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ARTIGO ARTICLE 111

Saúde e trabalho rural: o caso dos


trabalhadores da cultura canavieira na região
de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil

Health and work in rural areas: sugar cane


plantation workers in Ribeirão Preto, São Paulo,
Brazil

Neiry Primo Alessi 1


Vera Lucia Navarro 2

1 Departamento de Medicina Abstract This study is based on an understanding of health and rural labor as a social process
Social, Faculdade de related to the characteristics of the agrarian issue in Brazilian society, focusing on sugar cane
Medicina de Ribeirão Preto,
Universidade de São Paulo.
cutters in northeastern São Paulo State, Brazil, and attempting to identify patterns of attrition
Av. Bandeirantes 3900, and reproduction in such labor. Based on direct observations, interviews with laborers and other
Ribeirão Preto, SP agents involved in production, and a related bibliographical review, the analysis points to daily
14049-900, Brasil.
2 Faculdade de Filosofia, exposure of cane cutters to physical, chemical, and biological hazards resulting in various dis-
Ciências e Letras de eases, traumas, and accidents: dermatitis, conjunctivitis, dehydration, cramps, dyspnea, respira-
Ribeirão Preto, tory infections, high blood pressure, and wounds, besides aggravating the biopsychic burden un-
Universidade de São Paulo.
Av. Bandeirantes 3900, derlying attrition patterns showing up in the spinal column, chest, head, and lumbar pains, ner-
Ribeirão Preto, SP vous breakdowns, and other kinds of psychosomatic manifestations. This study of the work
14049-900, Brasil.
process pointed up its unhealthy working conditions and helped provide an overview of the con-
ditions and means by which capital asserts itself in Brazil – in its self-reproduction process – es-
pecially in the agro-industrial sector.
Key words Worker’s Health; Rural Workers; Occupational Accidents; Rural Health

Resumo O presente trabalho destaca a análise do processo de trabalho do cortador da cana-de-


açúcar na região nordeste do Estado de São Paulo, Brasil, buscando apreender os seus padrões de
desgaste-reprodução. Com base em observações diretas, entrevistas com trabalhadores e outros
agentes envolvidos na produção e consultas à bibliografia pertinente, a análise desenvolvida re-
vela a exposição diária dos cortadores de cana a cargas físicas, químicas e biológicas, que se tra-
duzem em uma série de doenças, traumas, ou acidentes a elas relacionadas: dermatites, conjun-
tivites, desidratação, cãimbras, dispnéias, infecções respiratórias, alterações da pressão arterial,
ferimentos e outros acidentes; destacando-se também cargas biopsíquicas configurando padrões
de desgaste manifestos através de dores na coluna vertebral, dores torácicas, lombares, de cabeça
e tensão nervosa e outros tipos de manifestações psicossomáticas. O estudo desse processo de tra-
balho permitiu não apenas detectar as condições insalubres do trabalho, mas também delinear
um quadro das condições e meios de que o capital se vale, no Brasil, no seu processo de auto-re-
produção, particularmente, no setor agro-industrial.
Palavras-chave Saúde do Trabalhador; Trabalhadores Rurais; Acidentes do Trabalho; Saúde
Rural

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Introdução de manifestações biológicas individuais, o


pensamento médico social latino-americano
Abordar a temática Saúde e Trabalho Rural, tem como ponto de partida que o corpo huma-
além dos desafios que encerra, requer que se no é um conjunto de potencialidades (físicas e
façam algumas considerações de caráter geral psíquicas) que possibilitam ao homem, via
e específico para, posteriormente, explicitar os processos de adaptação, elaborar respostas
recortes que serão realizados, derivados da tendo em vista a satisfação de necessidades
complexidade do objeto que se manifesta, ini- das quais depende a sua sobrevivência. Entre-
cialmente, na diversidade de processos de tra- tanto, as formas de adaptação do corpo huma-
balho a que estão submetidas as quase 15 mi- no não se restringem ao individual. Em sendo
lhões de pessoas que desempenham algum ti- o homem um ser social, elas têm também ca-
po de trabalho agrícola e, na sua maioria, na ráter coletivo e emergem da maneira como os
condição de empregados. Há que se destacar grupos sociais produzem e reproduzem sua
também a pertinência da temática que se tra- existência material e imaterial em momentos
duz na importância do setor primário no pro- históricos determinados.
cesso de desenvolvimento econômico-social Em outras palavras, o objeto saúde-enfer-
de nossa sociedade quando se considera que, midade é entendido como as formas históricas
em 1991, do total de 147.053.900 habitantes, que os processos bio-psíquicos assumem em
62.100.499 eram pessoas com 10 anos ou mais, momentos específicos do processo de desen-
ocupadas, das quais 23% desempenhando al- volvimento de sociedades concretas, tornando
gum tipo de atividade no ramo de atividades possível apreender o nexo bio-psíquico do pro-
agrícolas, enquanto que 21% e 56% nos ramos cesso saúde-enfermidade que se expressa nos
de atividades industriais e de prestação de ser- grupos sociais através de quadros de desgaste
viços, respectivamente (IBGE, 1993). reconhecidos ou não como patológicos pelo
Em termos gerais, é necessário destacar a conhecimento hegemônico na área da saúde.
expressiva produção científica sobre Saúde e A unidade de análise desse modelo é a ca-
Trabalho, principalmente a partir dos anos oi- tegoria trabalho que, sob o modo de produção
tenta, objetivando o desvendamento das arti- capitalista, determina uma das formas de rela-
culações processo saúde-enfermidade e pro- cionamento social, ou seja, aquela que coloca
cesso laboral no contexto de formações econô- em interação empregados e empregadores. Os
mico-sociais específicas. papéis sociais desempenhados por esses agen-
Cabe ressaltar que apesar de a maioria des- tes são opostos e complementares entre si e es-
sas análises considerarem os seus objetos no tão definidos pela posição que ocupam no pro-
quadro da heterogeneidade estrutural que ca- cesso da produção: proprietários e não pro-
racteriza o processo de desenvolvimento eco- prietários dos meios de produção (Alessi &
nômico-social de cada formação econômico- Scopinho, 1994). Isto é, a categoria trabalho é
social de referência, apontando para o aprofun- entendida como estando “atavicamente vincu-
damento de contradições endógenas e exóge- lada aos padrões das relações sociais, econô-
nas que se refletem, entre outros aspectos, na micas e políticas vigentes na sociedade mais
sujeição da maioria da população a precárias ampla” (Fischer, 1985).
condições de existência social, os seus objetos O modo de produção capitalista é um pro-
referem-se principalmente a processos de tra- cesso de produção de mercadoria e de mais-
balho dos setores secundário e terciário (prin- valia, através do uso de objetos, instrumentos
cipalmente aqueles das indústrias de ponta e e da força de trabalho assalariada, materializa-
do setor prestador de serviços de consumo co- da esta sob a forma de trabalho concreto. O
letivo) e, desse modo, pouco enfocando proces- momento da produção de mais-valia (processo
sos de trabalho do setor primário da economia. de valorização) é um dos momentos dominan-
Um outro traço constitutivo dessas análises tes do capitalismo e consiste na reprodução
reside em conceber os seus objetos de análise ampliada do capital. O momento da produção
como processos sociais, o que pressupõe que de bens (processo de produção) é aquele atra-
da compreensão do processo de produção, re- vés do qual se realizam processos de trabalho
produção e transformação da existência social concretos (corpo humano, meios e instrumen-
é que derivam as explicações dos porquês do tos de trabalho interagindo em uma atividade
homem ser ou não acometido por ciclos bio- orientada para um fim) os quais, na verdade,
psíquicos de determinadas enfermidades (Lau- constituem a materialização do processo de
rell & Noriega, 1989; Cohn & Marsiglia, 1993). valorização do capital. Toda e qualquer refe-
Diferentemente da visão hegemônica na rência a processos de trabalho significa consi-
área da saúde, que concebe a doença através derar modos concretos de trabalhar que, por

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sua vez, contém, implicitamente, modos con- concentração da propriedade fundiária e da


cretos de consumo e de desgaste da força de renda.
trabalho (Alessi & Scopinho, 1994). No tocante às relações de trabalho, presen-
Desvendar processos de trabalho e padrões cia-se o acirramento do processo de expulsão
de desgaste-reprodução, tendo como ponto de dos antigos colonos das fazendas, tendo como
partida modos concretos de trabalhar, requer um de seus resultados a gradativa substituição
que se apreendam as necessárias articulações das relações de trabalho como o colonato, os
com o momento do processo de valorização, moradores, a meação, a parceria e a recriação,
condição fundamental de sua realização. A em outros momentos, destas antigas relações
análise de processos de trabalho específicos, de trabalho e de formas escravistas (Martins,
considerados através de sua base técnica, da 1995) concomitante à propagação do trabalho
divisão e da organização do trabalho, é que assalariado.
possibilita apreender os seus padrões de des- Esse processo não ocorreu de modo linear,
gaste-reprodução que se manifestam através mas apresentando nuances diversas derivadas
de formas concretas de consumo, desgaste e do tipo de cultura, sua localização espacial, vo-
grau de controle da força de trabalho no mo- lume de capital investido e das políticas gover-
mento da produção (Laurell & Marquez, 1983; namentais de fomentos e subsídios, entre ou-
Laurell & Noriega, 1989). tras.
Neste referencial, o conceito de carga labo- Transformam-se os processos de trabalho
ral é a mediação central para a compreensão manifestamente subordinados ao capital. É o
do objeto saúde-enfermidade em suas relações caso de culturas comerciais como, por exemplo,
com processos de trabalho específicos. o café, cana-de-açúcar, soja e milho que apesar
Concebidas como o conjunto de elementos de mantidas praticamente constantes as con-
externos (físicos, químicos, mecânicos e bioló- dições técnicas de sua produção, modificam-
gicos) como internos (fisiológicos e psíquicos) se os seus processos de trabalho que, sob a de-
presentes nos ambientes e nas condições de pendência do capital, rompem com as relações
trabalho que interagem entre si e com o ho- de trabalho não estritamente capitalistas.
mem, as cargas laborais podem gerar ou não Entretanto, parte dos empresários agrícolas
padrões de desgaste específicos. Em outras pa- impedidos ainda de subsumirem realmente a
lavras, nos elementos constitutivos das cargas produção agrícola ao domínio completo do ca-
laborais de processos de trabalho é que reside pital, mas estando regidos pela lei do lucro, re-
a origem do desgaste que, ao referir-se às po- correm amplamente ao uso dos processos de
tencialidades humanas historicamente deter- prolongamento da jornada de trabalho e de in-
minadas, pode significar perda ou não de ca- tensificação do seu ritmo, o que possibilita
pacidades biopsíquicas no processo de traba- apropriarem-se de um mais-trabalho absoluto
lho (Laurell & Noriega, 1989). (Gonzales & Bastos, 1982).
Como considerações de caráter específico Ianni (1984), ao analisar a agroindústria
coloca-se a questão agrária na sociedade brasi- açucareira, afirma que, na agricultura, proces-
leira. sa-se a exploração combinada de mais-valia
A partir da década de sessenta (60), intensi- absoluta com mais-valia relativa.
ficam-se as transformações no meio rural, re- Desse modo, o trabalho no campo, sob a
percutindo negativamente nas condições de égide das relações capitalistas de produção,
vida, trabalho e na saúde do trabalhador rural. passa a ser marcado pela extensão da jornada
Essas transformações têm-se processado de trabalho, intensificação do seu ritmo, paga-
no nível da produção em si e também no das mento por produção, decréscimo real do valor
relações de trabalho, resultando em aumento e dos salários e descumprimento de direitos tra-
diversificação da produção agrícola e também balhistas.
na recriação de antigas e na emergência de no- Submetido a essas novas condições o traba-
vas formas de organização do trabalho. lhador rural, para usar uma expressão de Lau-
Em relação ao volume da produção, este rell & Noriega (1987), rompe com o tempo na-
passou a ser determinado pela incorporação tural e passa a ser regido pelo tempo do capital
de novas áreas ainda não cultivadas (o deno- ou, pelo tempo que é valor.
minado processo de expansão da “fronteira As repercussões dessas transformações nas
agrícola”), pela substituição de lavouras com a condições de existência social dos trabalhado-
introdução de novas espécies de cultivo, a ge- res rurais, particularmente nas de saúde, são
neralização do uso de insumos, máquinas agrí- extremamente graves.
colas, crescente uso das descobertas da enge- A expansão do capitalismo na agricultura,
nharia genética e pressupondo a crescente ao provocar migrações expressivas do campo

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para a cidade, determinou alterações nos pa- que a reconstrução de processos de trabalho e
drões de morbi-mortalidade da população do seus padrões de desgaste-reprodução corres-
país. pondentes também requerem a participação
Algumas destas alterações traduzem-se na de trabalhadores na geração de conhecimen-
propagação de doenças transmissíveis por to- tos.
do o país, como a esquistossomose e a doença Neste sentido foram realizados grupos de
de chagas, anteriormente concentradas em re- discussões e entrevistas abertas com os traba-
giões circunscritas, que encontram terreno fér- lhadores, nos intervalos de suas jornadas de
til à sua extensão devido às condições precá- trabalho, com base em roteiros previamente
rias de saneamento básico em todo o país e à estabelecidos. Também, foram realizadas, no
maior vulnerabilidade propiciada pela desnu- campo, entrevistas abertas com dirigentes sin-
trição, presente em parcela expressiva da po- dicais, empreiteiros de mão-de-obra e obser-
pulação (Possas & Trapé, 1983; Litvoc, 1985; vações diretas do processo de trabalho do cor-
Dias, 1992). te da cana-de-açúcar. Outros recursos utiliza-
O trabalhador rural ao ser expulso do cam- dos foram a elaboração de documentação fo-
po passa a residir nas periferias das cidades, tográfica e filmagem do referido processo de
encontrando no mercado de trabalho a possi- trabalho.
bilidade de ofertar a sua força de trabalho a A pesquisa foi realizada nas cidades de San-
grandes empreendimentos agrícolas. Às suas ta Rosa de Viterbo e Pontal, pertencentes à re-
condições de saúde já debilitadas acrescem-se gião administrativa de Ribeirão Preto – S.P.,
novos padrões de desgaste que se traduzem em atendendo a uma demanda do Sindicato de
envelhecimento precoce, morte prematura, Trabalhadores Rurais daqueles municípios.
doenças cardiovasculares, degenerativas, men- Este percurso metodológico, juntamente
tais, entre outras (Possas, 1989; Barreto & Car- com o levantamento da bibliografia pertinente
mo, 1994). e da consulta aos registros de atendimentos de
Essas características do setor primário e trabalhadores e das fichas de Comunicação de
suas repercussões na saúde do trabalhador ru- Acidentes de Trabalho (CAT) existentes nos
ral, sumariamente colocadas, apontam para a serviços de saúde dos municípios acima cita-
necessidade de recortar a temática Saúde e dos, possibilitou identificar os padrões de des-
Trabalho Rural. gaste – reprodução inerentes ao processo de
Apesar de similaridades presentes numa di- trabalho do corte da cana-de-açúcar.
versidade de processos de trabalho rural que se Feitas essas considerações, é fundamental,
manifestam em cargas laborais e padrões de ainda que de maneira breve, contextualizar
desgaste constitutivos dos ambientes e das histórica, social e economicamente a região na
condições de trabalho (como o meio de trans- qual o cortador de cana-de-açúcar figura como
porte que coloca em risco de vida milhares de categoria central do processo de geração e acu-
trabalhadores, a exposição a agrotóxicos e in- mulação de capital.
toxicação por eles, mudanças de temperatura,
acidentes com instrumentos de trabalho, etc.)
é, no entanto, a referência a processos de tra- A Região de Ribeirão Preto
balho específicos que possibilita apreender
suas especificidades derivadas, principalmen- A região de Ribeirão Preto é sempre citada co-
te, de seus modos de divisão, organização e da mo a que apresenta expressivos índices de
tecnologia empregada (Paixão, 1994; Cohn & crescimento econômico quando comparada
Marsiglia, 1993). com outras regiões do interior do Estado de
Explicitadas algumas razões da necessida- São Paulo, fato este que se popularizou na ex-
de de recortar a temática, inicialmente será es- pressão “Califórnia Brasileira”.
pecificado o percurso metodológico utilizado Situada na região Nordeste do Estado de
que fundamentou a reconstrução do processo São Paulo o seu surgimento data do início do
de trabalho do cortador de cana-de-açúcar, da século XVIII com o declínio da mineração e da
região de Ribeirão Preto – S.P., cuja análise bus- revolta conhecida por Inconfidência Mineira.
cou apreender os padrões de desgaste dessa A efetiva ocupação da região consolida-se,
força de trabalho, com isto, objetivando contri- a partir de meados do século XIX, com o desen-
buir para elucidar alguns aspectos da questão volvimento da cafeicultura favorecida por con-
Saúde e Trabalho Rural. dições climáticas, tipo de solo, alto valor do ca-
Do ponto de vista metodológico, a análise fé no mercado internacional, por políticas go-
desenvolvida procurou fundamentar-se na vernamentais de incentivo à produção e imi-
pesquisa-ação (Brandão, 1985) por entender gração italiana, imprimindo outro dinamismo

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às forças produtivas e relações de produção luição de rios, mananciais com o despejo de re-
traduzidas, entre outros aspectos, na elevação síduos industriais (vinhoto) e agrotóxicos e,
do preço da terra, concentração da proprieda- também, a poluição da atmosfera produzida
de fundiária e no desenvolvimento do colona- com a queima da cana (Marinho & Krichkoff,
to (Ianni, 1984; Semeghini, 1992). 1991; Szmrecsányi, 1994).
A superprodução e a queda nos preços do A Associação Brasileira de Reforma Agrária
café no mercado internacional, anunciando o estimou, para 1975, a presença de 287.513 tra-
declínio da cafeicultura, a partir da década de balhadores volantes no Estado e 87.254 na re-
trinta (30), encontrou na região condições ob- gião de Ribeirão Preto. Onze anos depois, o to-
jetivas para a sua rápida substituição pela pe- tal no Estado saltou para 370.943 e, na região,
cuária e a diversificação de culturas (notada- em torno de 95.000 trabalhadores volantes
mente a cana-de-açúcar, amendoim, algodão, (Amstalden & Costa, 1992).
cítricos, milho e soja), produtos esses fornece- O setor secundário é bastante expressivo,
dores de matérias-primas às agroindústrias cujo desenvolvimento está principalmente vol-
que se instalam na região. tado à produção e manutenção de bens de ca-
Cabe referir que o desenvolvimento regio- pital para as agroindústrias e de bens de con-
nal sempre se processou articulado ao conjun- sumo não duráveis. Destacam-se, em ordem de
to das transformações político-econômicas na- importância, as indústrias de produtos alimen-
cionais, nutrindo-se de conjunturas econômi- tares, as de transformação de produtos mine-
cas internacionais favoráveis e de políticas na- rais não-metálicos, a metalurgia, de mobiliário
cionais sustentadoras das atividades produti- e a mecânica, seguida pelas indústrias de ves-
vas, particularmente as do setor agroindustrial tuário e calçados (Alessi & Pinheiro, 1987; SEA-
(como a regulamentação do preço da cana es- DE, 1988; Semeghini, 1992).
tabelecida pelo Estatuto da Lavoura Canavieira O setor terciário caracteriza-se por uma
em 1942; as políticas de incentivos à produção oferta de serviços bastante diversificada, sendo
de açúcar pelo Instituto do Açúcar e do Álcool o município de Ribeirão Preto o pólo que con-
a partir de 1933; a legislação trabalhista defini- centra a maioria dessas atividades. Absorven-
da através do Estatuto do Trabalhador Rural do em torno de 50% da PEA regional com forte
em 1963; a instituição do Programa Nacional predomínio do setor prestador de serviços,
do Álcool em 1975, entre outros). destacando-se os de alojamento e alimentação,
Na região sempre predominaram as ativi- instalação, manutenção, reparação e confec-
dades do setor primário e num cenário privile- ção sob medida. Também é expressivo o setor
giado das transformações presenciadas na de comércio de mercadorias dimensionado pa-
agricultura brasileira. ra atender regionalmente (shopping-centers;
No setor primário predominam as culturas hipermercados; revendedoras de veículos au-
de cana-de-açúcar e de cítricos representando, tomotores importados, etc) e o setor de servi-
na década de oitenta (80), 42% e 61%, respecti- ços bancários que aponta o município de Ri-
vamente, do total da produção do Estado. Cabe beirão Preto como a 6ª praça financeira do país
ressaltar também que a região produz 40% do (Alessi & Pinheiro, 1987).
total do açúcar produzido no Estado, sua pro- Em relação aos serviços de apoio à popula-
dução de álcool abastece 32% da frota nacional ção é expressiva na região a presença dos seto-
e produz 70% do suco de laranja exportado do res educacional e de saúde, tornando o muni-
Estado de São Paulo. Também é expressiva a cípio de Ribeirão Preto como centro de refe-
produção de soja, amendoim, milho, bovinos e rência regional, estadual, nacional e interna-
aves (Semeghini, 1992). cional.
Todas essas atividades pressupõem uma es- Esse desenvolvimento regional vem se pro-
trutura fundiária bastante concentrada, o uso cessando num quadro de divisão social do tra-
expressivo de mão-de-obra sazonal, garantin- balho imprimindo certo grau de especialização
do ao setor rentabilidade derivada do fato de a nas atividades dos municípios, configurando
sua produção estar voltada para a oferta de “... um quadro tipicamente desigual e combi-
matéria-prima para exportação e para as in- nado e a integração entre esses diferentes es-
dústrias alimentícias e, devido ao fato de utili- paços e especialidades é possibilitada pelo ex-
zar, em seus processos produtivos, uma das celente sistema viário disponível. Ampliado e
mais avançadas bases técnicas. Cabe mencio- diversificado, sobretudo a partir dos anos oi-
nar as agressões sofridas pelo meio ambiente, tenta, o sistema viário sustenta ligações intra e
em nome desse “desenvolvimento”, tais como inter-regionais” (Scopinho, 1995).
o empobrecimento do solo; desmatamento Cabe destacar o dinamismo populacional
desregrado de áreas críticas, aumento da po- da região cuja taxa de crescimento na década

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de oitenta (80) superou a do Estado de São necessário para, no dia seguinte, reiniciar a
Paulo e a do País (SEADE, 1992). mesma jornada.
Se, por um lado, conforme referido ante- O cuidado com o corpo se manifesta já na
riormente, a região de Ribeirão Preto é conhe- forma como o trabalhador se prepara para
cida como “Califórnia Brasileira”, a sua riqueza mais um dia de trabalho. Os “equipamentos de
tem sido possibilitada pela intensificação das proteção individual” (E.P.I.) são, muitas vezes,
desigualdades sociais, derivadas que são da improvisados pelos próprios trabalhadores.
concentração da propriedade e da renda em Dos pés à cabeça se faz necessária a proteção.
mãos de uma parcela pequena de sua popula- Para isso vale qualquer coisa: roupas sobrepos-
ção. tas, lenços cobrindo o rosto e na cabeça, sob o
Essas contradições expressam-se com mais chapéu ou boné, saias sobrepostas a calças
intensidade no setor sucroalcooleiro – princi- compridas para as mulheres, camisa de man-
pal força propulsora do desenvolvimento eco- gas compridas, luvas improvisadas com meias,
nômico-regional – que tem como um de seus meias ensacando as pernas das calças, tênis ou
principais atores sociais “o bóia-fria” que, se- botas.
gundo Graziano da Silva (1981:119), é o resul- Apesar da obrigatoriedade do fornecimen-
tado da organização da produção sucroalcoo- to de equipamentos de proteção, como luvas e
leira e, ao mesmo tempo, de sua insuficiência e perneiras (Normas Regulamentadoras Rurais
fraqueza: “da insuficiência do capital em sub- no 4), nem todos os empregadores rurais as ob-
meter as forças da natureza do ponto de vista servam. E, mesmo quando estes equipamentos
técnico; da fraqueza de generalizar sua subordi- estão disponíveis, a inadequação dos mesmos
nação, não apenas do ponto de vista formal acaba constituindo em outras cargas laborais.
mas, sobretudo, de uma maneira real e ampla, Os EPIs que são confeccionados, em geral, com
revolucionando a produção agrícola em todas material não adequado ou que não apresentam
as suas fases”. muitas opções de tamanho, acabam se tornan-
do obstáculos para o trabalhador, antes de ser
um instrumento de segurança. O equipamento
O processo de trabalho e os padrões que não se adequa ao corpo acaba atrapalhan-
de desgaste e reprodução da força do os movimentos requeridos na operação de
de trabalho empregada no corte corte da cana, prejudicando a produtividade
da cana-de-açúcar do trabalho.
Outro agravante desse processo de trabalho
É impossível negar o quanto o trabalho do cor- é que, devido ao ritmo do trabalho, o desgaste
tador de cana é árduo. É um trabalho que, além desses equipamentos durante a safra é grande.
de expor o trabalhador a toda sorte de intem- Apesar disto, geralmente, não são fornecidos
péries, como a maioria dos trabalhos rurais, (e equipamentos em número suficiente para a re-
aqui é bom lembrar que a temperatura na re- posição no decorrer da safra, ficando sob a res-
gião em épocas de safra pode atingir quase os ponsabilidade do trabalhador a aquisição de
40 oC, expô-lo ao risco de acidentes com ani- novos equipamentos, quando necessário.
mais peçonhentos, intoxicações por agrotóxi- As condições adversas do trabalho são visí-
cos, entre outros), submete-o a ritmos acelera- veis já a partir do tipo de transporte utilizado.
dos na medida em que o ganho, geralmente, Em geral, os cortadores de cana são transpor-
dá-se por tarefa realizada. tados em caminhões de propriedade dos agen-
Podemos dizer que o processo de trabalho ciadores de mão-de-obra (turmeiros ou gatos,
ao qual está submetido o cortador de cana-de- como são conhecidos), conduzidos por moto-
açúcar inicia-se a partir do momento em que ristas inexperientes, algumas vezes inabilita-
ele acorda e começa a se preparar para embar- dos, em flagrante desrespeito à lei, que prevê
car no caminhão que o levará até a lavoura. Ini- que o transporte de “bóias-frias” deva ser feito
cialmente deve preparar as refeições que fará em ônibus apropriados (cf. art. 190 da Consti-
durante o dia, vestir-se e providenciar seus ins- tuição do Estado de São Paulo).
trumentos de trabalho. O final do processo vai A prática de transportar “bóias-frias” em
se dar com o seu retorno ao lar (casa, aloja- veículos inapropriados, cuja manutenção rara-
mento ou pensão) depois de cumprir outras ta- mente é realizada, tem possibilitado a ocorrên-
refas necessárias à sua reprodução, tais como: cia de elevado número de acidentes, muitas ve-
alimentação, limpeza da casa, cuidados com o zes com graves conseqüências e grande núme-
vestuário pessoal e da família, higiene pessoal ro de mortes de trabalhadores rurais. Segundo
e cuidados com os instrumentos de trabalho. Silva et al. (1994), nos últimos 15 anos foi pos-
Só então estará livre para o descanso mínimo sível levantar o registro de 73 acidentes com

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caminhões de bóias-frias no Estado de São balhador abraça o maior número possível de


Paulo, em sua maioria ocorridos na região Nor- colmos de cana. Em seguida, curva-se para a
deste, resultando em 269 mortes e 1103 traba- frente e, com o podão seguro por uma de suas
lhadores rurais feridos, o que incapacitou para mãos, golpeia, com um ou mais movimentos a
o trabalho grande parte das vítimas, dada a base dos colmos, o mais próximo possível do
gravidade de tais acidentes. solo. Em seguida, faz um movimento de rota-
O trabalhador, ao chegar ainda cedo no ca- ção e, ao mesmo tempo, levanta o feixe de cana
navial, enfrenta, em seu ambiente de trabalho, já cortada, depositando-o em montes atrás de
temperatura elevada. A prática de se queimar a si (denominados “bandeiras”). O espaço entre
cana antes de seu corte, aquece a terra e, algu- uma “bandeira” e outra é de 2 metros. É neste
mas vezes, o calor se conserva até o início da espaço que o capataz mede a produção utili-
jornada. Este calor se intensifica, no decorrer zando-se de um instrumento denominado
do dia, pela ação solar. Além disto, o trabalha- compasso, quantificando quantos metros de
dor, durante a sua jornada de trabalho estará cana o trabalhador cortou durante a jornada
exposto à poeira e à fuligem da cana queimada de trabalho. A transformação da medida em to-
que impregnam seu rosto, suas mãos e suas neladas de cana cortada é feita multiplicando-
roupas. O ambiente de trabalho é marcado se a metragem por um determinado fator. A
também, em muitos casos, pela inexistência de atividade do corte se completa com o desponte
locais adequados para o depósito de marmitas do palmito (ponteiro).
e garrafas de água e café (que muitas vezes leva Cabe ressaltar que, dependendo do tipo de
à deterioração dos alimentos), pela inexistên- cana a ser cortada haverá variações nestes pro-
cia de local apropriado para os trabalhadores cedimentos. Não é possível o corte simultâneo
fazerem suas refeições e pela ausência de ins- de vários colmos quando esta se encontra “dei-
talações sanitárias. tada” ou “acamada”. Em tal situação os colmos
O fato de o trabalhador ter que levantar-se devem ser cortados individualmente, impli-
muito cedo, cumprir uma primeira jornada de cando em maior desgaste e menor produtivi-
trabalho em sua moradia, acrescido do tempo dade da força de trabalho.
gasto com seu transporte até o local de traba- O modo de ser do trabalho no corte da cana
lho, faz com que alguns deles, assim que che- é marcado por um ritmo acelerado, tendo em
gam à lavoura, almocem antes mesmo de ini- vista que deve estar perfeitamente articulado
ciarem o trabalho. Outros ainda, realizam tal com as exigências de matéria prima para a in-
refeição pouco tempo após o início da jornada dustrialização do açúcar e do álcool. O corte da
e alguns costumam fazê-lo por volta das 11 ho- cana é apenas uma parte de um processo in-
ras. Tais diferenças apontam para diferentes dustrial altamente organizado, demandando
estratégias adotadas pelos cortadores de cana todo um preparo logístico.
para prepararem seus corpos para suportarem Durante toda a jornada o trabalhador repe-
as agruras de seu trabalho. tirá exaustivamente os mesmos gestos. Abraçar
Ao longo da jornada o trabalhador se preo- o feixe de cana, curvar-se, golpear com o po-
cupa em repor as energias ao seu organismo dão a base dos colmos, levantar o feixe, girar e
bebendo muita água, tomando café e também empilhar a cana nos montes. Essa seqüência
chupando cana. A prática de chupar cana se, contínua de movimentos torna o trabalho re-
por um lado, repõe a água e sais minerais per- petitivo, monótono, automatizado. Tais movi-
didos pelo organismo, por outro, costuma pro- mentos, conjugados com a exposição às incle-
vocar diarréias, devido ao seu alto teor de saca- mências meteorológicas e às inerentes a pró-
rose. pria atividade, levam o trabalhador a diminuir
O trabalho no corte da cana é organizado seu limiar de atenção, aumentando a possibili-
em turmas de aproximadamente 30 ou 40 tra- dade de ocorrência de acidentes, seja com o
balhadores. Apesar de esta organização por próprio podão assim como por picadas de ani-
turmas, este trabalho envolve procedimentos mais peçonhentos. E não são só os acidentes
realizados individualmente pelo mesmo traba- que determinam processos de morbidade e/ou
lhador, do início ao final do processo, que é di- mortalidade dos trabalhos rurais. Seu corpo,
vidido nas seguintes operações: corte na base utilizado como parte das engrenagens da in-
da cana, desponte do palmito e amontoamen- dústria sucroalcooleira, rapidamente se des-
to. gasta e sofre. São comuns as queixas de dores
O corte na base da cana, que consiste na re- na coluna vertebral, principalmente lombar e
tirada da cana das touceiras, exige do trabalha- torácica, assim como dores de cabeça.
dor uma seqüência ritmada de movimentos Embora a base técnica do processo de tra-
corporais. Em geral, com um dos braços, o tra- balho no corte da cana-de-açúcar apresente si-

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milaridades em seu modo de ser com as de ou- uma hora do salário-dia, com o adicional de
tras regiões canavieiras do país, são expressi- 50% referente ao salário in itineri.
vas as particularidades regionais quando se Ao final da safra, quando há pouca cana
considera o seu modo de organização e o en- disponível para o corte ou existem apenas ca-
frentamento das adversidades desta forma nas de qualidade inferior, o trabalhador passa
concreta de trabalho. a receber um salário fixo, acrescido de 50% do
Os trabalhadores, inseridos no processo de preço da jornada normal de trabalho quando a
trabalho do corte da cana, estão submetidos a hora in itineri não consta nas 8 horas normais
outras categorias de trabalhadores, a saber: os de jornada. Em tais períodos, os trabalhadores
feitores, ou empreiteiros/agenciadores de mão- ocupam-se principalmente da capina, plantio
de-obra, responsáveis por sua arregimentação, e aplicação de agrotóxicos.
transporte e fiscalização direta do trabalho da De forma geral, um trabalhador corta, apro-
turma, pelo controle da qualidade do trabalho, ximadamente, 8 toneladas/dia (6 toneladas/
freqüência diária e número de horas que per- dia no caso do trabalhador do sexo feminino).
manecem na lavoura; os frentistas (ou fiscais), Alguns trabalhadores, entretanto, conseguem
que são funcionários da usina (ou destilaria) atingir a marca das 14 toneladas/dia (10 tone-
responsáveis pela fiscalização geral da frente ladas/dia no caso do trabalhador do sexo femi-
de trabalho – compostas pelas várias turmas; nino). A produtividade varia dependendo do ti-
os baseadores (ou entregadores), responsáveis po de cana disponível para o corte. As “canas
pela medição e pela queima da cana. em pé”, cultivadas em terrenos regulares, são
No que tange às relações sociais de traba- as que propiciam maior produtividade que, lo-
lho observa-se, na região, uma heterogeneida- gicamente é menor quando a cana encontra-se
de. O instrumento regulamentador destas rela- “acamada” e cultivada em terrenos irregulares.
ções é a Convenção Coletiva de Trabalho firma- Considerando as diferenças acima aponta-
da, por um lado, pela classe patronal, represen- das, o valor a ser pago pelo corte da cana deve
tada pelo Sindicato da Indústria do Açúcar do ser previamente comunicado aos trabalhado-
Estado de São Paulo e pelo Sindicato da Indús- res, conforme determinação do Acordo Coleti-
tria de Fabricação do Álcool do Estado de São vo de Trabalho da categoria. Segundo este ins-
Paulo e, por outro, pela Federação dos Traba- trumento, tal comunicação deve ser feita, no
lhadores na Agricultura no Estado de São Paulo máximo, até o final de sua jornada de trabalho.
(FETAESP). Nem sempre tem sido possível ini- Essa regra, entretanto, vêm sendo sistematica-
ciar a safra do corte da cana-de-açúcar, com mente desrespeitada na região.
um acordo coletivo de trabalho já firmado, pois Com esta prática e devido ao fato de a me-
são comuns as situações de impasse nas nego- dição da cana cortada ser realizada pelos feito-
ciações que antecedem o início de cada safra, res, baseadores ou entregadores, o trabalhador,
sendo necessário, em alguns casos, a interme- via de regra, perde o controle sobre o seu tra-
diação da Justiça do Trabalho. Quando isto balho.
ocorre, a safra se inicia sob o manto legal do A medição da cana cortada é feita com um
acordo firmado na safra anterior. instrumento, composto por duas réguas de
Ocorrem na região, basicamente dois tipos madeira, com extremidades de ferro, distantes
de relações contratuais: o contrato estabelecido 2 metros entre si, denominado compasso. Com
diretamente entre o trabalhador e a usina (ou este intrumento, os feitores, baseadores ou en-
destilaria) e o contrato intermediado pelos em- tregadores medem quantos metros lineares o
preiteiros de mão-de-obra, antigamente desig- trabalhador cortou no eito, convertendo, atra-
nados por “gatos”, que hoje se estabeleceram, vés de um fator, os metros cortados em tonela-
juridicamente, na forma de empresas presta- das cortadas.
doras de serviços de trabalhos temporários. A cana utilizada como amostra para o cál-
A remuneração do trabalhador é definida culo do fator é obtida através da média de, no
por um conjunto de mecanismos previstos no mínimo, três amostragens/talhão cortados. O
Acordo Coletivo da categoria, sendo bastante Acordo Coletivo de Trabalho da categoria prevê
heterogênea. De forma geral, o trabalhador re- que tal metodologia seja aplicada às vistas dos
cebe por tonelada de cana cortada. No final da trabalhadores, o que, via de regra, não ocorre.
safra, quando ocorre o corte das canas de qua- O conjunto de funções desempenhadas pe-
lidade inferior, diminuindo a produtividade do los intermediários de mão-de-obra, destacan-
trabalhador, a forma de remuneração é altera- do-se as figuras dos feitores, baseadores e fis-
da, e ele passa a receber um salário fixo. cais da lavoura nos permite compreender co-
Quando o contrato de trabalho é por pro- mo se processa o controle sobre a força de tra-
dução, a remuneração deve ser acrescida de balho, não só no âmbito do espaço da produ-

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SAÚDE E TRABALHO RURAL 119

ção, mas também no âmbito de seu espaço re- zação social corresponde um conjunto de car-
produtivo. gas laborais que irão se traduzir em padrões de
No tocante ao espaço da produção, as ativi- desgaste biopsíquicos dos trabalhadores do
dades e atitudes dos feitores e baseadores tem corte da cana-de-açúcar.
implicações diretas na remuneração de cada Tais trabalhadores, conforme mencionado
trabalhador. Segundo Alessi & Scopinho (1994), anteriormente, se expõem, diariamente, a car-
enquanto este recebe por sua produtividade ou gas físicas, químicas e biológicas, que se tradu-
pela diária integral, aqueles controlam um zem em uma série de doenças, traumas ou aci-
conjunto de fatores que interferem diretamen- dentes a elas relacionadas, tais como dermati-
te no seu ganho. Estes fatores variam desde a tes, conjuntivites, desidratação, cãimbras, dis-
indicação do local e tipo de cana para o traba- pnéia, infecções respiratórias, oscilações da
lhador cortar; a escolha da cana a ser pesada e pressão arterial, ferimentos e outros acidentes
que servirá como amostra; a decisão sobre o (inclusive os de trajeto). Além destas cargas la-
número de horas diárias que o trabalhador borais, devemos destacar aquelas de caráter
permaneceu na lavoura e a expedição do car- biopsíquicos, que configuram padrões de des-
tão individual de produtividade. gaste manifestos através de dores na coluna
Tais autoras alertam, ainda, para o fato de vertebral, dores torácicas, lombares, de cabeça
que, apesar da Convenção Coletiva de Traba- e tensão nervosa (stress), além de outros tipos
lho prescrever, numa de suas cláusulas, que o de manifestações psicossomáticas que podem
cartão de produtividade deva ser entregue ao se traduzir, principalmente, por quadros de úl-
término de cada jornada diária de trabalho, os cera, hipertensão e alcoolismo.
trabalhadores recebem dos feitores o referido
cartão com um ou mais dias de atraso.
Este fato, relacionado “(...) ao não conheci- Considerações finais
mento diário do preço da cana cortada acaba
retirando do trabalhador uma das poucas pos- Dada a complexidade da temática Saúde e Tra-
sibilidades de exercer algum controle sobre o balho Rural, a possibilidade de compor um
resultado de seu próprio trabalho. Na realida- quadro geral das questões relacionadas à saú-
de, o recebimento dos ‘pirulitos’ com atraso de do trabalhador rural no país não prescinde
impossibilita aos trabalhadores reviverem, na da análise de processos de trabalho concretos.
memória, o eito e o tipo de cana que cortaram” Nesse sentido é que se buscou recompor o
(Alessi & Scopinho, 1994). processo de trabalho do cortador de cana para
É possível também pensar no controle apreender os padrões de desgaste e reprodu-
exercido pelos intermediários de mão-de-obra ção a que está submetida a força de trabalho
fora do espaço reprodutivo, na medida em que ocupada nessa atividade, na região nordeste do
cabe a eles a decisão de quem deve ou não ser Estado de São Paulo.
transportado até o local de trabalho. Cabe destacar algumas das transformações
“Esse conjunto de atividades centradas nas que vêm ocorrendo no setor canavieiro, objeto
figuras dos intermediários de mão-de-obra, de análise desse trabalho, e que, em última ins-
feitores, baseadores e fiscais da lavoura, confi- tância, contribuem para agravar ainda mais o
guram padrões de relações de controle, impon- quadro que foi exposto, tendo implicações di-
do ritmos acelerados ao trabalho...” (Alessi & reta nas condições de vida, trabalho e saúde
Scopinho, 1994). dos trabalhadores rurais da cultura canavieira.
As formas como essas relações sociais se Uma dessas transformações diz respeito ao uso
conjugam têm dificultado algumas tentativas abusivo do trabalho de crianças e adolescentes
formais ou informais de mobilização/organi- nesta atividade.
zação intentadas por estes trabalhadores. Os Segundo estimativa do Ministério Público,
sindicatos dos trabalhadores, por um lado, ten- esta força de trabalho corresponde a 2,5% da
tam fazer cumprir os acordos coletivos, tendo mão-de-obra empregada na região, no ano-sa-
como alvo, os feitores e/ou os supervisores da fra de 1995, sendo que correspondia a 5% e
lavoura. Os empresários do setor, por sua vez, 10% respectivamente, nos anos-safra de 1994 e
interferem nas atividades dos sindicatos, pro- 1993.
movendo um constante rodízio de seus agen- O emprego da mão-de-obra infanto-juvenil
ciadores, dificultando o estabelecimento de no país é expressivo, sendo significativa a sua
vínculos mais estreitos entre os agenciadores e absorção nas atividades rurais, destacando-se,
os trabalhadores. entre outros, o trabalho na carvoaria, na co-
A esse modo de ser do trabalho do corte da lheita de laranja e algodão, no corte da cana-
cana-de-açúcar, seu modo de divisão e organi- de-açúcar e na cultura do rami (Navarro, 1991).

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O diretor para o Brasil da OIT (Organização região, que produz em média 56 milhões de to-
Internacional do Trabalho) João C. Alexim, neladas de cana-de-açúcar (Pereira, 1994).
apresentou no 4 o Fórum Empresarial Sobre Pode-se afirmar que a mecanização do cor-
Trabalho Infantil, realizado no Rio de Janeiro te da cana-de-açúcar agrava ainda mais as
em julho de 1995, dados que apontam o setor condições de vida, trabalho e de saúde dos tra-
agropecuário brasileiro como sendo o que balhadores que se dedicam a essa atividade.
mais utiliza esta mão-de-obra. “Com base em Considerando que as lavouras sujeitas à meca-
dados de 1990, 42,9% das crianças e adolescen- nização são aquelas situadas em áreas de solo
tes que trabalham estão empregados no setor regular, onde a cana se encontra em pé e, por-
agrícola” (Scofield Jr., 1995). tanto, onde o trabalhador consegue maior pro-
É grande a polêmica em torno dessa ques- dutividade, ao trabalhador restará o corte da
tão. Por um lado, presencia-se na região uma cana de áreas irregulares, e/ou da cana “deita-
campanha da qual participam várias entidades da” ou “emaranhada”, onde as condições de
de movimentos sociais organizados, que é trabalho são mais adversas e a produtividade
coordenada por setores do Ministério Público do trabalho é baixa.
que procura coibir a utilização da força de tra- Tais transformações em curso colocam co-
balho infanto-juvenil em atividades sabida- mo padrões de desgaste-reprodução emergen-
mente penosas e insalubres, cuja proibição é tes do processo de trabalho do cortador de ca-
prevista no Capítulo V do Estatuto da Criança e na-de-açúcar as conseqüências do ingresso
do Adolescente. Por outro lado, coloca-se a ne- precoce da criança e do adolescente no merca-
cessidade de milhares de famílias recorrerem do de trabalho e o desemprego. Estes padrões
ao ingresso prematuro no mercado de trabalho não constituem, necessariamente, especifici-
de seus filhos menores de idade, como fonte de dade dessa categoria de trabalhadores quando
complementação da renda familiar. se consideram as transformações que vêm se
Estas crianças e adolescentes, ao se subme- processando no mundo do trabalho na con-
terem ao desempenho de atividades penosas e temporaneidade, com contornos mais acen-
insalubres, estão sendo expostas, cotidiana- tuados nos países pobres.
mente a acidentes de trabalho que podem ma-
terializar-se em lesões irreversíveis, a doenças
do trabalho, que podem comprometer seu de-
senvolvimento físico, psicológico e social.
Outro aspecto que precisa ser destacado,
refere-se a transformações que vêm ocorrendo
na base técnica do processo de trabalho da cul-
tura da cana-de-açúcar. A sua mecanização
desde a fase do plantio até o corte vem se acen-
tuando nos últimos anos, materializando cada
vez mais o “fantasma do desemprego” de ex-
pressivos contingentes de trabalhadores rurais.
A redução do número de postos de trabalho
tem sido significativa, sendo que o corte da ca-
na, para uma única usina da região, na safra
1989/90 foi realizado por 13.000 podões e, na
safra 1991/92 a introdução de colhedeira resul-
tou na redução deste número para, aproxima-
damente, 2.700 podões (Scopinho, 1995).
Segundo estimativas do Instituto de Econo-
mia Agrícola de São Paulo (I.E.A.), a mecaniza-
ção do corte de cana-de-açúcar poderá desem-
pregar cerca de 119 mil trabalhadores na região
de Ribeirão Preto até o ano 2.000, (cada colhe-
deira substitui cerca de 60 trabalhadores). De
acordo com esse estudo, esta estimativa impli-
ca uma taxa anual de desemprego crescendo
de 18% a 55%, em uma área mecanizável cor-
respondente a 60% do total da região. Segundo
o mesmo Instituto, o corte da cana queimada
emprega hoje, mais de 40 mil trabalhadores na

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SAÚDE E TRABALHO RURAL 121

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