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ARTIGO ARTICLE 2145

Um olhar sobre a atenção psicossocial a


adolescentes em crise a partir de seus
itinerários terapêuticos

An analysis of psychosocial care for adolescents in


crisis based on their therapeutic itineraries

Un examen de la atención psicosocial a los


adolescentes en crisis desde sus
itinerarios terapéuticos

Melissa de Oliveira Pereira 1

Marilene de Castilho Sá 1
Lilian Miranda 2

Abstract Resumo

1 Escola Nacional de Saúde This study analyzes the care provided to ado- O artigo analisa a assistência a adolescentes em
Pública Sergio Arouca,
Fundação Oswaldo Cruz,
lescents in crisis in a municipality in Greater crise em um município da região metropolitana
Rio de Janeiro, Brasil. Metropolitan Rio de Janeiro, Brazil. The article do Rio de Janeiro, Brasil. Trata-se do relato de
2 Universidade Federal Rural
reports on a qualitative health study that used uma pesquisa qualitativa em saúde, que utiliza
do Rio de Janeiro, Seropédica,
Brasil. Therapeutic Itinerary and Life Narratives as the como recursos metodológicos o Itinerário Tera-
methodological resources. The principal theo- pêutico e as Narrativas de Vida, adotando como
Correspondência
retical reference was psychoanalyst René Kaës. principal referência teórica o psicanalista Re-
M. O. Pereira
Av. Engenheiro Richard 179, Based on the adolescents’ own verbal accounts, né Kaës. Buscou-se, valendo-se de relatos orais,
apto. 203, Rio de Janeiro, RJ the study aimed to grasp the collective realities apreender realidades coletivas que lançassem
20561-090, Brasil.
that could potentially shed light on the different luzes sobre as distintas lógicas assistenciais e
melissadeoliveira@gmail.com
types of logic and professional practices applied práticas profissionais de cuidado a adolescentes
to care for adolescents in psychosocial crisis situ- em situação de crise psicossocial. Partiu-se do
ations. The underlying assumption was that an pressuposto de que, ao ser tomada em seu cará-
approach to the dialectical nature of the crisis ter dialético, a crise exige a existência e a manu-
required maintaining a framework that would tenção de um enquadre que permita o estabele-
allow establishing a space for transition within cimento de um espaço de transição, no qual se
which to develop the necessary conditions for construam condições necessárias para que ele-
disruptive and paradoxical elements to be elabo- mentos disruptivos e paradoxais sejam elabora-
rated. However, crisis care in the context studied dos. No entanto, a atenção à crise no contexto es-
here proved to be hampered by infrastructure is- tudado mostrou-se atravessada por dificuldades
sues, institutional rigidity, and fragmentation of de infraestrutura e baseada em certa rigidez ins-
activities, with little orientation towards inter- titucional e fragmentação das ações, com pouco
sector work. direcionamento para um trabalho intersetorial.

Mental Health Services; Social Support; Serviços de Saúde Mental; Apoio Social;
Adolescent Adolescente

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00185113 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 30(10):2145-2154, out, 2014


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Introdução coerência de sua forma pessoal de sentir, de atuar,


de pensar, a confiabilidade de seus laços e pertenci-
Há uma aposta da Reforma Psiquiátrica Brasi- mento a grupos, a eficácia do código comum a to-
leira na atenção às pessoas em crise baseada dos aqueles que, como ele, pertencem a uma mesma
numa rede substitutiva ao modelo manicomial, forma de sociabilidade e cultura” 10 (p. 27).
que compreende diversos serviços, instituições e A crise exige a existência e a manutenção de
recursos da comunidade. Espera-se que as ações um enquadre que permita o estabelecimento de
em saúde mental sejam capazes de interação um espaço de transição, no qual se construam
permanente com a população, conhecimento de condições necessárias para que elementos parado-
suas principais demandas e intervenções sinto- xais sejam elaborados. Tal condição diz respeito à
nizadas com as características socioculturais do transicionalidade, noção que Kaës 10,11 desenvolve
seu território 1,2,3,4. com base nas construções de Donald Winnicott.
Nos últimos dez anos no Brasil, os principais O espaço transicional é uma zona situada no
investimentos em equipamentos assistenciais campo da intersubjetividade e suporta os movi-
referem-se à abertura de serviços estratégicos mentos contínuos de união e separação, desde
em saúde mental, sendo o principal deles o que apoiado num enquadre firme e, ao mesmo
Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), e, para a tempo, flexível, que garanta processos de elabo-
população infantil e juvenil, o CAPSi (Centro de ração de rupturas. É marcado pelo que é apresen-
Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil). Há, ainda, tado entre sujeitos, sendo inventado e criado por
serviços que oferecem leitos de suporte às vivên- um e por outro 11. A economia da transicionalida-
cias da crise, como os CAPS que funcionam 24 de é intrapsíquica, grupal e social 10. Essa compre-
horas por dia (CAPS III) e os Leitos de Atenção ensão evoca, do ponto de vista da intervenção,
Integral em Hospital Geral. Nesse cenário, apesar um trabalho psicossocial dos e sobre os grupos
da importante discussão sobre a saúde mental e instituições.
infantil e juvenil 5,6,7,8, a temática da atenção à Por concepções fundamentadas na obra de
crise de adolescentes, seja em textos acadêmicos, Kaës 10,11 e por reflexões de autores do campo da
documentos oficiais ou relatórios técnicos, é ra- saúde mental 1,2,3,4, este artigo discute algumas es-
ramente abordada 9. tratégias utilizadas por serviços e entre serviços
Acredita-se que o CAPSi possa dar visibili- para a atenção à crise psicossocial de adolescen-
dade inaugural ao sofrimento psíquico infantil tes com base em seus itinerários terapêuticos. Eles
e juvenil, desenvolvendo práticas de cuidado têm como objetivo analisar as trajetórias compre-
inovadoras, sobretudo pelo esforço de criar par- endidas por usuários e familiares na busca por cui-
cerias com serviços de urgência, atenção básica e dado em saúde, assim como os sentidos dados por
instituições diversas, que não estão diretamente eles ao adoecimento e à atenção recebida 12.
voltadas à saúde 5,9. Para oferecer atenção à cri-
se, além da construção de redes, o serviço ainda
precisa desenvolver trabalho intenso com fa- Metodologia
miliares e com diversos recursos comunitários,
tais como Conselho Tutelar, escola, centros de Adotou-se como principal estratégia metodológi-
convivência, clubes, entre outros, de maneira ca a reconstrução de itinerários terapêuticos 12 de
que a organização do cuidado se dê com base adolescentes usuários de um CAPSi. As narrativas
na realidade local e das particularidades de cada de vida 13,14,15 foram o recurso central para o aces-
adolescente 1,2,3,4,5,9. so a tais itinerários, conferindo-lhes, assim, não
Este artigo se apoiou no psicanalista René apenas um caráter factual, mas essencialmente
Kaës 9,10,11 para um entendimento da noção de de produção de sentido. O itinerário terapêuti-
crise e sua articulação com a adolescência. Para co 12 pretende desvelar a resolubilidade do pro-
o autor, o próprio aparato psíquico é fundado e cesso de busca por cuidado, lançando luz sobre
enriquecido pela crise, pelas forças de desintegra- as distintas lógicas assistenciais e práticas de
ção e criação, em um constante funcionamento atenção e gestão.
de transformação e criatividade. Ao ser tomada A natureza metodológica e operacional da
em seu caráter dialético, a crise requer, porém, técnica de narrativas de vida é orientada para
a garantia de uma sustentação ao sujeito que a produzir relatos orais mediante lembranças de
sofre, de modo que possa gerar efeitos de enri- histórias pessoais e reflexões mais gerais sobre
quecimento subjetivo. Caso contrário, ela pode o tema pesquisado, sendo uma perspectiva que
configurar-se como: “experiência de ruptura que busca apreender “o coletivo pelo individual” 14,15.
questiona dolorosamente o sujeito na continuidade Assim, por intermédio dela, os âmbitos social e
de si mesmo, a organização de suas identificações singular coexistem, na medida em que o indivi-
e ideais, o emprego dos mecanismos de defesa, a dual se inscreve num contexto social e histórico

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ATENÇÃO PSICOSSOCIAL A ADOLESCENTES EM CRISE 2147

específico, que, por sua vez, se expressa nas falas A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética
individuais. em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pú-
Sendo um processo simultaneamente indivi- blica Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz,
dual e coletivo, a narrativa de vida é coerente com no dia 7 de maio de 2012 (processo no 18184),
referencial teórico da dinâmica das instituições e após ter sido aprovada por banca de qualificação
seus efeitos sobre a natureza e a qualidade dos vín- dessa instituição. Todos os sujeitos assinaram o
culos que ligam os sujeitos 16. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, de
O campo de estudo foi o CAPSi de um muni- acordo com as resoluções no 196/96 e no 251/97
cípio na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, do Conselho Nacional de Saúde.
situado na zona central da cidade, de fácil acesso.
A rede de serviços de saúde mental conta ainda
com dois CAPS II, um Centro de Atenção Psicos- O itinerário terapêutico de Letícia
social Álcool e Drogas (CAPSad), um ambulatório
de saúde mental, um Centro de Atenção ao Ado- Letícia tem 17 anos, gosta de Internet e de estar
lescente (CAA; serviço ambulatorial), Residências com as amigas com quem faz diversos passeios.
Terapêuticas e leitos de emergência psiquiátrica Na época da pesquisa, havia abandonado a es-
em um Hospital Geral. cola recentemente, tendo cursado até o segundo
Entendemos que o estudo aprofundado de um ano do Ensino Médio. Fazem parte de sua família
serviço, embora não permita generalizações, pode Graça, sua mãe, Raimundo, seu pai, Eduardo e
apontar para uma realidade coletiva 12,13,14,15, re- Vítor, seus irmãos.
metendo a questões comuns a outra organizações. Graça lembra que quando a família mora-
Objetivando preservar o anonimato, o município va em outra cidade, ao voltar de um passeio à
e os serviços não são identificados e os entrevis- praia feito com uma amiga, a filha, contando en-
tados são chamados por nomes fictícios. tão 14 anos, mostrou-se “...nervosa, e começou
Em discussão com a equipe, ficou decidido a bater pé, e falar coisas que ela nunca falou, ti-
que poderiam participar adolescentes que já rar a roupa”. A colega, procurada pela mãe, não
eram usuários do CAPSi em função de história sabia dizer o que aconteceu. Graça e Raimundo
de sofrimento psíquico grave, estando lá antes levaram Letícia para igreja onde o pastor fez uma
ou desde a crise. Os critérios de exclusão dos oração, mas já em casa a moça não comia, não
sujeitos foram: (i) adolescentes que estivessem dormia e empurrava quem tentava se aproximar.
vivenciando episódios de sofrimento psíquico Ao retornarem à igreja, o pastor, após conversa
mais acentuado; (ii) sujeitos cuja problemática com uma vizinha da família que era enfermeira,
psíquica estivesse relacionada com a dependên- aconselhou-os a procurar o Hospital Geral. Nele,
cia química. Participaram diretamente da pes- a adolescente foi medicada e encaminhada de
quisa três adolescentes, sendo realizados dois volta a casa. Oito dias depois, por sugestão des-
encontros com cada um. Complementarmente, sa vizinha, a família procurou outro serviço de
foi entrevistado um familiar de cada adolescen- saúde, em que Letícia recebeu acompanhamen-
te, somando-se cinco encontros no total. Foram to psiquiátrico ambulatorial, que durou alguns
entrevistados ainda cinco profissionais. meses, até o retorno da família para o município
O material empírico da pesquisa constituiu onde a pesquisa se realizara.
diário de campo, transcrições das entrevistas, Esse retorno esteve diretamente ligado a ou-
materiais advindos da utilização de recursos grá- tra mudança: Raimundo teve síndrome do pâni-
ficos e lúdicos, dados obtidos nos prontuários do co e decidiu voltar ao seu estado de origem. Lá
pacientes entrevistados e consultas a relatórios poderia ficar “mais sossegado e fazer o tratamen-
de gestão do CAPSi. to em paz”, como lembra Graça, que diante da
Considerando o limite de espaço deste arti- ausência do esposo, resolvera se mudar para a
go, optou-se pela apresentação, de maneira mais cidade natal, onde possuía parentes.
detalhada, apenas do itinerário terapêutico de Letícia se mudou de cidade antes de sua mãe
Letícia, entendendo que tal trajetória guarda e passou algumas semanas na casa de uma pri-
muitos elementos em comum com os itinerários ma, quando aconteceu o que consideram uma
terapêuticos dos demais adolescentes, retoma- segunda crise. A crise incluiu um comportamen-
dos nas conclusões. Vale ressaltar que, apesar de to parecido com o episódio anterior. Graça foi
a apresentação ser de apenas um itinerário tera- ao seu encontro, levando-a ao Hospital Geral do
pêutico, a metodologia de narrativas de vida pos- município, onde ficou internada por 12 dias.
sibilita uma ponte com realidades coletivas 14,15, A adolescente e a mãe se lembram de dias di-
de maneira que se entende que a história dessa fíceis no hospital. Letícia passou parte do tempo
jovem também direciona à realidade de outros de internação contida no leito, tendo uma rela-
adolescentes, outras crises e outros CAPSis. ção conturbada com a equipe de enfermagem.

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Com a alta, receberam um encaminhamento es- ra que Letícia não é uma “paciente nevrálgica”,
crito para o CAPSi, onde teve a primeira consulta que tem um “quadro clínico fácil de manejar” e
na semana seguinte. Num período de três anos pontua que a mãe sempre seguiu as orientações
de acompanhamento nesse serviço, Letícia parti- dadas, o que teria sido decisivo para a “melhora”
cipou de dois “Grupos de Adolescentes” e estabe- da crise.
leceu importante vínculo com uma psicóloga. Sobre o que teria mudado em sua vida após
As faltas da adolescente são fortemente des- o momento de crise, Letícia aponta a entrada
tacadas em seu prontuário, já que por muito tem- no CAPSi e a medicação, os quais, de alguma
po ela comparecia apenas para as consultas psi- maneira, são entendidos como a solução. Hoje,
quiátricas. A psiquiatra lembra que a adolescente continua frequentando o mesmo Grupo de Ado-
“estava bem”, porém “deslocada do grupo”, o que lescentes, sobre o qual diz não ter “muita novida-
é explicado pelo fato de ser “mais normal que os de para contar”. Afirma que quer continuar seu
outros”. Quando se encontrava há um ano e meio tratamento no CAPSi, mas não gostaria de per-
em tratamento, a equipe decidiu encaminhá-la manecer no grupo. Realiza, ainda, consultas com
para o ambulatório do CAA, onde participaria de a psiquiatra, consideradas muito importantes,
um Grupo de Adolescentes e realizaria atendi- pois viabilizam o uso da medicação e oportuni-
mento psiquiátrico. Tal decisão se deu em para- zam conversas sobre o tratamento.
lelo à diminuição da medicação. No prontuário, a Letícia relata que atualmente passa o dia dor-
psicóloga relata que a garota pareceu não gostar mindo ou “fica na Internet”. Segundo sua mãe,
do encaminhamento. Ele se dera mediante uma após a última crise, a rotina da filha mudou: não
carta encaminhada ao CAA, contudo, não che- ajuda mais em casa, deixando de realizar prati-
gou a se efetivar, pois Letícia teve uma nova crise. camente todas as atividades costumeiras. Tam-
Letícia lembra que começou a “passar mal”, bém parou de frequentar a escola, o que seria
ligou para o pai, que ainda morava em outro esta- explicado por ela como dificuldades de atenção e
do, e pediu para dormir com sua mãe, mas quan- aprendizado. A adolescente relata dificuldade em
do ela se aproximou, agrediu-a. Levaram-na ao acompanhar as aulas e problemas para “copiar a
Hospital Geral, onde fora medicada pelo clínico matéria”, pois sua mão “treme” em decorrência
geral. De volta a casa na mesma noite, Graça lem- da medicação. Segundo mãe e filha, não houve
bra que a filha acordou “batendo o pé, agredindo contato entre escola e CAPSi. A psiquiatra diz que
a gente”. A mãe realizou contato com o CAPSi no após a crise Letícia teria ficado mais “blasé” com
dia seguinte e a orientação, segundo o prontuá- a escola.
rio, era de que Letícia deveria ser levada ao Hos- Durante a última entrevista, Letícia fala da
pital Geral “frente a qualquer intercorrência”. vontade de voltar a estudar no próximo ano. Tem
De volta ao Hospital Geral, Letícia foi atendi- planos de fazer um curso sobre “rotinas adminis-
da por uma psiquiatra e ficou internada por dez trativas” e estudar inglês, mas isso só depois que
dias, o que foi comunicado ao CAPSi por telefo- terminar o colégio.
ne, pela família. Ela e a mãe lembram que mais A Figura 1 representa o itinerário terapêutico
uma vez a garota passou oito dias amarrada, sem de Letícia.
poder ir ao banheiro e fazendo uso de fraldas, já
que não era permitido andar pelo quarto. Não
queria comer e precisou “ficar no soro”; recusa- O CAPSi
va-se a tomar remédio, sendo necessário fazer
uso de medicação injetável, o que é lembrado Atualmente, o CAPSi conta com 26 profissionais,
como “a pior parte”. número considerado suficiente pela equipe. As
Apesar de Graça e Letícia não citarem, no contratações se dão por concurso público, por
prontuário há relato da visita de uma técnica do vinculação celetista com a prefeitura, ou com
CAPSi. No prontuário, está registrado um adia- empresas prestadoras de serviços.
mento da visita devido à ausência de carro no É de 152 o número de usuários do serviço,
CAPSi, bem como a dificuldade para realização cujo perfil é definido pelos profissionais median-
de contatos telefônicos com o hospital, o que não te diagnóstico. Usuários que apresentam pro-
impediu que ocorressem algumas vezes. Nesse blemática de uso e abuso de álcool e drogas são
período, no prontuário do CAPSi, a psiquiatra encaminhados para o CAPSad e o CAA.
afirma que se Letícia continuasse “aceitando A recepção de novos casos é realizada diaria-
medicação e se organizando” poderia ter alta em mente e pode ser agendada pelo próprio usuário
alguns dias. por telefone ou pela emergência psiquiátrica do
Durante sua entrevista, realizada dois meses Hospital Geral. Apesar disso, todos os casos estu-
depois dessa internação, a psiquiatra do CAPSi dados na pesquisa esperaram uma semana para
não lembrava bem dessa internação. Conside- serem recebidos, o que indica inflexibilidade da

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Figura 1

Itinerário terapêutico de Letícia.

CAA: Centro de Atenção ao Adolescente; CAPSi: Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil; HG: Hospital Geral.

agenda, mesmo quando a procura pelo serviço relatados, assim como não foi observada reali-
se deu em momentos de crise, como no caso de zação de assembleias com usuários e familiares/
Letícia. responsáveis, o que pode colocar em questão a
Sobre a organização do trabalho, vale ressal- existência de formas de gestão participativas.
tar que a equipe é “dividida por dias”, de maneira Grupos de Pais e Responsáveis também não
que cada profissional trabalha dois turnos, além eram mais realizados no momento da pesquisa.
de se fazer presente na reunião de equipe. Do Atendimentos individuais podem ser reali-
mesmo modo, cada grupo de usuários compare- zados pontualmente por todos os profissionais,
ce ao serviço apenas num dia específico, quando mas a maioria é feita por psicólogos ou psiquia-
encontra seu técnico de referência e sua “minie- tras. Os últimos exigem que o paciente esteja
quipe” (composta pelos profissionais que traba- acompanhado de seu familiar, e seguem o mo-
lham no mesmo turno). Além das reuniões de delo ambulatorial.
equipe semanais, há diariamente uma reunião De maneira geral, a atuação dos profissio-
de miniequipe. nais não envolve ações de intersetorialidade e
Em documentos oficiais, o CAPSi informa trabalho no território dos usuários. O contato
que oferta atendimentos regulares a pais e res- com outros serviços se dá basicamente por enca-
ponsáveis; atendimentos individualizados; ofi- minhamentos escritos e levados pelos usuários,
cinas; espaços de convivência/permanência; não havendo trabalho de apoio matricial, por
grupos terapêuticos; visitas domiciliares; acom- exemplo. Não estão previstos, ainda, encontros
panhamento de internações. Entretanto, du- com escolas, Conselho Tutelar ou outras ins-
rante o desenvolvimento da pesquisa empírica, tâncias formais ou informais ligadas ao público
os acompanhamentos terapêuticos não foram infanto-juvenil.

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Destacando problemas de infraestrutura, a co- tirar a roupa. A gente colocava a roupa e ela tira-
ordenadora explica que conta com apenas duas va todinha, calcinha, ai amarravam de novo. Ai
salas pequenas, o que prejudica a realização de quando amarravam ela começava a bater o pé
atividades grupais. O fato de hoje existir uma fila na cama e ai tinha que amarrar o pé. (...) Ai eu
de espera para os primeiros atendimentos tam- ia fazer o quê? Ai um dia eu desamarrei, porque
bém é atribuído à falta de espaço físico. Não há ficava muito mal de ver ela assim. Ai quando a
ainda adaptação do prédio para uso de pessoas enfermeira viu que eu desamarrei ela disse: ‘Agora
com necessidades especiais e, tampouco a dispo- que desamarrou, se vira’. Elas ficavam com raiva
nibilidade de automóvel. porque desamarrou...”.

O Hospital Geral Algumas considerações sobre a relação


entre os serviços de atenção à crise
O Hospital Geral teve papel central na atenção
à crise dos sujeitos da pesquisa. Por isso, apre- Primeiramente, chama-se a atenção para a pre-
sentaremos alguns relatos de adolescentes e fa- cária infraestrutura do CAPSi e se ressalta uma
miliares sobre suas experiências nesse serviço, exacerbação de exigência de trabalho psíquico
ainda que não se tenha estudado diretamente a dos profissionais quando, para além das relações
instituição. intersubjetivas que se colocam no trabalho em
A equipe do CAPSi entende que o Hospital saúde, os sujeitos têm de se haver com proble-
Geral não é o local ideal para as internações em máticas condições materiais 17.
saúde mental, destacando o despreparo dos pro- Notou-se, ainda, uma importante rigidez ins-
fissionais que não são da saúde mental. Apesar titucional, marcada pela burocratização e pela
disso, atribuem ao suporte medicamentoso, à fragmentação de estratégias de cuidado. Esse se-
possível contenção física e aos cuidados relativos ria o caso, por exemplo, da divisão dos profissio-
à saúde geral, a justificativa para encaminharem nais “por dias”, levando-os a realizar um trabalho
ao Hospital Geral os pacientes em crise. “dividido em blocos”, o que resulta num “CAPSi
É consenso entre os sujeitos da pesquisa a da segunda-feira e outro da terça-feira”, impedin-
avaliação de que o espaço da emergência psi- do o compartilhamento de atuações entre minie-
quiátrica no Hospital Geral é pequeno e conta quipes, conhecimento dos usuários dos serviços,
com um número excessivo de leitos. Segundo os além de restringir as ofertas terapêuticas.
entrevistados, não são oferecidas pelo hospital Tal questão pode ser percebida, também,
formas de cuidado diferentes do acompanha- em relação à definição do perfil dos usuários
mento medicamentoso e de enfermagem. Letícia do serviço. Parece que o lugar decisório dado
descreve sua rotina durante a internação: “Não ao diagnóstico deixa de fora as crianças e os
podia fazer nada, eu ficava só amarrada. Ficava adolescentes, afastando o serviço de suas histó-
só amarrada olhando a parede”. rias, singularidades e sofrimentos constituídos
Sobre os profissionais do Hospital Geral, por dimensões de vida bastante heterogêneas.
Graça e Letícia reclamam da alta rotatividade, Na reunião com a equipe para a indicação dos
desatenção de muitos deles e atitudes sentidas adolescentes que seriam entrevistados, por
como violentas. Ao mesmo tempo, reconhecem exemplo, foi necessária certa insistência para
a dificuldade e o excesso de trabalho, bem como que os profissionais falassem sobre as histó-
a disponibilidade de algumas enfermeiras em rias de vida dos pacientes indicados. Letícia
apoiá-las. Letícia diz que existem “médicos que era mencionada como a bipolar, não havendo
são bons e que são ruins, tem enfermeiros que são comentários sobre suas preferências e rotinas.
bons e outros que são ruins”, sendo os bons aque- Pode-se, ainda, perceber uma categorização es-
les que “não amarram os pacientes”. Durante as tigmatizante dos usuários, destacada no trecho
duas internações, a adolescente passou a maior a seguir: “Existem aqueles autistas tranquilos,
parte do tempo amarrada na cama porque não aqueles mais ou menos e aqueles autistas hor-
era permitido andar pelo hospital, nem mesmo rorosos. Também existem aqueles adolescentes
pelo quarto. Sua mãe lembra: “Ela começou a mais legais e aqueles mais rebeldes” (profissio-
querer tomar banho, mas não podia, porque esta- nal do serviço).
va amarrada. É, tinha que ficar amarrada porque Questionou-se a rigidez da agenda de marca-
se tirasse ela não queria mais voltar pra cama, ção de consultas, mesmo nos momentos de crise.
queria ficar andando, e eles não deixam. (...) Ai Como se sabe, a crise exige uma ação de urgência
ela querendo ir no banheiro e não podia. Ai tive- e sua resolução depende de um enquadre flexí-
ram que botar fralda nela. Eles só desamarravam vel 2, o que não parece ocorrer quando o serviço
ela pra tomar banho ai ela já começava a querer impõe uma espera burocrática aos adolescentes

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ATENÇÃO PSICOSSOCIAL A ADOLESCENTES EM CRISE 2151

e suas famílias, justamente no momento em que tos se baseiam no modelo “queixa-conduta”, não
suas necessidades são urgentes. tendo sua eficácia avaliada.
Sobre os processos de encaminhamento do Acerca dessa questão, vale retomar a fala de
CAPSi para outros serviços, o caso de Letícia in- Letícia, que parece acreditar que o serviço pode-
dica a desconsideração da avaliação que a pa- ria, por exemplo, organizar passeios, salientando
ciente e a mãe faziam do procedimento. Mostra, que estar só no CAPSi “enjoa”. Sugere ainda es-
ainda, que uma “passagem gradativa” não foi paços em que se possa jogar vôlei e queimado.
possível. Desconsideraram-se as questões que Quando a adolescente expressa o desejo de “fazer
a mobilizavam naquele momento ou o vínculo outras coisas que não o tratamento”, entende-se
com o serviço que, talvez, naquela circunstância, que fala também da possibilidade de o CAPSi ser
demandasse sua permanência, apesar do “qua- um espaço de construção de novos laços, de re-
dro estável”. Quem sabe essa “estabilidade” não alização de outras atividades, um setting aberto
estivesse sendo possível graças ao vínculo com à criação, menos homogêneo e mais permeável
o serviço? aos desejos, dificuldades e necessidades singula-
O caso de Letícia, que traz pontos em comum res dos sujeitos.
com encaminhamentos de outros adolescentes A rigidez institucional, a burocratização e a
entrevistados, mostra a dificuldade de se ter em fragmentação que aparecem na organização das
conta a complexidade dos vínculos dos usuários estratégias do serviço representam o oposto do
com o serviço. Não há, nesse protocolo de enca- que demanda a crise 10: um enquadre flexível
minhamento, espaço para idas e vindas do usu- frente ao que se apresenta como irrupção incon-
ário, distanciamentos e reaproximações, ausên- trolável. A organização do trabalho de maneira
cias e presença no serviço. Parece ser difícil para rígida inviabiliza o enfrentamento do desafio de
o CAPSi lidar com trânsito entre diferentes posi- estabelecimento de um enquadre que possibilite
ções: ou se está no CAPSi ou se está fora dele. a criatividade dos sujeitos, a capacidade de cons-
Importante notar também o fato de os adoles- tituir um campo de transição na crise.
centes terem de se adaptar aos grupos, sem que Tal quadro nos remete à discussão acerca de
eles sejam pensados mediante a necessidade de defesas coletivas contra as angústias desperta-
cada um deles e das mudanças vividas ao longo das pelo trabalho em saúde mental 2,16. Essas
do tempo. Ainda nesse sentido, observou-se que se constroem por um afastamento de questões
não ocorreram mudanças no Projeto Terapêutico (inter)subjetivas e do sofrimento advindo do en-
Singular (PTS) de Letícia após a crise, exceto o contro com a crise e com os limites e dificuldades
ajuste da medicação. de tratá-la, culminando em múltiplas reduções
Note-se que, diante da insatisfação dos ado- da singularidade dos adolescentes a estereótipos.
lescentes com as atividades, os profissionais não Esses processos, além de sugerirem uma repre-
são levados a revê-las: continuam enfatizando a sentação empobrecida dos usuários, parecem
necessidade de que frequentem o serviço “a qual- desencadear rigidez na definição de estratégias
quer custo”. Todos relataram a frequente necessi- de desenvolvimento das atividades terapêuticas
dade de realizar um difícil “trabalho” de conven- – que pouco dão oportunidades à criação e à he-
cimento para que os adolescentes aceitem estar terogeneidade, tanto de singularidades quanto
no serviço. A nosso ver, essa realidade exprime de possibilidades de uso dos espaços do serviço.
os limites do CAPSi para se apresentar como es- A esse respeito, alerta-se sobre a necessidade
paço flexível, voltado às particularidades de cada de se encontrar no espaço-tempo da instituição,
usuário, de criação de pontes entre eles e novas um lugar psíquico em que os conflitos intrapsí-
possibilidades de vida. Uma das profissionais en- quicos e intersubjetivos possam ser atualizados e
trevistas esclarece: “O CAPSi não tem muito mais pensados 2. Espaços que possibilitariam articula-
oferecer do que um atendimento individual, em ções entre vivências intrapsíquicas e intersubjeti-
grupo, um suporte à família e um suporte médico vas, plurissubjetivas 16. Trata-se de espaços coleti-
medicamentoso” (profissional do serviço). vamente atravessados pela realidade psíquica, que
Ao não ter “muito mais a oferecer”, o serviço se abrem para a possibilidade de elaboração de
acaba deixando de questionar sua prática dian- defesas coletivas contra as angústias referentes ao
te das recusas dos pacientes às ofertas existen- sofrimento do trabalho em saúde mental. Podem
tes. Além disso, a gestão do que é ofertado não ser arranjos formais, como a supervisão clínico-
parece levar em consideração a clínica, sempre institucional, reuniões de equipe, formação, entre
determinada pelas peculiaridades dos sujeitos. outros, assim como podem ser criados pelos pró-
Imagina-se que tais processos se aproximam da prios profissionais 11.
“clínica degradada” 18, aquela que negligencia Em relação a isso, a equipe do CAPSi relata o
o pressuposto de abertura às singularidades e Fórum Municipal de Saúde Mental de Crianças
necessidades de cada paciente. Os procedimen- e Adolescentes como um setting que parecia ser-

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vir aos objetivos de circulação da fala e encontro acompanhem os adolescentes no Hospital Geral.
entre diferentes realidades. Este fora um espaço Como justificativa para esse cenário, todos su-
de diálogo entre serviços de saúde, assistência, blinharam as dificuldades de contato, advindas
educação, esporte, entre outros, todavia seu fun- de problemas com os telefones ou ausência de
cionamento fora interrompido porque a gestão um carro próprio, o que dificultaria o transporte
de saúde mental entendera que não era propício no caso de uma situação de maior gravidade que
mantê-lo no ano eleitoral. Além disso, vale lem- pudesse acontecer no CAPSi.
brar que há quatro anos o serviço não conta com Poder-se-ia dizer, em consonância com os
supervisão institucional. valores da Reforma Psiquiátrica, que o Hospital
Chama a atenção, no entanto, a realização Geral ocuparia papel decisivo na rede de servi-
anual, desde 2004, do Seminário Interno do ços em saúde mental se estivesse em direta in-
CAPSi, do qual participam apenas os profissio- terlocução com outros serviços 1,3,4, o que não
nais. A coordenadora pontua que: “o melhor do parece ser a realidade do contexto estudado. As
seminário é o café da manhã, cada um da equipe estratégias predominantemente medicalizan-
traz uma coisa, conversamos um pouco (...) o al- tes e hospitalocêntricas, tendo com contenções
moço é incrementado”. Tal relato remete a uma físicas durante longo tempo no Hospital Geral,
topologia institucional na qual os espaços psí- obriga a questionar sobre possíveis violações de
quicos e institucionais, delimitados por diversas direitos humanos.
figuras anamórficas, nem sempre são represen- O mandato social pela loucura parece ser as-
tados 16. As figuras anamórficas são consideradas sumido ora pelo CAPSi, ora pelo Hospital Geral.
como espécies de armários, lugares de depósito, Essa característica remete a uma desinstitucio-
lugares de interstício onde seriam dramatizadas nalização falsa 3, que se volta para a criação de
as formações intermediárias e transicionais. Eles novos dispositivos de atenção, mas apenas deslo-
poderiam ser representados pelos corredores, ca as formas e os modos de gestão manicomiais.
cafés, lugares construídos para acolher e tratar as O look, as coisas, os lugares, parecem mudar,
representações de conflito psíquic e/ou institu- porém os valores nos quais se baseia o trabalho
cional. É possível que o café da manhã do semi- continuam os mesmos, ou não se alteram sufi-
nário seja um desses arranjos que se apresentam cientemente, de modo que a força da lógica ma-
como brechas para as questões relacionais e para nicomial se mostra presente nas situações mais
o que não encontra representação em outros es- delicadas, que se condensam, como se sabe, na
paços/atividades institucionais, tal como a im- irrupção das crises.
potência e o sofrimento dos profissionais diante Trata-se, aqui, de serviços comunitários que
da crise dos pacientes. criam uma complementaridade com as estrutu-
ras de internação 2, que se organizam sob a lógi-
ca do revolving door 3, representando no circuito
O itinerário terapêutico de Letícia e a desse sistema um “ponto de descarga, necessário,
atenção à crise temporário e recorrente”. Nesse contexto: “a ‘está-
tica’ da segregação em uma instituição separada e
O itinerário terapêutico de Letícia, assim como total foi substituída pela ‘dinâmica’ da circulação
dos demais adolescentes, leva a supor que a crise entre serviços especializados e prestações pontuais
não tem podido ser vivida no e pelo CAPSi. Tal e fragmentadas” 3 (p. 23).
questão aparece quando se percebe a falta de Com essas conclusões, algumas questões se
ocupação psíquica dos profissionais com a crise apresentam. Como se pode pensar um serviço
dos pacientes e a impossibilidade de a equipe se que possa atender a crise e que funcione num
colocar num patamar intermediário: ou o usuá- horário restrito, sem automóvel, sem espaço
rio está no CAPSi ou está no Hospital Geral. Para adequado, sem medicamentos necessários e
além de uma visita ou telefonema, parece que sem um apoio institucional que prepare os pro-
não é possível se ocupar desse adolescente, criar fissionais para tal atuação e possibilite espaços
espaços de discussão do PTS, o qual, vale lem- de elaboração das angústias frente à crise? Tais
brar, não se modifica, mesmo após a vivência dos questões devem ser consideradas para que não
momentos mais difíceis dos adolescentes. se responsabilize apenas esse CAPSi em particu-
Fazendo um balanço geral dos itinerários lar pelos problemas identificados. É necessário
construídos, pode-se perceber que o CAPSi apre- reconhecer a complexidade das dificuldades en-
senta dificuldades no planejamento e constru- volvidas no acompanhamento de adolescentes
ção de ações conjuntas, em que compartilhe ou- com graves problemas psicossociais e, conforme
tras instâncias a responsabilidade pelo cuidado se ressaltou em sessões anteriores, não se pode
dos adolescentes em crise. É bastante raro, por deixar de levar em conta as problemáticas de in-
exemplo, que os profissionais do CAPSi de fato fraestrutura e condições de trabalho da equipe.

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ATENÇÃO PSICOSSOCIAL A ADOLESCENTES EM CRISE 2153

Nesse contexto, estão excluídas as estratégias mentação e fiscalização dos serviços substituti-
de atenção à crise baseadas numa lógica comu- vos, uma vez que se deparou com ofertas limita-
nitária, de modo que inexistem respostas plane- das e baixa capacidade de interlocução entre as
jadas com base na realidade de cada adolescen- poucas organizações existentes. Tais fragilidades
te. A organização da atenção, que deveria se dar acabam por direcionar o cuidado à crise para o
com intuito garantir as conexões entre a crise e Hospital Geral (geralmente dissociado da rede),
a história pessoal do adolescente, valendo-se da ficando a cargo dos CAPSi o cuidado em horário
construção de novas redes de relação, não se des- e condições restritas.
taca nos itinerários terapêuticos estudados. Não Aponta-se, desse modo, para a necessidade
foi possível para o CAPSi – como indicam o PTS de que o Ministério da Saúde e os governos esta-
de Letícia e as entrevistas realizadas – favorecer a duais e municipais viabilizem recursos para que
construção de novas possibilidades de vida para o atual projeto de saúde mental se sustente, o que
a jovem após a crise. Ao contrário, constata-se a inclui garantia de condições dignas de trabalho e
adolescente longe da escola e de atividades que de ofertas de apoio aos profissionais. Entre elas,
realizava anteriormente, dormindo o dia todo. cita-se a supervisão clínico-institucional que,
Os itinerários de vida e tratamento dos ado- embora formalmente financiada pelo Ministério
lescentes são construídos cotidianamente por da Saúde, ainda não se encontra implementada
fluxos e conexões que envolvem acontecimen- em todos os CAPS. Lembra-se, ainda, dos espa-
tos diversos e atores múltiplos. O cuidado à crise, ços de educação permanente, discussão interse-
momento ímpar da assistência em saúde men- torial, dentre outros que auxiliem os trabalhado-
tal, envolve o encontro com um forte sofrimento res na árdua tarefa de reconhecer, compartilhar,
psíquico, não apenas por parte do adolescente, significar e elaborar os “restos” do trabalho, re-
mas também de sua família e dos profissionais de presentados pelo mal-estar, agressividade, pa-
saúde mental, colocando em evidência as pos- vor, impotência, e outras questões e afetos. Estss,
sibilidades e limites de cada serviço para servir quando não podem ser tratados, acabam por ser
como enquadre que suporta as vivências caóti- expulsos junto com aquilo que a eles se associa,
cas e é capaz de construir e reconstruir estraté- como as situações de crise psicossocial 2,9,10,11,16.
gias, inventar e reinventar práticas. A crise e o Consequentemente, ao contar com condições de
seu tratamento devem envolver movimentos de elaboração e compartilhamento do próprio tra-
construção-destruição, de abertura e fechamen- balho, os profissionais devem proporcionar for-
to, de morte e criação 10. mas de cuidado à crise mais acolhedoras e per-
meáveis à participação ativa dos adolescentes e
seus familiares.
Considerações finais Reconhece-se, entretanto, que os itinerários
construídos, bem como o referencial teórico
É possível que a realidade aqui apresentada re- adotado, proíbem qualquer idealização da cri-
presente o cotidiano de outros serviços de aten- se: ela é marcada pela ruptura, pelo caos, pela
ção psicossocial a adolescentes, tão marcados violência e por vários outros aspectos ligados ao
por precariedades no trabalho e ausência de intenso sofrimento. Cabe insistir na potência de
espaços de elaboração do sofrimento institucio- uma rede de serviços, sua capacidade de propi-
nal. Embora a Política Nacional de Saúde Mental ciar condições para que os sujeitos construam
preveja um cuidado pautado numa rede de servi- significações sobre os momentos de crise, apro-
ços diversificados, sendo o CAPSi seu ordenador veitando também seu potencial criador e poden-
5,6,7,8, foram verificadas dificuldades na imple- do construir novas possibilidades para o viver.

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Resumen Referências

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Recebido em 28/Out/2013
Versão final reapresentada em 27/Fev/2014
Aprovado em 18/Mar/2014

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 30(10):2145-2154, out, 2014

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