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PREFÁCIO

Marcos Napolitano
Departamento de História - Universidade de São Paulo

Qual o lugar da história oral e das memórias sociais no estudo da ditadu-


ra militar no Brasil? Algumas peculiaridades do longo regime autoritário
que vivemos entre 1964 e 1985 tornam a resposta desta questão plena de
matizes e “considerandos”.
Entre estas características, destacam-se a própria longevidade do
regime, que permitiu, de maneira contraditória e paradoxal, a sedimen-
tação de muitas memórias daquela experiência histórica ainda durante
sua vigência política, fundindo experiências matrizes em torno do golpe
e dos “anos de chumbo” e narrativas memorialísticas mais ou menos es-
táveis, sobretudo após 1974.
Outro aspecto é o fato de haver uma volumosa literatura acadêmi-
ca, à guisa de historiografia em construção, sobre o período do regime,
sobretudo a partir do final dos anos 1970, portanto, antes mesmo do re-
gime findar. É notório que a historiografia mantém uma relação tensa
com a memória social, ora se apoiando, ora ajudando a construí-la, ora
negando-a. Assim, o fato de existir um discurso acadêmico e historio-
gráfico incipiente sobre o regime antes mesmo da superação da sua fase
histórica, no qual se incluíam estudos bastante alentados e objetivos so-
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bre o golpe, sobre a política econômica do regime e sobre os movimentos


sociais, talvez tenha diminuído a importância da história oral e dos tes-
temunhos na consolidação de uma memória histórica sobre o período.
Finalmente, não podemos negligenciar um outro aspecto impor-
tante que relativizou o lugar historiográfico da história oral e das memó-
rias a ela associadas na análise e refiguração da experiência autoritária
no Brasil: o fato de existir uma abertura de arquivos e organização de
coleções arquivísticas de diversas naturezas (audiovisual, escrita e so-
nora), inicialmente tímida, mas que foi se ampliando depois do fim do
regime militar. O reconhecimento desta “ditadura documentada”, con-
forme expressão de Carlos Fico, não anula os terríveis efeitos provocados
pela lacuna de documentos essenciais até hoje vedados ao público e aos
pesquisadores, sobretudo aqueles ligados à máquina repressiva ilegal e
extrajudicial (e, no entanto, altamente burocratizada) que explicaria os
destinos de militantes assassinados e desaparecidos. Ainda assim, a exis-
tência de uma massa documental escrita sobre o período talvez ajude a
explicar o porquê de a história oral ter sido relativamente secundária no
estudo da ditadura no campo historiográfico brasileiro.
Estas três características peculiares talvez expliquem as diferenças
de escala e densidade do uso da história oral e da refiguração das experi-
ências históricas pela via das memórias entre os estudos sobre a ditadura
brasileira e as ditaduras do Cone Sul, principalmente se focarmos o caso
argentino. Neste país, as características do regime e, principalmente, a
natureza e a escala da repressão ilegal, transformaram a memória e o
testemunho, cristalizados pela história oral, em peças essenciais da “his-
toricização do passado recente”, colocando o historiador comprometido
com a democracia em uma situação muitas vezes difícil, entre chancelar
ou revisar narrativas sensíveis e traumáticas que iluminam certos fatos e
processos passados, mas obscurecem outros tantos. O debate argentino
dos anos 2000, que colocou intelectuais igualmente opositores do lega-
do do regime em campos epistemológicos (e políticos, em certo sentido)
opostos, teve como epicentro esta delicada “escolha de Sofia”. O eixo da
discussão era, precisamente, a validade da história oral e do testemunho
subjetivo para se conhecer o passado recente, bem como as políticas de
memória e usos do passado por grupos político-ideológicos específicos.
Mesmo os fortíssimos e influentes movimentos de direitos humanos na
Argentina não passaram incólumes por este debate. De todo modo, o
caso argentino nos fornece um paradigma contundente acerca do lugar
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da história oral e do testemunho no estudo (e na superação) de passados


traumáticos e pouco documentados (aqui me refiro à concepção tradi-
cional de documento histórico de matriz escrita ou de suporte físico de-
limitado).
No Brasil, ao contrário, o testemunho correu paralelo à produção
historiográfica inicial sobre o regime, e a história oral (seja como objeto
em si ou método de pesquisa) e os processos de memória só algum tem-
po depois transbordaram o meio social e se expandiram pelo meio his-
toriográfico. Vale lembrar que se em toda história oral há um testemu-
nho/depoimento ou uma narrativa testemunhal que refigura a memória,
nem todo testemunho tem como base uma “história oral”. No caso da
ditadura brasileira, tivemos muitos testemunhos que já nasceram para
edições impressas, em formato literário e escrito que inundaram o mer-
cado editorial desde o início dos anos 1980, produzidos, sobretudo, por
ex-militantes da luta armada. Estes testemunhos escritos foram essen-
ciais na fixação de uma memória do regime, particularmente em relação
ao embate guerrilha-repressão. Além disso, na metodologia de trabalho
dos diversos grupos de direitos humanos e de familiares de mortos e
desaparecidos, havia a premência de coleta de narrativas e depoimentos
orais como forma de iluminar os “porões” da repressão e de superar os
traumas da tortura, na esperança de constituir um estoque de histórias
pessoais que adensassem a experiência coletiva e dessem um arcabou-
ço jurídico e histórico para “passar o passado a limpo”. Seja no formato
escrito e editorial, seja no trabalho cotidiano dos grupos de ativistas e
familiares, o testemunho correu paralelo a uma historiografia que nem
sempre chancelava as memórias ali embutidas. Se tomarmos o exem-
plo do debate sobre a “luta armada”, os três autores mais influentes que
estruturaram uma historiografia deste tema – Jacob Gorender, Daniel
Aarão Reis Filho e Marcelo Ridenti – são quase nada influenciados pela
produção memorialística. Ao contrário, muitas vezes a negam em nome
da objetividade histórica e sociológica, mesmo contendo em suas pesso-
as a dura ambiguidade de ter vivido o passado analisado (caso de Goren-
der e Reis Filho, ex-guerrilheiros e ex-presos políticos).
Ironicamente, a história oral para o estudo do regime faz sua grand
première no estudo sobre a memória militar do período, em ambicioso e
bem organizado estudo do CPDOC-FGV com depoimentos da oficiali-
dade influente do regime. O resultado foi consolidado em três volumes
da coleção A memória militar sobre… Mesmo aqui, estamos diante de uma
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história oral ainda em sua fase de “material bruto”, com transcrições de


depoimentos que são pouco analisados enquanto fontes históricas ou
objetos de pesquisa. A rigor, ainda não estávamos nem diante do clássico
dilema da história oral, campo que se debate entre seu uso como “me-
todologia” ou sua constituição como “disciplina”, com domínio próprio
dentro dos estudos históricos. De todo modo, a coleção demonstrava
a importância do depoimento sobre a ditadura, base para uma história
oral do período. Os depoimentos permitem conhecer posições não ape-
nas subjetivas diante dos fatos e processos passados, mas também su-
tilezas institucionais e ideológicas dificilmente captáveis nos registros
escritos oficiais, sempre submetidos a tabus e silenciamentos acerca da
experiência vivida.
Nos anos 2000, um novo boom de memória sobre a ditadura (para
além da historiografia já consolidada) reavivou o debate sobre a histó-
ria oral e o testemunho em outros patamares. Depois de uma política
de memória restrita e enviesada por parte do Estado, consolidada entre
1995 e 2002, mais preocupada com as reparações do que com a “verdade
e justiça”, um novo movimento na elucidação dos processos históricos
e crimes ligados ao regime militar teve início. Seja pela importância do
III Plano Nacional de Direitos Humanos (2009-2010), seja ao longo dos
trabalhos da Comissão Nacional da Verdade e suas congêneres locais
(2012-2014), a tríade “testemunho-memória-verdade” passou a ser am-
plamente valorizada, recolocando a história oral, método ou disciplina
(aqui pouco importa), no centro do debate. Mesmo historiadores pouco
afeitos a este método/domínio, têm se dedicado desde então ao estudo
das memórias tomadas como processos sociais objetivos e mapeáveis,
para além das oralidades e subjetividades. Em grande parte, o livro que
aqui apresento é fruto deste novo momento histórico e historiográfico
que vem pautando inúmeras pesquisas que têm vindo à luz na forma de
livros e teses.
O adensamento de uma bibliografia com abordagens e fontes dife-
renciadas só ajudará a compreender aquele “passado que não passa”, mas
que, paradoxalmente, sofre um processo institucional de esquecimento
imposto. Este risco só aumenta a importância da história oral como pro-
dução de documentos a partir de fontes vivas, constituindo um domí-
nio que pode explicar como as estruturas e macro-histórias são vividas
e lembradas. Em resumo, o fato de a história oral ter sido secundária
na historiografia mais estabelecida da ditadura brasileira até anos recen-
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tes, não diminui sua importância e sua contribuição, ainda que passados
mais de 30 anos do fim do regime.
Ainda há temas e processos que talvez só possam ser conhecidos
através de depoimentos, como a própria experiência subjetiva da tortu-
ra e a experiência dos presos políticos no cárcere. Outras experiências
sociais estão presentes nos textos da coletânea, como o cotidiano dos
trabalhadores operários de Contagem durante o regime, a memória dos
trabalhadores qualificados e camponeses que vivenciaram a inauguração
da Transamazônica, a atuação dos anarquistas durante o regime, a visão
dos indígenas de Minas Gerais submetidos à política indigenista oficial,
a repressão policial sobre gays e travestis em uma grande capital brasilei-
ra. Temas sobre os quais muito se escreveu, aqui também são abordados
a partir de experiências que lhes dão outros sentidos: os estudantes que
participaram do Projeto Rondon, a recepção das ações cívicas do Exér-
cito em uma área de guerrilha, os militares que participaram do regime,
a busca dos familiares pelos desaparecidos do Araguaia, as mulheres em
uma grande organização da esquerda católica, os artistas de um consa-
grado grupo de teatro, os militantes do Movimento Negro. Estas novas
abordagens, a partir da história oral e das memórias nela refiguradas,
permitem o cotejo das subjetividades individuais (e coletivas) com uma
historiografia que, predominantemente, valorizou outras fontes. As vo-
zes, neste caso, podem nos levar além da memória institucional destes
movimentos e organizações (Estado, Exército, movimentos sociais, or-
ganizações de esquerda) contida na documentação escrita, monumenta-
lizada, que, muitas vezes, cria uma ilusão de objetividade no pesquisador.
Os autores e organizadores desta coletânea partilham o uso da his-
tória oral e a memória como tema e problema para o historiador, pro-
pondo uma “história social das memórias” da ditadura. Sem desviar suas
energias de pesquisa para o embate teórico entre história oral como “mé-
todo” ou como “disciplina”, os textos tentam se afirmar a partir da tensão
necessária entre estes dois polos, como estratégia para compreender as-
pectos relevantes ao conhecimento histórico tout court. A formação al-
tamente profissional e a sofisticação dos pesquisadores não lhes afastam
da matriz essencial da experiência histórica aqui analisada: o sofrimen-
to das pessoas de carne e osso que, pelos depoimentos, partilharam seu
tempo vivido com os pesquisadores e, agora, com os leitores deste livro.

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