Você está na página 1de 11

2825

ARTIGO ARTICLE
Empoderamento de usuários e familiares em saúde mental
e em pesquisa avaliativa/interventiva: uma breve comparação
entre a tradição anglo-saxônica e a experiência brasileira

Empowerment of users and family members in mental health care


and in evaluative/interventional research: a brief comparison
between the Anglo-Saxon tradition and the Brazilian experience

Eduardo Mourão Vasconcelos 1

Abstract The scope of this article is to assess the Resumo O objeto deste artigo são as principais
main characteristics of the traditions and experi- características das tradições e experiências de em-
ences of empowerment of users and family mem- poderamento de usuários e familiares em aborda-
bers in mental health treatment and services in gens e serviços de saúde mental em países anglo-
Anglo-Saxon countries and in Brazil and the re- saxônicos e no Brasil, e suas repercussões e estra-
percussions and strategies thereof in the field of tégias no campo da pesquisa avaliativa e inter-
evaluative and interventional research in mental ventiva em saúde mental. O objetivo é comparar,
health. Based on a brief bibliographical review of através de uma breve revisão bibliográfica da li-
the literature, the aim is to compare how the em- teratura, como as tradições de empoderamento se
powerment tradition has developed in the two re- desenvolveram nos dois cenários, a partir de ca-
alities, based on the characteristics of the econom- racterísticas do contexto econômico, político, so-
ic, political, social – and especially cultural – con- cial e particularmente cultural. A revisão mos-
text. The review revealed how these contexts in- trou como estes contextos geram diferentes pers-
duce different perspectives on how to foster the pectivas de valorização da autonomização e em-
autonomy and empowerment of users and family poderamento de usuários e familiares nas políti-
members in social policies and mental health, as cas sociais em geral e em saúde mental, como tam-
well as their appropriation in the field of evalua- bém nas apropriações no campo da pesquisa ava-
tive and interventional research. In Anglo-Saxon liativa e interventiva em saúde mental. Nos paí-
countries, this tradition has been vigorously pro- ses anglo-saxônicos, esta tradição vem se desen-
moted over the past four decades, and in Brazil the volvendo fortemente há cerca de 4 décadas, e no
participative strategies emphasize mixed mecha- Brasil as estratégias participacionistas enfatizam
nisms – professionals, users and family members mecanismos mistos – profissionais, usuários e fa-
together – with the dominant presence of the pro- miliares juntos –, com a presença dominante dos
fessionals. The strategies in Brazil more directly profissionais, e as iniciativas mais diretamente
designed for users and family members are recent desenhadas para os usuários e familiares são muito
1
and have been implemented from 2005 onwards. recentes, a partir de 2005.
Departamento de Métodos
e Técnicas, Escola de Key words Mental health, Empowerment, Auto- Palavras-chave Saúde mental, Empoderamento,
Serviço Social, UFRJ. Av. nomy, Evaluative research, Interventional rese- Autonomia, Pesquisa avaliativa, Pesquisa inter-
Pasteur 250 Fundos,
arch ventiva
Botafogo. 22.290-240 Rio
de Janeiro RJ.
emvasconcelos55@gmail.com
2826
Vasconcelos EM

Introdução Contexto histórico e conceitual


dos processos de reforma psiquiátrica
Este trabalho visa revisar e comparar as expe- e de empoderamento em saúde mental
riências de reforma psiquiátrica e de empodera- em países anglo-saxônicos e no Brasil
mento (empowerment) de usuários de serviços e
seus familiares em países anglo-saxônicos (com Os processos de reforma psiquiátrica
ênfase particular no Reino Unido e nos Estados e a participação de usuários de serviços
Unidos) e no Brasil, e suas repercussões no cam- e seus familiares
po da pesquisa avaliativa e interventiva em saúde
mental. O trabalho objetiva, primeiramente, iden- Durante e após a II Guerra Mundial, nos paí-
tificar aspectos conceituais importantes para uma ses de capitalismo central, o esforço de reabilita-
avaliação e apropriação crítica desta perspectiva, ção de militares e civis marcados pela guerra, o
do ponto de vista ético-político das classes po- ambiente econômico e social de reconstrução e
pulares em países periféricos e semiperiféricos. de revalorização da força de trabalho, o proces-
Em segundo, o artigo busca também identificar so de redemocratização, bem como o desenvol-
como as características históricas, sociais e cul- vimento de políticas públicas de bem estar social,
turais estruturais, bastante diferenciadas nos dois levaram a conquistas significativas dos direitos
contextos, acabam gerando perfis muito varia- clássicos de cidadania, particularmente no cam-
dos no potencial e na dinâmica concreta de par- po dos direitos civis e sociais. Este contexto esti-
ticipação, envolvimento e empoderamento de mulou processos de reforma psiquiátrica1, cujo
usuários e familiares do campo da saúde mental, objetivo central tem sido a substituição da inter-
bem como em serviços sociais em geral. Na nos- nação em instituições do tipo manicomial, para
sa perspectiva, sistematizar estas diferenças é fun- serviços abertos, de base territorial, perto dos
damental para a compreensão e avaliação das locais de moradia, e visando a reinserção de seus
experiências e projetos piloto hoje no Brasil, a usuários na vida social mais ampla. Além disso,
partir da influência que os movimentos de usuá- visam também transformar as relações sociais
rios e de reforma psiquiátrica anglo-saxônicos baseadas na discriminação e segregação das pes-
vem ganhando em nosso país. Além disso, ainda soas com transtorno mental, com iniciativas ati-
que breve e sintética, a revisão das conquistas e vas na esfera cultural, artística, educacional e de
desafios no campo da pesquisa avaliativa e inter- participação na sociedade em geral. Em outras
ventiva em saúde mental comprometida com o palavras, se coloca a questão de como se pode
empoderamento, nos países anglo-saxônicos, avançar na esfera das práticas micropolíticas, do
nos permite no Brasil visualizar um campo ple- nível de participação social, das relações de poder e
namente desenvolvido, vasto, fértil e variado de das representações sociais e culturais difusas, nas
estratégias possíveis que podem ser apropriadas suas relações com o campo da saúde mental.
em pesquisa em saúde mental, com seus desafi- Neste terreno, os movimentos sociais de usu-
os, para estimular a investigação acadêmica e de ários e familiares da saúde mental de vários paí-
avaliação engajada com a reforma psiquiátrica e ses, particularmente a partir da década de 1970,
o movimento antimanicomial em nosso país. E apresentam novos insights e conquistas impor-
por último, este artigo visa também subsidiar tantes para os processos de reforma psiquiátri-
alguns projetos piloto já em andamento no Bra- ca. Estes atores sociais representam os principais
sil, de experimentação e sistematização de dispo- receptores dos serviços de saúde mental e poten-
sitivos de empoderamento em saúde mental, in- ciais interessados em mudanças mais profundas
tegrados à pesquisa ou com estratégias partici- nas políticas e sistemas convencionais de saúde
pativas de produção de conhecimento e avalia- mental, bem como na cultura difusa na socieda-
ção, inspiradas nos princípios do empoderamen- de em relação a eles e ao tema. Em muitos países,
to. Entretanto, dado o formato enxuto dos arti- eles não só desenvolvem ações próprias e autô-
gos neste periódico, esse último objetivo será nomas, como também forçam serviços e pro-
cumprido em outro artigo nesta coletânea, cole- gramas a darem respostas mais adequadas a suas
tivo, para o qual convidamos desde já o leitor necessidades, além de criarem novos conceitos e
interessado no tema. abordagens teóricas. Nos países do Norte da
Europa e de cultura anglo-saxônica, as aborda-
gens e as estratégias de empoderamento consti-
tuem a principal perspectiva conceitual e práti-
co-operativa nesta direção.
2827

Ciência & Saúde Coletiva, 18(10):2825-2835, 2013


Os processos de reforma psiquiátrica se di- expressão “alcançar o sucesso”). Mais recente-
fundiram em países periféricos e semiperiféricos, mente, o Banco Mundial se apropriou de forma
como o Brasil, a partir da década de 19801-3, mas mais sofisticada desta interpelação, para pregar
com características próprias no campo das polí- estratégias participativas de desenvolvimento lo-
ticas sociais, dos movimentos sociais e da cultu- cal6, sem questionar as suas bases mais amplas
ra, gerando especificidades no processo de trans- de pauperização econômica e social, fortemente
formação dos serviços, das representações que estimuladas pelas atuais políticas capitalistas de
sustentam a discriminação e estigma, bem como reajuste neoliberal.
na concepção e nas estratégias de empoderamento b) Na direção emancipatória, temos como
em saúde mental, como veremos a seguir. exemplo recente os vários movimentos e organi-
zações de trabalhadores, de direitos civis e de
O empoderamento minorias étnicas, o movimento feminista, etc. No
no campo da saúde mental, Brasil, durante a ditadura militar, tivemos vários
suas ambiguidades conceituais e desafios movimentos sociais populares com forte pers-
pectiva de empoderamento de seus membros,
Vasconcelos4 propõe uma primeira aproxi- como as Comunidades Eclesiais de Base (CEB),
mação ao conceito na seguinte definição provisó- inspiradas na Teologia da Libertação; a educação
ria: Aumento do poder e autonomia pessoal e cole- popular de Paulo Freire e seus desdobramentos;
tiva de indivíduos e grupos sociais nas relações in- e, mais recentemente, os próprios dispositivos
terpessoais e institutionais, principalmente daque- de controle social das políticas sociais, como em
les submetidos a relações de opressão, dominação e nosso sistema de saúde atual. A maioria destes
discriminação social. A apropriação do conceito casos constituem abordagens educativas e de tra-
para o contexto brasileiro nos permitiu identifi- balho de base com as populações e grupos opri-
car diferentes níveis de práticas e estratégias de midos, ou estratégias ligadas a políticas sociais,
empoderamento em saúde mental: o cuidado de si, que precisam ser inseridas em projetos e teorias
a ajuda mútua, o suporte mútuo, a transforma- emancipatórias mais amplas e totalizadoras.
ção da cultura difusa em relação ao transtorno Particularmente na literatura anglo-saxôni-
mental na sociedade, a defesa de direitos, a mili- ca, a interpelação de empoderamento muitas ve-
tância social e política4, e o uso de narrativas pes- zes é apresentada como única ou principal dire-
soais de experiência de vida em primeira pessoa5. ção ética e política de categorias profissionais e
Por razões de economia, a explicitação destas es- de agências governamentais, sem outras qualifi-
tratégias não pode ser realizada aqui, mas está cações, como um consenso possível, sem enfren-
disponível na literatura indicada. tamentos ou questionamentos à mentalidade
Entretanto, não se trata de um conceito com socialdemocrata hegemônica, particularmente no
estatuto teórico e ético-político próprio. Em nos- Reino Unido4. Além disso, não explicitam um
sa visão, constitui uma interpelação de caráter posicionamento mais claro em relação ao mode-
polissêmico, similar às de participação e huma- lo econômico e social vigente e às características
nização, que pode ser apropriada tanto para fins das políticas sociais que deveriam ser prioriza-
conservadores quanto emancipatórios. Em ou- das pelos atores sociais e políticos mais compro-
tro trabalho de revisão4, procuramos mostrar metidos do campo.
como, na história ocidental desde a modernida- Assim, nossa visão é de que a interpelação e
de, a ideia e as práticas de empoderamento fo- as estratégias de empoderamento podem e de-
ram apropriadas em ambas as direções. Alguns vem ser apropriadas para fins emancipatórios,
exemplos: mas isso requer:
a) Do lado conservador, temos a cultura de - reconhecer seu caráter polissêmico;
autoajuda (self-help) desde o século XIX, como o - conhecer minimamente sua história ante-
movimento de temperança nos países anglo-sa- rior de apropriações conservadoras e emancipa-
xônicos, e seus desdobramentos até hoje, como tórias;
na literatura atual de autoajuda, associada ao - identificar e avaliar criticamente as suas
liberalismo radical, individualização, recalque da apropriações recentes pelas forças sociais e polí-
dimensão coletiva dos problemas sociais e indi- ticas hegemônicas, buscando se diferenciar e su-
viduais, pragmatismo e utilitarismo, que visam perar os limites ideológicos e políticos em que a
predominantemente adaptar os indivíduos ao interpelação é enclausurada;
status quo e ao bom cumprimento das expectati- - reconhecer que as abordagens e estratégias
vas sociais práticas (expresso, por exemplo, na de empoderamento não são suficientes e susten-
2828
Vasconcelos EM

táveis por si mesmas, e ancorá-las em princípios tura latina, católica, familiar e hierárquica, com
ético-políticos, em teorização política, social, cul- forte tendência à segregação das classes popula-
tural e psicossocial mais consistente, e em políti- res, e políticas públicas fortemente estatais, com
cas sociais e projetos sócio-históricos mais am- forte tendência à burocracia e ao patrimonialis-
plos, para poderem se adequar aos interesses mo, e com um desenvolvimento muito mais li-
emancipatórios e para as características de cada mitado de programas de bem estar social. Aqui,
contexto particular; a cultura hierárquica e patrimonialista foi intro-
- admitir que não se trata de fazer simples duzida já no início da colonização, na concessão
transposições transnacionais ou transculturais pessoal de títulos, de terras e poderes a senhores
de conceitos e estratégias oriundas de outros pa- de terra ligados à Coroa Portuguesa, e se estende
íses, pois sua apropriação em cada contexto exi- como prática político-administrativa hegemônica
ge revisões conceituais críticas, comparação com durante o Império e a República. Neste contexto,
as experiências locais já existentes, experiências- uma hierarquia social informal, estruturada em
piloto e sua avaliação, etc., previamente à sua laços e redes personalizadas de influência, consti-
adoção. tui o critério prioritário de distribuição de benes-
ses, cargos e direitos, com clara apropriação da
Características dos movimentos sociais esfera pública por redes de interesse privado das
que sustentam reformas psiquiátricas elites políticas, econômicas e sociais, e com forte
em países semiperiféricos de origem latina acento burocrático. Na população trabalhado-
e predominantemente católica ra, esta característica se expressa em uma con-
cepção hierárquica da vida, valorizadora da de-
Os movimentos sociais que sustentam os pendência e dos laços pessoais e familiares, como
processos de reforma psiquiátrica têm histórias estratégia de mobilizar suporte social concreto e
e características muito heterogêneas nos diver- como forma de ter algum acesso aos limitados
sos países e culturas. Na Comunidade Europeia, benefícios e serviços sociais públicos, em detri-
por exemplo, o perfil destes movimentos, há vá- mento de formas anônimas e legais de garantia
rias décadas, ainda acompanha uma clássica di- de direitos individuais universais. Esta cultura
ferenciação cultural e política4,7 . Por um lado, difusa gera também uma visão muito própria
temos a Europa mediterrânea de origem latina e dos fenômenos e do adoecimento mentais, cha-
com uma história de forte hegemonia católica, com mada de modelo do nervoso. Para uma visão mais
sua cultura mais hierárquica, familiar, comuni- sistemática do tema, é interessante ir a suas prin-
tária e valorizadora da dependência, e políticas cipais obras clássicas, nos trabalhos de Faoro8,
sociais mais enfaticamente estatais. Por outro, na DaMatta9 e Duarte10.
direção norte, temos culturas mais marcadas pelo No entanto, é essencial lembrar que tivemos
protestantantismo, individualistas, com laços fa- movimentos sociais muito ativos no processo de
miliares mais frágeis, e mais valorizadoras da au- luta pela democratização e contra a ditadura
tonomia pessoal, com maior desenvolvimento e militar, cujo governo caiu em 1984, com verten-
participação do chamado Terceiro Setor (Volun- tes bastante organizadas no campo da saúde e
tary Sector) em suas políticas sociais, característi- saúde mental, induzindo a criação do Sistema
cas que se difundiram particularmente nos de- Único de Saúde (SUS), formalmente de acesso
mais países de língua inglesa. Neste conjunto de universal. Tivemos também um movimento an-
países, os usuários constituem um ator social vivo timanicomial, com clara inspiração na experiên-
e ativo central nos movimentos sociais em saúde cia italiana, embora mais gradual e lento do que
mental, com um perfil mais autonomista e radi- na maioria dos países europeus3,11.
cal em relação aos programas estatais e aos pro- Neste processo, há conquistas importantes
fissionais. Nos países do sul, temos como princi- já consolidadas desde a década de 1980, do pon-
pal ator os movimentos de profissionais e, se- to de vista da democratização e participação po-
cundariamente, de familiares, cujo perfil e valo- pular. Talvez a principal delas seja a do controle
res acompanham os traços principais da cultura social, pelo qual todas as principais decisões nas
hierárquica descrita acima. políticas de saúde e saúde mental em qualquer
Um país semiperiférico como o Brasil apre- nível de gestão (serviços locais, territórios de re-
senta muitas similaridades com os países euro- ferência, municípios, estados e união federal),
peus de origem latina. De modo geral, tendemos devem passar por conselhos, em que a metade
a reproduzir os padrões sociais e culturais de de seus membros devem ser representantes da
nossos colonizadores portugueses, ou seja, a cul- sociedade civil, particularmente de associações
2829

Ciência & Saúde Coletiva, 18(10):2825-2835, 2013


civis ligadas ao campo. Há também as conferên- lítica mais incisiva e autônoma, não estão dispo-
cias nacionais, que permitem a formulação de níveis dentro dos serviços públicos de saúde e
diretrizes como política de Estado para todo o saúde mental. E as lideranças oriundas das clas-
país, acima de governos específicos. ses populares têm maiores dificuldades e limita-
Entretanto, um conjunto de fatores estrutu- ções econômicas, sociais e culturais para se capa-
rais, culturais e conjunturais fragilizam a experiên- citarem e exercerem este ativismo explícito den-
cia de ativismo e empoderamento nos serviços e tro do sistema público de saúde e na sociedade
na representação da sociedade civil nas instânci- em geral.
as de controle social no país. Entre os principais d) No contexto atual de políticas neoliberais
fatores, podemos indicar aqui: (subfinanciamento, sucateamento e privatização
a) Os movimentos sociais brasileiros de re- das políticas sociais e serviços; terceirização, pre-
forma sanitária e psiquiátrica apresentam um carização dos direitos e rotatividade do traba-
perfil similar ao da Europa do sul, ou seja, com lho; e aumento das demandas, do nível de gravi-
predominância e preponderância dos profissio- dade dos problemas e da população adscrita a
nais e dos agentes estatais. Os poucos dados dis- cada serviço), as questões do empoderamento
poníveis sobre a organização de usuários e fami- acabam sendo secundarizadas pelos trabalhado-
liares no país, sistematizados por Vasconce- res de saúde mental.
los3,11,12, indicam um crescimento lento do nú- Em outras palavras, acreditamos que a com-
mero de associações civis, que em geral são mis- binação de todas estas características tendem a di-
tas (usuários, familiares e profissionais), e nas ficultar a extensão massiva de estratégias de parti-
quais os últimos têm um papel mais proeminen- cipação popular e de empoderamento no sistema
te e regular, em um quadro de organização, ba- de políticas sociais e em saúde/saúde mental. A nosso
ses financeiras e ativismo político em geral bas- ver, isso não impossibilita as estratégias de empo-
tante fragilizado. deramento no país, mas implica que seu significa-
b) A forte hegemonia da cultura patrimonia- do social, sua dinâmica cultural e seu processo de
lista e hierárquica produz marcas culturais e po- desenvolvimento institucional ganham um perfil
líticas profundas e amplas nas classes populares, muito próprio e mais lento, cujos caminhos devem
em todas as esferas de ativismo social e na rela- ser auscultados com cuidado, para evitar a tendên-
ção com os profissionais e as instituições de po- cia à importação e transposição direta de teorias,
lítica social, na direção inversa da autonomia e abordagens e metodologias operativas em serviços
do empoderamento7. de saúde e saúde mental.
c) Em nosso país, a profunda desigualdade A partir dessa hipótese, talvez seja possível
social e o mercado de trabalho com quase meta- compreender por que no Brasil apenas uma par-
de de trabalhadores no setor informal, bem como cela menor do próprio movimento antimanico-
o perfil dual de oferta de serviços de saúde e saú- mial e dos serviços de atenção psicossocial tenha
de mental, também deixam suas marcas. Temos esboçado iniciativas e estratégias claras na dire-
planos e seguros de saúde privados para a elite e ção do empoderamento de usuários e familiares.
para as classes médias, e de outro lado o sistema Ainda é hegemônica aquela visão mais convenci-
público que serve às classes populares, de forma onal de que tratamento e cuidado constituem uma
muito diferenciada dos programas efetivamente prerrogativa dos profissionais e trabalhadores,
universais de saúde pública europeus e canaden- de que a participação se dá apenas no processo de
se. No Brasil, as classes médias geralmente não escuta e de prover informação relativa ao trata-
frequentam os serviços públicos de atenção psi- mento a usuários e familiares, ou nas assembleias
cossocial, nos quais os projetos de empodera- dos serviços, ou ainda no máximo no ativismo
mento estão sendo desenvolvidos. Os setores direto nos conselhos de controle social. Na mes-
médios, marcados por elitismo, cultura hierár- ma direção, no âmbito da vida acadêmica e das
quica e estigma, têm mais dificuldades de assu- práticas de pesquisa avaliativa e interventiva de
mir uma identidade explícita associada ao trans- políticas sociais, poucos núcleos da pesquisa em saú-
torno mental. Assim, os potenciais usuários e de mental têm procurado desenvolver estratégias de
familiares com maiores recursos educacionais, envolvimento, participação e empoderamento de
sociais, econômicos e culturais para o desenvol- usuários e familiares no próprio processo de pes-
vimento de um ativismo e uma organização po- quisa, tema indicado mais abaixo.
2830
Vasconcelos EM

O envolvimento e o empoderamento de vista convencionais de planejadores, profissio-


de usuários em pesquisa em saúde mental nais e do senso comum, permitindo influenciar a
no contexto anglo-saxônico: opinião pública, lançar campanhas e reivindica-
uma breve revisão descritiva e crítica ções, e visualizar modos concretos de superar os
problemas identificados.
O Reino Unido e os Estados Unidos repre- Neste conjunto da literatura anglo-saxônica
sentam dois casos chaves de forte desenvolvi- ‘amiga dos usuários’ (user friendly) e, ou, com-
mento de algumas perspectivas acadêmicas e prometida com seu empoderamento, podemos
profissionais claramente comprometidas com o notar diferentes níveis de envolvimento e partici-
empoderamento a partir da década de 19704,13-15, pação dos usuários de serviços.
como também de um movimento fortemente Carrick et al.22 identificaram três níveis de en-
radical e autonomista de usuários no campo da volvimento em pesquisas:
saúde mental16-19. A rápida revisão abaixo dará - consulta, quando os pesquisadores pergun-
ênfase a autores distribuídos durante todo este tam a opinião dos usuários;
período, tentando mostrar a processualidade e a - colaboração, quando há uma parceria efeti-
sofisticação das experiências e análises construí- va e divisão do poder entre pesquisadores e usuá-
das no campo da pesquisa, a partir dos anos rios;
1980. Além disso, tanto os Estados Unidos quan- - projetos controlados pelos usuários, quando
to o Reino Unido mostram uma forte integração usuários e suas organizações decidem envolver
cultural, científica, editorial e política entre eles, profissionais e acadêmicos em aspectos específi-
bem como uma forte influência nos demais paí- cos da pesquisa, mas sob seu inteiro controle.
ses de língua inglesa, permitindo tratá-los aqui Os autores concluem que o terceiro tipo de
sem distinguir suas especificidades, pelo menos pesquisa foi o mais “empoderador”, enquanto a
para efeito do presente artigo e de sua necessária consulta representou o menos.
concisão. A perspectiva do empoderamento em Por sua parte, Hutchinson et al.23 e outros
pesquisa envolveu iniciativas com diversos níveis autores15 indicaram que iniciativas mais simples,
de envolvimento, participação e empoderamen- tais como dividir com outros usuários uma his-
to de usuários e familiares, desde a década de tória pessoal, como sujeitos em uma pesquisa,
1980. Um exemplo inicial, ainda em 1984, foi pro- mesmo sem participar de outras etapas da pes-
movido pela ONG inglesa MIND20, uma organi- quisa, já podem ser empoderadoras. Beresford e
zação chave no desenvolvimento do movimento Evans24 e Linhorst25, em uma abordagem mais
autonomista de usuários no país. Ela desenvol- complexa, descrevem os parâmetros para a ava-
veu com a rede de televisão estatal BBC um am- liação dos efeitos de empoderamento das pes-
plo levantamento da visão dos usuários sobre o quisas como um continuum de envolvimento,
consumo crônico de tranquilizantes, mostrando que vai das mais empoderadoras até as não em-
o largo uso de prescrição superdimensionada, poderadoras. Nesta perspectiva, o empodera-
os efeitos colaterais e as dificuldades para sua mento cresce na medida em que os usuários vão
retirada por parte dos usuários. A importância gradualmente controlando mais cada aspecto e
deste tipo de pesquisa, com participação de usuá- etapa da pesquisa. Outros autores, tais como
rios em todas as fases da investigação, pode ser Carrick et al.22, são mais pragmáticos, defenden-
vista nas suas consequências: uma grande cam- do que “o processo de pesquisa deve empoderar
panha pública sobre o tema pela MIND, com quando possível, ou pelo menos, não deve de-
apoio da BBC, com um impacto significativo na sempoderar”.
cultura, nos serviços de saúde mental e no con- Esta indicação de Carrick et al.22 nos parece
sumo destes psicofármacos21. importante, do ponto de vista de uma apropria-
Portanto, esse tipo de pesquisa, ou mesmo ção transcultural crítica das estratégias de empo-
mecanismos mais informais que valorizam o deramento no Brasil, pois reforça a nossa dire-
ponto de vista dos usuários ao nível local, cons- ção ética e política de que o processo de empode-
titui um instrumento importante de empodera- ramento deve ser relacionado organicamente às
mento, revelando suas próprias concepções so- características estruturais e conjunturais, bem
bre os problemas da saúde mental, suas experi- como às possibilidades reais de empoderamento
ências e avaliação sobre os vários tipos de servi- e seus limites, em cada contexto.
ços e como poderiam concebê-los de acordo com Do ponto de vista das condições e critérios
seus interesses e visão de mundo. Também po- consideradas importantes para o empoderamento
dem fornecer evidências que desafiam os pontos de usuários através da pesquisa, nos parece rele-
2831

Ciência & Saúde Coletiva, 18(10):2825-2835, 2013


vante lembrar aqui, resumidamente, os pontos resses estão sendo enfatizados por um desenho
indicados na revisão realizada por Linhorst25: de pesquisa em particular ou por um determina-
a) gestão dos sintomas psiquiátricos: os sin- do perfil de definição dos objetivos e resultados,
tomas psiquiátricos das pessoas envolvidas são ge- ou ainda por um determinado instrumento e
ridos no grau necessário para poderem participar modo de administrá-lo.
de forma plena de sentido de um processo de pes- Nessa perspectiva, é interessante recuperar
quisa específico; um trabalho ainda da década de 1990, mas ainda
b) habilidades participativas: a pessoa possui extremamente relevante, de Perkins e Repper26,
as habilidades necessárias para poder participar de que avaliaram criticamente as consequências des-
forma plena de sentido de um processo de pesquisa sas tendências dominantes em pesquisa, salien-
específico; tando os seguintes dilemas principais:
c) prontidão psicológica: a pessoa tem a con- a) Definição de objetivos e resultados dos servi-
fiança, a motivação e a vontade para poder parti- ços: diversos autores têm mostrado como os
cipar de forma plena de sentido de um processo de objetivos e os resultados desejáveis de serviços de
pesquisa específico; saúde mental são multidimensionais e dependen-
d) respeito e confiança mútuos: a pessoa com tes de diferentes pontos de vista, associadas às
transtorno mental e quaisquer pesquisadores sem lutas e relações de poder. Diferentes conjuntos de
transtorno explícito, com os quais ela pode traba- objetivos e resultados em serviços divergem en-
lhar, têm o nível necessário de respeito e confiança tre si dadas as diferentes ênfases e perspectivas.
mútuos para poder participar de forma plena de Por exemplo, serviços de saúde mental geralmente
sentido de um processo de pesquisa específico; apresentam resultados com estatísticas conven-
e) incentivos concretos recíprocos: incen- cionais (números de atividades, taxas de admis-
tivos concretos existem para a pessoa com trans- são e alta, etc.) para notificar as autoridades e
torno mental para participar em processo de pes- para assegurar a continuidade de fundos, com
quisa e para pesquisadores e outros participantes ênfase nos custos e em evitar problemas e polê-
para trabalhar de forma plena de sentido com ela; micas na comunidade. Porém, esses objetivos
f) disponibilidade de escolhas: a pessoa tem diferem daqueles formulados por diferentes gru-
escolhas de processo de pesquisa nas quais pode pos de usuários diretos, familiares e profissio-
participar de forma plena de sentido; nais. Todavia, a maior discrepância levanta-se
g) estruturas e processo de participação: a entre profissionais e usuários, na avaliação da
pessoa tem estruturas e processos através dos quais efetividade do serviço e na extensão de uma in-
poderá participar de forma plena de sentido em tervenção que seja aceitável para os usuários de
um processo de pesquisa; serviços. Em nosso ponto de vista, entendemos
h) acesso a recursos: a pessoa tem acesso aos que a própria tradição de avaliação independen-
recursos necessários para participar de forma ple- te, fortemente enraizada na cultura inglesa e an-
na de sentido em um processo de pesquisa; glo-saxã, deve ser desafiada e rediscutida, na di-
i) cultura encorajadora: a cultura que envol- reção de avaliações que explicitassem quais valo-
ve o processo de pesquisa é encorajadora de uma res, abordagens e interesses seriam priorizados
participação de forma plena da pessoa com trans- em uma pesquisa. Esta discussão deveria atingir
torno mental. o nível das opções epistemológicas, no qual o
Após esta rápida revisão das principais ten- debate atual sobre paradigmas científicos e a con-
dências mais engajadas no empoderamento em sequente crítica aos métodos tradicionais empi-
pesquisas no campo da saúde mental na litera- ricistas e neopolitivistas, é essencial27.
tura anglo-saxônica, é fundamental alertar que b) Medindo os resultados: uma questão rela-
apenas uma minoria de todo o conjunto das pes- cionada à anterior é a de como os objetivos po-
quisas avaliativas usam metodologias “amigas dem ser mensurados. Os instrumentos tradicio-
do usuário”. A maior parte das avaliações em nais enfatizam as propriedades psicométricas: con-
pesquisas oficiais na Inglaterra e Estados Unidos fiabilidade, validade e sensibilidade das medidas
é capturada pela atual cultura gerencialista, que empregadas. Todavia, esse tipo de precisão tende
prioriza a racionalidade financeira, escolhendo a menosprezar as contradições mostradas no tó-
metodologias empiricistas e positivistas, como pico anterior ou em padrões diferentes de covari-
nos desenhos experimentais, que priorizam re- ação. Por exemplo, um nível baixo de melhora-
sultados (e não processo), objetividade, relação mento nos sintomas ou funcionamento social,
custo-eficiência e neutralidade do observador. A variáveis clássicas nos estudos de resultados, po-
maioria dos estudos não questiona quais inte- dem acontecer em paralelo com um entendimen-
2832
Vasconcelos EM

to crescente do usuário sobre seus problemas, o tas, perspectivas e interesses valorizados, e da pró-
que pode reduzir sentimentos de desespero e an- pria complexidade inerente aos fenômenos men-
gústia, geralmente ignorados. As perspectivas di- tais. Até mesmo desenhos de pesquisa epidemio-
ferentes e os objetivos múltiplos no cuidado da lógicos tão em voga na Inglaterra, como os estu-
saúde mental exigem medidas e instrumentos de dos duplo-cego com controle randômico, tem
resultados múltiplos e complexos. Como todos sido severamente criticados não somente em seu
eles são planejados pelos especialistas, geralmente uso tradicional na avaliação de novas drogas, mas
refletem suas agendas e preocupações específicas, principalmente no momento de estimar resulta-
como, por exemplo, nas escalas convencionais dos de intervenções complexas e dos serviços no
para medir a ‘satisfação do paciente’. Um bom campo de saúde mental. Ademais, a maioria das
contraexemplo a estas escalas, de acordo com intervenções psicossociais complexas não podem
Perkins e Repper26, é uma construída por usuári- ser de modo algum ‘cegas’, visto que são alta-
os para medir o empoderamento entre seus pares mente dependentes de crenças, expectativas e re-
em serviços de saúde mental, desenvolvida por lacionamentos pessoais diretos. Além disso, o
uma junta de dez líderes do movimento de usuá- processo de recuperação em saúde mental é lon-
rios nos Estados Unidos, descrita por Rogers et go, e intervenções a curto prazo podem parecer
al.28, representando a diversidade de pontos de ineficazes e serem abandonadas em favor daque-
vistas dentro do movimento e adotando os prin- las com benefícios mais a curto prazo, mas care-
cípios da pesquisa-ação. Contudo, essa escala ain- cendo de efetividade no longo prazo.
da utiliza um questionário tradicional, enquanto Na nossa opinião, quando nos deparamos
outras metodologias qualitativas realçam a pers- com a literatura anglo-saxônica de avaliação de
pectiva dos usuários sobre os serviços: grupos serviços, também é importante salientar a maior
focais, diários mantidos por usuários, relatórios ênfase dada ao resultados do que ao processo, o que
de conselhos de usuários, entre outras indicadas vai na direção contrária à perspectiva de empo-
por Perkins e Repper26. Além disso, a questão de deramento. Esse é um tema particular levantado
como administrar tais medidas também é rele- pela Psiquiatria Democrática italiana, em suas
vante, na medida em que mesmo quando temos melhores experiências, principalmente no Norte
pesquisadores independentes, os usuários tendem e na parte central do país29. Contudo, também
a agradar os entrevistadores dizendo o que eles existem contraexemplos interessantes na litera-
gostariam de ouvir. Um modo de evitar isso é tura anglo-saxã, como o livro de Townsend30.
envolver os usuários ou o movimento de usuári- Utilizando a ‘etnografia institucional’ desenvolvi-
os enquanto pesquisadores, em pesquisa-ação, da pela socióloga canadense Dorothy Smith, in-
que tende a levar a informações mais acuradas fluenciada pela etnometodologia, feminismo, fe-
sobre seus problemas e preocupações. Essa estra- nomenologia e ideias marxistas, o livro investiga
tégia tem sido adotada por muitas organizações as contradições entre as intenções conscientes dos
que possuem claro compromisso com o movi- trabalhadores de fortalecer o poder dos usuários
mento de usuários. de serviços de saúde mental e a invisível organi-
c) A natureza complexa e heterogênea da cli- zação inconsciente de poderes no cotidiano dos
entela, de suas dificuldades e dos serviços: no cam- serviços, gerando dependência e perda de auto-
po da saúde mental, é extremamente difícil avali- nomia por parte dos usuários. A investigação
ar a efetividade de uma única intervenção de ou- focaliza tanto as boas intenções de profissionais
tras, de forma isolada das demais, ou ainda as como os processos institucionais através dos quais
contribuições relativas de seus diferentes com- o empoderamento é anulado:
ponentes. Além disso, a maior parte dos serviços as tentativas de facilitar a participação são mi-
ocidentais tendem a integrar agências estatais, do nadas pelos processos de objetificação, prestação indi-
Terceiro Setor e privadas, propondo mais desafi- vidualizada de contas, de tomada de decisão hierár-
os para a avaliação efetiva dos serviços. A maio- quica, de educação indutora de simulação, de ma-
ria dos estudos tende a examinar um determina- nejo de risco e exclusão, que protegem mas também
do conjunto de intervenções e ignorar todos os controlam as pessoas. O significado desta crítica se
outros, excluindo assim as interações entre o alvo estende além dos serviços de saúde mental, porque
em avaliação e as outras intervenções. processos semelhantes são utilizados na organização
d) Metodologia e desenho de pesquisa: nesse rotineira de poder em educação, seguro-desemprego,
tópico, Perkins e Repper26 revisaram escolhas en- transportes e outros setores da sociedade27.
tre diferentes metodologias de pesquisa, apon- Creio que agora podemos nos direcionar
tando como elas dependem de diferentes pergun- para as ideias e as estratégias de empoderamento
2833

Ciência & Saúde Coletiva, 18(10):2825-2835, 2013


no Brasil, seus desdobramentos no campo em e) As tradições de pesquisa participante e pes-
saúde mental, e na pesquisa envolvendo a área. quisa-ação, cujos principais representantes no
Brasil são Michel Thiollent e a perspectiva de
Desenvolvimento do empoderamento análise institucional.
no Brasil e tendências na produção f) O movimento institucionalista e grupalista,
de conhecimento e na pesquisa com suas origens principais na França na década
em saúde mental de 1970, e forte difusão no Brasil e na Argentina,
com inspiração na psicanálise e teorias sociais
Movimentos mais amplos que incorporam críticas. Como exemplos, temos a psicossociolo-
estratégias de empoderamento, mas sem gia (Anzieu, Enriquez, Kaës), socioanálise (La-
filiação direta à tradição anglo-saxônica passade e Lourau), esquizoanálise (Deleuze e
Na concepção mais genérica de empodera- Gauattari), e o grupo operativo (Pichon-Riviè-
mento que adotamos, como uma interpelação re). No Brasil, têm influência na psicologia so-
com longa história de tradições na modernida- cial, psicologia comunitária e em saúde mental.
de, suas estratégias podem não se inspirar dire- g) O movimento de economia solidária, hoje
tamente no conceito e nas referências teóricas política oficial no Brasil, inspirado no cooperati-
anglo-saxônicas. Assim, no Brasil e em alguns vismo, com redes de produção, comercialização,
dos países latino-americanos vizinhos, as ideias capacitação e apoio técnico.
e as estratégias de empoderamento são identifi- h) A perspectiva de empoderamento no serviço
cáveis em movimentos sociais nas últimas déca- social brasileiro, representado por Vicente Falei-
das em vários campos. As principais referências ros e pelo autor deste trabalho.
bibliográficas já foram indicadas em outros tra- i) O próprio movimento antimanicomial bra-
balhos de nossa autoria4,31, e como os autores sileiro e argentino, que, juntamente com o movi-
indicados são facilmente localizados nos siste- mento sanitário, são os principais impulsiona-
mas de indexação digital, dispensamos a indica- dores da reforma psiquiátrica nestes países.
ção de referências nesta seção. Entre estas tradi-
ções, podemos citar: Abordagens explícitas de empoderamento
a) As tradições do chamado cristianismo de li- no campo da saúde mental no Brasil
bertação e da teologia da libertação, um amplo
movimento social surgido na América Latina e No Brasil, a partir do novo ímpeto gerado
no Brasil na década de 60, envolvendo setores do pela criação do movimento antimanicomial, em
clero, movimentos laicos, pastorais populares e 1987, e da II Conferência Nacional de Saúde Men-
Comunidades Eclesiais de Base (CEB), com difu- tal, em 1992, iniciamos a implementação dos no-
são em outros movimentos sociais populares. Os vos serviços de atenção psicossocial, e em parale-
autores mais citados são Gustavo Gutierrez e, no lo, a criação de associações de usuários e familia-
Brasil, Leonardo Boff. Teve seu auge nas décadas res. Há uma clara preponderância dos profissio-
de 1980 e 1990, mas ainda mantém um ativismo nais e trabalhadores no ativismo dentro do mo-
importante nas classes populares no Brasil. vimento antimanicomial, como também as or-
b) As tradições de educação popular, particu- ganizações de usuários e familiares vêm mostran-
larmente inspiradas em Paulo Freire, a partir da do um perfil predominantemente misto (usuári-
década de 1960, e alguns de seus desdobramen- os, familiares e profissionais), tendo os últimos
tos no campo da saúde, como o movimento de um papel mais proeminente e regular, em um
educação popular em saúde, cujos principais fun- quadro de organização, bases financeiras e ativis-
dadores no Brasil são Victor Valla, Eymard Mou- mo político em geral bastante fragilizado3,32.
rão Vasconcelos e Eduardo Stotz, com forte atua- Durante a década de 2000, alguns trabalhos3-
5,18
ção em atenção primária em saúde. divulgaram ideias de empoderamento mais
c) A estratégia de controle social incorporadas diretamente inspiradas na tradição anglo-saxô-
ao SUS e às principais linhas de política social no nica em saúde/saúde mental e no movimento dos
país, a partir da Constituição de 1988, por meio usuários nestes países. Na segunda metade da dé-
de conselhos e conferências formados por meta- cada, testemunhamos iniciativas piloto com usu-
de de seus membros por representantes da socie- ários e familiares, integrados à rede de saúde men-
dade civil. tal, como também projetos de pesquisa, associa-
d) As tradições de teatro popular, como o Tea- dos à sistematização dos novos dispositivos ou
tro do Oprimido do brasileiro Augusto Boal, em avaliação de serviços, muitos dos quais em
desde a década de 1970. convênios com países anglo-saxões. Na IV Con-
2834
Vasconcelos EM

ferência Nacional de Saúde Mental, em 2010, as to de usuários e familiares no campo da saúde


propostas destes novos dispositivos foram apro- mental e seus desdobramentos no campo da pes-
vadas e incorporadas ao seu Relatório. Mesmo quisa avaliativa e interventiva em serviços. Dele,
que não possamos revisar estas tendências aqui, podemos deduzir algumas linhas conclusivas
o tema será tratado em um artigo coletivo neste mais gerais:
mesmo número do periódico, e podemos apenas a) Empoderamento constitui uma aborda-
indicar as suas duas direções básicas: gem ambígua, mas apropriável para a perspecti-
a) Uma tradição de pesquisa avaliativa de pro- va emancipatória dos interesses de setores opri-
gramas e serviços em saúde e saúde mental, com midos em países periféricos e semiperiféricos,
base em formas complexas de envolvimento e desde que sustentado em teorização social/polí-
participação dos usuários do SUS, mesmo com tica e projetos históricos mais amplos, e que se
controle mais geral dos profissionais e pesquisa- diferencie das apropriações conservadoras dos
dores. Podemos citar o Laboratório de Pesquisas setores dominantes.
sobre Práticas de Integralidade em Saúde (LAP- b) As abordagens anglo-saxônicas de empo-
PIS), coordenado por Roseni Pinheiro (IMS- deramento em saúde mental têm um forte cará-
UERJ)33, e o núcleo de pesquisa coordenado por ter autonomista e uma experiência mais longa,
Rosana Onocko-Campos (FCM-UNICAMP)34. associada ao movimento de usuários, e ofere-
b) Projetos piloto de experimentação e siste- cem um amplo espectro de práticas alternativas
matização de dispositivos de empoderamento em em saúde mental e em pesquisa avaliativa e inter-
saúde mental, junto à rede de atenção psicosso- ventiva. Sem dúvida alguma, elas têm um enor-
cial, integrados com pesquisa ou com estratégias me potencial de inspirar e fertilizar outros movi-
participativas de produção de conhecimento e mentos antimanicomiais e reformistas de outros
avaliação, diretamente inspirados na tradição países.
anglo-saxônica de empoderamento. Aqui pode- c) Entretanto, o contexto diferenciado dos
mos citar os trabalhos coordenados por Ono- países periféricos e semiperiféricos, como o Bra-
cko Campos em torno do GAM (Grupo Autô- sil, condicionam o significado e o potencial das
nomo de Medicação)35 e por Eduardo Vasconce- interpelações autonomistas e de empoderamen-
los, do Projeto Transversões (ESS-UFRJ), sobre to em nossos países. Assim, os projetos de inter-
os grupos de ajuda e suporte mútuos em saúde câmbio e nossas experiências de serviços, de ati-
mental36. vismo social e político e de pesquisa, que buscam
inspiração na tradição anglo-saxônica, devem
levar em alta consideração estas características
Considerações finais próprias de nossos países, auscultando com cui-
dado a dinâmica própria que estes projetos vão
Este artigo abordou as condições históricas de tomando localmente.
desenvolvimento de estratégias de empoderamen-
2835

Ciência & Saúde Coletiva, 18(10):2825-2835, 2013


Referências

1. Desviat M. A reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: 19. Stastny P, Lehmann P. Alternatives beyond psychia-
Fiocruz; 1999. try. Berlin, Eugene: Lehmann; 2007.
2. Amarante P. Loucos pela vida: a trajetória da refor- 20. Mind. [site da Internet]. [acessado 2013 jan 3]. Dis-
ma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz; ponível em: www.mind.org.uk
1994. 21. Rogers A, Pilgrim D, Lacey R. Experiencing Psychi-
3. Vasconcelos EM, organizador. Abordagens psicosso- atry. London: MIND, Macmillan; 1993.
ciais. Volume II: Reforma psiquiátrica e saúde men- 22. Carrick R, Mitchell A, Lloyd K. User involvement
tal na ótica da cultura e das lutas populares. São in research: power and compromise. J Community
Paulo: Hucitec; 2008. Appl Soc Psychol 2001; 11(3):217-225.
4. Vasconcelos EM. O poder que brota da dor e da opres- 23. Hutchinson SA, Wilson ME, Wilson HS. Benefits of
são: empowerment, sua história, teorias e estraté- participating in research interviews. J Nurs Scholar-
gias. São Paulo: Paulus; 2003. sh 1994; 26(2):161-164.
5. Vasconcelos EM, Weingarten R, Leme CCCP, No- 24. Beresford P, Evans C. Research and empowerment.
vaes PR, organizadores. Reinventando a vida: nar- Br J Soc Work 1999; 29:671-677.
rativas de recuperação e convivência com o trans- 25. Linhorst DM. Empowering people with severe mental
torno mental. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, illness: a practical guide. New York: Oxford Uni-
EncantArte; 2006. versity Press; 2006.
6. World Bank (WB). Empowerment and poverty reduc- 26. Perkins R, Repper J. Dilemmas in community men-
tion: a sourcebook. Washington: WB; 2002. tal health practice: choice or control. Abingdon;
7. Vasconcelos EM. Derechos y empoderamiento de Radcliffe Medical Press; 1998.
usuarios y familiares en el terreno de la salud 27. Vasconcelos EM. Complexidade e pesquisa interdis-
mental. Atopos salud mental, comunidad y cultura ciplinar: epistemologia e metodologia operativa.
2011; 11:23-44. Petrópolis: Vozes; 2002.
8. Faoro R. Os donos do poder: formação do patronato 28. Rogers ES, Chamberlin J, Ellison ML. A consumer-
político brasileiro. Porto Alegre, São Paulo: Glo- constructed scale to measure empowerment among
bo, Cia. Editora Nacional; 1975. users of mental health services. Psychiatr Serv 1997;
9. DaMatta R. Carnaval, malandros e heróis: para uma 48(8):11042-11047.
sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: 29. Vasconcelos EM. Avaliação de serviços no contexto
Guanabara; 1990. da desinstitucionalização psiquiátrica: revisão de
10. Duarte LFD. Da vida “nervosa” da classe trabalhado- metodologias e estratégias de Pesquisa. J Bras Psi-
ra. Rio de Janeiro: Zahar; 1986. quiatr 1995; 44(4):169-197.
11. Vasconcelos EM. Structural issues underpinning 30. Towsend E. Good intentions overruled: a critique of
mental health care and psychosocial approaches in empowerment in the routine organisation of men-
developing countries: the Brazilian case. In: Ra- tal health services. Toronto: University of Toronto
mon S, Willians JE, editors. Mental health at the Press; 1998.
crossroads: the promise of psychosocial approach. 31. Vasconcelos EM. Abordagens psicossociais. Volume
Hants: Ashgate Publishing Limited; 2005. p. 95-107. I: história, teoria e prática no campo. São Paulo:
12. Vasconcelos EM, Rodrigues J. Organização de usuá- Hucitec; 2008.
rios e familiares em saúde mental no Brasil. In: 32. Vasconcelos EM. Dispositivos associativos de luta
Vasconcelos EM, organizador. Desafios políticos da e empoderamento de usuários, familiares e traba-
reforma psiquiátrica brasileira. São Paulo: Hucitec; lhadores em saúde mental no Brasil. Vivência 2007;
2010. p. 141-162. 32:173-206.
13. Croft S, Beresford P. From paternalism to participati- 33. Pinheiro R, Martins PH, organizadores. Avaliação
on: involving people in social services. London: em saúde na perspectiva do usuário: abordagem mul-
Open Services Project; 1990. ticêntrica. Rio de Janeiro, Recife: CEPES-IMS, UERJ
14. Kemshall H, Littlechild R, editors. User involve- – Abrasco, Ed. Universitária UFPE; 2011.
ment and participation in social care: research infor- 34. Onocko Campos R, Furtado JP, Passos E, Benevi-
ming practice. London, Philadelphia: Jessica Kin- des R, organizadores. Pesquisa avaliativa em saúde
gsley Publishers; 2000. mental: desenho participativo e efeitos de narrati-
15. Linhorst DM. A review of the use and potential of vidade. São Paulo: Hucitec; 2008.
focus groups in social work research. Qualitative 35. Gonçalves LLM. A Gestão Autônoma da Medicação
Social Work: research and practice 2002; 1(2):563- numa experiência com usuários militantes da saúde
569. mental [tese]. Campinas: Unicamp; 2012.
16. Chamberlin J. On our own. London: MIND; 1988. 36. Vasconcelos EM. Manual de ajuda e suporte mútuos
17. Mowbray CT, Moxley DP, Colleen AJ, Howell LL. em saúde mental. Rio de Janeiro, Brasília: Escola de
Consumers as providers in psychiatric rehabilitation. Serviço Social da UFRJ, Ministério da Saúde, Fun-
Columbia: International Association of Psychoso- do Nacional de Saúde; 2013. No prelo.
cial Rehabilitation Services; 1997.
18. Weingarten R. O movimento de usuários em saúde
mental nos Estados Unidos: história, processos de
ajuda e suportes mútuos e militância. Rio de Janei- Artigo apresentado em 24/04/2013
ro: Instituto Franco Basaglia, Projeto Transversões; Aprovado em 15/06/2013
2001. Versão final apresentada em 03/07/2013

Você também pode gostar