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Me ensina

a escrever
o meu nome

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Me ensina
a escrever
o meu nome
Monaliza Caetano

São Paulo 2022


Agora, entre meu ser e o ser alheio,

A linha de fronteira se rompeu.


Waly Salomão
Sumário
Eu já paguei o meu túmulo .................................... 5
Aqui, para a senhora criar ........................................... 6
Você vem muito pouco na igreja ............................... 14
Olha sim, agora, porque senão dói mais .................... 16
Me ensina a escrever o meu nome ............................ 20

De onde eu tô vejo a porta sanfonada e a privada ... 25


Gosto de você porque é quieta .................................. 26
Que tipo de gente você está se tornando ................... 30
Aí sua tia vai ter que entender .................................. 36
Sua puta, você é uma puta ........................................ 42
Filha, você tem que tomar muito cuidado agora ....... 50
Deus pode, Deus ordena, Deus Se Levanta .............. 58

Dentro dele tinha terra .......................................... 64


As meninas fazem isso mesmo ................................. 65
O nome do pai, por favor ......................................... 70
O teu primo parece com o meu pai ........................... 76
Não, não, não ........................................................... 80
Você pegou o documento ......................................... 91

GRAVE, ................................................................. 97
Eu só quero descansar um pouco antes de fazer o almoço ... 98
Escreve uma história pra mim ................................ 103
Eu já paguei
o meu túmulo

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No fim da vida minha vó criou muitas galinhas.
Em uma manhã de sábado, a vizinha da rua de baixo
trouxe um casal de pintinhos, que foram colocados no
quintal dos fundos, com uma portinhola improvisada.
Aqui, para a senhora criar. Eles piavam e atiçavam
os outros animais: os gatos rondavam o quintal e os
cachorros, mesmo deitados, observavam qualquer mo-
vimento. Pensando que algo poderia acontecer à noite,
minha vó colocou os dois pintinhos em uma caixa for-
rada com jornal, cheia de furos. Eles dormiram perto
dos seus pés, na cama.
Nas semanas seguintes todos da casa ajudaram na
construção de um galinheiro, com tela de proteção, tá-
buas e arame. Os pintinhos cresciam e se multiplica-
vam. A minha vó era responsável por alimentar todos
eles, dar água e verduras. Ela se esquecia e eu, correndo
até o portão equilibrando ao mesmo tempo água, milho
e folhas de alface, cumpria a tarefa.
Ao me aproximar, todas as galinhas me encara-
vam quietas. Olhos amarelados e turvos, que desviavam
rápido quando sentiam medo. Eu colocava a comida

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em pratos rasos, trocava a água já esverdeada e recolhia
os restos do dia anterior. Não gostava do cheiro que os
pintinhos, agora adultos, tinham e que acabava grudan-
do em todo o quintal. O chão do galinheiro era úmido
e escorregadio, cheio de esterco, folhas, e as flores não
brotavam mais em canto nenhum. Parecia que tinha
acabado de chover forte e o lugar nunca secava. No ca-
lor era pior.
Depois eu cuidava também da minha vó, os cabelos
já brancos, com mechas azuladas. Dava todos os seus
remédios, que eram muitos, perigavam um dia entupir a
sua boca. Tentava separar cada comprimido para ter certeza
de que a quantidade e as cores estavam corretas. Com os
dedos contava e colocava lado a lado cada medicação,
em fila. Um dia poderia dar milho para a minha vó e
envenenar as galinhas com remédios arredondados para
a pressão, retirados a cada quinze dias no posto de saúde
do bairro.
Entre todos da casa, quem mais se afeiçoou às ga-
linhas foi o meu tio. Ele passava algumas tardes, que
rápido se transformavam em noites, cuidando do gali-
nheiro, trocando tábuas que inchavam e rompiam com a
chuva, lavando os pratos de alimentos e melhorando os
poleiros. Ele também cuidava de qualquer doença que
as galinhas tinham, conjuntivites ou infecções. Buscava

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remédios, fazia curativos e abrigava os doentes em espa-
ços reservados com boa sombra, próprios para o descan-
so. Olha lá o seu tio, ele podia ter sido um veterinário.
Ouvia com frequência essa frase. Na boca de muitas
pessoas, dentro e fora da casa, ela se formava enquanto
mãos e dedos se esfregavam uns nos outros: o teu tio
podia ter sido. E aos poucos eu vesti a frase como se
fosse minha e me coubesse. O meu tio poderia ter sido.
Um dia a perna esquerda da galinha mais velha, uma
que ficava o tempo todo na caixa com os olhos fecha-
dos, quebrou. Ela tentou voar, escapar do pequeno es-
paço cheio de merda que era o galinheiro e, com as asas
cortadas desde cedo, acabou caindo e se machucando.
Uma tentativa de fuga em que, demorei até entender, não
existiu chance de escapatória real. Ao fugir, ela poderia
acabar encontrando os gatos que ainda alimentavam pla-
nos de caça. E depois, se de fato escapasse, ela voaria para
onde. Casas apinhadas cercavam tudo, muros envidraça-
dos, janelas com grades, portões pontiagudos. O mundo
era grande, imenso e completamente branco, mas sujo.
O meu tio, com mãos flutuantes em calma, desen-
tortou a perna da galinha. Ela gritou o tempo todo.
Minha vó chorou deitada no sofá, de bruços. Eu me
perguntava de que era feito aquele amor todo que ela
sentia. Naquele dia eu achei meu tio o homem mais co-

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rajoso que ele poderia ser. Depois, colocou uma estreita
tala improvisada na perna da ave e enfaixou. Durante
uma semana, alimentamos a galinha com ainda mais
cuidado, dando inclusive algumas vitaminas que o dono
da casa de ração indicou e outras, que um médico re-
ceitou para a minha vó e ela acabou não tomando. Vó,
eu acho que a galinha não tá melhorando não. Eu acho
melhor a gente levar ela até o veterinário.
O dono da casa de ração não sabia cuidar de gali-
nhas e o veterinário não valia a pena. A minha vó sen-
tou em um bloco de cimento próximo da escada que
levava até o galinheiro. Eu me sentei do lado e não disse
nada, olhava suas unhas e como ela esfregava os dedos
uns nos outros. O preço do veterinário não vale a pena,
neguinha. Tá caro demais. Só a consulta já é cara demais.
Nós não levamos a galinha ao veterinário e uma
parte da sua perna apodreceu. Antes do dia nascer,
meu tio já estava no galinheiro. Em um banquinho de
madeira, ele enrolava uma faixa na mão e observava a
agonia da galinha, os olhos agora mais vermelhos do
que amarelos, encolhida em um canto. Ela não comia
ou bebia água, rejeitava as vitaminas adivinhando que
não adiantavam de nada. E o que eu faço, deixo ela
morrer? Não, cuida dela. A minha vó andava atrás
do meu tio enquanto pedia. O restante da casa evita-

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va chegar perto do que cheirava, parecia e era morte,
enquanto o meu tio se aproximava cada vez mais com
o passo duro.
Ele me acordou como sempre, uma sacola com
dois pãezinhos da padaria pendurada na porta, para que
eu não despertasse de uma vez, e o café adoçado forte.
Depois me rondou, enquanto fumava um cigarro e lavava
as mãos. Eu vou precisar da sua ajuda. E enquanto eu
fingia não saber, já dizia não, eu não vou fazer isso. Como
último argumento: então por que você não sacrifica ela.
O meu tio me olhou com algo como uma mágoa de in-
compreensão naquela manhã, percebendo de vez alguma
característica minha que ele nunca tinha notado antes.
Eu senti muita pena dele ali me olhando, senti pena dele
como todos da família costumavam sentir.
Caminhamos quietos até o galinheiro e quando ele
pegou a galinha, ela mal reclamou. Os seus olhos entrea-
bertos acalmavam meus dedos sem jeito, assim como a
cabeça que tombava conforme o movimento das mãos
que colocavam ela em uma mesa de plástico. Você vai
segurar com muita força, tá entendendo. Eu balançava a
cabeça dizendo que sim, enquanto ele tirava as faixas e
a tala da galinha, deixando aparecer uma região azulada
escura que se estendia, agora, até pouco mais do meio
da perna fina e áspera.

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Meu tio tirou uma serra nova e limpa do bolso de
trás da calça, agarrou firme a perna da galinha e ela,
recuperando a força do grito, berrou até que meus ou-
vidos se tampassem, até que me doesse alguma coisa
que não descobri mais. Eu tinha certeza de que a força
do meu aperto sufocaria ela. As minhas unhas dos pés
afundavam na lama escura do galinheiro junto com os
chinelos. O cheiro do quintal mais forte, junto do calor
em agonia que eu segurava em minhas mãos.
Diferente do que imaginei, não brotava sangue ne-
nhum da perna que era aos poucos cortada. De dentro
não saía nada a não ser grito. E eu ficava pensando, en-
quanto o barulho da serra corroía meus dentes, como
pode um ser que tá vivo ter um membro oco.
A galinha mancava no quintal inteiro e odiava
todos nós, a casa inteira.
As veias cheias de sangue, as vísceras ameaçando ruir.
Dentro dela um coração pequeno batia com força, cerca-
do de órgãos que eu supunha existir. A minha vó achava
que eu e meu tio tínhamos traído a sua confiança.
Pra que lado eu olho enquanto você corta, tio?

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No muro que divide o limite da casa com a do vizi-
nho, nos fundos, minha vó criava uma horta de tempe-
ros. Esse muro era bambo, solto, todos sabiam que ele
cederia em algum momento. Mas, quando.
Ela colhia alguns ramos de hortelã para o bolo de
carne quando a parte mais alta do muro caiu no seu pé.
O dedão virou uma massa vermelha escura, impossível de
saber onde a unha começava ou se ainda estava lá. A minha
vó gritava, mas, ainda assim, eu demorei pra ouvir. Acho
que ela não chegou a me perdoar pela demora no socorro.
Quando um vizinho me chamou pela janela, a encontrei
sentada. Recostada no resto do muro, as mãos apoiadas no
joelho e o pé parado. Ela respirava com a boca aberta, e um
dos olhos parecia mais caído do que o outro.
O sangue escuro corria pelo quintal. Estávamos
sozinhas e a casa nunca foi tão grande. Alguns blocos
estavam ao seu lado, imensos. O medo é vermelho, ar-
roxeado e tem veias: pulsa. É um pedaço de corpo sem
forma. Ele rasteja e seu cheiro é de ferro. O medo é uma
unha virada do avesso e um muro partido.

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Levantei minha vó, mas antes calcei os chinelos.
Não, busquei a carteirinha do posto de saúde primeiro.
Como estancar o sangue com um pano de chão, meu
Deus. Antes toquei os cachorros que estavam assusta-
dos. Gritei por ajuda quando vi o pé. Disse você precisa
me ajudar e se apoiar no meu ombro, vó. Não sei de que
maneira chegamos ao hospital.
O médico, com os pontos fechados e em curva,
desenhou um dedo novo. A minha vó segurava o tem-
po todo um terço que carregava no bolso e olhava para
cima, para as luzes da sala. A enfermeira dizia segura a
mão da sua vó, moça. E eu não segurava, colocava mi-
nha mão na maca, ao lado da cabeça da minha vó. Abri-
mos a ficha do cadastro depois dos pontos, eu fui até
uma sala e entreguei os documentos para uma senhora
que só olhava para as minhas mãos. Encostei a cabeça
no balcão sentindo o gelado do móvel bem no meio da
minha testa, apertei com as mãos as laterais da cadeira,
os meus dedos fechados doíam.
Minha vó, na volta pra casa, pediu para eu parar de
chorar. Deus é pai, não é padrasto, repetia com a boca
mole pelos remédios e pela dor. Já no seu quarto, ela
ligou para todos da família contando o milagre do pior
não ter acontecido. De ter machucado apenas a ponta
do dedo. Eu tive muita sorte, ela dizia.

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Por cima da geladeira, colocamos uma xícara de
café para Jesus.
*
As cadeiras da igreja são todas longas, duras e frias.
Eu me sento no fundo, não sou convidada para brincar
com as outras crianças. Elas usam roupas mais bonitas e
de festa, as meninas principalmente. Usam tiaras, saias
longas e rodadas, com tecidos que são sonhos. Usam as
saias mesmo no frio, e eu, com calças e botas que aque-
cem meu pé, perguntava se não estavam com as per-
nas geladas. Elas diziam que sim. Quando começava o
culto, os primeiros louvores eram das mulheres. Depois
alguns de homens, as crianças também cantavam. Mas
eu não cantava, a minha língua se recusava a aprender
qualquer canção.
Eu não entendia por que não fazia parte do grupo
das crianças, se eu era uma. Você vem muito pouco na
igreja, é por isso.
A palavra Jesus talhada na madeira fica atrás do
púlpito em que um homem de terno esbraveja. Ele se-
gura o microfone com a mão direita, aperta como se
fosse estrangular o cabo. A outra mão se movimenta.
Ele cospe em quem está na primeira fila de bancos. Mas
não me alcançava, porque eu me sentava próxima às
últimas fileiras. Você se senta ali atrás, irmã, atrás das
outras irmãs.

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O pé da minha vó não foi o mesmo. O dedo se en-
tortou e ela mancava quando andava uma distância um
pouco maior. Ainda assim, ela continuou a frequentar a
igreja. Aqui um dinheirinho para você dar na hora que
o irmão passar recolhendo. Eu escondia o dinheiro no
bolso da calça e dizia eu não tenho irmão nenhum.

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Morrer é o oposto do escuro: morrer é ter luz, bem
em cima da sua cabeça, que não acaba nunca nunca
nunca mais.
Sento na cadeira e leio com atenção todas as bulas
dos remédios e soros deixados na mesinha ao lado da
maca, ela finge dormir. Os braços da minha vó estão
enormes, se transformaram em gelatinas. Por debaixo
da pele, a água não flui, se recusa. Antes finos e ágeis,
agora seus braços pesam toneladas e acumulam peque-
nos arroxeados, em formato redondo. Veias pálidas e
vermelhas contornam os hematomas e desaparecem em
alguma dobra.
Ela acorda, pede por ajuda e pergunta por todos, até
mesmo por quem não existiu, muitas vezes. Eles estão
chegando, vó, de manhã sou eu quem fico com a se-
nhora. O médico entra na enfermaria às 12h e às 16h,
mas ele não nos enxerga. Toda manhã, minha principal
tarefa é virar o corpo dela para que as dores diminuíam,
para que aquela posição não deforme quem ela é. En-
tão seus braços vertem água que forma poças. No chão,

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a luz ininterrupta do quarto reflete um mar inteiro que
me cega por alguns minutos.
Os hospitais da Vila Iase são lugares de medo,
de interrupção. A Dona Helena, vizinha nossa, chegou
ao hospital apenas com dores de barriga e não voltou.
O mesmo aconteceu com a Ana Paula, Jacira e Rosa:
a sua doença inofensiva se alargou em um buraco até to-
mar e romper os seus corpos. O hospital tinha de tudo,
menos o remédio que todas elas buscaram.
*
Foi falência múltipla dos órgãos. Mas doutor,
a minha vó chegou aqui só com uma infecção urinária.
Ele caminha no corredor do hospital, que está ao
contrário. As pessoas andam no teto e saem pelas ja-
nelas. A língua inabitável do médico me alcança uma
segunda vez e faz eco: nessa idade o quadro todo muda
rápido mesmo.
Eu engulo uma dezena de folhas timbradas com o
nome da prefeitura, até sentir o gosto ácido da tinta azul
descer pela garganta. As folhas arranham minha boca e
se depositam em meu estômago. Um homem bonito,
alto, branco quase vermelho, pede para que eu assine
aqui, por favor. Eu assino e não reconheço minha letra,
as minhas mãos. Só reconheço o que dói, a mandíbula
travada e a boca dormente.

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*
Quando alguém morre, o certo é cobrir todos os
espelhos da casa: se a alma da pessoa encontra algum
reflexo descoberto, ela se prende lá, não descansa e não
deixa ninguém descansar. Nunca mais. Com panos
brancos e recém-lavados, procuro por reflexos escon-
didos em armários, guarda-roupas ou banheiros. São
muitos, a casa inteira é um espelho e, por isso, o meu
primo me ajuda. Quando encontramos, estendemos o
pano, prendemos com um pregador e em silêncio volta-
mos para a sala, onde todos bebem café e olham para os
próprios pés calçados.
Por baixo de um dos panos, com uma trama de fios
fechada entrecortando a minha imagem, eu ainda con-
sigo ver algum reflexo. Se eu consigo, talvez ela também
consiga. E se a gente deixar um espelho descoberto para
ela ficar aqui, com a gente? Meu primo se nega, coloca
um segundo pano por cima do primeiro e, então, o meu
rosto desaparece.
Se essa carne é tua, se esses olhos fundos, escuros e
pequenos enxergam através do que você diz, e então o
mundo é pequeno e violento, se você segurou esse tijolo
com as mãos e colocou um em cima do outro até que
parisse uma parede completa, a morte existe? A mor-
te existe e é clara: uma luz seca que desrespeita todos,

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quando se aproxima. Eu levanto os braços e tampo o
rosto, você puxa minhas mãos e diz olha sim, agora,
porque senão dói mais.

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As cadeiras da minha casa são pesadas. Me custa
mover qualquer uma delas. Ao todo são quatro, madeira
clara ripada, pouco conforto e bambas. Elas são lasca-
das e seus pés estão roídos por dentes de cachorros que
já morreram. A dona das cadeiras também já morreu.
Como os cachorros, ela morreu de velhice. Se reparo
bem, forçando os olhos como frestas, consigo ver as
veias da antiga árvore usada para construir as cadeiras.
O meu tio me disse uma vez que quando se corta os
troncos mais largos e antigos de uma árvore, ela sangra.
As nossas cadeiras nasceram sangrando.
Durante anos elas foram os móveis mais importan-
tes da casa. Não tínhamos sofás ou poltronas. Quando
alguém chegava só podíamos oferecer cadeiras e tape-
tes. A sala era pequena e lá não cabiam mais de três
visitas sentadas. Então nos espalhávamos pelo quintal,
reduzido a outro cômodo da casa. Esse grande, cheio
de rachaduras e úmido. Eu me sentava no batente da
porta e me encolhia quando alguém precisava cruzar a
cozinha. Então ela passava por mim, baixa e encurvada,

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com as costas tortas, apertava meu ombro com carinho:
os dedos frios e murchos, cheirando a arroz e cebolas.
De carregarem tantos corpos, de trabalharem e se
movimentarem tanto, as cadeiras ficaram todas pesadas
e impacientes.
Foi em uma cadeira posta no quintal. Lê pra mim,
neguinha. Eram panfletos, textos entregues pela igreja da
rua de cima e promoções do mercadinho. Frases curtas,
preço da carne e uma nova oração. Meu Santo Expedito
das Causas Justas e Urgentes, Socorrei- me nesta Hora de
Aflição e Desespero, intercedei por mim junto ao Nosso
Senhor Jesus Cristo, Vós que sois um Santo Guerreiro,
Vós que sois o Santo dos Aflitos, Vós que sois o San-
to dos Desesperados, Vós que sois o Santo das Causas
Urgentes. Protegei-me, Ajudai-me, Dai-me Força, Co-
ragem e Serenidade. Atendei ao meu pedido.
Você pulou frases, não pode ser só isso que tá escri-
to aí. Mas é só isso sim, olha aqui.
Foi em outra cadeira, outro dia, mas no mesmo
quintal, que ela me pediu. Me ensina a escrever o
meu nome. Eu não compreendia que era possível al-
guém não saber escrever seu nome. Eu não compreen-
dia de verdade. No caderno verde que ficava ao lado do
telefone, escrito a lápis, uma porção de tentativas fa-
lhas e tortas. Na altura dos olhos as letras se juntavam

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e pareciam sobrepostas, impossíveis. Feitas de raiva.
E depois, outros amontoados de caderno de caligrafia
com todas as linhas preenchidas. Agora o a, mais redon-
do e fechado, assim.
Mas o nome não se formava, não se lia. Os dedos
frouxos e as letras ondas, ondas, ondas. As linhas entorta-
vam e escapam da página. Os meus cadernos ganhavam
cada vez mais volume enquanto os dela, de caligrafia, fo-
ram rareando até acabarem. Quando você vai me ensinar
o meu nome? Mas eu não tinha tempo, eu devia escrever
e aprender sobre outros nomes. Nomes de pessoas que ti-
veram uma assinatura. Não tem problema, é melhor você
fazer as tuas coisas.
Uma infinidade de datas descritas em livros grossos,
com sobrenomes imensos que eu demorei para saber pro-
nunciar certo. Na aula o professor perguntava e essa linha
de pensamento foi definida por quem? E a resposta na
ponta da língua, nome decorado, lido e relido.
*
Em um dia chovia. As cadeiras estavam todas do
lado de fora da casa e eram tão pesadas que ninguém
conseguia salvar nenhuma delas da água. Foi naquele
dia que bolores apareceram em suas costas, esverdeados
e profundos. Quando o tempo abriu, carreguei uma por
uma até a laje, onde o sol era completo e alto. Elas cria-

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ram raízes e não pareciam dispostas a sair de lá, eu agar-
rava seus braços, pernas, e puxava com força, tudo em
vão. A laje era de cimento e as cadeiras se posicionaram
em direção ao horizonte, onde céu, prédios e avenidas
se embaralhavam.
Mesmo depois de semanas de sol os bolores con-
tinuavam lá, se combinando com as veias alargadas da
madeira. As raízes das cadeiras crescem ainda hoje, cada
vez maiores se aprofundam por dentro da laje. De suas
frestas nascem mudas. Você vai sentir minha falta quan-
do eu for embora?
Às vezes, quando entardece, eu vejo uma das cadei-
ras se movimentar alguns centímetros. Como sua antiga
dona, ela persegue o sol para se aquecer. Leva essa ca-
deira pra lá, ali, onde tá batendo o sol.
Ela possui uma farpa em sua lateral, é fina e ácida,
respinga. Não se formou de uma vez, não foi resultado
de um acidente ou dos dentes de algum cachorro. Não,
ela nasceu tímida e mole, ninguém percebeu no começo.
Em algumas manhãs eu acordo, levanto e, antes que a
casa acorde, preparo o café. Caminho até a laje, o sol
ainda é pálido, as cadeiras despertam e não estão com-
pletas em sua força. Me sento na cadeira mais hostil e
espeto o polegar na farpa até o agudo do vermelho apa-
recer. Ele demora e eu insisto. A farpa acaba cedendo.
Brota na ponta do dedo a firmeza que me faltou.

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De onde
eu tô vejo
a porta
sanfonada
e a privada.
Eu tenho medo de perder meus dentes. Sonho que
isso acontece. No sonho, bem no meio dele, o meu cor-
po treme e se contorce com a possibilidade de que todos
os meus dentes da frente, de uma hora para outra, caiam
ao mesmo tempo. Dentro da minha boca um dente de
cada vez se desprende, tenta se agarrar na garganta
escorregadia, mas não consegue, se afunda no escuro.
Acordo de repente, e com a língua, verifico se todos os
dentes estão aqui. A garganta, de repente, seca.
Minha vó perdeu os dentes nova, e minha mãe
pouco depois de alcançar os trinta anos. Em fila, tal-
vez sentada em uma cadeira acolchoada de azul até que
meu nome seja chamado, eu apenas preciso esperar com
educação pela minha vez.
A minha vó costumava me contar da dor que sen-
tia quando mastigava, uma dor que atingia por trás dos
seus olhos, uma dor que era angústia. Ainda moça, após
perder dois dentes de cima, ela e seu pai foram até o
dentista da cidade. Lá, um homem grande e de mãos
firmes, com um bigode ensebado que cobria a sua pró-
pria boca, arrancou todos os dentes da frente da minha

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vó. De agora em diante eles não incomodam mais, você
pode ficar tranquila. Quando ela sorriu vazio em res-
posta, o sangue seco na extremidade da boca se mexeu
um pouco. Depois de dois ou três meses, ela ganhou de
presente uma dentadura, foi o presente dos seus pais, de
Natal e de aniversário de quinze anos.
Com a minha mãe demorou um pouco mais. A per-
da aconteceu aos poucos, era menos real. Em um dia
de uniformes limpos e recém-passados, ela se queixou
ao patrão. Que coisa mais engraçada, isso ainda existe?
Dor de dente? Em seguida sorriu, um sorriso enfileira-
do. O pai dele, um senhor perfumado demais que nun-
ca perdeu o sotaque libanês, se desculpou. Desde então,
para definir qualquer pessoa no mundo inteiro, eu olho
seus dentes primeiro.
*
Em dezembro e janeiro, eu trabalhava em uma loja
de roupas de marca em um shopping da região mais
nobre da cidade. Com a chegada dos Natais, as vendas
dobravam e duas ou três moças a mais eram necessá-
rias. Entre as 13h e 22h, eu dobrava roupas, organiza-
va cabides e repunha o que foi vendido. Gosto de você
porque é quieta, rápida. Às vezes parece que você nem
está aqui. A cada fim de dia, a supervisora me elogiava e

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perguntava com carinho se eu não gostaria de ser regis-
trada. E eu dizia não, as aulas voltam em fevereiro.
A minha mudez era quebrada pelo barulho do fer-
ro a vapor com o qual eu passava cada uma das roupas
que os clientes provavam e deixavam de levar. No dia
de Natal, às 19h, a loja se preparava para fechar. Esse
Ano Novo eu vou passar com a família do meu marido,
a vista da minha casa está feia, mas estamos resolvendo;
no terreno baldio em frente ao nosso condomínio está
crescendo uma favela enorme e barulhenta. Já entramos
em contato com a prefeitura, porque imagina… Acor-
dar todo dia e a vista da sacada ser aquela, ir até a pada-
ria comprar pão e dar de cara com aquilo.
Depois, a supervisora elogiou o meu silêncio mais
uma vez, eu sorri e subi as escadas até o estoque. Aba-
fado, escutei ela dizer que de vez em quando se sur-
preendia com algum tênis de marca boa nos pés dos
adolescentes que moravam logo em frente, no terreno
baldio. Tenho quase certeza de que a frase foi algo como
os pés calçados tênis brancos de mil reais, a boca sem
nenhum dente.
*
Minha mãe e minha vó tapam a boca com a mão
enquanto falam, os dedos em concha. Se um dia elas

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gritaram ou disseram não, eu não descobri. É difícil en-
tender o que elas dizem.
Até aqui, os meus dentes seguem comigo: a minha
vez não chega. E essa arcada completa é na verdade uma
distância. Os dentes inteiros não permitem que eu com-
preenda minha mãe e minha vó. Na segunda parte do
sonho, com o corpo encolhido e ombros duros, eu corro
e nunca alcanço nenhuma das duas, que me esperam
paradas e de braços dados. De dentro dessa distância
nasce um visco que é uma enganação.
E se eu traduzir, se traduzir a raiva que é freada an-
tes de ser, em uma mão em frente à boca, não é mais rai-
va. Através da superfície de um dos dentes, avançando
por um trincado que suspeitei uma vez ter visto, brota
aquilo que sou. Mas eu escondo e ignoro. Se só um dos
dentes quebrasse, se só um deles caísse ou ficasse com a
raiz um pouco exposta, então eu seria completa.

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No quintal dos fundos da casa existia um antigo
poço. Foi aberto profundo trinta, talvez quarenta anos
atrás, na época em que não existiam vizinhos. As árvores
sombreavam a água que era fresca e limpa, com um bal-
de ela era carregada para dentro. Depois, com a chega-
da do encanamento, veias imensas que vagam expostas
ao longo das paredes, o poço foi preenchido com terra,
galhos secos e entulho. Lacrado com cimento. Mas a
minha vó sempre dizia: talvez um dia ele afunde, toma
cuidado, não anda por aí. No chão víamos o contorno
redondo do que o poço foi e evitávamos andar perto.
O dia todo na TV: o cárcere já dura cinquenta ho-
ras. Todos os programas diários cancelados, desenhos,
jornais e programas de auditório. Uma suspensão da-
quilo que era diário alcançando todos ao mesmo tempo.
O espaço de 32 polegadas preenchido pela história da
jovem sequestrada pelo namorado. No início parecia
que o caso se resolveria rápido. De pouco em pouco a
história se formava: uma moça nova que tentou enga-
nar um homem mais velho. Quando ela abandonou a
relação, ele não suportou e fez ela refém em sua própria

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casa, dentro de seu próprio quarto, no espaço tão peque-
no e apertado que cabia em uma TV. Corríamos para
aumentar o volume, a moça aparecia na janela e dizia
que estava tudo bem. Foi em uma dessas aparições que
a minha vó disse, a água fervia no fogão e ela me en-
tregava um pacote de biscoitos, ela está gostando desse
circo todo. Os olhos pequenos da menina se dobravam,
pareciam bocas, suas mãos espalmadas e borradas, e ela
dizia: está tudo bem. Os chuviscos do aparelho pare-
ciam ainda maiores, se negando a mostrar com clareza
o que acontecia.
No mesmo dia, de noite, foi a primeira vez que
sonhei com o poço. No sonho alguns homens cavavam
a superfície do buraco com as mãos, e a terra era preta e
fértil. Picaretas e pás penetravam no poço e de lá saíam
raízes diversas, que não fosse a interrupção, se alarga-
riam em árvores.
O prédio onde a menina estava presa era alto e cinza.
Dependendo do enquadramento variava entre gigante e
minúsculo. As janelas e portas iguais, labirintos, onde as
câmeras dos telejornais vagavam à procura de. No alto
do prédio a caixa d’água azul e pichada. Entre um apar-
tamento e outro, tijolos vazados preenchiam os corre-
dores, em um jogo de esconder, vultos estreitos geravam
análises que duravam horas e secavam as gargantas dos

31
apresentadores dos programas da tarde. Em um dia a ga-
rota apareceu na janela e parecia chorar, abanava as mãos
e ofegava. Os cabelos pretos pendiam para o lado de fora.
Sua boca aberta era o que me comovia. Os olhos não se
dobravam, como antes. Ao contrário, pareciam eles tam-
bém janelas, que entravam dentro de outra, e de novo, até
o fim. Ela não teve tempo de dizer que estava tudo bem.
Uma mão agarrou seus braços. Talvez ela gritasse socorro,
mas o grito sumiu na distância entre câmeras e prédio, os
microfones desavisados talvez estivessem desligados. E do
homem tudo que se sabia era da força e poder de sua mão.
De manhã, as carteiras e cadeiras todas alinhadas
de opiniões. Os professores caminhavam lentos até a
lousa e não sabiam o que dizer, a TV da sala da direção
permanecia ligada baixinho. Os apresentadores prome-
tiam que tudo, qualquer coisa, poderia acontecer a qual-
quer momento. O barulho da estática, predador e com
duas mãos com unhas afiadas, nos alcançava completo
e avançava nos cantos isolados da escola. Uma amiga
disse, durante o intervalo, ela merece isso, fez alguma
coisa para provocar o namorado. As palavras ditas em
sussurro sibilavam, rastejando rente ao chão acinzenta-
do da escola. E eu, bem na ponta da língua, tinha ter-
nura por aquele ódio. Minha amiga me entregava e ele,
muito maior e fresco do que imaginei, era todo meu.

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O mundo, em um tranco, ganhava sentido de novo. Fei-
to assim: se joga uma pedra e ela afunda, se a água for
funda o suficiente. O movimento que resulta em outro.
Quando cheguei em casa a entrevista com o namo-
rado da menina reprisava mais uma vez na TV. Minha
vó explicou. A apresentadora ligou para saber como ele
estava, coitado. A polícia cortou a água e luz do apar-
tamento. Nossa vizinha tomava café, a xícara já gela-
da de tanto tempo segura nos dedos, e completou: dá
pra ver na voz dele que é um menino meio atrapalhado,
ela não deveria ter traído ele. Eu me deitei e do poço
saíram pedaços de madeira, as mãos dos homens agora
carcomidas e esfoladas pelo esforço de arrancar as in-
finitas raízes. Mãos duras e quentes por remexerem a
terra todo o tempo. Quando tocavam o chão limpo, as
madeiras se transformavam em líquido e escorriam por
todo quintal.
Cem horas, o cárcere mais longo da história. Minha
mãe chegou do trabalho, jantou e tomou banho. Depois,
ela levou uma cadeira para o quintal e se sentou so-
bre o poço. Ela fumava e olhava para os próprios dedos
quando disse que sentia pena da menina. Que naquele
dia tinha rezado por ela. Com a língua estalando em
doçura eu disse ela merece isso. Vi e ouvi quando uma
rachadura irrompeu no chão, aos pés da minha mãe.

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O poço borbulhava toda a imundice que abrigava e eu
ouvia os estalos de algo que se rompia. Com a boca
cheia de fumaça, transparente, mas sólida, ela repetia
que não acreditava que eu pensava assim. A menina tem
a sua idade, que tipo de gente você está se tornando.
A minha língua, seca e pálida, antes dividida em duas,
agora voltava a sua anatomia humana, cada vez que mi-
nha mãe dizia você deveria entender. O poço cederá de
repente, eu lembrei de pensar enquanto as rachaduras se
aprofundavam cada vez que ela batia o pé por cima dele.
Na manhã seguinte a TV dizia que, pressionadas, as
autoridades responsáveis decidiram invadir o apartamento.
Os apresentadores se negavam a acreditar, suplicavam
com a voz doce e cheia de dentes que a razão preva-
lecesse. Em poucas polegadas tudo parecia imenso,
agora. A polícia arrombou a porta, mas a garota já estava
morta há alguns minutos. Ela já estava morta, eu ouvia
todos os canais anunciarem ao mesmo tempo, enquanto
cobria os olhos com o travesseiro. Morrer deve ser como
sufocar sem parar. Antes de morrer eu verei uma mão e
dois olhos que não são meus. Minha vó se incomoda-
va na ponta da cama, com farpas que o colchão cuspia
embaixo de nós enquanto nos amaldiçoava. Na saída
do prédio a mão do namorado se transformava em bra-
ço, ombro e rosto. Ele, completo e algemado, tentava se

34
esconder com a camiseta amarela. Os programas, com
sussurros, demoraram alguns dias até voltarem para a
programação normal que, àquela altura, parecia nunca
ter existido.
Enquanto ninguém via, fui até o lugar onde o poço
estava enterrado e pulei, pulei, pulei em cima dele. Mas
em nada ele afundou. Pulei até que minhas pernas
ardessem, pulei até vomitar todos os almoços servidos
pela minha vó. O poço impenetrável e cheio de tran-
cas, ao mesmo tempo, mole. Todas as certezas dentro
dele. À noite minha mãe chegou mais cedo do serviço,
os olhos úmidos e ágeis, que ainda me evitavam.
Eu rezei com ela, mas nossas mãos não se tocaram. Re-
zamos pela moça. Quem cavava o poço era eu e na par-
te mais funda do buraco, escuro e cheio, agora brotava
água suja. Em todos os vãos, raízes ameaçavam avançar.
As paredes da casa ainda hoje possuem as marcas da
altura que a água chegou. O meu colchão, de manhã,
estava molhado.

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Ao descer a serra, quando passavam as rodovias,
túneis largos e escuros, a minha cabeça doía. Duas mãos
pequenas, com os dedos curtos, unhas aparadas pinta-
das de vermelho, cercavam o meu rosto e pressionavam
até que meu ouvido se fechasse com a pressão. O zu-
nido que saía da minha cabeça atrapalhava o silêncio
do carro, competindo com o barulho do escapamento
e o ranger do limpador de para-brisas. Então eu pensa-
va que logo alcançaríamos a praia. Pensava no mar, um
afundar em que não se alcança o fundo. Os ruídos se
misturavam e viravam uma coisa só: um oceano inteiro
de pressão, barulho de papel de bala e vidro arranhando.
Visitávamos a praia uma vez no ano e levávamos flores,
lanches e lençóis.
O mar, na verdade, é uma cama inteira, funda e ma-
cia, cheia de lençóis coloridos amontoados, onde bota-
ram a sua tia pra dormir pra sempre: foi assim que meu
tio me explicou, da primeira vez em que perguntei por
que íamos até a praia no aniversário de morte da minha
tia mais velha. Por que ela se recusou a ter um túmulo
com flores e concreto, e ficar com os outros mortos da

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família no cemitério perto de casa? Ela quis morar em
um lugar mais bonito, aberto, eu acho. E aquela foi a
primeira vez em que eu duvidei de que a palavra família
era real: talvez eu tenha inventado.
Na praia ventava o tempo todo e, bem em cima da
pele exposta de todo o corpo, uma camada de areia, suja
e frágil se depositava aos poucos. Coçava meus olhos.
Os fios do meu cabelo, depois, demoravam a estar livres
da areia.
Ao chegarmos, botávamos os chinelos nas sacolas
e os nossos pés cavavam a areia morna, em movimen-
tos rápidos. Antes de tudo, antes de chorar um choro
seco anual pela minha tia, meu primo e eu subíamos um
caminho, longo e reclinado, com pedras em formatos
pontiagudos e retangulares. A vegetação era espinhosa e
com cascas que não cediam, onde também se depositava
areia. No alto, ficávamos próximos ao sol: de nossas tes-
tas, pescoços e rostos vermelhos brotava suor. A nossa
frente, talvez um pouco abaixo de nós, o horizonte, que
não é linha, é outro acúmulo, dividia os nossos olhos
em duas cores. O mar inteiro, agora, ajuda a tua mãe a
descansar, no vai e vem das ondas ela adormece.
Descíamos a trilha de volta até o início da praia,
onde a minha vó e meu tio nos esperavam sentados,
ainda quietos e encarando as próprias sacolas.

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O caminho até a gruta é úmido e a cada passo brota água
de nossos pés descalços, que deixam marcas no chão.
Se a minha tia quiser um dia voltar, se ela quiser agora
fazer parte do espaço de terra, cova, flores e concreto
dedicado à família Domingues dos Santos, ela poderia
seguir as pegadas. Mas esses são vestígios que em pou-
cos minutos se apagam, lambidos pelo vento e calor.
Então a minha tia está perdida.
Usamos uma passarela de madeira para chegar até
a gruta e, do meio para o fim do caminho, as vigas no
chão são todas trincadas. Algumas, corroídas ou com
pequenos furos, são mais bambas e perigam romper de
vez. Eu seguro o braço da minha vó com firmeza, en-
quanto ela me fala da tontura que o barulho do mar
dá. Eu nunca gostei de praia nenhuma, tenho medo de
água. A gente não sabe nadar e a sua tia também não
sabia, por isso que de jeito nenhum vou conseguir en-
tender essa escolha, esse lugar no fim do mundo. Mas
ela não tinha medo do mar, vó, ela só não sabia nadar.
Perto da gruta a passarela se alargava em um for-
mato oval. Eu ia até uma das extremidades, e à frente,
de igual para igual, o mar. O gosto do sal alcançava a
boca e secava toda a saliva entre os dentes. Minha gar-
ganta doía e eu pensava que não conseguiria mais falar.
Na outra extremidade, já dentro da gruta, a minha vó ti-

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rava da sacola um pacote de velas e fósforos. No fundo,
uma santa com um véu azul nos observava com olhos
descascados, sua cabeça quase tocava o teto baixo e suas
mãos nos abençoavam, espalmadas, mas corroídas. Aos
seus pés, descalços como os nossos, tocos de velas ainda
queimavam.
As velas acesas formavam sombras e dentro dos
olhos da minha vó, se acendiam e queimavam. Então
ela se ajoelhava e rezava, uma reza formal em que as
últimas sílabas de cada palavra eram comidas. Da porta
fechada de seu coração, uma fresta se abria e dali saía
alguma frase que enchia toda a boca e, para se misturar
com o ruído do mar, era feita de água. Cada vez que
minha vó saía da gruta era outra pessoa, a cada ano uma
outra vó que eu demorava a entender ou gostar. A Santa
se aproximava de seus ouvidos e compartilhava as dores
de perder um filho: um pedaço seu fica aqui comigo,
só assim para você viver. O véu que a Santa usava se
transformava em uma mecha azulada que minha vó ti-
nha na parte de baixo dos cabelos brancos.
Ela saía da gruta se apoiando na parede com o
passo lento, uma perna se cruzava na outra até não
se reconhecerem. Meu tio e meu primo ofereciam o
braço, pelo menos até a areia, vó, e ela considerava uma

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ofensa. Naquele percurso pequeno entre a santa e o fim
da gruta a minha vó prometia que não voltava mais à
praia. Prometia que vela nenhuma seria acesa nunca mais.
Essa é a última vez que a sua tia me faz passar esse des-
gosto, esse sal todo que não abandona minha roupa depois.
Estendíamos os lençóis na areia e comíamos os lan-
ches trazidos de casa. O sol já não incomodava como
antes e chegávamos a adormecer próximos uns dos ou-
tros. A minha vó não dormia, preocupada em vigiar as
sacolas e as pessoas. Meu primo e eu nos aproximáva-
mos da beira do mar e molhávamos os pés e os joelhos.
A água beliscava nossa pele ainda quente e tentava nos
derrubar. De um lado para o outro colhíamos as con-
chas que, frágeis, se quebravam em nossos bolsos e vi-
ravam poeira. Distante apenas alguns metros, minha vó
forçava os olhos para nos observar, pressentindo que a
qualquer momento o mar seria janela: um de nós pula-
ria para o outro lado e desapareceria fugido.
Quando a praia esfriava até gelar, já era hora de vol-
tar para o carro que, o dia todo exposto ao sol, era morno.
Com os lençóis dobrados e o rosto vermelho, caminhá-
vamos em fila até a água e nos despedíamos. Olhava para
minha vó e os olhos dela estavam apagados. Ano que vem
a gente volta, né. Se o seu tio conseguir folga, sim. Mas
e se não conseguir? Aí a sua tia vai ter que entender.

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Do lado esquerdo do céu um laranja vibrante e seco divi-
dia o horizonte e, do lado oposto, manchas de azul cada
vez mais escuro avançavam por cima de nossas cabeças.
A maré sobe em alguns dias do mês. É um mo-
vimento lento, avisado e previsível. Ela cobre esteiras,
cadeiras de praia e barracas, cobre até mesmo os muros
curtos que cercam a praia. A maré alcança a calçada e
a avenida de duas mãos. Os carros não trafegam, e a
cidade pouco a pouco se espraia em silêncio forçado:
a fúria, o lugar nenhum que nunca acomodou os pés,
olha ali mais de perto.

41
Quando meu tio me contou sobre a mulher assassi-
nada em nossa casa, eu era muito nova ainda.
Ele tinha bebido naquele dia. Não que fosse novi-
dade, bebia sempre e ganhou uma resistência. Em vão,
minha vó e eu tentávamos segurar suas mãos e braços.
Ele se debatia, os braços cegos empurravam o ar e pesa-
vam. Me deixa quieto, mãe, hoje eu não entro nessa casa
maldita. Sua voz fervia na boca e chiava, me cortava, e
seu rosto estava anestesiado e mais inchado do que eu
havia visto antes. A boca mole não combinava com a
certeza de suas palavras ditas todas juntas, em ordem.
Deitado na calçada, as pernas sobrando rente ao meio
fio, meu tio encostou a cabeça na cerca de nossa casa e
fechou os olhos. O entreaberto dos botões da camisa e a
barriga estufada permitiam ver a sua respiração.
Vencidas, nós duas nos sentamos ao seu lado. Os
vizinhos passavam e desejavam boa tarde. Respondía-
mos boa tarde olhando para os pés. Esperávamos por
algo, mas eu já não sabia o quê. A calçada estava quente
do sol. Eu encolhia os joelhos para que eles tocassem as
minhas bochechas. Apoiadas no asfalto, as minhas mãos

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ganhavam pequenos furinhos que ardiam, mas que logo
desapareceriam. Talvez tudo tenha durado muitas horas.
Meu tio abria um dos olhos e ria encarando a gente.
Ria até que os seus dentes mais gastos do fundo, feitos
de metal, aparecessem. Você sabe por que eu não quero
entrar? Você nem era nascida ainda. Um casal brigou
do outro lado da rua, o homem chacoalhava os braços
da moça, chacoalhava, chacoalhava. Os ombros dela tre-
miam com os tapas, um corpo que parecia feito de nada,
jogado de um lado pro outro. Sua mãe e eu ficamos do
portão olhando. Ele xingava ela de puta. Olha, eu nunca
vi uma mulher ser chamada de puta tantas vezes. Sua
puta, você é uma puta. A mulher mal tentava escapar,
coitada, e quando tentou levou um monte de chutes.
Lembro que sua mãe chorou uma semana inteira, toda
vez que ela lembrava ela chorava. Foi ela que correu pra
dentro da casa pra chamar a polícia. Eu fiquei meio que
paralisado, eu acho, de ver a força daquele homem. Não,
não é verdade. Eu fiquei paralisado de ver a fraqueza
daquela mulher. Depois tudo foi rápido, ela escapou das
mãos do homem e correu. Naquela época o portão da-
qui de casa era de madeira, foi fácil de entrar. O homem
veio atrás. A mulher parecia uma galinha tentando es-
capar, coitada. Por que, qual o sentido teria tentar se
esconder dentro de casa? Ela estava meio desnorteada

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pelos chutes, eu acho. Os dois entraram dentro da nossa
cozinha e na mesma hora eu escutei os tiros, um barulho
seco. Sua mãe estava lá dentro e viu tudo, acho que por
isso ficou tão impressionada. Era muito sangue também.
A minha vó, preocupada com o susto que enxergava
em mim, com os meus olhos que enxergavam a casa pela
primeira vez, dizia não, ela não morreu aqui. É mentira
do seu tio. Na hora do tiro ela se escondeu dentro de
um buraco na parede, na cozinha. Ela conseguiu fugir
da bala. Meu tio já não ouvia nossa conversa. Passou a
mão na testa e depois encarou os nós dos seus dedos
grandes. Fechava a mão e voltava a abrir uma porção de
vezes. Ele murmurava baixinho o corpo ficou a tarde in-
teira lá na cozinha esperando a polícia, eu lembro, sabia?
A gente não podia entrar, sua mãe não podia trocar a
blusa toda suja de sangue. O homem escapou, mas todo
mundo sabe quem ele é. Eu peguei na mão da mulher
enquanto os policiais conversavam. Estava dura. Eu não
lembro do rosto dela, nada. Lembro só do homem, dela
eu não lembro nada.
Meu tio e minha vó não voltaram a falar da mulher.
Me pergunto se aquela tarde existiu.
*
Ela era ruidosa e estava nua. No começo isso me
assustava, eu evitava olhar. Parecia errado aquele corpo

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inteiro sem pudor. Com os cabelos compridos, pretos,
cheios de nós. Jamais permitiu que eu penteasse. Seus
pés descalços possuíam vincos e cascas, mas suas mãos
eram lisas. Me preocupava com a possibilidade de que
ela sentisse frio à noite ou nos meses de inverno. Che-
guei a recolher os agasalhos que minha mãe não usava
mais e os coloquei aos pés da mulher: foi a única vez em
que ela sorriu. No dia seguinte as blusas acordaram ras-
gadas ao meio, com buracos de uma ponta a outra, atrás
das costas. Elas também foram esfregadas na terra ala-
ranjada do quintal. Eu sei que a tua fúria não é comigo.
Procurava nas pernas dela e também nos braços algum
ferimento, qualquer vestígio de um tiro de raspão, mas
não vi nada.
A mulher que morava na parede da minha casa se
contorcia, revirava os olhos, em angústia e raiva.
Não acontecia com frequência. Na maioria dos dias
ela se esquecia de fazer qualquer movimento. Braços e
pernas duros, próximos ao corpo encolhido e magro. Eu
a encontrava deitada debaixo da cama, a sombra do mó-
vel recobria seu corpo. Não fossem os olhos brilhantes
mas secos, ela poderia se indefinir na escuridão. Com
os cabelos espalhados cobrindo os seios, ela mexia os
lábios e nenhum som se formava. Apenas alguns en-
gasgos, ruídos que vinham da garganta, um ronco. Eu

45
balançava a cabeça, fingia que compreendia até que,
cansada de não ser ouvida, ela se acalmasse e fechasse
os olhos. Quando ela adormecia, eu admirava seu ros-
to: os cílios longos, escuros e as sardas, rosto seco. Uma
pintinha maior perto da boca rachada, as sobrancelhas
grossas curvadas. Meu Deus, como meu tio conseguiu
esquecer dela? Eu aproveitava para rezar, pedindo para
nunca ser bonita.
Em outros dias tudo era mais difícil. A perturba-
ção da mulher era ira e vingança, uma areia seca que
arranhava a pele. Rastejava rente aos rodapés da casa,
formando círculos em volta de seu próprio corpo. Se
encolhia nas extremidades dos quartos e forçava as per-
nas para frente e para trás, chutava o ar. Abria a boca,
puxava e expelia todo o ar, seu peito se contraía até que
suas costelas aderissem à pele. Eu tinha cuidado ao
dizer não vai adiantar, ninguém vai te escutar. Ela se
ressentia do meu conselho, seus olhos se enchiam de
mágoa crua. Entrava no buraco da parede da cozinha e
escondia o rosto entre as mãos. Dois ou três dias depois
ela se desculpava se sentando ao meu lado e deixando
que eu tocasse em seus cabelos. Aproveitava para desfa-
zer alguns dos nós e penteá-los com os meus próprios
dedos. Quando um dedo enroscava nos cabelos, ela pu-
xava com força o tufo e arreganhava os dentes. Eu sei
que a tua fúria não é comigo.

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Gostava da companhia da mulher, sua presença mas-
siva, concreta, gigante. Quando ia à escola, tinha pena de
deixá-la sozinha. Talvez fosse o medo de que o homem
voltasse com o mesmo revólver na mão. Eu perguntava
mas e se ele voltar. Então ela entrava na parede, apertava
o corpo até onde podia, formando um bloco de carne. O
segurar de minhas mãos um convite para que eu também
entrasse no buraco. Não entrei, me parecia errado.
Os dias em que ela estava bem se encurtavam cada
vez mais. A cólera da mulher se acumulava, crescia, e eu
evitava ficar perto quando ela estava rangendo os dentes e
retorcendo os dedos do pé. No início era medo, mas depois
algo me tocava na língua, apertava minha garganta e olhos
do lado de dentro, e então era difícil de engolir a saliva. Eu
tinha vontade de, nua, também me esfregar no chão ao
lado dela, blasfemar, encurtar nossa distância.
O verão foi mais abafado que o comum naquele ano.
Quase não chovia, as telhas e blocos da casa absorviam
o calor do sol e o aprisionavam. Mesmo à noite parecia
que era dia. Em uma manhã minha vó se assustou com
a tinta da parede que, sozinha, se desprendia, esfarela-
va e acumulava no chão da cozinha, do banheiro e do
quarto. Apenas a parede onde minha cama se recostava
foi preservada. Como é que pode todas as paredes da
casa se estragarem de uma vez só? Minha vó e minha

47
mãe passavam a mão pela tinta verde clara do corre-
dor, lamentavam enquanto varriam a tinta que, com um
simples raspão de dedos, caía aos pedaços.
Com um macacão cheio de manchas, o pedreiro
abriu dois ou três buracos nas paredes, à procura de
motivos. Depois, com os lábios mais franzidos do que
quando chegou e o boné apertado nas mãos, não co-
brou a visita. Não tem tinta nenhuma estragada, minha
senhora, vai ter que avaliar melhor. Naquele momento
eu soube que era a mulher. Para ela, eu sabia, era uma
ofensa que tudo não estivesse corroído, paralisado e de
ponta cabeça. Fiquei chateada com ela durante algumas
semanas, me neguei a alisar seus cabelos com as mãos
ou me importar com qualquer gemido.
Numa noite eu me levantei com sede e fui até a
cozinha. Debaixo da mesa, a mulher comia pedaços da
parede que, desgastados, se desprendiam com facilida-
de. Suas unhas estavam cobertas de poeira e rastros dos
tijolos avermelhados. Me sentei ao lado, quis sentir rai-
va. Se alimentar da minha casa não vai adiantar, você
não pode destruir a minha casa. Ela segurou um dos pés
da mesa e balançou com muita força, o móvel tremia.
Vi que a mulher lutava para falar. Por que você não vai
embora? Aqui tá te fazendo mal.
Nada no mundo será mais triste que os seus olhos
quando compreenderam. Pedi perdão, mas ela se guar-

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dou no buraco, deitou a cabeça no chão e se virou de
costas para mim.
Nunca mais nos vimos de verdade. Ela se tornava
cada dia mais seca depois de nossa conversa. As formas
dela, seus seios, nariz e cabelos se grudavam na parede e
se fundiam aos tijolos do buraco. Ela se encolhia e não
vinha até mim quando eu chamava, não se movimen-
tava nos cantos evitando tocar no que era macio. Não
permitia que eu chegasse perto ou olhasse por algum
tempo. Também não andava mais pela casa, olhando,
olhando, olhando.
Aos poucos os problemas de esfarelamento das
paredes sumiram juntos. Procurei por ela no buraco,
nos cantos de cada quarto, debaixo das camas e dos ar-
mários. Não chamei seu nome porque jamais descobri
qual era. Se você voltar, eu não reclamo da tua nudez,
eu deixo você ocupar minha cama. Se você voltar eu
entro no buraco com você. Minha vó reclamou de uma
rachadura no piso, animada esperei que fosse ela, esperei
que a mulher aparecesse, mas foi em vão. Vó, é normal a
gente se sentir tão triste por causa de outra pessoa? Eu
acho que é, eu acho que só dá pra ficar triste por causa
de outra pessoa.

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No dia em que eu menstruei pela primeira vez, o
sangue atravessou minhas roupas, os lençóis, o colchão, o
piso e o concreto: alcançou um quarto que ficava no an-
dar debaixo: um cômodo fechado, onde todos da família
guardavam o que era velho e sujo. Tudo que era entulho.
Eu tive muita vergonha.
Mãe, eu acho que menstruei. Ela, feliz, mas com
olhos de reprovação, me abraçou. Agora você é uma
mocinha. Depois correu até a farmácia comprar absor-
ventes, remédios para cólicas e bolsas de água quente.
Eu achei tudo cruel naquele dia, sangrar e minha mãe
não compreender a minha vergonha. No armário da co-
zinha, alcancei um pano de chão, detergente e desin-
fetante. Limpei o quarto, o estrado da minha cama e,
com uma bucha embebida em produto de limpeza com
cheiro de lavanda, meu colchão. A mancha no tecido,
antes profunda e vermelha, rareou em marrom aquoso.
Busquei então a chave do quarto da imundice, guardada
na gaveta embaixo da cafeteira, mas ela não estava lá.
Procurei em todas as outras gavetas, no armário da pia e
em cima da geladeira.

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Vó, você sabe onde tá a chave do quartinho? E ela,
como se me escondesse um segredo, como se trocásse-
mos os papéis, disse que não. Eu me sentei no batente
da porta, o sol alcançava apenas os meus pés. Com as
pernas fechadas, esperava minha mãe voltar. Sorrindo
para o meu incômodo, minha vó me ofereceu o café
recém-coado. A borra no lixo, amarronzada, coagulada e
úmida, ainda respingava uma sobra de café. Ao lado de
frutas apodrecidas e arroz de ontem, o seu perfume se
perdia. Eu disse não, obrigada. Tudo demorava, as coisas
pareciam mais lentas, e eu sentia, por debaixo da calça,
algo agudo e dolorido se espraiar. Transformava em mil
dobras a ponta da camiseta de dormir, os ursinhos azuis
flutuavam, e na ponta da pata de um deles uma gota de
sangue. Minha vó alcançou uma cadeira baixa e bamba,
se sentou ao meu lado com uma xícara entre as mãos. O
vapor do café se perdia e se depositava entre nós duas.
Observávamos o sol avançar por entre nossas pernas, já
alcançando nossos calcanhares. Sem que me olhasse: eu
também não gostei quando a minha vez chegou.
Ela não disse isso. Mas eu sei que sim.
Minha mãe chegou e me entregou as compras da
farmácia. Recitando uma reza, me ensinou a usar o ab-
sorvente. Filha, você tem que tomar muito cuidado
agora. Depois, como no meu aniversário, perguntou

51
o que eu queria almoçar. Mãe, você sabe da chave do
quartinho? Ela desconversou e disse que prepararia bife
com batata frita. Eu não sabia o que estava acontecendo,
mas tudo me incomodava. Em um solavanco de rebeldia:
eu não vou para a escola hoje. Em resposta, ela sorriu. Isso
tudo que você está sentindo é normal, são os hormônios,
você só precisa ter cuidado. A dor melhora se você ficar
quieta e dormir. Sem que nenhuma delas notasse, eu to-
mei cinco banhos em intervalos de tempo curtos. Pensei
que talvez pudesse ser um engano, que ainda não era a
hora. Mas a água, cada vez mais quente, me convencia.
De cada um dos furinhos do chuveiro brotavam mudas
de flores avermelhadas, úmidas e translúcidas. Elas faziam
com que os banhos guardassem um cheiro doce, mas agu-
do, como algo prestes a apodrecer: mas ainda não, dentro
em breve. As mudas também dificultavam que a água al-
cançasse meu corpo e o tornasse limpo de novo.
Boa parte dos fundos do quintal era coberta por
terra. Lá, mantínhamos uma horta que não possuía
qualquer ordem. Flores e folhas com diferentes neces-
sidades juntas, por cima de couves e alfaces. Duas ár-
vores frutíferas, uma mangueira robusta e um limoeiro
velho e cascudo. Em um canto com pouca luz solar di-
reta, eu cultivava algumas bromélias. Com as flores feias
e manchadas, talvez as bromélias fossem as plantas mais

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importantes de toda a horta: seus longos e fundos vin-
cos escondiam água viscosa e segurança. Entre as folhas
os micro-organismos, com quem somente a bromélia se
importava, se abrigavam e geravam novas vidas. Em al-
gumas florestas, a necessidade das bromélias de proteger
tudo o que suportassem pariu pequenos e finos rios, e
eles rebentaram também em outras vidas. Cansada dos
banhos, com a pele ainda quente, eu me sentei próxima
ao muro que marcava o fim do terreno. Recostadas, as
bromélias descansavam da sua gestação eterna.
O sol alisava as minhas pernas. Na sensação morna
e úmida que apenas os fundos da casa mantinham, eu
quase adormeci. Mas não conseguia esquecer do quarto.
Crescia a desconfiança de que alguém me escondia as chaves.
Pensei então em procurar nas gavetas do guarda-roupa e
por cima de alguns móveis altos. Esperei que minha mãe
fosse para o trabalho. Quando entrei em casa o prato de
bife e batata frita estava posto e frio. Primeiro procurei
nas gavetas, depois em caixinhas e bolsas. De importan-
te, encontrei somente um antigo terço, com meu nome
gravado em uma fitinha. Seus nós eram amarelados, e o
crucifixo descascava em camadas cada vez mais fundas.
Parecia uma promessa, mas eu não a cumpri. Coloquei-
-o por debaixo do meu travesseiro e me sentei silencio-

53
sa, esperando até que minha vó, à tarde, adormecesse
com o bordado entre os dedos.
No quarto dela, um cômodo escuro como uma
gruta, também abri cada gaveta e nada encontrei. O
guarda-roupa antigo e carcomido pelo cupim deixava
todas as roupas com o mesmo cheiro. Costumávamos
dizer que a minha vó tinha cheiro de guarda-roupa.
Naquele dia eu não senti cheiro nenhum e estranhei.
Me aproximei da mulher que dormia sentada e aspirei
o mais profundo que pude: não estava lá. Lembro de
pensar que ela arrancou o próprio cheiro e o guardou
no quartinho. Enlinhado aos seus dedos estava o pano
que bordava: um passarinho magro, com pernas curtas
e bico torto, era apanhado por uma boca aberta. Ainda
vivo, ele parecia lutar para escapar dos dentes brancos
que o consumiam. Agarrei o pano com raiva, e minha
vó acordou assustada.
No restante do dia tive muita dificuldade em me
concentrar em qualquer pessoa ou objeto. As coisas to-
das ficavam lentas, e qualquer sentimento era invadido
pelo quarto. Então eu o espreitava: forcei a porta duas
ou três vezes, com esperança de que em algum momen-
to estivesse aberta. Me sentei rente à entrada: talvez
alguém fosse até lá, não haveria escapatória a não ser
permitir que eu entrasse. Cansada e com fome, no fim

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da tarde subi as escadas e requentei o bife com batata
frita. A carne estava dura, a faca não vencia cortar. Pen-
sei em tomar outro banho, mas acabei me deitando um
instante. Na cabeça senti as contas do terço se mexerem,
era aguda como uma agulha a dor que ele queria me
causar. Mas o quarto.
Quando minha mãe chegou do trabalho, eu já fin-
gia que dormia. Esperei que todos se deitassem, que a
casa toda escurecesse em ecos, que os lábios da minha
mãe e da vó silenciassem em preces. No armário, tatean-
do por entre os panos de prato, apanhei uma embala-
gem de detergente. Já do lado de fora da casa, contornei
todo o quintal até alcançar a única janela do quartinho.
A madrugada estava fria, ventava e a luz da rua não era
suficiente. A dor no pé da barriga voltou, ela tentava me
impedir e me convencer a voltar para a cama. Embaixo
da janela, um balde com água e esfregão me esperava,
dentro dele misturei um pouco do detergente. As duas
folhas da janela eram de vidro, e ela estava trancada.
É melhor você desistir, a casa parecia dizer en-
quanto zombava. Alcancei uma pedra esquecida em
um canto, perto do tanque de roupas. Com uma força
mole acertei o lado esquerdo da janela, que, submissa,
se partiu. Pulei para dentro do quarto e um pouco da
água do balde verteu na minha roupa. O cheiro da área

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de serviço, limpo e transparente, se misturava ao chei-
ro do quartinho porco e, ao fundo, rastejava um outro
odor, menos evidente e violento. Com pouca dificulda-
de, conseguia ouvir os movimentos no andar de cima.
A parede do teto parecia se movimentar com os passos
da minha mãe e da vó. Tateando, acendi a luz. Olhava
o teto e o chão, buscando alguma marca de sangue. Era
difícil, pois tudo o que estava escondido e amontado no
cômodo atrapalhava minha visão. Cadeiras, armários,
roupas, algumas bonecas e pedaços de uma bicicleta,
caixas mofadas que guardavam documentos, ferramen-
tas e utensílios domésticos. Na parede dos fundos, um
espelho emoldurado e antigo.
Próximo da lâmpada, ao mesmo tempo evidenciado
e ofuscado por ela, estava o sangue. Corri até lá enquanto
ouvia os passos nas escadas. No chão, na mesma direção
que a marca no teto, a mancha vermelha era gorda e vi-
brante como eu imaginei. O piso de cerâmica, velho e
áspero, parecia pedir ajuda. Com o esfregão embebido na
água do balde, comecei a esfregar. A espuma consisten-
te do detergente, aos poucos, se diluía amarronzada, em
margens irregulares que se espalhavam pelo quartinho.
Escutava distante o trinco da porta ser forçado, a cha-
ve talvez estivesse emperrada. Minha vó, também longe,
gritava meu nome e batia na porta. Eu lembro de sorrir,

56
enquanto a palma da minha mão ardia pela força inves-
tida no esfregão. Joguei o restante da água no chão e,
então, eu vi.
Uma espécie de vertigem, mais brutal, alcançou meus
olhos e desceu até minhas pernas. No chão, no mesmo
lugar onde meu sangue empoçou, havia uma rachadura.
Ela era fina e profunda, como se algo pontiagudo tives-
se colidido com o chão. Da rachadura, quente e infinito,
brotava sangue. Da mesma cor, transparência e cheiro
que o meu. Mas ainda mais vivo, como se fosse mais real
e inteiro. Alargando-se, o sangue voltou a se acumular no
piso e recobriu a sua origem. Os meus olhos embaçados
não me obedeciam e buscaram o espelho, que também
refletia a fenda e o sangue. Toquei com a ponta dos dedos
a rachadura e depois afundei no desconhecido.
Eu pensei que sentiria medo. Mas uma quentura,
que se espalhava na parte de baixo da minha barriga,
alcançando depois o corpo, as pernas, os braços e olhos,
era boa e quase pura. Depois, aproximei a mão do meu
rosto para que pudesse enxergar, para confirmar que
aquilo era sangue. Era sangue. Era sangue, e o lugar por
onde ele brotava me dava prazer. A porta se abriu em
um tranco seco. Meus dedos sujos, vermelhos, agora
parte da mobília do quartinho. O terço no pescoço de
minha mãe em flagra, balançando como se dissesse não.
O espelho refletia. Meu Deus.

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Abaixo do meu umbigo, na altura do ventre, perto
dos meus ovários e atrás do meu útero, existem buracos
de todos os tamanhos. Eles foram preenchidos, um ano
depois do outro, em silêncio para não me assustar, por
uma parede desgovernada. E então, me faltam vazios.
O médico diz que a parede, úmida e mole, é inofensiva,
apesar de crescer cada dia mais e se alojar em lugares
que, antes, eu nem ao menos conhecia. Todos os dias, na
hora do banho, eu engulo linhas e agulhas e me costuro
por dentro.
Dentro do meu útero foi onde a parede cresceu pela
primeira vez. Lá ela é alta e ordena como todo o corpo
deve agir, com uma voz aguda. E então, depois de al-
guns anos em que permaneceu quieta, ela percebeu que
poderia alcançar outros territórios, outros espaços sem
cercas onde ela seria capaz de dominar soberana.
Se eu amasse: a pontinha da minha unha frágil
como papel, os dedos do meu pé que são tortos, a curva
caída de apenas um dos meus seios, os pelos grossos do
meu braço. Se eu amasse qualquer uma dessas coisas,
por inteiro, não pela metade, não com a mandíbula tra-

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vada de raiva, provavelmente a parede não existiria. Essa
doença que você tem é psicossomática. Eu não esqueço
da boca pintada de rosa claro e cintilante que me disse
essa doença que você tem na verdade é ódio.
Durante as primeiras consultas ao médico, ele me
mostrava fotografias dos meus vazios, que eram toma-
dos pela parede pouco a pouco. Com a ponta da cane-
ta, sublinhava uma mancha distorcida. Olha, bem aqui,
essa aderência entre útero e ovário, você consegue en-
xergar? É isso que te dói. Aqui a imagem falha, mas
ainda conseguimos ver.
Eu não pareço alguém fértil, pareço? As imagens
não mostram, é claro. As imagens só mostram a falta
do vazio. Mas eu não pareço. Se olhar de perto, para as
minhas bochechas, meus olhos fundos e pequenos, para
a finura dos meus braços e quadris, se olhar para os re-
mendos de nós feitos para o lado de dentro, não pareço
de jeito nenhum alguém fértil. Depois disso, o médico
não me mostrou mais as imagens em preto e branco
difíceis de interpretar e me oferecia água, assim que eu
chegava no consultório.
Quando eu era mais nova, recém-chegada à ado-
lescência, antes da parede, uma prima teve uma filha.
Não parecia real até que vi o bebê. Minha prima pre-
cisou voltar ao trabalho antes do fim da licença médi-

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ca, e eu ofereci ajuda para cuidar da menina em alguns
dias da semana. No primeiro dia a encontrei dormindo
satisfeita no berço, enquanto sua mãe se despedia em
sussurros. Assim que acordou, aquele pequeno rosto,
com olhos e boca grandes demais, chorava sem parar.
A comida, a fralda ou qualquer esforço meu não va-
leram de nada. Ela chorava ressentida, e os vizinhos
vieram até a casa espiar o que acontecia. Eu pedi aju-
da, esperei minha prima chegar do trabalho antes da
hora e preocupada, como se de onde estava conseguisse
ouvir o choro perturbado da filha, e nunca mais voltei.
Caminhei devagar até minha casa, estranhando minha
respiração e meus pés, que não pareciam em nada meus.
No caminho, eu pensava ter descoberto uma armadilha
profunda, ridícula e eterna.
Eu penso em crianças e adolescentes, mas não em
bebês. Uma ideia proibida: um bebê careca, com os
meus cílios e o nariz do pai. E então lembro que essa
é uma falta que – quando e de que forma? – me inseri-
ram. Foi junto com o atestado da doença, logo embaixo,
depois das letras miúdas e da assinatura do médico, dava
para ler só agora você quer um filho, porque não pode. A
frase pulava cheia de força do papel e ia parar, primeiro
na boca de todas as mulheres da família, e depois na

60
boca de todas as mulheres do bairro que, ressentidas,
me amaldiçoavam pela quebra do vínculo, do acordo.
Os passos perdidos daquela tarde do choro chegando
em algum lugar.
Debaixo do chuveiro a água é vermelha e amarron-
zada, translúcida, escapa pelo ralo. Com a mão em con-
cha, eu me colho. Todo o sangue do mundo está aqui,
nesse punhado em minhas mãos, mas ainda assim a pa-
rede dentro de mim continua a crescer silenciosa.
Depois que descobri a parede, meu avô me levou
até um benzedeiro. Ele morava em uma pequena cháca-
ra na mesma cidade que minha família, sua casa era cer-
cada por árvores grandes que não permitiam que o sol
entrasse em nenhum cômodo. O quarto de benzer, um
anexo da sala, era frio e cheirava a fósforos. O homem,
com as mãos cheias de vincos, pediu que ficássemos à
vontade e depois olhou para mim, através de mim, len-
do o futuro que se depositava em minhas costas. Chá
nenhum funciona desse jeito que o senhor quer não, seu
João. Mas meu avô tinha uma fé imensa, que reluzia
dentro do quarto escuro. Então o homem alcançou um
galho seco, escuro e frágil em cima da mesa. Resignado,
ele falava rápido, queria se livrar de nós de uma vez.
Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo. Deus

61
pode, Deus ordena, Deus cura, Deus Se Levanta.
Espírito Celestial, virgem santíssima imaculada
Conceição. Senhor do Bonfim meu Bom Jesus da Lapa
que te livre de tudo que for ruim, da praga do mal da
inveja e da ambição. Quebra a força do inimigo, ne-
nhum deles vai poder te ofender, nem de noite nem de
dia nem no fim do meio-dia. Sete Anjos te acompa-
nha, Sete velas te alumeia com as três velas bentas da
Santíssima Trindade, ao Pai ao Filho ao Divino Espírito
Santo. Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na Terra en-
tre os homens de boa vontade. Jesus de Nazaré, Senhor do
Bonfim, Deus te salve na casa santa, onde Deus fez a mo-
rada. Em nome do pai, em nome do filho, em nome do pai,
em nome do filho, em nome do pai, em nome do filho…
O momento preciso que me tornaria sagrada esca-
pou: uma ilusão me escorre pela perna mês depois de
mês enquanto diz não, você não. Eu deixo que escorra e
forme manchas, porque assim comprovo que não sequei
por dentro.
Uma árvore de goiaba, plantada próxima ao por-
tão da frente da casa, descasca todo inverno. Em julho,
a pele da goiabeira se enruga em cascas cada vez mais
secas que, quando apertadas entre os dedos, se desman-
cham em pó. Quando a troca acaba, a árvore inteira se
torna lisa e lustrosa, com partes mais claras, verdes, e

62
outras mais escuras. Seus braços se enchem de folhas e,
de uma vez, ela pare uma infinidade de frutas, pequenas
e verdes. As goiabas amadurecem depressa sem serem
colhidas, pendendo pesadas em galhos finos. Quando
caem, meu trabalho é recolher todas com vassoura e pá.
Uma delas se rompe e dentro, muito dentro, na parte de
trás do umbigo da fruta, alguns vermes se movem.

63
Dentro dele
tinha terra
Ele achava graça do meu nome. Falava inteiro, sig-
nificava outra coisa que eu ainda não entendia. As pau-
sas transformavam a palavra: não me reconhecia quan-
do ele me chamava pela primeira vez, tinha que ouvir
mais de perto até conseguir identificar que era eu.
Foi total acaso ele trabalhar na padaria do bairro e
um dia perguntar o meu nome. Eu vestia a camisa bran-
ca da escola e nunca me senti tão feia e vazia ao respon-
der. E então o meu nome enchia a boca do Renato. À
noite, no mesmo dia, trocamos as primeiras mensagens.
A beleza dele era real, mas também imaginada. Uns
olhos que estavam sempre correndo, que combinavam
com o resto do rosto. E, não no começo, não até que eu
tivesse certeza, os olhos dele me engoliam. Talvez: ele
era completo. Quando bebia a cerveja direto da garra-
fa, eram alguns poucos segundos, difícil de ver se você
não prestasse muita atenção, eu o enxergava. Quando
ele falava, uma pintinha no canto da sua boca se me-
xia, quando ele gargalhava ela desaparecia em uma cur-
va. As mulheres ao meu redor também reparavam no

65
Renato. Todas elas amontoadas no balcão da padaria e
eu orgulhosa da minha exclusividade.
Na primeira vez em que ele ligou a câmera do com-
putador, todo o seu rosto formava um conjunto bonito,
que tinha mãos inquietas esfregando os olhos. Minha
mãe passava ao lado e eu fechava a janela da conversa
sem saber o porquê. Contei isso para o Renato. O que
ninguém sabe, ninguém atrapalha, florzinha.
Nas semanas seguintes, na padaria, ele não falou co-
migo. E me doía dentro da boca, por debaixo das unhas
e dos olhos, aquele anonimato. Ele sorria para três mu-
lheres na fila, desviava os olhos que já eram ânsia e me
notava na porta da entrada. Sorria de novo pra quem.
E com todos os sorrisos desgovernados durante as oito
horas de serviço completas, um bicho que foi solto de
uma hora pra outra à noite, o sorriso de Renato poderia,
um dia, se deformar. Se uma lufada de ar frio invadisse
a padaria: a risada estiagem dele ficaria torta.
Pelo computador, continuávamos conversando,
eram dois Renatos diferentes, um deles se desculpava
por tudo. Em um dia, abaixa a câmera até que seu ros-
to não exista. Você não me entendeu, florzinha, as me-
ninas fazem isso mesmo. Antes de dormir, os olhos e
dentes apertados, eu pensei que aquele asco depositado

66
por cima da minha primeira camada de pele deveria ser
o jeito certo de gostar.
O Renato e a sua boca trincada por dentro, algu-
mas semanas depois, pediram que eu mostrasse o meu
quarto. Só um pouquinho, antes que sua mãe apareça.
Eu não sabia como mostrar as profundas rachaduras da
parede, o piso com lajotas que não se encaixavam ou o
guarda-roupa mofado. O teto de telhas abrigava dois
ou três buracos por onde o sol entrava. Fios expostos e
uma lâmpada de luz quente. Debaixo da cama uma cai-
xa com diários abandonados. Não tem nada demais aqui
para você ver. Mas a feiura da minha casa – a minha
própria feiura, descobri tarde, depois – não importavam
para ele. O Renato só enxergava a minha cama. De me-
tal e corroída, ela abrigava com dificuldade um corpo
que crescia: os meus pés escapavam do fim do colchão.
É muito bom saber que você dorme aí. Os lençóis e as
fronhas com desenhos de ursos em miniatura e grilos
sorridentes, na cabeceira ainda os adesivos dos cadernos
de dez matérias daquele ano do ensino fundamental.
Naquela noite, madrugada não sei, foi ele quem
baixou a câmera. Sem as calças o Renato era só náusea
e um pau em pé. O primeiro que eu vi.
Ele me perguntou do que é que eu tinha medo.
Eu não lembro se respondi, mas posso ter dito eu não

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tenho mais tanto medo, você pode continuar. E ele,
o sorriso repugnante, continuou. Posso ter dito eu queria
só entender. E ele ainda assim continuou. Você tem que
confiar em mim, florzinha. De tudo, o que eu mais gos-
taria de lembrar é do fim. O esforço dessa memória me
dói a cabeça, me revira e me tapa, mas não é completo.
Meus olhos vão para trás da minha nuca e meus ouvidos
invadem minhas mãos. Meus pés também ao contrá-
rio. Sim, eu disse não. Mas onde, como, em que ponto,
até onde fui capaz de ir, tudo isso é cegueira, breu.
Nos meses seguintes, o mesmo sonho. O Renato
invadia meu quarto. Era noite, e eu acompanhava tudo
me movimentando devagar, em silêncio. Participava
pouco daquilo tudo, meu papel era mínimo, um buraco.
O quarto parecia ainda mais feio, as paredes ainda mais
ásperas. O Renato, os olhos esbugalhados, revirava tudo
à procura de algo. Abria as gavetas e portas do guarda-
-roupa, olhava embaixo da cama e nos cantos próximos
à porta. Buscava uma cadeira, subia nela e tentava al-
cançar o teto. Ele se movia lento, para logo depois voltar
a se agitar. Os braços e as pernas tinham movimentos
contrários, quase se rompiam. As gavetas com roupas
não o satisfaziam. A cômoda com minhas primeiras co-
leções de livros e CDs não despertaram o seu interesse,

68
nem mesmo os meus lençóis curtos. O Renato procu-
rava o quê.
O único lugar seguro era o banheiro, tinha uma
porta e tranca. Eu me escondia lá. E então o quarto
inteiro se transformava em um banheiro. Um compri-
do corredor com vários chuveiros, cada um respingan-
do água suja. Debaixo de um deles, se alimentando das
poucas gotas que escapavam da ducha, o Renato estava
de novo sem as calças. Suas mãos nítidas, dedos longos,
a cabeça borrada.
Ele se aproximava sempre, eu nunca conseguia es-
capar. Eu dizia você está machucando o meu braço e ele
respondia quem disse que esse braço é seu.

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O meu vô não é meu avô. Aos dez anos me orgulha-
va um pouco quando dizia: tenho dois avôs por parte de
pai. E minha mãe dizia não, ele não é seu vô. Só casou
com sua vó. O seu avô é o pai do seu pai. E no mesmo
dia, horas mais tarde: corre abrir o portão para o seu avô
enquanto eu esquento o café.
Quando meu avô que é meu avô chegava, minha
mãe colocava a cadeira no quintal. Ele não sabia, mas
não tinha permissão de entrar na casa. E então eu olha-
va para aquele homem: alto e magro, com o cabelo baixo
e a barba alinhada. Cheio de ossos. O calor subia através
das rachaduras do piso de cimento, se espraiando pelas
telhas de barro, e ele decente no terno bege. No pulso
direito o relógio consultado pontualmente. Sentado na
cadeira, a luz do início da tarde por detrás dele, entre as
árvores, o paletó no colo. O sol crescia e a sua sombra se
agigantava, tinha vezes que até o fim da visita ela che-
gava a me alcançar, do outro lado do quintal.
Aqui, Agnaldo, o café. Ele bebia, falava da época de
poda de suas árvores, da nova frota de ônibus, balançava
o peito do pé coberto com o sapato preto, pergunta-

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va dos filhos e então: senta aqui no colo do vô. Eu me
aproximava, pisava em sua sombra até chegar perto. O
seu rosto era lento, sua boca uma linha dura. Ele con-
sultava o relógio de pouco em pouco, e dizia que já era
tarde. Mas não era, o sol não tinha se movido em suas
costas. Na partida, me abraçava, e os braços cheios de
ossos davam duas, três voltas ao redor dos meus ombros
molengas.
No portão, minha mãe e eu vigiávamos sua parti-
da. Só voltávamos para dentro de casa quando não era
mais possível ver a silhueta longa, que pouco a pouco se
transformava em massa disforme, um ponto na rua, uma
réstia. Três casas à frente, nossa vizinha fazia o mesmo,
os olhos duas máculas. Segurava nas grades do portão,
e as suas mãos se transformavam em garras de ponta
vermelha afiadas, curvadas. Olha lá a Rose cuidando da
nossa vida. Descobrimos algum tempo depois que a fi-
lha da vizinha era minha tia.
Mas nós não nos parecemos, eu disse, e minha mãe
respondeu: o nome dela é Julia. As mulheres do bairro
duvidaram da história contada pela vizinha em que meu
avô, que é meu avô, a estuprou em uma noite, em uma
rua. Ele sabia quem ela era, disseram. E nasceu uma
mulher inteira, de carne e voz, com o nome de Julia, que

71
eu nunca chamei de tia. As garras vermelhas da Rose
cuidaram de um bebê. De vez em quando eu caminhava
na rua imaginando se em outra casa, outra vizinha, ha-
via uma tia. A rua se transformava então em uma enor-
me árvore, e o maior tronco era um dos ossos largos do
meu avô. Aqui, Agnaldo, o café.
O meu dos Santos não é meu. Foi um sobrenome em-
prestado, herdado por mim. O dos Santos não é do meu
avô que é meu avô nem do meu vô que não é meu avô. É
de um outro homem, que eu não sei o primeiro nome e
que nunca entrou na casa. Eu não sei se ele poderia entrar
ou não. No dia em que meu pai foi registrado, o nome do
pai por favor, o meu avô não apareceu. O cartório ficava
na cidade vizinha e talvez o ônibus atrasou demais. Ele
tinha dúvidas se o filho era dele, os olhos afunilados, o
nariz envergado. O dos Santos sem primeiro nome estava
no cartório, acompanhava por delicadeza. O nome do pai
por favor. Talvez minha vó, com um volume nos braços,
tenha ido até o jardim do prédio e olhado até o fim de
cada rua, na curva, atrás dos postes. Ventava forte e a saia
dela ondulava, as mãos seguravam uma porção de cober-
tores, e na ponta dos dedos, unhas pontudas, vermelhas:
elas se curvavam um pouco ao segurar o bebê que, inco-

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modado, chorava. Mas corpo de homem longo nenhum.
E impensado surgiu Domingues dos Santos.
Quando o meu vô que não é meu avô chegava na
casa, podia se sentar na cozinha. Ele era tão grande, que
o cômodo se enchia inteiro e só tinha espaço para as
jabuticabas trazidas em um saco de milho e um copo
de café. Mas os seus ossos não apareciam. Contava do
sítio, dos pintinhos que se transformavam em galinhas
e do carro enguiçado na metade do caminho. Depois
estendia a mão enorme e caminhávamos até o mercado,
até a pequena geladeira de sorvetes. E todos diziam: ele
é um homem bom. Menos minha vó, quando descobriu
todos os filhos e netos que ele tinha em outra cidade,
em outra casa e mulher. Menos meu pai, que em uma
noite esmurrou meu vô até que a polícia chegasse.
Em um sábado o tanque da nossa casa quebrou.
Jorrava água da parede e, como o ralo estava distante,
poças se acumulavam em todo o quintal. Ao longo do
dia, com o sol alto e intruso, a água atingia uma cor
escura, entre o marrom e o verde. Os animais bebiam
daquela água e depois se deitavam na sombra. As mu-
lheres não venciam limpar todo o quintal. No domingo
meu vô que não é meu avô chegou com um novo tanque
e cimento. Seus chinelos de couro escorregavam nos pés
suados. E todos disseram: ele é um homem bom. Anos

73
depois descobri que, quando meu vô escolheu ficar com
minha vó, os filhos dele nos amaldiçoaram. E os netos
não chamavam ele de vô.
O pior é que o seu pai nem sabe se o seu avô está
vivo ou não, minha mãe disse enquanto tomávamos
café. Não foram poucas as vezes que me pediram para
que eu visitasse meu avô. Da casa até onde agora, talvez,
ele vive, é curta a distância. Os ônibus são muitos e não
atrasam. Mas eu digo depois. Uma das vizinhas, um dia
pensei ter entrevisto pontas de dedos afiadas em suas
mãos, disse que ele já não se lembra. Ele desconhece
tudo. Ao longo dos anos meu avô que é meu avô perdeu
todas as suas memórias, os dedos se atrofiaram e encur-
taram. Suas longas pernas só descansam e diminuem.
Todo o tamanho do seu corpo se estreita. Imagino que
seus ossos ainda estejam lá, ainda mais próximos da
pele, aparentes e adormecidos. Você nunca se importou
com ninguém, por isso não quer visitar ele. A boca em
linha do meu avô, agora, apenas suspira.
Ainda moleque, meu pai uma vez tomou o ônibus
para a cidade onde meu avô que é meu avô viveu boa
parte da vida. Eu vou encontrar com o pai. No dia em
que foi, minha vó o agarrou pelos braços, ombros, mãos,
com as suas garras afiadas, mais vermelhas e mais duras.
Ele se chacoalhou até se soltar da ponta do que um dia

74
foram dedos. Saiu correndo: eu vou encontrar com o
meu pai. Depois da despedida, minha vó vigiou durante
dias a rua estreita, a luz dificultando enxergar distante.
As garras vermelhas seguravam as grades do portão, li-
mite. E o meu avô que é meu avô o mandou voltar para
casa.

75
A mesa da casa da minha vó era acobreada, cober-
ta de vincos e partes mais escuras, lembrava um piso
manchado. Naquele dia, duas mãos se depositavam se-
cas e espalhadas por cima dela. Meus cadernos e livros
se amontoavam uns em cima dos outros, cobrindo meus
dedos da visão de minha vó. Nos cinco anos de faculda-
de eu tinha muita pressa.
De noite, a sala era mais silenciosa e fresca para a
leitura, com a luz amarelada pouco ajudando nas letras
pequenas de cada folha coberta de linhas padronizadas.
Os pernilongos zumbiam por trás de mim. Na frente,
minha vó corria os olhos dos livros abertos para meu ca-
derno preenchido à caneta. Você escreve pra mim, nega?
Sim, vó, eu escrevo daqui a pouco.
Por que é que as pessoas somem? Em que ponto
preciso dizemos essa pessoa aqui, olha, desapareceu? O
mundo é tão pequeno para que alguém consiga sumir
dentro dele. Mas era o que tinha acontecido: um dos
meus primos sumiu. O meu tio foi pai cedo, ainda na
adolescência. E a moça, depois de algumas tentativas
de contato, desapareceu com um primo ainda na barri-

76
ga. Meu tio se casou, um pouco mais velho, e esqueceu
essa história. O desaparecimento se espraiou por todo o
corpo dele, alcançou todas as extremidades, até atingir
os olhos, que também esqueceram o menino: ele então
sumiu inteiro.
Não para a minha vó. Uma fita, azul e infinita, co-
nectava toda a sua memória, quase centenária, até chegar
no meu primo. Em uma árvore de goiabas com frutos
ainda verdes, mas que já tinham larvas, a fita se embola-
va e aproximava os galhos que se espetavam, quebravam
uns aos outros ou se rompiam, sozinhos. A fita ainda
assim só crescia, sem pontas finais ela alcançava o tron-
co e o estrangulava. Laços que eu jamais entendi: o teu
primo parece com o meu pai. Mas como, vó, se você
nem conhece ele? Mas parece que sim.
O laço que eu sinto não é meu, frágil e desfiado, me
deram, é suposição. Me enfiaram a colher goela abaixo
até que eu me engasgasse e as linhas se enrolassem no
meu estômago, formando um bolo como se fossem ca-
belos. Uma linha cheia de nós. Do teu sangue, ele é do
teu sangue.
A única foto da moça ficava guardada na antiga
mesa de costura. Em um monóculo de plástico ver-
melho, uma imagem minúscula podia ser vista apenas
quando direcionávamos o aparelho contra a luz. Com

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um dos olhos fechados, o outro ardendo pela força do
sol, ela não conseguia se esconder. Uma menina alta, de
vestido até o meio do joelho. A meia-calça branca e os
cabelos rodeando o rosto. Ela sorri, será? O meu tio do
lado abraçava sua cintura. Se forçar o olho só um pouco
mais eu vejo. Mas se eu forço, então ela escapa. Se eu
forço parece que a magia do monóculo se quebra, e a
moça foge da redoma onde a guardamos.
E se a gente tirasse a foto daqui e mandasse am-
pliar? Não, talvez estrague.
Um dia a TV anunciou: se você tem um parente
perdido, escreva uma carta para a gente e nós te ajuda-
mos a encontrá-lo. Isso é mentira, vó. Não, não é. Aqui
o endereço pra carta, você escreve? Trocando as palavras
vó-mãe-eu-casa-mesa, escrevi a carta cinquenta vezes.
Uma por semana, duas. Assistíamos ao programa com
um caderno nas mãos. Se o telefone do meu primo ou
endereço fossem revelados rápido demais, se fosse sem
aviso, como iríamos anotar?
E se ele aparecer mesmo? Se ele aparecer, eu tra-
go pra morar comigo. Não, ele já deve ser até casado.
Então eu imagino o rosto do meu primo. Deitada no
chão e sentindo as costas contra o duro do azulejo, olha-
va o monóculo e escolhia traços. Ele teria os olhos do
meu tio, a boca da moça, o nariz do pai, os cabelos da

78
mãe. Pouco a pouco, tudo se transforma em um homem
completo e idêntico ao meu tio. A moça um arremedo
de sorriso e só. Ando nas ruas, na cidade, buscando pelo
rosto do meu tio. Do lado esquerdo uma pinta, que o
pequeno do monóculo tenta esconder.
Eu roubo a obsessão da minha vó e escarro a fita,
só para ter certeza de que ela me pertence. Só para ter
certeza de que ela está amarrada bem firme em meu
estômago, ainda. Uma linha se prende na garganta, ela
faz cócegas e me obriga a lembrar.

79
Agora, todas as áreas verdes da vila são privadas.
Nem sempre foi assim. Dois lotes antes da minha
casa, um terreno baldio era tão grande que alcançava a
rua de baixo. Em sua irregularidade árvores frutíferas se
amontoavam, cercadas por arbustos e ervas daninhas. Eu
nunca fui alta: quando estava lá desaparecia dentro do
mato. As minhas canelas feridas da coceira que as urtigas
causavam. Mas não importava, boas tardes eram vividas
naquele lote, com as outras crianças da rua. Quando nos
sentíamos corajosos, atravessávamos a ponte da BR e nos
enfiávamos em alguma das chácaras abandonadas do
lado esquerdo da rodovia. Uma delas tinha uma cachoei-
ra rasa, com pedras em formatos engraçados.
Naquele ano o meu melhor amigo era o Vinicius.
Dois anos mais velho que eu, os cabelos crespos quase
raspados, alto e bobo. Mãe, o Vinicius machucou minha
mão. Não liga não, filha, você não sabe que esse menino
é meio bobo? Ele também era tímido e assustado, de
vez em quando arregalava os olhos para coisas banais:
o escapamento de um carro ou o grito da vizinha. Seus

80
olhos demoravam para voltarem ao tamanho normal.
Talvez algo deva ficar claro de antemão, talvez isso seja
o mais importante: o Vinicius não tinha como escapar.
Mas eu estou me adiantando.
Ele me acompanhava à tarde, na rua. Segurava mi-
nha mão para que eu atravessasse a queda d’água da ca-
choeira sem escorregar nas pedras lisas. A família do
Vinicius era mais pobre que a nossa, por isso, quando eu
ganhava um chocolate ou qualquer outra coisa, guarda-
va um pedaço para ele. Em um dia de folga minha mãe
convidou o Vinicius para almoçar com a gente. Ele ne-
gou duas ou três vezes, mas no fim aceitou. Coloca mais
macarrão nesse prato menino, deixa de bobeira. Mais
tarde, no mesmo dia, uma vizinha nos contou que ouviu
o Vinicius apanhar, chorar e se desculpar. Ela disse que
não entendia os motivos.
Nossas casas eram próximas, a distância de um gri-
to. Minha família não deixava que eu ficasse até tar-
de na rua, então depois das seis horas eu chamava ele.
Cuidando para não fazer barulho, ele trazia uma caixa
com alguns carrinhos. Ele me contava o nome de cada
carro, como aquele corria mais por causa do tamanho
da roda. Eu amontoava um carro em cima do outro até
que caíssem, o som metálico claro. Os carrinhos eram
descascados, e por debaixo da pele de um deles escapava

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ferrugem com uma cor estranha, que grudava nos dedos
por dias inteiros.
Brincávamos por entre as frestas do meu portão
e usávamos o quintal como pátio para os carros. Meu
tio chegava tarde da firma e encontrava nós dois, dizia
que já era hora de entrar. Aquele homem alto cruzava
o portão com a roupa suja de graxa e afagava a cabeça
do meu amigo, depois me abraçava e erguia do chão até
que minhas pernas balançassem, um rodopio, uma volta
inteira. Então ele me presenteava com uma moeda de
um real, que brilhava e parecia gigante. Pra você com-
prar um suco amanhã na escola, neguinha.
Eu tinha muita vergonha quando o Vinicius e o
meu tio se encontravam. Era como ter o melhor brin-
quedo do mundo e o tempo todo ostentar ele. Gostaria
de poder esconder o meu tio do Vinicius.
Às vezes o meu tio bebe, ele não é tão carinhoso.
O Vinicius respondia eu sei, minha mãe disse que
meu pai também bebia demais. O meu amigo não lem-
bra de ter conhecido o pai. A mãe dele chegou na vila há
alguns anos, um carro emprestado carregando poucas
caixas com roupas, pratos e panelas com os fundos es-
curecidos. Desde pequeno ele conta que o pai foi morto
por uma bala perdida, um acidente matou o meu pai,
ele dizia. Mas não era verdade, todos nós sabíamos que

82
o pai do Vinicius foi morto pela polícia com os bolsos
cheios de pedra de crack. Talvez ele esperasse que um
dia, de dentro dos bolsos do meu tio, saltassem pedras
e não moedas, e por isso estava triste quando eu voltava
ao chão depois do rodopio.
Subindo a rua da igreja, depois a rua do posto de
gasolina, no ponto mais alto da subida crescia um des-
manche de carros. Nós não tínhamos permissão de
andar naquela parte do bairro. Lembro de passar em
frente ao lugar e pensar que se parecia com um estacio-
namento prestes a falir. Era um terreno longo e quieto,
cheio de homens.
Uma família se mudou para nossa rua. Homens sé-
rios ergueram em uma semana muros ao redor do ter-
reno onde cresciam as urtigas. O Vinicius arregalou os
olhos nos primeiros dias das obras, mas depois ele se
acostumou. A família se mudou em março.
A casa tinha dois andares, largos e cheios de janelas.
As portas eram todas de vidros com desenhos delicados,
eu teria medo de abrir, bater e fechar aquelas portas se
morasse lá. De tudo, o que mais nos impressionava era a
piscina. Muito azul e cheia de ladrilhos, com pequenas
árvores ornamentais ao redor e cadeiras para banho de
sol. Quando passávamos em frente ao casarão arranjá-

83
vamos um jeito de espiar, mas ninguém usava a piscina,
a casa sonolenta.
A família era grande: a senhora e o senhor donos da
casa, três irmãos e uma irmã, esposas e maridos dos filhos,
netos e sobrinhos. Quando os homens da rua passavam
próximos a qualquer um deles, tiravam o boné e acena-
vam. As mulheres reverenciavam os homens do casarão.
No primeiro ano em que se mudaram, eles não comemo-
raram nenhuma festa. Em silêncio, o Natal parecia um
desmembramento na casa dos quartos infinitos.
Naquela mesma época eu me mudei de escola. A
minha mãe conversou com os diretores para conseguir
uma vaga em um colégio melhor, em outro bairro. O
Vinicius e eu não íamos e voltávamos juntos da escola.
Mãe, o Vinicius me procurou aqui em casa hoje? Mi-
nha mãe dizia que não. Eu esperava no portão, chamava.
Mas não tinha resposta nenhuma. A minha família in-
sistia que era natural um rapaz andar com rapazes. Ago-
ra ele já é quase um moço, as coisas são diferentes. Mas
que rapazes, vó, o Vinicius não anda com rapazes. A
janela do quarto dele estava fechada e as luzes apagadas,
mesmo de noite. Os irmãos mais novos do Vinicius, to-
dos eles com os mesmos olhos de susto, não sabiam de
nada. Com um medo corajoso, antes de ir para a escola,
eu perguntei para a mãe dele se estava tudo bem. Ela

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disse, abrindo pouco a boca, cuidando para que as palavras
escapassem uma de cada vez em ordem, que o Vinicius
estava trabalhando. Trabalhando onde.
Eu fiz alguns novos amigos, mas todos eles eram
peças que não formavam um todo, não se encaixavam.
Esperava ansiosa as férias e vigiava a porta da casa do
Vinicius, contando que ele aparecesse. Minha mãe che-
gou em casa com as sacolas de compras e me entregou
um chocolate. Foi o Vinicius que te mandou, ele estava
no mercado comprando um monte de coisas, carne e sal-
gadinhos. Eu lembro de ter ficado feliz por ele, lembro de
ter agradecido o trabalho que antes detestei. Parecia justo
que agora o meu amigo pudesse comprar doces.
Em uma noite, um dos filhos do dono do casarão
arrastou pelos cabelos, até a calçada do outro lado da
rua, uma moça que parecia ser sua esposa. Ele empurra-
va com força sua cabeça em direção ao poste de luz, as
mãos dela apalpavam cegas o ar e as pernas do homem.
O barulho seco e os gritos da mulher acordaram toda
a rua. Ninguém dizia nada, as pessoas olhavam o cor-
po magro amolecer cada vez mais e minha vó, em vão,
tentava levar todos de volta para dentro de casa. Eu não
conseguia enxergar bem o que era o rosto daquela mu-
lher quando o homem cansou de bater nela, se levan-

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tou, esfregou com força as mãos sujas nas calças e gritou
para que alguém tirasse aquilo da frente de sua casa.
O Vinicius se aproximou do corpo e o apanhou de
qualquer jeito, como uma moeda perdida no chão. Para
onde ele poderia levar um corpo mole como aquele.
Eu não tinha mais permissão de ver ou chamar o
Vinicius. Fingia que aceitava e quando podia espia-
va a sua casa. No fundo, o que me inquietava era não
acreditar que meu amigo puxou e ergueu os braços da
moça desacordada. O Vinicius nem ao menos tinha
forças para carregar um corpo. Como seus olhos não
saltaram para fora dos buracos de medo de tudo aquilo.
Então, em uma manhã, eu o segui.
Esperei que virasse a rua e acompanhava de longe,
adivinhando no meio dos outros a sua silhueta. Eu menti
dizendo que ia para a escola um pouco mais tarde, que
naquela semana um dos professores faltou. Subimos, pela
primeira vez juntos, mas separados, a rua da igreja e do
posto de gasolina. Pela porta da frente, o Vinicius entrou
no pátio que servia de desmanche. Bati palmas até que
alguém me atendesse e logo os olhos, agora sim reconhe-
cíveis, esbugalhados, me encontraram.
Ele não queria saber de nenhuma das minhas per-
guntas, pedia apenas que eu fosse embora. Mas Vini-
cius, você precisa me contar o que aconteceu com você.

86
Então ele balançava a cabeça, negando tudo mesmo
quando eu me calava. Você não tá mais indo pra escola.
Mesmo isso ele não me respondia. Só dizia, não, não,
não. A sua mãe tá te obrigando a trabalhar aqui. Não,
não, não. O Vinicius parecia ter envelhecido cinco anos
em poucos meses e eu começava a achar que ele seria
sim capaz de carregar um corpo, se quisesse. Me sentei
próxima de um carro com o vidro do motorista estou-
rado, afiado, e encostei na porta: nós ainda podemos ser
amigos? Enquanto ele continuava a balançar a cabeça,
um dos filhos dos donos do casarão chegou. Gritando,
ele reclamava que nenhuma das peças do carro tinha sido
retirada. Quando me viu, seu rosto branco se avermelhou
em dois rastros vermelhos que partiam do nariz. O que
essa menina tá fazendo aqui.
O roxo no olho esquerdo e na bochecha do Vinicius
demorou pra curar, e nós não nos falamos. Eu acompa-
nhava com os olhos enquanto ele passava na rua, mas ele
não olhava para mim. Logo ele abandonou o trabalho
no desmanche. A polícia ia muitas vezes até o pátio e
batia em todos que estavam trabalhando. Os homens al-
tos com fardas escuras também levavam embora todas as
peças amputadas dos carros. Uma semana depois, o dono
do casarão pagava algum dinheiro a um homem da po-
lícia que visitava o portão do casarão tarde da noite, com

87
os vidros da viatura abertos apenas para a passagem de
mãos. E, então, o pátio voltava a funcionar.
Quando todos da vila passaram a comentar que o
Vinicius tinha largado o desmanche, eu imaginei que,
aos poucos, tudo voltaria ao normal. Mas em seguida,
as pessoas voltaram a cochichar que ele agora estava an-
dando com os vagabundos da rua de baixo.
Alguns anos atrás, aqui na vila, a cocaína era ven-
dida em pequenos saquinhos plásticos transparentes. A
rua amanhecia coberta dessas embalagens, o vento tra-
zia algumas para dentro do quintal. Foi o Vinicius que
implementou o uso dos pinos. O transporte era mais
eficiente, não se perdia nada. Talvez fosse mais fácil de
separar e contar. Passaram alguns meses até que todos
na vila percebessem que agora o Vinicius não era só o
Vinicius. Talvez o pixo na parede externa da casa dele
ajudasse a compreender: um cifrão e um palhaço com
um cigarro na boca. Um desenho torto, sujo, indicando
que ali era um ponto de drogas. Olhos grandes do pa-
lhaço. O meu amigo abandonou a escola e agora passava
o tempo em frente à sua casa, com outros rapazes.
Eles ouviam o som do carro novo, alto. Meu vizi-
nho, desatento, um dia foi até lá e reclamou. Silencioso,
mas ainda com os olhos esbugalhados, o Vinicius apon-
tou uma arma para a cara do homem. Talvez ele tenha

88
aprendido o movimento com os policiais que visitavam
o pátio do desmanche. Daquele dia em diante todos en-
tenderam. Pessoas que não moravam na vila passaram a
frequentar a minha rua, procuravam pelo Vinicius e se
sentavam na calçada esperando por ele. Antes abertos,
criamos o hábito de manter as portas e janelas fechadas.
Um dia meu tio deixou de pagar um dos pinos, a
firma atrasou o salário do mês. O Vinicius bateu palmas
em frente ao nosso portão duas ou três vezes e meu tio
não atendia. Fala para o seu tio que ele tá me compli-
cando. Eu acenava devagar com a cabeça e não repassa-
va o recado. Quando meu tio soube das cobranças, seu
rosto se contraiu em uma careta e a sua boca ficou fina.
Ele desceu até o fim da rua e gritou o nome do Vinicius
uma porção de vezes. Sem responder a nenhum dos in-
sultos, o Vinicius saiu de dentro da casa, um corpo com-
pleto de alguém que não tem medo, com uma pedra na
mão e acertou a cabeça do meu tio. Enquanto eu corria
até o fim da rua, as mãos alcançavam a cabeça do meu
tio e escondiam ele do mundo, ouvia de longe fala pra
esse filho da puta não esquecer com quem ele tá falando.
Não não não agora quem fala é meu tio. E os olhos que
agora se esbugalham têm outra forma, que eu demoro a
reconhecer como raiva, deslumbre.

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A pedra com que ele acertou a cabeça do meu tio,
eu poderia jurar não fosse o sangue, o sussurro e a pres-
sa, era uma antiga pedra da cachoeira, do outro lado da
BR, do outro lado do portão e da vila.

90
À noite, a neblina desce e cobre toda a Vila Iase.
Da janela da sala, podemos ver as luzes de casas em
frente e ao lado se borrarem e a rua desaparecer. E então
a minha tia é uma espera. Com olhos que se empoleiram
na beirada da janela, ela apura sua visão até encontrar
o filho, alto e magro, dobrando a esquina ou subindo a
passagem estreita da viela doze, onde outros meninos tão
altos e ágeis quanto ele vendem saquinhos de cocaína
misturada com cal, vidro triturado e bicarbonato. Meu
primo cumprimenta todos eles e se senta na beirada da
calçada para conversar. Tia, as suas mãos estão geladas e
secas, olha. Eu acho que envelheci tudo de uma vez só.
O meu primo tem Jesus tatuado no peito. É uma
imagem grande, cobre a pele dele toda de forma bem
detalhada: um homem de olhar profundo, manso e fir-
me nos encara com uma das mãos em benção. Quando
meu primo respira, Jesus respira com ele e então sua
cabeça se deforma um pouco, se dobra, para logo depois
voltar ao normal. Acima do desenho, em letras curva-
das, um trecho de um salmo.

91
Aos poucos, o nome do meu primo se confundiu
com as primeiras frases do salmo. Ao lembrar dele, o sal-
mo em espiral é que aparece na minha cabeça. Senhor
meu Deus, em ti confio; salva-me de todos os que me
perseguem, e livra-me. Então o meu primo já não tinha
rosto, mãos ou pescoço, todo ele era um conjunto de pa-
lavras uma em cima da outra que eu decorei e repetia.
Antes que ele saísse, a minha tia benzia sua testa
com o sinal da cruz. Você pegou o documento? Presta
atenção se ninguém tá te olhando torto. Se aprofundan-
do na viela, os olhos dela, em algum momento, perdiam
o rastro do meu primo. Senhor, meu Deus, em ti confio.
De noite, madrugada já, os mesmos olhos, arregalados e
imensos, eram faroletes que o guiavam de volta pra casa.
Ela se orgulhava em falar para todos, para os vizinhos,
que não criou nenhum vagabundo. Que o seu filho logo
terminaria os estudos e compraria uma moto, para tra-
balhar. Ela se orgulhava em dizer que o seu trabalho
cansava tanto suas pernas, que subir a escada da casa
no fim do dia era como ter um prego enfiado em suas
costas.
Na frente da viela doze, mas também na dezesseis,
dezessete e três, carros abandonados se amontoavam.
Eles eram, aos poucos, desmontados. As peças que va-
liam qualquer coisa eram retiradas e vendidas. O alarme

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de alguns deles, recém-chegados, disparava de madru-
gada, mas ninguém aparecia. O resto, a carcaça do que
foi o carro, apodrecia em ferrugem durante meses. A
tinta descascava e os vidros eram todos estilhaçados. No
estágio final, quando não se pode à primeira vista dizer
que aquilo um dia foi um carro, as crianças se apinha-
vam no capô para empinar pipas com mais facilidade,
fechando com força os olhos quando olhavam para o
sol.
No fim da nossa rua um novo carro apareceu em
uma manhã, prateado e um pouco antigo. As pessoas se
aproximavam, olhavam através dos vidros, ainda intac-
tos, à procura de qualquer coisa. Acordamos com as pal-
mas no portão: três amigos do meu primo gritavam seu
nome. Ele, se vestindo com pressa, correu até uma caixa
de ferramentas descascada e pegou duas talhadeiras an-
tigas. A minha tia estava no telefone, não teve tempo de
benzer sua testa.
De longe ouvíamos a conversa dos meninos, a por-
ta do carro ceder aos poucos, e o barulho irregular e
seco da talhadeira preenchendo a vila inteira. E depois,
o som das sirenes.
Nada, nunca, será mais forte para mim do que um
pé calçado de botas. Talvez tenha sido a surpresa: eu já
sabia da força de uma mão, eu já sabia da força de uma

93
arma ou de um pedaço de pau. Mas não desconfiava da
força de um pé calçado de botas. Enquanto os policiais
desciam das viaturas, meu primo demorou a desconfiar
de que o problema era ele e os garotos magros, ágeis.
Eles continuaram, por poucos minutos, com as talha-
deiras nas mãos. Quando foram jogados no chão asfal-
tado, o carro abandonado ainda não tinha sido aberto e
alguns vizinhos olhavam da janela ou da frente de casa.
O que vocês queriam com o carro? Qual que é o nome
de vocês?
Senhor meu Deus, em ti confio; salva-me de to-
dos os que me perseguem, e livra-me. Mas o nome do
meu primo, a tentativa de se explicar não foi suficiente
para frear o pé calçado de botas que acertou a sua boca.
Duas, três vezes. Até que uma das vizinhas cobrisse o
próprio rosto com as mãos, até que o barulho fosse um
pouco mais oco do que no primeiro chute. Os quatro
rapazes ficaram no chão, as bochechas encostadas no
piche, um deles com as mãos na boca e os olhos fecha-
dos apertados, como daquela vez em que subiu no capô
de um carro desmontado para empinar pipa e o sol o
cegou por alguns segundos.
Nos pés dos quatro, chinelos desgastados, talvez um
pouco maiores que seus próprios pés que, naquela al-
tura, já eram pés de um homem completo, de qualquer

94
forma. Um pé de alguém que sabia andar. Levanta e
anda, senão é pior, eu me lembro de pensar ter ouvido
enquanto chegava no fim da rua, levanta e sai andando
filho da puta. E a minha tia, com o prego enfiado nas
costas, descalça, correndo a rua inteira até alcançar o seu
filho que, bambeando, se levantava ainda com a mão na
boca.
Daquele dia eu gostaria de me lembrar apenas do
suficiente. Lembro de tudo. Lembro do vão, no lugar
onde eram dentes. Lembro de olhar para aquele vão e
de conseguir ver fundo no meu primo, lembro de con-
seguir ver sua garganta, seu estômago, suas tripas. Eu
pensava só no peso das botas. Minha tia buscava gelo e
algodão, ágil como os amigos do meu primo. Limpava a
camisa. Rezava muito. Dizia encosta a cabeça no ombro
pra mãe limpar o sangue da tua boca.

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96
GRAVE,
Só quando acabou foi que compreendi. Às vezes se
acreditava que não havia ninguém em casa, minha mãe
colocava uma camada de lençóis por cima de seu corpo
nu. Cobria os dois pés, o ventre, a cabeça e a ponta dos
dedos, não deixava nada descoberto. Os lençóis ficavam
amontoados uns em cima dos outros, e a transparência
dos tecidos embaralhava as imagens de cada um. Como
se sua pele pinicasse no contato com qualquer roupa
mais áspera, minha mãe suportava apenas os lençóis. Eu
fingia que ela não estava lá e quando precisava entrar no
quarto, fazia antes algum barulho na cozinha. Minha
mãe se desculpava, naquela época. Um dia minha vó me
perguntou o que era aquilo e eu não soube responder.
Ela é assim mesmo, vó.
No início, o ritual durava apenas poucos minutos.
Mas agora eu vejo: o tempo que ela passava submersa
nos lençóis só se alargava. No verão, em todas as ma-
nhãs, minha mãe sumia. Fazia calor e o quarto não ti-
nha janelas. O abafado da rua entrava então pela porta
da cozinha e, mesmo que demorasse um pouco, alcan-
çava o corpo que repousava. Ela se esquecia de fechar as

98
portas do guarda-roupa, parecia que ele também estava
com calor, com braços e pernas abertos para respirar.
Dentro, as roupas todas reviradas na procura por len-
çóis. Então eu a descobria, colocava a mão na sua testa,
e na ponta dos meus dedos sentia o suor que escorria,
formando caminhos por todo o rosto, desaparecendo
por entre os vincos da pele exposta. Lembro de pensar
que toda aquela água não poderia ser só suor. Os olhos
da minha mãe estavam vermelhos. Mãe, eu acho que
você está doente. Não tô não, eu só quero descansar um
pouco antes de fazer o almoço e ir trabalhar.
Talvez não faça sentido: eu sentia que minha mãe,
não de repente, não como se quisesse, silenciava. Eu
quase não ouvia quando ela andava pela casa. Em alguns
dias, quando ela varria o quintal, eu não sabia distinguir
se era só o vento empurrando as folhas ressecadas para
um canto ou ela. As folhas eram acumuladas em um
canto enlodado, próximo a uma das janelas, mas não
eram recolhidas. O trabalho e tempo perdido talvez de-
sanimassem minha mãe. Às duas horas ela ia trabalhar
e o portão não rangia quando minha mãe passava por
ele, o cadeado em seus dedos não tilintava. Só à noite
eu ouvia. Os chinelos ruidavam e davam voltas, voltas,
voltas na cozinha. E eu pensava, meu Deus, a cozinha
é tão pequena, será que ela está andando em círculos?

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Será que ela está perdendo o sono por passar as manhãs
dormindo?
Antes que os lençóis a engolissem, ela nunca faltou
no emprego. No início, eu achei que aquele ritual com
a cama e nudez era sua forma de descansar do que o
trabalho exigia. Um dia ela me confidenciou, bem bai-
xinho e abafado, que não gostava de falar e de se rela-
cionar com pessoas que não conhecia. Mas o trabalho
exigia que ela falasse o tempo todo, ou ao menos das
14 às 23h. Mas mãe, você é vendedora. Eu sei disso,
mas por mim eu não falaria mais. O senhor Abdala dis-
se que eu tenho que sorrir mais para os clientes. Tem
alguma coisa dentro de mim, Monaliza, que me traga
tão… Tão forte. Eu quase consigo ver a minha própria
fumaça sendo tragada. Aquele, talvez, tenha sido o re-
curso final da minha mãe em suas tímidas tentativas de
pedir ajuda. Eu não entendi. E ela não se queixou mais.
Em uma tarde de portas do guarda-roupa abertas
eu toquei seu pé com cuidado, era medo de sobressaltá-
-la o que eu sentia. Mãe, a Sani foi embora. Ela se mo-
vimentou, devagar. Pensando agora, se me esforço em
relembrar, todos os movimentos dela eram assim, esta-
cionados pela metade. De pé, um pouco mais distante
do que o necessário, eu não saberia dizer se o que via,
na transparência dos tecidos, era o seio da minha mãe,

100
a figura de uma flor arroxeada que decorava um dos
lençóis ou uma mancha de café. Ela puxou um pouco
a barra dos panos, até que seus olhos e a metade do seu
rosto aparecessem. A boca escondida, mas as camadas
de lençóis permitiam ver que estava torta e entreaber-
ta. A ponta do nariz vermelha. O suor estava no rosto
todo. A Sani escapou? Não mãe, a Sani morreu. Que
bom, filha.
Depois dessa conversa, corri para algumas pessoas
da família: eu preciso de ajuda com a minha mãe, não
sei o que fazer. E eles disseram ela só está cansada. Na
semana seguinte eu insisti: vó, ela chora muito. No ou-
tro dia minha vó chegou cedo em casa, preparou o café
e quase não fez barulhos: ela queria que minha mãe
dormisse até tarde. Às onze, sem bater, entrou no quar-
to. Pobre não tem tempo para depressão, levanta, va-
mos fazer o almoço. Já afastada do trabalho, minha mãe
tinha toda a tarde livre, todo o dia, para desaparecer.
Inventávamos tarefas para ela e a resposta era hoje não,
eu tô cansada.
Eu chegava da faculdade e ia até o banheiro lavar as
mãos. Ela novamente não havia dado descarga. Desde a
porta da cozinha o cheiro estava em toda a casa, parecia
um diagnóstico médico. Mãe, você esqueceu a descarga
de novo. Eu não tive forças hoje, filha. Naquele dia, assim

101
como a privada, os lençóis também estavam sujos. Aju-
dei ela a tomar banho e ela ficou quieta quase o tempo
todo. Me ajuda, mãe, levanta o braço. Agora abaixa a ca-
beça pra eu lavar seu cabelo. Mãe, você precisa me ajudar.
Ensaboei, enxaguei. Usei o shampoo mais cheiroso que
tínhamos. No fim, encarando o ralo, ela disse minha pele
parece ainda mais exposta sem os lençóis. Não mãe, isso
é coisa da sua cabeça. Enquanto ela se penteava, eu lavei
todos os lençóis. Estendidos ao sol, eles ainda conserva-
vam a forma do corpo da minha mãe.
Sim, ela escapou. Foi por pouco. A minha memó-
ria me engana sobre o fim, talvez não tenha sido súbito
como hoje me parece. Não é possível que um dia ela te-
nha se levantado e dito: sim. Talvez a mudança de casa
tenha tido algo a ver com a sua melhora. Talvez minha
mãe tenha chegado em algum tipo de limite que arran-
cou um pedaço do que ela era, mas acabou levando os
lençóis junto. Os buracos foram todos preenchidos com
retalhos de panos grossos e coloridos, as partes arran-
cadas profundas até o osso. Minha mãe escapou quase
sozinha. A sua pele está cheia de cicatrizes, mas agora
fresca, livre das camadas sujas dos lençóis. Disso eu me
lembro: ela acordou sozinha, preparou o próprio café.
Hoje, acho que consigo respirar direito.
Eu nunca me atrevi a deitar nua por baixo dos lençóis.

102
Os joelhos do meu vô já não servem para muita
coisa, sua cintura e bacia também estão desgastadas. É
custoso para ele subir e descer o morro, que deve ter
ao menos um quilômetro, separando o seu sítio da rua.
Lembro de correr aquele morro desviando das pedras e
poças d’água, a descida era escorregadia e minhas per-
nas pareciam molas quando tocavam o chão. Atrás de
mim, ouvia os avisos de cuidado cada vez mais distan-
tes. Se eu me esforçasse ao correr morro abaixo, tenho
certeza de que poderia alçar voo.
Ao fim do morro, em terra firme, escondida por al-
guns pés de limão, estava a casa. Era feita de pau-a-pique
e barro, com grandes casas de marimbondo decorando a
porta de entrada. Um quarto, uma sala e uma cozinha.
O banheiro do lado de fora da casa, no quintal. Móveis
e janelas todos escurecidos pela fumaça do fogão a le-
nha. Tudo era improvisado, como se dali uma semana
a casa pudesse ser demolida para que outra, mais nova
e feita de tijolos, nascesse. Mas não nascia. Baldes se
transformavam em cadeiras, uma mesa de plástico pega
em um bar, em mesa de jantar. Uma antiga cama de sol-

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teiro sem a cabeceira era o sofá. A única coisa nova era
a TV, ligada em algum dos jogos de futebol da série A
ou B, transmitidos pelos canais pagos. Esse era também
o único luxo da casa. Foi o meu vô quem me ensinou a
gostar de futebol.
No quintal dos fundos viviam as galinhas, os ca-
chorros e gatos, disputando espaço e comida. Adiante,
uma bica de água, cercada de bananeiras. Sentada na
beira da bica, eu afundava os pés na água gelada. O sítio
não era todo cercado, caso caminhássemos para frente
eu não saberia dizer o que era ou não terreno do meu
vô. Morros imensos cercavam a clareira onde a casa
morava. Em um caminho de mato batido existiam duas
pequenas represas, com uma queda de água no fim. O
meu tio gostava de nadar ali, mesmo nos dias frios em
que acendíamos uma fogueira.
O meu vô trabalhava fazendo blocos de cimento e
ferros para colunas de casas, mas não conseguiu utilizar
nenhum deles em seu sítio. Via ele carregando um blo-
co debaixo do braço. Sempre acreditei que ele juntava
um a um, em um esforço, para um dia reunir todos,
enfileirar e formar uma casa. Por conta do trabalho o
sítio se mantinha quase que sozinho, meu vô dedicava
apenas os fins de semana ao lugar. As tarefas se acumu-
lavam e o sítio, compreensivo, escondia tudo aquilo que

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exigia esforço, limpava o terreiro coberto de folhas e,
mesmo quando chovia, omitia as goteiras da casa.
De tudo o que mais enchia os olhos era a janela
da sala. Eu apoiava os joelhos no sofá e encostava os
cotovelos no batente de madeira. Era necessário cuida-
do com a proximidade em relação aos marimbondos,
em uma luta pelo espaço. Até onde a vista conseguia
alcançar, até se perder, até se embaçar, existiam árvores
e morros. A imensidão daquele terreno me assustava.
Como se ele não existisse de verdade e meu vô tivesse
criado com cuidado. Um dia, olhando pela janela, recla-
mei com minha vó que eu não tinha o que fazer, nada
pra brincar. Ela me deu um bloco de folhas de uma an-
tiga agenda e uma caneta. Então, escreve uma história
pra mim.
Vó, diluída, aqui está sua história.
Ninguém percebeu os primeiros sinais da doença do
meu vô. O seu joelho direito inchava, então ele mancava
a cada dez passos, mas no dia seguinte já estava bem.
Minha família insistia que ele fosse ao médico e recebia
promessas de depois. Foram necessários alguns anos até
que o inchaço do joelho do meu vô fosse permanente,
assim como o pouco equilíbrio entre uma perna e ou-
tra. Algo dentro dele, em suas pernas que carregaram as
costas que carregaram o peso, se corroía.

105
Essa corrosão se apresentava todos os dias, ao se le-
vantar ela dizia bom dia. Os dois conversavam ao prepa-
rar o café e caminhar até o emprego. Eu me lembro que
era uma relação mesquinha, que não suportava a interfe-
rência de ninguém. Até que um dia a corrosão disse, sem
alterar o tom da voz para não se cansar: eu não quero
mais que você vá ao sítio. E o meu vô não obedeceu en-
quanto pôde. Os morros e as tarefas do sítio se torna-
vam cada dia mais íngremes e a situação se sustentava
por pura teimosia. O sítio dizia que o ajudaria mais, que
ele próprio alimentaria os animais, colheria as frutas ou
cortaria o mato que avançava por entre o que antes era
caminho. Mas a corrosão dizia não.
A médica que cuida dos joelhos do meu vô, prome-
tendo uma cirurgia que não chega, você não está pronto
seu João, comprou o sítio. Foi como se ela me roubasse
muitas coisas que não eram minhas e nem ao menos
suspeitasse de como era uma pessoa ruim. Fico ima-
ginando que ela logo derrubará a casa de barro, cons-
truirá algo como uma piscina ou quadra e, com muitas
ordens e acenos de mão, a senhora doutora é muito boa,
mandará que drenem a bica. Imagino, e me esforço para
que seja real, ela enchendo o sítio de portões, para que
ele tenha limites, para que ele seja real, e contratando
um vigia de 12 por 24 que ficará feliz em encontrar um

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emprego tão simples, no meio do nada e que nem ao
menos exige vigia. Mas a médica, uma doutora muito
boa, não sabe.
A minha vó diz ela é muito boa por ter aceitado com-
prar um sítio com tantos problemas e em uma localização
tão ruim. Quando discordo, ela diz que eu nunca soube
nada, que sonho é só vendaval, que eu nunca precisei viver
sem sonho nenhum. Depois sua ira desaparece e ela passa
o restante do dia triste, lavando qualquer louça que apare-
ce na pia e tirando as roupas de dentro do guarda-roupa
para dobrar tudo de novo. Eu peço desculpas e prometo
não falar de novo nisso. A gente só tá se machucando, vó.
E eu deveria ter feito o quê? Você acha que eu tinha que
ter feito o quê?
Avançando mata adentro, em um movimento
de fronteiras irreais, chegávamos até outro sítio, esse
abandonado. Uma casa que já foi chique, invadida por
aroeiras e aldragos ainda jovens, com mato inespecífico
e alto cobrindo mesas e cadeiras. Os móveis criaram
musgo e pareciam partes de plantas com erros gené-
ticos. Um dia minha vó me acompanhou até lá, abriu
os armários e descobriu uma porção de louças, pratos e
talheres. O fantasmagórico desse sítio me assustava, ao
mesmo tempo em que seduzia. Inventava mil histórias
sobre os motivos do abandono, escrevia todas enquanto

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subia as escadas para o andar superior, onde camas no
passado arrumadas, agora serviam de ninho para ratos
selvagens.
Imagino que daqui dez anos o sítio do meu vô será
um novo sítio chique abandonado. Aos poucos a médi-
ca se cansará de seus incompreensíveis morros, relutará
em passar todo o fim de semana em um lugar onde o
sinal do celular só funciona pela manhã. E então, com
a mesma facilidade que comprou e reconstruiu o lugar,
com o mesmo balançar de mãos, sim senhora por favor
doutora, com blocos chegando aos montes, em cami-
nhões enormes, ela esquecerá que tem um sítio. Talvez
esqueça até mesmo o caminho, erre a entrada da estrada
de terra, já que todas parecem iguais. Em sua casa da
cidade, a médica ainda dirá aos amigos que é dona de
um sítio. Na boca, fervendo por entre os dentes alinha-
dos, o prazer em dizer tenho um sítio no interior de São
Paulo, que é meu.
Uma melancolia se deposita por entre os móveis da
casa quando penso na venda do sítio. O roubo de algo
íntimo, que demoro a compreender. Em uma tarde de
domingo, alguns primos levaram meu vô para se des-
pedir do sítio. Eles me convidaram e eu não fui, como
um protesto. Na volta, saltaram do porta-malas panelas
pretas, talheres tortos, algumas ferramentas de traba-

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lho e uma peneira grande. Vestígios de um crime.
Apoiando-se nas duas muletas, como se de repente
ganhasse quatro pernas, meu vô se sentou na calçada
enquanto esperava a carona para ir para casa.
Eu me sentei ao seu lado e perguntei sobre o jogo
do Santos, perguntei sobre a semifinal da Libertadores
e sobre o goleiro que se contundiu na última partida.
Ele respondeu a tudo com muita calma, enquanto en-
rolava nos dedos uma folha meio escurecida de jabuti-
cabeira. O mundo nunca foi gentil com você. Eu po-
deria ter dito, mas não disse. Em segurança, ficamos os
dois falando sobre futebol. Na hora de subir no carro,
ele pediu que eu colocasse sua perna, seu joelho, pé,
dedos para o lado de dentro. Com esforço consegui, fe-
chei a porta enquanto ele dizia que o quintal lá de casa
é grande o suficiente para uma árvore de jabuticabas.

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ITAÚ SOCIAL

Superintendente
Angela Dannemann

Gerente de Fomento
Camila Feldberg Macedo Pinto

Coordenadora de Engajamento Social e Leitura


Dianne Melo

Gestora do Projeto Vivências Literárias


Karina Bezerra Garcia

Comunicação Integrada
Fundação Itaú

Gerente de Comunicação
Ana de Fátima Oliveira de Sousa

Coordenação de Comunicação para a Educação


Alan Albuquerque R. Correia

Equipe de Comunicação
Juliana Araujo
Copyright © Monaliza Caetano, 2022
Todos os direitos reservados. Este livro ou qualquer parte dele não pode ser reproduzido ou
usado de forma alguma sem autorização expressa, por escrito, da autora ou editor, exceto
pelo uso de citações breves em uma resenha.

Créditos da publicação

Supervisão editorial
Marcelino Freire

Coordenação editorial | produção


Patricia Ioco

Projeto gráfico
Daniel Minchoni | selo doburro

Ilustrações
Vitoria Martins Fontes

Copidesque e revisão
Mônica Silva | MS Revisões®
Monaliza Caetano é historiadora,
pesquisadora e redatora. Em sua trajetória
teve acadêmica estudou as relações entre
cinema e censura na Alemanha. Sempre
enxergou na escrita e literatura uma
possibilidade de enxergar de perto e de
forma inusitada aquilo que, a primeira
vista, parece cotidiano. Me Ensina a
Escrever o Meu Nome é um esforço de
olhar atento a gestos, objetos, contextos
e pessoas cotidianos e banais, que se
transformam em excepcionais a partir de
olhos que os olham pela primeira vez.
Me ensina a escrever o meu nome
foi composto em tipologia
Adobe Caslon Pro, 12,
para o projeto Vivências Literárias
e publicado pelo Itau Social.
Realização Projeto Parceria

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