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Tarzan: representações e estereotipias

Maria Edneusa Pereira Silva1

Inspirado na literatura colonialista, Tarzan, criado em 1912, por Burroughs, é


resultado de uma nova mentalidade que surge com o colonialismo. Surge no contexto de
uma combinação resultante entre democratização da imprensa, invenção do cinema,
revolução industrial, Conferência de Berlin e divisão internacional do trabalho. Tarzan
circunscreve a ideologia que representa a configuração da modernidade urbana
industrial (EUA e Europa Ocidental) e do colonialismo como processo histórico. Suas
aventuras mostram-se como textos em que torna legível o processo de conformação do
Ocidente como modelo hegemônico. Nessa narrativa opera um aparato de produções e
significações as quais nomeamos de representações que envolvem o nome de 'África' e
delimitam seu campo de referencialidade. Tarzan é, portanto, um arsenal de imagens
que consegue alcançar praticamente todos os lugares do planeta porque seu principal
veículo é o cinema, o meio mais potente já criado para alcançar, as mais bem elaboradas
e arquitetadas ambições imperialistas. Este trabalho objetiva refletir sobre origem,
construção, intenções, efeitos e descrições das representações produzidas sobre África, a
partir do personagem Tarzan, geradas durante a primeira metade do séc. XX.

Palavras-chave: Representações, Estereotipias, África, Tarzan. Colonialismo,


Transição, Transcultural, Circunscrição,

Introdução

Argumentar sobre representações sociais implica observar que todas as


representações sejam elas de quaisquer naturezas, trazem em si 2estereotipias, no

1
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos
Indígenas e Culturas Negras _ PPGEAFIN, da Universidade do Estado da Bahia - UNEB
EMAI-L edpkel@gmail.com

2
As estereotipias ou estereótipos, são pressupostos ou rótulos sociais, criados sobre
características de grupos para moldar padrões sociais. Um estereótipo se refere a certo conjunto
de características que são vinculadas a todos os membros de um determinado grupo social. É,
portanto, uma generalização e uma simplificação que relaciona atributos gerais a características
coletivas como idade, raça, sexo, sexualidade, profissão, nacionalidade, região de origem,
preferências musicais, comportamentos, etc. Os estereótipos funcionam como uma espécie de
rótulo ou carimbo que marca um indivíduo pertencente à determinada coletividade
estigmatizada a partir do pré-julgamento sobre suas características, em detrimento de suas
verdadeiras qualidades individuais. Grande parte das vezes, os estereótipos carregam aspectos
negativos, errôneos e simplistas, e por isso formam a base de crenças preconceituosas.
entanto, neste artigo, trato de estereótipos que segundo Guerra (2006) pressupõem e
impõem padrões sociais ou mesmo estigmas, esperados para um indivíduo vinculado à
determinada coletividade. Esses padrões não são produzidos espontaneamente, porque
estas representações não são neutras, mas, atos intencionais, influenciando os processos
históricos.
Essas imagens criadas, às vezes inconscientemente, tem nos meios de
comunicação e informação, um importante papel para reforçar (ou desconstruir) os
estereótipos. É, portanto, com esta configuração, que se encontram as produções de
Tarzan. Como uma criação aparentemente, espontânea e inconsciente que se torna o
mais potente e eficaz propagador de representações estereotipadas sobre o continente
africano.
Sendo assim, faço uma breve descrição do contexto histórico em que se enceta a
história de Tarzan, demonstrando os papéis da imprensa e do cinema neste
empreendimento, como também, do transculturalismo para transcrição da ideologia
hegemônica ocidental e americana.
Observo a origem das estereotipias que inspiraram a criação de Tarzan, tomando
Mudimbe (1989) como principal referencia, que faz uma abordagem sobre estereotipias
na produção de conhecimentos em diversas áreas sobre o continente africanos e os
papéis dos três “M” de Ki-Zerbo - Mercadores, Militares e Missionários como
disseminadores de imagens estereotipadas.
Finalizo, observando que estereotipias sobre o continente africano permeiam
toda a produção que envolve este personagem, fazendo uma análise no primeiro livro de
Burroughs, criador do personagem.

Tarzan: arquétipo a serviço de ideologias

Menos de duas décadas distancia a invenção do cinema do romance que criou o


personagem Tarzan. Neste período vários acontecimentos de grande impacto para toda a
humanidade marca a história. Os mais importantes que enternecem este evento são: a
democratização da imprensa no século XVIII, a revolução industrial, a já citada
invenção do cinema, a abolição da escravatura moderna da diáspora, a Conferência de
Berlin e a explícita divisão internacional do trabalho. Todos esses fatos que acontecem
entre o século XVIII e início do século XX, se constituem em mudanças intrincadas que
ressignificam profundamente os modos de vida, os interesses e ideologias em todo o
planeta, para toda a humanidade, portanto, suas representações e estereotipias. Essas
transformações ganham, consequentemente, a potência do cinema para se instalarem e o
personagem Tarzan, é um agente e veículo de grande importância, dessa transição e
nesse processo.

Falar em democratização da imprensa significa compreender que de acordo com


Patrícia Bandeira de Melo, (1998) esta surge com a formação da escrita e aquisição da
linguagem, exposição de ideias em público, participação de discussão política e evolui
“para a imprensa escrita, e em seguida para o rádio, a TV e a Internet. Os debates, antes
nas ruas, passam a ser mediados pela imprensa.” Esta democratização ganha força
quando em 1840, o papel passa a ser produzido de resina das árvores, gerando uma
demanda pela troca de informações, intensificada cada vez mais pelo acesso da
população à leitura e à escrita, democratizando, portanto, a cultura.” Surge a indústria
da comunicação, porque com a inovação da imprensa, a história passou a ser contada de
forma mediada. Segundo Thompson (1998,38), In Melo (1998, p. 03), “nosso sentido de
passado e de como ele nos alcança se torna cada vez mais dependente da expansão
crescente de um reservatório de formas simbólicas mediadas”.

Para Melo (1998), as mudanças político-sociais são creditadas à circulação de


impressos, o que favoreceu a Revolução Francesa e ascensão da burguesia. Então o
sucesso da imprensa está diretamente ligado ao processo de industrialização, que
favoreceu a transformação para uma imprensa ideológica, popular e de referência.

Os fenômenos da Revolução industrial que começa em 1760, impactando nesta


questão são, a substituição do trabalho artesanal pelo assalariado, como também a
substituição do uso de produtos manufaturados por industrializados, o êxodo rural e a
exploração de colônias e dos mercados ultramarinos, iniciando-se a divisão
internacional do trabalho e o neocolonialismo compreendido como um ciclo
imperialista que levou os países europeus a ocuparem a África e a Ásia. A abolição da
escravatura moderna que se inicia em 1794 até meados do século XIX, aumentando o
fluxo do proletariado e ampliando significativamente o mercado consumidor. Esses
fenômenos prefiguram o imperialismo moderno e novas demandas políticas para o
controle e manutenção deste.

O cinema difundido a partir de 1995, neste contexto histórico, já no seu início é


utilizado para fins colonialistas. Segundo Gomes (2014) as primeiras produções fílmicas
inspiradas na literatura romanesca colonialista, já tinham este caráter, como também já
se interessava pelo exótico especificamente o “exótico” marcado pela diversidade do
continente africano.

A democratização da imprensa e a origem do cinema fazem surgir o


colonialismo impresso que integra todas as formas de representações elaboradas pelo
Ocidente - relatórios, documentos oficiais, narrativas de viajantes, HQs, produções
fílmicas e romances, daí sua maior expressão ser veiculada especialmente pela
literatura, que de maneiras diferentes, porém, sempre com a utilização da imprensa e
meios de comunicação disponíveis, produzem e oferecem representações da diáspora,
do continente e dos povos africanos.

É neste contexto histórico que surge Tarzan. Um personagem que, priori e para a
grande maioria de seu público é um mito, um herói sem censura em suas produções, um
personagem criado somente para entreter. No entanto, devido a dinâmica que provocou
na indústria cultural sua capacidade de reverberação multimidiática no tempo e espaço,
consegue ser o maior arquétipo do colonialismo impresso para disseminar a ideologia
colonialista, neocolonialista e imperialista, e produzir representações e estereotipias do
continente africano, durante um século de existência.

Criado em 1912, pelo norte-americano Edgar Rice Burroughs, quando publica


seu primeiro romance Tarzan o filho das selvas, consegue uma ampla disseminação.
Esta pode ser verificada nos âmbitos material e simbólico. De forma concreta pela
cronologia, desde o ano de 1912 até os dias atuais; de público, pessoas de todas as
idades, classes sociais e de praticamente todas as partes do planeta com acesso à
comunicação televisiva, escrita e mesmo cinematográfica. 3Desde sua criação, o

3
Informações encontradas no site https://pt.wikipedia.org/wiki/Tarzan
personagem estigmatizado e mitificado por Tarzan, protagonizou 18 livros, escritos
entre os anos de 1912 e 1965, e 50 filmes, a partir do ano de 1918 até 2016; foram
produzidos, histórias em quadrinhos, programas de rádio, séries para a televisão e
artigos diversos em revistas e jornais.
De acordo com Santos (2017), a arte sequencial, a qualidade artística das HQs,
aventura na narrativa, heroísmo, ótima aceitação, despertar do interesse dos países de
primeiro mundo, e a descrição exótica do continente africano capaz de ativar e inflamar
a imaginação de escritores e leitores, são as características responsáveis pelo
esplendoroso sucesso da produção de Tarzan e leva Burroughs a ser considerado o
maior escritor norte americano vivo, conforme Santos:
Em maio de 1939, a revista Saturday Evening Post convidou o jornalista e
vencedor do Pulitzer, Alva Johnston, a eleger o maior escritor norte-americano
vivo. A decisão deveria basear-se em três aspectos: o número de leitores do
autor, seu sucesso em estabelecer um personagem na consciência mundial e a
possibilidade de ser lido pela posteridade. Segundo Johnston, Edgar Rice
Burroughs (1875-1950) poderia reivindicar o título, já que “nenhuma criação
literária desse século possui um séquito tão grande quanto Tarzan”. (SANTOS
2017)

Desta forma, Tarzan se torna um fenômeno mundial, porque foi com este
personagem que, muitas pessoas tiveram o primeiro contato com as HQs, o cinema e a
tv, que as acompanhou vida afora, retroalimentando o fascínio pela novidade da mídia
como também do personagem. Então Tarzan não se constitui simplesmente um ídolo,
mas o ídolo de gerações no decorrer de um século, que carrega em seu nome, múltiplas
representações.
Este foi inspirado na literatura romanesca colonialista. As fontes de inspiração
reconhecíveis para compor as características do personagem e espaço, que acontece o
enredo, são o mito romano de Rômulo e Remo, o Livro da Selva e As Minas do Rei
Salomão, passando por relatos da África colonial do fim do século XIX.
As fontes de inspiração reconhecíveis na história mais famosa de
Burroughs são muitas: de Rômulo e Remo ao Mogli de O livro da selva, de
Rusyard Kpling, passando por relatos da África colonial do final do século XIX,
como As minas de Salomão, de H. Rider Haggard. Considerada a primeira
aventura africana publicada em inglês, o livro de Haggard teria sido um dos
grandes motivos que levaram Burroughs a escrever Tarzan, o filho das selvas.
Existem ainda os que veem um possível encontro entre o conto de fadas “a bela
e a fera” e a peça Romeu e Julieta no conturbado amor de Tarzan e Jane.
(BURROUGHS 2014, p. 13).

Ribeiro (2008) conclui que as idiossincrasias de Tarzan, circunscreve uma


ideologia, porque representa a configuração da modernidade urbana industrial (centrada
nos Estados Unidos da América e na Europa Ocidental). E Pena (2018) complementa,
justificando que nesse processo estabelece-se numa relação, direta e também indireta,
entre industrialização, urbanização e cultura, num fortalecimento mútuo e
impulsionadores da globalização, porque acontece uma rede de influências, envolvendo
dinâmicas macroeconômicas, sociais e culturais em escalas que vão do local ao global.
O cinema, através do personagem Tarzan inscreve o colonialismo como
processo histórico transcultural. Este, de acordo com Andrade (2016), articula teorias e
conceitos pós-coloniais através das representações, instalando com o que seria “choque
de civilizações”, uma ideia central, um debate sobre o dissenso e/ou consenso entre
culturas o que pode ser traduzido por hibridismo e mesmo o transculturalismo.
O transculturalismo, um fenômeno inerente ao modernismo, ao tempo em que
reclama novas identidades, constrói paradoxos, ora de controle, ora de movimentos
segundo o qual Jeff Lewis (2002, p. 24) in Andrade (2016) assinala:
... partindo de Gramsci e de Foucault, sublinha, entre outros traços do
transculturalismo, as transformações da cultura e dos seus fluxos, e a
consequente necessidade de repensar tais mudanças no seio dos atuais sistemas
de conhecimento e de poder, em termos dos significados e suas
relações (meaning-making), partilhados pelos agentes sociais.

No transculturalismo, encontra-se a “chave”, o cerne da hegemonia Ocidental.


Sem a possibilidade de uma cultura hegemônica explícita, porque a globalização é um
fato e as “leis de direitos humanos precisam ser respeitadas” utiliza-se da alteridade do
“Outro” como disfarce para a imposição da cultura dominante. A cultura em si,
enquanto propulsora de linguagem é capaz de estabelecer-se então, aproveita-se desta,
para disseminar ideologias, neste contexto, colonialista e imperialista. É nesse encontro
entre transculturalismo, estereotipias e hegemonia que o jogo de interesses acontece. E,
neste entrelaçamento de lugares culturais e históricos o ocidente circunscreve-se como
fórum cultural mundialmente hegemônico, conforme esclarece Homi Bhabha (1998, p.
45) in Ribeiro (2008, p. 11).
Tarzan, suas aventuras e os signos e imagens movimentados em suas
narrativas advêm como textos em que se torna legível o processo de
conformação do Ocidente como fórum cultural mundialmente hegemônico, nos
três sentidos da palavra 'fórum' assinalados por Homi Bhabha (1998, p. 45):
“como lugar de exibição e discussão pública, como lugar de julgamento e como
lugar de mercado”. A escritura da 'África' passa pelo fórum do Ocidente,
embora não esteja restrita a seus regimes simbólicos e envolva outros lugares
culturais. Tarzan habita o limiar entre uma genealogia ocidental e uma história
transcultural, possibilitando pensar a escritura da 'África' como um processo
glocal de produção de sentidos – o entrelaçamento de múltiplos lugares
culturais e históricos em redes globais amplas, embora irregulares, de fluxos de
comunicação, delimitando o que chamo de economia política do nome de
'África'. (RIBEIRO 2008, p. 11)

A economia política do nome de África é assim “materializada’, quando nesta


narrativa transcultural opera um aparato de produções e significações as quais
nomeamos de representações estereotipadas que envolvem o nome de 'África' e
delimitam seu campo de referencialidade afetiva e ideológica. Mudimbe diz que trata-se
de:

...um modelo que domina o nosso pensamento e devido à sua projeção a nível
mundial através da expansão do capitalismo e do fenômeno colonial, ele marca
a cultura contemporânea, impondo-se como um modelo fortemente
condicionado para alguns que obrigou a aculturação de outros ( SACHES,
1971, p.22; citado por BIGO, 1974, p. 23, nº 3 in MUNDIBE 1989 p. 18).

Tarzan: Origens das estereotipias


E de onde a literatura colonialista que inspirou Burroughs infundiu-se?
Estudiosos como Thornton reivindica que a descoberta da África foi também uma
descoberta pelo papel. Então Mudimbe em seu livro A Invenção de África (1998)
questiona: “Até que ponto pode alguém falar de um conhecimento africano?” Esta
premissa suscita argumentações significativas para a compreensão das estereotipias a
cerca deste continente. Por muitos séculos se explora, coloniza, evangeliza, se fala, de
uma diversidade humana, espacial e temporal da qual, nem sempre se conhece.

Mudimbe se refere à produção científica realizada sobre o continente africano,


inebriada de um erro metodológico irreparável, de ciências criadas com o intuito de
discriminar, inaugurando o etnocentrismo epistemológico, de invenção de conceitos
para discriminar a exemplo do termo étnico, de conhecimento científico produzido por
correspondência e por procuração, porque o cientista nunca vivenciou empiricamente o
objeto pesquisado, e a lista segue, sendo portanto, o viés de representações
estereotipadas. Conforme justifica Mudimbe (1989, p. 32), “nomeadamente, a crença de
que cientificamente não há nada a aprender com ‘eles’ excepto se já for ‘nosso’ ou
surgir de ‘nós’. “Se o conhecimento produzido é distorcido, o que mais poderá se
aproximar do real?” (citação minha). Sobre estas questões Mudimbe esclarece:

Neste contexto, o meu argumento é que até à data as formas como estes
sistemas de pensamento tem sido analisados e os conceitos que tem sido
utilizados para explicar estão relacionados com teorias e métodos cujas
restrições regras e sistemas de operação pressupõe uma legitimidade
epistemológica não-africana (MUDIMBE 1989, pp. 10-11).
Esses desvirtuamentos levaram à criação de ciências como a antropologia, e a
egiptologia, a distorções na filosofia, biologia e outras ciências, sem precedentes e com
erros irreparáveis. Todo esse empreendimento com o intuito de explorar, diferenciar,
controlar e discriminar os povos ditos exóticos, instala o que Lévi-Strauss in Mudimbe
(1989) intitula de etnocentrismo cultural.

Voltando ainda um pouco no tempo e na história, século XV – XIX, essas


estereotipias começam pelo que Ki-Zerbo denomina de “três M”, os Mercadores,
Militares e Missionários determinaram as modalidades e o ritmo do domínio, da
colonização e da transformação do “Continente Negro.”

Os Mercadores, também intitulados exploradores, que transitavam pelo


continente, escreviam algumas experiências com pouco ou nenhum conhecimento
científico. Esses escritos serviam de inspiração para escritores, e cientistas de diversas
áreas de conhecimento, em sua maioria, europeus. Muitos desses viajantes ainda faziam
pesquisas por correspondência conforme justifica Mudimbe (1989, p. 67) “... tornou-se
evidente que o viajante se tinha tornado um colonizador e o antropólogo o seu consultor
científico.” E mais:

...a depreciação começou com os viajantes europeus, sobretudo pelo


“desejo de ser injusto” ou “pelas noções pré-concebidas do negro” e em parte,
também, pelo princípio de que é mais fácil rebaixar do que elogiar” (CINR, p.
263) ... situam justificações ideológicas usadas pela primeira vez pelos viajantes
e depois pelos exploradores a criação e missionários para criar uma nova ordem
no “continente negro”... isto significava a abertura de África ao comercio, à
educação europeia e ao cristianismo e, assim a criação e o cumprimento de um
domínio psicológico. (MUDIMBE 1989, p. 143).
Ao Militar, coube construir fortes, castelos e feitorias, fortalecer, conforme
Isabel Henrique Castro (2014, p. 49), os planos econômico, ideológico e político e
também transitar representações já disseminadas pelos viajantes.

Aos Missionários, o papel de “remitir” para a África toda estereotipia construída


pelos viajantes e cientistas pelo conhecimento produzido e disseminado. Através da
religião e da educação, dois fenômenos inerente ao ser humano, esta tarefa se cumpre
quando:

Os missionários, antecedendo ou seguindo uma bandeira europeia, não


apenas ajudaram o seu país natal a adquirir novas terras, mas também
cumpriram uma missão “divina” ordenada pelo Santo padre, Dominator
Dominus. Foi em nome de Deus que o papa considerou o planeta seu direito e
criou os princípios básicos da terra nillus (terra de ninguém), o que priva os
nativos não cristãos dos direitos a uma existência política autônoma e do direito
de possuir ou transferir a propriedade (WITTE, 1958 in MUDIMBE 1988, p.
68).
Os missionários tinham de incluir as perspectivas políticas, e culturais do país da
colonização, bem como a visão cristã de sua missão. Tirando dos “Bantus, Ndebeles,
Bosquímanos e Xonas” até o direito a suas próprias terras, através do poder da missão
foi-lhes tirado, em nome de Deus, do “progresso” e da “civilização”, todo o patrimônio,
material e imaterial. Foram-lhes negadas suas religiões, línguas, artes, culturas e
conhecimentos diversos, antes mesmo de serem conhecidos, daí tantas estereotipias. E
foram impostos outros modos de vida, outras línguas, linguagens, a negação de si
mesmo, de sua identidade, tornando-os, portanto, assimilados.

A negação das línguas e linguagens representam perdas irreparáveis, porque, de


acordo com Schopenhauer (2014), linguagem é o veículo, por excelência das
representações. Por isso, decorre que o pensamento tradicional africano passa a ser
inconcebível não podendo ser explícito no quadro da sua própria racionalidade. Das
muitas línguas faladas e lenda contadas, passa-se praticamente para três: portugusa,
francesa e inglesa. Essas línguas eram divulgadas de acordo com Appiah (1997) como
“nobre e superiores” para expressar as “verdades mais elevadas” do cristianismo.
Serviam também para transformar os africanos “selvagens” em negros e negras
franceses “evoluídos”.

Como fundamento para a imposição de línguas oficiais existia o interesse de


manutenção da “ordem” pela utilização destas conforme nos diz Appiah:

Nessas condições, insistir na alienação dos súditos coloniais de


educação ocidental, em sua incapacidade de apreciar e valorizar suas próprias
tradições, é correr o risco de confundir o poder dessa experiência primária com
o vigor de muitas formas de resistência cultural ao colonialismo (APPIAH
1997, p. 25).

Appiah (1997) compactua do esfacelamento da psicologia pós-colonial de


África quando argumenta que não há possibilidade de se viver como africano no espaço
tempo de sua colonização “ sem ficar com uma poderosa sensação de pertencer a uma
subcultura estigmatizada, viver num mundo em que tudo, desde seu corpo até sua
língua, é definido pela “corrente dominante” como inferior” e Fanon ( 2008) que toma
como referência para sua pesquisa as Antilhas afirma que “os professores vigiam de
perto as crianças para que a língua crioula não seja utilizada.”

Nas escolas que tinham como mestres, missionários, a imposição era em um


grau tão absurdo que a educação e os livros eram rejeitados porque não mencionavam
nada sobre a vida e a cultura de quem os recebiam. Os livros falavam de culturas
europeias com personagens europeus e a educação também se dava em línguas
europeias. Daí uma enorme rejeição pelos livros e pela educação.

Estabelecido o etnocentrismo, o etnocentrismo cultural e a colonização na


ciência, o pensamento de e sobre África torna-se ocidentalizado. Por esse motivo
Mudimbe subdivide estudiosos em africanos ocidentalizados de africanos reais, porque
os estudiosos de África, não revelam sua alteridade pelo papel. Appiah (1997)
complementa - “pensam e escrevem sobre o futuro da África em termos basicamente
tomados de empréstimo de outros lugares.” Em decorrência desse fenômeno,
instituições capitalistas que acabaram por conduzir à dependência e
subdesenvolvimento devido à estrutura colonizadora, emergem sistemas dicotômicos.

Tarzan: a propagação de estereotipias


O criador de Tarzan, nunca esteve no continente africano. Essa afirmação é feita
por Thiago Lins que faz a introdução do Tarzan o filho da selva de Burroughs. Citando
Wells, justifica: “Não obstante tantas influências, o livro de Burroughs alcança a
posteridade por seus próprios méritos, através de uma enorme dose de aventura e de sua
‘incredibilidade prática’.” Segundo Thiago,

A fantástica história de vida de Tarzan chega até nós por meio de um


narrador que a ouviu de “alguém que não ganhava nada em conta-la a mim ou a
qualquer outro”. Descobrimos, a seguir, que o poder de uma antiga safra de
vinho foi a razão pela qual o primeiro proseador deixou escapar essa grande
aventura para o nosso narrador - e que tem firme convicção de que ela pode ser
verdadeira. (THIAGO LINS in BURROUGHS 2014, pp.13-14).
Logo, Tarzan é fruto de uma lenda que começa a ser contada no final do século
XIX, já inspirada numa literatura que foi inspirada em contos de viajante, missionários
militares e pelas ciências, ambos carregados de estereotipias.

Tomando por base o livro O filho da selva de Burroughs, observo que as


estereotipias descritas por Mudimbe, Appiah, Fanon e tantos outros autores, são
reverberadas em toda produção de Tarzan, porque este personagem incorpora explícita
ou implicitamente, todas essas estereotipias.

Começo com a representação “Eu e o Outro”. ‘Eu’ o superior, dotado de todas as


qualidades superiores, o ‘Outro’ inferior, com todas as características que denotam
inferioridade. Mesmo sendo criado por macacos desde crianças já apresentava
qualidades superiores não somente aos macacos que os criou, como também aos nativos
e a qualquer outro ser humano.

Conforme Tarzan crescia, seu desenvolvimento se tornava mais rápido,


e aos dez anos, já era um excelente escalador. Além disso, no chão, podia fazer
coisas maravilhosas, muito além da capacidade de seus irmãos e irmãs menores.
Diferenciava-se deles de muitas maneiras, e constantemente se surpreendiam
com sua astúcia superior. Contudo em tamanho e força ainda deixava a desejar,
pois os enormes antropoides estavam plenamente desenvolvidos, alguns deles
elevando-se até um metro e oitenta de altura, enquanto Tarzan ainda era um
garoto. Mas, ainda assim, que garoto extraordinário!... Conseguia saltar seis
metros entre as vertiginosas alturas do topo da floresta e agarrar-se nas
extremidades dos galhos com uma precisão infalível, sem qualquer oscilação
aparente (BURROUGHS 1912-2014 p. 66).
As qualidades de Tarzan alcançavam superioridade nos patamares biológico,
quando superava os símios, em seus atributos, embora sendo criado desde o primeiro
ano de vida por eles, ‘racial’ em comparação com os nativos superior em termos de
‘civilização’ e porque sua nobreza era reconhecida até inconscientemente por ele, e
mitológica, porque há ainda qualidades também superiores a qualquer ser humano.
“Apesar de ter dez anos era tão forte quanto um homem de trinta e muito mais ágil do
que qualquer atleta um dia seria” (BURROUGHS 1912-2014 p. 68).

Enquanto enaltece as qualidades de Tarzan, denigre os nativos, inclusive


neste livro, Tarzan é inimigo sem causa dos nativos e Esmeralda uma senhora
negra, serva de Jane, e seu pai, retratada em toda a narrativa de forma muito
preconceituosa e que fala o idioma inglês muito pior que Tarzan.

Tinham três linhas coloridas paralelas tatuadas na testa, e, no


peito, três círculos concêntricos. Os dentes amarelados haviam sido
limados, ostentando pontas afiadas, e seus grandes lábios protuberantes
potencializavam ainda mais a degradada e bestial brutalidade de sua
aparência. (BURROUGHS 1912-2014 p. 105).

“Civilização” hereditária. Com apenas o contato com alguns livros que seus pais
trouxeram, Tarzan consegue se auto alfabetizar e cobrir sua nudez com roupas, também
aprendido pelos livros.

E dessa forma ele progrediu bem devagar, pois era uma tarefa
difícil e laboriosa a que se propusera, mesmo não sabendo disso- uma
tarefa que poderia parecer impossível para mim ou para você -, aprender
a ler sem ter o menor conhecimento sobre as letras ou a linguagem
escrita, e o pior: sem ter a menor ideia que tais coisas existiam.
(BURROUGHS 2014 p. 86).
O continente africano enquanto imensa floresta. Na narrativa que é
contemporânea à escrita do romance, no auge da colonização do continente. Muitas
cidades construídas desde a antiguidade e muitas outras em andamento devido à
colonização, em pleno estágio de urbanização. Tarzan em suas andanças encontra tribos,
mas não encontra uma cidade sequer. O continente é visto em toda a sua produção como
uma contínua floresta. Com todas as características que uma floresta tem, no entanto,
com representações de desmerecimento. “Mas foi uma misericordiosa Providência
quem o impediu de vislumbrar a horrenda realidade que os aguardava nas sinistras
profundezas daquela floresta sóbria. (BURROUGHS 1912-2014 p. 39). A floresta que é
para os povos africanos considerada como local sagrado, que abriga “o Baobá”, agora é
uma ininterrupta selva, ringue de lutas do personagem Tarzan, e submissa a ele porque
nunca o vencerá.

Para os povos primitivos, toda natureza era sagrada. As tradições


afrodescendentes e indígenas ainda guardam esta crença. E embora Candomblé
e Umbanda, por exemplo, possuam terreiros e barracões, muito de seus rituais
se dão ao ar livre, em meio a matas, florestas, rios, cachoeiras, praias.
(RICIERI, LAZARINI E DOTTORI, 2016)

Considerações finais

Na “aurora” de uma revolução tecnológica que trazem mudanças político-


sociais, significativas para toda a humanidade, Tarzan surge como fruto de uma
literatura colonialista, de uma revolução industrial e cultural que e como propagador de
ideologias para manutenção e multiplicação de ideologias.

O cinema que já em sua origem tem caráter colonialista, torna-se mais sutil e
ganha força com o personagem Tarzan. Ao tempo em que passa a disseminar outras
ideologias como neoliberalismo, globalização e a manipular as massas, os proletariados,
reforça a manutenção da hegemonia americana.

Tarzan é uma “construção” maniqueísta porque estabelece um paradoxo, quando


através da figura do herói, do mito, existem, estereotipias carregadas de jogos de
interesses.

As representações que compõem a narrativas e cenários de Tarzan não foram


construídas “num passe de mágica”, mas começam com viajantes que exploravam o
continente africano, depois por missionários e militares. Por ciências discriminadoras
disseminadas por cientistas que muito pouco sabiam sobre o continente.

O contexto histórico em que se enceta a filmografia de Tarzan e suas narrativas,


inauguram o fenômeno da colonialidade, isto é, a perpetuação do colonialismo implícito
e multifacetado.
A linguagem que é o espaço de “materialização” das representações é
extremamente prejudicada no continente africano quando seus povos são obrigados a
abandonarem seus modos de vida, religiões, artes e assumirem outros tornando-se
assimilados. Esse fenômeno acarreta em mais possibilidade de estereotipias por falta de
memória ou mesmo da valorização desta.

Referencias

ANDRADE, Pedro. Cinema transcultural em debate numa rede de conhecimento:


significados pós-coloniais híbridos no cinema de resistência. Disponível em
http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2183-
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