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LITERATURA A MESA:
Refeições para alimentar a formação docente
LITERATURA A MESA:
Refeições para alimentar a formação docente
1ª Edição
2020
INSTITUTO FEDERAL
Espírito Santo
Programa de Pós-Graduação
em Ensino de Humanidades
Instituto Federal do Espírito Santo
Vitória - ES
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
(Biblioteca Nilo Peçanha do Instituto Federal do Espírito Santo)
CDD 22 – 869.07
Elaborada por Marcileia Seibert de Barcellos – CRB-6/ES - 656
COMISSÃO CIENTÍFICA
Fernanda Zanetti Becalli
Luciano Novaes Vidon
REVISÃO DO TEXTO
Letícia Queiroz de Carvalho
PRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO
Programa PPGEH / IFES
INSTITUTO FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
JADIR JOSÉ PELA
Reitor
ANDRE ROMERO DA SILVA
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação
RENATO TANNURE ROTTA DE ALMEIDA
Pró-Reitor de Extensão
ADRIANA PIONTTKOVSKY BARCELLOS
Pró-Reitora de Ensino
LEZI JOSÉ FERREIRA
Pró-Reitor de Administração e Orçamento
LUCIANO DE OLIVEIRA TOLEDO
Pró-Reitor de Desenvolvimento Institucional
MÁRCIO ALMEIDA CÓ
Diretor de Ensino
CHRISTIAN MARIANI
Diretor de Extensão
SUMARIO
Apresentação 07
Sugestões pedagógicas:
4ª Refeição 5ª Refeição
“A gente não quer só “A gente não quer só comer
comida / A gente quer / A gente quer comer e quer
saída para qualquer parte” fazer amor”
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Agradecimento aos leitores 81
Referências 82
APRESENTACAO
Este caderno pedagógico nasceu de um percurso investigativo realizado no Mestrado Profissional em
Ensino de Humanidades, do Instituto Federal do Espírito Santo – campus Vitória, a partir de um projeto de
extensão realizado com professores e professoras de Língua Portuguesa da rede municipal de educação
de Vila Velha – ES, de fevereiro a julho de 2020, intitulado DIÁLOGOS DOCENTES: PARCERIA, FORMAÇÃO E PRÁTICA, parte
integrante da pesquisa CONSIDERAÇÕES SOBRE O APETITE LITERÁRIO: PITADAS DE GASTRONOMIA E DE CARNAVALIZAÇÃO NA FORMAÇÃO DE
PROFESSORES DE LÍNGUA PORTUGUESA, realizada no âmbito do PPGEH, do Ifes Vitória.
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PITADAS DE GASTRONOMIA E DE CARNAVALIZACAO NA SALA DE AULA:
UM MISE EN PLACE TEORICO
Verdade seja dita: a cozinha sempre nos aproximou de valiosos registros – fosse pelo resgate a receitas
típicas de família ou por importantes momentos da vida celebrados à mesa. Com a fome de quem digeria
Ariano Suassuna ao mesmo tempo que devorava Jorge Amado, as delícias produzidas por Dona Flor, por
exemplo, excitavam-me¹ de uma curiosidade que me fazia ir para a cozinha na tentativa de reproduzi-las;
com o apetite calmo, a leitura normalmente seguia fluente e ainda registrava ótimas memórias da
experiência. Há anos, os diferentes sabores representados pelas leituras pululavam no inconsciente e, aos
poucos, foram me direcionando para uma curiosa relação da literatura com o forno e o fogão.
Contudo, encerrar o expediente de professor de português para ir às aulas de História da Alimentação e
Sociologia da Alimentação, em 2016, foi o que realmente fez ressurgir, em mim, um novo encantamento em
estudos. Rituais, histórias, valores simbólicos e identidade tornaram-se os elementos que me projetavam
maior respeito e admiração pela comida e as interações que ela proporciona. Nesse instante, passei a
realmente ler a alimentação no texto literário com olhares mais gulosos.
Os simbolismos da alimentação me motivavam a estimular textos que a eles se relacionassem aos meus
alunos do ensino médio. Iniciei atividades de sensibilização à literatura brasileira por meio de referências
alimentares presentes em algumas obras e o resultado foi surpreendente: os alunos devoraram os livros.
Por isso, algumas questões relacionadas ao ensino de literatura por meio de referências da alimentação
passaram a aparecer de modo recorrente em minhas práticas: Pode a “temática alimentar“ realmente
contribuir com o estímulo à literatura? Como utilizar os valores culturais da alimentação para o incentivo
a leituras críticas? Como os saberes da alimentação podem estruturar categorias temáticas para a
sensibilização de leituras críticas?
Essa inquietação quanto à possibilidade de desenvolver, sistematizar e validar uma metodologia diferente
no ensino de literatura e no estímulo a leituras críticas incentivou a minha candidatura no Programa de
Pós-Graduação em Ensino de Humanidades (PPGEH) do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), em 2018.
A escolha em ingressar em um Mestrado Profissional estabeleceu-se pela oportunidade de elaborar uma
pesquisa que dialogasse com minhas experiências em sala de aula para consolidar o real interesse em
desenvolver dinâmicas pedagógicas que potencializem o objeto de estudo em questão: a relação entre a
gastronomia e seus saberes com os textos literários.
1. Nesse incío de exposição, eu, Murilo, tomo a liberdade de referenciar experiências as particulares que posteriormente
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se juntaram às visões da querida professora Letícia, com quem divido a autoria desse material.
SELECAO DE INGREDIENTES
Os estudos sobre a comida e a alimentação alcançam interesse nas Ciências Humanas exatamente a
partir do entendimento de que a formação do gosto alimentar constitui uma categoria histórica, pois os
padrões de permanência e mudanças dos hábitos e práticas alimentares têm referências na própria
dinâmica social. Enquanto alimentar-se é um ato nutricional, comer, tal como ler, é um ato social, pois, em
sua politização, constitui atitudes ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações. Para
Benemann (2017), a comida desvela processos de socialização como a comensalidade e questões
pertinentes à criação e manutenção da tradição e da identidade; estabelece, ainda, aproximações e
distanciamentos culturais, classificações e simbolismos que transcendem a dimensão puramente biológica.
A comida como um material flexível e, de certa forma, reconhecido entre distintos grupos, proporcionou
aberturas para pensar como é se movimentar entre conceitos que nem sempre oferecem fronteiras
evidentes. Etnia, reconhecimento, exclusão, distinção, classe, geração, gênero etc. estão presentes na
comida. Na mesma medida em que ela estabelece marcadores de diferença, também é capaz de construir
identidades: a comida evoca ainda emoção, memória, tradição e história. Desse modo, como se come, onde
e com quem, quando e o que se come configuram espaços de interação do homem com sua cultura, ora com
mais força, ora com menos, mas que se alternam para constituir o comer e a cozinha.
EQUIPE DE COZINHA
Jean Anthelme Brillat-Savarin² foi um dos mais famosos epicuristas franceses de todos os tempos. Sua
obra A FISIOLOGIA DO GOSTO, publicada em 1825, trata do homem e da comida e se constitui como umas das
primeiras publicações formais de gastronomia; nela, o autor apresenta a seguinte definição: A
gastronomia é o conhecimento fundamentado de tudo o que se refere ao homem, na medida em que ele se
alimenta. Para Savarin, portanto, a gastronomia seria a vertente fenomenológica, simbólica e cultural da
alimentação humana.
VOCE SABIA?
O léxico gastronomia deriva do vocábulo grego gaster, que
significa ventre ou estômago; nomo, para designar lei ou estudo;
finalizando com o sufixo ia, para a formação do substantivo.
Portanto, gastronomia significa, etimologicamente, estudo ou
observância das leis do estômago.
2. Formado em Direito, atuou também como político e cozinheiro na França. Publicou A Fisiologia
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do Gosto dois meses antes de seu falecimento, em 1826, obra em que propõe uma teoria
científica para a gastronomia.
A gastronomia é um fator cultural tão evidentemente arraigado no ser humano que, segundo Massimo
Montanari (2009), ela pode ser comparada à própria linguagem, servindo até mesmo como veículo de
comunicação:
A cozinha tem sido equiparada à linguagem: como esta, possui vocábulos (os produtos, os
ingredientes), que são organizados segundo regras de gramática (as receitas, que dão
sentindo aos ingredientes, transformando-os em alimentos), de sintaxe (o cardápio, isto é,
a ordem dos pratos) e de retórica (os comportamentos do convívio). A analogia não
funciona apenas no plano técnico-estrutural, mas também para valores simbólicos dos
quais ambos os sistemas são portadores. Exatamente como a linguagem, a cozinha contém
e expressa a cultura de quem a pratica, é depositária das tradições e das identidades de
grupo. Constitui, assim, um extraordinário veículo de autorrepresentação e de comunicação:
não apenas é instrumento de identidade cultural, mas talvez seja o primeiro modo para
entrar em contato com culturas diversas, já que consumir o alimento alheio parece mais
fácil – mesmo que apenas na aparência – do que decodificar-lhe a língua. Bem mais do que
a palavra, a comida auxilia na intermediação entre culturas diferentes, abrindo sistemas
culinários a todas as formas de invenções, cruzamentos e contaminações. (MONTANARI,
2009, p. 11)
Assim, além de um sistema simbólico cultural de representação e de construção identitária, a cozinha traz
também valores manifestados pela expressão do sensível; expõe, nas entrelinhas, uma comunicação
sensorial e afetiva.
EQUIPE DE SERVICO
O pensador francês Roland Barthes³, em sua obra Aula explica que a literatura deve ser entendida como
disciplina que, por seus múltiplos olhares, envolve uma diversidade de saberes e de áreas do conhecimento:
“[...] essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder,
no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura.”
(BARTHES, 1992, p.08)“. Defensor da interdisciplinaridade, Barthes acredita que o texto e, em particular,
o texto literário, manifesta a energia sígnica, resultante de uma pesquisa interdisciplinar. A
interdisciplinaridade questiona a pureza do saber único e absoluto; assim, agir interdisciplinarmente
significa estudar os saberes de forma humana. Na prática, a perspectiva interdisciplinar representa uma
possibilidade de negociação de pontos de vista, de diálogo e de interação entre disciplinas.
Por meio dessa lógica é que no mesmo texto Barthes aponta para o fato de as palavras “saber“ e “sabor“
terem, em latim, a mesma etimologia, pois é o gosto das palavras que faz o saber profundo e fecundo. Com
esse raciocínio, Barthes sugere que a escritura se encontra em toda parte onde as palavras ganham
sabor. Assim, todo o texto barthesiano pode ser corpus de uma leitura sob o signo da intertextualidade,
na medida em que o semiólogo articula saberes em torno do desejo do saber-sabor, sem dicotomia de
fronteiras.
3. Roland Barthes (1915—1980) foi um escritor, sociólogo, crítico literário, semiólogo e filósofo francês. Formado em
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Letras Clássicas, em Gramática e em Filosofia, fez parte da escola estruturalista, influenciado pelo linguista Ferdinand de
Saussure.
Na medida em que comer é culturalmente um símbolo que remete ao hedonismo, produzir sentidos a partir
de signos alimentares em textos literários também pode ser uma prática prazerosa, além de crítica.
Nesse sentido, acreditamos numa prática docente que possa incentivar leituras prazerosas,
interdisciplinares e dialógicas de textos literários a partir da valorização e de uma observação atenta
quanto aos ícones de comida nele manifestados. Ao estabelecer esse comportamento, o professor
dota-se de outra natureza intrinsecamente humana: a de ruptura racional de uma ordem
pré-estabelecida. Com isso, aproximamo-nos do conceito de carnavalização, nossa estimada matriz
teórica para fundamentar uma nova perspectiva de atuação docente.
O GRANDE CONVIVA
A “carnavalização“ é um conceito de Mikhail Mikhailovich Bakhtin estruturado, primeiramente, no livro
Problemas na Poética de Dostoiévski. Contudo, será na obra A CULTURA POPULAR NA IDADE MÉDIA E NO RENASCIMENTO: O
CONTEXTO DE FRANÇOIS RABELAIS que o filósofo russo aprofundará o conceito a partir da análise das principais
obras literárias do renascentista François Rabelais. Para Bakhtin, o carnaval constituía um conjunto de
manifestações da cultura popular medieval e do Renascimento e um princípio, coeso e coerente, de
compreensão de mundo.
VOCE SABIA?
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O carnaval, propriamente dito, não é, evidentemente, um fenômeno literário, mas um espetáculo
ritualístico que funde ações e gestos elaborando uma linguagem própria. Embora no século XXI ainda seja
muito explorado pelos estudos da crítica literária, o conceito de carnavalização não se popularizou em
outras aplicações sociais, entre as quais buscamos recortar uma compreensão mais ampla de como a
carnavalização pode ajudar em busca de um ensino mais prazeroso de literatura.
Conforme Bakhtin (2008) o que se abolia, principalmente, durante o carnaval, era a hierarquia. Leis,
proibições e restrições, padrões determinantes do sistema e da ordem cotidiana são suspensas durante
o carnaval: revoga-se antes de tudo o sistema hierárquico e todas as formas determinadas pela
desigualdade social hierárquica e por qualquer outra espécie de desigualdade entre os homens.
O carnaval perpassa a esfera artística do espetáculo teatral e situa-se nas fronteiras entre a arte e a
vida. O espetáculo carnavalesco, enquanto cultura popular, derruba as barreiras hierárquicas, sociais e
ideológicas. Para o homem medieval, carnaval não era uma forma artística de espetáculo teatral, mas uma
forma concreta - ainda que provisória - da própria vida, que não era simplesmente representada no
palco, mas vivida enquanto durava o carnaval.
Pela ideia de carnavalização, pois, entenderemos alguns princípios fundamentais, como: 1) a
carnavalização do corpo (ou o realismo grotesco); 2) o uso da máscara (ou a confusão e dissolução das
identidades pessoais e sociais) e 3) a relativização da verdade e do poder dominantes (ou o destronamento
do rei).
A representação carnavalesca do corpo, a que Bakhtin enuncia de “realismo grotesco“, é centrada nas
imagens deformadas e exageradas do "baixo corporal": a boca, a barriga, os órgãos genitais. Trata-se de
um corpo em processo natural e constante de mudança, em uma permanente relação com as dinâmicas da
natureza, representadas nos atos de comer, defecar, urinar, copular, parir, entre outros. Muito da
tradição de elaborações caricaturais radica, nas imagens grotescas, o corpo carnavalizado; o grotesco
rebaixa e degrada o sublime, o abstrato, o ideal, transferindo para o plano material e corporal aspectos
elevados.
O uso da máscara simboliza uma das características mais marcantes do carnaval: a
confusão e a dissolução das identidades pessoais e sociais. Mascarar-se pode representar,
metaforicamente, o triunfo da alteridade durante aquele tempo convencionalmente reservado à
transgressão. Nos rituais carnavalescos, o mascaramento é um ato característico da inversão de valores,
uma vez que ao despir-se da real identidade por meio da máscara, escancara-se a relativização do regime
hierárquico, instaura-se a liberdade e elimina-se a distância entre as pessoas.
A relativização da verdade e do poder dominantes constitui um dos sentidos mais profundos do riso
carnavalesco. O riso significava libertação dos padrões sérios e oficiais: ao ridicularizar tudo o que se
afasta de uma condição definitiva, o carnaval celebra a mudança e a renovação do mundo. O riso liberta de
tudo que oprime, sobretudo, o medo limitador, já que não impõe nenhuma interdição, nenhuma restrição
aos objetos a que se destina.
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Todas as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo da alternância e da
mudança, da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades do poder. Compreender o
conceito de carnavalização, assim, é imprescindível para o entendimento de que a carnavalização da
literatura é materializada na transposição da linguagem carnavalesca para a linguagem literária.
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PARA SABER MAIS
Bakhtin e o Círculo
Bakhtin foi um dos mais destacados pensadores de uma rede de profissionais preocupados com as formas
de estudar linguagem, literatura e arte, o que incluía o linguista Valentin Voloshinov (1895-1936) e o
teórico literário Pavel Medvedev (1891-1938). Utiliza-se a expressão Círculo de Bakhtin, pois, para
referir-se às formulações produzidas pela reflexão de um grupo de diversos intelectuais.
Um dos aspectos mais inovadores da produção do Círculo de Bakhtin foi enxergar a linguagem como um
constante processo de interação mediado pelo diálogo - e não apenas como um sistema autônomo. Esses
estudiosos dialogaram com as principais correntes de pensamento de seu tempo. Na Rússia da década de
1920, tinham destaque as teorias de Karl Marx (1818-1883), das quais o Círculo aproveitou a noção
fundamental da vida vivida como origem da formação da consciência.
Vale a pena também conhecer os estudos de pesquisadores do círculo!
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Sugestões
pedagógicas:
1ª REFEIÇÃO
Objetivo:
Dialogar sobre práticas docentes para a leitura de textos literários, além de
problematizar as fórmulas injuntivas e acríticas no acesso às obras
literárias.
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1ª REFEIÇÃO
Aperitivo
Pensar a leitura crítica de literatura requer que estejamos disponíveis para experimentar novos
sabores produzidos pelos textos. Em prol de despertar o apetite literário dos alunos, é possível
que o professor tenha, primeiro, que lhes oferecer aperitivos. Ocasiões tradicionais admitem
comidas típicas. Novas ocasiões, contudo, trazem novas expectativas e, assim, novas comidas
potencializam também diferentes experiências. Eis, aí, uma grande questão: para que a lógica
seja correspondida, é preciso ter um repertório apurado e atualizado de receitas. Insistir em
injunções que não resultam em resultados apetitosos pode ser fatalmente indigesto. Na tarefa
de produzir incentivo a leituras críticas, os textos literários potencializam novos processos ao
trabalho e à preparação docente. Vamos trocar receitas?
Couvert
Deguste nossas primeiras provocações!
Pode um único sabor agradar a todos em uma refeição? Existe receita de atuação docente aberta
a adaptações a fim de que todos apreciem o resultado?
Entrada
Comece a se alimentar com nossa seleção de ideias!
VOCE SABIA?
Rubem Azevedo Alves (1933–2014) foi um
psicanalista, educador, teólogo e escritor
brasileiro. É considerado um dos principais
pedagogos da história moderna do Brasil e,
junto com Paulo Freire, um dos fundadores da
Teologia da Libertação. Atuou, por décadas,
como professor da Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP). Em muitos de seus textos
– tanto acadêmicos quanto literários –, "ensinar" é descrito por Alves como um ato de
alegria, um ofício que deve ser exercido com paixão e arte.
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1ª REFEIÇÃO
O PRAZER DE LER
Rubem Alves
(fragmentos)
Ler pode ser uma fonte de alegria. “Pode ser“. Nem sempre é. Livros são iguais a comida. Há os
pratos refinados (…) e há as gororobas, malcozidas, empelotadas, salgadas, engorduradas, que
além de produzir vômito e diarreias no corpo produzem perturbações semelhantes na alma.
Assim também os livros. (…)
Contra os professores de literatura que gostam de ser durões e argumentam que há muito livro
duro de roer (a própria expressão está dizendo: nem é de comer; é de roer; objeto apropriado à
dieta de ratos e castores) eu cito Borges“ (…): 'Não é preciso bibliografia. Afinal Shakespeare
desconhecia completamente a bibliografia shakespeariana. (…) Por que vocês não estudam
diretamente os textos? Se tais textos lhes agradam, ótimo. Caso contrário, não continuem, pois
a leitura obrigatória é uma coisa tão absurda quanto falar em felicidade obrigatória'.
Quando minha filha começou a fazer suas primeiras incursões no campo da literatura
adulta(…)ela teve de ler, como tarefa de casa, o livro de Stendhal O vermelho e o negro (1830).
Trata-se de um desses livros duro de roer, tradução do francês, que provocou as mais variadas
convulsões estomacais-cerebrais não só em minha filha como também em seus colegas de classe
(…) obrigados a comer à força aquela terrível refeição de jiló cozido e nabo cru. Escrevi para o
jovem professor (os professores jovens são terríveis; eles ainda não se desembaraçaram do
cipoal de teorias aprendidas na universidade, têm sempre muita coisa a provar, e acreditam
demais no que pensam saber) falando do meu amor à literatura, de meu desejo de que minha filha
aprendesse o prazer da leitura, citei Borges e sugeri que havia uma infinidade de outros livros
que seriam de paladar delicioso aos adolescentes(…). Ele me respondeu, imperturbável, que seu
objetivo era desenvolver uma consciência crítica e que os alunos teriam mesmo de mastigar,
engolir e digerir o jiló cozido e o nabo cru. E assim foi. Percebi que ele era professor. Traduzido
em nossa linguagem gastronômica: ele não era um cozinheiro; era um dieticista. É preciso que se
saiba que cozinheiros e dieticistas, embora ambos envolvidos em cozinhas, são inimigos radicais.
(…) Os dieticistas estão interessados em alimentar de maneira científica aqueles que comem.
(…) Sua presença é indispensável em hospitais, e ali se encontram como auxiliares dos médicos
e enfermeiras. Os cozinheiros, ao contrário, não estão interessados em alimentar. Estão
interessados em produzir prazer e felicidades. (…) A culinária é o kama-sutra da boca (…)
cozinheiros são auxiliares dos amantes. A comida que sai das mãos do dieticista é uma coisa de
necessidade. A comida que sai das mãos do cozinheiro é uma coisa de amor. Ele era um professor
de literatura. Não era um escritor.
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1ª REFEIÇÃO
(…) Um escritor não escreve para comunicar saberes. Escreve para comunicar sabores. O
escritor escreve para que o leitor tenha o prazer da leitura. O texto tem que me dar provas de
que me deseja, dizia Barthes. O texto me deseja? Coisa gastronômica: o prato tem de ser uma
provocação do desejo. A prova de que o texto me deseja está no prazer que ele produz em mim.
Quando sou forçado a interromper a leitura, fico triste. Essa é a prova do prazer que o texto me
causa. Que professor se atreveria a perguntar, numa prova: ‘Você fica triste quando para de
ler o livro?’
É possível, nas escolas, dar informações sobre a literatura. Mas não é possível ensinar a
amá-la.(…) São raros, raríssimos, aqueles que pelo estudo escolar (…) tenham sido levados a
amar a leitura. A razão para isso é simples: tudo, em nossas escolas, está orientado no sentido
de testar saberes. A questão do amor pelo objeto (…) é estranha aos nossos objetivos
educacionais. Não admira que, passados os vestibulares, quase tudo seja esquecido e os livros
sejam esquecidos nas estantes. Às escolas e aos pais pouco importa o prazer que o aluno possa
ter. O que importa é o boletim.
Ler pode ser uma fonte de alegria. Por isso mesmo tenho dó das crianças e dos adolescentes que,
depois de muito sofrer nas aulas de gramática, análise sintática e escolas literárias, saem das
escolas sem ter sido iniciados nos polimórficos gozos da leitura. É como se lhes faltassem órgãos
de prazer. São castrados. (…) Sabem ler mas são analfabetos. Porque, como dizia Mário
Quintana, “[...] analfabeto é precisamente aquele que, sabendo ler, não lê.“
ALVES, Rubem. O prazer de ler. In: Entre a ciência e a sapiência: o dilema da educação. São Paulo: Ed. Loyola, 2012.
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1ª REFEIÇÃO
Prato Principal
Alimente sua saciedade!
VOCE SABIA?
Nascida Chaya Pinkhasovna Lispector,
Clarice Lispector (1920 —1977) foi uma escritora e jornalista
ucraniana naturalizada brasileira. Autora de romances, contos e
ensaios, é considerada uma das escritoras brasileiras mais
importantes do século XX. Sua obra está repleta de cenas
cotidianas simples e tramas psicológicas, reputando-se como
uma de suas principais características a epifania de
personagens comuns em momentos do cotidiano.
Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava
demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara
com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem tivesse
descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eu não
queria a ninguém. Quanto a meu sábado – que fora da janela se balançava em acácias e sombras
– eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-lo na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À
espera do almoço, bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo.
Não é com você que eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamos devagar a fumaça do
cigarro seco. A avareza de não repartir o sábado ia pouco a pouco roendo e avançando como
ferrugem, até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior.
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1ª REFEIÇÃO
Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa quinta de noite. Ela, no
entanto, cujo coração já conhecera outros sábados. Como pudera esquecer que se quer mais e
mais? Não se impacientava sequer com o grupo heterogêneo, sonhador e resignado que na sua
casa só esperava como pela hora do primeiro trem partir, qualquer trem – menos ficar naquela
estação vazia, menos ter que refrear o cavalo que correria de coração batendo para outros,
outros cavalos.
Passamos afinal à sala para um almoço que não tinha a bênção da fome. E foi quando
surpreendidos deparamos com a mesa. Não podia ser para nós.
Era uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado e que não
viera? Mas éramos nós mesmos. Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E
lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos.
A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas
de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele quase
estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas
alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros
sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos – tudo
emaranhado em barbas e barbas úmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos de
uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo instante de serem esmagadas.
E não lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar,
para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a língua de quem primeiro
chegasse. Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera –
mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar – um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes
ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela
acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse
atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão pisado,
estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. Tudo
como é, não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as
montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado.
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1ª REFEIÇÃO
Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem nenhum sonho. E nós
pouco a pouco a par do dia, pouco a pouco anonimizados, crescendo, maiores, à altura da vida
possível. Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.
Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós queríamos comê-lo.
Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir.
Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando
a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos com fome, fome inteira que abrigava
o todo e as migalhas. Quem bebia vinho, com os olhos tomava conta do leite. Quem lento bebeu o
leite, sentiu o vinho que o outro bebia. Lá fora Deus nas acácias. Que existiam.
Comíamos. Como quem dá água ao cavalo. A carne trinchada foi distribuída. A cordialidade era
rude e rural. Ninguém falou mal de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião
de colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente
a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e
come. Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu
nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come
e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem
a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia
aquela comida. Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a
minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida porque a existência já existe.
Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor.Sem uma palavra. Mas
teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos. Pão é amor entre estranhos.
LISPECTOR, Clarice. A repartição dos pães. In: A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
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1ª REFEIÇÃO
Bebida
Aprecie sem moderação!
VOCE SABIA?
Massimo Montanari (1949) é professor
de história econômica medieval e
história da alimentação na
Universidade de Bolonha. Seu interesse
pelo assunto deriva de suas pesquisas e
estudos em História Agrária Medieval.
Seu livro “Comida como cultura“ é um
compacto de reflexões acerca dos
principais temas em debate nos estudos
sócio-históricos sobre a alimentação.
Nessa obra, o autor defende que a alimentação torna-se prática cultural em todo o
percurso da comida até a boca do homem: quando produzida, porque não comemos apenas
o que encontramos na natureza, mas também criamos nosso próprio alimento; quando
preparada, já que este processo criativo implica uma transformação dos produtos-base
da alimentação, mediante técnicas elaboradas que expressam as práticas da cozinha; e
quando consumida, uma vez que selecionamos o que comer, mesmo podendo comer de tudo,
com base nos mais variados critérios (econômicos, religiosos, nutricionais, etc.).
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1ª REFEIÇÃO
MONTANARI, Massimo. O gosto é um produto cultural. In: Comida como cultura. São Paulo: Senac São Paulo, 2013.
No decurso das transformações culturais relacionadas à alimentação, os cadernos de receita figuram como
“achado arqueológico“ ou memória de uma sociedade. Observar esses materiais permite-nos compreender
as mudanças de padrões na formação do “gosto“ social em diferentes momentos históricos – além de
potencializar uma avaliação das influências diretas sob o “fazer“ comida, prática intrinsecamente associada
à condição humana. Com base nessas compreensões, sugerimos uma dinâmica de sensibilização sobre as
variações do “gosto“, a partir dos cadernos de receita disponíveis em casa.
24
1ª REFEIÇÃO
Harmonização
DIALOGUE SOBRE SUAS COMBINAÇÕES!
1) Que receitas são sistematicamente impostas sobre a leitura de textos literários em contexto
escolar – via práticas tradicionais, materiais didáticos e afins?
2) Que práticas têm despertado o interesse social pelos simbolismos associados à comida? De
que modo essas práticas poderiam ser aplicadas ao ensino de literatura ou à leitura de textos
literários?
Sobremesa
ADOCE SUAS CONVICÇÕES!
25
1ª REFEIÇÃO
Aceita um café?
PARA CONTRIBUIR COM A DIGESTÃO DE IDEIAS,SUGESTÃO DE LEITURA COMPLEMENTAR!
26
1ª REFEIÇÃO
27
2ª REFEIÇÃO
Cardapio literario: ”voce tem sede de que? Voce tem fome de que?”
Objetivo:
Dialogar sobre a formação do gosto na leitura de textos literários e os
impactos dessas preferências no desempenho docente.
28
2ª REFEIÇÃO
Aperitivo
Trocar receitas, como já vimos, pode ser uma potente dinâmica para acesso a novas
experiências. Há que se considerar, contudo, que receitas são, pelos cozinheiros,
constantemente adaptadas em prol de favorecer uma aproximação aos sabores já identificados
por seu paladar - o que fatalmente potencializará uma melhor digestão. Ao longo de uma
sequência de refeições, passamos a priorizar determinados cardápios em função daquilo que nos
parece mais palatável. O apetite literário segue uma lógica similar: acreditamos ter fome de
certos estilos e tipologias e em muito bebemos na mesma fonte de dados autores. Na sala de aula,
contudo, dividimos esse instante de refeição com uma dezena de alunos que eventualmente
possuem suas experiências de cardápio. Nesse contexto, pode sempre haver aqueles que não se
abrem à experimentação dos novos pratos propostos ou ainda os que jamais aparentam ter
apetite; ninguém, contudo, resiste à curiosidade de um prato que seja bem apresentado já pelo
menu da aula. Por isso, é possível que tenhamos, antes de avaliar a receita, que discutir o
cardápio com os demais que estarão conosco à mesa. Que tal pensarmos juntos no prato do dia?
Couvert
Deguste nossas primeiras provocações!
Em nossa dinâmica docente, estamos dispostos a observar um cardápio e nos deixar encantar
por novas descobertas ou optamos pelo prato da casa (ou ainda pelo tradicionalíssimo Prato
Feito)?
Entrada
Comece a se alimentar com nossa seleção de ideias!
VOCE SABIA?
Nascida em Minas Gerais, Nina Horta estudou pedagogia
na Faculdade de Educação da USP. Nina escreveu sobre
gastronomia no jornal Folha de São Paulo de 1987 a 2019.
Escritora e empresária, ganhou o prêmio Jabuti de
Gastronomia em 2016 com o livro "O Frango Ensopado
da Minha Mãe" (Companhia das Letras), que reúne
algumas de suas crônicas. Faleceu em outubro de 2019.
29
2ª REFEIÇÃO
É muito difícil entender essa coisa de gosto. Uma vida inteira tratando do assunto e sem
resposta se me perguntarem o motivo de alguém gostar de abobrinha ou couve-de-bruxelas.
Por causa da infância? Da moldura? Do lugar, do tempo, daquele cheiro de maçã e leite em pó da
casa de uma avó e de doce de cidra, queijo fresco e madeira do armário na casa da outra. As
comidas novas, as diferentes, a vida brotando, um carinho difuso te envolvendo, uma inocência
pré-internet.
E o tempo passa e a empadinha passa, passa o tender com abacaxi, o camarão na abóbora, o
estrogonofe passa, o sushi não passa, o sorvete frito passa rápido, o carpaccio, o tomate seco,
as flores, os brotos, as espumas, o único tomate, a horta no mezanino, a paisagem no prato, as
cinzas, o queimado, Bocuse, o Ferran Adrià, quem diria.
Dietas? Low fat, low carb, Dr. Atkins, raw food, dos pontos, mediterrânea, paleo, ortomolecular,
sem gluten, do abacaxi, da sopa, do jejum intermitente. As dietas passam, os quilos é que voltam.
Não esquecer das turmas firmemente agarradas às certezas absolutas do que é bom, do que não
é. Rústicos, vegetarianos, onívoros, sazonais, locais, coletores, nacionais, alérgicos,
industrializados, naturebas.
Gostos formam turmas, ou as turmas formam gostos, galeras, tribos, confrarias. Queremos
comer o que queremos ser, é todo um pacote de desejos, possibilidades, momentos, histórias, de
tudo um pouco como nas boas dietas.
Podemos mudar nel mezzo del cammin di nostra vita, sem problemas, mudamos nós ou mudou
nosso gosto?
30
2ª REFEIÇÃO
delivery, na rua queremos marcar o nosso espaço, mostrar a que viemos, e o que queremos. O
chef concorda, ele sabe das coisas. E os críticos e cronistas passam, ah, como passam, cruzes!
O Brasil cortado inteiro por uma passarela de arroz, feijão, carne, peixe ou frango, ovo, uma
fritura e uma saladinha, talvez um legume e algo típico do terreiro. E a farofa, não esquecer a
farofa. Pobres e ricos e os mesmos ingredientes apresentados de forma e quantidades
diferentes. Com certeza não passa. Será?
Texto originalmente publicado no jornal Folha de São Paulo, em 20 julho de 2018. Acesso também disponível em
“https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ninahorta/2018/06/gostos-formam-turmas-e-queremos-comer-o
-que-queremos-ser.shtml“. ‘
Prato Principal
Alimente sua saciedade!
VOCE SABIA?
31
2ª REFEIÇÃO
O BUFFET
Luis Fernando Veríssimo
Um dos martírios da vida social moderna é o buffet. Ele nasceu com boas intenções, como
resposta à necessidade de alimentar da maneira mais prática o maior número de pessoas com o
máximo de elegância possível. Isto é, sem que a festa pareça um rififi no refeitório. É difícil servir
300 ou 400 pessoas nas suas mesas e ao mesmo tempo, à francesa, a não ser que haja quase
tantos garçons quanto convidados. A solução, já que a comida não pode ir às pessoas, é as
pessoas irem à comida. Outra vantagem do é que, com todos os pratos concentrados sobre uma
única e bem ornamentada mesa, ele dá a correta impressão de abundância. Que é, afinal, o que
nos leva a festas. Todo buffet é uma alegoria à fartura. Há cascatas de camarões, leitões
esquartejados e remontados sobre pedestais de farofa, everestes de maionese, continentes de
saladas e de frios. Uma vez, juro, vi um faisão empalhado no centro da mesa, na pose de quem
se preparava para decolar deste insensato mundo. Só o que o mantinha na terra era a sua
própria carne, em fatias, a seus pés. Diante de um buffet você deve se debater entre dois
sentimentos: a vontade de comer tudo e o remorso por estragar a arquitetura. Depois, é claro,
de agradecer à providência por pertencer aos 30% da população que comem e à minoria ainda
menor que é convidada a buffets. Pois o buffet também é a apoteose da boca-livre.
Os críticos mais moderados do buffet o comparam a uma linha de montagem, e fazem uma
injustiça. A linha de montagem é mais organizada. Ao redor de uma mesa de buffet o ser humano
reverte ao seu protótipo mais primitivo: a fera diante do alimento. A pátina de civilização se
quebra, como o exterior caramelado do presunto, e é cada um por si e pelo seu estômago. Já vi
velhos amigos duelarem a empurrões diante de um rosbife, e marido e mulher chegarem aos tapas
na disputa do último camarão. Porque a verdade é que o buffet não dá certo. Ele pressupõe um
desprendimento com relação à comida que ninguém tem. Embora alguns finjam que têm.
— Vou esperar que os selvagens se sirvam e depois vou até lá — diz ele, sorrindo com desprezo
para a horda em volta da mesa.
— Eu, se fosse você, não esperava. O bolo de peixe já estava pela metade — avisa alguém.
— Epa — diz ele, e mergulha no meio da horda, usando os cotovelos para abrir caminho.
Mas o buffet é irreversível e o negócio é aprender a conviver com ele. Existem algumas regras
de conduta que nos ajudam a sair de um buffet, mesmo o mais concorrido, razoavelmente bem
alimentados e sem danos, fora alguns rasgões na roupa. Aprendi com a experiência e tenho as
marcas de garfo na mão para provar. Tome nota.
32
1ª REFEIÇÃO
Antes de mais nada, não obedeça a ordens. É comum o anfitrião sugerir, bem-humorado, alguma
espécie de hierarquia no acesso ao buffet. Primeiro, as mesas deste lado ou daquele, primeiro os
mais velhos, as autoridades, os mutilados de guerra etc. Ignore-o. Seja o primeiro a saltar da
mesa, mesmo fora de ordem. O máximo que pode acontecer é você receber olhares feios. O que
importa isto diante de uma cascata de camarões ainda intocada e da oportunidade de escolher
os melhores tomates? Nunca desmereça as vantagens de chegar primeiro.
Macetes — Com o tempo, você os desenvolverá sozinho. Cada um tem seu estilo. Alguns
lembretes, no entanto. Se possível, sirva-se com dois pratos, com o pretexto de que está
servindo a sua mulherzinha, ou o seu maridinho, também. Se você realmente está com sua mulher
ou seu marido, melhor. Ela ou ele pode fazer o mesmo e dizer que está servindo você. O trabalho
em equipe é importante desde que se combine previamente quem ficará com todos os camarões.
Atenção: jamais use a colherzinha que está junto ao pote para servir o caviar se houver uma
colher de sopa à mão.
Seja impiedoso — Está bem, ninguém quer ser imoral, mas estamos falando de comida! Se a
pessoa à sua frente não se mexe e impede seu acesso aos mexilhões, que desaparecem
rapidamente, use o cabo do garfo discretamente entre a última e a penúltima costela. Se não der
certo, use a ponta do garfo. Espalhe o boato de que o leitão no centro é de plástico e só está ali
como enfeite. Finja que vai verificar e apalpe todo o leitão com as mãos. Diga coisas como:
“Ninguém se mova, acho que caiu uma mosca na vitela tonê.“ Pegue todo o prato, dando a
entender que vai despejá-lo pela janela. Espirre, distraidamente, em cima dos cogumelos.
33
1ª REFEIÇÃO
Você conseguiu e já está saboreando o prato quente enquanto outros, menos empreendedores,
ainda nem chegaram perto dos tomates. Não se desmobilize, no entanto.
UNIÃO, GENTE
Luis Fernando Veríssimo
Nunca se despreze o poder de uma ideia cuja hora chegou. Minha rebelião contra a salsinha
ganha adeptos e, a julgar pela correspondência que recebo, esta era uma causa à espera do
primeiro grito. Só não conseguimos ainda nos organizar e partir para a mobilização —
manifestações de rua, abraços a prédios públicos — porque persiste uma certa indefinição de
conceitos. Eu sustento que “salsinha“ é nome genérico para tudo que está no prato só para
enfeite ou para confundir o paladar, o que incluiria até aqueles galhos de coisa nenhuma
espetados no sorvete, o cravo no doce de coco, etc. Outros, com mais rigor, dizem que salsinha
é, especificamente, o verdinho picadinho que você não consegue raspar de cima da batata cozida,
por exemplo, por mais que tente. Outros, mais abrangentes até do que eu, dizem que salsinha é
o nome de tudo que é persistentemente supérfluo em nossas vidas, da retórica ao porta-aviões,
passando pelo cheiro-verde. Meu conselho é que evitemos a metáfora e a disputa semântica e,
unidos pela mesma implicância, passemos à ação. Para começar, sugiro um almoço informal com
o presidente da República, em Brasília, para discutir a gravidade da questão, que certamente não
merece menos atenção do que as novelas da Globo.
34
2ª REFEIÇÃO
Mas, como se esperava, começou a reação dos pró-salsinhas. Alegam que a salsinha não é uma
inconsequência culinária mas tem importância gastronômica reconhecida, tanto que na cozinha
francesa o persillé faz parte do nome do prato — isto é, eles não só usam a salsinha como a
anunciam! Não se deve esquecer que os franceses também têm um nome elegante, faisandé, para
comida podre. E não podia faltar: um salsófilo renitente, o jornalista Reali Jr., alega que a
salsinha é, inclusive, afrodisíaca. Como Reali Jr. é um notório frequentador de restaurantes
árabes em Paris e muitos pratos da cozinha árabe, como se sabe, são só salsinha (com salsinha
em cima), seu argumento fanatizado pode ser desqualificado como golpe baixo. Agora só falta
dizerem que o verde intrometido tem vitamina V.
VERÍSSIMO, L. F. União, gente. In: A mesa voadora. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
Bebida
Aprecie sem moderação!
35
2ª REFEIÇÃO
Para explicar a tenacidade da ideia de carnaval Mikhail Bakhtin cita a procura original da palavra,
afirmando que é possível observar, desde a segunda metade do século XIX, os numerosos autores
alemães defenderem a tese da origem alemã do termo carnaval, o qual teria a sua etimologia de
Karne ou Karth, ou “lugar santo“ (isto é, a comunidade pagã, os deuses e seus servidores) e de
val (ou wal) ou “morto“, “assassinado“. Carnaval significaria, portanto, “procissão dos deuses
mortos“. Ou seja, a ideia de carnaval, em sua busca etimológica, é compreendida como a
procissão dos deuses destronados.
O espetáculo carnavalesco – sem atores, sem palco, sem diretor – derruba as barreiras
hierárquicas, sociais, ideológicas, de idade e de sexo. Representa a liberdade, o extravasamento;
é um “mundo às avessas“ no qual se abolem todas as abscissas entre os homens para
substituí-las por uma atitude carnavalesca especial: um contato livre e familiar entre os homens.
Segundo Bakhtin (1981: 105) o que se abolia, principalmente, durante o carnaval era a hierarquia.
Leis, proibições e restrições, padrões determinantes do sistema e da ordem cotidiana, isto é,
extracarnavalesca, são suspensas durante o carnaval: “revoga-se antes de tudo o sistema
hierárquico e todas as formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta, etc., ou seja,
tudo o que é determinado pela desigualdade social hierárquica e por qualquer outra espécie de
desigualdade (inclusive a etária) entre os homens“. A carnavalização adere a essa visão vasta e
popular de carnaval que se opõe ao sério, ao individual, ao medo, à discriminação, ao dogmático.
36
2ª REFEIÇÃO
(...)
O carnaval não se distinguia apenas da vida cotidiana socialmente hierarquizada, mas, sobretudo,
das festas oficiais. Enquanto estas consagravam a estabilidade, a imutabilidade e permanência
das regras que conduziam o mundo em camadas rígidas, o carnaval proclamava a suspensão de
valores, normas, tabus religiosos, políticos e morais correntes.
A festa oficial tinha como escopo a consagração da desigualdade ao contrário do carnaval em que
a simetria reinava e sobressaía uma forma especial de contato livre e familiar entre indivíduos
normalmente separados cotidianamente pelas barreiras intransponíveis da sua condição, sua
fortuna, seu emprego, idade e situação familiar. Esse contato livre e familiar era vivido
intensamente e constituía uma parte essencial da visão carnavalesca do mundo, contrapondo-se
à festa oficial. Enquanto esta apresentava padrões regidos, o carnaval era “era o triunfo de uma
espécie de liberação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição
provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus.“ (Bakhtin, 1999, p. 08).
(...)
O tempo alegre, elemento essencial das festividades, produz o contato familiar o qual promove
nova forma de comunicação e da relação íntima ou próxima entre as pessoas. O carnaval é a
festa em que se extravasa o riso, é a segunda vida do povo, o tempo alegre; é a festa em que se
marcava “de alguma forma uma interrupção provisória de todo o sistema oficial, com suas
interdições e barreiras hierárquicas.“ (Bakhtin, 1999, p. 77).
SOERENSEN, Claudiana. A carnavalização e o riso segundo Mikhail Bakhtin. Texto disponível em:
http://e-revista.unioeste.br/index.php/travessias/article/view/4370.
37
2ª REFEIÇÃO
Harmonização
Dialogue sobre suas combinações!
Sobremesa
ADOCE SUAS CONVICÇÕES!
O cardápio de uma refeição pode ser sempre constituído ao sabor dos comensais. Antes de um
cozinheiro valorizar e executar – ainda que adaptada – uma de suas receitas clássicas, é
minimamente elegante atentar-se aos gostos daqueles que dividirão a mesa com ele. Podemos
extravasar as preferências de nossos companheiros de prato se conseguirmos fazer, em nosso
cardápio, uma boa apresentação da novidade. Mas para apresentarmos algo novo, não basta
caprichar na aparência estética; precisamos verdadeiramente conhecê-lo e, por isso, devemos
desenvolver um paladar apurado. Na sala de aula, conscientemente, nem todos irão devorar e
repetir as refeições literárias propostas; é importante, porém, saber apresentar bem as opções
para que todos, ao menos, provem-nas sem o preconceito da indigestão. Entender a alimentação
como prática cultural é perspectiva que dialoga com todos os segmentos sociais - até mesmo para
os que ainda nada têm a comer e o seu cardápio é uma eterna metonímia de prato vazio.
Rapadura é doce, mas não é mole não: A não alimentação ou a aparente falta de gosto é outra
perspectiva crítica possível de ser problematizada por meio de textos literários. Podemos
dialogar mais sobre nossos gostos e apetites, mas não podemos desconsiderar aqueles que, de
fato, sentem fome. Nesse sentido, Elisa Lucinda nos escreve uma poesia que finalizará nossa
refeição como uma sobremesa fatalmente indigesta.
38
1ª REFEIÇÃO
VOCE SABIA?
39
2ª REFEIÇÃO
40
2ª REFEIÇÃO
Aceita um café?
PARA CONTRIBUIR COM A DIGESTÃO DE IDEIAS,SUGESTÃO DE LEITURA COMPLEMENTAR!
41
3ª REFEIÇÃO
Objetivo:
Dialogar sobre os valores culturais representados pela comida e pelos textos
literários; a comida e a literatura como símbolos de tradição e de história.
42
3ª REFEIÇÃO
Aperitivo
Comida, sem dúvida, é temática transversal. “O que comemos“, “por que comemos“ e “como
comemos“ são aspectos que orientam observações a diversos pesquisadores e também a
comilões mais curiosos. Já é um fato social que a comida potencializa pensar a expressão
humana para muito além da dinâmica nutricional; cada instante de alimentação desperta
diferentes leituras sobre as simbologias associadas. Assim como nos registros literários, toda
refeição permite a identificação de valores culturais. Uma experiência literária no presente pode,
por exemplo, evidenciar valores passados de tradição – ou, no mínimo, ser um convite à
percepção dos registros atuais. Experiências gastronômicas também seguem essa lógica. Quando
os registros literários são abastecidos de referências alimentares, estamos diante de um
banquete cultural. Que tal começarmos a realmente visualizar literatura e alimentação para além
das palavras e dos sabores?
Couvert
Deguste nossas primeiras provocações!
Em nossa dinâmica docente, que símbolos temos priorizado na leitura de textos literário? Por
quê?
Entrada
Comece a se alimentar com nossa seleção de ideias!
VOCE SABIA?
Cora Coralina (1889-1985) é o pseudônimo de
Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, poetisa
e contista brasileira nascida em Goiás. Publicou
seu primeiro livro quando tinha 75 anos e
tornou-se uma das vozes femininas mais
relevantes da literatura nacional.
43
3ª REFEIÇÃO
na vida da poetisa que se tornou doceira, ofício com o qual ganhava a vida após retornar
viúva à cidade natal, inspirando outras tantas mulheres. Entre os anos de 1965 a 1979,
“Aninha“, como também era chamada, começou a fabricar doces e a comercializá-los. Os
sabores variavam entre laranja, figo, mamão, goiaba, banana, entre outros, que encantavam
o paladar de quem provava. Pessoas de várias partes do país visitavam a casa de Cora para
comprar suas guloseimas e, também, ouvi-la declamar poesias e contar "causos".
ANTIGUIDADES
Cora Coralina
Quando eu era menina bem pequena,
em nossa casa,
certos dias da semana se fazia um bolo,
assado na panela
com um testo de borralho em cima.
44
3ª REFEIÇÃO
Detestadas da meninada.
Criança, no meu tempo de criança,
não valia mesmo nada.
A gente grande da casa usava e abusava
de pretensos direitos de educação.
“Tomando propósito“.
Expressão muito corrente e pedagógica.
Aquela gente antiga, passadiça, era assim:
severa, ralhadeira.
45
3ª REFEIÇÃO
Prato Principal
Alimente sua saciedade!
Há cerca de um milhão de anos, algum AUSTRALOPITHECUS percebeu que a carne, quando colocada no
fogo, possuía propriedades digestivas e ficava mais saborosa, Seus descendentes se deram
conta que se fosse colocada num recipiente com folhas e grãos o resultado poderia também ser
surpreendentemente bom. E o caldo resultante dessa mistura também ganhava propriedades
fortificantes. “Cozinha é, portanto, um constante devir de antigas tradições e contemporâneas
inovações que podem e devem ser combinadas com saber, arte, bom senso e bom gosto.“, afirma
o professor aposentado de sociologia e planejamento urbano da Universidade de São Paulo,
Gabriel Bolaff em seu livro A saga da comida, (Editora Record).
Em 1964, o antropólogo francês Claude Levi-Strauss começou uma trilogia de livros com O CRU E
O COZIDO (Cosac&Naify), onde mostra, a grosso modo, que o homem tornou-se culturalmente mais
desenvolvido ao dominar o fogo para cozinhar os alimentos. Ao estudar os índios, Levi-Strauss
formulou uma teoria em que definiria as sociedades a partir de um tripé alimentar: o cru, o cozido
e o podre. Para ele, a cozinha seria uma linguagem e cada sociedade codificaria suas mensagens
por meio de signos particulares. A comida, portanto, seria fortemente vinculada a determinado
povo e práticas culturais.
MONTELEONE, Joana. Toda comida tem história. In: Toda comida tem uma história e outros ensaios da
gastronomia. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2017.
AS COCADAS
Cora Coralina*
Eu devia ter nesse tempo dez anos. Era menina prestimosa e trabalhadeira à moda do tempo.
Tinha ajudado a fazer aquela cocada. Tinha areado o tacho de cobre e ralado o coco. Acompanhei
rente à fornalha todo o serviço, desde a escumação da calda até a apuração do ponto. Vi quando
foi batida e estendida na tábua, vi quando foi cortada em losangos.
46
3ª REFEIÇÃO
Saiu uma cocada morena, de ponto brando atravessada de paus de canela cheirosa. O coco era
gordo, carnudo e leitoso, o doce ficou excelente. Minha prima me deu duas cocadas e guardou tudo
mais numa terrina grande, funda e de tampa pesada. Botou no alto da prateleira.
Duas cocadas só... Eu esperava quatro e comeria de uma assentada oito, dez, mesmo. Dias
seguidos namorei aquela terrina, inacessível. De noite, sonhava com as cocadas. De dia as
cocadas dançavam pequenas piruetas na minha frente. Sempre eu estava por ali perto, ajudando
nas quitandas, esperando, aguando e de olho na terrina. Batia os ovos, segurava gamela, untava
as formas, arrumava nas assadeiras, entregava na boca do forno e socava cascas no pesado
almofariz de bronze.
Estávamos nessa lida e minha prima precisou de uma vasilha para bater um pão-de-ló. Tudo
ocupado. Entrou na copa e desceu a terrina, botou em cima da mesa, deslembrada do seu
conteúdo. Levantou a tampa e só fez: Hiiii... Apanhou um papel pardo sujo, estendeu no chão, no
canto da varanda e despejou de uma vez a terrina.
As cocadas moreninhas, de ponto brando, atravessadas aqui e ali de paus de canela e feitas de
coco leitoso e carnudo guardadas ainda mornas e esquecidas, tinham se recoberto de uma
penugem cinzenta, macia e aveludada de bolor.
Até hoje, quando me lembro disso, sinto dentro de mim uma revolta – má e dolorida - de não ter
enfrentado decidida, resoluta, malcriada e cínica, aqueles adultos negligentes e partilhado das
cocadas bolorentas com o cachorro.
CORALINA, Cora. As cocadas. In: O tesouro da Casa Velha. São Paulo: Global, 1996.
*Poeta em tempo integral, de sensibilidade sempre aberta à vida, Cora Coralina escreveu também em boa
prosa, como se comprova em “O tesouro da Casa Velha“. Livro da velhice, redigido depois dos 90 anos, reúne
18 contos, vários deles baseados em experiências pessoais e todos com a marca pessoal de encanto e magia de
Cora Coralina. O livro é publicação póstuma, e não contou com a seleção final da própria autora. Os contos
selecionados não constituem meras reproduções histórico-sociais, pois possuem transcendência e uma
peculiaridade narrativa das mais interessantes, resgatando uma linguagem já perdida, mas que na sua voz
ganha autenticidade.
47
3ª REFEIÇÃO
Foucault (2001, p. 48) defende que “quando a linguagem tem o poder de fazer em si mesma sua
própria imagem em um jogo de espelhos que não tem limites, permite falar de si mesma ao
infinito, ela é também literatura“. Espaço aberto no seio da linguagem. Seu verso e seu anverso.
Assim, o lugar da gastronomia no seio dessa linguagem ao infinito sempre incitou leituras,
discussões e sabores. Acreditamos que o tema da gastronomia torna-se instigante devido à
essencialidade do alimento à vida. Provavelmente, por essa razão, esse tema percorra
gerações, sendo cultivado na literatura em muitos países, em toda a história. Em qualquer lugar,
a comida é, por vezes, cultuada por seu cheiro e sabor e, por essa razão, tem se tornado um dos
temas favoritos tanto na literatura, quanto em outras artes.
A alimentação, embora seja uma prática não discursiva, em geral, é vista como uma ferramenta
metafórica através da qual o sujeito escritor discursiviza as relações sociais do contexto
sócio-histórico-ideológico. [...]
Na literatura hebraica, encontra-se o famoso prato servido por Herodes à sua enteada, em uma
das muitas festas oferecidas pelo tetrarca. Depois da dança sedutora, a promessa foi cumprida
48
3ª REFEIÇÃO
com a cabeça de João Batista sobre um prato, como um instrumento necessário para continuar
a nutrir a maldade, o ódio e a infidelidade de Hérodias. Essa narrativa bíblica nos faz refletir
sobre o ato de comer e/ou de se alimentar como um imperativo, porque se observarmos que
Hérodias não quis apenas a cabeça do profeta, mas, a quis em um prato, tal atitude pode ser
sentida como uma vitória, para o deleite dessa invejosa personagem. Essa história hebraica é tão
forte que tem sido fonte de inspiração para muitos escritores, incluindo G. Flaubert e sua
Hérodias, nos Três Contos (1877) ou S. Mallarmé em seu poema Hérodiade (1887), ou até mesmo
Salomé (1891), a famosa peça teatral irlandês todo O. Wide. Nessa perspectiva, defendemos que a
gastronomia é um lugar de memória, de sedução e de poder que denuncia as relações humanas,
em nosso caso, as relações de gênero.
Essa carta é um dos documentos, comprobatórios que desde sempre, o Brasil tem uma
significativa diversidade natural. Essa mesma representação permanece nos quadros do pintor
francês Jean-Baptiste Debret, primeiro artista a ilustrar imagens do cotidiano brasileiro. Ao
longo da história da literatura, o prazer de comer é visto em circunstâncias diversas, como no
romantismo, com sua natureza exuberante ou ainda representada pela força do escravo "vindo"
da África. A literatura brasileira romântica é preenchida com cenas relacionadas à mesa, seja de
escravos nas cozinhas das casas-grandes, seja trabalhando nas lavouras para tornar o Brasil
um dos maiores produtores, do mundo, da cana-de-açúcar.
49
3ª REFEIÇÃO
brasileiros descreveram o cheiro e o gosto do Brasil com a mesma intensidade de Jorge Amado.
Esse escritor expôs as histórias mais queridas do público em geral, tanto no Brasil, quanto no
exterior. Ele demonstrou o cotidiano do povo baiano como um pintor de grande talento; um hábil
exemplo desse estilo é o romance Dona Flor e seus dois maridos.
Extraído de MARIZ, J. P.; OLIVEIRA, M. A. A Gastronomia na Literatura: Lugar de Memória, Sedução e Poder.
Disponível em https://todasasmusas.com.br/07Josilene_Maria.pdf.
50
3ª REFEIÇÃO
51
3ª REFEIÇÃO
Harmonização
Dialogue sobre suas combinações!
Cora Coralina é um bom exemplo de escritora que tempera a literatura com suas experiências de
sabores. Se, como afirma Joana Monteleone, toda comida tem uma história, todo mundo também
deve ter uma comida que já colaborou para protagonizar uma boa história – afinal, entendemos
o valor histórico-cultural dessa forma de linguagem. Assim, para consolidar sua participação
nesse encontro formativo, produza um breve relato pessoal - na estrutura que lhe for mais
conveniente – que possa constituir um registro de lembrança a partir de alguma experiência
alimentar. Não serão estabelecidos critérios mais específicos para essa composição; deixe as
palavras serem guiadas pelos sabores da memória! Não se esqueça de que essa pode ser uma
interessante atividade desenvolvida também em sala de aula!
IMPORTANTE SABER
O relato é um gênero textual comum ao cotidiano, pois
pode ser utilizado como maneira de apresentar, exemplificar ou de colaborar na argumentação
de ideias.
Trata-se de uma apresentação das experiências da vida de uma determinada pessoa, abarcando
suas vivências e os traços que marcaram sua existência. Partindo desta prerrogativa, temos
que esse tipo de relato, por se tratar de um discurso condizente a experiências pessoais,
geralmente é narrado em 1ª pessoa.
52
3ª REFEIÇÃO
Erva daninha é tu
que mascara o paladar
não tempera nem jacu
dê o fora deste lar
o gosto dessa família
só melhora a cada dia
não me venha estragar.
53
3ª REFEIÇÃO
Terminada a peleja
a família satisfeita
tasca aquilo que almeja
indo ao gosto se ajeita.
Alecrim vai prato adentro
noutro vai é o coentro
assim tudo se contenta.
DAMBERG, Tatiana. A peleja do alecrim com o coentro. In: A peleja do alecrim com o coentro e outros causos
culinários: receitas e cordel. Rio de Janeiro: Memória Visual, 2007.
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1ª REFEIÇÃO
Aceita um café?
Para contribuir com a digestão de ideias, sugestão de leitura complementar!
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4ª REFEIÇÃO
Objetivo:
Dialogar sobre os valores sociais manifestados pela comida e pelos textos
literários; a comida e a literatura como símbolos de etnia, classe, geração e
gênero.
56
4ª REFEIÇÃO
Aperitivo
A comida nos humaniza porque, nela, reconhecemos, principalmente, os mais diversos valores de
sociabilidade. Uma refeição, além de ser fonte nutricional, alimenta-nos de princípios que
evidenciam certa aproximação a noções de etnia, de classe, de geração e de gênero. Quando o
comer é realmente entendido pela perspectiva dessa diversidade de ideias, as experiências
tendem a ser potencialmente marcantes à memória e à constituição do ser. Não por acaso, o
entendimento de que “comer é um ato político“ tem ganhado ainda mais relevância na
contemporaneidade. Se ainda não conseguirmos, com organicidade, alcançar essas
compreensões nas dinâmicas sociais, é possível que a leitura literária contribua para o estímulo
a análises críticas; a relação entre personagens e comidas também se constitui como prato cheio
para pensarmos em valores sociais. Refletir sobre o significado da comida enquanto
representação sociocultural pode ser um interessante caminho para estimular a formação de
leitores, ao mesmo tempo que favorece, ao professor, uma observação aguda acerca da
diversidade que compõe suas salas de aula. Sirvamo-nos à vontade nesse farto rodízio de ideias!
Couvert
Deguste nossas primeiras provocações!
Nas análises de textos literário em sala de aula, que ingrediente tem despertado em nossos
alunos a identificação e o real desejo pela leitura?
Entrada
Comece a se alimentar com nossa seleção de ideias!
VOCE SABIA?
Sarah Vervloet nasceu em Vila Velha, no Espírito Santo. É
licenciada em Letras-português e mestra em Estudos
Literários, pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Professora de Língua Portuguesa de Ensino Básico Técnico e
Tecnológico no Instituto Federal Fluminense, no campus Bom
Jesus do Itabapoana-RJ, é ainda doutoranda em Educação pela
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP),
com projeto intitulado "A escrita literária em aulas de Língua
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4ª REFEIÇÃO
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4ª REFEIÇÃO
Prato Principal
Alimente sua saciedade!
A REFORMA DA NATUREZA
Monteiro Lobato
Contextualização: A Reforma da Natureza é um livro infantil escrito por Monteiro Lobato e
publicado pela primeira vez em 1941. Dona Benta, Tia Nastácia e o Visconde de Sabugosa são
convidados pelos chefes de Estado da Europa para participar da Conferência da Paz de 1945 como
representantes da Humanidade e do Bom Senso. Desta forma, a pequena "República do Sítio do
Picapau Amarelo" poderá ensinar à humanidade o segredo de bem governar os povos. Pedrinho e
Narizinho os acompanham, mas Emília fica no Sítio. Na verdade, Emília não quis ir porque
pretendia fazer a sua "reforma da natureza". Com a ajuda de Rã (ou Rãnzinha da Silva), sua
amiga do Rio de Janeiro ela criou várias ideias para o espaço. Quando Dona Benta voltou, Emília
perdeu quase tudo. Mas, com a ajuda de Visconde, fez sua nova reforma.
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4ª REFEIÇÃO
– Ótimo, Emília! Isto é mais que uma ideia-mãe. E cada capítulo do livro será feito com papel de um
certo gosto. As primeiras páginas terão gosto de sopa; as seguintes terão gosto de salada, de
assado, de arroz, de tutu de feijão com torresmos. As últimas serão as da sobremesa – gosto de
manjar branco, de pudim de laranja, de doce de batata.
– E as folhas do índice – disse Emília – terão gosto de café – serão o cafezinho final do leitor.
Dizem que o livro é o pão do espírito. Por que não ser também pão do corpo? As vantagens seriam
imensas. Poderiam ser vendidos nas padarias e confeitarias, ou entregues de manhã pelas
carrocinhas, juntamente com o pão e o leite.
– Nem precisaria mais pão, Emília! O velho pão viraria livro. O Livro-Pão, o Pão-Livro. Quem soube
ler, lê o livro e depois come; quem não souber ler come-o só, sem ler. Desse modo o livro pode
ter entrada em todas as casas, seja dos sábios, seja dos analfabetos. Otimíssima ideia, Emília!
– Sim – disse esta muito satisfeita com o entusiasmo da Rã. – Porque, afinal de contas, isso de
fazer os livros só comíveis para o caruncho é bobagem – podemos fazê-los comíveis para nós
também.
– E quem deu a você essa ideia , Emília?
– Foi o raciocínio. O livro existe para ser lido, não é? Mas depois que o lemos e ficamos com toda
a história na cabeça, o livro se torna uma inutilidade na casa. Ora, tornando se comestível,
diminuímos uma inutilidade.
– E quando a gente quiser reler um livro?
– Compra outro, do mesmo modo que compramos outro pão todos os dias.
A ideia, depois de discutida em todos os seus aspectos, foi aprovada, e Emília reformou toda a
biblioteca de Dona Benta. Fez um papel gostosíssimo e de muito fácil digestão, com sabor e cheiro
bastante variados, de modo que todos os paladares se satisfizessem. Só não reformou os
dicionários e outros livros de consulta. Emília pensava em tudo.
Também reformou muita coisa na casa. Por meio de cordas e carretilhas as camas subiam para o
forro de manhã, depois de desocupadas, a fim de aumentar o espaço dos cômodos. As fechaduras
não precisavam de chaves; bastava que as pessoas pusessem a boca no buraco e dissessem:
“Sésamo, abre-te“ e elas se abriam por si mesmas.
– E os mudos? – perguntou a Rãzinha. – Como vão arrumar-se? Só se eles andarem com uma
vitrola no bolso, que pronuncie por eles a palavra Sésamo.
Emília atrapalhou-se com o caso dos mudos e deixou-o para resolver depois. O leite a ferver ao
fogo dava um assobio quando chegava no ponto, de modo a avisar ao fogo, o qual imediatamente
parava de agir. O mesmo com todas as comidas – e dessa maneira acabou-se a desagradável
história do “feijão com bispo.“
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4ª REFEIÇÃO
E tanta e tanta coisa as duas fizeram, que se fôssemos contar metade teríamos de encher dois
volumes. Lá pelo fim da semana o Sítio do Pica-pau estava totalmente transformado, não dando
a menor ideia do antigo. Foi por essa ocasião que chegou carta de Dona Benta anunciando a
volta.
– “Já concluímos o nosso serviço na Europa“ – dizia ela. – “Deixamos o continente transformado
num perfeito sítio – com tudo direitinho e todos contentes e felizes. A Comissão que nos trouxe
vai reconduzir-nos para aí novamente. Devemos chegar na próxima segunda-feira e espero
encontrar tudo em ordem.“
“É uma danada, esta velha! Foi lá e fez o que todos aqueles ditadores e reis não conseguiram.
Temos agora de preparar a casa para recebê-la.“
LOBATO, Monteiro. O livro comestível. In: A reforma da natureza.13ª reimpressão da 38ª edição de. 1994. São
Paulo: Brasiliense, 2002.
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4ª REFEIÇÃO
Antônio Candido, em dois ensaios centrais sobre a literatura e a formação humana, quais sejam
“O direito à literatura“ (2006) e “A literatura e a formação do homem“ (2002), produzidos no
contexto dos anos setenta, busca ampliar o acesso ao texto literário e à leitura,
dessacralizando, pois, uma visão formalista e elitizada das produções ficcionais
Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações
de toque poético, ficcional ou dramático, em todos os níveis de uma
sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore,
lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita
das grandes civilizações (CANDIDO, 2006, p.174).
Ao compreender a abrangência da literatura para além de espaços ou círculos meramente
academicistas, Candido relativiza de certa forma as verdades e o poder dominante, uma vez que
o ensino de Literatura nessa abordagem pressupõe o diálogo entre as culturas: erudita e popular.
Tal postura diante das produções literárias origina uma desestabilização do discurso monológico
e impositivo que permeia muitas das orientações docentes nos documentos oficiais da área
educacional.
62
4ª REFEIÇÃO
Os diálogos entre Antônio Candido e Mikhail Bakhtin, portanto, apontam possíveis caminhos para
garantir uma aproximação maior entre leitor e texto, como também o destronamento de alguns
entraves teórico-metodológicos que ainda permeiam o universo das aulas de literatura no
contexto escolar.
CARVALHO, Letícia Queiroz de. Diálogos entre a carnavalização e o direito à literatura na escola: as
contribuições de Mikhail Bakhtin e Antônio Candido na formação do leitor. In: WITCHS, Pedro Henrique et al
(Orgs.) Conquistas e desafios dos estudos linguísticos na contemporaneidade: trabalhos do V Congresso
Nacional de Estudos Linguísticos Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2020. p.238-244.
63
4ª REFEIÇÃO
O LÉXICO sobre o qual essa linguagem se fundamenta evidentemente consiste no repertório dos
produtos disponíveis, plantas e animais, tipos de morfema (as unidades significativas de base)
sobre os quais se construirão as palavras e todo o dicionário. Portanto, é um léxico que se define,
segundo o caso, em relação à situação ambiental, econômica, social, cultural, uma vez que um
produto pode ser assegurado pelos recursos do território, mas também pelas relações
comerciais; pode ser acessível para alguns, inacessível a outros (de acordo com as possibilidades
de uso do espaço, nas economias de subsistência; as disponibilidades de mercado e o nível dos
preços, nas economias monetárias); pode ser aceito ou rejeitado de acordo com os gostos
(coletivos ou individuais) ou com as opções culturais (penso na rejeição da carne por parte dos
vegetarianos, ou na exclusão de certas comidas ou bebidas em determinadas tradições
religiosas). (...)
A MORFOLOGIA se refere aos modos como os produtos são elaborados e adaptados às várias
exigências de consumo, por meio das práticas de cozinha: gestos e procedimentos concretos (os
modos de cozimento e de preparação) transformaram as unidades de base em palavras, ou seja,
em pratos ou comidas, de uso diverso e de função distinta. Por exemplo, com os cerais se podem
fazer papas, pão, massa, tortas, fogaças: os ingredientes de base são os mesmos, diferente é o
resultado gastronômico, determinado por uma qualidade diferente do trabalho realizado sobre
eles. (...)
A SINTAXE é a estrutura da frase, que dá sentido ao léxico e às suas variantes morfológicas. No
nosso caso, é a refeição, que ordena os pratos de acordo com critérios de sequência, de
associação, de relação recíproca. Como na frase verbal, um ou mais protagonistas estão no
centro da ação: o prato de carne e/ou de cereais, determinado diversamente de acordo com as
culturas e as classes sociais, além da disponibilidade. (...)
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4ª REFEIÇÃO
Harmonização
DIALOGUE SOBRE SUAS COMBINAÇÕES!
Com a retórica de adaptar o discurso da carnavalização ao argumento de que a sala de aula
precisa potencializar outros caminhos em experiências de leitura, a comida tornou-se nossa
gramática e objeto de análise, ao longo dos capítulos dessa formação. Se mesmo “controlando os
pães“ insistimos em produções de aula que podem causar enjoo a nossos alunos, é preciso, em
certos momentos, propor uma “reforma da natureza“ docente. Emília surge nesse encontro
como exemplo de ruptura de paradigmas; sua ideia de “livro comestível“ apresenta grande
alcance sobre os valores socioculturais do ato de comer.
Se você pudesse ter o potencial da Emília para inventar ou repensar objetos e dinâmicas em sala
de aula, o que você gostaria de propor para um ambiente de ensino-aprendizagem mais
carnavalizado? Escreva uma carta a você mesmo(a) em prol de apresentar essa(s) nova(s)
ideia(s), justificando a importância das sugestões, tendo sempre como base suas experiências.
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4ª REFEIÇÃO
IMPORTANTE SABER
Sobremesa
Adoce suas convicções!
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4ª REFEIÇÃO
É igualmente compreensível que os textos que evidenciam a natureza cotidiana sejam alvos
frequentes de abordagens em que os signos da alimentação sejam destacados. Em “A última
crônica“, por exemplo, Fernando Sabino caracteriza a experiência alimentar de uma família
negra e humilde em contexto de comemoração.
Hoje, a sobremesa será à sua escolha: a seguir, os textos referenciados são apresentados entre
os códigos QR que seguem. Aponte a câmera do seu celular em direção às imagens e escolha a
opção de leitura final que lhe parecer mais apetitosa. Não se esqueça de que elas podem ser
multiplicadas e recontextualizadas em diversas dinâmicas de leitura em sala de aula!
Aceita um café?
PARA CONTRIBUIR COM A DIGESTÃO DE IDEIAS,SUGESTÃO DE LEITURA COMPLEMENTAR!
“A cozinha das escritoras“
(de Stefania Aphel Barzini)
Dez grandes escritoras, dez diferentes maneiras de se
interpretar literatura e cozinha. Cozinhar e comer muito tem a
ver com a arte da escrita: cozinheira e escritora compartilham
do poder da criação, enchem a sua arte de personalidade e de
sabor, e capricham até chegar ao ponto certo e desejado. “A
cozinha das escritoras“ põe à mesa pequenas biografias
gastronômicas de grandes mulheres da literatura
internacional, contando as relações de amor e ódio, exagero e
escassez de cada uma delas com a comida. E para deixar a
leitura ainda mais saborosa, a autora apresenta as receitas
dos pratos que fizeram parte da vida de cada uma delas, como
o robalo de Getrude Stein em homenagem a Picasso e a geleia de
maçã e limão, preferida de Virginia Woolf.
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5ª REFEIÇÃO
”A gente nao quer so comer/A gente quer comer e quer fazer amor”
Objetivo:
Dialogar sobre os valores afetivos manifestados pela comida e pelos textos
literários; a comida e a literatura como símbolos de emoção e de memória.
68
5ª REFEIÇÃO
Aperitivo
Comer junto, além de ser um ato de sociabilidade, implica no registro de memórias. Em um
presente em que a falta de tempo é justificativa para abdicarmos de hábitos formadores de
nossa identidade, experiências com a alimentação parecem evocar e registrar traços
particulares de emoção. “Comida afetiva“, por exemplo, tem sido a expressão usada para
representar o consumo de instantes sociais em que o corpo físico e o subjetivo são alimentados
– e, com isso, o indivíduo busca se conectar a valores intimamente humanos. De modo análogo,
experiências literárias podem também ser capazes de permitir que a nossa leitura das palavras
favoreça leituras de mundo e, por conseguinte, sejamos alimentados de significados. Nessa
lógica poética, pratos e livros viram referências metafóricas na tentativa de transformar a sala
de aula em um ambiente potencialmente marcado por memórias: está na hora de colocar os
pratos nas carteiras, os livros para fermentar novas ideias e servir experiências que resgatem
todos os ingredientes emotivos que uma classe pode contemplar. É preciso continuar a pensar a
docência em seus sabores mais marcantes – de preferência, por meio de práticas
generosamente temperadas com açúcar e com afeto!
Couvert
Deguste nossas primeiras provocações!
Que experiência de prática docente lhe motiva a pensar a sala de aula enquanto espaço de
afetividades?
Entrada
Comece a se alimentar com nossa seleção de ideias!
69
5ª REFEIÇÃO
Interessa-me mais o prazer que aparece no rosto curioso e sorridente de alguém que tira a
tampa da panela, para ver o que está lá dentro. Minhas cozinhas, em minhas fantasias, nada têm
a ver com estas de hoje, modernas, madeiras sem a memória dos cortes passados e das coisas
que se derramaram, tudo movido a botão, forno de micro-ondas, adeus aos jogos eróticos
preliminares de espiar, cheirar, beliscar, provar, perfurar... Tudo rápido, tudo prático, tudo
funcional. Imaginei que quem assim trata a cozinha, no amor deve ser semelhante aos galos e
galinhas, quanto mais depressa melhor, há coisas mais importantes a se fazer. Como aquele
vendedor de pílulas contra a sede, da estória do "Pequeno Príncipe". Ir até o filtro é uma perda
de tempo. Com a pílula elimina-se a perda inútil.
Quero voltar à cozinha lenta, erótica, lugar onde a química está mais próxima da vida e do
prazer, cozinha velha, quem sabe com alguns picumãs pendurados no teto, testemunhos de que
até mesmo as aranhas se sentem bem ali.
Nada melhor que o contraste. A sala de visitas, por exemplo. Lá no interior de Minas, faz tempo.
Retrato silencioso oval do avô, na parede; samambaia no cachepô de madeira envernizada;
porta-bibelôs; as cadeiras, encostos verticais, 90 graus, para que ninguém se acomodasse;
capas brancas engomadas pra que nenhuma cabeça brilhantinosa se encostasse; os donos
dizendo em silêncio "está mesmo na hora", enquanto a boca mente dizendo "ainda é cedo", na
hora da partida, junto com as recomendações á tia Sinhá (porque toda família tinha de ter uma
tia Sinhá). Aí a porta se fechava, e a vida recomeçava, na cozinha...
A porta da rua ficava aberta. Era só ir entrando. Se não encontrasse ninguém não tinha
importância, porque em cima do fogão estava a cafeteira de folha, sempre quente, para quem
quisesse. Tomava-se o café e ia-se embora, havendo recebido o reconforto daquela cozinha vazia
e acolhedora. Eu diria que a cozinha é o útero da casa: lugar onde a vida cresce e o prazer
acontece, quente... Tudo provoca o corpo e sentidos adormecidos acordam. São os cheiros de
fumaça, da gordura queimada, do pão de queijo que cresce no forno, dos temperos que
transubstanciam os gostos, profundos dentro do nariz e do cérebro, até o lugar onde mora a
alma. Os gostos sem fim, nunca iguais, presentes na ponta da colher para a prova, enquanto o
ouvido se deixa embalar pelo ruído crespo da fritura e os olhos aprendem a escultura dos gostos
e dos odores nas cores que sugerem o prazer...
70
5ª REFEIÇÃO
Cozinha: ali se aprende a vida. É como uma escola em que o corpo, obrigado a comer para
sobreviver, acaba por descobrir que o prazer vem de contrabando. A pura utilidade alimentar,
coisa boa para a saúde, pela magia da culinária, se torna arte, brinquedo, fruição, alegria.
Cozinha, lugar dos risos...
Pensei então se não haveria algo que os professores pudessem aprender com os cozinheiros: que
a cozinha fosse a antecâmara da sala de aulas, e que os professores tivessem sido antes, pelo
menos nas fantasias e nos desejos, mestres-cucas, especialistas, nas pequenas coisas que
fazem o corpo sorrir de antecipação. Isto. Uma Filosofia Culinária da Educação. Imaginei que os
professores, acostumados a homens ilustres, sem cheiro de cebola na mão, haveriam de se
ofender, pensando que isto não passa de uma gozação minha.
Logo me tranquilizei, ouvindo a sabedoria de Ludwig Feuerbach, a quem até mesmo Marx prestou
atenção: "O homem é aquilo que ele come". Abaixo Descartes. Idéias claras e distintas podem ser
boas para o pensamento. Também bombas atômicas e as contas do FMI são boas para serem
pensadas. Só que não podem ser amadas, não têm gosto e nem cheiro, e por isto mesmo a boca
não as saboreia e não entram em nossa carne.
A primeira lição é que não há palavra que possa ensinar o gosto do feijão ou o cheiro do coentro.
É preciso provar, cheirar, só um pouquinho, e ficar ali, atento, para que o corpo escute a fala
silenciosa do gosto e do cheiro. Explicar o gosto, enunciar o cheiro; pra estas coisas a Ciência de
nada vale; é preciso sapiência, ciência saborosa, para se caminhar na cozinha, este lugar de
saber-sabor. Cozinheiro: bruxo, sedutor. "— Vamos, prove, veja como está bom..." Palavras que
não transmitem saber, mas atentam para um sabor. O que importa está para além da palavra. É
indizível. Como ele seria tolo se avaliasse seus alunos por meio de testes de múltipla escolha. É
assim com a vida inteira, que não pode ser dita, mas apenas sugerida. Lembro-me do mestre
Barthes, a quem amo sem ter conhecido, que compreendia que tudo começa nesta relação
amorosa, ligeiramente erótica, entre mestre e aprendiz, e que só aí que se pode saborear, como
numa refeição eucarística, os pratos que o mestre preparou com a sua própria carne...
A lição dois é que o prazer do gosto e do cheiro não convivem com a barriga cheia. O prazer
cresce em meio às pequenas abstenções, às provas que só tocam a língua... É aí que o corpo vai
se descobrindo como entidade maravilhosamente polimórfica na sua infindável capacidade para
71
5ª REFEIÇÃO
sentir prazeres não pensados. Já os estômagos estufados põem fim ao prazer, pedem os
digestivos, o sono e a obesidade. Cozinheiros de tropa nada sabem sobre o prazer. A comida se
produz às dezenas de quilos. Pouco importa que os corpos sorriam. Comida combustível. Que os
corpos continuem a marchar. Melhor se fossem pílulas. Abolição da cozinha, abolição do prazer:
pura utilidade, zero de fruição.
"— Estava boa a comida?"
"— Ótima. Comi um quilo e duzentas gramas..."
Equação desejável, pela redução do prazer à quantidade de gramas. Não deixa de ser uma
Filosofia... Como aquela que desemboca nos cursinhos vestibulares e já se anuncia desde a
primeira série do primeiro grau. Não se trata da erotização do corpo. Para a engorda tais
sensibilidades são dispensáveis. Artifício na criação de gansos, para a obtenção de fígados
maiores: funis goelas abaixo e por ali a comida sem gosto. Afinal, por que razão o prazer de um
ganso seria importante? Seus donos sabem o que é melhor para eles... Vi nossos moços assim,
funis goela abaixo, e depois vomitando e pensando o seu vômito. A isto se chama ver quantos
pontos se fez no vestibular...
Entendem por que eu queria uma filosofia culinária de educação? É que temos tornado os
criadores de ganso como modelos...
ALVES, Rubem.Aprendendo das cozinheiras. In:Estórias de quem gosta de ensinar – O fim dos vestibulares. São
Paulo: Ars Poética, 1995.
Prato Principal
Alimente sua saciedade!
VOCE SABIA?
Rubem Braga (1913-1990) foi um escritor e jornalista
brasileiro, nascido em Cachoeiro do Itapemirim, no
Espírito Santo.
Dedicou-se exclusivamente à crônica, que o tornou
popular, escrevendo para diversos jornais. Entre as
palavras, mostrava seu estilo irônico, lírico e
extremamente bem-humorado. Sabia também ser ácido
e escrevia textos duros defendendo os seus pontos de
vista. Fazia crítica social, denunciava injustiças, a falta
de liberdade da imprensa e combatia
72
5ª REFEIÇÃO
ALMOÇO MINEIRO
Rubem Braga
Éramos dezesseis, incluindo quatro automóveis, uma charrete, três diplomatas, dois jornalistas,
um capitão-tenente da Marinha, um tenente-coronel da Força Pública, um empresário do
cassino, um prefeito, uma senhora loura e três morenas, dois oficiais de gabinete, uma criança de
colo e outra de fita cor-de-rosa que se fazia acompanhar de uma boneca. Falamos de vários
assuntos inconfessáveis. Depois de alguns minutos de debates ficou assentado que Poços de
Caldas é uma linda cidade. Também se deliberou, depois de ouvidos vários oradores, que estava
um dia muito bonito. A palestra foi decaindo então, para assuntos muitos escabrosos: discutiu-se
até política. Depois que uma senhora paulista e outra carioca trocaram ideias a respeito do
separatismo, um cavalheiro ergueu um brinde ao Brasil. Logo se levantaram outros, que,
infelizmente, não nos foi possível anotar, em vista de estarmos situados na extremidade da
mesa. Pelo entusiasmo reinante supomos que foram brindados o soldado desconhecido, as tardes
de outono, as flores dos vergéis, os proletários armênios e as pessoas presentes. O certo é que
um preto fazia funcionar a sua harmônica, ou talvez a sua concertina, com bastante sentimento.
Seu Nhonhô cantou ao violão com a pureza e a operosidade inerentes a um velho funcionário
municipal.
Mas nós todos sentíamos, no fundo do coração, que nada tinha importância, nem a Força Pública,
nem o violão de seu Nhonhô, nem mesmo as águas sulfurosas. Acima de tudo pairava o divino
lombo de porco com tutu de feijão. O lombo era macio e tão suave que todos imaginamos que o
seu primitivo dono devia ser um porco extremamente gentil, expoente da mais fina flor da
espiritualidade suína. O tutu era um tutu honesto, forte, poderoso, saudável.
É inútil dizer qualquer coisa a respeito dos torresmos. Eram torresmos trigueiros como a doce
amada de Salomão, alguns louros, outros mulatos. Uns estavam molinhos, quase simples gordura.
Outros eram duros e enroscados, com dois ou três fios.
Havia arroz sem colorau, couve e pão. Sobre a toalha havia também copos cheios de vinho ou de
água mineral, sorrisos, manchas de sol e a frescura do vento que sussurrava nas árvores. E no
fim de tudo houve fotografias. É possível que nesse intervalo tenhamos esquecido uma
encantadora linguiça de porco e talvez um pouco de farofa. Que importa? O lombo era o
essencial, e a sua essência era sublime. Por fora era escuro, com tons de ouro. A faca penetrava
nele tão docemente como a alma de uma virgem pura entra no céu. A polpa se abria, levemente
enfibrada, muito branquinha, desse branco leitoso e doce que têm certas nuvens às quatro e
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5ª REFEIÇÃO
meia da tarde, na primavera. O gosto era de um salgado distante e de uma ternura quase musical.
Era um gosto indefinível e puríssimo, como se o lombo fosse lombinho da orelha de um anjo ouro.
Os torresmos davam uma nota marítima, salgados e excitantes da saliva. O tutu tinha o sabor
que deve ter, para uma criança que fosse gourmet de todas as terras, a terra virgem recolhida
muito longe do solo, sob um prado cheio de flores, terra com um perfume vegetal diluído mas
uniforme. E do prato inteiro, onde havia um ameno jogo de cores cuja nota mais viva era o verde
molhado da couve — do prato inteiro, que fumegava suavemente, subia para a nossa alma um
encanto abençoado de coisas simples e boas.
BRAGA, Rubem.Almoço Mineiro. In: Morro do isolamento: crônicas de Rubem Braga. Rio de Janeiro: Record, 1982.
74
5ª REFEIÇÃO
7.4 EFEITOS
O prazer da mesa não comporta arrebatamentos, nem êxtases, nem transportes, mas ganha em
duração o que perde em intensidade, e se distingue sobretudo pelo privilégio particular de nos
inclinar a todos os outros prazeres, ou, pelo menos, de nos consolar por sua perda.
Com efeito, após uma boa refeição, o corpo e a alma gozam de um bem-estar especial.
SAVARIN, Brillat. Meditação 14: Do prazer da mesa. In: A fisiologia do gosto. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
Bebida
Aprecie sem moderação!
COMIDA NO PRATO
Martha Medeiros
Daniel Filho é um diretor incansável, sempre disposto a novos desafios, mesmo já tendo
conquistado seu lugar de honra entre os maiores nomes do cinema e da tevê brasileira. Quando
ele tinha 72 anos e filmava o longa-metragem sobre Chico Xavier, alguém perguntou por que ele
não parava de trabalhar. Ele respondeu: “Minha mãe me ensinou a nunca deixar comida no prato.
E tem comida no prato“.
Filosofia do dia-a-dia. Está explicada a dificuldade que muitos sentem ao se aposentar. Ainda tem
comida no prato. É uma sensação comum também a todos os que são sutilmente convidados a
saírem de cena, tendo suas solicitações de emprego negadas ou deixando de serem chamados
para participar de reuniões familiares e sociais. Como assim, se ainda tem comida no prato?
Mais do que comida no prato, ainda existe fome.
O ser humano aceita a ideia da morte (real ou figurada) apenas quando não se reconhece mais
como um faminto, quando o corpo cansa, a mente falha e a alma pede pra sair. Quando não há
mais vontades, desejos, planos. Quando não vê mais necessidade de alimentar-se do que a vida
oferece – música, cinema, amigos, natureza, sexo. Quando não há mais um sonho para renovar a
energia, um projeto passível de realização, nenhuma esperança de que amanhã tudo possa
mudar. Quando a sensação for de completo enfado. Quando não houver mais comida no prato.
75
5ª REFEIÇÃO
Harmonização
DIALOGUE SOBRE SUAS COMBINAÇÕES!
Nem só de mastigar vive o comer!
A comida e seus ritos simbólicos são sempre capazes de apresentar uma nova dimensão para as
interações sociais. Se para Rubem Alves a cozinha é o espaço onde o corpo aprende sobre a vida
e descobre o prazer, também nela Rubem Braga encontra, em meio às memórias sobre a cozinha
mineira, emoções que conferem afetividade a um almoço. É verdade que, como conceituou Savarin,
a mesa é ainda um repositório de prazeres próprio da espécie humana. Compartilhar uma
refeição é um ato de intimidade entre as identidades sociais. Nesse sentido, enquanto houver
possibilidade de interação, tentaremos manter comida no prato para que possamos perpetuar
as refeições coletivas – ou, minimamente, vislumbrar no alimento uma metáfora para nossa
energia vital, como defende Martha Medeiros.
76
5ª REFEIÇÃO
A sala de aula pode e deve ser como a cozinha: um espaço de aromas, sabores, saberes,
descobertas, encantos, resistência, memórias e afetos. O professor não deve ser apenas aquele
que isoladamente produz as refeições, mas sim um agente que vivencia a possibilidade de provar
novos sabores entre tantas receitas e cardápios, ao longo dos anos. Nesse sentido, torna-se
oportuno referenciar importante exposição preconizada por Paulo Freire, figura icônica nos
estudos da pedagogia crítica:
IMPORTANTE SABER
77
5ª REFEIÇÃO
"O ATO DE COZINHAR, POR EXEMPLO, SUPÕE ALGUNS SABERES CONCERNENTES AO USO DO FOGÃO, COMO ACENDÊ-LO, COMO EQUILIBRAR
PARA MAIS, PARA MENOS, A CHAMA, COMO LIDAR COM CERTOS RISCOS MESMO REMOTOS DE INCÊNDIO, COMO HARMONIZAR OS DIFERENTES
TEMPEROS NUMA SÍNTESE GOSTOSA E ATRAENTE. A PRÁTICA DE COZINHAR VAI PREPARANDO O NOVATO, RATIFICANDO ALGUNS DAQUELES
SABERES, RETIFICANDO OUTROS, E VAI POSSIBILITANDO QUE ELE VIRE COZINHEIRO".
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
p. 2.
Sobremesa
ADOCE SUAS CONVICÇÕES!
(Disponível em URL
<https://www.facebook.com/objetosinanimadosca
rtoon/photos/a.563534640398234/3115510645200
608>. Acesso em: 29-09-20.)
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5ª REFEIÇÃO
(Disponível em URL
<https://www.facebook.com/objetosinanimadoscartoon/photos/a.563534640398234/3096113200473686
>. Acesso em: 29-09-20.)
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PARA CONTRIBUIR COM A DIGESTÃO DE IDEIAS SUGESTÃO DE LEITURA COMPLEMENTAR
, !
“A Poesia é para comer - Iguarias Para o Corpo e o Espírito“
(de Ana Vidal)
Ana Vidal surge com a saborosa ideia de juntar poemas de nomes consagrados da lusofonia
(brasileiros, africanos, indianos e portugueses) a receitas culinárias inéditas mas
comprovadamente deliciosas, com as quais esses poemas tivessem alguma relação. Dividiu os
pratos por Prelúdios Inspirados (entradas), Boas Companhias (acompanhamentos), Presentes
do Mar (peixes), Prazeres da Carne (carnes), Finais Felizes (sobremesas) e Néctares dos
Deuses (bebidas). Um livro para saborear, durante muito tempo.
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5ª REFEIÇÃO
Cooked
(Netflix)
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AGRADECIMENTO AOS LEITORES
Caros leitores, este caderno pedagógico apresenta mais uma possibilidade para o trabalho com a
formação do professor de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental II, a partir de interlocuções entre a
Gastronomia, a carnavalização e os saberes que emergem do cotidiano escolar.
Esperamos que este material seja um suporte para o trabalho em sala de aula e que, longe de ser uma
“receita pedagógica“, possa trazer novas possibilidades para as práticas de leitura na escola, de forma a
cotejar ideias e visões de mundo plurais no contexto da sala de aula, sob a ótica da carnavalização da
linguagem literária representada em cenas, excertos e metáforas que constituem a ficção.
Acreditamos que, por intermédio deste material, novas discussões sobre a formação docente na área de
Letras e a leitura na escola poderão ser ampliadas no que tange à participação mais efetiva de
professores e alunos nos processos que envolvem o contato com os textos ficcionais, para além das suas
materialidades, uma vez que rupturas pedagógicas com orientações normativas e posturas descoladas da
realidade dos leitores precisam adentrar a sala de aula!
Agradecemos por sua leitura e contamos com suas contribuições para que o trabalho seja configurado à
luz da pluralidade discursiva e da dialogia no encontro com os livros. Colocamo-nos à disposição para
incrementar novos saberes na certeza de que estamos em busca de uma escola mais participativa e
formadora de cidadãos críticos e reflexivos.
Os autores
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REFERENCIAS
BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 1ª. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2010.
_________. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São
Paulo: Hucitec, 2008.
_________. (V. N. Volochínov. Marxismo e filosofia de linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi
Vieira. São Paulo: Hucitec, 2004.
DÓRIA, Carlos Alberto. Estrelas no céu da boca: escritos sobre culinária e gastronomia. São Paulo:
Senac, 2006.
FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores
Associados: Cortez, 1989.
_________. Pedagogia da autonomia. 34. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006.
MONTANARI, Massimo (Org.). O mundo na cozinha: história, identidade, trocas. São Paulo: Senac São
Paulo, 2009.
SOERENSEN, Claudiana. A carnavalização e o riso segundo Mikhail Bakhtin. Texto disponível em:
http://e-revista.unioeste.br/index.php/travessias/article/view/4370. Acesso em 14.10.19.
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REFERENCIAS DAS IMAGENS
Foto - Mikhail Bahtin (página 11)
https://pt.wikipedia.org/wiki/Mikhail_Bakhtin
Foto - Rubem Alves (página 17)
https://clubedapipoca.com/blog/milho-de-pipoca-rubem-alves/
Foto - Clarice Lispector (página 20)
https://claricelispectorims.com.br/blog/conversa-com-jose-castello/
Foto - Massimo Montanari (página 23)
https://www.ilnuovodiario.com/2020/01/22/dagli-spaghetti-alle-origini-a-lugo-lo-storico-dellalimentazione-m
ontanari-presenta-il-suo-saggio/
Capa do Livro - À mesa com Monteiro Lobato (página 26)
https://paladar.estadao.com.br/noticias/comida,quitutes-de-pedro-e-lobato-esquentam-paraty-durante-a-fli
p,10000008705
Capa do Livro - Livro de Receitas do Professor de Português (página 27)
https://www.amazon.com.br/Livro-Receitas-Professor-Portugu%C3%AAs-Atividades/dp/857526074X
Capa do Filme - Como água para chocolate (página 27)
https://br.pinterest.com/pin/641340803161309390/?nic_v2=1a4inXgrU
Foto - Nina Horta (página 29)
https://veja.abril.com.br/cultura/nina-horta-colunista-de-gastronomia-morre-aos-80-anos/
Foto - Luis Fernando Verissimo (página 31)
https://memoria.ebc.com.br/2012/12/luis-fernando-verissimo-tem-alta-apos-24-dias-de-internacao
Foto - Elisa Lucinda dos Campos Gomes (página 39)
https://www.brasil247.com/cultura/elisa-lucinda-tudo-o-que-eu-ganhei-na-vida-foi-a-poesia-que-me-deu
Capa do Livro - A comida baiana de Jorge Amado (página 41)
https://www.amazon.com.br/comida-baiana-Jorge-Amado/dp/8567431034
Foto - Cora Coralina (página 43)
https://vermelho.org.br/prosa-poesia-arte/cora-coralina-a-doceira-poeta-que-publicou-seu-1o-livro-aos-75-
anos/
Foto - Sarah Vervloet (página 57)
https://chadechama.wordpress.com/
Ilustração de carta (página 66)
https://www.pinclipart.com/pindetail/ibowTmR_envelope-de-carta-desenho-clipart/
Capa do Livro - A cozinha das escritoras: (página 67)
https://www.amazon.com.br/Cozinha-das-Escritoras-Stefania-Aphel/dp/8582400748
Foto - Rubem Braga (página 72)
https://eshoje.com.br/lei-rubem-braga-ganha-novo-selo-e-um-cineclube/
Capa de Serie (Netflix) - Cooked (página 80) https://hashitag.com.br/serie-cooked/
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