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ANTÔNIO DÓ

Written by
Clara Delgado

Based on
"A saga de Antônio Dó"

producao@88arte.com
1 PLANOS DOCUMENTAIS - IMAGENS SUBMERSAS DO RIO SÃO 1
FRANCISCO/PILÃO ARCADO - DIA
Imagens submersas do rio mesclam-se às imagens das ruínas da
antiga cidade de Pilão Arcado (BA). Múltiplos cortes mostram
a igreja, as casas, o mato crescido ao redor. Este será o
fundo para os CRÉDITOS DE ABERTURA.

2 EXT. MARGEM DO RIO SÃO FRANCISCO - DIA 2


Uma barca de casco azul escuro está parada à margem do rio.
Em sua proa está a palavra “Guaraúna”. Na sua parte frontal,
há uma carranca. Erguendo-se do casco, há um toldo de madeira
com cobertura de sapé e embaixo dele, mercadorias: sal e
tecido. Próximo à popa, há rapadura e farinha. Dentro da
barca estão o PILOTO e 6 BARQUEIROS. O piloto, homem de
cabelos pretos, corpulento, cerca de 40 anos, ajeita os
últimos preparativos para a saída, confere as mercadorias. Os
barqueiros tomam seus varejões. Na margem do rio, próximo à
barca, estão cerca de 15 PASSAGEIROS carregando trouxas e
comida.
PILOTO
(aos passageiros à margem
do rio)
Podem chegar. É ali na proa.
ANTÔNIO, 18 anos, embarca. JOSEFA MARIA, 23 anos, lava as
mãos na água do rio e sobe na barca. BENEDITO dá a mão a
SEBASTIANA e embarcam juntos. BENEDITA, ROMANA, HERCULANO e
HONÓRIO entram em fila, são a família de Antônio Dó. As
outras pessoas embarcam. Todos se dirigem à proa, onde se
acomodam. Os barqueiros, três de cada lado da barca, desatam
as amarras e começam a empurrá-la com os varejões. A barca
começa a descer o rio, se afastando da cidade.

3 EXT. AÉREA BARCA DESCENDO O RIO - DIA 3


Imagens aéreas da barca descendo o São Francisco, onde está a
família Antunes França, mesclam-se às imagens submersas do
rio. Sobre essa imagem aparece o título do filme: ANTÔNIO DÓ.
CORTA PARA:

4 EXT. TRAVELING VEGETAÇÃO/ MARGEM DO RIO SÃO FRANCISCO - DIA 4


A vegetação vai se transformando da caatinga para o cerrado
e, ao se aproximar do rio, para a mata vazante.

5 5 A 6 PLANOS DOCUMENTAIS - COMUNIDADES RIBEIRINHAS 5


2.

6 EXT. PORTO DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO - DIA 6


Antônio e sua família, com as roupas amarrotadas, aparentam
cansados, pegam suas coisas, algumas poucas trouxas de roupa
e comida, e desembarcam. Olham em volta: cerca de 3 barcas,
cada uma com UM BARQUEIRO por perto, ao todo TRÊS BARQUEIROS.
Cerca de 5 PESSOAS esperam ao lado dos barcos. Benedito e
Antônio saem do porto, onde ainda está a família. Carregam
alguns poucos tecidos. Sobem o barranco íngreme do porto em
direção à cidade.

7 EXT. PORTA DA IGREJA/LARGO EM FRENTE À IGREJA - DIA 7


Benedito e Antônio chegam à porta da igreja, onde param por
um instante e observam o crucifixo de madeira. Benedito e
Antônio se entreolham e vão em direção ao fundo da igreja,
onde há um largo pouco movimentado, cerca de TRÊS TRASEUNTES.
À porta de uma casa, dois homens jogam gamão. Atravessa o
largo, a cavalo, PEDRO CARRILHO, cerca de 30 anos, vestes
modestas e chapéu na cabeça, passa próximo a Benedito e
Antônio.
BENEDITO
(a Pedro Carrilho)
Ô, fulano! Faz favô.
PEDRO CARRILHO
Pois sim! O que deseja?
BENEDITO
É que eu sou chegante aqui nas
Pedra, tô aqui com a família. A
gente veio da Bahia, sabe. De Pilão
Arcado. Cê conhece o coronel
Brasileiro?
PEDRO CARRILHO
Compadre Nunes Brasileiro? Conheço
sim.
BENEDITO
Onde é que eu posso avistá ele?
PEDRO CARRILHO
Ele deve de tá em casa. Eu levo ocê
lá. Qual a graça do sinhô?
BENEDITO
(movimentando a cabeça em
gesto de reverência)
Benedito Antunes de França, seu
criado.
3.

PEDRO CARRILHO
(tirando o chapéu, em
gesto de reverência)
Pedro Carrilho. Por mal pergunto, o
que é que ocê quer com o compadre
Nunes Brasileiro?
BENEDITO
É que a gente vei pra ficá. A gente
tá querendo tomar tenença com o
coronel, sabe. Tô imaginando comprá
um pedacim de chão pra assentá a
obrigação.
(apresentando-lhe Antônio,
que está ao seu lado)
Esse aqui é o Tonho, meu filho. Ele
é o mais novo dos homens.
Antônio movimenta a cabeça em gesto de reverência. Pedro
Carrilho retribui o gesto, tirando o chapéu.
PEDRO CARRILHO
Onde é que o sinhô tá arranchado?
BENEDITO
A gente acabou de chegá. As coisa
ainda tá na beirada do rio.
PEDRO CARRILHO
O sinhô, a gente logo vê. É homi de
bem. Só veio ocê e o moço aí?
BENEDITO
N’nhor, não. Veio a família toda. A
obrigação e mais dois filho homem e
mais três filha mulher.
PEDRO CARRILHO
O sinhô pode arranchá na minha casa
por uns dia. Logo vai achá terra
boa pra comprá. Depois a gente fala
com o coronel. Se avexe não.
BENEDITO
Quem tem pressa pisa devagar, o
sinhô sabe. Não sei se devo aceitá
o oferecimento, não. A gente nem
conhece um ao outro.
PEDRO CARRILHO
(com segurança)
Preocupe não, pode me acompanhá.
4.

BENEDITO
(sorrindo agradecido)
Vou aceitá o oferecimento. O sinhô
vai tê sua recompensa. A gente é de
bem. Viemo pro mode de a seca, que
tá brava na Bahia.
PEDRO CARRILHO
É, foi sempre assim. A seca é uma
desgraça. A gente aqui também sofre
com ela, mas não como por lá, bem
sei.
BENEDITO
No Salitre, donde a gente veio,
falt’água inté pros filho de deus.
Pras criação, nem se fala. A chuva
não choveu nada esse ano.

8 EXT./INT. FAZENDA BOA VISTA - DIA 8


Imagens aéreas de uma fazenda à margem do rio São Francisco,
um latifúndio imenso e indiviso. O plano se fecha: há um
rancho de pau a pique coberto de sapé, um curral de madeira
branca, um olho d’água e plantações de milho e algodão.
No pasto, Benedito, Antônio, Herculano e Honório tocam o
gado.
Sebastiana, Josefa Maria, Benedita e Romana estão na cozinha
da casa. O fogão à lenha está aceso. Sebastiana cozinha.
Josefa Maria está alimentando a chama da lenha do fogão.
Benedita e Sebastiana estão fiando.

9 EXT. FAZENDA BOA VISTA - ENTARDECER 9


Benedito está parado na soleira da porta da casa, uma casa de
tamanho regular, de paredes de adobe e coberta de telhas de
barro cozido. O sol está nascendo. Está ventando e ele
observa o balanço das folhas das árvores.
BENEDITO
(em tom de quem pensa em
voz alta, fala baixo,
para si mesmo)
A gente tem sempre que construir a
casa com a frente para o nascente.
5.

10 EXT. RUAS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO - DIA 10


As casas, o chão das ruas e os muros são incididos pela luz
do sol, que está forte. A luz é amarela e seca. As ruas estão
vazias.

11 INT./EXT. FAZENDA BOA VISTA - DIA 11


ARCÂNGELA, mulher de meia-idade, sopra o fogo para acender o
fogão. Ouve-se o som da chuva sobre o telhado. Ouve-se uma
rede que balança rangendo nos armadores.
Múltiplos cortes mostram o exterior da casa, a chuva está
forte, o curral está enlameado. Chove sobre as plantações de
milho e algodão, sobre as águas do rio São Francisco e no
olho d’água.
ANTÔNIO (V.O.)
O feijão das água esse ano vai melá
todo. Minha valença foi ter
plantado um lote de fava junto do
milho. Esse alarme de chuva já tá
dano prejuízo, e num tá fazeno
jeito de abrí uma arage, não. Mode
coisa que São Pedro esqueceu de
tapá a bica do céu. O ano tem dois
tempo. O tempo do verde e o tempo
da seca. No verde a gente vive
gazeano, sem muita labuta pra fazê.
No tempo da seca a briquita é
brava. Nas primeiras água, a gente
planta as roça. Quase não tem
militação. Eita pau! Mode coisa que
esse ano, com tanta chuva, vai ter
retirada. Como será que o rio tá?
Será que já tá sangrando fora do
caixão? Essa chuva já tá dano
irritação. Tá deixando a gente
bragueado. A gente fica em casa que
preá nas toca. O tempo da seca dá
bambeza, não. A gente tem que ficá
açodado. No começo a gente roça a
roça nova. O bom da seca é a pesca
nas lagoa. E água! Na seca inté
água falta ou fica longe, só no rio
ou nos dois olho d’água. Não tem
pasto, o pasto fica seco. Mal acaba
a moagem tem o milho pra quebrá, a
fava pra puxá, a seca da roça nova
pra fazê, o aceiro das outra cerca,
a queima da roça. Não mal a gente
termina as briquita da cerca o céu
escurece e a chuva cai.
(MORE)
6.

ANTÔNIO (V.O.) (CONT'D)


Inté que é bonito. A terra se enche
toda de cebolinha branca e cor de
rosa. As tanajura e as mariposa
voa. Bonito mesmo. Fica pareceno um
jardim. Aí vem o broto, o pasto
novo, e tudo fica verde que nem
antes. Terra boa essa.
CORTA PARA:

12 EXT. PORTÃO FAZENDA BOA VISTA - DIA 12


Antônio, cerca de 40 anos, está deitado na rede armada no
pórtico de sua casa. Ele observa a chuva enquanto balança na
rede, que range nos armadores. Ouve-se o som da chuva sobre o
telhado. Arcângela vem da cozinha, se aproxima de Antônio
sorrindo, com uma xícara de café na mão e lhe entrega.
Antônio sorri de volta, pega a xícara e toma o café.

13 INT. QUARTO FAZENDA BOA VISTA - NOITE 13


Antônio e Arcângela deitam-se na cama. O quarto está escuro,
há apenas a luz de um bibiano aceso ao lado da cama.
Arcângela fecha os olhos, enquanto Antônio, em silêncio, olha
o teto.
Antônio se senta na cama e dá um suspiro.
ANTÔNIO
(preocupado)
Maurício tá quereno suas terra.
Arcângela abre os olhos.
ARCÂNGELA
Eu tô sabeno.
ANTÔNIO
Malquerença. Tá certo isso, não.
ARCÂNGELA
(dando um suspiro)
Tá não. Mai não tô quereno
confusão.
Silêncio.
ARCÂNGELA (CONT'D)
Todo mundo sabe que tô aqui com cê
faz tempo. As terra ficaram parada.
São minha. Mas não quero briga,
não. Medo dessa gente.
7.

ANTÔNIO
(indignado)
Nois não somo casado no papel, mas
eu que tenho que proteger seus
direito. Maurício vai ficar com
suas terra, não. Num vou dexá.
Arcângela se aproxima de Antônio, o abraça pelas costas,
encosta a cabeça no seu ombro. Antônio toca um de seus braços
e o acaricia.

14 INT. FAZENDA BOA VISTA - MANHÃ 14


Antônio toma café ao pé do fogão de lenha. Está em silêncio,
tem o olhar vago, está absorto pelos pensamentos, parece
preocupado. Tem um cabresto na mão. Deixa a xícara de café e
sai da casa.

15 EXT. PORTA DA CASA DE PEDRO CARRILHO - DIA 15


Pedro Carrilho, cerca de 50 anos, está montado em seu cavalo.
Antônio está em pé, conversando com ele. Sua mula está
amarrada a um poste em frente à casa. CABO PEDRO BRANDÃO,
cerca de 30 anos, com roupa de policial, anda pela rua, vai
em direção a eles e se aproxima. Pedro e Antônio não notam
sua presença. O cabo pigarreia para ser notado. Eles se
voltam para o cabo.
CABO PEDRO BRANDÃO
Seu Antônio Dó, vosmecê deve me
acompanhá. O capitão Américo quer
falá com vosmecê, agora mesmo, na
casa dele.
Antônio franze a testa e olha o cabo com olhar de dúvida.
Passa a mão na testa.
ANTÔNIO
Por causa de quê? Vosmecê sabe?
CABO PEDRO BRANDÃO
Sei, não.
PEDRO CARRILHO
(a Antônio)
É bom ir logo.
Antônio respira fundo.
ANTÔNIO
Ora, pois! Então a gente vai.
8.

CABO PEDRO BRANDÃO


(carrancudo)
Tanto melhor.
Antônio Dó tira a garrucha do coldre e a faca da cintura.
ANTÔNIO
(entregando as armas a
Pedro)
Guarda pra mim. Eu pego na hora
qu’eu voltá.
CORTA PARA:

16 EXT./INT. RUA/SALA DA CASA DO CAPITÃO - DIA 16


Antônio e o cabo chegam caminhando à porta da casa do
capitão. O cabo bate à porta, uma das empregadas abre. Entram
na casa o cabo e Antônio.
Na sala, com uma mesa de centro e quatro poltronas em volta,
estão sentados o CAPITÃO e UM HOMEM com vestes de vaqueiro,
cerca de 40 anos. DOIS POLICIAIS estão em pé, no canto da
sala.
Em uma das paredes da sala, há uma gaiola pendurada com um
canário.
CAPITÃO
(apontando uma das
poltronas, num gesto
rígido e seco)
Sente-se ali.
Antônio, em silêncio, percorre com os olhos o interior da
sala e se senta à poltrona apontada pelo capitão. O cabo
permanece em pé, em postura ereta, com as mãos para trás, ao
lado da poltrona do capitão.
CAPITÃO (CONT'D)
O senhor está me causando
problemas. Há coisa de uma semana,
atendendo a uma queixa do senhor
Maurício, aqui presente, mandei
dois praças na Boa Vista para
evitar uma agressão de vosmecê ao
senhor Maurício. O senhor não sendo
casado e não tendo procuração, não
pode defender os direitos da mulher
com quem apenas convive, já que é
amancebado.

Antônio encara o capitão com raiva.


9.

ANTÔNIO
Eu nunca pensei agredi seu
Maurício.
CAPITÃO
(gritando, com o dedo em
riste)
Cala a boca. O senhor só fala
quando for autorizado.
Ouve-se o canário trinando alto. Antônio franze a testa,
abaixa a cabeça, esfrega as mãos, uma de encontro a outra, e
agita os pés impacientemente. Maurício cofia o bigode e sorri
com desprezo e satisfação.
CAPITÃO (CONT'D)
O senhor não tem direito de agir
como tem procedido com o senhor
Maurício. O senhor não é dono das
terras e não tem procuração da
mulher com quem vive amancebado, de
maneira desvergonhada, de público
conhecimento. Senhor Maurício está
agindo acordadamente e a dita
mulher nunca veio aqui para dar
queixa.

Antônio ergue a cabeça, espiga o corpo e o busto. Abre a


boca, como se fosse dizer algo.

CAPITÃO (CONT'D)
O senhor não tem terras no lugar da
questão.

Antônio lança um olhar a Maurício, mete a mão no bolso e


retira um documento.

CAPITÃO (CONT'D)
Que papel é esse?

ANTÔNIO
Pos...so falá?

CAPITÃO
(irritado)
Estou perguntando ao senhor. Por
acaso é surdo?

Antônio franze a testa e endireita o corpo, ergue a cabeça e


olha dentro dos olhos do coronel. Passa a mão na testa.

ANTÔNIO
É o formal das terra, em nome de
Arcanja.
10.

O capitão ergue os braços demonstrando indiferença.


CAPITÃO
(sorrindo sarcasticamente)
E daí? O que é que o senhor tem com
isso? A questão é entre ela e o
senhor Maurício. Não cabe o senhor
no meio, já que é apenas um bandido
amancebado.
Antônio cerra os pulsos, contrai os lábios.
ANTÔNIO
(levanta o braço direito,
com o dedo indicador em
riste)
Não seja tolo!
CAPITÃO
(com expressão severa,
quase gritando)
Sou uma autoridade e o senhor
precisa me respeitar.
Antônio Dó se levanta abruptamente. Seu rosto está vermelho
de raiva, a respiração ofegante. Antônio contrai os punhos e
salta sobre o capitão, atinge com um soco a orelha esquerda
do capitão. O capitão fica tonto e ampara-se na mesa.
Maurício tem cara de espanto e está imóvel na cadeira vendo a
agressão de Antônio ao capitão. O cabo e os soldados
permanecem imóveis.
O capitão agarra o pescoço de Antônio forçando os dedos em
sua garganta. Antônio revida com uma joelhada na virilha do
capitão. O capitão se contorce de dor. Antônio salta sobre o
capitão, derrubando-o no chão. Os dois estão no chão, em uma
luta corporal. Antônio está em cima do capitão e segura com
firmeza os seus braços, contendo-o.
CAPITÃO (CONT'D)
(grita para os soldados)
Acudam-me, aqui. Acudam-me, seus
palermas.

Os soldados tentam apartar a briga. Antônio agride os


soldados, se desvencilha da briga, corre em direção à porta e
sai da casa.

17 EXT. RUAS DE SÃO FRANCISCO/LARGO DA IGREJA - DIA 17

Antônio corre pelas ruas de São Francisco. Está suando, sua


respiração está ofegante. Os dois policiais e o cabo Pedro
Brandão estão correndo atrás de Antônio.
11.

Antônio vira-se enquanto corre e vê que está sendo


perseguido. Chega ao largo da Matriz, passa por um
TRANSEUNTE.
TRANSEUNTE
Perdeu o cavalo, sô Antônio?
Os policiais e o cabo alcançam Antônio, o agarram pelo braço.
CABO PEDRO BRANDÃO
(ofegante)
Lugar de valentão é na cadeia.
Vosmecê vai aprender a respeitá uma
autoridade.
POLICIAL
Tem cada paisano burro. Vê só! Batê
numa autoridade. Vosmecê não sabe o
que tá lhe esperando.
CORTA PARA:

18 EXT. PORTA DA CADEIA - DIA 18


Os dois policiais estão segurando Antônio. O cabo está ao
lado deles. Há um umbuzeiro em frente à cadeia.
CABO PEDRO BRANDÃO
(gritando)
Traga um sedenho ou uma corda
qualquer.
UM POLICIAL sai de dentro da cadeia com uma corda e entrega
aos dois policiais que estão contendo Antônio. Antônio é
amarrado abraçado ao umbuzeiro.
Pessoas da cidade se aproximam ao redor do umbuzeiro.
Suas mãos estão amarradas atrás do corpo, seus punhos estão
cerrados. Em plano fechado, vemos o rosto suado de Antônio,
sua testa franzida. Seu olhar é vago. Antônio fecha os olhos.
FLASHBACK

19 INT. TERREIRO DE CANDOMBLÉ 19


Ouve-se som de atabaques. Plano fechado de mãos tocando
atabaques. ATENÇÃO: durante todo o flashback os atabaques não
param de tocar.
Antônio, cerca de 18 anos, e seu pai, Benedito, estão em um
terreiro de candomblé. É uma gira.
12.

Há cerca de DEZ HOMENS, vestindo calças brancas de algodão,


nus da cintura para cima. DOZE MULHERES vestindo saias
rodadas de tecido branco, batas rendadas de cetim branco e
turbantes brancos nas cabeças. Mulheres e homens estão em
roda, dançando. Há um altar, uma mesa coberta com uma toalha
branca. Em cima da mesa há um cálice de madeira rústica
pintado de vermelho e uma estatueta de Iemanjá. Ouve-se:
“Omolu é o orixá de pai Firmino”.
FLASHBACK

20 INT. TERREIRO DE CANDOMBLÉ 20

PAI FIRMINO, homem de idade avançada, negro, de estatura


mediana, ombros largos, com camisa e calça brancas e uma
faixa azul por cima do ombro esquerdo e por baixo do braço
direito, conversa com Benedito. Benedito fala, enquanto Pai
Firmino escuta em silêncio, apenas indica, com gestos da
cabeça e da mão direita, que está ouvindo. ATENÇÃO: não se
ouve o diálogo.
FLASHBACK

21 INT. TERREIRO DE CANDOMBLÉ 21


Uma EBÔMIN, incorporada, filha de santo, negra, saia e blusa
brancas, porta uma faixa vermelha, para bruscamente de dançar
e cai ao solo. Levanta-se vagarosamente, com espasmos
intercalados. Se aproxima de Antônio, toma suas duas mãos. As
mãos da ebômin tremem. Ouve-se o som de um trovão.
EBÔMIN
(em voz alta, para pai
Firmino)
Ageum, ageum, ageum!
UM HOMEM negro, cabelos brancos, entrega a Ebômin uma galinha
preta. Ela solta a mão de Antônio. Seus olhos se iluminam.
Ela arranca a cabeça da ave. A galinha vascoleja. A Ebômin
bebe seu sangue. O sangue tinge de vermelho a sua bata branca
e escorre pela saia. Antônio está boquiaberto, atormentado e
imóvel. A Ebômin lança a galinha no meio do terreiro.
DETALHES. MÃOS DE ANTÔNIO E EBÔMIN.
A Ebômin, com as mãos cobertas de sangue, alisa suavemente as
mãos de Antônio e seu rosto.
Os tambores param. A dança para.
13.

EBÔMIN (CONT'D)
(em voz alta)
Exu toma seu afilhado em proteção e
ele vai seguí os caminho de Xangô.
O raio de Xangô que é mais forte
que as arma dos home é cativo do
afilhado de Exu. Xangô, pelos oio
de Exu, vê uma encruzilhada. O
afilhado de Exu vai seguí o caminho
da esquerda, o caminho do fogo,
porque ele é guerreiro de Zumbi,
protegido de Yansã. Exu protege seu
afilhado nas encruzilhada. Ele bebe
omin e vai ter boa viagem nas águas
de Janaína.
FLASHBACK

22 INT. TERREIRO DE CANDOMBLÉ 22

A Ebômin puxa de dentro da saia um kelé.

DETALHES. MÃOS. KELÉ.

O kelé está manchado pelo sangue da mão da Ebômin. Ebômin


entrega o kelé a Antônio com a mão fechada contra a sua, de
modo que as pessoas ao redor não veem o que está sendo
entregue a Antônio.

EBÔMIN
(ordena a Antônio)
Fecha a mão e olha, não. Guarda na
algibeira, bem guardado. Amanhã,
antes do rompê do dia, quando o
galo cantá a terceira vez, vancê
tira da algibeira e, sem olhar,
pendura no pescoço. Não se afaste
dele nunca mais. O corpo do
afilhado de Exu fica fechado e
guardado para todos os inimigo
encarnado e desencarnado.

FIM DO FLASHBACK

23 EXT. PORTA DA CADEIA - DIA 23

DETALHE. ROSTO DE ANTÔNIO.

Antônio abre os olhos. Seu rosto está coberto de suor. Uma


pequena multidão se aproxima, observam a cena ao redor do
umbuzeiro. Elas cochicham.
14.

CABO PEDRO BRANDÃO (V.O.)


Dez chibatada, pra começá.
Ouve-se o som das chibatadas. Antônio cerra os dentes, franze
a testa, fecha os olhos. Uma senhora cobre o rosto com as
mãos.
CORTA PARA:

24 EXT. PORTA DA CADEIA - DIA 24


Antônio é arrastado em direção à cadeia, segurado por DOIS
POLICIAIS, um de cada lado.
DETALHE. PÉS.
Os pés de Antônio arrastam no chão.
DETALHES. CABEÇA. ROSTO.
Antônio tem a cabeça tombada para frente do corpo enquanto é
arrastado pelos policiais. Seu rosto está suado, seus olhos
estão fechados.
Os policiais adentram a cadeia arrastando Antônio.

25 INT. QUARTO FAZENDA BOA VISTA/SALA - DIA 25


Arcângela, apreensiva e apressada, suspende o colchão da
cama. Retira um bolo de notas de dinheiro. Se dirige à sala,
onde estão Honório e Herculano em pé, em silêncio, com
olhares baixos e preocupados. Honório tem na mão um sacola.
Arcângela lhe entrega o dinheiro.
HONÓRIO
(contando as notas)
Já deu pra fiança.
Honório guarda o dinheiro na sacola. Arcângela, Honório e
Herculano saem pela porta da casa apressados.

26 INT. QUARTO DE HONÓRIO - AMANHECER 26


Ouve-se o canto de um galo e gorjeios de passarinhos. Honório
está deitado em sua cama. A luz do sol que nasce entra pelas
frestas do telhado do quarto, incide na cama e em Honório.
Ele se levanta, abrindo os braços e bocejando.
15.

27 EXT. PORTA DA CASA DA FAZENDA BOA VISTA - DIA 27


Honório está com vestes de vaqueiro, abre a porta da casa,
sai por ela e a fecha.

28 EXT. FAZENDA BOA VISTA/ORLA DE UMA VÁRZEA - DIA 28


Honório cavalga pela orla de uma várzea. Ele começa a
observar os detalhes da paisagem.
PONTO DE VISTA DE HONÓRIO. O gado pasta livremente, um gavião
voa em círculos, a vegetação nas terras da vazante. A luz do
dia que acabou de nascer. A cerca de duzentos metros, passam
quatro reses e MARCELINO, montado em um cavalo.
Honório estanca sua montaria no meio da várzea. Honório
observa as reses e Marcelino e se aproxima. Marcelino nota
sua presença e olha para Honório com os olhos arregalados.
HONÓRIO
Marcelino, pra donde é que vancê tá
levano esse gado?
Marcelino fica pálido e engole seco.
MARCELINO
(voz trêmula)
Pra lugá nenhum. Tava só olhando
pra ver se tinha alguma bicheira.
HONÓRIO
Mas isso não é seu ofício. Vancê
não é vaqueiro. Quem olha o gado da
Dinha sou eu. Não é preciso tocá
pra lugá nenhum pra vancê sabê se
um gado tem bicheira, ou não tem.
Honório espora sua montaria fazendo-a andar em volta das
reses.
HONÓRIO (CONT'D)
(inquieto e aborrecido)
S’essas vaca não têm bicheira e nem
tá amojada, carecia de vancê tocá
elas, não. Pra donde era que vancê
tava levano elas?
(olhando e apontando para
as vacas no meio da
estrada)
Essas vaca de seu Chico Peba é
deste pasto, não. Nunca tinha visto
elas por essas banda.
(MORE)
16.

HONÓRIO (CONT'D)
O gado de seu Chico Peba bate lá
mais pra riba, bate por aqui, não.
Marcelino olha para as reses.
HONÓRIO (CONT'D)
Vancê tava levano elas pras Pedra?

MARCELINO
É! Eu comprei essas duas vaca de sô
Chico Peba e tava levano as outra
de madrinha. Pode procurá pr’ele,
qu’ele fala com vosmecê o qu’eu tou
falano.

HONÓRIO
Pode inté sê, mas vancê não falou
com ninguém que ia levá as vaca da
Dinha e da Arcanja.

MARCELINO
(aturdido)
É. Falei, não.

HONÓRIO
Essa lenga-lenga tá certa, não. Tou
achano que é vancê quem tá furtano
o gado da Arcanja e da Dinha. Inté
gado meu já sumiu, sem deixá
carniça.

Marcelino está imóvel sobre a sela. Olha Honório nos olhos.


Honório se aproxima de Marcelino retribuindo o olhar firme.
Marcelino tira uma faca da cintura e, em gesto rápido, crava
a faca no peito de Honório.

29 INT. COZINHA/SALA FAZENDA BOA VISTA - DIA 29

Antônio toma café ao lado do fogão de lenha, Arcângela está


ao seu lado. Ambos estão em pé. Um HOMEM adentra a casa,
olhando ao redor, buscando Antônio e vai até a cozinha.

HOMEM
Sô Honório tá morto. Foi
assassinado na beira do rio.

ARCÂNGELA
(assustada, levando as
mãos aos seios)
Valha-me Deus! Que desgraça!

Antônio se assusta e se senta.


17.

ANTÔNIO
(assustado)
Morto!? Como? Onde foi isso?
HOMEM
Foi assassinado na beirada do rio,
aqui na Boa Vista. Marcelino levou
o corpo pras Pedra, de canoa.
ANTÔNIO
Que diabo! Tudo parece que tá
contra mim. Compadre Pedro já tá
sabeno quem foi o desgraçado?
Marcelino disse alguma coisa?
HOMEM
Sabe, não. Ninguém tá sabeno.
ANTÔNIO
Pode vancê ficá certo qu’eu vou
descobrí quem foi o miserave. Não
sei quem pode sê, mas vou
descobrir.
Silêncio.
ANTÔNIO (CONT'D)
(a Arcângela)
Arruma as coisa. A gente vai tudo
pras Pedra, pra sentinela. Lá a
gente fica sabeno o que sucedeu.

30 EXT./INT. FAZENDA BOA VISTA - DIA 30

MIGUEL chega à porteira do curral montado em seu cavalo,


desmonta apressado do animal e o estaca na porteira. Salta da
montaria e corre para o interior da casa. Entra na casa sem
pedir licença. Estão na sala Antônio e Arcângela.

MIGUEL
(ofegante)
Ele botou abaixo a cerca do olho
d’água. Tinha pra mais de dez
soldados lá. Desmanchou tudo.

ARCÂNGELA
(assustada)
Ele quem?

MIGUEL
Sô Chico Peba. Quem haveria de ser?
(a Antônio)
(MORE)
18.

MIGUEL (CONT'D)
Tô a mercê de vosmecê pra tudo que
vier.
Antônio, com a testa franzida e os punhos cerrados, caminha
de um lado para o outro na sala. Balbucia palavras
ininteligíveis. Arcângela suspira de leve.
Silêncio.
ANTÔNIO
Tá tarde. Amanhã a gente resolve o
que fazê.
(a Miguel, olhando nos
olhos)
Amanhã é domingo, mas Deus vai
castigá a gente, não. Ele descansou
domingo pra mode que tinha acabado
de fazê tudo no sábado. Logo cedo,
na amanhecida do dia, a gente vai
refazê a cerca outra vez.
Aquel’água é minha. O Peba tá
enganado. Ele desmancha hoje, eu
alevanto a cerca no outro dia. Pode
assentá o qu’eu tô falando. S’ele
desmanchá minha cerca outra vez eu
vou derrubá a cerca do olho d’água
qu’ele cercou.
Miguel sacode a cabeça afirmativamente. Arcângela tosse e
ergue os olhos cheios de lágrimas para o alto, fazendo o
sinal da cruz.

31 INT. QUARTO/VARANDA FAZENDA BOA VISTA - AMANHECER 31


Ouve-se o galo cantando. Antônio dá um salto da cama e se
levanta. Está nu da cintura para cima. Arcângela está
deitada, dormindo. Antônio veste uma camisa e vai até a
cozinha, pega uma candeia e se dirige à porta da casa. Abre a
porta. Na varanda da casa, assentados, estão Miguel e TRÊS
HOMENS.
ANTÔNIO
Cadê o Miguel?
MIGUEL
(levantando-se)
Tou aqui, patrão.
ANTÔNIO
Vancês pode entrá.
(a Miguel)
Vancê prendeu os boi de carro?
19.

MIGUEL
Eles durmiu preso.
ANTÔNIO
Vancê faz o que for preciso.
Eles entram na sala da casa, onde pegam machados, foices,
facões, garruchas e espingardas.

32 EXT. OLHO D’ÁGUA - DIA 32


Antônio, Miguel e TRÊS HOMENS estão à margem do olho d´água,
cada um deles com uma ferramenta. Trabalham concentrados e em
silêncio, cada um em uma parte da cerca em volta do olho
d’água.
Arcângela e Josefa Maria chegam ao olho d’água carregando
duas gamelas de comida. Elas posicionam as gamelas no chão.
Antônio, Miguel e os três homens fazem uma roda em volta das
gamelas. Arcângela e Josefa Maria servem cada um deles e eles
almoçam acocorados no chão.

33 INT. COZINHA FAZENDA BOA VISTA - DIA 33


Antônio anda de uma lado para o outro, está apreensivo.
Miguel entra na cozinha.
MIGUEL
Os homem voltou procurano por
vosmecê. Eles deixou um recado
dizeno que é pra vosmecê se
apresentá lá nas Pedra, ainda hoje.
ANTÔNIO
Vou não. Vancê volta e fala com
Arcanja e Benedita pr’elas arrumá
as trouxa, que a gente vai
atravessá o rio, ainda hoje, sem
delonga. Esses cachorro do governo
bota a mão nesse seu amigo, não. A
Dinha se quisé ficá, vai ficá por
conta dela. S’ela quisé, pode vir
também. Vancê e compadre Pedro
Carrilho fica tomano conta do que é
meu. Eita pau! Por verdade de Deus,
esse mundão é um mundo cão.

34 EXT. FAZENDA BOA VISTA - TARDE 34


Antônio está sentado em um toco de madeira com um cigarro de
palha apagado entre os lábios.
20.

Está impaciente, com as pernas inquietas, olhando de um lado


para o outro. Chega Miguel e se aproxima dele.
ANTÔNIO
Cadê elas?
MIGUEL
(melancólico)
Elas vêm, não. Vosmecê deve de ir e
mandá buscá elas depois.
Breve silêncio. Antônio morde os lábios, está indignado.
ANTÔNIO
Busco, não. Vancê manda elas pras
Pedra. Quero elas nas minha terra,
não. O compadre Pedro Carrilho pode
desocupá uma de minhas casa lá no
comércio pr’elas morá. Essa casa eu
vou vendê, não.
Breve silêncio. Antônio se levanta lentamente.
ANTÔNIO (CONT'D)
Vancê cuida das coisa. Tou indo.

DETALHE. ROSTO DE MIGUEL.

Miguel tem os olhos cheios de lágrimas.

35 EXT. BEIRA DO RIO SÃO FRANCISCO - TARDE 35

Miguel apanha o remo e os arreios da mula e desce o barranco


do rio, entrega as coisas a Antônio, que as coloca na canoa.
Antônio coloca uma trouxa dentro da canoa, pega a mulata pelo
cabresto. Entra na canoa de cabeça baixa. Solta a corda que
amarrava a canoa à margem e com o remo impulsiona a canoa
pelo rio.

ANTÔNIO
(a Miguel)
Adeus, compadre.

MIGUEL
Adeus, vosmecê se cuide.

36 EXT. FAZENDA DE HERCULANO VARGEM BONITA/CAMPO DE ARROZ - DIA


36

Antônio e Herculano estão trabalhando no cultivo na arroz.


Aram a terra com enxadas.
21.

37 EXT. PORTA DA CASA DE HERCULANO - DIA 37


Antônio e Herculano estão conversando assentados em
tamboretes. Antônio está fumando, observando o entorno.
ANTÔNIO
(soltando a fumaça do
cigarro, olhando vago)
Quase um ano já, irmão.
(dá mais um trago, solta a
fumaça calmamente)
Tá certo isso, não, sabe. Deixei
minhas terra tudo lá. O gado, as
plantação, a casa. Muito trabalho.
Tudo longe. Quero recuperar meus
prejuízo. Mataro Honório. Esse povo
todo me paga. E esses home me
talharo as costa.
Herculano escuta Antônio, olhando fixamente para frente com
olhar vago, tira um cigarro detrás da orelha, o acende e dá
um trago.
ANTÔNIO (CONT'D)
(apontando)
Quem é aquela mocinha que vai
passano ali na frente da igreja?

Em segundo plano passa caminhando em frente à igreja, do


outro lado da rua, JOSEFINA, jovem esbelta, de cabelos
compridos e vestido branco, aproximadamente 16 anos.

Herculano reflete um instante.

HERCULANO
Tá dano as parença de sê a
Josefina, filha de seu João
Francisco.

ANTÔNIO
Menina bonita.
HERCULANO
Se for Josefina, tá fazeno jeito de
ser ela mesma, é solteira e, pelo
qu’eu sei, tá comprometida, não.

ANTÔNIO
Onde mora esse tal de João
Francisco?

HERCULANO
Ele mora ali mesmo, atrás da
igreja.
22.

Ponto de vista de Antônio. Olha mais fixamente a garota, que


dobra o canto da capela e desaparece.

38 EXT. PORTA DA CASA DE HERCULANO/RUA VARGEM BONITA/PORTA DA 38


CASA DE JOÃO FRANCISCO - ENTARDECER
Antônio sai de casa e anda vagarosamente pela rua,
assoviando. Contorna a igreja. Cruza com uma SENHORA na rua
atrás da igreja.
ANTÔNIO
(à senhora)
Vancê sabe adonde é que seu João
Francisco mora?
SENHORA
(apontando em direção à
casa)
É ali mesmo, naquela casa.
Antônio anda em direção à casa, para em frente ela e bate à
porta. UM SENHOR abre a porta, Antônio o cumprimenta
abaixando a cabeça. O senhor faz com a mão o gesto para que
ele entre. A porta é fechada.
CORTA PARA:

39 EXT. PORTA DA CASA DE JOÃO FRANCISCO - NOITE 39


A porta da casa de João Francisco se abre pelo lado de
dentro. Saem pela porta Antônio e Josefina. Josefina está
carregando algumas trouxas de roupa. Eles caminham pela rua,
lado a lado.

40 EXT. CIDADE DE SÃO FRANCISCO/MARGEM DO RIO - TARDE 40


Planos estáticos mostram fachadas de casas em São Francisco e
as ruas vazias. Ouve-se o som de grilos e cigarras.
Na margem do rio, DOIS HOMENS conversam.
HOMEM I
Sô Antônio Dó tá acampado no rio
Pardo e vai entrar na cidade com
mais de cem jagunço.
OUTRO HOMEM está caminhando, passa perto dos dois homens que
conversam e escuta a conversa.
23.

OUTRO HOMEM
(interrompendo a conversa)
Quem foi que inventou essa
história?
HOMEM I
Eu ouvi dizê lá na beirada do rio.
Foi um barqueiro que chegou de
Januária.
OUTRO HOMEM
Pode vancê tá certo que é verdade,
não. Não passa de lorota dessa
gente. Vancê não conversa mais
nisso por aí, não. É bom vancê ficá
de boca fechada, senão vai sê um
esparrame danado. Não vai ficá
vivalma no comércio. A cidade já tá
esvaziano. O povo não vai corrê com
medo de Antônio Dó, não. O povo vai
corrê com medo de confronto armado
com a polícia e com os jagunço dos
coronéis.

41 EXT. QUINTAL CASA VARGEM BONITA - DIA 41


Antônio cochila em uma rede armada sob a sombra de uma
árvore. Josefina se aproxima, carrega uma cesta com laranjas
e mangabas. Veste uma saia rodada e branca de algodão e uma
blusa branca. Tem uma flor silvestre presa nos cabelos. Ela
bate suavemente com a mão no punho da rede. Ele se assusta e
abre os olhos.
JOSEFINA
(sorrindo, mostrando a
cesta de frutas)
Trouxe umas laranja pra vosmecê. Eu
vi vosmecê tirano uma madorna aqui
na rede e pensei que vosmecê podia
querê chupá umas laranja.
(olha pra baixo, em tom de
vergonha, e sorri)
Eu busquei na casa do seu Galdino.
Se vosmecê quisé, eu posso descascá
umas. Trouxe uma faca. Trouxe
também umas mangaba.
ANTÔNIO
(sorrindo, com ternura)
Quero, sim. Precisa descascá, não.
Pode deixá qu’eu descasco. Laranja
a gente descasca é com a unha.
24.

Josefina sorri, pega uma laranja na cesta e lhe entrega.


Antônio senta na rede. Josefina se senta ao seu lado. Breve
silêncio enquanto Antônio descasca a laranja com a unha.
ANTÔNIO (CONT'D)
Tava aqui matutano antes de vancê
chegá. Em vez d’eu ir direto pras
Pedra pra cobrá meus prejuízo, vou
tomar assunto com o delegado em
Januária. Pode sê mais melhor. Os
homem qu’eu ajustei já tá ficano
cansado de esperá.

JOSEFINA
Vosmecê é quem sabe.
ANTÔNIO
Vou lá nas Pedra e volto pra gente
vivê em paz. Vou comprá uma
glebinha de terra aqui por perto.
Vou fazer fazenda, não. Dá tempo
mais, não. A vida é curta.

Josefina passa carinhosamente o braço pela cintura de


Antônio, apertando-o contra seu corpo.

42 EXT. MARGEM DO RIO SÃO FRANCISCO/ACAMPAMENTO IMPROVISADO - 42


DIA

Antônio Dó e DEZOITO JAGUNÇOS estão na margem do rio, perto


da fazenda Boa Vista, em seu acampamento. Alguns fumam,
outros estão deitados em redes armadas sob árvores, outros
estão acocorados no chão, comendo rapadura.

TRÊS HOMENS seguem a pé margeando o barranco do rio, na mesma


margem em que estão Antônio e os jagunços. Afastam com as
mãos os ramos dos arbustos que quase fecham a passagem
enquanto se aproximam. Um dos jagunços vê os homens se
aproximando.
JAGUNÇO
Sô Antônio, vem chegano três cabra
pelo carreiro da beirada do rio.

ANTÔNIO
Vancê fica na espera pra vê qu’eles
tá quereno.
(pausa)
Deix’eles passá.

Um dos homens acena com a mão para um dos jagunços, já bem


perto ao acampamento.
25.

HOMEM I
É de paz, amigo. A gente tá quereno
avistá com seu Antônio Dó. A gente
tá vino de parte do coronel Sancho
Ribas.
JAGUNÇO II
Vancês pode ir passano. Sô Antônio
Dó tá ali debaixo daquele juazeiro.
(PONTO DE VISTA DO
JAGUNÇO, apontando o
juazeiro e Antônio)
Mas vancês deixa as arma aqui.
Antônio se aproxima dos três homens.
ANTÔNIO
Deix’eles passá. Carece desarmá
eles, não. Eles tá vino em figura
de paz.
(aos três homens)
O que vancês deseja?
HOMEM I
A gente tá vino da parte do coronel
Sancho Ribas, pra sabê o que
vosmecê deseja.
ANTÔNIO
Vou esperá a chegada do Delegado,
que tá vino de Januária. Ele vai
conversá pra acertá meus prejuízo.
HOMEM I
Então vosmecê vai entrá na cidade,
não.
ANTÔNIO
Só se for preciso. Vou esperá pelo
Delegado.
HOMEM I
Nesse caso a gente tá ino pra
informá pro Coronel, que vosmecê
vai esperá pelo Delegado.
ANTÔNIO
É o qu’eu disse.
Os três homens se despedem e saem pela margem do rio, por
onde chegaram.
26.

43 EXT. MARGEM DO RIO SÃO FRANCISCO - DIA 43


Os três homens chegam à canoa e a desamarram. Sobem na canoa
e começam a remar em direção à outra margem do rio. Um dos
homens retira a garrucha do coldre e dá três tiros para cima.
CORTA PARA:

44 EXT. MARGEM DO RIO SÃO FRANCISCO/ACAMPAMENTO ANTÔNIO - DIA 44


Antônio está acocorado no chão, escuta o som dos disparos e
se levanta em um sobressalto.
ANTÔNIO
(gritando aos jagunços)
É uma cilada. Deita todo mundo no
chão.
Antônio se abaixa e os jagunços se deitam no chão. Antônio
pega sua carabina e anda até o alto do barranco do rio. Em
segundo plano está a canoa com os três homens. Ele observa a
canoa.
ANTÔNIO (CONT'D)
Não tou gostando disso, nem um
pouco. Tá abismoso pra meu gosto.
Essa conversa desse povo tá me
pareceno um abraço de tamanduá.

JAGUNÇO
É! Tá dando as feição de sê.

ANTÔNIO
A gente vai brigá por nenhuma
tutameia, não. Mas a gente vai
atravessá o rio e esperá o Delegado
da banda de lá, é mais seguro.

45 EXT. RIO SÃO FRANCISCO - AMANHECER 45


Antônio e os dezoito jagunços atravessam em canoas para a
outra margem do rio. Os cavalos nadam ao lado das canoas.

46 EXT. RUAS DE SÃO FRANCISCO/MERCADO - DIA 46

Antônio e os jagunços cavalgam pelas ruas da cidade de São


Francisco. Antônio está na frente, conduzindo seu bando.
Chegam ao mercado central da cidade, onde param. Antônio Dó
olha a cidade do alto da Mulata.
27.

PONTO DE VISTA DE ANTÔNIO. Praça 15 maio, ruas de São


Francisco.
ANTÔNIO
(a um de seus jagunços)
Mande amarrá os animal no fundo do
mercado. Vancê bota um homem em
cada janela.
(em tom de voz baixo,
falando para si mesmo)
Não tou gostano nada disso que tá
aconteceno. Tá tudo muito quieto.
Inté parece que a cidade tá morta.

47 EXT./INT. MERCADO - DIA 47


TARCÍSIO está parado à porta principal do mercado. Observa os
jagunços. Em segundo plano, em frente ao mercado, do lado de
fora, a praça 15 de Novembro. Tarcísio avista Antônio Dó
junto a um dos esteios centrais de aroeira lavrada. Tarcísio
faz a Antônio um sinal de aproximação. Antônio Dó retribui o
gesto, convidando-o a entrar.
Tarcísio caminha até Antônio Dó observando o entorno.
PONTO DE VISTA DE TARCÍSIO. Em um canto, couros, cargas de
rapadura, panelas e potes de barro empilhados.
TARCÍSIO
(com meio sorriso nos
lábios)
Como vai, seu Antônio?
ANTÔNIO
Como Deus é servido. E vosmecê,
doutô Tarcísio?
TARCÍSIO
Vou indo. Tou aqui da parte do
coronel Ferreira Leite, presidente
da Câmara.
ANTÔNIO
(em tom de tranquilidade)
Tou na espera do Delegado de
Januária, que ficou de vim. Ele
deve de tardá, não.
TARCÍSIO
O senhor está esperando o Delegado
para quê?
28.

ANTÔNIO
(cofiando o bigode,
olhando nos olhos de
Tarcísio)
Tou esperano o Delegado pr’ele
cobrá meus prejuízo. Marcelino
roubou meu gado, matou meu irmão,
eles me prendeu. Tou no mundo sem
lugá de chegada. Vosmecê sabe qu’eu
preciso recebê a paga de meus
prejuízo.
TARCÍSIO
Não tiro a razão do Senhor. Mas,
quem é que vai pagar esses
prejuízos?
ANTÔNIO
Quem vai pagá? Sei, não, senhor.
Criei rancor contra todo mundo. Eu
só atravesso o rio pra banda de lá,
quando recebê a paga de meus
prejuízo.
TARCÍSIO
O senhor já fez as contas dos
prejuízos?
ANTÔNIO
Conta eu fiz, não. Vosmecê sabe que
tem muita coisa que não tem preço
pra fazê conta.
(Olha para baixo,
pensativo)
Que preço é qu’eu dou pra vida de
Honório?
(breve silêncio)
Tem preço, não. Eu tou quereno seis
conto de réis. Foi o qu’eu mandei
falá pro Delegado, lá em Januária.
Só assim eu posso recomeçá minha
vida noutras terra. Vou embora e
não volto nunca mais. Minhas terra
ali na Boa Vista pode ficá aí.
Quero elas mais, não.
TARCÍSIO
(rindo)
Acho razoável. A Câmara Municipal
pode pagar essa quantia. O Senhor
está certo.
29.

ANTÔNIO
(em desagrado)
Vosmecê riu de quê?
TARCÍSIO
O senhor me desculpa. É que eu
pensei que o senhor fosse pedir uma
quantia exorbitante.
ANTÔNIO
Como assim?
TARCÍSIO
Uma quantia muito grande.
ANTÔNIO
Vosmecê tá achano pouco?
TARCÍSIO
Não está pouco, nem muito. É como
eu disse, está uma quantia
razoável. É muito justo o seu
pedido.
Antônio ri de si mesmo, balança a cabeça.

48 INT. MERCADO - TARDE 48


Arcângela chega à porta do mercado e procura Antônio com o
olhar. Antônio e Arcângela se veem. Ficam alguns segundos se
olhando de longe. Arcângela anda até Antônio, sentado no
chão, recostado na parede dos fundos do mercado. Ela se senta
ao seu lado.
ARCÂNGELA
A gente num se despediu.
ANTÔNIO
Pois é. Vancê não foi comigo. Foi
certo isso, não.
Silêncio.
ARCÂNGELA
Vancê é home bom. Mas não quero saí
daqui das Pedra, não. Nem ficá ino
e vino.
Silêncio. Antônio olha o chão, de cabeça baixa. Arcângela
olha para Antônio.
ARCÂNGELA (CONT'D)
Eu sô muito grata a vancê.
30.

Antônio levanta a cabeça e olha Arcângela nos olhos.

49 INT. MERCADO - TARDE 49


Os jagunços estão nas janelas, conversando com algumas
pessoas que se aproximam pelo lado de fora do mercado até as
janelas. Antônio está assentado de cócoras, recostado na
parede dos fundos do mercado, limpa as unhas com a faca.
Tarcísio se aproxima. Antônio se levanta para recebê-lo.
TARCÍSIO
Eles decidiram pagar o valor que o
senhor pediu.
ANTÔNIO
(satisfeito)
Vosmecê trouxe o dinheiro?
TARCÍSIO
Trouxe, não. O coronel Ferreira
Leite mandou pedir para o senhor um
prazinho, para levantar o dinheiro.
Breve silêncio. Antônio faz um gesto com a mão, chamando um
dos jagunços, que se aproxima.
ANTÔNIO
(ao jagunço)
Eles tá pedino um prazo.
JAGUNÇO
(a Tarcísio)
Por mal pergunto, por quanto tempo?
TARCÍSIO
Pouco tempo. O coronel Antônio
Maroto mandou pedir para seu
Antônio esperar uns poucos dias lá
na Boa Vista, na fazenda dele.
ANTÔNIO
(franzindo a testa, em
dúvida)
Por que eu tenho que esperá lá na
Boa Vista?
TARCÍSIO
Fica mais cômodo tanto para o
senhor quanto para ele.
ANTÔNIO
Sei, não! Isto tá me cheirando bem,
não.
31.

TARCÍSIO
É muito dinheiro e a Câmara precisa
de um tempinho para levantar.
ANTÔNIO
Confio nesse Maroto, não.
TARCÍSIO
O pedido é do Coronel Antônio
Maroto, do coronel Sancho Ribas, do
coronel João Maynart e meu também.
Lá o senhor fica mais à vontade.
Antônio e o jagunço se olham. O jagunço sacode a cabeça
devagarzinho em sinal de desaprovação.
ANTÔNIO
(com voz pausada, ainda
com um pouco de dúvida)
Assim é diferente. O coronel João
Maynart é homem de respeito e boto
fé na palavra de vosmecê. Vou
esperá lá na Boa Vista. Se o preço
tá certo, não carece mais de esperá
pelo Delegado.
Tarcísio abre um leve sorriso.

50 EXT. ESTRADA/FAZENDA BOA VISTA - FIM DE TARDE 50


O sol está se pondo. Antônio e seus jagunços estão montados
em seus cavalos, andando pela estrada. Chegam à fazenda Boa
Vista, atravessam a porteira.

51 EXT. FAZENDA BOA VISTA - MANHÃ 51


A primeira luz do dia. Série de planos. As folhas das árvores
chacoalha com o vento. O curral, o olho d’água, a casa.
Antônio e Miguel saem da casa para a varanda.
ANTÔNIO
(a Miguel)
Vancê arreia um animal qualquer pra
mim e outro pra vancê. A gente vai
dá uma volta aí pra vê as coisa.

51.2 EXT. FAZENDA BOA VISTA/PASTO/MARGEM DO RIO - MANHÃ 51.2


Antônio e Miguel, montados em cavalos, cavalgam pelo pasto da
fazenda. Antônio observa o pasto.
32.

PONTO DE VISTA DE ANTÔNIO. Os sinais do abandono: o mato


crescido, o capim-açu, a cana seca. Chegam à estrada de
acesso ao rio, param em frente ao rancho do Retiro, na margem
do rio. Ouve-se o som de rodas de vapor nas águas. Antônio
busca com o olhar de onde vem o barulho. Vai até o barranco
do rio. Miguel segue Antônio, olha fixamente em direção ao
rio.
Em segundo plano, desce o rio um grande barco metálico cheio
de soldados. Eles vestem uniformes militares. Um dos soldados
vê Antônio e acena com a mão em cumprimento.
ANTÔNIO
(em voz baixa)
Então era isso. Eles tava esperano
a chegada da polícia.
Antônio e Miguel saem rapidamente a galope em seus cavalos.

52 EXT. FAZENDA BOA VISTA - DIA 52


Antônio e Miguel chegam à sede da fazenda. Os jagunços estão
reunidos, tomando café e conversando.
ANTÔNIO
(aos jagunços)
A gente vai agora mesmo acampá no
rancho da beirada do rio. Vou ficá
aqui, não. Lá tem conforto, não,
mas é mais seguro.
(pequena pausa)
Nas Pedra não resta mais nenhum
homem. É tudo uma cambada de
tratante. Vou esperá só mais um
dia. S’eles não pagá, eu vou voltá
pra Vargem Bonita e esperá os
cachorro do governo voltá. Eles não
vai ficá nas Pedra a vida toda.
Os jagunços se levantam, vão até um mangueiro próximo à casa,
onde estão os cavalos. Apanham e arream os animais.

53 INT. RANCHO BEIRA DO RIO - ENTARDECER 53


Rancho na beira do rio, construção simples de taiba, com uma
porta e uma janela de frente, coberta de telhas de barro
queimado, escurecidas pelo tempo. As paredes sem reboco ou
pintura, esburacadas. O interior oco, sem divisões, onde
estão os jagunços, de pé, ao redor do fogo, com carabinas,
revólveres e garruchas a tira colo. Usam calças de algodão e
calçam alpercatas de couro cru. Alguns têm facas e facões na
cintura.
33.

Antônio, assentado em um pranchão de aroeira, apanha o


cigarro de palha atrás da orelha. Alisa a barba com a outra
mão.
Ao lado de Antônio, um jagunço está sentado nos calcanhares
com a carabina atravessada entre as pernas. Tira um pedaço de
palha da algibeira da calça e a faca da cintura.
ANTÔNIO
(a um jagunço ao seu lado)
Me dá uma brasa aí.
O jagunço apanha um tição abrasado e entrega a Antônio. Ele
acende o cigarro, esfrega as mãos uma na outra, solta a
fumaça.
JAGUNÇO
Será qu’eles vem?
Antônio volta os olhos para o lado da estrada, cofia a barba,
põe-se de pé.
ANTÔNIO
É capaz qu’eles já tá chegano.
(breve pausa)
Eu não como galinha que raposa
mata. É bom tomá tenença e deixá de
léria que a zoeira tá muito. Minha
valia é tá avisado. Cumpadre
Carrilho já deu o recado, os homi
deve de tá vino. Essa tropa me
parece sê trem de risco, não.
Antônio olha em volta.
ANTÔNIO (CONT'D)
(abaixando o tom de voz)
Apaga o fogo. Cada qual toma escora
no seu canto. Vancês assunt’aqui.
Vancês só vai atirá depois de mim.
A gente vai cubá eles primeiro.
Ninguém vai dá tiro antes. Cada um
faz o que tem que fazê. A gente vai
esperá eles assurgí bem perto. Quem
bestá morre primeiro. Precisa
azoretá, nem ficá vexado, não.
Agora, por ora, é só esperá. Se
ficá de noite, ninguém fecha as
pestana mode o sono não pegá. Tou
espiritano qu’eles não vai tardá.

Um dos jagunços apaga o fogo. Ouve-se o tropear de muitos


cavalos. Antônio e os jagunços se entreolham em silêncio.
34.

54 INT./EXT. RANCHO BEIRA DO RIO - NOITE 54


Antônio observa o movimento da tropa. Ouvem-se vozes
indiscerníveis. Os jagunços e Antônio estão de tocaia, com as
armas nas mãos, aguardam com os olhos fitos nos soldados. O
rancho está completamente escuro. Em planos fechados, vê-se
os detalhes dos contornos e sombras dos jagunços e das armas.
Antônio com o cano da carabina apoiado na frincha de duas
achas de aroeira com os olhos cravados nos soldados. As vozes
dos soldados da tropa são ouvidas mais de perto.
SOLDADO I (V.O.)
A jagunçada correu ao pressentir
nossa chegada. Com certeza eles não
estão na sede da fazenda.
SOLDADO II (V.O.)
S’eles atravessou o rio, vai
encontrá de frente com a tropa do
cabo Pedro Brandão.
SOLDADO I (V.O.)
Apareça, Antônio Dó! Estou aqui
para prendê-lo! Vamos, apareça!

55 EXT. RANCHO BEIRA DO RIO - NOITE 55


Cerca de VINTE SOLDADOS estão caminhando em volta do rancho,
com as armas em riste. Está escuro, vemos os contornos dos
corpos e das armas, escuta-se os passos sobre a vegetação
seca do cerrado.

56 INT./EXT. RANCHO BEIRA DO RIO - NOITE 56


DETALHES. OLHOS DE ANTÔNIO.
Antônio engatilha a carabina e atira.
Os jagunços atiram. Ouve-se gritos e tiros dos soldados do
lado de fora do rancho.
SOLDADO I (V.O.)
Fogo! Fogo!
Os jagunços imóveis dentro do rancho, cada um em sua posição,
atirando em direção aos soldados. Soldados correm pelo
cerrado em volta do rancho. O som dos tiros é alto e sem
trégua. Planos de alternam rapidamente: soldados e jagunços
atirando. Os soldados correm, suas silhuetas com os rifles em
punho. Os jagunços, de tocaia, atiram.
35.

PONTO DE VISTA DE ANTÔNIO. Mira de sua carabina em um


soldado. O tiro é disparado. O soldado cai no chão.

57 EXT. RANCHO BEIRA DO RIO - NOITE 57


Um plano aberto próximo ao chão mostra os pés dos soldados
correndo do lado de fora do rancho pela vegetação do cerrado.
Ouve-se o som dos tiros.
Em plano fechado, um soldado se arrasta no chão com as duas
mãos na cabeça e a arma amarrada no corpo.
PONTO DE VISTA DE UM DOS JAGUNÇOS. Um soldado passa correndo
a cerca de vinte metros. Ele atira. O soldado leva a mão ao
braço, continua correndo, estremecendo de dor.
SOLDADO II (V.O.)
(grita)
Tou sem munição!
SOLDADO III (V.O.)
(grita)
Meu fuzil engasgou uma bala no
pente.
SOLDADO IV (V.O.)
(grita)
A munição acabou.

58 INT./EXT. RANCHO BEIRA DO RIO - NOITE 58


Antônio tem a respiração ofegante. Abaixa a arma e protege o
corpo, colando-o contra a parede. Tem a roupa colada no corpo
pelo suor.
DETALHE. KELÉ.
Vemos no seu pescoço o seu amuleto.
Antônio dá um salto, sai correndo, gritando e atirando. Os
jagunços olham Antônio assustados.
JAGUNÇO I
(grita)
Atrás deles, cambada!
Os jagunços seguem Antônio, correndo e atirando em direção
aos soldados. Os soldados olham Antônio e atiram, sem acertá-
lo. Correm em direção ao interior da mata, os soldados partem
em retirada, correndo.
36.

JAGUNÇO II
(aos companheiros)
Os home caiu no rio. Escafedeu.
Ajunta todo mundo no campo.
JAGUNÇO I
Oxe! E não é de espantá! Ora veja
vancês, o patrão é desassombrado.
Xô, égua! Vancês viu como ele
saltou no meio do tiroteio? Inté
parecia uma sombra pulano no meio
das bala dos macaco, talqualmente
um gato.
Os jagunços riem, aliviados da vitória, andam em direção ao
campo.

59 INT. CASA EM SÃO FRANCISCO - DIA 59


Cerca de SEIS HOMENS, alguns com roupas de militares, o
DELEGADO, outros do governo local, CORONÉIS, estão na sala,
com semblantes enrugados, em silêncio. Entre os coronéis está
JOÃO MAYNART. Estão sentados em poltronas em volta de uma
mesa. Ouve-se uma batida na porta da casa. UM CORONEL se
levanta e abre a porta.
Atrás da porta, em segundo plano, UM SOLDADO com as roupas
sujas e rasgadas, aparenta exaustão.
CORONEL
Quem é você?
SOLDADO
Sou o corneteiro João Avelino.
(pequena pausa)
O alferes João Baptista morreu
afogado, bem pertim d’eu. A gente
caiu n’água junto. Salvei com vida,
mas penso que morreu todo mundo.
Não deve de tê salvado ninguém.
O coronel olha para os outros homens da sala e volta a olhar
para o soldado parado à porta.
SOLDADO (CONT'D)
O homem tinha um mudaréu de capanga
espalhado pra todo lado. Era pra
mais de cem, armado inté os dente.
A gente ficou cercado, sem saída.

CORONEL
Calma, amigo. Vamos entrar e
conversar com tranquilidade.
37.

O soldado entra, o coronel fecha a porta.


CORONEL (CONT'D)
Onde foi que o alferes ficou?

SOLDADO
Já disse pra vosmecê. Ele morreu
afogado.

Um dois coronéis se levanta e se põe de pé, com a mão no


respaldo da cadeira, a boca entreaberta, em espanto. O
delegado se levanta.

DELEGADO
Não me diga! E o resto da tropa?
Breve silêncio.

CORONEL
(ao soldado, indicando uma
cadeira)
Sente-se aqui.
(aos demais homens na
sala)
Ele está dizendo que o alferes
morreu afogado e que a tropa foi
desbaratada. Diz ele que seu
Antônio Dó tinha para mais de cem
jagunços na Boa Vista.

O soldado acomoda-se na cadeira que lhe foi indicada.

DELEGADO
Eu não podia prever que ele tivesse
mais gente na fazenda. Meu único
propósito foi fazer cumprir a lei.

JOÃO MAYNART
(com voz firme)
Que lei?
(pequena pausa)
Nós tínhamos feito um trato com seu
Antônio Dó e os senhores nos
impediram de cumprir.

CORONEL II
Ele vai atacar a cidade na certa. É
preciso mandar chamar o cabo Pedro
Brandão, com seus homens, pra
defender a cidade.
(para o delegado)
(MORE)
38.

CORONEL II (CONT'D)
O senhor passa um telegrama pro
presidente do Estado pedindo
reforços e comunicando o
acontecido.

60 EXT. PORTO DA VILA DO RETIRO/RIO SÃO FRANCISCO - DIA 60


DEZESSETE JAGUNÇOS e Antônio distribuem em cinco canoas
mantimentos, arreios e roupas. Embarcam nas canoas,
desamarram e batem os remos na água, impulsionando as
embarcações, descendo o rio. Os cavalos nadam ao lado das
canoas.

61 EXT. MARGEM DO RIO PARDO - DIA 61


Antônio está sentado à sombra de uma sucupira. Come um pedaço
de rapadura. Os jagunços estão espalhados numa região
improvisada de acampamento à margem do rio. Estão
descansando. Ouve-se o tropel de um cavalo. Antônio se
levanta.
PONTO DE VISTA DE ANTÔNIO. Na outra margem do rio, MIGUEL
chega montado a um cavalo. Miguel força o cavalo a atravessar
o rio. O animal atravessa com dificuldade o solo arenoso.
ANTÔNIO
(em tom de alívio, aos
jagunços)
É Miguel!
Antônio faz sinal para que os jagunços se reúnam. Eles se
aproximam de Antônio. Miguel chega à margem do rio.
MIGUEL
(desmontando do cavalo,
ofegante)
Eles tá vino. É um bandão de
macaco.
Breve silêncio.
ANTÔNIO
(aos jagunços)
Vancês pode ficá certo qu’eles
dessa vez vai querê brigá inté o
fim. Quem quisé pode montá em seu
pangaré e desocupá o lugá. Vai sê
dificultoso, mas a gente pode deixá
eles atravessá o rio pra banda de
cá, não.
39.

62 EXT. MARGEM DO RIO PARDO - DIA 62


Plano fixo do rio Pardo. Rio não muito profundo, de
aproximadamente vinte metros de largura. A areia é fina no
leito do rio. Ouve-se o som da água correndo.
Os jagunços se escondem pela folhagem do cerrado perto da
margem do rio.
Uma tropa de cerca de VINTE SOLDADOS chega à margem oposta do
rio. Metade da tropa entra no rio, seus cavalos bebem água.
Dois soldados estão conversando, rindo, ambos com a água na
altura do joelho. Um deles segura firme a rédea de sua
montaria. Ouve-se o som de um disparo. O segundo soldado cai
na água do rio, atingido pelo tiro. Os soldados assustados
olham para a margem oposta.
PONTO DE VISTA DE UM DOS SOLDADOS. Plano fixo mostra que a
margem oposta está vazia, nenhum jagunço é visto, a vegetação
está imóvel.
Um segundo disparo é ouvido. Um soldado tomba de sua montaria
sobre as águas do rio.
Os soldados estão desnorteados, olham para os lados buscando
a direção dos tiros. Atiram em várias direções, sem definir
alvo.
Os tiros param. Os soldados observam ao redor. Ouve-se o som
dos grilos e das águas do rio. A vegetação está imóvel no
leito do rio.

63 INT. CASA QUALQUER CIDADE DE SÃO FRANCISCO 63


Conversam na sala de uma casa, sentados ao redor de uma mesa,
UM CORONEL e UM MILITAR, com vestes militares.
MILITAR
A notícia vinda de Belo Horizonte é
de que os clarins soaram em todos
os quartéis. Estão todos
surpreendidos com o fracasso da
expedição anterior para captura de
Antônio Dó.
O coronel observa atentamente o militar, com as mãos cruzadas
em cima da mesa, o semblante sério.
MILITAR (CONT'D)
Ordens de deslocamento imediato
para São Francisco foram expedidas
aos destacamentos das cidades
próximas.
(MORE)
40.

MILITAR (CONT'D)
A Brigada está preparada para um
novo e definitivo confronto com
Antônio Dó. De Diamantina, chegará
o alferes Félix Rodrigues da Silva,
considerado um policial bravo e
temido entre os militares. A ele
são reservadas as piores missões.

64 PLANOS DOCUMENTAIS - IMAGENS DE ARQUIVO 64


Documentos e fragmentos da mídia impressa na época, que
noticiaram a perseguição a Antônio Dó, são mostrados. É a
versão oficial, militar, da figura e da personalidade de
Antônio Dó, de sua periculosidade. O jagunço que ameaça os
cachorros do governo.

65 EXT. ESTRADA - TARDE 65


Uma tropa com cerca de TRINTA SOLDADOS cavalga pela estrada.
Na frente da tropa, está FELÃO, moreno, cabelos castanhos
carapinha, olhos pardos, alto, montado em seu cavalo.
PONTO DE VISTA DE FELÃO. UM HOMEM à porta de uma casa. Felão
estanca sua montaria. Ouve-se o latido de um cão.
FELÃO
(a um de seus soldados,
apontando o homem)
Chame aquele homem ali naquela
casa.
Soldado se aproxima da cerca que protege a casa.
SOLDADO
(ao homem)
Seu moço, faz favor.
HOMEM
(aproximando-se assustado)
N’nhor, sim.
SOLDADO
Seu alferes tá chamando vancê.
O homem se acerca dos policiais.
FELÃO
(ao homem)
Vancê mora por essas bandas.
Conhece a Vargem Bonita?
41.

HOMEM
N’nhor, sim.
FELÃO
Qual é seu nome?
HOMEM
José Pereira, criado de vosmecê
FELÃO
A estrada pra lá tem alguma perda?
HOMEM
Tem não, senhor. É estrada
linheira. Vosmecê segue em frente.
(apontando a estrada)
Vai rompeno, rompeno. Ali logo na
frente depois de um tope, atravessa
uma vereda. É funda, não. A água dá
na barrica dos animal. Aí vosmecê
rompe, toda vida. Lá mais pra
frente.
FELÃO
Tá, tá! Vancê se arrume depressa.
Vancê vai me acompanhar até lá, pra
mostrar o caminho.
HOMEM
Vosmecê espera eu pegá o cavalo ali
no pasto. Volto logo.
O homem entra em sua casa, apanha um cabresto. UMA MULHER
está na cozinha, cuidando de afazeres.
HOMEM (CONT'D)
(à mulher, apressado)
Manda o Nequinho avisá sô Antônio
Dó, lá na Vargem Bonita, correno.
Manda ele pegá a égua melada. Esses
soldado tá ino pra lá. Eu vou
delongá eles um pouco. Vancê manda
Nequinho rompê pelo caminho de
dentro.

CORTA PARA:

66 EXT. RUAS DE VARGEM BONITA/PERTO DAS TRINCHEIRAS - DIA 66

Um MENINO, cerca de 14 anos, descavalga uma égua, segura o


animal pela ponta do cabresto, anda pela rua, alvoroçado.
Encontra uma mulher que caminha pela rua.
42.

MENINO
(à mulher)
Vancê sabe onde posso encontrá
Antônio Dó? Foi meu pai quem
mandou.
MULHER
(PONTO DE VISTA DA MULHER,
que aponta uma trincheira
atrás da igreja)
Ele é aquele ali, na beirada da
trincheira. Aquele de chapéu
amarelo.
Antônio Dó, de chapéu amarelo, e cerca de VINTE JAGUNÇOS
estão em perto de uma trincheira, preparando-se para um
confronto. O menino se aproxima de Antônio.
MENINO
(afobado)
Sô Antônio, tem um lote de soldado
vindo pra cá. É um bandão de gente.
Eles carregou meu pai pr’ele ensiná
a estrada. Foi meu pai quem mandou
eu avisá vosmecê. Meu pai é José
Pereira, da Catarina.
ANTÔNIO
Vancê se acalme. Preocupa, não. Seu
pai fica protegido. A gente atira
em paisano, não. S’ele não tiver
fardado tem perigo, não. É bom
vancê ir voltano, mas volta pela
estrada da Serra, dando volta. Lá
na cozinha tem alguma coisa pra
comê. Come logo e não delonga.
MENINO
N’nhor, sim.

67 EXT. ENTRADA DE VARGEM BONITA - MADRUGADA 67


Plano aberto da lua cheia no céu. Silêncio.
Felão e TRINTA SOLDADOS entram no povoado de Vargem Bonita
atirando para todos os lados. Múltiplos cortes mostram tiros
acertando pessoas, casas, cavalos, cachorros. O som dos tiros
é alto.
Plano fechado. Felão sorri perversamente.
43.

68 EXT. TRINCHEIRAS/ATRÁS DA IGREJA/VARGEM BONITA - MADRUGADA 68


Plano aberto da trincheira atrás da igreja. Cerca de VINTE
JAGUNÇOS estão abaixados dentro das trincheiras. Atiram.

69 EXT. RUAS VARGEM BONITA - MADRUGADA 69


MÚLTIPLOS CORTES. PONTO DE VISTA DOS JAGUNÇOS. Miram os
soldados com suas carabinas. Alguns tiros passam de raspam.
Os soldados estremecem de dor. Atiram de volta. Alguns tiros
acertam os soldados, que caem ao chão.
Ouve-se gritos de desespero e crianças chorando. ATENÇÃO: o
barulho dos tiros não para.
TRÊS MULHERES atravessam as ruas correndo, segurando DUAS
CRIANÇAS no colo e DUAS CRIANÇAS pela mão. As crianças
choram.

70 INT. CASA QUALQUER VARGEM BONITA - MADRUGADA 70


Tudo escuro. UMA MULHER e TRÊS CRIANÇAS, de 5, 10 e 12 anos
estão sentadas no chão, embaixo de uma janela. Todos em
silêncio. As crianças estão chorando. A mulher está de olhos
fechados, tem um terço na mão, murmura uma reza. ATENÇÃO:
ouve-se som dos tiros do lado de fora durante toda a cena.

71 EXT. RUAS DE VARGEM BONITA - MADRUGADA 71


Um grande buraco cavado no chão, de onde parece ter sido
retirado barro. DEZ SOLDADOS, espantados, avistam o buraco e
pulam para dentro dele.
Plano fechado dos soldados dentro do buraco. ATENÇÃO: ouve-se
durante toda a cena o som de tiros.

72 EXT. RUAS DE VARGEM BONITA - MADRUGADA 72


MÚLTIPLOS CORTES. DEZ JAGUNÇOS que se escondem atrás de
cercas, sob ramagens de goiabeiras. ATENÇÃO: durante toda a
cena se ouve o som de tiros.

73 EXT. RUAS DE VARGEM BONITA/PERTO DAS TRINCHEIRAS - MADRUGADA


73
Cerca de QUINZE SOLDADOS atiram em direção às trincheiras
atrás da igreja. Ouve-se o som dos tiros.
44.

SOLDADO (V.O.)
(grita)
Não gastem munição à toa. Vamos
esperar a claridade do dia.

74 EXT. RUAS DE VARGEM BONITA - MANHÃ 74


Primeira luz do dia nascendo. Felão bate na bandoleira do
fuzil. Múltiplos cortes de CINCO SOLDADOS imitando o gesto de
Felão.
SOLDADO (V.O.)
Tou sem munição.
MÚLTIPLOS CORTES. Soldados abaixam as armas. Ouve-se o som
dos tiros dos jagunços.

75 EXT. MATA CERRADO/SAÍDA VARGEM BONITA - MANHÃ 75


Antônio Dó e VINTE JAGUNÇOS chegam correndo à mata do cerrado
onde estão amarrados cerca de quinze cavalos. Eles desamarram
os cavalos das árvores e montam rapidamente. A mula de
Antônio sai na frente, a galope, e os jagunços o seguem mata
adentro.

76 EXT. TRINCHEIRAS/ATRÁS DA IGREJA/VARGEM BONITA - DIA 76


Felão levanta-se tonto da trincheira. Ao seu redor, cerca de
CINCO SOLDADOS, com as armas nas mãos, abaixadas. Felão com o
corpo mole, o corpo parece rodar pela tontura, olha ao redor.
FELÃO
(grita aos soldados)
Percorram o povoado. Prendam, sem
exceção, todas as pessoas que
encontrarem.
(breve pausa)
Botem fogo em todas as casas.

77 EXT. AÉREA VARGEM BONITA/IGREJA - DIA 77


Plano fixo de uma imagem aérea mostra Vargem Bonita em
chamas.
Imagens mostram Várzea Bonita em chamas.
A igreja pega fogo. O plano se fecha em um grande crucifixo,
no topo da igreja, ardendo no incêndio.
45.

78 EXT. RUAS DE VARGEM BONITA - DIA 78


Felão anda pela rua, calmamente. Em segundo plano, todas as
casas estão pegando fogo, homens, mulheres e crianças estão
sentadas no chão das ruas, em prantos. A devastação e o
pânico são completos. Os soldados têm armas empunhadas,
seguram pessoas pelo braço, arrastando-as pelas ruas. UM
HOMEM se aproxima de Felão, em desespero, suando e chorando,
ajoelha aos seus pés.
HOMEM
(a Felão)
Vosmecê tenha piedade, olha pra
minha família. Eles carece de minha
pessoa pra vivê.
FELÃO
(a um de seus soldados)
Afaste este homem de perto de mim.
Fuzile ele.
O soldado pega o homem pelo braço e o arrasta pelas ruas.
Felão caminha calmamente. Ouve-se um homem gritando. Felão
olha para o lado.
PONTO DE VISTA DE FELÃO. Um homem estirado no chão da rua,
gritando. Felão se aproxima de outro soldado mais à frente.
FELÃO (CONT'D)
(ao soldado, apontando
para o homem e em seguida
para uma árvore próxima)
Amarre esse homem de costas
pr’aquele tronco.

Felão caminha calmamente pela rua, chega até a praça. TRÊS


HOMENS estão nus, desmaiados no chão. DUAS CRIANÇAS estão
sentadas no chão, chorando abraçadas. UMA MULHER e DUAS
MOÇAS, chorando, se aproximam de Felão.

MULHER
(em desespero, chorando)
Não mata eles, não. Não mata eles.
Pufavô, não mata eles.

Felão empurra a mulher no chão.

FELÃO
(aos soldados)
Tirem as roupas delas.
46.

79 INT. CASA QUALQUER VARGEM BONITA 79


Sala. A casa está revirada, os móveis estão espalhados e
tombados. Vemos os sinais do fogo nas paredes e móveis
queimados. Felão senta-se numa cadeira, ao redor de uma mesa,
e coloca os pés sobre a mesa. TRÊS MULHERES e UMA IDOSA estão
em estado de choque, estiradas no chão, nuas.
FELÃO
(às mulheres)
Vão prepará comida. Fiquem do jeito
que tão. Não vistam roupa nenhuma.
Matem galinha, qu’eu não gosto de
comer sem galinha.
(à idosa)
Vai tirar umas laranja pr’eu
chupar.
IDOSA
(assustada, chorando)
Do jeito qu’eu tou?
FELÃO
(rindo)
Por que não?

80 EXT. PRAÇA VARGEM BONITA - ENTARDECER 80


Cerca de QUINZE MORADORES, homens e mulheres, estão sentados
e deitados no chão da praça. Cerca de QUINZE SOLDADOS,
empunhando suas armas, estão de pé, conversando entre eles,
alguns riem. Felão caminha de um lado do outro da praça, com
o tronco erguido e um chicote na mão.
FELÃO
(grita, batendo o chicote
nas polainas, aos
soldados)
Quero ouvir meus versos, agora
mesmo. Reúnam o que sobrou desse
povo. Tirem a roupa de todo mundo.
Alvoroço geral. Mulheres e homens correm desordenadamente
pela praça sob ameaça dos soldados. Os soldados reúnem cerca
de TRINTA PESSOAS no centro da praça.
FELÃO (CONT'D)
(grita)
Façam uma roda. Um homem e uma
mulher, não quero ver ninguém do
lado de fora da roda.
47.

Os soldados riem. As pessoas formam a roda. Felão observa a


formação da roda sorrindo.
FELÃO (CONT'D)
(grita)
Todos de mãos dadas. Comecem a
cantar.

Silêncio. Todos imóveis.

FELÃO (CONT'D)
(grita)
O que é que tão esperando?

Felão saca o revólver e atira no meio da roda. As pessoas se


assustam, estremecem com o tiro.
MULHER
(que está na roda, em tom
monótono)
Felão vei?

OUTRA MULHER
(com voz medrosa,
estremecida)
Não vei, não!

MULHER
Por que é que não vei?

PESSOAS DA RODA
(em coro)
Não sei, não!

FELÃO
Andar em roda, um atrás do outro,
cantando.

Felão atira para o alto. As pessoas em roda começam a


caminhar, fazendo a roda girar.
PESSOAS EM RODA
(em coro, cantam)
Felão vei?/Não vei, não!/Por que é
que não vei?/Não sei, não!/Espora
no pé tá tinino./Foguete no ar tá
zunino./Felão, Felão, Felão,/O
alferes da maldição.

FELÃO
(grita)
Prestem atenção. Todos parados,
agora, soltem as mãos.
48.

As pessoas em roda param de girar e soltam as mãos.


FELÃO (CONT'D)
Fiquem mais juntos. Vamos, fiquem
mais juntos. Apertem a roda.

As pessoas em roda se aproximam ainda mais umas das outras.

FELÃO (CONT'D)
Assim.

Felão sorri, segurando o revólver.

FELÃO (CONT'D)
Agora prestem atenção. Ponham todos
um dedo da mão esquerda na boca.
Estão ouvindo. Um dedo da mão
esquerda.

As pessoas em roda colocam um dedo da mão esquerda na boca.

FELÃO (CONT'D)
Assim. É pra chupar o dedo. Bom.
Muito bom. Agora enfiem o dedo
indicador da mão direita na bunda
do vizinho da frente.

Silêncio. As pessoas estão imóveis, não reagem ao comando.


Uma senhora desmaia.

FELÃO (CONT'D)
(aos soldados, apontando a
um corpo estirado na
praça)
Retirem aquele defunto dali, que tá
atrapalhando.
(às pessoas em roda)
Vamos começar.

As pessoas em roda colocam o dedo da mão direita na bunda da


pessoa da frente.
FELÃO (CONT'D)
Trocar de dedo.

As pessoas da roda seguem o movimento de revezar os dedos na


boca e na bunda da pessoa da frente.

Felão se retira da praça. Os soldados vão atrás. Deixam a


cidade.
49.

81 PLANOS DOCUMENTAIS - PRAÇA VARGEM BONITA 81


2 a 3 planos documentais mostram a praça em Vargem Bonita.
4 a 5 planos documentais mostram rodas e cirandas de
manifestações populares atuais em que as pessoas entoam
cantigas e versos populares. Entre elas, a cantiga de Felão.

82 EXT. ACAMPAMENTO IMPROVISADO/FAZENDA MATO GRANDE - DIA 82


DEZOITO JAGUNÇOS e Antônio estão espalhados pelo acampamento,
deitados em redes sob árvores, acocorados no chão, fumam e
conversam. Antônio esfrega as mãos uma na outra e as sopra
para aquecer. Todos vestem roupas de frio.
ANTÔNIO
Eles tá zombando d’eu. Eu nunca fui
atrás de cachorro do governo
nenhum. Eles é que anda no meu
rastro. De horas em vante a gente
vai perseguí qualqué cachorro do
governo que passá por essas banda.
Qualqué um que atravessá o rio pra
banda de cá vai tê que morrê. Nem
comigo, nem com ninguém, esses home
vai fazer injustiça mais, não.
Os jagunços escutam e olham Antônio em silêncio.

83 EXT. MARGEM DO RIO SÃO FRANCISCO - MANHÃ 83


DOIS CANOEIROS conversam, sentados à margem do rio. Cada um
deles tem à sua frente uma cesta com muitos peixes.
CANOEIRO I
Sô Antônio Dó não tarda entrá na
cidade. Pode vancê ficá certo
qu’esse tá esguaritado, só deixano
a poeira assentá. Veja vancê que
até a polícia parece que esfriou.
Largou mão dele. Ficou assuntano
que quase não tem soldado na
cidade.
(pausa)
O povo gosta de seu Antônio Dó.
CANOEIRO II
Ele é um homem ladino. É bobo, não.
Ele tem parte com o demo. Ele sabe
adonde tem as venta. Eles pode com
ele, não. Ele tem o corpo fechado
no terreiro.
50.

CANOEIRO I
Diz qu’ele some como por encanto na
vista da polícia assim como de
coisa que não tava presente no
lugá. Evapora que nem fumaça. Diz
qu’ele já veio da Bahia com o corpo
fechado. Soldado vai pegá ele, não.
Diz qu’ele é afilhado de Exu,
protegido de Iansã. Diz qu’ele tem
um amuleto. Ninguém mata Antônio Dó
enquanto o amuleto tivé no pescoço.
Ele morre, não.
CANOEIRO II
Deve de sê por isso que ele venceu
o pió homi da polícia, esse tal de
Felão. Diz que ele sumiu aí. Tanta
humilhação. Ô homi pra fazê
atrocidade. Só sô Antônio mesmo pra
enfretá ele.
(pausa)
A reza é forte. Diz qu’ele tem o
livro de São Cipriano.
CANOEIRO I
Ele precisa ir nos lugá pra mandá
recado, não. Diz que a mula dele
vai e volta, pra qualqué lugá
qu’ele mandá, levano e trazeno
bilhete pelo meio do cerrado,
cortano volta. É uma mula
encantada. Só ele pode montá nela.
CANOEIRO II
Ninguém informa do paradeiro dele.
Pra donde será qu’ele tá?
CANOEIRO I
Eu lhe digo uma coisa. Tem quem diz
qu’ele é capaz de tê voltado pra
Bahia, sabe.
CANOEIRO II
Voltou, não. Ele vai perdoá nem o
Maroto, nem o coronel Sancho Ribas,
não. Perdoa, não. Isso vancê pode
tá certo como essa luz que me
alumia. Diz qu’ele falou que vai
voltá pra fritá o coronel Sancho
Ribas nas banha da pança do Maroto.
Os dois canoeiros caem na gargalhada.
51.

CANOEIRO I
Arrenego. Quem deve a Deus paga ao
diabo, sabe.
CANOEIRO II
Arre égua! Eu inté pago pra vê.
Quero tá aqui no dia. O coronel
Sancho Ribas só tem osso. O que é
qu’ele vai fritá?
CANOEIRO I
Homem de Deus, e Chico Peba!
CANOEIRO II
Chico Peba que se cuide, donde ele
tivé.
CORTA PARA:

84 EXT. RIO SÃO FRANCISCO - DIA 84


Ouve-se o som de pássaros voando.
Em plano fechado vemos um bando de mergulhões passando ao
largo sobre o rio, voando baixo sobre as águas.
Múltiplos cortes mostram o rio São Francisco.
CANOEIRO I (V.O.)
Ele deve de sê um homem desprezado
de saudade. Nas primeiras água, nas
chuva de setembro, ele deve de
lembrá da Boa Vista, que nem o
peixe lembra da cabeceira do rio. A
polícia deve de sê pra ele que nem
a jequi que a gente coloca no rio.
O peixe vem, mas não pode passá.

85 EXT. ACAMPAMENTO IMPROVISADO/CABECEIRA VEREDA BARBA TIMÃO -85


DIA
Plano aberto da vereda. Ouve-se som das águas correndo e de
pássaros cantando. Múltiplos cortes mostram a vegetação do
cerrado, as águas e as árvores.
Antônio e cerca de DEZOITO JAGUNÇOS estão reunidos. Antônio
faz um gesto a um dos jagunços para que ele se aproxime. O
jagunço se aproxima de Antônio.
ANTÔNIO
A gente vai ficá por aqui uns
tempo. Pouco tempo.
(MORE)
52.

ANTÔNIO (CONT'D)
A gente vai descansá os cavalo por
uns dia. Depois a gente vai dá um
corte por aí, pra vê o que fazê.
Diz qu’essas terra do Mato Grande é
do coronel João Antônio Soares, lá
do Paracatu do Príncipe. É um
mundão de terra. Nem ele mesmo sabe
onde termina. Vem amolá a gente,
não. Por aqui tem uns brejo inté
bom de plantá arroz. Tem muita
vargem e no cerrado tem muito capim
de raiz e capim meloso pros cavalo
pastá. Nessas’água que vem a gente
pode ficá por aqui.
JAGUNÇO
Vosmecê é quem sabe.
ANTÔNIO
A gente vai esperá um pouco, depois
a gente volta lá na Vargem Bonita
pra vê como foi que o povo de lá
ficou. O pessoal lá do Vão dos
Buraco deve mandá dizê alguma coisa
por esses dia.

86 EXT. ACAMPAMENTO IMPROVISADO/VEREDA BARBA TIMÃO - DIA 86


Aproxima-se do acampamento UM CAVALEIRO, seu animal vem em
marcha lenta. O cavaleiro se aproxima de Antônio.
CAVALEIRO
Sô Antônio, sucedeu um cu de boi
danado lá na Vargem Bonita. Um
fuzuê que até Deus duvida. A
notícia já correu mundo.
ANTÔNIO
(franzindo a testa)
Que foi que sucedeu, homem de Deus?
Desembucha.
Forma-se um rebuliço entre os jagunços. Eles se aproximam do
cavaleiro e de Antônio para ouvir de perto.
CAVALEIRO
No mesmo dia que vosmecê saiu lá
dos Buraco, pela tardinha chegou lá
o Mariano das Taboca, que tinha
saído fugido lá de Vargem Bonita
pra escapá do tal Felão.
53.

ANTÔNIO
Então?
CAVALEIRO
Diz Mariana qu’ele, desesperado com
a fuga de vosmecê, tocou fogo no
povoado, judiou de todo mundo e
matou muita gente. Fez o diabo com
o povo. Não deve de ter escapado
ninguém. Aí eu saí na batida de
vosmecê. Atravessei o assentado do
carrasco com a noite e dormi um
pouco na beira do córrego dos Boi.
Breve silêncio.
ANTÔNIO
(ao cavaleiro)
Vancê se acalme.
(breve pausa)
Eita pau! A gente agora não pode
fazê nada. Tinha pra mais de cem
cachorro do governo lá na Vargem
Bonita. Vancê sabe pra donde é
qu’eles foi?
CAVALEIRO
Sei, não.
ANTÔNIO
(nervoso)
Eles não perde por esperá. Eu ainda
pego esse Felão, nem que for na
entrada do inferno.

87 EXT. PLANOS DOCUMENTAIS/VEREDA/VÃO DOS BURACOS - DIA 87


Em plano aberto, o Vão dos Buracos. MÚLTIPLOS CORTES mostram
a vegetação do cerrado à beira de uma vereda.
Planos fechados. UM HOMEM IDOSO caminha, o vemos de costas,
seguindo em frente. Ouve-se o som das águas.
DETALHES. PÉS. MÃOS. OLHOS.
Barra da calça molhada pela água.

88 EXT. FAZENDA MATO GRANDE/LAVOURA - DIA 88


Cerca de DEIZOITO JAGUNÇOS trabalham na lavoura.
CORTA PARA:
54.

89 EXT. FAZENDA MATO GRANDE - DIA 89


CORTES MÚLTIPLOS mostram a fazenda. A plantação de arroz, o
pasto, o gado, o brejo.

90 EXT. FAZENDA MATO GRANDE - DIA 90


Antônio encostado no tronco de uma catingueira. Tem o rosto
um pouco mais envelhecido, a barba um pouco mais branca.
Antônio tem o olhar incerto e triste. Josefina se aproxima de
Antônio. Encosta no tronco da mesma árvore. Breve silêncio.
JOSEFINA
(a Antônio)
Vosmecê tá aborrecido desde que
levantou. Ficou sabeno de notícia
lá das Pedra?
ANTÔNIO
Tive, não.
Silêncio.
PONTO DE VISTA DE JOSEFINA. Folhas de uma árvore balançando.
ANTÔNIO (CONT'D)
Uns soldado saiu de novo das Pedra
pra me caçá. A gente vai arribá
acampamento.

JOSEFINA
A gente vai voltá lá pra Vargem
Bonita?

ANTÔNIO
Vai, não. A gente vai atravessá pra
banda de lá da Bahia.

Josefina olha Antônio dos olhos. Antônio retribui o olhar.


DETALHES. OLHOS DE JOSEFINA.

Os olhos de Josefina lacrimejam.

JOSEFINA
Vosmecê é quem sabe.

Silêncio.

Josefina e Antônio olham a paisagem ao redor.


55.

JOSEFINA (CONT'D)
Vosmecê me deixa na Vargem Bonita,
na casa de meu pai. Carece vosmecê
ir, não. Manda me levá.

Josefina se afasta. Antônio está encostado no tronco da


árvore. Ouve-se o som do canto de passarinhos.

91 EXT. PORTA DA CASA DE JOÃO FRANCISCO - ENTARDECER 91

Josefina chega caminhando à porta da casa seu pai. Carrega


trouzas de roupa.

DETALHE. OLHOS DE JOSEFINA.


Ela aparenta ter chorado.

Josefina bate à porta da casa do pai. Seu pai abre a porta,


abraça a filha. Os dois entram na casa. Seu João Francisco
fecha a porta.

92 EXT. ACAMPAMENTO IMPROVISADO/FAZENDA RIACHO DO MEIO/BEIRA DE


92
UMA VEREDA AFLUENTE DO RIO ITAGUARI - DIA

Antônio e seus DEZOITO JAGUNÇOS estão em um acampamento


improvisado à margem de uma vereda. Estão todos sentados no
chão.

ANTÔNIO
(indignado)
Eita pau! A caça tem que pensá do
jeito do caçadô. O caçadô negaceia
de um lado, a caça negaceia de
outro. Um engana o outro. Eles tá
perto e não delonga chegá. Pensei
qu’eles ia atravessá o rio
Cariranha pra banda de cá, não.
S’eles tá vino a gente espera eles.
O que não tem remédio, remediado
fica.

Antônio se levanta.

ANTÔNIO (CONT'D)
A gente vai dexá umas rede armada,
como se tivesse gente dentro, carne
estendida no varal, umas duas sela
velha pendurada. Carne pouca, vai
fazê falta, não. A gente vai ficá
de tocaia dentro do mato. Eles
pensa que a gente não tá sabeno
qu’eles tá vino pra cá.
(MORE)
56.

ANTÔNIO (CONT'D)
Se tivé de jeito a gente enfrenta
eles, se não tivé a gente escapole
deles inté eles cansá, de procurá.

93 EXT. ACAMPAMENTO IMPROVISADO/FAZENDA RIACHO DO MEIO/BEIRA DE


93
UMA VEREDA AFLUENTE DO RIO ITAGUARI - DIA
PLANO FIXO do acampamento. Redes montadas sob árvores. Carnes
e duas estendidas em um varal.
Uma tropa com cerca de TRINTA SOLDADOS e UM ALFERES avança
aceleradamente em direção ao acampamento. Soldados, montados
em seus cavalos, invadem o acampamento e atiram em direção às
redes. Param de atirar quando não percebem resposta.
ALFERES
(grita aos soldados)
Cessa o fogo
Soldados abaixam as armas.
ALFERES (CONT'D)
(aos soldados)
Nós vamos acampar por aqui.

94 EXT. ACAMPAMENTO IMPROVISADO/BARRA DO GALHO DO 94


ANTÔNIO/PRÓXIMO À CABECEIRA DO RIO ITAGUARI - DIA

TRAVELLING PONTO DE VISTA dos soldados se aproximando do


acampamento rapidamente em sua montaria.

Plano aberto de uma tropa de cerca de TRINTA SOLDADOS e UM


ALFERES se aproximando do acampamento. Redes armadas sob
árvores. Ouve-se o som de muitos cavalos galopando.

MÚLTIPLOS CORTES mostram os jagunços escondidos entre as


ramagens do cerrado. Ouve-se o som de tiros.

Soldados se atiram dos cavalos e se deitam no chão. Os


cavalos relincham. O alferes se esconde atrás de um cupim.

Antônio está deitado no chão, segurando um fuzil.

PONTO DE VISTA DE ANTÔNIO. Mira o alferes com seu fuzil. O


alferes recebe um tiro no abdômen e cai no chão.

Antônio assovia um assovio alto e agudo. MÚLTIPLOS CORTES


mostram os jagunços se afastando do acampamento pelo cerrado
adentro.
57.

94.2 EXT. ESTRADA - ENTARDECER 94.2


DOIS SOLDADOS carregam o alferes pela estrada. O alferes tem
a roupa suja de sangue. Avistam uma casa e um homem, MANOEL
FRANCISCO, no quintal. O homem vê os soldados se aproximando.
Eles chegam à cerca da casa.
MANOEL FRANCISCO
Quem é esse que vosmecês tão
trazendo aí todo coberto de sangue?
SOLDADO I
É um soldado que foi ferido.
O alferes geme baixo e retorce o corpo.
MANOEL FRANCISCO
É! Daqui a gente tava ouvindo os
tiro.
SOLDADO I
Essas terra são de quem?
MANOEL FRANCISCO
É desse seu criado, Manoel
Francisco.
SOLDADO I
O senhor se incomoda de dar
agasalho para um ferido?
MANOEL FRANCISCO
Pode vosmecês ir entrano. Da banda
de dentro da minha casa, nem meu
compadre tira vancês daqui.
SOLDADO I
Quem é seu compadre?
MANOEL FRANCISCO
É o compadre Antônio Dó.
Os soldados se olham assustados.
MANOEL FRANCISCO (CONT'D)
Vosmecês se assusta, não. A bem
dizê, o compadre já deve de t[a de
partida pras banda do Sítio
d’Abadia. Ninguém tá ouvino tiro
mais, não. Ele é que nem borboleta:
assenta, mais não para, Esquenta
lugá, não. Polícia bota a mão nele,
não. Ele tem o corpo curado.
(MORE)
58.

MANOEL FRANCISCO (CONT'D)


Quando vosmecês menos esperá ele tá
da banda de lá do rio São
Francisco, lá pro Gerais de São
Felipe. Sossega, não.

94.3 INT. CASA DE MANOEL FRANCISCO 94.3


Um dos soldados e Manoel Francisco estão sentados em volta de
uma mesa, conversando.
SOLDADO II
Há quanto tempo o senhor conhece
seu Antônio Dó?
MANOEL FRANCISCO
Faz um lote de tempo. A gente
saltou fogueira pra ser compadre,
faz tempo. A gente jurou, na festa
da Serra das Araras, por São João,
São Pedro, São Paulo e por todos os
santo da Corte do Céu. Tenho muito
apreço pelo compadre.
SOLDADO II
Esse juramento não tem valor. Só é
compadre quem batiza um filho do
outro.
MANOEL FRANCISCO
(espantado)
Vosmecê tá certo, não. É juramento
de homem, e juramento de homem vale
pro resto da vida. O compadre dá
proteção pra gente aqui nesse
sertão bruto. Vosmecê é porque não
sabe. O adjutório dele é grande.
Por essas banda anda muito cigano,
uns bom, outros não, fazendo catira
e furtano. A gente fica sem
proteção. Só os coroné tem jagunço
pra proteção. O compadre é que
protege a gente desse sertão todo.

94.4 PLANOS DOCUMENTAIS - FESTA DE SÃO JOÃO/SERRA DAS ARARAS 94.4


6 a 8 planos documentais mostram a festa de São João na Serra
das Araras.
4 a 6 planos documentais mostram as danças de São João e as
pessoas saltando a fogueira.
59.

95 EXT. SEDE FAZENDA DO CORONEL ORNELAS/ACAMPAMENTO IMPROVISADO


95 -
DIA
Plano aberto. A sede de uma fazenda. Uma casa grande com uma
porta central não muito alta e quatro pares de janelas. Rente
à casa, uma espécie de puxadinho, coberto com palhas, com
três portas de frente. Quase em frente à casa, há uma
frondosa gameleira.
A cerca de cem metros da casa, o acampamento de Antônio e
seus DEZOITO JAGUNÇOS. Antônio e os jagunços estão espalhados
pelo acampamento, alguns deitados em redes armadas sob
árvores, alguns fumam, alguns estão sentados no chão.

96 EXT. SEDE FAZENDA CORONEL ORNELAS - ENTARDECER 96


Uma tropa com cerca de VINTE SOLDADOS e um ANSPEÇADA chega à
sede da fazenda. Entre eles, está cabo Pedro Brandão. Se
aproximam da casa, montados em seus cavalos. Eles se
aproximam cautelosamente. Cerca de DEZ CACHORROS correm em
direção à tropa, latindo.
CORTA PARA:

97 EXT. ACAMPAMENTO IMPROVISADO/FAZENDA CORONEL ORNELAS - 97


ENTARDECER
Os jagunços escutam o latido dos cães e se entreolham.
PONTO DE VISTA DOS JAGUNÇOS. Sede da fazenda.
Jagunços veem, de longe, a tropa que chega à sede da fazenda.
CORTA PARA:

98 EXT. PORTA DA CASA/SEDE FAZENDA CORONEL ORNELAS - ENTARDECER


98
CORONEL ORNELAS, homem de meia idade, usa casaca, botas de
couro, calça branca, está parado à porta da casa. Observa a
tropa se aproximar.
À frente da tropa está o anspeçada, montado em seu cavalo.
Atrás dele, os soldados em seus cavalos.
CORONEL ORNELAS
(ao anspeçada)
O que os senhores desejam?
ANSPEÇADA
(olhando para a casa)
De quem é esta morada?
60.

CORONEL ORNELAS
É deste seu criado.
ANSPEÇADA
Com licença da palavra, quem é o
senhor?
CORONEL ORNELAS
(com olhar severo)
Joaquim Gomes de Ornelas. Coronel
Ornelas com melhor palavra.
ANSPEÇADA
Anspeçada Antônio Domingues
Martins, da Brigada de Minas. Estou
no encalço de seu Antônio Dó e seu
bando, para prendê-los.
(apontando o acampamento
de Antônio)
Aquela tropa ali, amarrada na
cerca, é do bando dele, com
certeza.
CORONEL ORNELAS
(olhando em direção ao
acampamento de Antônio)
Ele tá aqui, não.
ANSPEÇADA
(em tom de arrogância)
Está sim.
CORONEL ORNELAS
(com altivez)
Aqui nesse Goiás ninguém me remeda.
ANSPEÇADA
O senhor me desculpa.
CORONEL ORNELAS
Nesse caso, o senhor pode conferir.
ANSPEÇADA
Vamos!
CORTA PARA:

99 EXT. QUINTAL FAZENDA MATO GRANDE - ENTARDECER 99


Espaçoso quintal, com galinhas, patos e um pavão. Mangueiras
e laranjeiras, com um sulco de água entre elas. O anspeçada,
os policiais e cabo Pedro Brandão olham em volta. Coronel
Ornelas está com as mãos no bolso, em postura imponente.
61.

DETALHE. OLHOS DE CABO PEDRO BRANDÃO.


Cabo Pedro Brandão arregala os olhos.
PONTO DE VISTA DE CABO PEDRO BRANDÃO. Antônio Dó de pé,
braços cruzados à altura do peito, sob uma mangueira, em
atitude provocadora.
DETALHE. OLHOS DE ANTÔNIO DÓ.
Antônio tem olhar fixo, olha nos olhos do cabo Pedro Brandão.
CABO PEDRO BRANDÃO
(cochicha no ouvido do
anspeçada)
Ele tá lá debaixo do pé de manga
junto dos jagunço.
Breve silêncio.
ANSPEÇADA
(ao coronel)
É verdade, coronel. Ele não está
aqui não, senhor.
CORONEL ORNELAS
(sorrindo,
sarcasticamente)
É sempre bom acreditar no qu’eu
digo. Aqui nesse sertão eu falo e
não tem quem me remenda.
ANSPEÇADA
(constrangido)
Se o senhor me der licença, eu me
retiro. Muito obrigado pelo
acolhimento.
Coronel Ornelas, com um sorriso no rosto, faz um leve gesto
de cabeça em reverência.

100 EXT. ESTRADA - NOITE 100


Tudo escuro. O anspeçada e sua tropa seguem pela estrada.
Ouve-se o som dos passos dos policiais e dos cascos dos
cavalos pelo chão da estrada.
VEMOS contornos e sombras dos cavalos e dos policiais em
movimento de caminhada.
VEMOS contornos e sombras das silhuetas de UM SOLDADO que
caminha segurando as rédeas do seu cavalo. Ouve-se sua
respiração ofegante.
62.

SOLDADO
(ofegante)
A gente pode voltá hoje, não. Os
animal não vai aguentá a viagem de
volta.
ANSPEÇADA
Hein?
SOLDADO
(ofegante)
Os cavalo tá estafado. Todo mundo
tá fatigado e morto de fome. O
certo é passá a noite por aqui
mesmo.
ANSPEÇADA
Mas, como? Vancê ficou doido?
Parece que não regula. Seu Antônio
Dó está lá, com a jagunçada toda.
Será que vancê não viu? O coronel
está acoitando ele.
SOLDADO
Ver eu vi. Todo mundo viu. Sei,
não! O coronel parece sê um homem
de respeito. Se o senhor permiti,
eu volto lá pra falá com ele. S’ele
quisesse tinha acabado com a gente.
Breve silêncio.
ANSPEÇADA
Lá isso é verdade. Mas, coração de
gente é terra perto onde ninguém
vai.
SOLDADO
De qualquer jeito a gente vai
longe, não. S’ele quisé vem no
rasto e pega todo mundo do mesmo
jeito.
Breve silêncio.
ANSPEÇADA
Então vá. Nós estamos mesmo no mato
sem cachorro. Seja lá o que Deus
quiser.
63.

101 INT. RANCHO FAZENDA CORONEL ORNELAS - NOITE 101


Tudo escuro. Rancho de aproximadamente quatro metros de
comprimento por três metros de largura, sem paredes laterais,
coberto de palha. O anspeçada, o cabo e os soldados dormem
todos deitados ao chão.

102 INT. RANCHO FAZENDA CORONEL ORNELAS - AMANHECER 102


Primeiro clarão do dia. Coronel Ornelas chega ao rancho
acompanhado por QUATRO JAGUNÇOS armados. O anspeçada, os
policiais e cabo Pedro Brandão estão todos sentados e
deitados no chão do rancho. Alguns policiais estão dormindo.
CORONEL ORNELAS
Bom dia.
ANSPEÇADA
(levantando-se
rapidamente)
Bom dia, coronel.
CORONEL ORNELAS
(olhando em volta)
Vancês passaram bem a noite,
espero.
(ao anspeçada)
Quem é o comandante da tropa de
vancês?
ANSPEÇADA
É o alferes Octávio Campos do
Amaral.
CORONEL ORNELAS
(entregando um papel ao
anspeçada)
Entregue esta carta a ele. É para
desocupar o quanto antes o estado
de Goiás. É uma ordem.

103 EXT./INT. CASA QUALQUER SÃO FRANCISCO - DIA 103


UM MILITAR, com uniforme militar, bate à porta de uma casa.
Abre a porta UM CORONEL, que faz um gesto para que o militar
entre. Os dois entram na casa, o coronel fecha a porta.
Convida-o para sentar-se e em seguida senta-se.
MILITAR
A última missão de captura e prisão
de Antônio Dó e seu bando falhou.
As tropas se retiraram do sertão.
64.

104 INT. QUARTO CASA EM VARGEM BONITA - MADRUGADA 104


Antônio e Josefina estão dormindo. A luz no quarto é pouca,
apenas a que entra pelas frestas da janela e da porta.
Antônio abre os olhos, senta-se na cama. Antônio está de
calção e nu da cintura para cima. Ele pega um bibiano ao lado
da cama e o acende. Josefina acorda assustado com a
claridade.
JOSEFINA
O que é que vosmecê tem, homem? Tá
muito ced’ainda.
ANTÔNIO
(esfregando o rosto)
Tava matutano e o sono sumiu de
vez.
JOSEFINA
Vosmecê vem deitar.
Breve silêncio.
ANTÔNIO
(dando um suspiro)
Vou lá na Boa Vista para acertá
conta com Chico Peba e Marcelino
Vou no comércio, não.
Antônio se levanta e abre a janela.
PONTO DE VISTA DE ANTÔNIO. Vista da janela. O dia está quase
nascendo, a luz é pouca. Ouve-se o canto de passarinhos.
Josefina respira fundo.
JOSEFINA
Vosmecê se acalma. Vem deitá.
Amanhã vosmecê resolve o que vai
fazê.
Silêncio.
Josefina se levanta, está quase nua, e o abraça por trás. O
abraço dura alguns segundos. Antônio se desvencilha do abraço
de Josefina, vai até uma cadeira, onde estão penduradas uma
calça e uma camisa e começa a vestir-se.
ANTÔNIO
(vestindo-se)
O dia deve de tardá muito, não. Vou
dá uma volta por aí.
65.

JOSEFINA
Vosmecê se acalma.
Antônio sai do quarto e fecha a porta.

105 EXT. FAZENDA VARGEM BONITA -AMANHECER 105


Plano aberto. Está amanhecendo. Antônio caminha pelo cerrado
próximo à casa. Para por um instante, olha cerrado.
Plano fixo da paisagem do cerrado.
Volta a caminhar. Ouve-se o som dos passos de Antônio sobre a
folhagem. Chega perto a uma cabeceira. Tira do bolso fósforo
e uma cornicha. Junta alguns gravetos que cata do chão.
Acende o pavio de algodão da cornicha, batendo com o aço em
uma pedra. Acende a primeira chama nos gravetos no chão. Uma
labareda se forma. O fogo começa a se alastrar. Antônio se
afasta calmamente da região do incêndio e fica observando o
fogo. O fogo pega no manto de folhas secas sob as árvores,
eleva uma cortina de fumaça.
Plano aberto do incêndio se avolumando pelo cerrado. O fogo
sobe pelas escarpas, desce pelas quebradas, chega à copa das
árvores. Ouve-se o som do incêndio.
Antônio está em pé vendo o incêndio, com as mãos na cintura.
DETALHES. MÃOS, ROSTO E OLHOS DE ANTÔNIO.
Antônio olha o incêndio.
ANTÔNIO
(para si mesmo, em voz
baixa)
O fogo no cerrado é benéfico, ano
sim, ano não, mas na mata o fogo
destrói muita madeira.

106 EXT. RIO SÃO FRANCISCO PRÓXIMO À FAZENDA BOA VISTA - 106
ENTARDECER
Antônio e cerca de VINTE JAGUNÇOS atravessam o rio em três
canoas, cada uma delas conduzida por UM CANOEIRO. Chegam à
Boa Vista. Dois dos canoeiros ancoram suas canoas. Um deles
segue remando.
66.

107 EXT. CASA DE CHICO PEBA - NOITE 107


Canoeiro chega a uma casa. Do lado de dentro da porteira da
casa, três cachorros latem para o canoeiro. Do lado de fora,
o canoeiro se escora na porteira.
CANOEIRO
(grita)
Ô de casa.
Silêncio.
CANOEIRO (CONT'D)
(grita)
Sô Francisco, sou eu, o Mané
Canoeiro. Sô Antônio Dó tá acampado
aqui, na beirada do rio, na fazenda
dele.

Os cachorros latem.

CHICO PEBA (V.O.)


(grita, chamando pelos
cachorros)
Volt’aqui, Valente. Campeão, vem
cá.

Cachorros param de latir. CHICO PEBA sai pela porta da casa.

CHICO PEBA
(andando até a porteira)
Quem é que tá aí?

CANOEIRO
Sou eu, Mané canoeiro.

CHICO PEBA
O que é que vancê deseja a essa
hora da noite?

CANOEIRO
É sô Antônio Dó. Ele tá acampado
ali na beirada do rio, na fazenda
dele. A gente atravessou ele com um
bando de jagunço. Vosmecê se cuida.
(pequena pausa)
Eu vou aproveitá o resto da lua pra
atravessá, ainda hoje. S’ele ficá
sabeno qu’eu vim aqui, para avisá
vosmecê, ele será inté capaz de me
matá.
67.

108 EXT. CASA DE CHICO PEBA - MANHÃ 108


Antônio, segurando um fuzil e seus VINTE JAGUNÇOS, todos
armados, chegam à casa de Chico Peba. Entram pela porteira.
Andam pelo quintal. Antônio verifica os rastros no chão.
ANTÔNIO
(com raiva, grita)
Eita pau! Ele foi avisado. O diabo
carregue ele.
(pequena pausa)
Só pode tê sido um dos canoeiros.
Antônio, com raiva, chuta a porta, abrindo-a.
ANTÔNIO (CONT'D)
(aos jagunços)
Vancês põe fogo na casa.

Antônio olha uma vaca lambendo um cocho. Suspende o fuzil e


atira na vaca.

ANTÔNIO (CONT'D)
(aos jagunços)
Vancês descarna ela pra fazê o
armoço. A gente vai logo atravessá
o rio e voltá pra Vargem Bonita. O
cabra safado do Marcelino já deve
de tá sabeno e deve de tê fugido
também. Eles não perde por esperá,
Um dia eu pego eles.

Os jagunços tocam fogo na casa de Chico Peba.

109 EXT. PONTE DE PEDRAS DO RIO PARDO - DIA 109

Antônio, montado em sua mula, e seus VINTE JAGUNÇOS, montados


em seus cavalos, atravessam a ponte. UM MENSAGEIRO, com roupa
surrada e suja, se aproxima.
MENSAGEIRO
(entregando a Antônio uma
carta)
Foi o coronel João Maynart quem
mandou.

Antônio pega a carta da mão do mensageiro. Abre a carta e lê


em silêncio. Abre um sorriso. Olha para o mensageiro, de cima
a baixo.

ANTÔNIO
(ao mensageiro)
Eita pau!
(MORE)
68.

ANTÔNIO (CONT'D)
Vancê vai mais eu pra Vargem
Bonita. Vou pensá o que devo fazê.
O coronel Maynart é pessoa de
fiança.

110 INT. CASA QUALQUER PRÓXIMA A SÃO FRANCISCO - DIA 110


Pequena casa de construção de taipa, coberta por telhas. Se
encontram Antônio Dó e João Maynart. Os dois se olham
demoradamente e apertam as mãos.
JOÃO MAYNART
Como vai o senhor, seu Antônio?
ANTÔNIO
Vou viveno, como Deus é servido.
JOÃO MAYNART
Foi muita gentileza da parte do
senhor atender a meu chamado.
ANTÔNIO
Tenho nada contra vosmecê, coronel.
JOÃO MAYNART
Tenho certeza que o senhor não anda
satisfeito com a vida que tá
levando. Uma vida de peregrinação
sem termo, sem ponto de chegada,
sem parada de sossego.
ANTÔNIO
(com olhos cravados no
chão, testa enrugada)
É! Vosmecê tem razão. Essa minha
vida é vida de cachorro sem dono.
Breve silêncio.
JOÃO MAYNART
(aproximando-se mais de
Antônio)
Sou conhecedor que o senhor não é
culpado do que tem acontecido. Quem
manda hoje em São Francisco sou eu
e posso garantir ao senhor um
julgamento justo, com garantia de
absolvição.
Antônio levanta o olhar e olha João Maynart nos olhos.
69.

ANTÔNIO
Vosmecê garante, e esse seu criado
tem fé. Apresento, não. Nenhum
cachorro do governo bota mais as
mão nesse seu criado aqui. Só se
for morto. Confio na polícia, não.
JOÃO MAYNART
(com cara de espanto)
Essa luta do senhor precisa ter um
fim. Quem conhece bem o senhor como
eu conheço, sabe que o senhor não é
homem de maus bofes.
ANTÔNIO
Só quando eu recebê a paga dos meus
prejuízo. Enquanto isso, eu ando
por aí, ajudo quem precisá de ajuda
contra esses home.
JOÃO MAYNART
Nós promoveremos a prisão e o
julgamento do assassino de Honório.
É outra garantia qu’eu dou para o
senhor.
Breve silêncio. Antônio olha o chão.
ANTÔNIO
Tou matutano nas promessa de
vosmecê e tou ciente que é
patranha, não. Marcelino já tá
pagano seus pecado nas profunda dos
inferno, carece de julgamento, não.
(pausa)
Nas Pedra tem outro homem do
calibre de vosmecê, não.
(pausa)
Vosmecê sabe como é o inferno?
JOÃO MAYNART
É um lugar de condenação e grande
sofrimento.
ANTÔNIO
A cadeia é um inferno.
Silêncio.
ANTÔNIO (CONT'D)
Entrego, não. Não falo por agravo.
Tanto sacrifício por nada! Tenho
espírito de purgá a morte em vida
em uma prisão, não.
(MORE)
70.

ANTÔNIO (CONT'D)
Só depois de morto. Ora veja
vosmecê s’eu tenho ou s’eu não
tenho cá minhas razão. Eles me
prendeu, sem razão, e me espancou
amarrado naquele pé de umbu. Tou
negando a firmeza pra vosmecê, não.
Marcelino furtou gado de Arcanja e
da Dinha, inda matou Honório. Eita
pau! Chico Peba tomou uma parte de
minhas terra e eu girano mundo, de
déu em déu, zanzano sem ponto de
chegada, e vosmecê tá quereno qu’eu
me entregue com as mão abanano!
Eita pau! Entrego, não.
JOÃO MAYNART
É! Não tiro a razão do senhor.
Silêncio. Ambos têm o olhar fixo no chão.
JOÃO MAYNART (CONT'D)
O senhor pode voltar em paz. Posso
garantir que a polícia não vai mais
perseguir o senhor. O senhor pode
viver em paz.

ANTÔNIO
Vivo, não. Em paz só depois de
morto. Agradeço a vosmecê essa
promessa. O primeiro cachorro do
governo que me encontrá vai querê
aparecê. Vosmecê pode ficá em paz.
Eu volto lá nas Pedra mais, não.
Volto, não.

111 INT. SEDE DA FAZENDA DO CORONEL ORNELAS 111

A ESPOSA de coronel Ornelas e Josefina estão na cozinha.


Antônio e coronel Ornelas estão na sala, assentados em volta
da mesa.
ANTÔNIO
Tou nessa vida, coronel, sem ponto
de chegada. Eu tenho esperança de
voltá lá pras Pedra, não. Acabou.
Tá tudo acabado, Eu inté que queria
passá uns tempo num garimpo,
pr’esse povo s’quecê de minha
pessoa. Fiquei sabeno que tá dando
diamante lá no Rio Claro, mas o
major Saint-Clair Valadares vai
dexá eu garimpá por lá, não.
71.

CORONEL ORNELAS
O major Saint-Clair Valadares é
pessoa de compreensão. Se eu falar
com ele, ele acomoda vosmecê por
lá. A mulher dele, Sá Emília, é
minha prima e é prima de João Duque
também. Vosmecê ajudou João Duque
naquele peleja dele com Josefina lá
na Cariranha. Um dia desses vou
escrever a ele.
ANTÔNIO
Sendo assim, vou esperá.

112 PLANOS DOCUMENTAIS - RIO CLARO 112


Planos abertos do Rio Claro. O plano se fecha nas águas do
rio.

113 EXT. MARGEM DO RIO CLARO - ENTARDECER 113


Antônio, cerca de 57 anos, barba crescida e branca, está
sentado na margem do rio sob a sombra de um jatobazeiro. Está
com os braços cruzados sobre os joelhos. Retira o cigarro que
está atrás da orelha e o acende. Dá um trago no cigarro e
solta a fumaça devagar.
PONTO DE VISTA DE ANTÔNIO. As águas do rio, uma pequena
cascata formada pelo cascalho do leito, as folhas das árvores
balançando. O sol está se pondo.
Ouve-se o som das águas do rio e de passarinhos cantando.
Aproximam-se de Antônio dois jagunços, MARTINHO BERTO e
MIGUEL FOGOSO. Antônio olha para eles e volta a olhar o rio.
Os dois jagunços se sentam à margem do rio, ao lado de
Antônio.
ANTÔNIO
(aos jagunços)
Já vai pá mai de ano nesse garimpo.
É paradeza demais. Tô cansado.
Silêncio.
Plano aberto mostra Antônio, Miguel e Martinho. Em segundo
plano, o sol está se pondo.
ANTÔNIO (CONT'D)
A gente vai mudá pra Vereda da
Aldeia. Fica mais perto lá das
Pedra e da Vargem Bonita.
(MORE)
72.

ANTÔNIO (CONT'D)
Fica mais perto do rio Acari. A
gente vai acampá por lá, depois a
gente volta pra buscá o gado, que
tá nas terra do major Saint-Clair
Valadares.
(pausa)
O coronel João Maynart garantiu que
os cachorro do governo vai mais
atazaná minha vida, não.

114 EXT. VILA DA BARRA DA VACA - DIA 114


Antônio, Miguel Fogoso, Martinho Berto e mais DOIS
COMPANHEIROS chegam à vila da Barra da Vaca montados em seus
cavalos. Antônio está montado na mula. É cerca de meio dia. A
luz do sol está forte. Não há nenhuma nuvem no céu. O povoado
está vazio, não há pessoas na rua.
PONTO DE VISTA DE ANTÔNIO. De uma casa, a cerca de cinquenta
metros, saem QUATRO HOMENS IDOSOS carregando um caixão e uma
mulher, FRANCILHA, toda vestida de preto e com um véu preto
cobrindo-lhe o rosto e a cabeça.
Antônio, Miguel, Martinho e os dois companheiros amarram seus
animais embaixo de uma mangueira.

115 EXT. VILA DA BARRA DA VACA - DIA 115


Martinho, Miguel Fogoso e dois dos homens idosos seguram o
caixão, seguindo pelas ruas do povoado. Antônio caminha ao
lado de Francilha. Olha pare ela.
PONTO DE VISTA DE ANTÔNIO.
Antônio nota que Francilha está grávida.
Os dois companheiros de Antônio caminham um pouco mais atrás,
ao lado dos dois homens idosos que antes seguravam o caixão.

116 EXT. CEMITÉRIO/VILA DA BARRA DA VACA - DIA 116


Antônio, Francilha, os quatro homens idosos, Martinho, Miguel
e os dois companheiros estão ao redor de uma cova. Antônio
olha Francilha e se aproxima dela.
ANTÔNIO
(à Francilha)
Quem era o finado?
73.

FRANCILHA
(com os olhos molhados de
choro)
Ele era meu marido.
(olhando Antônio, como se
quisesse identificá-lo)
Vosmecê é sô Antônio Dó. Eu
reconheci logo que era vosmecê.
ANTÔNIO
Quem era ele?
FRANCILHA
Ele era conhecido por Neco da
Taboquinha. Não sei se vosmecê
conheceu ele. Acho que vosmecê deve
de tê conhecido ele, não.
ANTÔNIO
Conheci, não. E vancê? Qual é a sua
graça?
FRANCILHA
Francilha. Sou daqui, não.
ANTÔNIO
Donde é que vancê é?
FRANCILHA
Pro mode que vosmecê procura?
ANTÔNIO
Por nada, não.
FRANCILHA
Sou dali da banda de lá do rio, da
Serra do Meio.
ANTÔNIO
O que foi que sucedeu com ele?
FRANCILHA
Vosmecê ficou sabeno, não? Foi uma
desgraça. Eles furou ele de faca.
Foi três cabra lá na venda do sô
Malaquias, na noite de ontem pra
hoje. Eles matou ele. Em uma briga
e foi pros Morrinho, pra festa,
bebê cachaça. Aqui tem polícia,
não.
ANTÔNIO
Quem foi que matou ele?
74.

FRANCILHA
(a fala estremecida pelo
choro)
A gente sabe, não. Só sabe que foi
três cabra de fora, que tava de
passagem.
(breve silêncio, tentando
conter o choro)
Sô Malaquias disse que um deles
montava um cavalo castanho claro,
que tava muito magro, outro tava em
uma besta tordilha, mediana,
cambaia e o outro tava montado em
um cavalo baio gateado, de crina
aparada.
ANTÔNIO
Por mal pergunto, quantos anos
vancê tem de casada?
FRANCILHA
Sô Antônio, a gente casou esse ano,
no mês de junho, na festa da Serra
das Arara. Faz ano, não.
ANTÔNIO
Vancê parece que tá pejada?
FRANCILHA
(dá um leve sorriso)
Já tá dando pra notá?
(acariciando a barriga)
Já tá com quatro mês.
ANTÔNIO
Vancê tem amigo, nem parente por
aqui, não?
FRANCILHA
Tenho, não. Tenho pai e mãe mais,
não.
Breve silêncio.
ANTÔNIO
Vancê mora naquela casa de onde
saiu o enterro? Posso te acompanhá
até lá pra mode vancê não caminhá
sozinha.
75.

117 INT. CASA DE FRANCILHA - DIA 117


Pequeno casebre de pau a pique, coberto por palha, sustentada
por escoras, piso de terra batida. De móveis, há uma mesa, e
um banco. Francilha está sentada no banco. Antônio está
sentado no chão, encostado em uma das paredes, de frente para
outra parede. Há um fogão à lenha apagado. Francilha está
olhando o chão, parece envergonhada. Antônio olha a parede à
sua frente.
PONTO DE VISTA DE ANTÔNIO.
DETALHE. PAREDE.
Antônio se vira e olha pra Francilha.
ANTÔNIO
Vancê vai ficá aqui sozinha?
FRANCILHA
Eu tenho pra donde ir, não. Vou
ficando por aqui, enquanto Deus for
servido.
Breve silêncio. Antônio volta a olhar a parede. Francilha
tira o véu e o joga em cima da mesa, mostrando o rosto por
inteiro e os cabelos pretos e lisos, cobrindo os olhos.
Francilha afasta os cabelos dos olhos.
DETALHES. ROSTO DE FRANCILHA. OLHOS.
Antônio olha fixamente para Francilha. Francilha sorri
disfarçadamente.
DETALHE. ROSTO DE FRANCILHA. SORRISO.
ANTÔNIO
Eu tava matutano. Se vancê não tem
pra donde ir, vancê bem que podia
ir lá pro acampamento no rio Claro.
Lá não falta comida e nem serviço
pra vancê. A gente tá carente de
uma cozinheira.
FRANCILHA
Neco inté tinha falado em procurá
vosmecê lá no garimpo, pra arranjá
serviço. Ele era um homem valente,
mas tinha bom coração. Ele era um
homem de arruaça, não. Era mau,
não. Ele gostava duma festa, mas
era trabalhadô. Ele ficou com medo
de vosmecê querê ele, não.
(MORE)
76.

FRANCILHA (CONT'D)
O povo fala que vosmecê não aceita
qualquer um pra trabalhá com
vosmecê. É preciso sabê quem é e
donde veio.
ANTÔNIO
(sacudindo a cabeça em
gesto aformativo)
Lá isso é verdade, mas vancê tá
desamparada. Se vancê quisé pode
arrumá a trouxa agora mesmo. Dos
Morrinho a gente já volta direto
pro acampamento.
FRANCILHA
Vosmecê tem mulher, não?
ANTÔNIO
Tenho, não.
FRANCILHA
O finado inda tá quente. Fica bem
eu ir assim, assim, sem conhecê
vosmecê direito, não.
ANTÔNIO
Se a gente acabá com a raça desses
cabra safado, o finado vai inté
gostá.
(pausa. Olha firme nos
olhos de Francilha)
Por mal pergunto, quantos anos
vancê tem?
FRANCILHA
Pelo batismo, eu sou da era de
noventa e sete.
ANTÔNIO
(pega no braço dela,
pressionando-o com a mão)
Vancê arruma os traste. Passo aqui
logo mais e levo vancê na garupa. A
gente cria o menino na hora qu’ele
nascê. Tenho filho, não.
FRANCILHA
(dando um leve sorriso)
Tem muita coisa pra levá, não.
Antônio sorri.
77.

FRANCILHA (CONT'D)
Carece vosmecê ir lá nos Morrinho,
não. A gente vai direto pro
acampamento. O que foi feito, tá
feito, tá por fazê, não.

ANTÔNIO
(sorrindo)
Gostei de vancê.

118 EXT. CASA VEREDA DA ALDEIA - DIA 118

Antônio, cerca de 67 anos, cabelos grisalhos, está sentado no


alpendre de sua casa. CRISTINA, cerca de sete anos, cabelos
pretos e compridos, está sentada no seu colo. Antônio
acaricia seus cabelos. Um bando de jandaias passa voando.

119 INT. CASA QUALQUER 119

UM CORONEL está sentado a uma mesa de trabalho, ajeita papéis


e fuma. À sua frente, está sentado UM HOMEM.

CORONEL
(ao homem)
Você chama pra mim o Fulô Taboca.
Ele deve de tá aí fora.

O homem se levanta. Ouve-se o som de uma porta abrindo e


fechando.

O coronel continua ajeitando os papéis. Escreve algo. Dá um


trago no cigarro. Ouve-se o som de uma porta abrindo. FULÔ
TABOCA, homem de 35 a 40 anos, pele morena, senta-se de
frente para o coronel.

CORONEL (CONT'D)
(a Fulô Taboca)
Vancê prest’assunto no qu’eu vou
falar. Seu Antônio Dó se meteu com
meu irmão e ainda tomou dele três
conto de réis. Ele deve de tá lá na
Boa Vista, nas terras de seu Adão
Vieira. Vancê arreia um cavalo
agora mesmo e vai lá e entra no
bando dele. Vancê vai matar ele, na
hora que tiver jeito. Tem pressa,
não. Vancê leva o Zé Faria. É um
cabra bom de serviço.

O coronel levanta-se da cadeira e anda em direção à porta.


Fulô Taboca o segue. O coronel abre a porta.
78.

CORONEL (CONT'D)
Quando vancê tiver acabado o
serviço, volta pra cá. Eu vou pagar
a vancê oito contos de réis pelo
serviço.

Fulô Taboca faz um sinal afirmativo com um gesto de cabeça e


sai pela porta. O coronel fecha a porta.

120 EXT. FAZENDA VEREDA DA ALDEIA - DIA 120

Planos abertos mostram uma grande fazenda, à margem da Vereda


da Aldeia, perto da Vila das Araras. Múltiplos cortes mostram
as várzeas, plantações de arroz, pastos onde pasta o gado,
uma casa com um quintal afrente, protegido por cerca de
madeira, e pequenas casinhas rústicas de pau a pique.

CORTA PARA:

121 EXT. PORTA DAS CASINHAS DE PAU A PIQUE/FAZENDA NA VEREDA DA


121
ALDEIA - DIA

TRÊS JAGUNÇOS estão conversando no alpendre na frente das


casinhas de pau a pique. Entre eles está Fulô Taboca e Zé
Faria.

FULÔ TABOCA
Já tou ficano cansado de ficar
parado.

ZÉ FARIA
Tá todo mundo cansado. Tem gente
falano de ir embora.

JAGUNÇO III
Seu Antônio tá rico e acomodado. É
o que todo mundo tá falano.

ZÉ FARIA
Ele tá rico. Ele tem uma garrafa
entupida de diamante, garimpado lá
no Rio Claro. É o que o povo diz.

FULÔ TABOCA
Sei, não. Seu Antônio parece que tá
quereno descansá dessa vida.
Qualquer dia desse, ele dispensa
todo mundo.
79.

ZÉ FARIA
Dispensa, não. Ele é que nem bambu.
Vive só, não. Ele tem medo dos
cachorro do governo.
FULÔ TABOCA
Tem mais, não.
JAGUNÇO III
Pode sê. Ele tem inimigo pra toda
banda. Fica sem a gente por perto,
não. Fica, não.
FULÔ TABOCA
Ele tá rico.
(pausa)
A gente bem que podia formá um
bando e saí desse paradeiro.
JAGUNÇO III
Tinha pensado nisso, não. O pessoal
da Bahia larga dele, não.
FULÔ TABOCA
Pode sê. Mas a gente carece de
pensá neles, não. No Brejo dos
Crioulo, na Ponte do Salobro e na
Gameleira, vancê arranja mais
gente. Lá tem muito cabra de
corage.
JAGUNÇO III
Pra formá um bando carece de
dinheiro.
FULÔ TABOCA
Se vancê quisesse, vancê podia
conquistá a Francilha. Ela pode
pegá a garrafa de diamante.
JAGUNÇO III
Vancê tá doido? Ela aceita, não.
Aquilo ali a gente vê com os’oio e
come com a testa.
ZÉ FARIA
Sei, não. Ela tem olhado pro Zé
Olímpio, assim como de coisa que
não qué nada, se oferecendo.
FULÔ TABOCA
A gente pode chamá o Zé Olímpio.
Será que ele topa?
80.

122 EXT. PORTA DAS CASINHAS DE PAU A PIQUE/FAZENDA NA VEREDA DA


122
ALDEIA - NOITE
UMA JAGUNÇO fuma sozinho em frente à sua casinha de pau a
pique. Francilha passa em frente às casinhas carregando um
balde cheio d’água. Eles trocam olhares desejosos. Ela sorri
para ele.

123 INT. QUARTO DA CASA FAZENDA NA VEREDA DA ALDEIA - AMANHECER


123
Antônio, setenta e poucos anos, barba branca e cabelos
grisalhos, está dormindo em sua cama. Antônio está vestindo
um calção e está nu da cintura para cima. A luz do nascer do
dia incide pelas frestas da janela e da porta. Antônio abre
os olhos, senta-se na cama, espreguiça-se, abrindo os braços.
Antônio olha seu kelé na cabeceira da cama, apanha-o. Faz o
gesto de colocá-lo no pescoço. Interrompe o gesto. Amarra o
kelé na algibeira. Ouve-se sons de água e de uma vasilha de
metal que cai no chão, vindo da cozinha. Se levanta. Vai até
uma cadeira, onde estão penduradas uma blusa e uma calça, e
se veste.

124 INT. COZINHA FAZENDA NA VEREDA DA ALDEIA - AMANHECER 124


Francilha, vestida de pijama, está cuidando dos afazeres,
mexe nas vasilhas, enxuga sua mão em um pano, seca vasilhas.
Antônio chega à cozinha, abraça Francilha por trás, colocando
seus braços em volta de sua cintura. Francilha sorri. Antônio
se afasta. Francilha olha Antônio.
PONTO DE VISTA DE FRANCILHA.
DETALHES. PEITO DE ANTÔNIO. ALGIBEIRA. KELÉ.
Antônio olha pela janela.
PONTO DE VISTA DE ANTÔNIO. O dia está nascendo.
Ouve-se o canto de um galo.
FRANCILHA
Esse vento tá forte. Tou careceno
de lenha pra acender o fogão, mas
inda não tou vestida direito pra
saí de casa.
ANTÔNIO
Vou apanhá pra vancê.
CORTA PARA:
81.

125 EXT. CASA DA FAZENDA NA VEREDA DA ALDEIA - AMANHECER 125


Antônio sai da casa e fecha a porta, anda pelo quintal. Três
cachorros correm ao seu encontro e o cercam, pulando alegres.
Fulô Taboca aparece na cerca do quintal, a alguns metros de
Antônio.
FULÔ TABOCA
(saltando a cerca para
dentro do quintal)
Pode dexá qu’eu apanho pra vosmecê.
ANTÔNIO
Carece, não. Eu mesmo apanho.
Fulô Taboca se aproxima de Antônio. Fulô Taboca olha em volta
e vê uma mão de pilão bem ao seu lado. Apanha a mão de pilão.
Antônio se abaixa para recolher um toco de lenha. Fulô Taboca
bate forte com a mão de pilão na cabeça de Antônio. Antônio
cai no chão. Fulô Taboca bate mais duas vezes na cabeça de
Antônio. ATENÇÃO: não se vê Antônio, apenas os gestos de Fulô
Taboca.
FRANCILHA (V.O.)
(grita alto)
Não!
José Olímpio se aproxima, segurando uma garrucha.
CORTA PARA:

126 EXT. RIO SÃO FRANCISCO - AMANHECER 126


Plano fixo do rio São Francisco. Ouve-se o som de cinco
tiros.

127 EXT. ACAMPAMENTO OFICIAIS - AMANHECER 127


CINCO POLICIAIS estão em um acampamento, sentados no chão.
Escutam o som dos tiros e se levantam, assustados.
POLICIAL I
O que é que tá acontecendo lá na
casa de seu Antônio Dó?
POLICIAL II
Será qu’eles descobriu tudo?
82.

128 EXT. CASA DA FAZENDA NA VEREDA DA ALDEIA - AMANHECER 128


Francilha chora sentada na soleira da porta. Em seu rosto, a
expressão de uma dor profunda. Francilha se levanta,
cambaleante e caminha a passos lentos. Ajoelha-se ao lado de
Antônio, chorando. ATENÇÃO: não vemos o corpo de Antônio.

129 PLANOS DOCUMENTAIS - IMAGENS SUBMERSAS DO RIO SÃO FRANCISCO


129
3 a 4 planos mostram imagens submersas do rio São Francisco.
O kelé de Antônio Dó cai lentamente no fundo no rio.

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