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SANKOFA

Na manhã que antecedeu a virada para


o ano de 3047, a escuridão atingiu Saltano, território
ocupado pela antiga Ásia.
Os noticiários alertaram a população a aguardar em
suas casas, acionar as redes protetivas e fi car atenta aos
sinais produzidos de hora em hora pelas próteses neurais.
A expedição à Luxor, na Galáxia de Nau, ainda era uma
excursão impossível para aqueles que não tinham recursos
para uma viagem interplanetária.
Três horas depois do anúncio geral, o globo estava
tomado pelo episódio que fi cou conhecido como A Grande
Escuridão. A ausência de sinais impediu qualquer tentativa
de comunicação e em dois dias o pânico tomou conta dos
remanescentes, que somavam bilhões.
“Não saiam de suas casas”, foi o último aviso ofi cial.
Na completa cegueira, poucos grupos se arriscaram a
procurar por qualquer dispositivo que gerasse energia para
acionar os veículos de locomoção noturna, que não
necessitavam de carregamento digital. Na Ilha Brava, um
grupo de resgate foi responsável pelo embarque de 2.303
pessoas em 7 naves de urgência com destino à Gabora, na
Galáxia de Nau.
A prioridade era salvar mulheres e crianças. Foi assim
que a jovem Octavia teve de abandonar seu marido, sem
saber que estava grávida de dois meses e que a nave jamais
chegaria a seu destino.
Lapak, véspera do Kwanzaaval
“Todos os territórios da Galáxia de Nau estarão sob
investigação irrestrita da Ordem até que os culpados pela
morte do Príncipe Eduardo Pôncio sejam encontrados.”

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A notificação na lente esquerda pisca, esperando o
comando de leitura.
— O que você pretende fazer? — ela me pergunta à
porta, sem se aproximar, esperando o convite. Balanço a
cabeça pedindo para que ela entre e me afasto em direção
ao painel. A transmissão apresenta os detalhes do
assassinato real e do funeral, que se dará por cinco
semanas. Não há testemunhas ou suspeitos. Seja lá quem
matou o Príncipe, fez um bom trabalho em ocultar sua
identidade. A investigação atingirá a todos os territórios,
contudo. É com a esperança de que será possível evacuar
a maior parte da população que abro o mapa oculto sobre
o mapa oficial da Ordem.
Observo a lista de territórios investigados: o planeta
Lapak e sua Lua Koris (ou 32WE, como é conhecida pelo
resto da galáxia) aparecem como as primeiras, pois são as
mais distantes do centro da Ordem, em Gabora. Expando
o norte do planeta, levantando a estrutura aumentada das
obras de atualização, para ver mais uma vez a projeção em
miniatura das naves e novos prédios que se movimentam
em loop. As obras estão quase concluídas e não há espaço
para todos nos subterrâneos, o que torna impossível
mantermos a imagem de que somos poucos. Essa visita
inesperada do governo é um risco para todos nós.
— Acordos em sigilo foram arranjados para que o
resto da galáxia esqueça Lapak... e a nós. O máximo que
habitantes comuns sabem do nosso território é sobre a
exportação de alimentos…
— E a certeza de que nossa rainha, Dyia, é uma tirana
— ela me interrompe, fazendo graça num momento de
desespero, como é de seu feitio.
Lapakianos normalmente não vivem em outros
planetas e o baixíssimo intercâmbio é reconhecido como
consequência desse governo autoritário, mas, em verdade,

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o nosso povo não possui o menor interesse em aventurar-
se por Nau. Os avanços tecnológicos de Lapak
desenvolvem-se de forma acelerada, ao passo que o resto
da galáxia ainda considera o Captor como a última
inovação.
Tolos! Enquanto a Ordem comemora o sucesso de
submeter toda a galáxia ao Captor e assim ter controle
sobre as experiências visuais e auditivas de seus cidadãos,
nós, em Lapak, desenvolvemos o Ori — sistema etérico
superior, responsável pela manutenção de campos de
energias que permitem a transferência da essência
espiritual para corpos de carbono. Assim vivemos em
continuidade há muitos séculos humanos.
— Podemos pensar em alguma solução com o pessoal
da engenharia. Não temos como esconder toda essa gente.
Talvez haja uma maneira de reunir em cápsulas a energia
vital, preservar os mais velhos…
Interrompo o discurso dela, não há tempo para isso. A
cada minuto estamos mais perto do momento em que as
naves da Ordem invadirão os céus de Lapak. Mesmo que a
sorte nos permita omitir noventa e cinco por cento da
população para que apenas as famílias cadastradas
permaneçam será difícil prever qual será a abordagem. Um
Príncipe está morto. É provável que revirem todas as
pedras da galáxia para encontrar um culpado.
— Temos dezenove horas — ela diz, com a voz firme
da guerreira que tenta ser, mesmo quando está magoada.
Sintome orgulhosa por tê-la criado com sentimentos tão
humanos.
Há sete meses, eu consultei o Ifá e iniciei a atualização
de todos os protocolos de segurança para garantir que a
Ordem permaneça cega para os nossos sistemas
avançados de energia, que podem ser usados para
alcançar a imortalidade sem precedentes. Apesar disso, eu

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sabia naquele momento, como sei agora, que o Ori mais
cedo ou mais tarde será responsável pelo avanço do
universo. Por isso tenho medo: não haverá exploração sem
guerra.
— Está na hora — ela sussurra, ajoelhando-se aos
meus pés, enquanto as mulheres silenciosas vão entrando
para iniciar o cortejo. Meu corpo estremece. Sei que devo
me dirigir ao Congá, onde o Conselho e as Assistentes
estarão à minha espera para dar início ao Sankofa. Minha
armadura é aberta e as vestes são retiradas, junto com os
anéis no pescoço e as pedras e sementes que adornam
meu rosto.
Uma das mulheres traz a galinha que emite um waaaa
prolongado ao sentir minhas mãos esfregando seu bico: o
contraste da pelugem marrom escuro com minha pele ocre
me faz pensar nas visões do passado definido pela cor, na
terra de minha mãe, que nunca teve a chance de viver num
mundo como o nosso. Abaixo o corpo na altura dos olhos
do animal para ver meu reflexo; os cabelos crespos
ondulando em estrelas no azul escuro do universo e a pele
se aprontando para o ritual, alternando em terra, argila e
barro.
Ao sair da casa, pessoas se aproximam, ansiosas,
porém contidas, para acompanhar o cortejo mudo. Elas
esperam uma resposta: é preciso decidir quem sobrevive
para que haja o amanhã e quem será sacrificado para que
não descubram nossa verdade.
Arrasto a sandália de madeira, retirando-a na medida
em que os brilhantes arranha-céus de ouro não mais
refletem o arco-íris da multidão de corpos, quando o
tapete de ervas e gramíneas finalmente acaba, dando lugar
à terra seca. Olho uma última vez para todos aqueles que
esperam de mim uma direção: não estou preparada. Eles
sabem, talvez mais do que eu. Acho que é isso que se

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chama esperança. Curvada, entro no arco de palha que
envolve o salão e o silêncio dá lugar às palmas, seguidas do
atabaque e o coro lá fora.
O canto se mantém, braços e pernas se balançam
convidando ao movimento. Todos parecem pertencer
àquele lugar. Diferente de mim, que inúmeras vezes senti
a vibração encostar nas pernas que relaxavam,
acompanhadas dos bocejos intermitentes e da tontura que
me fazia sentar em um canto para apenas observar. Hoje
tinha de ser diferente, terá de ser diferente, pois o futuro
depende disso.
“Só poderá ver o passado, quem dele depender.
Só será presente, quem passado for.
Só virá futuro, o amanhã do ontem.”
Talhadas na entrada do arco, as frases do Sankofa
brilham em tons cintilantes. A batucada continua e eu me
aproximo, para ler de perto. Continuo a ouvir a voz de
milhares do lado de fora, mas não há ninguém, apenas a
escuridão. Dou um passo para trás, no prenúncio da
cachoeira que invade o salão. A água forte me desequilibra
e caio de joelhos. Vejo o teto rodar e sinto o calor que
emana do chão e ressoa no ventre. Ondas de eletricidade
sobem dos dedos dos pés e eu me levanto.
Balanço em direção aos demais, sem conter o sorriso
e o quadril que desliza em comunhão com os dedos, em
poses e trejeitos de dama. Sigo à frente dos tamboreiros,
que, em cortejo, tocam mais forte, desdobrando a força
que dentro de mim já não consegue se segurar. A vibração
faz tremer o espírito e o fogo das velas trepida, arrastando-
se em linhas verticais.
Alguém coloca cordões de ouro no meu pescoço e
sinto o peso deles sobre meus ombros e coluna, que se
dobram para que a minha fronte toque o chão. A melodia
persiste, mais alta e mais forte. Três vezes meus dedos

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tocam o solo e a fronte, o lado direito da cabeça e a nuca.
A temperatura oscila, minhas pernas e braços adormecem.
Sinto a luz invadir meu peito, de fora pra dentro e de
dentro pra fora. Acima de mim, o foco de luz irradia para
todos os lados — o fio condutor da conexão que
transcende tempo e espaço, diluindo o existir. Quando me
desdobro em mil existências, o vórtice rubro-negro se
expande, fazendo sumir tudo ao seu redor… O Sankofa
está completo.

7ª nave da Ilha de Brava, 3 meses após A Grande


Escuridão
As pálpebras se fecham e se abrem em um ritmo
intermitente: a visão turva, desfocada nas laterais, torna-
se focada novamente. Olho para os meus braços e vejo a
pele retinta ressequida pela velhice. Toco o rosto alheio, os
cabelos feito palha seca, as pernas cansadas dos anos de
trabalho.
— Dona Luiza — alguém chama em minha direção.
Levanto a cabeça. A outra metade de mim responde e
entende que não está mais sozinha; e aceita, porque foi
preparada para tal. Habito este corpo de outrora, símbolo
de resistência e coragem. Dona Luiza desconhece seu
futuro e todas as histórias que os filhos de Lapak contarão
a partir das lendas e mitos que compartilhou durante os
meses em que esteve aprisionada na nave de resgate.
— Dona Luiza, está na hora. — Sinto mãos delicadas
me guiarem para fora da cama improvisada.
Vislumbro, na difícil caminhada, os rostos abatidos de
dezenas de mulheres, que se levantam e me
cumprimentam. Algumas crianças vêm a mim e abraçam
minhas pernas, chamando “vovó”. Quando chego ao que
parece uma saleta de banho, eu me deparo com a cena
com que sonhei repetidas noites desde a infância. A

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mulher grávida está em trabalho de parto. Limpo o suor de
seu rosto. Ela chora baixinho:
— Não pode ser — ela repete, os lábios cerrados
segurando as contrações. Parece tentar suprimir a força,
na tentativa desesperada de adiar o inevitável.
— A hora certa é a hora do bebê — digo, acariciando
suas bochechas enquanto enxugo suas lágrimas. Amontoo
os tecidos improvisados ao redor de suas pernas. Ela
protesta. A dor lhe revira os olhos. Chama o nome do
marido, que ficou para trás, na Terra. Ela faz força e segura.
O tempo se dissolve na cadência entre expirar e inspirar,
acompanhada de todas nós.
Continuo guiando sua respiração para que a natureza
nos ajude. Vejo a cabeça coroando, está quase no fim. Ela
faz força e segura, os ombrinhos saindo, e, em seguida, as
pernas. Ela suspira aliviada e pede para segurar o bebê:
— É uma menina! — Ela chora de felicidade, beijando
o rosto da criança, que permanece de olhos e boca
fechados. — Por que não está chorando?
Uma das mulheres sugere que eu bata no bebê, para
que ele chore. Respondo em negativa, aguardando o curso
natural, mas o bebê não responde. Embalo a criança, que
vai ficando do roxo ao azul nos lábios, nas mãos e nos pés.
A mãe chora em desatino.
É nesse momento que assumo o corpo e começo a
cantar na voz de dona Luiza. A melodia antiga vai
reverberando por cada mulher a bordo da nave. Uma a
uma, elas dão as mãos e choram a prece para que ali, no
meio do universo, à deriva, um milagre aconteça.
Coloco o pequeno bebê na água e clamo com toda a
força que tenho naquele corpo envelhecido de dona Luiza.
Banho o mirrado recém-nascido nas ervas. A energia se
fortalece, irradiando de meus dedos, firmando a intenção
de salvar aquela pequena criatura que não pode pagar

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pelos pecados da humanidade que destruiu seu próprio
mundo.
Ouço o bater fraco do coração, lutando para elevar os
batimentos. Deposito o bebê nos braços da mãe, que o
coloca no seio. Sua boca não se move e ela chora. O choro
sentido ressoa na corrente vibratória. Canto mais forte,
mais alto. A luz envolve o recinto e todas são tomadas pela
presença superior. O semicírculo se torna uma corrente de
corpos estirados, com a testa no chão. Os olhinhos do bebê
se abrem, então ele suga a coragem dos seios de sua mãe,
que desaba em exaustão, dando-lhe o sopro da vida.
A energia superior conduz o espírito da mãe para junto
de seus ancestrais e guias, onde poderá descansar ao lado
dos orixás. O bebê permanece se alimentando do corpo
sem vida. Durante muito tempo ninguém se mexe. Todas
estão envolvidas pela aura do testemunho do
renascimento.
Desdobro-me do corpo de Luiza e vejo-a se levantar
com dificuldade. Ela toma a menina nos braços, que chora
copiosamente, levantando as perninhas, contraindo o
abdômen: o choro urgente de dor, como se soubesse que
a mãe se foi. Dona Luiza a embala. As outras mulheres, aos
poucos, levantam-se. Algumas passam a tratar o corpo da
falecida e cortam o cordão umbilical, ao passo que as
demais distraem a criança, sorrindo e fazendo caretas.
Então dona Luiza ergue o pequeno ser acima da cabeça,
para que todas possam vê-lo:
— Esta menina, que nasceu morta, é fruto da dor e do
sacrifício de sua mãe. Ela carregará os fardos e desafios do
novo mundo. Seu nome será Dyia, uma filha da fé.

Lapak, véspera do Kwanzaaval


Retorno à consciência completa do presente. Ao meu
redor, os corpos se contêm à espera do anúncio. Não é

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preciso encarar os vivos para saber o que eles esperam do
Sankofa. Uma das mulheres silenciosas alimenta o fogo,
que desenha o pássaro símbolo do ritual: a ave que voa
para a frente com a cabeça voltada para trás, levando no
bico um ovo, representando o futuro. Um processo que
distende as malhas do tempo, rompendo todas as leis
inventadas pelos homens e sua soberba.
Com as pernas formigando, a tontura não permite que
eu avance. Seguro-me com uma das mãos no atabaque,
bambeando na terra dura, arrastando as vestes
ornamentadas tão semelhantes à prosperidade de cores e
tecidos dos cidadãos de Lapak. A visão embaçada, em
desalinho com o curso natural me permite enxergar
somente o contorno das construções que me circundam.
Uma gargalhada fina escapa de meus lábios, na altivez
de ter planejado os próximos cem anos e a inauguração do
novo pomar. Toda a organização para festejar o
Kwanzaaval e os bailes de cyberfunk parecem agora uma
grande bobagem na imensidão do universo. Naves
inimigas invadirão nosso território em busca de vingança
por um crime que não cometemos. Ainda conectada às
distensões temporais, por um segundo vejo as bibliotecas
distritais sendo reviradas, todo o trabalho de recuperação
e registro dos ensinamentos orais perdido mais uma vez.
Vislumbro as botas de couro que pisarão nas florestas,
arrancando tudo aquilo que preservamos no planeta que
se tornou nossa casa.
Tudo porque perdemos nosso planeta mãe. A Terra.
Sinto a dor e as lamúrias dos Afronautas, enviados
mensalmente nos primeiros séculos na esperança de que
ainda houvesse sobreviventes e uma Terra para salvar.
Mulheres que nunca retornaram; viraram estátuas
espalhadas por toda Lapak e foram esquecidas. Havíamos

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enterrado o passado e todo o rastro de dor para tentar
salvar o futuro.
A verdade está aqui.
Sankofa: é preciso aprender com o passado para
entender o presente e construir um futuro.
Faço sinal para dar início ao atabaque. O som ritmado,
baixo, prenúncio da fala esperada por todos os povos e
nações de Lapak.
— Tudo o que conhecemos hoje surgiu primeiro na
África. Ciência, filosofia, engenharia, medicina... — a voz
latente ressoa em todos os oris. — O nosso saber africano
não pode ser esquecido ou renegado. — Pouco a pouco as
mulheres se aproximaram, recolocando as pedras em meu
rosto, cobrindo meus braços e pescoço com braceletes e
colares. — Corre em nossas veias o sangue de nossos
ancestrais. — Meus cabelos se conectam à energia etérea
superior, passando do azul-anil ao dourado-escuro, em
cachos que dançam em cascata, estendendo-se e
alongando-se ao redor da cintura. — Tivemos medo de
perder tudo o que conquistamos, porque vivemos guerras
desde o nascimento. Nós somos os descendentes dos
condenados da Terra e não podemos abandonar nossas
raízes. Nós somos a herança de nossos antepassados. — A
coroa é depositada em minha cabeça e vejo meu rosto no
leque circular, o abebé de ouro.
Uma de minhas mãos segura uma espada, que arrasto
no solo, deixando a água brotar das fendas na terra. A
superfície se afofa na umidade da água que jorra,
formando pequenas poças que molham a barra
esvoaçante da minha saia.
Eu me levanto, elevando o tom a cada sentença, como
a rainha de que meu povo precisa:
— Neste momento, a Ordem se encaminha para
Lapak. Seremos investigados por um crime que não

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cometemos; presos num jogo de disputas de poder, do
qual acreditávamos nunca ter feito parte. Para manter o
nosso lar, temos ignorado as injustiças da Ordem com
nossos irmãos, que desconhecem sua história. O que foi
perdido e renunciado, será preservado. Sem mais acordos.
A multidão grita em coro:
— Sem justiça, sem paz!
A espada brilha o relampeio do ouro e eu a cravo no
chão. — Sankofa. O nosso futuro é ancestral.
A eletricidade maleável percorre meu corpo dos pés à
cabeça. As primeiras naves da Ordem cruzam a atmosfera
de Lapak em nossa direção.
— Eu sou filha de Octavia e estou pronta pra guerra.

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