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Table of Contents

Carmen Garcia
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Epílogo
Carmen Garcia

A Anos-Luz

EGO
Capítulo 1
Lia

O meu nome é Lia e sou uma princesa de Vory. Filha


primogénita do rei Kodryn e da rainha Verna da Segunda Era,
completo amanhã vinte e um anos terrestres. E porque é que o
meu aniversário vai ser uma data especial? Porque ficou acor-
dado desde o meu nascimento que, no dia imediatamente a
seguir ao meu vigésimo primeiro aniversário, deveria contrair
matrimónio com o príncipe terrestre Arthur. Este acordo,
estabelecido entre o meu pai e o rei James da Terra, foi a
derradeira tentativa de pacificar um universo que nos últimos
séculos tem vivido uma guerra que custou biliões de vidas a
ambos os planetas.
Segundo os registos da Primeira Era, tudo começou
quando os terrestres conseguiram estender a sua exploração
espacial para lá dos limites da Via Láctea e encontraram Lor, a
nossa galáxia. Ao perceberem que existia uma civilização
inteligente e extraordinariamente desenvolvida num dos
planetas, os terrestres tentaram uma aproximação amigável
que resultou durante alguns anos. Mas a ganância e a escassez
de recursos naturais terrestres falaram mais alto e, ao per-
ceberem a imensa riqueza de Vory, os governantes da Terra
tentaram dominar-nos e colonizar o nosso planeta através da
força. Aquilo que os líderes terrestres não calcularam foi que,
apesar de nos superarem em número, a nossa ciência estava
profundamente mais desenvolvida que a deles e, por isso, onde
a Terra atacava em força, nós respondíamos com armas de
destruição maciça, criadas em laboratório pelas mentes mais
brilhantes do nosso pequeno planeta.
O horror foi infinito e os três séculos que se seguiram
foram de puro terror com armas nucleares a serem usadas e
grandes zonas dos planetas a serem dizimadas. As populações
da Terra e de Vory caíram para menos de 10% do seu valor
inicial e os sobreviventes aglomeraram-se nas áreas que
escaparam ao massacre. Em Vory, o único continente que
sobreviveu foi Isla e, na Terra, todos os humanos estão
concentrados na zona que os livros da Primeira Era dizem
corresponder ao antigo continente Europeu que, na Segunda
Era, retomou o nome que lhe foi dado no início de todas as
eras: Pangeia.
No nosso planeta que, ao contrário da Terra não gira em
torno de uma única estrela, mas de oito estrelas mais
pequenas, sempre tivemos uma organização semelhante à
monarquia terrestre. O meu pai é filho do rei Rome XXVIII,
que era filho de Kodryn VI que, por sua vez, era também filho
de um rei. A linha de sucessão nunca foi interrompida e nunca
tivemos uma mulher como rainha suprema. Graças à nossa
avançada ciência, há mais de cinco séculos que conseguimos
controlar a natalidade e seleccionar antecipadamente o género
de cada bebé que nasce. Assim, todos os casais de Vory têm
apenas dois filhos, um homem e outro mulher. Desta forma,
conseguimos manter a população em números controlados e
evitamos a escassez de recursos naturais que foi a principal
causadora da Guerra das Eras que quase dizimou o universo.
Já a maioria dos terrestres, até ao dia do massacre da mudança,
votava numa série de candidatos para escolher o seu
representante máximo. Mas depois do dia mais negro, ao per-
ceberem que estavam quase completamente dizimados, os
terrestres nomearam Louis Costello, o mais astuto dos
cientistas terrestres, como rei. Louis I da Segunda Era, sensato,
iniciou as conversações intergalácticas no sentido de conseguir
a paz. Mas só com a subida ao trono do seu filho James I, o
acordo foi finalmente firmado.
Acontece que, para meu profundo desgosto, todos
pareceram achar que a melhor forma de garantir que a paz
fosse duradoura consistia em unir ambos os planetas pelo
sangue e assegurar futuros monarcas híbridos. É por isso que
eu casarei com Arthur e que o meu irmão Rome casará com
Elena. Os dois filhos dos reis de Vory unidos pelo matrimónio
aos dois filhos dos reis da Terra.
Nasci e fui educada para cumprir esta missão, mas saber
do meu destino desde sempre, não impede que o meu sangue
prateado pareça transformar-se em lama cada vez que penso
sobre a minha vida a partir de amanhã, dia em que partirei para
a Terra… Comigo, na nave programada para aterrar nos
jardins do palácio de Pangeia, apenas seguirá Zira, a tutora que
me tem ensinado quase tudo aquilo que preciso saber sobre o
planeta que vai ser a minha nova casa. Não é como se Zira
alguma vez tivesse abandonado Vory mas, de entre todos os
habitantes de Isla, foi ela quem mais estudou sobre a Terra e
que melhor domina o idioma do planeta que um dia foi azul.
Acontece que, tal como eu e todos os voryanos vivos, Zira
nunca viu um terrestre.
Ninguém sabe ao certo qual foi o último voryano que
realmente estabeleceu contacto visual com um habitante da
Terra. Aquilo que todos sabemos é que no século anterior à
eclosão da guerra, a mulher do Rei Salomi III, conhecida na
história de Vory como rainha maldita, enlouqueceu depois de
ser tocada por um terrestre macho e acabou por partir com ele
para a Terra abandonando os próprios filhos. O Rei, furioso e
magoado, fez aprovar uma lei onde proibia o contacto entre as
nossas mulheres e os machos da Terra e, quando a guerra
começou, essa lei foi estendida a todos os contactos,
independentemente do género. Zira acredita que a rainha
maldita fugiu tomada pela luxúria. E foi com esta história que
ela me deu a mais angustiante de todas as notícias: os
terrestres optaram por continuar a procriar como na Primeira
Era, corpo com corpo, pele com pele.
Segundo Zira, apesar de não sermos exactamente iguais
do ponto de vista biológico, combinamos de forma simples
com os habitantes da Terra e podemos reproduzir-nos com eles
pela via natural. Os nossos cientistas têm vindo a testar esta
compatibilidade ao longo dos anos e verificaram que voryanos
e terrestres são sexualmente compatíveis em mais de 99%.
Mas isso não diminui nem um bocadinho a minha angústia
porque nunca, nem por um momento, imaginei que os
terrestres, depois de todos os estragos que a luxúria provocou
no planeta, mantivessem a prática da procriação primitiva em
que homem e mulher se deitam juntos numa profunda mistura
de corpos e sentidos.
Se eu fosse uma jovem plebeia, nascida longe dos
aposentos reais do palácio de Isla, teria que apresentar-me ao
conselho de cientistas responsáveis pela minha área de
residência no dia em que, pelas contas terrestres, fizesse
dezoito anos. Nesse dia, os cientistas haviam de colher uma
amostra do meu sangue e fazer com ela várias medições.
Depois, eu seria dispensada e a equipa responsável pelo meu
processo encarregar-se-ia de encontrar-me um voryano do gé-
nero masculino cujos genes potenciassem os meus. No dia em
que fizesse vinte e um anos, seria apresentada ao meu par,
receberíamos em transfusão os sangues um do outro para
firmar o nosso compromisso, e seriam colhidos os nossos
gâmetas para que a fecundação acontecesse em laboratório.
Nunca teríamos que nos tocar e jamais seríamos expostos à
luxúria carnal que tanto mal fez aos povos na Primeira Era.
Viveríamos juntos e criaríamos os nossos dois filhos. Seríamos
amigos com um objectivo comum, teríamos uma vida
tranquila e aprenderíamos a gostar-nos e a respeitar-nos.
Talvez um dia nos viéssemos a amar.
Por estranho que possa parecer, a verdade é que os
séculos provaram que os casais formados pelos cientistas
resultavam bastante melhor a longo prazo do que aqueles que
se formavam baseados em paixões e desejos efémeros. A
compatibilidade encontrada no laboratório era sempre tão alta
que a maioria dos casais acabava por desenvolver fortes
sentimentos ainda que, na prática, nada de carnal acontecesse.
Mas, infelizmente, eu não sou uma pessoa comum e, por
isso, não sei o que é que o meu futuro marido vai desejar de
mim. Teremos, obviamente, que procriar. É esse o grande
motivo pela qual foi combinada a nossa união: os futuros reis
de ambos os planetas devem ser metade terrestres e metade
voryanos. Espero que a minha pele tão clara e fria e que a
minha íris violeta não assustem Arthur e que possamos, pelo
menos, conversar. Com sorte, ele será aberto à ideia da
colheita dos gâmetas e não teremos que comportar-nos como
os animais que existiam em Vory antes da Primeira Era ter
início. Talvez, apesar de tudo, a nossa vida possa não ser assim
tão diferente daquela que teria se ficasse aqui.
E é a esta esperança que me agarro enquanto subo para a
cama onde dormirei em Vory pela última vez. Rezo à Origem e
peço-lhe que me dê força para suportar a vida num planeta a
tantos anos-luz do meu.
Capítulo 2
Lia

O formigamento que sinto debaixo dos pés é um sinal


claro de que a descolagem da nave que me há-de conduzir à
Terra está para breve. Espreito mais uma vez pela janela e o
meu olhar encontra o da minha mãe. Apesar de geralmente
sermos um povo contido na demonstração dos nossos
sentimentos, vejo grossas lágrimas a escorrerem-lhe pelo
rosto. O meu pai, tentando manter a sua postura régia, vai-lhe
acariciando as costas e repetindo baixinho o mantra que o
manteve firme todos estes anos: “é por um bem maior”.
É verdade que todos sabíamos que este dia chegaria, mas
nem por isso a despedida é menos dolorosa. Em vinte e um
anos de existência, nunca passei mais do que um dia longe dos
meus pais e agora, quase de repente, sou forçada a partir para
um planeta que desconheço, numa galáxia diferente da minha.
Sinto-me pequenina quando a nave finalmente descola e
cerro os olhos com força enquanto gravo na memória as cores
e os cheiros de Vory. Espero que Arthur um dia me pergunte
como é o meu planeta e que eu possa falar-lhe dos nossos
palácios de gelo, dos mares prateados que iluminam Isla e das
nossas árvores eternas. Talvez para um terrestre, acostumado a
habitar um planeta que gravita em torno de uma estrela tão
grande como o sol, seja difícil aceitar a ideia de que em Vory o
dia e a noite não se distinguem. A nossa iluminação, cor de
prata, é delicada e constante e, segundo os relatos da Primeira
Era, bem mais fraca que a iluminação da Terra no período a
que chamam dia.
Apesar de toda a beleza e riqueza naturais que possuímos,
quando a Guerra das Eras chegou ao fim, Vory era um planeta
à beira da ruína e, por isso, inúmeras modificações no nosso
estilo de vida foram necessárias. Para que essas modificações
fossem efectivas, foi necessário redigi-las em forma de lei.
Desde o final da guerra que a nossa alimentação, por exemplo,
passou a ser realizada apenas com base em plantas e que a
suplementamos com pílulas produzidas nos laboratórios reais.
A punição para quem abater alguma forma de vida animal para
consumo é a prisão perpétua. Até as nossas roupas mudaram
depois do dia do massacre final, sendo agora expressamente
proibido vestir peças com fibras naturais e, para evitar a
luxúria que atacou a rainha maldita e ajudou a conduzir-nos
para a guerra, nenhuma peça de roupa pode deixar expostas as
pernas ou a totalidade dos braços. Usar a cor vermelha é um
privilégio da família real e a túnica de capuz que hoje trago, de
um vermelho tão forte e de um material tão brilhante que
chega a ferir quem olha, foi produzida especialmente para esta
ocasião.
Acreditem que a escolha da roupa com que devia
apresentar-me pela primeira vez na Terra foi pouco
consensual, com os meus pais a defenderem que devia optar
por uma cor mais discreta e que não evidenciasse tanto a
minha altura nem contrastasse tanto com os meus olhos
violeta. Mas eu insisti e, talvez por perceberem nesta escolha o
meu único acto de rebeldia em todos estes anos, os meus pais
acabaram por ceder. Sou uma princesa, devo apresentar-me
como uma princesa.
Chegarei a Pangeia com os meus cabelos negros e
ondulados cortados à altura dos ombros, com a pele pálida das
minhas mãos exposta à luz do sol e com o meu metro e oitenta
de altura envolto num tecido escarlate que brilha quase tanto
como o meu sangue de prata. Mas chegarei com o rosto
coberto para cumprir aquilo que ficou acordado no dia em que
foi assinada a paz entre os planetas: o príncipe da Terra e a
princesa de Vory só poderão descobrir o rosto depois do
casamento consumado. O que ainda preciso descobrir é qual o
significado de consumação para os terrestres.
Bastará a troca dos sangues como para os voryanos?
Precisaremos de realizar o ritual físico da penetração como os
povos primitivos da Primeira Era? Se não precisarmos, qual
será então o sentido de nos obrigarem a cobrir o rosto? Terão
medo que Arthur me ache repugnante? Ou terão medo que seja
ele quem me repugne? Pelo que me foi dito sobre as
características físicas dos humanos, não sei se conseguirei
tolerar a proximidade física de um. Segundo Zira, os machos
terrestres perdem um líquido salgado pela pele quando sentem
muito calor e uma generosa porção do seu corpo está coberta
por pêlos. E só de pensar nisso, sinto uma repulsa gigante.
Além disso, segundo os poucos registos antigos disponíveis,
os homens têm uma propensão natural para as relações físicas
e gostam de praticar actos que Zira se recusa a descrever-me
por serem condenáveis pela moral de Vory.
O ano passado, curiosa, tentei questionar a minha mãe
sobre estas práticas antigas. Mas a pele pálida do rosto da
minha mãe ruborizou e foi com o seu tom de voz de
advertência que me disse que uma princesa, em nenhuma
circunstância, deve pensar ou falar sobre tais actos. Quando
retorqui que era injusto que me enviassem para a Terra tão
despreparada, ordenou-me que me retirasse da sala e que
orasse à Origem e lhe pedisse que enchesse os corações do Rei
James e de Arthur de compaixão, evitando assim que
decidissem sujeitar-me a tão baixas práticas.
No meu planeta, acreditamos que a mente tem que ser
superior ao corpo em todas as circunstâncias e desde pequenos
somos treinados para ignorar as necessidades físicas
relacionadas com a sexualidade. Ainda assim, quando
atingimos a idade física ideal para a procriação, é-nos
injectada uma substância que inibe a libido e que deve ser
reforçada a cada três anos. Trago na bagagem uma seringa
carregada com este fármaco e deverei pedir à física do palácio
de Pangeia que me injecte o seu conteúdo dentro de mais ou
menos quatro semanas.
Entretanto, e caso o rei James insista numa consumação
física do casamento, acordei com Zira que ela pedirá, em meu
nome e com a maior discrição possível, que o acto se realize
comigo sedada e que ocorra apenas uma vez. Desta forma,
serei poupada à humilhação de testemunhar a invasão do meu
corpo e poderei fingir que tal acto nunca aconteceu…
Absorta nos meus pensamentos, quase nem reparava que
Vory já não é visível do ponto em que nos encontramos. A
nossa nave, controlada remotamente pelo centro de comandos
de Isla, tem todos os monitores programados para o tempo
terrestre e, após uma rápida consulta, percebo que aterraremos
em Pangeia em menos de vinte horas. Sei que devia tentar
dormir, mas há uma parte de mim que não consegue livrar-se
da ideia de que estas são as minhas últimas horas de liberdade.
Observo Zira que, no banco ao lado do meu, dorme com uma
tranquilidade que invejo. Apesar de pouco mais velha do que
eu, sei que ninguém em Vory sabe mais do que ela sobre a
Terra e os costumes humanos. Nunca percebi exactamente a
razão que fez Zira voluntariar-se para me acompanhar nesta
mudança, mas fiquei profundamente grata quando a sua vinda
foi autorizada pelos reis dos dois planetas. Em Zira, tenho uma
aliada e, com ela aqui, os meus olhos não serão os únicos
olhos de cor violeta na Terra.
Enquanto penso em todas estas coisas, as horas vão
passando e o medo começa a adensar-se dentro de mim. Para
não sucumbir ao pânico, forço-me a recordar que estou a
caminho da Terra para oferecer uma garantia de paz ao meu
povo. Nos últimos vinte e um anos, preparei-me
exaustivamente para este dia. Domino o idioma terrestre,
estudei a fundo a história do planeta, estou fisicamente apta
para gerar e dar à luz um novo ser, fui abençoada pela Origem
com beleza e astúcia e, mais do que qualquer outra coisa, sou
uma princesa de Vory. Nas minhas veias corre o sangue de
homens e mulheres que deram a vida para defender o meu
planeta, nas minhas veias corre o sangue dos mais corajosos
guerreiros e dos mais brilhantes cientistas. Seja Arthur quem
for, é bom que nunca se esqueça disto.
Olho novamente para o monitor. Falta menos de uma
hora. Respiro fundo e repito a frase que mais ouvi na vida: é
por um bem maior, Lia.
O meu sacrifício é por um bem maior.
Capítulo 3
Arthur

O meu pai podia ter decidido oferecer o ouro que resta


em Pangeia como garantia de paz. Mas decidiu antes oferecer
o seu único filho homem à filha do rei de Vory. E para as
coisas serem ainda mais interessantes, decidiu que o melhor
era que só lhe pudesse ver o rosto depois de consumar o
casamento.
É verdade que o calendário diz que estamos na Segunda
Era, mas porra se não me sinto preso num daqueles filmes da
época em que a luz eléctrica não existia e a nobreza se
deslocava em coches. Com a agravante óbvia de nem sequer
ter a certeza que é com uma mulher que querem que me deite,
uma vez que nenhum terrestre vivo viu alguma vez um
voryano.
É óbvio que tenho ouvido infinitas histórias sobre eles ao
longo dos anos… Dizem que são altos, donos de íris estranhas
e de uma pele clara e fria como gelo. Também dizem que são
incapazes de se apaixonar. A excepção parece ter sido o caso
da rainha Dora que fugiu para a Terra com um soldado por
quem se apaixonou. A história da rainha maldita é, aliás, a
única esperança a que me agarro quando penso no casamento
que se aproxima: se um terrestre se apaixonou por uma
voryana a ponto de arriscar tudo para trazê-la para a Terra, é
porque elas não podem ser assim tão más, certo?
Enfim, a verdade é que tenho dois planetas à espera que
me deite com uma rainha de gelo sabe-se lá com que aparência
e que, cereja no topo do bolo, consiga consumar o casamento.
E como se isto não fosse suficiente, é ainda suposto que a
consiga engravidar.
Se por um lado a minha parte racional sabe que apenas os
nossos filhos e os filhos dos nossos irmãos poderão garantir
uma paz duradoura para ambos os planetas, por outro, juro que
não imagino como é que vou conseguir fazer funcionar as
minhas partes masculinas. Mesmo sem nunca ter visto a
criatura, tenho a certeza que não haverá álcool que me valha
quando encostar a minha pele à pele gelada dela e que a minha
erecção, se a conseguir, vai murchar mais depressa do que um
balão cheio picado por uma agulha.
Não é que seja inexperiente em termos sexuais; o
problema, aliás, é exactamente o oposto. Para além de ser o
príncipe herdeiro, tive a sorte de herdar a pele morena e os
olhos verdes da minha mãe e o porte atlético do meu pai. Além
disso, tenho um pénis com um tamanho acima da média e,
modéstia à parte, sei exactamente como utilizá-lo para fazer as
mulheres felizes. Pena que não tenham decidido casar-me com
uma delas.
— Arthur, vais mesmo sair hoje? — pergunta o meu pai
com uma insatisfação mal contida quando me vê a transpor a
porta do palácio. Confesso que não esperava encontrá-lo aqui
e percebo que a sua presença no jardim principal é uma prova
de que, na verdade, não está tão calmo como tem tentado
aparentar. — A tua prometida deve chegar dentro de poucas
horas. Devias preparar-te para a receber.
Tenho vontade de responder que não sabemos se vai
mesmo chegar. A viagem é longa e há sempre a possibilidade
de, sei lá, a nave colidir com um meteorito, ser sugada por um
buraco negro, ou seja lá o que for que possa servir para a
impedir de aterrar na Terra. Mas limito-me a encolher os
ombros e a responder que estarei aqui a horas. Quase sou
dominado pela vontade de perguntar qual é exactamente a
preparação necessária para receber a coisa que se vai tornar
minha esposa e que, espero sinceramente, já saia da nave com
a cara coberta. Mas hoje estou sem o estofo necessário para
uma troca de galhardetes com o meu pai e, por isso, volto a
assegurar-lhe que estarei de volta ao palácio a tempo de
receber a criatura com quem serei forçado a casar.
É quase em fúria que coloco o capacete e me monto na
minha mota. Na era actual, todos os veículos de Pangeia são
100% ecológicos, mas nem por isso menos eficazes que os
veículos utilizados na Primeira Era. Depois de três séculos de
guerra, foi necessário reconstruir o planeta e um grande
esforço foi feito para manter o equilíbrio entre o número de
habitantes e os recursos naturais disponíveis. Mas se em
algumas coisas demos um salto futurista, noutras tantas vol-
támos a práticas que se foram perdendo nos cinco séculos
finais da Primeira Era. Hoje em dia, todas as casas de Pangeia
são autónomas e inteligentes em termos energéticos mas todas
têm um quintal dividido em duas áreas: a horta e a zona de
criação de animais. Cada cidadão é assim responsável por
produzir a comida que ingere, excepto o peixe que pode ser
comprado duas vezes por semana e cuja captura é
rigorosamente controlada pelo ministro das pescas do meu pai.
E é exactamente à porta da casa do Ministro Mike que me
encontro neste momento. Sei que lá dentro, Genna, a filha,
está à minha espera, disponível como sempre para me deixar
enterrar nela e esquecer que dentro de poucas horas estarei
frente a frente com a personificação de todos os meus
pesadelos.
Foder Genna é sempre fácil. Lamento o vernáculo, mas
não há outra forma de o dizer. Conheço o corpo dela como a
palma da minha mão, contudo, a nossa relação nunca foi mais
do que meramente física. Genna é bonita e boa na cama, mas
faltam-lhe todos os requisitos para se tornar rainha. Além
disso, não é como se eu alguma vez tivesse realmente tido uma
escolha. Ainda assim, a parte de mim que se permitiu sonhar,
gostava de imaginar que, um dia, haveria de ter a meu lado
uma rainha com quem pudesse conversar sobre os temas mais
sensíveis de Pangeia, uma rainha a quem pudesse pedir conse-
lhos sobre os assuntos do reino mas que, ao mesmo tempo,
fosse uma mãe dedicada aos nossos filhos e uma amante
sempre pronta para me aceitar nos seus braços. Essa minha
parte acreditava no amor. Acontece que a afoguei numa
garrafa de whisky no dia em que percebi que este casamento
de merda ia mesmo acontecer. E agora aqui estou, de volta ao
palácio.
Faltam menos de trinta minutos para a hora prevista de
aterragem da nave.
Capítulo 4
Lia

Em Vory existe um ditado que, no idioma terrestre, se


pode traduzir por “quanto mais o sintas, menos o mostres” e
todos os voryanos são educados segundo a lógica nele
implícita.
São os nossos próprios pais quem nos ensina, desde a
mais precoce das idades, que mostrar aos outros os nossos
sentimentos é também mostrar-lhes as nossas vulnerabilidades.
E que as nossas vulnerabilidades são quase sempre a chave
para a nossa ruína. É por isso que, apesar de sentirmos de
forma intensa, somos profundamente contidos na forma como
o demonstramos. E nunca essa contenção foi tão necessária
para mim como agora, no momento em que Zira se levanta e
me passa uma máscara totalmente prateada, feita à medida do
meu rosto. Enquanto a coloco, tento controlar o tremor que
tomou conta das minhas mãos. Sei que tenho menos de dois
minutos até à abertura das portas e, por isso, faço uma
inspiração profunda enquanto cubro a cabeça com o capuz
escarlate do manto. Vivi toda a minha vida para chegar a este
momento. Que a Origem esteja comigo.
É com um clique metálico que a porta da frente da nave
inicia o processo de abertura. E de repente, a luz é de tal forma
intensa que tenho vontade de gritar. Os meus olhos, habituados
à luz prata de Vory, sofrem dolorosamente com a força desta
luz dourada. Mas recuso-me a piscar e avanço, pisando a Terra
pela primeira vez.
Aos poucos, os meus olhos começam a habituar-se à luz
dourada e percebo que, apesar de existir mais de uma dezena
de soldados espalhados pelo jardim, tenho à minha espera
apenas quatro pessoas e, de entre elas, não demoro a perceber
qual o meu prometido: Arthur usa uma máscara exactamente
igual à minha. E a primeira surpresa agradável acontece
quando percebo que ele é uns bons dez centímetros mais alto
do que eu. Não me perguntem porquê, mas sempre pensei que
os terrestres eram seres pequenos, com alturas pouco
superiores a um metro, e é um alívio verificar que, afinal, a
nossa diferença de alturas é muito menor do que aquilo que
imaginei. Consigo ainda perceber, pela rápida observação que
faço da família real, que as fêmeas, tal como em Vory, são
menos corpulentas que os machos e que os seus cabelos se
assemelham aos nossos, apesar de apresentarem uma maior
diversidade de cores. Enquanto continuo a minha caminhada
para próximo dos quatro humanos que se tornarão a minha
família, faço um esforço por absorver o máximo possível do
ambiente à minha volta. Mas é tudo tão diferente daquilo que
conheço que me começo a sentir sobrecarregada.
— Oldim jha Lia — diz-me o homem que só pode ser o
rei James, num voryano absolutamente irrepreensível. E ouvir
as boas-vindas no meu idioma faz nascer em mim a esperança
de que, afinal, talvez nem tudo vá ser terrivelmente doloroso
aqui na Terra. — Estas são a minha esposa Rita e a minha filha
Elena e este é o meu filho Arthur — indica, enquanto aponta
com o indicador.
— Bem-vinda à Terra, princesa Lia — diz a mulher que
me foi apresentada como rainha —, há muito tempo que
esperamos por si. Temos tantas coisas para lhe perguntar…
Não agora, claro. Deve estar cansada da longuíssima viagem.
Pedi que lhe fosse preparado um dos nossos quartos mais
confortáveis. E claro que não me esqueci da sua
acompanhante. Por falar nisso, como devemos chamá-la?
Ok, a rainha Rita é capaz de ser um bocadinho tagarela.
Mas o sorriso que lhe chega aos olhos compensa o excesso de
palavras e aquela verborreia acaba por me fazer sentir bem
acolhida. Aproveito a deixa para apresentar Zira que, ao
contrário de mim e apesar de ter o rosto escondido atrás de
uma máscara, não tem a cabeça coberta e mostra com orgulho
os seus cabelos longos, brancos como o gelo.
O rei James e a rainha Rita continuam a fazer conversa de
circunstância e são realmente agradáveis, mas não me passou
despercebido que até agora, e já passaram uns quantos minutos
desde que saí da nave, nenhum dos dois príncipes terrestres
proferiu uma única palavra. Elena, não parecendo
particularmente hostil, olha para mim como a maioria dos
cientistas de Vory olham para as espécies que estudam em
laboratório: com um ar interessado e profundamente analítico.
Mas Arthur ainda nem sequer estabeleceu contacto visual
comigo e os olhos verdes que consigo distinguir por detrás da
máscara mostram um olhar perdido algures no vazio.
Parecendo ler os meus pensamentos, o rei James
interrompe a conversa vazia e, depois de pigarrear, afirma que
é altura dos príncipes da Terra darem as boas-vindas à princesa
de Vory.
Ao ouvir as palavras do pai, Elena faz um esgar que,
suponho eu, seja uma tentativa falhada de sorriso e estica a
mão direita para apertar a minha. Percebo, nos breves
segundos que demoro a retribuir o cumprimento, que vai ser a
primeira vez que farei contacto físico com um humano e
preparo-me para que a sensação de repulsa me inunde. Mas,
surpreendentemente, o contacto rápido com Elena é agradável,
apesar da sua pele ser muito mais quente que a minha.
Depois de Elena, é a vez de Arthur estender a mão para
me cumprimentar. Desta vez, já sei o que esperar e, por isso,
sinto-me um pouco menos preocupada. Só que o aperto de
Arthur é muito diferente daquele que experimentei com Elena.
A força com que me aperta a mão faz com que este primeiro
contacto seja mais uma espécie de agressão do que um
cumprimento e a temperatura da sua pele é de tal forma
elevada que tenho a certeza que o meu sistema de regulação de
temperatura interno vai precisar de vários minutos para fazer a
minha mão voltar à sua temperatura normal. Quase ins-
tintivamente, dou um passo atrás e, quando recuo, os meus
olhos encontram os de Arthur. O que vejo neles faz-me perder
todas as esperanças que me foram trazidas pela hospitalidade
dos reis terrestres: naqueles olhos só existem hostilidade e
ódio.
O momento em que percebo que cumprir a minha missão
vai ser pior que o mais terrível dos pesadelos é quebrado pela
rainha que insiste que entremos no palácio para que possamos
tomar um banho e instalar-nos. E como se estivessem
sintonizados com as suas vontades, dois funcionários
corpulentos parecem materializar-se ao nosso lado e
perguntam se podem carregar a nossa bagagem para o quarto.
Talvez por culpa do sistema nervoso, não consigo evitar uma
pequena gargalhada. Ainda que racionalmente não encontre
um único motivo válido para estar alegre neste momento,
parece-me surreal que, em plena Segunda Era, os terrestres
ainda não tenham encontrado uma forma de transportar cargas
que não implique a força do homem. Mas parece que a minha
gargalhada nervosa incomoda Arthur que, com a voz cheia de
facas afiadas, me pergunta qual o motivo para tamanha
diversão.
— Desculpe, príncipe Arthur, achei apenas curioso que
este tipo de trabalho não fosse realizado por robots criados
para o efeito, em Vory nós…
— Princesa Lia — interrompe-me Arthur —, ninguém
aqui está interessado em saber o que raio fazem vocês no
vosso planeta. Aliás, ninguém aqui quer saber porra nenhuma
sobre vocês, ok? Não se considerem mais do que um mal
necessário neste palácio e na vida desta família!
— Arthur! — grita o rei James com o rosto escarlate pela
fúria. — Nem mais uma palavra!
— Ou o quê, pai? Vou de castigo para a biblioteca do
palácio como quando tinha cinco anos? Esse castigo já não
funciona, sabias? Talvez agora, para me castigares, seja
melhor casares-me com uma extraterrestre dona de uns olhos
medonhos…
— Filho — diz a rainha Rita claramente cm choque —, tu
prometeste que não ias fazer este tipo de cena. Lia é uma
vítima das circunstâncias, tal como tu… Lia, por favor, releve
as palavras de Arthur. É óbvio que toda esta situação é
profundamente stressante para ambos, mas tenho a certeza que
havemos de encontrar um ponto de equilíbrio e, talvez um dia,
o vosso casamento possa ser feliz…
Tenho vontade de responder à rainha que, na verdade, a
opinião de Arthur não me interessa para nada porque a única
coisa que tenciono ter em comum com ele é um filho,
colocado no meu ventre através de uma inseminação. Mas a
injustiça das palavras de Arthur ainda ressoa pela minha
cabeça e, por isso, com uma calma que não sinto, respondo na
minha voz mais doce:
— Não se preocupe, rainha Rita, talvez o príncipe Arthur
não tenha frequentado aulas de história e, por isso, ignore que
foram os terrestres quem, em primeiro lugar, tentou invadir e
colonizar Vory. O nosso casamento, que eu também gostava
muito de poder evitar, foi a solução encontrada para o
problema que os terrestres criaram quando decidiram estender
a sua influência para lá da Via Láctea e incomodar civilizações
com uma história anterior à da Terra. — E, mesmo sabendo
que não devo fazê-lo, sinto-me tão despeitada por este terrestre
mal-educado que, olhando directamente nos olhos de Arthur,
acrescento num tom de voz que pinga mel: — E não se
preocupe com o meu olhar medonho, príncipe Arthur, não
tenciono pousá-lo sobre si mais do que uma meia-dúzia de
segundos durante a cerimónia de casamento da próxima
semana. Agora, rainha Rita, onde é que ficam mesmo as
nossas acomodações?
Capítulo 5
Lia

— Arthur é um perfeito idiota! — exclamo indignada


para Zira quando as portas do quarto se fecham e a família real
terrestre desce para retomar os seus afazeres habituais. Não sei
se é do calor de Pangeia, mas sinto-me demasiado emotiva,
quase como se o escudo que geralmente protege as minhas
emoções estivesse a derreter. E não gosto nem um bocadinho
da sensação.
— Não é como se não estivéssemos a contar com esta
reacção, certo? Quantas vezes abordámos a falta de
racionalidade dos terrestres e a sua dificuldade em colocar a
razão à frente do coração? Ainda assim, no seu lugar, eu não
me preocuparia demasiado. De uma forma ou de outra, Arthur
honrará o compromisso assumido pelo pai. Há demasiado em
jogo para deitar tudo a perder.
— Eu sei, Zira, também não é exactamente por minha
vontade que estou aqui… Mas acredito que Arthur não
precisava de tornar tudo ainda mais difícil. O idiota quase me
desfez a mão no momento em que me cumprimentou… — E
só de relembrar a cena, juro que começo a sentir uma pequena
onda de raiva a percorrer-me as veias. — E aqueles
comentários arrogantes e indelicados? Com quem é que ele
pensa que está a falar? Eu sou uma princesa de Vory!
— Então talvez tenha que lhe mostrar isso mesmo —
responde-me Zira com um sorriso enigmático. — Agora, se
me dá licença, vou até ao meu quarto tomar um banho e
descansar um pouco antes do jantar. Voltarei a tempo de ajudá-
la a vestir-se.
— Zira, eu sei vestir-me sozinha há praticamente vinte
anos. Não é para enfiar uma túnica que preciso de ajuda na
Terra. É para sobreviver ao arrogante que em breve se vai
tornar meu marido.
E com uma pequena gargalhada, Zira vira-me as costas.
Nas duas horas após a minha conversa com Zira, faço os
possíveis por descansar. Mas nem a cama confortável ou a
decoração em tons prata, pensada pela rainha Rita com o
intuito de me fazer sentir em casa, servem como alavanca para
o sono reparador que necessito. Decido então sentar-me no
banquinho que foi estrategicamente colocado debaixo de uma
das três janelas do quarto e aproveito para observar o ambiente
exterior. Mais uma vez, sou surpreendida pela grande
diversidade de cores, luzes e formas que inundam a Terra.
Com o dia a chegar ao fim, há uma tonalidade laranja no
horizonte e é como se todas as coisas fossem abraçadas por um
Sol cansado. Criaturas voadoras cruzam o céu, sozinhas ou em
grupo, e os ramos das árvores balançam com a brisa. Há flores
de muitas cores e um homem passeia um animal grande e de
porte nobre, com um pelo preto lustroso que me lembra a cor
dos meus cabelos. Observando toda a beleza à minha volta,
faço uma inspiração profunda e penso no conselho de Zira.
Terei que mostrar a Arthur que, mesmo não desejando mais do
que uma relação de amizade com ele, tampouco tolerarei o seu
despeito. Hoje, ao jantar, começarei a apresentar a Arthur a
princesa Lia.
Passam três minutos das sete da tarde quando ouço uma
suave batida na porta do quarto e reconheço o toque suave de
Zira. Peço-lhe que entre e, quando me encara, consigo
perceber o seu sorriso de satisfação por detrás da máscara.
— Parece que alguém decidiu seguir o meu conselho —
diz com uma entoação quase triunfal nem imagina como
lamento que precise de esconder a sua beleza atrás de uma
máscara.
— Zira, a beleza não é realmente o mais importante. A
verdade é que não pretendo seduzir Arthur. Mas para que o
nosso casamento funcione, preciso que ele me veja como uma
igual e não como uma inferior. E se for realmente necessário
recorrer ao meu aspecto para lhe provar isso, assim farei.
Mal profiro estas últimas palavras, sinto uma
desagradável mistura de vergonha e culpa. Aqui estou eu, a
princesa de um planeta que há séculos luta contra a vaidade e a
luxúria, pronta para usar a minha aparência como arma. O
problema é que, neste momento, não disponho de grandes
alternativas. E é importante que Arthur me aceite antes de
poder discutir com ele a minha proposta relativa à consumação
do casamento.
Antes de colocar a máscara, olho uma última vez o
espelho. Para o jantar de hoje, escolhi a minha única túnica
que expõe quase totalmente a pele alva dos meus braços. O
tecido, do mais profundo dos pretos, é leve, fluído e
ligeiramente brilhante. Decidi manter o cabelo solto e
ondulado mas, desta vez, não cobrirei a cabeça. No meu braço
direito levarei a única jóia que possuo e que sei ter valor
também na terra: a pulseira de coríndon, conhecido na terra
como safira, do mesmo tom violeta dos meus olhos e que me
foi oferecida pelos meus pais no dia em que completei dezoito
anos. Sinto-me bonita, sei que estou bonita e, mesmo não
querendo admiti-lo alto, sou forçada a dar razão a Zira: é uma
pena ter que me esconder atrás desta máscara maldita.
Quando chegamos à sala de refeições, a família real já se
encontra à nossa espera e os reis e a Princesa Elena parecem
satisfeitos numa conversa informal. Já Arthur aparenta tudo
menos satisfação: sozinho num canto da sala, vestido com
umas calças e um blazer pretos e uma camisa branca
demasiado aberta no colarinho, tem os braços tão firmemente
cruzados na frente do corpo que aposto que os sente
dormentes. Mas se o objectivo de Arthur é intimidar-me,
lamento dizer-lhe que falhou. Depois de cumprimentar os
restantes membros da família, dirijo-me para ele com passos
confiantes.
— Príncipe Arthur — e estendo a minha mão para que a
possa apertar, enquanto faço uma pequena vénia.
— Vejo que desfrutou do nosso cumprimento anterior,
princesa Lia.
E vejo, juro que vejo o sorriso escarninho que lhe chega
aos olhos quando aperta a minha mão. Só que desta vez eu
estou preparada e, mal os dedos dele se fecham, solto uma
descarga de energia que o faz recuar mais de um metro.
— E agora príncipe, qual de nós dois ri por detrás da
máscara? — pergunto na minha voz mais delicada.
— Que merda foi esta? — berra Arthur completamente
descontrolado e, tal como eu esperava, surpreendido.
— Parece-me que alguém não fez os trabalhos de casa,
sua alteza — constato serenamente, mantendo a candura voz.
Confesso que estou à espera que os olhos do meu futuro
marido saltem das órbitas a qualquer momento enquanto o
cérebro dele tenta processar o que acabou de acontecer. Mas
apesar de me estar a divertir com a situação, decido oferecer-
lhe uma trégua.
— Ao longo dos séculos, alguns de nós foram
desenvolvendo a capacidade de canalizar a energia não
necessária às funções vitais para um ponto específico do corpo
— explico. E ao ver o olhar angustiado de Elena, acrescento:
— Não usamos este recurso como arma, até porque seria
ineficaz. A descarga de energia que usei com Arthur esteve
perto do meu máximo.
O rosto de Elena relaxa e, de repente, sinto uma profunda
conexão com ela. Daqui a menos de cinco anos, será Elena a
adaptar-se a um planeta e a uma realidade completamente
diferentes, deixando para trás tudo aquilo que conhece, para
casar-se com um homem que nunca viu. Ainda assim, terá uma
grande vantagem em relação a mim: Rome não é um idiota.
Ao jantar, a rainha Rita insiste em sentar-me do lado
direito de Arthur. E esta simples medida tem o dom de elevar a
experiência a todo um outro nível de horror. É que apesar dos
cozinheiros do palácio terem tido a delicadeza de preparar uma
generosa quantidade de pratos sem proteína animal, o meu
querido noivo decidiu deliciar-se com um naco gigantesco de
carne que, para meu profundo horror, começou a jorrar um
líquido vermelho no momento em que foi cortada. Suponho
que deixei escapar um gemido porque o idiota olhou para mim
e, de forma seca, disse apenas:
— Sangue.
— Sangue? Dessa cor? — perguntei incrédula.
— E de que cor seria suposto que fosse? — responde-me
Arthur com ironia.
— Prateado?
— O vosso sangue é prateado? — E agora é ele quem
parece verdadeiramente incrédulo.
— Sim, é.
— Perfeito, porra, absolutamente perfeito. Mais alguma
característica especial sobre a qual precise ser informado ou
ficamo-nos pelos olhos violeta, o curto-circuito permanente e
o sangue cor de prata?
— Pode ser importante relembrar outra característica
minha, sim. Sou uma princesa de Vory! — E no exacto
momento em que recordo o meu título, coloco a mão na perna
direita de Arthur e descarrego toda a energia de que sou capaz.
O resto do jantar decorre de forma tranquila e,
aparentemente, o meu curto diálogo com o príncipe terrestre
passou despercebido. A minha parte favorita da noite é a das
sobremesas que estão absolutamente extraordinárias e são
incomparáveis a qualquer coisa que já tenha ingerido em Vory.
Provo todas as opções disponíveis e repito aquelas que mais
me agradam. Só perco o apetite quando Elena me diz que, se
continuar a comer assim, não vou caber dentro do vestido de
noiva. Por falar nisso, preciso de falar com a rainha sobre esse
ponto em particular, uma vez que, no acordo de casamento,
ficou decidido que a família do noivo ficava responsável por
todos os pontos ligados à organização da cerimónia.
Como se lesse os meus pensamentos, a rainha Rita
encara-me do outro lado da mesa e diz-me que amanhã,
durante a tarde, a costureira do palácio virá tirar-me as
medidas para o vestido de noiva que ela própria desenhou.
Concordo com um meneio de cabeça e espero que a rainha
consiga ver a gratidão nos meus olhos.
Até ao final da noite, eu e Zira vamos respondendo às
questões incessantes de Elena sobre Vory. Percebo, pelos
olhares que trocam, que o casal real, apesar de tentar disfarçar,
está em profundo sofrimento com a ideia de deixar ir a sua
menina. Conheço aqueles olhares porque vi-os nos meus pais
durante vinte e um anos.
É quase meia-noite quando nos levantamos da mesa e
sinto-me exausta. O serão correu melhor do que aquilo que
previra, muito graças ao silêncio quase permanente de Arthur,
mas todas as células do meu corpo gritam por descanso.
Despeço-me de Zira e da minha nova família e preparo-me
para abandonar a sala quando sou puxada por um braço forte.
— Já com saudades de uma descarga, meu príncipe? —
pergunto com ironia.
— Curiosamente era mesmo sobre essas descargas que
queria conversar.
— Sou toda ouvidos…
— Então se vocês não usam esse, vamos chamar-lhe
poderzinho, como arma, usam-no como quê? Como brinquedo
lúdico? — E tenho a certeza que há uma armadilha nas
palavras de Arthur que não consigo compreender. — Como
estimulante?
— Receio não estar a perceber onde pretende chegar, sua
alteza.
— Ao sexo, princesa Lia. Aquilo que estou a perguntar é
se vocês usam esta brincadeira durante o acto sexual!
Obrigada Origem pela máscara. Mil vezes obrigada. Não
fosse ela e, neste exacto momento, o meu rosto estaria
desfigurado pelo choque. Felizmente, consigo recompor-me
rapidamente e responder:
— Não, príncipe Arthur, não usamos.
— E porquê? — pergunta com uma curiosidade mal
disfarçada.
— Porque nós não fazemos sexo.
E agora, pelo que posso perceber, é o rosto de Arthur que
se desfigura.
Capítulo 6
Arthur

Passei o jantar de ontem à espera que, a qualquer


momento, alguém saísse de um recanto escondido, apontasse
para uma câmara e gritasse que aquela cena surreal era uma
brincadeira para os apanhados do canal Delta. É que, mesmo
abominando esse tipo de programas que desgraçadamente tem
sobrevivido à passagem das eras, preferia ver-me como
protagonista de um, do que como futuro marido de um
autêntico freak show. A sério, já era suficientemente mau ter
que casar com uma extraterrestre. Mas casar com esta
extraterrestre em particular? O idioma terrestre não tem pala-
vras suficientemente fortes para exprimir tamanho castigo…
Confesso que, logo no início da noite, tive uma agradável
surpresa quando a coisa, oito minutos atrasada, entrou na sala
de jantar: a pele branca dos seus braços estava quase
totalmente exposta e contrastava de forma surpreendentemente
atraente com o preto do vestido. Além disso, a criatura decidiu
descobrir a cabeça e mostrar um cabelo tão escuro como as
suas vestes. Se não fossem os olhos violeta por trás da
máscara, a coisa quase parecia humana. Pelo menos até ao
primeiro choque. E o mais irónico? É que, apesar da minha
piadinha inicial, estava tentado a beijar-lhe a mão e a pedir
desculpa pelo meu comportamento merdoso quando a conheci.
Em vez disso, acabei chocado, nos sentidos figurativo e literal,
e a soltar alto uma quantidade de imprecações muito pouco
adequadas ao meu estatuto real, especialmente porque a minha
mãe e a minha irmã também se encontravam na sala.
Depois da brincadeira eléctrica, as coisas não
melhoraram. O desconforto da criatura com o meu naco de
vitela era de tal forma intenso que quase conseguia palpá-lo e,
por cada corte que fazia na carne, a criatura soltava um
discreto uivo de agonia. Acabei por confrontá-la com o óbvio,
na esperança de que isso a fizesse desviar a atenção do meu
prato mas, tudo o que consegui, foi ficar a saber que o sangue
da minha futura rainha é cor de prata.
Porra, não fossem os muitos anos de estudos, realizados
pelos mais conceituados cientistas de ambos os planetas,
dizerem que somos sexualmente compatíveis e eu juro que
tinha medo de meter a minha parte mais real dentro dela. E
falar nisto leva-me ao clímax do surrealismo da noite de
ontem: o momento em que a princesa de Vory, a quem gosto
de chamar “coisa”, me disse com toda a naturalidade do
mundo que o povo do planeta dela não faz sexo. E foi uma
espécie de conferência de imprensa sem direito a perguntas
porque, depois de largar a bomba, simplesmente virou as
costas e seguiu caminho, acompanhada pela sua fiel escudeira
dos cabelos cor de neve.
Quando o estado de incredulidade me permitiu voltar a
mexer os pés, dirigi-me aos meus pais, que passaram o serão
inteiro a fingir-se embrenhados numa conversa
interessantíssima, e perguntei apenas:
— Alguém me pode explicar o que é que aconteceu aqui?
— O quê, filho? Passaram-se tantas coisas nas últimas
horas… — respondeu a minha mãe com um ar angelical.
Demasiado angelical, na verdade.
— A sério que vai ser assim, mãe? Vocês vão mesmo
fingir que não ouviram nada daquilo que aconteceu?
— Então, Arthur — disse o meu pai num tom ansioso —
a verdade é que já nos tinha chegado a informação de que nem
todos os voryanos se reproduzem pelas, hã, digamos, vias
naturais.
— Mas há outra forma das pessoas se reproduzirem? —
perguntei exasperado.
— Os laboratórios…
— Não, pai, não continues, por favor. Pago para não te
ouvir dizer que estas coisas se reproduzem com pinças e
provetas. Repara, não é como se eu tivesse qualquer espécie de
interesse em deitar-me com a criatura mas, sem sexo, como
raio é suposto que eu consume o casamento?
— Filho, ela está na Terra, vai ser rainha na Terra e o
casamento vai ser consumado segundo os costumes da Terra.
O que escolherem fazer daí para a frente, pouco me importa
desde que, em breve, um dos teus espermatozóides chegue a
um óvulo de Lia. Mas a consumação vai ser terrestre, sem
lugar para discussões.
E como se a noite não estivesse já suficientemente
doentia, foi este o momento que Elena escolheu para ter uma
crise adolescente e gritar que, se o rei de Vory usar a mesma
lógica do nosso pai, então ela, desgraçada, vai morrer seca e
intocada.
— Elena… — suspirou a minha mãe.
— PARA O QUARTO AGORA! — E nesse momento
James, rei da Terra, já tinha desaparecido da face do planeta e,
à minha frente, estava apenas um pai, lívido, porque a sua
filhinha de dezasseis anos, que na mente dele ainda brinca com
bonecas, acabou de reclamar alto e bom som da hipotética
falta de desejo sexual do seu futuro marido extraterrestre.
Quando cheguei ao meu quarto já passava da meia-noite e
a minha cabeça estava tão sobrecarregada que decidi deixar
pendurados Albert e Cesar, os meus melhores amigos desde
que me lembro de existir. Ditei ao meu telefone de pulso uma
mensagem com um pedido de desculpas e uma piada
miserável e pedi-lhe que a enviasse para ambos. Depois, tomei
um duche reconfortante e deitei-me na cama que é suposto vir
a partilhar com uma princesa de outro planeta que consegue
electrocutar moscas com as próprias mãos e vive a anos-luz do
sexo.
Hoje acordei antes do despertador, depois de uma noite
inteira cheia de sonhos que misturavam microscópios com
mulheres de pele muito branca, e aproveitei para fazer algum
exercício físico no pátio mais reservado do palácio. Confesso
que esta estupidez da máscara me começa a incomodar
profundamente. Está calor, as refeições são um pesadelo com a
necessidade de levantar a máscara a cada garfada e quando
faço exercício físico, a minha cara transforma-se numa espécie
de lago. Se tenho de casar com a coisa de qualquer das formas,
qual a necessidade de mantermos os rostos escondidos? Não é
como se qualquer um de nós pudesse desistir de levar adiante
o projecto de paz dos nosso pais… Acho que hoje, depois do
Conselho de Ministros, vou pedir ao meu pai que me conceda
uma trégua e me permita descobrir a cara. E por falar no
Conselho desta tarde, confesso que estou cada vez mais
preocupado com as notícias que o nosso ministro da paz
continua a trazer sobre as movimentações rebeldes na região
leste de Pangeia. Seria expectável que, depois da Guerra das
Eras, os homens tivessem percebido que a solução para a
sobrevivência do nosso planeta passa por preservá-lo. Mas
parece que nem o extermínio de milhões de vidas e o
desaparecimento de quatro dos antigos continentes serviram
para aplacar a ganância humana. Quase nos destruímos a
tentar colonizar Vory e ainda não nos reerguemos das cinzas,
mas já há movimentos que pretendem que se encete uma nova
tentativa de colonização do planeta de prata. E se no início
acreditei que estes movimentos eram obra de dois ou três
lunáticos e que seriam ignorados, as últimas actualizações
começam a fazer-me temer que os cabecilhas estejam, com o
seu discurso populista, a encontrar seguidores. A vida na
Terra, apesar de pacífica, tem hoje regras mais apertadas e uma
muito menor abundância de recursos do que na Primeira Era.
Todos os cidadãos, actualmente, são obrigados a cultivar os
seus próprios produtos hortícolas e a criar os animais que lhes
hão-de servir de alimento, segundo uma tabela bem definida e
aprovada pelo meu avô Louis. Da mesma forma, o consumo
de água tem quotas e a reciclagem é obrigatória sendo que a
pena para os incumpridores é a prisão. Apesar de estarmos
longe de ser uma sociedade ideal, somos uma sociedade
equilibrada e sustentável, sem que existam grandes
discrepâncias entre regiões e classes. Mas a ganância não
perdoa e há quem queira voltar aos excessos passados sendo
que, para tal, o caminho mais fácil é conquistar Vory, bem
conhecido pela sua riqueza. Acontece que, enquanto for a
minha família a liderar os destinos de Pangeia, nenhuma
tentativa nesse sentido será realizada. E é por isso que acredito
nas palavras do ministro da paz quando nos diz, reunião após
reunião, que a nossa vida está em perigo.
É com a cabeça perdida em pensamentos de governação
que chego ao quarto para tomar um duche antes de descer para
o pequeno-almoço. Abro a janela para renovar o ar e, no
momento em que me preparo para virar costas, sou
surpreendido por uma voz profundamente doce que canta uma
melodia repetitiva, parecida com as canções de embalar, numa
língua que me é quase totalmente estranha. Instintivamente,
olho em frente e porra, aquilo que vejo rouba-me o ar. Uma
das janelas da ala paralela à do meu quarto está comple-
tamente aberta e, lá dentro, de costas para mim e vestindo
apenas uma curta camisa de noite vermelha, está ela. E ela,
vista assim, é qualquer coisa de extraordinário. Os cabelos
negros, a pele branca como a neve, o tecido vermelho… O
jogo de contrastes é apetecível e há uma parte da minha
anatomia que começa a dar sinal de vida. Por que raio é que
alguém com este corpo se esconde em túnicas como as das
freiras da Primeira Era é claramente um mistério para mim.
Todas as curvas que posso ver daqui são certas, perfeitas.
Nunca tentei imaginar o rosto que se esconde por trás da
máscara mas, se for como o corpo que agora vejo, talvez a
consumação não seja afinal um castigo tão cruel.
Assustado com os meus pensamentos, forço-me a virar
costas à cena que se desenrola no quarto em frente ao meu.
Não posso estar seriamente a considerar ter prazer com uma
extraterrestre num casamento que me foi imposto e que, cereja
no topo, não sabe sequer o básico sobre sexo, pois não?
Foda-se, preciso de ver Genna.
Preciso urgentemente de ver Genna.
Capítulo 7
Lia

Não sei exactamente que roupa devo vestir para a visita


das costureiras da rainha e, por isso, decido permanecer com a
camisa que usei durante a noite, vermelha como todas as
minhas peças íntimas e um pequeno luxo permitido pela minha
condição real. A camisa é curta e de alças finas, talvez
demasiado reveladora até mesmo para os padrões da Terra.
Agora que penso sobre isto, não posso deixar de notar a
incoerência na lei que rege o vestuário de Vory: da mesma
forma que nos obriga ao uso de peças exteriores que escondem
a quase totalidade das formas do nosso corpo, não apresenta
uma única restrição quanto à roupa interior. E essa é a razão
que explica o facto das lojas mais maravilhosas de Isla serem
dedicadas à lingerie feminina: ainda que ninguém nos veja
com ela, é a única vaidade a que nos permitimos.
Zira bate à porta de forma discreta e, nem um minuto
depois de entrar no quarto com o seu maravilhoso cabelo
branco entrançado, chegam as costureiras da rainha que, para
minha surpresa, vêm acompanhadas de Elena.
— Olá, cunhadinha — diz Elena com um sorriso
envergonhado —, e… UAU! Conheço alguém que vai ficar
contente quando descobrir que debaixo das sacas de batatas
que vestes, há um corpo de mulher. — Juro que o sorriso dela
é muito menos envergonhado agora. Já eu, sei que devo estar
quase tão vermelha como a camisa que trago vestida.
— Hey, o que há de errado com as minhas túnicas? —
atrevo-me a perguntar.
— Cruzes, Lia, mais vale perguntares o que é que não
está errado com elas. Ok, a túnica do jantar de ontem nem era
assim tão horrível, mas… Quantos anos tens tu, afinal? É que,
olhando à tua roupa e não podendo ver o teu rosto, eu dava-te
pelo menos cinquenta.
— Vinte e um…
— Em Vory não se usam perguntas retóricas? —
pergunta-me Lia com um revirar de olhos. — Eu sei
exactamente a tua idade. É a mesma idade com que terei que
partir para Isla para casar com Rome, o que me traz ao motivo
pelo qual estou aqui. Mas vamos ao teu vestido de noiva que o
resto da nossa conversa pode ficar para depois… Já pensaste
em que tom de branco queres o teu vestido?
Foi Branco que Elena disse? A família real terrestre está
mesmo à espera que eu case vestida com a cor que, no meu
planeta, reservamos para os funerais? Não vai acontecer,
lamento. Mesmo que este casamento seja, para mim e para
Arthur, pouco mais alegre que um velório, a lei dos dois
planetas é clara quando diz que os membros da família real
apenas podem casar uma vez. E se só vou poder vestir um
vestido de noiva na minha vida, então vai, pelo menos, ser da
cor que sempre o imaginei.
— O meu vestido não vai ser branco, Elena. O meu
vestido será da cor da prata, como os mares de Vory e o sangue
que corre nas minhas veias. Tudo o resto pode ser decidido por
ti e pela rainha Rita, mas a cor não é sequer negociável.
— Não sendo exactamente uma cor tradicional, suponho
que também não seja um problema — diz Elena com um
sorriso —, pelo menos não escolheste vermelho — brinca.
E agora sou eu quem revira os olhos, enquanto penso que
talvez seja melhor contar a Elena que, como futura rainha de
Vory, terá obrigatoriamente que casar de vermelho, sem
qualquer hipótese de escolha. A verdade é que, apesar de estar
na Terra há pouquíssimo tempo, já fui capturada pelo sorriso
franco da princesinha terrestre e pela forma impetuosa como
parece viver a vida e, por isso, não quero que aterre no meu
planeta tão despreparada como eu aterrei no seu, apesar de
todos os esforços de Zira. Além disso, tenho a esperança que a
personalidade viva dela acabe por fazer bem a Rome, sempre
tão sério, introspectivo e preocupado com tudo e todos…
— E então, Lia? Concordas?
Ouço a pergunta de Elena no meio dos meus pensamentos
e percebo, pelo tom levemente ansioso, que é suposto que eu
dê uma resposta a uma questão que nem sequer ouvi.
— Sim, claro que sim — respondo, ao mesmo tempo que
peço à Origem para estar a concordar apenas com qualquer
coisa relacionada com o modelo do vestido. É o gemido quase
imperceptível de Zira que me faz acreditar que, se calhar, não
foi bem assim.
O resto da manhã é passado entre fitas métricas e
cadernos de apontamentos e, quando a hora de almoço se
aproxima, as costureiras da rainha despedem-se com a
promessa de que o seu trabalho vai ser extraordinariamente
rápido. Vejo Elena torcer o nariz quando enfio uma das minhas
túnicas cinzentas mais simples e respondo-lhe apenas com um
sorrisinho impertinente. Sorrisinho esse que parece ser o
incentivo de que Elena precisava para despejar as suas
inquietações:
— Ele é bonito?
— Ele, quem?
— O chefe da guarda real de Isla… — e lá estão os olhos
dela a revirar novamente —, Rome, Lia. Rome é bonito?
E, mais uma vez, vejo em Elena as mesmas angústias que
me têm atormentado desde a adolescência.
— E será que ele me vai achar bonita? É que somos
muito diferentes, não é? Eu sou minúscula ao vosso lado com
o meu metro e sessenta… Tenho cabelos loiros e olhos verdes
e a minha pele é muito mais escura e…
Elena interrompe a verborreia quando tiro a máscara. Não
sei exactamente a razão pela qual confio nela, mas todos os
meus instintos me dizem que é uma aliada. E sei que mostrar-
lhe o meu rosto é a melhor forma de a tranquilizar.
— Rome é parecido comigo. Pele clara, cabelos negros,
olhos violeta, as mesmas feições delicadas.
— Tu és linda. Tu és assustadoramente linda.
A voz de Elena está trémula, mas juro que posso ver
alívio nos seus olhos.
— Princesas — interrompe Zira que, tenho a certeza, está
ainda mais pálida que o habitual por detrás da máscara —,
creio que será melhor descermos para o almoço antes que nos
voltemos a atrasar.
Capítulo 8
Lia

Faz hoje uma semana que cheguei à Terra e, se por um


lado estou realmente a gostar do planeta tão cheio de cor, calor
e vida, por outro, começo a sentir saudades de Vory. Segundo
o que foi assinado no acordo de paz, poderei comunicar com a
minha família em Vory uma vez a cada dez dias, a partir da
data da consumação do casamento. Até lá, tudo o que posso
fazer é agarrar-me às minhas memórias e aos olhos violeta de
Zira que, nos piores momentos, funcionam como a âncora que
me prende à razão pela qual estou aqui.
Os meus dias neste planeta têm seguido uma rotina
tranquila: acordo cerca das sete da manhã e junto-me à família
real para o pequeno-almoço às oito. Durante a manhã,
permaneço na companhia de Zira, Elena e da Rainha Rita que
me vão mantendo informada sobre os acontecimentos do
planeta e, depois de almoço, costumo passear pelos jardins do
palácio onde me divirto a observar os diferentes animais
existentes. À tarde, aproveito para ler e a verdade é que
também comecei a gostar de alguns programas da televisão
terrestre. Muitas vezes, Elena vem ter comigo ao quarto, ou eu
vou até ao quarto de Elena, e falamos sobre os nossos medos e
preocupações. O dia termina com um jantar que devia ser em
família, mas que tem sido quase sempre marcado pela
ausência de Arthur.
A única quebra de rotina destes dias foi a chegada das
minhas novas roupas. E sim, eu disse roupas, no plural.
Segundo Zira, foi exactamente com isso que concordei no dia
da prova do vestido de noiva quando viajava algures nos meus
pensamentos. Sendo realmente honesta, confesso que estou
encantada com as peças que, apesar de simples, estão repletas
de pormenores que lhes conferem um ar distinto. De entre
todas, estou particularmente apaixonada por um vestido
violeta à altura dos joelhos, de mangas longas e totalmente
aberto nas costas. Suponho que, quando me livrar desta
máscara, este será o vestido ideal para destacar os meus olhos.
Também estou curiosa para experimentar um dos inúmeros
pares de calças que me foram enviados mas, até agora, ainda
não tive coragem de o fazer.
Quanto a Arthur, nada está realmente diferente pois,
apesar de não ser rude ou intrusivo como no primeiro dia,
mantém-se distante e nunca troca comigo mais do que um
simples cumprimento cordial. E isto até podia ser bom mas,
faltando apenas uma semana para o casamento, ainda não tive
oportunidade de lhe apresentar a minha proposta relativa à
consumação. Espero que a minha coragem não me abandone e
que o consiga abordar hoje depois do jantar.
O jantar decorre de forma tranquila, sem qualquer espécie
de tensão, como acontece sempre que Arthur não está
presente. Confesso que a cobarde que existe em mim ficou
contente por ter uma desculpa para adiar por mais um dia a
vergonhosa conversa que preciso ter com o príncipe terrestre.
Para apaziguar o sentimento de culpa trazido pela constatação
da minha cobardia, digo a mim própria que amanhã é outro dia
e que de amanhã não passará. Pena que ande a repetir esta
ladainha praticamente desde que cheguei à Terra…
Quando terminamos a sopa, o ambiente à mesa é tão
familiar que quase tenho vontade de pedir para retirar a
máscara. Suponho que, com Arthur ausente, a minha vontade
de comer uma salada tranquilamente não se transforme num
incidente diplomático interplanetário. Só que, no momento em
que me preparo para fazer o pedido, começam a ouvir-se
gargalhadas masculinas exuberantes e cada vez mais próximas.
Percebo a apreensão nos olhos da rainha Rita ao mesmo
tempo que a porta é aberta e Arthur irrompe pela sala de
refeições fazendo uma vénia perfeitamente idiota e pedindo
desculpas pelo seu atraso numa voz arrastada.
— Por qual dos teus atrasos estás a pedir desculpas? Pelo
horário ou pelo mental? — pergunta-lhe Elena com os olhos a
brilhar de fúria.
— Elena, não piores a situação por favor — pede a rainha
Rita que vai alternando o olhar entre o marido e o filho com
preocupação.
— Ele é que vem neste estado para a mesa e eu é que sou
repreendida… Como não adorar esta família? — diz Elena
antes de voltar a concentrar a sua atenção no prato.
Arthur toma o seu lugar ao meu lado e começa a comer
de uma forma atabalhoada como se estivesse com dificuldades
para perceber a função de cada talher. De vez em quando, solta
um risinho infantil e perfeitamente descontextualizado, como
se estivesse a rir de alguma piada que os restantes de nós
desconhecem. Até ao final da refeição, ninguém mais volta a
conversar e sinto que todos agimos como se estivéssemos a
caminhar sobre brasas. Todos excepto Arthur, claro.
Quando, finalmente, o Rei James dá por terminada a
sobremesa, o alívio que se sente na sala é quase palpável. É
uma pena que o idiota do meu futuro escolha esse momento
para avisar que hoje voltará a não dormir no palácio.
Fecho-me no quarto para tentar libertar-me da raiva que
se apoderou de mim desde a chegada de Arthur e que, como
boa voryana, fiz questão de não demonstrar. Mas de uma
forma ou de outra, vou ter que fazê-lo perceber que não
tolerarei faltas de respeito e traições. Posso ser absolutamente
inexperiente em relacionamentos e repudiar o contacto físico
entre os casais, mas estou longe de ser idiota. Li o suficiente
sobre a Primeira Era e sobre a Terra para conseguir reconhecer
os sinais que indicam claramente que Arthur está bêbado e
que, muito provavelmente, esteve com outra mulher.
Enquanto dou voltas pelo quarto, lamento que Zira tenha
ficado a conversar com Elena no que, suponho, seja mais um
longo interrogatório sobre Vory. Sei que a sensatez dela seria
útil neste momento e, muito provavelmente, seria suficiente
para me demover da ideia maluca de procurar Arthur para lhe
explicar que o nosso casamento não é uma brincadeira e que
existem regras que precisam ser respeitadas. Se Zira aqui
estivesse de certeza que, neste exacto momento, eu não estaria
a sair do quarto em marcha apressada rumo ao quarto do meu
noivo alcoolizado. Mas Zira não está.
— Quem é? — pergunta Arthur no mesmo tom arrastado
do jantar.
— Lia.
— Uhhhhh, a ovelha veio assim à toca do lobo? Sem
medos?
— Vais ou não vais abrir-me a porta? — E nem sei por
que raio o estou a tratar por tu. O que sei, com todas as fibras
do meu ser, é que vir aqui foi uma péssima ideia. Mas agora é
tarde para desistir.
— Vou, claro, por quem sois, Princesa Lia…
E para meu profundo horror, a porta abre-se mostrando
um Arthur despenteado e em tronco nu. Ok, não vou olhar, não
vou olhar, não vou olhar…
— O que a traz aos meus humildes aposentos sua alteza?
— pergunta o idiota em tom de gozo.
— Em primeiro lugar, avisar-te relativamente a esse
tonzinho jocoso e, em segundo, deixar claro que, apesar de não
desejar qualquer intimidade sexual contigo, não vou permitir
que te deites com outras mulheres. — E pronto, está dito.
— E como é que pensas impedir-me, posso saber? Vais
electrocutar-me ou assim?
Por acaso, neste exacto momento, vontade não me falta.
Mas estoicamente e recorrendo a vinte e um anos de controlo
de emoções, ofereço a Arthur apenas um sorriso irónico. Isso e
um discreto olhar ao seu abdómen de músculos bem marcados
que termina num extraordinário V
— Além disso, tenho uma péssima notícia para te dar: o
casamento terá que ser consumado consoante as regras da
Terra, percebes o que isso quer dizer? — pergunta-me o idiota
como quem grita vitória.
E apesar de saber que está bêbado, encontro nesta deixa o
gatilho ideal para fazer o meu pedido.
— Ok, eu concedo essa vez. Mas apenas essa única vez e,
se possível, gostaria de poder estar sedada.
A gargalhada que Arthur solta é quase ofensiva.
— Sedada? Não, princesa Lia, a necrofilia não é de todo a
minha cena. E por que raio é que alguém há-de querer estar
sedada durante uma coisa tão boa como o sexo?
— Boa? Como é que uma coisa tão primitiva e
animalesca pode ser boa?
E se viver mais mil anos, durante mil anos me
arrependerei de ter feito esta pergunta. É que o idiota do meu
futuro marido decide dar uma resposta prática à minha questão
e, para isso, empurra-me delicadamente contra a parede
ficando a travar o meu corpo com o dele. A vez seguinte em
que fala é contra a pele do meu pescoço e, apesar da minha
medicação inibidora da libido ainda estar no seu prazo de
actuação, sinto um arrepio percorrer a minha pele.
— Lia, Lia… — diz o idiota enquanto passeia um dedo
pela minha pele na zona em que o pescoço se liga às costas —,
ficarias surpreendida com o quão maravilhosas as coisas mais
animalescas podem ser…
— Arthur, por favor… O que estás a fazer?
— Apenas a tentar confirmar se a tua pele é tão suave
como parecia naquela camisa de noite vermelha.
— Como assim? Como é que viste a minha camisa de
noite?
E o príncipe terrestre aponta o queixo na direcção das
janelas do quarto.
— Arthur, isto não me parece nada boa ideia…
— E isto, parece-te? — pergunta-me o idiota com
arrogância enquanto arranca a máscara do rosto.
Capítulo 9
Lia

Em Vory acreditamos que existe uma divindade


responsável pela criação do universo e, tal como os terrestres,
prestamos culto a essa entidade e é a ela que recorremos
quando precisamos de protecção. Chamamos-lhe Origem
porque cremos que todos descendemos dela e representamo-la
através de um círculo perfeito, onde início e fim se fundem.
Somos ensinados, desde cedo, que a Origem é a nossa
génese e que a ela retornaremos quando a luz de prata
abandonar os nossos corpos. Mas enquanto a luz brilhar,
sabemos que podemos contar com a sua força protectora.
Acontece que, enquanto olho petrificada para o rosto de
Arthur, tenho a certeza que a Origem me abandonou no
momento em que atravessei a porta deste quarto.
Arthur é perfeito: pele morena, olhos verdes, grandes e
emoldurados por longas pestanas, sobrancelhas rebeldes, nariz
elegante e lábios carnudos. Arthur é lindo em qualquer planeta
do universo. E o problema é que parece ter plena consciência
disso.
— E então, Lia — diz ele interrompendo o meu devaneio
com um sorrisinho arrogante no rosto —, estou à espera de
uma resposta… Isto parece-te ou não uma boa ideia?
Quero responder, juro que quero. Mas a minha voz está
presa e sinto que a minha capacidade de argumentação deve
andar perto de zero. Decido fechar os olhos e respirar fundo,
pensar em quem sou, na razão pela qual estou aqui e nas coisas
horríveis que tenho ouvido da boca de Arthur.
— A fechar os olhos? — pergunta o idiota num sussurro
demasiado próximo do meu ouvido que faz com que sinta uma
pequena contracção na parte mais baixa do meu ventre.
E é agora ou nunca que tenho que bater o pé e marcar
uma posição. Se não for forte neste momento, sei que me
colocarei numa situação de fragilidade que dificilmente
conseguirei reverter. Na minha cabeça, ouço a voz da minha
mãe e passam-me pela mente as dezenas de vezes em que me
disse “Lia, tu és uma princesa de Vory, quanto mais o sintas,
menos o mostres”.
— Por acaso existe alguma alínea no acordo de paz que
diga que sou obrigada a encarar-te? — respondo num tom que,
espero, seja desdenhoso o suficiente.
— Não, não existe. Mas se não queres encarar-me há
alternativas melhores do que fechar os olhos, Lia.
E, sem que nada o fizesse prever, o príncipe terrestre,
com uma espécie de passe de mágica, roda-me pela anca
deixando-me de frente para a parede ao mesmo tempo que
pressiona o meu corpo com o seu. Tento lutar, nem sei bem
porquê, mas o miserável aumenta a pressão e acaba por
conseguir conter os meus braços acima da minha cabeça,
apenas com uma mão.
Parece que a minha ideia de assumir uma posição de
força não está a correr como seria suposto mas não vou deixar
que Arthur me domine tão facilmente. Esforço-me por ignorar
os movimentos circulares lentos que Arthur começou a fazer
com a anca e que estão a provocar-me sensações
desconhecidas e espero que o idiota pare de passar os lábios
entreabertos pela pele livre do meu pescoço. Ninguém, na
Terra ou em Vory, imagina o esforço que estou a fazer para
permanecer impávida e estática quando o meu corpo, traidor,
parece pedir-me desesperadamente que me movimente como
Arthur e que, de uma maneira primitiva, me esfregue contra
ele.
— O fogo derrete o gelo, Lia. — Será possível pedir-lhe
que pare de sussurrar? Quando fala assim, baixinho e num tom
ainda mais grave que o habitual, a voz de Arthur é tão doce
como o mel terrestre. Malditos arrepios.
E quando ele agarra o meu cabelo com a mão livre e
inclina a minha cabeça para trás de forma firme mas indolor,
sinto uma espécie de alerta correr pelo meu corpo e faço a
única coisa que sei que me pode permitir escapar da armadilha
que Arthur tem vindo a tecer: concentro toda a minha energia
no local dos meus braços que a mão do príncipe terrestre
aperta e descarrego com quanta força tenho.
— Sua idiota — berra ele. Pelo menos parece que parou
de sussurrar. — Este choque serviu para quê?
— Para que me libertasses, ora essa — respondo num
tom pouco convicto. — Estou aqui para negociar a
consumação do nosso casamento e para te fazer entender que
sou uma princesa. E como é que tu reages a isso? Tratando-me
como se fosse uma meretriz. Pois te garanto que não vai
acontecer, Arthur. — Aos poucos, sinto a confiança a
aumentar e percebo que a minha voz se torna mais firme.
— Como uma meretriz? — E ele ri de forma jocosa. —
Vory é claramente um planeta aborrecido.
Preparo-me para responder com aspereza, mas Arthur
corta-me a palavra. E, pela forma como fala, posso dizer que o
humor dele mudou.
— Estamos na Terra e eu sou Arthur I da Segunda Era. O
meu casamento não vai ser consumado com uma noiva sedada,
independentemente do sacrifício que isso exija da minha parte.
Ou achas realmente que terei algum prazer em fazer seja o que
for com uma mulher frígida e fria como gelo, que acha que o
sexo é um bilhete de entrada no Inferno?
Fria como gelo, eu? Mal sabe o idiota que, nos breves
momentos em que me tocou, me senti consumida por chamas,
como se tivesse mil fogos cá dentro.
— O teu sacrifício não será maior que o meu, acredita.
Mas em nenhum ponto, a consumação do nosso casamento
poderá ser questionada. Há gente lá fora que não quer que este
casamento funcione, há movimentos a ganhar força todos os
dias a favor de uma nova tentativa de colonização do teu
maldito planeta, há gente que — e Arthur cala-se
abruptamente —, não interessa. A consumação vai acontecer e
tu estarás acordada e sem essas malditas vestes de convento da
Idade Média. Talvez se fechares esses olhos aberrantes eu
possa até conseguir fingir que estou com uma mulher de
verdade.
As palavras de Arthur ferem como punhais e sinto-me
profundamente magoada. Quem é que o idiota pensa que é
para me dizer estas coisas? Uma mulher de verdade? Eu sou
uma mulher de verdade. As meretrizes com quem ele está
habituado a deitar-se é que pouco devem ter de verdadeiro.
Nunca pensei que a vida na Terra me fizesse testar desta forma
os meus limites, mas recuso-me a mostrar fraqueza perante
este homem e, por isso, mantenho-me impávida e sem
expressão quando lhe respondo.
— Como queiras. De qualquer das formas, nunca
acreditei que houvesse alguma coisa de agradável para mim
nesta união.
Arthur bufa e atira-se para a cama que vai ser o palco do
meu maior pesadelo dentro de uma semana. Sei que é a minha
deixa para abandonar o quarto, mas não consigo evitar olhá-lo
uma última vez. Sendo objectiva, Arthur é um idiota. Mas não
há como negar que é um idiota exageradamente bonito.
Deitado assim, com os braços atrás da cabeça e as calças a
escorregarem pelas ancas, o príncipe terrestre é nada menos
que extraordinário. Pena que não seja mudo.
Quando chego ao quarto, a primeira coisa que faço é
fechar as janelas e, de seguida, livro-me da máscara e da
túnica que usei hoje.
O encontro com Arthur foi demasiado intenso e deixou-
me a pensar em muitas coisas diferentes. Racionalmente, sei
que deveria estar preocupada com os movimentos de terrestres
descontentes que pretendem voltar a tentar colonizar o meu
planeta mas, na verdade, em Vory existem, desde há largos
anos, pequenos grupos que defendem que a invasão da Terra
resolveria todos os problemas de Isla. Esses grupos não têm
crescido e, tirando alguns actos pontuais de vandalismo, a sua
expressividade é praticamente nula no planeta. Suponho que
aqui na Terra, o fenómeno seja semelhante. Ainda assim,
amanhã falarei com a família real para tentar perceber
exactamente a dimensão desta questão.
Acontece que o meu lado irracional, aquele que eu já mal
me lembrava que tinha, está pouco interessado em lutas
interplanetárias neste momento. O rosto de Arthur não me sai
da cabeça e, de uma forma que não consigo perceber porque
nunca fui tocada antes, o seu toque também não. Se me
concentrar, quase consigo sentir o toque dos lábios quentes de
Arthur na minha pele fria e o meu corpo, mais uma vez, reage
de formas que me são estranhas em lugares que não estou
sequer habituada a sentir.
E não posso deixar de me sentir humilhada por perceber
que Arthur não me achou mais interessante do que uma pedra
fria. Sinto uma ferida gigante no meu orgulho, feita pelas
palavras cruéis que me lançou, e pelo facto de ele ter
conseguido mexer com a minha mente com simples toques
enquanto tudo aquilo que provoquei nele foi repulsa.
Arthur acredita que sou digna de pena e inferior a
qualquer mulher terrestre. E eu sinto-me tentada a mostrar-lhe
o quão errado está. Sei que é uma criancice e que não devia
fazê-lo, sei que Zira vai ficar furiosa e que, muito
provavelmente, vai relatar este facto aos meus pais, mas acho
que está na hora de dar uso ao meu novo guarda-roupa
terrestre. E, mais importante do que isso, está na altura de
mudar de máscara.
Que eu não seja Lia, princesa de Vory, se, a partir de
amanhã, a reacção de Arthur à minha presença não começar a
mudar. Posso ser inexperiente, posso achar que a consumação
carnal do casamento é um erro, posso não dominar técnicas de
sedução, mas juro, pela minha honra, que aquele idiota se vai
arrepender de cada uma das palavras de desprezo que me
lançou. E quando ele estiver arrependido, quem vai desprezá-
lo sou eu.
Capítulo 10
Arthur

Há mais de vinte minutos que estou a tentar levantar-me,


mas cada vez que faço uma tentativa para sair da cama, sinto
que a minha cabeça pesa uma tonelada. E a juntar à merda da
ressaca, ainda tenho que lidar com a culpa pelo meu
comportamento de ontem. Na verdade, não sei o que é que me
deu para agir de forma tão impulsiva. Acusar o álcool seria
demasiado fácil…
Depois do showzinho de Lia de lingerie vermelha, decidi
que, desse por onde desse, a imagem daquela pele tão branca
teria que sair da minha cabeça e, por isso, passei os últimos
dias numa rotina praticamente suicida. De manhã, as reuniões
de estado, as preocupações com os focos de rebelião que não
parecem parar de aumentar, as exigências da minha posição
real e, a partir do meio da tarde, as festas privadas organizadas
por Cesar, o álcool, as prostitutas, Genna… E foi exactamente
por culpa de Genna e da maldita conversa do “era comigo que
devias ficar”, que acabei por regressar mais cedo ao palácio.
Genna sabe, como eu sei, que não existe uma escolha. Além
disso, estou cansado de explicar-lhe que as coisas entre nós
são meramente físicas. Ela é bonita, disponível e disposta a
concretizar todas as minhas fantasias. Mas não sinto nada mais
profundo por ela. Ontem estava bêbado, irritado, já tinha
fodido Genna de todas as maneiras possíveis e imaginárias e,
ainda assim, sempre que fechava os olhos era atormentado
pela combinação dos cabelos negros, do tecido vermelho e da
pele cor de marfim. A insistência de Genna foi a gota que fez
transbordar tudo. Levantei-me da cama, vesti-me à pressa,
atravessei uma sala cheia de corpos seminus e voltei para casa.
Quando cheguei, a minha família, noiva extraterrestre
incluída, estava a jantar no salão e uma parte doentia de mim
achou que era uma boa ideia fazer-lhes companhia. Tirando
uma ou outra observação menos simpática por parte de Elena,
e atendendo ao meu estado de embriaguez, as coisas até
estavam a correr bem. Não houve mortos, não houve feridos e
consegui chegar ao quarto sem fazer nenhum disparate
considerável. Mas Lia achou que era uma boa ideia aparecer
aqui à porta, mesmo tendo percebido que eu não estava
exactamente sóbrio.
Coloquei a máscara antes de abrir a porta, mas não me
esforcei sequer por enfiar uma camisola. Afinal, vamos ser
casados, certo? E não é como se eu tivesse motivos para me
esconder. O treino diário, durante anos, nas nossas forças de
defesa, produziu efeitos bem visíveis no meu corpo e tenho a
certeza que ela os percebeu. Mesmo atrás da máscara, pude
perceber que os olhos de Lia se arregalaram. E muito
provavelmente foi essa percepção que acabou com o que
restava da minha capacidade de agir de uma forma
minimamente correcta. Isso e o facto dela me ter proposto que
a consumação do nosso casamento acontecesse com ela
sedada; assim mesmo, ao melhor estilo de necrofilia.
Quando percebi que ela esperava realmente que eu
tivesse a estupidez da proposta em conta, comecei a sentir a
fúria a formigar-me nas veias. Mas quem diabos pensa ela que
eu sou? Para alguém que gosta tanto de relembrar-me que é
uma princesa de Vory, parece-me esquecer-se demasiadas
vezes que eu sou o futuro rei da Terra.
A parte pior é que a criatura realmente parecia sentir
repugnância até mesmo pela palavra sexo, o que levou a que a
parte mais primitiva da minha personalidade, empurrada pelo
álcool e pela adrenalina da tarde, decidisse mostrar-lhe que o
prazer é uma coisa boa. Demasiado boa. E tenho a certeza que
ela percebeu o meu ponto.
Por muito que Lia se tenha esforçado por mostrar
indiferença, eu vi como a pele dela se arrepiou debaixo dos
meus dedos, percebi, quando a prendi contra a parede, que o
corpo dela se estava a inclinar naturalmente contra o meu. E
não me chamo Arthur se ela não ficou molhada quando me fui
esfregando contra ela. Eu, pela minha parte, estava mais que
pronto para lhe arrancar aquelas roupas horrorosas e descobrir
se a roupa interior dela era sempre como aquela que pude ver
há uns dias.
Foda-se, a pele dela era tão clara e macia debaixo da
minha pele… Nunca toquei em nada tão delicado e perfeito. E
quis muito que ela me admirasse, quis castigá-la pelas
sensações que me estava a provocar. Por isso, tirei a máscara.
Porque queria ver a admiração nos olhos dela. E vi. Naqueles
olhos brilhantes cor de violeta, vi surpresa e percebi que as
pupilas de Lia se dilatavam à medida que me observava. Ela
tentou esconder depois, mas já era tarde. O estrago estava
feito. Ela gostou do que viu.
Estava tudo a correr deliciosamente bem até ao momento
em que a minha noiva decidiu transformar-se novamente numa
central eléctrica e aplicou um choque estupidamente violento
nas minhas mãos. Não é que em alguns momentos aqueles
choques não possam transformar-se numa brincadeira
agradável, mas ali, naquele momento, senti que eram um grito
desesperado. Ela endureceu as palavras dela, eu endureci as
minhas. E jurei a mim mesmo que não vou voltar a deixar-me
levar, com ou sem álcool. O casamento vai acontecer, a
consumação também. Mas jamais perderei o controlo perto da
mulher dos olhos violeta com quem o destino quis que me
casasse.
São quase 10h quando finalmente consigo arrastar-me
para fora da cama. Passo pela cozinha onde Veva, a chefe das
cozinheiras, me dá um pão acabado de fazer recheado com
doce de maçã dos nossos pomares. Ainda tenta estender-me
um copo de leite mas, só de olhar para ele, sinto o estômago
revolver-se. Chego à sala de reuniões do escritório do meu pai
poucos minutos antes do conselho geral ter início e percebo
que fica aflito quando me vê sem a máscara.
— Sem problemas, Lia já viu o meu rosto. E nem sequer
fugiu… — digo, com um encolher de ombros.
— Arthur, tu sabias que não devias retirar a máscara
antes da consumação. Imagina que, por qualquer motivo…
— Pai, está tudo bem! Foi uma idiotice, mas correu bem.
O rei James encolhe os ombros e suspira derrotado.
Percebo que, no meio de tantas coisas a acontecer, não tem
energia para desperdiçar com questões como esta e, por isso,
desiste do sermão e lembra-me apenas que amanhã é dia do
meu primeiro passeio oficial com a minha noiva. Ao que
parece, vamos a uma instituição que serve de casa a crianças
negligenciadas pela família e que é patrocinada integralmente
pela família real. Espero que a miudagem não comece a gritar
histericamente quando lhes entrar pela porta uma figura ves-
tida de saca de batatas e escondida atrás de uma máscara que
deixa apenas revelar uns estranhos olhos violeta.
A reunião do conselho é mais do mesmo. Pequenos focos
de rebelião travados pelo nosso exército. Pinturas nas paredes,
incitamento na internet, vandalismo em pequena escala…
Felizmente, nada que nos faça acreditar que preparam um
ataque real por agora. Ainda assim, eu e Lia teremos uma forte
escolta armada amanhã.
Eu e o meu pai somos os primeiros a chegar ao almoço e
vamos conversando quando entram a minha mãe e Zira.
— Arthur, suponho que hoje vás ter uma surpresa — diz-
me a minha mãe com um sorrisinho que, nela, pode querer
dizer muitas coisas.
— E qual será essa surpresa?
Mas não há tempo para uma resposta porque o nosso
diálogo é interrompido por duas gargalhadas diferentes: a de
Elena, forte e despreocupada, e a de Lia, cristalina e um tanto
envergonhada. E quando elas cruzam as portas do salão de
refeições não sei sequer o que pensar.
Lia está deslumbrante, porra.
Não sabia sequer que ela tinha roupas terrestres e
suponho que haja um dedo da minha mãe e de Elena neste
guarda-roupa, mas abençoadas sejam por isto. Lia está com
um simples vestido vermelho, de decote pouco pronunciado,
que lhe chega a meio da coxa. Nos pés, umas sabrinas violeta
completam o look. E se eu achava que vermelho e violeta
nunca combinariam nesta vida, neste momento são bem
capazes de formar a minha combinação preferida. Por ser alta,
pelo menos para os padrões terrestres, as pernas de Lia
parecem não ter fim e quando a vejo vestida desta forma, não
consigo não pensar na lingerie do outro dia.
Mas a roupa está longe de ser a única mudança do dia.
Hoje, Lia traz o cabelo preso num rabo-de-cavalo parecido
com aqueles que Elena costuma usar e substituiu a máscara
horrorosa que lhe cobria totalmente o rosto por uma máscara
como as do Zorro, das histórias da Primeira Era. A máscara é
cor de prata e feita numa espécie de filigrana e deixa o rosto
dela praticamente descoberto. Pela primeira vez, posso ver-lhe
o nariz, pequeno e arrebitado e a boca de lábios cheios e
rosados. Nunca estive enganado. Ela é linda. De uma forma
diferente, serena e misteriosa, Lia é linda.
— Olá, príncipe Arthur, descansou bem?
Parece-me que alguém está à procura de um desafio…
— Princesa Lia — e faço uma vénia o mais formal
possível —, descansei lindamente, obrigado. E a princesa?
Pensou na nossa conversa de ontem?
Percebo que toda a minha família tem os olhos postos em
nós. Sei que Lia também repara, mas continua como se nada
fosse.
— Com certeza que sim. Tal como lhe disse, farei todos
os sacrifícios que forem necessários para assegurar uma paz
duradoura entre os nossos planetas.
— E eu que ia jurar que a princesa tinha percebido que
nem tudo têm que ser sacrifícios… — E sim, mantenho uma
expressão profundamente neutra enquanto pronuncio estas
palavras. Percebo, no entanto, que a pele de Lia se arrepia. —
Frio num dia destes, princesa? Não me diga que as roupas
terrestres são assim tão mais frescas que as voryanas!?
— Nada disso, príncipe Arthur, apenas tive uma
recordação profundamente desagradável e acabei por me
arrepiar com repulsa.
Repulsa? Como se eu acreditasse… As pupilas de Lia
dilataram de luxúria ontem à noite e, se calhar, vou ter que
recordá-la desse facto.
— Vamos almoçar? — interrompe o meu pai.
Todos concordamos e tomamos os nossos lugares à mesa.
Eu e Lia estamos separados por menos de um braço e, se é
verdade que prometi não perder o controlo perto dela, também
é verdade que nunca prometi não a descontrolar. Parece-me
que está na hora da princesa de Vory perceber umas quantas
coisas e, a primeira delas, é que não deve provocar-me.
Depois de colocar o guardanapo no colo, Lia olha para
mim e sorri com ironia. Mal ela sabe que a vida dela está
prestes a mudar. E tudo vai começar neste almoço.
Capítulo 11
Lia

Quando Elena foi ter ao meu quarto, eu ainda não tinha


decidido qual dos vestidos terrestres usar. Se era verdade que
queria que Arthur provasse do seu próprio veneno, também de
que a quantidade de tecido reduzido, a juntar ao olhar re-
provador de Zira, não estavam a deixar-me exactamente
confortável. A sorte é que Elena é sinónimo de ânimo e a
empolgação que demonstrou perante a possibilidade de me
vestir, ao melhor estilo de boneca viva, acabou por me injectar
alguma confiança. Depois de várias tentativas e combinações,
acabámos por optar por um vestido vermelho simples,
comprido para os padrões de Elena, curto para os meus, e
praticamente pornográfico para os de Zira. Ainda tentei calçar
uns sapatos com salto mas, para além de desconfortáveis, a
minha altura comparativamente à de Elena era tão discrepante
que caímos ambas na gargalhada e decidimos que as sabrinas
eram, sem margem para dúvidas, o calçado mais indicado.
Decidi apanhar o cabelo da forma mais simples e natural
possível e recusei a maquilhagem proposta por Elena que, por
acaso, entrou em choque absoluto quando percebeu que as
minhas orelhas não estavam furadas e que desconhecia de todo
o que eram brincos antes de ter chegado a este planeta.
No momento em que coloquei a minha máscara de
filigrana, senti um misto de emoções estranhas: por um lado,
talvez pela primeira vez na vida, senti-me realmente bonita
mas, por outro, senti uma nota de culpa como se, de alguma
forma, estivesse a trair as minhas origens voryanas. Respirei
fundo e pensei se valia mesmo a pena provocar Arthur desta
forma… Mas cá dentro senti que sim. Arthur precisava de
perceber que eu não sou um elo frágil nesta relação e que
posso ombrear com qualquer mulher terrestre. Ainda que as
relações carnais não sejam um objectivo meu, até porque, na
verdade, não consigo pensar na consumação do casamento
sem sentir um medo que resvala para o pânico, não quero que
o meu marido pense que não posso ser suficientemente
atraente ou elegante. E muito menos quero que Arthur pense
que estou num nível inferior ao dele. Ele é lindo e fisicamente
perfeito (e a prova disso é a imagem de um Arthur em tronco
nu que tem assombrado a minha mente nas últimas horas), mas
eu não aceito ficar na sombra dele. Talvez a minha beleza seja
diferente da beleza terrestre mas, não me chamo Lia, se não
vou ensinar Arthur a apreciá-la e a respeitá-la.
Quando entrei na sala de refeições, ao lado de Elena, o
meu humor estava perfeitamente leve e sentia-me, pela
primeira vez desde que cheguei à Terra, como a jovem que
realmente sou. Arthur já estava na sala e conversava
tranquilamente com o pai no momento em que os nossos olhos
fizeram contacto. E, nesse instante, todas as dúvidas se
dissiparam da minha mente. Por mais que ele tivesse tentado
disfarçar, apanhei o olhar de surpresa e aprovação no seu rosto
descoberto e não consegui evitar um calor no baixo ventre
quando percebi que o olhar dele se demorava no comprimento
das minhas pernas.
Decidi então encetar uma conversa cordial que, se não
estou em erro, entendeu como uma espécie de desafio e, por
indicação do Rei James, ocupei o meu lugar habitual na mesa.
Neste exacto momento, enquanto vou mordiscando um pedaço
de pão — e que bom é poder comer sem precisar de estar
constantemente a desviar uma máscara sinto que a cadeira de
Arthur se aproxima perigosamente da minha. Lanço-lhe um
olhar de relance e percebo um sorrisinho no seu rosto que,
para bem da minha sanidade mental, decido ignorar.
O que não consigo ignorar é a mão quente dele no meu
joelho e arfo em surpresa e choque. Arthur, o idiota, aproveita
a deixa para simular a queda do guardanapo e, quando se baixa
para o apanhar, passa junto ao meu rosto e sussurra um
“pshiuuuuu, uma princesa tem que saber manter a postura”
que me deixa assustada e a pensar no que mais estará por vir.
Enquanto a sopa é servida, a mão do príncipe terrestre
volta para a mesa mas, mal os empregados abandonam a sala,
a mão de Arthur volta à minha coxa e começa a mover-se para
cima lentamente. Qual é a ideia dele? Socorro! Olho à minha
volta e todos comem e conversam normalmente, Arthur
incluído. Tento desviar a perna e, quando percebe o meu
movimento de fuga, o desgraçado aumenta a pressão. Porra,
porra, porra. Forço-me a relaxar e, à medida que me sente
menos contraída, os movimentos de Arthur tornam-se cada vez
mais suaves e lentos.
Procuro focar a minha atenção na conversa que se
desenrola à mesa, mas não consigo sequer perceber qual o
assunto que está a ser debatido porque a mão de Arthur não
pára de subir, com um toque suave como seda que faz a minha
pele arrepiar-se à passagem. Sinto-me estranha, como se
dentro de mim ardessem mil fogos e tenho medo. Olho para
Arthur e, desta vez, ele não parece estar tão descontraído.
Vejo-o ajeitar-se na cadeira, como se estivesse desconfortável,
e quando percebe que o observo, o olhar que me lança é de
roubar o fôlego.
As suas pupilas estão dilatadas e, atrás delas, há a mesma
chama que me parece queimar por dentro. Quero gritar e
pedir-lhe que pare mas, ao mesmo tempo, quero que continue,
quero perceber onde é que isto vai dar. Envergonho-me
profundamente de admitir isto, contudo, pela primeira vez na
vida, sinto-me excitada.
Odeio-o neste momento. Como é que o idiota se atreve a
fazer-me isto aqui, na sala de refeições, com a família toda
presente? E quando um dedo dele desvia a renda da minha
lingerie e entra em mim eu só peço à Origem que me proteja
da maldita luxúria que me envolve. Já desisti da comida e nem
as sobremesas de que tanto gosto me fazem voltar a ter apetite.
Não consigo pensar em mais nada que não no dedo de Arthur
que se move lentamente cá dentro…
— Lia, está tudo bem minha querida? — pergunta-me a
rainha com um ar preocupado.
— Sinto-me um pouco indisposta, se me permitirem
talvez seja melhor retirar-me para o meu quarto para
descansar. — Decido agarrar-me com força a esta
oportunidade de fuga que me parece uma tábua de salvação.
— Princesa, quer que a acompanhe? — A voz de Zira soa
profundamente preocupada.
— Não, não tenho nada de grave, Zira. EÉ apenas uma
indisposição ligeira.
Levanto-me da cadeira e quando estou prestes a chegar à
porta, ouço a voz de Arthur:
— Lia — e noto que os olhos dele estão mais brilhantes
que o habitual logo passarei pelo teu quarto para saber se já
estás recuperada.
— Obrigada — respondo, enquanto, para dentro, lhe
chamo mil vezes idiota.
— De nada, princesa. Foi um prazer almoçar consigo
hoje.
***
Menos de uma hora depois de ter conseguido escapar à
doce tortura de Arthur, ouço os passos delicados de Zira
aproximarem-se do meu quarto e, mal lhe abro a porta, perdida
num desespero que me anula a vergonha, pergunto-lhe se, por
acaso, alguém já estudou se as propriedades dos inibidores de
libido voryanos derretem com o calor da Terra ou qualquer
coisa do género. E a resposta de Zira quase me faz ficar sem
chão.
— Não esperava ter esta conversa consigo tão cedo mas,
aparentemente, há coisas a acontecerem para lá da minha
supervisão. A verdade é que todos esperávamos que, em
algum ponto, esta interrogação acabasse por surgir, contudo,
nunca antes do casamento.
— Todos quem? — interrompo surpreendida.
— Eu, os seus pais e todos os cientistas do Palácio Real
de Isla… — E Zira faz uma pausa, como se estivesse perdida
em pensamentos.
— Continua, por favor — incito-a.
— Princesa, sabe que os nossos cientistas se têm
dedicado, em especial durante o último século, ao estudo
aprofundado da mente, certo?
Confirmo com um aceno de cabeça que, espero, seja todo
o incentivo que Zira precisa para continuar.
— Pois bem, quanto mais se estuda a mente, mais se
percebe o seu imenso e extraordinário poder e foi com base
nesta premissa que a vacina inibidora da libido foi criada.
— Continuo sem perceber a resposta à minha pergunta,
Zira. — E juro que estou a começar a ficar mais ansiosa a cada
segundo que passa.
— Princesa Lia, a vacina é um placebo. Não existe
nenhum fármaco ou molécula no universo que consiga inibir a
libido voryana que, tanto quanto sabemos, é mais poderosa
que a terrestre. A questão é que, no final da Primeira Era, Vory
caminhava a passos largos para a destruição. A ganância e a
luxúria estavam incontroláveis e, com a fuga da rainha Dora,
percebeu-se que era urgente tomar medidas que tornassem o
nosso planeta mais pacífico. Assim, depois de muitas reuniões
com os melhores e mais sábios voryanos, chegou-se à
conclusão que devia jogar-se com a mente de todos os
habitantes, tornando obrigatória uma suposta vacina inibidora
da libido.
Engulo em seco sem saber se estou preparada para ouvir
o resto do relato de Zira.
— E as coisas acabaram por correr ainda melhor do que o
previsto pois, ao acreditarem que tinham a libido inibida, os
voryanos passaram, objectivamente, a deixar de manifestar
interesse sexual. Uma espécie de profecia auto-induzida,
percebe? A mente, ao acreditar que tinha o corpo bloqueado,
desenvolveu ela própria um mecanismo de bloqueio.
— Então isso quer dizer que a nossa libido está intocada,
é isso? Mas como é que tu sabes disso? Todos os voryanos
estão a ser enganados há séculos, Zira? É isso que me estás a
dizer? — Estou em choque, estou mil vezes em choque.
— Sim, princesa, a nossa libido está intocada. É há casais
que o percebem, geralmente quando casam por amor. Nunca
ouviu relatos de casais que copulam à maneira primitiva? São
uma minoria, mas existem. — A voz de Zira torna-se mais
hesitante. — E eu percebo que seja difícil aceitar esta
informação, mas repare, sem a luxúria constante, o nosso
planeta encontrou a estabilidade e a paz há muito perdidas.
Actualmente, apenas os reis de Vory e o chefe dos cientistas do
palácio Real detêm esta informação que me foi confiada
apenas porque ninguém sabia exactamente aquilo que iria
acontecer consigo aqui na Terra. Este lugar é perigoso
princesa… Aqui os homens e as mulheres agem como os
nossos antepassados, comandados pela vontade e pelo desejo.
— Quando Zira diz estas palavras, vejo uma preocupação ge-
nuína nos seus olhos. — Os seus pais, prevendo a
possibilidade de que o seu futuro marido estimulasse a sua
libido, e não querendo que se sentisse impura ou culpada,
partilharam comigo esta informação.
Quero perguntar mil coisas neste momento, mas a única
coisa que acabo por perguntar é se Rome, futuro rei, também
está a par deste segredo.
— Ainda não, princesa, ainda é cedo. Mas a seu tempo
saberá.
Estou em choque absoluto. Pela minha cabeça, passam as
imagens de Elena, de Rome, dos meus pais, dos mares cor de
prata, de Arthur… Um dos pilares que sustentava a minha
personalidade acabou de ruir, uma das minhas convicções
acabou de cair por terra. Arthur, com meia-dúzia de toques,
desfez o efeito placebo a que me tenho agarrado com unhas e
dentes nos últimos dias.
E agora? Como é suposto agir a partir de agora?
Capítulo 12
Lia

Zira abandonou o meu quarto alguns minutos depois de


me ter dito que, afinal, a minha libido, mais forte que a
terrestre, está perfeitamente “acordada”. E apesar de já terem
passado quase duas horas desde esse momento, continuo
deitada na cama a olhar para o tecto, ainda em choque, a tentar
organizar as ideias. Confesso que a minha maior vontade é
desobedecer ao acordo real e entrar em contacto com Rome
que, tal como eu, merece saber que estamos a ser enganados
pelos nossos próprios pais. O pior é que, quanto mais penso
sobre isto, mais percebo que eu e Rome estamos longe de ser o
principal problema: no grande esquema das coisas, apesar de
pertencermos à realeza, somos insignificantes. Acontece que
há praticamente um planeta inteiro aprisionado pela própria
mente à crença de que a nossa libido está inibida e que é nosso
dever viver de maneira casta.
Se, de certa forma, posso até conseguir perceber que a
luxúria tenha tido um papel importante no agravamento dos
problemas do meu planeta, não consigo tirar da cabeça a ideia
de que a oportunidade de termos prazer a um nível mais
primário nos foi roubada por um rei que, abandonado pela
esposa, se sentiu despeitado a ponto de nos castigar a todos.
Em Vory, sempre ouvi histórias terríveis sobre a forma
como a luxúria desatinava as mentes e sobre as atrocidades
que se cometeram em seu nome. No dia da primeira vacina
que, afinal, deve ser composta por uma mistela inócua e
primária qualquer, somos informados de que o objectivo da
vacinação é impedir que famílias se desfaçam e que crimes
passionais sejam cometidos. Também nos falam da eliminação
da prostituição e de negócios ilegais de sexo que foram um
problema real em Vory durante a Primeira Era. E na minha
cabeça, tudo isto fazia sentido. Fui “vacinada” com a perfeita
convicção que estava a fazer o melhor por mim, pela família
que teria um dia e pelo meu planeta. Mas agora tudo se desfez.
Ou melhor, agora as mãos de Arthur desfizeram tudo isso.
Não é possível que as sensações que o toque de Arthur
provocou em mim tivessem contribuído para a ruína fosse do
que fosse. Todas as sensações foram de prazer, felicidade,
preenchimento… E apesar de não ter experiências idênticas
para poder comparar, se todos os relacionamentos carnais
produzirem estas sensações, não é de todo justo que as pessoas
sejam privadas de os experimentar.
Decido tomar um banho para tentar acalmar a mente,
assim como também o corpo que, desde a intrusão dos dedos
de Arthur, se encontra inquieto, como se faltasse alguma coisa,
como se estivesse incompleto… Em Vory, os banhos são
tomados numa espécie de pequena piscina, quase como as
banheiras da Terra, mas construídas ao nível do solo, numa
divisão que serve exclusivamente para esse fim. Nenhuma
outra necessidade é suprida na sala dos banhos e, aqui na
Terra, a ideia de tomar banho no mesmo local onde satisfaço
as outras necessidades biológicas continua a ser um choque
diário para mim. Para os voryanos, o banho é uma espécie de
ritual sagrado que cumprimos sempre com tempo nem que,
para isso, tenhamos que sacrificar horas de sono. A nossa
água, prateada, tem exactamente as mesmas textura e
densidade que a terrestre, mas não precisa de ser aquecida
pois, com a nossa capacidade de auto-regulação da tem-
peratura corporal, a água está sempre à temperatura ideal.
Poucas coisas trouxe comigo para a Terra, contudo, trouxe as
espumas de banho de Vory por medo de que, aqui, os produtos
utilizados fossem agressivos para a minha pele e não tivessem
o cheiro perfeito dos nossos, resultado de séculos de testes até
ser atingido o equilíbrio perfeito entre a doçura e a frescura.
Hoje vou utilizar espuma de marma, a minha flor voryana
favorita, com um cheiro não muito diferente da flor de
laranjeira terrestre. Enquanto a banheira vai enchendo, trato de
soltar o cabelo e livrar-me das minhas novas roupas.
A sensação de entrar na água é tão tranquilizante que,
fechando os olhos, quase me sinto transportada para casa e,
por momentos, quase apago da minha mente a história das
malditas vacinas placebo e o toque quente das mãos de Arthur.
Quase.
— Cheira bem aqui!. — ouço a voz masculina que me faz
imediatamente arrepiar.
— Arthur! — exclamo sem me atrever a virar. — Sai
imediatamente dos meus aposentos! Nem sequer tenho a
máscara colocada…
— E quem é que ainda quer saber dessa maldita máscara?
— Eu, eu quero. Não vou incumprir o acordo firmado
pelos nossos pais.
— Lia, Lia, Lia… Em Vory nunca te disseram que as
regras foram feitas para ser quebradas?
— Não vou voltar a pedir-te. Se não saíres imediatamente
vou começar a gritar. — Esperava que o meu tom de voz
tivesse sido suficientemente intimidatório para que Arthur
saísse do meu quarto naquele momento.
— Podias gritar o que quisesses Lia, não há ninguém
nesta ala do palácio. Ficarias rouca antes que te ouvissem…
Ok, talvez não tenha sido tão intimidatório assim.
— Além disso, — Arthur volta à carga —, para a semana
seremos marido e mulher.
A naturalidade com que ele constata este facto,
surpreende-me.
Será que o príncipe terrestre decidiu deixar de ser idiota e
aceitar o destino que foi traçado pelos nossos pais? Percebo
quando Arthur se ajoelha atrás de mim, e o calor percorre o
meu corpo quando ele me sussurra ao ouvido:
— Se a ausência da máscara é um problema para ti, então
não te vires.
Tenho medo, estou nervosa como nunca estive antes, nem
no dia em que me despedi de Vory e parti para a Terra. Estou
fechada com Arthur numa divisão pequena, completamente
nua, sei que ele pode fazer coisas esquisitas com o meu corpo
e não tenho a segurança de saber a minha libido anulada…
Mas uma parte de mim está demasiado curiosa e excitada para
permitir que o medo destrua este momento.
— Prende os cabelos, Lia.
E ainda que eu realmente quisesse, é quase impossível
desobedecer a este tom de comando rouco da voz de Arthur.
Faço um coque desordenado no cimo da cabeça e os
dedos do príncipe terrestre começam imediatamente a
massajar o meu pescoço, de uma forma suave e confiante. Não
sei como chegámos a isto, mas permito-me ceder ao toque de
Arthur e sinto o meu corpo relaxar. As mãos dele vão
descendo e, quando encontram a água, ele reage:
— Está fria!
— Não para mim — respondo, pedindo à Origem que
Arthur perceba que não quero falar agora. Falar vai fazer-me
racionalizar e, se eu for racional neste momento, as mãos de
Arthur acabarão, de uma forma ou de outra, por ter que
abandonar o meu corpo.
Mas ele parece perceber e entrega-se ao silêncio que só é
quebrado pelos suspiros que já nem tento conter. Enquanto as
mãos de Arthur passeiam pela minha cintura, ele vai enchendo
a parte de trás do meu pescoço de beijos. Desta vez, quando a
mão direita dele desce, eu sei exactamente o que procura e
ajusto a posição do corpo para poder recebê-lo.
— Alguém aprende depressa… — há um sorriso na voz
dele, mas não consigo responder, não neste momento.
Arthur toca-me como fez ao almoço, porém, desta vez, a
intensidade é esmagadoramente maior. Com a mão livre,
Arthur sobe para o meu peito e são demasiadas sensações para
poder ignorar. Entrego-me a elas e, de repente, é tudo
demasiado e sinto que o meu corpo está livre e solto e é como
se tivesse engolido o sol da Terra porque o meu sangue é
quente e o meu coração bate em todos os lugares.
— Deixa vir, Lia, permite-te sentir. — A voz de Arthur é
a machadada final e rendo-me totalmente.
Quando o meu corpo relaxa nas mãos do meu futuro
marido, ele dá-me um último beijo no pescoço e diz-me
apenas:
— Até logo, princesa.
— Até logo, Arthur — sussurro.
***
Às seis da tarde, estou à entrada do palácio, vestida com
um jumpsuit azul-escuro de padrão floral largo. Voltei a optar
por apanhar o cabelo mas, desta vez, fiz uma trança voryana. É
a minha primeira aparição pública na Terra e não quero causar
uma má impressão chegando demasiado produzida a um
evento informal. Além disso, não me parece aceitável ostentar
riqueza junto a crianças que, muito provavelmente, vivem
longe das condições ideais em termos económicos. Enquanto
espero por Arthur, a rainha Rita, que nota o meu nervosismo,
diz-me que estou óptima e vai-me contando, com muita graça,
as peripécias das suas primeiras aparições públicas. Quando
Arthur chega, de calças de ganga, camisa social branca e
blazer verde-seco que faz realçar a cor dos seus olhos, sinto a
sensação cada vez mais familiar de calor a percorrer o meu
corpo e começo a entrar em parafuso por pensar que todos vão
perceber o que aconteceu entre nós há algumas horas.
— Princesa Lia — cumprimenta-me Arthur no tom
formal do costume. E depois acrescenta, tão baixo que só eu
posso ouvir: — Respira, o teu orgasmo não está escrito na
testa.
E se ele acha que isto ajudou, é melhor que alguém lhe
diga que acabou de me deixar num constrangimento que vai
durar para sempre.
Caminhamos lado a lado até ao carro onde nos esperam o
motorista e o segurança que, segundo informação do rei
James, está designado para me acompanhar sempre que
precisar sair do palácio. Aperto o cinto, como Elena me disse
que deveria fazer, e aproveito para olhar pela janela. Nunca vi
a Terra que existe para lá dos muros do palácio e fico
surpreendida com a quantidade de árvores que ladeia o
caminho.
— Temos feito um grande esforço no sentido de
reflorestar o nosso planeta. Na Primeira Era, perdemos a maior
parte das nossas florestas e voltar a ter árvores em número
suficiente, de forma ordenada, é um dos grandes objectivos do
meu pai — explica Arthur, como se lesse os meus
pensamentos.
— Porquê de forma ordenada? — pergunto curiosa.
— Em Vory não há fogo, pois não?
Bem, afinal parece que o príncipe terrestre estudou
alguma coisa sobre o meu planeta.
— Não. A primeira vez que vi fogo foi aqui na Terra.
Antes disso, era só um conceito estranho e perfeitamente
abstracto que Zira insistia em trazer à cena durante as nossas
aulas.
— E como é que vocês se aquecem? Como é que
cozinham os alimentos? — Arthur pergunta e consigo perceber
verdadeira curiosidade na sua expressão.
— O nosso corpo não precisa de ser aquecido por
mecanismos externos. Temos uma capacidade de
autorregulação corporal que faz com que a nossa temperatura
interna se adapte às nossas necessidades. Ainda não percebi
foi se, aqui na Terra, essa capacidade se perde… Desde que
cheguei tenho sentido calor quase permanente — faço uma
curta pausa —, mas talvez seja necessário um período de
adaptação. De qualquer forma, a temperatura exterior em Vory
é constante, perto dos vossos 22° Celsius. — Não sei explicar
porquê, mas estou a gostar de contar estas pequenas coisas a
Arthur.
— E a comida? — questiona ele.
— Com energia nuclear que, na nossa Era, é a única
energia permitida em Vory.
— Problemas de escassez de combustíveis fósseis?
Pensava que vocês eram um planeta naturalmente rico nesse
tipo de recurso.
— E somos. Porém, a energia nuclear, por não gerar
gases que contribuam para o efeito de estufa, é a única que nos
permite controlar o aquecimento global.
— Dois planetas distintos, os mesmos problemas… —
Arthur suspira.
— Altezas — e tenho vontade de bater no segurança que
interrompeu a maior e mais cordial conversa que eu e Arthur
tivemos desde que aterrei no planeta chegámos ao nosso
destino.
Capítulo 13
Arthur

O dia de hoje tem sido surpreendente e Lia, que eu estava


convicto que ia odiar, tem-se revelado uma agradável surpresa.
Apesar dos anos-luz que separam a Terra de Vory, a verdade é
que a minha noiva me começa a parecer, cada vez mais, uma
extraordinária mulher humana dotada com uns estranhos olhos
violeta. Até a pele que me parecia gelada, quando lhe toco
com propriedade, parece ter a temperatura perfeita debaixo das
minhas mãos. E a sua inocência acaba totalmente comigo. Se
ela imaginasse o efeito que aqueles gemidos de quem
experimenta o prazer pela primeira vez têm em mim… Mas
suponho que ela desconheça até mesmo o básico da anatomia
masculina e que não lhe passe pela mente o que é uma
erecção. Terei, contudo, todo o gosto em ensiná-la até porque,
mesmo não tendo sido nossa escolha, estaremos ligados pelo
tempo que dure a nossa vida.
No caminho para a instituição de acolhimento de crianças
da qual a minha mãe é fundadora, tivemos a nossa primeira
conversa mundana e foi tão fácil falar com Lia como com
qualquer um dos meus amigos terrestres. E por falar em
caminho, o meu telefone de pulso não tem parado de vibrar
com mensagens de vídeo que, mesmo sem abrir, sei que são de
Genna. Suponho que terei que ligar-lhe quando regressar ao
palácio mas, por agora, continuo a observar a forma natural e
absolutamente honesta como Lia interage com estas crianças.
Ao contrário do que consta sobre os voryanos, aqui na
Terra não foi colocado nenhum limite ao número de filhos que
cada casal pode ter, porém, o ministério da saúde, de forma
gratuita, oferece a possibilidade de laqueação reversível /
vasectomia depois do nascimento do segundo filho. Acontece
que muitos casais, por medo e desconhecimento, continuam a
não optar pelos procedimentos cirúrgicos e, não raras vezes,
acabam com mais filhos do que aqueles que os seus recursos
permitem sustentar. Nestes casos, apesar das ajudas que o
governo real disponibiliza, ainda se verifica uma elevada taxa
de abandono de crianças que são depois conduzidas para estes
centros de acolhimento. Para aqui são trazidas também as
crianças vítimas de maus-tratos. E Lia parece estar mais feliz e
integrada no meio delas do que alguma vez a vi aqui na Terra.
Estamos neste momento sentados no chão e Lia, com
uma voz quase mágica, ensina uma canção infantil do seu
planeta natal. Confesso que tenho pena de não dominar o
voryano mas esforço-me como posso para repetir as palavras
que a princesa vai ensinando às crianças que olham para ela
com o ar mais encantado do mundo. No momento em que a
canção termina, todas as crianças aplaudem e só a voz da
funcionaria que anuncia o jantar interrompe a ovação. As
crianças beijam Lia e pedem-lhe que as visite novamente.
Com a promessa de um novo encontro na próxima semana,
contacto o motorista para o informar que estamos prontos para
regressar ao palácio. A resposta que recebo, contudo,
transforma o meu sangue em lama.
Ao que parece, um pequeno aglomerado de pessoas
concentrou-se à porta da instituição à espera da nossa saída e
não vieram propriamente desejar felicidades aos noivos. Pelo
que me é transmitido pelo nosso motorista, os manifestantes
empunham cartazes onde expressam a sua revolta pela união
dos dois planetas e gritam palavras de ordem contra a princesa
de Vory. Sinto-me entre a espada e a parede e não sei se deva
tentar atrasar Lia, se tentar uma saída pela parte traseira do
edifício. Foda-se, isto tinha mesmo que acontecer logo hoje?
— Arthur — a voz de Lia interrompe os meus
pensamentos —, há alguma coisa errada? — E pronto, para
além de dar choques, parece que a minha futura mulher
também tem o dom da leitura de mentes.
— Fazem leitura de mentes em Vory? — Esta pergunta
idiota é a minha tentativa desesperada de ganhar algum tempo.
Só não percebo que me estou a entregar de bandeja.
— Não, não fazemos. O funcionamento da mente
continua a ser um dos nossos grandes mistérios. Mas não foi
difícil ler a tua agora. Estás pálido e não páras de olhar para o
dispositivo de comunicação que tens no pulso. Há alguma
coisa em que possa ajudar?
A sagacidade dela não me permite mentir…
— Lia, sabes que nem todos os terrestres estão satisfeitos
com o nosso casamento, certo?
— Imaginei que isso pudesse acontecer, sim. Suponho
que também haja alguns voryanos que não adorem a ideia.
Arthur — e a voz dela é um toque de seda na minha pele
sempre que diz o meu nome —, nós próprios não éramos
favoráveis a este casamento… — E de repente, Lia cora, mas
cora de verdade, e percebo, pela forma como abre e fecha as
mãos e pelo modo como os cabelos começam a mostrar sinais
de electricidade estática, que a energia vital dela está
descontrolada. — Não somos favoráveis, quero dizer. Às
vezes, ainda me confundo com os tempos verbais do idioma
terrestre, desculpa.
A expressão envergonhada dela é adorável e apetece-me
dizer-lhe que acho que não houve aqui qualquer espécie de
confusão e que o pretérito imperfeito é o tempo verbal perfeito
para o dia de hoje. Mas, em vez disso, agarro a mão de Lia e
entrelaço os meus dedos nos dela. Quando ela olha para mim e
levanta o queixo de forma orgulhosa, eu percebo a mensagem.
Vamos sair juntos pela porta da frente.
Quando chegamos à rua, somos imediatamente cercados
por jornalistas. Nestas situações, os repórteres lembram-me
sempre um bando de hienas famintas à espera de conseguir o
primeiro naco de carne morta. Mas Lia tem fibra e, apesar das
ofensas que são perfeitamente audíveis, mantém um sorriso
sereno no rosto e a sua expressão não se altera um milímetro,
nem mesmo quando alguém decide atirar-lhe um sapato que
colide com o seu ombro delicado. Caralho, ninguém imagina o
esforço que eu estou a fazer para não largar Lia e procurar pelo
anormal que a atingiu só para lhe poder encher o couro de
porrada. Quem é que esta gente pensa que é? Um dia, Lia será
a rainha da Terra, a rainha de cada um deles. É melhor que
aprendam a respeitá-la.
Depois de umas breves palavras às hienas, perdão, aos
jornalistas, somos escoltados pelo meio da multidão até ao
carro. Quando finalmente entramos, Lia pede um lenço de
papel que o segurança lhe cede e quase morro mil mortes
quando percebo que, na parte posterior do pescoço, Lia tem a
saliva de algum desgraçado que lhe cuspiu para cima, à
passagem. Foda-se, que vontade de ir lá fora e descobrir quem
são estes cães, que vontade de apertar, com as minhas próprias
mãos, o pescoço destes merdas que fizeram com que um dia
tão bom, de repente, fosse transformado num dia para
esquecer. E quando percebo a fila de lágrimas prateadas e
silenciosas que descem pelo rosto de Lia, a minha vontade de
desmembrar alguém triplica.
— Eles odeiam-me, Arthur, os terrestres odeiam-me.
A voz de Lia é pouco mais que um sussurro e, de forma
quase inconsciente, puxo-a para os meus braços. É abraçados
que seguimos até ao palácio. Sinto o rosto dela colado no meu
peito e posso sentir que as lágrimas deixam um rasto molhado
na minha camisa.
No tempo que dura a viagem, percebo o aroma fresco,
leve, algures entre o cítrico e o floral que emana de Lia e sou
transportado até ao banho que “compartilhámos” há pouco. E
essa viagem em pensamento começa a ter um efeito físico
notório em mim. Faço um esforço para acalmar as partes mais
inquietas da minha anatomia, ao mesmo tempo que vou
tentando consolar Lia. A verdade é que a maioria dos terrestres
concorda com tudo o que lhes garanta a paz e tenho a certeza
que vão gostar de Lia assim que tiverem a oportunidade de a
conhecer um pouco melhor. Percebo que os rebeldes começam
a ter mais força mas, ainda assim, tento que Lia saiba que são
uma minoria, certamente menos de 1% da população de
Pangeia.
Quando chegamos ao palácio e tenho que soltar Lia do
meu abraço, sinto um vazio estranho. Menos chorosa, ela diz-
me que vai pular o jantar e que vai ler um bocadinho no
quarto. Pede-me que apresente as suas desculpas aos meus
pais e a expressão no rosto dela é tão deliciosa que não resisto
a beijá-la. Tento, Deus sabe como tento, que o beijo seja
delicado, mas desta vez é Lia quem me pede mais com
pequenas dentadas sensuais no lábio inferior e a língua
intrusiva a procurar a minha. E foda-se se eu sou de ferro.
Em menos de nada, Lia acaba esmagada entre o meu
corpo e a parede da entrada do palácio. As minhas mãos
parecem ter vida própria quando deslizam pelo corpo de Lia,
por cima da roupa, e é com muita pena que percebo que os
macacões são a pior peça de vestuário de sempre em termos de
acessibilidade. Solto um gemido de frustração enquanto luto
contra o tecido e Lia responde com uma gargalhada cristalina
que faz o meu coração bater mais forte. Foda-se, o que é que
esta extraterrestre está a fazer comigo?
— Arthur, temos que parar. Estamos na rua.
— Tecnicamente, estamos nos jardins do palácio, não
exactamente na rua — respondo, entre beijos. E para reforçar
o meu ponto, decido esfregar-me estrategicamente contra ela.
O gemido de prazer que lhe escapa dos lábios é uma vitória
para mim.
— Não, Arthur, não agora. Não aqui — diz Lia quando
me empurra delicadamente. Noto com orgulho que os lábios
dela estão inchados e que há muitos cabelos a escapar da
trança. Parece que alguém perdeu totalmente a compostura
habitual. E eu gosto de a ver assim. — Bom jantar, meu
príncipe.
Fico meio aparvalhado a ver Lia afastar-se e percebo que
antes de jantar vou ter que passar pelo quarto para aliviar o
estado miserável em que me encontro neste momento. Acho
que a minha mãe não vai ficar feliz se me sentar à mesa do
jantar com uma erecção que, pelo tamanho que tem, é capaz de
ser visível em Vory.
No caminho para o quarto, dou umas batidas na porta do
quarto de Lia ao ritmo da música que ela cantou às crianças na
instituição. Espero que perceba que lhe quero dizer que estou
aqui perto, à distância de pouco mais que um corredor.
Já no quarto, chego à conclusão que o melhor é aliviar-
me enquanto tomo um duche rápido. Enquanto me dispo, meto
a água a correr morna e, no banho, começo a masturbar-me
enquanto penso no banho de há bocado e nos beijos trocados
no jardim. Fecho os olhos com força enquanto imagino que a
minha mão é a mão de Lia e, de repente, sinto que não estou
sozinho. Ouço um “pshiuuuuuu” suave, sussurrado em tom de
comando e não abro os olhos. Percebo pelo movimento que ela
se ajoelha e tremo com a antecipação. Ela vai mesmo fazer
isto? Parece-me que alguém andou a aprender umas coisas nas
últimas horas…
Apesar de estar num estado de excitação que mal me
permite raciocinar, no momento em que a boca dela me toca,
sinto que há qualquer coisa errada. A temperatura não está
certa, a delicadeza do toque tampouco. Abro os olhos,
subitamente preocupado, e ajoelhada à minha frente,
completamente nua, está Genna. Ainda em choque, ouço um
soluço vindo da porta e quando desvio para lá o olhar, vejo
Lia, de pé, muito mais pálida que o costume e com lágrimas de
prata novamente a escorrerem-lhe pela face.
— Lia — grito em pânico espera, por favor!
Mas ela vira-me as costas e foge em passo de corrida.
Genna continua de joelhos e tem no rosto um sorriso de
vitória.
Foda-se, esta merda não pode estar a acontecer.
Capítulo 14
Lia

Não sei o que é que tinha na cabeça quando pensei que eu


e Arthur estávamos realmente a construir alguma coisa em
conjunto… Talvez esta dor que sinto no peito tenha sido
merecida. Venho de um planeta que condena a luxúria e
suponho agora que um dos motivos seja exactamente o facto
de ela nos mexer com o coração e ter o poder de nos destruir.
Zira avisou-me mas eu achei que sabia aquilo que estava a
fazer. E o que é que ganhei com isso? Uma desilusão
profunda.
Quando cheguei ao quarto, depois de me despedir de
Arthur, pensei que tomar um banho fosse uma boa ideia. Para
além de precisar de me acalmar fisicamente, precisava também
de organizar as minhas ideias em relação ao que aconteceu à
porta da instituição de acolhimento de crianças onde fui
apupada por um grupo de terrestres. Confesso que, apesar de
os esperar e de ter sido treinada para lidar com estes pequenos
actos de protesto, fiquei desiludida com as palavras que ouvi.
É que aquelas pessoas não estavam ali apenas movidas por
discordâncias em relação à política de paz intergaláctica.
Percebi nos olhos delas que era o ódio que as movia. Sem
sequer me conhecer, aquela gente nutre por mim um ódio
profundo, como se eu fosse a representação viva de tudo o que
elas acreditam estar errado com o mundo e isso doeu cá
dentro. Mas quando estava a despir-me, ouvi a batida de
Arthur na minha porta. Não foi uma batida qualquer, foi uma
batida ao ritmo da canção de embalar que as mães voryanas
cantam aos filhos e, na minha cabeça idiota, achei que aquela
batida era um convite, uma espécie de “estou aqui quase ao teu
lado, à tua espera”.
Nem sequer me vesti decentemente quando, uns minutos
depois, decidi aceitar o suposto convite. Enfiei um dos robes
de cetim violeta que a rainha me enviou junto com as roupas
terrestres e fui até ao quarto de Arthur. Assim mesmo, só de
roupão, como se, em vez de uma princesa, fosse apenas uma
vulgar meretriz. A verdade é que não sei exactamente o que
esperava… Talvez fosse apenas a vontade de ver aquele fogo a
arder nos olhos de Arthur novamente ou, sendo realmente
honesta, talvez fosse a vontade que ele voltasse a acender o
fogo em mim.
Não sei como, em tão poucas horas, me pude iludir tanto.
A Terra está realmente a prejudicar o meu discernimento, não
há outra explicação. De que outra forma poderei ter pensado
vislumbrar um bom coração num canalha como Arthur?
Confundi astúcia com inteligência e luxúria com sentimentos
mais profundos. Se calhar mereço a dor que sinto agora por ter
sido tão burra. Mas porra, como é que Arthur pode beijar-me
daquela forma e, menos de meia-hora depois, estar de uma
forma tão íntima com outra mulher?
E o idiota que não pense que eu não sei exactamente o
que estava a acontecer ali. É que a minha experiência em
relacionamentos físicos pode ser nula, mas a televisão terrestre
e as conversas com Elena têm-me ensinado algumas coisas. Se
de facto não percebo como é que aquele acto pode trazer
prazer, Elena explicou-me, muito corada, que apesar dela
própria nunca ter feito nada do género, os casais
experimentam grande prazer nestas práticas que são
profundamente íntimas. E saber dessa intimidade é o que mais
me dói. Não faço ideia quem seja a mulher com quem Arthur
estava e não consegui ver nada do rosto dela. Porém, vi o rosto
dele e isso foi suficiente para perceber que tudo o que ele tem
vivido comigo, e que para mim representa tanto, para Arthur é
o mesmo que nada.
Sinto que há um mar de lágrimas à espera de permissão
para sair, mas recuso-me a ceder. Já chorei demasiado hoje, já
mostrei demasiada fragilidade. É por isso que respiro fundo,
uma, duas, dez, vinte vezes. Até sentir que consigo controlar
novamente as minhas emoções. Arthur fez a escolha dele, eu
saberei viver com ela e farei as minhas próprias escolhas. E ele
não pense que viverei de cabeça baixa. Mal consiga conter a
dor que me dilacera o peito, vou começar a trilhar o meu
próprio caminho, com passos pequenos mas seguros. Os anos
de treino de controlo de emoções em Vory vão ser-me muito
úteis agora.
Bolas, Arthur nem sequer tentou vir atrás de mim…
Desisto do banho, visto a minha camisa de noite preferida, de
uma suave fibra sintetizada nos laboratórios do meu planeta
natal, e deito-me na cama. Amanhã, Arthur vai conhecer uma
nova Lia, uma Lia que vai estar dedicada a conquistar o povo
terrestre, uma Lia que vai fazer Arthur arrepender-se de a ter
humilhado. Adormeço a repetir mentalmente o mantra
voryano que tantas vezes ouvi da boca da minha mãe: “quanto
mais o sintas menos o mostres”.
O meu sono, contudo, é intranquilo. Sonho que Arthur
está em Vory com outra mulher, a mesma que vi com ele no
duche, e que Rome me promete que vai matá-lo mas que,
primeiro, é necessário eliminar os terrestres que voltaram a
invadir o nosso planeta. Felizmente, a meio do sonho, sinto
uma presença tranquilizadora e uma mão que me acaricia a
face de forma reverente. A minha mente confusa ainda pensa
que ninguém devia estar a ver-me sem máscara mas, quando
uma voz grave e melodiosa começa a cantar a música de em-
balar voryana, entrego-me outra vez aos braços de Morpheu e,
desta vez, o meu sono mantém-se tranquilo até ao raiar da
aurora.
De manhã, quando acordo, há um pé de flor de laranjeira
ao lado da minha almofada e começo a ter medo de que nem
tudo esta noite tenha sido um sonho. Ainda assim, a flor que
perfuma o quarto tem o dom de me trazer memórias que fazem
com que a tristeza que sinto aumente mais e mais. Arrasto-me
para a casa-de-banho e preparo o meu ritual de banho. Quando
perfumo a água, sinto-me comovida pelo facto de Arthur ter
identificado o meu cheiro mas não posso deixar que uma única
flor me encha de esperanças idiotas. Arthur não presta. Pode
ser devastadoramente bonito e ter uns olhos mais brilhantes
que as estrelas no céu mas onde conta, no interior, é só um
cretino traidor.
Decido escolher a minha roupa com particular cuidado e
mantenho o plano que delineei ontem à noite: vou
impressionar Arthur e ele vai descobrir aquilo que perdeu. E
sim, perdeu, porque até posso ser obrigada a casar com ele,
contudo, o meu coração foi definitivamente retirado da
equação.
Depois de observar atentamente o meu roupeiro, opto
novamente por um macacão, desta vez, todo preto, de calções
bem curtos. A parte de cima é larga e fluída com um decote
que, não sendo excessivamente pronunciado, deixa perceber o
contorno dos meus seios. Não me sinto particularmente
confortável com a quantidade de pele que tenho exposta,
porém, mesmo assim, não consigo deixar de admirar o
contraste elegante que o preto profundo faz com a minha pele
alva. Para os pés, opto por umas sandálias rasas que fecham no
tornozelo com um laço elegante, também pretas. O cabelo vai
solto e com as minhas ondas naturais e o meu rosto está limpo,
sem maquilhagem.
Quando coloco a máscara, admiro o meu reflexo no
espelho e, modéstia à parte, sei que pareço muito bem. Preciso
de me sentir confiante para enfrentar este dia. Enquanto me
olho ao espelho, de todos os ângulos, ouço uma batida na
porta, demasiado forte para pertencer a Zira. O meu estômago
contrai-se de ansiedade mas, quando abro, é Elena quem está
de pé, vestida com uns jeans e uma camisa branca e com um
sorriso no rosto que contrasta em absoluto com o meu estado
de espírito.
— Bom dia, flor do dia!
Certo, hoje temos mesmo uma Elena em modo radiante.
— Bom dia, Elena! — digo eu, num tom que acredito
disfarçar a minha tristeza.
— E então, já escolheste o vestido que vais usar logo à
noite? As nossas cabeleireiras e o maquilhador real chegam às
16h. Marquei esteticista para ti, para as 14h. Por acaso nem
sequer faço ideia se tens pêlos, mas como tens cabelos e
sobrancelhas, assumi que tivesses. De qualquer forma, mesmo
que não tenhas, é preciso arranjar as unhas e…
— Elena, pára! — sou forçada a interromper a verborreia
de Elena porque estou totalmente perdida na conversa. — O
que é que se vai passar logo à noite?
O queixo de Elena cai ao chão e é num tom histérico que
me pergunta, quase em choque:
— Como assim o que é que se vai passar logo à noite? É
o TEU baile de apresentação à restante família real e aos
membros do governo terrestre e respectivas famílias!
Neste ponto juro que ela já não fala, só guincha. Muito. E
muito alto.
— O idiota do meu irmão ficou de te avisar. O meu Deus,
a minha mãe vai enlouquecer quando perceber que não sabias.
A mãe dela vai enlouquecer, ok. Então e eu? Eu já estive
mais longe de me atirar para o chão a espernear e a implorar
que me deixem voltar para casa. Não basta ter que lidar com a
“traição” de Arthur como ainda tenho que fazê-lo em público
e, muito provavelmente, calçada com uns daqueles sapatos de
salto gigante e perigosamente fino que a Rainha Rita costuma
usar. A Origem abandonou-me no minuto em que entrei na
nave com destino à Terra, só pode.
Enquanto me perco em pensamentos de angústia e
autocomiseração, Elena marcha (e marcha é a expressão certa
porque, neste momento, ela parece ter encarnado num general)
para a minha zona de vestir e começa a vasculhar entre os
vestidos de cerimónia que vieram com o meu guarda-roupa
terrestre.
— Certo, é este! — diz Elena, ao mesmo tempo que retira
do cabide um deslumbrante vestido dourado.
O vestido é maravilhoso, e deslumbrante não faz jus à
magnífica peça que tenho à minha frente. Apesar de simples,
este vestido é absolutamente único. A parte superior é de alças
largas, justo ao corpo, e com uma abertura quase até à altura
do umbigo, que se replica nas costas. Na cintura, o vestido
alarga e abre-se numa verdadeira saia de princesa. A menina
sonhadora que há em mim tem vontade de fazer piruetas só de
ver o vestido e nem posso acreditar que vou vestir uma peça
tão perfeita. Apesar de todo o desespero das últimas horas,
sinto que este vestido me traz um bocadinho mais de força e
alento.
— Temos que ver como é que fazemos com a máscara
porque a prateada não fica aí nada bem — diz Elena com ar
pensativo —, mas tratamos disso depois porque já estamos
atrasadas para o pequeno-almoço.
— Certo, certo. Vamos então descer — respondo eu,
mostrando uma coragem que não tenho e repetindo
internamente o mantra que me vai permitir sobreviver. “Lia,
quanto mais o sintas, menos o mostres”.
Quando chegamos à sala de refeições, já todos estão
sentados à mesa, a aguardar a nossa chegada e, mesmo por
detrás da máscara, posso perceber o olhar reprovador de Zira.
O que não consigo decifrar é se a reprovação se deve ao meu
atraso ou ao meu aspecto.
Depois de pedir desculpas pelo atraso, ocupo o meu lugar
na mesa ao lado de Arthur e, quando me sento, os nossos
olhares acabam por cruzar-se. O que vejo nos olhos dele está
longe da reprovação do olhar de Zira. O olhar de Arthur
mostra espanto e apreciação. Não contavas com esta, pois não,
seu terrestre idiota? Aposto que Arthur esperava ver-me feita
num farrapo, de expressão triste e magoada. Mas eu recuso-me
a dar-lhe esse prazer.
— Bom dia, príncipe Arthur — digo com um sorriso
plástico, ensaiado para parecer verdadeiro descansou bem esta
noite?
— Não! Quero dizer, sim, mais ou menos, eu… Princesa
Lia, temos que falar!
— E essa conversa tem mesmo que ser hoje? — pergunto
com ar angelical. — É que tenho o dia completamente cheio
com os preparativos do baile de logo à noite.
— Ught — Arthur geme em repulsa —, nunca mais me
lembrei dessa idiotice… Mas eu preciso mesmo de falar
contigo.
Estou ciente de que todos à mesa estão atentos à nossa
conversa e, como tal, sou o mais politicamente correcta que
consigo.
— Certo, fá-lo-ei saber se conseguir uns minutos.
— Mas Lia…
Acontece que neste ponto já me virei para Elena e iniciei
uma conversa fútil sobre penteados de festa.
Menos de um minuto depois, ouço a cadeira de Arthur
afastar-se e percebo quando abandona a sala sem qualquer tipo
de explicação. Zira e a família real terrestre olham para a porta
estupefactos e Elena pergunta de forma rude que bicho é que
terá mordido ao irmão. Confesso que, apesar de não ter
planeado fazer isto, não resisto a lançar uma farpa e, com ar
inocente, exclamo:
— Talvez se tenha chateado com a amiga que o veio
visitar ontem à noite.
O Rei James engasga-se com o sumo de laranja e juro que
a Rainha Rita está de tal forma lívida que, pela primeira vez
desde que cheguei à Terra, não sou a pessoa mais branca na
sala.
Capítulo 15
Lia

Depois de largar a bomba que deixa os monarcas


terrestres completamente de queixo caído, o silêncio que se
instala à mesa do pequeno-almoço é constrangedor. Confesso
que tenho vontade de retirar as minhas palavras porque, apesar
de Arthur ser um idiota, a última coisa que desejo é prejudicar
a relação entre ele e os pais. Acaba por ser Elena quem quebra
o silêncio perguntando à rainha Rita quem virá ao baile e se é
necessária alguma ajuda com os preparativos. Enquanto
termina a sua salada de fruta, a rainha responde que está quase
tudo pronto e que só temos que nos preocupar em pôr-nos
bonitas para logo à noite. O que relembra Elena que temos um
problema “de máscara” para resolver.
— Mãe, conheces algum artesão que consiga fazer uma
máscara para Lia durante o dia de hoje? — pergunta Elena.
— Há algum problema com a tua máscara, querida? —
questiona-me a rainha.
— Na verdade, não. É só porque o meu vestido é dourado
e talvez a máscara prateada não fique muito bem.
— Suponho que nenhum dos artesãos de Pangeia consiga
fazer uma máscara tão rapidamente, mas talvez eu tenha a
solução — a rainha Rita abre um sorriso enigmático basta que
me acompanhem aos meus aposentos.
E é exactamente isso que fazemos quando todos
terminamos o pequeno-almoço: ladeando a rainha Rita
dirigimo-nos à sua zona privada que é um retrato fiel da
própria rainha. O espaço é organizado e elegante mas, ao
mesmo tempo, acolhedor. A rainha abre um armário que, pelo
que posso perceber, está cheio de fantasias e tira lá de dentro
uma bonita caixa dourada que estende na minha direcção.
— Toma, Lia. Vê se consideras adequada.
Elena vem quase para cima de mim e, quando abro a
caixa, o meu queixo cai. Lá dentro está uma máscara preta de
um tecido rendado. O tecido mais bonito e delicado que vi em
toda a minha vida.
— E então? Serve? — pergunta a rainha.
— Se serve? É simplesmente PERFEITA! — E nem
preciso de confirmar com Elena porque, pelo brilho nos olhos
dela, tenho a certeza que pensa exactamente o mesmo.
— Foi a máscara que usei no meu primeiro baile de
máscaras como rainha — a voz da rainha está repleta de uma
doce nostalgia —, uma oferta de James.
— Vai ser uma honra e um privilégio poder usá-la.
— Minha querida, faz todo o sentido que a uses. Aqui
entre mulheres posso dizer que foi na noite desse baile que
Arthur foi concebido.
— Nããããããoooooo, por favor, mãe, pára! É demasiada
informação — a voz de Elena é toda uma agonia —, nenhum
filho, seja em que galáxia for, quer saber esse tipo de coisas
sobre os pais.
A rainha Rita dá uma gargalhada cristalina mas, desta
vez, não consigo acompanhá-la. É que a simples menção ao
nome de Arthur fez com que o aperto no meu peito,
temporariamente contido, voltasse a estender os seus
tentáculos. Tento, juro que tento, fazer uma cara minimamente
alegre, mas suponho que não esteja a correr como suposto
porque Elena me pergunta se está tudo bem. Respondo que
sim, que foi só emoção com o gesto da rainha e, não sei bem
como, ela compra a minha justificação e muda de assunto,
puxando-me pelos braços para decidir que sapatos devo calçar.
O resto do dia passa num borrão, entre cuidados de
beleza, preparativos e um almoço, onde nem Arthur, nem o rei
James estão presentes. Zira passou o dia entre o salão de baile
e a cozinha, a ajudar a rainha Rita a organizar o evento desta
noite e, por isso, mal a vi. A verdade é que pouco a tenho visto
nos últimos dias e começo a recear que, tão focada primeiro no
meu prazer e depois na minha dor, a esteja a negligenciar.
Enquanto lanço ao espelho uma última mirada, prometo a mim
mesma que amanhã vou conversar com Zira e dedicar-lhe uma
boa parte do meu dia, afinal é ela a minha âncora, a força que
me liga a Vory e que nunca me deixa esquecer quem sou e de
onde venho.
Mas agora, neste exacto momento, o que sou é uma
princesa, uma verdadeira princesa. O meu cabelo, com risco
ao lado, está perfeitamente esticado e apanhado num coque
baixo e elegante. A minha pele, com a ajuda da maquilhagem,
está incrível, e os meus lábios estão brilhantes e parecem
suaves como seda. A máscara preta da rainha, longe de
prejudicar o meu aspecto, confere-lhe um ar de mistério. A
parte de cima do vestido ajusta-se a mim como uma segunda
pele e, pela profundidade do decote, nem sequer vesti soutien.
Quase tenho vergonha de admiti-lo, mesmo para mim própria,
mas sinto-me sensual e poderosa e espero que essa sensação
transpareça por todos os meus poros e que Arthur, cuja traição
me assombrou o dia inteiro, a consiga sentir.
Sei, ainda antes de abrir a porta, que é Arthur quem está
do outro lado. De uma forma inexplicável, a energia que levei
anos para aprender a canalizar converge descoordenada para a
superfície da minha pele sempre que ele está por perto. Fecho
a expressão antes de abrir a porta mas é-me impossível não
suspirar quando encaro
Arthur que está deslumbrante num smoking e mais
penteado do que alguma vez o vi.
Fico feliz quando percebo que também não consegue
ficar indiferente. Os olhos deles não param de percorrer o meu
corpo e, só por esse olhar, cada pontada que senti hoje
enquanto me arranjavam as sobrancelhas com uma pinça,
como se ainda vivêssemos na Primeira Era, valeu a pena.
— Lia — e a expressão nos olhos de Arthur é de dor tens
que me deixar explicar-te!
— Não quero explicações, Arthur. Por mim está tudo
bem. A minha missão na Terra é casar contigo, coisa que farei,
e depois ter o teu filho que será concebido da forma que
considerares mais adequada. Absolutamente nada mais que
isto.
— Tu sabes que não é assim. Eu sei que tu sentes que não
é assim. — Arthur dá um passo que o deixa perigosamente
perto de mim. — Lia, nós podemos ser maravilhosos os dois
juntos. Eu posso dar-te o mundo, fazer-te sentir coisas que
nunca sentiste. E tu podes ser a minha rainha.
Como eu queria acreditar nele, como seria tão mais fácil
acreditar na sinceridade que parece existir nos olhos verdes de
Arthur…
— Eu sei aquilo que vi — digo de forma seca —, mas,
como já disse, pouco me importa. — E esta sou eu a mentir
com todos os dentes que tenho na boca.
— Eu pensava que eras tu! — Arthur diz quase aos
gritos. — Tinha os olhos fechados no chuveiro enquanto
pensava em ti e, quando Genna entrou, eu acreditei que eras
tu. Quando percebi que não eras, foi quando abri os olhos e tu
já lá estavas de pé. Tens que acreditar em mim, Lia, por favor.
Ou Arthur é realmente um bom actor, porque quase
consigo palpar o desespero nas suas palavras, ou há uma parte
dele que é inocente nesta história. Felizmente, sou salva pela
chegada de Elena, lindíssima, num vestido verde que lhe
destaca os olhos, e que pergunta, com o ar mais natural do
mundo, o que raio ainda ali estamos a fazer.
— Íamos mesmo agora descer — digo aliviada.
— Óptimo, então Arthur pode levar-nos às duas, uma vez
que Zira já desceu — responde Elena.
Mal Arthur enlaça o seu braço no meu, sinto que a minha
energia converge toda para o local onde as nossas peles se
tocam e sou incapaz de controlar uma pequena descarga.
Arthur olha para mim e tento pedir-lhe desculpas com o olhar.
Espero que ele perceba que o choque foi tudo menos
intencional. O sorrisinho convencido que lhe aparece no rosto
mostra-me que sim, que é bem capaz de ter percebido. O que
ele também percebeu foi que, perto dele, tenho uma profunda
dificuldade em controlar-me.
Quando entramos no salão de baile, a comoção toma
conta de mim. Com o olhar, procuro a rainha Rita e espero que
o sorriso que lhe dou transmita a minha gratidão pelo que ela
tentou fazer aqui. A luz do salão é suave e, ao centro, foi
colocada uma fonte onde, através de um qualquer efeito, a
água que jorra é cor de prata. A rainha Rita e o Rei James, em
vez dos habituais fatos terrestres de cerimónia, vestem túnicas
voryanas escarlates. Mas o pormenor que mais me toca é que
as dezenas de jarras dispersas pelo salão estão cheias de flores
de laranjeira que me devolvem o aroma mais reconfortante do
mundo: o cheiro da minha casa, o meu cheiro.
— Fui eu que pedi à minha mãe que usasse as flores de
laranjeira — diz-me Arthur com a voz carregada de
sensualidade —, o cheiro lembra-me de ti e de momentos que
nunca vou esquecer.
Sinto o rubor tomar conta da minha face quando me
lembro do banho que compartilhei com Arthur ontem e que
parece quase ter acontecido numa vida passada. A sensação de
preenchimento quando ele me tocou intimamente foi tão
perfeita… Tenho vontade de contar-lhe que o aroma, quase
idêntico a este, provém de uma planta voryana mas, quando
me preparo para o fazer, somos interrompidos por uMa mulher
que, apesar de apenas ter visto de costas, reconheço de
imediato.
Faço um esforço hercúleo para não me alterar, mas sinto
que Arthur me puxa para mais perto de si e aumenta a pressão
que exerce no meu braço. O sorriso na cara da mulher dá-me
náuseas, porém, obrigo-me a recordar que não é com ela que
devo estar zangada porque, provavelmente, é só mais uma
pobre desgraçada que não resistiu aos truques de sedução
carnal de Arthur.
— Olá outra vez, Arthur! — É impressão minha ou noto
um tom jocoso na sua voz?
— Genna — diz Arthur, ao mesmo tempo que acena com
a cabeça.
— E então? Não vais apresentar-me a tua acompanhante?
Acompanhante? Tenho ideia que sou um bocadinho mais
que a acompanhante de Arthur, tipo a sua noiva, mas mordo a
língua para não deixar sair as observações sarcásticas que se
estão a acumular na minha boca.
— Esta é a princesa Lia de Vory, minha noiva.
Ok, um ponto para Arthur por isto.
— E a senhora é? — pergunto com um ar de desinteresse.
— Genna Debrum — responde Arthur —, a filha do
ministro do mar e pescas do governo do meu pai.
— E uma velha amiga de Arthur — acrescenta Genna. —
Na verdade, princesa Lia, tenho quase a certeza de já nos
termos cruzado por aí.
Certo, posso esquecer a parte desta mulherzinha ser uma
incauta iludida por Arthur. Genna é uma cadela.
— Não creio, Genna… Se nos tivéssemos cruzado, tenho
quase a certeza que me recordaria.
Sim, sou demasiado esperta para dar-lhe o que ela quer e,
por isso, opto por matar-lhe o jogo ainda antes dela conseguir
começá-lo.
— Temos que ir cumprimentar os meus pais. — Com
estas palavras, Arthur quase me arrasta na direcção dos reis
terrestres.
Quando chegamos perto do casal real, não me consigo
conter e abraço a rainha Rita que me sussurra ao ouvido que
estou linda. O rei James, um pouco mais formal, beija a minha
mão e pisca-me o olho enquanto me tece elogios. Claramente
devo padecer de uma síndrome rara porque acho que estou
apaixonada pelos meus futuros sogros.
— Olha quem ele é!
Não conheço a voz que profere estas palavras mas,
quando me viro, encontro um homem terrestre, mais ou menos
da idade de Arthur, e extremamente bonito. Ao contrário do
príncipe terrestre, os cabelos deste homem são louros e os
olhos são de um azul profundo. A sua pele é mais clara que a
de Arthur e o seu corpo talvez uns dez centímetros mais
pequeno, sendo praticamente da minha altura. O sorriso feliz
do homem é encantador.
— Cesar, meu animal — e o sorriso de Arthur faz com
duas covinhas perfeitas lhe apareçam nas faces tinhas-me dito
que não vinhas…
— Como se pudesse perder o evento em que se oficializa
a tua prisão. — Cesar lança-me um olhar que só consigo
descrever como maroto e acrescenta: — Ainda que, com um
carrasco destes, eu também não me importasse de ser
condenado.
— Cesar — repreende Arthur —, será assim tão difícil
seres um bocadinho mais adequado?
Mas a verdade é que, de forma inesperada, acho graça a
Cesar e à forma descontraída como brinca e se apresenta.
Talvez noutros homens terrestres eu achasse imperdoável que
não usassem laço num evento destes, mas o lenço que Cesar
traz na lapela combina melhor com o seu ar irreverente e com
o seu cabelo despenteado.
— Princesa Lia — diz-me num tom alegre —, é
realmente um prazer conhecê-la. E aproveito para lhe dizer
que, se as mulheres voryanas forem todas do seu calibre, estou
disposto a receber em minha casa uma irmã sua ou, quem
sabe, uma prima afastada.
Arthur olha para mim em pânico, como se esperasse que
eu fosse armar uma cena, mas a única coisa que me sai da
boca é uma gargalhada. A maior gargalhada que dei desde que
aterrei neste planeta.
— Cesar — e faço uma discreta vénia pode tratar-me
apenas por Lia e, de preferência, por tu. Infelizmente não
posso aceder ao seu pedido porque em Vory cada casal tem
apenas dois filhos, um de cada género. Assim, apenas tenho
um irmão, prometido a Elena. E ambas as minhas primas são
comprometidas.
— Bahhhh, que desilusão — diz Cesar fazendo beicinho
—, que seja Lia, então. Mas o tratamento tem que ser igual dos
dois lados. Trata-me por tu, por favor. E agora explica-me lá
essa história de cada casal só poder ter dois filhos e de
saberem antecipadamente o sexo. Fazem manipulação
genética? E isso não levanta questões éticas importantes?
Respondo a Cesar explicando que foi a única forma de
conseguirmos travar a destruição do planeta e manter o
equilíbrio entre a população e os recursos naturais disponíveis
e, quando dou por isso, estamos embrenhados numa discussão
sobre limites éticos. Ninguém diria mas César é geneticista e,
pelo que me parece, dos brilhantes. Apesar da companhia de
Cesar ser extremamente agradável, nem por um segundo me
consigo desligar da mão de Arthur pousada nas minhas costas
e, apesar de o notar cada vez mais carrancudo no que, espero
eu, seja um pequeno acesso de ciúmes, a minha pele arrepia-se
quando os seus dedos começam a trilhar caminhos suaves na
pele que o vestido deixa a descoberto.
— Bem, a vossa conversa está muito interessante, mas eu
e Lia temos que nos preparar para a primeira dança — diz
Arthur, meio amuado.
— Com certeza, altezas — diz Cesar com o sorriso
inalterado —, façam o favor de incendiar a pista.
Arthur conduz-me para perto do relógio do salão, que
marca as 22h. Não estou nervosa porque, desde tenra idade, fui
preparada para executar na perfeição as danças terrestres.
Quando Arthur baixa a cabeça para perto do meu ouvido,
penso que me vai falar sobre alguma coisa relacionada com a
música mas, quando a sua boca me toca de leve na orelha, são
outras as palavras que sussurra:
— Que merda foi esta com Cesar ali atrás?
Capítulo 16
Arthur

A primeira e única vez que eu e Cesar brigámos foi


quando, na minha festa de quinto aniversário, ele soprou as
velas do meu bolo de anos antes de eu conseguir fazê-lo.
Lembro-me da sensação de traição que se apoderou de mim e
da necessidade que senti de o magoar. Nessa tarde, há
dezasseis anos, Cesar defendeu-se como pôde dos murros que
fui distribuindo aleatoriamente, mas não foi difícil perceber
que fisicamente eu era bastante superior e, quando os nossos
pais nos separaram, reparei que o nariz dele estava vermelho e
inchado e que o lábio sangrava mas, nos seus olhos, não havia
uma única lágrima. Voltei a ver a mesma expressão no rosto
dele incontáveis vezes mas, nos anos seguintes, Cesar estava
sempre no mesmo lado da briga do que eu. A amizade dos
nossos pais acabou por tornar-nos companheiros de
brincadeira constantes primeiro, e amigos inseparáveis depois.
Mas esta primeira briga de miúdos, ainda hoje descreve
perfeitamente a personalidade de cada um de nós.
Eu, dono de um sangue demasiado quente, expludo com
frequência e confesso que perdi a conta ao número de brigas
em que estive envolvido durante a adolescência. O que não
esqueço foi que os meus pais me castigaram por cada uma
delas e, muitas vezes, os castigos foram de uma dureza atroz
como quando, aos dezasseis anos fui forçado a treinar com o
nosso exército durante o oitavo mês, o mais quente do ano
terrestre, sem qualquer regalia associada ao meu título real.
Durante a adolescência prometi mil vezes que ia mudar,
que ia controlar-me melhor, que ia tornar-me mais ponderado.
E mil vezes quebrei a minha promessa. A equipa de relações
públicas do palácio fez o possível e o impossível para manter a
minha dificuldade em gerir a raiva longe dos meios de
comunicação social mas, por mais de meia-dúzia de vezes, os
meus acessos de fúria física foram manchete. Com o passar
dos anos fui encontrando outras formas de canalizar a minha
energia e suponho que os psicólogos, pagos a preço de ouro
pelos meus pais, tenham ficado felicíssimos com eles próprios
quando deixei de andar por aí a distribuir murros e pontapés.
Acontece que não foram as teorias deles, que giravam sempre
ao redor do pequeno príncipe sobrecarregado pelo peso do
título e revoltado com o destino previamente traçado, que me
ajudaram. Aquilo que me ajudou foi descobrir o sexo e
perceber que havia formas muito mais prazerosas de
descarregar a fúria, a revolta e o desespero.
Cesar, por sua vez, sempre foi ponderado, minucioso e
analítico e acredito que sejam essas características que fazem
dele um cientista tão brilhante. Raras vezes o vi perder o
controlo e aquele sorriso fácil que lhe é tão característico. A
última dessas vezes foi há dois anos, quando a mãe morreu
vítima de uma infecção generalizada, provocada por uma
bactéria que se revelou resistente a todos os tratamentos
disponibilizados pela ciência. Por indicação do meu pai, todos
os cientistas de Pangeia trabalharam dia e noite no caso da
mãe de Cesar e todos os novos antibióticos foram testados
(mesmo aqueles cuja segurança não estava ainda totalmente
garantida), mas nada resultou. A multirresistência das
bactérias continua a ser um dos grandes problemas do nosso
tempo, decorrente do excesso de utilização de antibióticos nos
anos finais da Primeira Era, e a mãe de Cesar foi mais uma das
vítimas. Nos dias que se seguiram à morte da mãe, Cesar
transformou-se. Festas atrás de festas, álcool atrás de álcool,
mulheres atrás de mulheres. E brigas, muitas brigas. Nesses
dias, fui eu o seu fiel escudeiro, nesses dias fui eu quem nem
pestanejou antes de intervir a seu favor. Ele precisava de se
libertar e se isso implicava partir uns narizes, eles que
viessem. Um dia, entre duas cervejas, Cesar disse-me:
“obrigado por estares sempre nas minhas costas”, e voltou a
ser o César de antes. Porque não sou um maldito psicólogo
nunca lhe fiz perguntas ou esperei respostas sobre estes dias
negros.
Acontece que, neste exacto momento, tenho muita
vontade de lhe fazer perguntas, sendo a principal delas quem é
que ele acha que é para poder olhar para Lia da forma como
estava a fazê-lo? Caralho, eu conheço-o como a palma das
minhas mãos, sei exactamente como ele se comporta quando
tem interesse numa mulher… E era com esses olhos que ele
estava cravado em Lia, como se a cara dela fosse o sol e
iluminasse a Terra inteira, como se quisesse arrancar-lhe
aquele maldito vestido, que lhe marca cada uma das curvas, e
descobrir cada bocadinho dela.
As últimas horas têm sido uma merda… Depois de Lia
sair do quarto, tive que lidar com um acesso de raiva de
Genna, que não gostou de ter sido rejeitada e jurou, entre
lágrimas e gritos, que ia transformar a minha vida num
inferno. O pior é que, se eu não conseguir convencer Lia que
estou inocente, Genna já nem vai precisar de fazer mais nada.
Estou a poucos dias de me casar com uma mulher por quem
me começo a sentir perdido e ela acha que sou um cabrão que
vive para a próxima foda. Em cima disto, há os problemas de
governação, com cada vez mais focos de descontentamento
espalhados por Pangeia, e a necessidade de consumar o
casamento com Lia e ter filhos que permitam fortificar a união
entre os planetas. Sendo um diplomata hábil e um ser humano
que acredita sempre no melhor das pessoas, o meu pai acredita
que a melhor forma de combater todos aqueles que apelam nas
ruas pela ocupação de Vory é fazê-los apaixonar-se pela
princesa voryana e pelo pequeno príncipe ou princesa nascido
do nosso casamento e que, um dia, ocupará o trono terrestre.
Quem me dera ter as certezas dele e acreditar que o
sentimento de identificação com Lia, que é a prova viva de
que nós e os voryanos somos (quase) iguais, fará com que as
pessoas percebam quão errado é apoiar um projecto egoísta
que passa por dizimar milhares de pessoas. Mas a história
ensina-nos que, quando conduzidos por um louco, as pessoas
também enlouquecem e a Segunda Guerra Mundial, ocorrida
na Primeira Era, é, ainda hoje, o maior e melhor exemplo disso
mesmo.
Como se estas merdas todas não chegassem, Cesar
decidiu lançar charme para cima da minha futura mulher e a
minha futura mulher decidiu achar graça aos avanços do meu
melhor amigo idiota.
Enquanto conduzo Lia para o centro da pista de dança,
vou pensando na melhor forma de derrubar os muros que
ergueu nas últimas horas. Há pouco pareceu-me ter visto
alguma incerteza nos seus olhos quando lhe expliquei a
situação e preciso de aproveitar essa brecha para poder trazê-la
de volta para mim.
Enquanto o meu pai discursa para os convidados, olho-a
mais uma vez sem procurar disfarçar que gosto do que vejo.
Foda-se, juro que, esta noite, ela foi tirada directamente dos
meus sonhos para me perturbar: os cabelos negros como a
noite, a pele clara e absolutamente perfeita, o decote do
vestido que mostra e esconde na proporção certa e depois
aquela máscara preta, tão delicada e ao mesmo tempo tão
sensual, que realça o violeta dos olhos e me remete para todos
os prazeres proibidos que esconde.
— É por isso, para nós, pais de Arthur, uma alegria
imensa receber na família a Princesa Lia que, em tão pouco
tempo, já nos conquistou a todos com a sua delicadeza, beleza
e inteligência. — O tom mais enfático do meu pai puxa-me de
volta à realidade e faz-me perceber que o discurso se aproxima
do final. — Que todos os terrestres se rendam a Lia e se
deixem conquistar por ela é o que esperamos e que Lia e
Arthur sejam sempre felizes é tudo o que pedimos. Aos
noivos!
E é com um brinde e dezenas de copos no ar que a
orquestra real toca os primeiros acordes da valsa que, como a
minha mãe gosta de nos recordar, se dança quase desde o
início dos tempos. Olho novamente para Lia na esperança de
poder lançar-lhe um olhar de encorajamento antes de a
começar a conduzir na dança, mas percebo, pelo queixo
levantado que lhe confere uma postura orgulhosa, que ela
dispensa o meu encorajamento e, por isso, limito-me a puxá-la
para mais perto de mim, para bem mais perto do que o
necessário ou recomendado, e começamos a valsar.
Os nossos corpos encaixam como se tivessem sido feitos
à medida um do outro e sinto a pele dela arrepiar-se quando a
minha mão direita pousa no fundo destapado das suas costas.
Sei que a dança vai demorar vários minutos e preciso deles
para a fazer reaproximar-se de mim.
— Não sabia que se dançava a valsa em Vory… —
sussurro-lhe baixinho ao ouvido.
— E não dança. Mas desde que nasci que estou a ser
preparada para este momento, então é natural que saiba o que
fazer. — E lá estão as barreiras levantadas na voz dela.
— Sim, é uma pena que não te tenham preparado tão bem
para outros aspectos importantes da relação com um homem
— digo, como se fosse perfeitamente casual, enquanto sorrio
para as pessoas em redor.
— Eu estou preparada para todos os aspectos que
importam para ser uma rainha competente e sei tudo aquilo
que preciso saber.
— De certeza, Lia? — Outros casais começam a juntar-se
a nós na pista de dança, mas sei que posso ficar tranquilo até
ao fim da valsa pois, por razões protocolares, ninguém poderá
vir tentar “roubar-me” o par. — E eu que tinha ficado com a
ideia que ninguém te tinha preparado para o prazer que podes
receber de um homem. Vê lá que eu era capaz de jurar que
nunca ninguém te tinha dito que ias ficar molhada quando um
homem te tocasse como uma mulher deve ser tocada…
Acreditas que até pensei que nunca ninguém te tivesse pre-
parado para a sensação de preenchimento que experimentas
quando és fodida com competência?
Sei que estou a ser incorrecto e que estou a esticar a corda
de todas as formas possíveis, mas também sei que a respiração
de Lia se tornou irregular, que as pupilas dilataram atrás da
máscara e que, pela primeira vez, falhou um passo da valsa.
— Estou errado, Lia? — pergunto com os olhos cheios de
malícia.
— Sim.
— Sim, o quê? Sim, estou errado quando digo que neste
exacto momento estás molhada e que davas tudo para que te
voltasse a proporcionar alívio? Ou sim, estou errado quando
digo que os teus mamilos estão tão duros que se começam a
perceber através do vestido?
Puxo-a para mais perto ainda, tão perto que não sei onde
é que o meu corpo começa e o dela acaba e tão perto que é
impossível que ela não sinta a minha erecção esfregar-se
contra ela. A proximidade física e as provocações acabaram
por deixar-me excitado também e ninguém que já tenha visto
Lia poderá condenar-me por isso.
— Diz-me que acreditas em mim, Lia. Por favor.
— Arthur, eu não sei. A verdade é que eu te vi com ela
e…
— E pensava que eras tu. Era suposto seres tu. Depois da
nossa tarde tu achas mesmo que eu queria mais alguém? Já te
expliquei, Lia… Ela apareceu do nada, eu tinha os olhos
fechados. Quem me dera que tivesses sido tu…
Olho-a da forma mais honesta que consigo e espero que,
no meu olhar, ela perceba a verdade e o desejo que me
consomem. Ela olha para mim com aqueles olhos violeta que
parecem capazes de ler almas e, de repente, assente com a
cabeça.
— Talvez me venha a arrepender, mas escolho acreditar.
Parem o baile e mandem tocar todos os sinos que a
Guerra das Eras não destruiu. Ela está comigo outra vez.
— Logo, quando o baile acabar, deixa-me ir ter contigo
ao teu quarto. Deixa-me mostrar-te como pode ser bom —
imploro.
Lia sorri, um sorriso envergonhado mas, ainda assim, um
sorriso. A música começa a perder ritmo e quando os últimos
acordes tocam, sou um homem renovado.
Pelo menos até Cesar aparecer por trás de mim, com um
sorriso convencido no rosto, e perguntar se pode roubar a
minha noiva para a próxima dança. Nesses segundos, o Arthur
briguento irrompe à superfície e volta a sensação das velas
sopradas por Cesar antes de tempo mas, desta vez, mil vezes
ampliada. E é impossível travar o meu punho fechado no
caminho que faz até ao rosto de Cesar.
Dezasseis anos depois, o lábio dele volta a sangrar às
minhas mãos.
Capítulo 17
Lia

Em Vory acreditamos que todas as pessoas nascem com


um dom que, se correctamente trabalhado ao longo da vida, as
vai fazer distinguir das demais. O dom de Arthur é estragar
tudo.
No momento em que voltei a permitir-me acreditar que,
afinal, o nosso casamento talvez pudesse mesmo funcionar, o
que é que Arthur faz? Esmurra o rosto de Cesar. E porquê?
Porque Cesar me pediu uma dança. Raios, é suposto que este
homem venha a ser o rei de um planeta, seria de esperar que,
no mínimo, tivesse um melhor controlo sobre os seus impulsos
idiotas. Mas não, o principezinho amuado sentiu a pontada do
ciúme e toca a descarregar em público, numa festa repleta de
imprensa, em cheio na boca do melhor amigo.
Confesso que, no momento, tive alguma dificuldade em
perceber o que estava a acontecer, uma vez que os flashes dos
captores de imagem dos fotógrafos me deixaram
temporariamente cega, mas quando vi a cara amuada de
Arthur e o lábio sangrante de Cesar, tive muita dificuldade em
não surtar. E eu sou uma princesa de Vory caramba, treino o
autocontrolo desde que nasci. A parte mais estranha? O
silêncio absoluto do salão. Pelo que conheço dos terrestres,
seria de esperar que houvesse gritaria, choro, bater de pés…
Mas a única coisa que existiu foi um silêncio que pareceu
parar o tempo. O meu desconforto congelou-me e só voltei a
conseguir pensar de forma coerente quando percebi que Arthur
me estava literalmente a arrastar em direcção à saída do salão,
ao melhor estilo dos homens das cavernas do início das eras.
— Arthur, vais parar de puxar-me agora! — ordenei com
a pouca paciência que me restava.
— Não, não vou — respondeu o idiota. — Vou parar de
te puxar quando estivermos lá em cima, no quarto, longe dos
olhares desta cambada de idiotas intrometidos.
— Idiota estás a ser tu. É possível que não tenhas
percebido que a tua atitude foi perfeitamente descabida? Qual
foi o objectivo de esmurrar Cesar?
— É mesmo preciso explicar? Achas mesmo que é
preciso explicar? — O tom de voz de Arthur, com uma fúria
mal contida, faz lembrar uma tempestade prestes a rebentar. —
Foda-se, Lia! Mas qual é o teu problema afinal? — perguntou
Arthur quando finalmente parámos no topo da escada.
— O meu problema? Tu tens noção do quão ridículo soas
neste momento? — Não sei se existe uma escala terrestre para
exasperação mas, se existir, juro que estive prestes a rebentá-
la. — Apanhei-te com outra mulher que, ainda por cima,
decidiu ir provocar-me. A seguir, achei ver honestidade nos
teus olhos e decidi perdoar-te. Fui simpática para o teu melhor
amigo. Dancei a valsa contigo e concordei em estarmos juntos
esta noite. De repente, o nosso baile de apresentação está
estragado porque tu decidiste esmurrar Cesar. E eu é que tenho
um problema? Eu?
— O meu melhor amigo estava a comer-te com os olhos,
aliás, metade do salão estava a comer-te com os olhos. E eu
conheço Cesar. Ele gostou de ti, percebi isso de caras.
— Que me valha a Origem. Arthur, Cesar estava a ser
simpático e cordial. Que era aquilo que tu devias ter feito
quando me conheceste em vez de te comportares como um
menino mimado. Este baile era importante para nós e para os
nossos planetas, era a minha oportunidade de começar a
conquistar o povo terrestre. E tu estragaste tudo, mais uma
vez.
À medida que fui dizendo, ou melhor, gritando estas
palavras, senti a energia começar a circular
descontroladamente dentro de mim. Tentei respirar fundo,
tentei conter a energia num único ponto, mas nada funcionou.
Senti-me totalmente descontrolada e com a certeza de que isso
era visível no meu exterior através da electricidade estática
que me levantava os cabelos e da contracção das minhas
pupilas. Mas Arthur não pareceu ter medo porque voltou a
agarrar-me o pulso e puxou-me até ao quarto dele.
Quando entrámos, bateu a porta com força, esmagou-me
com o corpo contra a parede e disse-me numa voz que não
admitia réplica:
— A única pessoa que tu tens que conquistar sou eu. E
isso tu já fizeste. Agora aguenta as consequências.
O que me traz ao ponto em que me encontro. Dentro do
quarto de Arthur, apenas com a luz que vem da rua, esmagada
pelo corpo dele e dominada por um misto de fúria e excitação
que quase me envergonha. Decido resistir porque não me
parece que lhe deva facilitar a vida depois deste episódio
disparatado.
— Se pensas que vou permitir que os teus ciúmes me
empurrem para uma vida de submissão, ficas a saber que… —
Mas já não consigo que Arthur fique a saber coisa nenhuma
porque ele esmaga a minha boca com a dele como se a sua
sobrevivência dependesse do meu beijo. Quero pará-lo, quero
avisá-lo que não tenho nenhum controlo sobre a energia que
flui livremente pelo meu corpo e que, por isso, posso magoá-
lo. Contudo, não consigo porque, mais uma vez, Arthur
apoderou-se de mim, corpo e mente.
Deixei de resistir ao beijo e agora limito-me a
corresponder, apenas guiada pelo meu instinto e pela libido
que sempre acreditei não ter. Quando Arthur endurece o
contacto dos nossos lábios e me morde o lábio inferior, sinto a
primeira libertação de energia e recuo receosa. Mas Arthur
solta um gemido lento, baixinho, e quando olho nos olhos
dele, vejo-os mais escuros que o normal e dilatados de desejo.
A descarga de energia não o incomodou mas, pelo contrário,
agradou-lhe.
É por isso que estranho quando Arthur começa a diminuir
a intensidade do beijo e coloca mais de um palmo de distância
entre os nossos corpos. Sinto-me abandonada e tenho vontade
de lhe pedir que não vá, que fique colado a mim para sempre.
Porém, ele parece entender a minha expressão e, passando
uma mão por detrás do meu pescoço e outra por detrás das
minhas coxas, levanta-me nos seus braços e conduz-me até à
cama enorme no centro do quarto.
Sei que esta era a parte em que devia protestar, em que
devia pedir-lhe que me deixasse ir embora, mas mesmo depois
de tudo o que aconteceu nos últimos dias, o meu corpo reage a
Arthur de uma forma visceral.
— Não tenhas medo. — A voz dele é um sussurro no
meio dos beijos leves que me vai depositando no pescoço. —
Tu disseste que me ias deixar mostrar-te como pode ser bom…
Só preciso de me acalmar um pouco para poder durar.
Aceno em concordância porque não há muito mais que
consiga fazer. E depois deixo-me ir, inebriada pelas sensações.
Arthur pede-me que me sente e, com uma delicadeza que me
surpreende, despe-me a parte de cima do vestido. O olhar que
me lança é tão reverente que me esqueço do pudor e sorrio
quando ele faz sinal com a cabeça para que me torne a deitar.
Quando a parte de baixo do vestido também sai, Arthur olha
para os meus sapatos de salto e, com um olhar maroto, diz-me
que, um dia, eles hão-de ficar. Mas desta vez tira-os e pousa-os
delicadamente no chão ao lado da cama.
Apesar de não ter qualquer experiência nestas coisas, não
me parece minimamente justo que eu esteja tão exposta e que
Arthur continue completamente vestido pelo que lhe peço para
jogar com as mesmas regras. E quando ele se começa a despir,
a luz no quarto parece-me claramente insuficiente.
— Achas que podemos ligar alguma luz? — pergunto,
sem vergonha.
— Há alguma coisa em particular que a princesa esteja
interessada em ver? — O sorriso dele é brincalhão.
— Tudo. De ti eu quero ver tudo… — E mal digo estas
palavras, sei que estou perdida.
Quando um pequeno candeeiro se acende no canto do
quarto, percebo que o corpo de Arthur é tudo aquilo que eu
esperava que fosse. Os ombros são largos, o tronco é
trabalhado, com alguns pelos morenos que gritam
masculinidade, e no fundo do abdómen há um “V” que tenho
vontade de beijar. Mas o que mais me intriga é a tatuagem que
Arthur ostenta na lateral direita do corpo e que representa uma
espécie de labirinto.
— Gostas? — Ok, ele percebeu para onde eu estava a
olhar. É possível que eu esteja a enrubescer.
— Não sei — respondo com sinceridade —, é a primeira
vez que vejo uma tatuagem ao perto.
— Vais ter todo o tempo do mundo para explorá-la
depois, prometo. Mas agora há outras coisas que te quero
mostrar.
Tenho vontade de lhe pedir que mostre, de lhe dizer que
quero conhecer tudo com ele, mas quando Arthur se deita
sobre mim, apoiado nos cotovelos, e as minhas cuecas de
renda são a única barreira entre nós, o controlo das palavras
está, mais uma vez, perdido.
Arthur vai beijando o meu corpo com reverência, o calor
dele a arrepiar a minha pele fria. Sinto que o meu corpo
acompanha os beijos com pequenas descargas de energia que
intensificam a minha sensação de prazer. Quando Arthur
prende o meu mamilo entre os dedos não consigo evitar um
gemido. E depois as sensações são cada vez mais fortes e
intensas. Quando Arthur abre caminho com dois dedos por
dentro de mim é tudo mais do que eu posso suportar e quando
ele me olha nos olhos e diz com uma voz que pinga luxúria:
“vem-te para mim, meu amor”, sei que há dois anjos negros a
abrirem os portões do inferno para me receber.
***
Não sei quanto tempo passou desde que se deitou ao meu
lado, virado de frente para mim. Mas sei que tenho usado esse
tempo para decorar cada bocadinho dele. O verde profundo
dos olhos, os traços masculinos e aquele labirinto tatuado que
agora percorro com os dedos. A parte mais racional de mim
diz-me que as coisas entre nós estão longe de estar bem e que
precisamos de conversar para clarificar a nossa relação. Não
posso permitir que, movido pelos ciúmes, Arthur decida
agredir outras pessoas de forma gratuita. Nem imagino como
terão ficado os reis terrestres depois de termos abandonado o
salão, nem o que poderão ter feito para minimizar os estragos
da atitude irresponsável do filho. O que sei é que aqui, com
Arthur ao meu lado, nada disso parece importar. Quero
proporcionar-lhe prazer, da mesma forma que ele me
proporcionou, mas tenho medo pela minha inexperiência.
Pouso a mão aberta no peito dele e procuro coragem para o
abordar de forma directa, afinal vamos ser marido e mulher.
Mas antes de conseguir falar, é ele quem agarra a minha mão e
diz:
— O fogo e o gelo, o dia e a noite, o vermelho e a prata…
Quem diria que podiam combinar tão bem?
— Arthur e Lia, Terra e Vory, tu e eu — respondo a um
Arthur que me sorri, parecendo quase embevecido. Com um
movimento suave, ele puxa-me para cima dele e cobre os
nossos corpos com um lençol. Já eu, faço a única coisa que me
parece certa e beijo-o com tudo aquilo que tenho. Os pequenos
gemidos de prazer de Arthur dão-me a coragem que preciso
para continuar a minha exploração pelo corpo dele e quando o
toco onde ele é suave e duro ao mesmo tempo, sinto-o
contrair-se debaixo de mim e penso que o magoei pelo que me
apresso a pedir-lhe desculpa.
— Desculpa? Desculpa de quê? De ser tão bom? — As
palavras dele tranquilizam-me, mas sou forçada a engolir o
orgulho e a vergonha e a pedir-lhe que me ajude. Arthur
recosta-se mais nos travesseiros, posiciona-me entre as pernas
dele, e coloca a mão sobre a minha, conduzindo-a num
movimento rítmico sem que os olhos dele nunca abandonem
os meus. Quando me sinto suficientemente confiante, afasto a
mão dele e vou explorando ao meu ritmo, experimentando
diferentes tipos de pressão, até que me lembro que há uma
coisa que posso fazer por Arthur que nenhuma mulher terrestre
lhe pôde fazer jamais. Tento concentrar-me no fluxo sensual
de energia que ainda corre pelo meu corpo, apesar de mais
controlado, e trago-a para a minha mão direita permitindo-lhe
a saída num ritmo lento e constante, quase como uma
vibração, enquanto continuo a bombear o comprimento de
Arthur. A expressão dele transforma-se numa mistura de
prazer e surpresa.
— Deus, o que é isto Lia? Isto é fodidamente bom…
Ahhhh, não vou durar, Lia, não vou.
As palavras dele dão-me a coragem que precisava para
aumentar o estímulo e quando as pupilas de Arthur estão tão
dilatadas que mal se vê o verde dos seus olhos, sei, antes que
ele me diga, que os portões do inferno se abriram para ele
também.
***
Acordo perdida sem saber onde estou, contudo, ao sentir
o calor que vem do corpo de Arthur, rapidamente percebo que
adormeci na cama dele. Não faço ideia que horas são mas sei
que devo sair para o meu quarto antes que amanheça e alguém
me encontre aqui. Penso em acordá-lo para dizer que vou
embora, porém, o sono dele é tão tranquilo que decido deixá-
lo descansar. Em cima de um cadeirão azul escuro há uma
manta de lã branca com a qual envolvo o meu corpo e peço à
Origem, ao diabo, ou a quem quer que tenha tomado conta da
minha alma agora, que me permita chegar ao quarto sem ter
que me cruzar com ninguém.
Estou quase a conseguir o meu objectivo quando me
apercebo que a porta do quarto de Zira está aberta e sinto uma
inquietação estranha. Como não sei exactamente quanto tempo
passou desde que abandonei o baile com Arthur, tento
convencer-me que talvez ela ainda esteja no salão na
companhia da família real. Mas há uma qualquer força que me
impele a olhar para dentro do quarto iluminado pela luz da lua.
E o que vejo, faz com que o meu coração congele no peito e
que as paredes comecem a girar à minha volta. Em pânico,
acendo a luz e, na parede, escrito a prata, as palavras ISTO É
SÓ O PRIMEIRO AVISO brilham com a força do sangue
voryano. No chão, caído de bruços, o corpo de Zira jaz sem
vida.
Capítulo 18
Arthur

Não sei se consigo encontrar palavras para descrever os


últimos três dias. A verdade é que sinto que fui atropelado por
uma das nossas naves de guerra sem sequer ter percebido que
ela vinha a caminho. A morte de Zira provocou um caos, não
só aqui, no palácio, mas também em Pangeia e em Isla. Perdi a
conta à quantidade de horas que passei em reuniões e
conselhos de ministros, vi o meu pai furioso, descontrolado e
impotente, participei em videoconferências com o governo
voryano e, no meio de tudo isto, tenho tentado passar com Lia
todo o tempo possível.
O dia que se seguiu à morte de Zira foi de choque e
comoção. Em frente a todos os outros, Lia manteve uma
expressão aparentemente serena mas, quando finalmente ficou
a sós comigo e com Elena, deixou que as muralhas ruíssem e
uma enxurrada de lágrimas cor de prata correu durante horas.
Se é verdade que é Lia quem está no centro das minhas
preocupações, quando já de madrugada, depois de uma
reunião demasiado longa e inconclusiva com o ramo de alto
desempenho da nossa polícia, entrei no quarto dela e a vi
abraçada a Elena, percebi que era altura de me preocupar
também com a minha irmãzinha. E verdade que a nossa
relação é turbulenta mas… Haverá irmãos com relações
plenamente pacíficas? Elena é uma menina alegre,
extrovertida e, às vezes, demasiado arisca. Onde está Elena,
está a alegria. E se há alguém que não merecia o destino que
lhe foi imposto é ela. Percebi que, aquando da minha chegada,
ambas tentaram limpar as lágrimas mas, curiosamente,
nenhuma teve particular sucesso na missão. Lia e Elena são
duas princesas inocentes, presas a escolhas que não são delas,
numa merda de posição de mártir para assegurar uma paz que
alguns idiotas continuam a querer recusar. Lia perdeu Zira,
Elena tem medo de sofrer retaliações quando for a vez dela. E
eu, se pudesse, dava a vida para garantir a segurança das duas.
O autor do homicídio de Zira continua a ser uma
incógnita. O meu pai entrou numa espiral de culpa por ter
desvalorizado os pequenos focos rebeldes que foram sendo
identificados. O departamento mais exclusivo da nossa polícia
garante ter debaixo de vigilância todos os participantes em
protestos pró-colonização de Vory e não há registos de que
qualquer um deles se tenha sequer aproximado do palácio. A
grande questão é, aliás, como é que alguém conseguiu penetrar
na segurança do edifício teoricamente mais seguro de Pangeia
e chegar à ala dos quartos sem levantar suspeitas? As duas
teorias mais prováveis são que, ou o assassino tem um cúm-
plice no palácio que o ajudou a aceder ao interior, ou é ele
mesmo uma figura habitual daqui. Obviamente que nenhuma
das opções nos deixa confortáveis e o ambiente, carregado de
suspeição, está mais tenso do que alguma vez foi.
Todos os convidados do baile de apresentação de Lia
foram identificados e interrogados e o mesmo aconteceu com
todo o staff do palácio. Não há, no entanto, qualquer suspeito
oficial. Os dois militares que guardam a entrada para a zona
privada do palácio garantem que ninguém suspeito passou por
eles e, neste momento, aguardamos que o Supremo Conselho
de Ética de Pangeia conceda a autorização para que ambos
sejam injectados com o líquido a que chamamos “soro da
verdade” e que impede que a pessoa que recebeu a injecção
endovenosa consiga formular mentiras no período entre os
quinze e os quarenta minutos pós administração. É uma pena
que o composto mais abundante neste soro tenha um custo de
tal forma elevado que as suas produção e manutenção sejam
racionadas ao cêntimo e ao mililitro.
Fodidamente tenho a sensação que, neste exacto
momento, aterrámos num beco e não conseguimos prosseguir
caminho. Não há suspeitos reais e o motivo parece-nos
evidente mas, em último caso, pode até ser questionável.
Aquilo com que todos os peritos parecem concordar é que o
objectivo do criminoso não era Zira, mas sim Lia. E eu fico
com vontade de sair por aí a arrancar cabeças só de pensar que
Lia está viva apenas por mero acaso. Se Lia não tivesse ficado
a dormir comigo, ou se tivesse saído um pouco mais cedo,
talvez neste momento já não estivesse aqui. Ontem já foram
instalados em todos os quartos do palácio sistemas de leitura
biométrica da íris que, antes desta confusão, eram um
exclusivo do quartos dos meus pais, do meu e do de Elena.
Curiosamente poucas vezes activo o sistema mas, depois do
baile, na companhia de Lia e com uma tesão monstra, achei
melhor assegurar-me que a minha mãe ou a minha irmã não
conseguiriam entrar pelo meu quarto adentro, prontas para me
darem um raspanete, e me encontrassem enterrado em Lia.
Abençoada seja a hora em que tomei essa decisão, ainda que,
honestamente, não acredite que alguém tivesse arriscado fazer
algo contra ela no meu quarto.
A cerimónia fúnebre de Zira foi simples e bela e, depois
de terminada, o corpo, sem máscara, foi colocado numa nave
programada para aterrar em Isla. Lia vestiu a Zira uma túnica
voryana simples, totalmente preta, e penteou-lhe o longo
cabelo branco com tranças complexas às quais prendeu
delicadas fitas vermelhas de cetim o que, percebi, deve ser
considerado uma honra. Na despedida de Zira, Lia voltou aos
seus trajes voryanos e usou uma túnica longa, de mangas
compridas e capuz, totalmente branca e sem qualquer adorno.
No momento em que a nave descolou do pátio do palácio,
onde apenas nos encontrávamos os dois e a minha família, Lia
agarrou a minha mão com força e, entre soluços que
escaparam à contenção, disse as palavras que mais me doeram
ouvir até hoje: “fiquei sozinha”.
Quando tudo parecia terminado, subi com Lia para o
quarto e tentei que descansasse um pouco. Prometi-lhe que
jamais estaria sozinha, que me tinha a mim e que, em breve,
teria os nossos filhos. Disse-lhe que a minha família era dela e
expliquei-lhe que, apesar de a conhecerem há tão pouco
tempo, já a amavam profundamente. Mas nada pareceu
consolar Lia. Acabei por pedir ao meu pai que voltasse ao
contacto com o governo de Vory e que permitissem que a
princesa contactasse a família. Felizmente o pedido foi aceite e
Lia pôde, finalmente, falar com os pais e o irmão. Desconheço
o teor da conversa que tiveram mas, depois de ouvir as
palavras da família, percebi que, embora a tristeza
permanecesse, começava a aparecer alguma aceitação em
relação ao ocorrido.
Pedi também ao Conselho de Ministros que permitisse
adiar a data do casamento por duas semanas, porém, apenas o
pai de Genna votou favoravelmente à minha pretensão o que,
aliás, me fez desconfiar que o meu caso com a filha nunca foi
um segredo para ele. Segundo os outros ministros e, mais
importante ainda, segundo o meu próprio pai, quanto mais
rapidamente o casamento acontecesse, mais seguro seria para
todos. E nem vou falar no embaraço que senti quando ouvi
homens e mulheres que me conhecem desde pequeno a
aconselharem-me a “fazer o que fosse necessário e quantas
vezes fosse necessário” para engravidar Lia depressa.
Com o pedido de duas semanas negado, foram-nos
concedidos três dias de adiamento, período mínimo para
respeitar o luto de Lia. E esses três dias esgotam-se hoje, dia
em que o nosso casamento vai mesmo acontecer.
Olho-me ao espelho pela milésima vez. Por questões
protocolares, sou obrigado a casar envergando a farda de gala
das forças especiais terrestres que consiste numa espécie de
fraque cinzento escuro, com colete verde e camisa branca
simples, sem gravata, cruzado no peito por uma faixa verde e
prateada onde, em pequenas letras pretas, é possível ler a frase
“a base das acções reside na lembrança”. Calcei sapatos pretos
e penteei o meu cabelo com particular cuidado. Se há umas
semanas me dissessem que estaria nervoso, contudo, animado
com a perspectiva desta união, eu teria rido que nem um louco.
Mas hoje, estando aqui, e apesar dos últimos e terríveis
acontecimentos, tenho a sensação que não há outro lugar onde
preferisse estar e que Lia é a escolha certa para mim.
Quando ouço bater à porta do quarto, abro-a esperando
encontrar a minha mãe, porém, puta que pariu, se quem
encontro não é Genna.
— O que é que estás a fazer aqui? — pergunto
carrancudo.
— Uiiii Arthur, tanto mau humor. Não vais deixar-me
entrar?
— Curiosamente tinha ficado com a sensação de que
tinha sido bastante claro quando te disse que não eras bem-
vinda a esta zona do palácio… Por acaso expliquei-me mal?
— Sei que estou a ser rude, mas tudo aquilo de que eu e Lia
não precisamos agora é de uma cena provocada por Genna.
— Ok, ok… — Genna levanta os braços em sinal de
rendição. — De qualquer das formas, vim só lembrar-te
daquilo que estás a perder e dizer-te que continuo à espera de
ouvir o barulho da tua mota a estacionar em frente à minha
casa.
Lanço um segundo olhar a Genna. É verdade que ela é
bonita, quente. O vestido vermelho longo, de decote em “V”,
realça as generosas curvas que conheço como a palma da
minha mão. Mas a verdade é que a visão de Genna não
provoca nenhuma reacção em mim. De uma forma quase
inacreditável, a pele que procuro agora é mais clara, os traços
mais delicados e até o cheiro do seu perfume me parece errado
por não me lembrar das laranjeiras em flor.
— Vais sozinha ou preciso chamar a segurança? — É
melhor que ela vá antes que a minha mãe apareça. Há coisas
que as nossas mães não precisam realmente de saber.
— Sozinha, obrigada. Conheço bem este caminho.
E, num golpe quase teatral, Genna roda sobre o próprio
corpo e segue pelo corredor enquanto abana excessivamente as
ancas.
Poucos minutos depois, a minha mãe chega e coloca-me
um ramo de flor de laranjeira no bolso o que, creio, deve
romper o protocolo. Mas ela parece contente e eu também
fico. A minha mãe é uma mulher linda e hoje, num vestido
azul profundo e usando uma magnífica tiara, parece
exactamente a rainha que é.
— Vamos, meu querido, não queremos correr o risco de
Lia chegar primeiro ao altar — diz a minha mãe com um
sorriso nostálgico.
— Mãe, é para isso que existem sistemas de
comunicação. Hoje em dia essas coisas são facílimas de evitar.
— Não quero saber. Mexe-te Arthur! Estamos em cima
da hora!
— Sim, meu capitão — digo com um sorriso enquanto
finjo bater uma continência.
— Tontinho. Meu querido menino tontinho.
E quando vejo os olhos da minha mãe encherem-se de
lágrimas, sei que é hora de seguir caminho.
Entramos na Igreja ao som de uma música tão antiga que
já ninguém sabe ao certo de que período da Primeira Era é
proveniente. Segundo todos os registos que se salvaram, esta
música, chamada Ode an die Freude (“hino à alegria” na
língua comum actual), servia como hino de um conjunto de
países que se juntaram alguns anos antes da eclosão da Guerra
das Eras e, por tudo o que representa, foi escolhida como tema
oficial de Pangeia. Enquanto caminho pela nave central da
Igreja, de braço dado com a minha mãe, observo alguns rostos
que me sorriem. Mas só páro quando vejo Cesar e, dando mais
um pontapé no protocolo, abraço-o aliviado.
— Desculpa, irmão. — É tudo o que lhe sussurro ao
ouvido antes de ser novamente puxado pela minha mãe que,
percebo, ficou feliz com o que acabou de ver.
No altar, à minha espera, o meu pai vestido como eu, mas
com a coroa de monarca colocada, e Elena, linda num vestido
da cor dos olhos de Lia, sorriem para mim. E menos de cinco
minutos depois, ouço soar os acordes de uma melodia lenta e
delicada que sei ter sido Lia quem escolheu.
Quando o meu pai acena discretamente, sei que é o
momento para me virar e ver a minha noiva. No momento em
que o faço, sinto um aperto no peito: Lia, que não usa véu,
abranda ligeiramente e, com um sorriso, retira a máscara
prateada do rosto deixando-a cair no chão. Ouço o coro de
interjeições de surpresa que enche a Igreja e, quando os meus
olhos se prendem nos seus olhos violeta, percebo que, sem a
máscara, ela não é nada parecida com aquilo que imaginei.
Capítulo 19
Arthur

O meu olhar está preso no olhar de Lia e não me atrevo


sequer a pestanejar para não quebrar o encanto. Foda-se se ela
não é a mulher dos meus sonhos, mil vezes mais bonita do que
qualquer coisa que já consegui imaginar. A pele alva do rosto
de Lia só é quebrada na sua perfeição por dois pequenos sinais
separados pelo espaço de um polegar, cerca de um centímetro
abaixo do canto externo do olho direito, e os olhos dela,
emoldurados por longas pestanas negras, sem máscara,
parecem ainda maiores.
Lia parece uma visão divina. Os cabelos escuros,
esticados, presos num coque baixo com algumas mechas
soltas, os lábios pintados de vermelho, o vestido cor de prata,
cravado de milhares de pequenas pérolas, que lhe adere ao
corpo em todos os lugares certos até finalmente começar a
alargar a meio da coxa… Nas mãos, o bouquet, simples, é
composto exclusivamente por flor-dc-laranjeira presa com
uma fita prateada. Porra, se a perfeição existe, tenho a certeza
de que caminha ao meu encontro no corredor desta igreja.
Finalmente consigo abrir um sorriso para Lia e percebo o
alívio que se espalha pela expressão dela. Sou um animal tão
grande que me perdi em pensamentos e acabei por esquecer-
me que ela, por dentro, deve estar a morrer de ansiedade e a
precisar de sentir a minha aprovação ao seu rosto descoberto.
Quando Lia chega a mim, as nossas mãos enlaçam-se e,
com o meu polegar, começo a massajar as costas da mão dela.
O sorriso envergonhado que me lança, faz-me esquecer do
lugar onde estamos, das pessoas com quem estamos e do que
viemos aqui fazer. Somos eu e ela, só os dois, numa bolha só
nossa. Aproximo os meus lábios da sua orelha e sussurro-lhe
um “tu és linda” que a faz corar de uma forma que interfere
directamente com a minha anatomia. É preciso um esforço
considerável para respirar fundo e “descer à Terra”.
O bispo de Pangeia dá início à cerimónia, que está a ser
transmitida em directo na nossa televisão pública e numa
enorme quantidade de ecrãs gigantes espalhados pelo
continente, e consigo manter o foco. Sentir a mão de Lia na
minha é reconfortante e, não sei como nem porquê, tenho a
certeza de que este casamento está certo ou, como diria Elena,
sei que esta união estava escrita nas estrelas.
Durante toda a minha vida, tive sentimentos conflituantes
sobre a fé. Se é estranho que um povo tão tecnológica e
cientificamente avançado continue a adorar um Deus cuja
existência não pode provar? Talvez. Mas a verdade é que
continua a existir tanto por explicar, tanto por demonstrar… E
depois há momentos como este, em que sinto a mão de Lia na
minha e tenho uma certeza irracional de que é assim que tinha
que ser, de que estamos, eu e ela, a cumprir desígnios que nos
transcendem. E essa ideia enche-me de paz.
A cerimónia de casamento é tipicamente terrestre mas
muito simples. Por vontade de Lia, o coro foi dispensado
sendo que apenas uma solista ao piano se encarrega de
musicar a celebração. Apesar da enorme quantidade de
convidados e imprensa presente, a cerimónia tem um carácter
intimista e, quando chega a altura da leitura de votos, decido
não ler o discurso que preparei. Em vez disso, rodo o corpo
para ficar de frente para Lia e digo:
— Nunca quis isto. Lutei a minha vida toda contra tudo o
que conduziu a este dia. No dia em que chegaste, não te quis
aqui. Fugi de ti tanto quanto consegui. Mas depois tu foste
teimosa e insististe em mostrar-te princesa. O teu orgulho, a
tua coragem e a tua inocência acabaram por tornar-se
inebriantes para mim. Agora quero-te perto, quero-te comigo.
Pela paz entre os planetas, mas também por mim, pela paz que
o teu toque me traz, pelas promessas escondidas nos teus olhos
violeta e por tudo aquilo que podemos ser um com o outro.
Estou aqui para ti, como sempre esteve escrito, no acordo
assinado pelos nossos pais e nas linhas traçadas no espaço
fundo pela tua Origem e pelo meu Deus. Serei teu se tu fores
minha.
Nunca deixo os olhos de Lia enquanto digo os meus
votos e percebo quando eles se começam a encher de lágrimas
de prata. Não têm sido dias fáceis para ela. A morte de Zira foi
um golpe demasiado duro para encaixar e, também por isso,
percebo a importância das palavras que lhe disse e que foram
exactamente as palavras que lhe quis dizer.
Lia olha para mim com um sorriso comovido antes de
começar a dizer os votos com aquela voz melodiosa que me
provoca arrepios. Tal como eu fiz, Lia também não lê.
— Arthur, sonhei muitas vezes com o nosso encontro.
Apesar de não ter escolhido este destino, cedo me resignei a
ele. Nos meus sonhos de menina, pensava muitas vezes como
serias, qual seria o teu aspecto físico. Pedi centenas de vezes à
minha querida Zira que me levasse ao arquivo secreto do
palácio para poder ver fotografias de humanos e poder
imaginar-te melhor. Ela nunca o fez e, ainda que o tivesse
feito, tenho a certeza de que jamais conseguiria imaginar
alguém como tu. Na primeira vez que te vi sem máscara, o
meu coração esqueceu-se de bater. Pouco me importava que
fôssemos de planetas diferentes, pouco me importavam as
nossas diferenças… Tu eras lindo. E eu, que nem sabia que a
atracção física podia ser tão imediata, senti-me puxada para ti.
Ainda sinto, na verdade. Mas agora já não é só a tua beleza
que me atrai… Agora é o teu abraço forte, o teu instinto
protector e o teu coração generoso. Agora, quem me prendeu
foi o príncipe que vive dentro do corpo do menino rebelde de
olhos verdes. Se tu quiseres, serei sempre a tua princesa.
Bebi cada palavra dela, tenho o coração disparado no
peito. Sinto que ela foi honesta em cada letra, em cada vírgula.
Lia despiu-se para mim nestes votos e espero que ela consiga
ler no meu olhar que cada uma das palavras dela atingiu
directamente o meu coração.
Depois dos votos, trocamos as alianças. A que coloco no
dedo anelar da mão direita de Lia é tipicamente terrestre, de
ouro amarelo, fina e simples. A que ela coloca no dedo anelar
da minha mão esquerda é preta, de um material parecido ao
ónix, mas também fina e simples: uma aliança voryana.
Depois, como manda o protocolo, encostamos as nossas mãos
uma na outra, no alto, e o Bispo de Pangeia diz as palavras
quase tão velhas como o mundo: declaro-vos marido e mulher.
A Igreja explode em aplausos e Lia, divertida, abandona
o contacto da minha mão e aplaude também enquanto sorri.
Não sei porquê, mas acho que o entusiasmo jovial de Elena já
a “contaminou”. E vê-la assim, radiante, ainda que tendo
passado por tanto, faz-me ter uma vontade maluca de a beijar
que é o que acabo mesmo por fazer. Que se foda o protocolo
que, assim como assim, não está preparado para cerimónias
entre humanos e extraterrestres.
O beijo é leve, fresco e delicado como Lia, como os
jovens que somos, como o casal que queremos ser. Mas há no
ar a promessa de mais, de muito mais. Lia sabe tão bem como
eu que logo teremos que consumar esta união e sei que está
ansiosa em relação a isso. Felizmente tenho planos que passam
por, durante o resto do dia, assegurar-me de a deixar o mais
preparada possível para a nossa noite a dois. Se tudo correr
como espero, no momento em que entrar comigo no quarto,
estará mais que pronta para me receber dentro dela. E só de
pensar nisto, há “alguém” a acordar ali em baixo…
Acontece que esse “alguém” terá que se acalmar porque
há uma quantidade assustadora de gente para cumprimentar
agora e tudo o que não precisamos em Pangeia é de longos
debates sensacionalistas sobre a erecção do príncipe herdeiro.
Não é fácil, mas lá me consigo controlar enquanto beijo e
aperto a mão a mais de duzentas personalidades diferentes o
que consome quase duas horas. A parte mais difícil é quando
Genna se aproxima com um sorriso irónico no rosto e diz um
“felicidades aos noivos”, que soa ao desejo de uma morte lenta
e dolorosa. Curiosamente a expressão do rosto de Lia não se
altera um milímetro e o sorriso que lhe dá em resposta é
cristalino e genuíno. Não sei há quanto tempo é que ela treina
esta merda de mascarar as emoções, mas juro que o faz de
forma profissional. Acho que vou ter que lhe pedir umas
aulas…
Quando o último convidado abandona a Igreja, fico
finalmente a sós com Lia.
— Estás bem? — pergunto.
— Acho que sim. Nervosa, mas sim. É idiota, depois de
tudo, dizer que confio em ti?
— Não, nunca. Podes confiar, eu estarei sempre aqui para
ti.
— Arthur — e a voz dela é um fiozinho —, estou
nervosa.
Tenho vontade de lhe perguntar com o quê só para a
poder ver enrubescer. Mas não quero deixá-la ainda mais
constrangida e preciso de aproveitar estas pequenas brechas de
fragilidade para entrar no coração dela.
— Não fiques, confia em mim. Vai ser quase tão fácil
como respirar. Eu vou assegurar-me disso.
Lia assente quando me encara nos olhos.
— És bonita, muito mais bonita do que alguma vez podia
imaginar. — Quando digo estas palavras, passo o meu polegar
sobre os dois sinais perfeitos que lhe marcam o rosto.
— Também tu, Arthur, por dentro e por fora. Agora
vamos, já devem estar à nossa espera para dar início ao
banquete.
— As senhoras primeiro — e faço uma vénia exagerada
para que Lia passe.
Quando ela o faz, com um sorriso delicado, volto a
chamá-la:
— Lia?
— Sim, Arthur?
— A tua visão traseira, nesse vestido, vale realmente a
pena. Acredita que nunca pensei que pudesse ser tão agradável
andar atrás de uma mulher.
E a piada brejeira, arriscada, acaba por compensar
quando Lia explode numa gargalhadinha. Mas o que eu disse é
total e completamente verdade. Independentemente do ângulo,
Lia é de tirar o fôlego.
Capítulo 20
Lia

Olho novamente para a aliança dourada na minha mão e


nem consigo acreditar que é real. Depois de tudo aquilo
porque passámos nos últimos dias, a verdade é que,
finalmente, estamos casados. Se formos contar o tempo em
unidades, só estou na Terra há pouco mais que uma semana,
mas a sensação que tenho é que passaram anos desde que
cheguei aqui. É como se o dia em que aterrei, com a minha
querida Zira, no jardim do Palácio Real, tivesse acontecido há
quase uma vida…
Fiquei sem Zira, entretanto. E foi tão doloroso que a
quantidade de lágrimas que chorei poderia ter sido usada para
formar um lago de prata em Pangeia. Felizmente, nunca chorei
sozinha. A meu lado, tive sempre Elena, a rainha Rita, o rei
James e, acima de tudo, tive Arthur. Um Arthur meigo e
preocupado, que, mesmo exausto, fez questão de estar comigo
sempre que conseguiu, um Arthur que respeitou o meu luto,
que jamais me pressionou, que me estendeu uma mão que foi
âncora na tempestade. Sei também que é a ele que devo a
possibilidade de contacto com a minha família. E que bom foi
ouvi-los e perceber que os anos-luz que nos separam pouco
importam porque eles continuam a amar-me como eu os amo,
porque mesmo com toda esta distância, continuamos perto no
coração que, no final do dia, é o único lugar que realmente
importa.
Se é verdade que nenhum deles tinha com Zira a mesma
relação que eu, é igualmente verdade que todos perceberam a
minha dor. O meu pai ainda sugeriu enviar uma nova
tutora/acompanhante para a Terra mas eu declinei a oferta e
expliquei que tenho em Elena uma amiga e companheira e
que, por agora, isso é suficiente para me manter. À menção do
nome de Elena, Rome pigarreou e percebi que tinha vontade
de me fazer a mesma pergunta que ela já me fez dezenas de
vezes. Ainda pensei que talvez fosse melhor não adiantar
grande coisa mas, ao ver a expressão de expectativa dele,
decidi tirá-lo da própria miséria e dizer-lhe que Elena é linda e
que será, certamente, uma boa surpresa. Só me calei quando
percebi o olhar de advertência dos meus pais e acabei por não
tecer mais comentários.
Apesar de não ter sido muito longa, a conversa com a
minha família deu-me força e consegui, através deles,
despedir-me de Zira de forma digna. Como a minha mãe me
recomendou incessantemente, após despedir-me do corpo da
minha fiel amiga, forcei-me a concentrar no dia de hoje e neste
casamento que parecia, ao mesmo tempo, tão perto e tão
longe.
O banquete oferecido pelos reis terrestres foi maravilhoso
e isento de proteína animal para todos. Juro que tinha vontade
de comer muito mais do que aquilo que efectivamente comi,
mas Arthur, numa espécie de joguinho perverso, tem estado a
mexer comigo desde que nos sentámos à mesa. Não sei
quantas vezes já se inclinou sobre mim para beijar o meu
pescoço, para trincar a minha orelha ou para me sussurrar
obscenidades aos ouvidos… E eu, que devia estar
chocadíssima com estes comportamentos, estou num misto de
excitação e medo que me inebria.
Quando finalmente é anunciado no amplificador sonoro
que a pista de dança vai ser aberta por suas altezas reais, os
príncipes terrestres e duques de Pangeia, Arthur e Lia, percebo
que falta pouco para o momento em que vou, finalmente, ficar
a sós com o meu marido. E essa percepção, a juntar ao meu
estado, fazem com que sinta, inclusivamente, uma discreta
tontura quando me levanto que, para mal dos meus pecados,
não passa despercebida a Arthur.
— Hey, o que foi isso? — pergunta-me ao ouvido.
— Nada de especial. Senti-me um pouco tonta. Só isso.
— Tonta, já? Mas se ainda nem te toquei…
— Arthur, por favor, pára de ser vulgar.
— Vulgar? Não, Lia, estás errada. Será tudo menos
vulgar. Será mágico, especial, único…
— Por favor, preciso de estar concentrada para a dança.
— Concentrada não exclui necessariamente que também
estejas molhada…
Porra, como é que ele consegue fazer isto? Dizer estas
coisas com a mesma descontracção com que se comenta um
resultado desportivo só pode ser um dom. Arthur não cora, não
se atrapalha e não pára de sorrir para os convidados que
dividem connosco o salão. Já eu, sinto-me corada como se
estivesse a trabalhar na estiva num dia de temperaturas
superiores a 40° Celsius.
— Eu não estou molhada. — Antes pelo contrário, nem
sei bem porquê.
— De certeza que não?
— Absoluta. — A Origem sabe como sou uma mentirosa
de merda mas, atendendo ao motivo, espero que me conceda
um crédito de perdão.
— Isso quer dizer que se eu te levasse agora para o nosso
quarto e enfiasse os meus dedos em ti, tu não irias estar
preparada para me receber?
Ok, matem-me agora.
— Não, não iria. — Não sei exactamente porque é que o
estou a contrariar, mas decido insistir nesta teoria idiota do
“não tens qualquer espécie de poder sobre mim”.
Arthur coloca um sorrisinho arrogante no canto da boca e
responde com um convencido “falta uma dança para podermos
tirar isso a limpo”.
Por falar em dança, não consigo evitar pensar que é bom
que o final, desta vez, não seja um Cesar em choque, agarrado
à cara com a boca e o nariz sangrantes. E Arthur parece ler os
meus pensamentos porque me diz ao ouvido “desta vez vai
correr tudo bem”. A parte realmente grave? Eu acredito nele.
Quando os primeiros acordes de Espírito de Viena, a
valsa escolhida pela rainha Rita que se acredita ter sido
composta por Strauss na Primeira Era, ecoam, Arthur conduz-
me para a pista de dança e cola o seu corpo ao meu. O som dos
violinos empurra-nos de forma lenta ao início e um pouco
mais rápida numa fase posterior mas a verdade é que o espaço
entre os nossos corpos nunca aumenta e vou rodopiando nos
braços de Arthur ao mesmo tempo que sinto todas as partes do
seu corpo em contacto com o meu. E essa sensação começa a
deixar-me e afogueada.
— Com calor, Lia?
— Um pouco cansada — respondo com parcimónia.
— Cansada, já? Mas Lia… Temos uma maratona tão
longa pela frente e tu ficas ofegante logo no aquecimento?
— Sou uma princesa de Vory, Arthur. Recupero rápido e
aguento tudo.
— Isso é o que vamos ver.
Ah, mas nem que eu tenha que comer o meu próprio
cotovelo vou mostrar fraqueza perante Arthur. Não faço ideia
sobre que planos é que ele tem para esta noite, mas
garantidamente não me vou queixar, nem que a minha
frequência cardíaca dispare para valores incompatíveis com a
vida.
Felizmente o meu marido (e é estranhamente agradável
pensar em Arthur assim) não fala comigo até aos acordes
finais da valsa e, quando a música termina, alguém anuncia no
sistema de som que suas altezas reais, recém-casadas, vão
agora abandonar o banquete para se dirigirem aos seus
aposentos. Oi? Mas já? Como assim?
— Vamos, Lia. É agora.
— Vamos, claro. — E lá vou eu, a fingir que não estou
espantada e a pensar que, de cebolada, talvez o meu próprio
cotovelo até nem seja uma refeição assim tão má.
Quando chegamos ao quarto, Arthur informa-me que a
leitura biométrica da minha íris também já está activa, o que
me permite entrar, sem depender dele, quantas vezes quiser.
Apetece-me embirrar e responder que nem eu esperava outra
coisa, mas tenho receio que essa afirmação seja “cutucar a
onça com uma vara curta” e, por isso, mantenho-me em
silêncio.
O quarto, que agora é de ambos, está perfeitamente
arrumado e percebo que existem espaços vazios à espera dos
meus objectos pessoais. Essa atenção comove-me e Arthur,
super sensitivo, percebe essa pequena comoção e apodera-se
dela.
— Alguma coisa aqui agradou a minha mulher?
— Esposa não seria o termo correcto? — Não consigo
resistir a uma pequena alfinetada.
— Não. Odeio a palavra esposa. Tu és minha mulher. E
eu sou o teu homem.
Aceito. E agrada-me. Realmente parece-me uma
terminologia mais condizente com o carácter dominante de
Arthur.
— E agora. Lia, minha mulher, deixa-me ajudar-te a sair
desse vestido…
É a hora da verdade, certo? Mas eu sou uma princesa e as
princesas não têm medo. Então confesso que não percebo de
onde vem este tremor que faz com que a minha mão vá
oscilando de forma microscópica…
Antes que me consiga ajustar, Arthur posiciona-se atrás
de mim, de pé, e começa a desapertar a interminável fileira de
botões que fecha o meu vestido nas costas. Por cada botão
desapertado, de forma carinhosa, deposita um beijo suave nas
minhas costas e eu sinto dezenas de pequenos arrepios de
prazer. Quando todos os botões estão abertos e o vestido cai
num emaranhado de pérolas aos meus pés, Arthur estende-me
a mão e ajuda-me a sair de dentro dele.
— Porra, Lia. Gostava que te pudesses ver agora da
mesma forma que te vejo. Tão perfeita…
Os olhos de Arthur são como os de um homem sedento
perto de um oásis e isso dá-me uma confiança que antes não
sentia. Devagar, saio de dentro dos meus sapatos e, com um
movimento único, tiro a mola que me prendia o cabelo que,
livre, cai solto pelas minhas costas e ombros.
— É a tua vez — digo a Arthur, sem perceber porque é
que a minha voz está tão rouca.
— Vermelho porquê, Lia? Não é a cor típica de uma
noiva terrestre… — diz o meu marido enquanto olha de forma
claramente agradada para a minha lingerie. É de mim ou ele
está a tentar ganhar tempo?
— Porque sou uma princesa e este é um dos poucos luxos
que me são permitidos.
Arthur acena em concordância e começa a despir-se, peça
por peça, sem nunca tirar os olhos de mim. Quando os boxers
são tudo o que lhe resta, fecha a distância entre nós e,
pegando-me ao colo, deposita-me no centro da cama que, a
partir de hoje, é nossa.
— Agora Lia, agora vou mostrar-te como pode ser tão
bom.
Fico à espera de sentir medo, porém, o medo não vem.
Tudo o que sinto é vontade de lhe pedir que se cole a mim
depressa porque, neste momento, preciso do toque dele para
poder respirar. Queria muito ter medo. Mas tudo o que sinto
agora é amor.
Capítulo 21
Lia

Arthur coloca uma mão por detrás do meu pescoço e com


a outra empurra-me delicadamente para trás. Quando a minha
cabeça fica sobre as duas almofadas, ele parece sentir-se
satisfeito e começa a explorar a minha pele com pequenos
beijos e dentadas leves. O caminho que traça com a boca é
inebriante e fecho os olhos para me poder focar melhor nas
sensações que o meu corpo experimenta. Mas quando Arthur
suga o meu mamilo direito por cima do soutien vermelho, os
meus olhos abrem-se em espanto. O que é que este homem
está a fazer comigo?
Arthur, contudo, nem parece perceber a minha
inquietação porque segue a sua exploração pelo meu corpo até
chegar ao laço das minhas cuequinhas. Penso que seja a hora
em que vai despir-me completamente mas, para meu espanto,
ele limita-se a desviar as minhas cuequinhas para o lado e
coloca um dedo e depois outro dentro de mim.
— Alguém me dizia durante a valsa que não estava
molhada, não era? — pergunta-me com um sorriso.
— É… Parece que alguém mentiu durante a valsa —
respondo, completamente despida de vergonhas.
Acho que a valsa não é a nossa cena, pois não? — E aí
estão as covinhas que fazem escancarar os portões do inferno.
— E qual seria então a “nossa cena”, príncipe Arthur? —
pergunto-lhe baixinho.
— Posso responder-te no final da noite?
Suponho que esta seja uma das tais perguntas retóricas
sobre as quais Elena tem falado e, por isso, decido não
responder. Até porque Arthur continua a trabalhar com os
dedos dentro de mim e a sua boca voltou para os meus
mamilos, o que implica que a minha capacidade de raciocínio,
neste momento, seja praticamente inexistente.
— Podemos fazer isto de muitas formas, de formas quase
infinitas — a voz de Arthur é um sussurro — e eu não
descansarei enquanto não as experimentar todas contigo. Mas
hoje, para a nossa primeira vez, só quero que não sintas mais
dor do que aquela que for absolutamente necessária…
Aceno com a cabeça confirmando a Arthur que ouvi e
concordei com o que acabou de me dizer. Depois, num passe
de mágica, a minha lingerie desapareceu, os boxers de Arthur
também e ele posiciona-se na minha entrada, com um ar de
concentração absoluta.
— Estás bem? — E noto a preocupação no tom de voz.
— Sim — respondo —, como é que poderia não estar?
Arthur sorri e vai entrando em mim devagar, centímetro a
centímetro. Percebo pela expressão dele que está a fazer um
esforço gigante para manter o ritmo tão lento e recebo faminta
os beijos que me vai depositando nos lábios enquanto me diz
baixinho: “já vai ficar bom, já vai ficar tudo bem”.
A medida que Arthur entra mais fundo dentro de mim, o
desconforto físico que sinto começa a transformar-se em dor
real, uma dor aguda e cortante que me faz fechar os olhos por
um instante.
— Lia? — Ouço a preocupação na voz de Arthur e,
quando abro os olhos, vejo as gotas de suor que se formam na
sua testa. — Eu sei que dói mas já vai passar, prometo. Um
último esforço, ok?
Concordo com um movimento de cabeça e Arthur investe
completamente dentro de mim.
— Tão fodidamente apertada! — A voz dele é pouco
mais que um gemido e depois Arthur pára de movimentar as
ancas e beija-me de uma forma lenta e sedutora. — Quando te
sentires confortável e quiseres que me volte a mexer, deixa-me
saber.
Não sei o que é que confortável quer dizer neste contexto
mas, depois da dor intensa que senti, o meu corpo parece estar
a adaptar-se e, na verdade, a sensação de preenchimento
começa a ser prazerosa.
— Quando o meu marido quiser… — digo.
E Arthur não se faz rogado. Os movimentos de anca dele,
curtos ao início e cada vez mais amplos depois, tornam-se
agradáveis. Demasiado agradáveis, na verdade. Sinto a energia
começar a percorrer o meu corpo de forma leve, mas
descontrolada e tenho medo que este formigamento seja
sentido por Arthur.
— Deixa, é tão bom… — E quando ele diz isto, tenho
medo que me tenha lido os pensamentos.
Arthur vai alternando os movimentos de entrada e saída
com círculos que desenha com as ancas e, de repente, sem eu
esperar, pega na minha perna direita e empurra o meu joelho
contra a minha barriga. Não há Origem que me valha agora.
Com cada estocada de Arthur, com cada movimento profundo,
sei que estou perdida. A energia que há instantes fluía de
forma leve começa a tornar-se cada vez mais pesada e a
confluir para o lugar onde ele e eu somos um só. Um, ou
vários gemidos involuntários escapam dos meus lábios, o que
parece fazer Arthur perder o resto do controlo. Os olhos dele
nunca abandonam os meus e quando as palavras “vem-te para
mim, meu amor” escapam dos seus lábios sei que os portões
do Inferno nunca mais se voltarão a fechar. Estou feita refém
do próprio diabo. E perdidamente apaixonada por ele.
Não sei quanto tempo passou desde que Arthur saiu de
dentro de mim. Sei que temos estado abraçados desde então e
que a calidez da pele dele é como o céu contra a minha pele
fria.
— E então? Foi uma experiência aterradora que preferias
ter vivido sedada? — pergunta-me ele com um sorrisinho
sacana.
— Tens alguma espécie de prazer macabro por ouvir-me
dizer que tinhas razão? — respondo.
— Sou capaz de ter, sim!
— Ok, a verdade é que tinhas razão. — E decido
surpreendê-lo usando uma expressão dele, muito pouco
condizente com o meu estatuto de princesa. — Foi
fodidamente bom.
— Wwwoooooww, estarei a sonhar ou essa boca perfeita
acabou de usar palavras sujas? — O sorriso nos lábios de
Arthur é predatório e percebo pela dilatação das pupilas dele
que gostou da minha linguagem vulgar.
— Esta boca perfeita tem tido um óptimo professor de
vernáculo — respondo.
— Então essa boca perfeita que fique sabendo que não é
só para ensinar vernáculo que este professor serve. — O
sorriso de Arthur aumenta. — Agora, por exemplo, vamos ter
uma aula prática…
— E qual a disciplina, pode saber-se? — pergunto.
— Como tocar o céu e voltar! — Os olhos de Arthur
estão colados aos meus quando me responde. — Ou como
ficar presa no inferno para sempre.
— Acho que a segunda opção não me desagrada de
todo… — E já não consigo dizer mais nada porque Arthur
roda para cima de mim e, menos de dez segundos depois, há
dedos, bocas, gemidos e um fluxo livre de energia que
percorre cada centímetro do meu corpo.
Desta vez, não há dor ou desconforto. Desta vez, há uma
Lia sem medo que responde a Arthur com tudo o que tem,
como se o mundo fosse acabar para lá das portas deste quarto.
Desta vez, há dois amantes que há poucos dias estavam
separados por anos-luz mas que, hoje, são um só. Quem é que
pode recusar um inferno tão bom?
Capítulo 22
Arthur

Depois da enxurrada de merda que antecedeu o


casamento, parece que, finalmente, a paz voltou a este palácio.
E eu descobri que, afinal, sou um gajo com muita sorte. Não
sei se deva agradecer a Deus, ao primeiro terrestre idiota que
tentou colonizar Vory, ou ao meu pai que assinou este acordo
de paz, mas foda-se se Lia não é o melhor de todos os prémios
do universo.
No dia que se seguiu à nossa noite de núpcias, pedi que as
refeições fossem servidas no quarto porque o diabo me
carregue se havia qualquer hipótese de me separarem da minha
mulher naquelas horas. Aquando da nossa primeira vez, tentei
ser tão delicado quanto possível e ninguém imagina como isso
foi muito para lá de difícil. Ainda agora não sei explicar como
é que não me vim quando senti a vibração energética de Lia a
sugar-me. Porra, já estava em agonia por ela ser tão apertada e
aquela descarga eléctrica tinha tudo para ser a machadada
final. Acho que o meu Deus e a Origem dela estiveram do meu
lado e decidiram dar-me força para aguentar e ela não ficar
com a impressão que o marido, afinal, era uma foda miserável.
Mas depois dessa vez? Depois dessa vez senti-me mais vivo
do que alguma vez tinha sentido e quando percebi que ela me
aceitava para tocar o céu, foi impossível parar. Jamais
imaginei que fosse assim, havia até uma parte muito racional
de mim que me dizia para parar, que Lia iria ficar dorida, mas
rapidamente os olhos violeta dela e aqueles dois sinais
perfeitos fizeram-me esquecer que existia uma razão válida
para sair de dentro dela.
Não pude deixar de rir com a expressão horrorizada de
Lia quando finalmente saímos do quarto, na manhã do
segundo dia, para tomar o pequeno-almoço em família.
Vestida com um vestido violeta que lhe destacava ainda mais
os olhos e com o cabelo preso num rabo-de-cavalo, tudo o que
me perguntava era se toda a gente sabia o que tínhamos
passado o dia a fazer. E mal fazia a pergunta, as faces
ruborizavam de tal forma que cheguei a ficar preocupado. É
óbvio que Elena não ajudou e quando entrámos na sala de
refeições largou um maravilhoso “estava a ver que tinha que
mandar alguém ao quarto para vos separar com um pé de
cabra”, que fez com que Lia ficasse da cor de um tomate e o
meu pai mais pálido que um cadáver.
Mas finalmente entrámos numa espécie de rotina. De
manhã, tomamos o pequeno-almoço juntos, depois eu sigo
para as obrigações de estado e Lia realiza algumas visitas e
promove actividades e eventos de solidariedade. Duas tardes
por semana, desloca-se à instituição para crianças
abandonadas e, sempre que os deveres palacianos me dão uma
folga, acompanho-a. Temos jantado juntos todos os dias e
depois de jantar voltamos para os nossos aposentos onde
conversamos, vemos televisão (Lia está viciada numa série de
má qualidade do canal delta e eu próprio já começo a achar
piada ao enredo) e, finalmente, fazemos amor. Ou fodemos.
Ou fazemos as duas coisas.
Depois do que aconteceu com Zira, tentamos não facilitar
em nada e Lia nunca mais saiu do palácio sem a companhia de
Carlos, o segurança que o meu pai destacou para ela e que é
um ex-militar do ramo de alto desempenho da nossa polícia.
Apesar dos seus 41 anos e de pesar mais de cem quilos, Carlos
é invulgarmente ágil e consegue passar despercebido, quase
como se se fundisse com os ambientes em que se encontra.
Mesmo sem os três dedos da mão esquerda, que perdeu numa
operação de reconhecimento na zona mais a leste de Pangeia,
continua a ser um militar invulgarmente talentoso e saber que
é ele quem está com Lia deixa-me o mais tranquilo possível
dadas as circunstâncias.
Hoje, o Conselho de Ministros foi demasiado longo
como, aliás, tem sido prática recorrente na última semana e
juro que o pai de Genna estava a tentar empurrar a minha
paciência ao máximo. O homem falou duas horas sobre o quão
insatisfeitas as pessoas estão por não poderem comer peixe
sempre que desejam como se a fome diária de cherne fosse o
problema mais grave do mundo. Comam carne e legumes, por
amor de Deus. Não há qualquer hipótese de o planeta voltar ao
esquema da pesca descontrolada e ecologicamente
insustentável que tinha antes da Guerra das Eras. Que
impressão me faz que as pessoas não consigam aprender com
os próprios erros… Novidades quanto aos rebeldes não
existiram. Desde o homicídio de Zira que não é descrito um
único foco de insurreição, nem mesmo nas zonas mais a leste
do continente e não consigo perceber se isto são boas ou más
notícias. De qualquer maneira, o Supremo Conselho de Ética
de Pangeia deu finalmente a ordem para que o “soro da
verdade” seja injectado nos dois militares, que guardavam a
entrada para a zona privada do palácio no dia do homicídio, e
tenho muita esperança que novas informações apareçam.
É perdido em pensamentos sobre o interrogatório que
caminho apressado para a sala de refeições e sou surpreendido
por Elena que corre em sentido contrário com ar aflito. Puxo-a
pelo braço e tento travá-la, mas quando ela me diz que há
qualquer coisa de errado com Veva, inverto a marcha e
acompanho-a até a cozinha.
Quando lá chegamos, encontro uma Veva consciente,
porém, muito pálida, a gemer agarrada ao estômago e a
vomitar um líquido avermelhado que me parece sangue. Junto
a ela já estão o médico e uma das enfermeiras do palácio. Não
sei o que está a acontecer aqui, mas é importante que Veva seja
salva. A minha história não seria a mesma sem a minha
querida Veva que me enchia os bolsos de biscoitos caseiros e
que me fazia pastéis de nata que, segundo ela, eram únicos em
Pangeia e uma tradição de família que vinha de antes da
Guerra das Eras. Baixa e gordinha, nunca se deixou intimidar
pelo meu estatuto real e por diversas vezes as minhas nádegas
tiveram uma conversinha com a colher de pau que, mesmo
sem utilizar na realidade, Veva transportava para todo o lado.
Perder Veva é perder uma parte daquilo que fui e daquele que
sou. Não vou permitir que tal aconteça.
— Sua alteza — o médico chama o meu pai, mas eu
dirijo-me para junto dele também penso não existir grande
margem para dúvidas… É um caso de envenenamento.
— Envenenamento? — A expressão do meu pai é de
choque profundo.
— Penso que seria prudente colher amostras de toda a
comida a ser confeccionada actualmente e não permitir que a
mesma seja servida à família real — acrescenta o médico.
— Sim, claro, com certeza! — O meu pai parece
incrédulo. — Enviarei agora mesmo uma mensagem para o
meu chefe de segurança que estará aqui com a sua equipa em
menos de dez minutos.
— Veva vai sobreviver? — É tudo o que pergunto porque
também é tudo aquilo em que consigo pensar.
— Vai. Felizmente a quantidade ingerida foi mínima.
Veva apenas provou os cozinhados — responde o médico.
— E se os tivesse realmente comido, assim como nós
iríamos fazer? — pergunta Elena com a sua voz,
habitualmente feliz, transformada num gemido de horror.
— Seria impossível sobreviver. Não tenho qualquer
dúvida.
E a resposta final do médico gela-nos a todos até aos
ossos.
Quando Lia chega da visita a uma escola, que está a
desenvolver um projecto piloto para a integração de crianças
autistas, conto-lhe de forma resumida o que aconteceu.
Curiosamente, a sua expressão não se altera, nem quando me
diz que precisamos de descobrir de uma vez por todas quem é
o infiltrado. Pergunto-lhe se quer acompanhar-me no
interrogatório aos dois guardas que se vai realizar dali a pouco
e a resposta é positiva. Quando dou a mão a Lia, e apesar de
toda a calma aparente, sinto a energia que lhe corre
descontrolada pelo corpo.
Capítulo 23
Lia

Se é verdade que, nos filmes aqui da Terra, este tipo de


interrogatório acontece quase sempre numa sala pouco
amigável, na vida real parecem ser feitos em gabinetes
médicos, brancos e assépticos. Sim, Arthur perguntou-me se
queria estar presente no interrogatório e eu aceitei. Para além
de ter ficado agradada com a confiança que demonstrou,
suponho que ninguém queira, com a mesma intensidade que
eu, saber quem matou Zira.
Neste momento, estou sentada numa cadeira metálica tão
rígida que chega a ser desconfortável, enquanto assisto à
preparação do material para a punção de uma veia periférica
do primeiro guarda a ser interrogado. Por decisão da
responsável pela investigação, os guardas vão ser interrogados
isoladamente. Olho para o homem de cerca de trinta anos que
estende o braço para o enfermeiro e tudo nele me parece
íntegro e honesto. É óbvio que não sou ingénua ao ponto de
acreditar que as pessoas são ou não inocentes pelo seu aspecto,
mas confesso que não consigo suspeitar deste homem.
Quando finalmente o soro da verdade é injectado na veia
do elemento da guarda, com recurso a uma seringa de insulina
tal a pequenez da dosagem, os olhos do homem parecem
vidrar e menos de um minuto depois da injecção, o
interrogatório começa.
— É verdade que esteve de serviço no palácio de Pangeia
na noite do baile de apresentação da princesa Lia de Vory? —
pergunta a responsável pela investigação.
— Sim, é — responde o guarda.
— E viu alguém estranho tentar entrar na ala privada do
palácio? Algum convidado do baile?
— Não. Todas as pessoas que entraram são habituais da
casa, senhora.
— E quem são essas pessoas? Podemos saber? —
pergunta a Rainha Rita.
— O senhor Cesar, a menina Genna, o segurança da
princesa Lia, o segurança da menina Elena e Veva que passou
com um prato cheio de pequenos pastéis de nata.
— Os pastéis eram para mim — reage Elena como Veva
sabe que os adoro e que não posso comer demasiado em
público sem ir parar à capa de uma revista de lixo qualquer,
costuma levar um pratinho e deixá-lo no meu quarto, junto
com um chá, para que eu possa comer antes de dormir…
— Anotado, princesa. — A responsável pela investigação
volta a dirigir a sua atenção para o guarda.
— E notou um comportamento estranho em algumas
dessas pessoas?
— Quando passaram para a ala privada não, minha
senhora. Mas o senhor Cesar, quando saiu, parecia diferente do
habitual.
Sinto o meu coração apertar-se.
— Diferente em que sentido? Pode ser mais específico?
— A responsável pela investigação usa agora um tom de voz
diferente, como se, de repente, o interrogatório estivesse a
começar a sério.
— Não é nada de objectivo, simplesmente vinha num
passo quase de corrida e não parou para conversar connosco
como habitualmente… — disse o guarda, fazendo logo de
seguida uma pequena pausa para organizar o discurso. — Veja,
o senhor Cesar há muitos anos que é presença frequente na
zona privada do palácio, mas eu desempenho esta função de
guarda há oito anos e nunca me lembro dele ter passado pelo
nosso posto sem parar para nos cumprimentar, viesse sozinho
ou acompanhado.
— E nessa noite não parou? — É Arthur quem se
intromete agora no interrogatório, com voz trémula.
— Não, não parou. Nem olhou para nós, para dizer a
verdade. Na entrada sim, conversou connosco, contou as
piadas costumeiras, falou de rugby com o meu colega…
Ficámos, inclusivamente, a perceber que ele ia pernoitar no
palácio.
— Ele pernoita muitas vezes? — A responsável pela
investigação está de volta.
— Sim, muitas. — É a rainha Rita quem responde. —
Arthur é da nossa total confiança e tem um quarto que, ainda
que não oficialmente, lhe pertence, duas portas a seguir ao de
Arthur.
— Certo, majestade. — A investigadora volta-se
novamente para o guarda. — Diga-me, quanto tempo
permaneceu Arthur na ala privada do palácio?
— Seguramente menos de uma hora, mas mais de meia.
— E os restantes? Quanto tempo demoraram a sair?
Demonstraram alguma alteração em relação ao seu
comportamento habitual?
— A menina Genna saiu pouco depois do senhor Cesar,
Veva saiu cerca de cinco minutos depois de entrar e os
seguranças permaneceram na zona privada até ao final do
nosso turno.
— Sua Alteza, rei James — começou por dizer a
responsável pela investigação, voltando a sua atenção para o
pai de Arthur —, a princesa Elena já nos deu o álibi para Veva,
a rainha Rita disse-nos que Cesar é presença habitual, mas
ainda faltam encontrar motivos para a presença de Genna na
zona privada… Se não estou em erro, falamos de Genna
Debrum, filha do seu ministro das pescas, certo?
— Sim, não conhecemos nenhuma outra Genna —
responde o rei, parecendo confuso na verdade, não sei por que
razão estaria Genna na zona privada… Talvez por ser amiga de
Elena?
— Minha amiga, pai? — Elena parece indignada. — Eu
alguma vez fui amiga daquela idiota?
— Elena! — O tom da rainha Rita é de advertência.
— Genna costuma entrar na ala privada por minha causa.
E eu recuso-me a olhar para a minha direita, onde Arthur
está sentado, quando o ouço proferir estas palavras. Pode ser
idiota, mas o facto de saber não faz com que me seja agradável
ouvi-lo falar da sua relação com ela.
— Durante algum tempo, eu e Genna tivemos uma
relação próxima e fui eu quem lhe concedeu o acesso à zona
privada do palácio. No dia do baile, esse relacionamento já
estava terminado e, por isso, não faço ideia sobre o que é que
ela ali foi fazer… A verdade é que me esqueci de informar a
guarda que a passagem de Genna devia ser impedida. —
Arthur pára um pouco e sinto que olha fixamente para mim. —
A razão para a entrada de Genna está assim explicada, o
motivo desconheço. Agradeço, contudo, que não voltemos a
esse assunto porque, não sendo segredo para a minha mulher,
faz parte do passado.
Observo enquanto a responsável pela investigação vai
tomando notas e permito-me, finalmente, olhar para Arthur
que me observa com ansiedade. No momento em que sorrio
para ele, é como se um peso gigante lhe tivesse saído de cima
e o verde dos olhos volta a brilhar. Ok, ele é realmente capaz
de gostar de mim. O que, por acaso, atendendo a que estou
perdidamente apaixonada por ele, é capaz de ser óptimo.
— Uma última questão — diz a investigadora —, é
normal que os guarda-costas permaneçam na ala privada
durante o período nocturno?
— Não existe exactamente um padrão — responde o
guarda na maioria das noites não, descansam nos aposentos
reservados ao pessoal noutra ala do palácio. Mas em noites de
festas e eventos especiais, quando há muita gente no palácio,
geralmente optam por permanecer junto aos elementos da
família que estão destacados para proteger.
Depois desta última questão, o interrogatório é dado por
concluído e, quando o efeito do soro da verdade passa, o rei
James faz questão de agradecer ao guarda a veracidade das
suas declarações anteriores.
O interrogatório ao segundo guarda não traz nenhuma
informação nova relativamente ao primeiro e, uma hora e meia
depois do início, os trabalhos são dados por concluídos e todos
abandonam a sala excepto nós, família real.
— A sério, Arthur? Tu e Genna? Aquele lixo vulgar? —
Já disse que adoro Elena? — Fazia-te um bocadinho mais
esperto…
— Pára, Elena! — O tom de Arthur é baixo e comedido.
— Ai eu é que páro? Não me faças rir… O que raio é que
viste naquela idiota? Jesus Arthur, quando a professora
primária lhe perguntou as fases da lua, e a ajudou dizendo que
uma se chamava lua-cheia, ela respondeu que as outras eram a
lua meia e a lua vazia.
E pronto, não aguento e tudo o que consigo fazer é rir à
gargalhada. Parece adequado, não é? Depois do interrogatório
em que tentamos descobrir o culpado pela morte da minha
melhor amiga e depois de estarmos a discutir a antiga amante
do meu marido, eu rebento a rir. É, claramente a culpa deve ser
deste calor da Terra.
Faço um esforço para me controlar, mas só consigo parar
realmente quando olho para os reis terrestres que estão lívidos.
— Vamos ter que conversar sobre isto depois, Arthur —
diz o rei James, circunspecto.
— Assim faremos — responde Arthur —, mas agora, se
me permitem, vou passar no hospital real para saber notícias
sobre Veva e depois jantarei com Lia nos nossos aposentos.
Os reis acenam afirmativamente com a cabeça e Arthur
fecha a sua mão na minha enquanto me conduz para a saída.
Capítulo 24
Lia

— Porque é que vem Carlos a conduzir? — pergunto a


Arthur enquanto repouso a minha cabeça no seu ombro, no
banco traseiro do veículo que me costuma transportar.
— Porque o teu motorista habitual está no hospital com
Veva — responde-me ele talvez nunca te tenha dito, mas Veva
e Romeu são casados.
Quando Arthur me dá esta resposta percebo que preciso
de começar a dedicar algum tempo a conhecer e conviver com
o pessoal do palácio. A verdade é que sempre fui muito bem
cuidada por todos mas, desde que cheguei à Terra, ainda não
houve grande oportunidade para tentar estabelecer com eles
uma relação mais pessoal. No palácio dos meus pais, em Vory,
conheço todos os funcionários pelo nome próprio e sempre os
considerei uma parte da família. E agora que penso nisto,
decido que amanhã hei-de ir à cozinha preparar um prato
tipicamente voryano, com as devidas adaptações, é claro, para
ser servido ao jantar, não só da família real mas também dos
funcionários.
— No que estás a pensar? — pergunta-me Arthur
baixinho.
— Em nada de especial — respondo —, mas amanhã, se
tudo correr bem, vou cozinhar para todos.
— Tu? — O tom de Arthur é de surpresa.
— Eu própria… Mas porquê? Achas que não sei
cozinhar?
— Honestamente? Não sei se a cozinha vem lado a lado
com a disciplina de relações interplanetárias na escola das
princesas de Vory…
— Eu gosto de cozinhar. Quando era pequena adorava ir
até à cozinha do palácio e o nosso cozinheiro chefe costumava
sentar-me na bancada ao lado dele enquanto me ia explicando
tudo o que fazia — confidencio. — A azáfama da cozinha
fascinava-me e, logo que tive idade, comecei a ajudar. Muitas
vezes me esgueirei para a cozinha onde a minha mãe acabava
por me encontrar cheia de farinha e stelp.
— Stelp?
— É um fruto voryano que, na culinária, tem uma função
que me parece semelhante à do ovo terrestre — explico.
— Hmmmm… Agora fiquei curioso — exclama Arthur
—, mas sabes que dificilmente encontrarás esses ingredientes
na nossa cozinha, certo?
— Não te preocupes, eu adapto o que for necessário —
respondo com um sorriso que Arthur prontamente retribui.
— Príncipes — é Carlos, o meu segurança que raramente
fala, quem nos chama —, estamos a chegar.
***
O veículo real pára num lugar reservado, à porta de um
edifício que parece construído apenas com recurso a vidro e
que me lembra os edifícios de gelo eterno de Pangeia. Quando
entramos, há um cheiro forte a desinfectante no ar e não
consigo não me sentir incomodada com o facto de toda a gente
aqui parecer trabalhar de branco o que, para os meus padrões,
se assemelha a um gigantesco velório.
— Boa tarde! — Arthur aproxima-se do balcão de
atendimento. — O meu nome é Arthur e sou…
— O príncipe da Terra — completa a mulher que o
encara com um sorriso. — Sabemos exactamente quem é, sua
alteza.
E pela expressão que ostenta, posso perceber que esta
mulher não só sabe quem Arthur é, como também é
platonicamente apaixonada por ele, o que, para falar a
verdade, não me espanta nem um bocadinho.
— Olá — meto-me na conversa, não por estar
incomodada, mas pela minha imensa necessidade de ser
cordial —, eu sou Lia…
— A nossa futura rainha — responde a mesma mulher
com um sorriso menos apaixonado, mas igualmente caloroso
—, fazendo um pouco de adivinhação, suponho que gostariam
de saber notícias da nossa paciente Veva Dominguez, certo?
— Sim — respondemos eu e Arthur em uníssono.
— Muito bem, se quiserem acompanhar-me, terei todo o
gosto em conduzir-vos ao quarto da paciente e apresentá-los à
equipa de saúde que acompanha o caso.
Enquanto seguimos a simpática funcionária, vou
observando o hospital e percebo que é um pouco menos
organizado do que os hospitais do meu planeta natal. Em Vory,
dificilmente alguém falará mais alto do que um sussurro
dentro de uma unidade deste tipo e a circulação de pessoas é
limitada. Obviamente o povo terrestre, sendo mais caloroso,
estabelece um outro tipo de interacção e isso explica porque é
que a funcionária que nos acompanha já parou duas vezes para
cumprimentar outros colegas.
Quando finalmente chegamos à porta de um gabinete
com uma placa a dizer “Unidade de Cuidados Intermédios”, a
funcionária, que entretanto descobri chamar-se Elisa, marca
um código numérico e entramos num espaço decorado em tons
de cinzento claro e azul, onde um homem e uma mulher estão
sentados atrás de computadores.
— Boa tarde, Dr. Rui e enfermeira Clara, trago aqui suas
altezas, os príncipes terrestres, que gostariam de saber
informações sobre o estado de Veva Dominguez — anuncia
Elisa.
Com o anúncio, ambos se levantam e caminham até à
nossa presença fazendo uma discreta vénia mas que, mesmo
assim, me incomoda. Confesso não perceber como é que um
povo aparentemente tão informal depois, no fim das contas,
faz este tipo de gesto. Apesar de Elena me ter explicado que a
vénia se usa em sinal de respeito, na minha cabeça é um sinal
de que alguém se está a inferiorizar em relação a outrem e isso
não faz qualquer sentido. O papel da família real é servir os
outros e não ser servida…
— O meu nome é Rui, sou médico anestesista e esta é a
enfermeira Clara, chefe da nossa unidade. Somos nós quem
está, neste momento, responsável pela prestação de cuidados a
Veva que, em abono da verdade, é uma paciente muito bem-
disposta — diz o médico. — Veva já chegou estabilizada ao
nosso hospital graças aos cuidados que recebeu ainda no
palácio. Uma vez que também já tinha sido feita a lavagem
gástrica com carvão activado, aquilo que estamos a fazer
actualmente é o controlo de sintomas e monitorização de
parâmetros vitais.
— E qual é o prognóstico? — pergunta Arthur.
— Muito favorável — responde o médico a quantidade
ingerida foi muito pequena porque Veva apenas provou a
comida e, portanto, esperamos que a evolução seja rápida e
favorável.
— Acha que podemos vê-la? — pergunto.
— Ela está acompanhada pelo marido, mas tenho a
certeza que não se incomodará com a vossa presença —
responde a enfermeira Clara. — Se quiserem acompanhar-
me…
À entrada da zona onde estão os doentes, em pequenas
boxes de vidro individuais, é-nos fornecida uma bata azul que
devemos colocar e que, ups, me lembra muito as túnicas
voryanas.
Depois de convenientemente equipados, somos
conduzidos à presença de Veva que nos recebe com um sorriso
apesar da dezena de fios e tubos que lhe saem do corpo.
— O que é que dois jovens tão lindos estão a fazer
metidos num hospital para ver uma velha destas? — brinca
Veva.
— Hey, Veva, tu sabes que és a minha miúda — responde
Arthur com uma piscadela de olho.
— Príncipe Arthur, cuidadinho que eu estou aqui e sou
um homem ciumento — diz Romeu.
Existe uma interacção e um carinho entre eles que eu
realmente desconhecia, mas fico feliz por perceber que Arthur
tem esta relação com aqueles que lhe são próximos. Não
suportaria se ele fosse um idiota e considerasse que os outros,
pura e simplesmente, tinham obrigação de o servir.
— Vevita, queres contar-me o que aconteceu? — A
pergunta de Arthur é quase um pedido e Veva assente.
— Então, eu já tinha provado e dado a minha aprovação a
toda a comida que seria servida excepto à comida da princesa
Lia que, por ser vegetariana e um pouco diferente, faço
questão de ser sempre eu a fazer. Acontece que me ausentei
para colher umas folhas de hortelã para o ensopado de
lentilhas que estava a terminar e, quando provei para rectificar
o sal, já não consegui fazer mais nada… Menos de dois
minutos depois, comecei a sentir-me nauseada, a transpirar e
com uma dor de estômago terrível… O resto vocês já sabem…
Sinto que as minhas entranhas dão um nó com estas
palavras. Sempre fui boa a matemática e a lógica. Se Veva já
tinha provado todos os pratos e nada lhe aconteceu e se apenas
ficou doente depois de provar a minha refeição, então o
veneno foi colocado especificamente para me atingir a mim.
Provavelmente a pessoa que colocou o veneno monitorizou a
confecção e acreditou que o prato estava terminado e que Veva
já não o iria provar.
Olho para Arthur e percebo, pelo olhar angustiado que
me lança, que chegou exactamente à mesma conclusão que eu.
A pessoa que matou Zira continua à solta e a circular
livremente dentro do palácio e o seu alvo é agora inequívoco.
Há alguém que me quer ver morta.
Capítulo 25
Arthur

Hoje, na visita ao hospital, os meus piores receios foram


confirmados: o grande objectivo dos baldes de merda por
detrás desta pseudo-revolução é matar Lia e, assim, destruir a
aliança de paz entre os planetas. Com a sua morte, provavel-
mente seria até o governo de Vory a abrir as hostilidades e a
guerra intergaláctica voltaria a ser uma realidade. Apesar de
esse ser um cenário catastrófico, a bem da verdade, neste
exacto momento, a guerra preocupa-me muito menos que a
hipótese de ficar sem Lia. Não sei que raio de feitiço é que ela
lançou sobre mim, mas não existe qualquer hipótese neste
planeta de conceber a ideia de ficar sem ela.
Quando chegámos ao palácio, depois de uma viagem
silenciosa, subimos para os nossos aposentos e Lia diz-me que
ia tomar um banho. Noutras circunstâncias, ter-me-ia
oferecido para a acompanhar, mas percebi que ela precisava de
mais tempo para organizar os pensamentos e emoções que a
assolavam. Nestas poucas semanas que levamos juntos, essa
foi uma das coisas que já aprendi sobre ela: a necessidade que
tem de, primeiro, ficar a sós com os problemas, de reflectir
antes para conversar depois. E eu respeito isso, como respeito
tudo nela. Mas quando Lia sair do banho, vou precisar que me
deixe lidar com isto à minha maneira que é primitiva e que
também implica falar depois.
Preciso muito de me enterrar nela agora, da forma mais
irracional possível. Preciso de sentir cada bocadinho dela, de
ter a certeza que está aqui, que é minha de verdade. E preciso
que ela perceba que a quero e que a vou proteger sempre.
Foda-se, quem me dera poder descobrir quem está por detrás
disto e arrancar-lhe a cabeça do corpo.
Uma das histórias mais antigas que vem da Primeira Era,
é a de D. Pedro que, antes de ser rei do país que outrora se
chamou Portugal, se apaixonou por Inês de Castro, aia da sua
mulher. Ora, sendo esse um amor impossível por questões de
diplomacia e de suposta moralidade, o pai de D. Pedro e rei à
época, mandou assassinar a aia por quem o filho se havia
apaixonado. Mas a lenda reza que, quando D. Pedro se tornou
rei, legitimou o seu casamento secreto com Inês de Castro e
acabou por perseguir os seus assassinos, mandando executar
dois deles de forma invulgarmente cruel. Posteriormente, o rei
terá ordenado que se desenterrasse D. Inês e que fosse
realizada uma cerimónia de coroação póstuma onde os nobres
portugueses foram obrigados a beijar a mão à rainha morta. E
porquê lembrar-me desta história agora? Porque sempre que a
ouvia a considerava aterradora. Nunca imaginei que D. Pedro
fosse mais que um louco… Mas agora começo a sentir uma
forte empatia com ele. Um homem apaixonado, doente de
amor, que perde a mulher que ama é capaz das maiores atroci-
dades. Tirem-me Lia e serei capaz de mostrar-lhes uma
loucura maior que a de D. Pedro.
Estou distraído com os meus pensamentos quando Lia
entra no quarto, mais de uma hora depois de ter saído para
tomar banho. E parece-me que ela também precisa de mim
porque nem sequer se vestiu. No corpo traz apenas um robe de
uma qualquer fibra voryana que parece seda rendada. Como a
maioria da sua roupa interior, é vermelho forte.
— Temos muito para conversar, não é? — pergunta-me.
— Temos. Mas não agora — respondo —, agora só
preciso de ti nos meus braços.
E não é preciso dizer mais nada.
O corpo de Lia obedece ao meu toque como se
fizéssemos amor há anos e enterrar-me nela traz-me a paz que
preciso neste momento. Mas agora quero muito esquecer tudo
o que existe para lá das paredes deste quarto, quero esquecer
que há mundo fora da bolha Arthur e Lia e a maneira de
conseguir isso é deixar que o instinto assuma.
— Lia — sussurro —, estás preparada para um amor
menos doce?
Ela olha-me directamente nos olhos e pergunta:
— Deixa de ser amor?
— Não, contigo nunca deixa de ser amor — respondo,
enquanto a vou beijando devagar.
— Então sim, estou pronta. Eu sou tua, o meu corpo é
teu.
E era só isto que eu precisava de ouvir. Num movimento
único, viro Lia de barriga para baixo ao mesmo tempo que a
faço firmar-se nas mãos e nos joelhos. Se ela estranha, não o
diz. Mas quando entro nela, de uma só vez e sem aviso, há um
“ai” que se escapa dos seus lábios, contudo, com a tesão que
tenho, não consigo sequer parar para perguntar-lhe se foi de
dor, surpresa ou prazer. A única coisa que consigo fazer é
fodê-la forte e fundo num ritmo enlouquecedor que não vou
aguentar por muito tempo.
Sinto as gotas de suor que se formam na minha testa, na
linha dos meus cabelos, e vejo a pele das costas de Lia
arrepiar-se. Sei que ela está perto e eu estou tão duro que não
sei como não explodi já.
— Arthur — a voz dela é um gemido — preciso de mais,
estou tão perto.
O pedido dela acaba comigo de vez e fodo-a com tudo o
que tenho, com tesão e com amor, como se fosse um homem
condenado a agarrar-se à vida que lhe resta. Quando me
venho, sei que nunca foi assim antes, que ela é o meu lugar no
universo e, quando finalmente a olho, perco-me naqueles
olhos violeta que gritam amor e desejo.
Ninguém me vai tirar Lia.
***
Dormimos abraçados a noite inteira, numa combinação
perfeita de quente e frio. Quando acordo, de manhã, Lia ainda
dorme e faço um esforço para não a acordar. Sei que vou ter
um dia de merda e apetecia-me começá-lo dentro dela, mas
também sei que o dia de ontem foi cheio de emoções duras
para Lia e que é preciso deixá-la descansar.
Depois de tomar um duche de cinco minutos, desço para
o pequeno-almoço onde encontro os meus pais.
— Bom dia, Arthur.
— Bom dia, mãe, bom dia, pai. Onde está Elena? —
pergunto.
— Acordou mais cedo e saiu para o hospital. Foi com
Romeu visitar Veva. O que até acaba por ser útil porque eu e a
tua mãe precisamos ter uma conversa contigo… — O tom do
meu pai não é exactamente convidativo.
— Eu sei — respondo.
— Há quanto tempo é que dura esta situação com Genna?
— pergunta a minha mãe.
— Há uns dois anos — digo num fio de voz. Não é como
se estivesse orgulhoso desta merda.
— Há milhares de mulheres em Pangeia Arthur —
retoma o meu pai o comando da conversa —, explica-me qual
a necessidade de teres um namorico exactamente com a filha
de um dos meus ministros. Mike sabe disto, por acaso?
— Não sei, talvez saiba. Às vezes tenho a sensação que
sabe, outras vezes parece-me que não… E de facto não havia
exactamente uma necessidade, mas… Genna é bonita, mostrou
interesse, estava perto e nunca me exigiu mais do que eu
estava disposto a dar. Foi conveniente.
— Conveniente? Para o teu umbigo, ou para outras partes
anatómicas tuas, pois… Mas nem vou meter os meus
pensamentos em palavras por respeito à tua mãe. Deixa-me só
perguntar-te se tens noção dos problemas que se podiam ter
criado aqui.
— A verdade é que nunca pensei muito nisso, desculpa o
meu egoísmo. Eu sou adulto, Genna é adulta e suponho que
sempre confiei o suficiente nela para saber que não iria
alardear nada para revistas de terceira categoria.
— Como e que ela reagiu ao teu casamento? — pergunta
a minha mãe.
— Mal. Mas, aparentemente, está tudo controlado neste
momento.
— E é melhor que assim se mantenha Arthur — ameaça o
meu pai. — Mike vai obviamente estranhar a filha ser
chamada para ser inquirida no processo da morte de Zira. O
que é suposto eu responder-lhe? Qual é a justificação para a
filha dele estar dentro da zona privada do palácio durante a
madrugada?
— Não faço ideia. E esta é toda a verdade. Eu deixei de
estar com Genna uns dias depois de Lia ter chegado à Terra.
Ela não estava lá para me procurar, garantidamente —
respondo.
O meu pai assente com cabeça, parecendo resignado com
as minhas explicações e continua a comer. Mas a minha mãe
continua com o olhar fixo em mim, um olhar que parece
radiografar-me a alma.
— O que se passa, mãe?
— Estás feliz com Lia, não estás?
— Muito.
E desta vez é a minha mãe que assente e sorri. Um
sorrisinho travesso quase como se dissesse “eu sabia”.
Capítulo 26
Lia

Quando acordei já passava das nove horas o que, para os


meus padrões, é realmente tarde, e Arthur já não estava na
cama.
Suponho que depois da noite de ontem não quis acordar-
me e, na verdade, fico-lhe grata. A Origem sabe como
precisava de descanso depois de tantas emoções.
Quando meti os pés no chão, senti dores em lugares que
nem vale a pena descrever e não consegui evitar uma pequena
gargalhadinha. Não sei o que é que a Terra tem feito comigo,
mas coisa boa não pode ter sido… Estou num planeta que não
é o meu e há um grupo a tentar matar-me que, por acaso, tem
alguém infiltrado no palácio onde vivo, mas o que é que eu
faço quando vejo que a noite de ontem deixou marcas?
Gargalho como uma adolescente histérica. Enfim…
Decidi tomar um duche como Arthur costuma fazer, em
vez do meu banho habitual. Vesti umas calças de ganga justas
e uma t-shirt preta, prendi os cabelos num coque e desci para a
cozinha sem passar pela sala de refeições.
Quando entrei, instalou-se um silêncio profundo só
cortado pelo meu envergonhado “bom-dia” que me fez pensar
que, se calhar, esta não foi a melhor das minhas ideias. Mas
depois uma ajudante de cozinha, com uma idade próxima da
minha, aproximou-se e perguntou-me o que desejava. Quando
lhe respondi que hoje era eu a cozinhar para todos, ficou a
olhar para mim de boca aberta, começou a rir e, com uma
espontaneidade incrível, agarrou na minha mão e conduziu-me
para a bancada habitualmente ocupada por Veva.
— Hmmmm, será que posso comer alguma coisa
primeiro? — perguntei, algures entre o divertida e o
envergonhada.
— Claro que sim — respondeu ela quer que lhe prepare
alguma coisa ou a princesa arranja-se sozinha? Já agora, sou a
Teresa.
— E eu sou a Lia.
— Essa é que é uma novidade e pêras — disse ela e lá
voltou a gargalhar ao melhor estilo de Elena —, faça o favor
de se servir. Há pão fresco, sumo de laranja natural e temos
compotas na despensa.
Enquanto vou abrindo armários para tratar do meu
pequeno-almoço, aproveito para me familiarizar com o espaço.
A cozinha é muito organizada e limpa e isso agrada-me. Na
despensa, aproveito para ver as provisões disponíveis e tentar
perceber a que pratos voryanos é possível adaptá-las.
Quando já tenho uma ideia mais ou menos definida, volto
à bancada onde Teresa me espera com um sorriso e o pessoal
da cozinha se encontra mais ou menos alinhado. Enquanto
como, todos se apresentam e é estranho, mas divertido estar a
cumprimentar pessoas enquanto tenho a boca cheia de pão
com doce de ameixa.
Assim que termino de comer, explico a todos o meu
plano e com uma rapidez incrível, começamos a trabalhar.
Veva deve ser realmente uma óptima líder porque a equipa é
organizada e trabalha com método e rigor.
Como entrada, vamos preparar uns cogumelos salteados
com pimento vermelho, a sopa será de alface que me lembra
uma alga muito apreciada em Vory e o prato principal
consistirá numa espécie de risoto de legumes. Os doces serão
terrestres porque, nesse aspecto, a cozinha da Terra dá cem a
zero à voryana.
Enquanto trabalhamos, Teresa pergunta se pode ligar a
rádio. Obviamente digo que sim e, quando dou por mim, as
minhas ancas estão a abanar ao som de uma música tão alegre
que dá vontade de dançar. É nestes preparos que Arthur me
encontra quando entra na cozinha. O olhar que me lança é de
tal forma incrédulo que eu e Teresa acabamos por desatar a rir.
Não quero ser muito convencida, mas acho que fiz mais uma
amiga na Terra.
— Olá, Teresinha! — Arthur cumprimenta.
— Olá, Arthur.
Arthur? Assim, sem mais nada? Nem a horrível vénia a
acompanhar? Nem o “sua alteza”? Com zero deferência? A
Origem me proteja de ter na minha frente outra Genna, por
favor.
— Vejo que finalmente conheceste Lia — diz Arthur o
que já podia ter acontecido, não fosse a teimosia habitual que
te impediu de estar presente no nosso casamento.
— Ia ser lindo, não ia? A funcionária da cozinha sentada
na capela real, com um bocadinho de sorte de braço dado com
a Leninha… Poupa-me, Arthur. Além disso, era um dia de
imenso trabalho aqui, jamais abandonaria Veva.
— Eu percebo isso tudo, mas sabes como teria gostado
que estivesses presente.
— E eu teria gostado de ir, tu sabes — responde Teresa.
— Lia — chama-me Arthur —, Teresa e eu nascemos
exactamente no mesmo dia e sempre vivemos no palácio. A
mãe de Teresa é a responsável pela lavandaria e o pai de
Teresa o nosso jardineiro principal. Mas aqui a Teresinha
sempre se interessou mais pelos tachos, apesar de ter sido uma
brilhante aluna…
— Bem mais brilhante que alguns príncipes que por aí
desfilam, diga-se de passagem — diz Teresa encolhendo os
ombros ao mesmo tempo que se vira para mim e acrescenta:
— Eu e Arthur estudámos juntos desde o primeiro ao último
ano.
Quase suspiro aliviada. Olhando para a interacção destes
dois percebe-se claramente que há uma amizade que os une,
mas só isso.
— Bem, agora que as apresentações estão feitas, posso
saber o que se passa aqui? — pergunta Arthur com um tom de
mandão bem-disposto.
— Passa-se que te vais pisgar da cozinha e esperar para
ver o que se passa quando os pratos chegarem à mesa do
almoço — respondo.
— Certo, chef — diz-me ele de qualquer forma é preciso
informar todos os funcionários que cerca das três da tarde
começarão os interrogatórios a todos os que estiveram de
serviço quando Veva foi envenenada.
— Mais uma sessão de soro da verdade? — pergunto
curiosa.
— Não, Lia, é muita gente para interrogar e o soro é para
ser gerido com muito, muito rigor. Nesta primeira fase de
interrogatório, não há soro da verdade para ninguém. Temos
que confiar no treino da polícia e o soro só será aplicado em
caso de suspeita de que alguém esteja a mentir — responde
Arthur.
— Percebo… Mas agora é favor abandonares a minha
cozinha — digo-lhe.
— Ok, ok, estou a sair… Deixa-me só avisar mais uma
coisa — e a cabeça de Arthur roda na direcção de Teresa —,
Cesar almoça connosco hoje.
Com uma piscadela de olho, Arthur abandona a cozinha
e, quando volto a encarar Teresa, descubro que está mais
vermelha que os pimentos que tem estado a arranjar para
saltear com os cogumelos.
— Está tudo bem, Teresa?
— Mais ou menos. São coisas antigas, não se preocupe
— responde-me ela.
Elena usa muitas vezes uma expressão que diz que aqui
há gato e eu, apesar de inexperiente nestas coisas de
relacionamentos, quase que aposto que aqui não só há um gato
como que esse gato é praticamente um tigre. Desde que se
falou em Cesar, que as mãos de
Teresa tremem e que o rubor se colou às suas faces como
se tivesse sido esbofeteada. Tenho vontade de fazer perguntas,
mas sei que não devo e, por isso, mordo a língua e impeço-me
de cruzar os limites.
O resto da manhã é passado na azáfama dos tachos e,
enquanto vou provando aqui e ali e dando indicações ao
pessoal da cozinha, aproveito para dançar ao som da música
ritmada que soa em toda a divisão.
Perto da hora de servir o almoço, despeço-me desta
equipa fantástica e prometo-lhes voltar muitas vezes. Foi
realmente bom passar aqui esta manhã. Antes de sair,
aproveito para chamar Teresa e pergunto-lhe se amanhã quer
acompanhar-me, a mim e a Elena, no nosso lanche da tarde.
Apesar de parecer espantada com o convite, Teresa brinda-me
com um mega sorriso e diz que sim, que vai com todo o gosto.
Depois, num repente, abraça-me e parece arrepender-se mal o
faz. Mas eu gostei dela, da simpatia, da espontaneidade e do
abraço e, por isso, abraço-a de volta.
— Amigas? — pergunto.
— Amigas — responde-me ela.
Quando chego ao quarto, tomo o meu segundo duche do
dia e troco de roupa para o almoço em família. Confesso que
estou curiosa para ver a reacção deles à minha comida. E
também estou feliz por ter feito uma amiga. Com um estado de
espírito leve, acabo por escolher um vestido de padrão floral,
curto e fluído e decido deixar o cabelo secar naturalmente.
Chego à sala de refeições no momento em que o almoço
está a começar a ser servido e, no lugar ao meu lado esquerdo,
já está sentado Cesar. Para minha surpresa, no outro lado da
mesa, logo a seguir a Elena, estão sentados Veva e Romeu.
— Veva, que bom que teve alta. Fico tão feliz por vê-la
novamente em casa — digo.
— E eu fico feliz por estar de volta e com uma recepção
destas — responde-me ela mas, segundo consta, fui muito bem
substituída na minha cozinha.
— Jamais estaria à sua altura, mas confesso que me
diverti. E como bónus fiz uma amiga…
— Que maravilha — diz a rainha Rita.
Entretanto, viro-me para Elena e acrescento:
— Teresa, amanhã, vai lanchar connosco.
E, de repente, parecem acontecer mil coisas ao mesmo
tempo. Elena começa a rir à gargalhada tal como Arthur que,
mesmo assim, tem o cuidado de mascarar o riso com um
suposto acesso de tosse, Cesar derruba o copo de vinho que ia
a meio do trajecto para a boca e Veva começa a murmurar
qualquer coisa entre dentes.
Afinal não é um tigre. São pelo menos dez.
— Eu sabia que tu e Teresa se iam dar bem — afirma
Arthur com satisfação.
— Na verdade, eu já vos devia ter apresentado mas têm
acontecido tantas coisas que a socialização acabou por ficar
para segundo plano — acrescenta Elena.
— Bem, vamos então provar as iguarias confeccionadas
pela minha esposa? — pergunta Arthur numa tentativa mais
que evidente de tirar Cesar da sua própria miséria.
— Vamos a isso — responde o Rei James parecendo
genuinamente entusiasmado.
Já eu, confesso que estou nervosa. Não percebo por que
raio é tão importante para mim que a minha família terrestre
goste da comida voryana adaptada. Talvez o facto de ainda não
ter tido oportunidade de fazer muitas coisas aqui na Terra me
faça atribuir demasiada importância às pequenas questões.
Acho que preciso urgentemente de falar com Arthur sobre a
ideia que se tem vindo a formar na minha mente durante as
visitas à instituição de apoio a crianças. Oxalá ele a aprove.
Felizmente os comentários à comida que, modéstia à
parte, está maravilhosa, são de tal forma positivos que Veva
diz que vai pedir demissão e o rei James vai dizendo, em tom
de brincadeira, que eu devia cozinhar para a família pelo
menos uma vez por semana.
A conversa à mesa flui naturalmente e quase me esqueço
do turbilhão em que temos vivido. Ou quase me esquecia
porque, de repente, Cesar levanta-se da cadeira e diz que são
horas do seu interrogatório e que a responsável pela
investigação já deve estar à sua espera. Arthur levanta-se no
mesmo instante e diz-nos apenas:
— Vou acompanhá-lo.
Capítulo 27
Lia

Poucos minutos depois da saída de Arthur e Cesar, todos


terminamos a nossa refeição e preparamo-nos para abandonar
a sala. É quase como se a saída repentina deles nos tivesse
recordado que há um assassino entre nós e a sensação de
desconforto que se instala é palpável.
— Lia — é Elena quem me chama —, para onde vais
agora?
— Nem sei bem… Tinha pensado ir ler um bocadinho
para o quarto mas, neste momento, duvido que me consiga
concentrar.
— Queres ir dar uma volta pelos jardins? Pelo menos até
ao final do interrogatório de Cesar? — pergunta-me ela.
— Sim, pode não ser uma má ideia — respondo —,
confesso que esta história me está a deixar angustiada.
— Se tu estás angustiada, imagina como se sentirá
Teresa…
Ok, eu não queria, juro que não queria entrar por este
caminho mas, em minha defesa, foi Elena quem começou.
— O que é que se passa entre eles os dois? Hoje, na
cozinha, Arthur provocou Teresa relativamente a Cesar e ela
ficou de tal forma afectada que dava para sentir as ondas de
calor que lhe saíam do rosto.
— A resposta correcta a essa pergunta é “nada” — e a
voz de Elena é pesarosa —, mas só porque eles são duas mulas
teimosas…
Não sei se é a melhor altura para lhe dizer que não faço
ideia sobre o que seja uma mula, mas decido deixar passar e
Elena continua:
— Segundo Arthur, esses dois idiotas gostam um do
outro mais ou menos desde sempre. Conheceram-se ainda
crianças, aqui nos corredores do palácio, onde Cesar era
presença assídua com os pais e onde Teresa vivia. Quando
foram para a escola primária, começaram a viver às turras e
depressa quem convivia com eles percebeu que aquilo era
muito mais que uma simples implicância.
— Mas nunca tiveram nada um com o outro? — pergunto
curiosa.
— Quando chegaram à adolescência, deviam ter uns
dezasseis anos, Cesar ganhou coragem e disse a Teresa que
gostava dela. Só que ela, devido à diferença social entre
ambos, nunca achou que fosse suficientemente bom partido
para ele e, por isso, disse-lhe que lamentava, mas não sentia o
mesmo.
— Alguém ainda quer realmente saber de diferenças
sociais? Em Vory há muito que essa é uma não questão. Como
a nossa selecção de companheiro é feita por compatibilidade
genética, as classes sociais não são sequer levadas em
consideração — explico.
— Aqui na Terra ainda estamos atrasados nesse ponto,
confesso — diz Elena mas para quem interessa, que neste caso
são Cesar e o pai, a classe social não é realmente um
problema. Só mesmo na cabeça de Teresa… E assim sofrem os
dois, pronto. Cesar não consegue relacionamentos estáveis
porque a cabeça dele está noutro lugar e Teresa nunca teve um
relacionamento conhecido o que, atendendo ao aspecto
maravilhoso dela, é, no mínimo, estranho.
— E ninguém faz nada para lhes tentar dar um
“empurrão”?
— Achas que não fizemos já? Mas eles estão tão
habituados a fingir que são só amigos, que acabaram por se
convencer que é melhor assim, enfim… Queira Deus que o
interrogatório de Cesar termine depressa.
— Elena — pergunto achas mesmo que Cesar pode estar
implicado na história do assassinato de Zira? — E o meu
coração gela só por proferir estas palavras. Não é que conheça
Cesar realmente bem mas, simpatizei com ele e não sei como
Arthur lidaria com o choque de ser traído pelo melhor amigo.
— Achas? Nunca na vida. — Felizmente a voz de Elena é
plena de convicção. — Mais depressa nasciam dentes nas
galinhas. Cesar é do bem, podes confiar. Tenho a certeza que
existe uma óptima explicação para o facto de ele estar na ala
privada do palácio na noite do homicídio e para ter saído de lá
de tão transtornado…
— Já não falta muito para sabermos que explicação é essa
— sussurro.
Elena e eu continuamos a passear até cerca das quatro
horas da tarde, apesar do calor que se faz sentir e da aparente
falha no meu mecanismo regulador de temperatura interna.
Quando finalmente voltamos para o palácio, subo ao quarto
para me refrescar antes do lanche e, quando entro, encontro
Arthur à janela com um ar pensativo.
— Terra chama Arthur — digo baixinho.
— Terra escuta Vory — responde Arthur, com um
daqueles sorrisos que faz com que duas covinhas perfeitas lhe
apareçam no rosto. — Já há uns minutos que te tenho estado a
observar, a passear com Elena.
— Como correu com Cesar? — pergunto.
— Suponho que bem — diz Arthur, agora com seriedade.
— Como todos esperávamos, Cesar tem um motivo para estar
na ala privada do palácio e para a reacção menos cordial que
teve com os dois guardas.
— Então… Os dois guardas do palácio, Veva e Cesar
estão descartados — começo a fazer contas de cabeça —,
sobra-nos Genna como suspeita?
— Não, não nos sobra Genna. A justificação de Cesar
também a iliba — diz Arthur com um olhar estranho e, por
muito que Genna possa ser detestável, acredita que seria
incapaz de cometer um crime deste género.
— Como é que o álibi de Cesar também iliba Genna? O
que é que me está a escapar aqui? Há alguma coisa que eu não
saiba? — Sei que estou a afogar Arthur em perguntas mas esta
história mexe realmente comigo. E o facto de ele estar a
defender o carácter de Genna não ajuda nem um bocadinho.
— Cesar deitou-se com Genna na noite do baile —
responde Arthur.
Sento-me na cama para não cair desamparada no chão.
Estou na Terra há pouco tempo e ainda não conheço os seus
meandros, nem domino as delicadas interacções palacianas
mas… Acabei de ter uma conversa com Elena sobre o amor de
Cesar por Teresa. E, para mal dos meus pecados, é suposto que
Genna goste do meu marido, certo? Então…
— Por que raio é que eles dormiriam um com o outro? —
pergunto.
— Lia, os humanos são complicados, sabes?
— Já vou tendo uma ideia. Mas os voryanos também são
— respondo.
— Cesar estava bêbado e não quis arriscar pegar no carro.
Por esse motivo, fez o que habitualmente faz nestas
circunstâncias: decidiu dormir no palácio. Ora, Genna estava
despeitada porque me tinha procurado antes do baile e lhe dei
com os pés e, na fúria, percebeu o que Cesar ia fazer e decidiu
ir atrás dele. O resto é fácil de perceber. Genna é bonita e
sedutora e, tocado a álcool, Cesar deixou-se levar. Mas depois,
quando percebeu o que tinha feito, não conseguiu suportar o
nojo que sentiu de si próprio e fugiu disparado.
— Mas porquê? — Sinto a fúria começar a percorrer o
meu corpo na forma de energia descontrolada. — Genna é
assim tão tua que Cesar tenha que ficar na merda por lhe
tocar?
Arthur encara-me chocado.
— Lia! Cesar ficou na merda por causa de Teresa. Porque
ama Teresa e se deitou com Genna.
— Mas tu queres fazer-me crer que Cesar, nestes anos
todos, nunca se deitou com outra mulher? — Sei que estou a
ser embirrante, mas os ciúmes estão realmente a consumir-me.
— Deitou, é claro que deitou — responde-me ele num
tom de voz mais alto que o habitual —, mas nunca com
ninguém aqui do palácio, nunca com ninguém que Teresa
conhecesse e muito menos com alguém que fosse fazer todos
os possíveis para que a informação chegasse aos ouvidos dela.
Quando diz estas palavras, Arthur encara-me zangado e
eu percebo que espera que lhe peça desculpa ou que, pelo
menos, mostre arrependimento pela injustiça que cometi. Mas
eu ainda estou demasiado viva, ainda sinto demasiada energia
descontrolada e, pela primeira vez na vida, de forma
consciente, decido ignorar o “quanto mais o sintas, menos o
mostres”. Desta vez, não sei como nem porquê, decido
permitir-me explodir.
— Estás à espera de um pedido de desculpas? Pois olha,
lamento informar-te, mas não o vais ter. Até onde sei, apanhei
Genna despida de joelhos à tua frente e, por isso, estou no meu
direito de me irritar sempre que achar que há merdas palpáveis
entre vocês os dois, percebeste?
Arthur encara-me em silêncio e vejo que um sorriso se
começa a formar no canto da sua boca, o que tem o dom de me
fazer irritar ainda mais.
— Achas graça? Achas muito engraçadinho que a
princesa de gelo, afinal, também sinta ciúmes? Pois fica
sabendo que sinto sim, muitos. E que se eu pudesse enfiava
um dedo em cada olho de Genna e descarregava a energia toda
que conseguisse até ela implorar por misericórdia. — Sinto
que estou a entrar numa espiral de loucura mas, pela primeira
vez, percebo o alívio a romper no meu peito. — Tu és meu e
que ninguém se atreva a tocar-te. Porra.
Mal acabo de dizer estas palavras, Arthur levanta-se e
caminha para mim, mantendo o olhar sempre fixo no meu. E
nos olhos dele há fogo e uma luxúria como nunca vi antes. É
como se aquele verde estivesse cheio de chamas do mais
perigoso fogo terrestre. A energia que me estala pelo corpo
aumenta de intensidade e não tenho medo. Quero luta, quero
desafiá-lo.
— O que é que foi? — pergunto de queixo erguido.
E já não consigo perguntar mais nada porque Arthur cala-
me com um beijo duro enquanto, com um único movimento,
me deita na cama, de barriga para baixo e, num instante, a
minha roupa desaparece. Depois, prende as minhas mãos com
a mão esquerda dele, acima da minha cabeça, e entra em mim
com um movimento único. De repente, não sei nada porque só
há libertação e luxúria animal. Pelo menos até ao momento em
que Arthur sai bruscamente de dentro de mim e diz:
— Afinal as princesas de Vory também podem ser
meninas más… E sabes o que é que fazemos às meninas más
aqui na Terra, Lia? — O tom rouco e sedutor da voz de Arthur
faz coisas esquisitas com o meu corpo. E não, não sei. Mas de
certeza que estou prestes a descobrir e, por isso, nem me dou
ao trabalho de responder. Quando Arthur levanta as minhas
ancas e me volta a colocar na posição de ontem, penso que
este não é, de todo, um mau castigo. Só quando ele me dá uma
nalgada seca que, tenho a certeza, vai deixar marcada a minha
pele branca, é que percebo que ainda não vi nada, que Arthur
ainda não me mostrou nada. E enquanto a penetração dura, vai
alternando com umas nalgadas que me deixam mais e mais
molhada, os meus níveis de prazer são tão altos que penso que
podia morrer assim.
Tive muito medo quando os portões do inferno se abriram
para me receber, mas hoje, às mãos de Arthur, acho que me
transformei no próprio diabo.
Capítulo 28
Arthur

A meu lado, Lia dorme um sono profundo e


aparentemente tranquilo. E eu acalmo-me só de olhar para ela.
Porra, há qualquer coisa de inebriante nesta mulher. A mistura
da beleza serena e perfeita quebrada pelos dois sinais do rosto,
o contraste da pele branca com os cabelos negros, a calma
aparente que esconde um furacão no interior… No meio da
tempestade de merda que estamos a viver, acho mesmo que
sou um cabrão com sorte.
Lia voltou a surpreender-me hoje. Em primeiro lugar, a
passagem dela pela cozinha, que me mostrou, mais uma vez,
que ela é a rainha que preciso. Lia cozinhou, dançou, conviveu
com o pessoal sem jamais demonstrar qualquer sinal de
desconforto ou de se sentir superior. Aliás, quando entrei na
cozinha e surpreendi Lia a conversar com Teresa, percebi que
ela estava realmente feliz. E foi um alívio para mim perceber
que a princesa de Vory, a minha Lia, é uma pessoa simples,
sem peneiras e sem arrogâncias idiotas. Mas a maior surpresa
de hoje foi a explosão provocada pelos ciúmes. Lia
literalmente ficou em fúria, com uma descarga de energia tão
brutal que alguns estalidos eram audíveis. E foda-se se a fúria
de Lia não foi a coisa mais sexy do mundo. Cabelos a levantar,
pupilas
dilatadas, uma energia palpável a sair por cada poro. Que
puta de tesão…
E foi essa tesão que me levou a ser particularmente duro
com ela depois. Confesso que tinha pensado esperar mais um
tempo até iniciar Lia em práticas menos convencionais, mas
foi humanamente impossível resistir ao apelo inconsciente que
ela me lançou. Fui duro com ela, bem sei, mas a resposta dela
foi do caralho. O gelo transformou-se em fogo, a resposta dela
ao meu toque foi visceral, as marcas da minha mão na pele
branca levaram-me a um ponto uns bons metros acima da
loucura. Fazer amor com Lia tem sido uma experiência
maravilhosa, mas isto, que aconteceu ontem à tarde e se
estendeu por mais de metade da noite, foi a foda mais incrível
da minha vida.
Lia suspira no sono e ajeita-se na cama procurando a
proximidade do meu corpo. Com carinho, tiro-lhe o cabelo do
rosto e prendo-o atrás da orelha livre de furos. Ela é tão
perfeita que nem acredito que é minha. Somos gelo e fogo,
Arthur e Lia.
Quando adormeço, estou feliz.
***
Acordo com os beijos delicados de Lia no rosto.
— Bom dia, meu amor. São horas de sair da cama.
Estou a ficar um mariquinhas de primeira, mas juro que a
voz dela é o som mais bonito que ouvi.
— Que horas são? — pergunto sonolento.
Quando ela me responde que são oito horas dou um salto
da cama que a faz gargalhar. No meio de todo o caos, há pelo
menos um factor muito positivo: Lia tem rido muito nos
últimos dias. E isso só me faz admirá-la ainda mais. Só uma
pessoa realmente forte tem a capacidade de se sentir feliz
sabendo que tem a vida ameaçada.
Vou para a casa-de-banho tomar um duche e Lia segue-
me, o que não é habitual.
— Estás a seguir-me? — questiono com uma piscadela de
olhos.
— Talvez esteja — responde-me a provocadora enquanto
deixa cair a camisola vermelha com que dormiu.
— Lia, Lia… — Espero que ela perceba o tom de
advertência na minha voz.
— O que é que foi? — pergunta-me ela, com um ar
falsamente inocente. — Não posso tomar um duche com o
meu marido?
— É impressão minha ou estou a criar um pequeno
monstro? — questiono, chegando-me para mais perto.
— Deve ser impressão tua — sussurra-me Lia ao ouvido.
***
Depois do duche, que foi rápido mas brutal, seguimos
para o pequeno-almoço em família e daí acompanhei o meu
pai à reunião de Conselho de Ministros, que já dura há mais de
duas horas, sem que tenhamos chegado ainda aos pontos
realmente importantes da ordem de trabalhos. Até agora,
aprovámos uns quantos projectos-lei relacionados com
economia e finanças e, neste exacto momento, estamos a ouvir
o pai de Genna em mais um dos seus monólogos infinitos
sobre a necessidade de alargar as permissões relativas à pesca.
Confesso que já não tenho rabo para Mike e para a sua
cegueira relativa às questões ambientais e de sustentabilidade
e decido que é altura de falar com o meu pai sobre a
necessidade de substituí-lo no governo.
Quando, finalmente, já cansados, conseguimos avançar
na ordem de trabalhos, o ministro da defesa refere que um
novo foco de rebelião foi detectado e, para surpresa de todos,
este localiza-se na zona Este de Pangeia. Esta localização é
uma absoluta novidade e indica que, de facto, a rebelião está
espalhada e a crescer. Quando
perguntamos o que foi feito relativamente a este foco,
somos informados que, felizmente, o líder da rebelião foi
identificado e detido e aguarda pelo soro da verdade que uma
das nossas equipas da polícia especial levará para o posto de
detenção. O grande objectivo é chegar aos cabecilhas da
revolução a nível continental para a poder desmantelar.
Antes que este interrogatório aconteça não há muito que
possamos fazer mas, pela primeira vez, parece existir
esperança de se chegar ao cerne da rebelião. Na zona leste,
nunca até hoje se conseguiu chegar sequer aos líderes locais
uma vez que todos têm muitos anos de actividade terrorista
prévia e são, por isso, demasiado experientes para se deixar
apanhar em erros primários. A polícia jamais foi além da
“arraia-miúda” que, mesmo injectada com o soro da verdade,
não soube identificar os verdadeiros líderes, tendo fornecido
listas enormes de participantes mas nenhum com
responsabilidade pela organização real das coisas. Porém, a
célula do Este, muito provavelmente recente, foi desmantelada
na totalidade, e isso dá-nos a esperança de chegar ao cerne de
tudo.
Relativamente ao caso de Veva, e depois de se ter
interrogado todo o pessoal da cozinha, chegou-se à conclusão
que ninguém estranho foi visto no interior da mesma. O
grande objectivo da nossa polícia era tentar encontrar um
elemento comum entre a noite do baile e a presença na cozinha
mas, assim sendo, tal não foi possível. E isto e assustador na
medida em que nos indica que quem matou Zira pode não
estar a trabalhar sozinho no interior do palácio.
A investigação, em termos gerais, encaminhar-se-á agora
no sentido de tentar chegar aos nomes dos líderes. Já no que se
refere ao palácio, a segurança manter-se-á reforçada e
continuam a aguardar-se os resultados da investigação forense
ao quarto de Zira.
Quando o Conselho de Ministros termina, mais de quatro
horas depois de ter começado, o ambiente é soturno e a única
coisa em que penso é em voltar para os braços de Lia.
Contudo, quando eu e o meu pai chegamos à sala de refeições,
encontramos a mesa estranhamente vazia. Não há sinais de
Lia, de Elena ou da minha mãe.
Onde diabo se terão metido?
Capítulo 29
Lia

Quando acordei, Arthur já não estava na cama mas o


cheiro dele permanecia em todos os lugares. Inspirei profunda-
mente e senti uma felicidade e uma sensação de preenchi-
mento como nunca acreditei ser possível. Depois pensei em
aproveitar o tempo que me restava até ao pequeno-almoço
para colocar por escrito o projecto que lhe quero apresentar
que, basicamente, consiste em abrir um pequeno centro de
estudos para crianças carenciadas com dificuldades de
aprendizagem.
Em Vory trabalhei em imensos projectos nesta área e
tenho a certeza absoluta que se não fosse a posição em que
nasci e as responsabilidades que daí advieram, não seria outra
coisa que não professora. É por isso que espero que Arthur
encare a minha proposta com seriedade e não a entenda como
um capricho ou algo que faço apenas por uma questão de
imagem. A verdade é que tenho demasiado tempo livre e
gostava de o utilizar dedicando-me a qualquer coisa que me
realizasse e que, ao mesmo tempo, fosse útil para o povo que
devo servir. Este centro de estudos seria a concretização de um
sonho.
Foi quando estava a estruturar o projecto que senti a
primeira pontada de dor. Uma dor tão forte que tive a sensação
que o meu corpo ia rasgar-se ao meio. E depois um
descontrolo total da minha energia que começou a ser
canalizada no sentido do meu abdómen e que fez com que
fosse forçada a deitar-me no chão. Quando a dor se tornou um
pouco mais suportável, tentei levantar-me, mas ainda não
estava totalmente na posição vertical quando a sensação de
que o meu corpo ia dividir-se voltou. Juro que não sei como
consegui fazer uma chamada para Elena a pedir ajuda, porém,
quando voltei a mim, depois de perder a consciência com a
intensidade da dor, ela e a rainha Rita estavam ao meu lado.
Depois não há muito mais que me lembre. Sei que até
chegarem os médicos e enfermeiros do palácio, fui oscilando
entre a consciência e a escuridão e que me sedaram e
administraram analgesia forte antes de me trazer para o
hospital.
E é numa cama branca e asséptica de hospital que me
encontro agora, com a dor controlada, acompanhada por Elena
que não pára de dizer que não consegue acreditar que alguém
tenha conseguido envenenar-me mesmo com uma segurança
tão apertada.
— Elena, calma. Nós nem sabemos se foi um
envenenamento… Os voryanos também ficam doentes, sabes?
— A verdade é que, ao mesmo tempo que procuro tranquilizar
Elena, vou tentando racionalizar tudo isto. Mas não é fácil
manter a tranquilidade.
Quando cheguei à Terra, entreguei aos médicos do
palácio um conjunto de documentos preparados pelos meus
médicos de Vory. Nesses documentos, para além dos dados
referentes à minha condição de saúde, vinham listadas as
doenças e formas de tratamento mais comuns nos voryanos e,
em caso de necessidade, é possível que os médicos daqui
estabeleçam contacto rápido e directo com os médicos do meu
planeta. Mas mesmo sabendo isso, continuo assustada e
ansiosa com o resultado da bateria de exames que me foi feita
e cuja resposta aguardo a qualquer momento.
E enquanto penso em todas as estas questões, ouço passos
apressados lá fora e, segundos depois, Arthur irrompe pelo
quarto, tão pálido que por pouco não o reconhecia.
— Lia, minha Lia, o que é que te aconteceu? Foi veneno?
Vou matá-los com as minhas próprias mãos, juro.
— Hey, Arthur, calma! — Tento que a minha voz soe o
mais doce e tranquila possível. — Nós ainda nem sabemos o
que se passou…
— Sua alteza que me perdoe mas, na verdade, hmmm, na
verdade já sabemos — diz uma voz vinda da entrada do quarto
que reconheço como pertencendo ao médico que me assistiu à
chegada.
— E? — questiona Arthur ansioso.
— Não sei se suas altezas preferem ficar sozinhos ou
se…
— Elena, sai — diz Arthur de forma ríspida e pouco
educada, nem dando tempo ao médico de terminar a frase.
Acontece que Elena me surpreende e, quando acho que
vai armar um escândalo pela forma como o irmão falou com
ela, simplesmente levanta-se, beija a minha testa e diz: “se
Arthur está contigo, vai ficar tudo bem”.
Num breve momento, encho-me de orgulho de Elena que
pouco mais é que uma menina, mas que, sei-o bem, vai ser um
dia uma maravilhosa rainha do meu povo. Quando saí de Vory
sabia pouco sobre amor no sentido mais físico e visceral, mas
agora que vou começando a percebê-lo, dificilmente Rome
ficará imune a Elena. Ela terá que insistir, lutar e quebrar
muitos muros, ainda assim, no final, tenho poucas dúvidas que
Rome não acabe doente de amor por esta menina de fogo e
riso.
— E então, Doutor — questiona Arthur —, o que é que
se passa com Lia?
— Sua alteza está grávida.
E de repente a Terra deixou de rodar sobre o seu eixo e à
volta do sol.
— Eu estou o quê? — pergunto incrédula.
— Grávida. A princesa Lia está grávida, sem margem
para qualquer dúvida.
Porra, e agora? Há mil perguntas às voltas na minha
cabeça e não sei se deva rir ou chorar, mas, de entre todas as
emoções, é a preocupação que acaba por sobrepor-se:
— Mas eu vi centenas de mulheres grávidas em Vory e
nunca vi nenhuma com dores como aquelas que tive. É isto
que acontece na gravidez terrestre?
— Não, não é — responde-me o médico —, a gravidez
provoca variadíssimas alterações nas mulheres, mas estas
dores não são nada típicas… A questão aqui é que ninguém
sabe o que será típico de uma gravidez resultante da
fecundação de gâmetas terrestres e voryanos porque, até onde
sabemos, nunca tal aconteceu na história.
Não sei se ria, se chore, se reze ou se encha o médico de
perguntas… Aliás, quanto ao último ponto, aparentemente,
não preciso de me preocupar muito porque Arthur está
decidido a fazê-lo por mim enquanto se passeia pelo quarto, de
mãos na cabeça, como se fosse um animal enjaulado.
— Lia vai sobreviver?
— Sim, neste momento, exceptuando a quebra pouco
significativa no valor de hemoglobina e as dores,
perfeitamente atípicas para uma fase tão precoce, não há
nenhum valor laboratorial que nos faça ficar preocupados —
responde o médico. — Os exames de imagem também estão
bem e a única coisa que nos deixou surpreendidos foi o de-
senvolvimento embrionário tão rápido, o que me leva a
questionar a princesa sobre quanto tempo leva uma gravidez
voryana…
— Em tempo terrestre, cerca de quatro meses —
respondo.
— Ok, isso é suficiente para explicar o estádio de
desenvolvimento fetal que temos actualmente — diz o médico,
parecendo satisfeito —, ora a nossa proposta, neste momento,
passa por manter a princesa connosco para tentar desmamar os
analgésicos opióides que tem em curso. Também gostaríamos
da vossa autorização para monitorizar atentamente esta
gravidez e antecipar todas as possíveis complicações com a
mãe e o bebé.
— Com certeza que sim — responde Arthur sem sequer
me consultar o que for melhor para Lia e para o bebé é o
melhor para todos nós.
Arthur aproxima-se da minha cama e entrelaça a mão na
minha.
— E as dores? — atrevo-me a perguntar. — Qual é a
explicação para estas dores excruciantes?
— Não sabemos, princesa. Em termos anatómicos tudo
está como seria de esperar apesar do desenvolvimento mais
rápido que o nosso padrão habitual. Talvez seja apenas uma
reacção do organismo à presença de um bebé metade humano.
— O médico faz uma curta pausa — Mas esse será um dos
pontos que faremos questão de esclarecer.
— E acha que terei que ficar aqui até o bebé nascer? E
como é que vai nascer este bebé? — Agora que comecei, não
consigo fechar o livro das perguntas.
— Isso veremos, um passo de cada vez, pode ser? —
pergunta-me o médico. — Agora o importante é que a princesa
descanse tudo aquilo que puder. Se me dão licença vou
observar outra paciente e voltarei daqui a pouco com a
enfermeira.
— Claro que sim, doutor — respondo obrigada por tudo.
Depois do médico sair há um silêncio que enche o quarto,
mas a mão de Arthur ainda não abandonou a minha.
— Tenho tanto medo — diz-me ele baixinho.
— Medo de quê? De não estarmos preparados para ser
pais? — pergunto.
— Não, Lia, medo de te perder. Agora que te tenho não
aceito a hipótese de ficar sem ti, recuso-me a aceitar.
— Vem aqui. — E puxo-o para um abraço. — Vai ficar
tudo bem.
De repente, a mão de Arthur pousa na minha barriga e a
expressão dele oscila entre a incredulidade, o medo e a alegria.
— Parece que fomos rápidos em cumprir o nosso
principal desígnio, não foi?
— E, parece que sim — respondo —, e, mais importante
que isso, fizemo-lo com amor.
— Fico feliz que saibas isso — diz-me Arthur.
— Isso o quê? — pergunto com um sorriso.
— Que te amo. Que te amo muito.
Estou numa cama de hospital ligada a uma perfusão de
opióides, no meu ventre cresce um bebé meio terrestre, meio
voryano, não sabemos como é que isto vai evoluir e, lá fora, há
alguém que me quer ver morta e que, quando souber da
existência deste bebé, vai duplicar os esforços para que isso
aconteça. Mas Arthur acabou de dizer que me ama e, mesmo
no centro do furacão, este é o momento mais feliz da minha
vida.
— E eu a ti. Para sempre — sussurro.
Capítulo 30
Lia

Passaram três meses desde que cheguei ao hospital e a


minha barriga cresce de dia para dia. Com o passar das
semanas, depois do bebé estar completamente formado, as
dores foram-se tornando mais suportáveis e deixei de precisar
da perfusão contínua de morfina. Pelo que os médicos têm
conseguido observar através dos exames constantes, o meu
filho, que já sabemos ser um rapaz, está bem e com um
desenvolvimento perfeitamente adequado. Por enquanto, não é
possível perceber quanto dele é voryano e quanto é terrestre
mas, na verdade, a mim só me preocupa que nasça saudável.
A minha família terrestre tem feito um esforço incrível
para não me deixar sozinha e todos se têm organizado para que
tenha visitas de forma quase permanente. Elena e Teresa
lancham comigo pelo menos duas vezes por semana, Veva
todos os dias me envia um miminho gastronómico e os meus
sogros são presença assídua aqui no hospital. Mas Arthur…
Arthur tem sido muito mais do que aquilo que alguma vez
poderia esperar. Todos os períodos livres são passados aqui, a
meu lado, e todas as noites as enfermeiras têm que “expulsá-
lo” do quarto.
Temos conversado muito e quanto mais o fazemos mais
percebo a sorte que tenho em tê-lo comigo. Arthur é
francamente inteligente e a primeira impressão que tive dele
não podia estar mais longe da verdade: se é um facto que o
sangue de Arthur é quente, o que, na vida pessoal, muitas
vezes o leva a agir por impulso, também é verdade que, no que
respeita à governação terrestre, ele é culto, sensato e
ponderado. Aquela cabeça está cheia de factos, números e
dados e há poucas pessoas tão conhecedoras da problemática
da sustentabilidade como ele.
Mas não é só de governação que temos falado. Temos
passado horas a partilhar memórias de infância, histórias e
recordações. Arthur descreve-me lugares onde diz que me vai
levar depois da nossa vida acalmar e eu tento que ele
compreenda a beleza prateada de Vory. Acalento a esperança
de que, um dia, possamos visitar o meu planeta natal. Amo
Arthur, estou feliz com ele e sinto que estou a cumprir a minha
missão de vida. Mas tenho muitas saudades de casa, do sorriso
da minha mãe e do cheiro fresco do meu pai. E de Rome? O
meu irmãozinho que, apesar de estar perto dos dois metros,
para mim vai sempre ser pequenino. Na verdade, tenho falado
com eles todos os dias, às vezes mais que uma vez. Só que não
é suficiente para anular tantas saudades. A parte engraçada é
que Rome só participa nas chamadas quando tem a certeza
absoluta que Elena não está comigo. Já ela, faz o possível e o
impossível para estar presente quando ligo para Vory.
O que não está fácil decidir é o nome para o bebé. Arthur
gosta de Louis e acha que seria uma bonita homenagem ao seu
avô mas, a mim, o nome soa pobre, quase como se lhe faltasse
alguma coisa, como se o toque de magia não estivesse
presente, não sei… Como os médicos acreditam que ainda
devo ter mais três ou quatro semanas de gravidez pela frente,
há tempo para decidir com cuidado.
Quando ouço a porta abrir-se, penso ser Arthur que saiu
mais cedo do Conselho de Ministros. Mas é uma mulher de
farda branca que adentra o quarto, com touca cirúrgica na
cabeça e máscara colocada no rosto. Não sendo hora habitual
da visita das enfermeiras, muitas vezes elas passam aqui para
se certificarem que estou bem, sem dores e com os parâmetros
vitais dentro do intervalo expectável.
Esta enfermeira, que ainda não tinha ficado comigo, traz
um tabuleiro de metal que pousa cuidadosamente na mesa da
entrada. Depois agarra uma seringa, cheia de líquido incolor, e
roda na minha direcção, começando a aproximar-se da minha
cama.
— Vamos dar aqui uma medicação para a dor pelo cateter
central, ok? — pergunta-me.
— A verdade é que não tenho tido dores ultimamente —
respondo.
— Acredito, princesa Lia — diz ela rapidamente e de
forma meio cuspida mas o Dr. Torres deu indicação para
administrar o fármaco. — À medida que diz estas palavras vai
adaptando a seringa a um dos lúmens do cateter central que
tenho na minha veia jugular direita. Quando finalmente fica
frente a frente comigo, a enfermeira administra o fármaco todo
de uma vez e arranca a máscara cirúrgica do rosto com um
sorriso carregado de maldade. E eu congelo no meu lugar
quando os olhos de Genna trancam os meus.
Sei que preciso de gritar por socorro, mas não consigo
fazer mais do que abraçar a escuridão que me chama.
***
Aos poucos vou recuperando a consciência e, ao contrário
do que costumo ver em filmes e séries, sei de imediato onde
estou. Também percebo que Genna não está sozinha e, apesar
da voz do homem que a acompanha não me ser estranha, não a
consigo identificar. Num esforço quase hercúleo abro os olhos
e vejo o rosto de Carlos fixado em mim.
— Carlos? — pergunto surpreendida.
— Lamento, princesa Lia, isto não é nada pessoal,
acredite. Mas a verdade é que o nosso planeta não vai durar
para sempre e parece-me que colonizar Vory é a única garantia
que temos contra a extinção — justifica-se.
Estou incrédula e chocada. Se é verdade que nunca
estabeleci grande relação com Carlos, também é verdade que
nunca pensei sequer na hipótese dele não ser confiável. Mas as
peças começam a encaixar e, com esforço, pergunto:
— Foi o Carlos quem matou Zira?
— Lamento tê-lo feito — e nos olhos dele parece existir
genuína pena —, Zira era uma mulher digna. Mas todo o mal
que faço é por um bem maior.
— Que bem maior? — questiono. — Como é que matar
inocentes pode ser desculpa seja para o que for?
— Chega — berra Genna —, não sei se já percebeste que,
na posição em que te encontras, não és tu quem faz as
perguntas. E por falar em perguntas, temos umas quantas para
te fazer…
Ao dizer estas palavras, Genna volta a aproximar-se de
mim, com uma segunda seringa na mão.
— Nem experimentes tentar gracinhas — avisa-me —,
Carlos está armado e não hesitará em disparar.
Tento controlar-me e respiro fundo. Antipatizei com
Genna porque a vi enrolada com Arthur, mas daí até esperar
uma coisa destas? Juro que estava a anos luz. Há claramente
coisas que ainda desconheço nesta história. Olhando friamente
os factos, sei que tenho poucas hipóteses de sair viva daqui
mas não quero focar-me na ideia da morte. A única coisa que
posso fazer é rezar para que alguém decida vir ao quarto, ainda
que a esta hora seja improvável, e, para isso, tentarei ganhar o
máximo tempo possível. Aparentemente, eles precisam de
fazer-me perguntas e isso significa que esta injecção que
Genna se prepara para me administrar não é fatal.
— Ora, sua alteza real que se prepare para uma fantástica
viagem até ao país da verdade — diz Genna em tom de gozo.
— Isso é soro da verdade? Como tiveram acesso a ele? —
pergunto.
— Não achas realmente que eu e Carlos estamos sozinhos
nisto, pois não? Parecias-me mais esperta que isso…
— Não, não acho. Mas acho que não vou sobreviver a
esta visita e, portanto, não percebo qual o problema de morrer
a conhecer a verdade. Acho que esse é um direito que me
assiste — respondo com toda a coragem que consigo reunir.
— Há um funcionário no laboratório e uma funcionária
na cozinha que trabalham connosco. A funcionária da cozinha
é bastante incompetente, na minha opinião — diz Genna de
forma quase sarcástica.
— A funcionária que colocou o veneno na minha
comida…
— Antes de se certificar que Veva já tinha terminado —
completa ela.
Gostava de conseguir explicar como me sinto neste
momento, mas as palavras não são suficientes. Por um lado,
estou aterrorizada com o que possa acontecer com o bebé e
comigo. De forma egoísta, bem sei, eu e ele importamos mais
do que os nossos dois planetas e a paz entre as galáxias. Mas,
por outro, sinto-me assustadoramente viva, como se o medo
me aguçasse os sentidos e estimulasse a energia vital que não
pára de crescer no centro do meu peito.
Quando planearam tentar matar-me aqui, Genna, Carlos,
e quem mais esteja com eles, sabiam o que estavam a fazer. A
esta hora dificilmente entrará pessoal hospitalar no quarto,
Arthur e o Rei James estão presos num Conselho de Ministros
e Elena e a Rainha Rita estão na inauguração de um novo
centro desportivo aqui em Pangeia. Não há absolutamente
ninguém que me possa salvar destes dois loucos que não
conseguem perceber que a lógica deles não funcionará a longo
prazo. É que se até é verdade que colonizar Vory pode
sustentar a Terra em termos de recursos naturais por mais
umas décadas, também é verdade que, mantendo-se os com-
portamentos que esta gente defende, ambos os planetas
acabariam por sucumbir. E dificilmente haverá um terceiro
planeta colonizável na próxima esquina.
— Vocês têm noção que o caminho não é este, correcto?
— pergunto finalmente, verbalizando os meus pensamentos.
— Se vais começar com o blablabla da sustentabilidade,
agradeço que me poupes — responde Genna. — Ouvi Arthur
falar horas perdidas sobre essa merda e fui forçada a fazê-lo
com cara de quem estava realmente interessada…
A recordação que Genna passou horas a ouvir Arthur
falar, faz-me sentir um brutal amargo na boca. Mas não resisto
a perguntar:
— Tu alguma vez gostaste de Arthur?
— Não, não dessa forma — responde-me ela —, para
mim foi sempre Cesar.
— Mas o Cesar gosta da Teresa — digo de forma
impensada. E num segundo a palma da mão de Genna está no
meu rosto, a esbofeteá-lo.
— Cala-te, vadia — grita ela —, tu não sabes nada sobre
Cesar. Não sabes nada sobre mim e ele, não sabes o que nós já
passámos ou vivemos, então cala essa boca antes que eu perca
a paciência e salte directamente para a parte em que vou ouvir
o teu último suspiro.
Genna parece uma louca enquanto profere estas palavras
e decido que, por agora, é melhor acatar a ordem que me deu.
E quando a vejo adaptar a seringa do soro da verdade à
torneira colocada numa das pontas do meu cateter, sinto um
medo terrível percorrer o meu corpo. O que será que esta louca
quer saber? Para além de me matar e eliminar a possibilidade
de paz entre os planetas, quais serão os outros planos desta
organização?
Que a Origem interceda por nós.
Capítulo 31
Lia

No momento em que Genna injecta o soro da verdade, es-


pero sentir alguma coisa que me indique que o fármaco
começa a surtir efeito, mas essa sensação tarda em chegar.
Cerca de quinze minutos depois de ter administrado o soro,
Genna pergunta-me com ironia se estou pronta para contar
meia-dúzia de verdades e, quando lhe respondo que sim, estou
totalmente a mentir.
Não sei porque é que o soro não surte o efeito desejado
mas, no meio da ansiedade e do medo, penso que talvez nunca
o tenham testado num voryano. E pode ser que esta seja a
primeira falha no plano destes monstros. Com um pequeno
sentimento de esperança a florescer no meu peito, procuro
agarrar-me a ele e faço um esforço para me concentrar
profundamente no momento em que volto a ouvir a voz de
Genna.
— Ora então, vamos lá a saber — a voz dela está quase
divertida —, qual o prato favorito do rei Kodryn? E o do
pequeno Rome?
A sério que ela me está mesmo a perguntar isto? Os
pratos favoritos do meu pai e irmão? Qual será a ideia desta
gente? O meu pensamento está a mil por hora mas não vejo
nenhum motivo válido para esta pergunta… Eles não virão à
Terra pelo que envenená-los não é sequer uma opção, então,
porquê a pergunta? Seja como for, decido mentir e opto por
nomear os pratos que ambos menos apreciam.
— O meu pai gosta de salada de marma, uma flor com
sabor parecido aos citrinos terrestres, e Rome gosta de
bolinhos de seiva — respondo com voz firme.
— Certo! — Genna parece contente com a resposta. —
Outra coisa que gostava de saber é como são as rotinas de
ambos e se há algum momento do dia em que a segurança seja
mais reduzida.
Porra, mas será que esta gente espera mesmo conseguir
chegar ao palácio? Acharão o quê? Que se metem numa nave
para Vory, aterram sem que ninguém os note e seguem
caminho? É impossível aterrar em Vory sem ser detectado, a
nossa segurança é infinitamente mais eficaz e apertada que a
terrestre e, se eles fossem uma organização séria, saberiam
disso. Então por que raio insistem neste ponto?
— A segurança nunca é totalmente inexistente apesar de
ser sempre muito discreta. — E desta vez respondo com a
verdade. — Em relação às rotinas, não sei se são exactamente
as mesmas de quando saí de Vory uma vez que Rome se
preparava para assumir as funções destinadas ao príncipe
herdeiro duas semanas depois da minha saída.
— E que funções são essas? — pergunta Genna.
— Participação nas reuniões do Conselho Geral, visita
semanal aos laboratórios reais para que possa conhecer in loco
o desenvolvimento das investigações em curso,
apadrinhamento de todas as cerimónias militares relacionadas
com aviação… — Decido continuar a responder com a
verdade, uma vez que não encontro nela qualquer informação
potencialmente perigosa. Em todas estas actividades, o meu
irmão segue escoltado e é praticamente impossível efectuar
um ataque nestes momentos.
— Então, se tivesses que escolher um momento para
atacar Rome, o momento em que ele estivesse mais frágil e
desprotegido, qual seria?
Finjo pensar na resposta. A verdade é que há duas horas
do dia em que o meu irmão gosta de estar sozinho e relaxar.
De manhã, quando treina no ginásio do palácio, e ao final do
dia, quando se fecha na biblioteca ou na sala de cinema. De
facto, nestes momentos, a segurança é reduzida a apenas um
elemento que fica do lado de fora das salas e será, por isso, a
melhor altura para o apanhar desprotegido. Mas é óbvio que
esta não é a resposta que vou dar a Genna.
— Muito provavelmente escolheria fazê-lo no regresso de
uma das suas saídas oficiais — digo, tentando pensar
rapidamente.
— E porquê? — pergunta ela.
— Porque, muitas vezes, Arthur gosta de fazer uns
desvios. — E ofereço a Genna um sorrisinho irónico.
— UAU — responde ela —, então o príncipe casto, do
planeta de gente que não fode, afinal é um cabrãozinho? — E
a gargalhadinha que ela dá a seguir a esta pergunta dá-me
vontade de lhe electrocutar os dois olhos.
— Não sei exactamente o que é que o meu irmão faz
nessas fugas, mas suponho que sim, que seja — digo com um
encolher de ombros.
— Já viste, Carlos? — diz Genna dirigindo-se ao meu
segurança. — Afinal… São tão santos, tão santos mas, quando
vamos ver, são iguais aos outros todos.
— Eu já tinha percebido isso, Genna — responde Carlos
com um encolher de ombros. — Convém não esquecer que eu
patrulho os corredores da ala privada algumas vezes. E não é
como se os príncipes fossem exactamente silenciosos.
Posso dizer um palavrão? Foda-se, como é que isto é
possível? No meio do ritual que antecede a minha morte, a
coisa que mais me envergonha é saber que o segurança ouviu
os gemidos que Arthur me arranca. Juro que, se por milagre
sobreviver, vou tratar de mandar insonorizar de forma
conveniente as paredes daquele quarto.
— É — responde Genna olhando para mim de forma
sugestiva gostos à parte, Arthur é realmente competente nesse
quesito.
E pronto, fim de linha para mim. A energia que me
circula no corpo neste momento é mais forte do que alguma
vez foi e, se vou morrer de qualquer forma, pelo menos sei que
tentei. A fúria que as palavras de Genna me provocam, a juntar
à vergonha, à humilhação e ao medo que já sinto, formam um
cocktail demasiado explosivo para conter e, sem pensar muito
mais, puxo a energia para as minhas mãos.
Quando Genna se inclina sobre mim e pergunta: “e então,
pelo menos neste ponto concordamos, não é?”, eu nem lhe
dirijo um segundo olhar. Simplesmente, atiro os meus braços
para a frente e com toda a força que consigo reunir, agarro-lhe
a cabeça enfiando o meu polegar nos seus olhos. Depois, deixo
a energia sair em ondas fortes e, enquanto a ouço gritar, espero
pelo tiro de Carlos que colocará fim à minha vida.
Acontece que esse tiro não vem e, de repente, percebo
que há muito barulho no quarto. Parecem-me existir mais
pessoas, mas não consigo largar Genna. As minhas mãos
doem, a minha cabeça parece querer explodir e não sei se os
gritos que se ouvem agora são dela ou meus.
No momento em que não tenho mais energia para
descarregar, as minhas mãos, como que por vontade própria,
abandonam o rosto de Genna e, com um último suspiro,
percebo que a escuridão voltou a chamar o meu nome. Estou
de tal forma drenada que me entrego a ela com alívio.
Capítulo 32
Arthur

Nem sei bem de que forma hei-de contar tudo aquilo que
se passou nas últimas horas. Lembro-me de ser puto, fazer
asneiras daquelas mais sérias e ser obrigado pelas circuns-
tâncias a contá-las aos meus pais. Tal como agora, nunca sabia
como começar e a minha mãe usava sempre a mesma
expressão que, para além de estranha em termos de
sonoridade, tinha o dom de me mexer com os nervos: “começa
pelo começo”. É isso que vou tentar fazer agora, mas sem
grandes promessas de coerência.
Ontem, como tem sido habitual nas últimas semanas,
fiquei com Lia no hospital até ser convidado a sair pela
enfermeira responsável de turno. Quando vinha quase a chegar
ao palácio, recebi uma mensagem de Cesar a perguntar como
estava tudo com Lia e com o bebé e acabámos por ficar um
bocado à conversa. Deitei-me tarde e, cansado como ando,
adormeci hoje de manhã, o que provocou um atraso de mais de
trinta minutos no início do Conselho de Ministros.
Depois do meu pai abrir a sessão, pedi a palavra e
apresentei as minhas desculpas. Todos os ministros foram
impecáveis à excepção do anormal do pai de Genna que
começou a vomitar um chorrilho de disparates sobre eu estar a
descurar as minhas responsabilidades por causa de Lia e outras
idiotices do género. Juro que ainda tentei responder-lhe
educadamente e justificar o que devia ser óbvio: a minha
mulher está no hospital, grávida do meu filho que, só assim
por acaso, vai ser o rei da Terra um dia. É suposto que eu lhes
dedique toda a atenção possível, não? Acontece que Mike é
um atrasado que decidiu responder-me de forma rude,
repetindo incessantemente que no hospital Lia está cuidada e
não precisa de mim para nada, mas que o planeta sim, precisa.
Enfim, já não me lembro de todas as palavras que trocámos
mas a discussão azedou ao ponto de Mike ter dito, e passo a
citar, “não estou aqui para aturar fedelhos com a mania que
sabem tudo”, e de eu lhe ter respondido “se não está, faça o
favor de se meter ao fresco que, para esse lugar, o que não
falta é gente melhor preparada”.
E com estas palavras lançadas não houve nada mais a
fazer. Mike levantou-se, arrumou as coisas e dirigiu-se ao meu
pai, informando que a sua carta de renúncia ao cargo chegaria
ainda durante o dia. O meu pai, de forma bem parva segundo a
minha opinião, ainda lhe pediu que reconsiderasse, mas Mike
foi bem claro quando disse que essa não era sequer uma
hipótese. A verdade é que a tensão entre nós dois tem sido
crescente de há um tempo para cá e acredito que, mesmo sem
o meu atraso de hoje, esta era a forma como as coisas
acabariam de qualquer maneira, mais tarde ou mais cedo.
O ambiente no Conselho de Ministros ficou
estupidamente tenso depois da saída de Mike e tudo piorou
quando fomos interrompidos por duas batidas fortes na porta
do salão. Apesar de habitualmente ser um gajo pragmático e
pouco dado a misticismos, juro que pressenti qualquer coisa de
terrível com o som daquelas batidas e, quando a responsável
pela investigação do homicídio de Zira entrou na sala, todo o
meu corpo ficou em alerta máximo.
— Majestades, ministros, lamento profundamente
interromper a vossa reunião, mas as notícias que trago são da
máxima urgência — disse a detective de um só fôlego, sem
nos dar sequer tempo para responder aos cumprimentos. —
Acabámos de receber o relatório do departamento forense e
estamos em condições de apontar que o principal suspeito da
morte de Zira, é Carlos Almeida, o segurança da princesa Lia.
E pronto, foi nesse momento que o meu coração
congelou. Não consegui ouvir mais nada, focar-me em mais
nada, pensar em mais nada. Saí disparado do salão de
reuniões, movido pela força de querer chegar a Lia o quanto
antes. Saber que aquele animal de merda devia estar com ela
no hospital naquele momento, saber que o cabrão que matou
Zira estava ao lado da minha mulher com as mãos sujas de
sangue prateado… Ainda houve uma parte da minha
consciência, talvez a mais racional, que me gritou que suspeito
não é o mesmo que culpado mas, num instante, essa ínfima
parte foi abafada pelo desespero.
Enquanto corria para a mota, ouvi a detective dizer que já
tinha enviado uma equipa ao hospital. Pudesse eu perder
tempo naquele momento e ter-lhe-ia dito que Lia e o meu filho
não precisavam de uma equipa do ramo de alto desempenho
da polícia. De quem eles precisavam era do marido e do pai.
Quando parei a mota à porta do hospital, tive a nítida
sensação que fizera a viagem numa espécie de piloto
automático e percebi que não me lembrava de um único metro
do caminho. De qualquer forma, nada disso importava. Só
queria chegar perto de Lia e do meu filho.
Sem tempo para esperar pelo ritmo de elevadores,
escadas e passadeiras rolantes, acabei por subir em passo de
corrida e, quando cheguei ao quarto de Lia, quase morri mil
mortes. Carlos encontrava-se detido pela polícia e Lia, sentada
na cama, com o cabelo levantado e muito mais pálida que o
habitual, parecia estar a tentar electrocutar Genna. Os gritos de
ambas eram qualquer coisa de surreal, como dois animais
selvagens em sofrimento, e quando vi Lia tombar, nitidamente
inconsciente, pensei que ia explodir com dor.
Corri para ela, abracei-a e chorei. Sei que entraram
médicos e enfermeiros no quarto, sei que Genna foi levada,
mas não consegui fazer outra coisa que não rezar ao meu Deus
e à Origem de Lia a pedir-lhes que não a levassem de mim. Só
voltei à consciência plena quando o médico me disse que ela e
o bebé estavam bem, sendo que Lia se encontrava apenas
ligeiramente hipotensa e, muito provavelmente, exausta.
Quando todos abandonaram o quarto e fiquei finalmente
a sós com a minha mulher, encostei a mão na barriga dela e,
pela primeira vez desde que soubemos da gravidez, o bebé
chutou, quase como se me dissesse “está tudo bem por aqui”.
Depois, deitei-me na cama, ao lado de Lia, e fiquei a observar
o rosto pálido e perfeito da mulher que o universo escolheu
oferecer-me.
***
Lia só acordou cerca de duas horas depois e, quando me
viu, a expressão dela era de pânico absoluto.
— Arthur, foi Carlos que matou Zira e Genna está com
ele. Há mais gente do palácio envolvida e e eles injectaram-me
soro da verdade que não funcionou e fizeram perguntas
estranhas sobre o meu pai e Rome e…
— Hey, calma meu amor — disse-lhe com suavidade
enquanto fui apanhando com os dedos as lágrimas cor de prata
que lhe escorriam pelas faces — a polícia tem Carlos e Genna,
e seguramente que vão interrogá-los com soro da verdade e
fazer o que está certo.
Lia rodou contra o meu peito e soluçou ainda mais
quando lhe beijei o topo da cabeça.
— Tenho medo Arthur, tenho tanto medo — disse-me
baixinho.
— Não precisas de ter medo. Eu estou aqui e vou ficar
aqui sempre, para ti e para o pequeno José.
— José? — perguntou-me Lia com a sobrancelha
franzida.
— Então? Não gostas?
— Gosto, muito. Soa-me bem. Mas porquê José?
— Segundo todos os registos é o nome do soldado
terrestre por quem a rainha de Vory se apaixonou. E que
melhor nome para o filho do nosso amor do que o do homem
que arriscou tudo para trazer consigo a sua amada voryana? —
perguntei.
— Sabes, durante muito tempo considerei Dora como
uma rainha maldita e causadora de desgraças quase infinitas
— disse-me Lia —, hoje sei que foi uma mulher corajosa, que
se apaixonou e lutou por esse amor. Tal como eu teria feito se
tu tivesses aterrado em Vory um dia.
— Minha Lia — e espero que ela tenha percebido o amor
na minha voz —, sabes que o meu amor por ti é maior que o
universo?
— Sei — respondeu ela só comparado ao amor que sinto
por ti.
Depois desta conversa Lia voltou a adormecer nos meus
braços, ligeiramente menos pálida, e é ainda ao lado dela que
me encontro. Sei que preciso sair do quarto e falar com os
meus pais e com a polícia mas, na verdade, a ideia de deixar
Lia provoca-me pânico. Mas quando a porta se abre devagar e
vejo Elena, Teresa e Cesar, sei que a minha mulher e o meu
filho ficam acompanhados por pessoas que os amam e se
preocupam realmente com eles. Beijo Lia na testa e, com todo
o cuidado, saio da cama.
É altura de enfrentar o mundo lá fora.
Capítulo 33
Arthur

No momento em que abandono o quarto de Lia sou


conduzido por um polícia a uma pequena sala de espera, agora
transformada numa espécie de sala de interrogatório de
campanha, onde me esperam o meu pai, a inspectora
responsável pela investigação e o nosso ministro da defesa.
— Filho — diz o meu pai enquanto se levanta —, como
estão Lia e o meu neto? O médico disse-nos que ia ficar tudo
bem, mas não consigo evitar esta preocupação…
— Não te preocupes pai. Lia está a descansar e o pequeno
José está suficientemente forte para chutar contra as minhas
mãos — digo com uma pontinha de orgulho.
— José? — pergunta o meu pai com um sorriso que me
diz que percebe exactamente o motivo da escolha — parece-
me um nome muito adequado.
— Mas não foi para informar-te do nome do teu neto que
vim aqui — interrompo —, a verdade é que preciso que
alguém me explique tudo aquilo que ainda não consegui
perceber. Preciso de conseguir ligar as pontas soltas… Genna?
Porquê? — pergunto.
— É melhor que se sente, Sua Alteza — diz a inspectora
a história é longa e, mesmo nós, ainda temos umas quantas
pontas por prender…
Decido seguir o conselho que me é dado e puxo uma
cadeira. Depois, durante mais de uma hora, ouço o meu pai, o
ministro e a inspectora a relatarem uma história perfeitamente
surreal. Ao que parece, quando entraram no quarto de Lia, o
grande objectivo de Genna e Carlos era mesmo matá-la mas,
antes disso, havia algumas informações que necessitavam
recolher. Terão tentado usar o soro da verdade que, segundo
Lia, não surtiu efeito, mas não esgotaram todo o stock que
levaram e, com ordem directa do meu pai, passando, pela
primeira vez no seu reinado, por cima do Conselho de Ética de
Pangeia, o soro que sobrou foi administrado em Genna.
E Genna confessou que o chefe máximo da rebelião, o
cérebro por detrás de tudo, é nada mais nada menos que Mike
Debrum, o seu pai que, neste momento, se encontra a monte.
Foda-se, eu devia ter confiado mais nos meus instintos, sabia
que havia qualquer coisa de muito pouco confiável naquele
homem… Apetece-me bater com a cabeça na parede por não
ter feito nada mais cedo, juro.
Junto com o de Mike, Genna entregou à polícia mais uns
quantos nomes, inclusivamente o da ajudante de cozinha e do
auxiliar de laboratório infiltrados no palácio. Todos estão já
detidos mas, tal como Genna, parecem ser apenas meros peões
no jogo de Mike e nenhum mostra conhecer grandes detalhes
sobre o plano geral.
Quando interrogada sobre as questões que colocou a Lia,
Genna apenas soube dizer que o pai a tinha mandado recolher
essas informações, mas que, ela própria, desconhecia o intuito
exacto daquelas perguntas. Quando questionaram directamente
se ela tinha alguma suspeita, Genna referiu que ouvia muitas
vezes falar sobre a hipótese de infiltrar alguém em Vory.
— Infiltrar alguém em Vory? — pergunto meio chocado.
— Claramente Genna não deve muito à inteligência… Como
será possível infiltrar alguém num planeta com características
físicas diferentes das nossas e esperar que essas pessoas
passem despercebidas?
— Também não nos parece plausível — responde o
ministro da defesa —, ainda assim, vou avisar o meu
congénere em Vory e ficaremos atentos à possibilidade.
— Mais importante que isso seria apanhar Mike —
acrescenta a inspectora —, é ele a chave para todos estes
mistérios.
— E o que é que estamos a fazer para que isso aconteça?
— interrogo.
— Temos montada a maior caça ao homem alguma vez
vista no planeta Terra — responde o ministro —, Mike acabará
por aparecer.
— Assim espero — respondo —, mas, até lá, a segurança
da minha mulher e filho terá que ser reforçada.
— Já estamos a tratar disso também, sua alteza.
— Posso, por favor, colocar uma última questão? —
peço.
— Com certeza que sim — responde a inspectora.
— Por que raio é que a polícia não separou Lia de
Genna? Quando entrei no quarto, Carlos estava detido, mas
nenhum polícia tentava separar a minha mulher e Genna…
Porquê?
— Com todo o respeito, príncipe Arthur — diz a
inspectora com um discreto sorriso os meus homens bem
tentaram… O problema é que sempre que tocavam em Genna
ou na princesa Lia, sentiam uma descarga de electricidade
como se estivessem a ser electrocutados.
Ok, é impossível não me sentir um bocadinho orgulhoso
agora.
— Genna está bem? — pergunto finalmente. Em abono
da verdade devia estar a cagar-me para ela, bem sei. Andava
eu preocupado por estar a usá-la e, afinal das contas, era eu o
enganado. Agora é claro como a água que Mike deve ter
tentado empurrar-me a filha para que eu me apaixonasse e o
casamento com a princesa de Vory não acontecesse.
— Sim, está — responde o meu pai —, a descarga
eléctrica de Lia deixará danos permanentes ao nível da visão,
mas não há outras complicações.
— E também não é como se na prisão Genna precisasse
de ver grande coisa — respondo. — Agora, se me permitem,
vou voltar para junto de Lia. Quero contar-lhe o que acabaram
de me dizer e creio que devemos comunicar com Vory para
que Lia possa falar com os pais.
— Sim, filho, faz isso — apoia o meu pai.
— Pai — chamo — hoje vou passar a noite com Lia no
hospital.
— Não me ocorre nenhum outro lugar onde preferia que
estivesses — diz-me. E quando olho para ele, percebo que as
rugas já lhe vincam profundamente a face. Ao canto do seu
olho direito há uma lágrima que cai, solitária, e que faz com
que o meu pai pareça exactamente aquilo que é: o rei mais
digno que alguma vez pisou este planeta.
Capítulo 34
Lia

Passaram quase quatro semanas desde o dia em que


Genna e Carlos invadiram o meu quarto na tentativa de me
matar. Gostava de poder dizer que muitas coisas mudaram
desde esse dia, mas, na verdade, continuo internada com a
barriga cada vez maior. Genna e Carlos continuam detidos e,
mais preocupante que tudo o resto, Mike continua
desaparecido. A inspectora responsável pelo caso começa a
mostrar sinais de desespero e, cerca de duas semanas depois
do desaparecimento, deu indicação para desmobilizar os meios
que diz terem varrido toda a superfície terrestre. É como se
Mike, pura e simplesmente, tivesse desaparecido deste planeta.
Para agravar todas as preocupações, quando o ramo de
alto desempenho da polícia realizou buscas em casa de Mike,
encontrou uma espécie de carta que dizia:

“Caríssima família real e caríssimos elementos das


forças policiais,

Uma vez que Genna e Carlos foram detidos (e nem


preciso de vos explicar como sei isto uma vez que, por esta
altura, já vocês descobriram os microfones que ambos
transportavam), decidi antecipar um pouco os meus planos
para, finalmente, obter aquilo que é meu por direito: a coroa
de ambos os planetas.
E sabem porquê? Porque a criança que há-de nascer não
é, de todo, o primeiro ser híbrido fruto de um cruzamento
entre humanos e voryanos. Estou certo de que todos conhecem
os factos mais importantes da nossa história, contudo, o que
talvez não saibam é que o amor da rainha Dora de Vory com
José, soldado terrestre, deu frutos. E esses frutos têm
sobrevivido até aos dias de hoje, século atrás de século,
geração atrás de geração. Esses frutos são hoje a família
Debrum e serei eu quem vai, finalmente, recuperar aquilo que
é nosso por direito.
Provavelmente, nesta altura, estarão todos a duvidar das
minhas palavras, verdade? Pois basta que testem a íris de
Genna que, tal como a minha, a do meu pai, avô, bisavô e por
aí fora até à nossa primeira geração, foram pigmentadas com
cores compatíveis com as íris terrestres. Porque na realidade,
depois de José, não há um único Debrum que não seja
possuidor de íris violeta.
Infelizmente, a minha família é pequena pois, apesar de
nunca termos conseguido perceber exactamente porquê,
nenhum de nós conseguiu ter mais que um filho. Neste
momento, há apenas dois Debrum vivos: eu e Genna. E nós os
dois somos a verdadeira família real do universo, os últimos
híbridos de uma linha que remonta ao período que deu início
à Guerra das Eras.
A forma como ambos os planetas têm vindo a ser
governados é anedótica e, a este ritmo, nenhum deles
sobreviverá. E preciso que, de facto, a população de ambos os
planetas seja agregada na Terra e que Vory sirva como fonte
de alimentação e exploração de riquezas. Não existe outra
alternativa que não colonizar Vory e torná-lo numa espécie de
“despensa” terrestre. A política de sustentabilidade que hoje
os governos dos planetas defendem só servirá para tornar a
população descontente. Infelizmente, até hoje, nunca me pude
mostrar como alternativa. Mas a partir de agora as coisas
mudam. A partir de agora não preciso mais de me esconder.
Tenho infiltrados em Vory, tenho infiltrados na Terra.
Que comece o jogo.

Mike Debrum”

Esta carta, que só é do conhecimento do gabinete mais


alto da polícia e da família real, deixou-nos a todos chocados e
receosos e levou, inclusivamente e num plano mais pessoal, a
que Arthur me perguntasse se queria alterar o nome do bebé.
Mas eu respondi que não. Que gosto de José, que já me
habituei a este nome e que não me parece justo não
homenagear o amor verdadeiro só porque um dos frutos da
linhagem é um lunático que caiu demasiado longe da árvore.
De facto, com os testes à íris de Genna, percebeu-se que
Mike não mentia. A íris de Genna é violeta e as análises ao seu
sangue e estudo do genótipo mostraram que ela,
efectivamente, tem características voryanas, ainda que, com o
passar das gerações, sejam muito menos dominantes que as
humanas. E essa é a razão pela qual, por exemplo, Genna é
morena ou não consegue canalizar a energia não necessária ao
desempenho das suas funções vitais.
A parte mais estranha de tudo isto? A própria Genna
desconhecia as suas origens e não fazia sequer ideia que a sua
íris tinha sido pigmentada à nascença. Independentemente do
amor que Mike possa ter pela filha, não há dúvidas que a usou
como um peão neste jogo para chegar à coroa intergaláctica.
E com tudo isto, as forças policiais terrestres e voryanas
têm estado a trabalhar em conjunto para tentar perceber quem
são os infiltrados, localizar Mike e manter a paz no universo.
A ideia de Mike usar Vory como armazém terrestre é de
tal forma idiota que nem merece grandes comentários. A
população continuaria a consumir os recursos de forma
exagerada, acabaria por secar Vory em poucos séculos e,
depois, a Terra acabaria destruída também. É impressionante
como um homem, com a inteligência de Mike, não perceba
que a sustentabilidade é o único caminho para salvar o
universo e a vida como a conhecemos.
Enfim, quando começo a sentir-me angustiada, decido
que não posso continuar presa nestes pensamentos e vou
sentar-me no cadeirão junto da janela. E é exactamente aí que
estou quando Arthur chega. De calças de ganga, t-shirt branca
e ténis, se ignorarmos o seu porte elegante, quase parece um
homem “normal”. E eu, a princesa que achava não ter libido,
tenho muitas saudades dele no sentido mais carnal da palavra.
É claro que temos “brincado” muito um com o outro e, se
as paredes deste quarto falassem, já teriam umas quantas
histórias para vender às revistas on-line de mexericos. Mas,
felizmente, elas não falam e, dentro das limitações provocadas
pela gravidez que impedem o sexo dito normal, acho que nos
temos divertido. Nunca diria quando o vi pela primeira vez,
mas Arthur consegue ser extremamente criativo. E másculo. E
divertido. E intenso. Bolas, estou mesmo apaixonada…
E quando me preparo para lhe dizer isso mesmo, que o
amo acima de todas as coisas, sinto uma dor tão intensa que
acabo por ter até dificuldade em respirar. Mas desta vez não
tenho medo porque sei exactamente o que esta dor significa.
— Arthur, meu amor, o José vai nascer.
A palidez que se abate no seu rosto é instantânea e não
consigo evitar uma gargalhada. Acontece que a gargalhada
dura pouco porque volto a ter uma contracção que consegue
ser ainda mais dolorosa que a primeira. Que a Origem permita
que os terrestres anestesiem de forma competente as mulheres
durante o parto porque, de contrário, fujo daqui e meto-me
numa nave para Isla onde o parto é um acto totalmente
cirúrgico. Sim, não estou a ser forte, mas não há maneira no
universo de aguentar não sei quantas horas disto.
Quando os médicos e as enfermeiras chegam, pedem-me
que me deite e indicam a Arthur que deve ficar na minha
cabeceira. Depois de me observarem, colocam-me de lado e
um dos médicos, abençoado seja, coloca um cateter nas
minhas costas que leva embora toda a dor. No momento em
que nos conduzem para a sala de partos, estou calma e feliz.
Pelo perfil de Arthur, percebo-o comovido e preocupado.
— Vai correr tudo bem — sopro-lhe contra a mão que
está entrelaçada na minha.
— Eu sei que vai. És tu.
E acontece que tenho mesmo razão. José I da Terra nasce
com 3,660 kg, às 13 horas certas do dia 13 de Novembro do
ano 51, da Segunda Era. E é um bebé lindo. Moreno como o
pai, mas com os meus cabelos negros e os meus olhos
violeta… E como chora! Chora muito, chora alto, chora sem
medos. Chora como o príncipe que é, como o rei que será. E
pelo planeta inteiro os sinos que sobreviveram à passagem dos
séculos tocam a rebate, anunciam ruidosamente e com alegria
o nascimento do menino que garante a paz no universo. Olho
para Arthur e vejo uma lágrima a escorrer-lhe pelo rosto e um
mar de amor atrás dos olhos verdes que, brilhantes, me olham
com admiração. Depois, abraça-nos e assim, os três unidos nos
braços fortes dele, sei que venha o que vier, nada será mais
forte que este amor. O amor de dois corações que agora batem
ao compasso rápido de um coração novo e pequenino, o amor
de dois corpos saudosos que se fundem febrilmente, o amor de
dois planetas, de duas galáxias, o amor de um só universo.
E o que o amor uniu, nunca nada poderá separar.
Epílogo
Elena

Hoje o meu afilhado faz cinco anos e, como manda a


tradição da nossa família, será baptizado na catedral de
Pangeia. Não sei bem como é que já passaram cinco anos e,
quanto mais penso sobre isso, mais percebo que o tempo é um
conceito impossível de medir ou explicar. É verdade que o
podemos tentar tornar mensurável e dividir os anos em meses,
os meses em semanas, as semanas em dias e os dias em horas
mas, no final, sentimos a passagem do tempo de uma forma
totalmente subjectiva. Épocas felizes passam demasiado
depressa e épocas tristes parecem arrastar-se eternidades.
Os últimos anos foram felizes para esta família. Primeiro,
o nascimento do pequeno José e, três anos depois, o
nascimento da sua irmã Rita. Os meus dois sobrinhos, duas
crianças meio terrestres, meio voryanas, que correm
livremente pelos corredores do palácio como tantas vezes eu e
Arthur fizemos em crianças.
Ao contrário do que se podia vaticinar, esta última meia
dezena de anos também tem sido pacífica. Os focos de
rebelião existentes parecem ter-se extinguido com o
desaparecimento de Mike e, ainda que ninguém queira baixar
demasiado a guarda, começamos a sentir que, finalmente, é
possível respirar de alívio. Na verdade, começamos talvez não
seja o termo adequado porque eu, pessoalmente, a cada dia
que passa, sinto um aperto maior no peito e, às vezes, a
ansiedade é tão grande que tenho uma enorme dificuldade para
respirar.
Tinha dezasseis anos quando José nasceu. Hoje tenho
vinte e um e só permaneço na Terra porque Rome, irmão de
Lia e meu prometido, só completará os seus vinte e um anos
na próxima semana. Nesse mesmo dia, no dia do aniversário
dele, serei colocada numa nave com destino a Vory, o planeta
de prata.
Não sei como Lia conseguiu ter coragem para a grande
viagem que fez em sentido inverso há mais de cinco anos mas,
talvez por isso, o universo tenha acabado por compensá-la. Lia
descobriu na Terra o grande amor da sua vida. Mas e eu? O
que estará guardado para mim em Vory? Sempre que tento
questionar Lia sobre Rome, tudo o que me diz é que terei que
ter calma e ser paciente, terei que compreender que ele foi
educado em crenças diferentes das minhas e que demasiada
emotividade pode afastá-lo. E isto é basicamente o mesmo que
dizer a um alcoólico para fugir da garrafa de whisky porque
emotividade é o meu nome do meio.
Aparentemente, sou tudo aquilo que uma princesa de
Vory não deve ser. Falo alto e dou gargalhadas, sou pouco
discreta e profundamente emocional. Para além disso, também
não estou disposta a viver como uma freira, em castidade. E
este é um ponto absolutamente inegociável para mim.
O único consolo que tenho é que Teresa, minha amiga de
infância, irá comigo para Vory. Presa num desgosto de amor
após o casamento de Cesar com outra mulher, Teresa pediu
para me acompanhar. E, talvez de forma egoísta, ninguém
imagina como fiquei feliz por isso.
Enfim, hoje o dia é de alegria e devo esforçar-me para
que ninguém perceba a tempestade por detrás do verde dos
meus olhos.
Deus há-de ajudar-me. Deus tem de ajudar-me.

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