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Ensopado de coelho

27 DE OUTUBRO DE 2022 ~ MARCIA BENADUCE

Quando a grande travessa de carne foi pousada sobre a mesa, Vitinho fixou o
olhar nos querubins bordados em ponto cheio na beirada da toalha. Uma
gota de suor frio escorreu de sua têmpora esquerda e pingou na calça branca
bem passada. A comida em seu prato ficou intocada e os talheres pousados ao
lado do prato. O seu estômago foi se contraindo até que, mal tendo tempo de
virar o rosto, vomitou ruidosamente no tapete da sala de jantar.
Moravam em um casarão antigo com um enorme pátio. Na tarde
anterior haviam feito o que mais gostavam nos finais de semana:
brincar de pega-pega, pular amarelinha, mexer na terra e cuidar dos
bichos de estimação. Desde que obtiveram permissão para criá-los, os
coelhos eram seus animais preferidos. Começaram com um casal, mas
agora já tinham oito bolas saltitantes de pelo cinza. Estavam entretidos
colhendo alfaces e servindo a eles nas gaiolas quando o pai chegou à
janela e chamou Artur, o primogênito.
Poucos minutos depois Artur retornou pela porta dos fundos,
com uma cara muito séria, e falou:
─ O papai mandou a gente matar os coelhos. Ele prometeu um
ensopado pra o bispo e vai ser amanhã. A mamãe quer deixar a carne
marinando de noite. Tem que ser agora.
Os meninos ficaram imobilizados em suas posições,
aterrorizados pela emergência da tragédia. Depois recomeçaram o que
estavam fazendo, com movimentos lentos e automáticos e a cara
amuada.
Estavam ainda segurando o choro – com exceção de Joca, o
menorzinho, que soluçava alto – quando Artur exclamou:
─ Eu tenho uma ideia.
Foi imediatamente cercado pelos outros seis, que escutaram
meio boquiabertos.
Umas duas horas depois depositaram as carcaças na mesa de
madeira da cozinha, evisceradas e meticulosamente limpas, sem
cabeça, rabo ou patas. A cozinheira comentou, satisfeita:
─ Muito bem, guris. Bom trabaio. Vou chamá a Dona Eugênia
pra gente começá a prepará. Um de voceis traiz umas cebola e uns alho
da dispensa pra mim. Vô caprichá nos tempero, quem sabe ganho uns
ponto com Deus por enchê o bucho do padre.
Nenhum dos garotos riu. Foram saindo da cozinha aos poucos,
cabisbaixos.
Dom Artêmio Ruas era comensal amiudado na casa. Apesar
disso, Dona Eugênia se esmerou nos pratos para agradar ao amigo de
longa data. Passou a manhã de domingo ao fogão, preparando a carne e
seu farto acompanhamento.
Quando o sino da Catedral bateu meio-dia todas as crianças
estavam sentadas para o almoço, bem vestidas e penteadas, afastadas
do convidado e dos pais por ordem decrescente de idade. Nenhuma
delas falava, somente escutavam a conversa dos adultos. Isso era
normal, pois tinham ordem de abrir a boca exclusivamente para comer
ou responder caso fossem perguntadas. O que ninguém observou é que
também não se olhavam, nem se cutucavam por baixo da mesa como
costumavam fazer.
Mal tocaram na limonada gelada e nos pãezinhos da entrada.
Quando chegou o prato principal, seguiram o movimento da
cozinheira, ficando progressivamente mais pálidos à medida em que
ela se aproximava.
No momento em que a mãe serviu uma generosa porção ao
bispo, acompanhada de polenta e radite, prenderam a respiração.
Como se estivessem assistindo a uma fita de suspense, viram o
religioso fechar os olhos, saborear o quitute e declarar, sorrindo:
─ Está um verdadeiro primor, como sempre, minha amiga. Tu és
uma cozinheira de mão cheia, nunca decepcionas. Deus te abençoe!
Observaram Dona Eugênia respirar aliviada com o elogio e
também expiraram, obrigando-se a voltar a atenção para as suas
respectivas quotas do ensopado, que exalava um cheiro penetrante pelo
ambiente.
Depois de consumir a sua parte, tomar uns goles de vinho e secar
os abundantes bigodes, o dono da casa olhou para os filhos e
estranhou:
─ Por que nenhum de vocês está comendo?
O silêncio tomou conta da sala. Ouviu-se o assobiar do vento nas
quinas da casa, os alegres gritos de “tô-fraco” das galinhas de angola
nos fundos e as batidas de panela na cozinha. Os meninos olhavam
para baixo, imóveis e mudos. Até que o Vitinho vomitou. Na comoção
que se seguiu, os irmãos saíram da mesa e foram para seus quartos,
sem pedir licença aos pais nem se despedir do bispo.
Mais tarde o pai mandou chamá-los ao escritório. Do alto da sua
poltrona estofada de couro, pernas cruzadas e cinto na mão, ordenou
que todos ─ inclusive as meninas, que não tinham participado do
“motim” ─ formassem uma linha à sua frente.
─ Preciso da opinião de vocês, estimados rebentos. Tivemos um
delicioso ensopado de coelho no almoço, mas os seus coelhos não
estavam na panela. Ainda estão vivos, escondidos no galpão. Que
milagre foi esse?
Ninguém teve coragem para explicar, mesmo sob a ameaça de
longa prisão domiciliar e castigo eterno. Vitinho, com os olhos
inchados e o nariz vermelho, foi retirado de seu lugar costumeiro na
fila e teve o duvidoso privilégio de ser o primeiro a apanhar. Mas a
distinção acabou aí: o patriarca foi equânime na força e na quantidade
de golpes. Esmerou-se também na posterior retaliação: segunda-feira
bem cedo, antes de ir para a repartição, chamou um dos feirantes da
praça vizinha e vendeu todos os coelhos. Enquanto faziam o negócio,
ouviu um comentário curioso:
─ Seu Mancini, tô estranhando uma cosa. Toda manhã tem
vários gato ispreitando aqui, pra comê as cabeça de pexe que dexo no
balde. Hoje não tem nenhum. O sinhor não viu algum por aí?

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