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Tilo crigina: Performing Morel Viein: on Ethnography of Cavele Morinho, « Brazilian Musical Drama 19.2008, John Patrick Murphy © 2008, da tedugie bres, Esiora UFMG Estero ou pata dala ndo code ear reproduzide por qualquer mei som autcrizacho egcrta do Edo. Murphy, John Patrick METER CCevale-marinno nemambuseno/ Jehn Pats Murphy tadugbo de Anh ‘Curat de Paulo Buono. Boo Horizonte : Edtora UFMG, 2008, 1592. IL — (Musica eatiaday ‘Tracupie de: Performing a marsl velon: an etonograpy of cavalo stn, a Brazan musical etama Incl references ISBN. 970-05-7041-270-4 1, Etnomusicologis ~ Pomembuso, 2 Bumbarmeu-boi ~ Pernambuco. 3 {cultura poputer. 4. Dang. 1 Tite. I. Seno. cpp: 780.91 bu: ra085.7 gage oa Cloke Unverstvada UF Musica Jeditadat Escola de Misica da UFMG Distr cmsirtorn: Coordenadores ca Colenéo: Edtoracdo de textos: Reviaze @ normalzages Revisto de proves Projto grat: Formalagzo. Producto arf 8 cape: Lives rat Mavi Ign Lucas Macha Lucas Bets (UFMG) ‘André Cavazot (UFMIG) Caries Sancton (UFFE) Elizabeth Trvessen (UNIRIO) Moria do Gorm Lee bia ania do Resane A. Pera Beatie Tindade = ‘Mécia oman Paulo Schmit Vora Liga Sato Warren M. Santos Editore UFMG Ay Antinio Carios, 6 627 - Ala dirota da Biblioteca Central -1ére0 Campus Pampulha - CEP 31270-00" - Belo Horizonte - MG “Tol: 85 (31) 8408-4850 - ‘wwew editora.utma.br Fox: 55 (31) 2409-4768 ‘editorat@utng.br c em fontes histéricas, demonstro que a significagio do drama € complesa ¢ multi- vocal: inclui tanto 0 protesto contra quanto 0 reforgo implicico das relagdes hierdrquicas de poder na regio, Camo um drama que enfatiza a relagao entre patrio © empregado, a subordinasio € outros aspectos da aucoridade rural tradicional, o cavalo-marinho pode ser interpretado como um quadro da visio moral de seus participantes, que sc véem na tran- sigao de um sistema tradicional, substitufdo pcla modernizagio da indiistria de agicar € da economia local, Suas cang6es ¢ poesia en louvor aos Reis Magos e santos padrociros servem como uma forma de devacao reli- giosa popular. Apresentando arte verbal ¢ musical em canges improvisadas ¢ didlogos que freqiientemence incluem sétira e humor dcido, o drama fornece uma arena para aarte cémica rural. O Capitulo 1 desereve © cantexta social da encenagio de cavalo-marinho ¢ inclui a histéria de vida de mestres brincantes; Capitulo 2 contextualiza o drama em termos de género e sumariza seu contetido musical ¢ textual; 0 Capitulo 3 descreve apresentagdes rurais ¢ urbanas; o Capitulo 4 analisa os processos musicais ¢ a conti- nuidade histérica que liga o cavalo-marinho estudado em campo a tradigées de perfor~ mance mais disseminadas pelo Nordeste do Brasil. Por fim, o Capitulo 5 interpreta © cavalo-marinho como meio de acesso 2 visio moral de seus participantes, com énfase nas mudangas de contedda e de contexto das performances como: um resultado da proletarizacao dos trabalhadores do agticar na regio; uma devocio religiosa popular; como arte cOmica, O leitor vai enconerar, no sive que man- tenho para meu livro Mucic in Brasil, (web3. unt.edu/murphy/brazil), os textos das partes principais de uma versio do cavalo-matinho, fotos, gravagées em dudio ¢ video, notas de campo, um espago para comentirios por pacte dos leivores e, eventualmente, a maior quantidade posstvel de documentacao da minha pesquisa que se pode transmitir em formaco digital. Chegando 20 fim da minha pesquisa principal sobre 0 cavalo-marinho em 1991, no tive uma nogio bem definida do futuro que se podia esperar para este folgucdo © seus brincantes. A cena musical jovem do Recife estava bem no infcio do seu perfodo maravilhoso de cciatividade e redescobrimento da culcura popular pernambucana. Hoje alguns dos artistas representados neste livro, como Mestre Salustiano ¢ Mestre Indcio, continua, nas suas diversas maneiras, a sustentar esta tradigio, Novos artistas, como Mestre Grimétio, estéo dirigindo grupos de cavalo-marinho e langando CDs: novos pesquisadores, como André Bueno, Juliana Pardo, Alicio Amaral, Ana Caldas Lewinsohn, Maria Acselrad, e Gustavo Villar. esto promovendo 0 conhecimento ¢ a apreciagao do cavalo-marinho. Quando contemplo essas atividades que, como um todo, tém cultivado o cavalo-marinho de uma mancira muito melhor do que eu imaginava, sinto uma gratidio enorme por tera oporcunidade de colaborar com um mundo de gente que pratica e valoriza esta tradicéo. Joba Murphy Denton, Texas, EUA Margo de 2008 Capttulo 1 O contexto social da representagao do cavalo-marinho Este capitulo desereve o contexto social da represcntagio do cavalo-marinho na Zona da Mata Noste de Pernambuco, ‘A primeira parte aborda © uabalho, condigdes de vida, crencas religiosas, estratificagio social, rel entre patrio ¢ empregado ¢ a atmosfera freqiientemente violenta da regio. A segunda e mais longa parte conta a hist6ria de vida de participantes conhecidos, com énfase em dois mestres significatives. A parte final descreve a organizacio do grupo de represetagao, O puiblico e suas vis6es da representacéo serio discutidos no Capitulo 3. Trabalho ‘A maioria dos brincantes de cavalo-marinho trabalha nas plantagdes de cana-de-agticar, Este fato foi repetido por muitos informantes, apoiado por minhas observasées e confirmado quantitativamente. Mais tarde em minha pesquisa de campo, quando estava mais familiarizado com 105 termes para os tipos especificos de trabalho na cana, preparei ¢ administici um levantamento de brincantes. Dos 64 brincantes do interior pesquisados, 56 estavam em idade de trabalho. Cinco eram muito jovens para traba- Ihar ¢ trés estavam aposentados. Hé dados consistentes sobre a ocupacio de 47 pessoas. Aproximadamente 85% trabalhavam na cana: 66% em tarefas gerais (corte, plantio,, limpeza); 134 em tarefas especializadas (condugéo de boi, de mula e de trator); ¢ 6% em administragio (supervisio de trabalhos). Os 15% restantes — ou sete individuas — rraba- Thavam em diferentes posicoes: pequeno proprietario (1), vendedor de frutas (2), porteiro de mercado (1), barbeiro (1), pintor na garagem de uma usina (1) ¢ trabalhador da ine annie ears 28) coastiusio (1). Os nove cujas ocupasées néo pude verificar sio provavelmente trabalha- dores da cana; se forem incluidos no ntimero. total de trabalhadores, a proporgio de traba- Ihadores da cana sobe para 88%, Dos sete que nao trabalham na cana atualmente, 20 menos trés o fizeram no passado. Dos trés aposentados, um trabalhava na cana, um na fercovia e um no depésito de agticar. Tabela I Ocupagies dos participantes de cavalo-marinho rural Corea Niimero Te woe no culiva 31 eee 6 ease 3 Oras pequicno propricttio 1 vendor de frutas 2 pe 1 te edoe ds comers 1 porciro cm mercado 1 emai da canadeagtcar 1 eptico de agicar 1 ot 1 Abaixo da idade de trabalho 5 Desconecido 9 Toul ca Fonte: Pesquisa de campo em Pernambueo, setembro de 1990 - agosto de 1991 O calendétio agricola reconhece duas estagGes: a safra comega a0 final de agosto ou ‘em sctembro ¢ dura até fim de margo ou prin- cipio de abril, ou mais cedo na Mata Norte Nesse perfodo a cana € cortada seve dias por semana ¢ transportada de caminhéo s usinas, que funcionam continuamente. Para os trabalhadores do canavial, ma semana de seis dias de tcaballo ~ segunda a meio-dia de sdbado ~ ¢ a base, mas eles podem ganhar hora-extra trabalhando no domingo, ¢ muitos o fazem. A entressafta, de margo a agosto, é tempo de relativa desocupagao. HA trabalho limitado nos canaviais, planrando e limpando a cana que amadurece. A safra é mais longa na Maca Sul do que nna Mata Norte em até dois meses. Isto ésigni- ficativo porque o cavalo-marinho depende de pessoas com dinheizo para pagar aos bares ¢ esas de jogo que sustentam as brincadeiras, seu dinheiro vem do trabalho na cana. Varios sistemas existem para assegurar 6 trabalho nos canaviais. Ainda hd aqueles que vivem como moradores em engenhos Muitas vezes esses homens eém capacitagao na condugio de bois ou eratores.' Como alremativa, trabalhadozes podem ser empre~ gados por uma usina ou por uma compa- hia que controla varias usinas e engenhos, como o Grupo Santa Teresa. Fles trabalham cm varios lugares em dada semana, depen- dendo da necessidade. Um terceito arranjo 0 trabalho de contrato curto através de um empreiteiro. Este ¢ pago pelo engenho ou usina para fornecer trabalhadores em uma base diria ou semanal. A unido dos trabalhadores da asticar, FETAPE, elaborou uma cabela de paga- mento detalhada, que € renegociada com as unides de usineiros ¢ com as de fornecedores anuialmente, em juizo. © acordo de 1991 inclui as bases seguintes: salirio garantido em 10% acima do saldtio minimo;? padrées de medida de drea e de peso da cana cortada determinar pagamentos; padrdes de mento para outras carefas (arado com , cavagio para plantio, capina, plantio): isto de roga de subsisténcias seguros tra acidentes e doenga, ¢ muito mais. qui e ali se observam referéncias ans abusos je as leis tentam cvitar: “Cléusula 56: ica0... Qualquer punigao a trabalhador possa ter participade de greve € proibida, cluindo a transferéncia de uabalhadores uma mesma propriedade ou engenho a trabalhos isolados.”* Ourra eléusula no 1esmo documento refere-se ao porte de arma 3 supervisores, que € permitide apenas ‘quando autorizado por autoridade compe- te”, uma proibicéo indicativa das tensoes tre trabalhadores c supervisores. ondi¢des de vida ‘Meus dados mostram uma mudanga de idéncia significativa, que se relaciona com aquela mudana demogréfica descrita na lite- ratura como a “safda do engenho”. Muitos b ‘em engenhos ¢ agora vi pequenas cidades da Zona da Mata Norte, gue cles chamam de “rua” ou “cidade”. As casas sio muitas vezes de taipa, paredes feitas de barro sobre estrutura de galhos e tébuas, eto de telha ou zinco, ¢ cho de terra batida ‘ou cimento pintado. A m: mento interior, de modo que a dgua tem de ser carregada de ciscernas coletivas. A maioria ébem pequena, com uma sala, um ou dois quartos ¢ uma pequena cozinha, cantes de cavalo-marinho nasceram -m na periferia de ria sem encana- quando hé fogio a gis; ow entao se cozinha do Jado de fora, com lenha. As paredes chegam a dois metros de altura ¢ 0 telhado fica exposto interiormente. Todas as casas de brincantes que visicei inhi luz elétrica. Religiao ‘A divisao da participacao das classes sociais, ‘no catolicismo do Nordeste brasileiro deriva da relacao intima entre o clero eaclite agraria. No passado os engenhos tinham padres residentes cujo servigo cra acessivel i familia do senhor ea ‘uma minora dos trabalhiadozes, Muitas comu- nidades de trabalhadores eram visitadas apenas esporadicamente por um padre, que batizava ¢ casava mediante um valor, E, assim, um cato- licismo popular se desenvalyeu no Nordeste — como em outras partes — sem requerer a presenga de um padre, mas fundando-se em devosies leigas camo novenas € oracdes de incelenca* Muitos brincantes de cavalo-marinho se consideram catdlicos mas no yéo & missa. Embora eu nunca cenha visto uma novena ou oragio em casa de trabalhador, informantes afirmaram que os brincantes de cavalo-marinho esto entre aqueles que realizam novenas rezam pelos mortos. Aleuns brincantes sio bem religiosos, e convencidos da nanureza religiosa do cavalo-marinho como sendo uina devoga0 aos trés Reis Magos c santos padrociros. Mestre Batista descrevia 0 cavalo-marinho como “towal- mente ligado 3 igrej.”. Numa conversa, og mestres Batista e Salustiano descreveram a sonoridade da Mata Norte numa noite de sébado, Se uma pessoa queria ver uma brincadeira, era s6 sair de casa € escutar: 0 “grito de um toadeiro” cantando toada de aboio ou agoite ¢ 0 som das bexigas — bexigas de boi infladas que sao batidas durante a brincadeira — seriam ouvidos a scis ou sete quilémetros. Batista disse que o som chegava do cemitério da Usina Alianca, onde seu cavalo- marinho costumava brincar, até a sua casa em. Cha de Camard, distante sete quildmesros. Salustiano recorda ter ouvide o som de um “cabra rezando defunto’. 29 ‘Uma instancia das curas populares aponta paraa.cteng2 em espiritos que intercedem cm (questes humanas. Um brincante de cavalo- marinho relatou que sua esposa esteve doente da garganta e estava para ser operada. Depois de rezar por orientacao, certa noite, & Nossa Senhora da Concciga dotmiu c sonhou que um menino veio a ele, 10 ¢ a Sao Severino, ele disse seu nome © aconsclhou-o 2 procurar © remédio para sua mulher na “primeira cabecada do dia”, O menino se foi ¢ voltou repetindo © conselho, acrescentando que 0 remédio era “algo que pings”. Ao acordas, 0 brincante ponderou o conselho, OcorreuThe que a.urina setia o remédio do sonho. Urinon e deu a sua mulher pare beber. Bla ficou curada. Pela hora do almogo ela tinha reto- mado suas atividades normais. Ele concou a virios amigos sobre 0, ¢ eles usaram a mesma técnica para curar suas esposas de males semelhantes. Outro brincante usou urina de vaca como remédio para um mal crOnico do uato digestivo. He foi regular- mente ao engenho préximo de onde viviae bebeu uma mistura de leite fresco com um pouco da primeira urina da vaca no dia Parece haver também uma crenga em feitigatia nesta regio, entendida como o uso de espiritos ou outros mcios sobrenaturais para causar mal aos outros. Muitas pessoas, em mais de uma ocasido, indicaram acreditar que a doenga ¢ morte de um homem da regiio haviam sido eausadas por feitigaria. O homem lidcrava um grupo bem-sucedido de maracatu, ¢ a feitigaria teria sido dirigida a ele por um lider enciumado de outro mara- catu do Recife. © chime foi descrito como “olho grande”, e a feiticaria, como praga de macumba. 30) Pelo menos um brincante de cavalo- ‘marinho foi participante por longo tempo no Xangé local, a forma pernambucana de reli- gido afto-brasileira. Parece nao haver conexio Sbvia entre priticas do Xangd ¢ 0 cavalo- marinho, mas esse pico merece maior investigagao. O brincante de cavalo-marinho em questo representa o papel do Caboclo de Urubé, aquele que as veres parece estar em. tanse e caminha sobre vidto. © terreiro de culto se localizava a poucos passos da bodega onde se dava um ensaio de cavalo-marinho. Ambos envolvem basicamente 0 estato mais pobre da populagio, mas entre 0 povo do Xang6 havia pessoas da classe média ealguns de outras pequenas cidades. O prefeito dessa pequena cidade era tido como iniciado, ou pelo menos um apoiador do terteiro. Referéncias esparsas a0 catimbé ~ cura magica — foram feitas por diversos depo- entes. Um brincante referiu-se satirica- mente a sua esposa como “catimborcira”. Qs eravos brancos levados por caboclos de langa do maracatu rural podem relacionar-se a0 catimbé.> Da pesada bengala levada pelos homens que cantam no maracatu, © também por homens do campo em outras ocasides piiblicas, se diz que possui quali- dades magicas, além de ser arma wil para as longus caminhadas no escuro, a0 rerornarem de brincadeiras. Anéis de metal so fixados nela, e se diz que cada um representa umn. “segredo”. A langa de mais de dois metros carregada pelos caboclos de langa no mara- catu rural, decorada com fitas multicoloridas, é tida também como de significacio magica Vale a pena investigar se o Caboclo de Uruba do cayalo-marinho esti relacionade com 0 catimbo," Na brincadeira dos dias 1 ¢ 2 de dezembro de 1990 com o cavalo-marinho de Inécio, que se discute cm detalhe no Capitulo. 3, uma toada da cena do Caboclo de Urubt fer referéncia & jurema, outro termo para culto de crenga nos espiritos. Em nivel mais geral, pode-se obscrvar a cerensa no mundo dos espiritos, para alm do mundo observivel, tanto na base de fimagoes das cenas do cavalo-marinho yuanto em conversas cotidianas que se ferem a0 “outro mundo” ou 20 “outro do”. O personagem babau do cavalo- arinho, por exemplo, representa a alma de animal que voltou a este mundo vindo "do outro mundo”. A cena do cacador e do jpirito da mata — caipora ~ dramatiza uma a em tais espiricos benevolentes. stratificagao social e relagdes itrao-empregado A populagao da Zona da Mata Noste ui um pequeno segmenco de propricts- — basicamente usineitos -, um grande spo de trabalhadores rurais sem cerra ¢ variado estrato de meio dos mercadores, squenos sitiantes, empreiteicos ¢ servigais entre membros desses grupos sociais cam deseritas como “dependéncia — quando camponés ou trabalhador rural ¢ forsado entrar num conjunto de trocas com dado tr30” — ou “clientela— quando o camponés alrcrnativas, mesmo que limitadas, entre enfeitores’ potenciais que lhe oferecem nos diferentes por servigos prestados’.” havido uma transigao do primeizo para tiltimo modo de interagao nas sltimas a Como enfatiza a literatura de ciéncia social do Nordeste, o acesso & terra é0 recurso ais estratégico na economia regional. A relacio bésica patrdo-empregado é centrada na terra, e se expande para incluir outros recursos importantes, como crédito ¢ assis- téncia médica, Relagbes sociais hierdirquicas baseadas no acesso & terra so um aspecto visceral da vida no Nordeste. Hi uma distincio entre a relacio econd- mica bésica de dono ¢ empregado, como a que existe na de morador descrita ante- riormente, ¢ os miiltiplos vincules sociais que emanam dela.’ Na relagio, 0 morador troca trabalho por uma casa ¢ uma roca de subsisténcia. Nos vinculos, o dono auxilia 0 empregado cm momentos de necessidade, di crédito, prorege-o em disputas, serve de padrinho a seus filhos; e 0 morador apéia o patrio nas disputas com outros proprictarias ¢ trabalha quando chamado. © ato deescas relagbes hicrérquicas serem antigas nfo significa que estejam inquestiond- veis ou livres de conflito, Pelo contririo, elas sao altamente carregadas com expectativas de comportamento correto de ambos 0s lados © sustentadas por “um conjunto de concepgbes sobre comportamento apropriado”: A questio importante entio é como a desvantagem do dependente é explicada € racionalizada de modo a justificar a vantagem do patio. Existe no Brasil rural um conjunto de entendimentos sobre © comportamento apropriado em relagoes interclasse, que refaza submissio do camponés & autoridade e reforga seu senso de obrigago, numa série de relagoes de uocas desiguais.”” \37 Relac6es rituais ~ especialmente apadri- nhamento ¢ devosio a santos padrociros tém um papel importante ao reforsar este “conjunto de entendimentos” sobre desigual- dade social. Quando um patréo explora seu starus, nfio € 0 sistema que € falho, ¢ apenas um “mau patio”, Dessa maneira, 2 ideologia de relagbes sociais hierdrquicas fundadas na terra, que domina a vida social no Brasil rural, é preservada, © cavalo-marinho pode ser visto como a dramatizagio tanto dos medos correto ¢ incorreto de ser pactdo ou empregado quanto da manurengao da ideologia da desigual- dade, Nesse sentido ele pode ser somado ao apadrinhamento & devogao ao santo padro- ciro como uma das priticas que garantem 0 funcionamento préprio da sociedade rural Por definir o lugar de um camponés no universo social e por alirmar que a assimetria das relagées socioecon6micas & correta no geral, [a dependéncia] ainda faz explicar uma conduca exr6nea individual como sendo particular de um. “mau patrio”, militando assim contra 0 conflito entre classes eajudando a manter status quo." Faltam a meus dados evidéncias sobre relagbes de apadrinhamento de brincantes. Existe evidéncia abundante, mesmo assim, da utilizacao dos elos patrdo-empregado pelos brincantes. O senhor do Engenho Jaguaribe era simpatico as inclinagies artisticas dos moradores, dois dos quais eram brineantes de cavalo-marinho, Inacio Lucindo da Silva viveu em mais de doze locais alugados de um mesmo proprie- tdrio de tettas em Condado, Fle mudou de residéncia duas vezes durante minha perma- néncia, indo temporariamente para o sitio 2 32 | de Batista, retornando 2 moradia alugada do patrio de Condado apés uma dispuca menor. Inacio ainda contou que era capaz, no passado, de visitar até cem moradias, em Condado, de pessoas que contribuiam para custear as despesas de um maracacu que parti- ciparia do carnaval do Rec Batista disse ter atuado como pattio de vitios brincantes de seu cavalo-marinho. Ele salvou um dos brincantes de uma acusaca0 injusca de homic(dio em seu tempo de poli- cial: a faca com o sangue tinha sido colocada sob a porta do homem inocente. Em seu trabalho como empreitciro, ele empregou pessoas de seu cavalo-marinho como traba- Thadores para os canaviais. Mario de Prancha contou sobre um poli tico local que ajudow o cavalo-marinho de seus amigos com a compra de tecidos para as roupas. Na histéria de vida de Salustiano — ver a seguir ~ os efeitos do apadrinhamento sao evidentes, Fle procurou ativamente patro- cinadores na burocracia governamencal das artes ¢ veio a encontrar em Leda Alves uma aliada confiivel. Finalmente, me vi muitas vezes na posigao de patrocinador com respeito aos brincantes Uma dessas ocasiées mostra como 0 termo “folclore” se projetou sobre os entendi- mentos locais dos contextos da brincadeita. ‘Numa visita a Carpina, tentando saber sobre 2 brincadeira de bumba-meu-boi de Biu da Boia, encontrei Biu no mercado municipal de Carpina, onde ele carregava sacos. Nao havia brincadeira programada, mas Biu centava organizar uma por meu interesse. Quase tudo relacionado a essa brincadeira era negociivel. Ele usou muitas das conven goes lingitisticas de defertncia."? “Que tipo de brincadeira 0 senhor quet?", perguntou, =..do tipo ‘frocrore’ [folelorel2” Perguntei 0 que esta titima envolvia c cle respondeu que essa é quando todos es personagens entram na soda de uma ver, ao invés de apresentar cena por cena. Esse € 0 estilo de apresentagéo do ‘carnaval, por grupos carnavalescos na Casa de Cultura do Recife. Mens dadosde campo em geral confirma. a discnssao de Forman sobre relayées pattie empregado. Brincantes de cavalo-macinho, ‘como outios tabalhadores agricolas, procuram o favor eassisténcia de padrinhos eentram em obrigagdes para com eles. Talvez Forman idea- lize tais relagées na descrigéo do respeito que ‘os cmpregados tém com 0 pats6es a inimizade camponesa raramente € dirigida & classe dominante. No geral, 5 camponeses respeitam ¢ admiram os patrdes tradicionais, cujas posigdes no sistema social sGo to altas que sé podem ser mancidas com o espanto,"* ‘Trabalhadores rurais mantém ¢ expressam, sim, visbes criticas das clites locais. Brincantes de cavalo-marinho ressentem-se do controle exercido sobre as condigées de suas brin- cadeiras, em festas de santo padroeiro, pelos administradores municipais e pelo clero. Num plano mais abstrato, também rescentem-se de politicas governamentais de agricultura recentes, que eles percebem como tendo levado a perda dos engenhos © pequenas propriedades para os grandes poprictitios corporagées. “Terra que eles deram 20 pobre ja esta vendida ao bardo.”"* E dificil saber o quanto da revolta de Barista contra as mudancas econdmicas da Mata Norte desde 1964 representa a fiiria moral de sua classe contra o fim das relagties tradicionais de patrio-cmpregado, ¢ quanto se deve & revolta de um homem que esta mortendo. Sua veeméncia, somada ao faro de seus sentimentos ecoarem com os de outros depoentes, fez perceber mais do que uma mera saudade. Educacao e alfabetizagaéo baixo nivel educacional dos brincantes éum produto da negliggncia generalizada de educagdo, para os trabalhadores rurais e seus fills, pelo governo. A maioria dos brincantes de cavalo-marinho é de semi-alfabetizados, capazes apenas de assinar seus nomes. S6 poucos Iéem e escrevem. A educagao nesta rea melhorou de certo modo, mas muitos brincantes lembraram a falta de escolas nos engenhos onde cresceram, ou a necessidade de abandonar a escola apés um ou dois anos para trabalhar. Muitos brincantes receberam outro tipo de aprendizagem: a migragao para 6 Rio de Janciro ¢ Sao Paulo, onde conhe- ceram subcmpregos € viveram em favelas outtas drcas pobres, até que o fardo de uma funtlia expandida, o frio do Sul ea sudade os empurraram de volta a Pernambuco. Violéncia na Zona da Mata O clima de violéncia qne existe na Zona da Mata foi cirado na introduc. Aqui vou apresentarilustragées dos diferentes niveis de violencia que se podem observar conforme afetam brincantes de cayalo-mariaho, Isso de modo algum descreve por completo a sitwagdo de justica criminal da Mata."* Brigas de rua, agravadas tantas vezes pelo consumo de alcool, podem resulear em morte ou ferimento grave. Hé assaltos ¢ assassinatos, incluindo aqueles relacionados & infidelidade conjugal. Ha vigilancia sobre criminosos que escapatam de punigio pela autoridade civil, como os molestadores de eriangas, De outa natureza € a violEncia de classe co rerror praticado por grandes proprievirios ‘agentes contra organizadores de entidades trahalhadores, Como na regiao amazinica em desenvolvimento, os proprictarios poderosos da Zona da Mata podem e fizem intimidar os que protestam contra abusos, com ameagas ¢ violéncia real. © caso de José Helio, um organizador de entidade que mantinha um programa de radio onde trabalhadores podiam revelar anonimamente as abusos dos empregadores, € tipico. Ele comegou 2 receber ameagas de que ia “terminar como Chico Mendes” se nao controlasse sua critica contra as elites locais. Pouco tempo depois, sua caminhonete foi interceptada, ¢ ele foi assassinado, segundo a reportagem no Diirio de Pernambuco. Além disso, urabalhadores que reclamam de abusos dos empregadores podem ser punidos com espancamento por guardas armados.! Tais incidentes demonstram os limites do discusso politico permuitido. Se quisermos ver até que ponte o cavalo-marinho é percebido. como sitira dos poderosos pelos desprovidos de terra e poder, ¢ importante saber 0 que pode ¢ 0 que nao pode ser dito no discurso politico “normal”. Nos termos de Scott,!” 0 poder dos proprietarios expresso por meios violentos molda os limites do “conteiido piblico” e forga a critica social em diregzo aos “contetidos velados”. Este tema ser reto- mado no Capitulo 5. Historias de vida dos participantes As histérias de vida de Batista ¢ Salustiano ilustcam duas respostas bem diferentes 3s recentes mudangas sociais que uansformaram o contexto da brincadeira de cavalo-marinho na Mata Norte, Batista ficou no interior € manteve o cavalo-marinho que herdou de seus tios ¢av@, brincando em ambientes tradi- cionais: em engenhos © pequenas proprie~ dades agricolas — especialmente na sua, Cha de Camard ~, na rua, nas cidades e vilas da regio, tanto como parte da festa do santo padrociro quanto cm separado, Salustiano migrou para o Recife, lutou para intcoduzit € manter o género essencialmente rural na cidade ¢ chegou a obter reconhecimento € patrocinio através de agéncias governamen- tais ligadas ao folelore. A representatividade deles se esclarece se lembrarmos que 0s processos que afetam géneros tradicionais de brincadeiras da Mata Norte ~ urbanizacio, modernizagio, prolecarizagio, folclorizagio— niio siio exclusivos desta regido. Tais processos deveriam ser avaliados com uma base de dados mais ampla, mas eles sio construidos sobre incontiveis experiéncias individuais ¢ decisdes."* O contraste das experiéncias indi- viduais de Barista, Salustiano ¢ outios brin- cantes discurido nesta segio, com processos mais amplos de mudanga, serd visto nos Capitulos 4¢5 Mestre Batista Severino Lourengo da Silva, conhecido como Mestre Batista, tinha uma pequena propriedade agricola proxima a Alianga. Seu status de pequeno proprieririo era tinico entre 03 brincantes de cavalo-marinho que conheci, mas deve ter havido mais gente mesma situagio socioeconémica envol- ida na brineadeira no passado. A classe dos -quenos proprictirios foi mais afetada pela lernizagao da industria do agticar, quando introdugao das usinas aumentou drastica- jente a competigio por terra e expulsou os quenos produtores de aciicar, algodio imentos. Este stztus socioecondmico ajuda explicar veeméncia com que Batista ctiticou aquelas mas nas condigdes de trabalho, iniciadas principio dos anos de 1960 entre os traba- adores rurais do agiicar. Pequenos produrores o poderiam dar conta dos beneficios quea lei jucria,e muitos foram forcadosa vender suas priodades para engenhos maiores ¢ usinas. km disso, Batista se referiu exacamentea estes ntos politicos como fatores principais, de par 1m a televistio, migracio as cidades ¢ outros spectos da modernizasan pés-guerta, como sas do declinio continuo no numero de brin- ntes de cavalo-marinho e na qualidade des incadeiras. Ele enfatizou repetidamente que passado as pessoas nao tinham dinheiro mas Snham trabalho ¢ comiain bem, enquanto no ite ganham sakirio mas ficam com fome falta de rogados de subsistencia, e perma- cem desocupados na entressafra — tempo fem que estariam, como moradores, cuidando ide seus togados. Batista nasoeu em 6 dejunho de 1932.em Alianga e morrewali em 29 deagosto de 1991 Seu pai deixou sua mae quando cle tinha 4 anos, ¢ ele foi criado por um padrasto, Aos 10 anos comegou a trabalhar nos canaviais, ¢ desempenhou quase todas as tarcfss relacio- ‘nadas 20 acticar, De dez anos para ca eu comecei, butei rogado, fai carcciro, fui cambiteiro, fui cortador de cana, cisquei bagaco, tombei «cana pi moendsa, tre de dentro do engenho apocira do secado, andi atrés dos carcitos, dando feixe de cana pa carccar,quebrei uma lavicula carreando... Eleaprendew a trabalhar sob a hierarquia dos engenhos ¢ obteve gradualmente posi- Ges de sesponsabilidade: empreiteiro, feitor, administrador. “Fui um menino compor- tado, os homens confiavam muito em mim, Me dava muita confianga no servigo. Nunca fui malcriado p4 meu chefe.” Batista péde alugar propriedade e cultivar bananas, que vendia nas cidades grandes da regiéo: Paulista, Recife, Campina Grande ¢ Joo Pessoa. Comecou a plantar cana em 1958, moendo-a na Usina Barra, em Vicéncia. Em 1965, com a morte de seu padrasto, ele se casou ¢ ganhou posse da pequena propriedade em Cha de Camara. Continuou a plantar cana e trabalhou como empreiteiro paraa Usina Alianga em 1968 c 1969. Em 1980 cle estava comprando cana e vendendo-a para a usina além de plantar, de suas, mais de 1000 toneladas. Comegou, na ‘mesma época em que trabalhava para a usina, a inspecionar canaviais de fornecedores. B continuow nesta posicfo até 1989, quando adveceu da garganta. Além de tocar seu negécio agricola, vendeu carne por vinte ¢ oito anos, abatendo um boi todo sabado, E por dez anos serviu de policial para muniefpio de Alianga. Nunca tirei ninguém, nunca dei... fia uma cicatrizem ninguém, nem nunca level um empurrio de ninguém. Prendi criminoso, Jadrao, desarmei gente, dei tapa em cabra r safado, em homem, rio. Deixei a policia porque achei desmoralizado. Ele serviu como juia de menores, “Evendo tudo no mundos tesolvendo sumo de terra, briga de mulher, galha, moga que tava danado”, Batista tinha orgulho do modo como sustentou seu trabalho sem bater desnecessa- riamente em ninguém, nem ser ferido. Porque © homem que crabalhou aqui ¢ nio apanhou foi esse mesmo Batista. Soldado,o cara burow a perna no pescogo dele para marar, Soldado. O outco tava tirando,o outro matou, Quando cu estava ‘com essa perna enfaisada, o soldado tava sozinho, matou um, Aqui nesse, se brinca a noite todinha, vocé ndo vé 0 camarada fazer uma carera. Todo mundo aqui me respeita. Todo mundo me trata bem. Também eu trato todo mundo bem. Agora, nunca fui mole, nao. Fui muito mole, nfo. Fui muito frouxo, nao. Aurayés desses anos de trabalho, Batista manteve seu cavalo-marinho brincando todo sdbado, principiande com ensaios pelo fim dejulho e seguindo até janeiro. Em um ano, disse ele, brincaram trinta e seis sébados. Hayia momentos em que seu cavalo-marinho ficava parado, mas sempre recomegaya. Batista também era bem ative no maracatu rural e ganhou o primeiro prémio em Recife vdtiag vezes. Batista apontava vigorosamente o impacto negativo dos cventes do inicio dos anos de 1960 sobre 0 cavalo-marinho ¢ a vida na regio. As leis que garantiram salério minimo aos trabalhadores agricolas inviabilizaram a residéncia dos mesmos nas plantagées. Proprietérios julgaram necessério plantar com cana todo 0 solo disponivel, « que resulrou na expulsdo dos trabalhadores moradores. % Plancaram {implantaram] as leis uaba- Ihistas no Brasil, cabou com povo. Acabou com pobre, acabou com 0 rico € 0 nobre. ‘Acabou com tudo. Adepois que entrou saldrio mfnimo no Brasil, acabou-se todo mundo, Esti todo morrendo de fome. Junto com as novas protedes para os trabalhadores vieram as possibilidades de abusos ranwo de patrae quanto de empregado. Deacordo com Batista, alguns trabalhadores fizeram reclamagées fraudulentas contra proprietirios. Os seus relatos do cavalo-marinho do passado descreveram um péblico rural que residia nos engenhos e sitios. Esse ptiblico incentivava 0 cavalo-marinho ¢ 0 acompa- hava atentamente, Eo pessoal tinha maisa civilidade de ficar calado, rir quando merecia, € escutar 0 que se dizig.,, para entender, 0 servigo bem-feito. Hoje, tudo acabou. ‘Todo. mundo ficou civilizado, s6 quer andar de catro, 35 quer ganhar muito dinheiro sem. saber de nada, e acabou. © fato de nenhum dos filhos ter-se tornado brincante de cavalo-marinho eausa- vaelhe tristeza, Fles sto profissionais e vivem em Recife. Fintre os membros de seu grupo de cavalo-marinho nfo havia sucessor claro para Batista, Seus parceiros comentaram que sua maneira dura de criticar pode ser responsaivel por isso. Como resultado, quando o préprio Batisca néo podia dirigir a brincadcira, no havia brincadeira. Batista tinha consciéncia do efeito que tinha sobre 05 outros © seu reforco firme dos padres mais claborados de brincadeira Explicava que sua atitude exigente no vinha de um interesse pessoal, mas do desejo de garancir a transmissio detalhada da tradigao do cavalo-marinho. “Onde ti digo. Onde tiver certo, eu digo. Nao me julgo melhor que os outros.” Uma vez que ele contava com suficiente confirmacio de seu status fora do cavalo- cerrado, eu marinho, é pouco provavel que seu rigor " derivasse apenas de um desejo de dar ordens, Podemos ver na literatura sobre tradigaes frais o papel do individuo na manutencio das mesmas. Batista era um desses indivi- ‘duos, alguém que devorow tanta encrg ra aprender a mtisica cos textos do cavalo~ rinho que se sentia obrigado a apontar ros. Ele me lembrava regularmence de um 0 importante: que meu conhecimento de walo-marinho é ¢ sempre sera parcial. Seu wérbio favorito: A gente nasce aprendendo, morre sem saber de nada. lestre Salustiano ‘Manoel Salustiano Soares nasceu em 12 novembro de 1945 no Engenho Oiteiro em Alianga, Pernambuco, na Zona da jata Norte. Aos oito meses de idade foi ma familia para o Engenho Palmeica, em Condado. Aos 2 anos a familia mudou-se 20 Engenho Vencura, em Nazaré da Mata. ss cinco, mudaram-se para o Engenho ichoeira, em Vicéncia Com 7 anos ele viu seu primeito cavalo: arinho em Vicéncia no Engenho Cachocica, Seu pai, Joao Salustiano Soares, nascido em 1918, brincava cavalo-marinho e comecou ocar rabeca em 1941. Enquanto vivia no ingenho Canavieira, Salustiano brincou walo-marinho pela primeira ver, fazendo papel de Arzelequim no grupo do Mestre ferino Jillio. “Ea gente comecemo’ brincar. i cu fiquei mais disposto pa’ trabalhar. Porque eu ia meio desanimado pa’ trabalhar, mas quando eu ouvi falar que fui eu ia brincar cavalo-marinho, eu fiquei muito feliz da vida.” Salustiano lembrow sta excicagao em uma entrevista de jornal: “Eu fiquei tao conrente, querendo mais dar conta da cana da plan- tasto, porque cu sabia que tinha uma coisa rica no final de semana pra me distrain.”” Os brineantes se encontravam na casa de seu pai, ¢ todo o grupo seguia a pé para o local da brincadeira. Eles brincavam por pouco dinheire, por nada, pelo amor eva, Salustiano aprendeu os papéis de Dama e Galante brincou com outros mestres, incluindo Zé ‘Mariano, Pedro André ¢ Luis Fulora. Ele conheceu Batista, mas néo brincava com aquele cavalo-marinho regularmente. ‘Af eu comecei a ver Batista, que cu nao conhecia Batista, af eu comecei a ver Batisca, mas nunca bringuei diretamente com Batista, Eu sempre ia quebrar um galho assim, ou ia catar um toadeiro ajudar, mas peguei experiéncia com ele também. Que ouvia, assistia, acho muito bonito 0 trabalho dele, que o trabalho dele é um crabalho hom, um trabalho hem-feito. Afeu assistia muica Durante sua aprendizagem como brin- 10 traba- came de cavalo-marinho, Salus Ihava nos canaviais. Seu trabalho “era no campo, cortando cana, limpando quadra, cavando rego, cra cambitando, né Enchendo caminhao, carro de linha, certo? Essas coisas ali. Ai, vimos pra cidade.” Em 1965, aos 20 anos, Salustiano. mudou-se ps “Porque achei melhor por causa gue la situagio tava dificil, né? A situacio escava diflcil para se viver, ¢ minha mae morreu também, |i no interion € eu pretendia vira cidade para melhorar de vida, née?” to Recifi Ble lembrou o seguinte didlogo com um. senhor de engenho no interior, em relagio a seus planos de vir ao Recife: le disse: Salustiano, o que vace vai fazer no Recife? Voct éanalfabeto, nao sabe ler nem nada, Bu disse: nfo vem nada, no senhor Fu sow tabalhader, eu arranjo alguma coisa, Eu varro a rua, até carrego mensagens, limpo sarjeta, limpo fossa. Néo sou preguicoso © o Deus deste lugar & 0 Deus de toda parte, Onde eu for, eu autanjo servigo.”” Apéssua chegada a0 Recife, ele trabalhou. em servigo domeéstico, mas logo ficou ansioso por no poder seguir com seu brinquedo rural preferido, o cavalo-marinho, Por sorte encon- 1101.0 cavalo-marinho de Joaquim Felipe em Casa Amarela ¢ ficou mais contente com 0 ambiente urban digo, ‘jé sei que F eu fiquei animado. Eu vou voltar mais ao inte- rior, ¢ vou ver 0 cavalo-marinho’.” Participou primeiro como rabequeiro ¢ comecou a ganhar dinheiro imediatamente. “Ai eu cheguei, cu participei com a rabeca, peguei na rabeca pra tocar um pouquinho. Quando eu toquei, 0 povo gostava. E deixaram 0 outro pra eu na rabeca, E de manhi jé peguci dinhciro, ainda pagou ali.” Quando Joaquim Felipe, um empregado da ferrovia de longa data, aposentou-se se mudou para Aragoiaba, cidade proxima do Recife, Salustiane participou de outro cavalo-marinho em Peixinhos, Logo depois le decidiu comegar o seu prdprio. Faltavam brincantes com pratica, entao ele ensinou as pessoas a brinear. Al, inventermos um. Comecemos, eu, meu irmio, Benicio, um camarada. Af o povo gostava, n@ Mas com pouca gente, 38) que ndo tinha gente pra brineas, que ninguém sabia, Mas eu fui ensinando. Como cra que dangava, como ¢ que faria. Tem hora que tava tocando, rem hora que tava dancando. Muita luta. E comegou, eu fazendo cavalo-marinho, 0 povo gostando. E eu brincando nas barra- quinhas. E nenhuma entidade grande me conhecia, Um movimento decisivo na carteira de Salustiano foi ter um conhecido na burocracia municipal de Olinda, através de quem cle conseguiu organizar performances remune- radas, Um amigo que trabalhava na prefeitura apresentou-o 20 secretétio de turismo, cuja primeira resposta para a idéia de contratat um cavalo-marinho para apresentar-se aos turistas foi, segundo Salustiano, “eu nao quero bumba-meu-boi quesé dé bebo”, Ele dew uma chance so grupo, no entanto, ¢ eles obtiveram seu primeiro contrato municipal, para brincar “nos seis dias de festa’: na noite e no dia de Natal, Ano Novo ¢ Dia de Reis. Salustiano enfatizou que o grupo foia pé2as brincadeiras, como fazem os grupos da interior. Outro conhecido importante desde cedo foi folclorista Joao Santiago, que convidou 6 cavalo-marinho de Salustiano para brincar em seus festivais. Ali Salustiano encontrou o Capito Anconio Pereira, um brincante de bumba-meu-boi muito bem conhecido, Noi encontrou Leda Alves num festival de cio dos anos de 1970, Salustiano bumba-meu-boi em Recife. Atriz ¢ cola- boradora do professor, diretor e folclorista Hermilo Borba Filho, cla depois trabalhou como presidente da FUNDARDE, o érga0 principal da culeura estadual. Leda Alves tem sido a principal apoiadora de Salustiano desde entio, ajudando-o a conseguir traba- Ihos, promovendo © scu cavalo-marinho ¢, mais recentemente, encabegando 0 esforo para garantirthe o titulo de Reconhecido Saber (ver a seguir). © apoio de Leda Alves sestendeu-se 2 satide de Salustiano e& de sua familia ¢ lembra o interesse abrangente que ‘95 patrdes ruraistradicionais tinham por seus dependentes. Assim, Salustiano adaprou as selacdes tradicionais de patrdo-empregado para o novo contexto de apresentacbes remu- acradas pelo municfpio. Por seus préprios esforcos e pelos de ‘oux10s, Salustiano tornou-se conhecido como brincante competente de cavalo-marinho ¢ ‘seu grupo obteve contratos. Ele trabalhou numa série de empregos, iniciando coma porteiro, depois professor de géneros tradicio- nais nas escolas piblicas, depois funciondrio administrativo na FUNDARPE. Mesmo como porteiro nos escritérios municipais de turismo pode beneficiar-se. Era um hom trabalho, porque a gente ficaya bem aproximado da coisa. E.quando a gente no tinha proximamente, tinha que ter uma pessoa que apontasse onde é que tinka aquele espeticulo, E inclusive quando eu cheguei em Olinda no tinha bumba-meu-boi, no tinha ciranda, no tinha mamulengo, ¢ nem tinha maracats, de baque solto, Nada disso tinha. Tinha um [maracatu de] baque virado. Mas os outros especiculos eles ficaram fora, aqui nos incerior de Pernambuco, para brincar as estas de Natal e Ano. E eu em Olinda fini quem butou tudo isso Salustiano mostrou-se igual a tantos brasileiros comuns no seguinte episédio de 1973, quando escreveu para um apresentadot deTV popular: Em 1973 [Salustiano] escreveu carta a Silvio Santos com o objetivo de aparecer com sua ciranda no programa de TV do apresentador. Recebeu rexposta positiva, mas teria que ir com o sectetirio muni cipal de cultura de Olinda. No entanto 0 seeretério disse que nao poderia ir, Diante desta recusa, Salustiano afasrou-se do governo municipal e se distanciou. Foi viver em Prazeres [quase o mais longe que se pode estar de Olinda permanecendo na rea metropolitana do Recife] e sé voltou a Olinda em 1976, quando Germano Coelho assumiu a pasta.” Durante 0 perfodo de nosso trabalho juncos em 1990-1991, ele erabalhava na Casa de Cultura, atuando como ligagéo entre a Casa de Cultura ¢ os muitos grupos folcloricos que eram contratados para apre- sentar-se ali, Como presidente da associagio de Maracatu Rural, ele viajava para Alianga para um encontro, no primeiro sébado de cada més, Seu maracatu ganhou primeiro prémio no carnaval de 1992. Ele manteve seu trabalho na Casa de Cultura mesmo apés a saida de Leda Alves da FUNDARPE, com a entrada de Rubem Valenga em margo de 1991 Salustiano tem por volta de trinta filhos de mais de sexe mulheres. Aprendeu aler ea escrever adulto, em Recife, Foi criado como catélico € passou um més na Assembléia de Deus em 1973. Vigjou a So Paulo em 1989 para uma apresentagio de maracatu no programa de televisio “Som Brasil”, ¢ deu aulas na Universidade Catélica ¢ na Faculdade de Filosofia do Recif No final de 1989 ¢ inicio de 1990, Salustiano teve problemas no coracio, foi diagnosticada a doenga de Chagas ¢ implan- tado marca-passo de apoio, Sua saide alte- rada reduziu seu papel nas brincadeiras para lo © cantar ¢ 0 tocar rabeca; antes cle dancava © atuava também, Quando vi seu cavalo- marinho em junho de 1989, ele dancava Vigorosamente com seus filhos ¢ fazia o papel de Soldado. Durante nosso trabalho juntos, seu cavalo-marinho adulto estava parado, exceto por uma brincadeira breve em seu aniversitio. Salustiano parecia satisfeico com sua posigéo. E cheguei ao ponto final, o ponto de hoje, de ganhar emprego, de me empregar através desse conhecimento. Eu me empregava em repartigo publica em Olinda. Af eu passei a ser conhecido. E através dessa divulgacao, comercial, televisdo, af levaro nome c hoje sou reco- nhecido pelo Reconhecido Saber.”? Embora Salustiano frisasse as vex om. satisfagdo que 86 ele, em sua getacio, conti- nuou brincando adulto e se tornou mestre, seria mais apropriado dizer que ele é 0 mais, conhecido brincante de sua geracio. Qurros homens em sua geragio efetivamente conti- nuaram a brinear depois de adultos ¢ conti- nuaram a fa2é-lo durante o tempo de minha pesquisa de campo. Um fendmeno similar pode ser observado em outros meios culeurais tradicionais do Nordeste brasileira, quando um indivéduo se toma tio associado a deter- minado género, a partir de apoio municipal ¢ exposigao na midia, que aos olhos do puiblico geral ele é visto, justa ou injuscamente, como o melhor praticante desse género, F este 0 caso com 0 escultor Vitalino c 0 dangarino Nascimento do Passo, como é com Salustiano eo cavalo-marinho na dea de Recife. EF como se houvesse lugar na atencio do puiblico para apenas um praticante bem conhecido de cada géncro artistico tradicional, ao passo que em gtneros populares comercializados podem surgir duizias de figuras Outros praticantes no Recife ¢ interior respeitam Salustiano por sua competéncia. como brincante e por seu papel na buro- cracia do foldore. Com seu apoio, grupos do incerior viajaram ao Recife para brincar na Casa de Cultura, Ele teve um papel na distri- buigéo de verbas para grupos de maracane rural no carnaval. Junto com o respeito, no entanto, veio o ressentimento de brincantes que sentiram que ele se beneficiou muico pessoalmente da proximidade com as fontes de apoio no Recife, e que sua prépria compe- téncia ficou limirada as apresentagies curtas da capital. O carnaval e suas verbas envolyem tanto um processo politica quanto artistico, endo causa surpresa o fato de a competicio produzir inimizades entre brincantes. Outros participantes As duaé segdes anteriores fornecem uma vista geral das vidas de brincantes de cavalo- marinho € da histéria de vida de dois brin- cantes significativos. Esta segdo as suplementa com dois resumos breves de dois mestres ¢ vitlos outros brincantes, Para colocar esta informagio em perspectiva, € importante terem mente que, come dado no inicio do Capitulo, praticamente todos os brincantes de cavalo-marinho séo empregados nos canaviais, Embora o percentual de trabalha- dores da cana que brinquem cavalo-marinho scja pequeno, todos eles tém ouvido sobre cavalo-marinho ¢ muitos viram 20 menos uma brincadeira na estagio de salra/festa. Muitos dos residentes de classe média com quem conversei nas cidades da Mata cambém, sabiam do cavalo-marinho, embora apenas ‘com uma vaga idéia sobre seu contetido, Inécio Lucindo da Silva, um mestre rural de cavalo-marinho, canta, toca pandciro ¢ fax os papdis de Capitao ¢ muitas figuras de miscara. Ele nasceu no Engenho Parand ide Alianca em 16 de dezembro de 1936, é ‘easado e tem cinco filhos de 3, 7, 8, Ll ¢ 4 anos. Os dois mais vclhos brincam com ele. Ble corta cana para viver, morou em muitos lugares da Mara Norte e passou um tempo no Rio de Janeiro também. Na época em que srabalhamos juntos cle vivia numa pequena ua de moradias de trabalhador rutal no Sitio Siqueirs, préximo a Condado. No passado foi morador de engenho. Vinte anos aris ele deixou esta situagdo € ‘9 sitio em que vivia para mudar-se para a cidade, Voltou para o engenho e passou mais is anos, com dircito a um sitio, e entéo mudou-se de novo para a cidade. Ele tem segistro de trabalho e paga taxas para a unio ios cortadores de cana (FE'TAPE), mas nao um membro. Durante um perfodo em que cava sem trabalho agricola por seis meses, bbalhou como vendedor de rua, mas parou ando teve de vender seu carrinho para gar a medicagao de sua mulher. No Rio, Inécio trabalhou numa obra de mnstruyae de meted por onze meses, mas foi mitido antes de complecar um ano, assim companhia néo tinha que pagar os benefi- «ios. Entao ele encontrou servigo na garagem jc uma companhia de Gnibus, vistoriande wvarias dos vefculos, consertando e recarre- indo-os de gis. Apesar de ser ilezrado, ele ‘eonseguiu esse trabalho. A expressiva arte verbal de Indcio é imbativel entre oy brincantes que conheci, A situagio mais Favorivel para essa habili- dade esté entre as cenas de cavalo-marinho, quando toadas improvisadas “falam 0 presente”, nos rermas de Becker: Em uma ocasiao ele cantou que acabava de ouvir sobre a morte de sua mie, seis semanas depois do acontecido,” Em outta camtou sobreseu filho que estava no hospital.”* Inacio divulgou a noticia da morte de Batista em cantigas improvisadas, entre cenas de brincadeitas de cavalo-marinho do outono de 1991. © episédio seguinte sugere a medida pela qual a brincadeira move Inécio. Em 2 de feverciro de 1991 cuo acompanhei a uma festa em Upatininga, a poucos quilé metros de onde estava morando, em Cha de Camaré. Ao chegar, Indcio encontrou uma mulher que conhecia. Quando eles se cumprimentaram, cla comentou da frieza da mio de Inacio. Ele explicou mais tarde que suas maos ficam mais frias quando est4 antecipando uma brincadeira, Havia uma chance de ele brincar naquela noite em Upatininga com o grupo de cavalo-marinho. Mais tarde, depois que ficamos sabendo que nio haveria nenhum grupo de cavalo-marinho ali, ele me mostrou sua mo, e a temperatura estaya normal. Inacio respondeu afirmativamente quando perguntei se os elementos reli- giosos do cavalo-marinho — a saudagio aos Reis Magos ¢ Santos Padrocizos ~ eram sinceros. Na mesma conversa, ele lembrou Padre Geraldo, um padre ativista no Cabo, Pernambuco, dizendo “pode sambar que a brincadcira € religivsa”, quando ele esteve brincando com seu cavalo-marinho em sua igreja, em 1972. Numa entrevista com o socidlogo Edval Marinho de Araiijo, Inacio disse que © piiblico rural do cavalo-marinho esti mais 41 interessado nos aspectos visuais e musicals do que em fazer conexdes entre as cenas da brincadeira e suas vidas reais, embora alguns obviamente 0 fagam., Inicio descreve a difi- culdade que os brincantes tém de pagar suas roupas ¢ dé exemplo de alguém vendendo parte de sua colheita de subsisténcia para pagilas. O cara diz, como ele xe veste com aquela roupa? Como cle consegui o dinhciro? Mas ele nao sabe como. No cavalo-ma- tinho a gente nao conta histérias da vida real, o pessoal nao entende ediz.cu quero ver danga, eu quero ver figura, quero ver oenfeite, encio a gente danca, bora figura € enfeite, mas se fosse pra gente concar a histéria, 0 pavo ia sentir ¢ entender, porque € verdade.2” cayalo-marinho de Inécio nfo brincou na temporada de 1991-1992. Na temporada de 1990-1991, seu grupo incluiu brineantes de Ferreiros ¢ Condado, duas cidades sepa- radas por 20 quildmetros, @ que tornava a comunicayao © 0 uansporte diffceis. Em 1991-1992, alguns de seus brincantes de Ferreitos formaram novo cavalo-marinho. Indcio até disse que nao brincaria mais no Furuta? Biu da Boia € 0 apelido de Severino Joaquim Pereira, um mestre de bumba- meu-boi que vive em Lagoa do Carmo, cidadezinha préxima a Carpina, a oeste do Recife. “Biu” ¢ apelido de Severino; béia é uma gitia para comida. O apelido vem do seu tabalho carregando sacos de produro na feira semanal de Carpina no Ceasa, no Recife. Cantor e rocador de bombo, Biu brinca bumba-meu-boi, maracatu eural, coco mamulengo. 42 Biu nasceu em 1932 em Limoeiro, Pernambuco. E casado, teve uma crianca que morren ¢ tem uma filha adotiva. F praticante na igreja catdlica e € padrinho de teze ou catorze criangas. Teve menos de um ano de escola, ndo Ié nem escreve, a nfo ser assinar © nome. Trabalhou na agricultura, na Usina Petribu, ¢ em outros servigas de fibrica. Nunca foi morador em engenho, mas seus ayds € mie foram. Biu aprendeu o bumba-meu-boi com seus avése um. jeu irmao também brinca. Ele brincou com os mestres Severino Vela, Chico Isidoro ¢ Zé Mane, todos de Lagoa de haenga, Pernambuco. Vi Biu atuar em publico por pouco tempo na noite de Reis em Carpina, mas me encontrei com cle depois para duas sessdcs de gravagio, quando entae cantou uma versio condensada de seu bumba-meu-boi completo, Fle é um homem enérgico, de fala ripida c extrovertido, Sua verséo do bumba- met-boi éimportante porque a sua existencia em Carpina pode ser um sinal da mudanga do cavalo-marinho~ com a rabeca cos Galantes, © pandeiro em vez de bombo ~ da Maa Norte para 0 bumba-meu-boi — bombo, sem rabeca nem pandeiro ou Galanres — da ‘Mata Sul.” Além disso, a participagio de Biu em varios géneros tradicionais confirma que a habilidade similar de Salusciano no € um fendmeno isolado. Os géneros sto de cada estagio, e é comum para aqueles que mostram talento ou iniciativa— ou ambos ~ brincar cm mais de um. Biu Roque ¢ scu filho Mané Roque cantavam com o Cavalo-Marinho de Batista, Sao ambos moradores no Engenho Tabajara, em Alianga. Biu Roque, 56 anos de idade, cu no Engenho Cacaii Grande, em ana. Ble corta cana ¢ tabalhou em todos servicos associados a sua producto. E ido ¢ tem scis filhos. Estudou em escola seis meses ¢ nfo [é nem escreve ou assina nome, Nao pertence a uma igreja, No gertho Tabajara ele tem uma casa ¢ 0 sitio. preferitia viver na cidade, mas no pode oaluguel. E um membro da uniao. Batista cnsinou Biu Roque a cantar € ar a bage (reco-reco) em seu conjunto musical de cavalo-marinho, iniciando em 972-1973. Ble toca também tarol de mara- cu cm ciranda, coco ¢ baile. Seu irmio ymbém cantava em cavalo-marinho, Mané Roque, 38 anos de idade, também tava ¢ tocava bagé com Batista. Ele é casado, tem oito filhos, ¢ trabalha na cana. Freqitentou a escola por um ano e assina seu nome. F hoje um membro da unido mas, como seu pai, trabalhou scm conteato legal no passado. Ven cantando ¢ tocando bagé em cavalo-marinho hd cinco anos, e ainda canta maracatu ¢ ciranda, Ble comegou a brincar depois de casado, O tempo do inicio da participacio de Mané Roque no cavalo-marinho ¢ upico de alguns brincantes, Entre os que no brin- caram desde crianga, comegar a brincar pode set parte de um perfodo mais cstabilizado de suas vidas. Isso segue um perfode do “andando pelo mundo”,** quando rapazes mudam de trabalho com freqiiéncia e podem passar tempo no Rio ou Sao Paulo, enquanto ainda livres de responsabilidades familiares. Aratijo € 0 apelido de um mestre de cavalo-marinho em Trambé, aa di entre os estados de Pernambuco e Parafba. Trabalhador rural, ele nasceu na Parafba em 1925, ¢ passou tcmpo no Rio de Janeiro trabalhando como operirio e zelador. Viu © cavalo-marinho ainda crianga, mas néo aprendeu de membros da familia, Apcnas dois dos filhos de Araiijo chegaram 3 idade adulta. Fle nao é membro de igreja, mas se considera catdlico. Vem brincando cavalo- marinho hd dezessere anos, brinca também mamulengo ¢édono de um grupo de cavalo- marinho. Ele adaprou um captador elétrico simples a sua rabeca ¢ a amplifica com alro- falante pequeno. ‘Quando indagado sobre o faro de possuir alguma propriedade, como sitio ou rogado, Araiijo respondeu amargamente que sua linica propriedade ¢ 0 cavalo-marinho. Seus ayés cram ricos ¢ possuiam propriedade, mas petderam-na através dos anos, Um dos parentes que herdaram a terra parti para a Amazdnia a procura de fortuna, durante o ciclo da borracha, deixando a propriedade sem cuidado, Um vizinho pagou os impostos e veio a ganhar controle sobre ela, O caso de Aratijo exemplifica a proletarizagio de familias que tinham sitios no passado, mas gue se acham hoje sem posses ¢ trabalhando no campo. Esta era a classe média rutal que dava forte apoio ao cavalo-marinho e outros géneros rurais, mas que ficou sob pressio com a expansio ¢ industrializagdo da indis- tria do aciicar, Mesmo que neste caso a terra possa ter sido perdida por negliggncia, houve muitos outros casos de propricdades menores € menos comperitivas que foram absorvidas por engenhos maiores ¢ usinas.

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