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Na vida tudo era mais simples sob a ótica de um bom cozinheiro, pensava Tianne

desde que descobriu que aquelas coisas de comer maravilhosas que seu pai fazia eram
basicamente a profissão dele.
Dona de um rosto com feições muito marcantes, especialmente porque seus olhos,
pretos como a ameixa que amava comer nos doces feitos sua mãe, de ar brilhantes
como as luzes de Natal ao sorrir e seus lábios bem desenhados que pareciam pétalas
rosadas de flores de açúcar que sua avó fazia nos confeitos para itens de casamento
que produzia, Tianne possuía também um rosto bem arredondado, sobrancelhas grossas
e cachos grandes e volumosos emoldurando toda sua face, numa coroa que seu pai
brincava dizendo ser por Tianne ser uma futura rainha de culinária.
— Avise a seu pai que a senhora Crossed chegou... — sua mãe dizia baixo, debruçada
na pequena janela que era de onde vinham as comandas e saiam os pedidos.
Do lado do cliente havia um grande salão, com mesas redondas, cadeiras de ferro
simples e um pequeno balcão, onde sua mãe costumava a servir algumas doses de
bebiba nos dias de karaokê do restaurante. Tudo com paredes em cor creme, piso de
madeira reflorestada e uma grande janela na entrada que permitia ver a rua, o
movimento dos carros e pessoas entrando no estabelecimento.
Como se o sino na porta e os sons do assoalho – já velho e passando da hora de
trocar – não fossem bons anúncios o suficiente. Além das frases características que
cada cliente já fiel dizia ao entrar no restaurante e sentir o cheiro da comida
sendo produzida lá, algo que fazia o fundador, dono e chefe do restaurante muito
feliz.
— Papa! O maracujá-de-gaveta chegou! — Tianne gritou para ser ouvida acima dos sons
da cozinha, recebendo olhares feios da mãe.
Ignorando a senhora da janela, passou os pratos, que sua irmã a entregava, junto
das comandas respectivas aos pedidos, enquanto assistia seu pai revirar os olhos e
falar algo com sua avó. Uma senhora cuja vitalidade era infinita, pois aos seus
noventa e sete anos se levantava cedo para ajudar no restaurante e só vai para casa
quando tudo está perfeito para o dia seguinte, costume que passou ao pai de Tianne
e por consequência a própria garota também.
Acordava junto da avó para começar o dia no restaurante, ainda que durante o
período fosse à faculdade.
— Hoje vamos até muito tarde. — o chef da cozinha informou a sua filha que, agora
amarrando seu avental que estava um tanto solto, correu para montar o último pedido
pendente.
Seu pai era uma versão oposta dela, ainda que tivesse o herdado seus olhos escuros
e brilhantes. De porte bem alto e magro, o homem, constantemente curvado sobre
alguma panela produzindo pratos, tinha traços muito mais finos e cor mais escura
que a de Tianne, possuindo abaixo de seus olhos escuros e brilhantes, cheios de
carinho e alegria bolsas de olheiras e marcas do tempo, que já se via por toda sua
face, que ainda se podia dizer pertencer a um homem muito charmoso e carinhoso, por
palavras da esposa dele.
— Você quer dizer nós dois, que somos velhos e só aguardamos a morte, meu filho.
Deixe as meninas irem comemorar, sim? — a avó, com seu sorriso tranquilizador,
deixou claro a Tianne que não se esqueceu do pedido dela mais cedo.
Por ser o dia do aniversário da sua melhor amiga, Tianne precisava chegar mais cedo
para só então se arrumar e sair correndo de casa, para que seu pai não a impedisse
de sair por estar muito despida. Como o pai super protetor e paranoico com as
filhas mulheres que era.
— Obrigada, vovó. — sussurrou ao passar pela senhora que batia claras em neve com a
força e a importância de algo que fosse salvar sua vida.
Não que não fosse para Tianne, só que para sua família, a geração anterior que não
saia da cozinha e sequer pensava em parar de fazer comidas, ser o responsável por
uma refeição era uma forma de vida tão superior ao resto que se impossibilitava não
pensar o mesmo. Cozinhar para eles não era só uma profissão, era uma arte e a
realização de um sonho muito desejado.
— Tudo bem! Ninguém me ouve de toda forma! Finalize a sobremesa da mesa três,
limpem os pratos na pia e vão embora daqui às duas! Andem logo!
O chef liberando as suas auxiliares sorri ao vê-las gritarem e correrem para suas
funções, felizes por saírem mais cedo e poderem aproveitar a festa.
Tianne não tinha ideia do porquê, mas ao ver seu pai observando como colocava a
calda de chocolate no prato o olhou nos olhos por uns instantes, antes de dizer:
— Muito obrigada por tudo, papa! Te amo...
Só não sabia que aquela seria a última vez que poderia dizer tal coisa a ele em
vida.

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