linguagem e o mundo público comum. E
naquilo que diz respeito ao político propriamente dito - há uma ontologia do
político, vamos dizer assim - qual é a linguagem e qual é o mundo
correspondente?
3.2. A Constitutio
A linguagem é algo que os romanos já traziam desde a Era Republicana.
Nós encontramos rudimentos disso nos escritos dos juristas romanos como
Caio2, por exemplo. Ali, nós percebemos claramente a importância do que eu
vou chamar aqui em latim com a palavra “constitutio”.
Constitutio, da onde vem a palavra “constituição”, é a linguagem que
expressa essa ordem primária espontânea. A constituição, que no Mundo Antigo
pouco ou nada tinha que ver com o que hoje nós chamamos de constituição,
2
Caio Atei o Ca pitão, jurista (30 a.C. - 22 d.C.).
representa a própria linguagem expressiva do nomos. Ou seja, como esse nomos
é comunicado para os seres humanos. Como a ordem espontânea é expressa
perante o auditório de seres humanos que compartilham desta ordem de um
modo consciente ou mesmo de um modo inconsciente por vezes. Este
compartilhamento se dá por meio de uma constitutio.
Mas veja que a constitutio hoje pode ser, por exemplo, uma constituição
escrita, ou uma constituição não-escrita, ou uma constituição parcialmente
escrita por meio de certos documentos de fontes históricas, como é o caso do
Reino Unido. A constituição inglesa, para o direito constitucional, não é uma
constituição escrita, porque não é um documento formal como no Brasil, onde
temos a Constituição de 88, ou como a Constituição dos Estados Unidos de 1787
e outros textos, mas é uma constituição historicamente construída e, portanto,
construída por meio de atos, eventos históricos e documentos escritos, como é
o caso da Magna Carta, do Bill of Rights e de outros documentos importantes que
vão de alguma forma formatando aquela tradição jurídica.
Tudo isso para dizer que a palavra “constituição”, entendida no sentido
clássico ou entendida no sentido moderno - e por isso eu dizia que há pouco que
ver, quer dizer, algo há de comum, há pouco, mas há alguma coisa - o que há de
comum é precisamente isto: o fato de que, tanto no sentido antigo como no
moderno, a constituição é a linguagem que expressa a ordem. E essa expressão
da ordem é a expressão daquilo que há de comum entre os seres humanos em
uma comunidade humana.
O que os brasileiros possuem de comum? Aquilo que está na constituição.
O que os norte-americanos possuem de comum? Aquilo que está na
constituição. O que os italianos possuem de comum? Aquilo que está na
constituição. Tudo isso para dizer que nós podemos criticar uma constituição
ou outra, mas é causa final, é finalidade de uma constituição, seja ela qual for,
expressar, por meio da linguagem, o que há de comum entre uma comunidade
política.
Só que isto basta? Essa é a pergunta. Ou seja, quando nós vemos as
diferentes formas de aplicabilidade de eficácia das constituições entre si nos
seus respectivos países, nós nos perguntamos: isto basta? Quer dizer, há países
onde as constituições são mais eficazes do que o Brasil, por exemplo. Então,
basta a constituição ou são necessárias outras coisas?
4.1. As monarquias
As monarquias antigas, de acordo com Aristóteles, tinham isso?
Resposta: tinham. Porque ali o monarca era um servus servorum populum, ou
seja, ele estava ali para servir ao povo e é isso que caracteriza a monarquia, poder
de um, porque poder tem como titular central a massa, a comunidade dos
cidadãos. Essa é a visão clássica antiga de monarquia. Na monarquia, tem uma
constitutio, tem uma instituição e essa instituição tem, antes de mais nada, o
dever de devido respeito à constitutio e, portanto, às regras estabelecidas pela
constitutio, para somente depois conceber as regras e tomar decisões a partir da
constitutio, porque a constitutio é o farol desse regime político. De novo, de
acordo com o modelo clássico antigo.
4.2. As aristocracias
A mesma coisa na aristocracia, Aristos, o governo dos virtuosos. Areté,
virtude. Aristocracia, Aristói Kratos, o governo, o poder dos virtuosos. Qual é o
poder dos virtuosos? É o poder de um grupo reduzido de pessoas chamadas
virtuosas. Por quê? Porque são virtuosas na medida em que os seus atos e as suas
abstenções na vida pública respeita aquilo que determina a constitutio. É
precisamente essa ordem anterior e superior que é dirigida ao futuro tendo em
vista sempre uma organização institucional, um conjunto de regras que
estabilizam essas relações e decisões que reafirmam essas mesmas regras
dentro da contingência prática da vida social.
4.3. A politeia
Na politeia, que é uma espécie de boa democracia na Antiguidade, apesar
do equívoco nominal - do qual nós falávamos no início da aula -, é precisamente
esse regime que é uma constituição que considera a todos como partícipes
diretos ou indiretos do poder civil. Essa é a politeia, esse sim é o modelo antigo
mais topológico do que nós temos hoje como democracia e Estado de Direito,
porque a politeia é a organização institucional que toma por base a participação
de toda coletividade humana, em maior ou menor medida, nas estruturas de
poder, as regras que estabilizam as relações e as decisões que conformam essas
mesmas regras.
Nós temos hoje regimes muito mais evoluídos do ponto de vista
institucional do que tínhamos no passado. Por exemplo, nos atuais regimes
parlamentares, nos regimes parlamentaristas, nós temos uma variedade de
modelos com elementos aritméticos e geométricos cada vez mais complexos
para definir os sistemas eleitorais e partidários. Nós temos sempre em vista o
quê? Sempre a regra da isonomia, a igualdade política. Ou seja, a participação
igual para todos com um peso, um voto. A isocracia é uma regra que deriva da
isonomia, que, por sua vez, deriva do ison, da igualdade ontológica entre os seres
humanos, o fato de que todos compartilham uma mesma igual dignidade.
3
Fil ósofo alemão.
tomada pelo feixe ideológico característico. Então, por exemplo, os judeus, para
o nazismo, não podem pertencer ao núcleo duro de significação dessa
identidade comum dada pela constituição de Weimar, que era a constituição
alemã na época. Por quê? Porque eles não pertencem à identidade que é o
fundamento mesmo da constitutio para aquela comunidade política.
De modo que todos os regimes totalitários procuram destruir um, alguns
ou todos esses três níveis dos quais eu falava e, ao fazê-lo, impedem a harmonia
adequada entre o nível da identidade com o nível do reconhecimento e da
alteridade. Em outros palavras, a velha e máxima conexão entre ordem e
liberdade. Ou os regimes impolíticos focalizam numa ordem artificial que
desmorona o edifício da démarche procedimental da qual eu falava antes, os três
níveis que o Carl Schmitt e outros nos ensinam, ou os regimes impolíticos
procuram destruir a ordem colocando no lugar precisamente uma anomia e,
portanto, uma anarquia em nome de uma liberdade que, no fundo, não existe,
porque transforma-se em voluntarismo e indeterminação absoluta.
Entre os regimes políticos e os regimes impolíticos, portanto, já
finalizando essa terceira parte onde entramos em aspectos mais decisivos e
específicos de cada qual, nós temos sempre o conceito de ordem espontânea, que
pressupõe, para sua determinação, uma distinção nivelada em planos de
determinação, que, quando desaparecem um, alguns ou todos, resta, no lugar, a
ordem artificial, ou uma ordem criada por um soberano ou a anarquia absoluta
do estado de natureza, que promove, em um ou em outro caso, uma civilização
artificial e, portanto, a reificação de um regime impolítico que destrói a ordem
e, em última análise, destrói a liberdade humana.
SINOPSE
Nesta segunda aula, o professor Marcus Boeira esmiuça as características
dos regimes impolíticos e suas quatro tipologias existentes atentando para o
risco que o momento atual oferece em relação à perversão da política.
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Ao final desta aula, espera-se que você saiba: o que são os regimes
impolíticos e por que são assim chamados; as quatro tipologias dos regimes
impolíticos e suas características.
INTRODUÇÃO
Sejam bem-vindos para esta segunda aula do curso de regimes políticos e
impolíticos. Nessa aula, pretendo analisar os regimes impolíticos, as suas
características, alguns dos seus elementos constitutivos, em especial,
contrastar o último tipo de regime impolítico que tem se tornado cada vez mais
presente na vida de algumas das democracias do Ocidente com os regimes
políticos, que nós tratamos, na primeira aula, a partir das suas características
principais.
Quero dividir a aula de hoje para, do ponto de vista metodológico, bem
organizar as ideias, em duas partes. Na primeira parte, eu gostaria de enfrentar
com vocês alguns dos regimes impolíticos existentes historicamente falando e
mostrar a sintonia fina entre esses regimes, esses modelos de regimes
impolíticos, do ponto de vista do seu postulado uniforme e universal.
E, a partir de estabelecer esta característica comum entre os regimes
impolíticos na primeira parte, eu gostaria de me dirigir à segunda e última parte
da aula, que é aquela que procura analisar um regime político em especial, que é
o que eu vou chamar aqui de biopolítica. A biopolítica é o regime impolítico
característico do nosso tempo.
2. OS REGIMES IMPOLÍTICOS
Todos os regimes impolíticos são regimes que partem de um postulado
central; a saber, os regimes impolíticos procuram erodir a ordem espontânea e
natural e colocar, no lugar desta ordem espontânea e natural, uma ordem
artificial que procura dar conta da sociedade humana tomando por base uma
imagem distorcida, precária e, por vezes, mentirosa em relação a essa ordem
espontânea originária.
Os regimes impolíticos são assim chamados porque são contrários à
política, à pólis, à ideia mesma de uma ordem para as ações e abstenções
humanas. Toda ideia de pólis está assentada na ideia segundo a qual as
instituições da cidade se dirigem ao fim comum, que é a felicidade, a vida boa
dos seus cidadãos. O compartilhamento de certos bens humanos básicos que são
realizados e vivenciados a partir do conjunto das condições formais e materiais
que uma pólis traz relativamente à liberdade dos seus cidadãos.
Quando falamos em regimes impolíticos, por outro lado, existe a
pretensão de colocar, no lugar dessa espontaneidade, um espaço inteiramente
artificial, onde há o controle em larga escala, seja por quaisquer razões - seja por
uma razão cientificista, por uma razão moralista, por uma razão teocrática, por
uma razão econômica, enfim, seja qual for a razão. Há sempre a pretensão de
colocar, no lugar desta ordem espontânea, que admite uma espécie de
pulverização harmônica, mas, ao mesmo tempo, indeterminada dos bens
humanos no tempo e no espaço, o contrário, ou seja, um fechamento
metodológico de uma única justificativa ou algumas justificativas que
fundamentam o poder dentro de uma ordem civil, fazendo com que esta ordem
seja, portanto, institucionalizada por critérios artificiais contrários a essa
espontaneidade, a essa natural expansão de uma ordem humana.
3.2. Autoritarismo
Há algum segundo modelo de regime impolítico que é o que vou chamar
de autoritarismo. O autoritarismo, que normalmente ocorre no caso dos
regimes militares ao longo de quase todo século XX em alguns países - aqui na
América do Sul, por exemplo, nós tivemos experiências dessa natureza -, ocorre
quando se ataca o processo político democrático deliberativo impedindo a
participação de setores da sociedade e de um grupo de cidadãos tendo em vista
a efetividade de alguns valores em detrimento de outros. Então, em nome da
nação, abole-se o direito ou liberdade de circulação e de imigração. Ou, em
nome, por exemplo, da unidade nacional, focaliza-se na segurança e na ordem
1
Fri edri ch Hayek, economista (1899 - 1992).
em detrimento da liberdade e de certas políticas, digamos assim, de identidade.
Em nome de uma força militar e civil, anula-se a capacidade da ampla
participação democrática no processo político.
Regimes dessa natureza são considerados regimes autoritários porque o
foco da patologia está no processo político, na destruição do processo
deliberativo que é incito à política numa ordem espontânea, como é o caso dos
regimes políticos. A corrupção está no processo.
3.3. O autoritarismo
Há um terceiro tipo de regime impolítico, que é o que eu vou chamar de
regime totalitário, que é diferente do regime autoritário. Os regimes totalitários,
diferentemente do segundo e do primeiro, procuram atacar a ordem, o nomos da
terra, a ordem subjacente à constituição de uma sociedade política, porque, no
lugar desta ordem, os regimes totalitários colocam uma cosmovisão, uma visão
de mundo que é baseada numa ideologia subjacente. Uma ideologia que, de
alguma forma, seculariza certas categorias espirituais na própria História e
coloca, na História, uma visão destinatória, como se a História fosse um palco
dirigido e por meio do qual uma classe dirigente conduz a História e o povo,
volksgeist, rumo à perfeição
Normalmente, nos regimes totalitários, existe uma antropologia
distorcida que toma o ser humano como perfectível, o ser humano vai se
aperfeiçoando na História até atingir um grau de perfeição absoluto. No caso do
nazismo, por exemplo, isso fica muito claro. O ideal racial. No caso do
stalinismo, do leninismo, isso também fica claro. O novo trabalhador, o novo
homo faber que agora é a imagem mesma do animal laborans marxista. No
fascismo também, mesma coisa, ou seja, o novo homos eticus do fascismo, aquele
que está condensado na estrutura estatal que detém o monopólio ético.
Ou seja, todos os regimes totalitários têm em vista uma visão de mundo,
uma cosmovisão, que toma a História como um palco dirigido por uma classe
dirigente. Uma classe dirigente que terá a missão de levar a humanidade à sua
perfeição, à nova humanidade. Uma visão de mundo por trás que determina o
processo histórico. Uma colonização do futuro. Uma demarcação do horizonte
contingente futuro que reagrupa as diferentes particularidades a uma visão
universal, abstrata e idealizada de humanidade que substitui a realidade
propriamente dita, colocando na ideia, e não no real, o fundamento do poder
civil. Todo regime totalitário, portanto, aniquila a realidade humana em prol de
uma idealidade social.
3.4. A biopolítica
E há um último modelo de regime impolítico, que ganhou força nos
últimos tempos, que é o que eu vou chamar de biopolítica. A biopolítica possui
uma classificação própria porque não se adapta perfeitamente nem a um
totalitarismo tout court, nem a um autoritarismo tout court, nem a um regime
corruptível tout court, mas engloba elementos dos três regimes anteriores. A
biopolítica pega um pouco de cada qual e faz um novo modelo.
O que traz o regime impolítico ao qual nós vamos chamar aqui de
biopolítica? A biopolítica normalmente trabalha com a ideia de exceção ou de
estado de exceção. O estado de exceção que pode ser provisório ou permanente.
E o estado de exceção que pode assumir muitas facetas e, portanto, muitas
justificativas, que vão desde uma emergência sanitária até uma decisão
cientificista que, em nome da ciência, vale-se de um critério meramente
empirista ou empírico-verificacionalista para determinar um plano de ação
para a sociedade. Em nome da ciência, todos deverão usar máscaras. Ou seja, ao
invés de calarmos o ser humano por atos e decretos que digam expressamente
algo atinente à sua natureza humana digna, nós vamos usar o nome da ciência
para dizer: “usem a máscara e, portanto, respeitem à ciência, porque esta
medida é cientificamente válida e comprovada”.
Com isto, obviamente, eu não quero dizer que o uso da máscara em certas
circunstâncias, em razão do coronavírus e da pandemia que tomou conta do
mundo nos últimos dias, não seja algo justificado. Obviamente é justificado em
certos casos e em certas medidas. Eu sou o primeiro a defender isso e o primeiro
a dizer que sim, o coronavírus é letal para uma faixa etária da população e é
fundamental que nós prestemos atenção a isto. Eu sou o primeiro a dizer e o
primeiro a defender isto. Só que, por trás do coronavírus e por trás da situação
pandêmica, existe um uso político ilegítimo e, portanto, impolítico, que merece
uma atenção de nossa parte.
E é curioso que, atualmente, no mundo, possamos ver que, em alguns
países, a atenção a essas coisas seja algo próprio de um movimento político que,
por assim dizer, é identificado mais com o conservadorismo e com o liberalismo
e, em outros países, como a Itália, foi exatamente a esquerda que preocupou-se
com essas medidas de emergência e em denunciar o uso político irrefreado
dessas medidas. De modo que não podemos fazer classificações, por assim dizer,
ideológicas, de esquerda ou de direita, para analisar essa situação, porque a
própria realidade empírica das democracias no Ocidente nas quais nós estamos
a viver mostram que, em alguns casos, é um grupo ideológico que toma pé
diante de uma crítica a este estado de caso e, em outros, é o outro grupo
ideológico que o faz. Mostrando, de um lado, a irracionalidade à qual a luta
ideológica conduz os cidadãos de algum modo dentro das respectivas
democracias e, de outro lado, que os fatos como tais exigem uma atenção que as
meras ideologias não são capazes de dar e, muitas vezes, até obscurecem essas
mesmas análises.
Não quero aqui pregar imparcialidade e neutralidade, longe de mim.
Talvez isso seja muito difícil, no mínimo. Mas, de fato, uma situação como essa
merece uma atenção que não se reduz a um escopo ideológico padrão. Parece
não subexistir dúvidas quanto a esta medida: a exigência e a necessidade de uma
análise mais afastada do ponto de vista das intenções ideológicas do observador.
Por isso, a biopolítica pode ter uma miríade de justificativas que vão desde
o cientificismo ou a plataforma econômica, como, por exemplo, em nome da
economia, nós vamos suspender a democracia e o Estado de Direito, até medidas
de caráter emergencial, como a emergência sanitária que estamos a viver.