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Sobre a Morte

A Morte, buscando o autoconhecimento, convocou três “humanos” para discutir suas


opiniões acerca dela. Em recompensa, concederia um desejo a cada um. Os dois primeiros,
Bernardo, um estudante comum e Enkidu, uma imortal de cinco mil anos, aceitaram o trato
prontamente, porém, o terceiro não se interessou pela oferta e, por isso, teve de ser levado à
força; tratava-se de um hipotético homem que nunca nascera. A Morte, poderosa como era,
deu-lhe voz para que pudesse compartilhar suas opiniões e experiências de alguém que nunca
havia existido.

A anfitriã juntou os três em uma sala e sentou-se em uma poltrona no canto, para
observá-los. Todos se acomodaram muito bem pois a sala era projetada para os mais exigentes
níveis de conforto.

- Nunca imaginei que a Morte fosse tão alta – Bernardo comentou, sussurrando para
que ela não ouvisse.

Enkidu assentiu e observou mentalmente que era essa a razão do pé direito da sala ser
semelhante aos de templos. Se ajustou na cadeira para aproveitar o máximo daquele conforto
divino e começou:

- Bom, o que os senhores pensam sobre a Morte?

Os outros dois permaneceram em silêncio, sem saber o que dizer ou por onde começar
um raciocínio.

-Tudo bem, eu começo então. – Para Enkidu, a resposta era fácil. – A Morte seria para
mim um alívio. Acabaria com o meu sofrimento e o meu tédio.

Ela não percebeu, mas quando disse isso, a alta e macabra figura, que se encontrava
sentada no canto da sala, conteve um sorriso.
- O que?! – Bernardo exclamou, inconformado. – Como assim um alívio?

- Simples, meu caro. Vivi cinco mil anos nesta Terra, e estou farta disso tudo. De tudo
que era interessante, já me cansei.

- Eu concordo com a senhorita. Se o pós-vida for igual ao pré-vida, um grande monte


de nada sem sentimentos ou pensamentos, sem arrependimentos nem vontades e
principalmente, sem consciência, é com certeza preferível à vida. – disse a Voz do ser humano
inexistente.

- Mas a vida é tão bonita! E oferece tantos prazeres! – Bernardo não entendia o que se
passava naquelas duas mentes, ou em seja lá o que a Voz usava para pensar.

- Nisso eu concordo com você, jovem, a vida realmente é bonita, mas só o é quando
ameaçada pela morte. Um caminho sem fim é uma tortura, não vale a pena – disse Enkidu.

- Pense nas paisagens, nas pessoas, nos animais, no amor... Como pode desistir dessas
coisas?! – Bernardo insistiu

- Já admirei muitas paisagens por muito tempo, todas as pessoas e animais com os
quais eu me importava estão mortos, e um dia o amor se acaba – disse Enkidu, em um tom
austero.

- Então conheça pessoas e animais novos! – Bernardo havia se levantado por conta do
calor da discussão.

- Não dá para ficar se afeiçoando e se esquecendo de tantas pessoas... Um dia eu


simplesmente parei de me importar.

- Não acho que a vida valha a pena de qualquer jeito. Nela, é preciso tomar decisões, e
decisões levam ao arrependimento. Também existem vontades, que para serem atendidas
requerem esforço e, se não forem, causam sofrimento. Não vale a pena – retrucou a Voz – É
muito esforço e muito incômodo.

- Existe a parte boa – argumentou Enkidu, em concordância com Bernardo.

- Mesmo as coisas consideradas boas requerem algum esforço e tem seus contras –
rebateu a Voz.

Ignorando a opinião da Voz, que lhe parecia radical demais, Bernardo continuou
tentando convencer Enkidu:

- Mas o tempo todo estão surgindo ciências e artes novas para se ver e aprender! Veja a
internet, por exemplo: adquire conteúdo mais rapidamente do que se pode acompanhar. Não
faltam novidades para você!

- Esse é o ponto. Estou cansada de novidades. Elas não me apetecem mais. E mesmo se
apetecessem, o que eu farei quando a humanidade acabar? E quando toda a vida se extinguir?
Depois que o Sol engolir a Terra, daqui a cinco bilhões de anos, ficarei flutuando pelo espaço
sem poder respirar e em um tédio supremo.

- Você acha que a humanidade vai acabar? Eu acho que dominaremos outros planetas
– Bernardo estava incrédulo com o pessimismo de Enkidu.
- Mas é claro! Sendo o tempo infinito, mesmo que dominemos outros planetas, em
algum momento com certeza nos extinguiremos. E se não o for, eu sobreviverei ao seu final. É
isso que imortalidade significa. – Explicou Enkidu.

- Para mim toda essa discussão de vocês é inútil. Sinto muito, Enkidu, a imortalidade
parece mesmo uma maldição – disse a Voz. Enkidu assentiu. – E quanto a você, Bernardo...
Não tenha medo da Morte.

- Mas e se o inferno existir? – Bernardo perguntou.

- Para mim não faz diferença – respondeu a Voz.

- Eu não acredito nele, mas, caso seja real, temos um problema. Aí o melhor seria
nunca ter nascido mesmo. De qualquer maneira, podemos perguntar à Sra. Morte. – Enkidu
sugeriu.

Todos olharam para o canto.

- O inferno é a Terra, e eu vim libertá-los. O pós-vida é como o humano inexistente


disse: um grande monte de nada. – A Morte falava calmamente, e cada palavra ecoava pela
sala.

- Aí está – disse a Voz. – Nem a Morte acha que estou perdendo algo.

- Não coloque palavras na minha boca. Eu acho sim que está perdendo algo: a
libertação é a parte divertida. – O sorriso que a Morte esboçou depois de falar isso fez os três
se arrepiarem.

- Nenhum de nós morreu ainda, mas acho que concordamos que não é divertido,
certo? – Enkidu perguntou, enquanto se ajustava novamente naquela cadeira que consolava
seu arrepio.

Os outros dois assentiram. Um pesado silêncio dominou os três, até Bernardo ter a
coragem de quebrá-lo:

- Você não tem curiosidade de viver?

A Voz pareceu confusa.

- Não.

- Porque você não sabe como é. Não sabe como é ter prazer, amar e até como é sofrer.

- Nunca tinha pensado desse jeito.

Bernardo, Enkidu e a Voz discutiram por mais algum tempo, mas sem chegar a
nenhuma conclusão. A Morte, satisfeita, separou-os e concedeu-lhes o desejo que havia
prometido.

- Quero viver até... – Bernardo pensou em tudo que Enkidu falara. – Até quando a vida
não me apetecer mais, sem envelhecer.

Bernardo viveu duzentos e dezenove anos.

- Você consegue me matar? – perguntou Enkidu.

- Sim, sou a Morte


- Então faça-o, sem dor, por favor.

Enkidu viveu cinco mil duzentos e vinte e um anos.

- Quero testar a vida. Me faça nascer com o poder de voltar ao nada quando quiser.

A Voz, chamada de Jorge na nascença, viveu 8 anos, e usou seu poder porque colocou
o dedo sujo de pimenta no olho.

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