Você está na página 1de 84

MURILO GÓES MARTINS

LETÍCIA QUEIROZ DE CARVALHO

LITERATURA A MESA:
Refeições para alimentar a formação docente
LITERATURA A MESA:
Refeições para alimentar a formação docente

1ª Edição
2020

MURILO GÓES MARTINS


LETÍCIA QUEIROZ DE CARVALHO

INSTITUTO FEDERAL
Espírito Santo

Programa de Pós-Graduação
em Ensino de Humanidades
Instituto Federal do Espírito Santo

Vitória - ES
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
(Biblioteca Nilo Peçanha do Instituto Federal do Espírito Santo)

M386L Martins, Murilo Góes.


Literatura à mesa [recurso eletrônico] : refeições para
alimentar a formação docente : caderno pedagógico / Murilo
Góes Martins, Letícia Queiroz de Carvalho. – 1. ed. - Vitória :
Instituto Federal do Espírito Santo, 2020.
82 p. : il. ; 30 cm.

ISBN: 978-65-89716-28-0 (E-book)

1. Literatura – Estudo e ensino. 2. Gastronomia na literatura –


Crítica e interpretação. 3. Carnaval na literatura – Crítica e
interpretação. 4. Ensino – Meios auxiliares. 5. Abordagem
interdisciplinar do conhecimento na educação. 6. Professores –
Formação. I. Carvalho, Letícia Queiroz de. II. Instituto Federal do
Espírito Santo. III. Título.

CDD 22 – 869.07
Elaborada por Marcileia Seibert de Barcellos – CRB-6/ES - 656

PROGRAMA DE MESTRADO PROFISSIONAL EM


ENSINO DE HUMANIDADES – PPGEH
Av. Vitória, 1729 – Jucutuquara – Vitória – Espírito Santo
CEP: 29040-780

COMISSÃO CIENTÍFICA
Fernanda Zanetti Becalli
Luciano Novaes Vidon

REVISÃO DO TEXTO
Letícia Queiroz de Carvalho

CAPA E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA


Aline Antonio

PRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO
Programa PPGEH / IFES
INSTITUTO FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
JADIR JOSÉ PELA
Reitor
ANDRE ROMERO DA SILVA
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação
RENATO TANNURE ROTTA DE ALMEIDA
Pró-Reitor de Extensão
ADRIANA PIONTTKOVSKY BARCELLOS
Pró-Reitora de Ensino
LEZI JOSÉ FERREIRA
Pró-Reitor de Administração e Orçamento
LUCIANO DE OLIVEIRA TOLEDO
Pró-Reitor de Desenvolvimento Institucional

IFES – CAMPUS VITÓRIA


HUDSON LUIZ COGO
Diretor Geral

MÁRCIO ALMEIDA CÓ
Diretor de Ensino

CHRISTIAN MARIANI
Diretor de Extensão

ROSENI DA COSTA SILVA PRATTI


Diretora de Administração

MÁRCIA REGINA PEREIRA LIMA


Diretora de Pesquisa e Pós-Graduação

LEONARDO BIS DOS SANTOS


Coordenador do PPGEH
DILZA CÔCO
Vice-Coordenadora do PPGEH
ILUSTRACOES
As imagens aproveitadas neste material foram retiradas
do acesso público Google. Em respeito a seus autores,
citamos os links para as fontes dos textos ou imagens,
pois nossa finalidade, com essa publicação, é tão
somente educativa.
SOBRE OS AUTORES

Murilo Góes Martins


Possui graduação em Letras - Português pela Universidade
Federal do Espírito Santo e em Gastronomia pela Universidade
Vila Velha. É mestrando no Programa de Pós-Graduação em
Ensino de Humanidades (PPGEH) pelo Instituto Federal do
Espírito Santo (IFES), desde 2019. Integra o grupo de
pesquisadores do Núcleo de Estudos em Literatura e Ensino
(IFES - Campus Vitória). Leciona como professor de Língua
Portuguesa no ensino médio da rede privada de ensino no
Espírito Santo, além de colaborar como redator de projetos
culturais e de desenvolver trabalhos de escrita dramatúrgica e de
direção cênica.

Letícia Queiroz de Carvalho


Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (IFES), com lotação no campus Vitória e atuação
na Área de Letras e Educação, na graduação presencial em Letras-Português, na
graduação a distância em Letras-Português e nos Programas de Pós-Graduação em
Ensino de Humanidades (PPGEH) e Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS),
em disciplinas cuja discussão central seja a Literatura e a Educação, a pesquisa em
Literatura e Ensino e as repercussões da teoria e crítica literária na escola. Doutora em
Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES (2012); Mestre em
Estudos Literários pela UFES (2004) e Licenciada em Letras-Português pela UFES
(1999). Integra o grupo de pesquisadores do Grupo de Pesquisas Culturas, Parcerias e
Educação do Campo (UFES) e Grupo de Estudos Bakhtinianos (GEBAKH - UFES). É
líder do grupo de pesquisas Núcleo de Estudos em Literatura e Ensino (IFES - Campus
Vitória). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, atuando
principalmente nos seguintes temas: literatura e ensino, prática de ensino de língua e
literatura, linguagem, formação de professores, pedagogia social e educação
profissional.

Saiba mais sobre os autores: aponte a câmera


do seu celular para o código QR e tenha
acesso a outras informações.
https://br.depositphotos.com/30557915/stock-illustration-woodcut-illustration-of-cooking-utensils.html

SUMARIO
Apresentação 07

Pitadas de gastronomia e de carnavalização na sala de aula: um


mise en place teórico 08

Sugestões pedagógicas:

1ª Refeição 2ª Refeição 3ª Refeição


Receitas docentes: Cardápio literário: “A gente não quer só
a injunção nos “você tem sede de quê? comida / A gente quer
cadernos de literatura Você tem fome de quê?” comida, diversão e arte”
08 28 42

4ª Refeição 5ª Refeição
“A gente não quer só “A gente não quer só comer
comida / A gente quer / A gente quer comer e quer
saída para qualquer parte” fazer amor”
56 68
Agradecimento aos leitores 81

Referências 82
APRESENTACAO
Este caderno pedagógico nasceu de um percurso investigativo realizado no Mestrado Profissional em
Ensino de Humanidades, do Instituto Federal do Espírito Santo – campus Vitória, a partir de um projeto de
extensão realizado com professores e professoras de Língua Portuguesa da rede municipal de educação
de Vila Velha – ES, de fevereiro a julho de 2020, intitulado DIÁLOGOS DOCENTES: PARCERIA, FORMAÇÃO E PRÁTICA, parte
integrante da pesquisa CONSIDERAÇÕES SOBRE O APETITE LITERÁRIO: PITADAS DE GASTRONOMIA E DE CARNAVALIZAÇÃO NA FORMAÇÃO DE
PROFESSORES DE LÍNGUA PORTUGUESA, realizada no âmbito do PPGEH, do Ifes Vitória.

Os encontros de formação docente, previstos de forma presencial, foram substituídos no contexto da


grave crise sanitária pela qual passamos – em virtude da pandemia da Covid-19 – por atividades e
interações remotas, a partir das quais as vozes docentes foram ouvidas e potencializadas na elaboração
das atividades pedagógicas aqui propostas.
A partir do pressuposto de que os saberes da gastronomia podem promover produtivo contato com a
concepção da carnavalização da linguagem literária – proposta por Mikhail Bakhtin e o Círculo – buscamos
potencializar debates e diálogos no processo de formação docente, estimulando a leitura crítica de textos
literários como prática em encontros formativos da área de Letras, a partir desse projeto de extensão.
Em meio aos encontros formativos e ao cotejamento dos nossos referenciais teórico-metodológicos,
afloraram saberes docentes desses professores participantes, os quais poderão agregar elementos para
uma postura revisionária do ensino de língua e literatura na escola básica, observando-se as
peculiaridades da linguagem gastronômica, da arquitetônica bakhtiniana e da voz docente que permearam
as nossas interações e propostas práticas.
Sistematizamos, então, neste caderno, os nossos encontros, bem como todo o caminho
metodológico-didático que permeou a realização de atividades propositivas para pensarmos o ensino de
língua e literatura um pouco mais libertador e alinhado às questões do nosso tempo, tão presentes no
universo de alunos e professores, no entanto ainda tão distantes do cotidiano das salas de aula.
Que você, leitor, possa se deliciar com as nossas refeições literário-pedagógicas e contribuir com o seu
tempero autoral para se aproximar dos textos literários e das práticas de leitura de modo a potencializar
o destronamento de currículos, orientações e posturas ainda tão rígidas que se presentificam em nossas
escolas.
Boa leitura!
Os autores

07
PITADAS DE GASTRONOMIA E DE CARNAVALIZACAO NA SALA DE AULA:
UM MISE EN PLACE TEORICO

Verdade seja dita: a cozinha sempre nos aproximou de valiosos registros – fosse pelo resgate a receitas
típicas de família ou por importantes momentos da vida celebrados à mesa. Com a fome de quem digeria
Ariano Suassuna ao mesmo tempo que devorava Jorge Amado, as delícias produzidas por Dona Flor, por
exemplo, excitavam-me¹ de uma curiosidade que me fazia ir para a cozinha na tentativa de reproduzi-las;
com o apetite calmo, a leitura normalmente seguia fluente e ainda registrava ótimas memórias da
experiência. Há anos, os diferentes sabores representados pelas leituras pululavam no inconsciente e, aos
poucos, foram me direcionando para uma curiosa relação da literatura com o forno e o fogão.
Contudo, encerrar o expediente de professor de português para ir às aulas de História da Alimentação e
Sociologia da Alimentação, em 2016, foi o que realmente fez ressurgir, em mim, um novo encantamento em
estudos. Rituais, histórias, valores simbólicos e identidade tornaram-se os elementos que me projetavam
maior respeito e admiração pela comida e as interações que ela proporciona. Nesse instante, passei a
realmente ler a alimentação no texto literário com olhares mais gulosos.
Os simbolismos da alimentação me motivavam a estimular textos que a eles se relacionassem aos meus
alunos do ensino médio. Iniciei atividades de sensibilização à literatura brasileira por meio de referências
alimentares presentes em algumas obras e o resultado foi surpreendente: os alunos devoraram os livros.
Por isso, algumas questões relacionadas ao ensino de literatura por meio de referências da alimentação
passaram a aparecer de modo recorrente em minhas práticas: Pode a “temática alimentar“ realmente
contribuir com o estímulo à literatura? Como utilizar os valores culturais da alimentação para o incentivo
a leituras críticas? Como os saberes da alimentação podem estruturar categorias temáticas para a
sensibilização de leituras críticas?
Essa inquietação quanto à possibilidade de desenvolver, sistematizar e validar uma metodologia diferente
no ensino de literatura e no estímulo a leituras críticas incentivou a minha candidatura no Programa de
Pós-Graduação em Ensino de Humanidades (PPGEH) do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), em 2018.
A escolha em ingressar em um Mestrado Profissional estabeleceu-se pela oportunidade de elaborar uma
pesquisa que dialogasse com minhas experiências em sala de aula para consolidar o real interesse em
desenvolver dinâmicas pedagógicas que potencializem o objeto de estudo em questão: a relação entre a
gastronomia e seus saberes com os textos literários.

1. Nesse incío de exposição, eu, Murilo, tomo a liberdade de referenciar experiências as particulares que posteriormente

08
se juntaram às visões da querida professora Letícia, com quem divido a autoria desse material.
SELECAO DE INGREDIENTES
Os estudos sobre a comida e a alimentação alcançam interesse nas Ciências Humanas exatamente a
partir do entendimento de que a formação do gosto alimentar constitui uma categoria histórica, pois os
padrões de permanência e mudanças dos hábitos e práticas alimentares têm referências na própria
dinâmica social. Enquanto alimentar-se é um ato nutricional, comer, tal como ler, é um ato social, pois, em
sua politização, constitui atitudes ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações. Para
Benemann (2017), a comida desvela processos de socialização como a comensalidade e questões
pertinentes à criação e manutenção da tradição e da identidade; estabelece, ainda, aproximações e
distanciamentos culturais, classificações e simbolismos que transcendem a dimensão puramente biológica.
A comida como um material flexível e, de certa forma, reconhecido entre distintos grupos, proporcionou
aberturas para pensar como é se movimentar entre conceitos que nem sempre oferecem fronteiras
evidentes. Etnia, reconhecimento, exclusão, distinção, classe, geração, gênero etc. estão presentes na
comida. Na mesma medida em que ela estabelece marcadores de diferença, também é capaz de construir
identidades: a comida evoca ainda emoção, memória, tradição e história. Desse modo, como se come, onde
e com quem, quando e o que se come configuram espaços de interação do homem com sua cultura, ora com
mais força, ora com menos, mas que se alternam para constituir o comer e a cozinha.

EQUIPE DE COZINHA
Jean Anthelme Brillat-Savarin² foi um dos mais famosos epicuristas franceses de todos os tempos. Sua
obra A FISIOLOGIA DO GOSTO, publicada em 1825, trata do homem e da comida e se constitui como umas das
primeiras publicações formais de gastronomia; nela, o autor apresenta a seguinte definição: A
gastronomia é o conhecimento fundamentado de tudo o que se refere ao homem, na medida em que ele se
alimenta. Para Savarin, portanto, a gastronomia seria a vertente fenomenológica, simbólica e cultural da
alimentação humana.

VOCE SABIA?
O léxico gastronomia deriva do vocábulo grego gaster, que
significa ventre ou estômago; nomo, para designar lei ou estudo;
finalizando com o sufixo ia, para a formação do substantivo.
Portanto, gastronomia significa, etimologicamente, estudo ou
observância das leis do estômago.

2. Formado em Direito, atuou também como político e cozinheiro na França. Publicou A Fisiologia

09
do Gosto dois meses antes de seu falecimento, em 1826, obra em que propõe uma teoria
científica para a gastronomia.
A gastronomia é um fator cultural tão evidentemente arraigado no ser humano que, segundo Massimo
Montanari (2009), ela pode ser comparada à própria linguagem, servindo até mesmo como veículo de
comunicação:
A cozinha tem sido equiparada à linguagem: como esta, possui vocábulos (os produtos, os
ingredientes), que são organizados segundo regras de gramática (as receitas, que dão
sentindo aos ingredientes, transformando-os em alimentos), de sintaxe (o cardápio, isto é,
a ordem dos pratos) e de retórica (os comportamentos do convívio). A analogia não
funciona apenas no plano técnico-estrutural, mas também para valores simbólicos dos
quais ambos os sistemas são portadores. Exatamente como a linguagem, a cozinha contém
e expressa a cultura de quem a pratica, é depositária das tradições e das identidades de
grupo. Constitui, assim, um extraordinário veículo de autorrepresentação e de comunicação:
não apenas é instrumento de identidade cultural, mas talvez seja o primeiro modo para
entrar em contato com culturas diversas, já que consumir o alimento alheio parece mais
fácil – mesmo que apenas na aparência – do que decodificar-lhe a língua. Bem mais do que
a palavra, a comida auxilia na intermediação entre culturas diferentes, abrindo sistemas
culinários a todas as formas de invenções, cruzamentos e contaminações. (MONTANARI,
2009, p. 11)
Assim, além de um sistema simbólico cultural de representação e de construção identitária, a cozinha traz
também valores manifestados pela expressão do sensível; expõe, nas entrelinhas, uma comunicação
sensorial e afetiva.

EQUIPE DE SERVICO
O pensador francês Roland Barthes³, em sua obra Aula explica que a literatura deve ser entendida como
disciplina que, por seus múltiplos olhares, envolve uma diversidade de saberes e de áreas do conhecimento:
“[...] essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder,
no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura.”
(BARTHES, 1992, p.08)“. Defensor da interdisciplinaridade, Barthes acredita que o texto e, em particular,
o texto literário, manifesta a energia sígnica, resultante de uma pesquisa interdisciplinar. A
interdisciplinaridade questiona a pureza do saber único e absoluto; assim, agir interdisciplinarmente
significa estudar os saberes de forma humana. Na prática, a perspectiva interdisciplinar representa uma
possibilidade de negociação de pontos de vista, de diálogo e de interação entre disciplinas.
Por meio dessa lógica é que no mesmo texto Barthes aponta para o fato de as palavras “saber“ e “sabor“
terem, em latim, a mesma etimologia, pois é o gosto das palavras que faz o saber profundo e fecundo. Com
esse raciocínio, Barthes sugere que a escritura se encontra em toda parte onde as palavras ganham
sabor. Assim, todo o texto barthesiano pode ser corpus de uma leitura sob o signo da intertextualidade,
na medida em que o semiólogo articula saberes em torno do desejo do saber-sabor, sem dicotomia de
fronteiras.

3. Roland Barthes (1915—1980) foi um escritor, sociólogo, crítico literário, semiólogo e filósofo francês. Formado em

10
Letras Clássicas, em Gramática e em Filosofia, fez parte da escola estruturalista, influenciado pelo linguista Ferdinand de
Saussure.
Na medida em que comer é culturalmente um símbolo que remete ao hedonismo, produzir sentidos a partir
de signos alimentares em textos literários também pode ser uma prática prazerosa, além de crítica.
Nesse sentido, acreditamos numa prática docente que possa incentivar leituras prazerosas,
interdisciplinares e dialógicas de textos literários a partir da valorização e de uma observação atenta
quanto aos ícones de comida nele manifestados. Ao estabelecer esse comportamento, o professor
dota-se de outra natureza intrinsecamente humana: a de ruptura racional de uma ordem
pré-estabelecida. Com isso, aproximamo-nos do conceito de carnavalização, nossa estimada matriz
teórica para fundamentar uma nova perspectiva de atuação docente.

O GRANDE CONVIVA
A “carnavalização“ é um conceito de Mikhail Mikhailovich Bakhtin estruturado, primeiramente, no livro
Problemas na Poética de Dostoiévski. Contudo, será na obra A CULTURA POPULAR NA IDADE MÉDIA E NO RENASCIMENTO: O
CONTEXTO DE FRANÇOIS RABELAIS que o filósofo russo aprofundará o conceito a partir da análise das principais
obras literárias do renascentista François Rabelais. Para Bakhtin, o carnaval constituía um conjunto de
manifestações da cultura popular medieval e do Renascimento e um princípio, coeso e coerente, de
compreensão de mundo.

VOCE SABIA?

Mikhail Mikhailovich Bakhtin foi um


filósofo e pensador russo, teórico
da cultura europeia e das artes
também no século XX. As
reflexões bakhtinianas sobre a
linguagem e suas infinitas
possibilidades privilegiaram o
romance como objeto de estudo, especialmente a prosa do autor
russo Fiodor Dostoiévski (1821-1881).
O exame dos discursos no romance possibilitou ao pensador
percorrer também os caminhos da análise das práticas de
linguagem no dia a dia. Pensar a capacidade de imaginação
narrativa, as relações dialógicas, o sentimento de empatia na
constituição da consciência de si, remete à interferência dos
processos educativos sobre o desenvolvimento destas
capacidades.

11
O carnaval, propriamente dito, não é, evidentemente, um fenômeno literário, mas um espetáculo
ritualístico que funde ações e gestos elaborando uma linguagem própria. Embora no século XXI ainda seja
muito explorado pelos estudos da crítica literária, o conceito de carnavalização não se popularizou em
outras aplicações sociais, entre as quais buscamos recortar uma compreensão mais ampla de como a
carnavalização pode ajudar em busca de um ensino mais prazeroso de literatura.
Conforme Bakhtin (2008) o que se abolia, principalmente, durante o carnaval, era a hierarquia. Leis,
proibições e restrições, padrões determinantes do sistema e da ordem cotidiana são suspensas durante
o carnaval: revoga-se antes de tudo o sistema hierárquico e todas as formas determinadas pela
desigualdade social hierárquica e por qualquer outra espécie de desigualdade entre os homens.
O carnaval perpassa a esfera artística do espetáculo teatral e situa-se nas fronteiras entre a arte e a
vida. O espetáculo carnavalesco, enquanto cultura popular, derruba as barreiras hierárquicas, sociais e
ideológicas. Para o homem medieval, carnaval não era uma forma artística de espetáculo teatral, mas uma
forma concreta - ainda que provisória - da própria vida, que não era simplesmente representada no
palco, mas vivida enquanto durava o carnaval.
Pela ideia de carnavalização, pois, entenderemos alguns princípios fundamentais, como: 1) a
carnavalização do corpo (ou o realismo grotesco); 2) o uso da máscara (ou a confusão e dissolução das
identidades pessoais e sociais) e 3) a relativização da verdade e do poder dominantes (ou o destronamento
do rei).
A representação carnavalesca do corpo, a que Bakhtin enuncia de “realismo grotesco“, é centrada nas
imagens deformadas e exageradas do "baixo corporal": a boca, a barriga, os órgãos genitais. Trata-se de
um corpo em processo natural e constante de mudança, em uma permanente relação com as dinâmicas da
natureza, representadas nos atos de comer, defecar, urinar, copular, parir, entre outros. Muito da
tradição de elaborações caricaturais radica, nas imagens grotescas, o corpo carnavalizado; o grotesco
rebaixa e degrada o sublime, o abstrato, o ideal, transferindo para o plano material e corporal aspectos
elevados.
O uso da máscara simboliza uma das características mais marcantes do carnaval: a
confusão e a dissolução das identidades pessoais e sociais. Mascarar-se pode representar,
metaforicamente, o triunfo da alteridade durante aquele tempo convencionalmente reservado à
transgressão. Nos rituais carnavalescos, o mascaramento é um ato característico da inversão de valores,
uma vez que ao despir-se da real identidade por meio da máscara, escancara-se a relativização do regime
hierárquico, instaura-se a liberdade e elimina-se a distância entre as pessoas.
A relativização da verdade e do poder dominantes constitui um dos sentidos mais profundos do riso
carnavalesco. O riso significava libertação dos padrões sérios e oficiais: ao ridicularizar tudo o que se
afasta de uma condição definitiva, o carnaval celebra a mudança e a renovação do mundo. O riso liberta de
tudo que oprime, sobretudo, o medo limitador, já que não impõe nenhuma interdição, nenhuma restrição
aos objetos a que se destina.

12
Todas as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo da alternância e da
mudança, da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades do poder. Compreender o
conceito de carnavalização, assim, é imprescindível para o entendimento de que a carnavalização da
literatura é materializada na transposição da linguagem carnavalesca para a linguagem literária.

Ao analisar essas categorias teóricas no contexto de produção e de comportamento docentes, torna-se


viável prospectar uma ruptura para o ensino de estrutura tradicional; o professor, ciente da realidade em
que se insere no que tange aos valores de cultura popular, dissolve normativas padrões, a fim de
estabelecer uma verdadeira formação crítica de leitores do mundo e das palavras. A carnavalização do
comportamento docente permite-nos, pois, repensar currículos e práticas pedagógicas de modo a
articular a valorização e a tematização contextualizada das culturas populares no âmbito da educação
formal.
Estabelecer essa postura carnavalizada, pois, permite-se maior dialogismo e alteridade nas práticas
educativas, uma vez que os discentes e/ou os docentes terão vozes e vontades manifestadas em seus
próprios discursos. Só assim pode-se apreender como a carnavalização possibilita mudanças necessárias
de paradigmas para uma educação mais festiva e prazerosa. Valorizar o estudo de textos literários que
dialoguem ou, minimamente, referenciem o ato alimentar, é uma válida alternativa para estabelecer práxis
docentes próximas ao conceito bakhtiniano de carnavalização.

13
PARA SABER MAIS
Bakhtin e o Círculo
Bakhtin foi um dos mais destacados pensadores de uma rede de profissionais preocupados com as formas
de estudar linguagem, literatura e arte, o que incluía o linguista Valentin Voloshinov (1895-1936) e o
teórico literário Pavel Medvedev (1891-1938). Utiliza-se a expressão Círculo de Bakhtin, pois, para
referir-se às formulações produzidas pela reflexão de um grupo de diversos intelectuais.
Um dos aspectos mais inovadores da produção do Círculo de Bakhtin foi enxergar a linguagem como um
constante processo de interação mediado pelo diálogo - e não apenas como um sistema autônomo. Esses
estudiosos dialogaram com as principais correntes de pensamento de seu tempo. Na Rússia da década de
1920, tinham destaque as teorias de Karl Marx (1818-1883), das quais o Círculo aproveitou a noção
fundamental da vida vivida como origem da formação da consciência.
Vale a pena também conhecer os estudos de pesquisadores do círculo!

14
Sugestões
pedagógicas:
1ª REFEIÇÃO

Receitas docentes: a injuncao nos cadernos de literatura

Objetivo:
Dialogar sobre práticas docentes para a leitura de textos literários, além de
problematizar as fórmulas injuntivas e acríticas no acesso às obras
literárias.

16
1ª REFEIÇÃO

Aperitivo
Pensar a leitura crítica de literatura requer que estejamos disponíveis para experimentar novos
sabores produzidos pelos textos. Em prol de despertar o apetite literário dos alunos, é possível
que o professor tenha, primeiro, que lhes oferecer aperitivos. Ocasiões tradicionais admitem
comidas típicas. Novas ocasiões, contudo, trazem novas expectativas e, assim, novas comidas
potencializam também diferentes experiências. Eis, aí, uma grande questão: para que a lógica
seja correspondida, é preciso ter um repertório apurado e atualizado de receitas. Insistir em
injunções que não resultam em resultados apetitosos pode ser fatalmente indigesto. Na tarefa
de produzir incentivo a leituras críticas, os textos literários potencializam novos processos ao
trabalho e à preparação docente. Vamos trocar receitas?

Couvert
Deguste nossas primeiras provocações!
Pode um único sabor agradar a todos em uma refeição? Existe receita de atuação docente aberta
a adaptações a fim de que todos apreciem o resultado?

Entrada
Comece a se alimentar com nossa seleção de ideias!

VOCE SABIA?
Rubem Azevedo Alves (1933–2014) foi um
psicanalista, educador, teólogo e escritor
brasileiro. É considerado um dos principais
pedagogos da história moderna do Brasil e,
junto com Paulo Freire, um dos fundadores da
Teologia da Libertação. Atuou, por décadas,
como professor da Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP). Em muitos de seus textos
– tanto acadêmicos quanto literários –, "ensinar" é descrito por Alves como um ato de
alegria, um ofício que deve ser exercido com paixão e arte.

17
1ª REFEIÇÃO

O PRAZER DE LER
Rubem Alves
(fragmentos)

Ler pode ser uma fonte de alegria. “Pode ser“. Nem sempre é. Livros são iguais a comida. Há os
pratos refinados (…) e há as gororobas, malcozidas, empelotadas, salgadas, engorduradas, que
além de produzir vômito e diarreias no corpo produzem perturbações semelhantes na alma.
Assim também os livros. (…)

Contra os professores de literatura que gostam de ser durões e argumentam que há muito livro
duro de roer (a própria expressão está dizendo: nem é de comer; é de roer; objeto apropriado à
dieta de ratos e castores) eu cito Borges“ (…): 'Não é preciso bibliografia. Afinal Shakespeare
desconhecia completamente a bibliografia shakespeariana. (…) Por que vocês não estudam
diretamente os textos? Se tais textos lhes agradam, ótimo. Caso contrário, não continuem, pois
a leitura obrigatória é uma coisa tão absurda quanto falar em felicidade obrigatória'.

Quando minha filha começou a fazer suas primeiras incursões no campo da literatura
adulta(…)ela teve de ler, como tarefa de casa, o livro de Stendhal O vermelho e o negro (1830).
Trata-se de um desses livros duro de roer, tradução do francês, que provocou as mais variadas
convulsões estomacais-cerebrais não só em minha filha como também em seus colegas de classe
(…) obrigados a comer à força aquela terrível refeição de jiló cozido e nabo cru. Escrevi para o
jovem professor (os professores jovens são terríveis; eles ainda não se desembaraçaram do
cipoal de teorias aprendidas na universidade, têm sempre muita coisa a provar, e acreditam
demais no que pensam saber) falando do meu amor à literatura, de meu desejo de que minha filha
aprendesse o prazer da leitura, citei Borges e sugeri que havia uma infinidade de outros livros
que seriam de paladar delicioso aos adolescentes(…). Ele me respondeu, imperturbável, que seu
objetivo era desenvolver uma consciência crítica e que os alunos teriam mesmo de mastigar,
engolir e digerir o jiló cozido e o nabo cru. E assim foi. Percebi que ele era professor. Traduzido
em nossa linguagem gastronômica: ele não era um cozinheiro; era um dieticista. É preciso que se
saiba que cozinheiros e dieticistas, embora ambos envolvidos em cozinhas, são inimigos radicais.
(…) Os dieticistas estão interessados em alimentar de maneira científica aqueles que comem.
(…) Sua presença é indispensável em hospitais, e ali se encontram como auxiliares dos médicos
e enfermeiras. Os cozinheiros, ao contrário, não estão interessados em alimentar. Estão
interessados em produzir prazer e felicidades. (…) A culinária é o kama-sutra da boca (…)
cozinheiros são auxiliares dos amantes. A comida que sai das mãos do dieticista é uma coisa de
necessidade. A comida que sai das mãos do cozinheiro é uma coisa de amor. Ele era um professor
de literatura. Não era um escritor.

18
1ª REFEIÇÃO

(…) Um escritor não escreve para comunicar saberes. Escreve para comunicar sabores. O
escritor escreve para que o leitor tenha o prazer da leitura. O texto tem que me dar provas de
que me deseja, dizia Barthes. O texto me deseja? Coisa gastronômica: o prato tem de ser uma
provocação do desejo. A prova de que o texto me deseja está no prazer que ele produz em mim.
Quando sou forçado a interromper a leitura, fico triste. Essa é a prova do prazer que o texto me
causa. Que professor se atreveria a perguntar, numa prova: ‘Você fica triste quando para de
ler o livro?’

É possível, nas escolas, dar informações sobre a literatura. Mas não é possível ensinar a
amá-la.(…) São raros, raríssimos, aqueles que pelo estudo escolar (…) tenham sido levados a
amar a leitura. A razão para isso é simples: tudo, em nossas escolas, está orientado no sentido
de testar saberes. A questão do amor pelo objeto (…) é estranha aos nossos objetivos
educacionais. Não admira que, passados os vestibulares, quase tudo seja esquecido e os livros
sejam esquecidos nas estantes. Às escolas e aos pais pouco importa o prazer que o aluno possa
ter. O que importa é o boletim.

Ler pode ser uma fonte de alegria. Por isso mesmo tenho dó das crianças e dos adolescentes que,
depois de muito sofrer nas aulas de gramática, análise sintática e escolas literárias, saem das
escolas sem ter sido iniciados nos polimórficos gozos da leitura. É como se lhes faltassem órgãos
de prazer. São castrados. (…) Sabem ler mas são analfabetos. Porque, como dizia Mário
Quintana, “[...] analfabeto é precisamente aquele que, sabendo ler, não lê.“

ALVES, Rubem. O prazer de ler. In: Entre a ciência e a sapiência: o dilema da educação. São Paulo: Ed. Loyola, 2012.

19
1ª REFEIÇÃO

Prato Principal
Alimente sua saciedade!

VOCE SABIA?
Nascida Chaya Pinkhasovna Lispector,
Clarice Lispector (1920 —1977) foi uma escritora e jornalista
ucraniana naturalizada brasileira. Autora de romances, contos e
ensaios, é considerada uma das escritoras brasileiras mais
importantes do século XX. Sua obra está repleta de cenas
cotidianas simples e tramas psicológicas, reputando-se como
uma de suas principais características a epifania de
personagens comuns em momentos do cotidiano.

A REPARTIÇÃO DOS PÃES


Clarice Lispector

Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava
demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara
com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem tivesse
descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eu não
queria a ninguém. Quanto a meu sábado – que fora da janela se balançava em acácias e sombras
– eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-lo na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À
espera do almoço, bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo.

Não é com você que eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamos devagar a fumaça do
cigarro seco. A avareza de não repartir o sábado ia pouco a pouco roendo e avançando como
ferrugem, até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior.

20
1ª REFEIÇÃO

Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa quinta de noite. Ela, no
entanto, cujo coração já conhecera outros sábados. Como pudera esquecer que se quer mais e
mais? Não se impacientava sequer com o grupo heterogêneo, sonhador e resignado que na sua
casa só esperava como pela hora do primeiro trem partir, qualquer trem – menos ficar naquela
estação vazia, menos ter que refrear o cavalo que correria de coração batendo para outros,
outros cavalos.

Passamos afinal à sala para um almoço que não tinha a bênção da fome. E foi quando
surpreendidos deparamos com a mesa. Não podia ser para nós.

Era uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado e que não
viera? Mas éramos nós mesmos. Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E
lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos.

A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas
de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele quase
estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas
alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros
sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos – tudo
emaranhado em barbas e barbas úmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos de
uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo instante de serem esmagadas.
E não lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar,
para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a língua de quem primeiro
chegasse. Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera –
mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar – um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes
ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela
acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse
atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão pisado,
estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. Tudo
como é, não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as
montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado.

Assim como apenas existe. Existe.

21
1ª REFEIÇÃO

Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem nenhum sonho. E nós
pouco a pouco a par do dia, pouco a pouco anonimizados, crescendo, maiores, à altura da vida
possível. Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.

Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós queríamos comê-lo.

Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir.
Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando
a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos com fome, fome inteira que abrigava
o todo e as migalhas. Quem bebia vinho, com os olhos tomava conta do leite. Quem lento bebeu o
leite, sentiu o vinho que o outro bebia. Lá fora Deus nas acácias. Que existiam.

Comíamos. Como quem dá água ao cavalo. A carne trinchada foi distribuída. A cordialidade era
rude e rural. Ninguém falou mal de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião
de colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente
a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e
come. Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu
nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come
e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem
a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia
aquela comida. Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a
minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida porque a existência já existe.
Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor.Sem uma palavra. Mas
teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos. Pão é amor entre estranhos.

LISPECTOR, Clarice. A repartição dos pães. In: A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

22
1ª REFEIÇÃO

Bebida
Aprecie sem moderação!

VOCE SABIA?
Massimo Montanari (1949) é professor
de história econômica medieval e
história da alimentação na
Universidade de Bolonha. Seu interesse
pelo assunto deriva de suas pesquisas e
estudos em História Agrária Medieval.
Seu livro “Comida como cultura“ é um
compacto de reflexões acerca dos
principais temas em debate nos estudos
sócio-históricos sobre a alimentação.
Nessa obra, o autor defende que a alimentação torna-se prática cultural em todo o
percurso da comida até a boca do homem: quando produzida, porque não comemos apenas
o que encontramos na natureza, mas também criamos nosso próprio alimento; quando
preparada, já que este processo criativo implica uma transformação dos produtos-base
da alimentação, mediante técnicas elaboradas que expressam as práticas da cozinha; e
quando consumida, uma vez que selecionamos o que comer, mesmo podendo comer de tudo,
com base nos mais variados critérios (econômicos, religiosos, nutricionais, etc.).

O GOSTO É UM PRODUTO CULTURAL


Massimo Montanari
(fragmentos)
A comida não é “boa“ ou “ruim“ por si só: alguém nos ensinou a reconhecê-la como tal. O órgão
do gosto não é a língua, mas o cérebro, um órgão culturalmente (e, por isso, historicamente)
determinado, por meio do qual se aprendem e transmitem critérios de valoração. Por isso, esses

23
1ª REFEIÇÃO

critérios são variáveis no espaço e no tempo: o que em determinada época é julgado


positivamente, em outra pode mudar de caráter; o que em um lugar é considerado guloseima, em
outro pode ser rejeitado como repugnante. A definição do gosto faz parte do patrimônio cultural
das sociedades humanas. Assim como há gostos e predileções diversos em diferentes povos e
regiões do mundo, assim os gostos e as predileções mudam no decorrer dos séculos. Mas como
se pode presumir o conhecimento do “gosto“ alimentar de épocas distantes da nossa?
A indagação remete, na realidade, a duas acepções distintas do termo “gosto“. Uma é aquela do
“gosto“ entendido como sabor, como sensação individual da língua e do palato: experiência, por
definição, subjetiva, fugaz, incomunicável. Sob esse ponto de vista, a experiência “histórica“
está irremediavelmente perdida. Mas o “gosto“ também é saber, é avaliação sensorial do que é
bom ou ruim, do que agrada ou desagrada: e essa avaliação, como dissemos, vem do cérebro antes
que da língua. Sob esse ponto de vista, o gosto não é de fato uma realidade subjetiva e
incomunicável, mas coletiva e comunicada. É uma experiência de cultura que nos é transmitida
desde o nascimento, juntamente com outras variáveis que contribuem para definir os “valores“
de uma sociedade. Jean-Louis Flandrin cunhou a expressão “estruturas do gosto“ justamente
para sublinhar o caráter coletivo e compartilhado de tal experiência, E é claro que essa segunda
dimensão do problema, que não coincide com a primeira, mas em larga medida a condiciona,
também pode ser investigada historicamente, examinando as memórias, os achados
arqueológicos, os traços que toda sociedade do passado deixou atrás de si.

MONTANARI, Massimo. O gosto é um produto cultural. In: Comida como cultura. São Paulo: Senac São Paulo, 2013.

No decurso das transformações culturais relacionadas à alimentação, os cadernos de receita figuram como
“achado arqueológico“ ou memória de uma sociedade. Observar esses materiais permite-nos compreender
as mudanças de padrões na formação do “gosto“ social em diferentes momentos históricos – além de
potencializar uma avaliação das influências diretas sob o “fazer“ comida, prática intrinsecamente associada
à condição humana. Com base nessas compreensões, sugerimos uma dinâmica de sensibilização sobre as
variações do “gosto“, a partir dos cadernos de receita disponíveis em casa.

24
1ª REFEIÇÃO

Em contato com o material, selecionem, em grupos, 4 composições de receita para análise


dialogada dos seguintes aspectos:

• Que características particulares uma receita apresenta em relação a outra?


• As preparações culinárias determinadas pelas receitas são consideradas elementos de
representação cultural? Por quê?
• É possível identificar/reconhecer a data de elaboração dessas receitas? Alguma característica
delas é mais específica de suas épocas ou os valores observados são de natureza atemporal?
• Há alguma referência que particulariza as receitas pela exposição de linguagem?

Harmonização
DIALOGUE SOBRE SUAS COMBINAÇÕES!
1) Que receitas são sistematicamente impostas sobre a leitura de textos literários em contexto
escolar – via práticas tradicionais, materiais didáticos e afins?
2) Que práticas têm despertado o interesse social pelos simbolismos associados à comida? De
que modo essas práticas poderiam ser aplicadas ao ensino de literatura ou à leitura de textos
literários?

Sobremesa
ADOCE SUAS CONVICÇÕES!

“Marmelada de banana, bananada de goiaba, goiabada de marmelo“. O verso que subverte a


compreensão de receitas clássicas da doçaria nacional e inicia a canção de Gilberto Gil para a
versão televisiva da obra - livremente inspirada em narrativas de Monteiro Lobato - “O Sítio do
Pica-Pau Amarelo“ é um símbolo da cultura nacional que identifica e assimila sua produção
literária infantil ao longo de diversas gerações. Tanto as composições escritas quanto as
versões audiovisuais evidenciam curiosa relação entre personagens, enredos e simbolismos da
alimentação. Quindim, por exemplo, é - além do nome de um tradicional doce da cultura

25
1ª REFEIÇÃO

portuguesa (muito consumido em terras brasileiras) - o rinoceronte-personagem adotado pelos


habitantes do sítio, após fugir de um circo onde sofria extremos maus tratos. Visconde de
Sabugosa é o nome dado ao boneco feito de sabugo de milho, cuja sabedoria intelectual obteve
através dos livros observados na biblioteca de Dona Benta. Falando nela, é válido destacar um
aspecto que criou uma visão social curiosa a seu respeito no imaginário popular: nas narrativas
que permeiam o Sítio, deliciosas preparações são elaboradas na cozinha da anciã; quase
nenhuma, entretanto, é por ela produzida. Embora o trabalho de cozinhar no sítio seja
majoritariamente exercido pela negra conhecida como Tia Nastácia, Dona Benta é que
conquistou a referência dos saberes formais relacionados à culinária – vide exploração pelo
mercado editorial em livros de receita e, posteriormente, produtos da indústria alimentícia.
Que valores socioculturais são passíveis de estudo a partir dessa constatação – e outras
admissíveis - em práticas de leitura crítica do texto literário? Como o professor pode
desenvolver sua atuação a partir da análise desses símbolos, a fim de despertar o interesse de
leitores em fase escolar? Que novas dinâmicas de aula podem formular boas receitas para o
trabalho com textos literários em sala de aula?

Aceita um café?
PARA CONTRIBUIR COM A DIGESTÃO DE IDEIAS,SUGESTÃO DE LEITURA COMPLEMENTAR!

À Mesa com Monteiro Lobato


(de Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta; Editora Senac, 2008)

Márcia Camargos e Vladimir Sacchetta são renomados


pesquisadores lobatinos e, para esta publicação,
contaram com consultoria especializada na culinária
do Vale do Paraíba, a terra natal de Lobato, ora em
relação à culinária brasileira, que bem se revela quer
polêmicas ideológicas travadas com os modernistas
da Semana de 22, quer em hábitos alimentares de sua
mesa, no dia-a-dia, ou de seus personagens, na sua
ficção.

26
1ª REFEIÇÃO

Livro de receitas do professor de


português: atividades para a sala de aula
(de Carla Viana Coscarelli; Editora Autêntica, 2007)

Do mesmo jeito que a gente consulta um livro de


receitas quando quer fazer um prato novo ou "mudar
o tempero", o intuito desse livro é dar ao professor
algumas receitas testadas e aprovadas para que ele
consiga, mais facilmente, alcançar novas práticas
para as aulas de língua portuguesa. No material, são
servidos alguns pratos saborosos que podem
funcionar de inspiração para muitos outros!

Como água para chocolate


(de Alfonso Arau, 1992)

Do mesmo jeito que a gente consulta um livro de


receitas quando quer fazer um prato novo ou "mudar
o tempero", o intuito desse livro é dar ao professor
algumas receitas testadas e aprovadas para que ele
consiga, mais facilmente, alcançar novas práticas
para as aulas de língua portuguesa. No material, são
servidos alguns pratos saborosos que podem
funcionar de inspiração para muitos outros!

27
2ª REFEIÇÃO

Cardapio literario: ”voce tem sede de que? Voce tem fome de que?”

Objetivo:
Dialogar sobre a formação do gosto na leitura de textos literários e os
impactos dessas preferências no desempenho docente.

28
2ª REFEIÇÃO

Aperitivo
Trocar receitas, como já vimos, pode ser uma potente dinâmica para acesso a novas
experiências. Há que se considerar, contudo, que receitas são, pelos cozinheiros,
constantemente adaptadas em prol de favorecer uma aproximação aos sabores já identificados
por seu paladar - o que fatalmente potencializará uma melhor digestão. Ao longo de uma
sequência de refeições, passamos a priorizar determinados cardápios em função daquilo que nos
parece mais palatável. O apetite literário segue uma lógica similar: acreditamos ter fome de
certos estilos e tipologias e em muito bebemos na mesma fonte de dados autores. Na sala de aula,
contudo, dividimos esse instante de refeição com uma dezena de alunos que eventualmente
possuem suas experiências de cardápio. Nesse contexto, pode sempre haver aqueles que não se
abrem à experimentação dos novos pratos propostos ou ainda os que jamais aparentam ter
apetite; ninguém, contudo, resiste à curiosidade de um prato que seja bem apresentado já pelo
menu da aula. Por isso, é possível que tenhamos, antes de avaliar a receita, que discutir o
cardápio com os demais que estarão conosco à mesa. Que tal pensarmos juntos no prato do dia?

Couvert
Deguste nossas primeiras provocações!
Em nossa dinâmica docente, estamos dispostos a observar um cardápio e nos deixar encantar
por novas descobertas ou optamos pelo prato da casa (ou ainda pelo tradicionalíssimo Prato
Feito)?

Entrada
Comece a se alimentar com nossa seleção de ideias!

VOCE SABIA?
Nascida em Minas Gerais, Nina Horta estudou pedagogia
na Faculdade de Educação da USP. Nina escreveu sobre
gastronomia no jornal Folha de São Paulo de 1987 a 2019.
Escritora e empresária, ganhou o prêmio Jabuti de
Gastronomia em 2016 com o livro "O Frango Ensopado
da Minha Mãe" (Companhia das Letras), que reúne
algumas de suas crônicas. Faleceu em outubro de 2019.

29
2ª REFEIÇÃO

GOSTOS FORMAM TURMAS, E QUEREMOS COMER O QUE


QUEREMOS SER
Nina Horta

É muito difícil entender essa coisa de gosto. Uma vida inteira tratando do assunto e sem
resposta se me perguntarem o motivo de alguém gostar de abobrinha ou couve-de-bruxelas.
Por causa da infância? Da moldura? Do lugar, do tempo, daquele cheiro de maçã e leite em pó da
casa de uma avó e de doce de cidra, queijo fresco e madeira do armário na casa da outra. As
comidas novas, as diferentes, a vida brotando, um carinho difuso te envolvendo, uma inocência
pré-internet.

E o tempo passa e a empadinha passa, passa o tender com abacaxi, o camarão na abóbora, o
estrogonofe passa, o sushi não passa, o sorvete frito passa rápido, o carpaccio, o tomate seco,
as flores, os brotos, as espumas, o único tomate, a horta no mezanino, a paisagem no prato, as
cinzas, o queimado, Bocuse, o Ferran Adrià, quem diria.

Grandes mesas de banquete, javalis, Carême (1784-1833), Escoffier (1846-1935), serviço à


russa, à inglesa, à francesa, com toalha ou sem toalha, o prato enorme octavado, a tigela, o coco,
a concha do abalone, a cerâmica torta. Passam. Rendas, crivos, ponto cruz, ráfia, plástico, jogo
americano Vera Wang? Todos passam.

Dietas? Low fat, low carb, Dr. Atkins, raw food, dos pontos, mediterrânea, paleo, ortomolecular,
sem gluten, do abacaxi, da sopa, do jejum intermitente. As dietas passam, os quilos é que voltam.

Não esquecer das turmas firmemente agarradas às certezas absolutas do que é bom, do que não
é. Rústicos, vegetarianos, onívoros, sazonais, locais, coletores, nacionais, alérgicos,
industrializados, naturebas.

Gostos formam turmas, ou as turmas formam gostos, galeras, tribos, confrarias. Queremos
comer o que queremos ser, é todo um pacote de desejos, possibilidades, momentos, histórias, de
tudo um pouco como nas boas dietas.

Podemos mudar nel mezzo del cammin di nostra vita, sem problemas, mudamos nós ou mudou
nosso gosto?

Escolhemos restaurantes a dedo, dentro de casa é a comida de todo dia, ou a congelada, o

30
2ª REFEIÇÃO

delivery, na rua queremos marcar o nosso espaço, mostrar a que viemos, e o que queremos. O
chef concorda, ele sabe das coisas. E os críticos e cronistas passam, ah, como passam, cruzes!

O Brasil cortado inteiro por uma passarela de arroz, feijão, carne, peixe ou frango, ovo, uma
fritura e uma saladinha, talvez um legume e algo típico do terreiro. E a farofa, não esquecer a
farofa. Pobres e ricos e os mesmos ingredientes apresentados de forma e quantidades
diferentes. Com certeza não passa. Será?

O que continua firme é a ideia de que gosto não se discute.

Texto originalmente publicado no jornal Folha de São Paulo, em 20 julho de 2018. Acesso também disponível em
“https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ninahorta/2018/06/gostos-formam-turmas-e-queremos-comer-o
-que-queremos-ser.shtml“. ‘

Prato Principal
Alimente sua saciedade!

VOCE SABIA?

Luis Fernando Veríssimo (1936) já foi publicitário e também


revisor de jornal. Nascido em Porto Alegre (RS) é filho do
escritor Érico Veríssimo. Autor de visão crítica, criou
personagens icónicos ao imaginário nacional, como “Ed
Morte“. “Analista de Bagé“ e “As cobras“. Possui diversas
publicações de contos e crônicas, frequentemente
trabalhados em sala de aula por sua visão crítica e
bem-humorada da realidade, sempre escrita em linguagem acessível. Durante sua vasta
produção literária, recebeu vários prêmios, como o Isenção Jornalística, o Troféu Juca Pato
(Intelectual do ano) e o prêmio Jabuti.

31
2ª REFEIÇÃO

O BUFFET
Luis Fernando Veríssimo

Um dos martírios da vida social moderna é o buffet. Ele nasceu com boas intenções, como
resposta à necessidade de alimentar da maneira mais prática o maior número de pessoas com o
máximo de elegância possível. Isto é, sem que a festa pareça um rififi no refeitório. É difícil servir
300 ou 400 pessoas nas suas mesas e ao mesmo tempo, à francesa, a não ser que haja quase
tantos garçons quanto convidados. A solução, já que a comida não pode ir às pessoas, é as
pessoas irem à comida. Outra vantagem do é que, com todos os pratos concentrados sobre uma
única e bem ornamentada mesa, ele dá a correta impressão de abundância. Que é, afinal, o que
nos leva a festas. Todo buffet é uma alegoria à fartura. Há cascatas de camarões, leitões
esquartejados e remontados sobre pedestais de farofa, everestes de maionese, continentes de
saladas e de frios. Uma vez, juro, vi um faisão empalhado no centro da mesa, na pose de quem
se preparava para decolar deste insensato mundo. Só o que o mantinha na terra era a sua
própria carne, em fatias, a seus pés. Diante de um buffet você deve se debater entre dois
sentimentos: a vontade de comer tudo e o remorso por estragar a arquitetura. Depois, é claro,
de agradecer à providência por pertencer aos 30% da população que comem e à minoria ainda
menor que é convidada a buffets. Pois o buffet também é a apoteose da boca-livre.

Os críticos mais moderados do buffet o comparam a uma linha de montagem, e fazem uma
injustiça. A linha de montagem é mais organizada. Ao redor de uma mesa de buffet o ser humano
reverte ao seu protótipo mais primitivo: a fera diante do alimento. A pátina de civilização se
quebra, como o exterior caramelado do presunto, e é cada um por si e pelo seu estômago. Já vi
velhos amigos duelarem a empurrões diante de um rosbife, e marido e mulher chegarem aos tapas
na disputa do último camarão. Porque a verdade é que o buffet não dá certo. Ele pressupõe um
desprendimento com relação à comida que ninguém tem. Embora alguns finjam que têm.
— Vou esperar que os selvagens se sirvam e depois vou até lá — diz ele, sorrindo com desprezo
para a horda em volta da mesa.
— Eu, se fosse você, não esperava. O bolo de peixe já estava pela metade — avisa alguém.
— Epa — diz ele, e mergulha no meio da horda, usando os cotovelos para abrir caminho.

Mas o buffet é irreversível e o negócio é aprender a conviver com ele. Existem algumas regras
de conduta que nos ajudam a sair de um buffet, mesmo o mais concorrido, razoavelmente bem
alimentados e sem danos, fora alguns rasgões na roupa. Aprendi com a experiência e tenho as
marcas de garfo na mão para provar. Tome nota.

32
1ª REFEIÇÃO

Antes de mais nada, não obedeça a ordens. É comum o anfitrião sugerir, bem-humorado, alguma
espécie de hierarquia no acesso ao buffet. Primeiro, as mesas deste lado ou daquele, primeiro os
mais velhos, as autoridades, os mutilados de guerra etc. Ignore-o. Seja o primeiro a saltar da
mesa, mesmo fora de ordem. O máximo que pode acontecer é você receber olhares feios. O que
importa isto diante de uma cascata de camarões ainda intocada e da oportunidade de escolher
os melhores tomates? Nunca desmereça as vantagens de chegar primeiro.

Estude o terreno — O planejamento é importantíssimo. Ao entrar na festa, examine


cuidadosamente o buffet. Resista à tentação de começar a botar camarões no bolso. Isto é
apenas um reconhecimento.
Decore a localização dos pratos mais importantes.
Geralmente, há 17 tipos diferentes de salada de batata. Concentre-se numa para não perder
tempo depois.
Faça uma anotação mental do melhor acesso à lagosta, se houver. Lembre-se de que dois ou três
pedaços de lagosta valem uma travessa de peito de peru em qualquer mercado de valores do
mundo. Decida-se por uma estratégia de ataque. Se preciso, estude uma ação diversionista. Na
hora de avançar, dirija-se resolutamente para os embutidos e, à última hora, desvie
rapidamente para a lagosta, confundindo o inimigo.

Macetes — Com o tempo, você os desenvolverá sozinho. Cada um tem seu estilo. Alguns
lembretes, no entanto. Se possível, sirva-se com dois pratos, com o pretexto de que está
servindo a sua mulherzinha, ou o seu maridinho, também. Se você realmente está com sua mulher
ou seu marido, melhor. Ela ou ele pode fazer o mesmo e dizer que está servindo você. O trabalho
em equipe é importante desde que se combine previamente quem ficará com todos os camarões.
Atenção: jamais use a colherzinha que está junto ao pote para servir o caviar se houver uma
colher de sopa à mão.

Seja impiedoso — Está bem, ninguém quer ser imoral, mas estamos falando de comida! Se a
pessoa à sua frente não se mexe e impede seu acesso aos mexilhões, que desaparecem
rapidamente, use o cabo do garfo discretamente entre a última e a penúltima costela. Se não der
certo, use a ponta do garfo. Espalhe o boato de que o leitão no centro é de plástico e só está ali
como enfeite. Finja que vai verificar e apalpe todo o leitão com as mãos. Diga coisas como:
“Ninguém se mova, acho que caiu uma mosca na vitela tonê.“ Pegue todo o prato, dando a
entender que vai despejá-lo pela janela. Espirre, distraidamente, em cima dos cogumelos.

33
1ª REFEIÇÃO

Use coação — Geralmente, há um garçom servindo o prato quente. Provavelmente estrogonofe.


É comum o garçom carregar no arroz para poupar o estrogonofe. Ao apresentar seu prato,
encare-o e diga, com o olhar: “Eu conheço a sua laia, patife. Se me sonegar o estrogonofe,
enfiarei a sua cabeça no molho vinagrete até que você morra!“. Despeça-se dele dando a
entender que voltará em breve e ai dele se disser qualquer coisa como “você por aqui de novo?“.
No caso de você e outro convidado espetarem o último pedaço de matambre ao mesmo tempo,
sorria enquanto lhe aplica um pontapé. É incrível o que se consegue com um sorriso.

Você conseguiu e já está saboreando o prato quente enquanto outros, menos empreendedores,
ainda nem chegaram perto dos tomates. Não se desmobilize, no entanto.

Lembre-se de que ainda falta a batalha dos doces.

VERÍSSIMO, L. F. O buffet. In: A mesa voadora. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

UNIÃO, GENTE
Luis Fernando Veríssimo

Nunca se despreze o poder de uma ideia cuja hora chegou. Minha rebelião contra a salsinha
ganha adeptos e, a julgar pela correspondência que recebo, esta era uma causa à espera do
primeiro grito. Só não conseguimos ainda nos organizar e partir para a mobilização —
manifestações de rua, abraços a prédios públicos — porque persiste uma certa indefinição de
conceitos. Eu sustento que “salsinha“ é nome genérico para tudo que está no prato só para
enfeite ou para confundir o paladar, o que incluiria até aqueles galhos de coisa nenhuma
espetados no sorvete, o cravo no doce de coco, etc. Outros, com mais rigor, dizem que salsinha
é, especificamente, o verdinho picadinho que você não consegue raspar de cima da batata cozida,
por exemplo, por mais que tente. Outros, mais abrangentes até do que eu, dizem que salsinha é
o nome de tudo que é persistentemente supérfluo em nossas vidas, da retórica ao porta-aviões,
passando pelo cheiro-verde. Meu conselho é que evitemos a metáfora e a disputa semântica e,
unidos pela mesma implicância, passemos à ação. Para começar, sugiro um almoço informal com
o presidente da República, em Brasília, para discutir a gravidade da questão, que certamente não
merece menos atenção do que as novelas da Globo.

34
2ª REFEIÇÃO

Mas, como se esperava, começou a reação dos pró-salsinhas. Alegam que a salsinha não é uma
inconsequência culinária mas tem importância gastronômica reconhecida, tanto que na cozinha
francesa o persillé faz parte do nome do prato — isto é, eles não só usam a salsinha como a
anunciam! Não se deve esquecer que os franceses também têm um nome elegante, faisandé, para
comida podre. E não podia faltar: um salsófilo renitente, o jornalista Reali Jr., alega que a
salsinha é, inclusive, afrodisíaca. Como Reali Jr. é um notório frequentador de restaurantes
árabes em Paris e muitos pratos da cozinha árabe, como se sabe, são só salsinha (com salsinha
em cima), seu argumento fanatizado pode ser desqualificado como golpe baixo. Agora só falta
dizerem que o verde intrometido tem vitamina V.
VERÍSSIMO, L. F. União, gente. In: A mesa voadora. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

Bebida
Aprecie sem moderação!

A CARNAVALIZAÇÃO E O RISO SEGUNDO MIKHAIL BAKHTIN


Claudiana Soerensen
(fragmentos – grifos nossos)
Na década de 1940, Bakhtin empreende amplas leituras para a tese de doutoramento e daí
resultam a análise minuciosa das obras de François Rabelais e a teoria crítica sobre a cultura
popular no medievo e na Renascença, que tem como foco principal o carnaval. O trabalho
intitulado “Rabelais na História do Realismo“ não foi aprovado pelo Instituto de Literatura Mundial
Gorski e, para a publicação posterior, em 1965, ocorre a mudança de título para “A cultura
popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais“. O teórico russo já
havia delineado rapidamente o conceito de carnavalização na obra Problemas da Poética de
Dostoievski, mas é a tese de doutoramento, título negado pela academia de Moscou a Bakhtin, que
abrange a formulação completa sobre o carnaval e a carnavalização. Como carnaval, agrega-se
diversas festividades vividas ao longo do ano, sobretudo em períodos que precediam a colheita.
Somando as festas, chegava-se a três meses as comemorações sagradas condizentes à época
carnavalesca.

35
2ª REFEIÇÃO

Para explicar a tenacidade da ideia de carnaval Mikhail Bakhtin cita a procura original da palavra,
afirmando que é possível observar, desde a segunda metade do século XIX, os numerosos autores
alemães defenderem a tese da origem alemã do termo carnaval, o qual teria a sua etimologia de
Karne ou Karth, ou “lugar santo“ (isto é, a comunidade pagã, os deuses e seus servidores) e de
val (ou wal) ou “morto“, “assassinado“. Carnaval significaria, portanto, “procissão dos deuses
mortos“. Ou seja, a ideia de carnaval, em sua busca etimológica, é compreendida como a
procissão dos deuses destronados.

Para o estudioso russo, o carnaval constituía um conjunto de manifestações da cultura popular


medieval e do Renascimento e um princípio, organizado e coerente, de compreensão de mundo. O
carnaval, propriamente dito, não é, evidentemente, um fenômeno literário, mas um espetáculo
ritualístico que funde ações e gestos elaborando uma linguagem concreto-sensorial simbólica. É
essa linguagem bem elaborada, diversificada, una (embora complexa) que exprime a “forma
sincrética de espetáculo“ – o carnaval – e transporta-se à literatura e é a essa “transposição do
carnaval para a linguagem da literatura que chamamos carnavalização da literatura.“ (Bakhtin,
1981: 105)

Na concepção de Bakhtin a carnavalização não é um esquema externo e estático que se sobrepõe


a um conteúdo acabado, mas uma forma flexível de visão artística, uma espécie de princípio
holístico que permite descobrir o novo e o inédito. O carnaval na concepção do autor é o locus
privilegiado da inversão, onde os marginalizados apropriam-se do centro simbólico, numa espécie
de explosão de alteridade, onde se privilegia o marginal, o periférico, o excludente.

O espetáculo carnavalesco – sem atores, sem palco, sem diretor – derruba as barreiras
hierárquicas, sociais, ideológicas, de idade e de sexo. Representa a liberdade, o extravasamento;
é um “mundo às avessas“ no qual se abolem todas as abscissas entre os homens para
substituí-las por uma atitude carnavalesca especial: um contato livre e familiar entre os homens.
Segundo Bakhtin (1981: 105) o que se abolia, principalmente, durante o carnaval era a hierarquia.
Leis, proibições e restrições, padrões determinantes do sistema e da ordem cotidiana, isto é,
extracarnavalesca, são suspensas durante o carnaval: “revoga-se antes de tudo o sistema
hierárquico e todas as formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta, etc., ou seja,
tudo o que é determinado pela desigualdade social hierárquica e por qualquer outra espécie de
desigualdade (inclusive a etária) entre os homens“. A carnavalização adere a essa visão vasta e
popular de carnaval que se opõe ao sério, ao individual, ao medo, à discriminação, ao dogmático.

36
2ª REFEIÇÃO

(...)
O carnaval não se distinguia apenas da vida cotidiana socialmente hierarquizada, mas, sobretudo,
das festas oficiais. Enquanto estas consagravam a estabilidade, a imutabilidade e permanência
das regras que conduziam o mundo em camadas rígidas, o carnaval proclamava a suspensão de
valores, normas, tabus religiosos, políticos e morais correntes.

A festa oficial tinha como escopo a consagração da desigualdade ao contrário do carnaval em que
a simetria reinava e sobressaía uma forma especial de contato livre e familiar entre indivíduos
normalmente separados cotidianamente pelas barreiras intransponíveis da sua condição, sua
fortuna, seu emprego, idade e situação familiar. Esse contato livre e familiar era vivido
intensamente e constituía uma parte essencial da visão carnavalesca do mundo, contrapondo-se
à festa oficial. Enquanto esta apresentava padrões regidos, o carnaval era “era o triunfo de uma
espécie de liberação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição
provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus.“ (Bakhtin, 1999, p. 08).

A eliminação provisória das relações hierárquicas produziu o aparecimento de uma linguagem


carnavalesca típica. As formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão embebidos da noção
e lirismo da alternância e da renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades e das
autoridades do poder. A vida era absorvida pela impactante cosmovisão carnavalesca. “A
influência da concepção carnavalesca do mundo sobre a visão e o pensamento dos homens era
radical: obrigava-os a renegar de certo modo a sua condição social (como monge, clérigo ou
erudito) e a contemplar o mundo de uma perspectiva cômica e carnavalesca.“ (Bakhtin, 1999, p.
11-12).

(...)
O tempo alegre, elemento essencial das festividades, produz o contato familiar o qual promove
nova forma de comunicação e da relação íntima ou próxima entre as pessoas. O carnaval é a
festa em que se extravasa o riso, é a segunda vida do povo, o tempo alegre; é a festa em que se
marcava “de alguma forma uma interrupção provisória de todo o sistema oficial, com suas
interdições e barreiras hierárquicas.“ (Bakhtin, 1999, p. 77).

SOERENSEN, Claudiana. A carnavalização e o riso segundo Mikhail Bakhtin. Texto disponível em:
http://e-revista.unioeste.br/index.php/travessias/article/view/4370.

37
2ª REFEIÇÃO

Harmonização
Dialogue sobre suas combinações!

1) Veríssimo, em suas crônicas, por diversas passagens referencia princípios da alimentação


contemporânea na caracterização do enredo; que leituras tradicionais e que leituras críticas
acerca de suas obras essas referências seriam capazes de potencializar?
2) Como o professor pode carnavalizar as aulas de língua portuguesa e enaltecer as referências
alimentares em prol de corroborar para (A) estimular o acesso a textos literários e (B)
colaborar com a leitura de valores culturais neles presentes? Caso queira, fundamente a
resposta a partir de alguma obra do nosso cardápio do dia (os textos de Veríssimo) ou de outras
relacionadas às suas práticas no segmento em que atua.

Sobremesa
ADOCE SUAS CONVICÇÕES!
O cardápio de uma refeição pode ser sempre constituído ao sabor dos comensais. Antes de um
cozinheiro valorizar e executar – ainda que adaptada – uma de suas receitas clássicas, é
minimamente elegante atentar-se aos gostos daqueles que dividirão a mesa com ele. Podemos
extravasar as preferências de nossos companheiros de prato se conseguirmos fazer, em nosso
cardápio, uma boa apresentação da novidade. Mas para apresentarmos algo novo, não basta
caprichar na aparência estética; precisamos verdadeiramente conhecê-lo e, por isso, devemos
desenvolver um paladar apurado. Na sala de aula, conscientemente, nem todos irão devorar e
repetir as refeições literárias propostas; é importante, porém, saber apresentar bem as opções
para que todos, ao menos, provem-nas sem o preconceito da indigestão. Entender a alimentação
como prática cultural é perspectiva que dialoga com todos os segmentos sociais - até mesmo para
os que ainda nada têm a comer e o seu cardápio é uma eterna metonímia de prato vazio.
Rapadura é doce, mas não é mole não: A não alimentação ou a aparente falta de gosto é outra
perspectiva crítica possível de ser problematizada por meio de textos literários. Podemos
dialogar mais sobre nossos gostos e apetites, mas não podemos desconsiderar aqueles que, de
fato, sentem fome. Nesse sentido, Elisa Lucinda nos escreve uma poesia que finalizará nossa
refeição como uma sobremesa fatalmente indigesta.

38
1ª REFEIÇÃO

VOCE SABIA?

Elisa Lucinda dos Campos Gomes (1958) é uma


poetisa, jornalista, escritora, cantora e atriz
brasileira nascida no Espírito Santo. Desde
menina recitava poesias nas festas e acalentava
o sonho de ser atriz. Filha de um professor de
português e latim, cursou Comunicação Social na
Universidade Federal do Espírito Santo. Também
trabalhou como professora. No ano de 1986,
mudou-se para cidade do Rio de Janeiro, com
planos de seguir a carreira de atriz.
Desde 1998, foi idealizadora e fundadora da “Casa Poema“, instituição socioeducativa cujo
método capacita vários profissionais desenvolvendo sua capacidade de expressão e sua
formação cidadã, através da poesia falada, com foco na arte-educação. Em parceria com a
Organização Internacional do Trabalho, tem desenvolvido o projeto “Palavra de Polícia, Outras
Armas“, onde ensina poesia falada aos policiais, procurando alinhá-los aos princípios dos
direitos humanos e transformar antigos modos operacionais em relação ao gênero e à raça.
Elisa Lucinda é considerada a artista da sua geração que mais populariza poesia.

APETITE SEM ESPERANÇA*


Elisa Lucinda
Mãe eu tô com fome
eu dizia eu gritava eu mugia
minha vó zangada respondia
você não está morrendo e nem tem fome
Você tem é apetite
Você sabe que vai comer, aonde comer, o quê vai comer.
Fome não! A fome, minha neta,
a fome, meu irmão,
a fome, minha criança,
é um apetite sem esperança.

39
2ª REFEIÇÃO

Quando há certeza de cereais, toalhas americanas,


guardanapos e alegrias da coca-colândia
não há fome de verdade.
Minha vó já dizia pra mim um futuro de Brasil.
Minha vó nem viu edifício crescer no lugar de pão
no lugar de trigo
nem viu criança com infância de semáforo
vendendo mariola barata, criança que mata
porque seu quintal tá sempre no vermelho
criança cujo ralado de joelho
dói menos do que o não morar, não existir, não contar
com a fome tenaz
Não há tenaz na escola
há só a cola de cheirar a dor doída
de um monstro estômago a roncar
um animal doído dentro do corpo a uivar
todo dia, sem boa vista, sem quinta zoológica onde morar
Com a fome das crianças brasileiras
forra-se a mesa, arma-se o banquete
dos que sempre tiveram apenas apetite.
A faminta criança foi apenas o álibi, o cardápio, o convite.
Desmamada ela cresce procurando o peito da pátria amada
uma banana, uma manga, uma feijoada
e a mãe pátria diz nada.
Tem ela apenas o horror, o descalor, a calçada
um ódio a todos os tênis dos meninos nutridos
um ódio a mochilas, a saudáveis barrigas
com contínuo furor de assaltar os relógios
um deter o tempo que é o seu verdadeiro balão
um cai-cai balão que só cai à mão armada.
A fome gera a cilada de uma pátria de não irmãos.
A gente podia ter gripe, asma, catapora, bronquite
A gente podia ter apetite mas fome não.
Minha vó bem que dizia sem errança:
fome é um apetite sem esperança.
LUCINDA, Elisa. Apetite sem Esperança. In: Sósias dos Sonhos. Rio de Janeiro: Impressora Velha Lapa, 1993.
* Poema escrito especialmente para a Campanha “Ação da Cidadania Contra a Miséria e Pela Vida“, de Betinho,
em 1993.

40
2ª REFEIÇÃO

Aceita um café?
PARA CONTRIBUIR COM A DIGESTÃO DE IDEIAS,SUGESTÃO DE LEITURA COMPLEMENTAR!

A comida baiana de Jorge Amado


(de Paloma Jorge Amado; Editora Panelinha, 2014)

Só de ler Jorge Amado a gente já fica com água


na boca cada vez que um personagem resolve
comer. Acarajé, vatapá, feijoada, beiju de
tapioca, moqueca - e ainda nem chegamos à
sobremesa! Paloma Jorge Amado compilou as
receitas de pratos que aparecem na obra de seu
pai e o resultado é este livro, que ainda
apresenta citações, divertidas crônicas e
maravilhosas fotos. Até quem não sabe cozinhar
vai conseguir trazer um pouco da Bahia para a
cozinha de casa.

41
3ª REFEIÇÃO

”A gente nao quer so comida/ A gente quer comida, diversao e arte”

Objetivo:
Dialogar sobre os valores culturais representados pela comida e pelos textos
literários; a comida e a literatura como símbolos de tradição e de história.

42
3ª REFEIÇÃO

Aperitivo
Comida, sem dúvida, é temática transversal. “O que comemos“, “por que comemos“ e “como
comemos“ são aspectos que orientam observações a diversos pesquisadores e também a
comilões mais curiosos. Já é um fato social que a comida potencializa pensar a expressão
humana para muito além da dinâmica nutricional; cada instante de alimentação desperta
diferentes leituras sobre as simbologias associadas. Assim como nos registros literários, toda
refeição permite a identificação de valores culturais. Uma experiência literária no presente pode,
por exemplo, evidenciar valores passados de tradição – ou, no mínimo, ser um convite à
percepção dos registros atuais. Experiências gastronômicas também seguem essa lógica. Quando
os registros literários são abastecidos de referências alimentares, estamos diante de um
banquete cultural. Que tal começarmos a realmente visualizar literatura e alimentação para além
das palavras e dos sabores?

Couvert
Deguste nossas primeiras provocações!
Em nossa dinâmica docente, que símbolos temos priorizado na leitura de textos literário? Por
quê?

Entrada
Comece a se alimentar com nossa seleção de ideias!

VOCE SABIA?
Cora Coralina (1889-1985) é o pseudônimo de
Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, poetisa
e contista brasileira nascida em Goiás. Publicou
seu primeiro livro quando tinha 75 anos e
tornou-se uma das vozes femininas mais
relevantes da literatura nacional.

O gosto pela culinária foi uma forte referência

43
3ª REFEIÇÃO

na vida da poetisa que se tornou doceira, ofício com o qual ganhava a vida após retornar
viúva à cidade natal, inspirando outras tantas mulheres. Entre os anos de 1965 a 1979,
“Aninha“, como também era chamada, começou a fabricar doces e a comercializá-los. Os
sabores variavam entre laranja, figo, mamão, goiaba, banana, entre outros, que encantavam
o paladar de quem provava. Pessoas de várias partes do país visitavam a casa de Cora para
comprar suas guloseimas e, também, ouvi-la declamar poesias e contar "causos".

ANTIGUIDADES
Cora Coralina
Quando eu era menina bem pequena,
em nossa casa,
certos dias da semana se fazia um bolo,
assado na panela
com um testo de borralho em cima.

Era um bolo econômico,


como tudo, antigamente.
Pesado, grosso, pastoso.
(Por sinal que muito ruim.)

Eu era menina em crescimento.


Gulosa, abria os olhos para aquele bolo
que me parecia tão bom e tão gostoso.

Era só olhos e boca e desejo daquele bolo inteiro.


Minha irmã mais velha governava.
Regrava.
Me dava uma fatia, tão fina, tão delgada…
E fatias iguais às outras manas.
E que ninguém pedisse mais!

E o bolo inteiro, quase intangível,


se guardava bem guardado,
com cuidado, num armário, alto, fechado, impossível.
Era aquilo, uma coisa de respeito.

44
3ª REFEIÇÃO

Não pra ser comido


assim, sem mais nem menos.
Destinava-se às visitas da noite,
certas ou imprevistas.

Detestadas da meninada.
Criança, no meu tempo de criança,
não valia mesmo nada.
A gente grande da casa usava e abusava
de pretensos direitos de educação.

Por dá-cá-aquela-palha, ralhos e beliscão.


Palmatória e chineladas não faltavam.
Quando não, sentada no canto de castigo
fazendo trancinhas, amarrando abrolhos.

“Tomando propósito“.
Expressão muito corrente e pedagógica.
Aquela gente antiga, passadiça, era assim:
severa, ralhadeira.

Não poupava as crianças.


Mas, as visitas…
– Valha-me Deus! …
As visitas… como eram queridas,
recebidas, estimadas, conceituadas, agradadas!
Eu fazia força de ficar acordada
esperando a descida certa do bolo
encerrado no armário alto.

E quando este aparecia,


vencida pelo sono já dormia.
E sonhava com o imenso armário
cheio de grandes bolos ao meu alcance.
De manhã cedo quando acordava,
estremunhada, com a boca amarga,
– ai de mim – via com tristeza,
sobre a mesa: xícaras sujas de café,
O prato vazio, onde esteve o bolo, e um cheiro enjoado de rapé.
CORALINA, Cora. Antiguidades. In: Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. São Paulo: Círculo do Livro, 1989.

45
3ª REFEIÇÃO

Prato Principal
Alimente sua saciedade!

TODA COMIDA TEM HISTÓRIA


A história das receitas começa com a história da humanidade. Ingredientes que se
transformaram, que se adaptaram, que se modificaram, que se tornaram outra coisa. Quem pode
traçar o primeiro índio a usar mandioca? Ou o primeiro francês a fazer um queijo CAMEMBERT? Ou
o primeiro português a comer bacalhau?

Há cerca de um milhão de anos, algum AUSTRALOPITHECUS percebeu que a carne, quando colocada no
fogo, possuía propriedades digestivas e ficava mais saborosa, Seus descendentes se deram
conta que se fosse colocada num recipiente com folhas e grãos o resultado poderia também ser
surpreendentemente bom. E o caldo resultante dessa mistura também ganhava propriedades
fortificantes. “Cozinha é, portanto, um constante devir de antigas tradições e contemporâneas
inovações que podem e devem ser combinadas com saber, arte, bom senso e bom gosto.“, afirma
o professor aposentado de sociologia e planejamento urbano da Universidade de São Paulo,
Gabriel Bolaff em seu livro A saga da comida, (Editora Record).

Em 1964, o antropólogo francês Claude Levi-Strauss começou uma trilogia de livros com O CRU E
O COZIDO (Cosac&Naify), onde mostra, a grosso modo, que o homem tornou-se culturalmente mais
desenvolvido ao dominar o fogo para cozinhar os alimentos. Ao estudar os índios, Levi-Strauss
formulou uma teoria em que definiria as sociedades a partir de um tripé alimentar: o cru, o cozido
e o podre. Para ele, a cozinha seria uma linguagem e cada sociedade codificaria suas mensagens
por meio de signos particulares. A comida, portanto, seria fortemente vinculada a determinado
povo e práticas culturais.
MONTELEONE, Joana. Toda comida tem história. In: Toda comida tem uma história e outros ensaios da
gastronomia. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2017.

AS COCADAS
Cora Coralina*
Eu devia ter nesse tempo dez anos. Era menina prestimosa e trabalhadeira à moda do tempo.
Tinha ajudado a fazer aquela cocada. Tinha areado o tacho de cobre e ralado o coco. Acompanhei
rente à fornalha todo o serviço, desde a escumação da calda até a apuração do ponto. Vi quando
foi batida e estendida na tábua, vi quando foi cortada em losangos.

46
3ª REFEIÇÃO

Saiu uma cocada morena, de ponto brando atravessada de paus de canela cheirosa. O coco era
gordo, carnudo e leitoso, o doce ficou excelente. Minha prima me deu duas cocadas e guardou tudo
mais numa terrina grande, funda e de tampa pesada. Botou no alto da prateleira.

Duas cocadas só... Eu esperava quatro e comeria de uma assentada oito, dez, mesmo. Dias
seguidos namorei aquela terrina, inacessível. De noite, sonhava com as cocadas. De dia as
cocadas dançavam pequenas piruetas na minha frente. Sempre eu estava por ali perto, ajudando
nas quitandas, esperando, aguando e de olho na terrina. Batia os ovos, segurava gamela, untava
as formas, arrumava nas assadeiras, entregava na boca do forno e socava cascas no pesado
almofariz de bronze.

Estávamos nessa lida e minha prima precisou de uma vasilha para bater um pão-de-ló. Tudo
ocupado. Entrou na copa e desceu a terrina, botou em cima da mesa, deslembrada do seu
conteúdo. Levantou a tampa e só fez: Hiiii... Apanhou um papel pardo sujo, estendeu no chão, no
canto da varanda e despejou de uma vez a terrina.
As cocadas moreninhas, de ponto brando, atravessadas aqui e ali de paus de canela e feitas de
coco leitoso e carnudo guardadas ainda mornas e esquecidas, tinham se recoberto de uma
penugem cinzenta, macia e aveludada de bolor.

Aí minha prima chamou o cachorro: Trovador... Trovador... e veio o Trovador, um perdigueiro de


meu tio, lerdo, preguiçoso, nutrido, abanando a cauda. Farejou os doces sem interesse e passou
a lamber, assim de lado, com o maior pouco caso.

Eu olhando com uma vontade louca de avançar nas cocadas.

Até hoje, quando me lembro disso, sinto dentro de mim uma revolta – má e dolorida - de não ter
enfrentado decidida, resoluta, malcriada e cínica, aqueles adultos negligentes e partilhado das
cocadas bolorentas com o cachorro.

CORALINA, Cora. As cocadas. In: O tesouro da Casa Velha. São Paulo: Global, 1996.
*Poeta em tempo integral, de sensibilidade sempre aberta à vida, Cora Coralina escreveu também em boa
prosa, como se comprova em “O tesouro da Casa Velha“. Livro da velhice, redigido depois dos 90 anos, reúne
18 contos, vários deles baseados em experiências pessoais e todos com a marca pessoal de encanto e magia de
Cora Coralina. O livro é publicação póstuma, e não contou com a seleção final da própria autora. Os contos
selecionados não constituem meras reproduções histórico-sociais, pois possuem transcendência e uma
peculiaridade narrativa das mais interessantes, resgatando uma linguagem já perdida, mas que na sua voz
ganha autenticidade.

47
3ª REFEIÇÃO

Aprecie sem moderação!


Bebida
A GASTRONOMIA NA LITERATURA: LUGAR DE MEMÓRIA,
SEDUÇÃO E PODER
A alimentação, embora seja uma prática não discursiva, em geral, é vista como uma ferramenta
metafórica através da qual o sujeito escritor discursiviza as relações sociais do contexto
sócio-histórico-ideológico. [...]

Foucault (2001, p. 48) defende que “quando a linguagem tem o poder de fazer em si mesma sua
própria imagem em um jogo de espelhos que não tem limites, permite falar de si mesma ao
infinito, ela é também literatura“. Espaço aberto no seio da linguagem. Seu verso e seu anverso.
Assim, o lugar da gastronomia no seio dessa linguagem ao infinito sempre incitou leituras,
discussões e sabores. Acreditamos que o tema da gastronomia torna-se instigante devido à
essencialidade do alimento à vida. Provavelmente, por essa razão, esse tema percorra
gerações, sendo cultivado na literatura em muitos países, em toda a história. Em qualquer lugar,
a comida é, por vezes, cultuada por seu cheiro e sabor e, por essa razão, tem se tornado um dos
temas favoritos tanto na literatura, quanto em outras artes.

A alimentação, embora seja uma prática não discursiva, em geral, é vista como uma ferramenta
metafórica através da qual o sujeito escritor discursiviza as relações sociais do contexto
sócio-histórico-ideológico. [...]

A literatura à mesa: lugar de memória


A gastronomia tem alimentado as páginas da literatura universal, porque historicamente as
comemorações das conquistas humanas, como as guerras, sempre foram regadas a excelentes
refeições oferecidas por reis e imperadores para seus hóspedes. Desde a Idade Média, é possível
se ler a busca permanente pelo alimento para manter o sustento; isso é o que encontramos em
um dos clássicos da tradição oral da literatura Medieval: Le Roman de Renart, quando os pobres
frangos, personagens das narrativas, sofrem tantas investidas da raposa, animal que, para
atingir seus objetivos, tenta constantemente ações inescrupulosas para se nutrir.

Na literatura hebraica, encontra-se o famoso prato servido por Herodes à sua enteada, em uma
das muitas festas oferecidas pelo tetrarca. Depois da dança sedutora, a promessa foi cumprida

48
3ª REFEIÇÃO

com a cabeça de João Batista sobre um prato, como um instrumento necessário para continuar
a nutrir a maldade, o ódio e a infidelidade de Hérodias. Essa narrativa bíblica nos faz refletir
sobre o ato de comer e/ou de se alimentar como um imperativo, porque se observarmos que
Hérodias não quis apenas a cabeça do profeta, mas, a quis em um prato, tal atitude pode ser
sentida como uma vitória, para o deleite dessa invejosa personagem. Essa história hebraica é tão
forte que tem sido fonte de inspiração para muitos escritores, incluindo G. Flaubert e sua
Hérodias, nos Três Contos (1877) ou S. Mallarmé em seu poema Hérodiade (1887), ou até mesmo
Salomé (1891), a famosa peça teatral irlandês todo O. Wide. Nessa perspectiva, defendemos que a
gastronomia é um lugar de memória, de sedução e de poder que denuncia as relações humanas,
em nosso caso, as relações de gênero.

A mesa na literatura brasileira


Na literatura brasileira, esse tema é visto desde os primórdios do nosso país, como no registro
de nascimento do Brasil, a carta de Pero Vaz de Caminha para El-Rei de Portugal, em 1500. Escrita
logo após a "descoberta" da nossa terra, o Secretário da esquadra de Pedro Álvares Cabral
descreve um solo muito rico de uma variedade inesgotável de fauna e flora. As cores e odores de
nossa terra constituíram-se em uma valiosa fonte de inspiração para Caminha, conforme se lê
neste trecho da carta: “...derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã. [...] Os hóspedes
sentaram-no cada um em sua cadeira. E de tudo quanto lhes deram, comeram mui bem,
especialmente lacão cozido frio, e arroz“ [...] (CAMINHA, 1500).

Essa carta é um dos documentos, comprobatórios que desde sempre, o Brasil tem uma
significativa diversidade natural. Essa mesma representação permanece nos quadros do pintor
francês Jean-Baptiste Debret, primeiro artista a ilustrar imagens do cotidiano brasileiro. Ao
longo da história da literatura, o prazer de comer é visto em circunstâncias diversas, como no
romantismo, com sua natureza exuberante ou ainda representada pela força do escravo "vindo"
da África. A literatura brasileira romântica é preenchida com cenas relacionadas à mesa, seja de
escravos nas cozinhas das casas-grandes, seja trabalhando nas lavouras para tornar o Brasil
um dos maiores produtores, do mundo, da cana-de-açúcar.

No período modernista, é possível perceber, de modo semelhante, em escritores como José


Américo de Almeida e José Lins do Rego, hábitos à mesa, mostrando a cultura da cana-de-açúcar.
Assim, a gastronomia constitui-se como lugar da memória discursiva, “que faz aí ressoar os ecos
de uma memória coletiva, social“ (INDURSKY, 2011, p. 87). Mas, é certo que poucos escritores

49
3ª REFEIÇÃO

brasileiros descreveram o cheiro e o gosto do Brasil com a mesma intensidade de Jorge Amado.
Esse escritor expôs as histórias mais queridas do público em geral, tanto no Brasil, quanto no
exterior. Ele demonstrou o cotidiano do povo baiano como um pintor de grande talento; um hábil
exemplo desse estilo é o romance Dona Flor e seus dois maridos.
Extraído de MARIZ, J. P.; OLIVEIRA, M. A. A Gastronomia na Literatura: Lugar de Memória, Sedução e Poder.
Disponível em https://todasasmusas.com.br/07Josilene_Maria.pdf.

NOVOS SABORES PARA A FORMAÇÃO DOCENTE:


DIÁLOGOS ENTRE GASTRONOMIA E CARNAVALIZAÇÃO NO
ENSINO DE LITERATURA*
O ato de alimentar-se e o de ler são dotados de simbolismos culturais, já que, em ambos, podemos
observar algumas dimensões da vida social. Assim, comida e literatura, a todo instante,
apropriam-se e falam de ideias que circulam em torno de simbologias; enquanto referenciais
dinâmicos – e, de certa forma, reconhecidos entre distintos grupos - proporcionaram
possibilidades para pensar como é se movimentar entre conceitos sociais que nem sempre
oferecem fronteiras evidentes: etnia, reconhecimento, exclusão, distinção, classe, geração,
gênero etc. estão presentes entre as constituições alimentares e os registros literários. Na
mesma medida em que estabelecem marcadores de diferença, pratos e livros são também capazes
de fortalecer a construção de identidades por evocarem emoções, memórias, tradições e
histórias.
Compreendendo a potencialidade de estudos sociais concernentes à comida e à leitura,
defendemos que o ensino de literatura deve ser desenvolvido em prol de respeitar os diferentes
gostos e de despertar, nos leitores, um apetite cultural; é preciso, para isso, articular uma
atuação docente capaz de ressignificar as dinâmicas com leituras literárias em sala de aula.
Carnavalizar o ensino de literatura apresenta-se como alternativa à necessidade de repensar
práticas docentes excessivamente dogmáticas e pouco dialógicas. O carnaval é um espetáculo
ritualístico que funde ações e gestos elaborando uma linguagem própria; a carnavalização adere
a essa visão vasta e popular de carnaval que se opõe ao sério, ao individual, ao medo, à
discriminação, ao dogmático. Embora no século XXI ainda seja muito explorado pelos estudos da
crítica literária, o conceito de carnavalização não se popularizou em outras aplicações sociais,
entre as quais buscamos recortar uma compreensão mais ampla de como tal concepção
bakhtiniana pode ajudar em busca de um ensino mais prazeroso de literatura.

50
3ª REFEIÇÃO

A carnavalização do comportamento docente, logo, permite-nos repensar currículos e práticas


pedagógicas de modo a articular a valorização e a tematização contextualizada das culturas
populares no âmbito da educação formal. Estabelecer essa postura docente carnavalizada
permite, ainda, maior dialogismo e alteridade nas práticas educativas, uma vez que os discentes
e os docentes poderão identificar mais vozes e valores manifestados nos discursos das leituras
literárias.
Valorizar o estudo de textos literários que dialoguem ou, minimamente, referenciem o ato
alimentar, é uma válida alternativa para estabelecer práxis docentes próximas ao conceito
bakhtiniano de carnavalização; assim, estudar Dona Flor e seus dois maridos sob a ótica da
carnavalização e da representação social dos simbolismos alimentares permite-nos refletir a
respeito da relação entre os saberes da alimentação e o gênero feminino, bem como possibilita
pensar a inserção da mulher no mercado de trabalho no Brasil de 1960 – diferente do que insiste
o tradicionalismo escolar para o ensino de literatura ao difundir, acima de qualquer leitura crítica,
uma biografia a respeito do autor. Todavia, ainda é possível subverter certa lógica sem
totalmente eliminá-la: caracterizar Jorge Amado como escritor baiano e revisitar seu acervo
literário para degustar as receitas típicas da cultura nordestina favorece uma análise sobre a
formação da identidade social daquela região; quais seriam as influências socio-históricas para
a popularização do vatapá na Bahia e por que ele é destacado em suas narrativas, por exemplo?
Nesses mesmos moldes de análise carnavalizada, acessar a produção de Monteiro Lobato para
crianças capacita questionar por que uma personagem negra é relacionada a saberes informais
e uma personagem branca é associada ao saber formal, no Brasil de 1930, por exemplo.
Acreditamos que o ensino de literatura pode favorecer a descoberta de valores de mundo por
meio de uma leitura subjetiva, individual e experiencial, mas que potencialize ainda um acesso de
forma mais prazerosa. É função do professor incentivar e propiciar leituras diversas dos textos
literários para que o aluno venha tornar, como sua, a cultura que foi amontoada pelo humanidade,
por meio de uma educação que ofereça suporte para que o homem atinja a transformação social
diante do conhecimento da cultura amontoada pelo coletivo, pois a escola além de ser
incentivadora de conhecimentos baseados em conteúdo é também uma instituição
desencadeadora de processos sociais de comunicação e de identidade dos seres. Com isso,
pode-se apreender a atuação carnavalizada como possibilidade de implementar a mudança
necessária de paradigmas para uma educação escolar efetivamente mais festiva e prazerosa,
ainda que profundamente crítica no que tange ao diálogo com a realidade.
* Texto produzido e apresentado à Formação de Professores do projeto de extensão Diálogos Docentes:
Parceria, Formação e Prática, em maio de 2020, com professores de Língua Portuguesa da rede municipal de
ensino de Vila Velha – ES, sob coordenação de Letícia Queiroz de Carvalho.

51
3ª REFEIÇÃO

Harmonização
Dialogue sobre suas combinações!
Cora Coralina é um bom exemplo de escritora que tempera a literatura com suas experiências de
sabores. Se, como afirma Joana Monteleone, toda comida tem uma história, todo mundo também
deve ter uma comida que já colaborou para protagonizar uma boa história – afinal, entendemos
o valor histórico-cultural dessa forma de linguagem. Assim, para consolidar sua participação
nesse encontro formativo, produza um breve relato pessoal - na estrutura que lhe for mais
conveniente – que possa constituir um registro de lembrança a partir de alguma experiência
alimentar. Não serão estabelecidos critérios mais específicos para essa composição; deixe as
palavras serem guiadas pelos sabores da memória! Não se esqueça de que essa pode ser uma
interessante atividade desenvolvida também em sala de aula!

IMPORTANTE SABER
O relato é um gênero textual comum ao cotidiano, pois
pode ser utilizado como maneira de apresentar, exemplificar ou de colaborar na argumentação
de ideias.
Trata-se de uma apresentação das experiências da vida de uma determinada pessoa, abarcando
suas vivências e os traços que marcaram sua existência. Partindo desta prerrogativa, temos
que esse tipo de relato, por se tratar de um discurso condizente a experiências pessoais,
geralmente é narrado em 1ª pessoa.

Adoce suas convicções!


Sobremesa
Para alcançar alguns propósitos pedagógicos no ensino de língua portuguesa, diversos gêneros
textuais são observados pelos alunos ao longo de sua trajetória escolar. Muitas vezes, contudo,
essa análise é determinada por visões estritamente utilitárias das estruturas linguísticas, sem uma
análise mais ampla acerca das interações sociais e dos inúmeros formatos de linguagens, bem como
dos significados que materializam. Assim como buscamos compreender que textos literários e
comida são elementos sociais dotados de valores históricos e culturais, é possível ainda considerar
que determinados gêneros de texto evidenciam esses valores de modo transversal. A esse respeito,
por exemplo, a escritora Tatiana Damberg publicou a obra “A peleja do alecrim com o coentro e
outros causos culinários: receitas e cordel“ em que, numa mistura absolutamente apetitosa entre
cordéis e receitas, enaltece valores culturais do nordeste brasileiro, presentes em distintos modos
de representação. A seguir, serviremos, de sobremesa, uma degustação do cordel principal do livro;
que ela possa se tornar uma doce lembrança deste encontro e um novo estímulo sobre
oportunidades de leitura crítica para distintos gêneros textuais em sala de aula.

52
3ª REFEIÇÃO

A PELEJA DO ALECRIM COM O COENTRO


Tatiana Damberg
Sem querer um dia adentro
chegando lá da feira,
o alecrim e o coentro
se encontraram na geladeira.
Fingem os dois não se ver
mas depois dão a torcer
e começam a besteira.

Alecrim metido a besta


tu é um cabra safado
é plantinha de aresta
mas se acha refinado
cê tem gosto de sabão
não presta nem no pão
saia já daqui do lado.

Opa lá erva daninha


você que é um matinho
te confundem com a salsinha
nem colocam no carrinho
o teu gosto é tão forte
que a você prefiro a morte
saia já do meu caminho.

Erva daninha é tu
que mascara o paladar
não tempera nem jacu
dê o fora deste lar
o gosto dessa família
só melhora a cada dia
não me venha estragar.

53
3ª REFEIÇÃO

Vá e chame o dito cujo


ele fará bom proveito
vai me por no caramujo
escargot bem do meu jeito
vai me por numa moqueca
no jerimum, na carne-seca
eu é que vou ser eleito!

Eis que chega o do chapéu,


o que manda na cozinha.
Cata os dois feito troféu
dá um fim à ladainha
mostra a cada o seu valor.
Gosto dum é feito amor
gosto é mais do que modinha.

Terminada a peleja
a família satisfeita
tasca aquilo que almeja
indo ao gosto se ajeita.
Alecrim vai prato adentro
noutro vai é o coentro
assim tudo se contenta.

DAMBERG, Tatiana. A peleja do alecrim com o coentro. In: A peleja do alecrim com o coentro e outros causos
culinários: receitas e cordel. Rio de Janeiro: Memória Visual, 2007.

54
1ª REFEIÇÃO

Aceita um café?
Para contribuir com a digestão de ideias, sugestão de leitura complementar!

“Super Merendeiras“ – Tv Escola (2018)


O reality show “Super Merendeiras“ promoveu uma
competição entre merendeiras de escolas municipais e
estaduais de várias regiões do Brasil. Apresentado pelo ator
Eri Johnson, a atração contou com 13 episódios e promoveu
desafios com o que as merendeiras fazem de melhor:
produzir receitas criativas, saborosas e saudáveis, com
muita emoção. No 5o episódio da 1a temporada (até então,
única), o programa tematizava a ideia de a cozinha dizer
muito sobre as raízes culturais de um país. Esse programa,
em especial, resgatava as heranças deixadas pelos
quilombolas e indígenas na alimentação brasileira. Aponte a
câmera do seu celular em direção à imagem do código QR e
assista ao episódio! Vale a pena conferir!

Comida de cinema - Tastemade


As saborosas receitas que aparecem nos filmes são
reproduzidas por Isadora na série "Comida de Cinema".
Vestida como os personagens das histórias, a
apresentadora fala sobre os filmes enquanto ensina como
fazer delícias práticas e populares, como o Bolo de Chocolate
de "Matilda" e a Cerveja Amanteigada de "Harry Potter".
Pratos mais complexos, como as Codornas de "A Festa de
Babette" e a Mousse de Salmão de "O Sentido da Vida",
também fazem parte da lista de 75 episódios. Aponte a
câmera do seu celular em direção à imagem do código QR e
faça acesso aos episódios!

55
4ª REFEIÇÃO

”A gente nao quer so comida/ A gente quer saida para qualquer


parte”

Objetivo:
Dialogar sobre os valores sociais manifestados pela comida e pelos textos
literários; a comida e a literatura como símbolos de etnia, classe, geração e
gênero.

56
4ª REFEIÇÃO

Aperitivo
A comida nos humaniza porque, nela, reconhecemos, principalmente, os mais diversos valores de
sociabilidade. Uma refeição, além de ser fonte nutricional, alimenta-nos de princípios que
evidenciam certa aproximação a noções de etnia, de classe, de geração e de gênero. Quando o
comer é realmente entendido pela perspectiva dessa diversidade de ideias, as experiências
tendem a ser potencialmente marcantes à memória e à constituição do ser. Não por acaso, o
entendimento de que “comer é um ato político“ tem ganhado ainda mais relevância na
contemporaneidade. Se ainda não conseguirmos, com organicidade, alcançar essas
compreensões nas dinâmicas sociais, é possível que a leitura literária contribua para o estímulo
a análises críticas; a relação entre personagens e comidas também se constitui como prato cheio
para pensarmos em valores sociais. Refletir sobre o significado da comida enquanto
representação sociocultural pode ser um interessante caminho para estimular a formação de
leitores, ao mesmo tempo que favorece, ao professor, uma observação aguda acerca da
diversidade que compõe suas salas de aula. Sirvamo-nos à vontade nesse farto rodízio de ideias!

Couvert
Deguste nossas primeiras provocações!
Nas análises de textos literário em sala de aula, que ingrediente tem despertado em nossos
alunos a identificação e o real desejo pela leitura?

Entrada
Comece a se alimentar com nossa seleção de ideias!

VOCE SABIA?
Sarah Vervloet nasceu em Vila Velha, no Espírito Santo. É
licenciada em Letras-português e mestra em Estudos
Literários, pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Professora de Língua Portuguesa de Ensino Básico Técnico e
Tecnológico no Instituto Federal Fluminense, no campus Bom
Jesus do Itabapoana-RJ, é ainda doutoranda em Educação pela
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP),
com projeto intitulado "A escrita literária em aulas de Língua

57
4ª REFEIÇÃO

Portuguesa no Ensino Médio". Foi contemplada, em 2011, com o prêmio de Literatura da


Secretaria de Cultura do Espírito Santo, na categoria Autor Estreante, publicando, em 2013,
seu livro de contos “contos e microcontos“.

A MULHER QUE CONTROLAVA OS PÃES


Sarah Vervloet
Certo dia, enfureci-me. A mulher não sabia mais quem era quem, somente pensava em seus pães.
As crianças já morriam de fome quando, finalmente, dei a cartada final: peguei todas as minhas
coisas, e nossos cinco filhos, e sumi. Porém, nunca mais consegui comer um pão.
No começo tudo parecia como um conto de fadas. Minha mulher acordava bem cedo, pegava o livro
de receitas que fora da sua tataravó – trata-se de um tal livro que rodou casas e mãos até
chegar onde está. Com o mais belo humor que possa existir, ela manuseava a massa,
acrescentava o trigo, esperava com paciência a textura correta e levava ao forno,
religiosamente. Nós, eu e as crianças, acordávamos com aquele cheirinho de pão assando, ora
doce, ora salgado ou recheado. Era divino. Sentávamos à mesa, felizes. No começo tudo parecia
como um conto de fadas.
Dias se passaram, meses, anos para que enjoássemos dessa rotina. Já estávamos todos acima
do peso, eu mais, ela menos. Não queria mais saber de trigo, fermento, cheiro de pão pela manhã.
Mas também não sabia dizer, implorar que parasse. As crianças compreendiam completamente a
situação e me serviam de cúmplices. Sonhei, uma noite, que as crianças haviam todas se juntado
para se vingar da mãe. Acordei suando e nunca mais dormi. Ela, percebendo algo errado, pediu
uma reunião familiar. E nós, eu e as cinco, revelamos o martírio.
Parecia que o mundo havia acabado. Parecia que o mundo havia acabado porque daquele dia em
diante nós não comíamos mais. Ela nunca mais acordara de madrugada para amassar os pães do
café da manhã, nós perdíamos a hora da escola e, além disso, emagrecemos todos rapidamente.
Parecia que o mundo havia acabado. E, então, um dia cheguei a casa mais cedo, devido à chuva
catastrófica que caía lá fora. Deparei-me com uma cena de horror: a mulher tirando pães,
milhares de pães do forno, e guardando-os desesperadamente no armário. Ela sofreu um
espanto. Fui até o armário checar o que me aterrorizava e, na mosca, entendi que ela estava
escondendo nossos pães. Lá se dispunham infinitos pães doces, salgados, dourados, macios,
recheados. Alguns criavam bolores. Outros já estavam cavados por insetos. Parecia que o mundo
havia acabado.
Texto publicado no livro “contos e microcontos & a superfície do mundo“, de 2019, pela editora Pedregulho. A
obra completa está gratuitamente disponível no site da editora e pode ser acessada através do link
https://www.editorapedregulho.com.br/downloads.

58
4ª REFEIÇÃO

Prato Principal
Alimente sua saciedade!

A REFORMA DA NATUREZA
Monteiro Lobato
Contextualização: A Reforma da Natureza é um livro infantil escrito por Monteiro Lobato e
publicado pela primeira vez em 1941. Dona Benta, Tia Nastácia e o Visconde de Sabugosa são
convidados pelos chefes de Estado da Europa para participar da Conferência da Paz de 1945 como
representantes da Humanidade e do Bom Senso. Desta forma, a pequena "República do Sítio do
Picapau Amarelo" poderá ensinar à humanidade o segredo de bem governar os povos. Pedrinho e
Narizinho os acompanham, mas Emília fica no Sítio. Na verdade, Emília não quis ir porque
pretendia fazer a sua "reforma da natureza". Com a ajuda de Rã (ou Rãnzinha da Silva), sua
amiga do Rio de Janeiro ela criou várias ideias para o espaço. Quando Dona Benta voltou, Emília
perdeu quase tudo. Mas, com a ajuda de Visconde, fez sua nova reforma.

Cap. 9 – O livro comestível


A maior parte das ideias da Rã eram desse tipo. Pareciam brincadeiras, e isso irritava Emília, que
estava tomando muito a sério o seu programa de reforma do mundo. Emília sempre foi uma
criaturinha muito séria e convencida. Não fazia nada de brincadeira.
– Parece incrível, Rã! – disse ela. – Chamei você para me ajudar com ideia na reforma, mas até
agora não saiu dessa cabecinha uma só coisa aproveitável – só “desmoralizações …“
– Isso não! A ideia das tetas com torneiras na Mocha foi minha e você gostou muito. A da pulga
também.
– Só essas. Todas as outras eu tive de jogar no lixo. Vamos ver mais uma coisa. Que acha que
devemos fazer para a reforma dos livros?
A Rãzinha pensou, pensou e não se lembrou de nada.
– Não sei. Parecem-me bem como estão.
– Pois eu tenho uma ideia muito boa – disse Emília. – Fazer o livro comestível.
– Que história é essa?
– Muito simples. Em vez de impressos em papel de madeira, que só é comestível para o caruncho,
eu farei os livros impressos em um papel fabricado de trigo e muito bem temperado. A tinta será
estudada pêlos químicos – uma tinta que não faça mal para o estômago. Q leitor vai lendo o livro
e comendo as folhas; lê uma, rasga-a e come. Quando chega ao fim da leitura está almoçado ou
jantado. Que tal?
A Rãzinha gostou tanto da ideia que até lambeu os beiços.

59
4ª REFEIÇÃO

– Ótimo, Emília! Isto é mais que uma ideia-mãe. E cada capítulo do livro será feito com papel de um
certo gosto. As primeiras páginas terão gosto de sopa; as seguintes terão gosto de salada, de
assado, de arroz, de tutu de feijão com torresmos. As últimas serão as da sobremesa – gosto de
manjar branco, de pudim de laranja, de doce de batata.
– E as folhas do índice – disse Emília – terão gosto de café – serão o cafezinho final do leitor.
Dizem que o livro é o pão do espírito. Por que não ser também pão do corpo? As vantagens seriam
imensas. Poderiam ser vendidos nas padarias e confeitarias, ou entregues de manhã pelas
carrocinhas, juntamente com o pão e o leite.
– Nem precisaria mais pão, Emília! O velho pão viraria livro. O Livro-Pão, o Pão-Livro. Quem soube
ler, lê o livro e depois come; quem não souber ler come-o só, sem ler. Desse modo o livro pode
ter entrada em todas as casas, seja dos sábios, seja dos analfabetos. Otimíssima ideia, Emília!
– Sim – disse esta muito satisfeita com o entusiasmo da Rã. – Porque, afinal de contas, isso de
fazer os livros só comíveis para o caruncho é bobagem – podemos fazê-los comíveis para nós
também.
– E quem deu a você essa ideia , Emília?
– Foi o raciocínio. O livro existe para ser lido, não é? Mas depois que o lemos e ficamos com toda
a história na cabeça, o livro se torna uma inutilidade na casa. Ora, tornando se comestível,
diminuímos uma inutilidade.
– E quando a gente quiser reler um livro?
– Compra outro, do mesmo modo que compramos outro pão todos os dias.
A ideia, depois de discutida em todos os seus aspectos, foi aprovada, e Emília reformou toda a
biblioteca de Dona Benta. Fez um papel gostosíssimo e de muito fácil digestão, com sabor e cheiro
bastante variados, de modo que todos os paladares se satisfizessem. Só não reformou os
dicionários e outros livros de consulta. Emília pensava em tudo.

Também reformou muita coisa na casa. Por meio de cordas e carretilhas as camas subiam para o
forro de manhã, depois de desocupadas, a fim de aumentar o espaço dos cômodos. As fechaduras
não precisavam de chaves; bastava que as pessoas pusessem a boca no buraco e dissessem:
“Sésamo, abre-te“ e elas se abriam por si mesmas.

– E os mudos? – perguntou a Rãzinha. – Como vão arrumar-se? Só se eles andarem com uma
vitrola no bolso, que pronuncie por eles a palavra Sésamo.

Emília atrapalhou-se com o caso dos mudos e deixou-o para resolver depois. O leite a ferver ao
fogo dava um assobio quando chegava no ponto, de modo a avisar ao fogo, o qual imediatamente
parava de agir. O mesmo com todas as comidas – e dessa maneira acabou-se a desagradável
história do “feijão com bispo.“

60
4ª REFEIÇÃO

E tanta e tanta coisa as duas fizeram, que se fôssemos contar metade teríamos de encher dois
volumes. Lá pelo fim da semana o Sítio do Pica-pau estava totalmente transformado, não dando
a menor ideia do antigo. Foi por essa ocasião que chegou carta de Dona Benta anunciando a
volta.

– “Já concluímos o nosso serviço na Europa“ – dizia ela. – “Deixamos o continente transformado
num perfeito sítio – com tudo direitinho e todos contentes e felizes. A Comissão que nos trouxe
vai reconduzir-nos para aí novamente. Devemos chegar na próxima segunda-feira e espero
encontrar tudo em ordem.“

Emília leu a carta para a Rãzinha, dizendo:

“É uma danada, esta velha! Foi lá e fez o que todos aqueles ditadores e reis não conseguiram.
Temos agora de preparar a casa para recebê-la.“

LOBATO, Monteiro. O livro comestível. In: A reforma da natureza.13ª reimpressão da 38ª edição de. 1994. São
Paulo: Brasiliense, 2002.

DIÁLOGOS ENTRE A CARNAVALIZAÇÃO E O DIREITO À LITERATURA


NA ESCOLA: AS CONTRIBUIÇÕES DE MIKHAIL BAKHTIN E
ANTÔNIO CANDIDO NA FORMAÇÃO DO LEITOR
Letícia Queiroz de Carvalho
(fragmentos)
Os escritos do sociólogo, crítico literário, ensaísta e professor brasileiro, Antônio Candido de
Mello e Souza, têm motivado uma pluralidade de discussões e pesquisas acerca do texto literário
em suas multifacetadas possibilidades de diálogo com as questões sociais e a formação humana
em uma perspectiva crítica que buscou trazer à baila o importante lugar da Literatura como
produção cultural inserida em um tempo histórico-social.
A postura dialógica de Cândido apresenta aproximações indiscutíveis com alguns pressupostos
filosóficos apresentados pelo pensador russo Mikhail Mikhailovich Bakhtin e o seu Círculo de
interlocutores, especialmente em suas produções do início do século XX, mais conhecidas no
Brasil na década de 70, em meio às quais se destacam os estudos sobre a cultura popular e a sua
força transgressora nas práticas artístico-literárias ao dialogarem com o contexto social e as
vozes que emergem do mundo da vida em sua expressão cotidiana.

61
4ª REFEIÇÃO

Antônio Candido: o ensino da Literatura na perspectiva da carnavalização


Diante dos estudos de Bakhtin sobre a cultura popular e a carnavalização da linguagem literária,
algumas questões que permeiam o universo da leitura literária em sua vertente escolar podem
ser trazidas à baila para um diálogo entre as concepções bakhtinianas e a perspectiva social da
literatura proposta por Antônio Candido. De que modo o direito à literatura e a carnavalização do
texto ficcional convergem na sala de aula? Devemos carnavalizar a literatura para assegurar o
seu direito? A literatura carnavalizada garante maior aproximação do leitor com o texto? É
possível o ensino da Literatura em uma perspectiva carnavalizada?

Antônio Candido, em dois ensaios centrais sobre a literatura e a formação humana, quais sejam
“O direito à literatura“ (2006) e “A literatura e a formação do homem“ (2002), produzidos no
contexto dos anos setenta, busca ampliar o acesso ao texto literário e à leitura,
dessacralizando, pois, uma visão formalista e elitizada das produções ficcionais
Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações
de toque poético, ficcional ou dramático, em todos os níveis de uma
sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore,
lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita
das grandes civilizações (CANDIDO, 2006, p.174).
Ao compreender a abrangência da literatura para além de espaços ou círculos meramente
academicistas, Candido relativiza de certa forma as verdades e o poder dominante, uma vez que
o ensino de Literatura nessa abordagem pressupõe o diálogo entre as culturas: erudita e popular.
Tal postura diante das produções literárias origina uma desestabilização do discurso monológico
e impositivo que permeia muitas das orientações docentes nos documentos oficiais da área
educacional.

A dessacralização da literatura nesse contexto nos remete a outro princípio da carnavalização


bakhtiniana, a zona do contato familiar que aproxima ao máximo o mundo do homem e o homem
do homem. Candido reitera a importância da proximidade da leitura com o mundo, ao considerar
a Literatura como um direito e não um luxo
[...] são bens incompressíveis não apenas os que asseguram sobrevivência
física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual.
São incompressíveis certamente a alimentação, a moradia, o vestuário, a
saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência à
opressão etc.; e também o direito à crença, à opinião, ao lazer e, por que
não, à arte e à literatura (CANDIDO, 2006, p.174).

62
4ª REFEIÇÃO

Ao destacar a fruição da arte e da literatura em todos os níveis como um direito inalienável do


homem, Candido (2006) reafirma a importância do acesso aos diferentes níveis culturais nos
processos de luta pelos direitos humanos, sem, contudo, considerar as produções culturais na
esfera culta e popular como incomunicáveis, justificando, pois, uma separação social iníqua. A
consideração pelo outro e pelas realidades sociais distintas que permeiam o universo da criação
literária nos conduz a outra aproximação com a carnavalização da literatura e,
consequentemente, das práticas de leitura.

A máscara, elemento presente nas manifestações populares medievais e renascentistas


estudadas pelo filósofo russo, garante a alteridade por meio da compreensão da diversidade de
cada mundo particular. Candido assevera em seus escritos que: “A literatura desenvolve em nós
a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a
natureza, a sociedade, o semelhante.“ (CANDIDO, 2006, p. 180), bem como que “A literatura [...]
trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido
profundo, porque faz viver“ (CANDIDO, 2006, p. 176).

Sob a ótica do sociólogo brasileiro, o texto literário se inscreve em um tempo histórico-social em


meio à materialidade da vida e às questões que emergem do contexto cultural mais amplo. Desse
modo, a convergência entre a carnavalização na literatura, por meio da relativização das
verdades e do poder dominante no ensino de Literatura, concretiza-se pela aproximação ao
máximo do mundo do homem e o homem do homem.

Além disso, a dessacralização da literatura no sentido de permitir o diálogo entre as culturas:


erudita e popular e a consideração da diversidade de cada mundo particular no diálogo com os
livros reiteram a perspectiva de Candido (2002) quando apresenta a principal função da
literatura, qual seja a que diz respeito ao seu caráter humanizador: exprime o homem e depois
atua na sua própria formação.

Os diálogos entre Antônio Candido e Mikhail Bakhtin, portanto, apontam possíveis caminhos para
garantir uma aproximação maior entre leitor e texto, como também o destronamento de alguns
entraves teórico-metodológicos que ainda permeiam o universo das aulas de literatura no
contexto escolar.
CARVALHO, Letícia Queiroz de. Diálogos entre a carnavalização e o direito à literatura na escola: as
contribuições de Mikhail Bakhtin e Antônio Candido na formação do leitor. In: WITCHS, Pedro Henrique et al
(Orgs.) Conquistas e desafios dos estudos linguísticos na contemporaneidade: trabalhos do V Congresso
Nacional de Estudos Linguísticos Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2020. p.238-244.

63
4ª REFEIÇÃO

Aprecie sem moderação!


Bebida
A GRAMÁTICA DA COMIDA
Massimo Montanari
(fragmentos)
Em todas as sociedades, o modo de comer é regrado por convicções análogas àquelas que dão
sentido e estabilidade às linguagens verbais. Esse conjunto de convenções, que chamamos de
“gramática“, configura o sistema alimentar não como uma simples soma de produtos e comidas,
reunidos de modo mais ou menos casual, mas como uma ESTRUTURA na qual cada elemento define o
seu significado.

O LÉXICO sobre o qual essa linguagem se fundamenta evidentemente consiste no repertório dos
produtos disponíveis, plantas e animais, tipos de morfema (as unidades significativas de base)
sobre os quais se construirão as palavras e todo o dicionário. Portanto, é um léxico que se define,
segundo o caso, em relação à situação ambiental, econômica, social, cultural, uma vez que um
produto pode ser assegurado pelos recursos do território, mas também pelas relações
comerciais; pode ser acessível para alguns, inacessível a outros (de acordo com as possibilidades
de uso do espaço, nas economias de subsistência; as disponibilidades de mercado e o nível dos
preços, nas economias monetárias); pode ser aceito ou rejeitado de acordo com os gostos
(coletivos ou individuais) ou com as opções culturais (penso na rejeição da carne por parte dos
vegetarianos, ou na exclusão de certas comidas ou bebidas em determinadas tradições
religiosas). (...)
A MORFOLOGIA se refere aos modos como os produtos são elaborados e adaptados às várias
exigências de consumo, por meio das práticas de cozinha: gestos e procedimentos concretos (os
modos de cozimento e de preparação) transformaram as unidades de base em palavras, ou seja,
em pratos ou comidas, de uso diverso e de função distinta. Por exemplo, com os cerais se podem
fazer papas, pão, massa, tortas, fogaças: os ingredientes de base são os mesmos, diferente é o
resultado gastronômico, determinado por uma qualidade diferente do trabalho realizado sobre
eles. (...)
A SINTAXE é a estrutura da frase, que dá sentido ao léxico e às suas variantes morfológicas. No
nosso caso, é a refeição, que ordena os pratos de acordo com critérios de sequência, de
associação, de relação recíproca. Como na frase verbal, um ou mais protagonistas estão no
centro da ação: o prato de carne e/ou de cereais, determinado diversamente de acordo com as
culturas e as classes sociais, além da disponibilidade. (...)

64
4ª REFEIÇÃO

Em razão dos sujeitos principais, se definem, na estrutura sintática da refeição, os


“complementos“ que eventualmente precedem, acompanham, seguem: antepastos, INTERMEZZI,
acompanhamentos, “dessert“ (como estamos habituados a chamá-los hoje). Aos molhos se
poderia atribuir um papel análogo àquele dos morfemas gramaticais, provados de significado
autônomo, mas essenciais (como as conjunções e as preposições) para determinar a natureza e
a qualidade dos protagonistas. Os condimentos fazem parte mais da função de adjetivo da
gramática, ou da função adverbial. Sua escolha pode estar de fato ligada a razões tanto
econômicas (a disponibilidade de recursos) quanto rituais (na Europa cristã, o calendário
litúrgico com suas obrigações “de magro“ e “de gordo“), que conferem aos pratos uma colocação
espaço-temporal típica dos advérbios. (...)
Enfim, a comida adquire plena capacidade expressiva graças À RETÓRICA, que é o complemento
necessário de toda linguagem, Retórica é adaptar o discurso ao argumento, aos efeitos que se
deseja suscitar. Se o discurso é a comida, a retórica é o modo como ela é preparada, servida,
consumida. (...) Diversas formas de retóricas, tomadas como exemplo pela sociedade de nosso
tempo, são aquelas que qualificam a rapidez (quase sempre apenas imaginária) da “refeição de
trabalho“, contrapondo-a à maior duração da refeição noturna em família ou com os amigos.
MONTANARI, Massimo.A gramática da comida. In: Comida como cultura. São Paulo: Senac São Paulo, 2013.

Harmonização
DIALOGUE SOBRE SUAS COMBINAÇÕES!
Com a retórica de adaptar o discurso da carnavalização ao argumento de que a sala de aula
precisa potencializar outros caminhos em experiências de leitura, a comida tornou-se nossa
gramática e objeto de análise, ao longo dos capítulos dessa formação. Se mesmo “controlando os
pães“ insistimos em produções de aula que podem causar enjoo a nossos alunos, é preciso, em
certos momentos, propor uma “reforma da natureza“ docente. Emília surge nesse encontro
como exemplo de ruptura de paradigmas; sua ideia de “livro comestível“ apresenta grande
alcance sobre os valores socioculturais do ato de comer.
Se você pudesse ter o potencial da Emília para inventar ou repensar objetos e dinâmicas em sala
de aula, o que você gostaria de propor para um ambiente de ensino-aprendizagem mais
carnavalizado? Escreva uma carta a você mesmo(a) em prol de apresentar essa(s) nova(s)
ideia(s), justificando a importância das sugestões, tendo sempre como base suas experiências.

65
4ª REFEIÇÃO

IMPORTANTE SABER

A carta-correspondência está entre os gêneros mais


aplicados nas comunicações cotidianas.A principal
característica dessa interação discursiva é a
existência de um diálogo entre dois interlocutores: um
emissor (remetente) e um receptor (destinatário).
Com os avanços tecnológicos, a carta passou por um processo de adaptação nas formas de
envio e de recebimento, que deixou de ocorrer somente em papel e assumiu o meio eletrônico.Na
atualidade, a forma de transmissão mais utilizada para interação por meio de carta é com o
e-mail (electronic-mail ou correio eletrônico).
As cartas pessoais não seguem um modelo pronto. Nelas, o texto reflete as intenções do
remente ao destinatário. Pela liberdade estrutural proporcionada pelo gênero, há a possibilidade
de desenvolvê-lo em aspectos menos utilitários relacionados à comunicação e, potencialmente,
mais poéticos.

Sobremesa
Adoce suas convicções!

Não mais nos surpreende considerar que gêneros textuais


relacionados à alimentação sejam frequentemente associados
a outras produções, inclusive de caráter literário. A esse
respeito, por exemplo, a autora Cristiane Lisbôa publicou
“PAPEL MANTEIGA PARA EMBRULHAR SEGREDOS: CARTAS CULINÁRIAS“, uma ficção
baseada nos gêneros carta e receita. Nele, é possível
perceber, pelos relatos pessoais que compõem as cartas,
diversos valores socioculturais do narrador se materializarem
em ingredientes, modos de preparo e dicas.

66
4ª REFEIÇÃO

É igualmente compreensível que os textos que evidenciam a natureza cotidiana sejam alvos
frequentes de abordagens em que os signos da alimentação sejam destacados. Em “A última
crônica“, por exemplo, Fernando Sabino caracteriza a experiência alimentar de uma família
negra e humilde em contexto de comemoração.
Hoje, a sobremesa será à sua escolha: a seguir, os textos referenciados são apresentados entre
os códigos QR que seguem. Aponte a câmera do seu celular em direção às imagens e escolha a
opção de leitura final que lhe parecer mais apetitosa. Não se esqueça de que elas podem ser
multiplicadas e recontextualizadas em diversas dinâmicas de leitura em sala de aula!

Aceita um café?
PARA CONTRIBUIR COM A DIGESTÃO DE IDEIAS,SUGESTÃO DE LEITURA COMPLEMENTAR!
“A cozinha das escritoras“
(de Stefania Aphel Barzini)
Dez grandes escritoras, dez diferentes maneiras de se
interpretar literatura e cozinha. Cozinhar e comer muito tem a
ver com a arte da escrita: cozinheira e escritora compartilham
do poder da criação, enchem a sua arte de personalidade e de
sabor, e capricham até chegar ao ponto certo e desejado. “A
cozinha das escritoras“ põe à mesa pequenas biografias
gastronômicas de grandes mulheres da literatura
internacional, contando as relações de amor e ódio, exagero e
escassez de cada uma delas com a comida. E para deixar a
leitura ainda mais saborosa, a autora apresenta as receitas
dos pratos que fizeram parte da vida de cada uma delas, como
o robalo de Getrude Stein em homenagem a Picasso e a geleia de
maçã e limão, preferida de Virginia Woolf.

67
5ª REFEIÇÃO

”A gente nao quer so comer/A gente quer comer e quer fazer amor”

Objetivo:
Dialogar sobre os valores afetivos manifestados pela comida e pelos textos
literários; a comida e a literatura como símbolos de emoção e de memória.

68
5ª REFEIÇÃO

Aperitivo
Comer junto, além de ser um ato de sociabilidade, implica no registro de memórias. Em um
presente em que a falta de tempo é justificativa para abdicarmos de hábitos formadores de
nossa identidade, experiências com a alimentação parecem evocar e registrar traços
particulares de emoção. “Comida afetiva“, por exemplo, tem sido a expressão usada para
representar o consumo de instantes sociais em que o corpo físico e o subjetivo são alimentados
– e, com isso, o indivíduo busca se conectar a valores intimamente humanos. De modo análogo,
experiências literárias podem também ser capazes de permitir que a nossa leitura das palavras
favoreça leituras de mundo e, por conseguinte, sejamos alimentados de significados. Nessa
lógica poética, pratos e livros viram referências metafóricas na tentativa de transformar a sala
de aula em um ambiente potencialmente marcado por memórias: está na hora de colocar os
pratos nas carteiras, os livros para fermentar novas ideias e servir experiências que resgatem
todos os ingredientes emotivos que uma classe pode contemplar. É preciso continuar a pensar a
docência em seus sabores mais marcantes – de preferência, por meio de práticas
generosamente temperadas com açúcar e com afeto!

Couvert
Deguste nossas primeiras provocações!
Que experiência de prática docente lhe motiva a pensar a sala de aula enquanto espaço de
afetividades?

Entrada
Comece a se alimentar com nossa seleção de ideias!

APRENDENDO DAS COZINHEIRAS


Rubem Alves
A se acreditar em entendidos em coisas de outros mundos, já devo ter sido cozinheiro em alguma
vida passada. É que tenho um fascínio enorme pelas panelas, pelo fogo, pelos temperos e por
toda a bruxaria que acontece nas cozinhas, para a produção das coisas que são boas para o
corpo. Não é só uma questão de sobrevivência. Os cozinheiros dos meus sonhos não se parecem
com especialistas em dietética.

69
5ª REFEIÇÃO

Interessa-me mais o prazer que aparece no rosto curioso e sorridente de alguém que tira a
tampa da panela, para ver o que está lá dentro. Minhas cozinhas, em minhas fantasias, nada têm
a ver com estas de hoje, modernas, madeiras sem a memória dos cortes passados e das coisas
que se derramaram, tudo movido a botão, forno de micro-ondas, adeus aos jogos eróticos
preliminares de espiar, cheirar, beliscar, provar, perfurar... Tudo rápido, tudo prático, tudo
funcional. Imaginei que quem assim trata a cozinha, no amor deve ser semelhante aos galos e
galinhas, quanto mais depressa melhor, há coisas mais importantes a se fazer. Como aquele
vendedor de pílulas contra a sede, da estória do "Pequeno Príncipe". Ir até o filtro é uma perda
de tempo. Com a pílula elimina-se a perda inútil.

“E que é que eu faço com o tempo que eu perco?" — perguntou o Principezinho.


"...Você faz o que quiser", respondeu o vendedor.
“— Que bom! Então, é isto o que vou fazer, ir bem devagarzinho, mãos nos bolsos, até a fonte,
beber água..."

Quero voltar à cozinha lenta, erótica, lugar onde a química está mais próxima da vida e do
prazer, cozinha velha, quem sabe com alguns picumãs pendurados no teto, testemunhos de que
até mesmo as aranhas se sentem bem ali.

Nada melhor que o contraste. A sala de visitas, por exemplo. Lá no interior de Minas, faz tempo.
Retrato silencioso oval do avô, na parede; samambaia no cachepô de madeira envernizada;
porta-bibelôs; as cadeiras, encostos verticais, 90 graus, para que ninguém se acomodasse;
capas brancas engomadas pra que nenhuma cabeça brilhantinosa se encostasse; os donos
dizendo em silêncio "está mesmo na hora", enquanto a boca mente dizendo "ainda é cedo", na
hora da partida, junto com as recomendações á tia Sinhá (porque toda família tinha de ter uma
tia Sinhá). Aí a porta se fechava, e a vida recomeçava, na cozinha...

A porta da rua ficava aberta. Era só ir entrando. Se não encontrasse ninguém não tinha
importância, porque em cima do fogão estava a cafeteira de folha, sempre quente, para quem
quisesse. Tomava-se o café e ia-se embora, havendo recebido o reconforto daquela cozinha vazia
e acolhedora. Eu diria que a cozinha é o útero da casa: lugar onde a vida cresce e o prazer
acontece, quente... Tudo provoca o corpo e sentidos adormecidos acordam. São os cheiros de
fumaça, da gordura queimada, do pão de queijo que cresce no forno, dos temperos que
transubstanciam os gostos, profundos dentro do nariz e do cérebro, até o lugar onde mora a
alma. Os gostos sem fim, nunca iguais, presentes na ponta da colher para a prova, enquanto o
ouvido se deixa embalar pelo ruído crespo da fritura e os olhos aprendem a escultura dos gostos
e dos odores nas cores que sugerem o prazer...

70
5ª REFEIÇÃO

Cozinha: ali se aprende a vida. É como uma escola em que o corpo, obrigado a comer para
sobreviver, acaba por descobrir que o prazer vem de contrabando. A pura utilidade alimentar,
coisa boa para a saúde, pela magia da culinária, se torna arte, brinquedo, fruição, alegria.
Cozinha, lugar dos risos...

Pensei então se não haveria algo que os professores pudessem aprender com os cozinheiros: que
a cozinha fosse a antecâmara da sala de aulas, e que os professores tivessem sido antes, pelo
menos nas fantasias e nos desejos, mestres-cucas, especialistas, nas pequenas coisas que
fazem o corpo sorrir de antecipação. Isto. Uma Filosofia Culinária da Educação. Imaginei que os
professores, acostumados a homens ilustres, sem cheiro de cebola na mão, haveriam de se
ofender, pensando que isto não passa de uma gozação minha.

Logo me tranquilizei, ouvindo a sabedoria de Ludwig Feuerbach, a quem até mesmo Marx prestou
atenção: "O homem é aquilo que ele come". Abaixo Descartes. Idéias claras e distintas podem ser
boas para o pensamento. Também bombas atômicas e as contas do FMI são boas para serem
pensadas. Só que não podem ser amadas, não têm gosto e nem cheiro, e por isto mesmo a boca
não as saboreia e não entram em nossa carne.

Imitar os que preparam as coisas boas e ensinam os sabores...

A primeira lição é que não há palavra que possa ensinar o gosto do feijão ou o cheiro do coentro.
É preciso provar, cheirar, só um pouquinho, e ficar ali, atento, para que o corpo escute a fala
silenciosa do gosto e do cheiro. Explicar o gosto, enunciar o cheiro; pra estas coisas a Ciência de
nada vale; é preciso sapiência, ciência saborosa, para se caminhar na cozinha, este lugar de
saber-sabor. Cozinheiro: bruxo, sedutor. "— Vamos, prove, veja como está bom..." Palavras que
não transmitem saber, mas atentam para um sabor. O que importa está para além da palavra. É
indizível. Como ele seria tolo se avaliasse seus alunos por meio de testes de múltipla escolha. É
assim com a vida inteira, que não pode ser dita, mas apenas sugerida. Lembro-me do mestre
Barthes, a quem amo sem ter conhecido, que compreendia que tudo começa nesta relação
amorosa, ligeiramente erótica, entre mestre e aprendiz, e que só aí que se pode saborear, como
numa refeição eucarística, os pratos que o mestre preparou com a sua própria carne...

A lição dois é que o prazer do gosto e do cheiro não convivem com a barriga cheia. O prazer
cresce em meio às pequenas abstenções, às provas que só tocam a língua... É aí que o corpo vai
se descobrindo como entidade maravilhosamente polimórfica na sua infindável capacidade para

71
5ª REFEIÇÃO

sentir prazeres não pensados. Já os estômagos estufados põem fim ao prazer, pedem os
digestivos, o sono e a obesidade. Cozinheiros de tropa nada sabem sobre o prazer. A comida se
produz às dezenas de quilos. Pouco importa que os corpos sorriam. Comida combustível. Que os
corpos continuem a marchar. Melhor se fossem pílulas. Abolição da cozinha, abolição do prazer:
pura utilidade, zero de fruição.
"— Estava boa a comida?"
"— Ótima. Comi um quilo e duzentas gramas..."
Equação desejável, pela redução do prazer à quantidade de gramas. Não deixa de ser uma
Filosofia... Como aquela que desemboca nos cursinhos vestibulares e já se anuncia desde a
primeira série do primeiro grau. Não se trata da erotização do corpo. Para a engorda tais
sensibilidades são dispensáveis. Artifício na criação de gansos, para a obtenção de fígados
maiores: funis goelas abaixo e por ali a comida sem gosto. Afinal, por que razão o prazer de um
ganso seria importante? Seus donos sabem o que é melhor para eles... Vi nossos moços assim,
funis goela abaixo, e depois vomitando e pensando o seu vômito. A isto se chama ver quantos
pontos se fez no vestibular...
Entendem por que eu queria uma filosofia culinária de educação? É que temos tornado os
criadores de ganso como modelos...
ALVES, Rubem.Aprendendo das cozinheiras. In:Estórias de quem gosta de ensinar – O fim dos vestibulares. São
Paulo: Ars Poética, 1995.

Prato Principal
Alimente sua saciedade!

VOCE SABIA?
Rubem Braga (1913-1990) foi um escritor e jornalista
brasileiro, nascido em Cachoeiro do Itapemirim, no
Espírito Santo.
Dedicou-se exclusivamente à crônica, que o tornou
popular, escrevendo para diversos jornais. Entre as
palavras, mostrava seu estilo irônico, lírico e
extremamente bem-humorado. Sabia também ser ácido
e escrevia textos duros defendendo os seus pontos de
vista. Fazia crítica social, denunciava injustiças, a falta
de liberdade da imprensa e combatia

72
5ª REFEIÇÃO

ALMOÇO MINEIRO
Rubem Braga
Éramos dezesseis, incluindo quatro automóveis, uma charrete, três diplomatas, dois jornalistas,
um capitão-tenente da Marinha, um tenente-coronel da Força Pública, um empresário do
cassino, um prefeito, uma senhora loura e três morenas, dois oficiais de gabinete, uma criança de
colo e outra de fita cor-de-rosa que se fazia acompanhar de uma boneca. Falamos de vários
assuntos inconfessáveis. Depois de alguns minutos de debates ficou assentado que Poços de
Caldas é uma linda cidade. Também se deliberou, depois de ouvidos vários oradores, que estava
um dia muito bonito. A palestra foi decaindo então, para assuntos muitos escabrosos: discutiu-se
até política. Depois que uma senhora paulista e outra carioca trocaram ideias a respeito do
separatismo, um cavalheiro ergueu um brinde ao Brasil. Logo se levantaram outros, que,
infelizmente, não nos foi possível anotar, em vista de estarmos situados na extremidade da
mesa. Pelo entusiasmo reinante supomos que foram brindados o soldado desconhecido, as tardes
de outono, as flores dos vergéis, os proletários armênios e as pessoas presentes. O certo é que
um preto fazia funcionar a sua harmônica, ou talvez a sua concertina, com bastante sentimento.
Seu Nhonhô cantou ao violão com a pureza e a operosidade inerentes a um velho funcionário
municipal.

Mas nós todos sentíamos, no fundo do coração, que nada tinha importância, nem a Força Pública,
nem o violão de seu Nhonhô, nem mesmo as águas sulfurosas. Acima de tudo pairava o divino
lombo de porco com tutu de feijão. O lombo era macio e tão suave que todos imaginamos que o
seu primitivo dono devia ser um porco extremamente gentil, expoente da mais fina flor da
espiritualidade suína. O tutu era um tutu honesto, forte, poderoso, saudável.

É inútil dizer qualquer coisa a respeito dos torresmos. Eram torresmos trigueiros como a doce
amada de Salomão, alguns louros, outros mulatos. Uns estavam molinhos, quase simples gordura.
Outros eram duros e enroscados, com dois ou três fios.

Havia arroz sem colorau, couve e pão. Sobre a toalha havia também copos cheios de vinho ou de
água mineral, sorrisos, manchas de sol e a frescura do vento que sussurrava nas árvores. E no
fim de tudo houve fotografias. É possível que nesse intervalo tenhamos esquecido uma
encantadora linguiça de porco e talvez um pouco de farofa. Que importa? O lombo era o
essencial, e a sua essência era sublime. Por fora era escuro, com tons de ouro. A faca penetrava
nele tão docemente como a alma de uma virgem pura entra no céu. A polpa se abria, levemente
enfibrada, muito branquinha, desse branco leitoso e doce que têm certas nuvens às quatro e

73
5ª REFEIÇÃO

meia da tarde, na primavera. O gosto era de um salgado distante e de uma ternura quase musical.
Era um gosto indefinível e puríssimo, como se o lombo fosse lombinho da orelha de um anjo ouro.
Os torresmos davam uma nota marítima, salgados e excitantes da saliva. O tutu tinha o sabor
que deve ter, para uma criança que fosse gourmet de todas as terras, a terra virgem recolhida
muito longe do solo, sob um prado cheio de flores, terra com um perfume vegetal diluído mas
uniforme. E do prato inteiro, onde havia um ameno jogo de cores cuja nota mais viva era o verde
molhado da couve — do prato inteiro, que fumegava suavemente, subia para a nossa alma um
encanto abençoado de coisas simples e boas.

Era o encanto de Minas.

BRAGA, Rubem.Almoço Mineiro. In: Morro do isolamento: crônicas de Rubem Braga. Rio de Janeiro: Record, 1982.

MEDITAÇÃO 14: DO PRAZER DA MESA


Brillat-Savarin
(fragmentos)
7.3 DIFERENÇAS ENTRE O PRAZER DE COMER E O PRAZER DA MESA

O prazer de comer é a sensação atual e direta de uma necessidade que se satisfaz.


O prazer da mesa é a sensação refletida que nasce das diversas circunstâncias de fatos, lugares,
coisas e personagens que acompanham a refeição.
O prazer de comer, nós o temos em comum com os animais; supõe apenas a fome e o que é
preciso para satisfazê-la.
O prazer da mesa é próprio da espécie humana; supõe cuidados preliminares com o preparo da
refeição, com a escolha do local e a reunião dos convidados.
O prazer de comer, exige, se não a fome, ao menos o apetite; o prazer da mesa, na maioria das
vezes, independe de ambos.
Esses dois estados podem ser observados em nossos festins.
No começo da refeição, todos comem avidamente, sem falar, sem prestar atenção no que pode
ser dito; e, não importa a posição social, todos se esquecem de tudo e se comportam como
simples operários da grande fábrica da natureza. Mas, quando a necessidade começa a ser
satisfeita, a reflexão desperta, a conversação se estabelece, uma outra ordem de coisas
principia; e aquele que até então era apenas um consumidor, torna-se uma companhia mais ou
menos agradável, conforme os meios que o Senhor de todas as coisas lhe concedeu.

74
5ª REFEIÇÃO

7.4 EFEITOS

O prazer da mesa não comporta arrebatamentos, nem êxtases, nem transportes, mas ganha em
duração o que perde em intensidade, e se distingue sobretudo pelo privilégio particular de nos
inclinar a todos os outros prazeres, ou, pelo menos, de nos consolar por sua perda.
Com efeito, após uma boa refeição, o corpo e a alma gozam de um bem-estar especial.
SAVARIN, Brillat. Meditação 14: Do prazer da mesa. In: A fisiologia do gosto. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.

Bebida
Aprecie sem moderação!

COMIDA NO PRATO
Martha Medeiros

Daniel Filho é um diretor incansável, sempre disposto a novos desafios, mesmo já tendo
conquistado seu lugar de honra entre os maiores nomes do cinema e da tevê brasileira. Quando
ele tinha 72 anos e filmava o longa-metragem sobre Chico Xavier, alguém perguntou por que ele
não parava de trabalhar. Ele respondeu: “Minha mãe me ensinou a nunca deixar comida no prato.
E tem comida no prato“.
Filosofia do dia-a-dia. Está explicada a dificuldade que muitos sentem ao se aposentar. Ainda tem
comida no prato. É uma sensação comum também a todos os que são sutilmente convidados a
saírem de cena, tendo suas solicitações de emprego negadas ou deixando de serem chamados
para participar de reuniões familiares e sociais. Como assim, se ainda tem comida no prato?
Mais do que comida no prato, ainda existe fome.
O ser humano aceita a ideia da morte (real ou figurada) apenas quando não se reconhece mais
como um faminto, quando o corpo cansa, a mente falha e a alma pede pra sair. Quando não há
mais vontades, desejos, planos. Quando não vê mais necessidade de alimentar-se do que a vida
oferece – música, cinema, amigos, natureza, sexo. Quando não há mais um sonho para renovar a
energia, um projeto passível de realização, nenhuma esperança de que amanhã tudo possa
mudar. Quando a sensação for de completo enfado. Quando não houver mais comida no prato.

75
5ª REFEIÇÃO

Será que esse dia chega, mesmo?


Às vezes me consola pensar que sim, que chegará o dia em que estarei esgotada de tantas
emoções vividas, de tanta agitação em volta, e em que a ideia de descansar em paz não será tão
aterrorizante. Trabalho feito, missão cumprida, uma vida aproveitada até a rapa – o que mais se
pode querer? A comida some do prato e levantamos da mesa sem a sensação de estarmos nos
antecipando. É um plano de retirada maduro e consciente.
Porém, converso com pessoas que estão na chamada terceira idade e elas me dizem: não mesmo.
Não é assim. “Quero mais“, dizem todas elas, mesmo com artrite, catarata, apoiados em bengalas.
“Quero mais“. Alcançam o seu prato para o chefe da cozinha e exigem uma porção adicional, e mais
uma, e outra, e de novo. Quem ousará acusá-las de fominhas?
Para quem encara como um privilégio o fato de ter nascido, para quem não permite que suas
potencialidades, mesmo reduzidas, sejam vencidas pelo desânimo, para quem domina a arte de
temperar o convívio com as pessoas que ama, nunca chegará o dia de declarar-se satisfeito. Aos
79, aos 84, aos 91, aos 98: enquanto a vida parecer suculenta, ninguém há de cruzar os talheres.
(Disponível em URL<https://www.facebook.com/marthamattosmedeiros/posts/1834036329957015/>.
Acesso em: 29-09-20.)

Harmonização
DIALOGUE SOBRE SUAS COMBINAÇÕES!
Nem só de mastigar vive o comer!
A comida e seus ritos simbólicos são sempre capazes de apresentar uma nova dimensão para as
interações sociais. Se para Rubem Alves a cozinha é o espaço onde o corpo aprende sobre a vida
e descobre o prazer, também nela Rubem Braga encontra, em meio às memórias sobre a cozinha
mineira, emoções que conferem afetividade a um almoço. É verdade que, como conceituou Savarin,
a mesa é ainda um repositório de prazeres próprio da espécie humana. Compartilhar uma
refeição é um ato de intimidade entre as identidades sociais. Nesse sentido, enquanto houver
possibilidade de interação, tentaremos manter comida no prato para que possamos perpetuar
as refeições coletivas – ou, minimamente, vislumbrar no alimento uma metáfora para nossa
energia vital, como defende Martha Medeiros.

76
5ª REFEIÇÃO

A sala de aula pode e deve ser como a cozinha: um espaço de aromas, sabores, saberes,
descobertas, encantos, resistência, memórias e afetos. O professor não deve ser apenas aquele
que isoladamente produz as refeições, mas sim um agente que vivencia a possibilidade de provar
novos sabores entre tantas receitas e cardápios, ao longo dos anos. Nesse sentido, torna-se
oportuno referenciar importante exposição preconizada por Paulo Freire, figura icônica nos
estudos da pedagogia crítica:

IMPORTANTE SABER

Paulo Freire (1921–1997) foi um


educador e filósofo brasileiro e é
considerado um dos pensadores
mais notáveis na história da
pedagogia mundial, tendo
influenciado o movimento chamado
pedagogia crítica.
Sua prática didática fundamentava-se na crença de que o educando assimilaria o objeto de
estudo fazendo uso de uma prática dialética com sua realidade, em contraposição à por ele
denominada educação bancária, tecnicista e alienante: o educando criaria sua própria
educação, fazendo ele mesmo o caminho, e não seguindo um já previamente construído por
outrem; libertando-se de chavões alienantes, o educando seguiria e criaria o rumo crítico do
seu aprendizado.
Na visão freiriana, a leitura (e, no mesmo sentido, a escrita) somente fará sentido se for
acompanhada de uma capacidade de ler o mundo, de perceber o mundo, de reconhecer os
papéis desempenhados pelos atores do mundo e de reconhecer-se como peça naquele
contexto. Por isso, Freire agia com base nas palavras que faziam parte do cotidiano dos
trabalhadores em processo de alfabetização para ensiná-los.
Freire ainda se destacou por seu trabalho na área da educação popular, voltada tanto para
a escolarização como para a formação da consciência política – legado ainda discutido,
pesquisado e experimentado na prática de diversos educadores contemporâneos.

77
5ª REFEIÇÃO

"O ATO DE COZINHAR, POR EXEMPLO, SUPÕE ALGUNS SABERES CONCERNENTES AO USO DO FOGÃO, COMO ACENDÊ-LO, COMO EQUILIBRAR
PARA MAIS, PARA MENOS, A CHAMA, COMO LIDAR COM CERTOS RISCOS MESMO REMOTOS DE INCÊNDIO, COMO HARMONIZAR OS DIFERENTES
TEMPEROS NUMA SÍNTESE GOSTOSA E ATRAENTE. A PRÁTICA DE COZINHAR VAI PREPARANDO O NOVATO, RATIFICANDO ALGUNS DAQUELES
SABERES, RETIFICANDO OUTROS, E VAI POSSIBILITANDO QUE ELE VIRE COZINHEIRO".

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
p. 2.

Façamos, de nossas salas de aula, cozinhas dialógicas para aprendizagens potencialmente


mediadas por valores de arte, de fruição, de alegria, de riso e de tantos outros princípios que
caracterizam a nossa condição humana!

Sobremesa
ADOCE SUAS CONVICÇÕES!

Alimentação é temática transversal e possibilita investigações sobre abordagens bastante


diversas. Textos literários e/ou outros de natureza artística comprovam o potencial para a
promoção de variadas reflexões. Ao longo dos nossos encontros, buscamos reconhecer ideias
relevantes para serem trabalhadas no contexto da sala de aula. Foram 5 meses de estudos que
favoreceram muitas leituras e diálogos.
Como últimas apresentações textuais
dessa refeição, será ainda possível
visualizar o trabalho do cartunista
Guilherme Bandeira que usa a alimentação
para favorecer análises de temáticas
sociais sob aspecto do humor!

(Disponível em URL
<https://www.facebook.com/objetosinanimadosca
rtoon/photos/a.563534640398234/3115510645200
608>. Acesso em: 29-09-20.)

78
5ª REFEIÇÃO

(Disponível em URL
<https://www.facebook.com/objetosinanimadoscartoon/photos/a.563534640398234/3096113200473686
>. Acesso em: 29-09-20.)

Aceita um café?
PARA CONTRIBUIR COM A DIGESTÃO DE IDEIAS SUGESTÃO DE LEITURA COMPLEMENTAR
, !
“A Poesia é para comer - Iguarias Para o Corpo e o Espírito“
(de Ana Vidal)
Ana Vidal surge com a saborosa ideia de juntar poemas de nomes consagrados da lusofonia
(brasileiros, africanos, indianos e portugueses) a receitas culinárias inéditas mas
comprovadamente deliciosas, com as quais esses poemas tivessem alguma relação. Dividiu os
pratos por Prelúdios Inspirados (entradas), Boas Companhias (acompanhamentos), Presentes
do Mar (peixes), Prazeres da Carne (carnes), Finais Felizes (sobremesas) e Néctares dos
Deuses (bebidas). Um livro para saborear, durante muito tempo.

“Os Sabores da Língua Portuguesa“


(de Luís Simões. )
Neste livro, o jovem chef português Luís Simões apresenta 36 receitas típicas dos 9 países que
têm a língua portuguesa como idioma oficial, reconhecendo as semelhanças que compartilham e
valorizando as diferenças de cada um. Os pratos trazem ingredientes específicos de cada região,
mas, sempre que é preciso, é apresentada uma sugestão uma substituição por um ingrediente
mais facilmente encontrado no Brasil. A edição original desta obra, publicada em Portugal, foi
laureada com a mais conceituada premiação mundial de livros de gastronomia, O Gourmand
Cookbook.

79
5ª REFEIÇÃO

Cooked
(Netflix)

Cooked é uma série documental, produzida pela Netflix e


lançada em 2016. Ela retrata a nossa relação com os
alimentos, mostrando como essa relação foi permeada de
tradições e costumes, cultivados e transmitidos ao longo
da evolução humana. Muito desse conhecimento está
presente em nosso cotidiano, sem que percebamos esse
fato. A série é baseada no livro do jornalista Michaell
Pollan; são quatro episódios, denominados fogo, água, ar e
terra, respectivamente. Os quatro elementos que
representam nossa conexão com o planeta e ao longo dos
episódios acompanhamos Pollan numa narrativa
deslumbrante.

Fome, comida e bebida na música popular brasileira: um breve ensaio


O artigo reflete sobre como as temáticas fome,
consumo de refrigerantes e consumo de feijão com
arroz são enfocadas na música popular brasileira.
Francisco de Assis Guedes, Mariana Perrelli e Iris Helena
Guedes investigam os anos de ditadura militar
(1964-1985), com foco na análise das chamadas canções
de protesto. Tomando como referencial teórico os
estudos de ideologia e filosofia da linguagem de Mikhail
Bakhtin, os autores evidenciam que o gênero textual
retratou elementos dos contextos econômico, político e
social, e propiciou a difusão de hábitos e ideologias
alimentares saudáveis ou não saudáveis, contribuindo
para a construção da identidade alimentar brasileira.
Aponte a câmera do seu celular em direção à imagem do
código QR e faça acesso ao conteúdo!

80
AGRADECIMENTO AOS LEITORES

Caros leitores, este caderno pedagógico apresenta mais uma possibilidade para o trabalho com a
formação do professor de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental II, a partir de interlocuções entre a
Gastronomia, a carnavalização e os saberes que emergem do cotidiano escolar.

Esperamos que este material seja um suporte para o trabalho em sala de aula e que, longe de ser uma
“receita pedagógica“, possa trazer novas possibilidades para as práticas de leitura na escola, de forma a
cotejar ideias e visões de mundo plurais no contexto da sala de aula, sob a ótica da carnavalização da
linguagem literária representada em cenas, excertos e metáforas que constituem a ficção.

Acreditamos que, por intermédio deste material, novas discussões sobre a formação docente na área de
Letras e a leitura na escola poderão ser ampliadas no que tange à participação mais efetiva de
professores e alunos nos processos que envolvem o contato com os textos ficcionais, para além das suas
materialidades, uma vez que rupturas pedagógicas com orientações normativas e posturas descoladas da
realidade dos leitores precisam adentrar a sala de aula!

Agradecemos por sua leitura e contamos com suas contribuições para que o trabalho seja configurado à
luz da pluralidade discursiva e da dialogia no encontro com os livros. Colocamo-nos à disposição para
incrementar novos saberes na certeza de que estamos em busca de uma escola mais participativa e
formadora de cidadãos críticos e reflexivos.

Os autores

81
REFERENCIAS

BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 1ª. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2010.

_________. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São
Paulo: Hucitec, 2008.

_________. (V. N. Volochínov. Marxismo e filosofia de linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi
Vieira. São Paulo: Hucitec, 2004.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999.

DÓRIA, Carlos Alberto. Estrelas no céu da boca: escritos sobre culinária e gastronomia. São Paulo:
Senac, 2006.

_________.A cozinha materialista. São Paulo: Senac, 2009.

FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores
Associados: Cortez, 1989.

_________. Pedagogia da autonomia. 34. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006.

MONTANARI, Massimo (Org.). O mundo na cozinha: história, identidade, trocas. São Paulo: Senac São
Paulo, 2009.

SANTOS, C. R. A. dos. A alimentação e o seu lugar na História. Os tempos da memória gustativa.


História: Questões & Debates, n. 42, 2005.

SAVARIN, Brillat. A fisiologia do gosto. São Paulo: Companhia da Letras, 1995.

SOERENSEN, Claudiana. A carnavalização e o riso segundo Mikhail Bakhtin. Texto disponível em:
http://e-revista.unioeste.br/index.php/travessias/article/view/4370. Acesso em 14.10.19.

82
REFERENCIAS DAS IMAGENS
Foto - Mikhail Bahtin (página 11)
https://pt.wikipedia.org/wiki/Mikhail_Bakhtin
Foto - Rubem Alves (página 17)
https://clubedapipoca.com/blog/milho-de-pipoca-rubem-alves/
Foto - Clarice Lispector (página 20)
https://claricelispectorims.com.br/blog/conversa-com-jose-castello/
Foto - Massimo Montanari (página 23)
https://www.ilnuovodiario.com/2020/01/22/dagli-spaghetti-alle-origini-a-lugo-lo-storico-dellalimentazione-m
ontanari-presenta-il-suo-saggio/
Capa do Livro - À mesa com Monteiro Lobato (página 26)
https://paladar.estadao.com.br/noticias/comida,quitutes-de-pedro-e-lobato-esquentam-paraty-durante-a-fli
p,10000008705
Capa do Livro - Livro de Receitas do Professor de Português (página 27)
https://www.amazon.com.br/Livro-Receitas-Professor-Portugu%C3%AAs-Atividades/dp/857526074X
Capa do Filme - Como água para chocolate (página 27)
https://br.pinterest.com/pin/641340803161309390/?nic_v2=1a4inXgrU
Foto - Nina Horta (página 29)
https://veja.abril.com.br/cultura/nina-horta-colunista-de-gastronomia-morre-aos-80-anos/
Foto - Luis Fernando Verissimo (página 31)
https://memoria.ebc.com.br/2012/12/luis-fernando-verissimo-tem-alta-apos-24-dias-de-internacao
Foto - Elisa Lucinda dos Campos Gomes (página 39)
https://www.brasil247.com/cultura/elisa-lucinda-tudo-o-que-eu-ganhei-na-vida-foi-a-poesia-que-me-deu
Capa do Livro - A comida baiana de Jorge Amado (página 41)
https://www.amazon.com.br/comida-baiana-Jorge-Amado/dp/8567431034
Foto - Cora Coralina (página 43)
https://vermelho.org.br/prosa-poesia-arte/cora-coralina-a-doceira-poeta-que-publicou-seu-1o-livro-aos-75-
anos/
Foto - Sarah Vervloet (página 57)
https://chadechama.wordpress.com/
Ilustração de carta (página 66)
https://www.pinclipart.com/pindetail/ibowTmR_envelope-de-carta-desenho-clipart/
Capa do Livro - A cozinha das escritoras: (página 67)
https://www.amazon.com.br/Cozinha-das-Escritoras-Stefania-Aphel/dp/8582400748
Foto - Rubem Braga (página 72)
https://eshoje.com.br/lei-rubem-braga-ganha-novo-selo-e-um-cineclube/
Capa de Serie (Netflix) - Cooked (página 80) https://hashitag.com.br/serie-cooked/

83

Você também pode gostar