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Sangue na terra

Segunda-feira, último dia do mês, noite de lua cheia e elas estavam no alto da
montanha mais alta do Vale do Kamara. Os preparativos que faziam para o ritual estavam
sincronizados com a expansão de nuvens no céu, carregadas de água que não caiam há
mais de uma semana. Elas estavam armazenando água a tempo demais, mais do era
comum naquele lugar. As mulheres e as nuvens. Aquele lugar banhado de prosperidade,
onde terra e água se encontravam abundantes para fazer crescer toda semente que batesse
no chão. Enquanto as mulheres se arrumavam também estranhavam a falta da Lua sob
suas cabeças. Afinal, tinha sido ela quem tinha marcado aquele compromisso em cima da
hora.

Cada uma das sete mulheres tinha seu motivo para querer falar com a deusa
naquela noite. Todas precisavam escoar mágoas de si mesmas para abrir caminhos de
novos afluentes em suas vidas. Aquela comunidade sonhada anos antes por outra geração
de meninas estava mais consolidada através das redes de saberes ancestrais cultivando
assim múltiplas formas de viver. Foi a pulsação da Mãe Terra que germinando mais e
mais experiências de círculos femininos que pudessem alimentar forças de receptividade,
da intuição, do cuidado e do mistério que levou a criação de vilarejos matrifocais como
aquele. Ali, foi onde uma das primeiras mulheres iniciou essa onda ao redor do mundo,
na virada de sistemas que assistimos nos anos 2020 com o nascimento da Nova Era. Ao
mesmo tempo que o capitalismo entrava em colapso no mesmo liquidificador dos
Estados, da vida urbana, das relações baseadas em poder e das certezas. Foi o fim da
racionalidade como regra, foi a ruína da modernidade. Talvez até nos mais
revolucionários pensamentos não havia ventado uma ideia nem perto do que realmente
aconteceu nas regiões antes conhecidas com América Latina. A profecia de povos
originários que dizia que ao as mulheres plantarem suas luas, o mundo renasceria se
concretizou. Cada uma das sete mulheres fazia parte das linhagens matrilineares que
criaram aquele futuro. O mundo que conhecia elas e que elas conheciam era de vivência
coletiva conectado à práticas com seres e saberes além dos humanos, integrando o
cotidiano com a busca ativa pelo equilíbrio das forças solares e lunares. Aquelas as quais
se denominavam e se sentiam mulheres, assim eram. E eram elas quem guiavam a
construção daquela forma de comunidade.

Naquela lua cheia em que foram convocadas pela lua para uma reunião, estavam
intrigadas à sua procura no céu. Era seu holofote de brilho prateado que iluminava o local
para o encontro, era o seu peito aberto escancarado no topo da colina que acolhia suas
filhas na terra. Então, quando já batia mais de sete horas da noite e o que elas viam em
suas cabeças era apenas nuvens pesadas em um breu opaco, a preocupação aumentou e o
ritmo com que se moviam para começar o rito se apressou. Como constelações de estrelas,
distantes no espaço e ligadas no tempo, as sete mulheres se moviam pelo vale de maneira
emaranhada. Podiam ouvir uma ou outra perguntando mentalmente o porquê de um ritual
da lua cheia sem ela própria, já que estavam tão angustiadas a ponto de realmente estar
na hora daquela regeneração. Podiam sentir as águas umas das outras balançarem
procurando lugar para correr, procurando um fluxo para fora delas. A verdade é que elas
estavam com águas paradas, estagnadas pela influência de um acontecimento que
experienciaram juntas na lua cheia passada.

Acabaram acordando em uma conversa mental para prepararem todo o ritual numa
sala fechada de seis lados, pois a chuva parecia que finalmente ia lavar tudo naquela noite.
As nuvens e a mulheres estavam sobrecarregadas de líquido, elas precisavam esvaziar e
colocar para fora todas aquelas emoções contraditórias que giravam repetidamente em
ciclos dentro delas. Aquela era a chance para darem encaminhamento ao tanto de
sensação e informação que receberam na lunação anterior através de um sonho coletivo.
As sete mulheres do Kamara enfeitavam o altar no centro da sala embaladas por doses de
nostalgia e adrenalina. Dançavam uma música silenciosa ao encaixar cada elemento no
seu lugar: renda branca por baixo, três velas grandes amarelas, diversas flores coloridas
e abertas, um cristal de tamanho médio e o baralho oracular. Depois que cada uma se
sentou em almofadas, finalmente se olharam. Respiraram juntas um longo suspiro para
abrir espaço de se verem e serem vistas. Num dejavu, aquele sonho voltou para elas como
num raio percorrendo intensamente o corpo de cada uma das sete e o do corpo coletivo
que formavam. Era um santuário de cervos com eles eternizados em estátuas duras e
marrons, era uma sensação de morte, cheiro de fim e com sangue sagrado encharcado na
terra. As terras as quais elas e toda sua história pertencem. Nem tão cedo já
experimentavam a liberdade de serem, criarem e gestarem suas vidas e já se esvai assim?
Por que era a sensação de um medo inesgotável que comia suas entranhas enquanto não
conseguiam dizer uma palavra para elaborar aquilo? Não eram esses os caminhos que até
então tinham vivido? Não era comum que se deixassem perfurar com pensamentos
racionais, mas a pontada que sentiam no âmago era sim um prenúncio assustador de algo
que aquela geração ali não vivia há algumas décadas.
Animal solar, o cervo anuncia um período de seca mesmo que seus chifres
expressem sua força de fecundidade. No sonho, as sete mulheres sentiram que era uma
mensagem direta dele para elas. As sensações que as tomavam eram desnorteantes, se
sentiam vivenciando um ritual de despedida, se percebiam procurando ações, mas
estavam paralisadas e hipnotizadas olhando aquele santuário. Cada uma na sua imagem,
separadas e vivendo a mesma coisa sozinhas. O que no mínimo era curioso já que todas
sentiam segurar uma mão, toque quente e presente que se fazia até duvidar que era sonho.
Já que no entendimento compartilhado pelas sabedorias dessa comunidade, o que
acontece quando dormimos podem ser múltiplas experiências e ter muitos motivos para
ser daquela forma. Há tantos caminhos para a natureza se comunicar quanto mistérios
inconscientes que podemos iluminar. “O mundo do sonhar é ponte para transformações
em todas as direções possíveis.” Disse a feiticeira mais antiga do vale Rubia, olhando
para as outra seis, enquanto acendia outras duas velas no lugar das acabadas.

Era a hora do chá de cacau, todas seguravam xícaras brancas para o beber junto
com um tanto de serenidade. Precisavam realizar ali um dos mais difíceis círculos de
mulheres, era urgente absorver os símbolos daquele sonho para decifrar a sequência de
fenômenos em suas vidas. Aquela noite era a décima terceira noite que não chovia, mas
era possível sentir o peso líquido pairando sobre suas cabeças. E o que isso não causa nos
nossos pensamentos, como raciocinar com fluxo intenso de águas estagnadas? As águas
são nossas emoções, correnteza sentimental que corre nas nossas escolhas. E se a
mensagem do cervo era um aviso sobre um tempo que viria de seca da chuva, por onde
correriam as águas que giram naquele lugar? Uma crença forte dali era exatamente de que
sua abundância de recursos para a construção de uma das primeiras vilas matrifocais
aconteceu lá pela existência de um ciclo líquido poderoso, movimentando das cachoeiras
aos céus até a fertilidade das terras. O cuidado com o fluir saía das profundezas das
mulheres que lá governavam, pois era a conexão afiada com a deusa Lua, senhora das
águas, que guiava as transformações através de suas fases.

A mais nova delas, Mel, sentia arrepios a todo instante e intuía que havia mais
camadas para desvendar dessa mensagem do sonho com o cervo. Fechava os olhos para
mirar a si mesma. Talvez fosse o momento de compartilhar com suas irmãs mulheres,
filhas da Lua, o que ela estava vivendo e que podia encaixar em toda essa história de água
presa, de sangue esparramado na terra e da falta da presença da deusa no céu daquela
noite. Mel sentiu seu coração ir se tornando, aos poucos, uma bem pequenina jabuticaba.
Compacto, apertado e pronto para estourar. “Eu não estou entregando meu sangue à terra,
porque eu não estou tendo luas há meses. Eu não estou grávida, eu não estou tomando
nada de diferente que pudesse afetar... E eu tenho me sentido bem, ótima... até esse
encontro com o cervo me despertar interpretações outras do que eu tenho vivido. Cheguei
a pensar que era esse o motivo da convocação da deusa para essa noite... não ter ela aqui
é totalmente sem sentido. Mas, eu quero falar de outro sentido para vocês. O sentido que
eu vou tomar. Hoje, sou eu quem vou até a Lua.”

Um breve silêncio precedeu um falatório descompassado liberado por todas as


mulheres da sala ao mesmo tempo, algumas se ressentiam pelo segredo outras se
empolgavam em especulações, mas todas duvidavam que a solução a ser feita naquele
momento era de mandar a pupila do grupo para ficar de frente com a própria Lua. O relato
sincero e direto de Mel liberou barreiras que ela nem imaginava, com sua coragem e
assertividade ela convidada o tempo para dançar no seu passo. E ele ouviu, a chuva
começou a cair de maneira forte, gotas grossas e livres para molhar toda aquela terra. Foi
o barulho necessário para também as fazer ouvir e assim decidir pela proposta ousada da
menina-mulher. O impulso para levar Mel para a Lua viria dos balanços das bacias-
mulheres embalando seus líquidos mais enraizados através das forças de suas ancas,
transpassando suas cinturas, ventres e umbigos. A dança feroz que as tomou as abria
gulosas para o mundo nas beiras e guardava seus poderes no meio do círculo, expandindo
e retraindo elas impulsionavam energia quente, do fogo de existir, de fervor de lançar
uma flecha para o alto. As sete mulheres criavam uma onda que as levava, entregues
sacudiam e rebolavam mais seus quadris, sentiam aquele instante acelerar seus corações,
alagar seus olhos e por último, cada uma liberava um grito saído direto de suas sombras.

Era quase meia noite, a chuva ainda caída forte lá fora e agora elas eram seis
mulheres na sala. Mel foi se encontrar com a deusa Lua.

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