Você está na página 1de 56

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizada pelo financiamento coletivo de Effect:


Conflicting Causes, com o objetivo de oferecer conteúdo parcial do livro,
que será posteriormente disponibilizado em sua totalidade para todos os
apoiadores da campanha.

É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou


qualquer uso comercial da presente versão e de suas versões posteriores.

Autoria: Robson Joiner

Ilustração da capa: Robson Michel

Capa: Caius Augustus

Revisão: Victhor Fabiano

Muito obrigado pelo seu apoio!


Prólogo

N o vazio profundo, mudo e escuro, uma única palavra deu existência


a uma centelha esférica. Ela era geometricamente perfeita e brilhava em
todas as cores do arco-íris. Aos futuros conhecedores, sua majestade
gloriosa nunca seria apreciada em plenitude, e todo aquele conceito
magnífico poderia acabar por se resumir a apenas uma orbe de luz branca.
Mas o seu criador era capaz de contemplá-la em absoluto, mesmo estando a
uma distância longínqua.

A miríade sublime por ela cintilada não era o seu principal atributo. O
significado transcendente que ela carregava? Sim. Um sol, minuciosamente
desenvolvido, através de um cálculo possível apenas por uma mente capaz
de compreender o universo em todas as suas vertentes teóricas. Uma
estrela, imbuída de calor e energia em quantidades exatas para o objetivo
almejado naquele lugar: criar uma realidade maravilhosa. Um paraíso
onírico.

Já sob a luz, podia-se ver a infinitude do vazio. Um recurso tão natural


àquele idealizador, quanto uma folha de papel em branco é para mim.

Com um sopro descomunal, dado pela própria boca, o espaço à sua volta
foi conquistado por cinco redomas de ar que circundaram todo o empíreo
proposto. Em seguida, suas mãos iniciaram uma coreografia magistral e
turbilhões helicoidais de água cristal surgiram a partir delas. Eles viajaram
pelo infinito, formando rios voadores que eram prismados pelo sol. Após
um período demasiado de tempo, desenhou-se naquele semblante uma sutil
expressão de satisfação; então, o gesticular das mãos se alterou e delas
passaram a irromper porções imensuráveis de terra. Areia escorria a partir
dos seus pulsos e desaparecia em queda livre, enquanto cada um de seus
dez dedos atirava um tipo específico de rocha. Da palma da mão direita, a
terra fértil era expelida, e, agindo como uma consorte, a palma da mão
esquerda semeava de forma plural toda nobreza de espécies de plantas.
Cada semente ali lançada estava programada para propósitos coletivos,
arquitetônicos e utópicos. E todas elas germinaram e cresceram como se o
tempo as tivesse agraciado de forma isolada e precisa.

Depois foram criadas as pedras de regulação, artefatos complexos,


espalhados pragmaticamente ao redor de toda aquela construção. O papel
fundamental de tais monumentos era o de desempenhar funções de
manutenção e preservação da ordem natural. Elas eram capazes de coisas
como: esfriar perímetros em dias quentes e aquecê-los em noites frias;
podiam atrair e absorver raios de tempestades ou corrigir possíveis
distúrbios gravitacionais. Apesar de autossuficientes, todas estavam
conectadas por circuitos invisíveis e intangíveis, permitindo-as, inclusive,
agir em conjunto no combate ou na promoção de fenômenos da natureza. A
mãe de todas essas pedras era a lua, que, diferente do sol, fora esculpida
pelas próprias mãos potentes daquele ser. Era excessivamente notória a
consideração para com a celeste dama da noite, pois sua superfície foi
inteiramente desenhada de forma que sua refletância notívaga exibisse uma
ilustração diferente em cada uma de suas apresentações no calendário
anual.

Eis que, ao vislumbrar tudo aquilo funcionando, percebi que minha


atenção fora furtada de mim tantas e tantas vezes naquela profusão de
milagres, que eu havia deixado passar a ocasião destinada à criação das leis
basais do mundo. Foi quando recordei-me parcialmente de um momento
especialmente verbal, que infelizmente não poderei mais resgatar das
lacunas de meu esquecimento.

Após toda a arquitetura físico-abstrata daquela realidade, seu criador


resolveu dar continuidade à gênese em turno com um seleto povoamento de
animais. Detalhou uma lista contendo espécies parcialmente ou totalmente
desconhecidas, algumas até extintas e outras puramente inventadas a partir
do seu intelecto. Os seres surgiram como consoantes adequadas aos lugares
para onde foram designados, formando pequenos sistemas e comunidades
equilibradas e harmoniosas. Possuíam livre arbítrio, mas os seus instintos
eram essencialmente ordeiros e diligentes.

Por fim, houve a inserção de mais algumas leis, singularidades que


dariam identidade àquele cenário. E, então, estava concluída. Uma obra
digna de uma história só dela, pois era excelsa em todos os seus detalhes.

Satisfeito, Az’Az finalmente pisou no solo de um daqueles continentes


flutuantes. O batizou com um nome que ainda tenho dificuldade em redigir
e decretou a todos os seres viventes dali treze trezenas de louvor a ele.

– Está feito! O quanto conseguiu registrar? – sorrindo, perguntou-me


Az’Az.

Não respondi de imediato. Meus olhos ainda estavam bêbados com todo
aquele deleite e minha mente se partira em duas. Metade memorava a saga
criacionista há pouco findada, enquanto a outra parte viajava à deriva,
fabricando pensamentos jubilosos. Mas, sobre minha inanição, pesava
outro valor excepcionalmente relevante: a própria presença e indagação do
sujeito responsável por tudo aquilo. Me surpreenderia se alguém como eu
fosse capaz de falar numa ocasião como aquela. Constatando tal condição,
Az’Az respeitou a minha insignificância, perdoou minha insolência e me
aguardou com a mesma paciência de um jardineiro apaixonado por flores
raras e difíceis de cultivar.

– É como nas lendas. Quebradores de realidades são seres maravilhosos e


assustadores. Transcrevi tudo o que consegui com grande dificuldade,
senhor. Mas irei revisar e acrescentar o que permanece encantando minhas
memórias. Se ainda quiseres que eu continue. – disse com a mão mantendo
a pena imóvel sobre uma folha do livro que eu segurava.

– Poupe-me da sua modéstia. Eu não o escolhi à toa. Suas histórias são as


melhores que eu já li. Estou seguro de que fará um bom trabalho! – o
quebrador de realidades retrucou, olhando-me fixamente.

Naquele momento, percebi que seus olhos na verdade não eram dourados.
O tom de amarelo, que se adequava perfeitamente à sua descrição, eu
conhecia por “fogo”. E essa cor fazia muito mais sentido na minha mente,
depois de tudo que vivenciei ao lado dele.

Az’Az carregava um aspecto masculino, embora fuja da minha


compreensão a forma como um quebrador de realidades trata tal questão.
Seu porte era robusto e a vestimenta complexa que o trajava deixava em
evidência uma anatomia similar à humana, capaz de causar inveja a
qualquer deidade. A pele negra tal qual obsidiana não possuía sequer um
pelo ou cicatriz, nem mesmo havia cabelos em sua cabeça, que parecia
estar coroada com sete estrelas, brilhando nos mesmos tons que o sol. A
voz mezzo-soprano, que dava vida às suas palavras, era suave e limpa, e
sua frequência e volume não se limitavam pela distância. Acredito que os
quatro cantos daquele pequeno universo a recebiam com a mesma
equivalência que eu, estando ao seu lado. Tamanha era a magnificência de
Az’Az, que eu me pergunto até hoje se tudo aquilo não fora apenas um
sonho.

E, embora a experiência fosse onírica, um dilema me incomodava.

Baixei o semblante brevemente, antes de retribuir sua honraria. Minha


calvície apresentou uma veterania difícil e o ar que me rodeou naquele
curto momento delatou imersão em algum tipo de preocupação.

Por minha vasta experiência enquanto homem e escriba, unida às mais


variadas lições, advindas de crônicas fictícias ou não, de minha autoria ou
não, senti pela primeira vez que não poderia contar uma história. Na
verdade, não se tratava de incapacidade, pois era mestre na escrita, digno
até do elogio de um quebrador de realidades. O problema residia na
sensação de que eu não deveria contá-la. Sentimento esse que aflorou desde
o instante em que vi as proezas miraculosas que ocorreram naquele vazio.
Céus! Um único indivíduo foi capaz de tudo aquilo. Era belo e terrível
demais para estar nas páginas de um livro. O tipo de história que se sairia
bem melhor narrada numa mesa de bebidas ou nos arredores de uma
fogueira, para que os ouvintes se sentissem à vontade em replicá-la a outros
em suas próprias versões, consagrando-a uma lenda.

Alguns podem considerar uma bobagem, mas eu acredito que histórias


grandiosas demais rendem curiosidades indesejadas, algumas, inclusive,
perigosas. Se interpelado inconvenientemente numa narrativa à beira de
uma fogueira, pelo menos poderia evadir-me por meio de subterfúgios
sórdidos, como o da embriaguez ou a própria caduquice. Diferente de
justificar um livro, onde os detalhes se tornam irreversíveis e imutáveis.
Mas aquele quebrador de realidades não queria uma lenda. Seu desejo era
por algo mais verossímil. Se eu fosse desistir, a hora seria aquela.

Fitei o amuleto pendurado em meu peito, ofertado pelo próprio Az’Az


para que eu pudesse ser capaz de estar ao seu lado naquela empreitada.
“Com isso você poderá caminhar comigo pelo vazio e presenciar todas as
coisas que farei. Se em algum momento quiser desistir, basta apertá-lo com
força. Ele o levará para casa”, disse.

Pisquei os olhos com força para expulsar minha paranóia. Preferi


concentrar-me no que ele ofereceu pagar por aquele trabalho. Era muito
maior do que todo o dinheiro somado em minha carreira. Tanto eu, quanto
a minha família, teríamos uma recompensa que excedia as necessidades
materiais. Não poderia recusar.

– Será um privilégio escrever o que acabei de presenciar. – disse,


enquanto posicionava a pena no que seria o início de outra linha textual.

– Temos um contrato. – proferiu com satisfação. – Antes que continue,


convido-o a conhecer a coisa mais importante que teremos aqui, nesta
realidade.

“O que poderia ser?”, perguntei-me. Em ocasiões não registradas aqui,


recebi ensinamentos práticos e teóricos tão elucidativos acerca do universo,
que me despertaram o prazeroso exercício da teorização. E, partindo de
Az’Az, eu tinha certeza de que seria possível sobrepujar as maravilhas já
apresentadas.

– A coisa mais importante?


Az’Az proferiu uma palavra estranha e pequenos pedaços metálicos
vieram de todas as direções, unindo-se numa única peça, como um
brinquedo de montar. Quando aquele espetáculo acabou, pairava diante de
nós uma caixa metálica, que agora parecia não possuir nenhuma divisão em
seu desenho. O quebrador pronunciou outra palavra, que presumo pertencer
a mesma língua utilizada para evocar aquela coisa. Então, a caixa se abriu
como um lótus metálico e exibiu em seu centro um objeto curioso. Era uma
espécie de pedra, formada por dois triângulos equiláteros e tridimensionais,
unidos por suas bases. Cada um de seus seis lados apresentava um desenho
iconográfico sobre uma superfície perfeitamente reta. Um artefato
estupendo!

Az’Az o retirou daquela pomposa embalagem e o segurou em sua mão,


admirando-o com um olhar enigmático.

– Isso… é uma matriz. – disse em tom regozijante.

Eu, definitivamente, não fazia ideia do que era aquilo, mas a expressão
que Az’Az deixou escapar era suficiente para convencer-me de que seria
algo incontestavelmente valioso e poderoso,nas melhores e mais completas
definições que essas palavras possam ter.

– O que é uma matriz? – fiz a coisa mais intuitiva e previsível que se


podia fazer na minha posição: buscar entendimento circunstancial. Era
provável que eu nem precisasse perguntar, mas o próprio Az’Az havia
dado-me uma boa dose de liberdade desde o início daquela empreitada; por
isso, eu não estava disposto a perder nenhuma oportunidade de participar
dos momentos instigantes.

– A definição desta coisa é maior e mais complexa do que alguém na sua


condição consegue imaginar. O seu livro inteiro não seria capaz de
comportá-la. Mas isso não me impede de conceder uma resposta: os
poderes de um quebrador advêm de uma matriz. E esta que estou segurando
não é a minha. Eu a encontrei há muitos anos.

O conceito que ele usou foi o mais sucinto possível. Mas era impactante
demais para me permitir reação. O que ele pretendia ao me mostrar aquilo?
Apenas gelei e me mantive atônito, à espera de suas próximas ações.

– Como posso explicar isso para você? Bem, as matrizes não


transformam quaisquer indivíduos que entrem em contato com elas em
quebradores de realidades. Existe uma espécie de compatibilidade. Para a
maioria daqueles que são tocados por uma matriz, nada acontece. Não
passa de sinergia nula. Enquanto que, para uma pequena quantidade de
candidatos, o simples toque é mortal. Ocorre uma obliteração instantânea,
como se o artefato fosse capaz de julgar e sentenciar o pretendente à morte.
Se bem que nem todos os que apanham um objeto desses sabem do que se
trata. Eu mesmo não sabia quando encontrei a minha. – fez uma pausa.
Parecia estar recordando o momento no qual ou onde renasceu quebrador.

– E quais as chances de compatibilidade? – minha pergunta podia até ser


sugestiva, mas fiz questão de empregar um tom dúbio, pois a situação que
acabava de se formar me causava um incômodo aterrador. Eu não aceitaria
de livre vontade nenhuma proposta que ele fizesse. O risco teórico podia
até realçar ainda mais as benesses de um sucesso, mas era igualmente
desestimulante.

– Não se anime, nem se preocupe. Não irei te propor uma tentativa, pois
isso não passaria de um jogo sem propósito. Eu te convidei aqui para algo
maior.

– Algo maior? – repliquei instintivamente, por força de uma


insubordinação involuntária. Minhas mãos começaram a suar e minhas
pernas a tremerem, antes que ele desse continuidade.

– Enquanto quebrador de realidades, sou capaz de impor-me ao universo


onde me faço presente; plenamente apto a criar e também a destruir
universos. E creio que dizer apenas isso seja o suficiente para fazer
entender que as dimensões do meu poder não possuem especificações.
Apesar disso, não sou onipotente, pois já senti a frustração da inconclusão
em algumas de minhas experiências. Dito isto, há uma coisa nesse seleto
conjunto de prováveis impossibilidades que eu não tenho convicção de que
seja realmente impossível. E é por isso que você está aqui. Para registrar
essa experiência incrivelmente excêntrica.

Estarreci. Senti um temor tão intenso que quase desmaiei. Meu sangue
fugiu para alguma parte do meu corpo, e não sei dizer para onde, e minha
mão gelada deixou o livro cair no infinito. Não havia comparação entre o
meu intelecto e o de Az’Az, mas eu era suficientemente inteligente para
presumir, de acordo com o contexto que me foi apresentado, que aquele
quebrador de realidades estava prestes a cometer algum tipo de erro grave.
Seja lá qual fosse a loucura, só a sua promoção subjetiva já me causava um
arrependimento suicida.

– O novo o assusta? – interpelou-me, levemente austero.

Quando olhei para ele, encarava-me, enquanto segurava e me oferecia o


livro que eu havia deixado cair. Ao recuperar o meu objeto, percebi uma
pequena sugestão de sorriso em seu semblante.
Fora uma retórica dura, afinal, se eu estava ali era porque tinha aceitado o
mais inusitado dos convites: registrar presencialmente o poder de um
quebrador de realidades.

Sem ter como refutá-lo, busquei me recompor e honrar a minha parte de


responsabilidade no acordo vigente.

– Talvez eu apenas tenha me deixado levar pelas limitações e fraquezas


da minha mente. Quiçá, por algum adágio traumatizante.

Tentei me convencer de que não havia muita lógica no meu medo, pois
Az’Az nem ao menos especificou o seu plano. Ele também tinha
naturalizado frustrações anteriores, relacionadas a auto provações de poder,
como se tais coisas não fossem sinônimos de perigo.

– Observe. – proferiu o quebrador com ar convicto.

A matriz tomou distância ao vazio e se manteve no limiar da nitidez do


meu alcance ocular. Então, Az’Az iniciou outra coreografia manual; desta
vez, mais sutil e vagarosa. Transmitindo a ideia de vaidade e amor.

Levei alguns segundos para perceber delicados desenhos surgindo ao


redor daquele objeto. Pouco a pouco, linhas se formavam, delineando uma
silhueta semelhante à humana. Não muito depois, tive certeza de que era
uma figura feminina, e o seu projeto tridimensional revelava proporção ao
porte do seu autor.

Nos momentos seguintes, o esboço ia recebendo uma sequência de


elementos. Primeiro, foram as linhas de sangue e modelos diferentes dos
órgãos internos que conhecemos na ciência humana. Cada peça vital
daquela boneca era criada sob a mais vaidosa medida, e depois conectada
ao sistema inteiro, encaixando-se perfeitamente ao redor da matriz, que,
logo presumi, assumiria o papel de coração. Após o término dessa
montagem, tudo aquilo foi armadurado por um esqueleto que aparentava
ser de um material superior ao osso como conhecemos, pois tinha um
aspecto metálico, apesar de não reluzente. Em seguida, uma quantidade
generosa de água fora inserida naquele projeto, antes de ser selada por uma
“massa” cor de marfim que modelou uma escultura formosamente
incomparável. Ainda não satisfeito, o quebrador tocou na fronte dela e sua
cabeça adornadou-se por longos e alvos cabelos, que esvoaçavam como se
estivessem imersos em um líquido leve e transparente. Por fim, Az’Az
sibilou algo e aquela imagem foi coberta por uma vestimenta que trazia a
mesma estética dos trajes de seu criador.
Ainda não era alguém. Sequer demonstrava algum ímpeto. Estava com os
olhos fechados e em seu semblante não havia expressão alguma.
Mas,aquele conceito me chocava de uma forma tão tocante, que chorei.
Az’Az não me disse nenhuma palavra a respeito dela, por isso, minha
mente explodiu em teorias, enquanto a sensação de estar participando de
algo importante me permitia orgulho, como se eu acumulasse prestígio
suficiente para tal.

Houve silêncio depois disso. O quebrador abaixou suas mãos e colocou-


se a contemplá-la. Estava quase tão fascinado quanto eu, atitude que me
causou espanto, pois transmitia uma mensagem clara: estávamos diante do
que viria a se tornar o seu maior feito. Um outro quebrador de realidades.
Era uma proposta surreal! Voltei a encarar a boneca, enquanto minha mão
escrevia precisamente sobre o papel. O sorriso estampou-se em meu rosto.
Aquilo transcendia todas as minhas expectativas.

– Apenas continue registrando. Eu gostaria de observar as coisas de uma


perspectiva mais orgânica e limitada, pois nela há lições e belezas que eu
almejo recuperar. Além do mais, o universo é recursivo, sempre haverá um
lugar onde sua história será contada de forma grandiosa.

– Sim, senhor.

Após a ordem, Az’Az voltou-se para a boneca e reassumiu sua postura de


trabalho, dando início a uma nova dança com as mãos. Seus olhos
conquistaram um brilho muito intenso, enquanto os dedos gesticulavam
como se estivessem puxando linhas ou apertando botões. Às vezes, ele
pronunciava palavras estranhas, e quando sua boca se abria, deixava
escapar uma quantidade demasiada de vozes. O ritual terminou quando o
quebrador juntou as mãos de forma que sugerisse estar segurando uma
esfera invisível.

– Todas as histórias de quebradores são fantásticas e únicas. Mas, apesar


disso, é possível traçar um paralelo entre elas: a semelhança em seu
formato narrativo. Cada qual compõe uma saga épica que se inicia,
desenvolve e finda com um sabor de destino. É paradoxal. Recebemos o
título de quebrador de realidades justamente por termos poderes
incalculáveis, e a maioria de nós existe dentro de um padrão. E digo
maioria, porque hoje eu me excluo dessa estatística. – afirmou, ainda
segurando a coisa, que eu era incapaz de ver. Agora, apenas com uma das
mãos.

– Isso é incrível, senhor Az’Az! Criar outro quebrador de realidades


certamente o tornará uma exceção no universo. Eu apenas gostaria de saber
como o fará, para que eu realize o registro de forma adequada.
– O que seguro em minha mão dará vida a ela.

– Então, era uma alma. – Arrisquei, enquanto rabiscava algumas


palavras.

Eu sabia que quebradores eram capazes de criar a vida, de dar vida às


coisas ou mesmo trazer os mortos novamente. Mas há pouco foi dito que as
matrizes possuem uma espécie de compatibilidade desconhecida até para os
quebradores. Como Az’Az faria para obter sucesso?

Encarando a boneca, ele disse:

– Em primeiro lugar, isso se chama imo. É a junção das coisas que vocês
conhecem por mente e alma. Uma singularidade é formada basicamente por
isso. Além disso, o imo que seguro em minha mão é muito superior a
qualquer outro que eu já tenha criado. Ele é perfeito para essa proposta. –
deu uma breve pausa. – Por muito tempo eu me dediquei a esse sonho.
Estudei a matriz de todas as formas possíveis. Elaborei centenas… não,
milhares de teorias sobre elas. Realizei tantos testes que nem consigo mais
contar. Todos na ânsia de provar que destino não existe. A cada falha, eu
me motivava a desenvolver um imo diferente, um que pudesse se encaixar
nos requisitos obscuros da matriz, quebrando esse mito de vez.
Recentemente, concluí que apesar de eu acreditar não ser impossível, tal
método é difícil demais para ser levado adiante. Então, descobri que a
resposta estava comigo todo esse tempo. – voltou-se para mim.

O pavor dominou o meu corpo de forma inexplicável. Az’Az era muito


mais terrível do que eu imaginava. Não, talvez todos os quebradores de
realidade fossem assim. São seres tão superiores em poder, que suas
vontades simplesmente sobrepujam quaisquer verdades impostas pelo
universo.

Ainda que uma parte de mim considerasse tal temor desnecessário, havia
outra parte que só se aquietaria após a conclusão daquela empreitada. Me
restava aproveitar o espetáculo ousado, torcer para viver e contá-lo.

– Não temas. – aconselhou, num tom de quem sabia exatamente como eu


me sentia. – Tudo o que eu fiz até hoje foi para o bem do universo. Se eu
descobrir como vencer o destino, posso mudar a existência de todos para
melhor. Definitivamente.

– Mas o senhor já não é capaz de mudar o destino dos outros? – repliquei.


– Só daqueles que não são quebradores. Isso significa que outro
quebrador pode vir e desfazer o que eu fiz. Preciso obter o controle total. –
voltou-se novamente para a boneca.

A ambição de Az’Az era incapaz de ser julgada por mim. Me reservei a


não desenvolver uma opinião a respeito. Àquela altura, o melhor que eu
podia fazer era me render ao seu jogo.

– Abençoado sou por ter o direito de estar aqui. – fiz uma reverência com
a cabeça.

Az’Az dirigiu-se para a figura que o aguardava imóvel e, então, colocou a


mão que carregava o imo sobre sua fronte.

– Receba a metade do meu imo.

Foi simultâneo. Enquanto os olhos dela se abriam, fomos bombardeados


com um estrondo ensurdecedor. O barulho veio de longe e por todas as
direções, mas eu parecia ser o único a realmente sentir incômodo com o
incidente, uma vez que os dois mantiveram-se imóveis e em contato visual
fixo.

Meus olhos corriam para todos os lados e viam rachaduras surgindo no


ar, desfigurando todo aquele cenário maravilhoso, como se ele estivesse se
quebrando tal qual o vidro. Pedaços da paisagem caíram e estilhaçaram-se
em incontáveis pedaços menores. Toda a criação que maravilhou-me, pelo
o que eu acredito ser difícil de distinguir do consenso universal de
perfeição, ruía com uma facilidade inexplicável. Ao tentar assimilar aquela
cena, temi, imediatamente, com a inequívoca sensação da morte. Não, fui
apunhalado pelo terror da iminência do que poderia vir a ser mil vezes pior
do que a morte. Minha boca secou e minha garganta fechou-se, de tal forma
que eu era incapaz de impedir. Senti-me estrangulado. Meu coração me
avisava que iria explodir, enquanto minhas pernas fraquejaram e
recusaram-se a continuar me sustentando em pé. Para não cair, tive que me
apoiar no chão com uma das mãos. Tudo começou a escurecer e meus
ouvidos perderam a audição. Era o meu fim.

– Continue registrando. – ele ordenou. Sua voz rasgou a escuridão que


dominava a minha mente e me trouxe de volta. – Isso foi apenas um
pequeno efeito colateral.

Levantei-me, levemente nauseado. Ainda estava sentindo resquícios


daqueles sintomas horríveis, mas fui capaz de sondar ao redor e perceber
que aquele evento catastrófico continuava em curso. Agora, era visível
mais rachaduras em direção ao antigo vazio. Sentei em uma pedra e
debrucei a pena sobre o livro, na tentativa de me recuperar para dar
continuidade ao ofício da escrita. Mas era impossível. O desespero já me
queimava vivo. Enquanto isso, eles pareciam conversar algo em baixo tom,
como se fossem amantes.

Em determinado momento, dirigi meus olhos para eles e, então, ela olhou
para mim. Não proferiu nenhuma palavra. Nem o seu semblante desenhou
alguma expressão. Foi um breve momento, entretanto, capaz de conceder-
me a coisa mais bela que eu já vi em toda a minha existência. Sua imagem
será imóvel em minha mente até o fim dos meus dias, embora eu prossiga
incapaz de descrevê-la.

De forma inexplicável, eu me acalmei. O olhar da quebradora não me


passou nenhuma mensagem, mas eu supus diversas coisas. Dentre elas,
estavam algumas que me acalmavam. Ela e Az’Az, juntos, me transmitiram
segurança. A sensação de que as coisas tinham acabado bem.

Com um pouco de tempo, eu me recompus e demonstrei aptidão para


seguir adiante, mesmo em meio a raios que cortavam os céus e coisas
voando por causa dos distúrbios gravitacionais.

– Senhor Az’Az, é correto dizer que agora vós sois dois? – perguntei,
empregando um tom atarefado e cerimonial.

– Não. Essa é Za’Za. Um ser diferente de mim. Ainda que tenha sido
concebida a partir da metade do meu imo, no instante em que abriu os
olhos, evoluiu. Seu nascimento, absolutamente excepcional aos demais
quebradores, será a ignição que revolucionará tudo! O livro que você
escreve, agora, deverá se chamar “A Nova Gênese”.

– Sim, senhor.

Virei várias páginas do livro e fui até uma seção que ficava no final. Lá
repousavam as anotações que viriam a alimentar os meus escritos depois.
Enquanto me ocupava com alguns apontamentos especiais e com
formulações de questões que oportunamente levariam aos quebradores,
Za’Za resolveu se manifestar:

– Se vamos reconstruir o universo, comecemos por esse lugar. –


pronunciou em três vozes sequenciais, quase simultâneas e ecoantes. E elas
não eram iguais, nem em classe, nem em transmissão.

A primeira voz, a bela soprano, cortava como lâmina livre e poderosa,


abrindo caminho para a segunda voz, uma soberana mezzo-soprano. Essa,
por sua vez, estava carregada de autoridade, propagando-se de forma
penetrante. Logo em seguida, surgia a enigmática contralto, que encerrava
a oração como uma escolta defensiva, a reforçar a voz do meio.

Depois do discurso, Za’Za tomou distância de Az’Az e iniciou uma


composição sinfônica. Com as mãos, ela gesticulava e gerava múltiplos
sons instrumentais. Eram tantos que eu nem consigo descrever.

O espetáculo sonoro reunia harmonicamente instrumentos de cordas,


madeiras e metais, e a temática da melodia transitava entre acordes de
louvor, liberdade e revolução. Tão sublime era aquela música, que eu não
contive as lágrimas. Minha boca sorria por vontade própria e meu corpo
ardia, em excitação.

Não era apenas uma música, compunha um ritual de apresentação de


Za’Za ligado à sua iniciativa, pois desde o instante em que ela começou a
tocá-la, toda a destruição causada por aquele cataclismo entrou em um
processo de reversão quase que temporal, no qual era possível contemplar
cenas de reconstrução perfeita. Entretanto, havia uma rachadura que ela
mantinha aberta. Situava-se metros atrás dela e provavelmente seria a
última a ser fechada. Eu não estava disposto a teorizar sobre, pois não tinha
capacidade para tal, era uma incógnita. Me contentei apenas com a hipótese
de ser um detalhe filosófico ou um capricho meramente estético, visto que,
pela perspectiva de Az’Az, talvez tivesse algum sentido.

Passada a introdução da música, Za’Za adicionou ao verso daquela


orquestra divinal o seu coral de vozes. E os efeitos resolutivos e musicais
aumentaram em poder e escala, alcançando as fendas que jaziam no
horizonte. Quando enfim os acordes mudaram para o que eu supus ser o
refrão, percebi que a minha escrita havia cessado desde o início do
espetáculo e meu corpo lutava apenas para tentar absorver a dádiva daquela
quebradora. Entorpecido, eu flutuava no vazio, na esperança de que a
música jamais terminasse. Mas terminou, e não de modo natural, passando
por todas as fases de uma composição finalizada. Ela havia sido
interrompida abruptamente. Estava inacabada.

– Te encontrei! – retumbou e ricocheteou no paraíso.

Aquelas palavras metálicas e estranhamente afiadas transmitiram uma


inspiração belicosa; não… algo ainda mais preocupante, uma sinistra
conotação predatória. Cai do vazio e também em mim. Voltei meus olhos à
Za’Za e a vi abraçada pela mão de um monstro metalino, que tinha quase o
tamanho de um castelo. Sua silhueta era medonha e nitidamente agressiva.
Assemelhava-se ao de um dragão e a de um homem ao mesmo tempo, mas
tinha quatro pernas, quatro asas, quatro braços e quatro chifres.
Fui novamente inundado pelo medo, imbuído da aterradora convicção de
que aquilo era algum tipo de resposta inevitável ao experimento realizado
por Az’Az.

– O que quer? – indagou Za’Za.

– Eu já consegui. – proferiu, antes de devorá-la como uma fruta do


paraíso.

Corri a ermo, de uma direção para outra, sem a mínima noção do que
fazer. Eu gritava, mas não ouvia a minha voz. Vi várias luzes e ouvi sons
de coisas quebrando, acompanhados de brados ensandecidos de Az’Az. As
porções flutuantes de terra começaram a rachar por meio da força de
terremotos furiosos; e as aves revoavam em migrações desesperadas. Raios
rasgavam os céus como chicotes coléricos e tufões de água inauguravam
uma disputa de poder.

Pulei de onde estava e me abriguei em uma pedra a navegar sem órbita,


entretanto eu estava em um espaço menos conturbado. Olhei para a direção
da batalha e contemplei Az’Az expulsando o pesadelo pelo mesmo lugar
que ele provavelmente usou para entrar, a fenda que Za’Za cultivou aberta.
O monstro utilizou suas quatro mãos para se agarrar nas bordas da
rachadura, mas foi brutalmente golpeado e sumiu. Já vitorioso, o quebrador
a fechou com um gesto austero de mão e, sem demora, uma única palavra
sua encerrou toda a devastação em curso. Estava acabado.

Fui em direção ao quebrador, intoxicado por uma amálgama de


sentimentos: luto e alívio eram os mais proeminentes dentre eles. Chegando
lá, encontrei Az’Az sentado sobre uma pedra, enquanto escrevia no chão
com o dedo indicador. Ao seu lado, estava sua lança, a ilustre e imponente,
utilizada para vencer aquela coisa.

– O experimento foi um sucesso. – ele me disse assim que cheguei.

– Sucesso? - repliquei imediatamente, confuso.

– Sim. Consegui triunfar sobre o destino. – sorriu ao léu.

– Senhor Az’Az, isso é maravilhoso. Mas eu gostaria muito de entender.

– Utilizarei uma linguagem que você compreenda. Quando quebradores


de realidades utilizam poderes além de suas capacidades, eles desenvolvem
um tipo de “doença terminal”. E foi graças à minha ânsia de criar um novo
quebrador, que eu me excedi diversas vezes, nos mais variados
experimentos, levando ao desenvolvimento dessa doença. Percebi que
estava enfermo quando lutei e matei outro quebrador de realidades que
buscava a minha morte. Antes de morrer, ele me disse que eu era um perigo
para o universo, por causa das coisas que ele descobriu a meu respeito.
“Quebradores que ultrapassam o mais absurdo dos limites são mortificados
pela própria matriz e renascem na forma de uma besta faminta por outras
matrizes”. Foram suas últimas palavras. Desde então, concentrei-me na
busca da cura e percebi que eu poderia obtê-la através do experimento que
fizemos hoje. Ao criar Za’Za, eu finalmente me livrei daquela doença.

– Senhor Az’Az, então quer dizer que…

– Sim. Quando eu dividi o meu imo ao meio, expurguei de mim a


maldição que me mataria. Infelizmente, Za’Za a herdou.

– Mas não havia outra maneira? Não era possível retirar essa coisa sem a
necessidade de fazer o que fez? – quando terminei a indagação, percebi que
poderia estar contrariando Az’Az de uma forma perigosa. Prometi para
mim que não o faria novamente.

– Eu tentei diversas vezes. Se fosse possível, todos os outros quebradores


o fariam. Eu precisava de uma condição demasiadamente improvável:
existir em dois lugares ao mesmo tempo. E não entenda existência por
presença ou duplicata fajuta. O conceito de existir abrange uma infinidade
de coisas. Quando eu transferi meu imo para Za’Za, eu existi em dois
lugares e em um por uma minúscula fração de tempo, e foi nesse ínfimo
momento que eu a presenteei com o meu antigo destino. Dessa forma,
triunfei sobre todas as coisas e fui capaz de criar a sorte de outro
quebrador.

Eu não imaginava que algo pudesse me provocar um pavor maior do que


os eventos precedentes, mas aquelas palavras de Az’Az superaram tudo o
que eu vivenciei.

– E quanto àquele monstro? – perguntei, ao perceber que ele havia parado


de falar. Eu preferi nutrir o assunto a transmitir uma mensagem de
incômodo – Por que ele matou Za’Za? Se ela continuasse existindo, talvez
fosse possível salvá-la também! – não consegui me conter.

– Se chama Prota. A besta da qual falei. É o resultado de quando um


quebrador sucumbe à matriz. Aquele, em específico, estava me caçando faz
um tempo. Ele nos rastreou devido ao grande uso de poder que aconteceu
aqui. Percebendo que ele nos sondava, resolvi usar Za’Za como isca para
resolver esse problema também, mas não constava em meus planos deixá-la
morrer. Foi uma fatalidade que não pude evitar. E você está certo, iríamos
atrás da cura para ela também. Nem que isso nos condenasse a um ciclo
infinito. – terminou, em tom melancólico.
“Por isso a rachadura atrás dela não se fechou…”, pensei.

– Senhor Az’Az, receio dizer, sua apoteose não está completa. Disse que
tornou-se capaz de vencer o destino e, inclusive, controlar o de outros
quebradores, mas acabou de confessar não ter sido capaz de salvá-la
daquele predador. – a indignação com o jogo de Az’Az me concedeu uma
coragem suicida.

Az’Az apenas levantou-se da pedra e olhou para mim. Eu não conseguia


lê-lo, mas estava conformado com o que pudesse vir. Mas antes de sua
resposta, um novo evento suplantou nossas expectativas. O quebrador foi
capturado, diante de mim, por uma silhueta de mão, que se escondia por
detrás da realidade tal qual uma mão por dentro do tecido, circundando um
objeto. Az’Az tentou libertar-se, mas só conseguiu livrar um dos braços.

– Minha lança! – ele gritou para mim. – Dê-me a minha lança!

Lembrei da mesma cena com Za’Za. Tão poderosa, mas, quando


envolvida pela mão daquele Prota, seus dons pareciam evaporar. Imaginei
que a mesma coisa estivesse se repetindo com Az’Az, apesar desta mão não
o tocar diretamente.

Num surto de bravura, corri à lança cravada no chão e a empunhei. E


antes que eu a repassasse, ouvi uma tríade de vozes familiares:

– Maldito seja, Az’Az! – eram as vozes de Za’Za.

Ao ouví-las, soltei a lança no chão, olhei fixamente para os olhos de


Az’Az e me despedi:

– Prove sua soberania sobre o destino. Eu continuarei registrando.

Apertei o meu amuleto e tudo à minha volta começou a se distorcer.


Vislumbrei a imagem de Az’Az e de todo aquele cenário se distanciando,
em um festival de manchas, até que todas se uniram em um preto absoluto.

Capítulo 1 – Paraíso

O reino de Alfanat, uma das regiões mais suntuosas do paradisíaco


planeta Sizytrix, lar dos simiantes (a nobre espécie dos “homens-macaco”)
e das árvores mais altas de seu mundo, é famoso por diversos motivos. O
maior deles: as legiões de simiantes guerreiros.

É preciso contextualizar. Sizitrix é um lugar pacífico há muito tempo. O


exército atual de Alfanat nunca lutou em uma batalha, apesar de estarem
constantemente preparados para uma. E era óbvio que sua intrigante
existência passaria a causar desconforto e receio em outros reinos, tribos e
clãs ao redor daquele mundo pacato. Logo, surgiram outras sociedades
armadas.

E, fatalmente, um mundo preparado para uma guerra, precisa de apenas


um motivo.

***

– Saudações, Rei Calazar! – curvando levemente a fronte, Ivash, o velho


sábio do reino, reverenciou a majestade de Alfanat.

– O que o traz aqui? É sempre uma honra vê-lo, ancião. – replicou


aprazivelmente Calazar.

O recinto real de Alfanat localizava-se em Genon, a árvore mais alta do


planeta. Um lugar perfeito para o rei apreciar seu privilégio, contemplando
o belo verde do imenso tapete formado pelas copas das outras árvores e
então, o horizonte de Sizitrix desenhando-se ao redor como uma pintura
encantadora. O trono estava posicionado em uma espécie de sacada natural,
um gigantesco galho da árvore cuja casca fora cuidadosamente talhada para
criar uma estrutura cômoda, funcional e organizada. Ali estavam a guarda
real, os servos do rei e muita mobília nobre, e ainda havia espaço para
receber uma quantidade generosa de visitas. O saguão da coroa era
engenhosamente construído numa arquitetura que utilizava as próprias
lascas da casca da árvore, coladas com uma seiva extraída pelos druidas. A
iluminação e a água eram naturais e o ar tão puro quanto se pode definir.

Alfanat era uma floresta formada por gigantescas árvores que mediam
entre quatrocentos e seiscentos metros de altura, mas nenhuma chegava à
metade do tamanho de Genon. Todas elas cresciam ao redor, como se
fossem sementes ancestrais que brotaram dos frutos que, um dia, num
passado muito distante, caíram dos braços da mãe colossal. As irmãs
entrelaçavam-se e quase não era possível saber onde a copa de cada uma
terminava. Os simiantes podiam transitar livremente entre elas, saltando
por meio de sua majestosa construção natural. Também havia escadas e
passarelas construídas com madeira de poda, assim como algumas
moradias e pequenos edifícios coletivos. As árvores da borda eram nutridas
por compostos especiais criados pelos druidas. O objetivo era fortalecê-las
para que servissem como um tipo de muralha. Além disso, elas eram
adornadas por uma formidável quantidade de guaritas, nas quais as
sentinelas alternavam-se em turnos pragmáticos. O reino ainda contava
com um generoso território ao redor desse titânico castelo de árvores. Eram
herdades selvagens que tinham uso político e tático-militar.

– Vossa graça, soube que os elfos de Dendrarah estão vindo ao seu


encontro e me apressei, pois há uma coisa importante que venho estudando
já há algum tempo e que precisava lhe mostrar antes que eles cheguem. –
disse com seriedade atípica.

Calazar franziu o cenho e acomodou-se no trono de pedra. Prontamente,


uma das servas trouxe-lhe uma cumbuca com água fresca. Sem desviar os
olhos do sábio, o rei pegou a cumbuca e a ofereceu ao ancião, que recusou
prontamente, numa clara demonstração de ansiedade.

– Pois então diga. – ordenou. Em seguida, bebeu um gole da água.

O velho simiante deu um passo à frente, enfiou a mão enrugada numa


pequena bolsa que estava presa ao seu cinto, e que parecia um ninho de
pássaros, e tirou uma planta morta. Era pequena, era possível ver raízes e
algumas pétalas murchas.

– Esta é uma Sempiterna. Uma orquídea rara, que cresce em nossas


árvores. Ela recebe esse nome, pois, apesar do tempo, nunca morre.

O monarca estendeu a cumbuca de água para o lado, que foi


imediatamente apanhada pela serva.

– Continue.

– Fizemos diversos estudos e testes. Procuramos respostas na sabedoria


antiga de Alfanat, mas nada obtivemos. Depois disso, buscamos apoio no
conhecimento além-Alfanat e o resultado foi o mesmo. Eu não o
importunaria se a incógnita não fosse digna de tal. É um acontecimento
ímpar, meu rei. – alertou. Ao concluir, coçou a cabeça alva e cansada de
pensar.

– E o que quer que eu faça, se até a sua experiência não foi capaz de
sobrepujar tal enigma?

– A princípio, Majestade, não acredito que haja algo relevante que possa
fazer sobre isso. Sem ofensas. Eu gostaria de ter resolvido este assunto sem
precisar incomodá-lo, mas assim que soube da reunião extraordinária que
os elfos solicitaram, achei necessário compartilhar esse problema, pois a
minha intuição diz que essa informação pode ser de grande valia durante o
encontro. Afinal, nas expedições que fizemos fora de Alfanat, descobrimos
problemas semelhantes em outros lugares, além de percebermos um
comportamento estranho nos outros povos. Há algo muito errado lá fora.

– Fez muito bem, digníssimo ancião. – num tom de aprovação e respeito.


– Voltaremos a tratar desse assunto após a reunião. A preocupação que
deixastes escapar nas palavras fora incômoda. Fica claro que a importância
desse problema precede qualquer assunto atual do reino. – completou
Calazar.

– Encerro minha solicitação, Majestade. – o antigo sábio fez uma


reverência com a fronte e, antes que se retirasse, um pequeno macaco
entrou no saguão real. Ele saltou pela janela e correu batendo as mãos no
chão, como se fossem patas, até finalmente pular nos ombros de Calazar. O
animalzinho então fez um pequeno som ao pé do ouvido do monarca. Uma
palavra dissolvida em assobios baixos e agudos.

– Fique para a reunião. Os elfos já chegaram em Alfanat. – um pedido


quase que em tom de ordem.

***

Só uma coisa era capaz de sobrepujar o nascer do sol em Sizytrix: o pôr


do sol.

A natureza era exuberantemente bela neste planeta, por isso seus


habitantes já estavam acostumados com cenas e paisagens formosas, mas o
pôr do sol era excelso entre todas elas.

Enquanto a alvorada entrega luz, alegria, esperança, calor e energia, o


crepúsculo traz algo mais profundo e complexo. Não falo sobre a
combinação de cores, que apresenta do laranja incandescente ao final
violeta, refiro-me aos sentimentos e sensações que o anoitecer pode ofertar.

Alguns encontram paz, após um dia maravilhoso e abençoado, no qual


realizaram suas tarefas e poderão enfim descansar sob um céu
majestosamente desenhado por astros celestes. Outros amam o turno fresco
da noite, o silêncio das horas vindouras, perdido somente ao soar o canto
melodioso de pequenos animais notívagos. Mas, sem distinção, todos são
atingidos pela introspecção derramada pelo pôr do sol, uns com a absorção
das experiências vivenciadas durante o dia, a evolução individual; outros,
pela simples paixão para com o emblemático segundo período. E é por isso
que o pôr do sol é tão especial.
– Irmão, o que você acha dessa vida que levamos? – questionou Segunta,
enquanto mantinha os olhos na abóboda celeste.

Estavam os dois em um alto galho da imensa Genon, acima até mesmo do


saguão de Calazar, seu pai. Vez ou outra, depois de um dia cheio de jogos,
estudos e treinamentos, os príncipes de Alfanat subiam o mais longe que
podiam, para contemplarem juntos a despedida ordinária da grande estrela.
Era um momento deleitoso, fraterno e divertido. Sobretudo, um segredo a
dois, pois o perigo das alturas precedia qualquer iniciativa. Seu pai era
contra essas aventuras.

– Que espécie de pergunta é essa? – replicou Prímura. O príncipe, que


também estava a olhar para o céu, desviou os olhos para sua irmã.

Houve um pequeno intervalo.

– Não sei. É um questionamento que nasceu dentro de mim há um tempo


e passou a me acompanhar em todos os lugares aonde vou, em cada
atividade realizada. Recentemente começou a tomar forma em meus sonhos
noturnos. – segunta não apenas respondeu verbalmente, ela retribuiu o
olhar de seu irmão. Estabeleceram um breve contato visual.

– Sua resposta conseguiu ser mais estranha do que aquela pergunta. –


Prímura, que estava deitado, levantou-se. – Vamos, já é hora de voltarmos.

O príncipe já desenvolvera um porte viril para a idade dos 14, e tinha um


metro e setenta. Seu corpo, esculpido numa cor vermelha escarlate, foi
dádiva de seu pai. Os pêlos protuberantes, característicos de sua espécie,
eram dourados como o ouro mais purificado. Resplandecentes à luz.
Herança da sua mãe. A cauda era demasiada longa, delatando a
antecedência nobre, e os olhos? Um matiz amarelo, difícil de pintar. Ao
erguer-se, o simiante projetou uma sombra sobre Segunta, que o encarou
das trevas, pouco antes de se levantar também.

A irmã de Prímura era um ano mais jovem. Media um metro e quarenta


em corpo bem mais esguio que o primogênito real. Sua pele competia com
a do irmão, mas seus pêlos, negros como uma noite sem lua e sem estrelas,
cobriam-na de forma elegante. Os olhos também eram vermelhos, o
conjunto perfeito para personificar Calazar na versão feminina. Mas o
detalhe mais singular com certeza eram as duas caudas. Ao ficar de pé,
ignorou Prímura e desceu um galho abaixo.

– E quanto a você? Respondeu a minha pergunta com outra pergunta. –


disse de baixo para cima. Em seguida, desceu mais um nível.
Prímura apressou-se e alcançou a irmã em um salto. Caiu na frente dela.

– Me desculpe. O seu questionamento foi muito inusitado. Soou como se


você não apreciasse a vida que temos aqui em Alfanat. Alguma coisa
dentro de mim empurrou aquelas palavras para fora. De certa forma, o que
você disse me irritou.

– Quer saber? Vamos esquecer isso. Já fiz essa pergunta ao nosso pai e à
nossa mãe, e a resposta não foi muito diferente. Parece que todos estão
satisfeitos com a nossa realidade.

– E não deveríamos?

– O problema não é esse, Prímura. Você conhece as histórias antigas, de


quando Sizytrix...

– Aquilo é passado! A paz foi estabelecida por um alto custo. Você sabe,
Segunta. Muito sangue, suor e lágrimas. Sem isso, os primordiais não
conquistariam o direito de viverem pacificamente neste mundo, longe das
dores e dos males que permeiam a vida dos mortais.

Antes que Prímura continuasse, foi interrompido quase que bruscamente


por Segunta:

– Você não entende! – quase gritou. Em seguida, desceu subitamente em


vários saltos precisos, majestosos e velozes.

O coração do irmão mais velho ficou apertado. Sentiu que poderia ter
feito diferente. Mas não havia tempo para arrependimentos, Segunta estava
descendo a árvore muito rápido, poderia cair e nunca mais voltar. Prímura
partiu em seu encalço, enquanto gritava o nome dela, em chamados
preocupados. Apesar do talento natural do príncipe e de sua maestria em
saltar nas gigantescas árvores de Alfanat, sua velocidade não foi capaz de
conquistar uma aproximação. A rapidez de Segunta era assustadoramente
perigosa.

***

À noite as árvores dos simiantes são iluminadas por pedras-lume: cristais


de âmbar que ficam expostos ao sol durante o dia, absorvendo a luz do
soberano.

A produção desses objetos luminosos consiste num processo de etapas


minuciosas. Primeiro, são feitos cortes num lugar especial da árvore. A
viscosa resina dourada eclode da casca e escorre lentamente até formar
pequenas porções gelatinosas, que ficam fixadas no local. Então, quando
elas atingem a consistência ideal, são coletadas e levadas para o banho de
sol e, claro: não antes de receberem uma bênção especial dos druidas. Uma
magia antiga que faz toda a diferença. A maioria ganha poucas horas de luz
solar; outras, bem mais, e algumas são expostas durante todo o dia. Você já
deve imaginar, a quantidade de luz absorvida resultará na potência e
duração luminosa ao longo da noite, e as diferentes demandas do reino
exigem quantidades distintas de luz. Da iluminação pública e coletiva à
mais privada, todas são feitas por meio de pedras-lume. No fim de cada
tarde, elas são distribuídas pelo reino. No início de cada dia, o processo é
reiniciado.

Já era noite e o saguão real de Alfanat estava sediando um dos eventos


mais importantes de sua história. Os elfos de Dendrarah estavam presentes.
Uma reunião que discutia um assunto demasiadamente relevante: o futuro
de Sizytrix. O início da reunião foi extremamente cerimonial, com
cordialidades trocadas entre as partes. Mas depois de passadas as etapas
formais, adentraram ao tema principal, que, por sua vez, não era agradável.

Segundo a visitante élfica, Sizytrix estava infectado por um mal


desconhecido e aparentemente inexorável. Algo que vinha mortificando o
planeta num ritmo difícil de calcular. Era um problema dentro de outro
problema. Quem ou o quê infectou o planeta? A pergunta era essencial
naquele momento, mas era uma pena que, numa questão de tempo, seria
trivial diante da terrível adversidade consequente: se a natureza fenecesse,
os primordiais não seriam extintos pela fome, pois ainda poderiam comer o
lixo que o mundo produziria. O pior estava por vir pelas garras da guerra e
das doenças que surgiriam naquele inferno.

E novamente a história de Sizytrix mostrou-se enigmática.

A outra grande ocasião ocorreu no início de tal mundo, quando ocorreu o


“Grande Êxodo”, acontecimento no qual várias sociedades de diferentes
espécies sencientes de primordiais migraram para o planeta, oriundas de
lugares espalhados pelo cosmos. A cronologia não registra com clareza os
detalhes sobre esse começo; numa outra direção, ela se empenha em
apresentar uma série de demarcações territoriais manchadas com sangue;
guerras e eventos relevantes que moldaram o formato atual de Sizytrix
durante séculos. Alguns livros fazem referências e menções a um jogo
divino, criado pelo próprio Deus Sizygii, para eleger aqueles que o
representarão no grande conflito de causas que acomete todo o universo.
Talvez isso explique o nome do planeta, que faz uma clara alusão a esse ser
supremo.
Mas a era belicosa não se estendeu por muito tempo. Após dois séculos,
as nações remanescentes começaram a se ajustar em um sistema de paz,
pois, diferentes dos seres mortais, os de Primordia são muito mais lógicos,
sábios e civilizados. Soa irônico, pois a maioria das espécies primordiais
detém uma aparência excêntrica, que diante da ótica limitada de alguns
povos mortais, seria facilmente interpretado como ausência de civilidade.

Entretanto, mesmo em tempos de harmonia, algumas nações cultivaram


um moderado poderio militar, e, dentre estas, ergueu-se uma que tomou
para si o título de nação mais bélica de Sizytrix. Essa era Alfanat.

– Reitero, a situação é bem mais complexa do que parece, Calazar. Logo


nosso paraíso chamado Sizytrix se tornará um pesadelo. Será algo ainda
pior do que os conflitos que assolaram o nosso passado. Aquela coisa não
vai parar, e ela é muito poderosa. – profetizou Rixir.

Os elfos de Dendrarah constituíam uma das espécies mais longevas.


Alguns dos que participaram do Grande Êxodo e das primeiras guerras
ainda eram vivos, e dois deles estavam presentes diante de Calazar. Tal fato
por si só já era, no mínimo, digno de respeito, mas existia quem se sentisse
honrado com tal presença também. No entanto, Calazar era poderoso
demais para ser diminuído em comparação a qualquer ser daquele mundo,
por mais importante ou ilustre que fosse. Por isso, estavam em patamares
iguais. De um lado, a relevância das experiências e conhecimentos que
antecederam a atual realidade. Do outro, a coroa mais poderosa em turno.

– Sizytrix foi projetado para ser perfeito e eterno. Os livros antigos,


datados do vosso tempo, nos dizem isso. Seja lá o que estiver acontecendo,
logo passará. – Alentou Ivash, o velho sábio.

Mesmo sabendo que os elfos não costumam ser levianos nas palavras,
demonstrar otimismo defronte a tal cenário poderia fortalecer a já célebre
imagem da civilização dos simiantes. Força que possivelmente seria
utilizada num provável tratado. Ao menos, a atmosfera da conversa levava
a crer que esse momento chegaria.

– Entendo seu argumento. Mas é uma pena dizer que ele baseia-se na
ignorância das gerações que nunca conheceram a verdadeira face desse
universo. Uma ingenuidade alimentada por crenças que ainda não foram
desmistificadas. Os seus livros não estão errados, ancião Ivash, o problema
encontra-se na capacidade de transformação da verdade. A verdade se
altera com o tempo, ou melhor, alguém a altera. – replicou Rixir.

– Você não veio apenas para nos acordar. – Calazar tornou a conversa
para si novamente.
– Por maior que seja o meu apreço a Alfanat, eu não cruzaria o atual
Sizytrix, que já inflama em guerra, apenas para alertá-los de que não
deveriam ter passado os últimos anos confinados nessa floresta. Viemos
firmar uma aliança com esse reino. – alertou a elfa.

Houve uma pequena pausa.

– É verdade. Permanecer, sem sair daqui por muito tempo, nos rendeu
uma ignorância perigosa. Mas foram dias maravilhosos, estes que passei
com a minha família e o meu povo. – proferiu Calazar, desviando o olhar
para uma janela. Sorriu no final. Recobrou o semblante austero e voltou o
olhar à visitante. – Mas, apesar disso, sempre cultivamos a amarga
expectativa de que esse momento chegaria. O dia no qual nosso mundo
deixaria de ser uma fantasia. As escrituras antigas nos alertaram sobre não
estarmos sozinhos no universo. É por isso que desenvolvemos e
mantivemos aqui, o maior exército de Sizitryx. Um tão grande e poderoso,
que nos permitiria a dádiva da ignorância há pouco desfeita. A aliança que
vocês buscam tem a nossa força como principal objetivo. Estou errado?

– É óbvio que não está.

A princesa élfica veio acompanhada de três figuras. Duas delas eram


claramente da guarda real, pois tinham aparência e comportamento
tipicamente militares. Já a outra era ilustre demais para ser um
subordinado. Tratava-se de Kivik, o irmão mais novo de Rixir. Todos
quatro compartilhavam das características inatas dos elfos de Dendrarah.
Uma pele cor de grafite, olhos prateados e cabelos brancos. O semblante
altivo e orgulhoso, até mais do que o dos próprios anfitriões, seria o traço
mais marcante, se não fossem pelos caprichosos desenhos espalhados e à
mostra nas partes desnudas dos seus corpos.

Rixir e Calazar eram os únicos assentados à imensa mesa de reunião. Um


de frente para o outro. Os guardas de ambas as partes ficavam à volta, e
Kivik passeava pelo saguão, admirando as pedras-lume e demais objetos da
cultura de Alfanat. Apesar de distante, suas orelhas élficas eram sensíveis o
suficiente para que ele pudesse ouvir tão bem quanto o ancião simiante que
estava em pé, ao lado do rei.

– Não vejo vantagem nessa aliança. Se a tal “coisa”, sobre a qual você
falou, matar o planeta inteiro, ela de nada valerá. No final, teremos que
lutar pela última gota de água. Não haverá glória para o vencedor, apenas o
direito de ser o último a fechar os olhos. E digo isso considerando que
chegaremos ao final desse pesadelo, pois talvez a sua aliança possa nos
trazer muito mais inimigos e responsabilidades do que ganhos. Alfanat
sempre se isolou, isso é verdade. Mas ao menos não agimos como se
fôssemos superiores às outras espécies – alfinetou.

– A sagacidade dos simiantes é deslumbrante. Mesmo em tempos de paz,


nunca abandonaram as armas. – espontaneamente, um sorriso surgiu tímido
no início desta fala e terminou tomando todo o rosto ao final da mesma.
Rixir encarava Calazar e, enquanto proferia, seu semblante transmitia
sedução, admiração e excitação, alternando-se num gradiente impossível de
descrever. – Alfanat não precisa de Dendrarah para tomar todos como
inimigos. O bom senso coletivo unirá os povos contra sua nação. – disse,
recomposta. E continuou. – Vocês podem ter o maior exército, mas nós
possuímos o maior acúmulo de riquezas naturais. Ou nos unimos, ou
Dendrarah terá de quebrar alguns códigos. Iremos oferecer gorduras da
terra a todos que concordarem em marchar sob nossos estandartes. Logo
estaremos em lados opostos desse teatro vermelho e com exércitos
equivalentes, Calazar. – apesar de o argumento ter um viés belicoso, o tom
de voz empregado por Rixir nesta parte foi extremamente técnico e
imparcial. Houve respeito. – Além disso, eu nunca disse que a tal “coisa”
era invencível. A nossa aliança permitirá buscar uma solução para isso. Há
recursos que nós, elfos, ainda não usamos. Mas precisamos de tempo, e não
sabemos como o mundo estará amanhã.

Calazar fitou o olhar da elfa, desviando sua visão para o sábio somente
após o término de sua fala, numa clara consulta ocular. O erudito ancião,
que o aconselhou genuina e prestativamente desde o nascimento, agora se
absteve de sua atribuição, demonstrando que tal decisão era ímpar,
competente apenas ao monarca. O rei de Alfanat ainda estudou todos os
olhares pelo saguão antes de dar sua resposta. No trajeto, percebeu que
Kivik, o príncipe elfo, ainda estava de costas para a mesa de reunião,
passeando pelo salão, enquanto parecia analisá-lo ou admirá-lo.

A aliança era possivelmente vantajosa. Por diversos motivos. Mas ela


significaria que, além de proteger os seus interesses, os simiantes teriam
que se tornar a ponta de lança de Dendrarah, marchando em suas fileiras
sob a promessa de que os elfos resolveriam aquela situação. E não era
como se Calazar realmente precisasse dela. Não agora, não sem saber o que
realmente estava acontecendo fora da floresta. Ele não poderia garantir a
sua palavra baseando-se apenas na teoria de alguém que encontrou duas
vezes na vida. Sendo esta a segunda vez, e a primeira quando tinha doze
anos. E se tudo isso fosse uma armadilha que levou um milênio para ser
colocada em prática? Os elfos de Dendrarah sempre foram profundamente
obscuros.
Um dilema paranóico golpeava o coração do simiante mais importante de
Alfanat. A guerra não devia ser a única opção. Mas, caso seja verdadeira a
alegação de Rixir, os conflitos seriam inevitáveis. Não haveria tempo ou
recursos para unir todos os povos contra “a coisa” que estava ceifando o
planeta. A sobrevivência falaria mais alto, seria uma questão maior.

Após uma amarga introspecção silenciosa, o monarca firmou seu


veredicto:

– Eu recuso a sua aliança.

Rixir apenas sorriu.

As pedras-lume estavam deslumbrantes naquela noite, para além


daquelas típicas, de cor laranja. Os druidas tinham preparado pigmentos
especiais para nutrir luzes de várias cores. Afinal, elas iluminariam uma
reunião especial.

Capítulo 2 – Menino

– É um menino! É um menino lindo! – exclamou a parteira ao


Senhor Jockar, o pai da criança.

O homem finalmente sorriu. O parto foi uma intensa batalha que durou
mais de meio dia, no qual a esposa de Jockar, a senhora Marile, passou por
muitos momentos difíceis.

Após sentir os primeiros indícios desconfortáveis da chegada do pequeno,


Marile não perdeu tempo e saiu em busca de seu marido, que trabalhava no
pequeno mercado da vila onde moravam. O homem delegou prontamente
que seu ajudante cuidasse das responsabilidades, no instante em que viu
sua amada aparecer na rua do comércio. Então, ele preparou a sua carroça e
ajudou Marile a subir. Partiram sem delongas e sem a mínima necessidade
de ela lhe dizer uma única palavra. Conheciam-se tão bem que podiam se
comunicar apenas com olhares. Viajaram aproximadamente 20 quilômetros
até Abzima, a cidade vizinha, onde a reconhecida parteira Osvaora os
recebeu em sua estalagem.

– Senhora Osvaora. – disse Lia, sua sobrinha e enfermeira ajudante,


entrando na sala na qual a parteira estava com o pai do menino. – A
senhora Marile... ela... – não terminou.
– O que aconteceu com ela?! – o homem interpelou, desesperado.

A parteira fez um sinal para a jovem, que rapidamente saiu da sala, depois
de gesticular respeitosamente com a cabeça ao olhar para o pai da criança.

– Eu sinto muito, Senhor Jockar. – consternou-se a parteira, em tom


pesaroso.

O homem não chorou, mas pareceu congelar, incrédulo. Osvaora colocou


uma das mãos em suas costas e o convidou a se sentar, algo que ele não
fizera desde quando chegara de viagem, e já havia noite no céu. Ele
resistiu ao chamado, mas ela insistiu e venceu.

Já sentado, seus olhos rejeitavam qualquer direção que não fosse a


direção ao chão; concentravam-se em suas botas, que se sujaram de lama
durante a viagem, quando ele desceu da carroça para ajudar o cavalo a tirar
uma das rodas que havia caído dentro de um lamaçal. Contudo, o homem
ainda não chorou. Pelo menos, não para fora.

– O que aconteceu? Por que você não a salvou? Nenhuma mulher que
deu a luz, sob os seus cuidados, morreu. Você é Osvaora, Mãos Santas! É
por isso que nós te escolhemos! – disse, com as mãos cruzadas – Quero ver
a minha esposa e o meu filho. – levantando o rosto vagarosamente para a
parteira.

A mulher não respondeu. Apenas deu meia volta e caminhou em direção


à entrada onde Marile estava. Jockar levantou-se devagar e a seguiu. Então,
ela abriu a porta e liberou a sua passagem. Ele logo pôde ver Marile
deitada na cama, com os olhos fechados e um leve sorriso no rosto, como
se estivesse tendo um belo sonho. Ao contemplá-la, o homem tomou um
duro golpe no peito; tão forte, tão destrutivo, que sequer lhe concedeu o
direito ao choro. Ele apenas tremeu.

O silêncio do recinto era angustiante. Apesar da presença de três


enfermeiras e duas janelas abertas para o ar livre, nenhum ruído ousava
desrespeitar aquela atmosfera condolente. Era o primeiro óbito na história
daquela enfermaria. Predominava o sentimento de penúria.

Jockar atravessou o quarto, passando por uma cama, duas cômodas e uma
mesa. E ao chegar onde sua amada estava, apoiou um dos joelhos no chão.
Pegou a mão que guardava a aliança e a levou para o seu rosto. Esse foi
oficialmente o início do seu luto. Chorou.

Mas não era um lamento desinibido. Esse, talvez, ele guardasse para
quando estivesse sozinho. Seu choro foi silencioso como aquele quarto.
Tão mudo, que fez as enfermeiras se retirarem, pois sentiram vontade de
chorar por ele. A parteira, porém, se aproximou.

– Quando eu segurei o garoto em meus braços, pude constatar que ele


era, de alguma forma, especial. Desde o primeiro toque, não pude mais usar
os meus poderes milagrosos. E acredito que isso também tenha relação com
a causa da morte de sua esposa. Ao anunciar às minhas assistentes a
necessidade de salvá-la por meio dos métodos convencionais, cheguei a
comentar que talvez a aura do menino estivesse enfraquecendo os meus
dons. Neste instante, sua esposa sorriu e disse: “Funcionou. O nosso filho
vai ser importante e vai orgulhar o pai”. Pouco tempo depois disso, nós a
perdemos. – contextualizou a parteira.

– Idiota! Não precisava ter feito isso.

– Me desculpe! – suplicou, desesperada.

– Não foi pra você. – retribuiu amistosamente. – Minha esposa era muito
dedicada à nossa felicidade. Ela sabia que eu não era realizado sendo
apenas um comerciante. Eu queria ser alguém mais importante. Um herói,
talvez? Isso pode ter influenciado ela a fazer… alguma loucura com o
nosso filho, na esperança dele ser esse alguém muito importante e acabar
realizando o meu sonho de forma indireta. Eu não sei o que ela fez, talvez
nunca saiba, pois até as mulheres mais fiéis têm os seus segredos. Mas se
ela realmente morreu feliz, isso pode diminuir a minha dor.

– Eu os deixarei a sós. Quando quiser ver o seu filho, me procure no


quarto ao lado. – anunciou ao sair.

O homem permaneceu ali por mais um tempo. Conversou com sua


amada. Despediu-se e chorou mais um pouco, pois queria estar recomposto
quando encarasse as enfermeiras novamente. Por fim, deu um beijo na testa
de Marile e foi ao encontro de seu filho.

Capítulo 3 - A Lâmina de Alfanat

D ia após dia, toda aquela miríade de tons vívidos, toda sorte de


fragrâncias e sabores deleitosos e toda a pluralidade de espécies que,
juntos, cognominavam Sizytrix de “paraíso”, tudo isso ia pouco a pouco
dissolvendo-se uniformemente em um miasma impiedoso. As cores sujas e
escuras conquistavam gradativamente a paisagem, e a beleza da vida
primordial definhava sem cura e sem explicação.

Conforme o calendário avançava, o sol exercia cada vez mais poder sobre
os dias, e as noites esfriavam mais a cada lua. A água passou a trazer
sabores estranhos e os alimentos passaram a estragar rapidamente. O ar,
outrora puro e aprazível, agora era mais denso e transportava o cheiro da
morte e das coisas que a antecedem. Às plantas e aos animais restavam
apenas a competição no jogo da extinção. De paraíso, Sizytrix passou a ser
chamado de inferno.

Já fazia onze anos desde a visita dos elfos de Dendrarah a Alfanat. E a


guerra profetizada por eles começou há pelo menos sete. O conflito se
desenrola de forma generalizada, pela força das batalhas ocorrendo por
todo o planeta. E ninguém sabe exatamente onde e quando começou, e
quem foi o primeiro a ter a cabeça cortada. Quando a guerra tocou os
povos, era como se ela já estivesse presente há muito tempo, vagando à
espera da oportunidade para explodir. Sizytrix jazia condenado no espaço
e… os seus habitantes? Acometidos por essa maldição.

***

Qual é o papel do soldado em uma guerra?

A resposta simples é: lutar até a morte ou até a guerra terminar. É


defender os ideais dos seus superiores que, pelos seus interesses, alegam
defender os sonhos do povo como um todo. Mas e a resposta complexa?
Bem, ela especificaria o que acontece durante o processo descrito
sucintamente na simples resposta. E não haveria tanta beleza como
costumamos ver nas gloriosas histórias de guerra. Apesar de algumas serem
de fato, gloriosas.

Muitos soldados aceitam de seus generais a tese de que eles se tornaram


combatentes pela força do destino. Mas esse "desígnio inexorável" não foi
uma consequência das ações daqueles que semeiam e cultivam a guerra?
Eu posso te contar: nem sempre é. Mas uma coisa é sabida: uma vez
soldado, você pode começar a acreditar em destino e ninguém vai te julgar
por isso.

– Formação anelar! – ordenou a princesa simiante, em meio aos brados


de batalha.
– FORMAÇÃO ANELAR! – replicou a voz trovejante de Kavja, o
membro mais leal do séquito de Segunta.

Como sempre, a ordem era sistematicamente cumprida. Os simiantes


mais próximos iam entrando em formação e isso desencadeava o mesmo
comportamento ao longo de todo o exército.

A formação anelar era utilizada pelo batalhão de Segunta quando estava


cercado, seja por ter sido atacado por todos os lados, seja por ter furado e se
infiltrado nas tropas inimigas. E havia um fator muito especial nesta tática
de batalha: a participação dos druidas. Eles, que ficavam alocados no
centro das tropas, conseguiam identificar a quantidade aproximada de
inimigos e aliados em todos os flancos, por meio do toque no solo. Desta
forma, essas importantes unidades enviavam, por meio de totens metálicos
que ficavam em posse de alguns deles, pequenos sinais magnéticos que
informavam a direção que cada soldado simiante deveria tomar na
formação. Tais informações eram interceptadas por pequenas pedras
amarradas nos pescoços dos guerreiros, e as mesmas apontavam para onde
eles precisavam ir. Essa distribuição otimizada das forças era apenas um
dos caprichos que acentuavam ainda mais a obstinação que a princesa tinha
pela campanha, pois as suas companhias contavam com guerreiros tão
formidáveis, que muitos deles mereciam trechos nesta história,
descrevendo suas desenvolturas em combate.

A batalha já se arrastava por mais de uma hora e os soldados de Segunta


estavam se exaurindo um a um. Apesar de terem massacrado milhares de
belladorants, mais e mais não pararam de surgir por todos os lados. Os
simiantes até se perguntavam se seus inimigos não estavam vindo de outro
mundo, pois aquelas hostes pareciam intermináveis.

Os belladorants são uma espécie insectóide. Mas como pertencem à casta


dos primordiais, é preciso entender que eles têm características distintas de
suas “versões inferiores”, encontradas na casta existencial dos mortais.
Assim como os simiantes são, de forma resumida, uma versão superior aos
humanos, os belladorants podem ser interpretados como sendo uma das
espécies mais nobres do universo insectóide.

Suas aparências são variadas, a depender de classes e famílias, mas, de


modo geral, os belladorants podem ser descritos como formigas que
possuem, em média, dois metros de comprimento. São indivíduos capazes
de andar sobre duas pernas e usar quatro braços para lutar ou trabalhar, ou
correr empregando seus seis membros. As comunidades de belladorants são
enigmáticas e construídas geralmente no interior da terra ou de rochas. É
sabido que possuem hierarquias político-militares e que sua tecnologia
exótica, apesar de simplista, é muito eficaz na busca dos seus interesses.

Os belladorants que lutavam contra Segunta e suas tropas eram inimigos


formidáveis. Possuíam armas naturais espalhadas pelo corpo, além de um
vigor e agilidade pouco prejudicados pelas circunstâncias que Sizytrix
enfrentava. Pinças perto da boca e garras afiadas em todos os seis membros
compunham seus arsenais pessoais, mas alguns trajavam couraças
construídas com espólios da natureza ou de inimigos derrotados.

Os simiantes dirigiram-se àquelas terras a fim de conquistarem o Lago


Gajah, um importante recurso natural que já acumulava um cemitério de
pretendentes à sua volta. Cemitério cuja posse foi transferida de tempos em
tempos pelos povos que ali lutavam. A atual espécie no comando do lago
era a belladorant, e talvez prosseguisse neste ritmo por muito tempo, pois,
além de numerosa e resistente às mazelas vigentes no mundo, já havia
construído uma estrutura subterrânea ao redor do lago que ampliaria sua
vantagem sob aquele domínio.

– Acho que estou tendo um déjà vu. – disse Ygar, o Primeiro Márcio de
Segunta, ao olhar para mais uma horda de belladorants surgindo por cima
do terreno acidentado da batalha.

– Veja pelo lado bom: vamos derrotá-los mais uma vez. – replicou
Gogaq, um guerreiro cujo talento era invejável.

Segunta havia percebido que, apesar das tropas simiantes serem


superiores às belladorants em habilidade, em quantidade com certeza não
eram. E isso se tornaria um problema muito em breve. Precisava agir, uma
vez que seus guerreiros não tinham mais o mesmo ímpeto, a mesma
disposição. Uma vez que os druidas estavam sobrecarregados, e os
comandantes fatalmente ocupados demais para arquitetar planos. Cabia a
ela decidir qual seria o próximo movimento. Certo ou errado, todos
partilhariam dos resultados sem questionamentos, afinal, ela era a senhora
soberana daquele exército.

– Ponta de Lança! A mim! – ordenou.

A formação anelar moldou-se em uma espécie de triângulo serrilhado


bem fechado, tendo Segunta na ponta superior. O novo desenho ilustrava
uma organização prática dos militares, para proporcionar um movimento de
constante avanço. Entre os “dentes” transversais da lança, soldados que
estavam dentro da formação saíam por brechas paralelas, para assumir o
posto dos guerreiros que integravam parte dos dentes, contornando estes
após um assalto de minutos.
Os substitutos iam para fora e formavam novos dentes, enquanto os
substituídos retornavam para dentro da ponta da lança para tomar um
fôlego e se reorganizar. Já a retaguarda da formação se concentrava na
defesa, sem aberturas. Era nela que geralmente os druidas emprestavam sua
ajuda mística. Por fim, restava o lugar mais temerário da formação: a ponta
da lança. A posição suicida e gloriosa, indesejada, porém necessária. E,
mais uma vez, Segunta estava nela. Já havia necessitado dela em outras
ocasiões, e sempre se feria quando a usava. A princesa simiante
colecionava algumas cicatrizes pelo corpo e muitas histórias no imaginário
coletivo, tanto aliado quanto inimigo.

O comando de Segunta pareceu desesperado no início, mas logo mostrou-


se plausível, dada a situação aparentemente insolúvel que se formava
naquele campo de batalha. Ela havia pensado em algo; sua marcha
direcionava os simiantes para um aclive acidentado, que poderia ser
utilizado como uma fortaleza. A ideia era tirar vantagem de um terreno
elevado, aproveitando o fato de que os belladorants só combatiam corpo a
corpo.

E marcharam para a montanha, transpassando inimigos pelo caminho,


enquanto hordas surgiam ao longe, por todos os lados. A esperança era que
não houvesse, também, portais inimigos no almejado objetivo.

– Senhora, não chegaremos a tempo. – alertou Ygar.

Após derrubar um belladorant, Segunta lançou um olhar panorâmico de


cima de uma pedra.

– Perfurar! – gritou.

A formação acelerou o passo e o efetivo nos dentes da lança aumentou. A


manobra de perfuração demandava um demasiado esforço, mas existia por
conta de situações como essa no campo de batalha. Ou eles tomavam logo
o controle daquela montanha, ou seriam dilacerados pelos reforços que se
aproximavam em velocidade galopante.

Segunta avançava à frente; já estavam em terreno muito acidentado. A


simiante era uma saltadora exímia, e suas acrobacias marciais encantavam
os oponentes, antes de vitimá-los por meio de golpes espetaculares e
eficazes. A desenvoltura exibicionista, sua marca pessoal, inspirava os seus
seguidores, que marchavam logo atrás em seu apoio.

A subida ocorreu no momento em que muitos inimigos desciam a


montanha, em investida. Se os simiantes quisessem conquistar a vantagem
do terreno elevado, precisariam primeiro provar da desvantagem do terreno
baixo. E teriam de fazê-lo justamente contra uma espécie habilidosa no
desafio de caminhar sobre aquele íngreme local. Por sorte, ou graças à
decisão rápida de Segunta, ela e seus guerreiros chegaram a tempo de uma
batalha em maior número.

Em poucos minutos, os simiantes subiram e subiram, por caminhos


trilhados pelos que iam à frente desbravando, ao custo de muito sangue.
Tanto o líquido plasmático, que caía após eclodir dos soldados insectóides,
quanto o rubro e quente que deixava os corpos dos bravos soldados de
Alfanat. Quanto mais eles subiam, mais espaço liberavam para os que
vinham atrás. A ideia era alocar todos em lugares altos, para que pudessem
se organizar para as próximas ondas de inimigos. E assim fizeram, lutaram
até que não restou nenhum simiante em terreno desfavorável. Ascenderam
ao mais alto que puderam, para que sua posição fosse tão privilegiada, que
talvez os inimigos desistissem. E foi exatamente isso o que aconteceu. Ao
se depararem com a concreção desse plano, os belladorants que se
aproximavam pelos flancos frearam o seu ataque. Perceberam que seria
suicídio tentar reconquistar aquele lugar. Entretanto, a vantagem obtida
pelos simiantes lhes rendeu uma desvantagem de igual equivalência: o
isolamento. Estavam seguros das lâminas inimigas, mas sem mantimentos
o suficiente para resistirem a um cerco longo. Sabendo disso, os
belladorants envolveram a montanha e fecharam todas as rotas. E
aguardaram.

– Senhora, o que fazemos agora? – questionou Kavja.

Segunta estava sentada, afiando as lâminas presas em sua cauda direita.


Claramente pensando.

– Esperamos. – respondeu, sem olhar para o comandante.

– Sim, senhora. – acatou respeitosamente.

Mais uma hora se perdeu naquela situação de impasse, até que os


belladorants iniciaram uma espécie de coro insectóide desorganizado,
quebrando o quase silêncio incômodo e bizarro que se fazia nas mediações.
Milhares de sons medonhos retumbavam por entre as rochas e subiam a
montanha, passando por todos os soldados simiantes estrategicamente
posicionados, até encontrarem Segunta na porção mais alta. O barulho era
infernal e soava como um cortejo fúnebre. Era como se os inimigos
estivessem anunciando uma tragédia. E de fato estavam.

Algo surgiu no céu, ao longe. Eram pontos escuros que logo foram
tomando forma, conforme se aproximavam. Não era difícil entender que
aquelas coisas tinham alguma ligação com os belladorants, que
praticamente cantavam no chão. Segunta foi avisada assim que as
sentinelas perceberam aquela movimentação estranha nos ares. Mas não
havia muito o que pudesse ser feito. Ninguém imaginaria um ataque aéreo.

– Filhos de Alfanat! Resistam mais uma vez!

Então, finalmente outra batalha teve início.

Os inimigos chegaram. Eram belladorants alados. A investida foi brutal e


impiedosa, com movimentos que pareciam coordenados por algum tipo de
palavra de comando. Diferentes dos simiantes que lutariam por suas vidas,
os novos inimigos pareciam não se incomodar com a morte, desde que ela
contribuísse com o objetivo vigente: exterminar os guerreiros que
ocupavam aquela montanha.

Simiantes e belladorants dançavam a música da guerra. Trocavam golpes


e manobras de batalha. Muitos caíam, de ambos os lados, mas a perspectiva
parecia cada vez pior para os filhos de Alfanat. Os soldados voadores
superaram a vantagem que Segunta almejou com a tomada da montanha,
pois atacavam com rapidez de ângulos e lugares menos propícios a
respostas simiantes.

Este confronto caminha para um massacre.

Apesar da trivial diferença numérica entre os guerreiros de ambos os


lados, o batalhão de Segunta não recobrara o pleno vigor, e a performance
suicida dos belladorants, aliada à vantagem aérea, pesava como fator
terrivelmente relevante. Muitos guerreiros considerados heróis de Alfanat
morriam ali, deixando os seus legados para uma nova leva de campeões
que certamente surgiria, se eles triunfassem sobre aquela tenebrosa
adversidade.

Em meio a toda violência que ocorria na batalha, uma figura exacerbada


se erguia. Era enorme, mais de três metros de altura. O seu bater de asas era
assustador, pois fazia tremular a pouca vegetação por onde passava. As
quatro lâminas que empunhava, como espadas, dilaceravam inimigos com
facilidade, às vezes, até aliados. Era frenética, rápida e extremamente letal.
Também emitia um som intrigante, único dentre os belladorants.
Comparado aos sonidos dos demais, ele transmitia um aspecto de supra
linguagem. Ao perceber isso, Segunta deixou o posto onde estava lutando e
correu em direção ao grande guerreiro inimigo. No trajeto, era apoiada,
defendida e chegou a presenciar sacrifícios a seu favor. Os aliados da
princesa sabiam que ela estava tomando alguma atitude cabível, apesar da
ausência de tempo para entenderem do que se tratava. E não importava o
que era, sempre que Segunta se movimentava bruscamente no campo de
batalha, recebia todo o apoio possível, como se ativasse um código
subliminar naturalmente entre os seus.

A simiante foi objetiva. Elevou sua imagem sobre a batalha ao subir em


um rochedo que fazia parte de uma pequena constelação de rochas
proeminentes naquele campo de batalha. Sua posição de destaque logo
atraiu a atenção de inimigos próximos que, ao serem derrotados de forma
afrontosa, concederam à Segunta o desafio que ela almejava.

Drusaxk era o nome daquele que comandava a investida dos belladorants.


Um zangão gigantesco e poderoso. Tão imponente, que a única coisa que
levou Segunta a provocá-lo foi a responsabilidade, já que, àquela altura,
não havia como delegá-la a mais ninguém.

O confronto entre os dois começou, enquanto abaixo deles os exércitos


trocavam golpes em um estardalhaço que misturava metal e o som de
coisas sendo cortadas. Após três esquivas magistrais de Segunta, Drusaxk e
a simiante se encararam numa recíproca análise ameaçadora. As investidas
do zangão foram céleres e fulminantes, um dos seus talentos naturais mais
mortíferos, mas Segunta não era apenas a quarta coroa de Alfanat. Suas
habilidades como guerreira eram tema de muitas canções em seu reino. A
princesa também era estrategista, e por isso atraiu seu adversário para um
local onde pudesse usar todo o seu potencial. Se estivessem no meio da
batalha, seus movimentos inibidos seriam a sua ruína.

Segunta continuou a desafiá-lo. Saltou em uma pedra e depois em outra,


forçando Drusaxk a se mover mais e mais. Ela não desejava um combate
parado, precisava estudar os movimentos do inimigo e encontrar uma
brecha para atacar. O zangão realizou outras investidas, sendo cada uma
delas muito perigosa, pois ele empreendia impulsos abruptos com as asas.
Em nenhuma das ocasiões foi fácil para ela desviar; inclusive, um dos
golpes riscou o seu rosto na diagonal, cegando seu olho esquerdo e
dividindo sua orelha esquerda em duas partes. A princesa não se abalou,
cerrou os dentes, fechou o olho ferido e continuou a conduzir seu oponente
como em uma dança, na qual ela havia errado apenas um passo. Em certa
ocasião, ele atacou furiosamente e Segunta evadiu-se em uma acrobacia
que custaria sua vida, caso sua previsão sobre o próximo golpe de Drusaxk
estivesse errada. Mas não estava. Com uma manobra veloz e precisa, a
simiante obteve uma oportunidade única e, sem perder o ímpeto da ação,
tomou impulso nos pés e saltou para o inimigo, furando sua guarda.
Segunta agarrou-se em Drusaxk, em uma parte do seu peito, onde suas
longas lâminas não alcançavam. A vantagem do zangão era o tamanho e a
capacidade de atacar de longe, mas nada podia fazer contra um abraço tão
calculado como o aplicado por Segunta. Não a tempo dela finalizá-lo. A
princesa cravou suas duas katars no peito do enorme belladorant, abraçou-o
com as pernas por trás e com a espiga em sua cauda esquerda, deu um
golpe doloroso nas mandíbulas afiadas e furiosas que já vinham em
resposta.

Antes que ele soltasse as armas, para usar as mãos contra ela, e antes que
sua cabeça golpeada voltasse para atacá-la, a cauda direita da frenética
guerreira laçou o frágil pescoço de Drusaxk e, em um movimento
extremamente violento, foi puxada em espiral, trucidando-o com suas
lâminas afiadas há pouco. A cabeça do comandante voou ao léu, e seu
corpo caiu de costas sobre suas imensas asas, que já estavam se abrindo.
Ao tombar, Segunta soltou-se e firmou-se nele, aterrissando de pé sobre sua
vítima. O som que o zangão fazia findou ao chegar de sua morte e
imediatamente os belladoronts pararam de lutar.

***

Prímura e seus guerreiros retornavam à Alfanat, após mais uma


campanha. Esta era a quinta sob a liderança do príncipe. E mais uma vez,
havia triunfado e mantido a “não oficial” alcunha de invictos, ao contrário
de Segunta, que precisou abortar duas de suas expedições.

Apesar de crescidos juntos, recebendo praticamente a mesma criação, o


mesmo afeto e atenção, os mesmos testes e punições e o mesmo
treinamento, o tempo acentuou drasticamente uma distância entre os
irmãos. A distância advinda da singularidade, o elemento mais belo e cruel
que o universo tem a nos oferecer. Prímura e Segunta ainda cultivavam
muitas semelhanças e interesses em comum, mas estariam dispostos a
evitar que o distanciamento aumentasse?

– Sejam bem-vindos de volta! – saudou Eveb, a rainha de Alfanat.

Já nas mediações reais, após realizarem todas as atividades pós-retorno,


formais ou não, o príncipe e sua mais leal companhia, Tría, uma simiante
albina, eram recebidos com abraços e beijos de sua majestade, Eveb.

– Retornamos. – Prímura, após beijar a testa de sua mãe.

– Estamos em casa. – sorriu Tría, ao ser abraçada.

– Venham. O rei quer vê-los. – convocou Eveb.

Enquanto caminhavam ao saguão de Calazar, Prímura observava a


movimentação do reino, através das janelas e sacadas, e relembrava que um
dia estivera ali, junto de Segunta e outros, integrando as mais diversas
atividades que só dias de paz poderiam permitir. Recordava-se
principalmente dos jogos, os exercícios lúdicos que amenizavam a dura
rotina imposta por Calazar, seu pai, e que sua pontuação era a mais elevada
em relação à de sua irmã na maioria deles. Era uma pena, pois a guerra lhe
havia negado a oportunidade de oferecer à Segunta o direito de revanche
em muitas daquelas disputas. E a julgar pela situação de Sizitrix, essa
oportunidade nunca mais surgiria.

Mas o lado de fora de Genon não era a única coisa que atraía os olhares
do príncipe. Durante o trajeto, Prímura também percebia que a árvore real
passara por mudanças. Não apenas no aspecto natural, por conta da
desgraça que assolava o mundo, mas no próprio escopo sócio-estrutural.
Havia mobília diferente em alguns lugares, assim como cômodos novos e
ainda mais servos e guardas. Sua mãe, que os guiava ao rei, parecia ser a
única coisa incólume naquele cenário transformado.

– Sejam bem vindos! – Calazar recepcionou, assentado em seu trono, os


três após passarem pelo portal de acesso ao saguão.

Eveb despediu-se de Prímura e Tría, tão logo se retirou. Alegou estar


atarefada com algo importante, mas logo retornaria.

– Seu príncipe retornou. – reverenciou a Majestade.

Calazar sorriu, mas logo se recompôs.

– O vosso retorno me enche de felicidade e orgulho. Estou ansioso para


conversarmos sobre sua campanha.

Com um sinal, o monarca deu a ordem para que os servos preparassem a


mesa real e convocassem os principais oficiais presentes. Em seguida,
levantou-se do trono e desceu até onde Prímura e Tría estavam. Depois de
um abraço em seu filho e um beijo na testa da simiante que o
acompanhava, o rei iniciou uma prosa agradável, cuja finalidade era criar
um primeiro momento pós-retorno. Conversaram superficialmente sobre
alguns assuntos do reino e aleatoriedades interessantes e, por fim, Prímura
e Tría foram dispensados, para que Calazar pudesse dar continuidade às
atividades em turno, antes do encontro que ocorreria logo mais na copa.

Já a sós, numa das altas sacadas da Genon, Prímura e Tría conversavam,


enquanto aguardavam a convocação que poderia durar uma hora ou o dia
inteiro.

– Eu costumava subir aqui com a Segunta, para admirarmos o pôr-do-sol.


Era um lugar secreto. Agora, compõe mais uma das muitas sacadas dessa
árvore. Não sei se fico feliz com isso. – concluiu, num tom que parecia
carregar algum tipo de sentimento de perda.

– Você me contou muitas dessas histórias. De como você e Segunta


passavam o tempo. Às vezes, eu acho que você ainda é aquele
simiantizinho. – riu graciosamente.

– Não diga besteiras. – Prímura soltou um riso tímido e sincero. – O que


eu quis dizer é que Alfanat está diferente e que não sei se essa mudança me
agrada.

– Diferente em que sentido? A mudança é um elemento natural na linha


do tempo. Nem mesmo nós somos iguais ao que éramos ontem. – dirigiu o
olhar para ele, convidando-o para um contato visual. E Prímura respondeu,
como fazia com Segunta no passado.

Díspares dos rubis que a princesa de Alfanat carregava, os olhos de Tría


eram claros. Seguindo a mesma analogia, lembravam diamantes celestes,
tão puros quanto o gelo virgem que se forma nos mais recônditos ermos
glaciais. Sua beleza ímpar entre a espécie simiante era fruto do albinismo
que concedia à Tría uma pele muito delicada e clara, além de pelos tão
alvos quanto a neve.

– Diferente no sentido de estranheza. O meu pai, a minha mãe. Alfanat


parece outro lugar. Não me sinto mais em casa aqui. E não venha me dizer
que essa sensação é causada pela ausência da Segunta, pois você sabe que a
presença dela não mudaria esse quadro em nada.

– Talvez a estranheza esteja em você. – desviou o olhar. – Não se sente


estranho, Prímura? Não há algo te incomodando além dessa guerra?

Tría levantou-se de onde estava sentada. Caminhou calmamente e depois


realizou uma série de saltos na arquitetura do andar, até finalmente chegar
aos ombros de uma estátua, esculpida em uma protuberância da própria
madeira do galho onde estavam. Era um guerreiro simiante, um símbolo do
poder de Alfanat. A escultura estava nos limites daquele lugar, à beira de
uma queda de centenas de metros de altura. A companheira de Prímura
voltou a encará-lo.

– Tría, cuidado! – alertou-a.

– Sabe me responder onde começa e termina o simiante? – interpelou-o,


num tom enigmático.

– Depende. De que simiante você está falando?


Para qualquer um era facilmente compreensível que Tría estivesse se
referindo à escultura na qual ela estava apoiada, mas Prímura a conhecia
como ninguém e sabia que os questionamentos da albina eram mais
filosóficos do que literais. O simiante, sobre o qual ela se referia, poderia
ser ele, ou uma figura genérica do campo das ideias, ou, de fato, o guerreiro
esculpido na árvore. O objeto e o objetivo da questão sempre dependiam do
interesse de Tría. E ao jogar os jogos dela, o príncipe precisava ter isso em
mente.

– Humpf! Você se especializou em responder perguntas utilizando outras


perguntas.

– E, você, formular questões subjetivas demais.

Tría desceu da estátua e passou a mão por ela, indo em direção à sua
base.

– Apesar da exímia habilidade do escultor, os pés do guerreiro não foram


feitos. Isso sim é estranho, se considerarmos que os simiantes sempre
buscam terminar o que começam, mesmo que a morte seja parte do
processo. Você me falou sobre estranheza agora há pouco, mas não
conseguiu avançar mais do que isso. Sabe, Prímura, tu és como esse
guerreiro. Está unido à realidade e por isso não percebe os limites que
separam as coisas. – fez uma pausa, como se estivesse decidindo se devia
ou não prosseguir. Uma pausa longa e gesticular o suficiente para que
Prímura pudesse perceber o motivo dela, e curta o bastante para o assunto
não esfriar. – Mas isso pode mudar e eu posso te ajudar. Você só precisa
acordar, ou permitir que eu te acorde.

O tom divertido e carinhoso, costumeiro para com o príncipe, não foi


utilizado nestas últimas frases. Ao invés disso, um timbre mais austero,
quase sisudo, foi a escolha da locutora.

As palavras da simiante cor de neve penetraram na carne de Prímura


como milhares de agulhas gélidas. Imóvel, o príncipe sentiu seu corpo
formigar numa reação adversa, proveniente do fato de sua mente ter que
assimilar aquelas alegações tão mirabolantes, quase delirantes, mas que
partiam de alguém que possuía uma sabedoria sem-par em Alfanat, maior
até que a do grande ancião. Sim, a aparência de Tría nem de longe era
extraordinária defronte ao intelecto.

Poderia ser só mais uma das brincadeiras dela, mas a forma como ela
vinha construindo essa narrativa em doses homeopáticas, lançando
declarações muitas vezes avulsas e enigmáticas demais, fizeram com que,
dessa vez, a mente de Prímura as juntasse como um quebra-cabeças.
– Despertar? Do quê? – interpelou, no mesmo tom.

– De algo mais perigoso que o sono. – respondeu-o, indo em sua direção.

– Só por um momento, poderia ser menos emblemática?

– Apesar de me encontrar neste mundo, não pertenço a ele. Não consigo


ser tão literal.

Prímura deixou escapar um riso incompleto, torto.

– Às vezes me pego questionando sua sanidade, mas confesso que não


passam de breves momentos que logo são tragados pelas lembranças de
suas demonstrações de sensatez e gnose. Me impeça de voltar a questionar.

– A verdade está aqui, do lado de fora. Você a tinha. Você finalmente


havia cruzado a linha que poucos no universo cruzaram. Mas escolheu
voltar para dentro. Rejeitou esse poder, por causa de orgulho e de um jogo
perigoso que se propôs a jogar.

– Verdade? Linha? Orgulho? Jogo?

– Sim. Uma combinação perigosa, Prímura.

O silêncio instalou-se, mesmo que por um instante. O assunto parecia ter


chegado num ponto delicado demais para ser levado adiante
imprudentemente, pois nem Prímura, nem Tría, eram indivíduos levianos.
Neste breve momento, o príncipe colocou-se a pensar a respeito das coisas
que ouvira e logo sua mente fora arrastada por um turbilhão, fruto do
embate entre os pensamentos nebulosos e iluminados, que coexistiam nela.
Já a simiante, por sua vez, passeou por perto dele, sentou-se e aguardou,
cultivando um intrigante semblante de expectativa.

– Senhor Prímura. Senhora Tría. – avocou um dos guardas. – Perdoem-


me a intromissão. Mas a vossa Majestade, o rei Calazar, os chama.

Prímura cerrou o punho, pois o guarda irrompeu no exato momento em


que ele daria continuidade com Tría.

– Retomamos logo após a reunião. – disse a ela, num tom quase


autoritário. Em seguida, correspondeu ao chamado do soldado e logo foi
seguido por sua companheira.

***

Dizem que a Floresta de Dendrarah, um dia, foi um pequeno bosque, e


que os insignes elfos que a tomaram, no início das eras, cultivaram-na até a
transformarem na maior e mais selvática das fortalezas de Sizytrix. O lugar
tornou-se afamado por abrigar toda sorte de ameaças indômitas em suas
entranhas, oriundas de criações élficas ou de migrações de criaturas.

Na parte central desse perigoso território, ergue-se a capital dos elfos


dendrarianos, Wivnar. Uma cidade inteiramente edificada em pedra polida
e metais refinados. Monumento da arquitetura élfica cuja planta foi
importada pela primeira geração, a que chegou à Sizytrix, e precisou de
quatrocentos anos para ser finalizada, pois seguiu fielmente o seu projeto
glorioso.

Jardins de plantas únicas e rios cristalinos permeiam a estrutura


egocêntrica da cidade. Pontes cobertas ligam casernas e edifícios de
importância. E doze torres cilíndricas coroadas por salões abertos
circundam o seu reduto mais ilustre, o castelo, morada da rainha imortal,
Yelumena. A capital nunca visitada por outro povo resguarda-se atrás de
altas e maciças muralhas de rocha, e mantém um exército, aparentemente
desnecessário, guardando-a em guaritas e passarelas militares.

A socialização dos dendrarianos em relação aos demais povos sempre


partiu de sua iniciativa de visitá-los, e não da possibilidade do oposto. A
floresta é tão intimidadora que, mesmo após o processo de mortificação do
planeta e a consequente diminuição dos recursos naturais que deu início à
guerra, nenhuma nação ousou tocá-la, ainda que sua vitalidade permanece
acima da média dos outros lugares e oferecesse muitas riquezas vitais à
sobrevivência. Aparentemente, os elfos de Dendrarah estavam numa
condição privilegiada naquele cenário belicoso, pois resguardavam abrigo,
defesas e mantimentos.

Contudo, os senhores da citada floresta não dormiam em paz, sabiam que


o mundo era grande demais para que sua casa permanecesse intacta até o
fim daquela era. Mas antes fosse a guerra a única preocupação que lhes
tirasse o sono.

– Outra vez? – perguntou o comandante ao seu imediato, que trazia


consigo algo enrolado num lenço.

– É a quarta vez que isso acontece em menos de uma trezena, senhor


comandante.

Em Wivnar, o comandante da cidade, Mhaena, fora solicitado novamente


naquele dia. Outra vez, pela tropa de expedição.

Mhaena apanhou o embrulho e o desenrolou. Era um braço de um elfo.


– Por Zvar!… – exclamou um dos soldados que acompanhavam o
comandante.

– A forma com a qual ele foi decepado é muito semelhante a outros


membros encontrados recentemente. É um padrão. Mas quem poderia ter
feito isso?

– Não há indícios de invasão externa na floresta, senhor. – um


expedicionário descartou tal hipótese.

– Poderia ser um novo predador? Sabemos que as espécies da floresta


vêm evoluindo desde sua formação. – supôs outro guerreiro presente.

– Vamos descobrir. – Rixir surgiu inusitadamente naquela pequena


comissão. – Reúna dez dos seus melhores elfos, comandante Mhaena.
Vamos em busca desse monstro. – ordenou.

Todos os presentes realizaram a ritualística saudação à princesa-regente


no instante de sua aparição. O ato consistia em desembainhar a espada à
metade e a devolver à bainha em velocidade extrema. Os elfos mais
habilidosos faziam sem floreios. A saudação significava prontidão e
lealdade.

– Farei neste momento, minha senhora. – acatou o comandante.

– Quando tudo estiver preparado, me envie um chamado. – Rixir retirou-


se tão austera quanto surgira. Parecia profundamente incomodada com toda
aquela situação.

Os momentos seguintes foram dedicados à discussão daquele assunto e à


preparação da missão, enquanto aguardavam as convocações
extraordinárias realizadas pelo comandante. Aos poucos, os convocados,
originários de suas casas ou de postos especiais, iam constituindo uma
seleta e ilustre equipe. Ao todo, foram necessárias aproximadamente oito
horas para que todos os nomes invocados surgissem ali. Então, a princesa
foi chamada.

– Aqui estão, minha senhora. Os melhores que eu já tive a honra de ter


sob o meu comando ou de combater lado a lado.

Apesar de milenar, Rixir não conhecia a todos ali, pois Dendrarah era tão
vasta e diversa, tão profunda e expandida em suas raízes, que a princesa
não vivenciou todos os contextos, apesar de buscar sempre estar a par de
todos os acontecimentos no reino.
– E quem são estes que trouxestes à minha presença? – indagou
respeitosamente.

Mhaena puxou um pouco de ar nos pulmões:

– Dessiu, da Casa Timar. Tem a força de vinte elfos e a agilidade de uma


serpente. Sua mãe o alimentava com leite extraído das nozes de castanha-
do-céu, sementes já extintas pela mácula que assalta nosso mundo;
Anaphalon, o Encantador de Lâminas. As armas produzidas por ele são
capazes de cortar a matéria em nível molecular; Morderii, a Bebe-Seiva.
Uma dos Imortais, grupo que a senhora integra; Liatris, da antiga Casa
Imaculada Ajandjin. Liatris é uma atiradora como nunca conheci em mais
de oitocentas primaveras de vida; Raxta’alu, a Silenciosa. O mais furtivo
vulto de Dendrarah. A senhora a encarregou de missões temerárias de
infiltração em outros reinos, como Alfanat, por exemplo; Egyon, o Terceiro
de Seu Nome, da linhagem perdida dos Taulls. De todos os convocados,
aquele com maior experiência em lutas; Glóia, Filha da Alvorada. Da casa
dos Alvém. Sua aura graciosa e o seu aroma são capazes de acalmar as
plantas e os animais. É sabido que as frutas que os Alvém cultivam são as
mais saborosas em Dendrarah. Graças à espiritualidade ancestral que eles
possuem; Faelaem, uma veterana médica de batalha, isso para ser modesto.
Essa elfa foi responsável por garantir que a saga de muitos heróis de
Dendrarah perpetuasse por séculos, livrando-os da morte certa. Ninguém
vivo conhece mais remédios e venenos, ou mais infecções e doenças, do
que ela. É a elfa mais antiga dentre nós; Irunne, o mais jovem dentre os
convocados. Está aqui por ser um prodígio em tudo o que se dispõe a fazer.
Essa missão pode servir para amadurecer suas habilidades. Gostaria que
considerasse essa escolha, minha senhora; E por último, Araluna, a
Domadora de Bestas. A senhora já deve conhecer sua fama. Araluna é uma
druida poderosa, capaz de se comunicar com os animais e realizar pactos de
sangue com eles. Há milhares de criaturas nessa floresta que respondem
diretamente à Araluna. Um número desconhecido até para ela. Mas a sua
habilidade mais poderosa é, com certeza, a metamorfose. Araluna pode se
transformar em qualquer criatura que compartilhe um pacto de sangue com
ela. E esses são os dez que me pedistes, princesa Rixir. Todos são especiais
ou especializados em algo útil e nenhum deles é particularmente ruim nas
coisas que não mencionei em suas respectivas descrições. Se houver uma
batalha, por exemplo, teremos dez incríveis guerreiros ao nosso lado.

Os elfos apresentados por Mhaena eram figuras consagradas no reino.


Desde o gigante Dessiu, que media mais de dois metros, ao jovem Irunne,
com seus modestos cento e trinta e um anos.
– Magnífico! Vocês me honram, honram a rainha e a Dendrarah. –
proferiu Rixir. – A partir de agora, formaremos um grêmio especial.
Seremos responsáveis por lidar com essa ameaça estranha em nossa
floresta. E lidaremos! – completou.

– A honra é nossa, princesa-regente. – disse o comandante. – Todos aqui


já estão prontos para partir. Aguardamos sua ordem.

– Pois, então, não joguemos mais tempo fora. Vamos discutir os detalhes
e partir logo em seguida.

Capítulo 4 - O Sonhador e a Salvadora

E stamos novamente em Avel. Um mundo bem diferente se


comparado a Sizytrix.

Enquanto aquele ruinoso simulacro de paraíso abriga apenas espécies de


primordiais, Avel é bem mais diverso, pois hospeda tanto primordiais,
quanto mortais, embora essa última casta existencial constitui a majoritária
população do planeta.

A história de Avel remonta a mais tempo do que o solitário milênio de


Sizytrix. O calendário pode até marcar o ano 1310 d.El, mas é sabido que
existe um imenso período antes disso. Entretanto, devido a diversos
eventos que prejudicaram os principais registros históricos, essa medida de
tempo vem tornando-se cada vez mais nebulosa e esquecida,
impossibilitando precisar a idade desse lugar.

Outra disparidade entre esses dois mundos é a presença de quebradores


de realidades. No planeta dos primordiais, eles não passam de lendas e
mitos. Mas aqui, a iminência de suas manifestações faz parte do consciente
coletivo.

***

Era de manhã.

A pacata cidadezinha de Bucarrá tornou-se gradativamente agitada, à


medida que um garoto muito incomum nela crescia.
– Veja o que você fez! – gritou o velho Kob. Um pequeno agricultor que
acabara de chegar na cidade para vender parte de sua colheita.

O berro não foi desarrazoado. Mal chegara em Bucarrá e, subitamente,


quando ainda estava nos primeiros cem metros da cidade, o seu cavalo, que
puxava a carroça cheia de frutas e legumes, foi ao chão. Caiu derrubado por
alguma coisa que arrancou uma de suas patas dianteiras. A carroça tombou,
levando Kob e suas coisas a rolarem pelo chão áspero e firme daquela rua.

A situação, de tão inusitada, quebrou a letargia cotidiana daquele


sossegado lugar. Mas o seu impacto só não foi maior porque os habitantes
de Bucarrá já estavam começando a se acostumar pouco a pouco com
incidentes do tipo. Graças ao “garoto amaldiçoado”.

Vincent congelou diante daquela situação. Suas pernas, que há pouco


corriam em velozes movimentos, agora jaziam duras, assim como sua
espinha, que enrijecia todo o corpo. Seus olhos alternavam entre o cavalo
ferido e o homem que gritava, enfurecido, enquanto os cantos percebiam
aglomerações se formando em volta. A cada relincho do animal, a cada
berro do velho, mais e mais pessoas apareciam. Elas vinham de todos os
lugares e eram de todas as idades.

– Por El, Vincent! O que você fez? – perguntou um de seus companheiros


de rua. A voz surgia por suas costas e lhe soou muito incômoda. Era a voz
de quem tinha proposto a brincadeira que levou àquilo.

Minutos atrás, Vincent saira para brincar com alguns garotos da rua. Na
maioria das vezes, as atividades praticadas em grupo eram de cunho
temerário, afinal, estamos falando de pré-adolescentes. Vincent tinha 11
anos, seu amigo Jaf, 12, e os demais garotos contavam entre 10 e 13. A
exceção era Norlei, o “Líder da Rua”, que tinha 14 e quase sempre era
quem inventava e dirigia as brincadeiras em grupo. E depois que descobriu
que Vincent tinha poderes sobrenaturais, as atividades tornaram-se cada
vez mais perigosas.

O incidente envolvendo o velho Kob e seu cavalo foi consequência de um


dos entretenimentos arquitetados por Norlei. Há dias que ele convencia
Vincent a praticar tiro ao alvo. Desde então, a cada manhã, os garotos iam a
um beco nos limites da cidade, para verem Vincent destruir objetos com
uma luz azul celeste que saía de sua mão. Os objetos precisavam estar no
chão, pois, em caso de tiros errados, ninguém sairia ferido, uma vez que
havia um buraco onde a luz acertava.

Depois de alguns dias nessa rotina, Vincent já acertava objetos bem


pequenos, e a brincadeira já não era mais tão interessante. Foi quando
Norlei teve a ideia de levar um rato para o beco. Um grande e forte rato.
Ele o havia capturado de alguma forma e o levou em um tipo de gaiola. O
jogo naquele dia era simples: matar o rato. Mas havia um fator diferente
naquele desafio: Norlei iria liberar o animal e Vincent teria de matá-lo em
movimento. A ideia era muito estúpida, eu sei, mas tente convencer uma
turma de garotos do contrário... Foi o que Jaf fez. E fracassou.

O rato foi solto e passou a andar pelo beco, desconfiado. Vincent


arrancou o seu rabo no primeiro tiro e, antes que disparasse o segundo, a
pequena criatura já estava na rua, correndo em saltos reativos e assustados.
Os garotos gritavam entusiasmados e isso, de alguma forma, excitou
Vincent. As pernas do atirador se movimentaram sozinhas e o levaram a
perseguir aquele alvo. Sua mente esvaiu-se, restando apenas a ânsia de que
ele deveria terminar aquele jogo. Só assim todos ficariam satisfeitos e a
aprovação que ele tanto buscava no grupo estaria ainda mais próxima.

A perseguição foi breve. Vincent atirou duas vezes, ambas com uma
precisão suficiente para manter os ânimos de seus companheiros em alta.
Tudo foi muito rápido. Os adultos não tiveram tempo de assimilação. Os
olhos do garoto estavam tão fixados no seu objetivo, que ele nem percebera
que o rato correu pela frente de uma carroça. Ao disparar o terceiro tiro,
que ele acreditava piamente que iria acertar, atingiu a pata de um cavalo
que passava. Mais especificamente, na primeira falange. O lugar foi
arrancado, e o animal desmoronou, levando a carroça e seu condutor,
numa sinfonia trágica que sobrepujou os gritos da garotada. Vincent foi
tragado para a realidade em um espasmo terrível de arrependimento.
Congelou em frente à cena e viu o velho Kob rolando pelo chão, antes de
se erguer todo ralado e imensamente furioso.

Não demorou para que os gritos do velho inflamassem as pessoas. Pouco


a pouco, aqueles que já alimentavam amargamente o boato do garoto
amaldiçoado, instigaram uma revolta contra ele. Começaram a gritar
xingamentos e frases de repúdio, radicalizando o incidente. No meio dessa
confusão, pessoas murmuravam calorosamente sobre o fato e, quanto mais
tempo passava, mais aquilo se tornava desagradável para muitos dali.

Vincent ainda tentou se explicar. Mas sua voz foi abafada por aquele
furdunço. A multidão queria uma resolução que saciasse a estranha sede de
justiça aflorada ali, no calor do momento. Almejavam um desfecho para o
acontecimento que ceifou suas atenções. Gostariam de voltar satisfeitos
para suas rotinas, para comentarem o ocorrido durante o restante do dia.
Não estavam realmente preocupados com o velho e o cavalo. Não era
relevante de fato. O importante era fazer algo em relação ao garoto, aos
boatos bizarros que o rodeavam. Ele não se encaixava ali, era só mais uma
individualidade que precisava ser esmagada pelo bem da maioria.

Talvez pareça exagero, mas aquelas pessoas queriam o garoto morto.

***

Não havia nada de especial naquela manhã.

O mercado de Bucarrá estava aberto. Era um conglomerado de barracos


de pedra e madeira, um pouco mais sofisticado do que uma feira livre,
localizado na parte central da cidade, como se ela tivesse sido construída ao
redor. Os comerciantes tinham cada qual o seu próprio lugar e uma
variedade exclusiva de mercadorias, atuando como pequenos monopólios
locais. Nasciam e cresciam ali mesmo, em Bucarrá, e quase sempre
trabalhavam da infância à morte, como se sua missão existencial fosse
apenas deixar aquele legado para suas respectivas linhagens.

Funcionando da alvorada ao pôr-do-sol, os mercantes dali acumulavam


riquezas, habilidades e experiências ao longo de gerações. A cada ano, o
mercado ficava mais organizado e atrativo, embora sua crescente
prosperidade não seja o suficiente para anular a atmosfera improvisada,
muito comum para comerciantes de rua.

Naquele dia nada especial, o mercado estava agitado. Uma caravana que
passava aproveitou a oportunidade para suprir demandas pontuais. Os
comerciantes e seus ajudantes transitavam apressados pelos seus barracos,
atendendo prontamente a cada cliente. E, como de praxe, havia todo o tipo,
dos curiosos que não compram nada e tomam muito tempo, aos
compulsivos e exagerados, que compensam o tempo gasto com os curiosos.
E no meio desse redemoinho de pessoas, um comerciante veterano
trabalhava movido por uma obstinação ímpar. Seu nome era Jockar
Ecsavz.

– Aqui está o seu troco. – disse Jockar, ao entregar algumas peças


metálicas na mão de um cliente.

– Senhor Ecsavz? – perguntou uma doce voz no balcão.

Olhando rapidamente para a direção do som, o homem não conseguiu


identificar quem o chamara, mas logo percebeu uma figura encapuzada
olhando fixamente para ele. Pelo pouco que se podia ver do rosto, por
baixo daquele capuz escuro, era presumível que fosse uma mulher e,
quando a viu, Jockar sentiu certeza de que o chamado vira dela.

– Em que posso ajudá-la? – indagou.


A figura estendeu uma de suas mãos à frente e colocou sutilmente sobre o
balcão uma belíssima moeda dourada.

– O senhor teria alguma coisa pra mim? – num tom retórico.

Jockar pegou a moeda e olhou fixamente para ela. Era o que costumavam
chamar de moeda-brasão. E essa era especialmente específica, Jockar a
conheceu por meio de livros. Um objeto quase mitológico. Prontamente, o
homem abriu a pequena porta que havia no balcão e convidou a figura
encapuzada para entrar. Então, ele fez um sinal para que ela o seguisse e se
dirigiu para os fundos do comércio. Ao saírem, o negociante delegou o seu
posto para um de seus ajudantes.

Já nos fundos, fora da presença das pessoas, Jockar se vira para sua
convidada e diz:

– Talvez eu tenha.

A figura, então, jogou o capuz para trás e revelou o rosto de uma jovem
mulher que aparentava ter idade para ser filha de Jockar. Era um belo
semblante, cabelos e olhos negros sobre uma pele muito clara. O sorriso
parecia prestes a surgir, mas, apesar de toda graciosidade, a postura por
dentro do manto marrom era extremamente firme e circunspecta, como se
estivesse preparada para o imprevisível.

– Me chamo Selene. Pertenço à Ordem dos Protetores de Avel e estou


aqui por causa das cartas que enviastes para a ordem. – formalmente.

– É uma honra e um prazer conhecê-la, Selene. – Jockar pousou a mão


direita no peito e fez um gesto com a cabeça.

– Sua mão esquerda, posso vê-la? – pediu.

O velho comerciante a observou por mais dois segundos, percebendo que


por baixo daquele manto escuro havia uma vestimenta capaz de confirmar a
apresentação dela. Era um tecido verde, a cor utilizada pelos membros da
Ordem dos Protetores de Avel. Não era como se Jockar estivesse
desconfiando, afinal, ela já tinha provado sua procedência ao dá-lo a
moeda-brasão. Mas aquela breve observação proporcionou ainda mais
conforto. O homem, então, mostrou a ela sua mão esquerda, que estava
enfaixada, ferida há uma semana, durante uma tarefa utilizando uma faca
muito afiada.

Selene tomou gentilmente a mão do homem e a segurou entre suas duas


mãos. O gesto provocou uma sensação de carinho que ele há tempos não
sentia. Por um instante, uma luz quente saiu por entre as frestas daquela
união, aquecendo a mão e o coração do mercador. Foi um momento
efêmero, mas suficiente para acender a centelha de esperança que jazia
morta nos confins escuros e frios daquela casca ambulante chamada Jockar
Ecsavz. Então, a mulher recolheu suas mãos e aguardou, em um silêncio
típico dos servos.

– Já faz uns dez anos. – riu. – Dez anos que envio cartas para a ordem.
Agradeço por ter vindo, senhorita Selene. Agradeço por ter sarado a ferida
da minha mão. – agradeceu, emocionado.

– Por mais que a ordem esteja ocupada com a sua missão, dez anos sem
ao menos uma resposta negativa é algo injusto e devastador. Em nome da
ordem, sinceras desculpas.

– Tudo bem. Eu sabia que esse dia chegaria. Sabia que vocês tinham seus
motivos. – disse, radiante. – Mas indo ao que interessa, irei levá-la ao meu
filho.

– Eu agradeço, senhor Ecsavz.

Dirigiram-se para a casa do comerciante. No trajeto, Jockar fez alguns


elogios à ordem e mencionou histórias que conhecia. Mas o homem
percebera que Selene estava disfarçada e que, provavelmente, viajava junto
àquela caravana que fazia compras no mercado; então, ele empregou um
passo apressado para não tomar muito do tempo daquela mulher. Chegando
na residência dos Ecsavz, Jockar logo perguntou aos servos sobre Vincent.

– Trancou-se no quarto, meu senhor. Disse que iria estudar os livros


novos que compraste para ele. – respondeu a caseira chefe.

– Muito bem! Então siga-me, Selene. – convidou Jockar.

Ambos entraram na casa, seguidos pelos olhares curiosos das servas. Era
uma situação estranhamente atípica. Mas, tratando-se de Vincent, quase
nada era normal.

Chegando na porta do quarto do garoto, o pai o chamou:

– Vincent! Filho, venha aqui.

Nenhum som saía dos aposentos do menino. O pai tornou a chamá-lo e


bateu na porta, na esperança de que ele estivesse dormindo. Mas
novamente a resposta foi o silêncio.

– Ele não está aí. Posso sentir. – disse Selene.


Jockar deu uma leve suspirada.

– Eu ordenei que ele não saísse mais. Ele deve estar no porão. Me
acompanhe.

Desceram para a parte inferior do casarão, logo chegando à porta do


porão. E novamente Jockar chamou pelo filho e não foi respondido.

– Ele também não está aí.

Jockar passou a mão na cabeça, num gesto de clara frustração.

– Ele é um bom menino, mas muito difícil de controlar. É cheio de


sonhos e esperteza, por isso, não para quieto. Isso não seria um problema,
se não fosse por aquilo que mencionei nas cartas: ele tem um tipo de poder
estranho e as pessoas da cidade não gostam muito dele. Ele sai buscando
fazer amigos, mas sempre acaba aprontando algo. Por favor, Selene, me
ajude. – desabafou, pesaroso.

Jockar amava Vincent, mas provavelmente ele fosse o único em Bucarrá.


Por esse motivo, abriria mão da companhia de seu filho, se houvesse um
lugar onde ele pudesse ser aceito.

– Não se aflija, senhor Ecsavz, vamos resolver essa situação. – acalentou,


num tom carregado de gentileza e compassividade.

Os dois retornaram para a frente da casa, onde, por ordem de Jockar,


havia dois cavalos selados, pois suas servas prepararam enquanto ele e
Selene estavam dentro da casa.

– Acabei de ordenar a um dos meus servos que atrasasse a partida da


caravana, por meios lícitos e agradáveis aos viajantes; dessa forma, teremos
um pouco mais de tempo para procurar pelo Vincent.

– Não precisava se preocupar. Não é como se eu só pudesse viajar


sorrateiramente. Se a caravana partir, não há problemas.

– Agora já é tarde. – riu. – Pelo menos iremos preservar o seu


planejamento original. Não tem como isso não ser bom. – recomendou, em
tom amigável.

– Agradeço a diligência. – acenou com a cabeça.

Quando estavam para montar nos cavalos, Jockar desistiu subitamente e


dirigiu-se apressado para dentro do casarão.

– Espere um pouco, senhorita Selene. Eu não demoro. – disse ao sair.


E, realmente, Jockar foi ágil e objetivo. Moveu-se até seu quarto e pegou
uma pequena espada embainhada. Prendeu-na em seu cinto e retornou. Mas
quando chegou na frente de sua casa, só havia um cavalo. Selene e seu
outro animal já não estavam mais lá.

***

Vincent estava cercado.

As pessoas gritavam e se embebedavam de insanidade. Àquela altura, a


turba sanguinolenta já não se contentaria em ir embora sem um tributo de
sangue.

– Vincent, você precisa sair daqui. – alertou Jaf, seu amigo.

– Não consigo. As pessoas não me deixariam passar. – disse, ofegante.


Estava entrando em pânico. As lágrimas já chegavam aos olhos.

No meio daquele mar, algumas pessoas intercediam. Alertavam sobre a


loucura que estava prestes a acontecer. Diziam que Vincent era filho de
Jockar, do mercado, e que ele poderia pagar um novo cavalo. Mas as
superstições a respeito do garoto eram tão fortes que aquela pequena
comunidade desequilibrada e ignorante não poderia suportar.

Muitos começaram a gritar “Vai embora! Vai embora!”, então, Vincent,


por mais que estivesse apavorado, sentiu uma ponta de esperança de que o
deixariam ir. Sem hesitar, partiu na direção que levava à sua casa. Quando
se aproximou do muro de pessoas, a fim de passar por entre elas, recebeu
um forte chute que o compeliu de volta ao círculo. Em seguida, ouviu um
grito lançado da direção do golpe: “Não vai escapar!”. O ataque foi forte,
mas nem de longe se comparava com o desespero que, ao eclodir, quebrou
a mente de Vincent. Todas as células do seu corpo diziam que ele iria
morrer.

– PAI! SOCORRO! – suplicou, desolado.

A pancada que o garoto recebeu excitou os mais impiedosos, como o


sangue em água de predadores. Não demorou, um deles atirou uma pedra
em Vincent. A mesma acertou bem nas costelas do garoto. O barulho foi
sutil, mas talvez o ataque tenha fragmentado uma delas. A criança deu um
grito, Jaf também gritou, desesperado, e começou a implorar para que não o
fizessem. Mas era tarde. Depois da primeira pedrada, o sentimento da culpa
do homicídio começou a ser dividido gradativamente entre os algozes. A
cada tiro acertado, menos escrúpulos sobram para os demais atiradores.
Pelo menos, é assim que a humanidade costuma agir. São raras as vezes
que um linchamento começa e não termina. E, apesar de Bucarrá ter
presenciado poucos, nenhum deles foi interrompido. O ritual estava
iniciado e deveria ser concluído.

Por razão da concentração da maioria dos executores em um dos lados


daquele cerco, o lado oposto se dispersou, por conta do número de objetos
que voavam em sua direção. Vincent, que recebia alguns ataques e se
esquivava como podia de outros, enxergou, na abertura que surgiu, o seu
caminho de fuga. Então, partiu em direção à saída, enquanto protegia a
cabeça com os braços. Sua reação foi tão rápida, que ele conseguiu sair do
meio daquela turba sanguinária. Se tivesse demorado mais para correr, teria
sido impedido novamente, pois, algumas pessoas que se dispersaram,
voltaram para atrapalhá-lo. Mas embora estivesse fora do círculo, o garoto
ainda encontrava-se ao alcance dos perversos atiradores, que corriam atrás
dele, enquanto a multidão agourenta acompanhava, ávida pelo desfecho
funesto.

Vincent era uma criança de 11 anos, já estava cansado de brincar com os


garotos da rua e também já havia sido ferido por algumas pedradas. Ele não
conseguiria escapar de adultos motivados pela insanidade. Era só questão
de tempo, pouco tempo.

Mais algumas pedradas acertaram o garoto. Uma delas, bem grande, na


parte de trás do joelho. Vincent tombou. Na queda, sentiu seus braços
ralarem, e ouviu objetos passando, zumbindo por cima de sua cabeça,
pedras que provavelmente o acertariam caso ele não tivesse caído. Mas,
uma vez no chão, sua morte havia chego. Era o fim. As pedras começaram
a acertá-lo. Uma a uma, elas foram machucando e cortando a sua carne,
quebrando os seus ossos e estourando seu interior. A dor era dilacerante.
Ele não conseguia pensar em nada. Apenas sentira dor. Nada de
pensamentos como “a vida passando em seus olhos”. Só a dor. Sequer
conseguia pensar em seu amado pai; nem em sua mãe, cuja morte ocorreu
no parto, deixando um legado amaldiçoado para ele. Só a dor. Só ela
ocupava a sua mente, até que ela se apagou.

– PAREM COM ISSO! – gritou uma voz exasperada e potente. Tão forte,
que o seu som era como trovão de uma tempestade furiosa.

Uma mulher surgiu galopando em um cavalo. Ela jogou o animal contra a


multidão, descendo dele com rapidez. Algumas pessoas se acovardaram,
mas houve um novo levante:

– Uma bruxa! Matem ela!


A mulher passou a receber todo tipo de ataque. Primeiro, chutes e socos
para empurrá-la para perto do garoto que jazia no chão. Depois, pedras e
paus foram lançados com mais ferocidade do que usaram com Vincent.
Afinal, ela era uma bruxa, não era momento de brincar. Selene recebeu
cada ataque. Não revidou, nem se esquivou. A única coisa que fez foi
colocar o seu corpo sobre o de Vincent e o proteger como uma armadura.
Muitos objetos alvejaram de forma colérica o corpo daquela mulher, mais
do que o suficiente para matá-la. Ora essa, a quantidade de paus e pedras e
o empenho com o qual eles foram arremessados seria suficiente para matar
o cavalo que trouxe Selene ali. Quando perceberam que o corpo da mulher
não se mexia dentro daquele manto, pararam.

Um quase silêncio se formou, as pedras, que ainda estavam em mãos,


caíram ao chão. O povo fitou, atônito o corpo da mulher. Após o término
do ataque, as pessoas queriam saber o desenrolar dos fatos. Alguém
apanharia os corpos para levá-los aos seus entes queridos? Vincent era filho
de Jockar, mas e aquela mulher? O momento se dissolveu; um misto de
satisfação e arrependimento. De medo também. Algumas pessoas
começaram a se dispersar, pois já não queriam se associar àquilo. Mas a rua
ficou interditada com o corpo da jovem, além de paus e pedras espalhados
por um bom espaço. De repente, surge um trote pesado: era Jockar
montado em um de seus cavalos. Em silêncio, o homem se aproxima do
corpo da mulher, descrente.

Um turbilhão de sensações devastou o seu peito. Seu lábio inferior


tremeu uma vez e seus olhos marejaram levemente. O mercador desceu do
cavalo enquanto todos contemplavam a cena, agora, no mais absoluto
silêncio. Até das janelas algumas pessoas observavam.

Quando o homem aproximou-se de Selene, ela começou a se levantar


com certa facilidade. O velho brecou e esperou a mulher se erguer diante
dos seus olhos. Ao firmar-se totalmente de pé, ele conseguiu ver o corpo de
Vincent no chão e percebeu que ela o estava escondendo.

– O quê… o que aconteceu aqui, Selene? – perguntou, desorientado. Em


seguida, correu e acolheu Vincent em seus braços, cuidadosamente, pois
percebeu que ele estava todo ensanguentado.

– Está tudo bem agora, senhor Ecsavz. – respondeu Selene, olhando para
as pessoas.

– Como assim, tudo bem? Você está sangrando, e o Vincent está aqui,
desacor… – foi interrompido.
– Está tudo bem, senhor Ecsavz. – repetiu. Dessa vez, retornando o olhar
para o pai do garoto – Está tudo bem. – sorriu.

De alguma forma, Jockar tranquilizou-se. Algo importante dentro dele foi


convencido pelas palavras de Selene. Elas não eram levianamente doces,
havia uma convicção rígida como o aço no som que saía da boca daquela
mulher. Vincent começou a abrir os olhos no colo de seu pai, ao som de
“Bruxa! Bruxa!”. Estava confuso, pois a última coisa de que se lembrava
era de sua morte e da imensa dor e desespero que sentiu antes dela. Agora,
ele enxergava a luz do sol e as lágrimas de seu velho e cansado pai. Aliás,
lágrimas que ele nunca havia visto, pois Jockar sempre demonstrou força
diante dele.

– Está tudo bem, meu filho. Você está protegido agora. – acalentou,
enquanto colocava o filho de pé. – Não se preocupe, senhor Kob, lhe darei
um cavalo novo. – dirigiu-se ao velho que enfaixava a perna ferida de seu
animal.

As pessoas ao redor se dispersaram mais. A maioria, apreensiva e


temerosa, enquanto alguns insistiam em hostilizar a mulher. “Bruxa!
Bruxa!”: era o palavreado daqueles que possuíam sangue nas mãos. Dois
homens surgiram empunhando armas, um deles com uma espada e o outro
com um machado. Selene, fleumática, desatou um pequeno nó que
segurava aquele manto escuro por cima de suas vestes. Em seguida, jogou-
o ao chão. Imediatamente, as bocas, que de alguma forma estavam abertas,
se fecharam, e um silêncio constrangedor pairou sobre aquele lugar.

– Quem é ela? – perguntou Vincent.

Naquele dia nada especial, o vento resolveu soprar gentilmente em


Bucarrá. O traje verde floresta daquela mulher começou a tremular
elegantemente, enquanto seus longos cabelos negros esvoaçavam ao léu. O
garoto presenciava uma visão maravilhosa, uma figura majestosa e
imponente. A mulher exibia, imóvel, o manto de um Protetor de Avel,
enquanto a multidão abria caminho, dispersando-se pelo peso da vergonha,
e do arrependimento, capazes de matá-los.

O pequeno Vincent, todo sujo e com as vestes ensanguentadas, não


conseguia desviar o olhar em direção à Selene, que, ao contrário dele,
estava impecável, pois permaneceu protegida por baixo do manto o tempo
todo. Cada segundo admirando-a era demasiadamente longo e prazeroso.
Era como se ele já a conhecesse. Perguntava-se se ela era sua mãe, mesmo
que tal hipótese fosse das mais absurdas. Então, durante aquele breve e
sublime momento de contemplação, a mulher virou o rosto para ele,
ocasião na qual Vincent pôde perceber um detalhe incongruente naquela
figura ilustre. Escorria um pouco de sangue sobre sua fronte, pois havia
um corte acima do olho direito. Era o único ferimento que ela possuía, um
detalhe rubro capaz de romper a harmonia visual, mas que a tornava mais
humana, mais real. As vestes dela significavam muito para as pessoas, que
dali se retiravam, humilhadas; mas, para Vincent, com certeza o sangue
dela era a coisa mais importante: nele estava a resposta para aquela
situação.

– Você está bem, Vincent? – perguntou, sorridente.

Aquela imagem ficou eternizada na mente do garoto sonhador. Era a face


de uma salvadora.

Você também pode gostar