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A miríade sublime por ela cintilada não era o seu principal atributo. O
significado transcendente que ela carregava? Sim. Um sol, minuciosamente
desenvolvido, através de um cálculo possível apenas por uma mente capaz
de compreender o universo em todas as suas vertentes teóricas. Uma
estrela, imbuída de calor e energia em quantidades exatas para o objetivo
almejado naquele lugar: criar uma realidade maravilhosa. Um paraíso
onírico.
Com um sopro descomunal, dado pela própria boca, o espaço à sua volta
foi conquistado por cinco redomas de ar que circundaram todo o empíreo
proposto. Em seguida, suas mãos iniciaram uma coreografia magistral e
turbilhões helicoidais de água cristal surgiram a partir delas. Eles viajaram
pelo infinito, formando rios voadores que eram prismados pelo sol. Após
um período demasiado de tempo, desenhou-se naquele semblante uma sutil
expressão de satisfação; então, o gesticular das mãos se alterou e delas
passaram a irromper porções imensuráveis de terra. Areia escorria a partir
dos seus pulsos e desaparecia em queda livre, enquanto cada um de seus
dez dedos atirava um tipo específico de rocha. Da palma da mão direita, a
terra fértil era expelida, e, agindo como uma consorte, a palma da mão
esquerda semeava de forma plural toda nobreza de espécies de plantas.
Cada semente ali lançada estava programada para propósitos coletivos,
arquitetônicos e utópicos. E todas elas germinaram e cresceram como se o
tempo as tivesse agraciado de forma isolada e precisa.
Não respondi de imediato. Meus olhos ainda estavam bêbados com todo
aquele deleite e minha mente se partira em duas. Metade memorava a saga
criacionista há pouco findada, enquanto a outra parte viajava à deriva,
fabricando pensamentos jubilosos. Mas, sobre minha inanição, pesava
outro valor excepcionalmente relevante: a própria presença e indagação do
sujeito responsável por tudo aquilo. Me surpreenderia se alguém como eu
fosse capaz de falar numa ocasião como aquela. Constatando tal condição,
Az’Az respeitou a minha insignificância, perdoou minha insolência e me
aguardou com a mesma paciência de um jardineiro apaixonado por flores
raras e difíceis de cultivar.
Naquele momento, percebi que seus olhos na verdade não eram dourados.
O tom de amarelo, que se adequava perfeitamente à sua descrição, eu
conhecia por “fogo”. E essa cor fazia muito mais sentido na minha mente,
depois de tudo que vivenciei ao lado dele.
Eu, definitivamente, não fazia ideia do que era aquilo, mas a expressão
que Az’Az deixou escapar era suficiente para convencer-me de que seria
algo incontestavelmente valioso e poderoso,nas melhores e mais completas
definições que essas palavras possam ter.
O conceito que ele usou foi o mais sucinto possível. Mas era impactante
demais para me permitir reação. O que ele pretendia ao me mostrar aquilo?
Apenas gelei e me mantive atônito, à espera de suas próximas ações.
– Não se anime, nem se preocupe. Não irei te propor uma tentativa, pois
isso não passaria de um jogo sem propósito. Eu te convidei aqui para algo
maior.
Estarreci. Senti um temor tão intenso que quase desmaiei. Meu sangue
fugiu para alguma parte do meu corpo, e não sei dizer para onde, e minha
mão gelada deixou o livro cair no infinito. Não havia comparação entre o
meu intelecto e o de Az’Az, mas eu era suficientemente inteligente para
presumir, de acordo com o contexto que me foi apresentado, que aquele
quebrador de realidades estava prestes a cometer algum tipo de erro grave.
Seja lá qual fosse a loucura, só a sua promoção subjetiva já me causava um
arrependimento suicida.
Tentei me convencer de que não havia muita lógica no meu medo, pois
Az’Az nem ao menos especificou o seu plano. Ele também tinha
naturalizado frustrações anteriores, relacionadas a auto provações de poder,
como se tais coisas não fossem sinônimos de perigo.
– Sim, senhor.
– Em primeiro lugar, isso se chama imo. É a junção das coisas que vocês
conhecem por mente e alma. Uma singularidade é formada basicamente por
isso. Além disso, o imo que seguro em minha mão é muito superior a
qualquer outro que eu já tenha criado. Ele é perfeito para essa proposta. –
deu uma breve pausa. – Por muito tempo eu me dediquei a esse sonho.
Estudei a matriz de todas as formas possíveis. Elaborei centenas… não,
milhares de teorias sobre elas. Realizei tantos testes que nem consigo mais
contar. Todos na ânsia de provar que destino não existe. A cada falha, eu
me motivava a desenvolver um imo diferente, um que pudesse se encaixar
nos requisitos obscuros da matriz, quebrando esse mito de vez.
Recentemente, concluí que apesar de eu acreditar não ser impossível, tal
método é difícil demais para ser levado adiante. Então, descobri que a
resposta estava comigo todo esse tempo. – voltou-se para mim.
Ainda que uma parte de mim considerasse tal temor desnecessário, havia
outra parte que só se aquietaria após a conclusão daquela empreitada. Me
restava aproveitar o espetáculo ousado, torcer para viver e contá-lo.
– Abençoado sou por ter o direito de estar aqui. – fiz uma reverência com
a cabeça.
Em determinado momento, dirigi meus olhos para eles e, então, ela olhou
para mim. Não proferiu nenhuma palavra. Nem o seu semblante desenhou
alguma expressão. Foi um breve momento, entretanto, capaz de conceder-
me a coisa mais bela que eu já vi em toda a minha existência. Sua imagem
será imóvel em minha mente até o fim dos meus dias, embora eu prossiga
incapaz de descrevê-la.
– Senhor Az’Az, é correto dizer que agora vós sois dois? – perguntei,
empregando um tom atarefado e cerimonial.
– Não. Essa é Za’Za. Um ser diferente de mim. Ainda que tenha sido
concebida a partir da metade do meu imo, no instante em que abriu os
olhos, evoluiu. Seu nascimento, absolutamente excepcional aos demais
quebradores, será a ignição que revolucionará tudo! O livro que você
escreve, agora, deverá se chamar “A Nova Gênese”.
– Sim, senhor.
Virei várias páginas do livro e fui até uma seção que ficava no final. Lá
repousavam as anotações que viriam a alimentar os meus escritos depois.
Enquanto me ocupava com alguns apontamentos especiais e com
formulações de questões que oportunamente levariam aos quebradores,
Za’Za resolveu se manifestar:
Corri a ermo, de uma direção para outra, sem a mínima noção do que
fazer. Eu gritava, mas não ouvia a minha voz. Vi várias luzes e ouvi sons
de coisas quebrando, acompanhados de brados ensandecidos de Az’Az. As
porções flutuantes de terra começaram a rachar por meio da força de
terremotos furiosos; e as aves revoavam em migrações desesperadas. Raios
rasgavam os céus como chicotes coléricos e tufões de água inauguravam
uma disputa de poder.
– Mas não havia outra maneira? Não era possível retirar essa coisa sem a
necessidade de fazer o que fez? – quando terminei a indagação, percebi que
poderia estar contrariando Az’Az de uma forma perigosa. Prometi para
mim que não o faria novamente.
– Senhor Az’Az, receio dizer, sua apoteose não está completa. Disse que
tornou-se capaz de vencer o destino e, inclusive, controlar o de outros
quebradores, mas acabou de confessar não ter sido capaz de salvá-la
daquele predador. – a indignação com o jogo de Az’Az me concedeu uma
coragem suicida.
Capítulo 1 – Paraíso
***
Alfanat era uma floresta formada por gigantescas árvores que mediam
entre quatrocentos e seiscentos metros de altura, mas nenhuma chegava à
metade do tamanho de Genon. Todas elas cresciam ao redor, como se
fossem sementes ancestrais que brotaram dos frutos que, um dia, num
passado muito distante, caíram dos braços da mãe colossal. As irmãs
entrelaçavam-se e quase não era possível saber onde a copa de cada uma
terminava. Os simiantes podiam transitar livremente entre elas, saltando
por meio de sua majestosa construção natural. Também havia escadas e
passarelas construídas com madeira de poda, assim como algumas
moradias e pequenos edifícios coletivos. As árvores da borda eram nutridas
por compostos especiais criados pelos druidas. O objetivo era fortalecê-las
para que servissem como um tipo de muralha. Além disso, elas eram
adornadas por uma formidável quantidade de guaritas, nas quais as
sentinelas alternavam-se em turnos pragmáticos. O reino ainda contava
com um generoso território ao redor desse titânico castelo de árvores. Eram
herdades selvagens que tinham uso político e tático-militar.
– Continue.
– E o que quer que eu faça, se até a sua experiência não foi capaz de
sobrepujar tal enigma?
– A princípio, Majestade, não acredito que haja algo relevante que possa
fazer sobre isso. Sem ofensas. Eu gostaria de ter resolvido este assunto sem
precisar incomodá-lo, mas assim que soube da reunião extraordinária que
os elfos solicitaram, achei necessário compartilhar esse problema, pois a
minha intuição diz que essa informação pode ser de grande valia durante o
encontro. Afinal, nas expedições que fizemos fora de Alfanat, descobrimos
problemas semelhantes em outros lugares, além de percebermos um
comportamento estranho nos outros povos. Há algo muito errado lá fora.
***
– Quer saber? Vamos esquecer isso. Já fiz essa pergunta ao nosso pai e à
nossa mãe, e a resposta não foi muito diferente. Parece que todos estão
satisfeitos com a nossa realidade.
– E não deveríamos?
– Aquilo é passado! A paz foi estabelecida por um alto custo. Você sabe,
Segunta. Muito sangue, suor e lágrimas. Sem isso, os primordiais não
conquistariam o direito de viverem pacificamente neste mundo, longe das
dores e dos males que permeiam a vida dos mortais.
O coração do irmão mais velho ficou apertado. Sentiu que poderia ter
feito diferente. Mas não havia tempo para arrependimentos, Segunta estava
descendo a árvore muito rápido, poderia cair e nunca mais voltar. Prímura
partiu em seu encalço, enquanto gritava o nome dela, em chamados
preocupados. Apesar do talento natural do príncipe e de sua maestria em
saltar nas gigantescas árvores de Alfanat, sua velocidade não foi capaz de
conquistar uma aproximação. A rapidez de Segunta era assustadoramente
perigosa.
***
Mesmo sabendo que os elfos não costumam ser levianos nas palavras,
demonstrar otimismo defronte a tal cenário poderia fortalecer a já célebre
imagem da civilização dos simiantes. Força que possivelmente seria
utilizada num provável tratado. Ao menos, a atmosfera da conversa levava
a crer que esse momento chegaria.
– Entendo seu argumento. Mas é uma pena dizer que ele baseia-se na
ignorância das gerações que nunca conheceram a verdadeira face desse
universo. Uma ingenuidade alimentada por crenças que ainda não foram
desmistificadas. Os seus livros não estão errados, ancião Ivash, o problema
encontra-se na capacidade de transformação da verdade. A verdade se
altera com o tempo, ou melhor, alguém a altera. – replicou Rixir.
– Você não veio apenas para nos acordar. – Calazar tornou a conversa
para si novamente.
– Por maior que seja o meu apreço a Alfanat, eu não cruzaria o atual
Sizytrix, que já inflama em guerra, apenas para alertá-los de que não
deveriam ter passado os últimos anos confinados nessa floresta. Viemos
firmar uma aliança com esse reino. – alertou a elfa.
– É verdade. Permanecer, sem sair daqui por muito tempo, nos rendeu
uma ignorância perigosa. Mas foram dias maravilhosos, estes que passei
com a minha família e o meu povo. – proferiu Calazar, desviando o olhar
para uma janela. Sorriu no final. Recobrou o semblante austero e voltou o
olhar à visitante. – Mas, apesar disso, sempre cultivamos a amarga
expectativa de que esse momento chegaria. O dia no qual nosso mundo
deixaria de ser uma fantasia. As escrituras antigas nos alertaram sobre não
estarmos sozinhos no universo. É por isso que desenvolvemos e
mantivemos aqui, o maior exército de Sizitryx. Um tão grande e poderoso,
que nos permitiria a dádiva da ignorância há pouco desfeita. A aliança que
vocês buscam tem a nossa força como principal objetivo. Estou errado?
– Não vejo vantagem nessa aliança. Se a tal “coisa”, sobre a qual você
falou, matar o planeta inteiro, ela de nada valerá. No final, teremos que
lutar pela última gota de água. Não haverá glória para o vencedor, apenas o
direito de ser o último a fechar os olhos. E digo isso considerando que
chegaremos ao final desse pesadelo, pois talvez a sua aliança possa nos
trazer muito mais inimigos e responsabilidades do que ganhos. Alfanat
sempre se isolou, isso é verdade. Mas ao menos não agimos como se
fôssemos superiores às outras espécies – alfinetou.
Calazar fitou o olhar da elfa, desviando sua visão para o sábio somente
após o término de sua fala, numa clara consulta ocular. O erudito ancião,
que o aconselhou genuina e prestativamente desde o nascimento, agora se
absteve de sua atribuição, demonstrando que tal decisão era ímpar,
competente apenas ao monarca. O rei de Alfanat ainda estudou todos os
olhares pelo saguão antes de dar sua resposta. No trajeto, percebeu que
Kivik, o príncipe elfo, ainda estava de costas para a mesa de reunião,
passeando pelo salão, enquanto parecia analisá-lo ou admirá-lo.
Capítulo 2 – Menino
O homem finalmente sorriu. O parto foi uma intensa batalha que durou
mais de meio dia, no qual a esposa de Jockar, a senhora Marile, passou por
muitos momentos difíceis.
A parteira fez um sinal para a jovem, que rapidamente saiu da sala, depois
de gesticular respeitosamente com a cabeça ao olhar para o pai da criança.
– O que aconteceu? Por que você não a salvou? Nenhuma mulher que
deu a luz, sob os seus cuidados, morreu. Você é Osvaora, Mãos Santas! É
por isso que nós te escolhemos! – disse, com as mãos cruzadas – Quero ver
a minha esposa e o meu filho. – levantando o rosto vagarosamente para a
parteira.
Jockar atravessou o quarto, passando por uma cama, duas cômodas e uma
mesa. E ao chegar onde sua amada estava, apoiou um dos joelhos no chão.
Pegou a mão que guardava a aliança e a levou para o seu rosto. Esse foi
oficialmente o início do seu luto. Chorou.
Mas não era um lamento desinibido. Esse, talvez, ele guardasse para
quando estivesse sozinho. Seu choro foi silencioso como aquele quarto.
Tão mudo, que fez as enfermeiras se retirarem, pois sentiram vontade de
chorar por ele. A parteira, porém, se aproximou.
– Não foi pra você. – retribuiu amistosamente. – Minha esposa era muito
dedicada à nossa felicidade. Ela sabia que eu não era realizado sendo
apenas um comerciante. Eu queria ser alguém mais importante. Um herói,
talvez? Isso pode ter influenciado ela a fazer… alguma loucura com o
nosso filho, na esperança dele ser esse alguém muito importante e acabar
realizando o meu sonho de forma indireta. Eu não sei o que ela fez, talvez
nunca saiba, pois até as mulheres mais fiéis têm os seus segredos. Mas se
ela realmente morreu feliz, isso pode diminuir a minha dor.
Conforme o calendário avançava, o sol exercia cada vez mais poder sobre
os dias, e as noites esfriavam mais a cada lua. A água passou a trazer
sabores estranhos e os alimentos passaram a estragar rapidamente. O ar,
outrora puro e aprazível, agora era mais denso e transportava o cheiro da
morte e das coisas que a antecedem. Às plantas e aos animais restavam
apenas a competição no jogo da extinção. De paraíso, Sizytrix passou a ser
chamado de inferno.
***
– Acho que estou tendo um déjà vu. – disse Ygar, o Primeiro Márcio de
Segunta, ao olhar para mais uma horda de belladorants surgindo por cima
do terreno acidentado da batalha.
– Veja pelo lado bom: vamos derrotá-los mais uma vez. – replicou
Gogaq, um guerreiro cujo talento era invejável.
– Perfurar! – gritou.
Algo surgiu no céu, ao longe. Eram pontos escuros que logo foram
tomando forma, conforme se aproximavam. Não era difícil entender que
aquelas coisas tinham alguma ligação com os belladorants, que
praticamente cantavam no chão. Segunta foi avisada assim que as
sentinelas perceberam aquela movimentação estranha nos ares. Mas não
havia muito o que pudesse ser feito. Ninguém imaginaria um ataque aéreo.
Antes que ele soltasse as armas, para usar as mãos contra ela, e antes que
sua cabeça golpeada voltasse para atacá-la, a cauda direita da frenética
guerreira laçou o frágil pescoço de Drusaxk e, em um movimento
extremamente violento, foi puxada em espiral, trucidando-o com suas
lâminas afiadas há pouco. A cabeça do comandante voou ao léu, e seu
corpo caiu de costas sobre suas imensas asas, que já estavam se abrindo.
Ao tombar, Segunta soltou-se e firmou-se nele, aterrissando de pé sobre sua
vítima. O som que o zangão fazia findou ao chegar de sua morte e
imediatamente os belladoronts pararam de lutar.
***
Mas o lado de fora de Genon não era a única coisa que atraía os olhares
do príncipe. Durante o trajeto, Prímura também percebia que a árvore real
passara por mudanças. Não apenas no aspecto natural, por conta da
desgraça que assolava o mundo, mas no próprio escopo sócio-estrutural.
Havia mobília diferente em alguns lugares, assim como cômodos novos e
ainda mais servos e guardas. Sua mãe, que os guiava ao rei, parecia ser a
única coisa incólume naquele cenário transformado.
Tría desceu da estátua e passou a mão por ela, indo em direção à sua
base.
Poderia ser só mais uma das brincadeiras dela, mas a forma como ela
vinha construindo essa narrativa em doses homeopáticas, lançando
declarações muitas vezes avulsas e enigmáticas demais, fizeram com que,
dessa vez, a mente de Prímura as juntasse como um quebra-cabeças.
– Despertar? Do quê? – interpelou, no mesmo tom.
***
Apesar de milenar, Rixir não conhecia a todos ali, pois Dendrarah era tão
vasta e diversa, tão profunda e expandida em suas raízes, que a princesa
não vivenciou todos os contextos, apesar de buscar sempre estar a par de
todos os acontecimentos no reino.
– E quem são estes que trouxestes à minha presença? – indagou
respeitosamente.
– Pois, então, não joguemos mais tempo fora. Vamos discutir os detalhes
e partir logo em seguida.
***
Era de manhã.
Minutos atrás, Vincent saira para brincar com alguns garotos da rua. Na
maioria das vezes, as atividades praticadas em grupo eram de cunho
temerário, afinal, estamos falando de pré-adolescentes. Vincent tinha 11
anos, seu amigo Jaf, 12, e os demais garotos contavam entre 10 e 13. A
exceção era Norlei, o “Líder da Rua”, que tinha 14 e quase sempre era
quem inventava e dirigia as brincadeiras em grupo. E depois que descobriu
que Vincent tinha poderes sobrenaturais, as atividades tornaram-se cada
vez mais perigosas.
A perseguição foi breve. Vincent atirou duas vezes, ambas com uma
precisão suficiente para manter os ânimos de seus companheiros em alta.
Tudo foi muito rápido. Os adultos não tiveram tempo de assimilação. Os
olhos do garoto estavam tão fixados no seu objetivo, que ele nem percebera
que o rato correu pela frente de uma carroça. Ao disparar o terceiro tiro,
que ele acreditava piamente que iria acertar, atingiu a pata de um cavalo
que passava. Mais especificamente, na primeira falange. O lugar foi
arrancado, e o animal desmoronou, levando a carroça e seu condutor,
numa sinfonia trágica que sobrepujou os gritos da garotada. Vincent foi
tragado para a realidade em um espasmo terrível de arrependimento.
Congelou em frente à cena e viu o velho Kob rolando pelo chão, antes de
se erguer todo ralado e imensamente furioso.
Vincent ainda tentou se explicar. Mas sua voz foi abafada por aquele
furdunço. A multidão queria uma resolução que saciasse a estranha sede de
justiça aflorada ali, no calor do momento. Almejavam um desfecho para o
acontecimento que ceifou suas atenções. Gostariam de voltar satisfeitos
para suas rotinas, para comentarem o ocorrido durante o restante do dia.
Não estavam realmente preocupados com o velho e o cavalo. Não era
relevante de fato. O importante era fazer algo em relação ao garoto, aos
boatos bizarros que o rodeavam. Ele não se encaixava ali, era só mais uma
individualidade que precisava ser esmagada pelo bem da maioria.
***
Naquele dia nada especial, o mercado estava agitado. Uma caravana que
passava aproveitou a oportunidade para suprir demandas pontuais. Os
comerciantes e seus ajudantes transitavam apressados pelos seus barracos,
atendendo prontamente a cada cliente. E, como de praxe, havia todo o tipo,
dos curiosos que não compram nada e tomam muito tempo, aos
compulsivos e exagerados, que compensam o tempo gasto com os curiosos.
E no meio desse redemoinho de pessoas, um comerciante veterano
trabalhava movido por uma obstinação ímpar. Seu nome era Jockar
Ecsavz.
Jockar pegou a moeda e olhou fixamente para ela. Era o que costumavam
chamar de moeda-brasão. E essa era especialmente específica, Jockar a
conheceu por meio de livros. Um objeto quase mitológico. Prontamente, o
homem abriu a pequena porta que havia no balcão e convidou a figura
encapuzada para entrar. Então, ele fez um sinal para que ela o seguisse e se
dirigiu para os fundos do comércio. Ao saírem, o negociante delegou o seu
posto para um de seus ajudantes.
Já nos fundos, fora da presença das pessoas, Jockar se vira para sua
convidada e diz:
– Talvez eu tenha.
A figura, então, jogou o capuz para trás e revelou o rosto de uma jovem
mulher que aparentava ter idade para ser filha de Jockar. Era um belo
semblante, cabelos e olhos negros sobre uma pele muito clara. O sorriso
parecia prestes a surgir, mas, apesar de toda graciosidade, a postura por
dentro do manto marrom era extremamente firme e circunspecta, como se
estivesse preparada para o imprevisível.
– Já faz uns dez anos. – riu. – Dez anos que envio cartas para a ordem.
Agradeço por ter vindo, senhorita Selene. Agradeço por ter sarado a ferida
da minha mão. – agradeceu, emocionado.
– Por mais que a ordem esteja ocupada com a sua missão, dez anos sem
ao menos uma resposta negativa é algo injusto e devastador. Em nome da
ordem, sinceras desculpas.
– Tudo bem. Eu sabia que esse dia chegaria. Sabia que vocês tinham seus
motivos. – disse, radiante. – Mas indo ao que interessa, irei levá-la ao meu
filho.
Ambos entraram na casa, seguidos pelos olhares curiosos das servas. Era
uma situação estranhamente atípica. Mas, tratando-se de Vincent, quase
nada era normal.
– Eu ordenei que ele não saísse mais. Ele deve estar no porão. Me
acompanhe.
***
– PAREM COM ISSO! – gritou uma voz exasperada e potente. Tão forte,
que o seu som era como trovão de uma tempestade furiosa.
– Está tudo bem agora, senhor Ecsavz. – respondeu Selene, olhando para
as pessoas.
– Como assim, tudo bem? Você está sangrando, e o Vincent está aqui,
desacor… – foi interrompido.
– Está tudo bem, senhor Ecsavz. – repetiu. Dessa vez, retornando o olhar
para o pai do garoto – Está tudo bem. – sorriu.
– Está tudo bem, meu filho. Você está protegido agora. – acalentou,
enquanto colocava o filho de pé. – Não se preocupe, senhor Kob, lhe darei
um cavalo novo. – dirigiu-se ao velho que enfaixava a perna ferida de seu
animal.