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Notas de Aula

Fernando Manfio
ICMC – USP
Sumário

1 Subvariedades Euclidianas 1
1.1 Subvariedades Euclidianas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2
1.2 Valores regulares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
1.3 O espaço tangente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8
1.4 Mudança de coordenadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
1.5 Exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
1.6 Apêndice 1: O teorema da invariância do domínio . . . . . . . 17

2 Variedades diferenciáveis 18
2.1 Variedades diferenciáveis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18
2.2 A topologia de uma variedade diferenciável . . . . . . . . . . 23
2.3 Aplicações diferenciáveis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
2.4 O espaço tangente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30
2.5 A diferencial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
2.6 Exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
2.7 Apêndice: Fatos básicos de topologia . . . . . . . . . . . . . . 43

3 Subvariedades 46
3.1 Aplicações de posto constante . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
3.2 Imersões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
3.3 Submersões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
3.4 Subvariedades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52
3.5 Mergulhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
3.6 Valores regulares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
3.7 Exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62

4 O teorema de Sard 66
4.1 Conjuntos de medida nula . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66
4.2 O teorema de Sard . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

i
4.3 Transversalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70
4.4 Exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73

5 Extensão de aplicações diferenciáveis 74


5.1 Partições da unidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
5.2 O teorema de Tietze . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78
5.3 O teorema de Whitney . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80
5.4 Exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83

6 Variedades com fronteira 84


6.1 Semiespaços . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84
6.2 Variedades com fronteira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
6.3 Valores regulares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
6.4 O teorema do ponto fixo de Brouwer . . . . . . . . . . . . . . 91
6.5 Exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94

7 Homotopia 95
7.1 Aplicações homotópicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
7.2 O grau módulo 2 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
7.3 Exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100

8 Variedades orientáveis 101


8.1 Orientação em espaços vetoriais . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
8.2 Variedades orientáveis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102
8.3 Subvariedades Euclidianas orientáveis . . . . . . . . . . . . . . 104
8.4 Orientação em variedades com fronteira . . . . . . . . . . . . 107
8.5 Exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112

9 Teoria de interseção 113


9.1 Número de interseção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113
9.2 O grau de uma aplicação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118
9.3 O teorema de Brouwer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120
9.4 Aplicações de Lefschetz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121
9.5 Teoria de Lefschetz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126
9.6 Exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131

10 Campos vetoriais 132


10.1 O fibrado tangente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132
10.2 Campos vetoriais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 136
10.3 Curvas integrais e o fluxo local . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
10.4 Exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142

ii
10.5 Apêndice: Morfismos entre fibrados tangentes . . . . . . . . . 143
10.6 Apêndice: Campos vetoriais completos . . . . . . . . . . . . . 146

11 O teorema de Poincaré-Hopf 149


11.1 O índice de um campo vetorial . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
11.2 O teorema de Poincaré-Hopf . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152

12 Distribuições 157
12.1 Derivações lineares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157
12.2 Derivação em variedades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 162
12.3 Campos f -relacionados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 166
12.4 O teorema de Frobenius . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175
12.5 Exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181

13 Grupos de Lie 183


13.1 Grupos de Lie . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183
13.2 Álgebras de Lie . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187
13.3 A aplicação exponencial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 192
13.4 Subgrupos de Lie . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197
13.5 Exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201

Referências Bibliográficas 203

iii
Capítulo 1

Subvariedades Euclidianas

As técnicas do cálculo, que tem suas origens no final do século XVII


com Newton e Leibniz, transformaram a Geometria. Os objetos, que até
então eram tratados com uma abordagem mais axiomática, ganharam nova
perspectiva com o advento do cálculo diferencial e integral.
A geometria diferencial de superfícies no espaço Euclidiano R3 , por exem-
plo, tem dois grandes aspectos. Um deles, que está ligado diretamente às
origens do cálculo, diz respeito as propriedades locais das superfícies, ou seja,
aquelas propriedades que dependem somente do comportamento da super-
fície na vizinhança de um ponto. O segundo aspecto diz respeito em como
as propriedades locais de uma superfície influenciam no seu comportamento
como um todo.
Neste capítulo iremos apenas introduzir e destacar algumas das proprie-
dades locais das subvariedades Euclidianas em Rn , que são generalizações
direta das superfícies em R3 estudadas nos cursos clássicos de geometria di-
ferencial. Esses objetos serão revisitados no capítulo seguinte, no sentido
de que são os exemplos naturais de uma classe mais ampla, as variedades
diferenciáveis. O objetivo aqui é apenas destacar que, com o auxílio dos teo-
remas clássicos do cálculo, como os teoremas da aplicação inversa e implícita,
as subvariedades Euclidianas admitem descrições e caracterizações simples.
Maiores detalhes podem ser encontrados em E. Lima [11], para os resultados
do cálculo, e as referências clássicas de geometria diferencial M. do Carmo
[3], M. Berger - B. Gostiaux [2] ou J. Lee [?].

1
1.1 Subvariedades Euclidianas
Nesta seção estudaremos o conceito de subvariedade em Rn . De forma
intuitiva, subvariedades em Rn são subconjuntos localmente homeomorfos a
algum espaço Euclidiano que, em cada ponto, está bem definida uma estru-
tura de espaço tangente.

Definição 1.1.1. Uma subvariedade Euclidiana de dimensão m em Rn é um


subconjunto M tal que, para todo ponto p ∈ M , existem um aberto V de
Rn , com p ∈ V , e um homeomorfismo ϕ : U → M ∩ V , definido num aberto
U de Rm , que satisfaz as seguintes propriedades:

(a) ϕ é uma aplicação diferenciável,

(b) a diferencial dϕ(x) é injetora em todo ponto x ∈ U .

A aplicação ϕ é chamada uma parametrização para a subvariedade Eu-


clidiana M , o subconjunto M ∩ V é uma vizinhança coordenada de M em
torno do ponto p e o número n − m é a codimensão da subvariedade M em
Rn . No caso particular em que n − m = 1, M é usualmente chamada uma
hipersuperfície de Rn . Além disso, no caso em que m = 1, M é simplesmente
uma curva diferenciável em Rn .
Na Definição 1.1.1 estamos considerando M com a topologia induzida de
n
R . Assim, toda subvariedade Euclidiana é, em particular, uma variedade
topológica. Além disso, a condição de dϕ(x) ser injetora equivale ao con-
junto {dϕ(x) · ei : 1 ≤ i ≤ m} ser linearmente independente ou, de forma
equivalente, a matriz Jacobiana dϕ(x) ter posto m.
A fim de reduzir a notação e simplificar os enunciados, uma subvarie-
dade Euclidiana M de dimensão m em Rn será denotada simplesmente por
M m , ficando subentendido que M é sempre subconjunto de algum espaço
Euclidiano. Vejamos alguns exemplos.

Exemplo 1.1.2. Qualquer subespaço vetorial E de dimensão m em Rn é


uma subvariedade Euclidiana de dimensão m em Rn . De fato, considere um
isomorfismo linear T : E → Rm . Munimos E da única topologia, induzida
de Rn , que torna T um homeomorfismo. Como toda aplicação linear em
Rn é diferenciável, concluímos que T é um difeomorfismo e, portanto, uma
parametrização global para E.

Exemplo 1.1.3. Consideremos a esfera unitária Sn = {x ∈ Rn+1 : kxk = 1}.


Se N = (0, . . . , 0, 1) é o polo norte de Sn , seja πN : Sn \{N } → Rn a projeção
estereográfica. Geometricamente, πN (x) é o ponto em que a semirreta de

2
Rn+1 , com origem em N e passando pelo ponto x ∈ Sn \ {N }, intercepta o
hiperplano xn+1 = 0. Os pontos dessa semirreta são da forma N + t(x − N ),
com t ≥ 0. Este ponto está no hiperplano xn+1 = 0 se, e somente se,
1 + t(xn+1 − 1) = 0, onde x = (x1 , . . . , xn+1 ). Assim, t = 1−x1n+1 e, portanto,

1
πN (x) = (x1 , . . . , xn , 0). (1.1)
1 − xn+1
A expressão em (1.1) mostra que πN é contínua. Por outro lado, considere
a aplicação ϕN : Rn → Sn \ {N } definida por

kxk2 − 1
 
2x1 2xn
ϕN (x) = ,..., , ,
kxk2 + 1 kxk2 + 1 kxk2 + 1

para todo x = (x1 , . . . , xn ) ∈ Rn . Tem-se ϕN contínua,

ϕN ◦ πN = id e πN ◦ ϕn = id,

ou seja, ϕN é um homeomorfismo. Além disso, ϕN é diferenciável, e o lei-


tor pode verificar que, para cada x ∈ Rn , a diferencial dϕN (x) é injetora.
Concluímos, assim, que a inversa da projeção estereográfica é uma parame-
trização para a vizinhança coordenada Sn \ {N }. De forma análoga, pode-
mos considerar a inversa da projeção estereográfica πS relativa ao polo sul
S = (0, 0, . . . , −1) de Sn mostrando que Sn é uma hipersuperfície de Rn+1 .
Nos dois exemplos a seguir discutiremos as subvariedades Euclidianas de
dimensão máxima e mínima.
Exemplo 1.1.4. Um subconjunto M ⊂ Rn é uma subvariedade Euclidiana
de dimensão 0 se, e somente se, para todo p ∈ M , existem um aberto V
de Rn , com p ∈ V , e uma parametrização ϕ : U → M ∩ V , onde U é um
aberto de R0 = {0}. Assim, devemos ter U = {0} e M ∩ V = {p}. Portanto,
M ⊂ Rn é uma subvariedade de dimensão 0 se, e somente se, M é um
conjunto discreto.
Exemplo 1.1.5. Todo subconjunto aberto U ⊂ Rn é uma subvariedade Eu-
clidiana de dimensão n em Rn , imagem da única parametrização
id : U → U . Reciprocamente, seja M uma subvariedade Euclidiana de
dimensão n em Rn . Assim, para todo p ∈ M , existem um aberto V ⊂ Rn ,
com p ∈ V , e um homeomorfismo ϕ : U → M ∩ V , onde U é um aberto
de Rn . Pelo teorema da invariância do domínio (cf. Apêndice 1), segue que
a vizinhança coordenada M ∩ V é aberta em Rn . Portanto, o conjunto M ,
reunião das vizinhanças coordendas M ∩ V , é aberto em Rn .

3
Exemplo 1.1.6. O gráfico de uma aplicação diferenciável f : U → Rn−m ,
definida num aberto U de Rm , é uma subvariedade Euclidiana de dimensão
m em Rn . De fato, denotando por Gr(f ) o gráfico de f , mostremos que a
aplicação ϕ : U → Rn , dada por ϕ(x) = (x, f (x)), é uma parametrização
global para Gr(f ). Como f é diferenciável, o mesmo ocorre com ϕ. Cada
ponto (x, f (x)) ∈ Gr(f ) é imagem através de ϕ do único ponto x ∈ U , logo
ϕ é injetora. Além disso, a restrição ao gráfico de f da projeção de Rn sobre
Rm é uma inversa para ϕ, mostrando que ϕ−1 também é contínua. Disso
decorre que ϕ é um homeomorfismo. Finalmente, como dϕ(x) tem posto m
em todos os pontos x ∈ U , segue que ϕ é uma imersão.
O resultado seguinte é uma recíproca local para o Exemplo 1.1.6.
Teorema 1.1.7. Toda subvariedade Euclidiana de dimensão m em Rn é, lo-
calmente, o gráfico de uma aplicação diferenciável. Mais precisamente, dado
um ponto p da subvariedade M , existem abertos Z ⊂ Rm e V ⊂ Rn , com
p ∈ V , e uma aplicação diferenciável f : Z → Rn−m tais que M ∩V = Gr(f ).
Demonstração. Fixado um ponto p ∈ M , considere uma parametrização
ϕ : U → ϕ(U ) de M , com p = ϕ(x). Como E = dϕ(x)(Rm ) é um subespaço
vetorial de dimensão m de Rn , existe uma decomposição em soma direta
Rn = Rm ⊕ Rn−m tal que a projeção π : Rm × Rn−m → Rm transforma
E isomorficamente sobre Rm . Considere a aplicação η = π ◦ ϕ : U → Rm .
Como dη(x) = π ◦ dϕ(x) é um isomorfismo linear, segue do teorema da
aplicação inversa que existe um aberto W de Rm , com x ∈ W ⊂ U , tal que
η|W : W → η(W ) = Z é um difeomorfismo. Defina

ξ = (η|W )−1 : Z → W e ψ = ϕ ◦ ξ.

Temos que ψ é uma parametrização de M e π ◦ ψ = id. Disso decorre que a


primeira coordenada de ψ(x), em relação à decomposição Rn = Rm ⊕ Rn−m ,
é x. Denote por f (x) a segunda coordenada. Assim,

ψ(Z) = ϕ(W ) = {(x, f (x)) : x ∈ Z}

para alguma aplicação diferenciável f : Z → Rn−m . Como ϕ é aberta, tem-se


Gr(f ) = ϕ(W ) = M ∩ V , para algum aberto V de Rn , com p ∈ V .

Como aplicação do Teorema 1.1.7, vejamos um exemplo simples de con-


junto que não é subvariedade Euclidiana.
Exemplo 1.1.8. Denotemos por M o cone de uma folha em R3 , i.e.,

M = {(x, y, z) ∈ R3 : x2 + y 2 = z 2 , z ≥ 0}.

4
Observe inicialmente que a projeção π : R2 × R → R2 , π(x, y, z) = (x, y),
define um homeomorfismo entre M e R2 . No entanto, M não é uma superfície
em R3 . De fato, caso fosse existiriam, em virtude do Teorema 1.1.7, abertos
U ⊂ R2 e V ⊂ R3 , com 0 ∈ V , e uma função diferenciável g : U → R tal que
M ∩ V = Gr(g). Observe que M ∩ V não pode ser um gráfico em relação
a uma decomposição da forma R3 = R2 ⊕ R, no qual o segundo fator seja o
eixo-x ou o eixo-y. Resta então para o segundop fator da decomposição acima
ser o eixo-z e, assim, g = f |U , onde f (x, y) = x2 + y 2 . No entanto, f não
é diferenciável em (0, 0).

1.2 Valores regulares


De modo geral, provar que um determinado conjunto M é uma subvarie-
dade Euclidiana de Rn não é uma tarefa simples. De acordo com a Definição
1.1.1, devemos exibir parametrizações de vizinhanças de todos os pontos de
M . Veremos nesta seção que, com a noção de valor regular para aplica-
ções diferenciáveis, podemos obter outras maneiras de gerar subvariedades
Euclidianas.
Seja f : V → Rn uma aplicação diferenciável, definida no aberto V de
Rm . Um ponto p ∈ V é chamado ponto regular para f se a diferencial
df (p) é uma aplicação linear sobrejetora. Um ponto q ∈ Rn é chamado
valor regular para f se a pré-imagem f −1 (q) contém apenas pontos regulares
para f . Finalmente, um ponto p ∈ V para o qual a diferencial df (p) não é
sobrejetora será chamado ponto crítico para f .
A proposição seguinte fornece condições suficientes para que uma subva-
riedade Euclidiana seja dada de forma implícita.

Proposição 1.2.1. Seja f : V → Rn−m uma aplicação diferenciável, onde


V é um aberto de Rn . Se q ∈ Rn−m é valor regular para f , com f −1 (q) 6= ∅,
então M = f −1 (q) é uma subvariedade Euclidiana de dimensão m em Rn .

Demonstração. Em virtude do Exemplo 1.1.6, é suficiente mostrar que, local-


mente, M é gráfico de uma aplicação diferenciável. Dado um ponto p ∈ M ,
com p = (x0 , y0 ), podemos assumir que ∂f ∂y (p) 6= 0, visto que df (p) é so-
brejetora. Assim, pelo teorema da aplicação implícita, existem um aberto
Z = U × W , onde U é um aberto de Rm contendo x0 e W é um aberto de
Rn−m contendo y0 , e uma aplicação diferenciável g : U → Rn−m tais que
f (x, g(x)) = q, para todo x ∈ U . Isso mostra que M ∩ Z = Gr(g).

5
No caso em que f −1 (q) = ∅, então q é trivialmente um valor regular para
f . Além disso, quando o contra-domínio de f é R, então o funcional linear
df (p) : Rn → R ou é nulo ou é sobrejetora. Neste caso, um número real c é
valor regular para f se, e somente se, df (p) 6= 0, para todo p ∈ f −1 (c).
Vejamos algumas aplicações da Proposição 1.2.1.
Exemplo 1.2.2. Considere a função diferenciável f : Rn+1 → R dada por
f (x) = hx, xi, para todo x ∈ Rn+1 . Observe que a esfera unitária Sn pode
ser dada como Sn = f −1 (1). A fim de verificar novamente que Sn é uma
hipersuperfície de Rn+1 , basta mostrar que 1 é valor regular para f . De fato,
para todo ponto x ∈ Rn+1 e todo vetor v ∈ Rn+1 , tem-se df (x) · v = 2hx, vi.
Isso implica que 0 ∈ Rn+1 é o único ponto crítico de f . Como f (0) = 0 6= 1,
segue a conclusão.
Lembremos que uma matriz quadrada X ∈ M (n) é chamada simétrica se
X t = X e anti-simétrica se X t = −X, onde X t denota a transposta de X. As
matrizes simétricas e anti-simétricas formam subespaços vetoriais de M (n),
denotados por S(n) e A(n), respectivamente, tal que M (n) = S(n) ⊕ A(n).
Exemplo 1.2.3. O grupo ortogonal O(n), definido por

O(n) = {X ∈ M (n) : XX t = I},


2
é uma subvariedade Euclidiana de dimensão n(n−1)2 em Rn . De fato, con-
siderando a aplicação f : M (n) → S(n) dada por f (X) = XX t , temos que
O(n) = f −1 (I), onde I denota a matriz identidade. Assim, devemos provar
que I ∈ S(n) é valor regular para f . A aplicação f é diferenciável e sua
diferencial é dada por

df (X) · H = XH t + HX t .

Finalmente, dados X ∈ O(n) e S ∈ S(n), tome V = 21 SX. Um cálculo


simples mostra que df (X) · V = S, ou seja, df (X) é sobrejetora, logo O(n)
2
é uma subvariedade Euclidiana de dimensão n(n−1)2 em M (n) ' Rn .
Exemplo 1.2.4. O toro T 2 em R3 é o subconjunto gerado pela rotação de
um círculo de raio r em torno de uma reta contida no plano do círculo e a
uma distância a > r do centro do círculo. Por simplicidade, denotemos por
S1 o círculo contido no plano-yz com centro no ponto (0, a, 0). Assim, S1 é
dado pela equação (y − a)2 + z 2 = r2 , e os pontos do toro T 2 , obtidos pela
rotação de S1 em torno do eixo-z satisfazem a equação
p
( x2 + y 2 − a)2 + z 2 = r2 .

6
Dessa forma, T 2 pode ser dado como T 2 = f −1 (r2 ), onde
p
f (x, y, z) = z 2 − ( x2 + y 2 − a)2 .
Note que, para (x, y) 6= (0, 0), f é diferenciável e tem-se:
p p
∂f 2x( x2 + y 2 − a) ∂f 2y( x2 + y 2 − a) ∂f
= p , = p , = 2z.
∂x x2 + y 2 ∂y x2 + y 2 ∂z
Além disso,
 
∂f ∂f ∂f p
, , = (0, 0, 0) ⇔ x2 + y 2 = a e z = 0.
∂x ∂y ∂z
Disso decorre, em particular, que r2 é valor regular para f , pois nenhum dos
pontos acima pertence a T 2 , mostrando que T 2 é uma superfície em R3 .
Observação 1.2.5. A imagem inversa f −1 (q) pode ser uma subvariedade
Euclidiana sem que q seja valor regular para f . Por exemplo, considere a
função f : R3 → R dada por f (x, y, z) = z 2 . Note que f é diferenciável e
f −1 (0) coincide com o plano-xy, que é uma superfície em R3 . No entanto,
o ponto 0 ∈ R não é valor regular para f , pois df (x, y, 0) = 0, para todo
(x, y, 0) ∈ f −1 (0).
O resultado seguinte é uma recíproca local para a Proposição 1.2.1.
Teorema 1.2.6. Toda subvariedade Euclidiana de dimensão m em Rn é,
localmente, imagem inversa de valor regular. Ou seja, dado um ponto p da
subvariedade M , existem um aberto V de Rn , com p ∈ V , e uma aplicação
diferenciável f : V → Rn−m tais que M ∩ V = f −1 (0), onde 0 ∈ Rn−m é
valor regular para f .
Demonstração. Pelo Teorema 1.1.7, existe um aberto V ⊂ Rn , com p ∈ V ,
tal que M ∩ V = Gr(g), onde g : U → Rn−m é uma aplicação diferenciável
definida num aberto U de Rm . Defina a aplicação f : V → Rn−m pondo
f (x, y) = y − g(x). Por construção, temos M ∩ V = Gr(g) = f −1 (0). Resta
provar que df (x, y) é sobrejetora em todo ponto (x, y) ∈ f −1 (0). De fato,
dados (x, y) ∈ f −1 (0) e (u, v) ∈ Rn , temos:
df (x, y) · (u, v) = df (x, y) · (u, 0) + df (x, y) · (0, v)
= Id(0) − dg(x) · u + Id(v) − dg(x) · 0
= v − dg(x) · u.
Portanto, dado v ∈ Rn−m , tem-se df (x, y) · (0, v) = v, e isso prova que 0 é
valor regular para f .

7
Os Teoremas 1.1.7 e 1.2.6 fornecem descrições locais para uma dada sub-
variedade Euclidiana, como gráfico e pré-imagem de valor regular de aplica-
ção diferenciável, respectivamente. O teorema seguinte fornece uma forma
equivalente para a Definição 1.1.1, e que será útil nas seções seguintes.
Teorema 1.2.7. Um subconjunto M de Rn é uma subvariedade Euclidiana
de dimensão m em Rn se, e somente se, para todo p ∈ M , existem um
aberto V de Rn , com p ∈ V , e um difeomorfismo ξ : V → ξ(V ) tal que
ξ(M ∩ V ) = ξ(V ) ∩ Rm .
Demonstração. Suponha que M seja uma subvariedade Euclidiana de di-
mensão m em Rn . Dado um ponto p ∈ M , segue do Teorema 1.2.6 que
existe uma aplicação diferenciável f : Z → Rn−m , definida num aberto
Z ⊂ Rn contendo p, tal que M ∩ V = f −1 (0), onde 0 ∈ Rn−m é valor
regular para f . Como a diferencial df (p) : Rn → Rn−m é sobrejetora, o con-
junto {df (p)·e1 , . . . , df (p)·en } gera Rn−m . Assim, podemos escolher vetores
ei1 , . . . , ein−m tais que o conjunto {df (p)·ei1 , . . . , df (p)·ein−m } seja uma base
de Rn−m . Considere a decomposição em soma direta Rn = Rm ⊕ Rn−m tal
que Rn−m = span{ei1 , . . . , ein−m } e Rm gerado pelos demais vetores canô-
nicos. Assim, df (p)|Rn−m é um isomorfismo linear. Defina uma aplicação
ξ : Z → Rn = Rm ⊕ Rn−m pondo ξ(x, y) = (x, f (x, y)), para todo (x, y) ∈ Z.
Temos que ξ é uma aplicação diferenciável e dξ(p) é um isomorfismo. As-
sim, pelo teorema da aplicação inversa, existe um aberto V ⊂ Rn , com
p ∈ V ⊂ Z, tal que ξ|V : V → ξ(V ) é um difeomorfismo. Podemos supor
que ξ(V ) = U × W ⊂ Rm ⊕ Rn−m , onde W é um aberto contendo 0 ∈ Rn−m .
Assim,

(x, y) ∈ M ∩ V ⇔ ξ(x, y) = (x, f (x, y))


⇔ ξ(x, y) = (x, 0),

ou seja, ξ(M ∩ V ) = ξ(V ) ∩ Rm . Reciprocamente, dado um ponto p ∈ M ,


considere o difeomorfismo ξ : V → ξ(V ) tal que ξ(M ∩ V ) = ξ(V ) ∩ Rm .
Como ξ(V ) é aberto em Rn , o subconjunto U = ξ(V ) ∩ Rm é aberto em Rm .
Defina, então, ϕ : U → Rn pondo ϕ = ξ|−1
U . Assim, ϕ é uma parametrização
de M , com ϕ(U ) = M ∩ V .

1.3 O espaço tangente


Nesta seção discutiremos a noção de espaço tangente a uma subvariedade
Euclidiana. Veremos que este conjunto admite uma estrutura natural de
espaço vetorial, induzida do espaço Euclidiano através das parametrizações.

8
Seja M m uma subvariedade Euclidiana em Rn . Fixado um ponto p ∈ M ,
dizemos que um vetor v ∈ Rn é tangente a M no ponto p se existe uma
curva λ : (−, ) → M , diferenciável em t = 0, tal que λ(0) = p e λ0 (0) = v.
O conjunto de todos os vetores tangentes a M no ponto p será chamado o
espaço tangente a M em p e será denotado por Tp M .

Exemplo 1.3.1. Se U é um subconjunto aberto de uma subvariedade Eucli-


diana M , então Tp U = Tp M , para todo p ∈ U . De fato, claramente tem-se
Tp U ⊂ Tp M . Se v ∈ Tp M , existe uma curva λ : (−, ) → M , diferenciável
em t = 0, com λ(0) = p e λ0 (0) = v. Podemos restringir o intervalo (−, ) de
modo que λ(−, ) ⊂ U , logo v ∈ Tp U . Em particular, se V é um subconjunto
aberto de Rn , então Tp V = Tp Rn = Rn .

O objetivo agora é mostrar que Tp M é um espaço vetorial. Vejamos, ini-


cialmente, como se comportam os espaços tangentes de duas subvariedades
Euclidianas relacionadas por uma aplicação diferenciável.

Proposição 1.3.2. Seja f : U → V uma aplicação diferenciável entre os


abertos U ⊂ Rm e V ⊂ Rn , e suponha que existam subvariedades Euclidianas
M e N tais que M ⊂ U , N ⊂ V e f (M ) ⊂ N . Então, df (p)(Tp M ) ⊂ Tf (p) N ,
para todo p ∈ M . Em particular, se f é um difeomorfismo, com f (M ) = N ,
então df (p)(Tp M ) = Tf (p) N , para todo p ∈ M .

Demonstração. Dados um ponto p ∈ M e um vetor v ∈ Tp M , considere uma


curva λ : (−, ) → M , diferenciável em t = 0, com λ(0) = p e λ0 (0) = v. A
curva α : (−, ) → N , dada por α(t) = f (λ(t)), é diferenciável em t = 0.
Além disso, temos α(0) = f (p) e α0 (0) = df (p)·v, ou seja, df (p)·v ∈ Tf (p) N .
Logo, df (p)(Tp M ) ⊂ Tf (p) N . A última afirmação segue-se aplicando f −1 à
parte já provada.

Corolário 1.3.3. O espaço tangente Tp M é um subespaço vetorial de di-


mensão m em Rn .

Demonstração. Em virtude do Teorema 1.2.7, existem um aberto V ⊂ Rn ,


com p ∈ V , e um difeomorfismo ξ : V → ξ(V ) tais que ξ(M ∩V ) = ξ(V )∩Rm .
Então, pela Proposição 1.3.2, temos:

dξ(p)(Tp M ) = dξ(p)(Tp (M ∩ V )) = Tξ(p) (ξ(V ) ∩ Rm )


= Tξ(p) Rm = Rm ,

ou seja, Tp M = dξ(p)−1 (Rm ) é um subespaço vetorial de dimensão m.

9
Corolário 1.3.4. Dado um ponto p ∈ M , considere uma parametrização
ϕ : U → ϕ(U ) de M , com p = ϕ(x). Então, Tp M = dϕ(x)(Rm ). Em
particular, uma base para Tp M é dada por {dϕ(x) · ei : 1 ≤ i ≤ m}, onde
{e1 , . . . , em } denota a base canônica de Rm .

Demonstração. Pela Proposição 1.3.2, temos:

dϕ(x)(Rm ) = dϕ(x)(Tx U ) ⊂ Tp ϕ(U ) = Tp M.

Assim, em virtude do Corolário 1.3.3, segue que Tp M = dϕ(x)(Rm ), uma


vez que ambos são subespaços vetoriais de dimensão m em Rn .

Vejamos alguns exemplos.

Exemplo 1.3.5. Sejam f : U → Rn−m uma aplicação diferenciável, definida


no aberto U ⊂ Rn , e q ∈ Rn−m um valor regular para f . Então, o espaço
tangente a M = f −1 (q) num ponto p é dado por Tp M = ker df (p). De fato,
dado um vetor v ∈ Tp M , considere uma curva λ : (−, ) → M , diferenciável
em t = 0, tal que λ(0) = p e λ0 (0) = v. A curva α : (−, ) → Rn−m , dada
por α(t) = f (λ(t)), é constante e igual a q, para todo t ∈ (−, ). Assim,
d
df (p) · v = df (λ(0)) · λ0 (0) = (f ◦ λ)(0) = α0 (0) = 0,
dt
ou seja, v ∈ ker df (p). Isso mostra que Tp M ⊂ ker df (p). Como ambos são
subespaços vetoriais de dimensão m em Rn , obtemos a igualdade desejada.

Exemplo 1.3.6. Uma situação particular do Exemplo 1.3.5 pode ser vista
no grupo ortogonal O(n). Lembre que O(n) pode ser considerado como a
imagem inversa O(n) = f −1 (I) da aplicação diferenciável f : M (n) → S(n)
dada por f (X) = XX t (cf. Exemplo 1.2.3). Como a diferencial de f é dada
por df (X) · H = XH t + HX t , segue do Exemplo 1.3.5 que

TI O(n) = ker df (I) = {H ∈ M (n) : H t + H = 0},

ou seja, o espaço tangente ao grupo ortogonal O(n) na matriz identidade é


o subespaço das matrizes anti-simétricas.

O exemplo seguinte generaliza o fato de que a reta tangente ao círculo é


sempre ortogonal à direção radial.

Exemplo 1.3.7. O espaço tangente à esfera unitária Sn ⊂ Rn+1 num ponto


p é dado por
Tp Sn = {v ∈ Rn+1 : hv, pi = 0}.

10
De fato, observe inicialmente que {p}⊥ = {v ∈ Rn+1 : hv, pi = 0} é um
subespaço vetorial de dimensão n em Rn+1 . Além disso, considere um vetor
v ∈ Rn+1 , com v = λ0 (0), onde λ : (−, ) → Sn é uma curva diferenciável
em t = 0, com λ(0) = p. Derivando a igualdade kλ(t)k = 1 e aplicando em
t = 0, obtemos hv, pi = 0, ou seja, v ∈ {p}⊥ . Isso mostra que Tp Sn ⊂ {p}⊥ .
Como Tp Sn também tem dimensão n, segue que Tp Sn = {p}⊥ , e a afirmação
está provada.

1.4 Mudança de coordenadas


Dado uma subvariedade Euclidiana M m em Rn , considere uma parame-
trização ϕ : U → M ∩ V de M , definida no aberto U ⊂ Rm . Se W é um
aberto de Rm e ξ : W → U é um difeomorfismo, então a aplicação

ϕ◦ξ :W →M ∩V

também é uma parametrização de M , denominada usualmente uma mudança


de coordenadas. O resultado seguinte garante que esta é a única maneira de
obter novas parametrizações do aberto M ∩ V .
Dados duas parametrizações ϕ1 : U1 → M ∩ V1 e ϕ2 : U2 → M ∩ V2 em
M , com V1 ∩ V2 6= ∅, a aplicação

ϕ−1 −1 −1
2 ◦ ϕ1 : ϕ1 (M ∩ V1 ∩ V2 ) → ϕ2 (M ∩ V1 ∩ V2 ) (1.2)

é chamada a mudança de coordenadas entre ϕ1 e ϕ2 . Claramente a aplicação


em (1.2) é um homeomorfismo entre abertos de Rm . No entanto, não é
imediato que ϕ−1 −1
2 ◦ ϕ1 é diferenciável, visto que ϕ2 não está definida num
n
aberto de R .
O resultado seguinte fornece a diferenciabilidade da aplicação em (1.2).

Teorema 1.4.1. Sejam ϕ1 : U1 → M ∩ V1 e ϕ2 : U2 → M ∩ V2 parame-


trizações de uma subvariedade Euclidiana M , com V1 ∩ V2 6= ∅. Então, a
mudança de coordenadas ϕ−12 ◦ ϕ1 , dada em (1.2), é um difeomorfismo.

Demonstração. Fixemos um ponto p ∈ M ∩V1 ∩V2 . Decorre do Teorema 1.2.7


que existe um difeomorfismo ξ : V → ξ(V ) tal que ξ(M ∩ V ) = ξ(V ) ∩ Rm .
Como V é aberto em Rn e ϕ1 é um homeomorfismo, existe um aberto U e1 de
−1
R , com ϕ1 (p) ∈ U1 ⊂ U1 , tal que ϕ1 (U1 ) ⊂ M ∩V , logo (ξ◦ϕ1 )(U1 ) ⊂ Rm .
m e e e
Analogamente, existe um aberto U e2 de Rm , com ϕ−1 (p) ∈ U e2 ⊂ U2 , tal que
2

11
e2 ) ⊂ Rm . Seja W = ϕ1 (U
(ξ ◦ ϕ2 )(U e2 ). Assim, no aberto ϕ−1 (W ),
e1 ) ∩ ϕ2 (U
1
tem-se:
ϕ−1 −1
2 ◦ ϕ1 = ϕ2 ◦ ξ
−1
◦ ξ ◦ ϕ1 = (ξ ◦ ϕ2 )−1 ◦ (ξ ◦ ϕ1 ).
A composta ξ ◦ ϕ1 é diferenciável. Além disso, como d(ξ ◦ ϕ2 )(x) é um
isomorfismo linear, segue do teorema da aplicação inversa que ξ ◦ ϕ2 é, possi-
velmente num aberto menor, um difeomorfismo. Disso decorre que ϕ−1 2 ◦ ϕ1
é diferenciável. Analogamente se prova que ϕ−11 ◦ ϕ 2 , inversa de ϕ −1
2 ◦ ϕ1 ,
também é diferenciável.

O Teorema 1.4.1 permite estender o conceito de diferenciabilidade, que


até então só faz sentido quando o domínio da aplicação é um subconjunto
aberto de algum espaço Euclidiano. O que faremos então é abranger aplica-
ções entre duas subvariedades Euclidianas M m e N n .
Definição 1.4.2. Uma aplicação f : M → N é dita diferenciável no ponto
p ∈ M se existem parametrizações ϕ : U → ϕ(U ) de M e ψ : V → ψ(V ) de
N , com p = ϕ(x) e f (ϕ(U )) ⊂ ψ(V ), de modo que a aplicação
ψ −1 ◦ f ◦ ϕ : U → V (1.3)
seja diferenciável no ponto x ∈ U ⊂ Rm .
Em virtude do Teorema 1.4.1, a aplicação (1.3) está bem definida e será
chamada a representação de f em relação às parametrizações ϕ e ψ.
Observação 1.4.3. No caso particular em que f é da forma f : M m → Rk ,
segue que f é diferenciável no ponto p ∈ M se existe uma parametrização
ϕ : U → ϕ(U ) de M , com p = ϕ(x), tal que a aplicação
f ◦ ϕ : U → Rk
é diferenciável no ponto x = ϕ−1 (p).
Exemplo 1.4.4. Sejam M m uma subvariedade Euclidiana em Rn , V um
aberto de Rn , com M ⊂ V , e f : V → R uma função diferenciável. A
restrição de f a M é uma função diferenciável em M . De fato, dados um
ponto p ∈ M e uma parametrização ϕ : U ⊂ Rm → ϕ(U ), com p ∈ ϕ(U ),
a função f ◦ ϕ : U → R é diferenciável, pois é a composta de aplicações
diferenciáveis em espaços Euclidianos. Como caso particular, considere a
função distância d : M → R da subvariedade M a um ponto fixado p0 ∈ / M,
ou seja, d(p) = kp − p0 k, para todo p ∈ M . Neste caso, d é uma função
diferenciável pois é a restrição a M da função diferenciável d : Rn → R dada
por d(p) = kp − p0 k.

12
Proposição 1.4.5. Toda parametrização ϕ : U → ϕ(U ) de uma subvarie-
dade Euclidiana M m é um difeomorfismo.
Demonstração. Da Definição 1.1.1, a aplicação ϕ : U → ϕ(U ) é um homeo-
morfismo diferenciável. Resta mostrar que a inversa ϕ−1 : ϕ(U ) → U é
diferenciável. Escrevamos f = ϕ−1 . Note que a aplicação f : ϕ(U ) → Rm
está definida num aberto da subvariedade M . Assim, segundo a Observação
1.4.3, devemos mostrar que, para todo p ∈ ϕ(U ), existe uma parametrização
ψ : W → ψ(W ) de ϕ(U ), com ψ(x) = p, tal que f ◦ ψ : W → Rm seja
diferenciável. Basta considerar a própria parametrização ϕ : U → ϕ(U ), pois
f ◦ ϕ = ϕ−1 ◦ ϕ = id é a aplicação identidade em Rm , que é diferenciável.

Dado uma aplicação f : M m → N n , diferenciável no ponto p ∈ M , a


diferencial de f no ponto p é a transformação linear df (p) : Tp M → Tf (p) N
definida do seguinte modo. Considere uma parametrização ϕ : U → ϕ(U )
de M , com p = ϕ(x). Dado um vetor v ∈ Tp M , temos v = dϕ(x) · w, para
algum vetor w ∈ Rm . Definimos, então,

df (p) · v = d(f ◦ ϕ)(x) · w.

Devemos mostrar que df (p) independe da escolha da parametrização ϕ. De


fato, seja ψ : V → ψ(V ) outra parametrização de M , com p = ψ(y) e
v = dψ(y) · u. Sabemos, pelo Teorema 1.4.1, que ψ = ϕ ◦ ξ, onde

ξ : ϕ−1 (ϕ(U ) ∩ ψ(V )) → ψ −1 (ϕ(U ) ∩ ψ(V ))

é um difeomorfismo entre abertos de Rm , com ξ(y) = x. Temos:

dϕ(x) · w = v = dψ(y) · u = d(ϕ ◦ ξ)(y) · u


= dϕ(x) · dξ(y) · u.

Como dϕ(x) é injetora, segue que dξ(y) · u = w. Assim,

d(f ◦ ψ)(y) · u = d(f ◦ ϕ ◦ ξ)(y) · u = d(f ◦ ϕ)(x) · dξ(y) · u


= d(f ◦ ϕ)(x) · w.

Observação 1.4.6. O vetor v ∈ Tp M é o vetor velocidade λ0 (0) de uma


curva λ : (−, ) → M , diferenciável em t = 0, com λ(0) = p. Assim,

df (p) · v = d(f ◦ ϕ)(x) · w = d(f ◦ ϕ)(x) · (ϕ−1 ◦ λ)0 (0)


= (f ◦ ϕ ◦ ϕ−1 ◦ λ)0 (0) = (f ◦ λ)0 (0),

ou seja, df (p) · v é o vetor velocidade da curva f ◦ λ no instante t = 0.

13
Proposição 1.4.7 (Regra da cadeia). Considere subvariedades Euclidianas
M , N , P e aplicações f : M → N e g : N → P tais que f é diferenciável no
ponto p ∈ M e g é diferenciável no ponto f (p). Então a aplicação composta
g ◦ f : M → P é diferenciável no ponto p e vale a regra:

d(g ◦ f )(p) = dg(f (p)) ◦ df (p).

Demonstração. Considere parametrizações ϕ : U → ϕ(U ), ψ : V → ψ(V )


e ξ : W → ξ(W ) de de M , N e P , respectivamente, tais que p = ϕ(x) e
f (p) = ψ(y). Como f é diferenciável em p ∈ M , segue que ψ −1 ◦ f ◦ ϕ é
diferenciável em x, e como g é diferenciável em f (p), ξ −1 ◦g ◦ψ é diferenciável
em y. Assim,

ξ −1 ◦ (g ◦ f ) ◦ ϕ = (ξ −1 ◦ g ◦ ψ) ◦ (ψ −1 ◦ f ◦ ϕ)

é diferenciável no ponto x, como composta de aplicações diferenciáveis entre


abertos Euclidianos logo, por definição, g ◦ f é diferenciável em p. Para a
segunda parte, temos:

dg(f (p)) ◦ df (p) = d(g ◦ ψ)(y) ◦ d(f ◦ ϕ)(x)


= d(g ◦ ψ)(ψ −1 (f (p))) ◦ d(f ◦ ϕ)(x)
= d(g ◦ f ◦ ϕ)(x)
= d(g ◦ f )(p),

como queríamos.

14
1.5 Exercícios
1.1
1. Considere duas subvariedades Euclidianas M1 ⊂ Rn1 e M2 ⊂ Rn2 de di-
mensões m1 e m2 , respectivamente. Prove que o produto cartesiano M1 ×M2
também é uma subvariedade Euclidiana de dimensão m1 + m2 de Rn1 +n2 .
Conclua, em particular, que o toro T 2 = S1 × S1 é uma superfície de R4 .
2. Considere a aplicação f : R3 → R6 dada por
√ √ √
f (x, y, z) = (x2 , y 2 , z 2 , 2yz, 2xz, 2xy).

A imagem da esfera unitária S2 ⊂ R3 através de f é chamada a superfície


de Veronese. Prove que f (S2 ) é uma subvariedade Euclidiana de R6 .
3. Prove que o cilindro circular reto

C = {(x, y, z) ∈ R3 : x2 + y 2 = r2 }

é uma superfície em R3 .
4. Prove que o helicoide

H = {(x cos y, x sin y, y) : x, y, ∈ R}

é uma superfície em R3 .

1.2
1. Considere o grupo linear especial

SL(n) = {X ∈ GL(n) : det X = 1},

onde GL(n) denota o grupo linear, i.e., o subconjunto aberto de M (n) for-
mado por todas as matrizes inversíveis. Usando a função determinante, prove
que SL(n) é uma hipersuperfície de M (n).

1.3
1. Mostre que o espaço tangente a SL(n), na matriz identidade, é o subespaço
das matrizes de traço nulo.
2. Seja f : U → Rn uma aplicação diferenciável, definida no aberto U ⊂ Rm .
Mostre que o espaço tangente ao gráfico de f no ponto (p, f (p)) é o gráfico
da diferencial df (p) : Rm → Rn .

15
1.4
1. Prove que toda aplicação diferenciável f : M → N , entre as subvariedades
Euclidianas M e N , é contínua.

2. Se U é um aberto de uma subvariedade Euclidiana M m , prove que a


aplicação inclusão i : U → M é diferenciável.

3. Se f : M → N é uma aplicação diferenciável, prove que a restrição de f


a qualquer aberto U de M também é diferenciável.

4. Considere o produto cartesiano M = M1 × M2 das subvariedades Eucli-


dianas M1 e M2 .

(a) Prove que as projeções πi : M → Mi são aplicações diferenciáveis.

(b) Se N é outra subvariedade Euclidiana, prove que uma aplicação


f : N → M é diferenciável se, e somente se, as aplicações coordenadas
πi ◦ f são diferenciáveis, i = 1, 2.

5. Prove que o gráfico de uma aplicação diferenciável f : M → N é difeo-


morfo à subvariedade M .

6. Prove que o espaço tangente ao gráfico de uma aplicação diferenciável


f : M → N em um ponto (p, f (p)) coincide com o gráfico da diferencial
df (p) : Tp M → Tf (p) N .

7. Sejam M , N subvariedades Euclidianas em Rn , V um aberto de Rn , com


M ⊂ V , e f : V → Rn uma aplicação diferenciável tal que f (M ) ⊂ N . Prove
que a restrição f |M : M → N é uma aplicação diferenciável. Conclua, em
particular, que a aplicação antipodal A : Sn → Sn , dada por

A(x1 , . . . , xn+1 ) = (−x1 , . . . , −xn+1 ),

é um difeomorfismo, onde Sn ⊂ Rn+1 denota a esfera unitária.

16
1.6 Apêndice 1: O teorema da invariância do do-
mínio
Um problema básico da topologia dos espaços Euclidianos é determinar
se dois subconjuntos X ⊂ Rm e Y ⊂ Rn são ou não homeomorfos. Não
existe uma resposta geral para este problema. A fim de garantir que X e Y
são homeomorfos é necessário exibir um homeomorfismo entre eles. Quando
se suspeita que X e Y não são homeomorfos, a ideia é estudar invariantes
topológicos, como a compacidade, a conexidade e o grupo fundamental.
Exemplo 1.6.1. Considere o intervalo fechado X = [a, b] ⊂ R e a bola
fechada Y = B[p; r] ⊂ R2 . Ambos são compactos e conexos. No entanto,
seja qual for o ponto q ∈ Y , o conjunto Y \ {q} ainda é conexo enquanto
que, para qualquer ponto a < x < b, o conjunto X \ {x} é desconexo. As-
sim, se existisse um homeomorfismo f : X → Y , escolheríamos um ponto
x ∈ (a, b), escreveríamos q = f (x) e teríamos, por restrição, um homeomor-
fismo g : X \ {x} → Y \ {q}, g = f |X\{x} , entre um conjunto conexo e um
conjunto desconexo, o que é uma contradição.
Se tentarmos repetir esse raciocínio para provar que uma bola fechada
X = B[p; δ] ⊂ R2 não é homeomorfa a uma bola fechada Y = B[q; ] ⊂ R3
não chegaremos a lugar nenhum, pois X e Y permanecem conexos depois da
retirada de qualquer um de seus pontos. É intuitivo que uma bola aberta
de Rm só é homeomorfa a uma bola aberta de Rn quando m = n. Isso é
verdade, e a demonstração desse fato faz uso de um importante teorema de
Topologia, cuja demonstração o leitor pode encontrar em [15, Theorem 36.5].
Teorema 1.6.2 (Invariância do domínio). Seja f : U → Rn uma aplicação
injetora e contínua, definida no aberto U ⊂ Rn . Então f (U ) é aberto em Rn
e f é um mergulho.
Corolário 1.6.3. Se uma bola aberta de Rm é homeomorfa a uma bola
aberta de Rn , então m = n.
Demonstração. Como uma bola aberta de Rn é homeomorfa a Rn , podemos
supor que as bolas abertas sejam os espaços Rm e Rn . Suponha, por absurdo,
que m > n, e considere o homeomorfismo ϕ : Rm → Rn entre os espaços
Euclidianos. Denotando por i : Rn → Rm o mergulho canônico
(x1 , . . . , xn ) ∈ Rn 7→ (x1 , . . . , xn , 0, . . . , 0) ∈ Rm ,
obtemos um mergulho ξ = i ◦ ϕ : Rm → Rm que a cada ponto x ∈ Rm
associa o ponto ξ(x) = (ϕ(x), 0) ∈ Rm . No entanto, a imagem de Rm pelo
mergulho ξ não é um aberto em Rm , contradizendo o Teorema 1.6.2.

17
Capítulo 2

Variedades diferenciáveis

A Geometria Diferencial é a área que estuda as chamadas variedades


diferenciáveis, objetos que localmente se parecem com o espaço Euclidiano
Rn e que é possível desenvolver o cálculo. Os exemplos mais simples, além
do próprio espaço Euclidiano, são as curvas parametrizadas, as superfícies
regulares em R3 e, mais geralmente, as subvariedades Euclidianas.
As subvariedades Euclidianas, estudadas no Capítulo 1, ainda que pos-
suem diversas propriedades interessantes e constituem uma classe ampla de
exemplos, possuem uma certa limitação. Existem objetos importantes, de
natureza semelhante às subvariedades Euclidianas, mas que não se apre-
sentam como subconjuntos de algum espaço euclidiano. Exemplos de tais
conjuntos são os espaço projetivos e, mais geralmente, as variedades Grass-
manianas.
Neste capítulo apresentaremos, em detalhes, a noção de variedade dife-
renciável, como como estudaremos os conceitos, vistos anteriormente para as
subvariedades Euclidianas, de aplicações diferenciáveis entre estes objetos.

2.1 Variedades diferenciáveis


Nesta seção introduziremos a noção de variedade diferenciável. Assu-
miremos, como já vínhamos fazendo no capítulo anterior, que a classe de
diferenciabilidade dos objetos, bem como para as aplicações envolvidas, será
sempre de classe C ∞ .
Fixemos um conjunto M . Uma carta local em M é simplesmente uma
bijeção ϕ : U → ϕ(U ), onde U é um subconjunto de M e ϕ(U ) é um aberto
de algum espaço Euclidiano Rn , a qual será denotada por (U, ϕ).

18
Definição 2.1.1. Duas cartas locais (U, ϕ) e (V, ψ) num conjunto M são
ditas compatíveis se ϕ(U ∩ V ) e ψ(U ∩ V ) são abertos em Rn e a aplicação
de transição ψ ◦ ϕ−1 é um difeomorfismo.

Note que a condição de ψ ◦ ϕ−1 ser um difeomorfismo implica que ϕ ◦


ψ −1 também é um difeomorfismo. Se U ∩ V = ∅, a aplicação de transição
ψ ◦ ϕ−1 é a aplicação vazia. Convencionaremos que a aplicação vazia é um
difeomorfismo, logo ϕ e ψ também são compatíveis neste caso.

Observação 2.1.2. A noção de compatibilidade para cartas locais (U, ϕ) e


(V, ψ) faria sentido também na situação mais geral em que ϕ(U ) é um aberto
de Rm e ψ(V ) é um aberto de Rn onde, a princípio, m não precisa ser igual
a n. Mas se U ∩ V 6= ∅, tal compatibilidade implicaria na existência de um
difeomorfismo de um aberto não-vazio de Rm sobre um aberto de Rn , o que
implicaria m = n.

Definição 2.1.3. Um atlas A de dimensão n num conjunto M é uma coleção


A = {(Uα , ϕα ) : α ∈ I} de cartas locais em M , duas
S a duas compatíveis,
n
onde cada ϕα (Uα ) é aberto em R , e tal que M = α∈I Uα .

Exemplo 2.1.4. Um exemplo simples de atlas em Rn é dado pelo conjunto


A = {(Rn , Id)}. Na esfera unitária Sn , um atlas é dado pelo conjunto

A = {(Sn \ {N }, ϕN ), (Sn \ {S}, ϕS )},

onde ϕN e ϕS denotam as projeções estereográficas relativas ao polos norte


e sul, respectivamente.

Fixemos um atlas A num conjunto M . Uma carta local ϕ em M é dita


compatível com A se ϕ é compatível com toda carta local ψ ∈ A. A noção
de compatibilidade é reflexiva e simétrica, mas não é transitiva. De fato, se
(U, ϕ), (V, ψ), (W, ξ) são cartas locais em M , com ϕ sendo compatível com
ψ, e ψ sendo compatível com ξ, então só podemos garantir que a aplicação
de transição ξ ◦ ϕ−1 seja diferenciável em ϕ(U ∩ V ∩ W ). É bem possível,
por exemplo, que U ∩ V = ∅, V ∩ W = ∅, tornando a compatibilidade entre
ϕ, ψ e ψ, ξ triviais. No entanto, pode-se ter U ∩ W 6= ∅ e ϕ, ξ não serem
compatíveis.
O lema seguinte nos diz como lidar com essa situação.

Lema 2.1.5. Seja A um atlas num conjunto M . Se (U, ϕ) e (V, ψ) são cartas
locais em M , ambas compatíveis com A, então ϕ e ψ são compatíveis.

19
Demonstração. Supondo U ∩V 6= ∅, devemos provar que ϕ(U ∩V ) e ψ(U ∩V )
em Rn e que ψ ◦ϕ−1 : ϕ(U ∩V ) → ψ(U ∩V ) é um difeomorfismo.
são abertos S
Como U = α∈I (U ∩ Uα ), segue que
[
ϕ(U ∩ V ) = ϕ(U ∩ V ∩ Uα ).
α∈I

Assim, basta provar que, para cada índice α ∈ I, ϕ(U ∩ V ∩ Uα ) é aberto em


Rn e que ψ ◦ ϕ−1 |ϕ(U ∩V ∩Uα ) é diferenciável. De fato, como (U, ϕ) e (V, ψ)
são cartas compatíveis com (Uα , ϕα ), segue que ϕα (Uα ∩ U ) e ϕα (Uα ∩ V )
são abertos em Rn e ϕ ◦ ϕ−1α é um difeomorfismo. Assim,

ϕ(U ∩ V ∩ Uα ) = (ϕ ◦ ϕ−1
α )(ϕα (U ∩ V ∩ Uα ))
= (ϕ ◦ ϕ−1
α )(ϕα (Uα ∩ U ) ∩ ϕα (Uα ∩ V ))

é aberto em Rn . Finalmente,

ψ ◦ ϕ−1 |ϕ(U ∩V ∩Uα ) = (ψ ◦ ϕ−1 −1


α ) ◦ (ϕα ◦ ϕ )|ϕ(U ∩V ∩Uα ) ,

que é diferenciável.

Um atlas A num conjunto M é dito ser maximal se não está propriamente


contido em nenhum outro atlas em M . O lema seguinte garante que todo
atlas está contido num único atlas maximal.

Lema 2.1.6. Dado um atlas A num conjunto M , existe um único atlas


maximal em M que contém A.

Demonstração. Seja Amax o conjunto formado por todas as cartas locais


de M que são compatíveis com A. Disso decorre que A ⊂ Amax . Além
disso, o Lema 2.1.5 garante que Amax é de fato um atlas em M . Quanto
à maximalidade, considere um atlas B em M , contendo A. Disso decorre
que todo elemento de B é compatível com A, logo, B ⊂ Amax . Finalmente,
quanto à unicidade, suponha que exista um atlas maximal B em M , com
A ⊂ B. Disso decorre que todo elemento de B é compatível com A, logo
B ⊂ Amax . Como B é maximal tem-se, necessariamente, que B = Amax .

Lema 2.1.7. Dado um atlas A = {(Uα , ϕα ) : α ∈ I} num conjunto M ,


existe uma única topologia em M que torna cada Uα aberto em M e cada
ϕα um homeomorfismo.

20
Demonstração. Defina

τA = {V ⊂ M : ϕα (Uα ∩ V ) é aberto em Rn , ∀α ∈ I}.

O fato de que τA é uma topologia segue das igualdades

ϕα (Uα ∩ ∅) = ∅, ϕα (Uα ∩ M ) = ϕα (Uα ),

ϕα (Uα ∩ V1 ∩ V2 ) = ϕα (Uα ∩ V1 ) ∩ ϕα (Uα ∩ V2 ),


ϕα (Uα ∩ (∪Vλ )) = ∪ϕα (Uα ∩ Vλ ),
onde λ ∈ J. A fim de mostrar que cada Uα é um aberto em M e cada
ϕα é um homeomorfismo, basta provar a seguinte afirmação: dados α ∈ I e
V ⊂ Uα , tem-se que V ∈ τA se, e somente se, ϕα (V ) é aberto em Rn . De fato,
se V ∈ τA então ϕα (V ) = ϕα (Uα ∩ V ) é aberto em Rn . Reciprocamente,
suponha ϕα (V ) aberto em Rn . Para que V ∈ τA , devemos provar que
ϕβ (Uβ ∩ V ) é aberto em Rn , para todo β ∈ I. No entanto, isso segue da
igualdade

ϕβ (Uβ ∩ V ) = ϕβ (Uβ ∩ V ∩ Uα )
= (ϕβ ◦ ϕ−1
α )(ϕα (V ) ∩ ϕα (Uα ∩ Uβ ))

e do fato que
ϕβ ◦ ϕ−1
α : ϕα (Uα ∩ Uβ ) → ϕβ (Uα ∩ Uβ )

é um homeomorfismo ente abertos de Rn . Quanto à unicidade, seja τ uma


topologia em M que torna cada Uα aberto em M e cada ϕα um homeomor-
fismo. Dado V ∈ τ , tem-se V ∩ Uα ∈ τ , para todo α ∈ I, logo ϕα (Uα ∩ V ) é
aberto em Rn . Isso mostra que V ∈ τA , logo τ ⊂ τA . Por outro lado, dado
V ∈ τA , tem-se que ϕα (Uα ∩ V ) é aberto em Rn , para todo α ∈ I. Assim,
V ∩U −1
Sα = ϕα (ϕα (Uα ∩ V )) é aberto em (M, τ ), para todo α ∈ I. Logo,
V = α∈I V ∩ Uα é aberto em (M, τ ), provando que τA ⊂ τ .

A topologia τA , dada pelo Lema 2.1.7, será chamada a topologia induzida


pelo atlas A no conjunto M .

Observação 2.1.8. Se dois atlas A1 e A2 num conjunto M são tais que a


união A1 ∪ A2 também é um atlas em M , então as topologias induzidas em
M por A1 e A2 coincidem (cf. Exercício 1). Disso decorre, em particular,
que a topologia induzida por um atlas A coincide com a topologia induzida
pelo atlas maximal que o contém.

21
Antes de introduzirmos a definição central dessa seção, lembremos que
uma topologia num conjunto M é dita Hausdorff se dois pontos distintos
quaisquer de M pertencem a abertos disjuntos. Além disso, uma topolo-
gia satisfaz o segundo axioma da enumerabilidade se ela possui uma base
enumerável de abertos.

Definição 2.1.9. Uma variedade diferenciável de dimensão n é um par


(M, A), onde M é um conjunto e A é um atlas maximal de dimensão n
em M , de modo que a topologia induzida em M por A é Hausdorff e satisfaz
o segundo axioma da enumerabilidade.

Quando nos referirmos à topologia de uma variedade diferenciável, esta-


remos sempre nos referindo à topologia induzida pelo seu atlas. A exigência
de que o atlas seja maximal, bem como as condições impostas sobre a topolo-
gia de uma variedade diferenciável não são essenciais, no sentido de que não
são necessárias ao longo de toda a teoria de variedades, mas são hipóteses
padrão e necessárias em diversos teoremas centrais da teoria, como veremos
ao longo do texto.
Para simplificar a notação e quando não houver perigo de confusão, es-
creveremos apenas M n para denotar a variedade diferenciável (M, A) de
dimensão n. Quando dissermos que (U, ϕ) é uma carta local de M , significa-
remos que ϕ é um elemento do atlas maximal A e não apenas que ϕ é uma
bijeção arbitrária definida num subconjunto U ⊂ M .

Exemplo 2.1.10. O conjunto unitário A = {(Rn , Id)} é um atlas em Rn .


Além disso, como a aplicação identidade Id é um homeomorfismo, com domí-
nio aberto em relação à topologia usual de Rn , segue que a topologia induzida
por A em Rn coincide com a topologia usual. O atlas maximal Amax que
contém A consiste de todos os difeomorfismos ϕ : U → ϕ(U ), onde U e ϕ(U )
são abertos em Rn .

Exemplo 2.1.11. Sejam (M, A) uma variedade diferenciável e U um aberto


de (M, τA ). Para cada (Uα , ϕα ) ∈ A, sejam U
eα = U ∩ Uα e ϕ
eα = ϕα |Ueα , e
considere o conjunto

Ae = {(U eα ) : (Uα , ϕα ) ∈ A}.


eα , ϕ

Claramente Ae é um atlas em U . Denotemos por τ a topologia induzida por


τA em U , e por τAe a topologia induzida por Ae em U . Mostremos que τAe = τ .
De fato, dado V ∈ τ , tem-se V = U ∩ W , onde W ∈ τA . Assim,

ϕ eα ∩ V ) = ϕα (U ∩ Uα ∩ V ) = ϕα (U ∩ Uα ∩ W ),
eα (U

22
que é aberto em Rn , logo V ∈ τAe. Por outro lado, dado V ∈ τAe, segue
que ϕ eα ∩ V ) = ϕα (U ∩ Uα ∩ V ) é aberto em Rn . Disso decorre que
eα (U
U ∩ V ∈ τA . Assim, V = U ∩ (U ∩ V ) ∈ τ , logo V ∈ τ . Portanto, a topologia
τAe é Hausdorff e satisfaz o segundo axioma da enumerabilidade, logo (U, A)e
também é uma variedade diferenciável.
Exemplo 2.1.12. Dado um espaço vetorial real E de dimensão n, o conjunto
A de todos os isomorfismos lineares ϕ : E → Rn é um atlas em E. Assim E,
munido do único atlas maximal que contém A, é uma variedade diferenciável.
A topologia induzida por A em E é a topologia usual, induzida por qualquer
norma em E.
Os espaços vetoriais reais de dimensão finita serão sempre considerados
como variedades diferenciáveis, munidos do atlas maximal que contém as
cartas lineares.

2.2 A topologia de uma variedade diferenciável


O lema seguinte nos dá condições para que a topologia induzida por
um atlas numa variedade diferenciável coincide com uma dada topologia,
previamente fixada na variedade.
Lema 2.2.1. Sejam (M n , A) uma variedade diferenciável e considere uma
topologia τ no conjunto M . As seguintes afirmações são equivalentes:
(a) τ = τA .
(b) Para toda carta (Uα , ϕα ) ∈ A, tem-se Uα ∈ τ e ϕα é um homeomor-
fismo em relação à topologia induzida em Uα por τ ;
(c) Existe um atlas Ae ⊂ A tal que vale (b) para toda carta (Uα , ϕα ) ∈ A.
e
Demonstração. (a) ⇒ (b) segue do fato que ϕα : Uα → ϕα (Uα ) é homeo-
morfismo segundo a topologia τA . Para mostrar (b) ⇒ (c), basta considerar
Ae = A. Finalmente, a fim de provar que (c) ⇒ (a), basta provar que
a aplicação identidade Id : (M, τ ) → (M, τA ) é um homeomorfismo. De
fato, para todo (Uα , ϕα ) ∈ Ae segue por hipótese que Uα ∈ τA , Uα ∈ τ ,
ϕα : (Uα , τA ) → ϕα (Uα ) e ϕα : (Uα , τ ) → ϕα (Uα ) são homeomorfismos.
Como o diagrama

(Uα , τ )
Id / (Uα , τα )

ϕα ϕα
' w
ϕα (Uα )

23
é comutativo, segueSque Id : (Uα , τ ) → (Uα , τα ) é um homeomorfismo. Além
disso, como M = α∈Ie Uα , segue que Id : (M, τ ) → (M, τA ) é um homeo-
morfismo, concluindo a demonstração.

Como aplicação do Lema 2.2.1, veremos que toda subvariedade Euclidia-


na é, naturalmente, uma variedade diferenciável.
Exemplo 2.2.2. Seja M m uma subvariedade Euclidiana de Rn . Para cada
parametrização ψα : Wα → M ∩ Vα de M , denote por ϕα a inversa de ψα .
Fazendo Uα = M ∩ Vα , considere o conjunto

A = {(Uα , ϕα ) : ϕα = ψα−1 }.
−1
Segue do Teorema 1.4.1 que ϕβ ◦ ϕ−1
α = ψβ ◦ ψα é um difeomorfismo, logo
A é um atlas de dimensão m em M . Além disso, como cada ϕα : Uα → Wα
é um homeomorfismo em relação à topologia induzida em M de Rn , segue
do Lema 2.2.1 que a topologia τA coincide com a topologia usual de M e,
portanto, (M, A) torna-se naturalmente uma variedade diferenciável.
A esfera unitária Sn ⊂ Rn+1 é, em virtude do Exemplo 2.2.2, uma varie-
dade diferenciável de dimensão n. Mais precisamente, quando considerarmos
a esfera Sn como variedade, o atlas maximal considerado é aquele que contém
as projeções estereográficas. Por outro lado, é um fato conhecido que a esfera
Sn tem a mesma cardinalidade que R ou seja, existe uma bijeção ϕ : Sn → R
entre a esfera Sn e o conjunto dos números reais R. Vejamos o que ocorre se
considerarmos essa bijeção ϕ como carta em Sn .
Exemplo 2.2.3. Seja ϕ : Sn → R uma bijeção entre a esfera Sn e o con-
junto dos números reais R. Por definição, ϕ é uma carta global em Sn . Se A
denota o único atlas maximal que contém ϕ, então (Sn , A) é uma variedade
diferenciável de dimensão 1. Observe que tal bijeção ϕ não é um homeomor-
fismo, se considerarmos Sn com a topologia usual, induzida de Rn+1 . Segue
então que a topologia τA da variedade (Sn , A) não coincide com a topologia
usual da esfera, aquela induzida de Rn+1 .
Exemplo 2.2.4 (Espaço projetivo real). Em M = Rn+1 \ {0}, definimos
uma relação de equivalência ∼ pondo:

x ∼ y ⇔ y = tx, para algum t 6= 0.

O espaço quociente RP n = M/∼ chama-se o espaço projetivo real. Provare-


mos que RP n é uma variedade diferenciável de dimensão n. Geometricamen-
te, cada classe [x] ∈ RP n pode ser identificada com a reta em Rn+1 que passa

24
pela origem, cuja direção é dada pelo vetor x. Provemos, inicialmente, que
a topologia quociente τ em RP n é Hausdorff e satisfaz o segundo axioma da
enumerabilidade. De fato, consideremos a aplicação quociente π : M → RP n
e fixemos um subconjunto aberto A ⊂ M . Temos:

π −1 (π(A)) = {x ∈ M : x ∼ a, para algum a ∈ A}


[
= tA,
t6=0

onde tA = {tx : x ∈ A}. Como cada conjunto tA é aberto em M , segue


que π −1 (π(A)) é aberto. Logo, por definição de topologia quociente, π(A)
é aberto, logo π é aberta. Assim, como M satisfaz o segundo axioma da
enumerabilidade, M/∼ também o satisfaz (cf. Exercício 1). A fim de provar
que τ é Hausdorff, considere a função f : M × M → R definida por
X
f (x, y) = (xi yj − xj yi )2 ,
i6=j

para quaisquer x, y ∈ M . Note que

f (x, y) = 0 ⇔ xi yj − xj yi = 0, i 6= j
⇔ yi = txi , para algum t 6= 0, 1 ≤ i ≤ n + 1
⇔ x ∼ y.

Ou seja,
R = {(x, y) ∈ M × M : x ∼ y} = f −1 (0).
Como f é contínua, R é fechado em M × M , logo (RP n , τ ) é de Hausdorff
(cf. Exercício 1). A fim de construir um atlas em RP n considere, para cada
1 ≤ i ≤ n + 1, o aberto Uei em M dado por

ei = {x ∈ M : xi 6= 0}.
U

Além disso, defina uma aplicação ϕ ei → Rn pondo


ei : U
1
ϕ
ei (x1 , . . . , xn+1 ) = (x1 , . . . , x
bi , . . . , xn+1 ).
xi
Observe que ϕ
ei é contínua, pois suas funções coordenadas são contínuas; ϕ ei
n
também é sobrejetora. De fato, dado x = (x1 , . . . , xn ) ∈ R , considere

e = (x1 , . . . , xi−1 , 1, xi , . . . , xn ) ∈ U
x ei .

25
Assim, tem-se ϕ
ei (e
x) = x. Além disso, como
x∼y⇔ϕ
ei (x) = ϕ
ei (y),
segue do lema de passagem ao quociente que, para cada 1 ≤ i ≤ n + 1, existe
uma bijeção contínua ϕi : RP n → Rn tal que o diagrama
ϕ
U
ei
/ Rn
9
ei
π
ϕi

RP n

é comutativo. Seja Ui = π(U


ei ). Provemos que o conjunto

A = {(Ui , ϕi ) : 1 ≤ i ≤ n + 1}
é um atlas de dimensão n em RP n . Note que
ϕ−1
i (x, . . . , xn ) = π(x1 , . . . , xi−1 , 1, xi , . . . , xn ),

para todo 1 ≤ i ≤ n + 1. Assim, dados (Ui , ϕi ), (Uj , ϕj ) ∈ A, com i < j,


temos:
(ϕj ◦ ϕ−1
i )(x) = ϕj (π(x1 , . . . , xi−1 , 1, xi , . . . , xn ))
= ϕ
ej (x1 , . . . , xi−1 , 1, xi , . . . , xn )
1
= (x1 , . . . , xi−1 , 1, xi , . . . , x
bj , . . . , xn ),
xj

logo ϕj ◦ ϕ−1
i é diferenciável. Finalmente, resta provar que τA = τ . De fato,
−1
como π (Ui ) = U ei é aberto em M , segue que Ui é aberto em (RP n , τ ).
Além disso, da igualdade
ϕ−1
i (x, . . . , xn ) = π(x1 , . . . , xi−1 , 1, xi , . . . , xn ),

segue que ϕ−1i é contínua. Assim, ϕi : Ui → ϕi (Ui ) é um homeomorfismo


relativo à topologia τ e, em virtude do Lema 2.2.1, segue que τA = τ .
Vejamos a seguir um exemplo simples de variedade, cuja topologia indu-
zida não é Hausdorff.
Exemplo 2.2.5. Em R2 , considere os subconjuntos
A = {(x, 1) ∈ R2 : x ≤ 0},
B = {(x, 0) ∈ R2 : x > 0},
C = {(x, −1) ∈ R2 : x ≤ 0}.

26
Sejam U1 = A ∪ B e U2 = B ∪ C, e defina as aplicações ϕ1 : U1 → R e
ϕ2 : U2 → R pondo

ϕ1 (x, y) = x e ϕ2 (x, y) = x.

O conjunto A = {ϕ1 , ϕ2 } é um atlas em M = A ∪ B ∪ C. No entanto, a


topologia τA não é Hausdorff, pois qualquer vizinhança em torno dos pontos
(0, 1) e (0, −1) têm pontos em comum.

2.3 Aplicações diferenciáveis


A relação básica entre variedades diferenciáveis é a noção de aplicação
diferenciável. Este conceito, visto inicialmente entre espaços Euclidianos, se
generaliza naturalmente para variedades diferenciáveis, pois estas se com-
portam, localmente, como se fossem subconjuntos abertos de algum espaço
Euclidiano. Uma aplicação diferenciável entre variedades é definida como
sendo uma aplicação, cuja representação em relação à cartas locais das duas
variedades, seja diferenciável no sentido usual.

Definição 2.3.1. Sejam M m e N n variedades diferenciáveis. Dizemos que


uma aplicação f : M → N é diferenciável num ponto p ∈ M se existem
cartas locais (U, ϕ) em M e (V, ψ) em N , com p ∈ U e f (U ) ⊂ V , de modo
que a aplicação ψ ◦ f ◦ ϕ−1 seja diferenciável no ponto ϕ(p).

A composição ψ ◦ f ◦ ϕ−1 é chamada a representação de f em relação às


cartas locais (U, ϕ) e (V, ψ). Diremos simplesmente que f é diferenciável se
for diferenciável em todos os pontos de M .
A definição 2.3.1 independe da escolha das cartas locais. De fato, sejam
(U , ϕ0 ) e (V 0 , ψ 0 ) cartas locais em M e N , respectivamente, com p ∈ U 0 e
0

f (U 0 ) ⊂ V 0 . Então, no aberto ϕ0 (U 0 ∩ U ), temos:

ψ 0 ◦ f ◦ ϕ0−1 = (ψ 0 ◦ ψ −1 ) ◦ (ψ ◦ f ◦ ϕ−1 ) ◦ (ϕ ◦ ϕ0−1 ).

Como ϕ e ϕ0 , ψ e ψ 0 são compatíveis e ψ ◦ f ◦ ϕ−1 é diferenciável, segue que


ψ 0 ◦ f ◦ ϕ0−1 também é diferenciável.
Uma aplicação f : M → N é um difeomorfismo se f é uma bijeção
diferenciável, cuja inversa f −1 : N → M também é diferenciável. Uma
aplicação f : M → N chama-se um difeomorfismo local se todo ponto p ∈ M
possui uma vizinhança aberta U ⊂ M tal que f (U ) é aberto em N e a
restrição f |U : U → f (U ) é um difeomorfismo.

27
Exemplo 2.3.2. Se U é um aberto de Rm , então U é uma variedade di-
ferenciável, e a aplicação identidade Id : U → U é uma carta local em U .
Assim, dado uma variedade diferenciável N n , uma aplicação f : U → N é
diferenciável se, e somente se, para todo p ∈ U , existem um aberto W ⊂ U ,
com p ∈ W , e uma carta local (V, ψ) em N , com f (W ) ⊂ V , tal que ψ ◦ f |W
é diferenciável. Disso decorre, em particular, no caso em que N n = Rn , que
f é diferenciável no sentido de variedades se, e somente se, é diferenciável no
sentido do Cálculo.

A proposição seguinte mostra que as cartas locais de uma variedade di-


ferenciável M n são difeomorfismos entre abertos de M e abertos de Rn .

Proposição 2.3.3. Seja (M n , A) uma variedade diferenciável. Dados um


subconjunto U ⊂ M e um aberto W ⊂ Rn , uma bijeção ϕ : U → W pertence
ao atlas A se, e somente se, U é aberto em M e ϕ é um difeomorfismo.

Demonstração. Se (U, ϕ) é uma carta local de M , então U é aberto em M .


Considere as representações de ϕ e ϕ−1 em relação às cartas ϕ na variedade
U e Id na variedade W = ϕ(U ).
ϕ
U /W
ϕ Id
 Id◦ϕ◦ϕ−1 
W /
W

Tais representações são iguais a aplicação identidade de W , que é diferen-


ciável. Logo, ϕ é um difeomorfismo. Reciprocamente, suponha que U é
aberto em M e que ϕ : U → W seja um difeomorfismo. Devemos provar
que ϕ é compatível com o atlas A. Dado uma carta local (V, ψ) ∈ A, como
ϕ e ψ são homeomorfismos entre abertos, segue que ϕ(U ∩ V ) e ψ(U ∩ V )
são abertos de Rn . A aplicação de transição ψ ◦ ϕ−1 é diferenciável, pois
é a representação da aplicação ϕ−1 : W → U em relação às cartas locais
Id : ϕ(U ∩ V ) → ϕ(U ∩ V ) e ψ|U ∩V : U ∩ V → ψ(U ∩ V ). Analogamente se
prova que ϕ ◦ ψ −1 é diferenciável.

O corolário seguinte é útil quando queremos provar resultados sobre uni-


cidade de estruturas diferenciáveis satisfazendo certas condições.

Corolário 2.3.4. Dois atlas maximais A1 e A2 num conjunto M são iguais


se, e somente se, a aplicação identidade Id : (M, A1 ) → (M, A2 ) é um difeo-
morfismo.

28
Demonstração. Suponha que a aplicação identidade Id seja um difeomor-
fismo. Assim, Id é, em particular, um homeomorfismo, logo A1 e A2 indu-
zem a mesma topologia em M . Dado um aberto U ⊂ M , denotemos por
A1 |U , A2 |U os atlas induzidos em U por A1 e A2 , respectivamente. Assim,
Id : (U, A1 |U ) → (U, A2 |U ) é um difeomorfismo. Sejam V ⊂ Rn um aberto e
ϕ : U → V uma bijeção. Temos, assim, um diagrama comutativo:

(U, A1 |U )
Id / (U, A2 |U )
1 2
ϕ ϕ
& x
V
A flecha 1 no diagrama é um difeomorfismo se, e somente se, a flecha 2 o for.
Segue da Proposição 2.3.3 que ϕ ∈ A1 se, e somente se, ϕ ∈ A2 .

Exemplo 2.3.5. A função f : R → R, dada por f (t) = t3 , é um homeomor-


fismo, cuja inversa é f −1 (t) = t1/3 , que não é diferenciável em t = 0, logo
f não é um difeomorfismo. Sejam (R, A) e (R, B) estruturas de variedades
diferenciáveis em R determinadas pelos atlas

{(R, Id)} e {(R, f )},

respectivamente. Note que Id : R → R e f : R → R não são compatíveis,


pois (Id ◦ f −1 )(t) = t1/3 não é diferenciável em t = 0. Assim (R, A) 6=
(R, B). Por outro lado, (R, A) e (R, B) são variedades difeomorfas, pois a
aplicação φ : (R, A) → (R, B), dada por φ(t) = t1/3 , é um difeomorfismo.
De fato, a representação de φ é a aplicação identidade Id : R → R, que é um
difeomorfismo.
O Exemplo 2.3.5 fornece, na verdade, um exemplo de estruturas diferen-
ciáveis equivalentes, no sentido da definição seguinte.
Definição 2.3.6. Duas variedades diferenciáveis (M, A) e (M, B), onde A e
B são atlas maximais distintos sobre M , são ditas equivalentes se existe um
difeomorfismo entre (M, A) e (M, B).
Em virtude do Exercício 2.3.1, decorre que todo difeomorfismo é um ho-
meomorfismo. Este fato reporta naturalmente à questão da unicidade da
estrutura diferenciável, ou seja, sobre a recíproca do Exercício 2.3.1. Mais
precisamente, o problema que se propõe é saber se duas estruturas diferen-
ciáveis quaisquer numa variedade são sempre equivalentes. Em dimensões
baixas isso é sempre verdade. O leitor interessado pode consultar [10, Pro-
blem 2.5] ou [18, Problem 9.24] para o caso 1-dimensional não-compacto:

29
qualquer estrutura diferenciável em R é difeomorfa à estrutura usual (R, A),
onde A é o único atlas maximal que contém a aplicação identidade.
Em R2 e R3 o resultado também é verdadeiro. De fato, segue do trabalho
de Munkres [16] (cf. também [13]) que toda variedade topológica de dimen-
são menor ou igual a 3 admite uma estrutura diferenciável que é única a
menos de difeomorfismos. Por outro lado, em R4 existem exemplos de estru-
turas diferenciáveis que não são difeomorfas à estrutura diferenciável usual
(R4 , A). Tais estruturas foram apresentadas por Donaldson [5] e Freedman
[6], como consequência de seus estudos em geometria e topologia das vari-
edades compactas de dimensão 4. Na esfera Sn , quaisquer duas estruturas
diferenciáveis são difeomorfas, para n ≤ 6. Em 1956 Milnor [12] apresentou
a construção de uma estrutura diferenciável exótica em S7 , ou seja, uma
variedade diferenciável homeomorfa mas não difeomorfa à esfera S7 .
Outro problema básico neste contexto é a questão da existência de uma
estrutura diferenciável. Mais precisamente, dado um espaço topológico M ,
munido de um atlas maximal A de classe C 0 , o problema que se propõe
é saber se sempre existe um atlas diferenciável B, com B ⊂ A. De forma
independente, Smale e Kervaire [9] exibiram exemplos de espaços topológicos
que não admitem estrutura de variedade diferenciável.

2.4 O espaço tangente


A noção de espaço tangente a uma variedade diferenciável M num ponto
p motiva-se pela questão de como definir a diferencial de uma aplicação
diferenciável f : M → N entre duas variedades M e N . A ideia natural é
definir a diferencial de f em p ∈ M como sendo a diferencial no ponto ϕ(p)
da representação ψ ◦ f ◦ ϕ−1 de f em relação às cartas locais ϕ e ψ. Ocorre
que esta representação depende da escolha das cartas ϕ e ψ, e não apenas
de f . O problema inicial então é encontrar o objeto correto que deve ser a
diferencial de f no ponto p ∈ M .
Intuitivamente, queremos que a diferencial num ponto p ∈ M de uma
aplicação diferenciável f : M → N seja uma aplicação linear definida num
espaço vetorial associado a M e ao ponto p, e tomando valores num espaço
vetorial associado a N e ao ponto f (p). O espaço vetorial associado a M e a
p deve ter um papel análogo ao papel do espaço tangente a uma subvariedade
Euclidiana M em Rn .
Lembremos que o espaço tangente Tp M a uma subvariedade Euclidiana
M em Rn , num certo ponto p ∈ M , é o conjunto de todos os vetores v ∈ Rn
da forma v = λ0 (0), onde λ : (−, ) → M é uma curva diferenciável em

30
t = 0, com λ(0) = p. Quando M é uma variedade diferenciável, os vetores
tangentes deverão ser definidos de outra forma, visto que M não está contida,
necessariamente, em algum espaço Euclidiano. Veremos a seguir uma das
maneiras de se definir o espaço tangente.
Dado uma variedade diferenciável M n e fixado um ponto p ∈ M , deno-
temos por Cp o conjunto de todas as curvas diferenciáveis λ : (−, ) → M ,
com λ(0) = p. Dizemos que duas curvas λ, µ ∈ Cp são equivalentes, e es-
creveremos λ ∼ µ, se existe uma carta local (U, ϕ) em M , com p ∈ U , tal
que

(ϕ ◦ λ)0 (0) = (ϕ ◦ µ)0 (0). (2.1)

Note que, como λ e µ são contínuas e U ⊂ M é aberto, temos que as


compostas ϕ ◦ λ e ϕ ◦ µ estão definidas numa vizinhança da origem em R.
Observação 2.4.1. A definição dada em (2.1) independe da escolha da
carta. De fato, se (V, ψ) é outra carta local em M , com p ∈ V , segue da
regra da cadeia que:

(ψ ◦ λ)0 (0) = (ψ ◦ ϕ−1 ◦ ϕ ◦ λ)0 (0)


= d(ψ ◦ ϕ−1 )(ϕ(p)) · (ϕ ◦ λ)0 (0)
= d(ψ ◦ ϕ−1 )(ϕ(p)) · (ϕ ◦ µ)0 (0)
= (ψ ◦ µ)0 (0).

Além disso, fica a cargo do leitor verificar que a relação definida em (2.1)
é uma relação de equivalência em Cp .
Definição 2.4.2. O espaço tangente à variedade diferenciável M no ponto
p é definido como o classe de equivalência Cp /∼, e será denotado por Tp M .
Devemos verificar agora que Tp M possuiu as propriedades que se espera
para um espaço tangente. Dados um ponto p ∈ M e uma carta local (U, ϕ)
em M , com p ∈ U , definimos uma aplicação ϕ : Tp M → Rn pondo

ϕ([λ]) = (ϕ ◦ λ)0 (0), (2.2)

para toda classe [λ] ∈ Tp M . Segue da Observação 2.4.1 que ϕ está bem
definida. Afirmamos que ϕ é bijetora. De fato, dados [λ], [µ] ∈ Tp M , temos:

ϕ([λ]) = ϕ([µ]) ⇔ (ϕ ◦ λ)0 (0) = (ϕ ◦ µ)0 (0)


⇔ λ∼µ
⇔ [λ] = [µ],

31
ou seja, ϕ é injetora. Além disso, dado v ∈ Rn , considere a curva
α : (−, ) → ϕ(U ) definida por α(t) = ϕ(p) + tv. Pondo λ = ϕ−1 ◦ α,
temos:
ϕ([λ]) = (ϕ ◦ λ)0 (0) = (ϕ ◦ ϕ−1 ◦ α)0 (0) = α0 (0) = v,
ou seja, ϕ é sobrejetora. Assim, sendo ϕ uma bijeção, existe uma única
estrutura de espaço vetorial em Tp M que torna ϕ um isomorfismo linear.
Mais precisamente, definimos:
[λ] + [µ] = ϕ−1 (ϕ([λ]) + ϕ([µ])) ,
(2.3)
c · [λ] = ϕ−1 (c · ϕ([λ])) ,
para quaisquer [λ], [µ] ∈ Tp M e c ∈ R.
Veremos na seção seguinte que o isomorfismo linear ϕ : Tp M → Rn ,
definido em (2.2), será identificado com a diferencial de uma carta local em
M na vizinhança do ponto p.
Observação 2.4.3. A estrutura de espaço vetorial induzida em Tp M , por
(2.3), independe da escolha da carta local. De fato, se (V, ψ) é outra carta
local de M , com p ∈ V , temos:
ψ([λ]) = (ψ ◦ λ)0 (0)
= (ψ ◦ ϕ−1 ◦ ϕ ◦ λ)0 (0)
= d(ψ ◦ ϕ−1 )(ϕ(p)) · ϕ([λ]),
ou seja,
ψ = T ◦ ϕ,
onde T é o isomorfismo linear dado por T = d(ψ ◦ ϕ−1 )(ϕ(p)). Portanto
−1
ψ (ψ([λ]) + ψ([µ])) = (ϕ−1 ◦ T −1 )(T ◦ ϕ([λ]) + T ◦ ϕ([µ]))
= ϕ−1 (ϕ([λ]) + ϕ([µ])).
De forma análoga podemos mostrar que
−1
ψ (c · ψ([λ])) = ϕ−1 (c · ϕ([λ])),
para qualquer c ∈ R. Portanto, quaisquer duas cartas locais em M induzem
a mesma estrutura de espaço vetorial em Tp M .
A forma como apresentamos o espaço tangente, através de curvas, é ape-
nas uma das maneiras de se definir. De maneira similar, é possível definir o
espaço tangente através de cartas locais ou através de derivações. O leitor
interessado pode consultar a referência [10], por exemplo.

32
2.5 A diferencial
Com a noção de espaço tangente a uma variedade diferenciável, discutido
na seção anterior, estamos aptos a definir a diferencial de uma aplicação entre
duas variedades diferenciáveis.
Dados uma aplicação diferenciável f : M m → N n e um ponto p ∈ M ,
queremos definir uma aplicação linear entre os espaços tangentes Tp M e
Tf (p) N . Definimos então a aplicação df (p) : Tp M → Tf (p) N pondo

df (p) · [λ] = [f ◦ λ], (2.4)

para todo [λ] ∈ Tp M . A aplicação df (p) é chamada a diferencial de f no


ponto p. Devemos verificar que df (p) está bem definida e é linear . De fato,
considere cartas locais (U, ϕ) em M e (V, ψ) em N , com p ∈ U e f (U ) ⊂ V .
Dado [λ] ∈ Tp M , temos:

ψ([f ◦ λ]) = (ψ ◦ f ◦ λ)0 (0)


= (ψ ◦ f ◦ ϕ−1 ◦ ϕ ◦ λ)0 (0)
= d(ψ ◦ f ◦ ϕ−1 )(ϕ(p)) · ϕ([λ]),

ou seja,
−1
d(ψ ◦ f ◦ ϕ−1 )(ϕ(p)) · ϕ([λ]) .

df (p) · [λ] = ψ (2.5)

A igualdade em (2.5) mostra que a classe [f ◦ λ] ∈ Tf (p) N depende apenas


da classe [λ], logo (2.4) está bem definido. Além disso, segue de (2.5) que o
diagrama
df (p)
Tp M / Tf (p) N

ϕ ψ (2.6)
 
Rm / Rn
d(ψ◦f ◦ϕ−1 )(ϕ(p))

é comutativo, implicando que df (p) : Tp M → Tf (p) N é linear.


Dado uma carta local (U, ϕ) em M n , com p ∈ U , denotemos por
 
∂ ∂
(p), . . . , (p)
∂x1 ∂xn
a base de Tp M induzida pelo isomorfismo ϕ : Tp M → Rn . Ou seja,

(p) = ϕ−1 (ei ),
∂xi

33
onde {e1 , . . . , en } denota a base canônica de Rn . Assim,

(p) = [λi ],
∂xi
onde λi = ϕ−1 ◦ αi e αi : I → ϕ(U ) é uma curva diferenciável tal que
αi (0) = ϕ(p) e αi0 (0) = ei , para todo 1 ≤ i ≤ n.
Proposição 2.5.1. Dados uma aplicação diferenciável f : M m → N n e um
ponto p ∈ M , considere cartas locais (U, ϕ) em M e (V, ψ) em N , com p ∈ U
e f (U ) ⊂ V . Então, a matriz da diferencial df (p), em relação às bases
   
∂ ∂ ∂ ∂
(p), . . . , (p) e (f (p)), . . . , (f (p)) (2.7)
∂x1 ∂xm ∂y1 ∂yn
determinadas por ϕ e ψ, respectivamente, é a matriz jacobiana de ψ ◦ f ◦ ϕ−1
no ponto ϕ(p).
Demonstração. Denote por (aij ) a matriz da diferencial df (p) em relação às
bases em (2.7). Da comutatividade do diagrama (2.6), temos:
n n
∂ X ∂ X −1
df (p) · (p) = aij (f (p)) ⇔ df (p) · ϕ−1 (ei ) = aij ψ (ej )
∂xi ∂yj
j=1 j=1
n
 X
⇔ ψ df (p) · ϕ−1 (ei ) = aij ej
j=1
n
X
⇔ d(ψ ◦ f ◦ ϕ−1 )(ϕ(p)) · ei = aij ej ,
j=1

para todo 1 ≤ i ≤ m, e isso finaliza a demonstração.


Teorema 2.5.2 (Regra da cadeia). Sejam M , N , P variedades diferenciá-
veis e f : M → N , g : N → P aplicações diferenciáveis. Então, a composta
g ◦ f também é diferenciável e, para todo p ∈ M , tem-se:
d(g ◦ f )(p) = dg(f (p)) ◦ df (p). (2.8)
Demonstração. A primeira afirmação é o conteúdo do Exercício 2.3.2. Para
provar a igualdade (2.8), considere um vetor [λ] ∈ Tp M . Temos:
d(g ◦ f )(p) · [λ] = [g ◦ f ◦ λ]
= [g ◦ (f ◦ λ)]
= dg(f (p)) · [f ◦ λ]
= dg(f (p)) · df (p) · [λ].
Como [λ] é arbitrário, a demonstração está concluída.

34
Corolário 2.5.3. Se f : M → N é um difeomorfismo então, para todo
p ∈ M , a diferencial df (p) : Tp M → Tf (p) N é um isomorfismo linear e

df (p)−1 = d(f −1 )(f (p)).

Demonstração. Basta aplicar o Teorema 2.5.2 à igualdade f −1 ◦ f = Id no


ponto p ∈ M e à igualdade f ◦ f −1 = Id no ponto f (p) ∈ N .

Observação 2.5.4. Um espaço vetorial n-dimensional V é, em virtude do


Exemplo 2.1.12, uma variedade diferenciável, e qualquer isomorfismo linear
ϕ : V → Rn é uma carta em V . Dado um vetor p ∈ V , afirmamos que o
isomorfismo ϕ−1 ◦ ϕ : Tp V → V não depende de ϕ. De fato, dados outro
isomorfismo ψ : V → Rn e um vetor [λ] ∈ Tp M , temos:

ψ([λ]) = (ψ ◦ λ)0 (0)


= (ψ ◦ ϕ−1 ◦ ϕ ◦ λ)0 (0)
= d(ψ ◦ ϕ−1 )(ϕ(p)) · ϕ([λ]).

Como ψ ◦ ϕ−1 é linear, tem-se d(ψ ◦ ϕ−1 )(ϕ(p)) = ψ ◦ ϕ−1 . Isso implica que
ψ = ψ ◦ ϕ−1 ◦ ϕ, mostrando que ψ −1 ◦ ψ = ϕ−1 ◦ ϕ. Essa observação permite-
nos realizar a seguinte convenção: se V é um espaço vetorial n-dimensional
então, para qualquer vetor p ∈ V , identificaremos o espaço tangente Tp V
com o próprio espaço vetorial V através do isomorfismo

ϕ−1 ◦ ϕ : Tp V → V,

onde ϕ : V → Rn é um isomorfismo arbitrário. No caso particular em que


V = Rn , identificamos Tp Rn com Rn , para qualquer p ∈ Rn , através do
isomorfismo Id : Tp Rn → Rn induzido pela carta (Rn , Id) em Rn .

Lema 2.5.5. Se W é um aberto de uma variedade diferenciável M n então,


para todo ponto p ∈ W , a diferencial da aplicação inclusão i : W → M é um
isomorfismo linear de Tp W sobre Tp M .

Demonstração. Seja (U, ϕ) uma carta local em W . Como W é aberto em


M , (U, ϕ) é também uma carta em M . A representação de i em relação
às cartas ϕ e ϕ é a aplicação identidade do aberto ϕ(U ) de Rn . Logo,
d(ϕ ◦ i ◦ ϕ−1 )(ϕ(p)) é a aplicação identidade de Rn . Sejam ϕW , ϕM os
isomorfismos induzidos pela carta ϕ nas variedades W e M , respectivamente.
Assim,
di(p) = (ϕM )−1 ◦ Id ◦ ϕW = (ϕM )−1 ◦ ϕW .

35
Como ϕW e ϕM são isomorfismos, segue que di(p) também é um isomorfismo,

di(p)
W
i /M Tp W / Ti(p) M

ϕ ϕ ϕW ϕM
   
ϕ(U ) / ϕ(U ) Rn / Rn
Id Id

e isso finaliza a demonstração.

Observação 2.5.6. O Lema 2.5.5 permite-nos adotar a seguinte convenção:


se W é um aberto de uma variedade diferenciável M , identificamos o espaço
tangente Tp W com o espaço tangente Tp M , através do isomorfismo linear
di(p) : Tp W → Ti(p) M .

Em virtude da identificação acima, temos também o seguinte resultado


sobre a diferencial da restrição de uma aplicação a um aberto.

Lema 2.5.7. Sejam M , N variedades diferenciáveis, M1 ⊂ M e N1 ⊂ N


subconjuntos abertos e f : M → N uma aplicação diferenciável tal que
f (M1 ) ⊂ N1 . Se f1 : M1 → N1 denota a restrição de f a M1 , então
df1 (p) = df (p), para todo p ∈ M1 .

Demonstração. Denotando por i : M1 → M e j : N1 → N as aplicações


de inclusão, temos que j ◦ f1 = f ◦ i. A conclusão segue então da regra da
cadeia, observando que, em virtude da identificação acima, di(p) é a aplicação
identidade de Tp M e dj(f (p)) é a aplicação identidade de Tf (p) N .

Lema 2.5.8. Se (U, ϕ) é uma carta local em uma variedade diferenciável M n


então, para todo ponto p ∈ U , a diferencial dϕ(p) coincide com o isomorfismo
induzido ϕp : Tp M → Rn definido em (2.2).

Demonstração. Para calcular a diferencial dϕ(p) podemos, em virtude do


Lema 2.5.7, considerar ϕ como uma aplicação com contradomínio Rn , em
vez de ϕ(U ). Em relação às cartas ϕ em U e Id em Rn , a representação
da aplicação ϕ é a aplicação de inclusão i do aberto ϕ(U ) em Rn . Assim,
di(ϕ(p)) é a aplicação identidade de Rn .

ϕ dϕ(p)
U / Rn Tp U / Tϕ(p) Rn

ϕ Id ϕU Id
   
ϕ(U ) / Rn Rn / Rn
i Id

36
A diferencial de ϕ no ponto p é dada então por
−1
dϕ(p) = Id ◦ Id ◦ ϕU = Id ◦ ϕU .

Como identificamos Tp U = Tp M e Tϕ(p) Rn = Rn , então ϕU = ϕ e Id = Id,


logo dϕ(p) = ϕp .

A partir de agora omitiremos a notação ϕ para o isomorfismo induzido


pela carta ϕ. Em virtude do Lema 2.5.8, usaremos dϕ(p) em vez de ϕp .

Teorema 2.5.9 (Aplicação inversa). Sejam f : M m → N n uma aplicação


diferenciável e p ∈ M um ponto tal que df (p) : Tp M → Tf (p) N seja um
isomorfismo. Então, existe um aberto W ⊂ M , com p ∈ W , tal que f (W ) é
aberto em N e f |W : W → f (W ) é um difeomorfismo.

Demonstração. Sejam (U, ϕ), (V, ψ) cartas locais em M e N , respectiva-


mente, com p ∈ U e f (U ) ⊂ V . A representação fe = ψ ◦ f ◦ ϕ−1 de f é
diferenciável e, em virtude da regra da cadeia, temos:

dfe(ϕ(p)) = dψ(f (p)) ◦ df (p) ◦ dϕ(p)−1 .

Como dψ(f (p)) e dϕ(p) são isomorfismos, segue que dfe(ϕ(p)) é um iso-
morfismo de Rn . Assim, pelo teorema da aplicação inversa em espaços Eu-
f ⊂ Rm , com ϕ(p) ∈ W
clidianos, existe um aberto W f ⊂ ϕ(U ), tal que
n
f (W ) ⊂ ψ(V ) é aberto em R e f |W f : W → f (W ) é um difeomorfis-
e f e f e f
−1
mo. Tome W = ϕ  (W ). Segue então que W é aberto em M , p ∈ W ,
f
f (W ) = ψ −1 fe(Wf ) é aberto em N e f |W : W → f (W ) é um difeomor-
fismo, pois    
f |W = ψ −1 |fe(W
f) ◦ f
e |Wf ◦ (ϕ|W )

é uma composição de difeomorfismos.

Como consequência direta do Teorema 2.5.9, temos o seguinte

Corolário 2.5.10. Se f : M → N é uma aplicação diferenciável tal que


df (p) : Tp M → Tf (p) N é um isomorfismo linear, para todo p ∈ M , então
f é um difeomorfismo local. Em particular, se f é injetora, então f é um
difeomorfismo sobre f (M ), que é um aberto de N .

Corolário 2.5.11. Para qualquer aplicação diferenciável f : M → N , o


conjunto C dos pontos p ∈ M , para os quais df (p) é um isomorfismo linear,
é aberto em M .

37
Demonstração. Fixe um ponto arbitrário p ∈ C. Se W é uma vizinhança
aberta em torno de p, dada pelo Teorema 2.5.9, então df (q) é um isomorfismo
linear, para todo q ∈ W . Disso decorre, em particular, que W ⊂ C, provando
que C é aberto.

38
2.6 Exercícios
2.1
1. Considere dois atlas A1 e A2 num conjunto M .

(a) Prove que A1 ∪ A2 é um atlas em M se, e somente se, todo elemento


ϕ ∈ A1 é compatível com A2 .

(b) Prove que A1 ∪ A2 é um atlas em M se, e somente se, A1 e A2 estão


contidos no mesmo atlas maximal em M .

(c) Se A1 ∪ A2 é um atlas em M , prove que as topologias induzidas em M


por A1 e A2 coincidem.

2. Dado um atlas maximal A de dimensão n num conjunto M , fixe um


elemento (U, ϕ) ∈ A. Se W é um aberto de Rn , com W ⊂ ϕ(U ), e se
V = ϕ−1 (W ), prove que a restrição ϕ|V : V → W também pertence a A.

3. Seja M = R e considere o atlas maximal A em M que contém a carta


global ϕ : M → R dada por ϕ(x) = x3 . Prove que:

(a) A topologia induzida por A em M coincide com a topologia usual de R.


Em particular, essa topologia é Hausdorff e satisfaz o segundo axioma
da enumerabilidade, logo (M, A) é uma variedade diferenciável.

(b) A estrutura diferenciável A em M é diferente da estrutura diferenciável


usual em R.

2.2
1 (Topologia quociente). Dados um espaço topológixo X e uma relação de
equivalência ∼ em X, denotemos por X/∼ o espaço quociente. Assim, os
elementos de X/∼ são as classes de equivalências

[x] = {y ∈ X : x ∼ y}.

A topologia quociente em X/∼ é a topologia τ que torna a aplicação quociente


π : X → X/∼ contínua. Mais precisamente, um subconjunto U ⊂ X/∼ é
aberto se π −1 (U ) é aberto em X. Uma relação de equivalência ∼ em X é
para todo aberto A ⊂ X, o subconjunto [A] é aberto em
dita ser aberta se, [
X/∼, onde [A] = [a].
a∈A

39
(a) Prove que uma relação de equivalência ∼ em X é aberta se, e somente
se, π é uma aplicação aberta. Quando ∼ é aberta e X tem uma base
enumerável de abertos, então X/∼ também tem base enumerável.

(b) Seja ∼ uma relação de equivalência aberta em X. Então, o conjunto

R = {(x, y) ∈ X × X : x ∼ y}

é um subconjunto fechado de X ×X se, e somente se, X/∼ é Hausdorff.

2. Mostre que o espaço projetivo real RP n é compacto.

2.3
1. Prove que toda aplicação diferenciável f : M m → N n é contínua.

2. Se f : M → N e g : N → P são aplicações diferenciáveis, prove que a


composta g ◦ f : M → N também é diferenciável.

3. Sejam M m , N n variedades diferenciáveis. Mostre que se existe um difeo-


morfismo local f : M m → N n , então m = n.

4. Sejam M , N variedades diferenciáveis e f : M → N uma aplicação


arbitrária. Mostre que f é diferenciável se, e somente se, g ◦ f : M → R é
diferenciável, para toda função diferenciável g : N → R.

5. Considere duas variedades diferenciáveis M e N , e seja f : M → N uma


aplicação. Prove que:

(a) Se V é um aberto em N tal que f (M ) ⊂ V , então f : M → N é


diferenciável se, e somente se, f : M → V é diferenciável.

(b) A aplicação identidade Id : M → M é diferenciável. Mais geralmente,


se U é um aberto de M então a aplicação inclusão i : U → M é
diferenciável.

(c) Se f : M → N é diferenciável então, para todo aberto U ⊂ M , a


restrição f |U : U → N é diferenciável.

6. Dados duas variedades diferenciáveis M1 e M2 , seja M = M1 × M2 seu


produto cartesiano. Prove que existe um único atlas maximal A em M tal
que (M, A) é uma variedade diferenciável com as seguintes propriedades:

(a) As projeções πi : M → Mi são aplicações diferenciáveis, i = 1, 2.

40
(b) Se N é uma variedade diferenciável, então uma aplicação f : N → M
é diferenciável se, e somente se, as coordenadas πi ◦ f : N → Mi são
diferenciáveis, i = 1, 2.

(c) A topologia induzida em M por A coincide com a topologia produto.

(d) dim(M ) = dim(M1 ) + dim(M2 ).

7. Seja M n uma variedade diferenciável compacta. Prove que não existe um


difeomorfismo local f : M n → Rn .

8. Considere dois conjuntos M e N , uma aplicação bijetora f : M → N e


B um atlas maximal em N . Prove que existe um único atlas maximal A em
M tal que f : (M, A) → (N, B) seja um difeomorfismo.

9. Sejam M , N espaços topológicos e π : M → N uma aplicação. Lem-


bremos que π é dita ser uma aplicação de recobrimento se para todo q ∈ N
existe uma vizinhança aberta V de q em N e uma família {Ui : i ∈ I} de
abertos dois a dois disjuntos em M tal que
[
π −1 (V ) = Ui
i∈I

e tal que π|Ui : Ui → V é um homeomorfismo, para todo i ∈ I. Disso


decorre que toda aplicação de recobrimento π é um homeomorfismo local;
em particular, π é contínua e aberta.

(a) Seja π : M → N um aplicação de recobrimento, onde N é uma varie-


dade diferenciável. Prove que existe uma estrutura de variedade dife-
renciável em M tal que a projeção π é uma aplicação de recobrimento
diferenciável.

(b) Prove que toda aplicação de recobrimento diferenciável π : M → N


é um difeomorfismo local. Além disso, se π é injetora, então π é um
difeomorfismo.

10. Dado uma variedade diferenciável (M n , A), considere um homeomor-


fismo φ : M → M que não seja um difeomorfismo, e defina

B = {ϕ ◦ φ : ϕ−1 (U ) → Rn : (U, ϕ) ∈ A}.

Prove que B é um atlas maximal em M , distinto de A, e φ : (M, B) → (M, A)


é um difeomorfismo.

41
2.5
1. Dado uma variedade diferenciável M , prove que a diferencial da identidade
Id : M → M , em qualquer ponto p ∈ M , é a aplicação identidade em Tp M .
2. Se f : M → N é uma aplicação constante, prove que f é diferenciável e
que df (p) = 0, para todo p ∈ M .
3. Seja f : M → N uma aplicação diferenciável. Se M é conexa e df (p) = 0,
para todo p ∈ M , prove que f é constante.
4. Seja f : M → R uma função diferenciável. Prove que se p ∈ M é um
ponto de máximo ou de mínimo local de f , então p é um ponto crítico de f .
5. Se M é uma variedade diferenciável compacta, prove que toda função
f : M → R diferenciável tem, pelo menos, dois pontos críticos.
6. Se M n é uma variedade diferenciável compacta, prove que toda aplicação
diferenciável f : M → Rn tem, pelo menos, um ponto crítico, i.e., existe pelo
menos um ponto p ∈ M tal que df (p) não é sobrejetora.
7. Dados duas variedades diferenciáveis M1 e M2 , seja M = M1 × M2 seu
produto cartesiano munido da estrutura diferenciável produto.
(a) Mostre que, para todo p = (p1 , p2 ) ∈ M , a aplicação

v ∈ Tp M 7→ dπ1 (p) · v, dπ2 (p) · v ∈ Tp1 M1 ⊕ Tp2 M2

é um isomorfismo linear entre Tp M e a soma direta Tp1 M1 ⊕ Tp2 M2 .

(b) Dados uma variedade diferenciável N e uma aplicação diferenciável


f : N → M , com f = (f1 , f2 ), mostre que

df (x) · v = df1 (x) · v, df2 (x) · v ,

para quaisquer x ∈ N e v ∈ Tx N .

(c) Fixado um ponto p = (p1 , p2 ) ∈ M , defina uma aplicação i1 : M1 → M


pondo i1 (x1 ) = (x1 , p2 ), para todo x1 ∈ M1 . Mostre que i1 é uma
aplicação diferenciável e sua diferencial no ponto x1 ∈ M1 é a inclusão
de Tx1 M1 na soma direta Tx1 M1 ⊕ Tx2 M2 , ou seja,

di1 (x1 ) · v1 = (v1 , 0),

para todo v1 ∈ Tx1 M1 . De forma análoga podemos definir uma aplica-


ção i2 : M2 → M pondo i2 (x2 ) = (p1 , x2 ), para todo x2 ∈ M2 .

42
2.7 Apêndice: Fatos básicos de topologia
Um espaço topológico X é dito Hausdorff se para quaisquer dois pontos
distintos p, q ∈ X, existem abertos disjuntos U, V ⊂ X, com p ∈ U e q ∈ V .
Lema 2.7.1. Para qualquer espaço de Hausdorff X, valem as seguintes pro-
priedades:
(a) Dados um ponto p ∈ X e um compacto K ⊂ X, com p ∈ / K, existem
abertos disjuntos U, V ⊂ X tais que p ∈ U e K ⊂ V .

(b) Todo subconjunto compacto de X é fechado.

(c) Dados dois compactos disjuntos K, L ⊂ X, existem abertos disjuntos


U, V ⊂ X tais que K ⊂ U e L ⊂ V .
Um espaço topológico X é dito regular se, para qualquer ponto p ∈ X e
qualquer subconjunto fechado F ⊂ X, com p ∈ / F , existem abertos disjuntos
U, V ⊂ X tais que p ∈ U e F ⊂ V .
Lema 2.7.2. Um espaço topológico X é regular se, e somente se, todo
ponto de X possui um sistema fundamental de vizinhanças fechadas, i.e., se,
e somente se, para todo ponto p ∈ X e todo aberto U ⊂ X, com p ∈ U ,
existe um fechado F ⊂ X tal que p ∈ int(F ) ⊂ F ⊂ U .
Um espaço topológico X é dito localmente compacto se para todo ponto
p ∈ X e todo aberto U ⊂ X, com p ∈ U , existe um compacto K ⊂ X com
p ∈ int(K) ⊂ K ⊂ U .
Lema 2.7.3. Seja X um espaço de Hausdorff e suponha que todo ponto
de X possui uma vizinhança compacta, i.e., todo ponto de X pertence ao
interior de um subconjunto compacto de X. Então, X é regular e localmente
compacto.
Um espaço topológico X é dito normal se para quaisquer fechados e dis-
juntos F, G ⊂ X, existem abertos disjuntos U, V ⊂ X tais que F ⊂ U e
G⊂V.
Lema 2.7.4. Seja X um espaço de Hausdorff.
(a) Se X é localmente compacto, então X é regular.

(b) Se X é compacto, então X é normal.


Proposição 2.7.5. Toda variedade diferenciável é localmente compacta e
regular.

43
Dizemos que um espaço topológico X satisfaz o segundo axioma da enu-
merabilidade se possui uma base enumerável de abertos. Recorde que uma
base de abertos para X é uma coleção de abertos de modo que todo aberto
de X pode ser expresso como união de abertos dessa coleção.
Lema 2.7.6. Todo espaço topológico regular que satisfaz o segundo axioma
da enumerabilidade é normal.
Proposição 2.7.7. Toda variedade diferenciável é normal.
Uma exaustão por compactos para um espaço topológico X é uma sequên-
cia (Kn )n≥1 de subconjuntos compactos de X tal que

[
X= Kn e Kn ⊂ int(Kn+1 ),
n=1

para todo n ∈ N.
Lema 2.7.8. Todo espaço localmente compacto e que satisfaz o segundo
axioma da enumerabilidade admite uma exaustão por compactos.
Seja C = {Uα : α ∈ I} uma família de subconjuntos de um espaço
topológico X. Dizemos que C é localmente finita em X se cada ponto p ∈ X
possui uma vizinhança que intercepta Uα para no máximo um número finito
de índices α ∈ I. Ou seja, para todo ponto p ∈ X, existe um aberto U ⊂ X,
com p ∈ U , tal que o conjunto
{α ∈ I : U ∩ Uα 6= ∅}
é finito.
Lema 2.7.9. Se C = {Uα : α ∈ I} é uma família localmente finita em X,
então {Uα : α ∈ I} também é localmente finito em X.
Uma cobertura {Vi : i ∈ I} para um espaço topológico X é dita um
refinamento de uma cobertura {Uα : α ∈ J} de X se, para todo i ∈ I, existe
α ∈ J tal que Vi ⊂ Uα . Um espaço topológico X é dito paracompacto se toda
cobertura aberta de X admite um refinamento aberto localmente finito.
Proposição 2.7.10. Toda variedade diferenciável é paracompacto.
Proposição 2.7.11. Sejam M um conjunto, A um atlas em M e assuma
que M está munido da topologia τA . Se o espaço topológico M é Hausdorff,
conexo e paracompacto, então M satisfaz o segundo axioma da enumerabi-
lidade. Em particular, o conjunto M munido do atlas maximal que contém
A é uma variedade diferenciável.

44
Lema 2.7.12. As seguintes afirmações a respeito de um espaço topológico
de Hausdorff são equivalentes:

(a) Toda cobertura aberta de X admite partição da unidade subordinada.

(b) X é paracompacto.

Proposição 2.7.13. Em qualquer variedade diferenciável (M n , A), valem


as seguintes propriedades a respeito da topologia induzida:

(a) Existe um atlas enumerável Ae ⊂ A.

(b) A topologia τA é metrizável.

(c) (M, τA ) é localmente compacto e localmente conexo.

(d) (M, τA ) é conexo se, e somente se, é conexo por caminhos.

45
Capítulo 3

Subvariedades

Em analogia às funções reais de uma variável real, onde a reta tangente


fornece a melhor aproximação linear para a função numa vizinhança do
ponto, é natural esperar que a diferencial de uma aplicação diferenciável
entre variedades também forneça a melhor aproximação linear para a aplica-
ção numa vizinhança do ponto em questão. A propriedade fundamental da
diferencial, como veremos, é o seu posto, e várias propriedades geométricas
podem ser obtidas a partir do estudo da diferencial.
As aplicações diferenciáveis para as quais a diferencial traduz proprieda-
des interessantes são aquelas de posto constante. Essencialmente, existem
três classes de tais aplicações: as imersões, as submersões e os mergulhos.
As imersões são os objetos essenciais na teoria de subvariedades, enquanto
que as submersões desempenham papel fundamental em certos modelos de
geometria e topologia.
O objetivo deste capítulo é o estudo de algumas propriedades de certas
variedades diferenciáveis que surgem naturalmente como subconjuntos de
outras variedades, as chamadas subvariedades. Intuitivamente, uma subva-
riedade tem a mesma natureza de uma subvariedade Euclidiana em relação
ao seu ambiente Euclidiano. O ponto de partida é a discussão de alguns teo-
remas clássicos, conhecidos como formas locais das imersões e submersões,
que serão fundamentais neste primeiro estudo das subvariedades.
O estudo de subvariedades é um universo vasto, que pode convergir para
várias direções e culminar para certos tópicos de pesquisa como as imersões
isométricas, por exemplo, onde as variedades em questão admitem algumas
estruturas adicionais. O que faremos aqui é um primeiro estudo sobre sub-
variedades. O leitor interessado em se aprofundar mais sobre o assunto pode
consultar, por exemplo, o excelente livro do J. Lee [10].

46
3.1 Aplicações de posto constante
O posto de uma aplicação linear, entre espaços vetoriais de dimensão
finita, é definido como a dimensão de sua imagem. O teorema clássico da
Álgebra Linear, conhecido como forma canônica de uma aplicação linear,
estabelece que, a menos da escolha das bases, uma aplicação linear é com-
pletamente determinada pelo seu posto e as dimensões do seu domínio e
contradomínio. Ou seja, toda aplicação linear pode ser prepresentada, ma-
tricialmente, numa forma diagonal através de escolhas apropriadas de bases
para o domínio e o contradomínio.
Considere agora duas variedades diferenciáveis M m e N n . Dados uma
aplicação diferenciável f : M → N e um ponto p ∈ M , definimos o posto de
f em p, denotado por rankf (p), como sendo o posto da diferencial df (p),
i.e., a dimensão da imagem da aplicação linear df (p). Disso decorre que o
posto de f não pode ser maior do que m nem maior do que n. Quando
f tem o mesmo posto em todos os pontos, diremos que f é uma aplicação
de posto constante. Nas seções seguintes veremos exemplos de aplicações
diferenciáveis de posto máximo.
Se f : M m → N n é uma aplicação diferenciável, então o posto de f é uma
função semicontínua inferiormente. Ou seja, se f tem posto r num ponto
p ∈ M , existe uma vizinhança U de p em M tal que o posto de f é maior ou
igual a r em U . De fato, existe uma submatriz r × r da matriz df (p), cujo
determinante é diferente de 0. Por continuidade, este mesmo determinante
é não-nulo em todos os pontos de uma vizinhança U de p. Nestes pontos, o
posto de f é, portanto, pelo menos igual a r.
O resultado seguinte é a versão para variedades do clássico teorema do
posto para aplicações entre espaços Euclidianos.

Teorema 3.1.1 (Teorema do posto). Seja f : M m → N n uma aplicação


diferenciável que tenha posto igual a r ≤ min{m, n} em todos os pontos de
M . Então, dado um ponto p ∈ M , existem cartas locais (U, ϕ) em M e
(V, ψ) em N , com p ∈ U e f (U ) ⊂ V , tais que

(ψ ◦ f ◦ ϕ−1 )(x) = (xr , 0) ∈ Rr × Rn−r ,

para todo x = (xr , xm−r ) ∈ ϕ(U ).

Demonstração. Sejam (U1 , ϕ1 ), (V1 , ψ1 ) cartas locais em M e N , respecti-


vamente, com p ∈ U1 e f (U1 ) ⊂ V1 . Disso decorre que a representação
ψ1 ◦ f ◦ ϕ−1
1 de f tem posto r em todos os pontos do aberto ϕ1 (U1 ). Pelo

47
teorema do posto em espaços Euclidianos, existem abertos W, W 0 ⊂ Rm ,
Z, Z 0 ⊂ Rn e difeomorfismos α : W → W 0 , β : Z → Z 0 , com ϕ1 (p) ∈ W ⊂
ϕ1 (U1 ) e (ψ1 ◦ f ◦ ϕ−1
1 )(W ) ⊂ Z, tais que

β ◦ (ψ1 ◦ f ◦ ϕ−1 −1
(x) = (xr , 0) ∈ Rr × Rn−r ,

1 )◦α

para todo x ∈ W 0 . Para completar a prova, basta tomar U = ϕ−1 1 (W ),


ϕ = α ◦ ϕ1 |U , V = ψ1−1 (ψ1 (V1 ) ∩ Z), ψ = β ◦ ψ1 |V e observar que
(ψ ◦ f ◦ ϕ−1 )(x) = β ◦ (ψ1 ◦ f ◦ ϕ−1 −1

1 )◦α (x),
para todo x ∈ W 0 = ϕ(U ).

Proposição 3.1.2. Dado uma aplicação diferenciável f : M m → N n , e


para cada r = 0, 1, . . . , s = min{m, n}, denotemos por Ar o interior do
subconjunto de M no qual f tem posto igual a r. Então, o conjunto
A = A0 ∪ . . . ∪ As
é aberto e denso em M .
Demonstração. Dado um aberto V ⊂ M , denotemos por s o valor máximo
do posto de f em V . Como
p 7→ rankf (p)
é uma função semicontínua inferiormente, se p ∈ V é tal que rankf (p) = s,
então existe um aberto U ⊂ V contendo p tal que rankf (q) = s, para todo
q ∈ U . Assim, U ⊂ V ∩ As ⊂ V ∩ A, logo A é denso em M .

3.2 Imersões
Uma aplicação diferenciável f : M m → N n é dita ser uma imersão no
ponto p ∈ M se a diferencial df (p) : Tp M → Tf (p) M é uma aplicação linear
injetora. Neste caso, deve-se ter m ≤ n. Se f for uma imersão em todos os
pontos de M , diremos simplesmente que f é uma imersão.
Vejamos alguns exemplos.
Exemplo 3.2.1. Um exemplo simples de imersão é a aplicação inclusão
f : Rm → Rm × Rn dada por
f (p) = (p, 0),
para todo p ∈ Rm . Como f é linear, f é diferenciável e tem-se df (p) = f ,
para todo p ∈ Rm e, sendo f injetora, segue que f é uma imersão.

48
Exemplo 3.2.2. Um exemplo de imersão que não é injetora é a curva
α : R → R2 dada por
α(t) = (t3 − t, t2 ),
para todo t ∈ R. Tem-se α0 (t) 6= (0, 0), para todo t ∈ R, e α(1) = α(−1).
Um exemplo de uma aplicação diferenciável, injetora, que não é imersão é a
ciclóide β : R → R2 dada por

β(t) = (t − sin t, 1 − cos t),

para todo t ∈ R. Observe que β 0 (t) = (0, 0), para todo t = 2kπ, k ∈ Z.

O teorema seguinte mostra que toda imersão pode ser descrita, localmen-
te, como a inclusão do Exemplo 3.2.1.

Teorema 3.2.3 (Forma local das imersões). Seja f : M m → N n uma aplica-


ção diferenciável que é uma imersão num ponto p ∈ M . Então, existem uma
carta local (U, ϕ) em M , com p ∈ U , e um difeomorfismo ξ : V → ϕ(U )×W ,
onde V ⊂ N é um aberto contendo f (U ) e W ⊂ Rn−m é um aberto contendo
0 ∈ Rn−m , tais que

(ξ ◦ f ◦ ϕ−1 )(x) = (x, 0) ∈ Rm × Rn−m ,

para todo x ∈ ϕ(U ).

Demonstração. Sejam (U, ϕ), (V, ψ) cartas locais em M e N , respectiva-


mente, com p ∈ U e f (U ) ⊂ V . Como df (p) é injetora, segue da Proposição
2.5.1 que d(ψ ◦ f ◦ ϕ−1 )(ϕ(p)) também é injetora. Pela forma local das imer-
sões em espaços Euclidianos, restringindo os domínios, se necessário, existe
um difeomorfismo η : ψ(V ) → ϕ(U ) × W , onde W ⊂ Rn−m é um aberto
contendo 0 ∈ Rn−m , tal que

η ◦ (ψ ◦ f ◦ ϕ−1 ) : ϕ(U ) → ϕ(U ) × W

é a aplicação de inclusão, i.e.,

[η ◦ (ψ ◦ f ◦ ϕ−1 )](x) = (x, 0) ∈ Rm × Rn−m ,

para todo x ∈ ϕ(U ). Agora, basta definir ξ = η ◦ ψ.

Vejamos algumas consequências.

Corolário 3.2.4. Seja f : M → N uma aplicação diferenciável. Então, o


conjunto dos pontos p ∈ M tais que f é uma imersão em p é aberto em M .

49
Demonstração. Com a notação do enunciado do Teorema 3.2.3, temos que
se f é imersão em p ∈ U então f é imersão em q, para todo q ∈ U , pois
ξ ◦ f ◦ ϕ−1 é imersão em ϕ(q), e as aplicações ϕ e ξ são difeomorfismos.

Corolário 3.2.5. Seja f : M → N uma imersão. Então, uma aplicação


g : P → M é diferenciável se, e somente se, g é contínua e a composta f ◦ g
é diferenciável.

Demonstração. Suponhamos g contínua e f ◦ g é diferenciável. Dado um


ponto p ∈ P , segue do Teorema 3.2.3 que existem uma carta local (U, ϕ) em
M , com g(p) ∈ U , e um difeomorfismo ξ : V → ξ(V ), com f (U ) ⊂ V , tais
que ξ ◦ f ◦ ϕ−1 é dada por

(ξ ◦ f ◦ ϕ−1 )(x) = (x, 0),

para todo x ∈ ϕ(U ). Como g é contínua, existe um aberto W ⊂ P contendo


p tal que g(W ) ⊂ U . Além disso, sendo f ◦ g diferenciável, para toda carta
local (Z, ψ) em P , com p ∈ Z ⊂ W , tem-se que ξ ◦(f ◦g)◦ψ −1 : ψ(Z) → ξ(V )
é diferenciável. No entanto, como

ξ ◦ (f ◦ g) ◦ ψ −1 (x) = (ξ ◦ f ◦ ϕ−1 ) ◦ (ϕ ◦ g ◦ ψ −1 )(x)




= (ϕ ◦ g ◦ ψ −1 )(x), 0 ,


segue que ϕ ◦ g ◦ ψ −1 é diferenciável, logo g é diferenciável. A recíproca segue


diretamente da regra da cadeia.

Uma aplicação diferenciável f : M → N é dita ser um mergulho se f é


uma imersão e a aplicação f : M → f (M ) é um homeomorfismo, onde f (M )
está munido da topologia induzida de N . Nem toda imersão injetora é um
mergulho (cf. Exercício 3.2.1). No entanto, temos um resultado local.

Proposição 3.2.6. Toda imersão f : M m → N n é, localmente, um mergu-


lho. Mais precisamente, todo ponto p ∈ M possui uma vizinhança aberta
U ⊂ M tal que f |U : U → N é um mergulho.

Demonstração. Basta observar que a inclusão

Rm ' Rm × {0}n−m → Rn ,

assim como qualquer restrição dessa inclusão a abertos de Rm e Rn , é um


mergulho e que, pelo Teorema 3.2.3, toda imersão é localmente representada
em cartas apropriadas por uma inclusão como essa.

50
3.3 Submersões
Uma aplicação diferenciável f : M m → N n é dita ser uma submersão no
ponto p ∈ M se a diferencial df (p) : Tp M → Tf (p) M é uma aplicação linear
sobrejetora. Neste caso, deve-se ter m ≥ n. Se f for uma submersão em
todos os pontos de M , diremos simplesmente que f é uma submersão.
Vejamos alguns exemplos.

Exemplo 3.3.1. Uma função diferenciável f : M → R é uma submersão


em p ∈ M se, e somente se, df (p) 6= 0. De fato, isso segue do fato de que
um funcional linear é sobrejetor ou nulo.

Exemplo 3.3.2. Dado uma decomposição de Rm+n em soma direta da forma


Rm+n = Rm ⊕Rn , seja π : Rm+n → Rm a projeção sobre o primeiro fator, i.e.,
π(x, y) = x. Como π é linear, tem-se dπ(x, y) = π, para todo (x, y) ∈ Rm+n .
Sendo π sobrejetora, concluímos que é uma submersão.

O teorema seguinte mostra que o Exemplo 3.3.2 é, em cartas locais apro-


priadas, o caso mais geral de uma submersão.

Teorema 3.3.3 (Forma local das submersões). Seja f : M m → N n uma


aplicação diferenciável que é uma submersão num ponto p ∈ M . Então,
dado uma carta local (V, ψ) em N , com f (p) ∈ V , existe um difeomorfismo
ξ : U → ψ(V ) × W , onde U ⊂ M é um aberto contendo p, com f (U ) ⊂ V ,
e W ⊂ Rm−n é um aberto, tais que

(ψ ◦ f ◦ ξ −1 )(x, y) = x,

para todo (x, y) ∈ ψ(V ) × W ⊂ Rn × Rm−n .

Demonstração. Sejam (U, ϕ), (V, ψ) cartas locais em M e N , respectiva-


mente, com p ∈ U e f (U ) ⊂ V . Como df (p) é sobrejetora, segue da Propo-
sição 2.5.1 que d(ψ ◦ f ◦ ϕ−1 )(ϕ(p)) também o é. Assim, pela forma local das
submersões em espaços Euclidianos, restringindo os domínios, se necessário,
existe um difeomorfismo η : ϕ(U ) → ψ(V ) × W , onde W ⊂ Rm−n é um
aberto, tal que (ψ ◦ f ◦ ϕ−1 ) ◦ η −1 : ψ(V ) × W → ψ(V ) é a aplicação projeção
sobre o primeiro fator, i.e.,

(ψ ◦ f ◦ ϕ−1 ) ◦ η −1 (x, y) = x,


para todo (x, y) ∈ ψ(V ) × W . Assim, basta considerar ξ = η ◦ ϕ.

Vejamos algumas aplicações da forma local das submersões.

51
Corolário 3.3.4. Se f : M → N é uma aplicação diferenciável, então o
conjunto dos pontos p ∈ M tais que f é submersão em p é aberto em M .
Demonstração. Com a notação do enunciado do Teorema 3.3.3, temos que
se f é submersão em p ∈ U então f é uma submersão em q, para todo
q ∈ U , pois ψ ◦ f ◦ ξ −1 é submersão em ξ(q), e as aplicações ξ e ψ são
difeomorfismos.

Corolário 3.3.5. Seja π : M → N uma submersão sobrejetora. Então, uma


aplicação f : N → P é diferenciável se, e somente se, f ◦ π é diferenciável.
Demonstração. Suponhamos que a composta f ◦ π seja diferenciável. Dado
um ponto q ∈ N , seja p ∈ M tal que π(p) = q. Como π é uma submersão,
segue do Teorema 3.3.3 que existem uma carta local (V, ψ) em N e um
difeomorfismo ξ : U → ψ(V ) × W , com π(U ) ⊂ V , tais que

(ψ ◦ π ◦ ξ −1 )(x, y) = x,

para todo (x, y) ∈ ψ(V ) × W . Além disso, como f ◦ π é diferenciável, dado


uma carta local (Z, ϕ) em P , com f (q) ∈ Z, restringindo U e V , se necessário,
temos que f (V ) ⊂ Z e

ϕ ◦ (f ◦ π) ◦ ξ −1 : ψ(V ) × W → ψ(Z)

é diferenciável. No entanto, como

ϕ ◦ (f ◦ π) ◦ ξ −1 (x, y) = (ϕ ◦ f ◦ ψ −1 ) ◦ (ψ ◦ π ◦ ξ −1 )(x, y)


= (ϕ ◦ f ◦ ψ −1 )(x),

segue que ϕ◦f ◦ψ −1 é diferenciável, logo f é diferenciável. A recíproca segue


diretamente da regra da cadeia.

3.4 Subvariedades
Nesta seção introduziremos o conceito de subvariedade. Em linhas gerais,
uma subvariedade m-dimensional de uma variedade diferenciável N n é um
subconjunto M de N tal que, em cartas locais apropriadas, a inclusão de M
em N é representada pela inclusão de Rm em Rn ,

(x1 , . . . , xm ) ∈ Rm 7→ (x1 , . . . , xm , 0, . . . , 0) ∈ Rm ⊕ Rn−m ,

ou seja, a relação entre Rm e Rn serve como um modelo para a relação


existente entre uma subvariedade e uma variedade.

52
Definição 3.4.1. Seja N n uma variedade diferenciável. Dizemos que um
subconjunto M ⊂ N é uma subvariedade m-dimensional de N se para todo
ponto p ∈ M , existe uma carta local (U, ϕ) em N , com p ∈ U , tal que

ϕ(U ∩ M ) = ϕ(U ) ∩ Rm . (3.1)

Os exemplos mais simples de subvariedades são as subvariedades Eucli-


dianas. De fato, decorre do Teorema 1.2.7 que toda subvariedade Euclidiana
M m em Rn é uma subvariedade no sentido da Definição 3.4.1.
É de se esperar que uma subvariedade M m de uma variedade diferenciável
Nn também tenha uma estrutura diferenciável. De fato, dado um ponto
p ∈ M , considere uma carta (U, ϕ) em N , com p ∈ U , satisfazendo (3.1).
Definimos uma aplicação

ϕ : M ∩ U → ϕ(U ) ∩ Rm (3.2)

pondo ϕ = ϕ|M ∩U . Com a notação acima, temos o seguinte


Teorema 3.4.2. O conjunto A formado por todas as aplicações ϕ, dadas
em (3.2), é um atlas em M , cuja topologia induzida em M coincide com
a topologia induzida pela variedade N . Além disso, a aplicação inclusão
i : M → N é um mergulho.
Demonstração. Observe inicialmente que ϕ é bijetora e seu contra-domínio
ϕ(U ) ∩ Rm é aberto em Rm , logo (U ∩ M, ϕ) é uma carta local em M . Se
(U, ϕ), (V, ψ) são cartas em N , com p ∈ U ∩ V , satisfazendo (3.1), então os
conjuntos

ϕ ((U ∩ M ) ∩ (V ∩ M )) = ϕ ((U ∩ V ) ∩ (V ∩ M ))
= ϕ(U ∩ V ) ∩ Rm

ψ ((U ∩ M ) ∩ (V ∩ M )) = ψ ((U ∩ V ) ∩ (U ∩ M ))
= ψ(U ∩ V ) ∩ Rm

são abertos em Rm , pois ϕ(U ∩ V ) e ψ(U ∩ V ) são abertos em Rn . Além


disso, a aplicação de transição

ψ ◦ ϕ−1 : ϕ(U ∩ V ) ∩ Rm → ψ(U ∩ V ) ∩ Rm

é uma restrição da aplicação de transição ψ ◦ ϕ−1 e é, portanto, um difeo-


morfismo. Portanto, o conjunto A, formado por todas tais aplicações ϕ, é

53
um atlas em M . Afirmamos que a topologia τA , induzida em M pelo atlas
A, coincide com a topologia τ , induzida em M pela variedade N . De fato,
dado uma carta (U, ϕ) em N , satisfazendo (3.1) então, relativamente a τ , o
conjunto U ∩ M é aberto em M e a carta ϕ é um homeomorfismo, pois é
restrição de um homeomorfismo. Logo a topologia τ faz com que os elementos
de A sejam homeomorfismos definidos em abertos de M , o que mostra que
as topologias τ e τA coincidem. Em relação à aplicação inclusão i : M → N ,
se (U, ϕ) é uma carta em N satisfazendo (3.1), temos que i(U ∩ M ) ⊂ U e
a representação ei : ϕ(U ) ∩ Rm → ϕ(U ) de i em relação às cartas ϕ e ϕ é a
inclusão do aberto ϕ(U ) ∩ Rm de Rm no aberto ϕ(U ) de Rn . Logo, ei é uma
imersão e, portanto,
i|U ∩M = ϕ−1 ◦ ei ◦ ϕ
é uma imersão, já que ϕ e ϕ são difeomorfismos. Como U ∩ M é uma
vizinhança aberta de p em M e p é um ponto arbitrário de M , segue que
i é uma imersão. Finalmente, para mostrar que i é um homeomorfismo
sobre sua imagem, basta provar que a aplicação identidade Id : M → M
é um homeomorfismo, onde o domínio de Id é munido da topologia τA e o
contra-domínio de Id é munido da topologia τ . Como ambas as topologias
coincidem, segue que Id é de fato um homeomorfismo.

O corolário seguinte é conhecido como o teorema da mudança de contra-


domínio.

Corolário 3.4.3. Sejam M , N variedades diferenciáveis, f : M → N uma


aplicação e P ⊂ N uma subvariedade tal que f (M ) ⊂ P . Seja fe : M → P a
aplicação que difere de f apenas no contra-domínio. Então, f é diferenciáel
se, e somente se, fe é diferenciável.

Demonstração. Denotando por i : P → N a aplicação inclusão, temos que


f = i ◦ fe, i.e., o diagrama abaixo

: NO
f
i
fe
M /P

comuta. Suponha que f seja diferenciáel. Como i : P → N é um mergulho


segue, em particular, que i : P → i(P ) é um homeomorfismo. Logo, como
f = i ◦ fe e f é contínua, segue que fe é contínua. Portanto, pelo Corolário
3.2.5, segue que fe é diferenciáel. A recíproca segue da regra da cadeia.

54
Exemplo 3.4.4. Seja W um aberto de uma variedade diferenciável M n . Se
(U, ϕ) é uma carta local em M , com U ⊂ W , temos:

ϕ(U ∩ W ) = ϕ(U ) = ϕ(U ) ∩ Rn .

Isso mostra que W é uma subvariedade n-dimensional de M . A carta ϕ em


W , correspondente à carta (U, ϕ), é igual a ϕ. Logo, a estrutura diferen-
ciável induzida por M na subvariedade W , no sentido do Teorema 3.4.2, é
constituída pelas cartas de M com domínio contido em W , ou seja, coincide
com a estrutura diferenciável que M induz no subconjunto aberto W .
Exemplo 3.4.5. Seja W um subespaço vetorial de um espaço vetorial V de
dimensão n. Seja ϕ : V → Rn um isomorfismo linear tal que ϕ(W ) = Rm ,
onde m = dim(W ). Então (V, ϕ) é uma carta local em V que satisfaz (3.1),
logo W é uma subvariedade de V . A carta ϕ = ϕ|W : W → Rm em W ,
associada a ϕ, é um isomorfismo linear e, portanto, a estrutura diferenciável
induzida em W por V coincide com a estrutura diferenciável usual do espaço
vetorial W .

3.5 Mergulhos
Como vimos na Seção 3.2, um mergulho de uma variedade M sobre
outra variedade N é uma aplicação que é, ao mesmo tempo, um mergulho
topológico e uma imersão diferenciável, e que se relaciona fortemente com
o conceito de subvariedade. O objetivo desta seção é estudar condições
necessárias e suficientes para que a imagem de uma variedade M por uma
imersão f : M → N seja uma subvariedade em N .
Teorema 3.5.1. Seja f : M m → N n uma imersão. Então, f (M ) é uma
subvariedade de N se, e somente se, f : M → f (M ) é uma aplicação aberta
em relação à topologia induzida em f (M ).
Demonstração. Se f (M ) é uma subvariedade de N então, pelo Corolário
3.4.3, f : M → f (M ) é uma imersão e, portanto, um difeomorfismo local.
Em particular, f : M → f (M ) é uma aplicação aberta. Reciprocamente,
pelo Teorema 3.2.3, para cada p ∈ M , existem uma carta local (U, ϕ) em M ,
com p ∈ U , e um difeomorfismo ψ : V → ϕ(U ) × W tal que

(ψ ◦ f ◦ ϕ−1 )(x) = (x, 0),

para todo x ∈ ϕ(U ). Segue então que

ψ(f (U )) = ϕ(U ) ⊂ Rm ⊂ Rn .

55
Como f : M → f (M ) é aberta, temos que f (U ) é um aberto relativo a f (M )
e, portanto, existe um aberto Ve em N tal que f (U ) = Ve ∩ f (M ). Podemos
supor então, sem perda de generalidade, que Ve = V . Assim,

ψ(V ∩ f (M )) = ψ(f (U ))
= (ψ ◦ f ◦ ϕ−1 )(ϕ(U ))
= ψ(V ) ∩ Rm ,

mostrando que f (M ) é uma subvariedade de N .

Corolário 3.5.2. Se f : M m → N n é um mergulho, então f (M ) é uma


subvariedade de N e f : M → f (M ) é um difeomorfismo.

Demonstração. Em virtude do Teorema 3.5.1, temos que f (M ) é uma sub-


variedade de N e f : M → f (M ) é um homeomorfismo diferenciável. Resta
provar que f −1 é diferenciável. Dado p ∈ M , seja ψ : V ∩f (M ) → ψ(V )∩Rm
a carta em f (M ) correspondente à carta (V, ψ) em N , com f (p) ∈ V , como
no Teorema 3.5.1. Como

f (U ) = V ∩ f (M ),

faz sentido considerar a representação de f −1 : f (M ) → M em relação às


cartas ψ e ϕ. Essa representação é igual à aplicação identidade do aberto
ϕ(U ). Assim, f −1 é diferenciável na vizinhança aberta V ∩ f (M ) de f (p)
em f (M ). Como p ∈ M foi escolhido de forma arbitrária, concluímos que
f −1 : f (M ) → M é diferenciável.

Corolário 3.5.3. Um subconjunto M de uma variedade diferenciável N é


uma subvariedade de N se, e somente se, for imagem de um mergulho.

Demonstração. Toda subvariedade de N é imagem de sua própria inclusão


que, em virtude do Teorema 3.4.2, é um mergulho. A recíproca segue dire-
tamente do Corolário 3.5.2.

Finalizaremos essa seção relacionando o espaço tangente a uma subva-


riedade com o espaço tangente da variedade ambiente. Mais precisamente,
dados uma subvariedade M de uma variedade diferenciável N e um ponto
p ∈ M , queremos saber a relação existente entre o espaço tangente Tp M e
o espaço tangente Tp N . É natural esperar que Tp M seja um subespaço de
Tp N , assim como ocorre ao espaço tangente de uma subvariedade Euclidi-
ana M em Rn , que é um subespaço de Rn . A questão é que Tp M não é

56
exatamente um subespaço de Tp N , mas apenas naturalmente isomorfo a um
subespaço de Tp N .
No espaço tangente, construído usando curvas segunda a Definição 2.4.2,
um elemento de Tp M é determinado por uma classe de equivalência de uma
curva γ em M passando por p; tal curva γ também determina uma classe
de equivalência que é um elemento de Tp N . No entanto, as classes de equi-
valência determinadas por γ vista como curva em M e vista como curva em
N não coincidem; existem curvas em N que são tangentes a γ mas que não
são curvas em M .
Identificaremos Tp M com um subespaço de Tp N da seguinte forma. Se
i : M → N denota a aplicação inclusão então, para todo p ∈ M , identifica-
remos o espaço tangente Tp M com a imagem da diferencial di(p) através da
diferencial
di(p) : Tp M → Ti(p) N.
Note que, como i é um mergulho e, em particular, uma imersão, temos que
di(p) é injetora e é, portanto, um isomorfismo sobre sua imagem. Trabalha-
remos então como se Tp M fosse um subespaço de Tp N e como se a diferencial
di(p) : Tp M → Tp N fosse a aplicação inclusão de Tp M em Tp N .

3.6 Valores regulares


No Capítulo 1 vimos que pré-imagem de valor regular, através de apli-
cações diferenciáveis, são subvariedades Euclidianas. É natural esperar que
esta propriedade também ocorra no contexto de variedades diferenciáveis, e é
o que veremos nesta seção. O resultado seguinte é uma aplicação simples do
teorema do posto, mas que é útil para encontrar exemplos de subvariedades.
Teorema 3.6.1. Seja f : M m → N n uma aplicação diferenciável com posto
constante e igual a r em todos os pontos de M , com r ≤ min{m, n}. Então,
para cada ponto q ∈ f (M ), o conjunto f −1 (q) é uma subvariedade fechada
de M de dimensão igual a m − r.
Demonstração. O conjunto f −1 (q) é fechado em M pois é a imagem inversa
do fechado {q} em N por uma aplicação contínua. Dado p ∈ f −1 (q), segue do
Teorema 3.1.1 que existem cartas (U, ϕ), (V, ψ) em M e N , respectivamente,
com p ∈ U , ϕ(p) = 0, f (U ) ⊂ V e ψ(q) = 0, tais que

(ψ ◦ f ◦ ϕ−1 )(x) = (xr , 0) ∈ Rr × Rn−r ,

para todo x = (xr , xm−r ) ∈ ϕ(U ). Disso decorre que os únicos pontos de U
que são transformados em q por f são aqueles cujas r primeiras coordenadas

57
são zero, i.e.,

U ∩ f −1 (q) = ϕ−1 (ψ ◦ f ◦ ϕ−1 )−1 (0)




= ϕ−1 {x ∈ ϕ(U ) : x1 = . . . = xr = 0} .


Isso significa que


ϕ(U ∩ f −1 (q)) = ϕ(U ) ∩ Rm−r ,
mostrando que f −1 (q) é subvariedade de M de dimensão m − r.

Como consequência direta do Teorema 3.6.1, temos o seguinte

Corolário 3.6.2. Se n ≤ m e o posto de f é constante e igual a n em todo


ponto de f −1 (q), então f −1 (q) é uma subvariedade fechada de M .

O teorema seguinte é o resultado análogo à Proposição 1.2.1 para subva-


riedades Euclidianas e, assim como o Teorema 3.6.1, nos dá um método de
obter subvariedades que são pré-imagens de valores regulares.

Teorema 3.6.3. Considere uma aplicação diferenciável f : M m → N n e


c ∈ N um valor regular de f . Então, o conjunto f −1 (c) é uma subvariedade
de M de dimensão m − n e, para todo p ∈ f −1 (c), tem-se:

Tp f −1 (c) = ker(df (p)).

Demonstração. Dado um ponto p ∈ f −1 (c), segue do Teorema 3.3.3 que exis-


tem uma carta local (V, ψ) em N , com c ∈ V e ψ(c) = 0, e um difeomorfismo
ϕ : U → ψ(V ) × W , com p ∈ U e f (U ) ⊂ V , tais que

(ψ ◦ f ◦ ϕ−1 )(x1 , . . . , xm ) = (x1 , . . . , xn ), (3.3)

para todo (x1 , . . . , xn , xn+1 , . . . , xm ) ∈ ϕ(U ). Temos:

ϕ(U ∩ f −1 (c)) = (ψ ◦ f ◦ ϕ−1 )−1 (0) = ϕ(U ) ∩ {0}n × Rm−n .




Seja T : Rm → Rm um isomorfismo linear que transforma o subespaço


{0}n × Rm−n sobre Rm−n ⊂ Rm . Então, T ◦ ϕ : U → T (ϕ(U )) é uma carta
em M que satisfaz

(T ◦ ϕ)(U ∩ f −1 (c)) = T ϕ(U ) ∩ ({0}n × Rm−n )




= T (ϕ(U )) ∩ Rm−n ,

ou seja, T ◦ ϕ é uma carta local em M satisfazendo (3.1). Isso mostra que


f −1 (c) é uma subvariedade (m − n)-dimensional de M . Além disso, como ϕ

58
é um difeomorfismo que transforma U ∩ f −1 (c) sobre ϕ(U ) ∩ ({0}n × Rm−n ),
temos que dϕ(p) transforma o espaço tangente a U ∩ f −1 (c) no ponto p, que
é igual a Tp f −1 (c), sobre o espaço tangente a ϕ(U )∩({0}n ×Rm−n ) no ponto
ϕ(p), que é igual a {0}n × Rm−n . Ou seja,
dϕ(p) Tp f −1 (c) = {0}n × Rm−n .

(3.4)
Diferenciando (3.3) no ponto ϕ(p), obtemos:
dψ(f (p)) ◦ df (p) ◦ dϕ(p)−1 (v1 , . . . , vm ) = (v1 , . . . , vn ),


para todo (v1 , . . . , vm ) ∈ Rm . Assim,


ker dψ(f (p)) ◦ df (p) ◦ dϕ(p)−1 = {0}n × Rm−n .

(3.5)
Como dψ(f (p)) e dϕ(p) são isomorfismos, temos:
ker dψ(f (p)) ◦ df (p) ◦ dϕ(p)−1 = ker df (p) ◦ dϕ(p)−1
 
(3.6)
= dϕ(p) (ker(df (p))) .
De (3.5) e (3.6), obtemos
dϕ(p) (ker(df (p))) = {0}n × Rm−n .
Comparando com (3.4), obtemos então
dϕ(p) Tp f −1 (c) = dϕ(p) (ker(df (p))) ,


o que implica que Tp f −1 (c) = ker(df (p)).

O corolário seguinte, embora seja uma aplicação direta do Teorema 3.6.3,


será útil no que segue.
Corolário 3.6.4. Sejam f : M n → N n uma aplicação diferenciável, onde
M é uma variedade compacta, e q ∈ N um valor regular para f . Então,
S = f −1 (q) é um subconjunto finito de M .
Demonstração. Em virtude do Teorema 3.6.3, S é uma subvariedade de M
de dimensão 0, logo é um conjunto discreto. Além disso, como S é fechado
em M , e M é compacta, S também é compacta e, portanto, finito.

Dados uma aplicação diferenciável f : M n → N n , com M compacta, e


q ∈ N um valor regular para f , denotaremos por #f −1 (q) a cardinalidade do
conjunto f −1 (q), que é finita em virtude do Corolário 3.6.4. Se denotarmos
por Reg(f ) o subconjunto de N formado por todos os valores regulares de
f , podemos considerar a função
q ∈ Reg(f ) 7→ #f −1 (q). (3.7)

59
Lema 3.6.5. A função dada em (3.7) é localmente constante.
Demonstração. Denotemos por p1 , . . . , pk os pontos do conjunto f −1 (q).
Pelo teorema da aplicação inversa, existem abertos U1 , . . . , Uk ⊂ M , com
pi ∈ Ui , que podemos supor dois a dois disjuntos, que são transformados
difeomorficamente por f sobre abertos V1 , . . . , Vk em N . Considere então o
subconjunto
 
V = V1 ∩ . . . ∩ Vk \f M \{U1 ∪ . . . ∪ Uk }

de N , com q ∈ V . Para cada y ∈ V , tem-se #f −1 (y) = #f −1 (q).

Podemos usar o Lema 3.6.5 para provar o teorema fundamental da Álge-


bra. A prova apresentada aqui é, essencialmente, aquela de Milnor [12].
Teorema 3.6.6 (Teorema fundamental da Álgebra). Todo polinômio não-
constante P : C → C admite uma raiz.
Demonstração. A ideia da prova consiste em transferir o problema do plano
complexo C para a esfera S2 ⊂ R3 , que é uma superfície compacta. Para isso,
considere a projeção estereográfica πN : S2 \{N } → R2 relativa ao polo norte
N = (0, 0, 1), onde identificaremos R2 ' C com o subespaço R2 × {0} ⊂ R3 .
Escrevendo P (z) = an z n + . . . + a1 z + a0 , com an 6= 0, denotemos por f o
levantamento de P à esfera S2 , i.e., f : S2 → S2 é a aplicação dada por
−1
 
πN ◦ P ◦ πN (x), x 6= N
f (x) = .
N, x=N
Observe que f é diferenciável em todo ponto x 6= N . Mostremos que f
também é diferenciável no ponto N . Para isso, considere a projeção estereo-
gráfica πS : S2 \{S} → R2 relativa ao polo sul S = (0, 0, −1). Note que πS é
uma parametrização para S2 . Assim, f será diferenciável no ponto N se, e
somente se, a representação πS ◦f ◦πS−1 de f em relação a πS for diferenciável
em z = 0. Para z 6= 0 e usando as expressões de πN e πS , obtemos:
1
πN ◦ πS−1 (z) = = πS ◦ πN
−1
 
(z).
z
Assim, a representação de f na parametrização πS é dada por
zn
πS ◦ f ◦ πS−1 (z) =

(3.8)
an + . . . + a1 z n−1 + a0 z n
e

πS ◦ f ◦ πS−1 (0) = 0.

(3.9)

60
Note que (3.8) também está definida em z = 0, pois an 6= 0. Isso mostra
que f é diferenciável no ponto N , pois (3.8) é diferenciável. Observe agora
que f tem somente um número finito de pontos críticos. De fato, a aplica-
ção f deixa de ser um difeomorfismo local, em Pvirtude da regra da cadeia,
somente nos zeros da derivada de P , P = 0 kak z k−1 , e estes zeros são
em quantidade finita, pois P 0 não é identicamente nulo. Denotemos por X
o conjunto dos pontos críticos de f e seja Y = f (X). Assim, o conjunto
Reg(f ) = S2 \Y é conexo. Portanto, em virtude do Lema 3.6.5, a função
(3.7) é constante em todo o conjunto S2 \Y . No entanto, esta constante não
pode ser a identicamente nula, pois o polinônio P não é constante. Disso de-
corre que S2 \Y ⊂ f (S2 \X) e, portanto, f é sobrejetora. Logo, existe z ∈ C
tal que P (z) = 0, provando o teorema.

61
3.7 Exercícios
3.1
1. Seja f : M → N uma aplicação diferenciável e suponha M conexa. Prove
que as seguintes afirmações são equivalentes.

(a) Para cada ponto p ∈ M , existem cartas locais contendo p e f (p), para
as quais a correspondente representação de f é linear.

(b) f tem posto constante.

3.2
1. Considere a curva α : (−1, +∞) → R2 dada por α(t) = (t3 − t, t2 ).
Verifique que f é uma imersão injetora, mas não é um mergulho.

2. Encontrar uma imersão f : R → R2 e uma função descontínua g : R → R


tais que f ◦ g seja diferenciável.

3. Seja f : M m → N n uma aplicação diferenciável. Prove que:

(a) Se f é injetora, então m ≤ n e o conjunto dos pontos nos quais f tem


posto m é aberto e denso em M .

(b) Se f é aberta, então m ≥ n e o conjunto dos pontos nos quais f tem


posto n é aberto e denso em M .

2. Seja f : M → N uma imersão. Prove que, para todo p ∈ M , existem


abertos U ⊂ M e V ⊂ N , com p ∈ U e f (U ) ⊂ V , de modo que a aplicação
f |U : U → V admite uma inversa à esquerda g : V → U diferenciável.

3. Sejam (M, τ ) um espaço topológico, N uma variedade diferenciável e


f : M → N uma aplicação contínua. Prove que existe, no máximo, uma
estrutura diferenciável A em M que torna f uma imersão, com τA = τ .

3.3
1. Sejam M , N , P variedades diferenciáveis, π : M → N uma submersão
sobrejetora, f : M → P uma aplicação diferenciável e f : N → P uma
aplicação tal que f ◦ π = f . Prove que f é diferenciável.

2. Prove que toda submersão f : M → N , com M compacta e N conexa, é


sobrejetora.

62
3. Prove que a aplicação quociente π : Rn+1 \{0} → RP n é uma submersão.

4. Seja M n uma variedade diferenciável compacta. Prove que não existe


submersão f : M n → Rk , para qualquer k ≥ 1.

5. Sejam X um espaço topológico, Y um conjunto e π : X → Y uma


aplicação.

(a) Prove que a coleção τ = {U ⊂ Y : π −1 (U ) é aberto em X} é uma


topologia1 em Y .

(b) Prove que se Y é munido da topologia co-induzida por π então


π : X → Y é contínua.

(c) Assuma que Y é munido da topologia co-induzida por π. Sejam Z


um espaço topológico e f : X → Z, f : Y → Z aplicações tais que o
diagrama
X
f
π
 $/
Y Z
f

comuta. Prove que f é contínua se, e somente se, f é contínua.

6. Sejam X, Y espaço topológicos e π : X → Y uma aplicação. Prove que:

(a) Se π é contínua, aberta e sobrejetora então π é uma aplicação quociente.

(b) Se π é contínua, fechada e sobrejetora então π é uma aplicação quoci-


ente.

(c) Se X é compacto, Y é Hausdorff e π é contínua e sobrejetora então π


é uma aplicação quociente.

7. O objetivo deste exercício é provar que toda submersão é uma aplicação


aberta.

(a) Sejam X, X,e Y , Ye espaços topológicos, ϕ : X → X,


e ψ : Y → Ye
homeomorfismos e f : X → Y uma aplicação. Prove que se ψ ◦ f ◦ ϕ−1
é uma aplicação aberta então f também é uma aplicação aberta.
1
A topologia τ é chamada a topologia co-induzida por π em Y ; quando Y é munido da
topologia co-induzida por π diz-se também que π é uma aplicação quociente.

63
(b) Seja X, Y espaços topológicos e f : X → Y uma aplicação. Suponha
que para todo x ∈ X existem abertos U ⊂ X e V ⊂ Y , com x ∈ U
e f (U ) ⊂ V , de modo que f |U : U → V seja uma aplicação aberta.
Prove que f é uma aplicação aberta.

(c) Prove que a projeção (x1 , . . . , xm ) ∈ Rm 7→ (x1 , . . . , xn ) ∈ Rn é uma


aplicação aberta.

(d) Use o Teorema 3.3.3 e os itens anteriores para concluir que toda sub-
mersão é uma aplicação aberta.

8. Prove que toda submersão sobrejetora é uma aplicação quociente.

3.4
1. Prove que o gráfico de uma aplicação diferenciável f : M m → N n é uma
subvariedade m-dimensional de M × N .

2. Sejam f : M → N um difeomorfismo e P uma subvariedade de M . Prove


que f (P ) é uma subvariedade de N , f |P : P → f (P ) é um difeomorfismo e
Tf (p) f (P ) = df (p)(Tp P ), para todo p ∈ P .

3. Dado uma aplicação diferenciável f : M → N prove que, para todo


p ∈ M , o espaço tangente ao gráfico de f no ponto (p, f (p)) coincide com o
gráfico de df (p).

4. Sejam N uma variedade diferenciável e M ⊂ N um subconjunto discreto,


i.e., a topologia induzida em M por N é discreta. Prove que M é uma
subvariedade 0-dimensional de N .

5. Prove que o conjunto

M = {(x, y) ∈ R2 : x4 = y 3 }

é uma curva de classe C 1 em R2 , mas não é de classe C 2 .

6. Dado uma aplicação diferenciável f : M → N , considere subvariedades


P ⊂ M e Q ⊂ N , com f (P ) ⊂ Q. Denote por fe : P → Q a restrição de f às
subvariedades P e Q. Prove que fe é diferenciável e dfe(p) : Tp P → Tf (p) Q é
a restrição de df (p) : Tp M → Tf (p) N a Tp P , para todo p ∈ P .

64
3.5
1. Prove que se f : M → N é uma imersão injetora, com M compacta, então
f é um mergulho.

2. Se f : M → N é um mergulho, prove que

Tf (p) f (M ) = Im(df (p)),

para todo p ∈ M .

3. Seja f : M → N uma aplicação diferenciável que admite uma inversa à


esquerda diferenciável. Prove que f é um mergulho.

4. A aplicação f : R → R2 definida por

f (t) = (2 cos t + t, sin t),

é um mergulho? Justifique.

65
Capítulo 4

O teorema de Sard

O objetivo deste capítulo é discutir o teorema de Sard no contexto de


variedades diferenciáveis, o qual afirma que a imagem do conjunto dos pontos
críticos, através de uma aplicação diferenciável, tem medida nula. Trata-
se de um resultado importante em topologia diferencial, principalmente no
estudo de certas propriedades que são preservadas por difeomorfismos entre
variedades.
O que está por trás do teorema de Sard é a noção de conjunto de medida
nula, usualmente definida em Rn , mas que se extende naturalmente a uma
variedade diferenciável. Tais conjuntos são pequenos em relação ao ambi-
ente, no sentido que possuem volume suficientemente pequeno, e que são
considerados também em outros assuntos, como na teoria de integração, por
exemplo.
Como aplicação do teorema de Sard, introduziremos o conceito de trans-
versalidade que discute, essencialmente, a questão da interseção de subva-
riedades. Em álgebra linear, por exemplo, a interseção de dois subespaços
de um espaço vetorial é sempre outro subespaço vetorial. O anĺogo, para
o contexto de subvariedades, não é verdade em geral; é relativamente sim-
ples encontrar exemplos de subvariedades cuja interseção não é subvariedade
(cf. Exercício 4.3.1). No entanto, com uma hipótese adicional adequada, é
possível provar, como veremos, que a interseção também é subvariedade.

4.1 Conjuntos de medida nula


Nesta seção iremos apenas apresentar as propriedades básicas dos con-
juntos de medida nula em Rn . Além disso, veremos que podemos extender
naturalmente essas ideias para o contexto de variedades diferenciáveis. O

66
leitor interessado em se aprofundar mais sobre o assunto pode consultar os
livros do E. Lima [11] ou J. Lee [10].
Dizemos que um subconjunto X ⊂ Rn tem medida nula em Rn , e escre-
vemos µ(X) = 0, se para cada  > 0 dado, é possível obter uma sequência
de cubos abertos C1 , C2 , . . . , Ck , . . . em Rn tais que

[ ∞
X
X⊂ Ck e vol(Ck ) < .
k=1 k=1

Existem várias propriedades importantes acerca dos conjuntos de me-


dida nula. Apresentamos apenas algumas delas, que serão usadas quando
necessário. Para maiores detalhes, o leitor pode consultar [11].

Proposição 4.1.1. São válidas as seguintes propriedades:

(a) Todo subconjunto de um conjunto de medida nula também tem medida


nula.

(b) Qualquer união enumerável de conjuntos de medida nula ainda é um


conjunto de medida nula.

(c) Se f : U → Rn é uma aplicação diferenciável, definida no aberto


U ⊂ Rn , e X ⊂ U tem medida nula em Rn , então f (X) também
tem medida nula em Rn .

(d) Se m < n e f : U → Rn é uma aplicação diferenciável, definida no


aberto U ⊂ Rm , então f (U ) tem medida nula em Rn . Em particular,
Rm tem medida nula em Rn .

Dizemos que um subconjunto X ⊂ Rn é localmente de medida nula em


Rn se, para cada x ∈ X, existe um aberto Vx em Rn , contendo o ponto x,
tal que µ(Vx ∩ X) = 0. Observe que, da cobertura aberta X ⊂ ∪Vx extrai-
mos, pelo teorema de Lindelöf (cf. [16, Theorem 30.3]), uma subcobertura
enumerável X ⊂ ∪Vk , logo X = ∪(Vk ∩ X) é uma união enumerável de con-
juntos de medida nula e, portanto, µ(X) = 0. Assim, um conjunto X ⊂ Rn
é localmente de medida nula se, e somente se, tem medida nula.

Exemplo 4.1.2. Seja M m uma subvariedade Euclidiana em Rn , com m < n.


Dado uma parametrização ϕ : U → ϕ(U ) de M , a vizinhança coordenada
ϕ(U ) ⊂ M tem, em virtude da Proposição 4.1.1, medida nula em Rn . Como
ϕ(U ) = A ∩ M , para algum aberto A de Rn , segue que M é localmente de
medida nula e, assim, M m tem medina nula em Rn .

67
O que faremos agora é estender a noção de conjuntos de medida nula
para variedades diferenciáveis.

Definição 4.1.3. Dizemos que um subconjunto X de uma variedade dife-


renciável M n tem medida nula em M se, para toda carta local (U, ϕ) de M ,
o subconjunto ϕ(X ∩ U ) ⊂ Rn tem medida nula em Rn .

O lema seguinte garante que, a fim de verificar a condição da Definição


4.1.3, basta verificar numa coleção de cartas locais de M , cujos domínimos
realizam uma cobertura para o conjunto X.

Lema 4.1.4. Considere um subconjunto X de uma variedade diferenciável


M n . Suponha que para alguma coleção {(Uα , ϕα ) : α ∈ I} de cartas locais
em M , cujos domínios cobrem X, o conjunto ϕα (X ∩ Uα ) tem medida nula
em Rn , para todo α ∈ I. Então X tem medida nula em M .

Demonstração. Dado uma carta local (V, ψ) em M , devemos provar que


ψ(X ∩ V ) tem medida nula em Rn . Alguma subcoleção enumerável dos
abertos Uα cobre X ∩ V . Para cada tal aberto Uα , temos

ψ(X ∩ V ∩ Uα ) = (ψ ◦ ϕ−1
α ) ◦ ϕα (X ∩ V ∩ Uα ).

Observe que ϕα (X ∩ V ∩ Uα ) é subconjunto de ϕα (X ∩ Uα ), que tem medida


nula em Rn , por hipótese. Pela Proposição 4.1.1 aplicada a ψ ◦ ϕ−1
α , segue
n
que ϕα (X ∩ V ∩ Uα ) tem medida nula em R . Como ψ(X ∩ V ) pode ser
expresso como união enumerável de tais conjuntos, concluimos que ψ(X ∩ V )
tem medida nula em Rn , como queríamos.

Os conjuntos de medida nula em uma variedade diferenciável satisfazem


propriedades análogas daquelas dos conjuntos de medida nula do espaço
Euclidiano. O resultado seguinte é consequência direta da Proposição 4.1.1
usando-se parametrizações para as variedades M e N .

Proposição 4.1.5. Dado uma aplicação diferenciável f : M m → N n , valem


as seguintes propriedades:

(a) Se m = n e X ⊂ M é um subconjunto de medida nula em M , então


f (X) tem medida nula em N .

(b) Se m < n, então f (M ) tem medida nula em N . Em particular, qual-


quer que seja o subconjunto X ⊂ M , o conjunto f (X) tem medida
nula em N .

68
4.2 O teorema de Sard
Nesta seção apresentaremos o clássico teorema de Sard a respeito dos
valores regulares de uma aplicação diferenciável f : M → N , que afirma
que o conjunto de tais pontos é sempre denso na variedade N . O teorema
seguinte foi provado por A. Morse [14], para o caso n = 1, e por A. Sard [17],
para o caso geral.
Teorema 4.2.1 (Sard). Dado uma aplicação diferenciável f : M m → N n ,
denotemos por S o conjunto dos pontos p ∈ M tais que a diferencial df (p)
não é sobrejetora. Então f (S) tem medida nula em N .
O conjunto S, como no enunciado do Teorema 4.2.1, é precisamente o
conjunto dos pontos críticos de f . Note que, em virtude da Proposição
4.1.5, o conjunto f (S) tem medida nula em N sempre que m < n. Assim,
basta considerar o caso em que m ≥ n. Dado um ponto arbitrário p ∈ S,
considere cartas locais (U, ϕ), (V, ψ) em M e N , respectivamente, com p ∈ U
e f (U ) ⊂ V . A fim de provar que f (S) tem medida nula em N , é suficiente
mostrar que f (S ∩U ) tem medida nula em N , visto que é possível exibir uma
cobertura aberta para S através de domínios de cartas locais de M . Além
disso, temos:

µ(f (S ∩ U )) = 0 em N ⇔ µ(ψ(f (S ∩ U ))) = 0 em Rn


⇔ µ(fe(ϕ(S ∩ U ))) = 0 em Rn ,

onde fe = ψ ◦ f ◦ ϕ−1 denota a representação de f em relação às cartas ϕ e


ψ. Dessa forma, o teorema de Sard para variedades diferenciáveis se reduz
ao caso Euclidiano.
A prova do teorema, por ser relativamente técnica, pode ser omitida
numa primeira leitura. O leitor interessado pode consultar [10, Theorem
6.10].
Teorema 4.2.2. Dado uma aplicação diferenciável f : U → Rn , definida
no aberto U ⊂ Rm , denotemos por S o conjunto dos pontos x ∈ U tais que
df (x) não é sobrejetora. Então f (S) tem medida nula em Rn .
Uma consequência direta do teorema de Sard é o seguinte
Corolário 4.2.3. O conjunto Reg(f ) é sempre denso em N .
Demonstração. De fato, se existisse um aberto V ⊂ N que não intercepta
Reg(f ), o conjunto V seria constituído somente de valores críticos e não teria
medida nula em N , contradizendo o teorema de Sard.

69
Corolário 4.2.4. O conjunto dos pontos q ∈ N para os quais f −1 (q) é
subvariedade de M é denso em N .

4.3 Transversalidade
Nesta seção estudaremos sob que condições a pré-imagem de uma subva-
riedade, através de uma aplicação diferenciável, também é uma subvariedade.
No caso particular em que a subvariedade reduz-se a um ponto basta, em
virtude do Teorema 3.6.3, que este ponto seja valor regular para a aplicação.
O que faremos agora é estender essa noção de regularidade.
Definição 4.3.1. Sejam f : M → N uma aplicação diferenciável e P uma
subvariedade de N . Dizemos que f é transversal à subvariedade P se, para
cada ponto p ∈ f −1 (P ), tem-se

Tf (p) N = df (p)(Tp M ) + Tf (p) P. (4.1)

A equação (4.1) significa que todo vetor tangente à variedade N no ponto


f (p) se expressa como soma de um vetor tangente à subvariedade P em f (p)
e um vetor tangente à imagem de M através de df (p).
Casos triviais de transversalidade ocorrem, por exemplo, quando P = N
ou f (M ) ∩ P = ∅. Por outro lado, a transversalidade impõe algumas restri-
ções nas dimensões das variedades. Por exemplo, se dim M < dim N −dim P ,
então f não pode ser transversal a P , a menos que f (M ) ∩ P = ∅.
O resultado seguinte é uma extensão do Teorema 3.6.3.
Teorema 4.3.2. Sejam f : M m → N n uma aplicação diferenciável e P k
uma subvariedade de N n , com f −1 (P ) 6= ∅. Se f é transversal a P , então
f −1 (P ) é uma subvariedade de M m , cuja codimensão é n − k.
Demonstração. A ideia da prova é escrever f −1 (P ) como pré-imagem de
valor regular de uma outra aplicação diferenciável. A menos de cartas locais,
podemos assumir que f é da forma f : Rm → Rn , e P é uma subvariedade
Euclidiana de dimensão k em Rn . Fixemos um ponto p ∈ P e seja x ∈
f −1 (p). Assim, existe um aberto V de Rn , com p ∈ V , e um difeomorfismo
ξ : V → ξ(V ) tais que ξ(P ∩ V ) = ξ(V ) ∩ Rk , ou seja,

ξ(P ∩ V ) = Rk × {0}n−k .

Seja π : Rn → Rn−k a projeção canônica sobre o segundo fator. Note que

π(ξ(P ∩ V )) = 0 ∈ Rn−k

70
e

d(π ◦ ξ)(p)(Tp P ) = 0, (4.2)

onde estamos identificando Tp P ' dξ(p)(Tp P ). Considere agora a aplicação


h : Rm → Rn−k definida por h = π ◦ (ξ ◦ f ). Pela regra da cadeia e usando
(4.2), obtemos

dh(x)(Rm ) = π dξ p)(df (x)(Rm )



(4.3)
= π dξ(p) df (x)(Rm ) + Tp P .


A condição de transversalidade de f em relação a P nos diz que

df (x)(Rm ) + Tp P = Rn , (4.4)

para todo x ∈ f −1 (P ). Decorre então de (4.3) e (4.4) que

dh(x)(Rm ) = π(dξ(p)(Rn )) = Rn−k ,

ou seja, dh(x) é sobrejetora, mostrando que 0 ∈ Rn−k é valor regular para


h. Como f −1 (P ∩ V ) = h−1 (0) concluimos, através da Proposição 1.2.1, que
f −1 (P ) é uma subvariedade de Rm , cuja codimensão é n − k, que coincide
com a codimensão de P em Rn .

Considere agora duas subvariedades M e P de uma variedade diferenciá-


vel N . Dizemos que M e P são transversais se

Tp M + Tp P = Tp N, (4.5)

para todo p ∈ M ∩ P , onde estamos considerando Tp M e Tp P como subes-


paços vetoriais de Tp N . Note que a condição (4.5) é justamente a Definição
4.3.1 aplicada entre a inclusão i : M → N e a subvariedade P .

Corolário 4.3.3. A interseção não-vazia M ∩P de duas subvariedades trans-


versais M e P de N também é uma subvariedade de N . Além disso

codim (M ∩ P ) = codim M + codim P.

Demonstração. O fato de que M ∩P é subvariedade de N decorre do fato que


M e P são subvariedades de N . Se m, k, n, l denotam as dimensões de M ,
P , N e M ∩ P , respectivamente, segue do Teorema 4.3.2 que m − l = n − k,
logo n − l = (n − m) + (n − k).

71
Exemplo 4.3.4. Em R2 , seja M o gráfico da função f (x) = x3 − a e P o
eixo-x. Neste caso, M e P são transversais se, e somente se, a 6= 0.
De modo mais geral, em R3 , uma curva regular e uma superfície que
se interceptam transversalmente têm somente pontos isolados na interseção.
Duas curvas regulares em R3 interceptam-se transversalmente se, e somente
se, a interseção é vazia, pois em qualquer ponto da interseção, as duas retas
tangentes às curvas deveriam gerar o espaço todo R3 . Duas superfícies em
R3 interceptam-se transversalmente se a interseção é uma curva regular.
No resultado seguinte veremos que se M e N são variedades diferenciáveis
e P é uma subvariedade de N , então quase todas as aplicações diferenciáveis
f : M → N são transversais a P .
Teorema 4.3.5 (Teorema da transversalidade). Considere variedades M ,
N e S e uma aplicação diferenciável f : M × S → N , transversal a uma
subvariedade P de N . Então, o conjunto de todos os pontos s ∈ S, tais que
fs = f (·, s) : M → N é transversal a P , é denso em S.
Demonstração. Pelo Teorema 4.3.2, tem-se que f −1 (P ) é uma subvariedade
de M × S. Denotemos por π a restrição à subvariedade f −1 (P ) da projeção
de M × S sobre o segundo fator. Mostremos que se s ∈ S é valor regular
para π, então fs é transversal a P . Fixemos um ponto x ∈ M tal que
fs (x) = p ∈ P . Como f (x, s) = p ∈ P e f é transversal a P , temos

df (x, s) T(x,s) (M × S) + Tp P = Tp N.

Como s ∈ S é valor regular para π, e π é linear, tem-se π T(x,s) f −1 (P ) .




Disso decorre, em particular, que

T(x,s) (M × S) = ker π + T(x,s) f −1 (P ),

ou seja,
T(x,s) (M × S) = T(x,s) (M × {s}) + T(x,s) f −1 (P ).
Assim,

df (x, s) T(x,s) (M × {s}) + df (x, s) T(x,s) f −1 (P ) + Tp P = Tp N,


 

e usando o fato que df (x, s) T(x,s) f −1 (P ) ⊂ Tp P , tem-se




dfs (x)(Tx M ) + Tp P = Tp N,

ou seja, fs é transversal a P . A densidade do conjunto de tais pontos s ∈ S


segue do teorema de Sard.

72
4.4 Exercícios
4.1
1. Prove que a união enumerável de conjuntos de medida nula numa varie-
dade diferenciável M tem medida nula em M .

4.2
1. Dado um número real t, considere o conjunto Rtn−1 = {x ∈ Rn : xn = t}.
Fixado um conjunto C em Rn , suponha que Ct = C ∩ Rn−1 t tenha medida
nula em Rn−1
t , para todo t ∈ R. Mostre que C tem medida nula em Rn .

4.3
1. Verifique se as seguintes subvariedades são transversais:

(a) O plano-xy e o eixo-z em R3 .

(b) O plano-xy e o plano gerado pelos vetores {(3, 2, 0), (0, 4, −1)} em R3 .

(c) O plano gerado pelos vetores {(1, 0, 0), (2, 1, 0)} e o eixo-y em R3 .

(d) Rk × {0} e {0} × Rl em Rn .

(e) V × {0} e a diagonal em V × V .

(f) Os conjuntos das matrizes simétricas e anti-simétricas em M (n).

2. Se M e P são subvariedades transversais de uma variedade diferenciável


N , prove que, em todo ponto p ∈ M ∩ P , tem-se

Tp (M ∩ P ) = Tp M ∩ Tp P.

3. Sejam f : M → N uma aplicação diferenciável e P uma subvariedade de


N . Se f é transversal a P , prove que, em todo ponto p ∈ f −1 (P ), tem-se

Tp (f −1 (P )) = df (p)−1 (Tf (p) P ).

4. Considere duas aplicações diferenciáveis f : M → N e g : N → W , e uma


subvariedade P de W de modo que g seja transversal a P . Prove que f é
transversal a g −1 (P ) se, e somente se, g ◦ f é transversal a P .

73
Capítulo 5

Extensão de aplicações
diferenciáveis

Os resultados sobre variedades diferenciáveis apresentados até agora fo-


ram de natureza local e as demonstrações reduziram-se, através de cartas
locais apropriadas, a um problema de cálculo no espaço Euclidiano. As par-
tições da unidade, que veremos neste capítulo, são uma ferramenta útil para
globalizar objetos definidos localmente como, por exemplo, a integral em va-
riedades. Usando uma partição da unidade apropriada, podemos escrever a
integral de uma função f : M → R como uma soma de integrais de funções
fi que têm suporte contido no domínio de uma carta local. A integral de
uma dessas funções fi reduz-se, essencialmente, ao cálculo da integral da
representação dessa função na carta local em questão.
Como aplicação das partições da unidade, veremos um resultado sobre
extensão de aplicações diferenciáveis numa variedade diferenciável. Mais pre-
cisamente, provaremos uma versão diferenciável do teorema da extensão de
Tietze, que afirma ser possível estender toda função real contínua, definida
num subconjunto fechado de um espaço normal, a uma função real contí-
nua em todo o espaço. Discutiremos também o problema de saber se toda
variedade diferenciável pode ser vista como subvariedade de algum espaço
Euclidiano, ou seja, provaremos uma versão simples do teorema de Whitney
que afirma que qualquer variedade diferenciável M n pode ser mergulhada
como uma subvariedade fechada de R2n+1 .
Neste capítulo faremos uso de alguns pré-requisitos de topologia. Utiliza-
remos, por exemplo, a noção de família localmente finita de subconjuntos de
um espaço topológico. Usaremos também o fato que variedades diferenciáveis
são espaços topológicos regulares e normais.

74
5.1 Partições da unidade
As construções que faremos nesta seção são baseadas na existência de
funções diferenciáveis que são positivas num subconjunto fixado de uma va-
riedade e identicamente nula no complementar do conjunto.
Consideremos inicialmente a função f : R → R dada por
 −1/t
e , se t > 0
f (t) = . (5.1)
0, se t ≤ 0

Note que f é diferenciável e satisfaz 0 < f (t) < 1, para todo t > 0.
Lema 5.1.1. Dados dois números reais 0 < r1 < r2 , existe uma função
diferenciável h : Rn → R tal que h ≡ 1 em B(0, r1 ), 0 < h(x) < 1, para todo
x ∈ B(0, r2 ) \ B(0, r1 ), e h ≡ 0 em Rn \ B(0, r2 ).
Demonstração. Considere, inicialmente, a função g : R → R dada por
f (r2 − t)
g(t) = , (5.2)
f (r2 − t) + f (t − r1 )
para todo t ∈ R, onde f é a função definida em (5.1). Note que o denomi-
nador de g é positivo para todo t ∈ R, pois pelo menos uma das expressões
r2 − t ou t − r1 é sempre positivo. Assim, por construção, g satisfaz g ≡ 1
para t ≤ r1 , 0 < g(t) < 1 para r1 < t < r2 , e g ≡ 0 para t ≥ r2 . Definimos
agora h : Rn → R pondo
h(x) = g(kxk),
para todo x ∈ Rn , onde g é a função dada em (5.2). A função h é diferenciável
em Rn \ {0}, pois é composta de funções diferenciáveis. Além disso, h é
constante e igual a 1 em B(0, r1 ), logo é globalmente diferenciável.

A função h construída no Lema 5.1.1 é usualmente chamada de bump-


function. Ou seja, é uma função real que é constante e igual a 1 num conjunto
fixado e identicamente nula no complementar de uma vizinhança do conjunto.
O suporte de uma função f : M → R, denotado por supp(f ), é o fecho
do conjunto dos pontos de M onde f não se anula:

supp(f ) = {p ∈ M : f (p) 6= 0}.

Isso significa que se p ∈ M é um ponto fora do suporte de f , então f é nula


numa vizinhança de p. Por exemplo, se h é a bump-function construída no
Lema 5.1.1, então
supp(h) = B(0, r2 ).

75
Definição 5.1.2. Uma partição da unidade para uma variedade diferenciável
M n é uma família {ξα : α ∈ I} de funções diferenciáveis ξα : M → R que
satisfazem as seguintes propriedades:

(i) 0 ≤ ξα (p) ≤ 1, para todo α ∈ I e todo p ∈ M .

(ii) A família {supp(ξα ) : α ∈ I} é localmente finita em M .


P
(iii) α∈I ξα (p) = 1, para todo p ∈ M .

Em virtude da condição (ii) da Definição 5.1.2 tem-se, para todo p ∈ M ,


que ξα (p) = 0, exceto para um número finitdo de índices α ∈ I. Assim, a
função ξ : M → R, dada por
X
ξ(p) = ξα (p), (5.3)
α∈I

para todo p ∈ M , está bem definida e é diferenciável.

Definição 5.1.3. Seja C = {Uα : α ∈ I} uma cobertura por abertos para a


variedade M . Uma partição da unidade {ξα : α ∈ I} é dita subordinada à
cobertura C se
supp(ξα ) ⊂ Uα ,
para todo índice α ∈ I.

Antes de provarmos a existência de partições da unidade, estabeleçamos


a seguinte nomenclatura. Um subconjunto B de M n é chamado uma bola
coordenada para M se B é domínio de uma carta local ϕ em M tal que
ϕ(B) = B(0, r), onde B(0, r) denota a bola aberta de Rn centrada em 0 ∈ Rn
e de raio r > 0. Além disso, dizemos que um subconjunto B de M n é uma
bola coordenada regular se existe uma bola coordenada B 0 ⊂ M , com B ⊂ B 0 ,
tal que

ϕ(B) = B(0, r), ϕ(B) = B(0, r) e ϕ(B 0 ) = B(0, r0 ),

com 0 < r < r0 .

Teorema 5.1.4 (Existência de partições da unidade). Dado uma cobertura


aberta C = {Uα : α ∈ I} para uma variedade diferenciável M n , existe uma
partição da unidade {ξα : α ∈ I} subordinada à cobertura C.

76
Demonstração. Cada aberto Uα da coleção C é, em particular, uma variedade
diferenciável. Assim, admite uma base Bα formada por bolas coordenadas
regulares. A coleção [
B= Bα ,
α∈I

formada a partir das bases Bα , constitui uma base para a topologia de M .


Como M é paracompacto, existe um refinamento enumerável {Bi : i ∈ J}
para a coleção C, formada por elementos de B, que é localmente finito. Além
disso, a cobertura {B i : i ∈ J} também é localmente finita. Para cada índice
i ∈ J, o fato que Bi é uma bola coordenada regular em algum Uα garante
a existência de uma bola coordenada Bi0 ⊂ Uα , com B i ⊂ Bi0 , e uma carta
local ϕi : Bi0 → Rn tais que

ϕi (Bi ) = B(0, ri ), ϕi (B i ) = B(0, ri ) e ϕ(Bi0 ) = B(0, ri0 ),

para alguns 0 < ri < ri0 . Para tal índice i ∈ J, defina uma função fi : M → R
pondo
hi ◦ ϕi em Bi0

fi = ,
0 em M \ B i
onde hi : Rn → R é uma bump-function que é positiva em B(0, ri ) e zero no
complementar. No conjunto Bi0 \ B i , onde as duas definições se superpõem,
ambas produzem a função nula, logo fi está bem definida e é diferenciável.
Além disso, tem-se supp(fi ) = B i . Defina agora uma função f : M → R
pondo X
f (p) = fi (p).
i∈J

Como {B i : i ∈ J} é localmente finito, esta soma tem somente uma quanti-


dade finita de termos numa vizinhança de cada ponto e, assim, define uma
função diferenciável. Além disso, cada fi é não-negativa em M e positiva
em Bi , e todo ponto de M pertence a algum Bi , logo f (p) > 0, para todo
p ∈ M . Assim, as funções gi : M → R, definidas por

gi (p) = fi (p)/f (p),

também são diferenciáveis e tem-se:


X
0 ≤ gi ≤ 1 e gi (p) = 1,
i∈J

para todo p ∈ M . Finalmente, resta apenas re-indexar as funções gi de


modo que o conjunto de índices seja o mesmo da cobertura inicial C. Como

77
a cobertura {Bi0 : i ∈ J} é um refinamento de C, para cada i ∈ J, escolha
algum índice a(i) ∈ I tal que Bi0 ⊂ Ua(i) . Agora, para cada α ∈ I, defina
ξα : M → R pondo X
ξα = gi .
a(i)=α

Caso não exista índice i, com a(i) = α, a soma acima deve ser interpretada
como sendo a função nula. Temos:
[ [
supp(ξα ) = Bi = B i ⊂ Uα .
a(i)=α a(i)=α

Cada ξα é uma função diferenciável e satisfaz 0 ≤ ξα ≤ 1. Além disso, a


família de suportes {supp(ξa l) : α ∈ I} continua sendo localmente finita, e
X X
ξα = gi = 1,
α∈I i∈J

e isso finaliza a demonstração.

Uma aplicação simples de partições da unidade é a extensão do conceito


de bump-functions à variedades diferenciáveis. Dados uma variedade M , um
fechado F ⊂ M , um aberto U ⊂ M , com F ⊂ U , uma função diferenciável
h : M → R é dita ser uma bump-function para F suportada em U se 0 ≤
h ≤ 1 em M , h ≡ 1 em F , e supp(f ) ⊂ U .

Corolário 5.1.5 (Existência de bump-functions). Para quaisquer fechado


F ⊂ M e aberto U ⊂ M , com F ⊂ U , existe uma bump-function h : M → R
para F suportada em U .

Demonstração. Basta considerar a partição da unidade {ξ1 , ξ2 } subordinada


à cobertura {U1 , U2 }, onde U1 = U e U2 = M \ F . Como ξ2 |F ≡ 0 e
ξ1 + ξ2 = 1, a função h = ξ1 satisfaz às condições exigidas.

5.2 O teorema de Tietze


Veremos nesta seção, como aplicação do conceito de partições da unidade,
o clássico teorema de Tietze a respeito de extensão de aplicações diferenciá-
veis. Antes de prová-lo, apresentaremos uma versão diferenciável do Lema
de Urysohn.

78
Lema 5.2.1 (Urysohn). Considere dois subconjuntos fechados e disjuntos
F, G de uma variedade diferenciável M . Então, existe uma função diferen-
ciável ξ : M → R, com ξ(M ) ⊂ [0, 1], tal que ξ(p) = 1, para todo p ∈ F , e
ξ(p) = 0, para todo p ∈ G.

Demonstração. Os conjuntos U1 = M \F e U2 = M \G constituem uma


cobertura aberta de M . Assim, pelo Teorema 5.1.4, existe uma partição
da unidade {ξ1 , ξ2 }, subordinada a esta cobertura, i.e., ξi (M ) ⊂ [0, 1] e
suppξi ⊂ Ui , i = 1, 2. Disso decorre que suppξ1 é disjunto de F e suppξ2
é disjunto de G. Assim, ξ2 (p) = 0 para todo p ∈ G e ξ1 (p) = 0, para todo
p ∈ F . Como ξ1 + ξ2 = 1, a hipótese ξ1 (p) = 0 implica ξ2 (p) = 1, para todo
p ∈ F . Portanto, a função ξ = ξ2 satisfaz as condições desejadas.

Teorema 5.2.2 (Tietze). Seja f : U → Rn uma aplicação diferenciável


definida num aberto U de uma variedade diferenciável M m . Então, para todo
fechado F ⊂ M , com F ⊂ U , existe uma aplicação diferenciável fe : M → Rn
tal que fe|F = f |F .

Demonstração. Como M é normal, existe um aberto V ⊂ M tal que F ⊂ V


e V ⊂ U . A partir dos fechados disjuntos F e M \V obtemos, pelo Lema
5.2.1, uma função ξ : M → R tal que ξ(p) = 1, para todo p ∈ F , e ξ(p) = 0
para todo p 6∈ V . Defina fe : M → Rn pondo

ξ(p)f (p) se p∈U
fe(p) = .
0 se p ∈ M \U

A restrição de fe aos abertos U e M \V é diferenciável. De fato, a restrição


de fe a U coincide com o produto (ξ|U )f e a restrição de fe a M \V é nula.
Como M = U ∪ (M \V ), temos que fe é diferenciável em M . Finalmente,
como ξ|F ≡ 1, segue que fe|F = f |F .

Observação 5.2.3. O Teorema 5.2.2 não é válido para aplicações que to-
mam valores numa variedade arbitrária. Por exemplo, a aplicação identidade
Id : S 1 → S 1 não pode ser estendida a uma aplicação F : R2 → S 1 , de classe
C 2 . De fato, suponha que exista uma aplicação F : R2 → S 1 de classe, pelo
menos C 2 , tal que F |S 1 = Id. Escrevendo

F (x, y) = (f (x, y), g(x, y)),

tem-se que

f (cos t, sin t) = cos t e g(cos t, sin t) = sin t,

79
para todo t ∈ R. Assim, se escrevermos
∂f ∂f ∂g ∂g
df = dx + dy e dg = dx + dy,
∂x ∂y ∂x ∂y

a integral curvilínea de f dg − gdf sobre S 1 é dada por


Z Z
(f dg − gdf ) = (cos t · d(sin t) − sin t · d(cos t))
S1 S1
Z 2π
= (cos2 t + sin2 t)dt = 2π.
0

Por outro lado, como S 1 = ∂D2 , o Teorema de Green fornece:


Z Z     
∂g ∂f ∂g ∂f
(f dg − gdf ) = f −g dx + f −g dy
S1 S1 ∂x ∂x ∂y ∂y
ZZ  
∂f ∂g ∂f ∂g
= 2 − dxdy.
D2 ∂x ∂y ∂y ∂x

Como a expressão dentro dos parênteses na integral dupla acima é identica-


mente nula, pois é o determinante cujas colunas são os vetores dF (x, y) · e1
e dF (x, y) · e2 , os quais são colineares por serem tangentes a S 1 no mesmo
ponto F (x, y), obtemos
Z
(f dg − gdf ) = 0,
S1

o que é uma contradição.

5.3 O teorema de Whitney


Discutiremos agora o problema de saber se toda variedade diferenciável
pode ser vista como subvariedade de algum espaço Euclidiano. Mais precisa-
mente, dado uma variedade diferenciável M m , queremos exibir um mergulho
f : M m → Rn , para algum n suficientemente grande. A resposta é positiva
e foi provado por Whitney [20] em 1936 em um artigo que se tornou uma
das referências no estudo das variedades diferenciáveis.

Teorema 5.3.1 (Whitney). Qualquer variedade diferenciável M n de classe


C k pode ser mergulhada como uma subvariedade fechada de R2n+1 .

80
A prova do Teorema 5.3.1 tem sido simplificada e tem hoje diferentes
abordagens da prova original de Whitney. Dentre os textos clássicos da
literatura Guillemin - Pollack [7], Hirsch [8] e Lee [10], uma abordagem mais
completa do assunto pode ser encontrada em [1], onde a prova do Teorema
5.3.1 é apresentada com detalhes.
O teorema seguinte é uma versão parcial do Teorema de Whitney, válida
apenas para variedades compactas e sem a estimativa sobre a dimensão do
espaço Euclidiano onde mergulhamos a variedade M .
Teorema 5.3.2. Toda variedade diferenciável compacta M m pode ser mer-
gulhada em algum espaço Euclidiano.
Demonstração. Para cada ponto p ∈ M , escolha uma carta local (Up , ϕp )
em M , com p ∈ Up . Como M é regular, todo ponto de M possui um sistema
fundamental de vizinhanças fechadas. Assim, existem abertos Wp , Vp ⊂ M
tais que
p ∈ Wp ⊂ W p ⊂ Vp ⊂ V p ⊂ Up .
Pelo Teorema 5.2.2, existe uma aplicação diferenciável φp : M → Rm que
coincide com ϕp no fechado V p . Pelo Lema 5.2.1, existe uma função diferen-
ciável ξp : M → R que é igual a 1 no fechado W p e é igual S a zero no fechado
M \Vp . Como M é compacta, a cobertura aberta M = p∈M Wp possui uma
subcobertura finita M = ri=1 Wpi . Definimos uma aplicação f : M → Rn
S
pondo: 
f (p) = φp1 (p), . . . , φpr (p), ξp1 (p), . . . , ξpr (p) ,
para todo p ∈ M , onde n = rm + r. Tem-se que f é uma aplicação diferen-
ciável. Provemos que f é um mergulho. De fato, dados p ∈ M e v ∈ Tp M ,
temos:

df (p) · v = dφp1 (p) · v, . . . , dφpr (p) · v, dξp1 (p) · v, . . . , dξpr (p) · v .

Assuma que df (p) · v = 0. Seja s ∈ {1, . . . , r} tal que p ∈ Wps . Como as


aplicações φps e ϕps coincidem no aberto Wps , temos que

dϕps (p) · v = dφps (p) · v = 0.

Como ϕps é um difeomorfismo, temos que dϕps (p) é um isomorfismo, donde


concluimos que v = 0. Isso prova que f é uma imersão. Como M é compacta,
para estabalecer que f é um mergulho é suficiente provar que f é injetora.
Sejam p, q ∈ M com f (p) = f (q). Disso decorre que

φpi (p) = φpi (q) e ξpi (p) = ξpi (q),

81
para todo 1 ≤ i ≤ r. Seja s ∈ {1, . . . , r} tal que p ∈ Wps . Temos que
ξps (p) = 1 e, portanto, ξps (q) = 1. Como ξps ≡ 0 em M \Vps , segue que
q ∈ Vps . Como φps coincide com a carta ϕps em Vps , a restrição de φps a Vps
é injetora. Assim, as condições φps (p) = φps (q) e p, q ∈ Vps implicam que
p = q, e isso finaliza a demonstração.

82
5.4 Exercícios
5.1
1. Uma função diferenciável f : M → R é dita ser uma função exaustão
para M se, para cada c ∈ R, o conjunto f −1 ((−∞, c]) é compacto. Prove
que toda variedade diferenciável admite funções exaustão.

5.2
1. Dado uma variedade diferenciável M m , considere um ponto p ∈ M , um
ponto x ∈ Rn e uma aplicação linear L : Tp M → Rn . Prove que existe uma
aplicação diferenciável f : M m → Rn tal que f (p) = x e df (p) = L.

83
Capítulo 6

Variedades com fronteira

Em várias aplicações de variedades diferenciáveis, principalmente aquelas


envolvendo integração, nos deparamos com certos espaços que seriam varie-
dades, exceto pelo fato de admitirem um subconjunto fronteira. Exemplo
simples é o clássico teorema de Stokes sobre uma superfície com fronteira.
Neste capítulo ampliaremos o conceito de variedade, de modo a incluir,
por exemplo, as bolas fechadas de Rn . O ponto de partida é admitir que as
castas locais cheguem não apenas em abertos de Rn mas também em abertos
de semiespaços.

6.1 Semiespaços
Um semiespaço em Rn é um subconjunto da forma

H = {x ∈ Rn : α(x) ≤ 0}, (6.1)

onde α é um funcional linear não-nulo em Rn . A fronteira de H, denotada


por ∂H, é definida como sendo o hiperplano

∂H = {x ∈ Rn : α(x) = 0}.

Segue daí que ∂H é um subespaço vetorial de dimensão n − 1 em Rn , e H é


união disjunta H = int(H) ∪ ∂H do seu interior em Rn com a sua fronteira.
Um subconjunto aberto A de H pode ser de dois tipos:

A ⊂ int(H) ou A ∩ ∂H 6= ∅.

No primeiro caso, A é também aberto em Rn , o que não ocorre no segundo,


pois nenhuma bola aberta centrada num ponto x ∈ ∂H pode estar contida

84
em H. A fronteira de um subconjunto aberto A de H é, por definição, o
conjunto ∂A = A ∩ ∂H. Observe que ∂A é uma hipersuperfície de Rn pois,
como A é aberto em H, tem-se A = U ∩ H, onde U é um aberto de Rn .
Assim,

U ∩ ∂H = U ∩ (H ∩ ∂H) = (U ∩ H) ∩ ∂H = A ∩ ∂H = ∂A,

mostrando que ∂A é um subconjunto aberto da hipersuperfície ∂H.


A noção de diferenciabilidade pode ser extendida à aplicações definidas
em semiespaços. Por simplicidade, fixemos o semiespaço H como em (6.1).
Definição 6.1.1. Dizemos que uma aplicação f : A → Rm , definida no
aberto A ⊂ H, é diferenciável se f é a restrição a A de alguma aplicação
diferenciável F : U → Rm definida num aberto U de Rn , com A ⊂ U . Neste
caso, a diferencial de f é definida pondo

df (p) = dF (p), (6.2)

para todo ponto p ∈ A.


Lema 6.1.2. A diferencial de f em p ∈ A, definida em (6.2), independe da
escolha da extensão F .
Demonstração. Isso é claro se p ∈ int(A); neste caso, podemos considerar
a própria aplicação f como extensão. Seja então p ∈ ∂A. Observe, inicial-
mente, que é sempre possível exibir uma base {v1 , . . . , vn } para Rn , com
vj ∈ H, para todo 1 ≤ j ≤ n. De fato, dado um vetor v ∈ Rn , tem-se que
v ∈ H ou −v ∈ H. Assim, escolhida uma base qualquer para Rn , e trocando
o sinal daqueles vetores que não estão em H, obtemos ainda uma base para
Rn , agora formada somente por vetores de H. Além disso, para todo t ≥ 0,
tem-se p + tvj ∈ H, para todo 1 ≤ j ≤ n, pois

α(p + tvj ) = α(p) + tα(vj ) ≤ 0.

Em particular, para t ≥ 0 suficientemente pequeno, tem-se p + tvj ∈ A, para


todo 1 ≤ j ≤ n. Se F : U → Rm é uma extensão diferenciável para f , existe
o limite
F (p + tv) − F (p)
dF (p) · v = lim ,
t→0 t
para todo vetor v ∈ Rn . Em particular, para os vetores da base, tem-se
F (p + tvj ) − F (p) f (p + tvj ) − f (p)
dF (p) · vj = lim = lim , (6.3)
t→0+ t t→0+ t

85
visto que p + tvj ∈ A, para t ≥ 0 suficientemente pequeno. A expressão em
(6.3) mostra que os valores da aplicação linear dF (p) nos vetores v1 , . . . , vn
são univocamente determinados a partir de f , mostrando que a diferencial
df (p) não depende da extensão escolhida.

A proposição seguinte afirma que a fronteira de um subconjunto aberto


de um semiespaço é invariante por difeomorfismos.
Proposição 6.1.3. Sejam A ⊂ H e B ⊂ K subconjuntos abertos em semi-
espaços de Rn e f : A → B um difeomorfismo. Então f (∂A) = ∂B. Em
particular, f |∂A é um difeomorfismo entre as hipersuperfícies ∂A e ∂B.
Demonstração. Dado um ponto x ∈ int(A), considere um aberto U de Rn ,
com x ∈ U ⊂ A. A restrição de f a U é um difeomorfismo sobre f (U )
que, pelo teorema da aplicação inversa, é aberto em Rn . Como f (U ) ⊂ B,
tem-se que f (x) ∈ int(B). Isso mostra que f (int(A)) ⊂ int(B) e, portanto,
f −1 (∂B) ⊂ ∂A. De forma análoga se mostra que f (∂A) ⊂ ∂B.

Observação 6.1.4. A Proposição 6.1.3 continua válida se supormos que f


seja apenas um homeomorfismo. Neste caso, usamos o teorema da invariância
do domínio, e a demonstração é inteiramente análoga.

6.2 Variedades com fronteira


Nesta seção estenderemos o conceito de variedade diferenciável para espa-
ços mais gerais. Pontos desses espaços admitirão vizinhanças modeladas em
abertos de Rn ou em subconjuntos abertos de algum semiespaço H ⊂ Rn . Da
mesma forma como no caso de variedades, é possível aqui desenvolver uma
teoria análoga. O que faremos é simplesmente definir os objetos e estabelecer
os resultados centrais.
O ponto de partida é a extensão do conceito de carta local. Mais pre-
cisamente, uma carta local num conjunto M é uma bijeção ϕ : U → ϕ(U ),
onde U é um subconjunto de M e ϕ(U ) é um aberto de algum semiespaço
H ⊂ Rn . Duas cartas locais (U, ϕ) e (V, ψ) em M são ditas compatíveis se
U ∩ V 6= ∅, ϕ(U ∩ V ) e ψ(U ∩ V são abertos em semiespaços H e K de Rn ,
respectivamente, e a aplicação de transição

ψ ◦ ϕ−1 : ϕ(U ∩ V ) → ψ(U ∩ V )

é um difeomorfismo no sentido da Definição 6.1.1. Um atlas em M é uma


coleção de cartas locais em M , duas a duas compatíveis, cujos domínios
realizam uma cobertura para M .

86
Definição 6.2.1. Uma variedade diferenciável com fronteira e dimensão n
é um conjunto M munido de um atlas maximal, cujos elementos tomam
valores em abertos de algum semiespaço de Rn , e cuja topologia induzida em
M é Hausdorff e satisfaz o segundo axioma da enumerabilidade.

O conceito de aplicação diferenciável entre variedades com fronteira se


define exatamente da mesma forma, lembrando apenas que a representação
de uma aplicação, cujo domínio é um aberto de algum semiespaço, é di-
ferenciável se admite uma extensão a uma aplicação diferenciável em uma
vizinhança de cada ponto. Além disso, se tal representação tem o contrado-
mínio sendo um subconjunto de algum semiespaço, então a representação é
diferenciável se o for como aplicação em Rn .
Seja M uma variedade com fronteira. Um ponto p ∈ M é chamado um
ponto da fronteira de M se existe uma carta local (U, ϕ) em M , com p ∈ U
e ϕ(U ) aberto no semiespaço H de Rn , tal que ϕ(p) ∈ ∂H. Observe que, se
(V, ψ) é outra carta local em M , com p ∈ V e ψ(V ) aberto no semiespaço
K de Rn , segue da Proposição 6.1.3 que ψ(p) ∈ ∂K.

Definição 6.2.2. O conjunto de todos os pontos da fronteira de M será


denotado por ∂M e será chamado a fronteira da variedade M .

Dessa forma, uma variedade diferenciável com fronteira pode ser expressa
como união disjunta
M = int(M ) ∪ ∂M,
onde int(M ) denota o interior de M . Mais precisamente, um ponto p ∈ M é
dito ponto interior de M se existe uma carta local (U, ϕ), com p ∈ U e ϕ(U )
aberto em algum semiespaço H de Rn , de forma que ϕ(p) ∈ / ∂H. Observe
que se p ∈ M é ponto interior de M , relativo a uma carta local (U, ϕ),
decorre da Proposição 6.1.3 que o mesmo vale em relação a qualquer outra
carta local (V, ψ).
Veremos agora que a fronteira de uma variedade diferenciável com fron-
teira admite uma estrutura natural de variedade diferenciável, que o torna
também uma subvariedade da variedade considerada. Considere então uma
variedade com fronteira M n e ∂M sua fronteira. Dado um atlas

A = {(Uα , ϕα ) : α ∈ I}

para M , definimos

eα = ∂M ∩ Uα
ϕ eα = ϕα |Ueα ,
e ϕ

87
para todo índice α ∈ I, e consideremos a coleção

Ae = {(U eα ) : α ∈ I}.
eα , ϕ (6.4)

Teorema 6.2.3. A coleção A, e definida em (6.4), é um atlas em ∂M . Além


disso, munindo ∂M do único atlas maximal que contém A, e a fronteira ∂M
torna-se uma variedade diferenciável de dimensão n − 1 sem fronteira.

Demonstração. Cada aplicação ϕ eα é uma carta local em ∂M . De fato, ϕeα é


bijetora, pois é a restrição de uma aplicação bijetora. Além disso, para cada
α ∈ I, tem-se

ϕ eα ) = ϕα (∂M ∩ Uα ) = ϕα (Uα ) ∩ ∂H.


eα (U (6.5)

Isso mostra que ϕ eα ) é aberto em ∂H ' Rn−1 . Observe agora que a união
eα (U
dos domínios realizam uma cobertura para ∂M , pois
[ [ [
U
eα = (∂M ∩ Uα ) = ∂M ∩ Uα = ∂M ∩ M = ∂M.
α∈I α∈I α∈I

A compatibilidade de duas cartas (U


e , ϕ), e ∈ A,
e (Ve , ψ) e com Ue ∩ Ve 6= ∅, decorre
diretamente da compatibilidade das cartas (U, ϕ) e (V, ψ) em M . Assim,
munindo ∂M do atlas maximal que contém A, e ∂M torna-se uma variedade
diferenciável de dimensão n−1. Que a topologia induzida em ∂M é Hausdorff
e satisfaz o segundo axioma da enumerabilidade decorre do fato de que a
topologia de M tem tais propriedades.

Com a identificação ∂H ' Rn−1 , e usando (6.5), obtemos o seguinte

Corolário 6.2.4. ∂M é uma subvariedade de M n com dimensão n − 1.

De forma semelhante ao caso de variedades sem fronteira, o espaço tan-


gente a uma variedade com fronteira está bem definido em todos os pontos. A
seguir, resumiremos as propriedades básicas; para maiores detalhes, o leitor
pode consultar [10].
Se M n é uma variedade com fronteira e U é um subconjunto aberto de
M , então Tp U = Tp M , para todo p ∈ U . Além disso, em todo ponto p ∈ M ,
o espaço tangente Tp M é um espaço vetorial n-dimensional. De forma mais
precisa, dados um ponto ∈ M e uma carta local (U, ϕ) em M , com p ∈ U e
ϕ(U ) aberto em algum semiespaço H de Rn , tem-se

Tp M = dϕ(p)−1 (Rn ) = dϕ(p)−1 (Tϕ(p) H).

88
Em particular, se p ∈ ∂M , então

Tp ∂M = dϕ(p)−1 (∂H).

O espaço tangente em p à subvariedade ∂M de M será sempre considerado


como um subespaço vetorial de dimensão n−1 de Tp M , através da diferencial
di(p) : Tp ∂M → Tp M da inclusão canônica i : ∂M → M .

Observação 6.2.5. Considere duas variedades diferenciáveis M m e N n . Se


ambas possuem fronteira, o produto M ×N não é uma variedade diferenciável
com fronteira. Por exemplo, o quadrado [0, 1] × [0, 1] não é uma variedade,
pois possui quatro singularidades. Se apenas uma delas, digamos M , tiver
fronteira, o produto M × N é uma variedade com fronteira e

∂(M × N ) = ∂M × N.

Basta observar que se (U, ϕ) e (V, ψ) são cartas locais para M e N , res-
pectivamente, com ϕ(U ) aberto no semiespaço H ⊂ Rm e ψ(V ) aberto em
Rn , então ϕ(U ) × ψ(V ) é um aberto no semiespaço H × Rn ⊂ Rm+n , com
∂(ϕ(U ) × ψ(V )) = ∂ϕ(U ) × ψ(V ).

6.3 Valores regulares


Nesta seção apresentaremos resultados análogos ao caso de variedades
sem fronteiras a respeito de valores regulares para aplicações diferenciáveis
envolvendo variedades com fronteira.

Proposição 6.3.1. Seja f : M n → R uma função diferenciável, definida


numa variedade diferenciável M n . Se a ∈ R é valor regular para f , então o
conjunto
N = {p ∈ M : f (p) ≥ a}
é uma variedade de dimensão n com fronteira, onde ∂N = f −1 (a).

Demonstração. O conjunto A = {p ∈ M : f (p) > a} é aberto em M , pois é


pré-imagem do conjunto aberto (a, +∞) em R, logo A é uma subvariedade de
dimensão n em M . Considere agora um ponto p ∈ f −1 (a) e seja (U, ϕ) uma
carta local em M , com p ∈ U e x = ϕ(p). Como a ∈ R é valor regular de f e
ϕ é difeomorfismo, a é valor regular para a função h = f ◦ ϕ−1 : ϕ(U ) → R.
Como x ∈ h−1 (a), podemos supor
∂h
(x) > 0,
∂xn

89
onde x = (x1 , . . . , xn ). Assim, pela forma local das submersões, existem um
aberto W de Rn−1 , com (x1 , . . . , xn−1 ) ∈ W , um intervalo aberto
I = (a − , a + ), e um difeomorfismo ξ : W × I → Z, onde Z é um
aberto de Rn , com x ∈ Z ⊂ ϕ(U ), tais que

(h ◦ ξ)(z, t) = t,

para todo (z, t) ∈ W × I. Considere, então o semiespaço

H = {(x1 , . . . , xn ) ∈ Rn : xn ≥ a}.

Defina
V = (W × I) ∩ H, e = ϕ−1 (ξ(V )) e ϕ
U e = ϕ|Ue .

Temos que (U e é uma carta local em M , com p ∈ U


e , ϕ) e e ϕ(p)
e ∈ ∂H. Isso
prova que p ∈ ∂N , ou seja, N é uma variedade de dimensão n com fronteira,
onde ∂N = f −1 (a).

Consideremos agora uma aplicação diferenciável f : M m → N n , onde M


é uma variedade diferenciável com fronteira.

Teorema 6.3.2. Se q ∈ N é valor regular, tanto para f quanto para sua res-
trição f |∂M , então a pré-imagem f −1 (q) ⊂ M é uma variedade de dimensão
m − n com fronteira. Além disso, tem-se

∂(f −1 (q)) = f −1 (q) ∩ ∂M.

Demonstração. Como variedade é um conceito local, podemos supor que f


é da forma f : H → Rn , onde H é o semiespaço de Rm dado por

H = {(x1 , . . . , xm ) ∈ Rm : xm ≥ 0}.

Seja y ∈ Rn valor regular para f quanto para sua restrição f |∂H , e fixemos um
ponto x ∈ f −1 (y). Se x ∈ int(H) então, como na Proposição 1.2.1, f −1 (y)
é uma subvariedade Euclidiana numa vizinhança de x. Suponha agora que
x ∈ ∂H. Considere uma aplicação diferenciável g : U → Rn , definida numa
vizinhança U de x em Rm , que coincide com f em U ∩ H. Podemos supor,
diminuindo U se necessário, que g não tem pontos críticos. Assim, g −1 (y)
é uma subvariedade de dimensão m − n em Rm . Seja π : g −1 (y) → R a
projeção sobre a última coordenada,

π(x1 , . . . , xm ) = xm .

90
Afirmamos que 0 ∈ R é valor regular para π. De fato, o espaço tangente a
g −1 (y) em um ponto x ∈ π −1 (0) coincide com o núcleo da diferencial
dg(x) = df (x) : Rm → Rn .
Por hipótese, x é ponto regular para f |∂H . Isso implica que este núcleo é um
subespaço próprio de Rm−1 × {0}. Assim, segue da Proposição 6.3.1, que o
conjunto
g −1 (y) ∩ H = f −1 (y) ∩ U,
constituído de todos os pontos x ∈ g −1 (y) tais que π(x) ≥ 0, é uma subva-
riedade de dimensão m − n, cuja fronteira é dada por π −1 (0).

6.4 O teorema do ponto fixo de Brouwer


O teorema de Brouwer estabelece que qualquer aplicação contínua do
disco fechado unitário Dn ⊂ Rn sobre si mesmo tem, pelo menos, um ponto
fixo. O teorema é usualmente provado usando técnicas de topologia algé-
brica. A demonstração que apresentaremos aqui faz uso apenas dos re-
sultados das seções anteriores e de uma consequência da classificação das
superfícies unidimensionais, cuja demonstração pode ser encontrada em [7].
Teorema 6.4.1. Qualquer superfície compacta, conexa, unidimensional é
difeomorfa ao intervalo fechado [0, 1] ou ao círculo S1 .
Como toda superfície compacta unidimensional é união disjunta finita de
suas componentes conexas, temos o seguinte
Corolário 6.4.2. A cardinalidade da fronteira de qualquer superfície com-
pacta unidimensional é par.
O Corolário 6.4.2 pode ser usado para provar que não existe retração de
uma superfície compacta à sua fronteira.
Proposição 6.4.3. Seja M uma superfície compacta com fronteira. Então,
não existe aplicação diferenciável f : M → ∂M tal que f |∂M : ∂M → ∂M
seja a aplicação identidade.
Demonstração. Suponha que exista uma tal aplicação f e seja q ∈ ∂M um
valor regular para f (tal ponto existe pelo Teorema de Sard). Então f −1 (q)
é uma superfície compacta unidimensional com fronteira. Como f |∂M é a
identidade, temos
∂(f −1 (q)) = f −1 (q) ∩ ∂M = {q},
contradizendo o Corolário 6.4.2.

91
Exemplo 6.4.4. Uma situação particular da Proposição 6.4.3 pode ser vista
considerando-se o disco unitário Dn , que é uma superfície compacta, cuja
fronteira é a esfera Sn−1 . Assim, segue da Proposição 6.4.3 que a aplica-
ção identidade id : Sn−1 → Sn−1 não pode ser estendida a uma aplicação
diferenciável f : Dn → Sn−1 .

Podemos agora provar a versão diferenciável do teorema de Brouwer.

Teorema 6.4.5. Toda aplicação diferenciável f : Dn → Dn tem ponto fixo.

Demonstração. Suponha que f não tenha ponto fixo e fixemos um ponto


arbitrário x ∈ Dn . Como f (x) 6= x, os pontos x e f (x) determinam uma
reta. Denote por g(x) ∈ Sn−1 o ponto onde a semirreta, com origem em
f (x) e passando por x, intercepta Sn−1 . Obtemos, assim, uma aplicação
g : Dn → Sn−1 tal que g|Sn−1 = id. Resta mostrar que g é diferenciável,
obtendo assim uma contradição com a Proposição 6.4.3. Como x pertence ao
segmento determinado por f (x) e g(x), podemos escrever o vetor g(x) −f (x)
como um múltiplo t do vetor x − f (x), onde t ≥ 1. Assim,

g(x) = tx + (1 − t)f (x).

Resta mostrar que t depende diferenciavelmente de x. Para isso, tome o


produto interno em ambos os lados da fórmula acima, obtendo

t2 kx − f (x)k2 + 2thf (x), x − f (x)i + kf (x)k2 − 1 = 0.

A expressão acima é uma equação quadrática, com uma única raiz positiva; a
outra raiz com t ≤ 0 corresponde ao ponto onde a semirreta, com origem em
x e passando por f (x), intercepta Sn−1 . Isolando t, obtemos uma expressão
para t em termos de funções diferenciáveis de x.

A versão contínua do teorema de Brouwer consiste em reduzir o problema


ao caso diferenciável, aproximando a aplicação contínua f : Dn → Dn por
uma aplicação diferenciável.

Teorema 6.4.6. Toda aplicação contínua f : Dn → Dn tem ponto fixo.

Demonstração. Dado  > 0 existe, pelo teorema de aproximação de Weiers-


trass (cf. [4, Theorem 7.4.1]), uma aplicação polinomial P1 : Rn → Rn tal
que
kP1 (x) − f (x)k < 

92
para todo x ∈ Dn . Entretanto, P1 pode transformar pontos do disco Dn em
pontos fora de Dn . A fim de corrigir, considere
1
P (x) = P1 (x).
1+
A aplicação P transforma Dn sobre Dn e satisfaz kP (x) − f (x)k < 2 para
todo x ∈ Dn . Suponha então que f (x) 6= x para todo x ∈ Dn . Então,
a função contínua g(x) = kf (x) − xk admite um mínimo c > 0 em Dn .
Escolhendo P como acima, com kP (x) − f (x)k < c para todo x ∈ Dn , temos
P (x) 6= x para todo x ∈ Dn . Assim, P é uma aplicação diferenciável do
disco Dn sobre Dn sem pontos fixos, contradizendo o Teorema 6.4.5.

93
6.5 Exercícios
6.2
1. Prove que disco fechado unitário Dn = {x ∈ Rn : kxk ≤ 1} é uma
variedade n-dimensional com fronteira, com ∂Dn = Sn−1 .

6.3
1. Considere a função f : R3 → R dada por f (x, y, z) = (x2 + y 2 − 1)2 + z 2 .
Mostre que todo número real diferente de zero é valor regular para f e que,
se 0 < c < 1, o conjunto M = {(x, y, z) ∈ R3 : f (x, y, z) ≤ c} é um toro
sólido, i.e., é uma superfície compacta tridimensional, cuja fronteira é um
toro bidimensional.

6.4
1. Prove que o teorema de Brouwer é falso para o disco aberto
B n = {x ∈ Rn : kxk < 1}.

2. Se as entradas aij de uma matriz A ∈ M (n) são tais que aij ≥ 0 para
todo 1 ≤ i, j ≤ n, prove que A admite autovalor não-negativo.

94
Capítulo 7

Homotopia

Existem várias propriedades de uma aplicação f : M → N que são


preservadas quando deformamos tal aplicação em outra de um modo dife-
renciável. De forma intuitiva, uma aplicação diferenciável f : M → N é uma
deformação de outra aplicação g : M → N se elas podem ser conectadas
diferenciavelmente através de uma família de aplicações ft : M → N , que
chamamos usualmente de homotopia.
Esse conceito de deformação é, na realidade, uma das ideias fundamentais
da topologia, e o grupo fundamental é o invariante algébrico mais simples
associado a esse processo. O objetivo deste capítulo é introduzir o conceito de
homotopia para aplicações diferenciáveis entre variedades, bem como provar
que a classe residual módulo 2 de #f −1 (q), que será chamada o grau módulo
2 de f , não depende da escolha do valor regular q para f , e sim somente da
classe de homotopia.

7.1 Aplicações homotópicas


Faremos, inicialmente, algumas considerações sobre o conceito de homo-
topia diferenciável.

Definição 7.1.1. Duas aplicações diferenciáveis f, g : M m → N n , entre


variedades diferenciáveis, são chamadas homotópicas se existe uma aplicação
diferenciável F : M × [0, 1] → N tal que

F (p, 0) = f (p) e F (p, 1) = g(p),

para todo p ∈ M . A aplicação F chama-se uma homotopia entre f e g, e


escrevemos, neste caso, f ' g.

95
Dado uma homotopia F : M × [0, 1] → N consideremos, para cada
t ∈ [0, 1], a aplicação diferenciável Ft : M → N dada por
Ft (p) = F (p, t). (7.1)
Assim, considerar uma homotopia F equivale a definir uma família diferen-
ciável a 1-parâmetro
t ∈ [0, 1] 7→ Ft ∈ C ∞ (M ; N ) (7.2)
de aplicações de M em N , com F0 = f e F1 = g. A diferenciabilidade da
família (7.2) significa que a aplicação
(p, t) ∈ M × [0, 1] 7→ Ft (p) ∈ N
é diferenciável.
Intuitivamente, uma homotopia pode ser pensada como um processo de
deformação diferenciável da aplicação f sobre g. Essa deformação ocorre
durante uma unidade de tempo; no instante t = 0 temos f , e no instante
t = 1 temos a aplicação g. Nos instantes intermediários, 0 < t < 1, as
aplicações Ft fornecem os estágios intermediários da deformação.
Exemplo 7.1.2. Quaisquer duas aplicações diferenciáveis f, g : M m → Rn
são homotópicas através da homotopia linear. Ou seja, defina a aplicação
F : M × [0, 1] → Rn pondo
F (p, t) = (1 − t)f (p) + tg(p).
Decorre, em particular, que qualquer aplicação diferenciável f : M → Rn é
homotópica à aplicação nula, através da homotopia F (p, t) = (1 − t)f (p).
Exemplo 7.1.3. Considere duas aplicações diferenciáveis f, g : M m → Sn
tais que, para todo p ∈ M , f (p) e g(p) nunca são pontos antipodais, i.e.,
f (p) 6= −g(p). Essa hipótese implica que (1 − t)f (p) + tg(p) 6= 0 para
quaisquer t ∈ [0, 1] e p ∈ M . Assim, a aplicação F : M × [0, 1] → Sn ,
definida por
(1 − t)f (p) + tg(p)
F (p, t) = ,
k(1 − t)f (p) + tg(p)k
é uma homotopia entre f e g. Note que, quando t percorre o intervalo [0, 1],
F (p, t) descreve um arco de círculo na esfera Sn ligando f (p) a g(p).
Exemplo 7.1.4. Situações particulares do Exemplo 7.1.3 podem ser obtidas
como segue. Se f : Sn → Sn não tem pontos fixos, então f é homotópica
à aplicação antípoda A : Sn → Sn , dada por A(p) = −p. Se f : Sn → Sn
é tal que f (p) 6= −p, para todo p ∈ Sn , então f é homotópica à aplicação
identidade de Sn .

96
7.2 O grau módulo 2
Considere agora uma aplicação diferenciável f : M → N entre duas
variedades diferenciáveis de mesma dimensão, com M compacta. Dado um
ponto q ∈ N denotemos, como na Seção 3.6, por #f −1 (q) a cardinalidade
do conjunto solução da equação f (p) = q, o qual é finita quando q é valor
regular para f . Nesta seção mostraremos que, quando N é conexa, #f −1 (q)
mod 2 é o mesmo para todo valor regular q ∈ N de f . Este valor comum
será chamado o grau de f módulo 2, e será denotado por deg2 f .
O lema seguinte nos diz que o grau módulo 2 de uma aplicação depende
somente de sua classe de homotopia.
Lema 7.2.1 (Homotopia). Sejam f, g : M → N aplicações homotópicas
entre variedades de mesma dimensão, onde M é fechada. Se y ∈ N é valor
regular para f e g, então
#f −1 (y) ≡ #g −1 (y) mod 2.
Demonstração. Seja F : M × [0, 1] → N uma homotopia entre f e g. Supo-
nhamos, inicialmente, que y ∈ N também seja valor regular para F . Então
F −1 (y) é uma subvariedade compacta de dimensão 1, cuja fronteira é o con-
junto
F −1 (y) ∩ M × {0} ∪ M × {1} = f −1 (y) × {0} ∪ g −1 (y) × {1} .
  

Assim, a cardinalidade dos pontos na fronteira de F −1 (y) é


#f −1 (y) + #g −1 (y)
que, pelo Teorema 6.4.1, é um número par, logo #f −1 (y) ≡ #g −1 (y) mod 2.
Suponha agora que y ∈ N não seja valor regular para F . Do Lema 3.6.5 te-
mos que #f −1 (y) e #g −1 (y) são funções localmente constantes de y. Assim,
existe uma vizinhança V de y em N tal que
#f −1 (z) = #f −1 (y), (7.3)
para todo z ∈ V ∩ Reg(f ). Analogamente, existe uma vizinhança W de y
em N tal que
#g −1 (z) = #g −1 (y), (7.4)
para todo z ∈ W ∩ Reg(g). Escolha um valor regular z para F pertencente
à interseção V ∩ W . Então, usando (7.3), (7.4) e a primeira parte da prova,
obtemos
#f −1 (y) = #f −1 (z) ≡ #g −1 (z) = #g −1 (y),
e isso finaliza a demonstração.

97
Dois difeomorfismos f, g : M → N são chamados isotópicos se existe
uma homotopia F : M × [0, 1] → N entre f e g de modo que, para cada
t ∈ [0, 1], a aplicação Ft : M → N dada em (7.1) é um difeomorfismo. Neste
caso, dizemos que F é uma isotopia entre f e g. O resultado seguinte, cuja
demonstração pode ser encontrada em [7], é conhecido como lema da isotopia
(ou lema da homogeneidade).
Lema 7.2.2 (Isotopia). Seja M uma variedade diferenciável conexa. Dados
dois pontos p, q ∈ M , existe um difeomorfismo f : M → M , isotópico à
aplicação identidade de M , tal que f (p) = q.
Podemos agora provar o resultado central dessa seção.
Teorema 7.2.3. Seja f : M → N uma aplicação diferenciável entre vari-
edades de mesma dimensão, onde M é fechada e N é conexa. Se y, z ∈ N
são valores regulares para f , então

#f −1 (y) ≡ #f −1 (z) mod 2.

Essa classe comum, denotada por deg2 f , depende somente da classe de ho-
motopia de f .
Demonstração. Dados dois valores regulares y, z ∈ N para f , segue do Lema
7.2.2 que existe um difeomorfismo h : N → N tal que h(y) = z e h é isotópico
à aplicação identidade id : N → N . Como h é difeomorfismo, z é também
valor regular para h◦f . Além disso, como f ' f e h ' id, segue do Exercício
7.2.2 que h ◦ f é homotópica a f . Assim, pelo Lema 7.2.1, segue que

#(h ◦ f )−1 (z) ≡ #f −1 (z) mod 2.

Como
(h ◦ f )−1 (z) = f −1 (h−1 (z)) = f −1 (y),
temos #(h ◦ f )−1 (z) = #f −1 (y). Portanto,

#f −1 (y) ≡ #f −1 (z) mod 2.

Suponha agora que f é homotópica a uma aplicação diferenciável g : M → N .


Pelo Teorema de Sard, existe y ∈ N que é valor regular para f e g. A
congruência

deg2 f ≡ #f −1 (y) ≡ #g −1 (y) ≡ deg2 g mod 2

mostra que deg2 f é um invariante homotópico, e isso completa a demons-


tração.

98
Calcular o grau módulo 2 de uma aplicação diferenciável f é simples:
basta escolher um valor regular arbitrário y para f e contar os pontos da
pré-imagem f −1 (y). Assim, deg2 f ≡ #f −1 (y) mod 2. Vejamos alguns
exemplos e aplicações simples da invariância homotópica do grau mod 2.

Exemplo 7.2.4. Considere a aplicação diferenciável f : S1 → S1 definida


por f (z) = z n , com n ≥ 0. Para cada z ∈ S1 , temos

df (z) · v = nz n−1 · v,

para todo v ∈ Tz S1 . Assim, df (z) = 0 se, e somente se, z = 0. Disso decorre


que todo ponto z ∈ S1 é ponto regular para f . Como a equação f (z) = w
admite n soluções distintas, concluimos que deg2 f ≡ 0 mod 2, se n é par,
e deg2 f ≡ 1 mod 2, se n é ímpar.

Exemplo 7.2.5. Uma aplicação constante f : M → M tem sempre grau


mod 2 par. A aplicação identidade id : M → M , no entanto, tem grau mod
2 ímpar. Assim, a aplicação identidade de uma superfície fechada M não
pode ser homotópica a uma aplicação constante.

Exemplo 7.2.6. O Exemplo 7.2.5 pode ser usado para mostrar que não
existe uma retração da esfera Sn−1 ⊂ Dn , ou seja, não existe uma aplicação
diferenciável f : Dn → Sn−1 tal que f |Sn−1 = id. De fato, se tal aplicação f
existisse, obteríamos uma homotopia F : Sn−1 × [0, 1] → Sn−1 , dada por

F (x, t) = f (tx),

entre uma aplicação constante e a aplicação identidade de Sn−1 .

99
7.3 Exercícios
7.1
1. Mostre que a relação de homotopia ' é uma relação de equivalência no
conjunto das aplicações diferenciáveis de M em N .

2. Sejam f, f 0 : M → N e g, g 0 : N → P aplicações diferenciáveis. Se f ' f 0


e g ' g 0 , mostre que g ◦ f ' g 0 ◦ f 0 , i.e., a composição de aplicações preserva
homotopia.

3. Se n é ímpar, prove que a aplicação antípoda A : Sn → Sn é homotópica


à aplicação identidade de Sn .

4. Seja f : M m → Sn uma aplicação diferenciável que não é sobrejetora.


Mostre que f é homotópica a uma aplicação constante.

5. Uma superfície M é dita simplesmente conexa se toda aplicação diferen-


ciável α : S1 → M é homotópica à aplicação constante. Prove que a esfera
Sn , com n > 1, é simplesmente conexa.

7.2
1. Prove que todo difeomorfismo f : Rn → Rn , que preserva orientação, é
isotópico à aplicação identidade.

100
Capítulo 8

Variedades orientáveis

O objetivo deste capítulo é discutir a propriedade de orientação das va-


riedades diferenciáveis. Grosso modo, a orientação de um certo objeto tem
a ver com sua posição em relação ao ambiente. Por exemplo, a orientação
de uma reta é simplesmente uma escolha de direção ao longo dela.
Como o estudo pontual de uma variedade se reduz à álgebra linear do
respectivo espaço tangente, recapitularemos inicialmente a noção de espaço
vetorial orientado e, em seguida, introduziremos a noção de orientação para
as variedades diferenciáveis.

8.1 Orientação em espaços vetoriais


Consideremos um espaço vetorial real E de dimensão n. Dados duas
bases E = {e1 , . . . , en } e F = {f1 , . . . , fn } para E, denotemos por (aij ) a
matriz real n × n dada por
n
X
fj = aij ei , (8.1)
i=1

para todo 1 ≤ j ≤ n. A matriz (8.1) é sempre inversível e é chamada a


matriz de passagem da base E para a base F. Diremos que as bases E e
F definem a mesma orientação em E se a matriz de passagem (8.1) tem
determinante positivo, e escrevemos

E ≡ F. (8.2)

Esta propriedade define uma relação de equivalência no conjunto de todas


as bases de E, e cada classe de equivalência, segundo esta relação, chama-se

101
uma orientação no espaço vetorial E. Além disso, a relação ≡ possui duas
classes de equivalência, ou seja, o espaço vetorial E admite duas orientações.
Definição 8.1.1. Um espaço vetorial orientado é um par (E, O), onde E é
um espaço vetorial e O é uma orientação em E.
Fixada uma orientação O em E, a outra orientação de E será chamada
orientação oposta e será denotada por −O. As bases pertencentes a O serão
chamadas positivas, enquanto as outras de negativas. Um isomorfismo linear
T : E → F entre os espaços vetoriais orientados E e F é dito ser positivo se
transforma bases positivas de E em bases positivas de F .
Exemplo 8.1.2. O espaço Euclidiano Rn será considerado orientado exigin-
do-se que a base canônica seja positiva. Assim, em relação à base canônica
de Rn , um isomorfismo T : Rn → Rn é positivo se, e somente se, det(T ) > 0.
Seja T : E → F um isomorfismo linear e suponha que um dos espaços,
digamos E, é orientado. A exigência de que T seja positivo determina,
univocamente, uma orientação em F declarando-se que as bases que definem
a orientação em F são as imagens das bases positivas de E através de T .

8.2 Variedades orientáveis


Estenderemos agora a noção de orientabilidade a cada espaço tangente
de uma dada variedade diferenciável.
Duas cartas locais (U, ϕ) e (V, ψ) de uma variedade diferenciável M n são
são ditas coerentes se U ∩ V = ∅ ou, se U ∩ V 6= ∅, a diferencial d(ψ ◦ ϕ−1 )(x)
tem determinante positivo em todos os pontos x ∈ ϕ(U ∩ V ). Observe que,
quando U ∩ V 6= ∅, a diferencial da mudança de coordenadas ψ ◦ ϕ−1 tem
determinante diferente de zero em todos os pontos x ∈ ϕ(U ∩ V ). Como o
determinante é uma função contínua em x, seu sinal é constante em cada
componente conexa do aberto ϕ(U ∩ V ) ⊂ Rn .
Um atlas A em M é chamado coerente quando quaisquer duas cartas
locais (U, ϕ), (V, ψ) ∈ A são coerentes. Além disso, um atlas coerente em M
chama-se maximal se não está propriamente contido em nenhum outro atlas
coerente em M . Note que todo atlas coerente A está contido num único
atlas coerente maximal, aquele constituído de todas as cartas locais de M
que são coerentes com todas as cartas de A.
Definição 8.2.1. Uma variedade diferenciável M é dita orientável se existe
um atlas coerente em M . Uma variedade orientada é um par (M, A), onde
M é uma variedade diferenciável e A é um atlas coerente maximal.

102
Neste caso, o atlas A é chamado uma orientação para a variedade M e as
cartas locais (U, ϕ) ∈ A são ditas positivas. Assim, uma variedade orientada
é uma variedade orientável no qual se fez a escolha de uma orientação.

Exemplo 8.2.2. O espaço Euclidiano Rn é uma variedade orientável, pois o


atlas em Rn determinado pela aplicação identidade é coerente. A orientação
definida por este atlas é chamada a orientação canônica de Rn .

Exemplo 8.2.3. Todo subconjunto aberto U de uma variedade orientável


M também é orientável. De fato, fixado um atlas coerente A em M , o atlas
em U definido pelas restrições a U das cartas locais positivas de M também
é um atlas coerente, definindo o que chamaremos de orientação induzida.

Proposição 8.2.4. Uma orientação numa variedade M n determina uma


orientação em cada espaço tangente. Reciprocamente, suponha que seja
dada uma orientação Op em cada espaço tangente Tp M de modo que exista
uma carta local (U, ϕ) em M , com p ∈ U , tal que dϕ(q) preserva orientação,
para todo q ∈ U . Então, M é orientável.

Demonstração. Seja A uma orientação em M . Dado um ponto p ∈ M ,


considere uma carta local (U, ϕ) ∈ A, com p ∈ U . Definimos uma orientação
Op em Tp M declarando que {dϕ−1 (x) · ei } seja uma base positiva para Tp M ,
onde x = ϕ(p) e {e1 , . . . , en } denota a base canônica de Rn . Se (V, ψ) é outra
carta local em A, com y = ψ(p), a base {dψ −1 (y) · ei } também é positiva,
pois
dψ −1 (y) = dϕ−1 (x) ◦ d(ψ ◦ ϕ−1 )−1 (y).
é composta de isomorfismos positivos. Reciprocamente, denotemos por A o
atlas em M formado por todas as cartas locais dadas como no enunciado.
Se (U, ϕ) e (V, ψ) são cartas locais em A, com U ∩ V 6= ∅, a mudança
de coordenadas ψ ◦ ϕ−1 tem determinante positivo em todos os pontos do
domínio, pois d(ψ◦ϕ−1 )(x) é a composta de dois isomorfismos que preservam
orientação, para todo x ∈ ϕ(U ∩ V ).

Um difeomorfismo local f : M → N entre duas variedades orientadas M


e N é dito positivo se df (p) : Tp M → Tf (p) N é um isomorfismo positivo,
para todo p ∈ M . Diremos que f é negativo quando, para todo p ∈ M , o
isomorfismo linear df (p) é negativo. Se M é desconexa, é bem possível que
um difeomorfismo local f : M → N não seja positivo nem negativo. No
entanto, isso não ocorre quando M é conexa.

103
Proposição 8.2.5. Se f : M n → N n é um difeomorfismo local entre as
variedades orientadas M e N , o conjunto
A = {p ∈ M : df (p) preserva orientação}
é aberto em M .
Demonstração. Denotemos por A, B as orientações em M e N , respecti-
vamente. Dado um ponto p ∈ A, considere cartas locais (U, ϕ) ∈ A e
(V, ψ) ∈ B, com p ∈ U e f (U ) ⊂ V . Como df (p) preserva orientação, o
mesmo ocorre com a diferencial da representação ψ ◦ f ◦ ϕ−1 no ponto ϕ(p).
Pela continuidade da função determinante, existe um aberto W em Rn , com
ϕ(p) ∈ W ⊂ ϕ(U ), tal que d(ψ ◦ f ◦ ϕ−1 )(x) preserva orientação, para todo
x ∈ W . Disso decorre que df (q) preserva orientação, para todo q ∈ ϕ−1 (W ).
Isso mostra que ϕ−1 (W ) é um aberto em M , com p ∈ ϕ−1 (W ) ⊂ A, pro-
vando que A é aberto.

De forma inteiramente análoga, podemos provar que o conjunto formado


pelos pontos p ∈ M tais que df (p) inverte orientação também é aberto em
M . Disso decorre, em particular, que se M é uma variedade conexa, então
ou f preserva orientação ou inverte orientação.

8.3 Subvariedades Euclidianas orientáveis


A noção de orientação em subvariedades Euclidianas pode ser tratada de
maneira mais simples, por exemplo em termos de campos normais. Veremos
nesta seção que a existência de tais campos é uma condição suficiente de
orientabilidade.
Dado uma subvariedade Euclidiana M m ⊂ Rn , podemos induzir o pro-
duto interno usual de Rn em cada espaço tangente de M . Ou seja, o produto
interno de dois vetores de Tp M é calculado como se fossem vetores de Rn .
Em particular, está bem definido o espaço normal a M em p, denotado por
Tp M ⊥ , constituído de todos os vetores w ∈ Rn tais que hv, wi = 0, para
todo v ∈ Tp M . Note que dim(Tp M ⊥ ) = n − m. Os elementos de Tp M ⊥ são
chamados de vetores normais a M em p.
Um campo normal a uma subvariedade Euclidiana M em Rn é simples-
mente uma aplicação contínua η : M → Rn tal que η(p) é ortogonal a Tp M
em todo ponto p ∈ M .
Proposição 8.3.1. Considere uma subvariedade Euclidiana M m em Rn e
suponha que existam n − m campos normais η1 , . . . , ηn−m : M → Rn que
são linearmente independentes. Então, M é orientável.

104
Demonstração. Para cada ponto p ∈ M , definimos uma orientação em Tp M
do seguinte modo: uma base {v1 , . . . , vm } de Tp M é positiva se, e somente
se,
{v1 , . . . , vm , η1 (p), . . . , ηn−m (p)}
é uma base positiva de Rn . Dado uma parametrização ϕ : U → ϕ(U ) em
M , com p ∈ ϕ(U ) e U conexo, trocando o sinal de ϕ (basta, por exemplo,
compor com um isomorfismo de Rm que inverte orientação), caso necessário,
podemos supor que

{dϕ(x) · e1 , . . . , dϕ(x) · em , η1 (ϕ(x)), . . . , ηn−m (ϕ(x))}

seja uma base positiva de Rn , para todo x ∈ U . Portanto, para cada p ∈ M ,


podemos escolher uma parametrização ϕ : U → ϕ(U ) em M , com p ∈ ϕ(U ),
tal que dϕ(x) : Rm → Tϕ(x) M seja um isomorfismo que preserva orientação,
para todo x ∈ U . Logo, pela Proposição 8.2.4, segue que M é orientável.

No caso de hipersuperfícies em Rn , a existência de um campo normal é


também condição necessária para orientabilidade.

Teorema 8.3.2. Uma hipersuperfície M n ⊂ Rn+1 é orientável se, e somente


se, existe um campo normal não-nulo η : M n → Rn+1 .

Demonstração. A condição suficiente segue da Proposição 8.3.1, observando


que o campo η determina, em cada ponto p ∈ M , uma base {η(p)} de Tp M ⊥ .
Reciprocamente, suponha M orientável. Dado um ponto p ∈ M , considere
uma parametrização positiva ϕ : U → ϕ(U ) de M , com p = ϕ(x), e denote
por η(p) = η(ϕ(x)) o único vetor unitário tal que

{dϕ(x) · e1 , . . . , dϕ(x) · en , η(ϕ(x))} (8.3)

seja uma base positiva em Rn+1 . Ou seja, a matriz Aϕ (x) cujas n+1 colunas
são os vetores aí indicados tem determinante positivo. Se ψ : V → ψ(V ) é
outra parametrização positiva de M , com p = ψ(y), então a matriz Aψ (y),
considerada como em (8.3), é tal que Aϕ (x) = Aψ (y) · A, onde

d(ψ −1 ◦ ϕ)(x) 0
 
A= .
0 I

Como ϕ e ψ são coerentes, temos det d(ψ −1 ◦ ϕ)(x) > 0, logo det A > 0.


Assim, det Aϕ (x) > 0 se, e somente se, det Aψ (y) > 0. Resta mostrar que
o campo η é contínuo. Para isso, dado um ponto p ∈ M , seja V uma
vizinhança coordenada conexa de p em M que é pré-imagem f −1 (c) de valor

105
regular. Assim, está definido em V um campo normal unitário contínuo
ξ : V → Rn+1 dado por ξ(p) = gradf (p)/kgradf (p)k. Se ϕ : U → ϕ(U ) é
uma parametrização positiva de M , com U conexo, ou se tem

det dϕ(x) · e1 , . . . , dϕ(x) · en , ξ(ϕ(x)) > 0

para todo x ∈ U , ou esse determinante é negativo em todos os pontos de U .


No primeiro caso, temos ξ(p) = η(p) para todo p = ϕ(x) ∈ V e, no segundo
caso, temos ξ(p) = −η(p) para todo p = ϕ(x). Em qualquer caso, η é
contínuo em V . Como as vizinhanças coordendas V realizam uma cobertura
para M , concluimos que η é globalmente contínuo.

Exemplo 8.3.3. Um exemplo simples de hipersuperfície orientável é a esfera


Sn ⊂ Rn+1 . Basta considerar o campo posição η : Sn → Rn+1 dado por
η(p) = p. O campo η é contínuo e, pelo Exemplo 1.3.7, é normal a Sn .

Uma aplicação simples do Teorema 8.3.2 é analisar a orientabilidade da


esfera Sn através da aplicação antípoda.

Proposição 8.3.4. A aplicação antípoda A : Sn → Sn preserva a orientação


da esfera Sn se, e somente se, n é impar.

Demonstração. A orientação de Sn , definida pelo campo posição η(p) = p,


de acordo com o Teorema 8.3.2, faz com que uma base {v1 , . . . , vn } de Tp Sn
seja positiva se, e somente se, {v1 , . . . , vn , p} é base positiva de Rn+1 , ou seja,
se det(v1 , . . . , vn , p) > 0. Portanto, escolhida uma base positiva {v1 , . . . , vn }
de Tp Sn , o isomorfismo dA(p) = −id preserva orientação se, e somente se,

det(−v1 , . . . , −vn , −p) = (−1)n+1 det(v1 , . . . , vn , p) > 0,

ou seja, se, e somente se, n é ímpar. Portanto, a aplicação antípoda A


preserva a orientação de Sn quando n é ímpar e inverte quando n é par.

O espaço projetivo real RP n foi definido no Exemplo 2.2.4 como o espaço


quociente de Rn+1 \{0} pela relação x ∼ y ⇔ y = tx, para algum t 6= 0. Note
que a projeção π : Rn+1 → RP n , restrita à esfera Sn , é sobrejetora. Disso
decorre, em particular, que RP n = π(Sn ) é compacto. Podemos considerar
então o espaço projetivo RP n como o espaço quociente Sn /∼.

Exemplo 8.3.5. O espaço projetivo real RP n é orientável se, e somente


se, n é impar. De fato, dado um natural n par, suponha que RP n seja
orientável. A orientação em RP n induz uma orientação em Sn declarando
que uma base {v1 , . . . , vn } de Tp Sn é positiva se {dπ(p) · v1 , . . . , dπ(p) · vn } é

106
base positiva de Tπ(p) RP n , onde π : Sn → RP n é a projeção canônica. Note
agora que o difeomorfismo A induz um único difeomorfismo em RP n que
torna o diagrama
Sn
A / Sn

π π
 
RP n
id / RP n

comutativo, e que neste caso é a aplicação identidade. Isso implica que A


é um difeomorfismo que preserva a orientação de Sn , contradizendo a Pro-
posição 8.3.4. Se n é ímpar, induzimos uma orientação em RP n através da
orientação de Sn . Uma base {w1 , . . . , wn } de Tπ(p) RP n é declarada positiva
se existe uma base positiva {v1 , . . . , vn } de Tp Sn , cuja imagem por dπ(p)
é exatamente {w1 , . . . , wn }. A escolha da orientação em Tπ(p) RP n não é
ambígua em π(p) = π(−p), pois a aplicação antípoda preserva orientação.

8.4 Orientação em variedades com fronteira


Uma variedade com fronteira M n , como discutido na Seção 6.2, tem a
propriedade que sua fronteira ∂M é uma subvariedade de M de dimensão
n − 1. Dado um ponto p ∈ ∂M , no espaço tangente Tp M tem um subespaço
vetorial distinguido Tp ∂M e, além disso, temos um semiespaço formado pe-
los vetores tangentes à fronteira mais os vetores que apontam para fora da
variedade. Nesta seção daremos sentido a essa noção que será fundamental
para relacionar as orientações da variedade e de sua fronteira.
De forma análoga ao capítulo anterior, diremos que uma variedade com
fronteira M é orientável se admitir um atlas coerente A. A fim de somente
simplificar a notação, a partir de agora iremos fixar o semiespaço

H = {(x1 , . . . , xn ) ∈ Rn : x1 ≤ 0}.

Assim, como foi estabelecido na Seção 6.2, uma carta local (U, ϕ) em M tem
a propriedade que ϕ(U ) é um aberto em H.
O primeiro objetivo dessa seção é mostrar que uma orientação em M
induz, naturalmente, uma orientação na sua fronteira ∂M . Para isso, intro-
duziremos a noção de vetor que aponta para fora, que será fundamental nos
argumentos que usaremos. Mais precisamente, diremos que um vetor v ∈ Rn
aponta para fora do semiespaço H se v 6∈ H, ou seja, se v = (v1 , . . . , vn )
então v1 > 0. Veremos no resultado a seguir que este conceito é invariante
por difeomorfismos.

107
Lema 8.4.1. Seja f : A → B um difeomorfismo entre abertos do semiespaço
H ⊂ Rn . Se um vetor v ∈ Rn aponta para fora de H então, para cada x ∈ ∂A,
o vetor df (x) · v também aponta para fora de H.

Demonstração. Como, em virtude da Proposição 6.1.3, f (∂A) = ∂B, segue


que para cada x ∈ ∂A tem-se df (x)(∂H) = ∂H. Assim, dado um vetor
w = (w1 , . . . , wn ) ∈ Rn , tem-se df1 (x) · w = 0 se, e somente se, w1 = 0,
onde f = (f1 , . . . , fn ). Como v aponta para fora de H, i.e., v1 > 0, basta
mostrarmos que df1 (x) · v ≥ 0. Se t < 0 então x + tv ∈ H, logo para t < 0
suficientemente pequeno, temos x + tv ∈ int(A), logo f (x + tv) ∈ int(B),
i.e., f1 (x + tv) < 0. Para tais valores de t, temos

f1 (x + tv) − f1 (x) f1 (x + tv)


= > 0.
t t
Tomando o limite quando t → 0− , obtemos df1 (x) · v ≥ 0.

A noção de vetor que aponta para fora pode ser posta também para
variedades com fronteira, da seguinte forma.

Definição 8.4.2. Seja M n uma variedade com fronteira. Dado um ponto


p ∈ ∂M , dizemos que um vetor v ∈ Tp M aponta para fora de M se existe
uma carta local (U, ϕ) em M , com p ∈ U e ϕ(U ) aberto no semiespaço
H ⊂ Rn , tal que dϕ(p) · v é um vertor que aponta para fora de H.

Se (V, ψ) é outra carta local em M , com p ∈ V , segue do Lema 8.4.1 que


dψ(p) · v também aponta para fora de H, pois

dψ(p) · v = d(ψ ◦ ϕ−1 )(ϕ(p)) · dϕ(p) · v.

Isso mostra que a Definição 8.4.2 independe da escolha da carta local.

Teorema 8.4.3. Se M n é uma variedade com fronteira orientável, então


sua fronteira ∂M também é orientável.

Demonstração. Fixemos um atlas coerente A em M , e suponhamos que o


domínio de todas as cartas locais (U, ϕ) de A sejam conexos, com ϕ(U ) aberto
no semiespaço H. Denotemos por Ae o conjunto das restrições ϕ e = ϕ|∂U das
cartas (U, ϕ) ∈ A tais que ∂U = U ∩ ∂M 6= ∅. Por construção, Ae é um
atlas em ∂M . Afirmamos que Ae é um atlas coerente em ∂M . De fato, sejam
(U
e , ϕ), e ∈ A,
e (Ve , ψ) e com ∂U ∩∂V 6= ∅. A mudança de coordenadas ξe = ψ◦ e−1
e ϕ
é a restrição do difeomorfismo ξ = ψ◦ϕ−1 à fronteira do seu domínio. Como o
atlas A é coerente, temos det(dξ(x)) > 0 para todo x ∈ ϕ(U ∩V ). Além disso,

108
como ξ é um difeomorfismo, segue da Proposição 6.1.3 que dξ(x)(∂H) = ∂H.
Decorre, em particular, que dξ(x) · ei = (0, a2i , . . . , ani ) para todo 2 ≤ i ≤ n.
Finalmente, como e1 = (1, 0, . . . , 0) aponta para fora de H, segue do Lema
8.4.1 que dξ(x) · e1 = (a11 , . . . , an1 ) também aponta para fora de H, i.e.,
a11 > 0. Assim, a matriz de dξ(x) tem a forma
 
a11 0 . . . 0
 a21 a22 . . . a2n 
dξ(x) =  .
 
.. .. 
 .. . . 
an1 an2 . . . ann

com a11 > 0. Assim,

det(dξ(x)) = a11 · det(dξ(x)),


e

logo det(dξ(x))
e > 0. Portanto, Ae é um atlas coerente em ∂M , e a orientação
definida por A é chamada a orientação induzida em ∂M .
e

Em relação à orientação induzida em ∂M por M , uma base {v1 , . . . , vn−1 }


de Tp (∂M ) é positiva se, e somente se, para qualquer vetor v ∈ Tp M , que
aponte para fora de M , {v, v1 , . . . , vn−1 } é uma base positiva de Tp M . Em
particular, se v(p) ∈ Tp M é o vetor unitário, tangente a M e normal a ∂M
no ponto p, que aponta para fora de M , então {v1 , . . . , vn−1 } ⊂ Tp (∂M )
é uma base positiva se, e somente se, a base {v(p), v1 , . . . , vn−1 } ⊂ Tp M é
positiva.
Exemplo 8.4.4. O intervalo [0, 1] é uma variedade com fronteira de dimen-
são 1. Mostremos que [0, 1] é orientável. De fato, considere as cartas locais
ϕ : [0, 1) → [0, 1) e ψ : (−1, 0] → (0, 1] dadas por ϕ(t) = t e ψ(t) = t + 1. O
domínio de ϕ é um aberto da semirreta [0, +∞), que é um semiespaço de R,
e o domínio de ψ é um aberto do semiespaço (−∞, 0] ⊂ R. A mudança de
coordenadas ψ −1 ◦ ϕ : (0, 1) → (−1, 0) é dada por (ψ −1 ◦ ϕ)(t) = t − 1, cuja
derivada é igual a 1 em todos os pontos. Portanto, A = {ϕ, ψ} é um atlas
coerente, que define a orientação natural de [0, 1].
Observação 8.4.5. A definição de orientação induzida na fronteira para
variedades M n , com n ≥ 2, não se adapta para o caso de dimensão 1. Quando
n = 1, tem-se dim ∂M = 0, i.e., ∂M é um conjunto discreto. Orientar uma
variedade de dimensão zero é, por definição, atribuir um sinal, + ou −, a
cada um de seus pontos. Se n = 1 e M está orientada, a orientação induzida
no ponto p ∈ ∂M será +p se cada vetor que forma uma base positiva de
Tp M apontar para fora de M , e será −p caso contrário.

109
Vejamos o seguinte exemplo.

Exemplo 8.4.6. Orientemos o intervalo fechado M = [0, 1] por meio do


atlas A, dado no Exemplo 8.4.4. Neste caso, temos ∂M = {0, 1}. No ponto
p = 1, uma base positiva para o espaço tangente a M é gerada pelo vetor
e1 , igual a 1, e neste caso, e1 aponta para fora de M . Assim, ao ponto p = 1
atribuimos o sinal +. No ponto p = 0, uma base positiva para Tp M também
é gerada pelo vetor e1 , que neste caso aponta para dentro de M . Assim,
ao ponto p = 0 atribuimos o sinal −. Portanto, a orientação induzida na
fronteira ∂M = {0, 1} atribui o sinal + ao ponto 1 e o sinal − ao ponto 0, e
escrevemos, neste caso, ∂[0, 1] = {−0} ∪ {+1}.

Se M e N são variedades orientadas, com orientações A e B, respecti-


vamente, então o produto M × N é uma variedade orientável (cf. Exercício
8.2.1). As cartas ϕ×ψ, onde ϕ ∈ A e ψ ∈ B, constituem um atlas coerente em
M ×N , que define a orientação produto. De forma mais precisa, a orientação
do espaço tangente a M × N no ponto (p, q) é determinada pela exigência
de que {v1 , . . . , vm , w1 , . . . , wn } seja uma base positiva, onde {v1 , . . . , vm } e
{w1 , . . . , wn } são bases positivas de Tp M e Tq N , respectivamente.
Suponhamos, além disso, que uma das variedades, digamos M , tenha
fronteira. Neste caso, o produto M × N é uma variedade com fronteira
orientável, e a orientação produto é definida, como no caso ∂M = ∂N = ∅,
pelo atlas P constituído das parametrizações ϕ × ψ, onde ϕ ∈ A e ψ ∈ B.
Vejamos o seguinte exemplo.

Exemplo 8.4.7. Considere o produto M × [0, 1], onde M é uma variedade


sem fronteira orientada. Consideremos o intervalo [0, 1] orientado como na
Observação 8.4.5. Temos ∂(M × [0, 1]) = M0 ∪ M1 , onde M0 = M × {0} e
M1 = M × {1}. Consideremos em M0 e M1 , respectivamente, as orientações
segundo as quais os difeomorfismos canônicos f0 : M → M0 e f1 : M → M1 ,
dados por f0 (p) = (p, 0) e f1 (p) = (p, 1), são positivos. Afirmamos que a
orientação induzida na fronteira ∂(M × [0, 1]) = M0 ∪ M1 , pela orientação
produto de M × [0, 1], coincide com a de M1 , e é a oposta a de M0 . De fato,
em cada ponto (p, t) ∈ M × [0, 1], uma base positiva de

T(p,t) (M × [0, 1]) = Tp M × R,

relativo à orientação produto, tem a forma {v1 , . . . , vn , e1 }, onde {v1 , . . . , vn }


é uma base positiva de Tp M na orientação de M , e e1 é o vetor da base
canônica de R, igual a 1. No ponto t = 1, o vetor e1 aponta para fora de
[0, 1], logo e1 ∈ T(p,1) (M × [0, 1]) aponta para fora de M × [0, 1] no ponto

110
(p, 1). Como {v1 , . . . , vn , e1 } é uma base positiva de T(p,1) (M × [0, 1]), segue
que {v1 , . . . , vn } é uma base positiva na orientação induzida em ∂(M × [0, 1])
no ponto (p, 1), ou seja, em M1 . Por outro lado, e1 aponta para dentro de
[0, 1] no ponto t = 0 e, assim, segue que a mesma base {v1 , . . . , vn } é negativa
no ponto (p, 0) ∈ M0 .

111
8.5 Exercícios
8.1
1. Prove que a relação ≡ dada em (8.2) é uma relação de equivalência que
possui, exatamente, duas classes de equivalência.

8.2
1. Prove que o produto M × N de duas variedades é orientável se, e somente
se, cada uma das variedades M e N é orientável.

2. Prove que numa variedade orientável conexa existem, exatamente, duas


possíveis orientações.

3. Seja f : M → N um difeomorfismo local entre duas variedades. Prove


que M é orientável se, e somente se, N é orientável.

4. Considere uma variedade diferenciável M que admite um atlas formado


por duas cartas locais (U, ϕ) e (V, ψ), com U ∩ V conexo. Prove que M é
orientável. Conclua, em particular, que a esfera Sn é orientável.

8.3
1. Dado uma função diferenciável f : U → R, definida no aberto U ⊂ Rn , o
gradiente de f no ponto x ∈ U é o vetor gradf (x) em Rn definido por

hgradf (x), vi = df (x) · v,

para todo v ∈ Rn . Se c ∈ R é valor regular para f , prove que gradf (p) é


ortogonal a Tp M , para todo p ∈ M = f −1 (c).

2. Dados uma aplicação diferenciável f : Rm → Rn e c ∈ Rn um valor


regular para f , prove que M = f −1 (c) é uma subvariedade orientável.

3. Considere a aplicação f : Sn × R → Rn+1 definida por f (x, t) = et x.


Prove que f é um difeomorfismo do cilindro Sn × R sobre o aberto Rn+1 \{0}
de Rn+1 , e conclua daí que Sn é orientável.

4. Seja M ⊂ M (2 × 3) o subconjunto das matrizes de ordem 2 × 3, cujo


posto é igual a 1. Prove que M é uma subvariedade não-orientável em R6 .

112
Capítulo 9

Teoria de interseção

9.1 Número de interseção


Nesta seção aplicaremos os conceitos de orientabilidade e transversali-
dade no estudo de propriedades topológicas de variedades e aplicações di-
ferenciáveis. O objetivo é definir o número de interseção de uma aplicação
diferenciável f : M → N em relação à uma subvariedade Z ⊂ N , denotado
por I(f, Z), que é o número de pontos na pré-imagem f −1 (Z) associados
com sinais ±1, dependendo da maneira que f se comporta, localmente, com
as orientações de M , N e Z.
Como exemplo simples a fim de ilustrar a motivação, considere uma curva
fechada simples f : S1 → R2 e seja Z o círculo unitário S1 , como subvariedade
de R2 . A interseção de f com Z é contada positiva num ponto de interseção
se o vetor tangente positivo a f e o vetor tangente positivo a Z formam uma
base positiva para R2 . Assim, quando f intercepta o círculo, de fora para
dentro, a interseção é positiva, e quando f intercepta o círculo de dentro
para fora, a interseção é negativa (ou vice-versa, dependendo da escolha da
orientação).
Seja f : M m → N n uma aplicação diferenciável, transversal a uma sub-
variedade fechada Z k de N , onde M e N são variedades orientadas, com
M compacta. Em relação à orientação induzida de N , a subvariedade Z
também é uma variedade orientada. Suponhamos que as dimensões das va-
riedades satisfaçam m + k = n. Disso decorre, em particular, que f −1 (Z)
é uma subvariedade de dimensão zero em M , logo é um conjunto finito de
pontos em virtude da compacidade de M . O que faremos a partir de agora
é estudar a interseção de f e Z, i.e., as soluções da equação f (p) ∈ Z.
Dado um ponto p ∈ f −1 (Z), a condição m + k = n nas dimensões das

113
variedades e a transversalidade de f e Z implicam que

df (p)(Tp M ) ⊕ Tf (p) Z = Tf (p) N (9.1)

é uma soma direta e a diferencial df (p) é injetora. Assim, o isomorfismo


linear df (p) : Tp M → df (p)(Tp M ) induz uma orientação em df (p)(Tp M ),
induzida da orientação de Tp M . Mais precisamente, uma base {v1 , . . . , vm }
para df (p)(Tp M ) é declarada positiva se é imagem, através de df (p), de uma
base positiva de Tp M .
O número orientado de f com Z, em relação a um ponto p ∈ f −1 (Z),
denotado por ip (f ), é definido como sendo +1 se a orientação na soma direta
do lado esquerdo de (9.1) coincide com a orientação em Tf (p) N , e −1 caso
contrário. Ou seja, ip (f ) é igual a +1 se dados uma base positiva {v1 , . . . , vm }
para Tp M e uma base positiva {w1 , . . . , wk } para Tf (p) Z, então o conjunto

{df (p) · v1 , . . . , df (p) · vm , w1 , . . . , wk }

forma, nesta ordem, uma base positiva para Tf (p) N .


Definição 9.1.1. O número de interseção de f com Z, denotado por I(f, Z),
é definido como o interiro
X
I(f, Z) = ip (f ).
p∈f −1 (Z)

Provaremos que duas aplicações homotópicas f, g : M → N , ambas


transversais a uma subvariedade Z ⊂ N , têm o mesmo número de interseção.
Teorema 9.1.2. Suponhamos que a variedade M seja a fronteira de uma
variedade compacta e orientada X, no qual M está munida da orientação
induzida de X, e que f admita uma extensão diferenciável F : X → N , que
também seja transversal a Z. Então, I(f, Z) = 0.
Demonstração. Como F é transversal a Z, segue do Teorema 4.3.2 que
F −1 (Z) é uma subvariedade compacta de dimensão 1 em X, logo é união
disjunta de arcos e círculos. As componentes de F −1 (Z) que são círcu-
los não interceptam M , logo não contribuem para I(f, Z). Assim, basta
provar que cada arco de F −1 (Z) contribui zero para I(f, Z). Para isso,
introduzimos uma orientação em F −1 (Z) da seguinte forma. Dado um
ponto p ∈ ∂F −1 (Z), seja {v0 , v1 , . . . , vm } uma base positiva para Tp X, com
v0 ∈ Tp F −1 (Z). Assim, {v1 , . . . , vm } é base para um subespaço complemen-
tar de Tp F −1 (Z) ⊂ Tp X. Como F é transversal a Z, tem-se

span{dF (p) · v0 , . . . , dF (p) · vm } + Tf (p) Z = Tf (p) N. (9.2)

114
Como F (F −1 (Z)) ⊂ Z, tem-se dF (p) · v0 ∈ Tf (p) Z. Assim, a igualdade em
(9.2) torna-se
span{dF (p) · v1 , . . . , dF (p) · vm } ⊕ Tf (p) Z = Tf (p) N, (9.3)
pois estamos assumindo que m + k = n. Declaramos o vetor v0 sendo
positivo em Tp F −1 (Z) se a orientação da soma direta em (9.3) coincide com
a orientação de Tf (p) N . Fixemos um arco A de F −1 (Z), e seja p um ponto
da fronteira de A. Como A e M interceptam-se somente em dois pontos
(as extremidades do arco A) e têm dimensões complementares em X, os
espaços tangentes Tp A e Tp M são complementares em Tp X. Além disso,
no ponto p, o vetor positivo v0 ∈ Tp A é um vetor que aponta para dentro
ou para fora. Suponhamos que v0 aponta para fora, e seja {v1 , . . . , vm }
uma base positiva para Tp M . Assim, {v0 , v1 , . . . , vm } é base positiva para
Tp X logo, pela definição de orientação induzida em A, a orientação na soma
direta do lado esquerdo de (9.3) coincide com a orientação em Tf (p) N . Como
dF (p) = df (p) em Tp M , a afirmação acima vale se, e somente se, a orientação
na soma direta
df (p)(Tp M ) ⊕ Tf (p) Z = Tf (p) N
coincide com a orientação em Tf (p) N que, por definição, significa que o nú-
mero de interseção de f em p é +1. Caso v0 apontasse para dentro, o mesmo
argumento mostra que ip (f ) = −1. Como A é um arco, os vetores tangen-
tes positivos apontam para fora numa extremidade, e para dentro na outra.
Assim, os números orientados nos pontos de ∂A são +1 e −1, cuja soma é
zero. Realizando a soma em cada arco, concluímos que I(f, Z) = 0.
Como consequência do Teorema 9.1.2, provaremos que o número de in-
terseção é invariante por homotopia.
Corolário 9.1.3. Sejam f, g : M m → N n duas aplicações homotópicas,
ambas transversais a uma subvariedade Z k ⊂ N , com m + k = n. Então,
I(f, Z) = I(g, Z).
Demonstração. Seja F : M × [0, 1] → N uma homotopia entre f e g, com
F (·, 0) = f e F (·, 1) = g, onde M × [0, 1] está munido da orientação produto,
como no Exemplo 8.4.7. A fronteira de M × [0, 1] é dada por
∂(M × [0, 1]) = M0 ∪ M1 ,
onde M0 = M × {0} e M1 = M × {1}. Assim,
I(∂F, Z) = I(F |M0 ∪M1 , Z) = I(g, Z) − I(f, Z)
que, de acordo com o Teorema 9.1.2, é igual a zero.

115
Veremos na seção seguinte que, em certas situações, o número de inter-
seção I(f, Z) é um invariante homotópico não somente em f mas também
em Z. Observe, inicialmente, que se i : Z → N denota a aplicação inclusão,
podemos ver I(f, Z) como o número de interseção das aplicações f e i. Essa
observação simples motiva então a seguinte

Definição 9.1.4. Duas aplicações diferenciáveis f : M → N e g : Z → N


são ditas transversais se

df (p)(Tp M ) + dg(q)(Tq Z) = Ty N, (9.4)

onde p ∈ M e q ∈ Z são tais que f (p) = g(q) = y.

Neste caso, denotaremos f −


tg. Note que, quando m + k = n, a soma em
(9.4) torna-se uma soma direta

df (p)(Tp M ) ⊕ dg(q)(Tq Z) = Ty N, (9.5)

e as diferenciais df (p) e dg(q) são injetoras. A partir das aplicações f e


g, podemos considerar a aplicação a aplicação f × g : M × Z → N × N .
Afirmamos que a transversalidade de f e g é equivalente à transversalidade
entre f × g e a diagonal ∆(N ) de N ,

∆(N ) = {(y, y) : y ∈ N }.

Proposição 9.1.5. Considere duas aplicações diferenciáveis f : M m → N n


e g : Z k → N n , com m + k = n. Então, f e g são transversais se, e somente
se, f × g é transversal à diagonal ∆(N ).

Demonstração. Temos:

f−
tg ⇔ df (p)(Tp M ) ⊕ dg(q)(Tq Z) = Ty N
⇔ df (p)(Tp M ) ∩ dg(q)(Tq Z) = {0}

⇔ d(f × g)(p, q) Tp M ⊕ Tq Z ∩ ∆(Ty N ) = {0}
⇔ df (p)(Tp M ) ⊕ dg(q)(Tq Z) ∩ ∆(Ty N ) = {0}.

Ou seja,

f−

tg ⇔ d(f × g)(p, q) Tp M ⊕ Tq Z ⊕ ∆(Ty N ) = T(y,y) N × N
⇔ (f × g)−
t∆(N ),

como queríamos.

116
Decorre da Proposição 9.1.5 que se f : M m → N n e g : Z k → N n
são transversais, com m + k = n, então a aplicação f × g é transversal à
subvariedade ∆(N ) de N × N . Como

dim(M × Z) + dim(∆(N )) = dim(N × N ),

decorre do Teorema 4.3.2 que (f × g)−1 (∆(N )) é uma subvariedade de di-


mensão 0 em M × Z. Assim, o conjunto dos pontos (p, q) ∈ M × Z, para
os quais f (p) = g(q), é discreto. Se, além disso, M e Z são compactas, o
conjunto (f × g)−1 (∆(N )) é finito.
As definições de números de orientação e de interseção para f e g são
análogas aquelas para f e Z. De fato, considere duas aplicações transversais
f : M m → N n e g : Z k → N n , com m + k = n e M , Z compactas. Dados
p ∈ M e q ∈ Z, com f (p) = g(q) = y, o número orientado de f e g no ponto
(p, q), denotado por i(p,q) (f, g), é definido como sendo +1 se a orientação na
soma direta do lado esquerdo de (9.5) coincide com a orientação em Ty N , e
−1 caso contrário.
Definição 9.1.6. O número de interseção de f e g, denotado por I(f, g), é
definido pondo X
I(f, g) = i(p,q) (f, g). (9.6)
f (p)=g(q)=y

Observe que a soma em (9.6) é finita, pois o conjunto dos pontos p ∈ M


e q ∈ Z tais que f (p) = g(q) coincide com a pré-imagem (f × g)−1 (∆(N )),
que é finita como vimos acima. No caso em que Z é uma subvariedade de
N , e g : Z → N denota a aplicação de inclusão, então f −tg se, e somente se,

f tZ, e assim I(f, g) = I(f, Z). No caso geral, vale a relação

I(f, g) = (−1)k I(f × g, ∆(N )). (9.7)

Disso decorre, em particular, que I(f, g) é um invariante homotópico, visto


que I(f × g, ∆(N )) o é. Dependendo das dimensões de M e Z, o número de
interseção é simétrico. Mais precisamente, tem-se

I(f, g) = (−1)m·k I(g, f ). (9.8)

Se M denota uma variedade compacta e orientada, a característica de


Euler de M , denotada por χ(M ), é usualmente definida por

χ(M ) = I(∆(M ), ∆(M )).

Decorre diretamente das equações (9.7) e (9.8) a seguinte

117
Proposição 9.1.7. Se a dimensão da variedade M é ímpar, então χ(M ) = 0.

Por enquanto, apenas mencionaremos que a característica de Euler está


intimamente relacionada com campos vetoriais. Se X é um campo vetorial
em M , com somente um número finito de singularidades, o fluxo de X con-
siste de uma família de aplicações homotópicas ft : M → M , com f0 = id.
Assim, o gráfico de ft é homotópico a Gr(id) = ∆(M ), logo

I(ft , ∆(M )) = I(∆(M ), ∆(M )) = χ(M ).

Os pontos de interseção de Gr(ft ) e ∆(M ) são, por definição, os pontos fixos


de ft e, para t suficientemente pequeno, tais pontos fixos são as singularidades
de X. O teorema de Poincaré-Hopf, que será visto na Seção ??, fará a
conexão entre χ(M ) e as singularidades de X.

9.2 O grau de uma aplicação


Um caso particular simples do número de interseção é quando a subvari-
edade Z é um valor regular para a aplicação. Mais precisamente, considere
duas variedades orientadas M e N , de mesma dimensão, e f : M → N uma
aplicação diferenciável. Assim, se p ∈ M é um ponto regular para f , então
df (p) é um isomorfismo linear entre os espaços vetoriais orientados Tp M e
Tf (p) N . Quando M é compacta e z ∈ N é um valor regular para f , o número
de interseção I(f, {z}) será chamado o grau da aplicação f relativo a z, e
denotado por deg(f ; z). Ou seja,

deg(f ; z) = I(f, {z}).

Observe que, neste caso, o número orientado ip (f ), em relação a um ponto


p ∈ f −1 (z), coincide com o sinal de df (p), ou seja,

+1, se df (p) é positivo
ip (f ) = sign df (p) = .
−1, se df (p) é negativo

Portanto, X
deg(f ; z) = sign df (p).
p∈f −1 (z)

Afirmamos que, quando N é conexa, o inteiro deg(f ; z) não depende da


escolha do valor regular z, e sim da classe de homotopia de f . Este inteiro
será chamado o grau da aplicação f , e será denotado por deg f .

118
Teorema 9.2.1. Seja f : M n → N n uma aplicação diferenciável entre va-
riedades orientáveis, com M fechada e N conexa. Então, o inteiro deg(f ; z)
não depende da escolha do valor regular z ∈ N , e sim somente da classe de
homotopia de f .
Demonstração. Dados dois pontos y, z ∈ Reg(f ), considere um difeomor-
fismo positivo h : N → N , isotópico à aplicação identidade, tal que h(y) = z.
Como f é homotópica a h ◦ f ,

deg(f ; z) = deg(h ◦ f ; z), (9.9)

em virtude do Corolário 9.1.3. Por outro lado, como h preserva orientação,


temos:
X X
deg(f ; y) = sign df (p) = sign d(h ◦ f )(p)
−1
p∈f (y) −1
p∈(h◦f ) (z) (9.10)
= deg(h ◦ f ; z).

Assim, de (9.9) e (9.10), obtemos que deg(f ; y) = deg(f ; z).

Vejamos alguns exemplos.


Exemplo 9.2.2. Se f : M → N é a aplicação constante, então deg f = 0
pois, neste caso, tem-se df (p) = 0, para todo p ∈ M .
Exemplo 9.2.3. A aplicação identidade id : M → M tem sempre grau igual
a 1. Disso decorre, em particular, que um difeomorfismo f : M → M que
inverte orientação (cf. Exercício 9.2.1), onde M é fechada, não é homotópica
à aplicação identidade.
Exemplo 9.2.4. Dado um inteiro 1 ≤ i ≤ n + 1, considere a reflexão
Ri : Sn → Sn em torno do hiperplano xi = 0, i.e.,

Ri (x1 , . . . , xn+1 ) = (x1 , . . . , −xi , . . . , xn+1 ).

Dados x ∈ Sn e v ∈ Tx Sn , com v = (v1 , . . . , vn+1 ) ∈ Rn+1 , temos

dRi (x) · v = (v1 , . . . , −vi , . . . , vn+1 ).

No ponto x = (0, . . . , 0, 1, 0, . . . , 0), a base {e1 , . . . , ei−1 , ei+1 , . . . , en+1 } é


positiva em Tx Sn pois, fazendo v = x, a base {e1 , . . . , ei−1 , v, ei+1 , . . . , en+1 }
é positiva em Rn+1 . No entanto, no ponto y = Ri (x) = (0, . . . , −1, . . . , 0), a
mesma base {e1 , . . . , ei−1 , ei+1 , . . . , en+1 } é negativa em Ty Sn pois, se v = y,
então {e1 , . . . , ei−1 , v, ei+1 , . . . , en+1 } é base negativa em Rn+1 . Disso decorre
que dRi (x) inverte orientação, logo deg Ri = −1.

119
Exemplo 9.2.5. A aplicação antípoda A : Sn → Sn pode ser escrita como
composta de n + 1 reflexões:
A(p) = −p = (R1 ◦ R2 ◦ . . . ◦ Rn+1 )(p).
Assim, usando o Exercício ??.2, concluimos que deg A = (−1)n+1 . Disso
decorre, em particular, que se n é par a aplicação antípoda não é homotópica
à aplicação identidade de Sn .

9.3 O teorema de Brouwer


Veremos nesta seção duas aplicações do conceito do grau. A primeira
delas é outra demonstração do teorema fundamental da Álgebra, e a segunda
o clássico teorema de Brouwer a respeito de campos de vetores na esfera.
Iniciemos observando que, dado uma aplicação diferenciável f : M → N ,
se deg(f ) 6= 0, então f é sobrejetora. De fato, se existisse q ∈ N \f (M ),
então f −1 (q) = ∅, logo deg(f ) = deg(f ; q) = 0. Este fato simples pode ser
usado para dar outra demonstração do teorema fundamental da Álgebra.
Teorema 9.3.1 (Teorema fundamental da Álgebra). Todo polinômio não-
constante P : C → C admite uma raiz.
Demonstração. Como na prova do Teorema 3.6.6, seja f : S2 → S2 o levanta-
mento do polinômio P à esfera S2 . Como P é não-constante, existe um valor
regular w ∈ S2 para f tal que f −1 (w) 6= ∅. Fixemos um ponto arbitrário
z ∈ f −1 (w). Escrevendo f = f1 + if2 , segue que a diferenciabilidade de f
no ponto z ∈ C é equivalente às equações de Cauchy-Riemann
∂f1 ∂f2 ∂f1 ∂f2
= e =− .
∂x ∂y ∂y ∂x
Isso implica que o determinante da matriz jacobiana
!
∂f1 ∂f1
∂x ∂y
df (z) = ∂f2 ∂f2
∂x ∂y

é positivo. Como z ∈ f −1 (w) foi escolhido de forma arbitrária, concluimos


que deg(f ; w) 6= 0. Disso decorre que f é sobrejetora e, portanto, a equação
P (z) = 0 tem, pelo menos, uma solução.

O resultado seguinte é um teorema devido a Brouwer, conhecido usual-


mente como the hairy ball theorem, afirmando que todo campo definido na
esfera S2n anula-se em algum ponto.

120
Teorema 9.3.2 (Brouwer). A esfera Sn admite um campo de vetores tan-
gente não-nulo em todo ponto se, e somente se, n é ímpar.

Demonstração. Seja X : Sn → Rn+1 um campo de vetores tangente a Sn tal


que X(p) 6= 0 para todo p ∈ Sn . Sem perda de generalidade, podemos supor
que X é unitário pois, do contrário, o campo X(p)
e = X(p)/kX(p)k também
satisfaz as hipóteses. Assim, sendo X unitário, definimos uma aplicação
F : Sn × [0, π] → Sn pondo

F (p, t) = p cos t + X(p) sin t.

A aplicação F é diferenciável e satisfaz

F (p, 0) = p e F (p, π) = −p,

ou seja, F é uma homotopia entre a aplicação antípoda e a identidade de


Sn . Porém, pelo Exemplo 9.2.5, isso só ocorre quando n é ímpar. Recipro-
camente, se n = 2k − 1, a aplicação X : Sn → Rn+1 , dada por

X(x1 , . . . , x2k ) = (x2 , −x1 , x4 , −x3 , . . . , x2k , −x2k−1 )

define um campo de vetores tangente a Sn não-nulo em todo ponto.

9.4 Aplicações de Lefschetz


Dado uma aplicação diferenciável f : M → M , gostaríamos de saber se
a equação f (p) = p tem solução, i.e., se f admite ponto fixo. Em particular,
podemos investigar quantos pontos fixos f admite. Quando M é compacta
e orientada, a teoria de interseção nos auxiliará a responder a essa questão.
Um ponto p é ponto fixo para f se, e somente se, (p, f (p)) ∈ ∆(M ).
Assim, pontos fixos de f correspondem aos pontos de interseção do gráfico de
f com a diagonal ∆(M ) de M . Como Gr(f ) e ∆(M ) são subvariedades com
dimensões complementares em M × M , usaremos a teoria de interseção para
contar tais pontos. Definimos o número global de Lefschetz de f : M → M
como o número inteiro

L(f ) = I(∆(M ), Gr(f )).

Em geral, uma aplicação f pode ter infinitos pontos fixos; a aplicação


identidade é um exemplo simples. Assim, o sentido em que L(f ) calcula os
pontos fixos de f é um tanto vago. No entanto, veremos que quando tais

121
pontos são em quantidade finita, o inteiro L(f ) pode ser expresso em termos
do comportamento local de f em torno de seus pontos fixos.
Vejamos, inicialmente, algumas consequências imediatas.

Proposição 9.4.1. Se L(f ) 6= 0, então f admite ponto fixo.

Demonstração. Se f : M → M não admite pontos fixos, então ∆(M ) e


Gr(f ) são subvariedades disjuntas em M × M e, portanto, são trivialmente
transversais. Assim,

L(f ) = I(∆(M ), Gr(f )) = 0,

e isso finaliza a demonstração.

Como o número global de Lefschetz é um número de interseção e, por-


tanto, um invariante homotópico, obtemos

Proposição 9.4.2. Se f, g : M → M são homotópicas, então L(f ) = L(g).

O gráfico da aplicação identidade id : M → M coincide com a diagonal


de M , logo
L(id) = I(∆(M ), ∆(M )) = χ(M ). (9.11)
Decorre diretamente de (9.11) e da Proposição 9.4.2 a seguinte

Proposição 9.4.3. Se f : M → M é homotópica à aplicação identidade


id : M → M , então L(f ) = χ(M ). Em particular, se M admite uma
aplicação diferenciável f : M → M , homotópica à identidade, e que não
admite pontos fixos, então χ(M ) = 0.

Uma aplicação de Lefschetz é uma aplicação diferenciável f : M → M


para o qual Gr(f ) e ∆(M ) são subvariedades transversais em M × M . Tais
aplicações têm somente um número finito de pontos fixos, e como são defini-
das por uma condição de transversalidade, é de se esperar que toda aplicação
seja, em algum sentido, uma aplicação de Lefschetz (cf. Exercício 9.4.1).
Um ponto fixo p ∈ M para uma aplicação diferenciável f : M → M
é chamado um ponto fixo de Lefschetz se as subvariedades Gr(f ) e ∆(M )
são transversais em p. Assim, f é uma aplicação de Lefschetz se, e somente
se, todos seus pontos fixos são de Lefschetz. O lema seguinte fornece uma
condição necessária e suficiente para f ser de Lefschetz.

Lema 9.4.4. Um ponto p ∈ M é ponto fixo de Lefschetz para f : M → M


se, e somente se, df (p) − I : Tp M → Tp M é um isomorfismo linear.

122
Demonstração. Seja p ∈ M um ponto fixo para f . Lembremos, inicialmente,
que no ponto (p, p) vale

T(p,p) Gr(f ) = Gr(df (p)) e T(p,p) ∆(M ) = ∆(Tp M ).

A afirmação que f é de Lefschetz em p ∈ M significa que

T(p,p) ∆(M ) ⊕ T(p,p) Gr(f ) = T(p,p) M × M,

ou seja,
∆(Tp M ) ⊕ Gr(df (p)) = Tp M × Tp M. (9.12)
Como os subespaços ∆(Tp M ) e Gr(df (p)) têm dimensões complementares
em Tp M × Tp M , a equação (9.12) vale

⇔ ∆(Tp M ) ∩ Gr(df (p)) = {0}


⇔ df (p) não tem pontos fixos
⇔ ker(df (p) − I) = {0}
⇔ df (p) − I é injetora e, assim, um isomorfismo.

Isso finaliza a demonstração.

Seja p ∈ M um ponto fixo de Lefschetz para a aplicação diferenciável


f : M → M . O número local de Lefschetz de f em p, denotado por Lp (f ), é
definido como o número orientado

Lp (f ) = i(p,p) (∆(M ), Gr(f )). (9.13)

Proposição 9.4.5. Se p ∈ M é um ponto fixo de Lefschetz para a aplicação


f : M → M , então

+1, se df (p) − I é positivo
Lp (f ) = .
−1, se df (p) − I é negativo
Em outras palavras,
Lp (f ) = sign (df (p) − I).
Demonstração. Dado uma base positiva {v1 , . . . , vn } para Tp M , temos que

{(v1 , v1 ), . . . , (vn , vn )} e {(v1 , df (p) · v1 ), . . . , (vn , df (p) · vn )}

são bases positivas para T(p,p) ∆(M ) e T(p,p) Gr(f ), respectivamente. Assim,
por definição, Lp (f ) é igual ao sinal da base

{(v1 , v1 ), . . . , (vn , vn ), (v1 , df (p) · v1 ), . . . , (vn , df (p) · vn )} (9.14)

123
em relação à orientação produto em T(p,p) (M ×M ). A base em (9.14) pode ser
vista como uma matriz com 2n colunas. Aplicando a eliminação Gaussiana,
podemos subtrair as primeiras n colunas das últimas n, obtendo a base

{(v1 , v1 ), . . . , (vn , vn ), (0, (df (p) − I)v1 ), . . . , (0, (df (p) − I)vn )}

com o mesmo sinal. Como df (p) − I é isomorfismo, as últimas n colunas


geram {0} × Tp M . Aplicando novamente eliminação Gaussiana, obtemos a
base

{(v1 , 0), . . . , (vn , 0), (0, (df (p) − I)v1 ), . . . , (0, (df (p) − I)vn )} (9.15)

com o mesmo sinal. Assim, a base em (9.15) é positiva no produto se, e


somente se, o isomorfismo linear df (p) − I preserva orientação.

Vejamos alguns exemplos.

Exemplo 9.4.6. Seja f : R2 → R2 uma aplicação diferenciável e suponha


que a origem 0 ∈ R2 seja um ponto fixo isolado para f . Assim, numa
vizinhança de 0, podemos escrever

f (x) = df (0) · x + R(x),

onde R é uma aplicação diferenciável que satisfaz R(x)/kxk → 0, quando


x → 0. Por questão de simplicidade, suponhamos que df (0) tem dois autova-
lores reais e distintos, λ1 e λ2 . Assim, em relação à base dos correspondentes
autovetores, a matriz que representa df (0) é da forma
 
λ1 0
df (0) = .
0 λ2

Segue então da Proposição 9.4.5 que o número local de Lefschetz de f na


origem é dado por

L0 (f ) = sign (df (0) − I) = sign (λ1 − 1)(λ2 − 1) .

A fim de somente ilustrar o comportamento básico de f em torno da origem


de R2 , suponhamos que λ1 , λ2 > 0. Temos então 3 casos:
Caso 1: Se λ1 , λ2 > 1, então L0 (f ) = +1 e a origem é um ponto de fuga.
Caso 2: Se λ1 , λ2 < 1, tem-se L0 (f ) = +1 e a origem é um ponto atrator.
Caso 3: Se λ1 < 1 < λ2 , tem-se L0 (f ) = −1, e a origem é um ponto de sela.

124
Exemplo 9.4.7. Considere a aplicação f : Rn → Rn dada por f (x) = 2x.
Note que f (0) = 0 e
df (x) · v = 2v,
para quaisquer x, v ∈ Rn . Disso decorre que o único ponto fixo de df (0) é o
vetor nulo, logo 0 ∈ Rn é ponto fixo de Lefschetz para f . Além disso, tem-se

L0 (f ) = sign (df (0) − I) = +1.

Na terminologia do Exemplo 9.4.6, a origem é um ponto de fuga para f .

Exemplo 9.4.8. Em R3 , considere a rotação R : R3 → R3 de ângulo π/2


em torno do eixo-z. Matricialmente, R é da forma
 
0 −1 0
R =  1 0 0 .
0 0 1

Em particular, como R é linear, tem-se dR(x) = R, para todo x ∈ R3 . Seja


f : S2 → S2 a restrição de R à esfera unitária S2 ⊂ R3 . Note que o polo norte
N = (0, 0, 1) e o polo sul S = (0, 0, −1) são os únicos pontos fixos de f . Em
ambos os polos, a diferencial df (x) : Tx S2 → Tx S2 pode ser representada
pela matriz  
0 −1
, (9.16)
1 0
logo det(df (x) − I) = 2. Em particular, f é uma aplicação de Lefschetz e
LN (f ) = LS (f ) = +1. Portanto,

L(f ) = LN (f ) + LS (f ) = 2.

Observe agora que qualquer rotação com determinante positivo é homotópica


à aplicação identidade de S2 . De fato, a aplicação F : S2 × [0, 1] → S2 dada
por  
t t−1 0
F (·, t) =  1 − t t 0 
0 0 1
define uma homotopia entre f e id. Portanto, em virtude da Proposição
9.4.2, a característica de Euler da esfera S2 é

χ(S2 ) = L(f ) = 2.

125
Observação 9.4.9. O cálculo do Exemplo 9.4.8 pode ser extendido à esfera
unitária S2n usando-se uma aplicação f representada por n blocos da matriz
(9.16) na diagonal e 1 na posição (2n + 1, 2n + 1). Esta aplicação tem
somente o polo norte N e o polo sul S como pontos fixos. Os determinantes
das aplicações df (N ) − I e df (S) − I são ambos iguais a 2n . Em particular,
têm sinal igual a +1. Assim, obtemos L(f ) = LN (f ) + LS (f ) = 2. Como
tal f é homotópica à aplicação identidade de S2n , obtemos

χ(S2n ) = L(f ) = 2.

Por outro lado, decorre da Proposição 9.1.7 que as variedades compactas de


dimensão ímpar têm característica de Euler igual a zero. Portanto, conclui-
mos que 
n 2, se n é par
χ(S ) = . (9.17)
0, se n é ímpar
Como consequência da Proposição 9.4.1 e de (9.17), obtemos o seguinte
Corolário 9.4.10. Se n é par, toda aplicação f : Sn → Sn , homotópica à
aplicação identidade de Sn , admite ponto fixo.
Exemplo 9.4.11. Consideremos o grupo ortogonal O(n), que é uma varie-
dade compacta. Dado uma matriz não-nula A ∈ O(n), com A 6= I, definimos
a aplicação f : O(n) → O(n) pondo

f (X) = A · X.

A aplicação f é diferenciável e não admite pontos fixos, pois AX = X


implicaria A = I. Assim, L(f ) = 0. Por outro lado, f é homotópica à
aplicação identidade de O(n); basta observar que toda matriz ortogonal é
equivalente à matriz identidade através das operações usuais. Portanto,

χ(O(n)) = L(id) = L(f ) = 0.

9.5 Teoria de Lefschetz


O objetivo dessa seção é obter uma fórmula para o número global de
Lefschetz como soma dos números locais de Lefschetz para qualquer aplicação
diferenciável. Assumiremos, inicialmente, que f é uma aplicação em Rn e
após, usando cartas locais, passaremos ao caso de aplicações em variedades.
Sejam f : Rn → Rn uma aplicação diferenciável e x0 ∈ Rn um ponto fixo
isolado para f . Escolhendo  > 0 tal que x0 seja o único ponto fixo para

126
f na bola fechada B[x0 , ], obtemos uma aplicação G : ∂B(x0 , ) → Sn−1
pondo
f (x) − x
G (x) = . (9.18)
kf (x) − xk
A aplicação G em (9.18) é usualmente chamada a aplicação de Gauss
de f em torno de x0 . Neste caso, definimos o número local de Lefschetz de
f em x0 , denotado por Lx0 (f ), como o número inteiro dado por

Lx0 (f ) = deg(G ), (9.19)

onde G é a aplicação em (9.18).

Observação 9.5.1. Devemos mostrar que o inteiro Lx0 (f ), definido em


(9.19), independe da escolha do raio . Dado um número δ > 0, suponha
que 0 < δ < . A aplicação G se extende a uma aplicação G definida no
conjunto
B = {x ∈ Rn : δ ≤ kx − x0 k ≤ },
dada pela mesma fórmula em (9.18). Note que B é uma subvariedade com-
pacta com fronteira, onde

∂B = ∂B(x0 , ) ∪ ∂B(x0 , δ).

A componente ∂B(x0 , ) tem a orientação positiva, induzida da orientação


de V (x0 , ), enquanto que ∂B(x0 , δ) tem a orientação oposta. Assim, em
virtude do Teorema 9.1.2, temos deg(G|∂B ) = 0, ou seja,

0 = deg(G|∂B ) = deg(F ) − deg(Fδ ).

Isso mostra que Lx0 (f ) está bem definido.

O resultado seguinte garante que as duas definições para o número local


de Lefschetz coincidem quando ambas estão definidas.

Lema 9.5.2. Se x0 ∈ Rn é um ponto fixo de Lefschetz para f , então os


números locais de Lefschetz para f em x0 , definidos em (9.13) e (9.19),
coincidem.

Em virtude do Lema 9.5.2, está justificada o uso da notação Lx (f ) sem


ambiguidades. O que faremos a seguir é provar que a soma dos números
locais permanece a mesma quando realizamos uma perturbação para f , no
sentido da proposição a seguir.

127
Proposição 9.5.3. Sejam f : M → M uma aplicação diferenciável, onde
M é uma variedade orientável, p ∈ M um ponto fixo isolado para f e U
uma vizinhança de p em M sem outros pontos fixos. Existe uma aplicação
diferenciável g : M → M que satisfaz as seguintes propriedades:
(i) g é homotópica a f .
(ii) Existe um compacto K ⊂ U tal que g|M \K = f |M \K .
(iii) Todo ponto fixo de g|U é de Lefschetz.
Demonstração. Consideremos, inicialmente, o caso M = Rn e x = 0 ponto
fixo isolado para f : Rn → Rn . Seja φ : Rn → [0, 1] uma bump-function em
x = 0, ou seja, φ ≡ 1 num aberto V , com 0 ∈ V ⊂ U , e K = supp(φ) ⊂ U .
Afirmamos que existe x0 ∈ U tal que a aplicação F : Rn × [0, 1] → Rn , dada
por
F (x, t) = f (x) + tφ(x) · x0 ,
é uma homotopia entre f e g = F (·, 1), e aplicação g assim obtida satisfaz as
condições (i) – (iii). De fato, como K \ V é compacto e f não admite pontos
fixos nesse conjunto, temos

c = min{kf (x) − xk : x K \ V } > 0.

Escolha x0 ∈ U tal que kx0 k < c/2. Temos:

kFt (x) − xk = kf (x) − x + tφ(x) · x0 k


≥ kf (x) − xk − ktφ(x) · x0 k
> c − c/2 = c/2.

Disso decorre que Ft não admite pontos fixos no compacto K \ V , para todo
t ∈ [0, 1]. O ponto x0 pode ser escolhido, além disso, sendo valor regular
para a aplicação f − id, em virtude do teorema de Sard. Como visto, os
pontos fixos para Ft em U só podem ocorrer em V . Seja x1 ∈ V um ponto
fixo para g = F (·, 1). Numa vizinhança do ponto x1 , temos

f (x) = f (x) + x0 .

Além disso, como


x1 = g(x1 ) = f (x1 ) + x0 ,
concluimos que x1 − f (x1 ) = x0 , ou seja, x1 ∈ (I − f )−1 (x0 ). Sendo x0 valor
regular para I − f , concluimos que

d(I − f )(x1 ) = I − df (x1 )

128
é sobrejetora e, assim, um isomorfismo linear. Em virtude do Lema 9.4.4,
concluimos que x1 é ponto fixo de Lefschetz para g. Finalmente, devemos
transferir o resultado para a variedade M . Dado uma carta local (U, ϕ) em
M , com ϕ(p) = 0, a representação fe = ϕ ◦ f ◦ ϕ−1 de f em relação a ϕ é uma
aplicação entre abertos de Rn . Pelo que acabamos de provar, existe uma
aplicação diferenciável g : ϕ(U ) → ϕ(U ) satisfazendo (i) – (iii). Se gt denota
o homotopia entre fe e g, defina ft = ϕ−1 ◦ gt ◦ ϕ. Decorre da regra da cadeia
que dft (ϕ−1 (x)) tem ponto fixo não-nulo se, e somente se, dgt (x) tem ponto
fixo não-nulo. Assim, se x é ponto fixo de Lefschetz para g, então ϕ−1 (x)
é ponto fixo de Lefschetz para f1 . Isso prova que a aplicação f1 satisfaz,
localmente, as condições (i) – (iii).

A Proposição 9.5.3 pode ser usada para provar a invariância da soma dos
números locais de Lefschetz. Dados uma aplicação diferenciável f : Rn → Rn
e x0 ∈ Rn um ponto fixo isolado para f , seja  > 0 tal que x0 seja o
único ponto fixo para f na bola fechada B[x0 , ]. Considere a aplicação
g : Rn → Rn como na Proposição 9.5.3.
Proposição 9.5.4. Para os pontos fixos de g na bola B(x0 , ), tem-se
X
Lx0 (f ) = Lx (g).
g(x)=x

Demonstração. Sejam x1 , . . . , xk ∈ B(x0 , ) os pontos fixos de Lefschetz para


g na bola fechada B[x0 , ]. Considere números 1 , . . . , k > 0 tais que as
bolas abertas B(xi , i ) sejam duas a duas disjuntas, estejam contidas na
bola B(x0 , ) e disjuntas da fronteira ∂B(x0 , ). Em relação à subvariedade
compacta com fronteira

B = B[x0 , ] \ B(x1 , 1 ) ∪ . . . ∪ B(xk , k ) ,
a aplicação G : ∂B → Sn−1 , dada por
g(x) − x
G(x) = ,
kg(x) − xk
está bem definida. Além disso, como G se extende a um aplicação definida
em todo B, pela mesma lei de formação, segue do Teorema 9.1.2
deg(G) = 0.
Assim, em relação à orientação induzida na fronteira de B, temos que
k
X
0 = deg(G) = deg(G|∂B(x0 ,) ) − deg(G|∂B(xi ,i ) ).
i=1

129
Se F : ∂B(x0 , ) → Sn−1 denota a aplicação de Gauss para f , temos que
F (x) = G(x), para todo x ∈ ∂B(x0 , ), visto que f e g coincidem em
∂B(x0 , ). Portanto,

Lx0 (f ) = deg(F ) = deg(G|∂B(x0 ,) )


k
X k
X
= deg(G|∂B(xi ,i ) ) = Lxi (g),
i=1 i=1

e isso finaliza a demonstração.

O que faremos agora é transferir os resultados obtidos no espaço Eu-


clidiano para variedades diferenciáveis. Sejam f : M → M uma aplicação
diferenciável e p ∈ M um ponto fixo isolado para f . Dado uma carta local
(U, ϕ) em M , com ϕ(p) = 0, considere a representação feϕ = ϕ ◦ f ◦ ϕ−1 de
f em relação a ϕ. Definimos

Lp (f ) = L0 (feϕ ). (9.20)

Devemos provar que o número inteiro Lp (f ), definido em (9.20), independe


da escolha da carta local ϕ.
Finalmente, obtemos uma fórmula que calcula o número global de Lefs-
chetz como soma dos números locais de Lefschetz para uma aplicação dife-
renciável arbitrária.

Teorema 9.5.5. Seja f : M → M uma aplicação diferenciável, onde M


é uma variedade compacta e orientada, e suponha que f tenha somente um
número finito de pontos fixos, digamos p1 , . . . , pk . Então
k
X
L(f ) = Lpi (f ).
i=1

Demonstração. Aplicando a Proposição 9.5.3 numa vizinhança de cada pon-


to fixo de f , podemos encontrar uma aplicação de Lefschetz g : M → M ,
homotópica a f . Em particular, temos L(f ) = L(g). Sendo g uma aplicação
de Lefschetz, o resultado se aplica. A conclusão segue do fato que a soma dos
números locais de Lefschetz de f coincide com a soma análoga para g.

130
9.6 Exercícios
9.2
1. Prove que um difeomorfismo f : M → N tem grau +1 ou −1 de acordo
se f preserva ou inverte, respectivamente, a orientação.

2. Sejam M , N , P superfícies fechadas, orientadas de dimensão n, e consi-


dere aplicações diferenciáveis f : M → N e g : N → P . Prove que vale a
relação deg(g ◦ f ) = deg f · deg g.

3. Calcule o grau da função f : R → R dada por f (x) = x2 .

4. Calcule o grau da aplicação f : S1 → S1 dada por f (z) = z n , com n ∈ Z.

5. Calcule o grau da aplicação f : S1 → S1 dada por f (z) = z n , com n ∈ Z,


onde z denota o conjugado de z.

6. Se m < n, prove que toda aplicação diferenciável f : M m → Sn é homo-


tópica à aplicação constante.

7. Prove que qualquer aplicação diferenciável f : Sn → Sn com grau diferente


de (−1)n+1 deve ter um ponto fixo.

8. Sejam f, g : Sn → Sn duas aplicações diferenciáveis não-ortogonais, i.e.,


6 0, para todo x ∈ Sn . Prove que deg(f ) = ± deg(g).
hf (x), g(x)i =

9.4
1. Prove que toda aplicação diferenciável f : M → M é homotópica a alguma
aplicação de Lefschetz.

2. Prove que a aplicação f : Rn → Rn , dada por f (x) = x/2, admite a


origem como ponto fixo de Lefschetz, e calcule L0 (f ).

131
Capítulo 10

Campos vetoriais

10.1 O fibrado tangente


Seja M n uma variedade diferenciável. A cada ponto p ∈ M , associa-
mos o espaço tangente Tp M , que é um espaço vetorial real de dimensão n.
Denotaremos por T M a união disjunta de tais espaços. Mais precisamente,
definimos: [ 
TM = {p} × Tp M .
p∈M

O conjunto T M é chamado o fibrado tangente de M . Um dos objetivos


desta seção é provar que T M pode ser visto de maneira natural como uma
variedade diferenciável. Para isso, definimos uma aplicação π : T M → M
pondo
π(p, v) = p,
para quaisquer p ∈ M e v ∈ Tp M . A aplicação π é claramente sobrejetora,
e é chamada a projeção canônica de T M sobre M . Quando necessário,
indentificaremos o espaço tangente Tp M com o subconjunto {p} × Tp M de
T M através da bijeção natural

v ∈ Tp M 7→ (p, v) ∈ {p} × Tp M.

Teorema 10.1.1. O fibrado tangente T M é uma variedade diferenciável de


dimensão 2n.

Demonstração. Dado uma carta local (U, ϕ) em M , definimos uma aplicação


ϕ : π −1 (U ) → ϕ(U ) × Rn pondo

ϕ(p, v) = (ϕ(p), dϕ(p) · v),

132
para quaisquer p ∈ U e v ∈ Tp M . Como ϕ é bijetora e dϕ(p) é um isomor-
fismo linear para todo p ∈ U , a aplicação ϕ é bijetora. Como ϕ(U ) × Rn é
um aberto de R2n , segue que ϕ é uma carta local em T M . Provaremos que

A = {ϕ : (U, ϕ) é carta de M }

é um atlas em T M . Em primeiro lugar, é fácil ver que os domínios das


aplicações de A cobrem T M . Sejam então (U, ϕ), (V, ψ) cartas locais em M .
Temos:

ϕ π −1 (U ) ∩ π −1 (V ) = ϕ π −1 (U ∩ V ) = ϕ(U ∩ V ) × Rn
 

e
ψ π −1 (U ) ∩ π −1 (V ) = ψ π −1 (U ∩ V ) = ψ(U ∩ V ) × Rn .
 

Como ϕ(U ∩ V ) e ψ(U ∩ V ) são abertos em Rn , segue que os conjuntos


imagens
ϕ π −1 (U ) ∩ π −1 (V ) e ψ π −1 (U ) ∩ π −1 (V )
 

são abertos em R2n . Dado um ponto (x, h) ∈ ϕ(U ) × Rn , tem-se que


ϕ−1 (x, h) = (p, v), onde p = ϕ−1 (x) e v = dϕ(p)−1 · h. Além disso, se
p ∈ V então ψ(p, v) = (ψ(p), dψ(p) · v). Temos:

dψ(p) · v = dψ(ϕ−1 (x)) · dϕ(ϕ−1 (x))−1 · h = d(ψ ◦ ϕ−1 )(x) · h.




Assim, a aplicação de transição

ψ ◦ ϕ−1 : ϕ(U ∩ V ) × Rn → ψ(U ∩ V ) × Rn ,

de ϕ para ψ, é dada por

ψ ◦ ϕ−1 (x, h) = (ψ ◦ ϕ−1 )(x), d(ψ ◦ ϕ−1 )(x) · h .


 

Como ψ ◦ ϕ−1 é diferenciável, o mesmo vale para ψ ◦ ϕ−1 . De forma análoga


−1
podemos provar que a inversa de ψ ◦ ϕ−1 , que é igual a ϕ ◦ ψ , também
é diferenciável. Isso prova que A é um atlas em T M . Resta provar que a
topologia induzida por A em T M é Hausdorff e satisfaz o segundo axioma
da enumerabilidade. Antes disso, provemos que a projeção π é contínua,
onde T M está munido da topologia induzida por A. De fato, se U ⊂ M é o
domínio de uma carta ϕ em M , então π −1 (U ) é aberto em T M , pois π −1 (U )
é o domínio
S da carta ϕ. Em geral, se U ⊂ M é um aberto arbitrário, então
U = α∈I Uα , ondeSUα é o domínio de uma carta em M , para todo α ∈ I.
Assim, π −1 (U ) = α∈I π −1 (Uα ) é aberto em T M . Provemos então que a

133
topologia τA é Hausdorff. Sejam (p, v), (q, w) pontos distintos em T M . Se
p 6= q então, como M é Hausdorff, existem abertos disjuntos U, V ⊂ M ,
com p ∈ U e q ∈ V . Assim, π −1 (U ) e π −1 (V ) são abertos disjuntos em
T M contendo (p, v) e (q, w), respectivamente. Se p = q, seja (U, ϕ) uma
carta em M , com p ∈ U . Como dϕ(p) · v 6= dϕ(p) · w, existem abertos
disjuntos A, B ⊂ Rn contendo dϕ(p) · v e dϕ(p) · w, respectivamente. Assim,
ϕ−1 ϕ(U ) × A e ϕ−1 ϕ(U ) × B são abertos disjuntos em T M contendo
(p, v) e (q, w), respectivamente. Provemos agora que a topologia τA satisfaz o
segundo axioma da enumerabilidade. Como M satisfaz o segundo axioma da
enumerabilidade, temos que o atlas maximal que define a estrutura diferen-
ciável de M contém um atlas enumerável {ϕi : i ∈ N}. Assim, {ϕi : i ∈ N} é
um atlas enumerável para T M e, portanto, T M satisfaz o segundo axioma
da enumerabilidade (cf. Exercícios 10.1.3 e 10.1.4).

Veremos agora algumas propriedades básicas do fibrado tangente.


Lema 10.1.2. A projeção π : T M → M é uma submersão.
Demonstração. Dado uma carta local (U, ϕ) em M , considere a correspon-
dente carta local ϕ em T M . Como π(π −1 (U )) ⊂ U , a representação de π
em relação às cartas locais ϕ e ϕ é a projeção π : ϕ(U ) × Rn → ϕ(U ) dada
por π(x, h) = x, que é uma submersão.

π −1 (U )
π /U

ϕ ϕ
 
ϕ(U ) × Rn
π / ϕ(U )

Isso prova que a restrição de π a π −1 (U ) é uma submersão. Como ϕ é uma


carta arbitrária, segue a conclusão.

Lema 10.1.3. Sejam M uma variedade diferenciável e W ⊂ M um subcon-


junto aberto. Então T W é um aberto de T M tal que a estrutura diferen-
ciável usual do fibrado tangente da variedade W coincide com a estrutura
diferenciável que T M induz no aberto T W .
Demonstração. Observe inicialmente que, como Tp W = Tp M , para todo
p ∈ W , tem-se T W = π −1 (W ). Além disso, como π é contínua, segue que
T W é aberto em T M . A estrutura diferenciável usual do fibrado tangente
de W é o atlas maximal que contém as cartas locais da forma ϕ, onde (U, ϕ)
é uma carta de W . Se (U, ϕ) é uma carta de W , então (U, ϕ) também é carta
em M , logo ϕ é uma carta de T M com domínio contido em T W , provando
que ϕ pertence à estrutura diferenciável induzida por T M no aberto T W .

134
Exemplo 10.1.4. Seja E um espaço vetorial real n-dimensional. Para cada
p ∈ E, tem-se Tp E = E e, assim,
[ 
{p} × Tp E = E × E.
p∈V

Se ϕ : E → Rn é um isomorfismo linear, ϕ é uma carta para a variedade E,


e a carta correspondente ϕ : E × E → Rn × Rn em T E é dada por

ϕ(p, v) = (ϕ(p), ϕ(v)).

Isso mostra, em particular, que ϕ : E × E → R2n é um isomorfismo linear.


Portanto, tanto a estrutura diferenciável usual do fibrado tangente de E
quanto a estrutura diferenciável usual do espaço vetorial real E × E contém
o atlas
A = {ϕ : ϕ é carta de E}.
Isso prova que a estrutura diferenciável usual de T E coincide com a estrutura
diferenciável usual do espaço vetorial real E × E.
Como consequência do Lema 10.1.3 e do Exemplo 10.1.4, temos o seguinte
Corolário 10.1.5. Se W é um aberto de Rn , então T W = W × Rn , e
a estrutura diferenciável usual do fibrado tangente de W coincide com a
estrutura diferenciável induzida por R2n no aberto W × Rn .
Finalizaremos essa seção mostrando a relação existente entre o espaço
tangente Tp M com o fibrado tangente T M .
Proposição 10.1.6. Cada espaço tangente Tp M é subvariedade do fibrado
tangente T M . Além disso, a estrutura diferenciável usual do espaço vetorial
Tp M coincide com a estrutura diferenciável induzida por T M em Tp M .
Demonstração. Como Tp M = π −1 (p) e π é uma submersão, segue que Tp M
é uma subvariedade de T M . Dado uma carta (U, ϕ) em M , considere a carta
correspondente ϕ em T M . Temos:

ϕ π −1 (U ) ∩ Tp M = ϕ(Tp M ) = {ϕ(p)} × Rn .


Considere o difeomorfismo φ : R2n → R2n definido por

φ(x, h) = (h, x − ϕ(p)).

Segue que φ ◦ ϕ : π −1 (U ) → φ(ϕ(U ) × Rn ) é uma carta em T M e:

(φ ◦ ϕ) π −1 (U ) ∩ Tp M = Rn = φ ϕ(U ) ∩ Rn ∩ Rn ,
 

135
i.e., φ ◦ ϕ é uma carta de T M que satisfaz a relação (3.1). A restrição de
φ ◦ ϕ a Tp M nos fornece uma carta local em Tp M pertencente à estrutura
diferenciável induzida por T M em Tp M . Tal restrição é dada por
v ∈ Tp M 7→ (φ ◦ ϕ)(p, v) = dϕ(p) · v ∈ Rn .
Mas dϕ(p) : Tp M → Rn é um isomorfismo linear e, portanto, é também uma
carta local pertencente à estrutura diferenciável usual do espaço vetorial real
Tp M . Concluimos então que o atlas {dϕ(p)} em Tp M está contido tanto
na estrutura diferenciável induzida por T M em Tp M como na estrutura
diferenciável usual do espaço vetorial real Tp M .

10.2 Campos vetoriais


Uma das motivações para termos introduzido o fibrado tangente é a noção
de campo vetorial, que discutiremos nessa seção.
Definição 10.2.1. Um campo vetorial numa variedade diferenciável M n é
simplesmente uma aplicação X : M → T M que torna o diagrama

M
X / TM

π
Id
% 
M
comutativo.
Em outras palavras, uma aplicação X : M → T M é um campo vetorial
se, e somente se, X é uma inversa à direita da projeção canônica π. Um
campo vetorial X numa variedade M é também chamado uma seção do
fibrado tangente T M , no sentido de que X(p) ∈ Tp M , para todo p ∈ M .
O conjunto de todos os campos vetoriais diferenciáveis de uma variedade
diferenciável será denotado por X(M ). Com as operações naturais
(X + Y )(p) = X(p) + Y (p),
(cX)(p) = cX(p),
para quaisquer X, Y ∈ X(M ), p ∈ M e c ∈ R, o conjunto X(M ) torna-se um
espaço vetorial real (cf. Exercício 10.2.4).
Dados um campo vetorial X : M → T M e uma carta local (U, ϕ) em M ,
podemos escrever
n
X ∂
X(p) = ai (p) (p),
∂xi
i=1

136
para
n todo p ∈ U , o onde cada ai : U → R é uma função no aberto U e
∂ ∂
∂x1 (p), . . . , ∂xn (p) é a base de Tp M associada à carta ϕ. Considerando a
carta ϕ : π −1 (U ) → ϕ(U ) × Rn em T M , associada a ϕ, temos:

ϕ(p, X(p)) = (ϕ(p), a1 (p), . . . , an (p)),

para todo p ∈ U . Assim,

ϕ ◦ X ◦ ϕ−1 (x) = x, (a1 ◦ ϕ−1 )(x), . . . , (an ◦ ϕ−1 )(x) ,


 

para todo x ∈ ϕ(U ). Portanto, X é diferenciável se, e somente se, as funções


ai são diferenciáveis, para todo 1 ≤ i ≤ n.

Lema 10.2.2. Todo campo vetorial X ∈ X(M ) é um mergulho.

Demonstração. Decorre diretamente do Exercício 10.2.2, observando que a


projeção π : T M → M é uma inversa diferenciável à esquerda para X.

Corolário 10.2.3. A imagem de um campo vetorial X ∈ X(M ) é uma


subvariedade de T M , e a restrição da projeção π : T M → M a X(M ) é um
difeomorfismo da imagem de X sobre M .

Demonstração. Como X é um mergulho, em virtude do Lema 10.2.2, segue


que X(M ) é uma subvariedade de T M e X : M → X(M ) é um difeomor-
fismo. Para concluir a prova, basta observar que π|X(M ) : X(M ) → M é a
inversa de X : M → X(M ).

10.3 Curvas integrais e o fluxo local


Nesta seção faremos um estudo mais detalhado do fibrado tangente e
de suas seções, os campos vetoriais. Mais precisamente, veremos que um
campo vetorial em uma variedade diferenciável pode ser interpretado como
uma equação diferencial, no sentido que passaremos a descrever.

Definição 10.3.1. Sejam M uma variedade diferenciável e X ∈ X(M ).


Uma curva diferenciável α : I → M é chamada uma curva integral de X se
α0 (t) = X(α(t)), para todo t ∈ I.

Dado uma carta local (U, ϕ) em M , escrevamos


m
X ∂
X(p) = ai (p) (p),
∂xi
i=1

137
para todo p ∈ U . Assim, se α : I → M é uma curva integral de X, com
α(I) ⊂ U , temos:

α0 (t) = X(α(t)) ⇔ dϕ(α(t)) · α0 (t) = dϕ(α(t)) · X(α(t))


m
d X
⇔ (ϕ ◦ α)(t) = (ai ◦ α)(t)ei .
dt
i=1

Assim, a condição α0 (t) = X(α(t)), para todo t ∈ I, dá a expressão local


d
(ϕi ◦ α) = ai ◦ α,
dt
para todo 1 ≤ i ≤ m, que constitui um sistema de equações diferenciais
ordinárias de 1a ordem.
O teorema fundamental de existência e unicidade para as soluções de tais
sistemas tem a seguinte consequência neste contexto:
Teorema 10.3.2. Sejam M uma variedade diferenciável e X ∈ X(M ). En-
tão, para cada p ∈ M , existe um intervalo aberto I = (a, b) contendo 0 onde
está definida a única curva integral α : I → M de X tal que α(0) = p.
Uma consequência do Teorema 10.3.2 é o seguinte corolário.
Corolário 10.3.3. Sejam α1 : I1 → M e α2 : I2 → M curvas integrais de
um campo X ∈ X(M ) tais que α1 (c) = α2 (c), para algum c ∈ I1 ∩ I2 . Então,
α1 (t) = α2 (t), para todo t ∈ I1 ∩ I2 .
Demonstração. Defina o conjunto I = {t ∈ I1 ∩ I2 : α1 (t) = α2 (t)}. Temos
que I 6= ∅, pois c ∈ I. Um argumento simples de continuidade nos dá que I
é aberto e fechado em I1 ∩ I2 . Como estamos supondo que os intervalos I1
e I2 são conexos, segue que I = I1 ∩ I2 .

A proposição seguinte é conhecida como a invariância por translação do


parâmetro.
Proposição 10.3.4. Seja α : I → M uma curva integral de um campo
X ∈ X(M ). Dado uma constante c ∈ R, considere os subconjuntos

Lc (I) = {t − c : t ∈ I} e Rc (I) = {t + c : t ∈ I},

e defina as curvas γ : Lc (I) → M e β : Rc (I) → M , pondo

γ(t) = α(t + c) e β(t) = α(t − c).

Então, γ e β são curvas integrais de X.

138
Demonstração. De fato, temos:

γ 0 (t) = α0 (t + c) = X(α(t + c)) = X(γ(t))

e
β 0 (t) = α0 (t − c) = X(α(t − c)) = X(β(t)),
provando a afirmação.

Definição 10.3.5. Sejam M uma variedade diferenciável e X ∈ X(M ). Um


fluxo local para o campo X em torno de um ponto q ∈ M é uma aplicação
ϕ : (−, ) × U → M de classe C ∞ , onde U ⊂ M é um aberto contendo q,
que satisfaz as seguintes propriedades:

(a) Para cada p ∈ U , a curva λp : (−, ) → M , dada por λp (t) = ϕ(t, p),
é uma curva integral de X, com λp (0) = p.

(b) Para cada t ∈ (−, ), a aplicação ϕt : U → M , dada por


ϕt (p) = ϕ(t, p), é um difeomorfismo sobre sua imagem.

Seja ϕ : (−, ) × U → M um fluxo local para X. Dado p ∈ U , as


curvas λ1 (t) = ϕt+s (p) e λ2 (t) = ϕt (ϕs (p)) são curvas integrais de X, com
λ1 (0) = λ2 (0) = ϕs (p). Assim, pelo Corolário 10.3.3, temos que

ϕt (ϕs (p)) = ϕt+s (p),

desde que ambos os lados estejam definidos. Disso também decorre que

ϕs ◦ ϕt = ϕt+s = ϕt ◦ ϕs ,

quando definidas. Esta é a chamada propriedade local de grupo, pois se ϕt


estivesse definida para todo t ∈ R, então

t ∈ R 7→ ϕt ∈ Dif(M )

seria um homomorfismo de grupos. Veremos a seguir algumas condições para


que isso ocorra.
O teorema seguinte, cuja demonstração pode ser encontrada em [10, The-
orem 9.12], garante a existência do fluxo local.

Teorema 10.3.6. Sejam M uma variedade diferenciável e X ∈ X(M ). Dado


um ponto q ∈ M , existe um fluxo local ϕ : (−, ) × U → M para X em
torno de q tal que, para cada p ∈ U , a curva λp : (−, ) → M , dada por
λp (t) = ϕ(t, p), é a única curva integral de X, com ϕ(0, p) = p.

139
A unicidade no Teorema 10.3.6 significa que se (a, b) é um intervalo
aberto, com (a, b) ⊂ (−, ), e se α : (a, b) → U é uma curva integral de
X, com α(0) = p ∈ U , então α(t) = ϕ(t, p)|(a,b) .
Nas condições do Teorema 10.3.6, suponhamos que p ∈ M seja uma sin-
gularidade isolada de X, ou seja, X(p) = 0. O resultado seguinte, cuja prova
pode ser encontrada em [7], assegura que o fluxo local pode ser escolhido de
modo que, localmente, p seja o único ponto fixo das aplicações {ϕt }.
Teorema 10.3.7. Dados um campo vetorial X ∈ X(M ) e uma singularidade
isolada q para X, existe uma aplicação diferenciável ϕ : (−, ) × U → M ,
onde U é uma vizinhança de q em M , satisfazendo as seguintes propriedades:
(i) Para cada p ∈ U , a curva λp : (−, ) → M , dada por λp (t) = ϕ(t, p),
é a única curva integral de X, com ϕ(0, p) = p.
(ii) Para cada t ∈ (−, ), a aplicação ϕt : U → M , dada por ϕt (p) =
ϕ(t, p), é um difeomorfismo sobre ϕt (U ) e q é o único ponto fixo.
Proposição 10.3.8. Seja α : (a, b) → M uma curva integral de X ∈ X(M ).
Suponha que exista uma sequência (tn ) de pontos em (a, b) tal que tn → b e
(α(tn )) possui uma subsequência que converge para p0 ∈ M . Então, existe
e : (a, b + δ) → M de X tal que α
δ > 0 e uma curva integral α e|(a,b) = α.
Demonstração. Seja ϕ : (−, ) × U → M o fluxo local de X em torno de p0 .
Assim, para todo p ∈ U , a curva λp : (−, ) → M , dada por λp (t) = ϕ(t, p),
é a única curva integral de X, com λp (0) = p. Seja n0 ∈ N tal que tn ≥ 0,
tn ∈ (b − /2, b + /2) e α(tn ) ∈ U , para todo n ≥ n0 . Assim, dado n ≥ n0 ,
defina uma curva β : Rtn (−, ) → M pondo
β(t) = λpn (t − tn ),
onde pn = α(tn ) ∈ U . Então, pela Proposição 10.3.4, β é uma curva integral
de X tal que
β(tn ) = λpn (0) = pn = α(tn ).
Assim, pelo Corolário 10.3.3, segue que β(t) = α(t), para todo instante t na
interseção (a, b) ∩ Rtn (−, ). Defina, então,

α(t), t ∈ (a, b)
α
e(t) = .
β(t), t ∈ Rtn (−, )
Temos que α e está bem definida, e está definida no intervalo (a, tn + ) que
contém (a, b + /2), pois
Rtn (−, ) = tn + (−, ).

140
e|(a,b) = α. Portanto, basta tomar δ = /2.
Além disso, tem-se α

Sejam M uma variedade diferenciável e X ∈ X(M ). Dado um ponto


p ∈ M , considere a família {αi : i ∈ I} formada por todas as curvas integrais
S i , i ) → M de X, com αi (0) = p, para todo i ∈ I. O conjunto
αi : (−
Ip = i∈I (−i , i ) é um intervalo aberto de R contendo 0. Defina uma curva
αp : Ip → M pondo
αp (t) = αi (t),
se t ∈ (−i , i ). Pelo Corolário 10.3.3, αp está bem definida e é uma curva
integral de X, com αp (0) = p, chamada a curva integral maximal de X
passando pelo ponto p.
∂ ∂
Exemplo 10.3.9. Em R2 , considere o campo X = x ∂x − y ∂y . Então,
α(t) = (x(t), y(t)) é uma curva integral de X se, e somente se,

dx dy
=x e = −y.
dt dt
Assim, devemos ter x(t) = Aet e y(t) = Be−t , com A, B ∈ R. Portanto, a
curva integral maximal de X, passando pelo ponto p = (p1 , p2 ), é dada por

αp (t) = (p1 et , p2 e−t ),

para todo t ∈ R.

As curvas integrais maximais de um campo X têm a seguinte caracteri-


zação:

Proposição 10.3.10. Seja αp : Ip → M a curva integral maximal de


X ∈ X(M ), com αp (0) = p. Se α : (a, b) → M é uma curva integral
de X e existe t0 ∈ (a, b) ∩ Ip tal que α(t0 ) = αp (t0 ), então (a, b) ⊂ Ip e
α = αp |(a,b) .

Demonstração. Defina uma curva β : Ip ∪ (a, b) → M pondo



αp (t), t ∈ Ip
β(t) = .
α(t), t ∈ (a, b)

O Corolário 10.3.3 mostra que β está bem definida e é uma curva integral de
X. Como β(0) = αp (0) = p, concluimos que Ip ∪ (a, b) ⊂ Ip , logo (a, b) ⊂ Ip
e α(t) = β(t) = αp (t), para todo t ∈ (a, b).

141
10.4 Exercícios
10.1
1. Prove que o fibrado tangente do círculo S1 é difeomorfo ao cilindro S1 ×R.

2. Dado uma superfície M m ⊂ Rn , considere o conjunto

S(M ) = {(p, v) ∈ Rn × Rn : p ∈ M, v ∈ Tp M, kvk = 1}.

Prove que S(M ) é uma superfície de dimensão 2m − 1, conhecida como o


fibrado tangente unitário de M . Prove que S(M ) é compacto se, e somente
se, M é compacta.

3. Um espaço topológico X é chamado um espaço de Lindelöf se toda co-


bertura aberta de X admite uma subcobertura enumerável. Prove que se
X satisfaz o segundo axioma da enumerabilidade então X é um espaço de
Lindelöf.

4. Sejam M um conjunto e A um atlas em M . Prove que se A contém um


atlas enumerável para M então a topologia induzida por A em M satisfaz o
segundo axioma da enumerabilidade.

10.2
1. Dado uma variedade diferenciável M , e fixados um ponto p ∈ M e um
vetor v ∈ Tp M , prove que existe um campo vetorial X ∈ X(M ) tal que
X(p) = v.

2. Seja f : M → N uma aplicação diferenciável. Se f possui uma inversa


diferenciável à esquerda, prove que f é um mergulho.

3. Se X : M → T M é o campo vetorial nulo, definido numa variedade


diferenciável M , prove que X ∈ X(M ).

4. Seja M uma variedade diferenciável. Prove que o conjunto Γ de todos os


campos vetoriais em M , munido das operações:

(X + Y )(p) = X(p) + Y (p)


(cX)(p) = cX(p),

para quaisquer X, Y ∈ Γ, p ∈ M e c ∈ R, é um espaço vetorial real. Prove


também que X(M ) é um subespaço vetorial de Γ.

142
10.5 Apêndice: Morfismos entre fibrados tangentes
Dado uma aplicação diferenciável f : M m → N n , definimos uma aplica-
ção df : T M → T N , chamada a diferencial de f , pondo

df (p, v) = (f (p), df (p) · v), (10.1)

para quaisquer p ∈ M e v ∈ Tp M . Temos a seguinte

Proposição 10.5.1. A aplicação df , definida em (10.1), é de classe C∞ .

Demonstração. Sejam (U, ϕ), (V, ψ) cartas locais em M e N , respectiva-


mente, com f (U ) ⊂ V . Considere as cartas correspondentes ϕ em T M e ψ
em T N . Temos que df (π −1 (U )) ⊂ π −1 (V ). Como ϕ e ψ podem ser esco-
lhidas de modo que π −1 (U ) contenha um ponto arbitrário dado em T M , a
prova estará completa se verificarmos que a representação de df em relação
às cartas ϕ e ψ é diferenciável. Seja então (x, h) ∈ ϕ(U ) × Rm e defina
(p, v) = ϕ−1 (x, h), de modo que p = ϕ−1 (x) e v = dϕ(p)−1 · h. Assim,

(ψ ◦ df )(p, v) = ψ(f (p)), (dψ(f (p)) ◦ df (p)) · v .

Porém, como

dψ(f (p)) ◦ df (p) · v = dψ(f (p)) ◦ df (p) ◦ dϕ(p)−1 · h,


 

segue que a representação de df em relação às cartas ϕ e ψ é dada por

ψ ◦ df ◦ ϕ−1 (x, h) = (ψ ◦ f ◦ ϕ−1 )(x), d(ψ ◦ f ◦ ϕ−1 )(x) · h .


 

Como ψ ◦ f ◦ ϕ−1 é de classe C∞ , segue que ψ ◦ df ◦ ϕ−1 é de fato uma


aplicação de classe C∞ .

Corolário 10.5.2. Se f : M → N é um difeomorfismo de classe C∞ , então


a diferencial df : T M → T N é um difeomorfismo de classe C∞ .

Demonstração. Basta notar que a inversa de df é dada por (df )−1 = d(f −1 )
e usar a Proposição 10.5.1.

Teorema 10.5.3. Se M m ⊂ N n é uma subvariedade, então T M é uma sub-


variedade de T N . Além disso, a estrutura diferenciável usual do fibrado tan-
gente de M coincide com a estrutura diferenciável de subvariedade induzida
em T M através de T N .

143
Demonstração. Seja (U, ϕ) uma carta em N satisfazendo a relação (3.1),
i.e., ϕ(U ∩ M ) = ϕ(U ) ∩ Rm . Como ϕ é um difeomorfismo que transforma a
subvariedade U ∩ M de U sobre a subvariedade ϕ(U ) ∩ Rm de ϕ(U ), temos
que, para todo p ∈ U ∩ M , a diferencial dϕ(p) transforma o espaço tangente
a U ∩ M no ponto p no espaço tangente a ϕ(U ) ∩ Rm no ponto ϕ(p). Temos,
então:
dϕ(p)(Tp M ) = Rm ,
para todo p ∈ U ∩ M . Assim,

ϕ(π −1 (U ) ∩ T M ) = ϕ(U ∩ M ) × Rn = (ϕ(U ) ∩ Rm ) × Rn


= (ϕ(U ) × Rn ) ∩ (Rm × Rm ),

onde identificamos Rm × Rm com o seguinte subespaço de R2n :

Rm × Rm = {(x1 , . . . , xm , 0, . . . , 0, h1 , . . . , hm , 0, . . . , 0) ∈ R2n : xi , hi ∈ R}.

Seja φ : R2n → R2n o isomorfismo linear definido por

φ(x1 , ..., xm , 0, ..., 0, h1 , ..., hm , 0, ..., 0) = (x1 , ..., xm , h1 , ..., xm , 0, ..., 0).

A aplicação φ transforma o subespaço Rm × Rm de R2n sobre o subespaço


R2m de R2n e, portanto, a carta

φ ◦ ϕ : π −1 (U ) → φ(ϕ(U ) × Rn )

de T N satisfaz

(φ ◦ ϕ)(π −1 (U ) ∩ T M ) = φ(ϕ(U ) ∩ Rn ) ∩ R2m ,

i.e., φ ◦ ϕ é uma carta de T N que satisfaz a relação (3.1). Como ϕ pode


ser escolhida de modo que π −1 (U ) contenha um ponto arbitrário dado de
T M , segue que T M é uma subvariedade de T N . Provemos agora que a
estrutura diferenciável usual do fibrado tangente de M coincide com a es-
trutura diferenciável induzida por T N em T M . Para cada carta (U, ϕ) de
N satisfazendo (3.1), denotemos por ϕ0 = ϕ|U ∩M : U ∩ M → ϕ(U ) ∩ Rm
a carta correspondente a ϕ em M . Quando ϕ percorre o conjunto de todas
as cartas de N satisfazendo (3.1), temos que as cartas correspondentes ϕ0
em M constituem um atlas para M , e as correspondentes cartas ϕ0 em T M
constituem um atlas para T M contido na estrutura diferenciável usual do
fibrado tangente de M . Vimos acima que a cada carta ϕ de N satisfazendo

144
(3.1) está também associada uma carta φ ◦ ϕ satisfazendo (3.1) para T M .
Tal carta restringe-se a uma carta

φ ◦ ϕ|π−1 (U )∩T M : π −1 (U ) ∩ T M → φ(ϕ(U ) × Rn ) ∩ R2m (10.2)

em T M e quando ϕ percorre o conjunto de todas as cartas de N satisfazendo


(3.1), temos que as correspondentes cartas em (10.2) de T M constituem um
atlas contido na estrutura diferenciável induzida por T N em T M . Para
provar que a estrutura diferenciável usual do fibrado tangente de M coincide
com a estrutura diferenciável induzida por T N em T M , basta provar que a
carta em (10.2) coincide com a carta ϕ0 . Sejam então p ∈ U ∩ M , v ∈ Tp M
e escreva ϕ0 (p) = (x1 , . . . , xm ) e dϕ0 (p) · v = (h1 , . . . , hm ). Temos:

ϕ(p) = (x1 , . . . , xm , 0, . . . , 0), dϕ(p) · v = (h1 , . . . , hm , 0, . . . , 0)

e, portanto, a carta em (10.2) de fato coincide com ϕ0 .

Corolário 10.5.4. Sejam N uma variedade diferenciável, M ⊂ N uma


subvariedade e X ∈ X(N ) tal que X(p) ∈ Tp M , para todo p ∈ M . Então,
X|M : M → T M é um campo vetorial de classe C∞ em M .

Demonstração. A condição X(p) ∈ Tp M , para todo p ∈ M , significa que


X(M ) ⊂ T M . O fato que X|M : M → T M é de classe C∞ segue então
diretamente do Teorema 10.5.3.

Corolário 10.5.5. Se f : M → N é um mergulho de classe C∞ , o mesmo


vale para a diferencial df : T M → T N .

Demonstração. Como f é um mergulho, temos que f (M ) é uma subvari-


edade de N e a aplicação fe : M → f (M ), que difere de f apenas pelo
contra-domínio, é um difeomorfismo. Assim, pelo Teorema 10.5.3, T f (M )
é uma subvariedade de T N e, portanto, a aplicação inclusão de T f (M ) em
T N é um mergulho, sendo T f (M ) munido da estrutura diferenciável indu-
zida por T N . Como fe é um difeomorfismo, temos que dfe : T M → T f (M )
é um difeomorfismo, sendo T f (M ) munido da estrutura diferenciável usual
do fibrado tangente de f (M ). Como a estrutura diferenciável usual do fi-
brado tangente de f (M ) coincide com a estrutura diferenciável induzida por
T N em T f (M ) e como df : T M → T N é igual a composição de dfe com a
inclusão de T f (M ) em T N , segue que df é um mergulho.

145
10.6 Apêndice: Campos vetoriais completos
Nesta seção discutiremos condições para que as curvas integrais maximais
de um campo vetorial X ∈ X(M ) estejam definidas em todo R.

Proposição 10.6.1. Dados um campo vetorial X ∈ X(M ) e um ponto


p ∈ M , seja αp : Ip → M a curva integral maximal de X passando por p.
Então:

(a) Se existe um compacto K ⊂ M tal que αp (Ip ) ⊂ K, então Ip = R.

(b) Se existe t0 ∈ Ip tal que X(αp (t0 )) = 0 então Ip = R e αp ≡ p.

Demonstração. (a) Suponha que Ip ( R. Assim, existe b = sup Ip (ou


a = inf Ip ). Seja (tn ) uma sequência em Ip , com tn → b. Como K ⊂ M é
compacto e (αp (tn )) é uma sequência em K, existe uma subsequência (tnk )
de (tn ) tal que αp (tnk ) → p0 ∈ M . Assim, pela Proposição 10.3.8, existe
δ > 0 e uma curva integral α e : Ip ∪ (b, b + δ) → M de X tal que α
ep |Ip = αp .
Mas isso contradiz o fato de αp ser maximal.
(b) Defina uma curva β : R → M pondo β(t) = αp (t0 ), para todo t ∈ R.
Temos que
β 0 (t) = 0 = X(αp (t0 )) = X(β(t)),
i.e., β é uma curva integral de X com β(t0 ) = αp (t0 ). Assim, pelo Corolário
10.3.3, temos que β(t) = αp (t), para todo t ∈ Ip ∩ R = Ip . Disso decorre que
β(0) = p e, portanto, β é uma curva integral de X passando por p. Logo,
pela Proposição 10.3.10, temos que R ⊂ Ip . Portanto, Ip = R e αp (t) = p,
para todo t ∈ R.

Corolário 10.6.2. Seja X ∈ X(M ) com suporte compacto. Se αp : Ip → M


é a curva integral maximal de X passando por p então Ip = R.

Demonstração. Seja K = suppX. Temos duas possibilidades: se αp (Ip ) ⊂ K


então, pelo item (a) da Proposição 10.6.1, tem-se que Ip = R; se existe t0 ∈ Ip
tal que αp (t0 ) 6∈ K então X(αp (t0 )) = 0. Assim, pelo item (b) da Proposição
10.6.1 tem-se que Ip = R.

Motivados pelo Corolário 10.6.2, temos a seguinte:

Definição 10.6.3. Um campo vetorial X ∈ X(M ) é dito ser completo se,


para todo p ∈ M , o domínio da curva integral maximal de X passando por
p é todo R.

146
Segue então diretamente do Corolário 10.6.2 que todo campo X ∈ X(M )
com suporte compacto é completo.
Dado um campo vetorial X ∈ X(M ), definimos

D = {(t, p) : t ∈ Ip },

onde Ip é o domínio da curva integral maximal αp de X passando por p.


Definimos também uma aplicação ϕ : D → M pondo

ϕ(t, p) = αp (t), (10.3)

para todo (t, p) ∈ D. Pelo Teorema 10.3.6, D contém uma vizinhança de


{0} × M no qual ϕ é diferenciável. Este resultado pode ser melhorado, como
mostra a proposição seguinte.

Proposição 10.6.4. A aplicação ϕ : D → M , definida em (10.3), é diferen-


ciável.

Demonstração. Dado p ∈ M , seja C o conjunto formado pelos reais t ∈ Ip


tais que (t, p) é um ponto interior de D e ϕ é diferenciável em uma vizinhança
de (t, p). Temos que C é aberto em Ip e, pelo Teorema 10.3.6, temos que
0 ∈ C, logo C 6= ∅. Provemos que C também é fechado em Ip . De fato, seja
b ∈ Ip um ponto aderente a C. Pelo Teorema 10.3.6, existem δ > 0 e um
aberto V ⊂ M contendo αp (b) tais que (−δ, δ)×V ⊂ D e ϕ : (−δ, δ)×V → M
é diferenciável. Escolhendo c ∈ C tal que |b − c| < δ e αp (c) ∈ V , existe
 > 0 e um aberto W ⊂ M contendo p tal que (c − , c + ) × W ⊂ D é outro
subconjunto no qual ϕ é diferenciável. Em particular, a aplicação ϕc = ϕ(c, ·)
é contínua em W . Assim, existe um aberto U ⊂ M , com p ∈ U ⊂ W , tal
que ϕc (U ) ⊂ V . Então, se q ∈ U temos que λ(t) = ϕ(t − c, ϕ(c, q)) é uma
curva integral de X definida para t − c ∈ (−δ, δ), com λ(c) = ϕ(c, q). Logo,
ϕ(t, q) = ϕ(t − c, ϕ(c, q)), para quaisquer (t, q) ∈ (c − δ, c + δ) × U , o que
mostra que (c − δ, c + δ) × U ⊂ D e ϕ é diferenciável neste conjunto. Como
|b − c| < δ, concluimos que b ∈ C, ou seja, C é fechado em Ip . Portanto,
C = Ip , e a prova está concluida.

A aplicação ϕ : D → M , definida em (10.3), é chamada o fluxo maximal


do campo X. Observe que X é completo se, e somente se, D = R × M .
Seja ϕ : D → M o fluxo maximal de um campo vetorial X ∈ X(M ).
Para cada t ∈ I, defina Dt = {p ∈ M : t ∈ Ip } e considere a aplicação
ϕt : Dt → M definida por
ϕt (p) = ϕ(t, p).

147
Note que, em geral, o domínio
S de ϕt depende de t. Como Ip 6= ∅, para todo
p ∈ M , segue que M = t>0 Dt .

Teorema 10.6.5. Dado s ∈ I, seja t ∈ I tal que t ∈ Iαp (s) , para todo p ∈ Ds .
Então, t + s ∈ Ip , para todo p ∈ Ds , e vale:

(ϕt ◦ ϕs )(p) = ϕs+t (p), (10.4)

para todo p ∈ Ds . Decorre, em particular, que ϕt ◦ ϕ−t = Id, logo ϕt é um


difeomorfismo sobre D−t , cujo inverso é ϕ−t .

Demonstração. Dado p ∈ Ds , seja ααp (s) : Iαp (s) → M a curva integral de



X, com ααp (s) (0) = αp (s). Defina uma curva β : Rs Iαp (s) → M pondo

β(t) = ααp (s) (t − s).

Temos que β é uma curva integral de X tal que β(s) = αp (s). Definimos
agora uma curva α : Ip ∪ Rs Iαp (s) → M pondo

αp (t), t ∈ Ip
α(t) =  .
β(t), t ∈ Rs Iαp (s)

A curva α está bem definida e é uma curva integral de X, com α(p) = 0.


Segue então da unicidade que

Rs Iαp (s) ⊂ Ip e α = αp |Rs (Iα (s) ) .
p


Assim, se t ∈ Iαp (s) então t + s ∈ Rs Iαp (s) ⊂ Ip . Além disso, temos:

ϕt+s (p) = αp (t + s) = β(t + s) = ααp (s) (t)


= ϕt (αp (s)) = ϕt (ϕs (p)),

para todo p ∈ Ds . Portanto, ϕt+s = ϕt ◦ ϕs .

No caso em que X ∈ X(M ) é completo, as aplicações ϕt formam um


grupo de difeomorfismos de M parametrizados pelos números reais, e é cha-
mado o grupo a 1-parâmetro de X. Se X não é completo, os difeomorfismos
ϕt não formam um grupo, pois seus domínios dependem de t. Neste caso,
dizemos que a coleção dos difeomorfismos ϕt é um grupo local a 1-parâmetro
de X.

148
Capítulo 11

O teorema de Poincaré-Hopf

11.1 O índice de um campo vetorial


Uma singularidade de um campo vetorial X ∈ X(M ) é um ponto p ∈ M
para o qual X(p) = 0. Numa vizinhança de uma singularidade isolada p, a
direção do campo pode mudar radicalmente. Por exemplo, o campo pode
circular em torno de p, ter um comportamento de convergência, divergência,
espiral, sela ou, eventualmente, algo mais complicado. Algo interessante,
neste contexto, é que a topologia da variedade influencia fortemente no com-
portamento do campo. O que faremos a partir de agora é investigar a relação
entre um campo vetorial X ∈ X(M ) e a topologia de M .
Consideremos, inicialmente, o caso em que M = Rn . Um campo vetorial
em Rn é simplesmente uma aplicação diferenciável X : Rn → Rn . Se x0 ∈ Rn
é uma singularidade isolada de X, escolha um número  > 0 tal que x0 seja
a única singularidade na bola fechada B[x0 , ]. Assim, a aplicação de Gauss
G : ∂B(x0 , ) → Sn−1 associada a X em x0 , dada por

X(x)
G(x) = , (11.1)
kX(x)k

está bem definida.

Definição 11.1.1. O índice do campo X na singularidade isolada x0 , deno-


tado por indx0 (X), é definido pondo

indx0 (X) = deg(G), (11.2)

onde G é a aplicação de Gauss dada em (11.1).

149
Da mesma forma como na Seção 9.5, onde definimos a aplicação de Gauss
para aplicações diferenciáveis, o índice indx0 (X), definido em (11.2), está
bem definido, ou seja, independe da escolha do raio .
Esta definição tem um caráter geométrico bem simples. Por exemplo,
para campos X : R2 → R2 , o número indx0 (X) é simplesmente o número
de voltas positivas que a aplicação de Gauss G faz em torno de S1 , menos o
número de voltas negativas.

Observação 11.1.2. No caso de campos X : R2 → R2 , o sentido de percurso


da aplicação de Gauss G é descrito da seguinte forma. Se G percorre o círculo
S1 no sentido anti-horário, quando o campo X percorre o círculo ∂B(x0 , )
no sentido anti-horário, dizemos que G percorre S1 no sentido positivo. Caso
contrário, dizemos que G percorre S1 no sentido negativo.

Exemplo 11.1.3. Podemos construir campos vetoriais cujas singularidades


têm índice prescrito. Por exemplo, o campo X : R2 → R2 , definido por
X(z) = z k , tem uma singularidade isolada na origem, cujo índice é k.

Nosso objetivo agora é mostrar que o índice é invariante por difeomorfis-


mos. Para isso, faremos uso do seguinte lema auxiliar.

Lema 11.1.4. Todo difeomorfismo f : Rn → Rn , que preserva orientação, é


isotópico à aplicação identidade.

Demonstração. Podemos assumir que f (0) = 0. Como a diferencial de f na


origem é dada por
f (tv)
df (0) · v = lim ,
t→0 t
para todo v ∈ Rn , é natural definirmos uma aplicação F : Rn × [0, 1] → Rn
pondo  f (tv)
t , se t 6= 0
F (v, t) = .
df (0) · v, se t = 0
Afirmamos que F é uma isotopia entre df (0) = F (·, 0) e f = F (·, 1). De
fato, pondo
f (x) = (f1 (x), . . . , fn (x)),
com x = (x1 , . . . , xn ) ∈ Rn , podemos escrever
Z 1 n Z 1
dfi (tx) X ∂fi
fi (x) = dt = xi (tx)dt.
0 dt 0 ∂xj
j=1

150
Definindo então Z 1
∂fi
hij (x) = (tx1 , . . . , txn )dt,
0 ∂xj
segue que hij são funções diferenciáveis e satisfazem

∂fi
hij (0, . . . , 0) = (0, . . . , 0),
∂xj

para quaisquer 1 ≤ i, j ≤ n. Assim, podemos escrever


n n
!
X X
F (x1 , . . . , xn , t) = xi h1i (tx), . . . , xi hni (tx) ,
i=1 i=1

mostrando que F é diferenciável. Portanto, f é isotópica à aplicação linear


df (0). Como f é um difeomorfismo positivo, segue que df (0) ∈ GL(n)+ (n).
Assim, como GL(n)+ (n) é conexo por caminhos, existe uma curva diferen-
ciável α : [0, 1] → GL(n)+ (n) tal que α(0) = df (0) e α(1) = id, ou seja,
existe uma isotopia deformando df (0) sobre a aplicação idendidade.

Lema 11.1.5. Dado um difeomorfismo f : Rn → Rn , sejam X, Y : Rn → Rn


campos vetoriais que são f -relacionados, ou seja, df (x) · X(x) = Y (f (x)),
para todo x ∈ Rn . Se x0 é uma singularidade isolada de X, então

indx0 (X) = indf (x0 ) (Y ).

Demonstração. Assumimos, sem perda de generalidade, que x0 = f (x0 ) = 0.


Se f preserva orientação, segue do Lema 11.1.4 que f é isotópica à aplicação
identidade. Ou seja, existe uma família a 1-parâmetro de difeomorfismos
ft : Rn → Rn tais que f0 = id, f1 = f e ft (0) = 0, para todo t ∈ [0, 1]. Para
cada t ∈ [0, 1], consideremos o campo vetorial

Xt = dft ◦ X ◦ ft−1 .

Como x0 = 0 é uma singularidade isolada do campo X, o mesmo ocorre com


todos os campos Xt . Em particular, x0 = 0 é uma singularidade isolada
de Y . Além disso, denotando por Gt a aplicação de Gauss associada ao
campo Xt concluimos, em particular, que G0 e G1 são homotópicas, i.e., as
aplicações de Gauss de X e Y são homotópicas. Portanto, essas aplicações
têm o mesmo grau. Para o caso não-orientável, basta considerar o caso
especial em que f é uma reflexão R. Neste caso, os campos X e Y estão
relacionados por
Y = R ◦ X ◦ R−1 ,

151
de modo que as aplicações de Gauss associadas a X e Y satisfazem a mesma
relação
GY = R ◦ GX ◦ R−1 .
Disso decorre que GY tem o mesmo grau que GX .

Dados um campo vetorial X ∈ X(M ) e uma carta local (U, ϕ) em M ,


definimos um campo vetorial ϕ∗ X em ϕ(U ) pondo

(ϕ∗ X)(x) = dϕ(ϕ−1 (x)) · X(ϕ−1 (x)),

para todo x ∈ ϕ(U ). O campo ϕ∗ X é chamado o push-forward do campo


X através da carta local ϕ. Suponha que M seja orientável e que X admita
uma singularidade isolada p ∈ M . Se (U, ϕ) é uma carta local em M , com
p ∈ U , definimos

Definição 11.1.6. O índice do campo vetorial X ∈ X(M ) na singularidade


isolada p ∈ M , denotado por indp (X), é definido pondo

indp (X) = indx (ϕ∗ X),

onde ϕ∗ X é o push-forward de X através de ϕ e x = ϕ(p).

Em virtude do Lema 11.1.5, o índice indp (X) está bem definido, ou seja,
independe da escolha da carta local (U, ϕ). De fato, se (V, ψ) é outra carta
local para M , com p ∈ V , os campos ϕ∗ X e ψ∗ X são (ψ ◦ ϕ−1 )-relacionados.

11.2 O teorema de Poincaré-Hopf


O objetivo dessa seção é provar o famoso teorema de Poincaré-Hopf,
segundo o qual a soma dos índices das singularidades isoladas de um campo
vetorial sobre uma variedade compacta e orientada não depende do campo,
e sim da topologia da variedade. A ideia geral da prova é conectar o teorema
à teoria de Lefschetz. O primeiro passo é provar uma relação entre o número
global de Lefschetz e o índice de um campo vetorial.
Relembremos, inicialmente, o seguinte resultado do Cálculo.

Lema 11.2.1. Dado uma função derivável g : R → R, existe outra função


derivável r : R → R tal que

g(t) = g(0) + tg 0 (t) + t2 r(t). (11.3)

152
Demonstração. Mostremos, inicialmente, que existe uma função derivável
q : R → R tal que g(t) = g(0) + tq(t). Fixado t ∈ R, defina h(s) = g(ts).
Temos que h0 (s) = tg 0 (ts). Assim, pelo teorema fundamental do Cálculo,
temos
Z 1 Z 1
0
g(t) − g(0) = h(1) − h(0) = h (s)ds = t g 0 (ts)ds.
0 0

Seja então Z 1
q(t) = g 0 (ts)ds.
0
Note que, como q(0) = g 0 (0), basta aplicar o mesmo argumento à função q e
obter outra função r tal que q(t) = q(0) + tr(t), e isso prova (11.3).

Proposição 11.2.2. Considere um compo vetorial X : Rn → Rn e suponha


que a origem seja uma singularidade isolada para X. Se {ft : t ∈ I} denota
o fluxo local de X, conforme o Teorema 10.3.7, então

ind0 (X) = L0 (ft ). (11.4)

Demonstração. Considere um número  > 0 tal que X(x) 6= 0 e ft (x) 6= x,


para todo x ∈ B[0, ], com x 6= 0, e para todo t ∈ I. Fixado x ∈ ∂B(0, ),
denote por
d
ft0 (x) = ft (x)|t=0 .
dt
Aplicando o Lema 11.2.1 a cada coordenada de ft (x), obtemos uma aplicação
r(t, x) tal que
ft (x) = f0 (x) + tft0 (x) + t2 r(t, x). (11.5)
Por hipótese, temos que
d
f0 (x) = x e X(x) = ft (x)|t=0 = ft0 (x). (11.6)
dt
De (11.5) e (11.6), temos

ft (x) − x = tX(x) + t2 r(x, t).

Como ft (x) − x 6= 0, para todo t 6= 0, podemos escrever

ft (x) − x X(x) + tr(x, t)


= . (11.7)
kft (x) − xk kX(x) + tr(x, t)k

153
O grau da aplicação do lado esquerdo de (11.7) é o número local de Lefschetz
L0 (ft ) de ft . Por outro lado, variando t, a aplicação do lado direito de
(11.7) fornece uma homotopia entre as aplicações ∂B(0, ) → Sn−1 que, para
t = 0, é aplicação de Gauss G(x) = X(x)/kX(x)k de X. Como o grau de
G é ind0 (X), e o grau é um invariante homotópico, a relação (11.4) está
provada.

O teorema seguinte, em dimensão 2, foi provado por Poincaré em 1885.


A verão geral, como acima apresentado, foi provada por Hopf em 1926.

Teorema 11.2.3 (Poincaré-Hopf). Sejam M uma variedade compacta e ori-


entada e X ∈ X(M ) um campo vetorial com somente um número finito de
singularidades, digamos p1 , . . . , pk . Então,
k
X
indpi (X) = χ(M ).
i=1

Demonstração. Decorre da Proposição 11.2.2 que a soma dos índices de X


é igual a soma dos números locais de Lefschetz de ft , ou seja,
k
X k
X
indpi (X) = Lpi (ft ). (11.8)
i=1 i=1

Além disso, em virtude do Teorema 9.5.5, a soma do lado direito de (11.8) é


igual ao número global de Lefschetz. Como f0 = id, segue então que
k
X k
X
indpi (X) = Lpi (ft ) = L(ft ) = L(f0 )
i=1 i=1
= L(id)
= χ(M ),

como queríamos.

O principal problema associado a este invariante consiste em calcular


χ(M ) quando se têm informações sobre M . Já sabemos, em virtude da
Proposição 9.1.7, que a característica de Euler de uma variedade compacta
de dimensão ímpar é zero. Vejamos no Exemplo a seguir outra maneira de
obter esse resultado usando campos vetoriais.

Exemplo 11.2.4. Seja M n uma variedade compacta de dimensão ímpar.


Considere um campo vetorial X ∈ X(M ) cujas singularidades isoladas são

154
p1 , . . . , pk . Observe que estes mesmos pontos são também singularidades
isoladas do campo vetorial −X. Assim, segue do Teorema 11.2.3 que
k
X k
X
indpi (X) = indpi (−X). (11.9)
i=1 i=1

Por outro lado, considere cartas locais (Ui , ϕi ) em M , com pi ∈ Ui . Na


vizinhança coordenada Ui , podemos escrever
n
X ∂i
X(p) = aij (p) (p),
∂xj
j=1

para todo p ∈ Ui . Assim, o índice do campo X no ponto pi é o sinal do


determinante !
∂aij
det (pi ) ,
∂xk
enquanto que o índice do campo −X no ponto pi é o sinal do determinante
! !
∂aij n
∂aij
det − (pi ) = (−1) · det (pi ) .
∂xk ∂xk

Assim,
k
X k
X
n
indpi (X) = (−1) indpi (−X). (11.10)
i=1 i=1

Como n é um número ímpar, concluimos de (11.9) e (11.10) que


k
X
indpi (X) = 0
i=1

e, portanto, χ(M ) = 0.

Exemplo 11.2.5. Seja M 2 ⊂ R3 uma superfície compacta e nela considere


uma triangulação, i.e., uma coleção de triângulos curvilíneos (imagens difeo-
morfas de triângulos do plano) que cobrem M , de modo que dois quaisquer
deles, ou não se interceptam, ou têm somente um vértice em comum, ou
então têm exatamente um lado em comum. Seja V o número de vértices, A
o número de arestas e F o número de faces desta triangulação. Definiremos
um campo vetorial X sobre M e provaremos que a soma das singularidades

155
de X é igual a V − A + F , ou seja, qualquer que seja a triangulação de M ,
teremos
χ(M ) = V − A + F.
Em vez de difinir X explicitamente, daremos suas curvas integrais. Inicial-
mente, subdividimos baricentricamente cada triângulo de M , i.e., subdivi-
dimos cada triângulo de M em seis outros, traçando suas 3 medianas. Em
seguida, enchemos cada triângulo com as linhas integrais do campo, da se-
guinte forma. Cada linha integral parte sempre do centro de um elemento
de dimensão menor para o centro de um elemento de dimensão maior, ou
seja, de um vértice para o meio de um lado, de um vértice para o centro do
triângulo, ou do meio de um lado para o centro do triângulo. Cada elemento
(vértice, aresta ou face) contribui precisamente com uma singularidade do
campo. O centro deste elemento é uma singularidade. Assim, o campo X
terá V + A + F singularidades. Porém, num vértice as curvas integrais todas
saem daquele ponto; já no centro de um triângulo, todas as curvas integrais
entram. Em qualquer caso, o índice da singularidade é 1. No meio de um
lado, há curvas integrais que entram e outras que saem. Tem-se aí um ponto
de sela, e seu índice é −1. Assim, a soma dos índices das singularidades do
campo X é igual a V − A + F .

Observação 11.2.6. Para a esfera S2 obtemos, em virtude do Exemplo


11.2.5, que V − A + F = 2, que é o teorema clássico de Euler para poliedros
convexos, justificando assim o nome dado a χ(M ).

156
Capítulo 12

Distribuições

12.1 Derivações lineares


O objetivo dessa seção é obter uma nova interpretação para o espaço
tangente de uma variedade diferenciável. Dado uma variedade M , denotemos
por C ∞ (M ) o espaço vetorial das funções diferenciáveis f : M → R.
Uma derivação num ponto p ∈ M é um funcional linear D : C ∞ (M ) → R
que satisfaz a relação

D(f g) = D(f )g(p) + f (p)D(g), (12.1)

para quaisquer f, g ∈ C ∞ (M ). A relação (12.1) é usualmente conhecida


como a regra de Leibniz. Usando (12.1) e a linearidade de D, obtemos

D(f c) = D(f )c + f (p)D(c) e D(cf ) = cD(f ),

para quaisquer f ∈ C ∞ (M ) e c ∈ R. Disso decorre que f (p)D(c) = 0. Se f


é tal que f (p) 6= 0, segue que D(c) = 0, ou seja, qualquer derivação se anula
nas funções constantes.

Exemplo 12.1.1. Dado um vetor arbitrário v ∈ Tp M , definimos uma função


v : C ∞ (M ) → R pondo

v(f ) = (f ◦ λ)0 (0), (12.2)

onde λ : (−, ) → M é uma curva diferenciável, com λ(0) = p e λ0 (0) = v.


Afirmamos que v é uma derivação em p. De fato, é fácil ver que v está bem
definida e a linearidade de v segue da linearidade da derivada. Além disso,

157
dados f, g ∈ C ∞ (M ), temos:

v(f g) = (f g ◦ λ)0 (0)


0
= (f ◦ λ) · (g ◦ λ) (0)
= (f ◦ λ)0 (0) · (g ◦ λ)(0) + (f ◦ λ)(0) · (g ◦ λ)0 (0)
= v(f )g(p) + f (p)v(g).

Exemplo 12.1.2. Se (U, ϕ) é uma carta local em M n , com p ∈ U , obtemos,


em virtude do Exemplo 12.1.1, n derivações


(p) : C ∞ (M ) → R,
∂xi
n o
onde ∂x∂ 1 (p), . . . , ∂x∂n (p) denota a base de Tp M associada a ϕ. Assim,
dado f ∈ C ∞ (M ), temos:


(p)(f ) = (f ◦ λ)0 (0)
∂xi
= (f ◦ ϕ−1 ◦ ϕ ◦ λ)0 (0)
= d(f ◦ ϕ−1 )(ϕ(p)) ◦ d(ϕ ◦ λ)(0)

= d(f ◦ ϕ−1 )(ϕ(p)) · dϕ(p) · (p)
∂xi
= d(f ◦ ϕ−1 )(ϕ(p)) · ei
∂(f ◦ ϕ−1 )
= (ϕ(p)),
∂xi

onde λ : (−, ) → U é curva diferenciável, com λ(0) = p e λ0 (0) = ∂


∂xi (p).

Denotemos por Derp (M ) o conjunto de todas as derivações em p de uma


variedade M . O lema seguinte caracteriza a estrutura algébrica de Derp (M ).

Lema 12.1.3. O conjunto Derp (M ), munido das operações de soma e pro-


duto por escalar, dadas por

(D + T )(f ) = D(f ) + T (f )
(12.3)
(cD)(f ) = cD(f ),

torna-se um espaço vetorial real, onde D, T ∈ Derp (M ), f ∈ C ∞ (M ) e c ∈ R.

158
Demonstração. Provemos, inicialmente, que Derp (M ) é fechado em relação
às operações em (12.3). De fato, sejam D, T ∈ Derp (M ), f, g ∈ C ∞ (M ) e
c ∈ R. Temos:

(D + T )(f g) = D(f g) + T (f g)
= D(f )g(p) + f (p)D(g) + T (f )g(p) + f (p)T (g)
 
= D(f ) + T (f ) g(p) + f (p) D(g) + T (g)
= (D + T )(f )g(p) + f (p)(D + T )(g)

(cD)(f g) = cD(f g)
= cD(f )g(p) + cf (p)D(g)
= (cD)(f )g(p) + f (p)(cD)(g).

Os axiomas que caracterizam um espaço vetorial são deixados a critério do


leitor.

O Lema 12.1.3 não nos diz qual é a dimensão do espaço vetorial Derp (M ).
O teorema seguinte, além de responder a essa questão, nos garante que as
derivações do Exemplo 12.1.1 são, essencialmente, as únicas derivações em
p ∈ M . Para isso, usaremos o seguinte lema auxiliar.

Lema 12.1.4. Dado uma função diferenciável f : U → R, definida num


aberto convexo contendo a origem 0 ∈ Rn , existem funções diferenciáveis
gi : U → R, com 1 ≤ i ≤ n, tais que:
n
X
f (x) = f (0) + xi gi (x),
i=1

para todo x = (x1 , . . . , xn ) ∈ U .

Demonstração. Dado x ∈ U , defina uma função hx : [0, 1] → R pondo


hx (t) = f (tx), para todo t ∈ [0, 1]. Temos:
Z n
1X Z 1
∂f
(tx)xi dt = h0x (t)dt = hx (1) − hx (0) = f (x) − f (0),
0 ∂xi 0
i=1

ou seja,
n Z 1
X ∂f
f (x) = f (0) + (tx)xi dt.
0 ∂xi
i=1

159
Assim, basta definir: Z 1
∂f
gi (x) = (tx)xi dt,
0 ∂xi
para todo 1 ≤ i ≤ n.

De acordo com a notação do Exemplo 12.1.1, temos o seguinte:

Teorema 12.1.5. A aplicação φ : Tp M → Derp (M ), definida por

φ(v) = v,

é um isomorfismo linear.

Demonstração. A linearidade de φ segue da linearidade de (12.2). Dado uma


derivação D ∈ Derp (M ), escolha uma carta (U, ϕ) em M , com U convexo,
p ∈ U e ϕ(p) = 0. Dado f ∈ C ∞ (M ), defina h = f ◦ ϕ−1 : ϕ(U ) → R. Como
ϕ(U ) é conexo, segue do Lema 12.1.4 que existem funções gei : ϕ(U ) → R de
classe C ∞ , 1 ≤ i ≤ m, tais que
m
X
h(x) = h(0) + xi gei (x),
i=1

para todo x = (x1 , . . . , xm ) ∈ ϕ(U ). Como x = ϕ(q), para algum q ∈ U ,


temos:

f (q) = h(ϕ(q))
Xm
= h(0) + πi (ϕ(q))e
gi (ϕ(q))
i=1
m
X
= h(0) + ϕi (q)gi (q),
i=1

gi ◦ ϕ)(q), para todo q ∈ U . Assim,


onde ϕi (q) = πi (ϕ(q)) e gi (q) = (e
m
X m
X 
D(f ) = D(ϕi gi ) = D(ϕi )gi (p) + ϕi (p)D(gi )
i=1 i=1
m (12.4)
X
= D(ϕi )gi (p).
i=1

160
Observe que

∂h h(tei ) − h(0)
(0) = lim
∂xi t→0 t
h(0) + te gi (tei ) − h(0)
= lim
t→0 t
= lim gei (tei ) = gei (0).
t→0

Disso decorre, juntamente com o Exemplo 12.1.2, que:

∂ ∂(f ◦ ϕ−1 ) ∂h
(p)(f ) = (ϕ(p)) = (0) = gei (0) = gi (p).
∂xi ∂xi ∂xi
Fazendo ai = D(ϕi ), segue que (12.4) que
m m
!
X ∂ X ∂
D(f ) = ai (p)(f ) = ai (p) (f ),
∂xi ∂xi
i=1 i=1

ou seja,
m
!
X ∂
φ ai (p) (f ) = D(f ).
∂xi
i=1

Como f ∈ C ∞ (M ) é arbitrária, provamos que φ é sobrejetora. Além disso,


dado v ∈ Tp M , com
m
X ∂
v= ai (p),
∂xi
i=1
temos:
m m
X ∂(ϕi ◦ ϕ−1 )
X ∂
v(ϕi ) = aj (p)(ϕi ) = aj (ϕ(p))
∂xj ∂xj
j=1 j=1
m
X ∂πi
= aj (ϕ(p)) = ai ,
∂xj
j=1

para todo 1 ≤ i ≤ m. Assim, se v = 0 então v(ϕi ) = 0, para todo 1 ≤ i ≤ m,


logo ai = 0, para todo 1 ≤ i ≤ m. Portanto, v = 0 e, assim, φ é injetora.

Do Teorema 12.1.5 obtemos que os vetores tangentes em Tp M podem


ser identificados como derivações em p. Essa noção de derivação pode ser
globalizada, como veremos a seguir.

161
12.2 Derivação em variedades
Uma derivação numa variedade diferenciável M é um operador linear
D : C ∞ (M ) → C ∞ (M ) que satisfaz globalmente a regra de Leibniz

D(f g) = D(f )g + f D(g),

para quaisquer f, g ∈ C ∞ (M ).
Exemplo 12.2.1. Dado um campo vetorial X ∈ X(M ), definimos uma
aplicação X : C ∞ (M ) → C ∞ (M ) tal que, para cada função f ∈ C ∞ (M ), a
função X(f ) é definida pondo

X(f )(p) = df (p) · X(p), (12.5)

para todo p ∈ M . Afirmamos que X é uma derivação em M . De fato,


devemos provar, inicialmente, que X(f ) ∈ C ∞ (M ), para toda f ∈ C ∞ (M ).
Para isso, seja (U, ϕ) uma carta local em M . Assim, para todo p ∈ U ,
podemos escrever
m
X ∂
X(p) = ai (p) (p), (12.6)
∂xi
i=1

onde as funções ai : U → R são de classe C ∞ , para todo 1 ≤ i ≤ m.


Portanto,
m
X ∂
X(f )(p) = df (p) · X(p) = ai (p)df (p) · (p),
∂xi
i=1

para todo p ∈ U . Isso prova que X(f ) é uma função de classe C ∞ no


aberto U . Como U foi escolhido arbitrariamente, tem-se X(f ) ∈ C ∞ (M ). A
linearidade de X segue diretamente da linearidade da derivada em funções.
Além disso, segue de (12.5) que

X(f )(p) = X(p)(f ),

para todo p ∈ M . Assim, dados f, g ∈ C ∞ (M ) e p ∈ M , temos:

X(f g)(p) = X(p)(f g) = X(p)(f )g(p) + f (p)X(p)(g)


= X(f )(p) · g(p) + f (p)X(g)(p)

= X(f )g + f X(g) (p).

Como p ∈ M é arbitrário, segue a afirmação.

162
Seguindo a notação do Exemplo 12.2.1, temos a seguinte:

Proposição 12.2.2. Sejam M uma variedade diferenciável e X : M → T M


um campo vetorial. As seguintes afirmações são equivalentes:

(a) X ∈ X(M ).

(b) X(f ) ∈ C ∞ (M ), para toda f ∈ C ∞ (M ).

Demonstração. Do Exemplo 12.2.1, resta provar que (b) ⇒ (a). Suponha


então que X(f ) ∈ C ∞ (M ), para toda f ∈ C ∞ (M ). Dado p ∈ M , considere
uma carta local (U, ϕ) em M , com p ∈ U , e seja ϕ : π −1 (U ) → ϕ(U ) × Rm
a carta correspondente a ϕ em T M . Temos:

(ϕ ◦ X ◦ ϕ−1 )(ϕ(p)) = ϕ(p), a1 (p), . . . , am (p) ,




para todo p ∈ U , onde as funções ai são dadas como em (12.6). Definindo


ϕi = πi ◦ ϕ, para todo 1 ≤ i ≤ m, temos:
∂ϕ
ai (p) = (p) · X(p) = dϕi (p) · X(p) = X(ϕi )(p),
∂xi

para quaisquer p ∈ U e 1 ≤ i ≤ m. Como X(ϕi ) é de classe C ∞ em U , segue


que ai ∈ C∞ (U ), para todo 1 ≤ i ≤ m. Isso prova que a representação de X
nas cartas ϕ e ϕ é de classe C ∞ . Portanto, X ∈ X(M ).

Denotemos por Der(M ) o conjunto de todas as derivações em M . De


forma análoga ao Lema 12.1.3, temos que Der(M ) é um espaço vetorial real.
O teorema seguinte é a versão global do Teorema 12.1.5.

Teorema 12.2.3. A aplicação φ : X(M ) → Der(M ), definida por

φ(X) = X,

para todo X ∈ X(M ), é um isomorfismo linear.

Demonstração. A linearidade de φ segue diretamente da linearidade da de-


rivada (12.5). Seja D ∈ Der(M ). Dado p ∈ M , a função Dp : C ∞ (M ) → R,
definida por
Dp (f ) = D(f )(p),
para toda f ∈ C ∞ (M ), é uma derivação em p, ou seja, Dp ∈ Derp (M ).
Assim, do Teorema 12.1.5, existe v ∈ Tp M tal que v = Dp . Isso define uma

163
aplicação X : M → T M tal que π ◦ X = Id e X(f ) = D(f ), para toda
f ∈ C ∞ (M ), pois

X(f )(p) = X(p)(f ) = Dp (f ) = D(f )(p),

para todo p ∈ M . Como D(f ) ∈ C ∞ (M ), temos que X(f ) ∈ C ∞ (M ).


Assim, pela Proposição 12.2.2, segue que X é diferenciável, i.e., X ∈ X(M ).
Isso prova que φ é sobrejetora. Finalmente, seja X, Y ∈ X(M ) tais que
φ(X) = φ(Y ). Disso decorre que

X(f )(p) = Y (f )(p),

para quaisquer f ∈ C ∞ (M ) e p ∈ M . Ou seja, X(p)(f ) = Y (p)(f ), para


quaisquer f ∈ C ∞ (M ) e p ∈ M . Isso implica que X(p) = Y (p), para todo
p ∈ M . Assim, pelo Teorema 12.1.5, temos que X(p) = Y (p), para todo
p ∈ M , i.e., X = Y . Portanto, φ é injetora.

Em virtude do Teorema 12.2.3, identificaremos naturalmente cada campo


X ∈ X(M ) como uma derivação em M e, para cada função f ∈ C ∞ (M ),
denotaremos simplesmente por X(f ) a função associada.
Proposição 12.2.4. Considere duas derivações D1 , D2 ∈ Der(M ). Então,
a aplicação [D1 , D2 ] : C ∞ (M ) → C ∞ (M ), definida por

[D1 , D2 ] = D1 ◦ D2 − D2 ◦ D1 ,

é uma derivação em M .
Demonstração. Dados f, g ∈ C ∞ (M ), temos:

D1 (D2 (f g)) = D1 D2 (f )g + f D2 (g)
= D1 (D2 (f ))g + D2 (f )D1 (g) + D1 (f )D2 (g) + f D1 (D2 (g))

e

D2 (D1 (f g)) = D2 D1 (f )g + f D1 (g)
= D2 (D1 (f ))g + D1 (f )D2 (g) + D2 (f )D1 (g) + f D2 (D1 (g)).

Cancelando os termos semelhantes, obtemos:

[D1 , D2 ](f g) = D1 (D2 (f ))g + f D1 (D2 (g)) − D2 (D1 (f ))g − f D2 (D1 (g))
= [D1 , D2 ](f )g + f [D1 , D2 ](g).

Isso prova que [D1 , D2 ] ∈ Der(M ).

164
Corolário 12.2.5. Dados X, Y ∈ X(M ), existe um único campo vetorial
[X, Y ] ∈ X(M ) tal que

[X, Y ](f ) = X(Y (f )) − Y (X(f )),

para toda f ∈ C ∞ (M ).

O campo vetorial [X, Y ] ∈ X(M ), dado pelo Corolário 12.2.5, é chamado


o colchete de Lie dos campos X e Y e é, usualmente, denotado por

[X, Y ] = XY − Y X.

Proposição 12.2.6. O colchete de Lie satisfaz as seguintes propriedades:

(a) [X, Y ] = −[Y, X],

(b) [X, [Y, Z]] + [Y, [Z, X]] + [Z, [X, Y ]] = 0,

(c) [f X, gY ] = f g[X, Y ] + f (X(g))Y − g(Y (f ))X,

para quaisquer X, Y, Z ∈ X(M ) e f, g ∈ C ∞ (M ).

Demonstração. Basta identificar os campos acima como derivações e avaliar


nas funções de C ∞ (M ).

O item (b) da Proposição 12.2.6 é chamado a identidade de Jacobi. Note


que a aplicação

(X, Y ) ∈ X(M ) × X(M ) 7→ [X, Y ] ∈ X(M )

é bilinear sobre R porém, pelo item (c), não é bilinear sobre C ∞ (M ). Além
disso, pelo item (b), segue que X, Y , Z são permutados ciclicamente.

Observação 12.2.7. Dados uma carta local (U, ϕ) em M e dois campos


vetoriais X, Y ∈ X(M ), podemos representá-los no aberto U como
n n
X ∂ X ∂
X|U = Xi e Y |U = Yi .
∂xi ∂xi
i=1 i=1

Assim, o colchete de Lie entre X e Y , no aberto U , é dado por


n  
X ∂Yi ∂Xi ∂
[X, Y ] = Xj − Yj . (12.7)
∂xj ∂xj ∂xi
i,j=1

165
Exemplo 12.2.8. Em R2 , com coordenadas (x, y), considere os campos

vetoriais X = y ∂y e Y = x ∂y∂
. Dado uma função f ∈ C ∞ (R2 ), temos:
 
∂ ∂
[X, Y ](f ) = y , x (f )
∂y ∂y
∂2f ∂f ∂2f
= yx 2 − x − xy 2
∂y ∂y ∂y

= −x (f ) = −Y (f ).
∂y
Portanto, neste caso, tem-se [X, Y ] = −Y .

12.3 Campos f -relacionados


Considere uma aplicação diferenciável f : M → N e dois campos vetoriais
X ∈ X(M ) e Y ∈ X(N ). Dizemos que X e Y são f -relacionados se
df (p) · X(p) = Y (f (p)),
para todo p ∈ M . Com a identificação estabelecida no Teorema 12.2.3, entre
campos vetoriais e derivações, temos o seguinte:
Lema 12.3.1. Dois campos X ∈ X(M ) e Y ∈ X(N ) são f -relacionados se,
e somente se, X(g ◦ f ) = Y (g) ◦ f , para toda g ∈ C∞ (N ).
Demonstração. Dados p ∈ M e g ∈ C∞ (N ), temos:
X(g ◦ f )(p) = X(p)(g ◦ f ) = d(g ◦ f ) · X(p) = dg(f (p)) · df (p) · X(p)
(12.8)
= df (p) · X(p)(g)
e
(Y (g) ◦ f )(p) = Y (g)(f (p)) = dg(f (p)) · Y (f (p)) = Y (f (p))(g). (12.9)
A conclusão segue agora de (12.8) e (12.9).
Dado uma aplicação diferenciável f : M → N , nem sempre um campo
vetorial Y ∈ X(N ) é f -relacionado com algum campo X ∈ X(M ). A propo-
sição seguinte nos dá uma condição para que isso ocorra.
Proposição 12.3.2. Se f : M m → N n é uma imersão e Y ∈ X(N ) é um
campo vetorial tal que
Y (f (p)) ∈ df (p)(Tp M ),
para todo p ∈ M , então existe um único campo X ∈ X(M ) tal que X e Y
são f -relacionados.

166
Demonstração. Definimos uma aplicação X : M → T M pondo X(p) como
sendo o único elemento de Tp M tal que

df (p) · X(p) = Y (f (p)).

Provemos agora que X é diferenciável. Como f é uma imersão, segue do


Teorema 3.2.3 que, para todo p ∈ M , existem cartas locais (U, ϕ) e (V, ψ)
em M e N , respectivamente, com p ∈ U e f (U ) ⊂ V , tais que

(ψ ◦ f ◦ ϕ−1 )(x) = (x, 0),

para todo x ∈ ϕ(U ). Fazendo x = ϕ(p), temos (ψ ◦ f )(p) = (ϕ(p), 0), para
todo p ∈ U . Disso decorre que

df (p) = dψ(f (p))−1 ◦ dϕ(p),

para todo p ∈ U . Assim,


∂ ∂
df (p) · (p) = (f (p)),
∂xi ∂yi
para quaisquer p ∈ U e 1 ≤ i ≤ m. Em relação à base associada a ψ,
podemos escrever
m
X ∂
Y (f (p)) = bi (f (p)) (f (p)), (12.10)
∂yi
i=1

para todo p ∈ U . Escrevendo


m
X ∂
X(p) = ai (p) (p),
∂xi
i=1

temos:
m
X ∂
Y (f (p)) = df (p) · X(p) = ai (p)df (p) · (p)
∂xi
i=1
m (12.11)
X ∂
= ai (p) (f (p)).
∂yi
i=1

De (12.10) e (12.11), obtemos ai = bi ◦ f . Como as funções bi são diferenciá-


veis, o mesmo ocorre para as funções ai , e isso mostra que X ∈ X(M ).

167
No caso em que f : M → N é um difeomorfismo, para cada campo
Y ∈ X(N ), existe um único campo X ∈ X(M ) que é f -relacionado com Y ,
a saber

X = df −1 ◦ Y ◦ f. (12.12)

O campo em (12.12) é usualmente denotado por f ∗ Y , e é chamado o pull-


back de Y por f . Analogamente, dado um campo X ∈ X(M ), existe um
único campo Y ∈ X(N ) que é f -relacionado com X, a saber

Y = df ◦ X ◦ f −1 . (12.13)

O campo dado em (12.13) é usualmente denotado por f∗ X, e é chamado o


push-forward de X por f .
No espaço das funções, o pull-back é definido pondo f ∗ g = g ◦ f , para
toda g ∈ C∞ (N ). O push-forward é definido pondo f∗ h = (f −1 )∗ h = h◦f −1 ,
para toda h ∈ C ∞ (M ).
A proposição seguinte é uma das principais propriedades dos campos
f -relacionados.
Proposição 12.3.3. Sejam f : M → N uma aplicação diferenciável e cam-
pos X1 , X2 ∈ X(M ) e Y1 , Y2 ∈ X(N ). Se Xi e Yi são f -relacionados, para
i = 1, 2, então [X1 , X2 ] e [Y1 , Y2 ] são f -relacionados.
Demonstração. Como Xi e Yi são f -relacionados, para i = 1, 2, segue do
Lema 12.3.1 que
Xi (g ◦ f ) = Yi (g) ◦ f,
para toda g ∈ C∞ (N ) e i = 1, 2. Assim,

[Y1 , Y2 ](g) ◦ f = Y1 (Y2 (g)) ◦ f − Y2 (Y1 (g)) ◦ f


= X1 (Y2 (g) ◦ f ) − X2 (Y1 (g) ◦ f )
= X1 (X2 (g ◦ f )) − X2 (X1 (g ◦ f ))
= [X1 , X2 ](g ◦ f ).

Como g ∈ C∞ (N ) é arbitrária, segue do Lema 12.3.1 que [X1 , X2 ] e [Y1 , Y2 ]


são f -relacionados.

Corolário 12.3.4. Se f : M → N é um difeomorfismo, então

[f∗ X1 , f∗ X2 ] = f∗ [X1 , X2 ],

para quaisquer X1 , X2 ∈ X(M ).

168
Nosso objetivo agora é relacionar o colchete de Lie de dois campos veto-
riais com seus fluxos. Para isso, consideremos o seguinte lema auxiliar.

Lema 12.3.5. Dado uma função diferenciável F : I × M → R, onde I ⊂ R


é um intervalo aberto contendo 0 ∈ R, existe outra função diferenciável
h : I × M → R tal que

F (t, p) = F (0, p) + th(t, p),

para quaisquer t ∈ I e p ∈ M .

Demonstração. Basta considerar, por exemplo,


Z 1
∂F
h(t, p) = (st, p)ds,
0 ∂s

para quaisquer t ∈ I e p ∈ M .

Provemos agora o resultado central dessa seção.

Teorema 12.3.6. Para quaisquer dois campos X, Y ∈ X(M ), tem-se


1 ∗ 
[X, Y ] = lim ϕt Y − Y ,
t→0 t

onde {ϕt } é o grupo local a 1-parâmetro de X.

Demonstração. Dado uma função f ∈ C ∞ (M ), temos:

ϕ∗t Y (f ) = (dϕ−1
t ◦ Y ◦ ϕt )(f ) = (dϕ−t ◦ Y ◦ ϕt )(f )
= df ◦ (dϕ−t ◦ Y ◦ ϕt ) = d(f ◦ ϕ−t ) ◦ (Y ◦ ϕt )
= (Y ◦ ϕt )(f ◦ ϕ−t ).

Considere a função F : I × M → R definida por

F (t, p) = (f ◦ ϕ−t )(p),

para quaisquer t ∈ I e p ∈ M . Segue do Lema 12.3.5 que

F (t, p) = F (0, p) + th(t, p), (12.14)

onde h : I × M → R é uma função diferenciável, com


∂F
h(0, p) = (0, p). (12.15)
∂t

169
Note que, para cada t ∈ I fixado, temos uma função ht : M → R dada por
ht (p) = h(t, p), para todo p ∈ M . Segue, então, de (12.14) que

ϕ∗t Y (f ) = (Y ◦ ϕt )(f + tht )


= (Y ◦ ϕt )(f ) + t(Y ◦ ϕt )(ht ).

Dado p ∈ M , temos:
∂F d
(0, p) = (f (ϕ−t (p)))(0) = df (p) · (−X(p)) = −X(f )(p). (12.16)
∂t dt
Assim, segue de (12.15) e (12.16) que

lim(Y ◦ ϕt )(ht )(p) = lim(Y ◦ ϕt )(p)(ht )


t→0 t→0
= lim Y (ϕt (p))(ht ) = Y (p)(h0 ) (12.17)
t→0
= Y (p)(−X(f )) = −Y (X(f ))(p).

Por outro lado,


1  1 
lim (Y ◦ ϕt )(f )(p) − Y (f )(p) = lim Y (ϕt (p))(f ) − Y (p)(f )
t→0 t t→0 t
1 
= lim Y (f )(ϕt (p)) − Y (f )(p)
t→0 t
d 
(12.18)
= Y (f )(ϕt (p)) (0)
dt
= d(Y (f ))(p) · X(p)
= X(p)(Y (f ))
= X(Y (f ))(p).

Portanto, segue de (12.17) e (12.18) que


1
(ϕ∗t Y )(f )(p) − Y (f )(p) = X(Y (f ))(p) − Y (X(f ))(p)

lim
t→0 t
= (XY − Y X)(f )(p).

Como f ∈ C ∞ (M ) e p ∈ M são arbitrários, o teorema está provado.

Observação 12.3.7. Se X ∈ X(M ) é um campo completo então, para cada


t ∈ R, a aplicação ϕt é um difeomorfismo de M sobre M e

ϕ∗t Y = dϕ−t ◦ Y ◦ ϕt ,

170
para todo Y ∈ X(M ). No entanto, se X não é completo, ϕt está definido
somente no aberto Dt . Assim, ϕ∗t : X(D−t ) → X(Dt ). Se Y ∈ X(M ) inter-
pretaremos, então, o campo ϕ∗t Y como
ϕ∗t (Y |D−t ) ∈ X(Dt ).
Agora, como M ⊂ t6=0 Dt , ambos os valores ϕt (p) e (ϕ∗t Y )(p) fazem sentido
S
para qualquer p ∈ M , desde que t seja suficientemente pequeno e
(ϕ∗t Y )(p) = dϕ−t (Y (ϕt (p))).
Tendo isso em mente, manteremos a notação
d ∗ 
[X, Y ] = ϕ Y (0)
dt t
também para os campos que não são completos, desde que interpretamos,
corretamente, o campo pull-back ϕ∗t Y .
Observação 12.3.8. Considere um campo X ∈ X(M ) e seu grupo local a
1-parâmetro {ϕt }. Dado um ponto p ∈ M , o vetor X(p) é tangente à curva
α(t) = ϕt (p) em t = 0. Isso pode ser interpretado em termos da ação de
X(p) sobre as funções g ∈ C ∞ (M ). De fato, como
α0 (t)(g) = (g ◦ α)0 (t),
dizer que X(p) é tangente à curva α(t) em t = 0 significa que
X(p)(g) = α0 (0)(g) = (g ◦ α)0 (0)
1 
= lim g(ϕt (p)) − g(p) .
t→0 t

A fim de obtermos uma interpretação para o colchete [X, Y ], provaremos


os dois seguintes lemas.
Lema 12.3.9. Sejam f : M → N um difeomorfismo e X ∈ X(M ). Se {ϕt }
é o grupo local a 1-parâmetro de X então {f ◦ ϕt ◦ f −1 } é o grupo local a
1-parâmetro de f∗ X.
Demonstração. Dados g ∈ C∞ (N ) e q ∈ N , temos:
(f∗ X)(q)(g) = (df ◦ X ◦ f −1 )(q)(g)
= (df ◦ X)(f −1 (q))(g)
= X(f −1 (q))(g ◦ f )
1
= lim (g ◦ f )(ϕt (f −1 (q))) − (g ◦ f )(f −1 (q))

t→0 t
1
= lim g (f ◦ ϕt ◦ f −1 )(q) − g(q) .
 
t→0 t

171
Assim, pela Observação 12.3.8, segue que {f ◦ ϕt ◦ f −1 } é o grupo local a
1-parâmetro de f∗ X.

Corolário 12.3.10. Se f : M → M é um difeomorfismo, então f∗ X = X


se, e somente se, ϕt ◦ f = f ◦ ϕt , para todo t ∈ I.

Demonstração. Suponha f∗ X = X. Assim, para cada t ∈ I, temos

ϕt (p) = (f ◦ ϕt ◦ f −1 )(p),

para todo p ∈ Dt , ou seja,

(ϕt ◦ f )(p) = (f ◦ ϕt )(p),

para todo p ∈ Dt . Reciprocamente, suponha ϕt ◦ f = f ◦ ϕt , para todo t ∈ I.


Disso decorre que ϕt (p) = (f ◦ϕt ◦f −1 )(p), para todo p ∈ Dt . Fixado p ∈ M ,
defina
α(t) = ϕt (p),
para t suficientemente pequeno. Temos α0 (0) = X(p). Por outro lado, tem-se
α0 (0) = (f∗ X)(p). Como p ∈ M é arbitrário, segue que f∗ X = X.

Lema 12.3.11. Dados X, Y ∈ X(M ), sejam {ϕt } e {ψs } os grupos locais a


1-parâmetro de X e Y , respectivamente. Então, [X, Y ] = 0 se, e somente se,
ϕt ◦ ψs = ψs ◦ ϕt , para quaisquer s, t.

Demonstração. Suponha ϕt ◦ ψs = ψs ◦ ϕt , para quaisquer s, t. Fixado t,


segue do Corolário 12.3.10 que

ϕ∗t Y = Y. (12.19)

Dado p ∈ M , considere uma curva α : Ip → Tp M dada por

α(t) = (ϕ∗t Y )(p). (12.20)

Do Teorema 12.3.6, temos que α0 (0) = [X, Y ](p). Porém, segue de (12.19)
que α(t) = (ϕ∗t Y )(p) = Y (p), i.e., α é constante. Logo, α0 (0) = [X, Y ](p) =
0. Como p ∈ M é arbitrário, segue que [X, Y ] = 0. Reciprocamente, suponha
[X, Y ] = 0. Assim,
1 ∗ 
lim ϕh Y − Y = 0.
h→0 h

172
Fixado p ∈ M , considere a curva α(t) dada em (12.20). Então:
1
α0 (t) =

lim α(t + h) − α(t)
h→0 h
1
(ϕ∗t+h Y )(p) − (ϕ∗t Y )(p)

= lim
h→0 h
1 ∗ ∗
ϕt (ϕh Y )(p) − (ϕ∗t Y )(p)

= lim
h→0 h
 
∗ 1 ∗

= ϕt lim (ϕh Y )(p) − Y (p)
h→0 h
= ϕ∗t (0) = 0.

Disso decorre que α é constante. Em particular, α(t) = α(0), logo ϕ∗t Y = Y .


Assim, do Corolário 12.3.10, segue que ϕt ◦ ψs = ψs ◦ ϕt , para quaisquer
s, t.

A comutatividade dos fluxos, dada pelo Lema 12.3.11, pode ser interpre-
tada da seguinte forma. Sejam X, Y ∈ X(M ). Dado p ∈ M , para todo t
suficientemente pequeno, façamos:

α(t) = (ψ−t ◦ ϕ−t ◦ ψt ◦ ϕt )(p).

Assim, α(t) = p se, e somente se, [X, Y ](p) = 0. O colchete [X, Y ] mede o
quanto o paralelogramo da Figura 12.1 é fechado.
Y
X

[X,Y ]

X
Y
p

Figura 12.1: Variação da comutatividade dos fluxos.

Em virtude do Exercício 12.2.2, segue que se (U, ϕ) é uma carta local em


M n , então  
∂ ∂
, = 0,
∂xi ∂xj
para quaisquer 1 ≤ i, j ≤ n. Veremos a seguir que a condição [X, Y ] = 0
é também suficiente para a existência de uma carta local (U, ϕ) em M de
forma que dois de seus campos coordenados coincidam com X e Y .

173
Antes de estabelecermos o próximo resultado, lembremos que k campos
vetoriais X1 , . . . , Xk ∈ X(M ) são ditos linearmente independentes se os ve-
tores X1 (p), . . . , Xk (p) são linearmente independentes em Tp M , para todo
ponto p ∈ M .

Teorema 12.3.12. Sejam X1 , . . . , Xk ∈ X(M n ) campos linearmente inde-


pendentes. Se [Xi , Xj ] = 0, para quaisquer 1 ≤ i, j ≤ k então, para cada
ponto p ∈ M , existe uma carta local (U, ϕ) em M , com p ∈ U , tal que


Xi (q) = (q),
∂xi
para quaisquer q ∈ U e 1 ≤ i ≤ k.

Demonstração. Dado um ponto p ∈ M , considere uma carta (U, ϕ) em M


com as seguintes propriedades:

(a) ϕ(p) = 0 ∈ Rn ;

(b) ϕ(U ) = (−, )n ;

(c) X1 (p), . . . , Xk (p), ∂x∂k+1 (p), . . . , ∂x∂n (p) são vetores linearmente indepen-
dentes em Tp M .

Defina uma aplicação ψ : (−, )k × (−, )n−k → M pondo

ψ(x, y) = ψ(x1 , . . . , xk , y) = ϕkxk ◦ . . . ◦ ϕ1x1 (ϕ−1 (0, y)),




onde {ϕit } é o grupo local a 1-parâmetro do campo Xi , para 1 ≤ i ≤ k.


Temos:

ψ(x + tei , y) = ϕkxk ◦ . . . ◦ ϕixi +t ◦ . . . ◦ ϕ1x1 (ϕ−1 (0, y))




= ϕit (ψ(x, y)),

pois ϕis ◦ ϕjt = ϕjt ◦ ϕis . Assim, para todo 1 ≤ i ≤ k, temos:

d
dψ(x, y) · ei = (ψ(x + tei , y))(0) = Xi (ψ(x, y)).
dt
Decorre, em particular, que

dψ(0, 0) · ei = Xi (p),

174
para todo 1 ≤ i ≤ k. Além disso, para k + 1 ≤ i ≤ n, temos:
d d
dψ(0, 0) · ei = (ψ(0, tei ))(0) = (ϕ−1 (0, tei ))(0)
dt dt

= (p).
∂xi
Disso decorre, junto com a hipótese (c), que dψ(0, 0) : Rn → Tp M é um
isomorfismo linear. Assim, pelo Teorema 2.5.9, existe um aberto W ⊂ Rn ,
com (0, 0) ∈ W ⊂ (−, )n , tal que ψ|W : W → ψ(W ) é um difeomorfismo.
Assim, a carta local procurada é ϕ = ψ −1 .

Concluimos então do Teorema 12.3.12 que o colchete de Lie [X, Y ] pode


ser usado para comparar a diferença entre as curvas integrais de X e Y com
as curvas coordenadas de uma dada carta local.

12.4 O teorema de Frobenius


A teoria das distribuições pode ser vista como uma formulação geométrica
da teoria clássica de certos sistemas de equações diferenciais parciais. As
soluções são subvariedades da variedade em questão, chamadas de subva-
riedades integrais. O teorema de Frobenius nos dá condições necessárias e
suficientes para a existência de tais subvariedades integrais.
Definição 12.4.1. Uma distribuição de posto k numa variedade diferen-
ciável M n é uma correspondência D que associa a cada ponto p ∈ M um
subespaço vetorial D(p) ⊂ Tp M de dimensão k.
Decorre da Definição 12.4.1 que para qualquer ponto p ∈ M existe um
aberto U ⊂ M contendo p e k campos vetoriais X1 , . . . , Xk , possivelmente
definidos em U , tais que
D(q) = span{X1 (q), . . . , Xk (q)}, (12.21)
para todo q ∈ U . Diremos que uma distribuição D é diferenciável se é
possível escolher campos vetoriais X1 , . . . , Xk ∈ X(U ) com a propriedade
(12.21), em uma vizinhança U de cada ponto p ∈ M .
Exemplo 12.4.2. Seja M uma variedade diferenciável que admite um campo
vetorial X ∈ X(M ) não-nulo em todo ponto. Assim, o campo X gera uma
distribuição diferenciável D de posto 1, dada por
D(p) = span{X(p)},
para todo p ∈ M .

175
∂ ∂
Exemplo 12.4.3. No espaço Euclidiano Rn , os campos vetoriais ∂x1 , . . . , ∂xk ,
1 ≤ k ≤ n, geram uma distribuição diferenciável de posto k.

Exemplo 12.4.4. Em M = Rn \{0}, definimos uma distribuição D pondo,


para cada p ∈ M , D(p) como sendo o subespaço de Tp M = Rn ortogonal
ao vetor posição vp = → −
p . Estendendo o vetor vp a um campo vetorial
X1 ∈ X(U ), onde U ⊂ M é um aberto contendo p, e aplicando o algoritmo
de Gram-Schmidt, obtemos n campos vetoriais X1 , . . . , Xn ∈ X(U ) tais que,
para cada q ∈ U , os vetores X1 (1), . . . , Xn (q) formam uma base ortonormal
de Rn . Disso decorre que D é localmente gerada pelos campos X2 , . . . , Xn ∈
X(U ). Portanto, D é uma distribuição diferenciável em M de posto n − 1.

Exemplo 12.4.5. No espaço Euclidiano R3 , considere a distribuição D de-


finida do seguinte modo. Para cada ponto p = (a, b, c), defina D(p) como o
plano gerado pelos vetores
∂ ∂ ∂
(p) + b (p) e (p).
∂x ∂z ∂y
Assim,
D(p) = {(r, s, br)p : r, s ∈ R},
e a equação deste plano é dada por

z − c = b(x − a),

para cada ponto p = (a, b, c) ∈ R3 .

Definição 12.4.6. Uma distribuição D de posto k em uma variedade dife-


renciável M é dita ser involutiva se para quaisquer campos vetoriais
X, Y ∈ X(M ), com X(p), Y (p) ∈ D(p), para todo p ∈ M , tem-se que
[X, Y ](p) ∈ D(p), para todo p ∈ M .

Exemplo 12.4.7. Em Rn , considere a distribuição D gerada pelos primeiros


k campos coordenados ∂x∂ 1 , . . . , ∂x∂ k . Dados campos vetoriais X, Y ∈ X(Rn ),
com X(p), Y (p) ∈ D(p), para todo p ∈ Rn , podemos escrever
k k
X ∂ X ∂
X= Xi e Y = Yi .
∂xi ∂xi
i=1 i=1

Segue de (12.7) que [X, Y ](p) ∈ D(p), para todo p ∈ Rn , i.e., D é involutiva.

176
Exemplo 12.4.8. A distribuição D em R3 gerada pelos vetores
∂ ∂ ∂
X= e Y = + ex1
∂x1 ∂x2 ∂x3
não é involutiva, pois

[X, Y ] = ex1,
∂x3
que não é uma combinação linear de X e Y .
Definição 12.4.9. Seja D uma distribuição de posto k em uma variedade
diferenciável M . Uma subvariedade N k ⊂ M é chamada uma subvariedade
integral para a distribuição D se

D(i(x)) = di(x)(Tx N ),

para todo x ∈ N , onde i : N → M é a aplicação inclusão. A distribuição


D é chamada integrável se cada ponto de M pertence a uma subvariedade
integral da distribuição.
Exemplo 12.4.10. No Exemplo 12.4.2, a imagem de qualquer curva integral
de X é uma subvariedade integral de D. No Exemplo 12.4.4, por cada ponto
p ∈ Rn \{0}, a esfera de raio kpk centrada na origem é uma subvariedade
integral da distribuição D.
Proposição 12.4.11. Toda distribuição integrável é involutiva.
Demonstração. Seja D uma distribuição integrável de posto k em uma va-
riedade diferenciável M . Considere dois campos X, Y ∈ X(M ) tais que
X(p), Y (p) ∈ D(p), para todo p ∈ M . Como D é integrável segue que, para
cada p ∈ M , existe uma subvariedade N k ⊂ M , contendo p, tal que

D(i(x)) = di(x)(Tx N ),

para todo x ∈ N . Assim, como a inclusão i : N → M é, em particular, uma


imersão, segue da Proposição 12.3.2, existem campos X, e Ye ∈ X(N ) tais que
X é i-relacionado com X e Y é i-relacionado com Y . Pela Proposição 12.3.3,
e e
obtemos que [X,e Ye ] e [X, Y ] são i-relacionados, i.e.,

[X, Y ] ◦ i = di ◦ [X,
e Ye ].

Portanto,

[X, Y ](p) = [X, Y ](i(p)) = di(p) · [X,


e Ye ](p) ∈ D(p).

Como p ∈ M foi escolhido de forma arbitrária, a proposição está provada.

177
O lema seguinte afirma que toda distribuição involutiva é diferenciável.

Lema 12.4.12. Seja D uma distribuição involutiva de posto k numa varie-


dade diferenciável M n . Então, para cada ponto p ∈ M , existem um aberto
V em M , com p ∈ V , e campos vetoriais X1 , . . . , Xk ∈ X(V ) tais que vale
(12.21), para todo q ∈ V . Além disso, esses campos podem ser escolhidos de
tal forma que [Xi , Xj ] = 0, para quaisquer 1 ≤ i, j, ≤ k.

Demonstração. Dado um ponto p ∈ M , seja (U, ϕ) uma carta local em M ,


com p ∈ U , e considere uma decomposição em soma direta Rn = Rk ⊕ Rn−k
tal que a diferencial dϕ(p) transforma D(p) isomorficamente sobre Rk . Se
π : Rk × Rn−k → Rk denota a projeção sobre o primeiro fator, a diferencial
d(π ◦ ϕ)(p) também transforma D(p) isomorficamente sobre Rk . A aplicação
π ◦ ϕ induz uma aplicação d(π ◦ ϕ) : T M → T Rk entre os fibrados tangentes.
Como a distribuição D é um subfibrado vetorial de T M , podemos considerar
a restrição d(π◦ϕ)|D : D → T Rk e, aplicando o teorema da aplicação inversa,
concluímos que d(π ◦ ϕ)(q) transforma D(q) isomorficamente sobre Rk para
todo q pertencente a uma vizinhança V de p, com V ⊂ U . Assim, para cada
q ∈ V , existe um único vetor Xi (q) ∈ Tq M tal que

d(π ◦ ϕ)(q) · Xi (q) = ei ∈ Rk , (12.22)

para cada 1 ≤ i ≤ k; basta escolher Xi (q) = d(π ◦ ϕ)−1 (q) · ei . Disso decorre
que Xi ∈ X(V ). Como d(π ◦ ϕ)(q) é isomorfismo, segue que

D(q) = span{X1 (q), . . . , Xk (q)},

para todo q ∈ V . Além disso, segue de (12.22) que Xi é (π ◦ ϕ)-relacionado


com ei , para todo 1 ≤ i ≤ k. Assim, pela Proposição 12.3.3, [Xi , Xj ] é
(π ◦ ϕ)-relacionado com [ei , ej ] = 0, logo

d(π ◦ ϕ)(q) · [Xi , Xj ](q) = 0,

para todo q ∈ V . Como D é involutiva, temos que [Xi , Xj ](q) ∈ D(q),


para todo q ∈ V , logo [Xi , Xj ](q) = 0, para todo q ∈ V , pois d(π ◦ ϕ)(q) é
isomorfismo.

Estamos agora em condições de provar o principal resultado deste capí-


tulo estabelecendo, essencialmente, a recíproca da Proposição 12.4.11.

Teorema 12.4.13 (Frobenius). Toda distribuição involutiva D de posto k


numa variedade diferenciável M n é integrável. Mais precisamente, para cada

178
ponto p ∈ M , existe uma carta local (U, ϕ) em M , com p ∈ U , tal que para
cada b ∈ Rn−k , os subconjuntos

S b = (π ◦ ϕ)−1 (b) = {q ∈ U : ϕi (q) = bi , k + 1 ≤ i ≤ n}

são subvariedades de D, onde π : Rk × Rn−k → Rn−k é a projeção canônica


e ϕi = πi ◦ ϕ. Além disso, se N k é uma subvariedade integral de D, com N
conexa, então N ⊂ S b , para algum b ∈ Rn−k .

Demonstração. Dado um ponto p ∈ M , segue do Lema 12.4.12 que existem


um aberto V em M , com p ∈ V , e campos X1 , . . . , Xk ∈ X(V ) tais que

D(q) = span{X1 (q), . . . , Xk (q)}

e
[Xi , Xj ](q) = 0,
para todo q ∈ V . Como os campos X1 , . . . , Xk são linearmente independen-
tes em V , segue do Teorema 12.3.12 que existe uma carta (U, ϕ) em M , com
p ∈ U ⊂ V , tal que

Xi (q) = (q),
∂xi
para quaisquer q ∈ U e 1 ≤ i ≤ k. Assim,
 
∂ ∂
D(q) = span (q), . . . , (q) ,
∂x1 ∂xk

para todo q ∈ U . Dado b ∈ Rn−k , defina S b = (π ◦ ϕ)−1 (b). Como b é valor


regular para π ◦ ϕ, segue que S b é subvariedade de M . Além disso, temos

Tq S b = ker d(π ◦ ϕ)(q), (12.23)

para todo q ∈ S b . Mostremos que Tq S b = D(q). Como ker d(π ◦ ϕ)(q) tem
dimensão k, basta provar que D(q) ⊂ ker d(π ◦ ϕ)(q). Temos:
 
∂ ∂
d(π ◦ ϕ)(q) · (q) = π dϕ(q) · (q) = π(ei ) = 0,
∂xi ∂xi

para todo 1 ≤ i ≤ k. Isso mostra que D(q) ⊂ ker d(π ◦ ϕ)(q), para todo q ∈
S b . Segue então de (12.23) que D(q) = Tq S b , para todo q ∈ S b . Provamos
assim que, para cada p ∈ M , existe uma subvariedade S b de M , com p ∈ S b ,
tal que
di(q)(Tq S b ) = Tq S b = D(q),

179
para todo q ∈ S b , onde i : S b → M denota a inclusão canônica. Isso mostra
que D é uma distribuição integrável. Finalmente, seja N k uma subvariedade
integral de D, com N conexa. Então, como

di(x)(Tx N ) = D(i(x)),

para todo x ∈ N , temos:



d(π ◦ ϕ ◦ i)(x)(Tx N ) = π dϕ(i(x)) · di(x)(Tx N )

= π dϕ(i(x))(D(i(x)))
= d(π ◦ ϕ)(i(x))(D(i(x)))
= 0,

para todo x ∈ N . Como N é conexa, segue que (π ◦ ϕ ◦ i)(x) = b ∈ Rn−k ,


para todo x ∈ N e para algum b ∈ Rn−k , logo N ⊂ S b .

Uma subvariedade integral maximal N de uma distribuição D numa va-


riedade diferenciável M n é uma subvariedade integral conexa de D que não
é um subconjunto próprio de qualquer outra subvariedade integral conexa
de D. O teorema seguinte é uma versão do Teorema 12.4.13 no contexto
maximal. O leitor interessado pode conferir [19, Theorem 1.64].

Teorema 12.4.14. Seja D uma distribuição involutiva de posto k numa


variedade diferenciável M . Então, por cada ponto p ∈ M , passa uma única
subvariedade integral maximal de D, e qualquer outra subvariedade integral
conexa de D, contendo p, está contida nesta maximal.

180
12.5 Exercícios
12.1
1. Sejam D : C ∞ (M ) → R uma derivação em p ∈ M e f, g ∈ C ∞ (M ) tais
que f ≡ g em um aberto U ⊂ M contendo p. Prove que D(f ) = D(g).

12.2
1. Prove que [X, X] = 0, para todo X ∈ X(M ).

2. Dado uma carta local (U, ϕ) em uma variedade diferenciável M n , consi-



dere os campos coordenados ∂x i
, 1 ≤ i ≤ n, associados a ϕ. Prove que
 
∂ ∂
, = 0,
∂xi ∂xj

para quaisquer 1 ≤ i, j ≤ n.

3. Dado uma variedade diferenciável M , considere um subconjunto aberto


U ⊂ M e um campo X ∈ X(M ). Se X(f ) = 0, para toda função f ∈ C∞ (U ),
prove que X|U = 0.

12.3
1. Sejam f : M → N uma aplicação diferenciável e X ∈ X(M ), Y ∈ X(N )
campos vetoriais f -relacionados. Prove que qualquer curva integral de X é
transformada por f numa curva integral de Y .

12.4
1. Prove que os seguintes campos vetoriais definem uma distribuição de posto
2 em R3 que não é involutiva:
∂ ∂ ∂
X= +y , Y = .
∂x ∂z ∂y

2. Verifique se a distribuição em R3 , dada pelos campos vetoriais


∂ ∂ ∂ ∂
X = x31 + , Y = +
∂x1 ∂x3 ∂x2 ∂x3
é involutiva.

181
3. Prove que a distribuição em R4 dada pelos campos vetoriais
∂ ∂ ∂ ∂
X= +x , Y = +y ,
∂y ∂z ∂x ∂w

onde (x, y, z, w) são as coordenadas canônicas de R4 , não admitem subvarie-


dades integrais.

4. Sejam D1 , . . . , Dr distribuições integráveis de posto k1 , . . . , kr , respecti-


vamente, em uma variedade diferenciável M . Suponha que, para cada ponto
p ∈ M,
Tp M = D1 (p) ⊕ . . . ⊕ Dr (p).
Prove que existe uma carta local (U, ϕ) em M , em torno de cada ponto de
M , tal que D1 é gerada por ∂x∂ 1 , . . . , ∂x∂k , etc.
1

5. Seja f : M m → N n uma submersão diferenciável. Prove que a aplicação


D dada por
p ∈ M 7→ D(p) = ker df (p),
é uma distribuição integrável de posto m − n em M .

6. Sejam M ⊂ N uma subvariedade e X, Y ∈ X(N ) tais que X(p), Y (p) ∈


Tp M , para todo p ∈ M . Prove que [X, Y ](p) ∈ Tp M , para todo p ∈ M .

182
Capítulo 13

Grupos de Lie

13.1 Grupos de Lie


A teoria dos grupos de Lie teve início no final do século XIX com os
estudos de Sophus Lie, e constitui hoje uma das classes mais importantes de
variedades diferenciáveis. Grupos de Lie são variedades diferenciáveis muni-
das de uma operação diferenciável de grupo. Nesta seção apresentaremos as
definições básicas ilustrando com alguns exemplos conhecidos.

Definição 13.1.1. Um grupo de Lie é uma variedade diferenciável G, mu-


nida de uma estrutura de grupo, tal que a multiplicação

(g, h) ∈ G × G 7→ gh ∈ G (13.1)

e a inversão

g ∈ G 7→ g −1 ∈ G (13.2)

são aplicações diferenciáveis.

Decorre da definição que, para cada g ∈ G, as translações Lg : G → G e


Rg : G → G, dadas por

Lg (h) = gh e Rg (h) = hg,

para todo h ∈ G, são difeomorfismos. De fato, sabemos que tais aplicações


são bijeções, cujas inversas são dadas por

(Lg )−1 = Lg−1 e (Rg )−1 = Rg−1 .

183
Resta provar que tais aplicações são diferenciáveis. Considerando em G×G a
estrutura de variedade produto (cf. Exemplo 6) segue que, para cada g ∈ G,
as aplicações ig : G → G × G e jg : G → G × G, dadas por
ig (h) = (g, h) e jg (h) = (h, g), (13.3)
são mergulhos diferenciáveis. Como a translação à esquerda Lg é a composta
da multiplicação (13.1) com ig , segue que Lg é diferenciável. Analogamente,
Rg é diferenciável, pois é a composta da multiplicação (13.1) com o mergulho
jg . Note que a inversão (13.2) também é um difeomorfismo.
Exemplo 13.1.2. Um exemplo simples de grupo de Lie é o espaço Eucli-
diano Rn munido da operação usual de soma em Rn . De forma análoga,
qualquer espaço vetorial real é um grupo de Lie sob a operação de soma de
vetores.
Exemplo 13.1.3. O conjunto C\{0}, com a operação de multiplicação de
números complexos, é um grupo de Lie. De fato, C\{0} é uma variedade
diferenciável, parametrizada por uma única carta (C\{0}, ϕ), dada por
ϕ(z) = (x, y),
onde z = x + iy. Usando essas coordenadas, o produto é dado por
(z, z 0 ) 7→ (xx0 − yy 0 , xy 0 + yx0 ),
e a inversão é dada por
 
−1 x −y
z 7→ z = , 2 .
x + y x + y2
2 2

Exemplo 13.1.4. O círculo S1 = {z ∈ C : kzk = 1} é um grupo de Lie


abeliano com a operação de multiplicação de números complexos.
Exemplo 13.1.5. No conjunto M (n) das matrizes reais n × n, considere
o subconjunto GL(n)(n) formado pelas matrizes inversíveis. Observe que
GL(n)(n) é um aberto de M (n), logo é uma variedade diferenciável. Além
disso, em relação à multiplicação de matrizes, GL(n)(n) é um grupo, cha-
2
mado o grupo linear. Seja ϕ : M (n) → Rn a carta em M (n) que associa
a cada matriz sua ij-ésima coordenada, i.e., para cada matriz A ∈ M (n),
tem-se ϕij (A) = aij . Assim, se A, B ∈ GL(n)(n) então ϕij (AB −1 ) é uma
função racional de ϕij (A) e ϕij (B) com denominador não-nulo. Isso prova
que a aplicação
(A, B) ∈ GL(n)(n) × GL(n)(n) → AB −1 ∈ GL(n)(n)
é diferenciável, logo GL(n)(n) é um grupo de Lie.

184
Exemplo 13.1.6. Se G e H são grupos de Lie, então a variedade produto
G × H, munida da operação produto

(g1 , h1 ) · (g2 , h2 ) = (g1 g2 , h1 h2 ),

também é um grupo de Lie, usualmente chamada de grupo de Lie produto.


Um caso particular de grupo de Lie produto é toro T 2 = S1 × S1 .

Lema 13.1.7. Sejam G um grupo de Lie e H ⊂ G um subgrupo abstrato que


também é uma subvariedade de G. Então, com sua estrutura diferenciável
de subvariedade, H também é um grupo de Lie.

Demonstração. Como H é subvariedade de G, segue que H × H é subva-


riedade de G × G, logo a aplicação inclusão i : H × H → G × G é um
mergulho diferenciável. Se m : G × G → G é a multiplicação em G, então
a composta φ = m ◦ i : H × H → G é uma aplicação diferenciável, com
φ(H ×H) ⊂ H. Novamente, como H é subvariedade de G, segue do Corolário
3.4.3 que a aplicação φ, com contra-domínio H, é diferenciável. Isso prova
que a multiplicação em H é diferenciável. Analogamente se prova que a
inversão em H também é diferenciável.

Exemplo 13.1.8. O grupo ortogonal O(n)(n) é um subgrupo de GL(n)(n).


Além disso, pelo Exemplo 1.2.3, O(n)(n) é subvariedade de GL(n)(n). As-
sim, pelo Lema 13.1.7, segue que O(n)(n) é um grupo de Lie.

Exemplo 13.1.9. Considere a restrição da função det ao grupo ortogonal


O(n)(n). Analogamente ao caso de GL(n)(n), obtemos que det : O(n)(n) →
R é uma submersão diferenciável. Ou seja, todo real não-nulo é valor regular
de det |O(n)(n) . Disso decorre que o conjunto

SO(n) = {X ∈ O(n)(n) : det X = 1}

é uma subvariedade de O(n)(n), pois SO(n) = (det)−1 (1). Além disso,


SO(n) é um subgrupo de O(n)(n). Portanto, pelo Lema 13.1.7, decorre que
SO(n) é um grupo de Lie, chamado o grupo ortogonal especial.

Definição 13.1.10. Seja φ : G → H um homomorfismo algébrico entre os


grupos de Lie G e H. Dizemos que φ é um homomorfismo de grupos de Lie
se φ é uma aplicação diferenciável1 .
1
Poderíamos supor, sem perda de generalidade, que φ fosse apenas contínuo pois todo
homomorfismo algébrico entre grupos de Lie que é contínuo é automaticamente diferen-
ciável (cf. [19, Teorema 3.39]).

185
Um homomorfismo φ : G → G, de G sobre si mesmo, é chamado um
automorfismo. No caso em que φ : G → H tem uma inversa que também
é um homomorfismo de grupos de Lie, dizemos que φ é um isomorfismo de
grupos de Lie. Se φ : G → H é um homomorfismo de grupos de Lie segue,
por definição, que
φ(gh) = φ(g)φ(h),
para quaisquer g, h ∈ G. Assim, φ(e) = e e φ(g −1 ) = φ(g)−1 , para todo
g ∈ G.

Exemplo 13.1.11. A aplicação de inclusão i : SO → GL(n)(n) é um ho-


momorfismo de grupos de Lie.

Exemplo 13.1.12. A aplicação


 
cos θ sin θ 0
eiθ ∈ S1 7→  − sin θ cos θ 0  ∈ SO
0 0 In−2

é um homomorfismo de grupos de Lie, de S1 sobre SO.

Exemplo 13.1.13. A aplicação φ : R → S1 , dada por φ(t) = eit , é um


homomorfismo de grupos de Lie.

Proposição 13.1.14. Se φ : G → H é um homomorfismo de grupos de


Lie, então φ tem posto constante. Em particular, ker(φ) é uma subvariedade
fechada de G, que também é um grupo de Lie.

Demonstração. Dado um elemento g ∈ G, temos:

φ(g) = φ(hh−1 g) = φ(h)φ(h−1 g)


= Lφ(h) (φ(h−1 g))
= Lφ(h) ◦ φ (h−1 g).


Assim,
dφ(g) = dLφ(h) (φ(h−1 g)) ◦ dφ(h−1 g).
Como Lφ(h) é um difeomorfismo, sua matriz jacobiana tem posto máximo
em todo ponto, logo o posto de φ é o mesmo nos pontos g e h−1 g, para
qualquer h ∈ G. Portanto, φ tem posto constante. Pelo Teorema 3.6.1,
ker(φ) = φ−1 (e) é uma subvariedade fechada de G, com dimensão igual a
dim G − rank(φ). Do Lema 13.1.7, concluimos que ker(φ) é um grupo de
Lie.

186
Exemplo 13.1.15. O grupo linear especial SL(n)(n) é um grupo de Lie.
De fato, considere a aplicação φ : GL(n)(n) → R\{0} definida por

φ(A) = det(A),

para toda matriz A ∈ GL(n)(n). Temos que φ é um homomorfismo de grupos


de Lie tal que SL(n)(n) = φ−1 (1). Logo, pela Proposição 13.1.14, segue que
SL(n)(n) é um grupo de Lie.

13.2 Álgebras de Lie


O ponto central da teoria desenvolvida por Lie é a relação existente entre
um grupo de Lie e sua álgebra de Lie dos campos vetoriais invariantes à
esquerda. A importância deste conceito é que existe uma álgebra de Lie es-
pecial de dimensão finita associada com cada grupo de Lie, e as propriedades
do grupo de Lie são refletidas em propriedades de sua álgebra de Lie.
Dado uma variedade diferenciável M , lembremos que o colchete de Lie
de dois campos X, Y ∈ X(M ) é o único campo vetorial [X, Y ] ∈ X(M ) tal
que
[X, Y ] = −[Y, X] (13.4)
e que, em virtude da Proposição 12.2.6, satisfaz a identidade de Jacobi

[X, [Y, Z]] + [Y, [Z, X]] + [Z, [X, Y ]] = 0, (13.5)

para quaisquer X, Y, Z ∈ X(M ). Na realidade, o espaço vetorial real X(M ),


munido da aplicação R-bilinear

(X, Y ) ∈ X(M ) × X(M ) 7→ [X, Y ] ∈ X(M ),

é apenas um exemplo de uma estrutura algébrica abstrata extremamente


importante, como veremos a seguir.
Definição 13.2.1. Uma álgebra de Lie é um espaço vetorial a (sobre um
corpo K), munido de uma aplicação K-bilinear a × a → a, denotada usual-
mente por (v, w) ∈ a × a 7→ [v, w] ∈ a, tal que

[v, w] = −[w, v]

e que satisfaz a identidade de Jacobi

[u, [v, w]] + [v, [w, u]] + [w, [u, v]] = 0,

para quaisquer u, v, w ∈ a.

187
Uma álgebra de Lie a é chamada abeliana se [v, w] = 0, para quaisquer
v, w ∈ a. Um subespaço b ⊂ a é chamado uma subálgebra de Lie se b é
fechado sob a operação do colchete, i.e., [u, v] ∈ b, para quaisquer u, v ∈ b.

Exemplo 13.2.2. Em virtude de (13.4) e (13.5), o espaço vetorial X(M ),


munido da operação do colchete de Lie, torna-se uma álgebra de Lie.

Exemplo 13.2.3. Qualquer espaço vetorial torna-se uma álgebra de Lie se


todos os colchetes são definidos sendo iguais a zero. Neste caso, obtemos
uma álgebra de Lie abeliana.

Exemplo 13.2.4. O espaço vetorial M (n) das matrizes reais n × n torna-se


uma álgebra de Lie pondo

[A, B] = AB − BA,

para quaisquer A, B ∈ M (n).

Exemplo 13.2.5. O espaço Euclidiano R3 , com a operação bilinear

[v, w] = v × w,

onde × denota o produto vetorial de R3 , é uma álgebra de Lie.

Definição 13.2.6. Sejam a, b álgebras de Lie sobre um corpo K. Uma


aplicação K-linear σ : a → b é um homomorfismo de álgebras de Lie se

σ([v, w]) = [σ(v), σ(w)], (13.6)

para quaisquer v, w ∈ a. Um isomorfismo de álgebras de Lie é um isomor-


fismo linear σ : a → b que satisfaz (13.6).

A álgebra de Lie X(M ) tem dimensão infinita, a menos que M tenha


dimensão igual a zero. Estamos interessados agora em certas álgebras de Lie
de dimensão finita que são subálgebras de X(M ).

Definição 13.2.7. Dado um grupo de Lie G, dizemos que um campo vetorial


X (não necessariamente diferenciável) em G é invariante à esquerda se, para
cada g ∈ G, X é Lg -relacionado com X, i.e., dLg ◦ X = X ◦ Lg . Isso significa
que dLg (h) · X(h) = X(gh), para quaisquer g, h ∈ G.

De forma análoga temos a noção de invariância à direita. Mais preci-


samente, um campo vetorial X em G é invariante à direita se, para cada
g ∈ G, X é Rg -relacionado com X, i.e., dRg ◦ X = X ◦ Rg . O conjunto de

188
todos os campos vetoriais invariantes à esquerda em um grupo de Lie G será
denotado por g.
Para que um campo vetorial X em G seja invariante à esquerda, basta
que dLg (e) · X(e) = X(g), para todo g ∈ G. De fato, dado h ∈ G, temos:

dLg (h) · X(h) = dLg (h) · dLh (e) · X(e)


= d(Lg ◦ Lh )(e) · X(e) = dLgh (e) · X(e) (13.7)
= X(gh).

Exemplo 13.2.8. Os campos invariantes à esquerda de R são simplesmente


d d

os campos vetoriais constantes λ dt , com λ ∈ R, onde o símbolo dt repre-
senta o vetor constante igual a 1 em R. O colchete de tais campos é sempre
nulo.
Proposição 13.2.9. Dado um grupo de Lie G, o conjunto g dos campos
vetoriais invariantes à esquerda de G é um espaço vetorial, e a aplicação
φ : g → Te G definida por

φ(X) = X(e), (13.8)

é um isomorfismo linear. Consequentemente, dim g = dim Te G = dim G.


Demonstração. A prova que g é um espaço vetorial é simples e deixada à
critério do leitor. Para ver que φ é injetora, sejam X, Y ∈ g tais que φ(X) =
φ(Y ). Assim, dado g ∈ G, temos:

X(g) = dLg (e) · X(e) = dLg (e) · Y (e) = Y (g).

Como g ∈ G é arbitrário, temos que X = Y . Além disso, φ é sobrejetora.


De fato, dado v ∈ Te G, considere o campo vetorial X : G → T G dado por
X(g) = dLg (e) · v, para todo g ∈ G. Segue de (13.7) que X é invariante à
esquerda. Além disso, tem-se φ(X) = X(e) = v.

Observe que na Definição 13.2.7 não exigimos que X seja diferenciável.


Isso se justifica pela seguinte:
Proposição 13.2.10. Todo campo vetorial invariante à esquerda em um
grupo de Lie G é diferenciável.
Demonstração. Seja X ∈ g. A fim de provar que X ∈ X(G), basta mostrar
que X(f ) ∈ C ∞ (G), para qualquer f ∈ C ∞ (G). Como

X(f )(g) = X(g)(f ) = dLg (e) · X(e)(f ) = X(e)(f ◦ Lg ),

189
para qualquer g ∈ G, basta mostrar que g ∈ G 7→ X(e)(f ◦ Lg ) é uma função
diferenciável. Denote por m : G × G → G a multiplicação em G e, para cada
g ∈ G, considere os mergulhos ig e jg definidos em (13.3). Seja Y ∈ X(G)
tal que Y (e) = X(e). Então,
 (0, Y ) é um campo vetorial diferenciável em
G × G, e (0, Y )(f ◦ m) ◦ je é uma função diferenciável em G que satisfaz:

(0, Y )(f ◦ m) ◦ je (g) = (0, Y )(g, e)(f ◦ m)
= 0(g)(f ◦ m ◦ je ) + Y (e)(f ◦ m ◦ ig )
= X(e)(f ◦ m ◦ ig ) = X(e)(f ◦ Lg ).

Assim, g ∈ G 7→ X(e)(f ◦ Lg ) é uma função diferenciável em G, provando a


proposição.

Proposição 13.2.11. O espaço vetorial g é fechado sob a operação do col-


chete de Lie e, portanto, g torna-se uma álgebra de Lie.

Demonstração. Segue da Proposição 13.2.10 que todo campo vetorial inva-


riante à esquerda é diferenciável, logo o colchete de Lie de tais campos está
definido. Assim, se X, Y ∈ g, segue da Proposição 12.3.3 que [X, Y ] é Lg -
relacionado com [X, Y ], para todo g ∈ G, logo [X, Y ] ∈ g. O fato de que g é
uma álgebra de Lie segue então da Proposição 12.2.6.

A álgebra de Lie de um grupo de Lie G é definida como a álgebra de Lie


g dos campos invariantes à esquerda em G. Alternativamente, poderíamos
definir a álgebra de Lie de G como o espaço tangente Te G, exigindo que o
isomorfismo φ, definido em (13.8), seja um isomorfismo de álgebras de Lie.

Exemplo 13.2.12. O grupo linear GL(n)(n) é aberto em M (n), assim tem-


se que Te GL(n)(n) = Te M (n) = M (n). Denotando por gl(n) a álgebra de
Lie de GL(n)(n), definimos uma aplicação β : gl(n) → M (n) pondo

β(X) = X(e),

para todo X ∈ gl. A aplicação β é um isomorfismo de álgebras de Lie, logo


podemos considerar M (n) como a álgebra de Lie de GL(n)(n).

Exemplo 13.2.13. Consideremos o grupo linear especial SL(n)(n). O es-


paço tangente a SL(n)(n) no elemento identidade coincide com o subespaço
de M (n) das matrizes de traço nulo (cf. Exercício 1.1.??). Assim, a álge-
bra de Lie de SL(n)(n), denotada por SL(n), pode ser identificada com o
subespaço das matrizes reais n × n de traço nulo.

190
Seja φ : G → H um homomorfismo de grupos de Lie. Como φ transforma
a identidade de G no elemento identidade de H, a diferencial dφ(e) é uma
aplicação linear de Te G sobre Te H. Através da identificação natural do
espaço tangente à identidade com a álgebra de Lie do grupo, através do
isomorfismo (13.8), esta aplicação linear dφ(e) induz uma aplicação linear
de g sobre h, que também denotaremos por dφ. Ou seja,

dφ : g → h (13.9)

é a aplicação linear que torna o diagrama abaixo comutativo.



g /h

' '
 
Te G / Te H
dφ(e)

Mais precisamente, se X ∈ g, então dφ(X) é o único campo invariante à


esquerda em H tal que

dφ(X)(e) = dφ(e) · X(e). (13.10)

Com esta identificação, temos a seguinte:


Proposição 13.2.14. Sejam G, H grupos de Lie com respectivas álgebras
de Lie g e h, e φ : G → H um homomorfismo de grupos de Lie. Então
(a) X e dφ(X) são φ-relacionados, para cada X ∈ g.
(b) dφ : g → h é um homomorfismo de álgebras de Lie.
Demonstração. (a) Como dφ(X) ∈ h, temos dLφ(g) ◦dφ(X) = dφ(X)◦Lφ(g) ,
para todo g ∈ G. Além disso, como φ é um homomorfismo, temos φ(gh) =
φ(g)φ(h), para quaisquer g, h ∈ G, i.e., φ ◦ Lg = Lφ(g) ◦ φ, para todo g ∈ G.
Assim,
 
dφ(X)(φ(g)) = dφ(X) ◦ Lφ(g) (e) = dLφ(g) ◦ dφ(X) (e)
= d(Lφ(g) ◦ φ)(e) · X(e) = d(φ ◦ Lg )(e) · X(e)
= dφ(g) · X(g).

Como g ∈ G é arbitrário, segue que dφ(X) ◦ φ = dφ ◦ X, i.e., X e dφ(X) são


φ-relacionados.
(b) Dados X, Y ∈ g, queremos provar que

dφ([X, Y ]) = [dφ(X), dφ(Y )]. (13.11)

191
Pela Proposição 12.3.3, temos que [X, Y ] é φ-relacionado com [dφ(X), dφ(Y )].
Em particular, temos que

[dφ(X), dφ(Y )](e) = dφ([X, Y ](e)).

Porém, pela definição em (13.10), dφ([X, Y ]) é o único campo vetorial inva-


riante à esquerda em H cujo valor no elemento identidade é dφ([X, Y ](e)).
Assim, vale a igualdade (13.11) e a proposição está provada.

13.3 A aplicação exponencial


Nesta seção estudaremos a aplicação fundamental que relaciona um grupo
de Lie G com sua álgebra de Lie g, a aplicação exponencial exp : g → G.
Dado um grupo de Lie G, denotemos por g sua álgebra de Lie. Em virtu-
de do Exercício 13.2.2, temos que todo campo invariante à esquerda X ∈ g
é completo. Disso decorre, em particular, que a curva integral γX de X,
passando pelo elemento identidade e ∈ G, está definida em todo R.
Definição 13.3.1. A aplicação exponencial de um grupo de Lie G é a apli-
cação exp : g → G definida por

exp(X) = γX (1),

onde γX : R → G é a curva integral de X passando por e ∈ G.


A aplicação exponencial satisfaz várias propriedades interessantes.
Proposição 13.3.2. Para quaisquer X ∈ g e t ∈ R, tem-se:
(a) exp(tX) = γX (t).

(b) exp(−tX) = exp(tX)−1 .

(c) exp(t1 X + t2 X) = exp(t1 X) exp(t2 X).

(d) A aplicação exponencial exp : g → G é diferenciável e é um difeomor-


fismo local sobre a origem 0 ∈ g.
Demonstração. A fim de provar o item (a), note que
d 0
γX (ts)|s=s0 = tγX (ts0 ) = tX(γX (ts0 )).
ds
Isso implica que
γX (ts) = γtX (s),

192
para quaisquer s, t ∈ R. Em particular, para s = 1, obtemos

γX (t) = γtX (1) = exp(tX),

e isso prova o item (a). Os itens (b) e (c) são consequências de (a), levando
em consideração que γX é um homomorfismo de grupos de Lie. A diferen-
ciabilidade da aplicação exponencial segue de propriedades gerais do fluxo,
mais precisamente, dependência diferenciável nos parâmetros das soluções
de EDO’s. Além disso, a diferencial

d exp(0) : T0 g ' g → Te G ' g

é a aplicação identidade, pois


d 0
d exp(0) · X = exp(tX)|t=0 = γX (0) = X.
dt
Assim, exp é um difeomorfismo de uma vizinhança da origem 0 em g sobre
uma vizinhança do elemento identidade e ∈ G em virtude do teorema da
aplicação inversa.

Exemplo 13.3.3. Consideremos novamente o grupo linear GL(n)(n). É


natural esperar que a aplicação exponencial exp : gl(n) → GL(n)(n) coincida
com a exponencial usual de matrizes, a qual é dada por

X 1 n
eA = A . (13.12)
n!
n=0

A série em (13.12) é absolutamente convergente em todo espaço M (n) e,


quando n = 1, reobtemos a aplicação exponencial usual em R. Usando a
propriedade
d tA
e |t=t0 = Aet0 A = et0 A A
dt
da exponencial de matrizes (cf. [?]) concluímos, em virtude da unicidade das
curvas integrais, que t 7→ etA é a curva integral de A passando pelo elemento
identidade, logo exp(A) = γA (I) = eA , para toda matriz A ∈ gl(n).

Um homomorfismo de grupos de Lie φ : R → G é usualmente chamado


um subgrupo a 1-parâmetro. Observe que φ é a curva integral do campo
X = dφ(e) ∈ g e, em virtude da Proposição 13.3.2, tem-se que

φ(t) = exp(tX),

193
para todo t ∈ R. De forma mais geral, se φ : G → H é um homomorfismo
de grupos de Lie então, para um dado campo invariante à esquerda X ∈ g,
a aplicação ψ : R → H dada por

ψ(t) = φ(expG (tX))

é um subgrupo a 1-parâmetro, com


d
φ(expG (tX))|t=0 = dφ(e) · X(e) = dφ(X)(e).
dt
Assim, pelo mesmo argumento acima, segue da Proposição 13.3.2 que

ψ(t) = expH (tdφ(X)),

para todo t ∈ R, i.e.,

φ(expG (tX)) = expH (tdφ(X)),

para todo X ∈ g e todo t ∈ R. De forma simplificada, isso significa que

φ ◦ expG = expH ◦dφ. (13.13)

A igualdade em (13.13) significa que o diagrama abaixo é comutativo.


g /h
expG expH
 
G /H
φ

O resultado seguinte reune três identidades conhecidas como fórmulas de


Campbell, e cuja prova pode ser encontrada em [18].

Proposição 13.3.4. Dados um grupo de Lie G e campos invariantes à es-


querda X, Y ∈ g, existe  > 0 tal que, para todo |t| < , valem as seguintes
identidades:
 2

(a) exp(tX) exp(tY ) = exp t(X + Y ) + t2 [X, Y ] + O(t3 ) ,

(b) exp(tX) exp(tY ) exp(−tX) = exp(tY + t2 [X, Y ] + O(t3 )),

(c) exp(−tX) exp(−tY ) exp(tX) exp(tY ) = exp(t2 [X, Y ] + O(t3 )),


O(t3 )
onde 3 é limitado.

194
Finalizaremos esta seção discutindo a representação adjunta de um grupo
de Lie G. A fim de introduzir tal aplicação, fixemos um elemento g ∈ G e
consideremos a conjugação Cg : G → G através de g dada por

Cg (h) = (Lg ◦ Rg−1 )(h) = ghg −1 , (13.14)

para todo h ∈ G. A aplicação Cg é de fato um automorfismo de grupos


de Lie, também chamado de automorfismo interno. Isso de fato nos dá um
homomorfismo
Ad : G → GL(n)(g) (13.15)
que, a cada elemento g ∈ G, associa o elemento Adg ∈ GL(n)(g). O homo-
morfismo em (13.15) é chamado a representação adjunta de G em g. Vejamos
como se comporta a diferencial do homomorfismo (13.15).
Inicialmente, a diferencial da conjugação Cg no elemento identidade e
define um automorfismo dCg (e) : g → g na álgebra de Lie, que será denotado
por Adg . Decorre de (13.14) que

d
Adg (X) = (g exp(tX)g −1 )|t=0 , (13.16)
dt
para quaisquer X ∈ g e t ∈ R. Aplicando a equação (13.13) ao automorfismo
Cg , segue que

exp(tAdg (X)) = Cg (exp(tX)) = g exp(tX)g −1 .

Em particular, para t = 1, obtemos:

g exp(X)g −1 = exp(Adg (X)). (13.17)

A diferencial da representação adjunta Ad : G → GL(n)(g) no elemento


identidade e ∈ G será denotada por ad, e é a aplicação ad : g → gl(g) dada
por
ad(X)Y = dAdg (e) · X(Y ).
Segue da definição acima que
d
ad(X)Y = (Adexp(tX) (Y ))|t=0 . (13.18)
dt
Usando a equação (13.13) novamente, temos

Adexp(tX) = exp(tad(X)),

195
para todo t ∈ R, i.e., o diagrama abaixo comuta.

g
ad / gl(g)

exp exp
 
G / gl(g)
Ad

Em particular, para t = 1, obtemos

Adexp(X) = exp(ad(X)). (13.19)

Proposição 13.3.5. Para quaisquer X, Y ∈ g, tem-se:

ad(X)Y = [X, Y ]. (13.20)

Demonstração. Usando (13.17), com g = exp(tX), na fórmula (b) de Camp-


bell, obtemos:

exp(Adexp(tX) (tY )) = exp(tY + t2 [X, Y ] + O(t3 )).

Como exp é localmente injetora em torno de 0 ∈ g, temos que

Adexp(tX) (tY ) = tY + t2 [X, Y ] + O(t3 ),

para t suficientemente pequeno. Dividindo por t, derivando em t = 0 e


aplicando (13.18), obtemos a relação (13.20).

Lema 13.3.6. Se um grupo de Lie G é abeliano, sua álgebra de Lie g também


é abeliana.
Demonstração. Como G é abeliano, segue que

exp(sX) exp(tY ) exp(−sX) = exp(tY ),

para quaisquer s, t ∈ R e X, Y ∈ g. Derivando em t = 0, obtemos:


d
exp(sX) exp(tY ) exp(−sX)|t=0 = Y.
dt
Decorre de (13.16) que
Adexp(sX) (Y ) = Y.
Derivando em s = 0, segue de (13.18) e da Proposição 13.3.5 que
d
0= (Adexp(sX) (Y ))|s=0 = ad(X)Y = [X, Y ],
ds
mostrando que g é abeliana.

196
A recíproca do Lema 13.3.6 também é verdadeira, e o leitor pode conferir
[?, Proposition 1.39]. Finalizamos a seção dando uma ideia da prova do
resultado seguinte.
Teorema 13.3.7. Todo grupo de Lie conexo abeliano é isomorfo a Rn−k ×
T k , onde T k = S1 × . . . × S1 é um toro k-dimensional. Em particular, um
grupo de Lie conexo, simplesmente conexo e abeliano é isomorfo a Rn , e um
grupo de Lie conexo, compacto e abeliano é isomorfo ao toro T n .
Demonstração. Decorre do Lema 13.3.6 que a álgebra de Lie g é abeliana e
a aplicação exponencial exp : g → G é um homomorfismo, onde g é isomorfo
a Rn como grupo de Lie. Neste caso, exp é um recobrimento diferenciável e,
assim, G é isomorfo ao quociente de Rn pelo grupo discreto ker exp.

13.4 Subgrupos de Lie


Nesta seção daremos uma aplicação do teorema de Frobenius, estabele-
cendo uma correspondência entre subgrupos de Lie de um dado grupo de Lie
G e subálgebras de sua álgebra de Lie.
Definição 13.4.1. Seja H um subgrupo abstrato de um grupo de Lie G. Se
H é um grupo de Lie tal que a aplicação inclusão i : H → G é uma imersão,
diremos que H é um subgrupo de Lie de G.
Proposição 13.4.2. Se H é um subgrupo abstrato de um grupo de Lie G,
que também é uma subvariedade de G, então H é um subgrupo de Lie de G.
Demonstração. Em virtude do Lema 13.1.7, já sabemos que H é um grupo
de Lie. Além disso, a multiplicação e a inversão em H são as restrições da
multiplicação e inversão, respectivamente, de G. Como H é subvariedade de
G, tais restrições são diferenciáveis.

Nas condições da Proposição 13.4.2, pode-se provar, além disso, que H é


um subconjunto fechado de G (cf. Exercício 13.4.1). Pode-se provar também,
porém este é um fato não-trivial, que um subgrupo abstrato H de um grupo
de Lie G é uma subvariedade se, e somente se, H é um subconjunto fechado
de G (cf. [19, Theorem 5.81]).
Exemplo 13.4.3. O círculo S1 , mergulhado no toro T 2 = S1 × S1 como
S1 × {1}, é um subgrupo fechado de T 2 .
O lema seguinte diz essencialmente que qualquer vizinhança do elemento
identidade gera um grupo de Lie conexo.

197
Lema 13.4.4. Sejam G um grupo de Lie conexo e U uma vizinhança do
elemento identidade e. Então,

[
G= U n,
n=1

onde U n consiste de todos os n-produtos de elementos de U .


Demonstração. Seja V ⊂ U um subconjunto aberto contendo e tal que
V = V −1 ; por exemplo, considere V = U ∩ U −1 . Seja

[ ∞
[
n
H= V ⊂ U n.
n=1 n=1

H é um subgrupo abstrato de G. De fato, por construção, temos que e ∈ H.


Além disso, dados g, h ∈ H, tem-se g = an e h = bm , com a, b ∈ V , para
alguns m, n ∈ N. Assim,

gh = an bm ∈ an V m ⊂ V n V m ⊂ H.

H também é um subconjunto aberto de G pois se h ∈ H então hV ⊂ H é um


aberto contendo h. Finalmente, para cada g ∈ G, a classe lateral à esquerda
gH é um aberto em G, pois H é aberto em G. Assim, como
[
G\H = gH
g6∈H

é um aberto em G, sendo união de abertos, segue que H é fechado em G.


Como G é conexo e H 6= ∅, H deve ser todo o grupo G, provando o lema.

Teorema 13.4.5. Sejam G um grupo de Lie, com álgebra de Lie g, e h uma


subálgebra de Lie de g. Então, existe um único subgrupo de Lie conexo H de
G, cuja álgebra de Lie coincide com h.
Demonstração. Dado g ∈ G, denotemos por D(g) o subespaço de Tg G for-
mado por todos os vetores da forma X(g), onde X é um campo vetorial
invariante à esquerda, com X(e) ∈ h. Assim, vg ∈ D(g) se, e somente se,
vg = dLg (e) · v, para algum v ∈ h. Como h é uma subálgebra de Lie de g,
temos:

[vg , wg ] = [dLg (e) · v, dLg (e) · w] = dLg (e) · [v, w] ∈ D(g),

para quaisquer vg , wg ∈ D(g), onde v, w ∈ h. Assim,

g ∈ G 7→ D(g) ⊂ Tg G

198
é uma distribuição involutiva e, pelo Teorema 12.4.13, é integrável. Seja H
a subvariedade integral maximal conexa contendo o elemento identidade e
(cf. Teorema 12.4.14). Observe que, para cada h ∈ G, temos

dLg (h)(D(h)) = D(gh),

i.e., D é invariante por translações à esquerda. Assim, Lg transforma a


variedade integral maximal pelo ponto h difeomorficamente sobre aquela
que passa pelo ponto gh. Em particular, se g ∈ H, então Lg−1 transforma H
sobre a variedade integral maximal contendo o ponto Lg−1 (g) = e. Assim,
pela maximalidade, concluimos que Lg−1 (H) = H. Portanto, se g, h ∈ H,
então também g −1 h ∈ H. Disso segue que H é um subgrupo abstrato de G.
De forma inteiramente análoga à prova do Lema 13.1.7, podemos concluir
que a multiplicação m : H × H → H é diferenciável, provando assim que
H é um subgrupo de Lie de G. Além disso, se e h denota a álgebra de Lie
de H, então di(e h) = h, onde i : H → G é o homomorfismo inclusão, pois
Te H = D(e) = h. Quanto à unicidade, seja K outro subgrupo de Lie
conexo de G com dj(k) = h, onde j : K → G é a inclusão. Assim, K deve
ser uma variedade integral de D contendo o elemento identidade e e, pela
maximalidade de H, tem-se que K ⊂ H. Seja φ : K → H a aplicação
inclusão. Note que, como i é injetora, φ é a única aplicação diferenciável tal
que j = i ◦ φ. Assim, φ é um homomorfismo de grupos de Lie injetor. Como
dφ(g) é injetora, para todo g ∈ K, segue que φ é um difeomorfismo em uma
vizinhança de e, logo φ é sobrejetora, pelo Lema 13.4.4. Portanto, φ é um
isomorfismo de grupos de Lie, e os subgrupos K e H são equivalentes. Isso
prova a unicidade.

Corolário 13.4.6. Existe uma correspondência injetora entre subgrupos de


Lie conexos de um grupo de Lie e subálgebras de sua álgebra de Lie.

Corolário 13.4.7. Sejam G, H grupos de Lie com respectivas álgebras de


Lie g e h. Se φ : g → h é um homomorfismo de álgebras de Lie, então
existe uma vizinhança U do elemento identidade e ∈ G e uma aplicação
diferencável F : U → H tal que

F (gh) = F (g)F (h),

para quaisquer g, h ∈ U , com gh ∈ U , e tal que

dF (e) · v = φ(v),

para todo v ∈ g.

199
Demonstração. Seja k ⊂ g × h definida por

k = {(v, φ(v)) : v ∈ g}.

O fato que φ é um homomorfismo implica que k é uma subálgebra de Lie de


g × h. Assim, pelo Teorema 13.4.5, existe um subrupo de Lie conexo K de
G × H com álgebra de Lie k. Considere a aplicação inclusão i : K → G × H
e defina um homomorfismo ρ : K → G pondo ρ = πG ◦ i, onde πG e φH
denotam as projeções sobre G e H, respectivamente. Dado v ∈ g, temos

dρ(v, φ(v)) = v,

ou seja, dρ(e, e) : T(e,e) K → Te G é um isomorfismo linear. Assim, pelo


teorema da aplicação inversa, existe uma vizinhança V de (e, e) ∈ K tal
que ρ|V é um difeomorfismo sobre uma vizinhança U de e ∈ G. Defina um
homomorfismo ψ : K → H pondo ψ = πH ◦ i. Temos que

dψ(e, e) · (v, φ(v)) = φ(v),

para todo v ∈ g. Seja então

F = ψ ◦ ρ|−1
V .

Como F está definida unicamente em termos da inclusão e das projeções,


segue que F (gh) = F (g)F (h), para quaisquer g, h ∈ U , com gh ∈ U . Se
v ∈ g, então dρ(v, φ(v)) = v implica que d(ρ|−1
V ) · v = (v, φ(v)), logo

dF (e) · v = dψ(e, e) ◦ d(ρ|−1


V )(e) · v = dψ(e, e)(v, φ(v))
= φ(v),

como queríamos.

200
13.5 Exercícios
13.1
1. Dois exemplos importantes dos assim chamados grupos de Lie clássicos
são o grupo linear especial

SL(n)(n) = {A ∈ GL(n)(n) : det(A) = 1}

e o grupo ortogonal especial SO(n) = O(n)(n) ∩ SL(n)(n).

(i) Mostre que, de fato, SL(n)(n) e SO(n) são grupos de Lie.

(ii) Prove que SO(2) é um grupo de Lie compacto, conexo e unidimensional,


logo é difeomorfo ao círculo S1 .

(iii) Mostre que


  
a b 2 2
SO(2) = : a, b ∈ R, a + b = 1 .
−b a

Deduza, também daí, que SO(2) é difeomorfo ao círculo S1 .

2. Verifique que a esfera tridimensional S3 é um grupo de Lie. Mais preci-


samente, S3 é o grupo de Lie dos quatérnios de norma unitária (S1 e S3 são
as únicas esferas que admitem estrutura de grupo de Lie).

3. Dados um grupo de Lie G e um elemento g ∈ G, prove que a aplicação


de conjugação Cg : G → G, dada por Cg (h) = ghg −1 , para todo h ∈ G, é
um isomorfismo de grupos de Lie, que satisfaz Cg = Lg ◦ Rg−1 .

4. Sejam G um grupo de Lie conexo e U ⊂ G um aberto contendo o elemento


identidade e ∈ G. Prove que U gera G, i.e., todo elemento de G é um produto
de elementos de U .

5. Sejam φ, ψ : G → H homomorfismos de grupos de Lie que coincidem


numa vizinhança da identidade. Se G é conexo prove que φ = ψ.

6. Mostre que
  
α ω 2 2
SU(2) = : α, ω ∈ C, kαk + kωk = 1 .
−ω α

Deduza que SU(2) é difeomorfa à esfera S3 .

201
13.2
1. Prove que se G e H são grupos de Lie, então a álgebra de Lie g × h é, a
menos de identificações, a álgebra de Lie de G × H.

2. Prove que todo campo invariante à esquerda X ∈ g é completo.

3. Prove que a álgebra de Lie do grupo ortogonal O(n)(n) coincide com o


subespaço de M (n) formado pelas matrizes anti-simétricas.

13.3
1. Mostre que    
0 −t cos t − sin t
exp = .
t 0 sin t cos t
2. O objetivo desse exercício é mostrar que a aplicação exponencial não tem
a propriedade de ser sobrejetora (cf. [?]).

(a) Mostre que todo elemento g ∈ G que pertence à imagem da aplicação


exponencial exp : g → G tem uma raiz quadrada, i.e., existe h ∈ G tal
que h2 = g.

(b) Prove que trace A2 ≥ −2, para toda matriz A ∈ SL(n)(2).


 
−2 0
(c) Conclua que não está na imagem da aplicação expo-
0 −1/2
nencial exp : SL(2) → SL(n)(2).

3. Mostre que o fluxo {ϕt } de um campo invariante à esquerda X num grupo


de Lie G é dado por ϕt = Rexp tX .

13.4
1. Seja H um subgrupo abstrato de um grupo de Lie G, que também é uma
subvariedade de G. Prove que H é um subconjunto fechado de G.

202
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