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Federalismo, Democracia e Governo no Brasii:

Idéias, Hipóteses e Evidências*

M aria H erm ínia Tavares de Almeida

A organização federativa do Estado bra­ O propósito deste trabalho é fazer um


sileiro vem se tornando objeto de interesse balanço desse campo temático de desenvol­
crescente de analistas políticos dentro e fora vimento ainda incipiente. A intenção é des­
do universo acadêmico. tacar a contribuição própria da ciência política,
A reforma da Federação promovida pela assinalando avanços, vicissitudes e desafios
Constituição de 1988 e uma nova sensibili­ em nosso terreno disciplinar.
dade para a dimensão institucional na vida Como as fronteiras entre disciplinas de
política, trazida pelo neo-institucionalismo, ciências humanas em geral não são claramente
parecem ter contribuído igualmente para definidas, a escolha do que deveria ser necessa­
que o federalismo ganhasse espaço na agen­ riamente considerado e do que poderia ser des­
da de pesquisa da ciência política nacional. cartado foi pessoal e, em certa medida, arbitrá­
O Brasil é uma república federal há pouco ria. Foram incluídos os estudos que propõem
mais de um século e algumas das conseqüên­ questões costumeiramente enfrentadas pela
cias desse fato para o funcionamento do sis­ ciência política. Ficaram de fora os trabalhos de
tema político são reconhecidas há muito cunho jurídico ou econômico, ainda que se ocu­
tempo. Entretanto, salvo raras exceções, só passem de dimensões extremamente relevantes
recentemente o federalismo tornou-se objeto para o entendimento pleno do federalismo bra­
de análise dos cientistas políticos. Antes, sileiro. Da mesma forma, foram deixados de
eram principalmente os juristas e os historia­ lado os estudos de história, embora alguns auto­
dores que se ocupavam do tem a.1 res aqui discutidos prefiram ser considerados
Por esta razão, os estudos sobre o fede­ historiadores e não cientistas políticos.
ralismo são, na ciência política brasileira, um A discussão tem um suposto (neo)institu-
campo em formação. Nele não há consensos cionalista óbvio, mas que convém relembrar.
mínimos sobre os termos utilizados; não es­ O estudo do federalismo só tem sentido para
tão claras as teorias em competição; e muitas aqueles que consideram que as instituições
hipóteses interessantes formuladas pelos que têm efeitos discerníveis e relevantes na vida
se dedicam ao tema carecem, em boa medi­ política, influindo sobre as decisões dos ato­
da, de adequada fundamentação empírica. res e sobre os resultados de suas ações.

* Este artigo é parte da pesquisa Democracia e Governo Local que conta com apoio da Fapesp (Projeto temá­
tico 97/02292-4). Foi apresentado no Seminário da ABCP, em junho de 2000, em Ouro Preto, e benefi­
ciou-se muito da rica discussão que ali ocorreu. Sou particularmente grata a meus debatedores e amigos Ce-
lina Souza e Fernando Abrucio, pelas comentários agudos e pertinentes à primeira versão deste texto.

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BIB , São Paulo, n ° 51, I o semestre de 2001, pp. 13-34
Com o objetivo de discutir a contribui­ res de relações intergovernamentais, constitu-
ção própria dos estudos de ciência política tivamente competitivas e cooperativas, e neces­
para o entendimento da experiência federa- sariamente caracterizadas tanto pelo conflito
lista brasileira, a exposição está estruturada de poder, como pela negociação entre esferas
por temas e não por autores ou trabalhos es­ de governo. A latitude que há de ter a juris­
pecíficos. Dessa forma, os mesmos autores e dição política autônoma do governo nacio­
trabalhos podem aparecer na discussão de nal e das unidades subnacionais situa-se no
mais de um tema. E bem possível que essa cerne daquele conflito de poder.3
opção não faça justiça à complexidade dos ar­
gumentos dos autores e trabalhos discutidos.
Os temas que organizam a discussão A Gênese do Federalismo Brasileiro
são: 1) a gênese do federalismo brasileiro; 2)
federalismo, representação política e demo­ Polemizando com a influente teoria de
cracia; 3) federalismo e governabilidade; e 4) Riker (1964) sobre a gênese do federalismo,4
federalismo, relações intergovernamentais e Stepan (1999) argumenta que há duas lógicas
políticas públicas. Cada um deles será trata­ de formação das federações: a primeira, reco­
do a seguir. No final, serão indicados alguns nhecida por Riker, consiste em juntar unida­
problemas conceituais e metodológicos que des político-territoriais previamente existen­
os estudos sobre federalismo no Brasil não tes; a segunda trata de “manter juntos” mem­
podem ignorar. bros de uma coletividade que poderiam aspi­
Adota-se aqui a definição comumente rar à existência como unidades politico-terri-
aceita de federalismo, segundo a qual o con­ toriaís independentes. A formulação de Ste­
ceito pode ser entendido como um conjun­ pan parece mais adequada à análise da gênese
to de instituições políticas que dão forma à da federação brasileira, um caso claro de ope­
combinação de dois princípios; autogoverno ração da lógica do “manter juntos”.
e governo compartilhado (selfruleplus shared Para o entendimento das condições que
rulê). A federação é, assim, uma forma de or­ deram origem ao sistema federativo, como,
ganização política baseada na distribuição por sinal, de qualquer forma de organização
territorial de poder e autoridade entre ins­ política, ganham relevo as idéias dominan­
tâncias de governo, constitucionalmente de­ tes entre os atores com poder de decisão.
finida e assegurada, de tal maneira que o go­ José Murillo de Carvalho (1995) dá uma
verno nacional e os subnacionais são inde­ importante contribuição nesse sentido, re­
pendentes nas suas esferas próprias de ação.2 construindo os eixos do debate político e in­
Na verdade, o federalismo constitui um telectual que, ao longo do período monár­
compromisso peculiar entre difusão e concen­ quico, preparou o terreno para a solução re­
tração do poder político em função da luta publicana federativa.
política e das concepções predominantes so­ Carvalho argumenta que, desde muito
bre os contornos do Estado nacional e sobre cedo, a federação aparece como uma das al­
os graus desejáveis de integração política e de ternativas vislumbradas pelas elites. Primei­
eqüidade social. Assim, Elazar (1986, p. 33) ro, quando se trata de redefinir as relações
lembra que “o federalismo trata simultanea­ no interior do Reino Unido de Portugal,
mente de difundir o poder político em nome Brasil e Algarve, após a derrota de Napoleão.
da liberdade e de concentrá-lo em nome da E, depois, fechado o caminho de uma solu­
unidade ou de um governo atuante” . ção unitária, quando se trata de organizar
Por serem estruturas não-centralizadas, politicamente a antiga colônia portuguesa.
os sistemas federais moldam formas peculia­ Manter a sua integridade territorial transfor­

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ma-se na questão central e recorrente da cia para que se aproximasse do modelo nor-
agenda política, desde a independência. M o­ te-americano (Carvalho, 1995, p. 60).
narquia e república, centralização e descen­
tralização, Estado unitário e federação foram Derrotada outra vez, no começo dos anos
respostas institucionais, vislumbradas pelas de 1840, com a imposição do centralismo mo­
elites, ao desafio de “manter junto” um país, nárquico, a proposta de federação volta a ga­
onde eram fortes as tradições localistas her­ nhar força a partir dos anos de 1860, agora as­
dadas do período colonial. sociada não apenas à demanda de descentrali­
Nesse contexto, a alternativa de organi­ zação, mas também à idéia de república, tanto
zação federativa jamais desaparece dos deba­ na obra de polemista de Tavares Bastos —“ab­
tes políticos e, em conseqüência, do hori­ solutismo, centralização e império são expres­
zonte de soluções possíveis. Trata-se de uma sões sinônimas” —quanto no lema sintético do
leitura particular do significado da federa­ Manifesto Republicano - “centralização-des-
ção, esclarece Carvalho: membramento; descentralização-unidade”
(Carvalho, 1995, pp. 65-66).
Se o foco de Carvalho incide nas idéias
Se tomamos as duas tradições federalistas
que conferiram sentido às ações das elites,
norte-americanas, a hamiltoniana, exposta
Eduardo Kugelmas (1986) põe ênfase nos in­
no clássico O Federalista, preocupada com o
teresses e no processo político que, finalmen­
fortalecimento do governo central, e a jeffer-
te, deram vida ao ideal federalista, materiali­
soniana, depois desenvolvida por Tocquevil- zado nas instituições da República. Ao fazê-lo
le, que enfatizava o self-government, conclui­ torna mais nítidas as características específicas
remos que a cópia feita pelo Brasil e por vá­ do modelo de federação adotado no país.
rios países da América Latina tinha em vista A federação extraordinariamente descen­
a segunda tradição. Federalismo entre nós tralizada, que resulta da Constituição de 1891
significava e significa descentralização, self- e da construção política realizada pelos pri­
government, condição para a liberdade, se não meiros presidentes civis, é obra das elites pau­
é a própria liberdade (1995, p. 75). listas. Elas se movem, segundo o autor, não
por um projeto nacional de hegemonia, mas
A força da proposta federalista, que a pelo objetivo de assegurar condições para o
torna recorrente, segundo Carvalho, é a sua funcionamento, no Estado de São Paulo, de
correspondência com uma realidade socioló­ um poder público capaz de atender às neces­
sidades do complexo de atividades estrutura­
gica, cristalizada na colônia. Ela encontra,
das em torno da cafeicultura. E um projeto de
porém, diversas formulações, cujos significa­
construção estatal no nível estadual que mol­
dos são dados pela estrutura do conflito po­
da o arcabouço político nacional segundo um
lítico e ideológico em cada momento.
modelo federativo dual e descentralizado:
Associado à demanda de descentraliza­
ção, o ideal federativo está presente no deba­
Vim os como a óbvia preponderância paulis­
te constitucional do início da década de 1 9 3 0
ta na fase inicial da República, plasmada na
e na Reforma Constitucional de 18 3 4 , que
própria construção institucional em marcha,
teve como registro central a cristalização da
adotou alguns elementos federais como as esfera do poder público a nível estadual.
assembléias provinciais, a divisão de recursos C om relação aos rumos do poder central, o
fiscais e a eliminação do Conselho de Esta­ que se buscou foi o estabelecimento de regras
do. [...] N o que se refere à federação, faltava do jogo políticas consentâneas com a conso­
somente a eleição dos presidentes de provín­ lidação desta esfera estadual. A [...] insistên­

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cia na tese da “dupla soberania” conduzia, no mas federais. Lijphart (1984, p. 173) consi­
limite, a uma visão “confederacionista” da dera a “sobre-representação das unidades ter­
Federação, o que significa, em última análise, ritoriais menores na câmara federativa do le­
um poder central limitado. Forte o suficiente gislativo bi-cameral” um traço constitutivo
para garantir a estabilidade republicana e de toda e qualquer federação.
“frear os excessos” das lutas faccionais através Entretanto, como é sabido, no Brasil,
da tutela exercida sobre os “ Estados fracos” , aquela distorção existe não apenas no Sena­
as oligarquias débeis. Respeitador, por outro do, mas também na Câmara, onde estão re­
lado, de autonomia de quem tem condições presentados os cidadãos. E ocorre, em graus
financeiras e militares para exercê-la. E, insis­ variáveis, a cada legislatura, desde o início da
timos uma vez mais, desempenhando o papel federação brasileira (Nicolau, 1997, pp.
de mediação com o sistema internacional, 446-451).
reafirmado no período Cam pos Salles. Nem Ademais, ela é considerada, pela imensa
“forte” nem “fraco”, mas limitado pelo que maioria dos autores que se ocuparam do fe­
Faoro denominou “federalismo hegemônico” deralismo brasileiro, um tato saliente - e anô­
(Kugelmas, 1986, p. 97). malo — de nosso sistema federativo. Dado
que aqui Estado e distrito eleitoral se con­
Kugclmas sugere que, além de dual e fundem, a distorção é designada pelos ana­
descentralizado, o federalismo brasileiro é listas políticos, dentro e fora da academia, na
também, de fato, assimétrico, posto que a linguagem do federalismo, como um fenô­
autonomia estadual não tem, na prática, a meno de sobre-representação de alguns Esta­
mesma latitude para todos os membros da dos e sub-representação de outros.
federação. Ela depende das condições finan­ As conseqüências desse fenômeno fo­
ceiras, militares e políticas de cada Estado. A ram tratadas de duas maneiras pela literatu-
capacidade de unificação política das elites ra. A primeira chamou a atenção para o
estaduais tem, para o autor, importância par­ eleito da sobre-representação/sub-represen-
ticular. Existe em São Paulo e em Minas Ge­ tação de Estados na distribuição de poder
rais e está ausente em muitos Estados fre­ entre grupos da sociedade, nas orientações
qüentemente convulsionados pelas dissen- do Legislativo e, em decorrência, nas carac­
sÕes entre oligarquias. terísticas das políticas públicas. De maneira
Em suma, a literatura de ciência políti­ mais precisa, a sobre-representação de Esta­
ca que tratou da gênese do federalismo bra­ dos social e economicamente mais atrasa­
sileiro, embora muito reduzida, foi direto ao dos - e a sub-representação do Estado mais
ponto, mostrando náo só o contexto de desenvolvido, São Paulo - teria redundado,
idéias e de interesses que produziu nossa fór­ por via do arranjo político, no reforço do
mula federalista, como a sua especificidade poder de elites políticas e econômicas mais
quando comparada ao modelo norte-ameri­ conservadoras, assegurado por sua atuação
cano e aos adotados em outros países da no Congresso Nacional.
América Latina, no mesmo século. A formulação canônica dessa tese é de
Celso Furtado, em seu célebre artigo de
1965, “O s Obstáculos Políticos ao Desen-
Federalismo, Representação volvimento Econômico” . O Congresso con­
Política e Democracia servador, resultante da sobre-representação
de Estados do Norte e Nordeste, seria o
A representação distorcida em uma das principal obstáculo à realização das reformas
câmaras legislativas é característica dos siste­ necessárias à industrialização do país que ti­

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nham no Executivo seu grande dinamizador. de potencial tensão entre legislativo e execu­
A oposição entre Executivo progressista e tivo. Kinzo (1990, p. 41) resume com clare­
Congresso conservador, geradora de impasse za o argumento conhecido e repetido por
ou de crise política, seria, portanto, uma quase todos os cientistas políticos que estu­
possibilidade inscrita no desenho institucio­ dam o Brasil:
nal da federação brasileira.
Sua formulação mais acabada foi feita Primeiro, não há dúvida de que uma sobre-re­
por Soares (1971, p. 7), quando tratou do presentação da região Norte e uma sub-repre-
periodo 1946-1965: sentação da região Sudeste podem significar
um acentuado viés conservador e governista
[...] al aumentar artificialmente la represen- na representação parlamentar da Câmara Fe­
tación política de una cultura política tradi­ deral. Segundo, sendo a eleição para a Presi­
cional atrasada, dom inada por los líderes lo- dência da República realizada pelo sistema
cales, frecuentemente latifundistas, hacenda- majoritário, baseado em uma circunscrição
dos, coroneles de todo tipo, o personas de su eleitoral nacional, é alta a probabilidade de
elección, el sistema electoral termino por que o Poder Executivo e o Legislativo confi­
perjudicar a la mayoría de la población de gurem apoios diferenciados e até mesmo in­
esas areas. Al aumentar el poder político de compatíveis. Isto porque, ao contrário do que
la élite dirigente de esa cultura política rural, ocorre nas eleições proporcionais para o Le­
tradicional y preideológica, al super-repre- gislativo, na eleição para presidente da Repú­
sentar en el Congreso y en el Senado a esta blica o peso do eleitorado do Sudeste e Sul -
area subdesarrollada económica, social y po­ nada menos que 63% - é realmente decisivo.
liticamente, esta legislación disminuyó las E a natureza diferente e possivelmente con­
probabilidades de aprobación por las dos trastante da representação dos dois poderes -
Câm aras de reformas que vendrían a benefi­ propiciada em grande parte pelo presidencia­
ciar la mayoría de la población rural que ha­ lismo - pode levar ao estreitamento das mar­
bita principalmente en estas areas subdesar- gens de governabilidade do Executivo, caso
rolladas. Este fué, fundamentalmente, el suas políticas não se adeqüem à correlação de
caso de la reforma agraria. forças existente no Congresso.6

A tese voltou a aparecer nos escritos so­ A segunda maneira de tratar as conse­
bre o longo processo de passagem do auto­ qüências da representação distorcida é aque­
ritarismo para a democracia, a partir da se­ la que a transforma no cerne do argumento
gunda metade dos anos de 1970. Neste que problematiza as relações entre federalis­
caso, o mesmo mecanismo, reforçado pelo mo e democracia. Nesse caso, trata-se de
“pacote de abril” de 1977, teria assegurado uma indagação mais geral e abrangente, si­
uma sobrevida política ao regime autocráti­ tuada seja no plano das conexões entre teo­
co e propiciado uma transição “negociada” e rias do federalismo e teorias da democracia,
conservadora. seja no terreno empírico do funcionamento
Finalmente, além de se haver transfor­ das poliarquias organizadas como federação.
mado em ponto da agenda de reformas polí­ Nos termos em que foi colocado por Stepan
ticas que acompanhou a volta à democracia,5 (1999), em polêmica com Riker, o problema
a sobre-representação continua a ser aponta­ diz respeito aos efeitos “demolimitadores” —
da pela literatura recente como fator de re­ isto é, limitadores do princípio da igualdade
forço do conservadorismo no Congresso e política entre cidadãos - provocados pela re­

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presentação de unidades territoriais, caracte­ pos de afirmação foram feitos sobre o siste­
rística de todo e qualquer sistema federativo. ma brasileiro. O primeiro —e mais geral —o
Quatro seriam as razões pelas quais to­ classifica como caso extremo de uma forma
das as federações democráticas restringem o de organização do Estado que seria constitu-
poder do demos: 1) porque a dupla soberania tivamente limitadora do poder da maioria.
impede a existência de uma agenda inteira­ O segundo tipo não se ocupa dos traços co­
mente aberta, expressão da “incerteza insti­ muns às federações, mas enfatiza a distorção
tucionalizada” que caracteriza a democracia; do princípio democrático da representação,
2) porque o demos é limitado verticalmente, gerada pela forma como é composta a câma­
devido à existência de várias estruturas de ra de representantes dos cidadãos. Vai mais
autoridade, e horizontalmente, em razão do além, discutindo seus efeitos sobre a distri­
bi-cameralismo; 3) porque as Constituições buição de poder entre elites estaduais, o que
federais amarram as gerações futuras aos favoreceria o conservadorismo, e sobre o seu
compromissos dos fundadores, que reque­ potencial para gerar impasse entre poderes
rem supermaiorias para ser alterados; e 4) de Estado, sob o presidencialismo.
porque, dada a complexidade das Constitui­ O primeiro tipo de argumento anti-fe-
ções federais, os tribunais constitucionais, deralista mais abrangente e normativo, for­
cujo princípio de composição não é demo­ mulado por Stepan, pode ser criticado, pelo
crático, exercem de fato função legislativa menos em parte. Com efeito, nem todos os
(Stepan, 1999, pp. 212-214). critérios utilizados pelo autor para classificar
Partindo da premissa da tensão entre fe­ as federações segundo as restrições que im ­
deralismo e democracia, Stepan (1999, pp. põem à igualdade política são claros. En­
218-219) propõe quatro critérios para classi­ quanto os dois primeiros dizem respeito di­
ficar as federações existentes, em termos da retamente à violação do princípio de “a cada
maior ou menor restrição que impõem ao cidadão um voto”, definidor da democracia,
princípio da igualdade política: 1) o grau de os dois últimos parecem sustentar-se em
super-representação da câmara territorial; 2) duas premissas mais discutíveis do ponto de
a abrangência das políticas formuladas pela vista da normatividade democrática. A pri­
câmara territorial; 3) o grau de poder que a meira é que, em qualquer circunstância e
Constituição confere às unidades subnacio- para qualquer assunto, o demos nacional
nais para elaborar políticas; e 4) o grau de tem precedência sobre os demoi das unida­
nacionalização do sistema partidário em suas des subnacionais. A segunda é que todas as
orientações e sistemas de incentivo. decisões, qualquer que seja o seu escopo,
Submetido a esses critérios, o sistema fe­ afetam o conjunto dos cidadãos da nação,
derativo brasileiro, de acordo com Stepan, razão pela qual, sempre que forem tomadas
está entre os mais restritivos do poder da por um subconjunto territorialmente deli­
maioria: a sobre-representação das unidades mitado dos eleitores, podem ser interpreta­
com eleitorado menor não se limita ao Sena­ das conto decisões de minoria que limitam
do, mas existe também na Câmara Federal; o o poder da maioria.
Senado tem poderes legislativos amplos; o As duas premissas implicam negar a
sistema partidário é fragmentado e pouco na­ existência de problemas, interesses e aspira­
cionalizado; desde a Constituição de 1988, ções territorialmente circunscritos que po­
Estados e municípios possuem um rol amplo dem ser tratados no âmbito em que se mani­
de competências legislativas. festam. Finalmente - e esta é a objeção mais
Recapitulando, no que diz respeito à re­ séria —, ao avaliar a relação entre federalismo
lação entre federalismo e democracia dois ti­ e democracia, Stepan toma partido por um

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modelo de democracia majoritária, como se tipo”, personagens de uma “cultura política
fosse a única possibilidade aceitável do pon­ tradicional y preideológica” , pois aí está, com
to de vista normativo.7 Ora, como assinala dezessete deputados a menos em 1962, o Esta­
Lijphart, aquele não apenas não é o único do de Minas Gerais.
modelo possível, como tem sofrido críticas
contundentes dos partidários do modelo Apoiada em evidências empíricas, a au­
consociativo, que o consideram, no limite, tora mostra que a questão em pauta era a
não-democrático, por consagrar, de alguma oposição entre a maioria anti-getulista das
forma, a tirania da maioria.8 bancadas mineira e paulista do PSD e da
Por outro lado, embora predominante, U D N e “o resto” , articulado pelo “getulismo
não é consensual o diagnóstico sobre as con­ e os remanescentes do Estado Novo”, ou seja
seqüências políticas das distorções na repre­ a “oligarquia dos Estados menos desenvolvi­
sentação promovidas pelo arranjo federativo dos, por isso mesmo voltada para o centralis­
brasileiro. Campello de Souza (1976) discor­ mo autoritário; contra a-oligarquia dos dois
da da hipótese de Soares, antes apresentada, maiores Estados” (Cam pello de Souza,
como explicação para a origem do artigo 58, 1976, pp. 128-134).
que instaurou a desproporcionalidade da re­ Mais tarde, Wanderley Guilherme dos
presentação na Constituição de 1946:s Santos, contrapondo-se à sabedoria conven­
cional, construiu um argum ento caracteristi­
A primeira vista convincente, dando conta camente antimajoritário, ao afirmar que, de­
de maneira simples e direta de um dos pro­ pois de 1950, “o sistema parlamentar brasi­
blemas mais importantes nas interpretações leiro preencheu de forma substancialmente
do período 1946-1964, a saber, a contrapo­ adequada o [...] critério de avaliação de um
sição de um legislativo conservador ao exe­ sistema representativo, a saber, promovendo
cutivo populista e progressista, a explicação um equilíbrio na representação de tal modo
de Glaucio Soares na verdade suscita mais
que ficavam impedidos tanto o veto da m i­
noria quanto a tirania da maioria” (1987, p.
dúvidas do que as resolve. Em bora seja ver­
94). Estudando a distribuição de cadeiras na
dadeiro que os estados beneficiados pelo ar­
Câmara Federal entre 1945 e 1982, ele veri­
tigo 58 sejam em conjunto os mais atrasa­
ficou que a possibilidade de veto da minoria
dos, e portanto mais caracteristicamente re­
jamais ocorreu, pois, para controlar 50% das
trógrados no tocante à estrutura agrária, é
cadeiras, sempre se requereu um número de
também óbvio que não eram, em 1945, Es­
Estados correspondente a cerca de 50% do
tados agrícolas importantes. A menos que se eleitorado nacional. Tampouco a tirania da
pretenda atribuir uma grande soma de poder maioria foi uma possibilidade, salvo sob o
econômico e político a vastas extensões de autoritarismo, já que nunca a maioria conse­
terra não cultivada, distantes e sem vias de guiu atingir 50% das cadeiras sem o apoio
acesso aos mercados urbanos, esta conclusão de pelo menos um Estado “minoritário”.
é patente. A consideração do latifúndio como Conclui, em conseqüência, que
empresa essencialmente exportadora, volta­
da para o exterior, em nada altera este racio­ [...] o funcionamento do parlamento depen­
cínio, pois aí estão, entre os sub-representa- dia de coalizões partidárias, respeito às m i­
dos, Pernambuco, Bahia, São Paulo e Rio norias de opinião e negociações entre banca­
Grande do Sul. Tam pouco o modifica a qua­ das estaduais, o que significa proteção à jus­
lificação de que os beneficiados seriam “lati- tiça federativa. Tal resultado foi possível pela
fundistas, hacendados y coroneles de todo razoável estabilidade da distribuição propor-

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cional da população, do eleitorado e da re­ a que estabelece a forma de cômputo do co­
presentação pelos diversos Estados da federa­ ciente eleitoral.11 Finalmente, o autor mostra
ção (Santos, 1987, p. 82). que, em certas circunstâncias, a proporção
de votos nas coalisões pode permanecer está­
O mesmo autor tendeu a descartar tam­ vel, embora alguns partidos percam e outros
bém a tese da oligarquização da representa­ ganhem com a distorção da representação
ção política, mostrando que a taxa de reno­ (Nicolau, 1997).
vação na Câmara dos Deputados nunca foi Dos trabalhos de Santos e, especialmente,
compatível com a hipótese do controle do de Nicolau é possível tirar algumas conclu­
voto por oligarquias nos Estados economica­ sões importantes para a presente discussão.
mente mais atrasados e de menor eleitorado. A primeira é que não há pesquisas empíricas
O argumento de Santos é importante suficientes para fazer afirmações sobre as
porque afirma que, do ponto de vista nor­ conseqüências políticas da sobre-representa-
mativo, há outros critérios para avaliar uma ção/sub-representação dos eleitorados esta­
democracia representativa, além do estrito duais no Congresso. A segunda é que a tese
cumprimento do princípio da igualdade po­ de que a sobre-representação entrega poder
lítica. A proteção aos direitos das minorias de veto a minorias conservadoras requer que
também constitui um critério digno de con­ se faça para cada legislatura o cálculo das
sideração, como vimos há pouco. perdas e ganhos em termos partidários — e
D o ponto de vista empírico, ele chama não estaduais. A terceira é que a sobre-repre-
a atenção para o fato de que a sobre-repre- sentação/sub-representação de partidos na
sentação resultante das regras federativas de Câmara Federal não é resultado apenas das
composição da Câmara e do Senado não são instituições federativas, mas também das re­
as únicas instituições a definir o funciona­ gras eleitorais.
mento do sistema político brasileiro. Voltarei
ao tema no final do trabalho.
Por seu turno, Nicolau (1997), ao mes­ Federalismo e Governabilidade
mo tempo em que mostrou que sobre-repre-
sentação e sub-representação na Câmara fede­ Para os estudiosos, a representação dis­
ral constituem uma característica permanente torcida constituiu um problema da Federa­
de nosso sistema político,10 sugeriu que as ção brasileira pelo menos desde 1945. Seu
conclusões daí extraídas sobre as conseqüên­ efeito, como vimos, seria o de aumentar, por
cias políticas do fenômeno carecem ainda de meio de um artifício político, o poder das
teste empírico mais rigoroso. Ele sugere que elites conservadoras.
existe uma espécie de falácia ecológica na pro­ A esse diagnóstico veio se sobrepor ou­
posição que deduz o predomínio do conser­ tro, resultante da avaliação das instituições
vadorismo na Câmara da desproporção entre criadas pela Constituição de 1988. Segundo
cadeiras e dimensão do eleitorado. este, o sistema federativo de 1988 constitui
O mais correto seria verificar que parti­ um fator de ingovernabilidade.
dos políticos se beneficiam ou se prejudi­ Por ingovernabilidade se tem entendido
cam, nacionalmente, quando o eleitorado de a dificuldade — real ou suposta - que o go­
um ou mais Estados é sub ou sobre-repre- verno federal teria para fazer cumprir sua
sentado. Além do mais, as distorções da re­ agenda, especialmente a de estabilização m o­
presentação dos partidos não derivariam netária, ajustamento do setor público e re­
apenas do desenho federativo, mas de regras formas econômicas de mercado. Assim, nos
eleitorais, como a que permite as coalisões e estudos sobre o federalismo pós-1988, os in­

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dicadores mais freqüentes da dificuldade de A atuação dos governadores se inseriu no con­
governar são: a “guerra fiscal” entre Estados; texto do federalismo estadualista, assumindo,
a dificuldade, até 1994, de implementar m e­ em linhas bem gerais, três características:
didas antiinflacionárias eficazes; a complica­ a) os governadores eram fortes no cenário
da negociação entre governo federal e gover­ nacional graças à forte influência exercida
nos estaduais dos termos do ajuste fiscal nas sobre os parlamentares federais. D essa m a­
duas esferas, incluindo a situação dos bancos neira, os governadores conseguiram contra-
estaduais, o encontro de contas e o equacio- por-se a qualquer iniciativa presidencial que
namento das dívidas dos Estados; a lentidão visasse alterar a ordem federativa vigente, a
da transferência de competências e atribui­ qual era extremamente favorável às unida­
ções na área social da União para as unidades
des estaduais;
subnacionais, em especial para aos municí­
b) os governadores náo atuavam de forma
pios; bem como os percalços à aprovação de
coordenada e cooperativa, mas, ao contrário,
legislação reformista que possa atingir direta
prevalecia a conduta individualista e não
ou indiretamente os interesses de Estados,
cooperativa. Apesar de deterem grande po­
como as reformas previdenciária, adminis­
der político, os governadores não estabele­
trativa e, sobretudo, a tributária.
ciam alianças duradouras para estabelecer
O s adjetivos usados para qualificar o sis­
um projeto político hegemônico; as únicas
tema federativo recente não deixam lugar a
dúvida sobre a avaliação que dele fazem os alianças que os chefes dos Executivos esta­

cientistas políticos: “predatório” (Abrucio e duais conseguiam firmar eram de caráter


Costa, 1998), “fragmentado” e “regional” meramente defensivo e pontual;
(Camargo, 1999), “incompleto” (Camargo, c) os governadores não estabeleciam relações
1999, Kugelmas e Sola, 1999), “desequili­ cooperativas com o Governo Federal, de
brado” (Cam argo, 1999), “estadualista” m odo a instituir um a accountability intergo-
(Abrucio, 1998; Kugelmas e Sola, 1999). vernamental. Ao longo da redemocratização,
Embora seja comum às mais importan­ os governadores aumentaram seu poder, mas
tes e instigantes análises do sistema atual o não suas responsabilidades, assumindo uma
diagnóstico que associa o novo federalismo a lógica de facção, que é propícia à dinâmica
problemas de governabilidade, variam as ên­ do veto e não a da negociação.
fases sobre os aspectos da organização fede­
rativa que dificultariam as tarefas de gover­ N ão se trata apenas de os governadores
no. Dois deles, que não se excluem necessa­ exercerem poder inconteste em seus Estados.
riamente, parecem ser os mais importantes. Eles também são capazes de bloquear as re­
O primeiro resulta da existência de um formas propostas pelo governo federal que
arranjo federativo cujo centro de gravidade possam ameaçar os poderes adquiridos du­
são os governos estaduais, com as seguintes rante a democratização. Enfatizam Abrucio e
conseqüências: 1) os governadores, ao con­ Samuels (1997, p. 34):
trolarem as bancadas estaduais no Congres­
so, transformam-se em atores nacionais po­ [...] no Brasil, a elite política concentra seus
derosos; 2) são maximizadores egoístas que esforços eleitorais de carreira no nível esta­
não cooperam entre si; 3) eles tampouco dual, e, em perspectiva comparada, os gover­
cooperam com o governo federal, usando de nadores possuem um extraordinário poder
preferência seu poder de veto. Nas palavras de manipular a política nos limites de seus
de Abrucio (1998, pp. 217-218): Estados. C om o reconheceram alguns estu­

21
diosos, a “ Reforma do Estado”, depois de cialmente devido a seu crescente papel. O
seus estágios iniciais, depende muito da ca­ Congresso substituiu o governo federal na
pacidade de o país construir coalizões políti­ m ediação para manter os vínculos paro­
cas estáveis (Haggard, 1996). N o Brasil de quiais e para acom odar as diferenças regio­
hoje, por causa da “N ova política dos gover­ nais. O Congresso decide onde os recursos
nadores, informalmente, governadores de federais serão alocados. Esse papel foi pos­
Estado e os interesses que eles representam sível devido ao imenso poder do Congresso
colocam obstáculos a tais coalizões, agindo para emendar o orçamento. O s novos pa­
como veto players que personificam, concen­ péis do Congresso aum entaram a fragm en­
tram e dão voz a interesses institucionais”. tação política, estim ulando a tom ada de de­
cisões caso a caso. O Congresso é o ator
O segundo aspecto é a existência de um m ais importante no processo de tom ada de
sistema de decisões fragmentado, com mui­ decisões, menos por propor e mais por ve­
tos pontos de veto, resultante da combina­ tar, dados seus poderes acrescidos e a falta
ção de descentralização de recursos financei­ de apoio aos presidentes civis. [...]
ros e fiscais, poder político dos governadores O objetivo central da Constituição de legiti­
e fragmentação do sistema de partidos. Ku- mação da nova ordem democrática colocou
gelmas e Sola (1999, p. 79) resumem o argu­ o Congresso e os políticos locais e regionais
mento com elegância, enfatizando a natureza no centro do processo de tom ada de deci­
institucional do problema de governabilida­ sões. M uitos jogadores, todos com poder de
de. Ele afetaria qualquer governo, não im­ veto, estão congestionando a agenda política
porta qual fosse sua agenda: com suas demandas contraditórias.

O regime federativo no país é um dos elemen­ Eu mesma usei um argumento semelhan­


tos constituintes de um imbroglio político- te ao tratar do andamento das reformas econô­
institucional caracterizado por uma multipli­ micas de mercado (Almeida, 1996, p. 226):
cidade de veto points. Deve ser lembrado que
a preocupação com as reformas e o problema As reformas econômicas apenas começaram.
da governabilidade não são apenas uma quei­ A fim de ganhar vida, devem transitar por
xa do governo federal e independe do conteií- um sistema político complexo que dispõe de
do específico das políticas por este definidas. poderes de veto institucionalmente enraiza­
N ão é difícil imaginar a extensão das dificul­ dos e enfrentar influentes detentores de
dades que um presidente eleito pela atual poder de veto. U m sistema com tais caracte­
oposição teria em realizar seu programa. rísticas, sem dúvida, m ultiplica as possibili­
dades de paralisia do processo decisório no
Souza (1997, p. 99) relaciona a frag­ plano governamental. N as circunstâncias
mentação política e a sua manifestação em brasileiras, a distância entre reforma gradual
um Congresso com poderes acrescidos, e nenhum a reforma às vezes se torna perigo­
como obstáculos à governabilidade: samente reduzida.

[...] a descentralização financeira para os Entre os fenômenos que considerei rele­


governos subnacionais é apenas parcial­ vantes para a multiplicação dos atores com
mente responsável pelos problem as do exe­ poder de veto, destaquei: o poder e o perfil
cutivo para construir coalizões de governo. das organizações de interesse, a descentrali­
O utras limitações vêm do Congresso, espe­ zação das estruturas governamentais, o con­

22
seqüente aumento da influência dos gover­ hipótese da existência de diferenças intra-
nadores e o enfraquecimento da capacidade partidárias estaduais fortes, concluem:
decisória do governo federal.
Em resumo, o processo de democratiza­ Os dados não suportam a tese segundo a qual
ção e a Constituição de 1988, que foi seu de- governadores exerçam controle sobre as respec­
saguadouro, teriam produzido uma distri­ tivas bancadas no Congresso Nacional. Maio­
buição de poder e uma arquitetura institu­ rias são formadas em bases partidárias e não
cional geradoras de impasse, quando não de pela adição de bancadas estaduais controladas
crise. A nova estrutura federativa brasileira, pelos governadores. As bancadas estaduais dos
descentralizada, estadualista e incompleta no diferentes partidos seguem a orientação nacio­
que se refere à atribuição de competências e nal do partido. N ão há bases para sustentar a
responsabilidades, teria impacto negativo so­ afirmação de que o Executivo negocie com go­
bre a capacidade do governo federal de apro­ vernadores e não com os partidos.
var e executar sua agenda.
[...1
Voltarei ao tema das competências e
Para que as bancadas estaduais ditassem o
atribuições dos níveis de governo. Gostaria
tom do processo decisório agindo como um
antes de discutir com mais vagar o argumen­
ator de veto, seria necessário que este veto
to da multiplicação dos poderes de veto. Ele
fosse exercido sobre questões que não envol­
é constituído de duas partes: uma, empirica­
vessem diretamente os interesses estaduais.
mente bem fundamentada; e outra, a meu
Seria preciso que observássemos algum tipo
juízo, carente ainda de demonstração.
de troca, de ação estratégica das bancadas es­
Bem demonstradas e convincentes são as
taduais, de tal forma que estas condicionas­
afirmações sobre a importância política dos
sem seu apoio à aprovação de uma matéria
governadores na transição do autoritarismo
para a democracia; bem como aquelas acerca de interesse do Executivo ao atendimento
do controle político que exercem sobre os le­ dos interesses de seu Estado. N ão há qual­
gislativos de seus Estados e que os fez “barões quer indicação de que isso venha ocorrendo.
da Federação” (Abrucio, 1998). Na mesma Isso não é o mesmo que afirmar que a cliva­
direção, cabe lembrar, também, que até 1990 gem regional (ou estadual ) não se faça pre­
as eleições para os Executivos estaduais foram sente e/ou não seja importante no interior
centrais para a conformação do sistema de do processo decisório brasileiro.
partidos, na medida em que estruturavam a
competição partidária-eleitoral para os Legis­ Os autores argumentam ainda que a
lativos estaduais e o Congresso. taxa de aprovação das iniciativas legislativas
Entretanto, existe uma parte não de­ de interesse do Executivo, desde 1990, é se­
monstrada no argumento. Trata-se da afirma­ melhante a de sistemas parlamentaristas, o
ção de que o poder acumulado e enraizado que enfraquece, também, a hipótese da crise
nos Estados tenha transformado os governa­ de governabilidade.
dores, automaticamente, em jogadores com Não resta dúvida de que a transforma­
poder de veto, com controle sobre as bancadas ção do sistema federativo centralizado do pe­
estaduais no Senado e na Câmara. O único ríodo autoritário numa federação mais des­
estudo empírico feito a respeito do compor­ centralizada sob regime democrático com­
tamento do Congresso não parece indicar plica enormemente o processo de decisão.
que isso tenha ocorrido com a intensidade Essa passagem efetivamente multiplica o nú­
que se supõe. Assim, Limongi e Figueiredo meros de participantes no jogo, como resul­
(2000), depois de testar sistematicamente a tado tanto da democratização quanto da re-

23
forma federativa. Mais complexo fica o pro­ Olhando os anos de 1990 com o bene­
cesso decisório quando a agenda governa­ fício da perspectiva do tempo e do crescente
mental inclui um robusto conjunto de mu­ conhecimento empírico sobre as relações
danças econômicas e político-institucionais, Executivo/Legislativo, parece difícil susten­
como ocorreu nos anos de 1990. tar a tese da crise de governabilidade de raiz
Não se trata aqui de minimizar os pro­ institucional. Igualmente difícil é atribuí-la,
blemas que acompanharam a democratiza­ ainda que em parte, ao modelo federativo
ção no Brasil, a começar pela superinflação e descentralizado inscrito na Constituição de
continuando pelo desmoronamento da ad­ 1988.
ministração Collor. Foram anos em que a so­ De um lado, não parece haver evidên­
ciedade, os grupos organizados e as elites di­ cias de que as instituições federativas, ao
vidiram-se com relação às opções de políticas multiplicar pontos de veto potenciais, te­
a seguir quanto ao enfrentamento da infla­ nham contribuído significativamente para
ção, à definição das atribuições do governo bloquear as iniciativas do governo federal.
na esfera econômica e às formas possíveis de Outros mecanismos institucionais podem
ajustamento do país ao novo ambiente eco­ atuar em sentido contrário, reduzindo as
nômico internacional. oportunidades efetivas de veto. É o que pa­
Penso, entretanto, que a tese da existên­ recem evidenciar os trabalhos de Figueiredo
cia de uma crise de governabilidade resultan­ e Lim ongi (2000) sobre as relações Executi­
te, ou, pelo menos, sensivelmente agravada, vo/Legislativo.
por fatores institucionais, entre os quais o de­ De outro lado, nem tudo pode ser atri­
senho da Federação no pós-1988, não parece buído apenas ao efeito das instituições. Tam­
sustentar-se em evidências empíricas sólidas. bém conta a distribuição efetiva de preferên­
Nem o Congresso, nem os partidos, nem os cias entre atores políticos relevantes —mesmo
governadores foram jogadores com poder de quando alguns o são por força do desenho
veto capazes de bloquear a agenda no Execu­ institucional, como os governadores. Ao que
tivo. O que parece notável, ao contrário, é a tudo indica, não foram adiante itens da
quantidade de iniciativas legislativas que in­ agenda de reformas em torno dos quais exis­
troduziram reformas profundas - algumas tia grande controvérsia entre atores com po­
das quais requerendo mudança constitucio­ der decisório, mesmo dentro do governo fe­
nal - e terminaram aprovadas no Congresso. deral e da coalisão política que o sustenta. O
Isto não significa que tenham sido aprovadas caso mais notório é o da mudança do siste­
sem alterações ou que o Executivo não tenha m a tributário.
sido obrigado a negociar com partidos, go­
vernadores e prefeitos, antes e durante a tra­
mitação de seus projetos — como é próprio Federalismo, Relações Intergoverna-
das democracias e, especialmente, daquelas mentais e Políticas Públicas
que se organizam como federações.
Com efeito, federações são arranjos ins­ A responsabilidade pela definição e
titucionais que propiciam e requerem a ne­ implementação de políticas públicas, espe­
gociação entre esferas de governo, dotadas de cialmente as de corte social, constitui outro
certo grau de autonomia e recursos próprios ângulo de abordagem da experiência federa­
de poder. Logo, decisões em sistemas federa­ tiva brasileira. Excluída a fase da Primeira
tivos, sobretudo quando descentralizados e República, durante a qual prevaleceu um
dem ocráticos, implicam necessariamente modelo dual12 e os Estados acumularam
numerosas e complicadas transações. considerável volume de atribuições, governo

24
federal e governos subnacionais sempre esti­ para a estratégia de liberalização controlada
veram envolvidos na decisão sobre políticas adotada pelo governo Geisel.
e no provimento de bens e serviços coleti­ Finalmente, Souza (1997, 2000) enfati­
vos. O grau e a forma de participação das zou os elos entre redemocratização e descen­
esferas de governo dependeram do caráter tralização federativa e discutiu o processo
menos ou mais centralizado do arranjo fe­ político que desembocou na Assembléia N a­
derativo prevalecente. cional Constituinte, as estratégias ali predo­
Com efeito, a literatura especializada é minantes e a sua materialização na Carta de
unânime em apontar a alternância entre pe­ 1988. Também chamou a atenção para os
ríodos de centralização e descentralização mecanismos financeiros e políticos de aco­
como um traço saliente da história do fede­ modação das disparidades regionais, possibi­
ralismo brasileiro. Eles tendem a coincidir, litados pela nova organização federativa,
respectivamente, com o predomínio de regi­ mostrando as limitações desse processo.
mes autoritários e com a vigência da ordem A Constituição de '1988 redesenhou a
democrática (Camargo, 1992; Kugelmas e estrutura do Estado, dando-lhe as feições de
Sola, 1999; Souza, 2000; Carvalho, 1995; uma federação descentralizada. Um a das di­
Souza, 1997). Selcher (1989, 1990) põe em mensões importantes desse processo foi a re­
dúvida a existência de uma Federação efetiva definição de competências e atribuições das
quando o autoritarismo prevalece. Referin­ esferas de governo no âmbito da proteção so­
do-se ao período militar, argumentou que o cial. Eis por que os estudos sobre mudanças
formalismo federal encobria a realidade de nessa área de atuação governamental tiveram
um Estado unitário. de se haver necessariamente com o tema da
N o que concerne às políticas sociais, descentralização.
vale notar que foi durante as fases de centra­ A descentralização em sistemas federati­
lização autoritária (1930-1945 e 1964- vos tem peculiaridades que não podem ser
1984) que se construíram e expandiram o desconsideradas. O projeto Federalismo no
marco legal, as organizações e os programas Brasil, realizado pela Fundap/SP, em
que compõem o multifacetado aparato de 1992/1993, sob a coordenação de Ruy Af-
proteção social brasileiro. A extrema centra­ fonso, tratou, em um de seus subprojetos, de
lização de recursos e de capacidade decisória observar o processo de descentralização da
conviveu, em muitos casos, com uma des- políticas sociais como parte das transforma­
concentração da gestão de programas (Ar- ção do sistema federativo brasileiro. Entre­
retche, 2000). tanto, o subprojeto que se ocupou da ques­
Medeiros (1986) discutiu as principais tão, por mim coordenado, não tirou todas as
características do federalismo centralizado e implicações do que havia de específico na
da complexa trama de relações intergoverna- transferência de competências e atribuições
inentais que o caracterizaram, sob o autori­ em uma federação.
tarismo burocrático. M ostrou, também, A maior parte das variáveis ali utilizadas
como os governos subnacionais contribuí­ para explicar o ritmo e os resultados das ini­
ram para a legitimação do regime e prolon­ ciativas de descentralização nas áreas de edu­
garam sua sobrevivência. Saddi (1999), se­ cação, saúde, habitação e assistência social
guindo as pistas sugeridas por Dias e Aguir- serviriam, também, para dar conta de pro­
re (1992), apontou a importância das m u­ cessos de descentralização em Estados unitá­
danças na representação dos Estados na C â­ rios. Em particular, não se explorou a fundo
mara e de uma certa distribuição regional de as características do modelo federativo que a
recursos econômico-financeiros do II PN D , Constituição defmia para as áreas sociais, o

25
que impediu de discutir também de manei­ ficiência e, no limite, não provimento de cer­
ra mais adequada as condições que o torna­ tos bens ou serviços. Assim, o desenho cons­
riam possível em escala ampla. Tampouco titucional seria apenas um esboço, com
enfatizamos suficientemente a relação entre muitas áreas de sombra, competências inde­
a natureza do jogo político característico das finidas, mecanismos de responsabilização
federações e o caráter necessariamente nego­ por desenhar. Esta é a conclusão de estudo
ciado —e demorado —do processo de trans­ dirigido por Aspásia Camargo (1999, p. 30):
ferência de responsabilidades.
Arretche (2000), que também partici­ Considerada a abrangência das competências
pou do projeto Federalismo no Brasil, deu comuns e concorrentes, conclui-se que são
um signficativo passo adiante no conheci­ ambíguas as fronteiras funcionais para a atua­
mento sobre a descentralização de responsa­ ção das diferentes instâncias de governo, nas
bilidades pela proteção social em sistemas fe­ mesmas áreas, o que gera inúmeros conflitos e
derativos. Estudando oito programas, em rivalidades; superposições de esforços e pulve­
cinco áreas —saúde, habitação, saneamento rização de recursos; políticas e ações contradi­
básico e educação fundamental - , em seis tórias; omissões no atendimento à população;
Estados, examinou o impacto de fatores dificuldades para se caracterizar responsabili­
estruturais das unidades de governo (capaci­ dades e se implantar o controle social
dade econômica, fiscal e administrativa); as
características institucionais das políticas (re­ Em conseqüência, caberia definir com
gras constitucionais, requisitos de engenha­ clareza - de preferência por meio de lei - as
ria operacional e legado de políticas prévias); competências e as responsabilidades que to­
e os fatores ligados à ação política (relações cam ao governo federal, aos Estados e muni­
entre Estado e sociedade e relações intergo- cípios em cada um dos âmbitos nos quais a
vernamentais). Sua pesquisa mostrou que, ação social do poder público se tornou pra­
em sistemas federativos, as estratégias de in­ xe. A dificuldade de fazê-lo seria uma evi­
dução com incentivos adequados, imple­ dência de que o federalismo brasileiro é uma
mentadas pela esfera de governo que transfe­ obra de arquitetura política incompleta.
re atribuições - federal ou estadual, conforme A partir desse diagnóstico, com o qual
o caso - , são fundamentais para a adesão da parecem concordar Kugelmas e Sola (1999,
esfera de governo que recebe a responsabili­ p. 77), a autora, em texto posterior, agora de
dade transferida. sua responsabilidade exclusiva, afirma:
Não são poucos os autores que conside­
ram que o modelo federativo atual dificulta Para converter um conjunto de “ajustes” fe­
esse processo de transferência e, em conse­ derativos em um “pacto” é preciso, antes de
qüência, tem pelo menos parte da responsa­ mais nada, obter consenso da classe política
bilidade pela baixa eficácia das ações públi­ e das lideranças civis em geral, em torno de
cas na área social. Segundo eles, no âmbito regras do jogo a serem introduzidas. Em pri­
das políticas sociais, prevaleceria no modelo meiro lugar, as atribuições de cada ator (G o­
federativo brasileiro uma injustificável e in­ verno federal, Estados e municípios), o seu
desejável superposição de competências e modus-operandi e seus limites de ação [...]
atribuições entre as três esferas de governo. (Camargo, 1992, p. 82).
Ela redundaria na prestação descoordenada
do mesmo tipo de serviço ou bem coletivo Acredito que, postos dessa maneira, tanto
por mais de uma esfera governamental, ou o diagnóstico quanto a prescrição são equivo­
em um jogo de empurra que acarretaria ine­ cados. O modelo constitucional é claro e não

26
há nada de errado com a superposição de com­ nização da polícia civil [Constituição federal,
petências e atribuições entre as esferas de gover­ art. 24).
no. A existência de competências legislativas con­ A definição do conteúdo concreto da
correntes e de competências comuns na oferta de cooperação, bem como os mecanismos que a
bens e serviços é da essência do federalismo. Nas possibilitariam caberiam seja à legislação or­
federações contemporâneas, a tendência à par­ dinária, seja a iniciativas governamentais,
ticipação das diferentes esferas de governo nas nos três âmbitos. Acredito que as vicissitudes
distintas atividades públicas é universal, como da transferência de responsabilidades não
tratei de mostrar cm artigo recente (Almeida, podem ser atribuídas ao desenho constitu­
2000). Ela, ademais, permite uma flexibilidade cional. Os que assim consideram parecem
na distribuição de responsabilidades muito ter como modelo experiências de descentra­
adequada às circunstâncias de um país onde as lização em Estados unitários, sem levar em
capacidades financeira e administrativa das consideração que a existência da Federação
unidades subnacionais - especialmente dos influi sobre o ritmo e a própria forma da
municípios —são tão notoriamente desiguais. transferência de responsabilidades. Em pri­
De fato, no terreno das políticas sociais, meiro lugar, trata-se de processo necessaria­
a Constituição de 1988 apontou na direção mente lento e negociado, pois supõe o en­
de uma modalidade d c fedemlismo cooperati­ tendimento entre autoridades públicas dota­
vo, um sistema caracterizado pela existência das de autonomia de decisão, mesmo que
de funções compartilhadas pelas diferentes em graus diversos.
esferas de governo e pelo “fim de padrões de Outros fatores, apontados pela literatu­
autoridade e responsabilidade claramente ra recente, parecem igualmente relevantes
delimitados” (Acir, 1981, p. 4 ).13 O sistema para o entendimento do processo em curso.
havia de ser também marcadamente descen­ Arretche (2000) e Almeida (1996, 2000) en­
tralizado, por oposição à lei e à prática vigen­ fatizaram a importância de o governo federal
tes sob o autoritarismo burocrático. ter políticas deliberadas de descentralização
A nova Carta estabeleceu competências que contenham garantias e incentivos às es­
comuns para a União, Estados e municípios feras de governo para as quais se pretende
nas áreas de saúde, assistência social, educação, transferir responsabilidades. M ostraram,
cultura, habitação e saneamento, meio am­ também, que a atuação do governo central
biente, proteção do patrimônio histórico; com relação às diferentes áreas sociais tem
combate à pobreza e integração social dos seto­ variado da inação à definição de regras e ins­
res desfavorecidos e educação para o trânsito. trumentos que dáo incentivos claros à des­
As formas de cooperação entre os três níveis de centralização de responsabilidades.
governo deveriam ser definidas por legislação Na mesma direção, Abrucio e Costa
complementar ( Constituição Federal, art. 23). (1998) reconheceram a existência, entre as for­
A Carta atribuiu competências legislati­ ças políticas e a sociedade civil organizada, de
vas concorrentes14 aos governos federal e es­ duas orientações diferentes. A primeira seria
taduais em uma ampla gama de temas: pro­ “favorável a algum tipo de ‘federalismo mais
teção ao meio ambiente e aos recursos natu­ ou menos cooperativo’”, no qual o governo fe­
rais; conservação do patrimônio cultural, ar­ deral exerceria papel coordenador. A segunda
tístico e histórico; educação, cultura e espor­ seria mais “liberal” no que toca às relações in-
tes; juizado de pequenas causas; saúde e pre­ tergovernamentais, apontando na direção de
vidência social; assistência judiciária e defen- um federalismo competitivo. Os autores pro­
soria pública; proteção à infância, à adoles­ põem uma terceira possibilidade, com ênfase
cência e aos portadores de deficiências; orga­ na formação de instâncias intergovernamen-

27
tais de planejamento, coordenação e avaliação, plo, quais os indicadores de centraliza­
as quais, conforme o escopo da política, pode­ ção/descentralização? Qual a diferença en­
riam tanto integrar horizontalmente vários go­ tre um arranjo federal cooperativo e uma
vernos da mesma esfera, quanto verticalmente distribuição vertical de funções entre os ní­
esferas de governo distintas. veis de governo, definida e controlada pelo
Finalmente, Souza (2000) chamou a governo nacional?
atenção para o impacto das fortes desigual­ Essa discussão implica reconhecer que as
dades regionais às quais estão associadas di­ tipologias em uso na ciência política em esca­
ferenças muito significativas de capacidade la internacional - assim como no Brasil - são
econômica e administrativa dos governos lo­ ainda toscas, excessivamente referidas ao caso
cais. Souza alerta, também, para um proble­ nacional ao qual se aplicam e sem relação cla­
ma igualm ente apontado por Arretche ra com alguma teoria minimamente construí­
(2000) e Almeida (1996, 2000): a tensão en­ da. Há quem acredite, como Riker (1964),
tre a descentralização de atribuições na área que a única teoria possível é a da gênese da fe­
social e as políticas de ajustamento fiscal do deração. Mas essa afirmação é discutível, como
governo federal. tratou de mostrar Stepan (1999).
Em suma, os estudos apoiados em pes­ Muitas das hipóteses que a literatura
quisa empírica tenderam a desviar a explica­ tem formulado no Brasil requerem um dese­
ção sobre as dificuldades da descentralização nho de pesquisa comparada, de preferência,
na área social do modelo federativo da Cons­ com o maior número possível de casos.
tituição para outras variáveis estruturais ou Finalmente, se quisermos avançar o co­
intencionais, ou mesmo institucionais. nhecimento sobre o impacto do sistema fe­
derativo em relação a algum fenômeno defi­
nido - a fragmentação partidária, a força po­
Observações Finais lítica de certos grupos de interesse ou o rit­
mo do processo de descentralização —, deve­
Embora recente, os estudos sobre fede­ mos ser capazes de enfrentar um dos maiores
ralismo no Brasil, em ciência política, já de­ desafios da análise institucionalista.
finiram um conjunto significativo de proble­ Consiste em isolar o impacto da insti­
mas e hipóteses. Muitas delas carecem ainda tuição escolhida - no caso, um arranjo fede­
de mais pesquisa empírica para se tornarem rativo específico — da influência de outras
proposições aceitas. instituições que operam simultaneamente e
A pesquisa brasileira está referida à que podem tanto ampliar quanto contraba­
produção acadêmica internacional sobre o lançar o efeito da primeira. Esse parece ser o
tema, especialmente àquela que trata de caso, em muitos exemplos vistos, quando
classificar os vários tipos de arranjos federa­ tratamos das distorções da representação na
tivos. N o entanto, falta ainda uma discus­ Câmara ou da fragmentação por Estado das
são mais sistemática e crítica sobre as tipo­ bancadas partidárias no Congresso.
logias que tom am os de empréstimo, bem A tarefa está longe de ser banal e, mais
como sobre os qualificativos usados para uma vez, parece requerer um cuidadoso de­
caracterizar o sistema federativo brasileiro, senho de pesquisa, comparando um grande
especialmente o atual. Emprega-se, com ra­ número de casos. Mas, deixá-la de lado pode
zoável imprecisão, termos como federalis­ significar o abandono de qualquer pretensão
mo centralizado ou descentralizado, federa­ a fazer da abordagem institucionalista algo
lismo cooperativo ou competitivo, e por aí mais do que um gesto inconseqüente de re­
vai. Pois seria necessário saber, por exem­ verência a um modismo intelectual.

28
Notas

1. No Brasil, o interesse da ciência econômica pelo tema é também recente.


2. Elazar (1986) define o federalismo por três características: 1. Constituição escrita, que
estabelece os termos em que o poder é compartilhado, termos que só podem ser altera­
dos por meio de procedimentos extraordinários. (Juridicamente, segundo Elazar, as
constituições federativas são diferentes porque constituem pactos não apenas entre indi­
víduos mas envolvem, também, as unidades constitutivas da federação, que retém direi­
tos de fazer constituições próprias.); 2. Não-centralização: independente de como os po­
deres são compartilhados entre o governo nacional e os governos subnacionais, a auto­
ridade para participar no exercício daqueles poderes não pode ser tirada de uns e outros
sem consentimento mútuo. 3. Divisão do poder em bases territoriais. Já Lijphardt defi­
ne o federalismo por cinco características: 1. Uma constituição escrita que especifica a
divisão de poderes e garante tanto ao governo nacional quando aos governos subnacio­
nais que os poderes a eles atribuídos não podem ser unilateralmente tirados; 2. Um le­
gislativo bi-cameral no qual uma câmara representa o povo em geral e a outra as unida­
des componentes da federação; 3. Sobre-representação das unidades componentes me­
nores na câmara federativa do legislativo bi-cameral; 4. Direito de as unidades constitu­
tivas de se envolver nos processos de emendar a constituição, mas não de emendar suas
próprias constituições unilateralmente; 5. Governo descentralizado, i.e., a parcela de po­
der dos governos subnacionais é relativamente grande quando comparada à dos governos
regionais em Estados unitários.
3. Agradeço a Celina Souza por ter me chamado atenção para essa questão.
4. Segundo Riker (1964, pp. 113-114), o federalismo é uma barganha constitucional entre
políticos racionais cujas únicas duas condições são: 1)'Desejo da parte dos políticos que
oferecem o acordo de expandir seu controle territorial por meios pacíficos. 2) Desejo da
parte dos políticos que aceitam a barganha proposta de abrir mão de sua independência
em benefício da união.
5. Ela foi objeto da Emenda Passos Porto, de 1983, que aum entou o número de deputa­
dos de São Paulo, ainda que não tenha solucionado o problem a do desequilíbrio da
representação.
6. A própria autora, na continuação do argumento, discute as condições concretas e dificil­
mente verificáveis que possibilitariam ao eleitorado do Sul e Sudeste um papel decisivo
na escolha presidencial.
7. Agradeço a Marcus Mello por ter-me chamado a atenção para essa traço da análise de Stepan.
8. “ [...] governo da maioria e o padrão governot>m«íoposição que ele implica pode ser con­
siderado não democrático porque eles são princípios de exclusão. Lewis afirma que o sen­
tido primeiro de democracia é o de que todos que são afetados por uma decisão devem
ter a chance de participar na produção da decisão, diretamente ou por meios de seus re­
presentantes. ‘Seu significado secundário é o de que a vontade da maioria deve prevale­
cer’. Se isso significa que os partidos vencedores podem tomar todas as decisões de gover­
no e que os derrotados podem apenas criticar, mas não governar, argumenta Lewis, os
dois significados são incompatíveis: excluir os grupos perdedores de participar das deci­
sões viola claramente o sentido primeiro de democracia” (Lipjhart, 1984, p. 21).

29
9. Agradeço a Fernando Limongi ter me lembrado dessa contribuição de Campello de Sou­
za à discussão.
10. Segundo seus cálculos a distorção média é de aproximadamente 10%, ou seja, essa é a
porcentagem total ganha pelos Estados sobre-representados e perdida pelos sub-represen-
tados (Nicolau, 1997, p. 457).
11. Analisando o resultado das eleições de 1994, o autor verifica que 22 cadeiras estariam fora
de lugar transformando o PT e o PSD B em perdedores líquidos, enquanto, PFL, PPB e
PP teriam sido os principais beneficiados. Mostra, entretanto, que, se corrigida a distor­
ção federativa, o PFL continuaria sobre-representado e o PM D B viria a ele se juntar (N i­
colau, 1997, p. 456).
12. Dá-se o nome de federalismo dual ao arranjo no qual “os poderes do governo geral e do
Estado, ainda que existam e sejam exercidos nos mesmos limites territoriais, constituem
soberanias distintas e separadas, que atuam de forma separada e independente, nas esfe­
ras que lhes são próprias” (Acir, 1981, p. 3).
13. A noção de federalismo cooperativo diz respeito tão somente à ausência de delimitação
clara dos âmbitos de autoridade e de responsabilidade das esferas de governo e à conse­
qüente possibilidade de ação conjunta e coordenada entre elas. Não existe, por conse­
guinte, conteúdo valorativo.
14. A União tem competência para estabelecer normas gerais que podem ser complementa­
das por legislação estadual. N a ausência de legislação federal, os Estados exercem compe­
tência legislativa plena.

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Resumo

Federalismo, Democracia e Governo no Brasil: Idéias, Hipóteses e Evidências

O texto faz um balanço da literatura sobre o federalismo. A intenção é destacar a contribui­


ção própria da ciência política, assinalando avanços, vicissitudes e desafios em nosso terreno
disciplinar. A exposição está estruturada por temas e não por autores ou trabalhos específicos.
Os temas que organizam a discussão são: 1) a gênese do federalismo brasileiro; 2) federalismo,
representação política e democracia; 3) federalismo e governabilidade; 4) federalismo, relações

33
intergovernarnentais e políticas públicas. No final, são indicados alguns problemas conceituais
e metodológicos que os estudos sobre federalismo no Brasil não podem ignorar.

Palavras-chave: federalismo; federação; relações intergovernarnentais.

Abstract

Federalism, Democracy an d Government in Brazil: Issues, Hypothesis an d Evidences

The article is a review essay o f the studies on federalism in Brazil. The aim is to discuss the
especific contribution o f Political Science, showing the analitical developments, shortcomings
and challanges confronted by the discipline. The discussion is organized around four main
themes: 1) the origins of Brazilian federalism; 2) federalism, political representation and de­
mocracy; 3) federalism and governability; 4) federalism, intergovernmental relations and pu­
blic policies. In the final remarks, there is a suggestion o f some conceptual and methodologi­
cal issues that the studies on federalism in Brazil should consider.

Keywords: federalism; federation; intergovernmental relations.

Résumé

Fédéralisme, Démocratie et Gouvernement au Brésil : Idées, Hypothèses et Evidences

Le texte fait le point sur la littérature à propos du fédéralisme. L’intention est de mettre en
évidence la contribution propre de la science politique, en indiquant les avancées, les vicissi­
tudes et les défis de cette discipline. L’exposition est structurée par thèmes et non par auteurs
ou travaux spécifiques. Ces thèmes sont les suivants : 1) genèse du fédéralisme brésilien ; 2)
fédéralisme, représentation politique et démocratie ; 3) fédéralisme et gouvernabilité ; 4)
fédéralisme, relations intergouvemementales et politiques publiques. En conclusion, nous
indiquons quelques problèmes conceptuels et méthodologiques que les études sur le fédéral­
isme au Brésil ne peuvent ignorer.

Mots-clés: fédéralisme ; fédération ; relations intergouvemementales.

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