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* Este artigo é parte da pesquisa Democracia e Governo Local que conta com apoio da Fapesp (Projeto temá
tico 97/02292-4). Foi apresentado no Seminário da ABCP, em junho de 2000, em Ouro Preto, e benefi
ciou-se muito da rica discussão que ali ocorreu. Sou particularmente grata a meus debatedores e amigos Ce-
lina Souza e Fernando Abrucio, pelas comentários agudos e pertinentes à primeira versão deste texto.
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BIB , São Paulo, n ° 51, I o semestre de 2001, pp. 13-34
Com o objetivo de discutir a contribui res de relações intergovernamentais, constitu-
ção própria dos estudos de ciência política tivamente competitivas e cooperativas, e neces
para o entendimento da experiência federa- sariamente caracterizadas tanto pelo conflito
lista brasileira, a exposição está estruturada de poder, como pela negociação entre esferas
por temas e não por autores ou trabalhos es de governo. A latitude que há de ter a juris
pecíficos. Dessa forma, os mesmos autores e dição política autônoma do governo nacio
trabalhos podem aparecer na discussão de nal e das unidades subnacionais situa-se no
mais de um tema. E bem possível que essa cerne daquele conflito de poder.3
opção não faça justiça à complexidade dos ar
gumentos dos autores e trabalhos discutidos.
Os temas que organizam a discussão A Gênese do Federalismo Brasileiro
são: 1) a gênese do federalismo brasileiro; 2)
federalismo, representação política e demo Polemizando com a influente teoria de
cracia; 3) federalismo e governabilidade; e 4) Riker (1964) sobre a gênese do federalismo,4
federalismo, relações intergovernamentais e Stepan (1999) argumenta que há duas lógicas
políticas públicas. Cada um deles será trata de formação das federações: a primeira, reco
do a seguir. No final, serão indicados alguns nhecida por Riker, consiste em juntar unida
problemas conceituais e metodológicos que des político-territoriais previamente existen
os estudos sobre federalismo no Brasil não tes; a segunda trata de “manter juntos” mem
podem ignorar. bros de uma coletividade que poderiam aspi
Adota-se aqui a definição comumente rar à existência como unidades politico-terri-
aceita de federalismo, segundo a qual o con toriaís independentes. A formulação de Ste
ceito pode ser entendido como um conjun pan parece mais adequada à análise da gênese
to de instituições políticas que dão forma à da federação brasileira, um caso claro de ope
combinação de dois princípios; autogoverno ração da lógica do “manter juntos”.
e governo compartilhado (selfruleplus shared Para o entendimento das condições que
rulê). A federação é, assim, uma forma de or deram origem ao sistema federativo, como,
ganização política baseada na distribuição por sinal, de qualquer forma de organização
territorial de poder e autoridade entre ins política, ganham relevo as idéias dominan
tâncias de governo, constitucionalmente de tes entre os atores com poder de decisão.
finida e assegurada, de tal maneira que o go José Murillo de Carvalho (1995) dá uma
verno nacional e os subnacionais são inde importante contribuição nesse sentido, re
pendentes nas suas esferas próprias de ação.2 construindo os eixos do debate político e in
Na verdade, o federalismo constitui um telectual que, ao longo do período monár
compromisso peculiar entre difusão e concen quico, preparou o terreno para a solução re
tração do poder político em função da luta publicana federativa.
política e das concepções predominantes so Carvalho argumenta que, desde muito
bre os contornos do Estado nacional e sobre cedo, a federação aparece como uma das al
os graus desejáveis de integração política e de ternativas vislumbradas pelas elites. Primei
eqüidade social. Assim, Elazar (1986, p. 33) ro, quando se trata de redefinir as relações
lembra que “o federalismo trata simultanea no interior do Reino Unido de Portugal,
mente de difundir o poder político em nome Brasil e Algarve, após a derrota de Napoleão.
da liberdade e de concentrá-lo em nome da E, depois, fechado o caminho de uma solu
unidade ou de um governo atuante” . ção unitária, quando se trata de organizar
Por serem estruturas não-centralizadas, politicamente a antiga colônia portuguesa.
os sistemas federais moldam formas peculia Manter a sua integridade territorial transfor
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ma-se na questão central e recorrente da cia para que se aproximasse do modelo nor-
agenda política, desde a independência. M o te-americano (Carvalho, 1995, p. 60).
narquia e república, centralização e descen
tralização, Estado unitário e federação foram Derrotada outra vez, no começo dos anos
respostas institucionais, vislumbradas pelas de 1840, com a imposição do centralismo mo
elites, ao desafio de “manter junto” um país, nárquico, a proposta de federação volta a ga
onde eram fortes as tradições localistas her nhar força a partir dos anos de 1860, agora as
dadas do período colonial. sociada não apenas à demanda de descentrali
Nesse contexto, a alternativa de organi zação, mas também à idéia de república, tanto
zação federativa jamais desaparece dos deba na obra de polemista de Tavares Bastos —“ab
tes políticos e, em conseqüência, do hori solutismo, centralização e império são expres
zonte de soluções possíveis. Trata-se de uma sões sinônimas” —quanto no lema sintético do
leitura particular do significado da federa Manifesto Republicano - “centralização-des-
ção, esclarece Carvalho: membramento; descentralização-unidade”
(Carvalho, 1995, pp. 65-66).
Se o foco de Carvalho incide nas idéias
Se tomamos as duas tradições federalistas
que conferiram sentido às ações das elites,
norte-americanas, a hamiltoniana, exposta
Eduardo Kugelmas (1986) põe ênfase nos in
no clássico O Federalista, preocupada com o
teresses e no processo político que, finalmen
fortalecimento do governo central, e a jeffer-
te, deram vida ao ideal federalista, materiali
soniana, depois desenvolvida por Tocquevil- zado nas instituições da República. Ao fazê-lo
le, que enfatizava o self-government, conclui torna mais nítidas as características específicas
remos que a cópia feita pelo Brasil e por vá do modelo de federação adotado no país.
rios países da América Latina tinha em vista A federação extraordinariamente descen
a segunda tradição. Federalismo entre nós tralizada, que resulta da Constituição de 1891
significava e significa descentralização, self- e da construção política realizada pelos pri
government, condição para a liberdade, se não meiros presidentes civis, é obra das elites pau
é a própria liberdade (1995, p. 75). listas. Elas se movem, segundo o autor, não
por um projeto nacional de hegemonia, mas
A força da proposta federalista, que a pelo objetivo de assegurar condições para o
torna recorrente, segundo Carvalho, é a sua funcionamento, no Estado de São Paulo, de
correspondência com uma realidade socioló um poder público capaz de atender às neces
sidades do complexo de atividades estrutura
gica, cristalizada na colônia. Ela encontra,
das em torno da cafeicultura. E um projeto de
porém, diversas formulações, cujos significa
construção estatal no nível estadual que mol
dos são dados pela estrutura do conflito po
da o arcabouço político nacional segundo um
lítico e ideológico em cada momento.
modelo federativo dual e descentralizado:
Associado à demanda de descentraliza
ção, o ideal federativo está presente no deba
Vim os como a óbvia preponderância paulis
te constitucional do início da década de 1 9 3 0
ta na fase inicial da República, plasmada na
e na Reforma Constitucional de 18 3 4 , que
própria construção institucional em marcha,
teve como registro central a cristalização da
adotou alguns elementos federais como as esfera do poder público a nível estadual.
assembléias provinciais, a divisão de recursos C om relação aos rumos do poder central, o
fiscais e a eliminação do Conselho de Esta que se buscou foi o estabelecimento de regras
do. [...] N o que se refere à federação, faltava do jogo políticas consentâneas com a conso
somente a eleição dos presidentes de provín lidação desta esfera estadual. A [...] insistên
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cia na tese da “dupla soberania” conduzia, no mas federais. Lijphart (1984, p. 173) consi
limite, a uma visão “confederacionista” da dera a “sobre-representação das unidades ter
Federação, o que significa, em última análise, ritoriais menores na câmara federativa do le
um poder central limitado. Forte o suficiente gislativo bi-cameral” um traço constitutivo
para garantir a estabilidade republicana e de toda e qualquer federação.
“frear os excessos” das lutas faccionais através Entretanto, como é sabido, no Brasil,
da tutela exercida sobre os “ Estados fracos” , aquela distorção existe não apenas no Sena
as oligarquias débeis. Respeitador, por outro do, mas também na Câmara, onde estão re
lado, de autonomia de quem tem condições presentados os cidadãos. E ocorre, em graus
financeiras e militares para exercê-la. E, insis variáveis, a cada legislatura, desde o início da
timos uma vez mais, desempenhando o papel federação brasileira (Nicolau, 1997, pp.
de mediação com o sistema internacional, 446-451).
reafirmado no período Cam pos Salles. Nem Ademais, ela é considerada, pela imensa
“forte” nem “fraco”, mas limitado pelo que maioria dos autores que se ocuparam do fe
Faoro denominou “federalismo hegemônico” deralismo brasileiro, um tato saliente - e anô
(Kugelmas, 1986, p. 97). malo — de nosso sistema federativo. Dado
que aqui Estado e distrito eleitoral se con
Kugclmas sugere que, além de dual e fundem, a distorção é designada pelos ana
descentralizado, o federalismo brasileiro é listas políticos, dentro e fora da academia, na
também, de fato, assimétrico, posto que a linguagem do federalismo, como um fenô
autonomia estadual não tem, na prática, a meno de sobre-representação de alguns Esta
mesma latitude para todos os membros da dos e sub-representação de outros.
federação. Ela depende das condições finan As conseqüências desse fenômeno fo
ceiras, militares e políticas de cada Estado. A ram tratadas de duas maneiras pela literatu-
capacidade de unificação política das elites ra. A primeira chamou a atenção para o
estaduais tem, para o autor, importância par eleito da sobre-representação/sub-represen-
ticular. Existe em São Paulo e em Minas Ge tação de Estados na distribuição de poder
rais e está ausente em muitos Estados fre entre grupos da sociedade, nas orientações
qüentemente convulsionados pelas dissen- do Legislativo e, em decorrência, nas carac
sÕes entre oligarquias. terísticas das políticas públicas. De maneira
Em suma, a literatura de ciência políti mais precisa, a sobre-representação de Esta
ca que tratou da gênese do federalismo bra dos social e economicamente mais atrasa
sileiro, embora muito reduzida, foi direto ao dos - e a sub-representação do Estado mais
ponto, mostrando náo só o contexto de desenvolvido, São Paulo - teria redundado,
idéias e de interesses que produziu nossa fór por via do arranjo político, no reforço do
mula federalista, como a sua especificidade poder de elites políticas e econômicas mais
quando comparada ao modelo norte-ameri conservadoras, assegurado por sua atuação
cano e aos adotados em outros países da no Congresso Nacional.
América Latina, no mesmo século. A formulação canônica dessa tese é de
Celso Furtado, em seu célebre artigo de
1965, “O s Obstáculos Políticos ao Desen-
Federalismo, Representação volvimento Econômico” . O Congresso con
Política e Democracia servador, resultante da sobre-representação
de Estados do Norte e Nordeste, seria o
A representação distorcida em uma das principal obstáculo à realização das reformas
câmaras legislativas é característica dos siste necessárias à industrialização do país que ti
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nham no Executivo seu grande dinamizador. de potencial tensão entre legislativo e execu
A oposição entre Executivo progressista e tivo. Kinzo (1990, p. 41) resume com clare
Congresso conservador, geradora de impasse za o argumento conhecido e repetido por
ou de crise política, seria, portanto, uma quase todos os cientistas políticos que estu
possibilidade inscrita no desenho institucio dam o Brasil:
nal da federação brasileira.
Sua formulação mais acabada foi feita Primeiro, não há dúvida de que uma sobre-re
por Soares (1971, p. 7), quando tratou do presentação da região Norte e uma sub-repre-
periodo 1946-1965: sentação da região Sudeste podem significar
um acentuado viés conservador e governista
[...] al aumentar artificialmente la represen- na representação parlamentar da Câmara Fe
tación política de una cultura política tradi deral. Segundo, sendo a eleição para a Presi
cional atrasada, dom inada por los líderes lo- dência da República realizada pelo sistema
cales, frecuentemente latifundistas, hacenda- majoritário, baseado em uma circunscrição
dos, coroneles de todo tipo, o personas de su eleitoral nacional, é alta a probabilidade de
elección, el sistema electoral termino por que o Poder Executivo e o Legislativo confi
perjudicar a la mayoría de la población de gurem apoios diferenciados e até mesmo in
esas areas. Al aumentar el poder político de compatíveis. Isto porque, ao contrário do que
la élite dirigente de esa cultura política rural, ocorre nas eleições proporcionais para o Le
tradicional y preideológica, al super-repre- gislativo, na eleição para presidente da Repú
sentar en el Congreso y en el Senado a esta blica o peso do eleitorado do Sudeste e Sul -
area subdesarrollada económica, social y po nada menos que 63% - é realmente decisivo.
liticamente, esta legislación disminuyó las E a natureza diferente e possivelmente con
probabilidades de aprobación por las dos trastante da representação dos dois poderes -
Câm aras de reformas que vendrían a benefi propiciada em grande parte pelo presidencia
ciar la mayoría de la población rural que ha lismo - pode levar ao estreitamento das mar
bita principalmente en estas areas subdesar- gens de governabilidade do Executivo, caso
rolladas. Este fué, fundamentalmente, el suas políticas não se adeqüem à correlação de
caso de la reforma agraria. forças existente no Congresso.6
A tese voltou a aparecer nos escritos so A segunda maneira de tratar as conse
bre o longo processo de passagem do auto qüências da representação distorcida é aque
ritarismo para a democracia, a partir da se la que a transforma no cerne do argumento
gunda metade dos anos de 1970. Neste que problematiza as relações entre federalis
caso, o mesmo mecanismo, reforçado pelo mo e democracia. Nesse caso, trata-se de
“pacote de abril” de 1977, teria assegurado uma indagação mais geral e abrangente, si
uma sobrevida política ao regime autocráti tuada seja no plano das conexões entre teo
co e propiciado uma transição “negociada” e rias do federalismo e teorias da democracia,
conservadora. seja no terreno empírico do funcionamento
Finalmente, além de se haver transfor das poliarquias organizadas como federação.
mado em ponto da agenda de reformas polí Nos termos em que foi colocado por Stepan
ticas que acompanhou a volta à democracia,5 (1999), em polêmica com Riker, o problema
a sobre-representação continua a ser aponta diz respeito aos efeitos “demolimitadores” —
da pela literatura recente como fator de re isto é, limitadores do princípio da igualdade
forço do conservadorismo no Congresso e política entre cidadãos - provocados pela re
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presentação de unidades territoriais, caracte pos de afirmação foram feitos sobre o siste
rística de todo e qualquer sistema federativo. ma brasileiro. O primeiro —e mais geral —o
Quatro seriam as razões pelas quais to classifica como caso extremo de uma forma
das as federações democráticas restringem o de organização do Estado que seria constitu-
poder do demos: 1) porque a dupla soberania tivamente limitadora do poder da maioria.
impede a existência de uma agenda inteira O segundo tipo não se ocupa dos traços co
mente aberta, expressão da “incerteza insti muns às federações, mas enfatiza a distorção
tucionalizada” que caracteriza a democracia; do princípio democrático da representação,
2) porque o demos é limitado verticalmente, gerada pela forma como é composta a câma
devido à existência de várias estruturas de ra de representantes dos cidadãos. Vai mais
autoridade, e horizontalmente, em razão do além, discutindo seus efeitos sobre a distri
bi-cameralismo; 3) porque as Constituições buição de poder entre elites estaduais, o que
federais amarram as gerações futuras aos favoreceria o conservadorismo, e sobre o seu
compromissos dos fundadores, que reque potencial para gerar impasse entre poderes
rem supermaiorias para ser alterados; e 4) de Estado, sob o presidencialismo.
porque, dada a complexidade das Constitui O primeiro tipo de argumento anti-fe-
ções federais, os tribunais constitucionais, deralista mais abrangente e normativo, for
cujo princípio de composição não é demo mulado por Stepan, pode ser criticado, pelo
crático, exercem de fato função legislativa menos em parte. Com efeito, nem todos os
(Stepan, 1999, pp. 212-214). critérios utilizados pelo autor para classificar
Partindo da premissa da tensão entre fe as federações segundo as restrições que im
deralismo e democracia, Stepan (1999, pp. põem à igualdade política são claros. En
218-219) propõe quatro critérios para classi quanto os dois primeiros dizem respeito di
ficar as federações existentes, em termos da retamente à violação do princípio de “a cada
maior ou menor restrição que impõem ao cidadão um voto”, definidor da democracia,
princípio da igualdade política: 1) o grau de os dois últimos parecem sustentar-se em
super-representação da câmara territorial; 2) duas premissas mais discutíveis do ponto de
a abrangência das políticas formuladas pela vista da normatividade democrática. A pri
câmara territorial; 3) o grau de poder que a meira é que, em qualquer circunstância e
Constituição confere às unidades subnacio- para qualquer assunto, o demos nacional
nais para elaborar políticas; e 4) o grau de tem precedência sobre os demoi das unida
nacionalização do sistema partidário em suas des subnacionais. A segunda é que todas as
orientações e sistemas de incentivo. decisões, qualquer que seja o seu escopo,
Submetido a esses critérios, o sistema fe afetam o conjunto dos cidadãos da nação,
derativo brasileiro, de acordo com Stepan, razão pela qual, sempre que forem tomadas
está entre os mais restritivos do poder da por um subconjunto territorialmente deli
maioria: a sobre-representação das unidades mitado dos eleitores, podem ser interpreta
com eleitorado menor não se limita ao Sena das conto decisões de minoria que limitam
do, mas existe também na Câmara Federal; o o poder da maioria.
Senado tem poderes legislativos amplos; o As duas premissas implicam negar a
sistema partidário é fragmentado e pouco na existência de problemas, interesses e aspira
cionalizado; desde a Constituição de 1988, ções territorialmente circunscritos que po
Estados e municípios possuem um rol amplo dem ser tratados no âmbito em que se mani
de competências legislativas. festam. Finalmente - e esta é a objeção mais
Recapitulando, no que diz respeito à re séria —, ao avaliar a relação entre federalismo
lação entre federalismo e democracia dois ti e democracia, Stepan toma partido por um
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modelo de democracia majoritária, como se tipo”, personagens de uma “cultura política
fosse a única possibilidade aceitável do pon tradicional y preideológica” , pois aí está, com
to de vista normativo.7 Ora, como assinala dezessete deputados a menos em 1962, o Esta
Lijphart, aquele não apenas não é o único do de Minas Gerais.
modelo possível, como tem sofrido críticas
contundentes dos partidários do modelo Apoiada em evidências empíricas, a au
consociativo, que o consideram, no limite, tora mostra que a questão em pauta era a
não-democrático, por consagrar, de alguma oposição entre a maioria anti-getulista das
forma, a tirania da maioria.8 bancadas mineira e paulista do PSD e da
Por outro lado, embora predominante, U D N e “o resto” , articulado pelo “getulismo
não é consensual o diagnóstico sobre as con e os remanescentes do Estado Novo”, ou seja
seqüências políticas das distorções na repre a “oligarquia dos Estados menos desenvolvi
sentação promovidas pelo arranjo federativo dos, por isso mesmo voltada para o centralis
brasileiro. Campello de Souza (1976) discor mo autoritário; contra a-oligarquia dos dois
da da hipótese de Soares, antes apresentada, maiores Estados” (Cam pello de Souza,
como explicação para a origem do artigo 58, 1976, pp. 128-134).
que instaurou a desproporcionalidade da re Mais tarde, Wanderley Guilherme dos
presentação na Constituição de 1946:s Santos, contrapondo-se à sabedoria conven
cional, construiu um argum ento caracteristi
A primeira vista convincente, dando conta camente antimajoritário, ao afirmar que, de
de maneira simples e direta de um dos pro pois de 1950, “o sistema parlamentar brasi
blemas mais importantes nas interpretações leiro preencheu de forma substancialmente
do período 1946-1964, a saber, a contrapo adequada o [...] critério de avaliação de um
sição de um legislativo conservador ao exe sistema representativo, a saber, promovendo
cutivo populista e progressista, a explicação um equilíbrio na representação de tal modo
de Glaucio Soares na verdade suscita mais
que ficavam impedidos tanto o veto da m i
noria quanto a tirania da maioria” (1987, p.
dúvidas do que as resolve. Em bora seja ver
94). Estudando a distribuição de cadeiras na
dadeiro que os estados beneficiados pelo ar
Câmara Federal entre 1945 e 1982, ele veri
tigo 58 sejam em conjunto os mais atrasa
ficou que a possibilidade de veto da minoria
dos, e portanto mais caracteristicamente re
jamais ocorreu, pois, para controlar 50% das
trógrados no tocante à estrutura agrária, é
cadeiras, sempre se requereu um número de
também óbvio que não eram, em 1945, Es
Estados correspondente a cerca de 50% do
tados agrícolas importantes. A menos que se eleitorado nacional. Tampouco a tirania da
pretenda atribuir uma grande soma de poder maioria foi uma possibilidade, salvo sob o
econômico e político a vastas extensões de autoritarismo, já que nunca a maioria conse
terra não cultivada, distantes e sem vias de guiu atingir 50% das cadeiras sem o apoio
acesso aos mercados urbanos, esta conclusão de pelo menos um Estado “minoritário”.
é patente. A consideração do latifúndio como Conclui, em conseqüência, que
empresa essencialmente exportadora, volta
da para o exterior, em nada altera este racio [...] o funcionamento do parlamento depen
cínio, pois aí estão, entre os sub-representa- dia de coalizões partidárias, respeito às m i
dos, Pernambuco, Bahia, São Paulo e Rio norias de opinião e negociações entre banca
Grande do Sul. Tam pouco o modifica a qua das estaduais, o que significa proteção à jus
lificação de que os beneficiados seriam “lati- tiça federativa. Tal resultado foi possível pela
fundistas, hacendados y coroneles de todo razoável estabilidade da distribuição propor-
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cional da população, do eleitorado e da re a que estabelece a forma de cômputo do co
presentação pelos diversos Estados da federa ciente eleitoral.11 Finalmente, o autor mostra
ção (Santos, 1987, p. 82). que, em certas circunstâncias, a proporção
de votos nas coalisões pode permanecer está
O mesmo autor tendeu a descartar tam vel, embora alguns partidos percam e outros
bém a tese da oligarquização da representa ganhem com a distorção da representação
ção política, mostrando que a taxa de reno (Nicolau, 1997).
vação na Câmara dos Deputados nunca foi Dos trabalhos de Santos e, especialmente,
compatível com a hipótese do controle do de Nicolau é possível tirar algumas conclu
voto por oligarquias nos Estados economica sões importantes para a presente discussão.
mente mais atrasados e de menor eleitorado. A primeira é que não há pesquisas empíricas
O argumento de Santos é importante suficientes para fazer afirmações sobre as
porque afirma que, do ponto de vista nor conseqüências políticas da sobre-representa-
mativo, há outros critérios para avaliar uma ção/sub-representação dos eleitorados esta
democracia representativa, além do estrito duais no Congresso. A segunda é que a tese
cumprimento do princípio da igualdade po de que a sobre-representação entrega poder
lítica. A proteção aos direitos das minorias de veto a minorias conservadoras requer que
também constitui um critério digno de con se faça para cada legislatura o cálculo das
sideração, como vimos há pouco. perdas e ganhos em termos partidários — e
D o ponto de vista empírico, ele chama não estaduais. A terceira é que a sobre-repre-
a atenção para o fato de que a sobre-repre- sentação/sub-representação de partidos na
sentação resultante das regras federativas de Câmara Federal não é resultado apenas das
composição da Câmara e do Senado não são instituições federativas, mas também das re
as únicas instituições a definir o funciona gras eleitorais.
mento do sistema político brasileiro. Voltarei
ao tema no final do trabalho.
Por seu turno, Nicolau (1997), ao mes Federalismo e Governabilidade
mo tempo em que mostrou que sobre-repre-
sentação e sub-representação na Câmara fede Para os estudiosos, a representação dis
ral constituem uma característica permanente torcida constituiu um problema da Federa
de nosso sistema político,10 sugeriu que as ção brasileira pelo menos desde 1945. Seu
conclusões daí extraídas sobre as conseqüên efeito, como vimos, seria o de aumentar, por
cias políticas do fenômeno carecem ainda de meio de um artifício político, o poder das
teste empírico mais rigoroso. Ele sugere que elites conservadoras.
existe uma espécie de falácia ecológica na pro A esse diagnóstico veio se sobrepor ou
posição que deduz o predomínio do conser tro, resultante da avaliação das instituições
vadorismo na Câmara da desproporção entre criadas pela Constituição de 1988. Segundo
cadeiras e dimensão do eleitorado. este, o sistema federativo de 1988 constitui
O mais correto seria verificar que parti um fator de ingovernabilidade.
dos políticos se beneficiam ou se prejudi Por ingovernabilidade se tem entendido
cam, nacionalmente, quando o eleitorado de a dificuldade — real ou suposta - que o go
um ou mais Estados é sub ou sobre-repre- verno federal teria para fazer cumprir sua
sentado. Além do mais, as distorções da re agenda, especialmente a de estabilização m o
presentação dos partidos não derivariam netária, ajustamento do setor público e re
apenas do desenho federativo, mas de regras formas econômicas de mercado. Assim, nos
eleitorais, como a que permite as coalisões e estudos sobre o federalismo pós-1988, os in
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dicadores mais freqüentes da dificuldade de A atuação dos governadores se inseriu no con
governar são: a “guerra fiscal” entre Estados; texto do federalismo estadualista, assumindo,
a dificuldade, até 1994, de implementar m e em linhas bem gerais, três características:
didas antiinflacionárias eficazes; a complica a) os governadores eram fortes no cenário
da negociação entre governo federal e gover nacional graças à forte influência exercida
nos estaduais dos termos do ajuste fiscal nas sobre os parlamentares federais. D essa m a
duas esferas, incluindo a situação dos bancos neira, os governadores conseguiram contra-
estaduais, o encontro de contas e o equacio- por-se a qualquer iniciativa presidencial que
namento das dívidas dos Estados; a lentidão visasse alterar a ordem federativa vigente, a
da transferência de competências e atribui qual era extremamente favorável às unida
ções na área social da União para as unidades
des estaduais;
subnacionais, em especial para aos municí
b) os governadores náo atuavam de forma
pios; bem como os percalços à aprovação de
coordenada e cooperativa, mas, ao contrário,
legislação reformista que possa atingir direta
prevalecia a conduta individualista e não
ou indiretamente os interesses de Estados,
cooperativa. Apesar de deterem grande po
como as reformas previdenciária, adminis
der político, os governadores não estabele
trativa e, sobretudo, a tributária.
ciam alianças duradouras para estabelecer
O s adjetivos usados para qualificar o sis
um projeto político hegemônico; as únicas
tema federativo recente não deixam lugar a
dúvida sobre a avaliação que dele fazem os alianças que os chefes dos Executivos esta
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diosos, a “ Reforma do Estado”, depois de cialmente devido a seu crescente papel. O
seus estágios iniciais, depende muito da ca Congresso substituiu o governo federal na
pacidade de o país construir coalizões políti m ediação para manter os vínculos paro
cas estáveis (Haggard, 1996). N o Brasil de quiais e para acom odar as diferenças regio
hoje, por causa da “N ova política dos gover nais. O Congresso decide onde os recursos
nadores, informalmente, governadores de federais serão alocados. Esse papel foi pos
Estado e os interesses que eles representam sível devido ao imenso poder do Congresso
colocam obstáculos a tais coalizões, agindo para emendar o orçamento. O s novos pa
como veto players que personificam, concen péis do Congresso aum entaram a fragm en
tram e dão voz a interesses institucionais”. tação política, estim ulando a tom ada de de
cisões caso a caso. O Congresso é o ator
O segundo aspecto é a existência de um m ais importante no processo de tom ada de
sistema de decisões fragmentado, com mui decisões, menos por propor e mais por ve
tos pontos de veto, resultante da combina tar, dados seus poderes acrescidos e a falta
ção de descentralização de recursos financei de apoio aos presidentes civis. [...]
ros e fiscais, poder político dos governadores O objetivo central da Constituição de legiti
e fragmentação do sistema de partidos. Ku- mação da nova ordem democrática colocou
gelmas e Sola (1999, p. 79) resumem o argu o Congresso e os políticos locais e regionais
mento com elegância, enfatizando a natureza no centro do processo de tom ada de deci
institucional do problema de governabilida sões. M uitos jogadores, todos com poder de
de. Ele afetaria qualquer governo, não im veto, estão congestionando a agenda política
porta qual fosse sua agenda: com suas demandas contraditórias.
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seqüente aumento da influência dos gover hipótese da existência de diferenças intra-
nadores e o enfraquecimento da capacidade partidárias estaduais fortes, concluem:
decisória do governo federal.
Em resumo, o processo de democratiza Os dados não suportam a tese segundo a qual
ção e a Constituição de 1988, que foi seu de- governadores exerçam controle sobre as respec
saguadouro, teriam produzido uma distri tivas bancadas no Congresso Nacional. Maio
buição de poder e uma arquitetura institu rias são formadas em bases partidárias e não
cional geradoras de impasse, quando não de pela adição de bancadas estaduais controladas
crise. A nova estrutura federativa brasileira, pelos governadores. As bancadas estaduais dos
descentralizada, estadualista e incompleta no diferentes partidos seguem a orientação nacio
que se refere à atribuição de competências e nal do partido. N ão há bases para sustentar a
responsabilidades, teria impacto negativo so afirmação de que o Executivo negocie com go
bre a capacidade do governo federal de apro vernadores e não com os partidos.
var e executar sua agenda.
[...1
Voltarei ao tema das competências e
Para que as bancadas estaduais ditassem o
atribuições dos níveis de governo. Gostaria
tom do processo decisório agindo como um
antes de discutir com mais vagar o argumen
ator de veto, seria necessário que este veto
to da multiplicação dos poderes de veto. Ele
fosse exercido sobre questões que não envol
é constituído de duas partes: uma, empirica
vessem diretamente os interesses estaduais.
mente bem fundamentada; e outra, a meu
Seria preciso que observássemos algum tipo
juízo, carente ainda de demonstração.
de troca, de ação estratégica das bancadas es
Bem demonstradas e convincentes são as
taduais, de tal forma que estas condicionas
afirmações sobre a importância política dos
sem seu apoio à aprovação de uma matéria
governadores na transição do autoritarismo
para a democracia; bem como aquelas acerca de interesse do Executivo ao atendimento
do controle político que exercem sobre os le dos interesses de seu Estado. N ão há qual
gislativos de seus Estados e que os fez “barões quer indicação de que isso venha ocorrendo.
da Federação” (Abrucio, 1998). Na mesma Isso não é o mesmo que afirmar que a cliva
direção, cabe lembrar, também, que até 1990 gem regional (ou estadual ) não se faça pre
as eleições para os Executivos estaduais foram sente e/ou não seja importante no interior
centrais para a conformação do sistema de do processo decisório brasileiro.
partidos, na medida em que estruturavam a
competição partidária-eleitoral para os Legis Os autores argumentam ainda que a
lativos estaduais e o Congresso. taxa de aprovação das iniciativas legislativas
Entretanto, existe uma parte não de de interesse do Executivo, desde 1990, é se
monstrada no argumento. Trata-se da afirma melhante a de sistemas parlamentaristas, o
ção de que o poder acumulado e enraizado que enfraquece, também, a hipótese da crise
nos Estados tenha transformado os governa de governabilidade.
dores, automaticamente, em jogadores com Não resta dúvida de que a transforma
poder de veto, com controle sobre as bancadas ção do sistema federativo centralizado do pe
estaduais no Senado e na Câmara. O único ríodo autoritário numa federação mais des
estudo empírico feito a respeito do compor centralizada sob regime democrático com
tamento do Congresso não parece indicar plica enormemente o processo de decisão.
que isso tenha ocorrido com a intensidade Essa passagem efetivamente multiplica o nú
que se supõe. Assim, Limongi e Figueiredo meros de participantes no jogo, como resul
(2000), depois de testar sistematicamente a tado tanto da democratização quanto da re-
23
forma federativa. Mais complexo fica o pro Olhando os anos de 1990 com o bene
cesso decisório quando a agenda governa fício da perspectiva do tempo e do crescente
mental inclui um robusto conjunto de mu conhecimento empírico sobre as relações
danças econômicas e político-institucionais, Executivo/Legislativo, parece difícil susten
como ocorreu nos anos de 1990. tar a tese da crise de governabilidade de raiz
Não se trata aqui de minimizar os pro institucional. Igualmente difícil é atribuí-la,
blemas que acompanharam a democratiza ainda que em parte, ao modelo federativo
ção no Brasil, a começar pela superinflação e descentralizado inscrito na Constituição de
continuando pelo desmoronamento da ad 1988.
ministração Collor. Foram anos em que a so De um lado, não parece haver evidên
ciedade, os grupos organizados e as elites di cias de que as instituições federativas, ao
vidiram-se com relação às opções de políticas multiplicar pontos de veto potenciais, te
a seguir quanto ao enfrentamento da infla nham contribuído significativamente para
ção, à definição das atribuições do governo bloquear as iniciativas do governo federal.
na esfera econômica e às formas possíveis de Outros mecanismos institucionais podem
ajustamento do país ao novo ambiente eco atuar em sentido contrário, reduzindo as
nômico internacional. oportunidades efetivas de veto. É o que pa
Penso, entretanto, que a tese da existên recem evidenciar os trabalhos de Figueiredo
cia de uma crise de governabilidade resultan e Lim ongi (2000) sobre as relações Executi
te, ou, pelo menos, sensivelmente agravada, vo/Legislativo.
por fatores institucionais, entre os quais o de De outro lado, nem tudo pode ser atri
senho da Federação no pós-1988, não parece buído apenas ao efeito das instituições. Tam
sustentar-se em evidências empíricas sólidas. bém conta a distribuição efetiva de preferên
Nem o Congresso, nem os partidos, nem os cias entre atores políticos relevantes —mesmo
governadores foram jogadores com poder de quando alguns o são por força do desenho
veto capazes de bloquear a agenda no Execu institucional, como os governadores. Ao que
tivo. O que parece notável, ao contrário, é a tudo indica, não foram adiante itens da
quantidade de iniciativas legislativas que in agenda de reformas em torno dos quais exis
troduziram reformas profundas - algumas tia grande controvérsia entre atores com po
das quais requerendo mudança constitucio der decisório, mesmo dentro do governo fe
nal - e terminaram aprovadas no Congresso. deral e da coalisão política que o sustenta. O
Isto não significa que tenham sido aprovadas caso mais notório é o da mudança do siste
sem alterações ou que o Executivo não tenha m a tributário.
sido obrigado a negociar com partidos, go
vernadores e prefeitos, antes e durante a tra
mitação de seus projetos — como é próprio Federalismo, Relações Intergoverna-
das democracias e, especialmente, daquelas mentais e Políticas Públicas
que se organizam como federações.
Com efeito, federações são arranjos ins A responsabilidade pela definição e
titucionais que propiciam e requerem a ne implementação de políticas públicas, espe
gociação entre esferas de governo, dotadas de cialmente as de corte social, constitui outro
certo grau de autonomia e recursos próprios ângulo de abordagem da experiência federa
de poder. Logo, decisões em sistemas federa tiva brasileira. Excluída a fase da Primeira
tivos, sobretudo quando descentralizados e República, durante a qual prevaleceu um
dem ocráticos, implicam necessariamente modelo dual12 e os Estados acumularam
numerosas e complicadas transações. considerável volume de atribuições, governo
24
federal e governos subnacionais sempre esti para a estratégia de liberalização controlada
veram envolvidos na decisão sobre políticas adotada pelo governo Geisel.
e no provimento de bens e serviços coleti Finalmente, Souza (1997, 2000) enfati
vos. O grau e a forma de participação das zou os elos entre redemocratização e descen
esferas de governo dependeram do caráter tralização federativa e discutiu o processo
menos ou mais centralizado do arranjo fe político que desembocou na Assembléia N a
derativo prevalecente. cional Constituinte, as estratégias ali predo
Com efeito, a literatura especializada é minantes e a sua materialização na Carta de
unânime em apontar a alternância entre pe 1988. Também chamou a atenção para os
ríodos de centralização e descentralização mecanismos financeiros e políticos de aco
como um traço saliente da história do fede modação das disparidades regionais, possibi
ralismo brasileiro. Eles tendem a coincidir, litados pela nova organização federativa,
respectivamente, com o predomínio de regi mostrando as limitações desse processo.
mes autoritários e com a vigência da ordem A Constituição de '1988 redesenhou a
democrática (Camargo, 1992; Kugelmas e estrutura do Estado, dando-lhe as feições de
Sola, 1999; Souza, 2000; Carvalho, 1995; uma federação descentralizada. Um a das di
Souza, 1997). Selcher (1989, 1990) põe em mensões importantes desse processo foi a re
dúvida a existência de uma Federação efetiva definição de competências e atribuições das
quando o autoritarismo prevalece. Referin esferas de governo no âmbito da proteção so
do-se ao período militar, argumentou que o cial. Eis por que os estudos sobre mudanças
formalismo federal encobria a realidade de nessa área de atuação governamental tiveram
um Estado unitário. de se haver necessariamente com o tema da
N o que concerne às políticas sociais, descentralização.
vale notar que foi durante as fases de centra A descentralização em sistemas federati
lização autoritária (1930-1945 e 1964- vos tem peculiaridades que não podem ser
1984) que se construíram e expandiram o desconsideradas. O projeto Federalismo no
marco legal, as organizações e os programas Brasil, realizado pela Fundap/SP, em
que compõem o multifacetado aparato de 1992/1993, sob a coordenação de Ruy Af-
proteção social brasileiro. A extrema centra fonso, tratou, em um de seus subprojetos, de
lização de recursos e de capacidade decisória observar o processo de descentralização da
conviveu, em muitos casos, com uma des- políticas sociais como parte das transforma
concentração da gestão de programas (Ar- ção do sistema federativo brasileiro. Entre
retche, 2000). tanto, o subprojeto que se ocupou da ques
Medeiros (1986) discutiu as principais tão, por mim coordenado, não tirou todas as
características do federalismo centralizado e implicações do que havia de específico na
da complexa trama de relações intergoverna- transferência de competências e atribuições
inentais que o caracterizaram, sob o autori em uma federação.
tarismo burocrático. M ostrou, também, A maior parte das variáveis ali utilizadas
como os governos subnacionais contribuí para explicar o ritmo e os resultados das ini
ram para a legitimação do regime e prolon ciativas de descentralização nas áreas de edu
garam sua sobrevivência. Saddi (1999), se cação, saúde, habitação e assistência social
guindo as pistas sugeridas por Dias e Aguir- serviriam, também, para dar conta de pro
re (1992), apontou a importância das m u cessos de descentralização em Estados unitá
danças na representação dos Estados na C â rios. Em particular, não se explorou a fundo
mara e de uma certa distribuição regional de as características do modelo federativo que a
recursos econômico-financeiros do II PN D , Constituição defmia para as áreas sociais, o
25
que impediu de discutir também de manei ficiência e, no limite, não provimento de cer
ra mais adequada as condições que o torna tos bens ou serviços. Assim, o desenho cons
riam possível em escala ampla. Tampouco titucional seria apenas um esboço, com
enfatizamos suficientemente a relação entre muitas áreas de sombra, competências inde
a natureza do jogo político característico das finidas, mecanismos de responsabilização
federações e o caráter necessariamente nego por desenhar. Esta é a conclusão de estudo
ciado —e demorado —do processo de trans dirigido por Aspásia Camargo (1999, p. 30):
ferência de responsabilidades.
Arretche (2000), que também partici Considerada a abrangência das competências
pou do projeto Federalismo no Brasil, deu comuns e concorrentes, conclui-se que são
um signficativo passo adiante no conheci ambíguas as fronteiras funcionais para a atua
mento sobre a descentralização de responsa ção das diferentes instâncias de governo, nas
bilidades pela proteção social em sistemas fe mesmas áreas, o que gera inúmeros conflitos e
derativos. Estudando oito programas, em rivalidades; superposições de esforços e pulve
cinco áreas —saúde, habitação, saneamento rização de recursos; políticas e ações contradi
básico e educação fundamental - , em seis tórias; omissões no atendimento à população;
Estados, examinou o impacto de fatores dificuldades para se caracterizar responsabili
estruturais das unidades de governo (capaci dades e se implantar o controle social
dade econômica, fiscal e administrativa); as
características institucionais das políticas (re Em conseqüência, caberia definir com
gras constitucionais, requisitos de engenha clareza - de preferência por meio de lei - as
ria operacional e legado de políticas prévias); competências e as responsabilidades que to
e os fatores ligados à ação política (relações cam ao governo federal, aos Estados e muni
entre Estado e sociedade e relações intergo- cípios em cada um dos âmbitos nos quais a
vernamentais). Sua pesquisa mostrou que, ação social do poder público se tornou pra
em sistemas federativos, as estratégias de in xe. A dificuldade de fazê-lo seria uma evi
dução com incentivos adequados, imple dência de que o federalismo brasileiro é uma
mentadas pela esfera de governo que transfe obra de arquitetura política incompleta.
re atribuições - federal ou estadual, conforme A partir desse diagnóstico, com o qual
o caso - , são fundamentais para a adesão da parecem concordar Kugelmas e Sola (1999,
esfera de governo que recebe a responsabili p. 77), a autora, em texto posterior, agora de
dade transferida. sua responsabilidade exclusiva, afirma:
Não são poucos os autores que conside
ram que o modelo federativo atual dificulta Para converter um conjunto de “ajustes” fe
esse processo de transferência e, em conse derativos em um “pacto” é preciso, antes de
qüência, tem pelo menos parte da responsa mais nada, obter consenso da classe política
bilidade pela baixa eficácia das ações públi e das lideranças civis em geral, em torno de
cas na área social. Segundo eles, no âmbito regras do jogo a serem introduzidas. Em pri
das políticas sociais, prevaleceria no modelo meiro lugar, as atribuições de cada ator (G o
federativo brasileiro uma injustificável e in verno federal, Estados e municípios), o seu
desejável superposição de competências e modus-operandi e seus limites de ação [...]
atribuições entre as três esferas de governo. (Camargo, 1992, p. 82).
Ela redundaria na prestação descoordenada
do mesmo tipo de serviço ou bem coletivo Acredito que, postos dessa maneira, tanto
por mais de uma esfera governamental, ou o diagnóstico quanto a prescrição são equivo
em um jogo de empurra que acarretaria ine cados. O modelo constitucional é claro e não
26
há nada de errado com a superposição de com nização da polícia civil [Constituição federal,
petências e atribuições entre as esferas de gover art. 24).
no. A existência de competências legislativas con A definição do conteúdo concreto da
correntes e de competências comuns na oferta de cooperação, bem como os mecanismos que a
bens e serviços é da essência do federalismo. Nas possibilitariam caberiam seja à legislação or
federações contemporâneas, a tendência à par dinária, seja a iniciativas governamentais,
ticipação das diferentes esferas de governo nas nos três âmbitos. Acredito que as vicissitudes
distintas atividades públicas é universal, como da transferência de responsabilidades não
tratei de mostrar cm artigo recente (Almeida, podem ser atribuídas ao desenho constitu
2000). Ela, ademais, permite uma flexibilidade cional. Os que assim consideram parecem
na distribuição de responsabilidades muito ter como modelo experiências de descentra
adequada às circunstâncias de um país onde as lização em Estados unitários, sem levar em
capacidades financeira e administrativa das consideração que a existência da Federação
unidades subnacionais - especialmente dos influi sobre o ritmo e a própria forma da
municípios —são tão notoriamente desiguais. transferência de responsabilidades. Em pri
De fato, no terreno das políticas sociais, meiro lugar, trata-se de processo necessaria
a Constituição de 1988 apontou na direção mente lento e negociado, pois supõe o en
de uma modalidade d c fedemlismo cooperati tendimento entre autoridades públicas dota
vo, um sistema caracterizado pela existência das de autonomia de decisão, mesmo que
de funções compartilhadas pelas diferentes em graus diversos.
esferas de governo e pelo “fim de padrões de Outros fatores, apontados pela literatu
autoridade e responsabilidade claramente ra recente, parecem igualmente relevantes
delimitados” (Acir, 1981, p. 4 ).13 O sistema para o entendimento do processo em curso.
havia de ser também marcadamente descen Arretche (2000) e Almeida (1996, 2000) en
tralizado, por oposição à lei e à prática vigen fatizaram a importância de o governo federal
tes sob o autoritarismo burocrático. ter políticas deliberadas de descentralização
A nova Carta estabeleceu competências que contenham garantias e incentivos às es
comuns para a União, Estados e municípios feras de governo para as quais se pretende
nas áreas de saúde, assistência social, educação, transferir responsabilidades. M ostraram,
cultura, habitação e saneamento, meio am também, que a atuação do governo central
biente, proteção do patrimônio histórico; com relação às diferentes áreas sociais tem
combate à pobreza e integração social dos seto variado da inação à definição de regras e ins
res desfavorecidos e educação para o trânsito. trumentos que dáo incentivos claros à des
As formas de cooperação entre os três níveis de centralização de responsabilidades.
governo deveriam ser definidas por legislação Na mesma direção, Abrucio e Costa
complementar ( Constituição Federal, art. 23). (1998) reconheceram a existência, entre as for
A Carta atribuiu competências legislati ças políticas e a sociedade civil organizada, de
vas concorrentes14 aos governos federal e es duas orientações diferentes. A primeira seria
taduais em uma ampla gama de temas: pro “favorável a algum tipo de ‘federalismo mais
teção ao meio ambiente e aos recursos natu ou menos cooperativo’”, no qual o governo fe
rais; conservação do patrimônio cultural, ar deral exerceria papel coordenador. A segunda
tístico e histórico; educação, cultura e espor seria mais “liberal” no que toca às relações in-
tes; juizado de pequenas causas; saúde e pre tergovernamentais, apontando na direção de
vidência social; assistência judiciária e defen- um federalismo competitivo. Os autores pro
soria pública; proteção à infância, à adoles põem uma terceira possibilidade, com ênfase
cência e aos portadores de deficiências; orga na formação de instâncias intergovernamen-
27
tais de planejamento, coordenação e avaliação, plo, quais os indicadores de centraliza
as quais, conforme o escopo da política, pode ção/descentralização? Qual a diferença en
riam tanto integrar horizontalmente vários go tre um arranjo federal cooperativo e uma
vernos da mesma esfera, quanto verticalmente distribuição vertical de funções entre os ní
esferas de governo distintas. veis de governo, definida e controlada pelo
Finalmente, Souza (2000) chamou a governo nacional?
atenção para o impacto das fortes desigual Essa discussão implica reconhecer que as
dades regionais às quais estão associadas di tipologias em uso na ciência política em esca
ferenças muito significativas de capacidade la internacional - assim como no Brasil - são
econômica e administrativa dos governos lo ainda toscas, excessivamente referidas ao caso
cais. Souza alerta, também, para um proble nacional ao qual se aplicam e sem relação cla
ma igualm ente apontado por Arretche ra com alguma teoria minimamente construí
(2000) e Almeida (1996, 2000): a tensão en da. Há quem acredite, como Riker (1964),
tre a descentralização de atribuições na área que a única teoria possível é a da gênese da fe
social e as políticas de ajustamento fiscal do deração. Mas essa afirmação é discutível, como
governo federal. tratou de mostrar Stepan (1999).
Em suma, os estudos apoiados em pes Muitas das hipóteses que a literatura
quisa empírica tenderam a desviar a explica tem formulado no Brasil requerem um dese
ção sobre as dificuldades da descentralização nho de pesquisa comparada, de preferência,
na área social do modelo federativo da Cons com o maior número possível de casos.
tituição para outras variáveis estruturais ou Finalmente, se quisermos avançar o co
intencionais, ou mesmo institucionais. nhecimento sobre o impacto do sistema fe
derativo em relação a algum fenômeno defi
nido - a fragmentação partidária, a força po
Observações Finais lítica de certos grupos de interesse ou o rit
mo do processo de descentralização —, deve
Embora recente, os estudos sobre fede mos ser capazes de enfrentar um dos maiores
ralismo no Brasil, em ciência política, já de desafios da análise institucionalista.
finiram um conjunto significativo de proble Consiste em isolar o impacto da insti
mas e hipóteses. Muitas delas carecem ainda tuição escolhida - no caso, um arranjo fede
de mais pesquisa empírica para se tornarem rativo específico — da influência de outras
proposições aceitas. instituições que operam simultaneamente e
A pesquisa brasileira está referida à que podem tanto ampliar quanto contraba
produção acadêmica internacional sobre o lançar o efeito da primeira. Esse parece ser o
tema, especialmente àquela que trata de caso, em muitos exemplos vistos, quando
classificar os vários tipos de arranjos federa tratamos das distorções da representação na
tivos. N o entanto, falta ainda uma discus Câmara ou da fragmentação por Estado das
são mais sistemática e crítica sobre as tipo bancadas partidárias no Congresso.
logias que tom am os de empréstimo, bem A tarefa está longe de ser banal e, mais
como sobre os qualificativos usados para uma vez, parece requerer um cuidadoso de
caracterizar o sistema federativo brasileiro, senho de pesquisa, comparando um grande
especialmente o atual. Emprega-se, com ra número de casos. Mas, deixá-la de lado pode
zoável imprecisão, termos como federalis significar o abandono de qualquer pretensão
mo centralizado ou descentralizado, federa a fazer da abordagem institucionalista algo
lismo cooperativo ou competitivo, e por aí mais do que um gesto inconseqüente de re
vai. Pois seria necessário saber, por exem verência a um modismo intelectual.
28
Notas
29
9. Agradeço a Fernando Limongi ter me lembrado dessa contribuição de Campello de Sou
za à discussão.
10. Segundo seus cálculos a distorção média é de aproximadamente 10%, ou seja, essa é a
porcentagem total ganha pelos Estados sobre-representados e perdida pelos sub-represen-
tados (Nicolau, 1997, p. 457).
11. Analisando o resultado das eleições de 1994, o autor verifica que 22 cadeiras estariam fora
de lugar transformando o PT e o PSD B em perdedores líquidos, enquanto, PFL, PPB e
PP teriam sido os principais beneficiados. Mostra, entretanto, que, se corrigida a distor
ção federativa, o PFL continuaria sobre-representado e o PM D B viria a ele se juntar (N i
colau, 1997, p. 456).
12. Dá-se o nome de federalismo dual ao arranjo no qual “os poderes do governo geral e do
Estado, ainda que existam e sejam exercidos nos mesmos limites territoriais, constituem
soberanias distintas e separadas, que atuam de forma separada e independente, nas esfe
ras que lhes são próprias” (Acir, 1981, p. 3).
13. A noção de federalismo cooperativo diz respeito tão somente à ausência de delimitação
clara dos âmbitos de autoridade e de responsabilidade das esferas de governo e à conse
qüente possibilidade de ação conjunta e coordenada entre elas. Não existe, por conse
guinte, conteúdo valorativo.
14. A União tem competência para estabelecer normas gerais que podem ser complementa
das por legislação estadual. N a ausência de legislação federal, os Estados exercem compe
tência legislativa plena.
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de Janeiro, Iuperj.
Resumo
33
intergovernarnentais e políticas públicas. No final, são indicados alguns problemas conceituais
e metodológicos que os estudos sobre federalismo no Brasil não podem ignorar.
Abstract
The article is a review essay o f the studies on federalism in Brazil. The aim is to discuss the
especific contribution o f Political Science, showing the analitical developments, shortcomings
and challanges confronted by the discipline. The discussion is organized around four main
themes: 1) the origins of Brazilian federalism; 2) federalism, political representation and de
mocracy; 3) federalism and governability; 4) federalism, intergovernmental relations and pu
blic policies. In the final remarks, there is a suggestion o f some conceptual and methodologi
cal issues that the studies on federalism in Brazil should consider.
Résumé
Le texte fait le point sur la littérature à propos du fédéralisme. L’intention est de mettre en
évidence la contribution propre de la science politique, en indiquant les avancées, les vicissi
tudes et les défis de cette discipline. L’exposition est structurée par thèmes et non par auteurs
ou travaux spécifiques. Ces thèmes sont les suivants : 1) genèse du fédéralisme brésilien ; 2)
fédéralisme, représentation politique et démocratie ; 3) fédéralisme et gouvernabilité ; 4)
fédéralisme, relations intergouvemementales et politiques publiques. En conclusion, nous
indiquons quelques problèmes conceptuels et méthodologiques que les études sur le fédéral
isme au Brésil ne peuvent ignorer.
34