Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Harold Pinter
Velhos Tempos foi apresentada pela primeira vez pela Royal Shakespeare Company no
Teatro Aldwych, Londres, em 01 de junho de 1971, com o seguinte elenco:
A peça foi produzida para a televisão pela BBC em outubro de 1975, com o seguinte
elenco:
Foi produzida no Theatre Royal, Haymarket, Londres, em abril de 1985, com o seguinte
elenco:
1
ATO UM.
Silêncio.
(Acendem-se as luzes sobre Deeley e Kate. Estão fumando cigarros. Anna permanece
imóvel sob luz fraca junto à janela.)
Pausa.
Pausa.
Pausa.
DEELEY: O quê?
KATE: A palavra amiga . . . quando a gente olha pra trás . . . tanto tempo.
Pausa.
DEELEY: Mas você se lembra dela. Ela se lembra de você. Ou por que ela estaria
vindo aqui hoje à noite?
Pausa.
2
KATE: Minha amiga e a única.
Pausa.
Se a gente possui uma coisa só, a gente não sabe dizer se é a melhor.
KATE: Mmnn.
Pausa.
Pausa.
Pausa.
DEELEY: De quem?
KATE: De mim.
(Deeley dá um risinho.)
Pausa.
KATE: O quê?
KATE: Não.
Pausa.
3
KATE: Não.
KATE: Em quê?
Pausa.
Pausa.
KATE: Nenhuma.
Pausa.
Por que ela não é casada? Quero dizer, por que ela não vai trazer o marido?
Pausa.
Pausa.
4
DEELEY: Ela mencionou algum marido na carta?
KATE: Não.
DEELEY: Como você acha que ele seria? Quer dizer, com que tipo de homem ela teria
se casado? Afinal, ela era a sua melhor – a sua única – amiga. Você deve ter
alguma ideia. Que tipo de homem seria ele?
Pausa.
Pausa.
KATE: Uma.
Pausa.
KATE: Centenas.
KATE: Nem todos, acho. Mas, afinal de contas, morávamos juntas. Havia visitas de
vez em quando. Eu as conhecia.
KATE: O quê?
5
Pausa.
KATE: Hum?
KATE: Claro.
KATE: Não?
KATE: Claro que morávamos. De que outra maneira ela poderia roubar minhas
roupas íntimas? Na rua?
Pausa.
DEELEY: Eu sabia que você tinha morado com alguém numa certa época . . .
Pausa.
Pausa.
ANNA: Na fila, a noite toda, a chuva, lembra-se? Nossa! O Albert Hall, o Covent
Garden, o que comíamos? me lembro, metade da noite, fazer o que
adorávamos, naquela época éramos jovens, claro, que energia, e trabalhar
de manhã, e ir a um concerto ou a uma ópera ou a um balé, aquela noite,
você não esqueceu? e depois surfar no ônibus que descia a Kensington
High Street, e os motoristas dos ônibus, e aí, correr atrás de fósforo para o
aquecedor e então, acho, ovos mexidos, ou nós? quem cozinhava? ambas
tagarelando e dando risinhos, ambas juntinhas perto do aquecedor, depois
cama e dormir, e uma grande agitação de manhã, correr para pegar o ônibus
outra vez para trabalhar, almoços no Green Park, colocando em dia nossos
assuntos, cada uma com o seu próprio sanduíche, garotas inocentes,
secretárias inocentes, e então a chegada da noite, e quem sabe, quanta
excitação guardada, quero dizer, a simples expectativa de tudo, pura
antecipação de tudo, e tão pobre, mas ser pobre e jovem, e uma garota, em
6
Londres, naquela época . . . e os cafés que encontrávamos, quase
reservados, não eram? onde artistas e escritores e às vezes atores se
reuniam, e outros com bailarinos, sentávamos, quase sem folego, com
nosso café, cabeças curvadas, para não sermos vistas, para não
perturbarmos, para não nos distrairmos, e ouvíamos e ouvíamos todas
aquelas palavras, todos aqueles cafés e todas aquelas pessoas, criativas,
sem dúvida, e será que isso ainda existe? será? quem sabe?
Pausa ligeira.
(Ela coloca leite e açúcar em uma xícara e a leva para Anna. Leva café preto para Deeley
e, depois, senta-se com o seu café.)
(Deeley serve conhaque para todos e entrega os copos. Fica de pé com o seu copo na
mão.)
Pausa.
ANNA: Como vocês foram espertos em escolher essa parte do mundo, e como são
sensatos e corajosos por ficarem permanentemente em tamanho silêncio.
ANNA: Qualquer pessoa que morasse aqui não gostaria de sair para muito longe.
Eu não gostaria de sair para muito longe, ficaria receosa de ir muito longe e
pelando de medo de que quando voltasse a minha casa tivesse
desaparecido.
ANNA: O quê?
DEELEY: A expressão “pelando de medo”. Há muito tempo não ouvia essa expressão.
Pausa.
KATE: Ás vezes, caminho até o mar. Não tem muita gente. É uma praia longa.
Pausa.
7
ANNA: Mas, de qualquer forma, sentiria falta de Londres. Mas, claro, fui garota em
Londres. Fomos garotas juntas.
ANNA: Verdade?
DEELEY: É.
DEELEY: O quê?
DEELEY: Ah.
Pausa.
Pausa.
ANNA: Não éramos muito sofisticadas em termos de culinária, não tínhamos tempo,
mas de vez em quando fazíamos um ensopado incrivelmente enorme,
bebíamos todas, e na maioria das vezes ficávamos metade da noite lendo
Yeats.
Pausa.
8
Pausa.
DEELEY: Eu sei.
ANNA: Sabe?
Pausa.
DEELEY: É bom, eu sei, assim a Kate te vê. Ela não tem muitos amigos.
DEELEY: Ela nunca fez muitos amigos, embora tenha tido muitas oportunidades para
isso.
Pausa.
DEELEY: Estamos
DEELEY: Ela gosta de fazer longas caminhadas. Coisas assim. Você sabe. Põe a
capa de chuva. Anda pela estrada, com as mãos no bolso. Coisas desse
tipo.
ANNA: É.
ANNA: É mesmo?
DEELEY: É, olho para ele enquanto o seguro em minhas mãos. Aí eu solto, tiro minhas
mãos e deixo ele flutuar.
9
DEELEY: (Para Anna.) Fica flutuando.
(Anna senta-se.)
Às vezes, caminhando pelo parque, eu dizia para ela, você está sonhando,
você está sonhando, acorde, com o que você está sonhando? E ela virava-
se para mim, sacudindo seus cabelos, e me olhava como se eu fosse parte
do seu sonho.
Pausa.
Um dia ela me disse, dormi toda a sexta-feira. Não, não dormiu, eu disse, o
quê você quer dizer com isso? Dormi toda a sexta-feira, ela disse. Mas hoje
é sexta-feira, eu disse, todo o dia tem sido sexta-feira, agora é a noite de
sexta-feira, você não dormiu toda a sexta-feira. Sim dormi, ela disse, dormi
toda a sexta-feira, hoje é sábado.
DEELEY: Você quer dizer que literalmente ela não sabia que dia era?
ANNA: Não.
Pausa.
KATE: Setembro.
Pausa.
DEELEY: Estamos forçando Kate a pensar. Precisamos te ver com mais frequência.
Você é uma influência saudável.
ANNA: Delicioso.
ANNA: Ah, essas canções. Costumávamos tocá-las, todas elas, o tempo todo, tarde
da noite, deitadas no chão, essas deliciosas coisas do passado. Às vezes,
eu olhava para o rosto dela, mas ela ficava completamente alheia ao meu
olhar de contemplação.
ANNA: O quê?
10
DEELEY: A expressão “olhar de contemplação”. Há muito não ouvia.
ANNA: Sim, ela ficava completamente alheia ao meu olhar. Ficava totalmente
pensativa.
DEELEY: (Cantando, para Kate.) You're lovely to look at, delightful to know . . .
(Oh mas você é tão linda, com seu sorriso tão ardente . . .)
DEELEY: (Cantando.) I've got a woman crazy for me. She's funny that way.
Pausa ligeira.
Pausa ligeira.
1
A partir desse ponto, nas cenas com músicas, os tradutores optaram por incluir a tradução dos versos das músicas em
forma de rubrica e, portanto, manter, como fala cênica da personagem, o verso da música em inglês. (N. dos T.)
11
(Não me embriago com champanha,
Só álcool não me excita de forma nenhuma,
Então me diga por que deveria ser verdade – )
Pausa.
I of course replied,
Cannot be denied.
Pausa.
Pausa.
ANNA: (Cantando.) The park at evening when the bell has sounded . . .
Pausa.
12
(Oh, como sua alma está apegada . . .)
Pausa.
Silêncio.
Pausa.
DEELEY: Eu sei que o F. J. McCormick estava ótimo também. Mas ele não nos uniu.
Pausa.
ANNA: Já.
DEELEY: Quando?
13
Pausa.
Pausa.
DEELEY: Acho que não estou enganado de dizer que na outra vez que nos
encontramos, ficamos de mãos dadas. Segurava sua mão fria, enquanto ela
caminhava ao meu lado, e disse alguma coisa que a fez sorrir, e ela me
olhou, não foi assim mesmo?, sacudindo seus cabelos, e aí achei que ela
estava ainda mais fantástica do que o Robert Newton.
Pausa.
ANNA: Não conheci o Robert Newton, mas eu sei, entendo o que você quer dizer.
Tem coisas que a gente se lembra mesmo que elas nunca tenham
acontecido. Tem coisas que eu me lembro sem que elas tenham acontecido,
mas quando lembro delas, elas acontecem.
DEELEY: O quê?
ANNA: Aquele homem que chorava no nosso quarto. Uma noite, eu voltei tarde, e o
encontrei soluçando, cobrindo o rosto com suas mãos, sentado na poltrona,
todo enroscado na poltrona, e Kate sentada na cama com uma caneca de
café e ninguém falava comigo, ninguém falava, nem erguia os olhos. Eu não
podia fazer nada. Tirei a roupa e apaguei a luz e me enfiei na cama, as
cortinas eram finas, entrava luz da rua, Kate imóvel, na sua cama, o homem
soluçava, a luz entrava, piscava na parede, havia uma brisa leve, as cortinas
de vez em quando balançavam, não havia mais nada só o soluço, de
repente ele parou. O homem veio para cima de mim, depressa, olhou para
mim, mas eu não queria absolutamente nada com ele, nada.
Pausa.
14
Pausa.
ANNA: Mas depois de um tempo, eu ouvi ele indo embora. Ouvi a porta da frente se
fechar, e passos na rua, depois, o silêncio, depois, passos que se
afastavam, e depois, o silêncio.
Pausa.
Mas depois, naquela noite mais tarde, eu acordei, olhei para cama dela e vi
dois vultos.
Pausa.
DEELEY: Claro que esteve. Foi embora duas vezes e depois, voltou.
Pausa.
Pausa.
(Kate levanta-se. Vai até à mesinha, apanha um cigarro dentro de uma caixa e o acende.
Olha para Anna.)
ANNA: Não, não, você não tinha nada de morta, você era tão ativa, tão animada,
costumava sorrir –
DEELEY: Claro que sim. Eu fazia você sorrir, não era? Andando pela rua, de mãos
dadas. Você rolava de rir.
DEELEY: Animada não é a palavra certa. Quando ela ria . . . como é que eu posso
dizer?
15
ANNA: Os olhos dela se iluminavam.
(Deeley levanta-se, vai até à caixa de cigarros, apanha-a, sorri para Kate. Kate olha para
ele, observa-o acender o cigarro, tira a caixa das mãos dele, vai até Anna, oferece-lhe um
cigarro. Anna aceita.)
KATE: Eu disse que vocês falam de mim como se agora eu estivesse morta.
ANNA: Como você pode dizer uma coisa dessas? Como você pode dizer uma coisa
dessas se estou olhando para você agora, vendo você vir cautelosamente se
equilibrando, olhando para mim -
Pausa.
DEELEY: Eu próprio, naquela época, era um estudante, fazia malabarismo com o meu
futuro, me perguntava por que cargas d’água eu deveria me amarrar à barra
da saia de uma garota, há pouco saída dos cueiros, que de virtude só tinha o
silêncio, sem nenhum senso de firmeza, sem nenhum senso de decisão,
somente conduzida ao sabor dos ventos, com os quais ela ia, mas não os
ventos, e certamente não os meus ventos, tais como eram, mas ventos que,
acho, só ela compreendia, mas, é claro, sem compreensão de espécie
alguma, pelo menos como eu entendo essa palavra, pelo menos é assim
que eu pensava. Uma figura clássica de mulher, dizia para mim mesmo, ou
uma postura clássica de mulher?, tanto uma coisa quanto outra já
ultrapassadas.
Pausa.
Era assim que eu via as coisas. Quer dizer, É assim que eu declaro
categoricamente que via as coisas então. Há vinte anos.
Silêncio.
ANNA: Quando eu soube que Kate tinha se casado, meu coração saltitou de alegria.
Pausa.
Sim, ele saltitou de alegria. Porque, você entende, eu sabia que ela nunca
fazia as coisas incorretamente, descuidadamente, impetuosamente. Tem
gente que atira uma pedra no rio, antes de pular, para saber se a água está
fria demais, outros, muito raros, esperam sempre pelos movimentos intensos
antes de pular.
16
DEELEY: Algumas pessoas fazem o quê? (Para Kate.) O que foi que ela disse?
ANNA: E eu sabia que Kate sempre esperaria não só pelo primeiro movimento
intenso, mas pelos movimentos intensos para penetrar e penetrar a
superfície, pois, é claro, você sabe, os movimentos intensos na superfície
indicam oscilação nas profundezas dentro de cada partícula de água do leito
do rio, mas até mesmo quando ela sentia isso acontecer, quando tinha
certeza de que estava acontecendo, ela ainda assim não pularia. Mas nesse
caso, ela pulou e eu soube então que ela havia realmente se apaixonado e
estava contente. E eu deduzi que isso também deve ter acontecido com
você.
ANNA: Se quiser.
DEELEY: Entendo.
Pausa.
ANNA: Depois que eu soube o tipo de homem que você era, fiquei duplamente feliz,
porque eu sabia que Kate sempre se interessou pelas artes.
KATE: Uma vez eu me interessei pelas artes, mas agora não consigo me lembrar
por quais.
ANNA: Não me diga que você se esqueceu dos dias que passamos na Tate? E
como explorávamos Londres e todas aquelas velhas igrejas e todos aqueles
prédios antigos, quer dizer aqueles que sobraram da guerra, na Cidade e ao
sul do rio, em Lambeth e Greenwich? Oh meu Deus. Ah sim. E os jornais de
domingo! Nunca consegui impedi-la de ficar agarrada nas páginas de críticas
de arte. Ela devorava todas e, depois, insistia para que visitássemos aquela
galeria, ou aquele teatro, ou aquela sala de concertos, mas é claro, havia
muito, muito para se ver e se ouvir na deliciosa Londres de antigamente, que
às vezes perdíamos coisas, ou não tínhamos dinheiro e então perdíamos
coisas. Por exemplo, me lembro de um domingo em que ela me disse,
levantando os olhos do jornal, vem depressa, depressa, vem depressa
comigo, e nós pegamos nossas bolsas e fomos, de ônibus, para um bairro
totalmente sombrio, totalmente desconhecido e, quase sozinhas, assistimos
a um filme maravilhoso chamado O Condenado.
Silêncio.
17
ANNA: Vai longe?
ANNA: E a pobrezinha da Kate quando você está longe? O que ela faz?
KATE: Eu continuo.
ANNA: Você deixa sua mulher sozinha por tanto tempo assim? Como é que pode?
ANNA: (Para Kate.) Acho que tenho que vir para te fazer companhia quando ele
estiver longe.
ANNA: Claro.
DEELEY: Bem perto, é. Bem no alto. Talvez eu já tenha visto sua casa.
Pausa.
Fui à Sicília a trabalho. Meu trabalho tem a ver com a vida em geral,
entende, por toda parte do globo. Com gente de todas as partes do globo.
Uso a palavra globo porque a palavra mundo carrega ressonâncias e
pretensões emocionais, políticas, sociológicas e psicológicas com as quais
eu prefiro, por uma questão de escolha, não ter nada a ver, ou, poderia dizer,
evitar, ou, se ainda quiser, rejeitar. Como vai o iate?
18
DEELEY: O capitão segue no rumo certo?
DEELEY: De forma muito sedutora? (Para si mesmo.) Que diabos ela quer dizer com
isso?
Pausa.
Bem, toda vez que seu marido passar por aqui, minha querida esposa ficará
muito contente em colocar a velha panela no velho fogão a gás e servi-lo
alguma coisa suculenta, para não dizer voluptuosa. Sem problema.
Pausa.
ANNA: Tenho.
ANNA: Ando. Mas uso sandálias no terraço porque machuca a sola dos pés.
ANNA: É.
KATE: (Para Anna.) Vocês bebem suco de laranja no terraço pela manhã? E jogam
conversa fora no fim da tarde, e observam o mar?
DEELEY: Na verdade, estou no topo da minha profissão, para falar a verdade, tenho
estabelecido, de fato, sociedade com um número significativo de pessoas
articuladas e sensíveis, na sua maioria prostitutas de todo tipo.
DEELEY: Já estive lá. Não há mais nada para ver, não há mais nada para se
investigar, nada. Não há mais nada na Sicília para se investigar.
19
(Anna olha fixamente para ela.)
Silêncio.
ANNA: (Calmamente.) Não vamos sair hoje à noite, não vamos a lugar nenhum hoje
à noite, vamos ficar em casa. Vou cozinhar alguma coisa, você pode lavar
seus cabelos, pode relaxar, vamos colocar alguns discos.
Pausa.
Se você sair, tudo quê você vai querer é voltar pra casa. Você vai querer
voltar correndo para casa . . . e para dentro do seu quarto . . .
Pausa.
ANNA: Ficar em casa. Quer que eu leia para você? Você gostaria?
Pausa.
KATE: Não.
Pausa.
KATE: Combina?
20
ANNA: Combina. Claro que combina.
Pausa.
KATE: Quem?
KATE: Quem?
ANNA: McCabe.
Pausa.
(Kate vai lentamente até à porta do quarto de dormir, entra e fecha a porta.)
(Deeley fica parado, olhando para Anna.)
(Anna vira-se e olha para ele.)
(Eles olham um para o outro.)
21
ATO DOIS
(QUARTO DE DORMIR.)
(Uma janela grande no fundo ao centro. Uma porta para o banheiro no fundo à esquerda.
Uma porta para a sala de estar no fundo à direita.)
(Dois divãs. Uma poltrona.)
(Os divãs e a poltrona conservam precisamente a mesma relação entre si que tinha o
mobiliário do primeiro ato, porém em posições inversas.)
(Luz fraca. Distingue-se Anna sentada no divã. Luminosidade fraca na parte de vidro da
porta do banheiro.)
Silêncio.
(As luzes aumentam. A outra porta se abre. Deeley entra com uma bandeja.)
(Deeley entra no quarto, coloca a bandeja em uma mesa.
DEELEY: Pronto. Gostoso e quente. Gostoso e forte e quente, você prefere com leite e
açúcar, não é?
ANNA: Gosto.
DEELEY: Dormimos aqui, Essas são as camas. A grande vantagem dessas camas é
que elas permitem uma grande variedade de combinações. Podem ficar
separadas como estão agora. Ou em ângulo reto, ou em forma de T, ou a
gente pode dormir pé contra pé, ou cabeça contra cabeça, ou lado a lado.
São as rodinhas que tornam tudo isso possível.
DEELEY: Ah sim, era você, não há dúvida. Nunca esqueço uma fisionomia. Você se
sentava no canto, com muita frequência, às vezes sozinha, às vezes com
alguém. E você está bem aqui, sentada na minha casa. A mesma mulher.
Incrível. Um sujeito chamado Luke costumava ir lá. Era conhecido seu.
22
ANNA: Luke?
DEELEY: Sim, vários deles, poetas, dublês, humoristas, bufões, esse tipo de gente.
Você costumava usar um cachecol, isso mesmo, um cachecol preto e um
suéter preto e uma saia.
ANNA: Eu?
DEELEY: E meias pretas. Não me diga que você se esqueceu da Taberna dos
Viajantes? Você pode ter esquecido o nome, mas com certeza se lembra do
lugar. Você era a favorita do bar.
ANNA: Eu não era rica, você sabe. Não tinha dinheiro para gastar com bebidas.
DEELEY: Você tinha acompanhantes. Não precisava pagar. Tinha quem cuidasse de
você. Eu próprio paguei uns drinques para você.
ANNA: Você?
ANNA: Nunca.
Pausa.
ANNA: Você?
Pausa.
Pausa.
23
sua saia. Você não fez objeções, achava o meu olhar perfeitamente
aceitável.
DEELEY: Havia uma grande discussão sobre a China ou qualquer coisa assim, ou
sobre morte, ou sobre a China e morte, não me lembro, mas ninguém a não
ser eu tinha uma visão do suave toque das coxas, ninguém a não ser você
tinha as coxas que se tocavam. E aqui está você. A mesma mulher. As
mesmas coxas.
Pausa.
É. Aí, uma amiga sua entrou, uma moça, uma amiga. ela se sentou no sofá
com você, vocês duas conversavam e davam risinhos, sentadas juntas, e eu
me assentei mais em baixo para olhar para vocês duas, para as coxas de
vocês duas, ganindo e uivando, você atenta, ela desatenta, mas aí vários
homens me rodearam e perguntaram a minha opinião sobre a morte, ou
sobre a China, ou sobre qualquer outra coisa, e não me deixaram em paz,
dobraram sobre mim, com seus maus-hálitos e dentes quebrados e narizes
cabeludos e a China e a morte e seus traseiros apoiados nos braços da
minha cadeira até que fui forçado a me levantar e sair, seguido ferozmente
por eles, como se eu fosse a causa da discussão deles, olhando para trás no
meio da fumaça, correndo para uma mesa coberta com uma toalha
impermeável para pegar mais uma garrafa cheia de cerveja, olhando para
trás no meio da fumaça, vendo de relance duas moças no sofá, uma delas,
você, as cabeças coladinhas, sussurrando, não conseguia ver mais nada,
não conseguia ver nem meias nem coxas, e aí vocês desapareceram.
Caminhei até o sofá. Não havia ninguém lá. Olhei fixamente para as marcas
de quatro nádegas. Duas delas eram suas.
Pausa.
DEELEY: Concordo.
Pausa.
DEELEY: Nunca vi você na Taberna dos Viajantes de novo. Por onde andava?
Silêncio.
24
Kate está demorando muito no banho.
ANNA: Sei.
ANNA: É verdade.
Pausa.
Ensaboa pra valer o corpo inteiro, depois vai tirando o sabão, bolha por
bolha. Meticulosamente. Ela é, ao mesmo tempo, compenetrada e, é preciso
dizer, sensual. Lava-se em grande escala e, fora outras considerações,
realmente sai do banho novinha em folha. Você não acha?
DEELEY: É verdade. Nem uma mancha. Nem uma marquinha. Cintilante como uma
bolha.
DEELEY: O quê?
ANNA: Ela sai flutuando do banho. Como um sonho. Nem repara que tem alguém
com uma toalha, esperando por ela, esperando para enrolar a toalha nela.
Totalmente compenetrada.
Pausa.
Pausa.
DEELEY: Claro, ela é totalmente incompetente para se secar direito, já reparou? Ela
realmente sabe se esfregar muito bem, mas será que ela tem a mesma
eficiência para se secar? Descobri, pela experiência que eu tenho dela, que
realmente esse não é o caso. A gente sempre encontra algumas poucas
atrevidas gotinhas inesperadas e indesejáveis pingando.
25
ANNA: De que outro jeito poderia secá-la? Sem a toalha de banho dela?
Pausa.
ANNA: Eu?
DEELEY: Tem certeza? Quer dizer, você é mulher, você sabe como e onde e com qual
densidade a umidade acumula nos corpos femininos.
Pausa.
DEELEY: Não é?
DEELEY: É muito comum a gente passar talco depois do banho, mas não é tão
comum assim passarem talco na gente. Ou será que é? Na minha terra não
é, posso garantir. Mamãe teria um chilique.
Pausa.
Escute. Vou dizer uma coisa para você. Eu faço. Faço o serviço completo. A
toalha e o talco. Afinal, eu sou o marido dela. Mas você supervisiona tudo. E
me dê umas dicas quentes enquanto supervisiona. Assim, matamos dois
coelhos com uma cajadada só.
Pausa.
Pausa.
26
(Abre-se a porta do banheiro. Kate entra no quarto. Ela usa um roupão.)
(Ela sorri para Deeley e Anna.)
(Ela caminha até a janela e olha a noite lá fora. Deeley e Anna a observam.)
(Deeley começa a cantar suavemente.)
ANNA: (Cantando.) No, no, they can’t take that away from me . . .
DEELEY: (Cantando.) No, no, they can’t take that away from me . . .
(Kate caminha em direção deles e fica parada, sorrindo. Anna e Deeley voltam a cantar,
apanhando as deixas mais rapidamente, e de modo mais descuidado.)
27
(Kate se senta em um divã.)
KATE: Obrigada. Me sinto nova. Aqui, a água é muito leve. Muito mais leve do que
em Londres. Sempre achei a água de Londres muito densa. Esse é um dos
motivos porque gosto de morar no campo. Tudo é mais leve. A água, a luz,
as formas, os sons. Aqui as coisas não são ásperas. Viver perto do mar. Não
se pode dizer onde ele começa ou termina. Isso me atrai. Não gosto de
linhas definidas. Detesto esse tipo de necessidade. Gostaria de ir para o
oriente, ou qualquer lugar assim, um lugar bem quente, onde se pode deitar
debaixo de uma rede contra mosquitos e respirar bem lentamente. Sabe . . .
um desses lugares onde se pode olhar pela abertura de uma barraca e ver
areia, esse tipo de coisa. A única coisa boa na cidade grande é que quando
chove fica tudo embaçado, e embaçam os faróis dos carros, não é?, e
embaçam os olhos da gente, e os olhos ficam cheios d'água. Essa é a única
coisa boa na cidade grande.
ANNA: Essa não é a única coisa boa. A gente pode ter um lugar agradável e uma
boa lareira e um robe aconchegante e uma bebidinha quente, tudo
esperando por nós quando chegamos.
Pausa.
ANNA: Não.
ANNA: Ah, que bom. Fico contente. Agora você pode tomar uma xícara de café bem
forte depois do banho.
KATE: Humhum.
28
DEELEY: Você tem absoluta certeza? Não quero você sentando e molhando o lugar
todo.
(Kate ri.)
DEELEY: Não está. Não como você estava agorinha mesmo, não como você sorriu
naquele dia.
Pausa.
Pausa.
Charley vem?
KATE: E o McCabe?
KATE: Ele é estranho. Ele fala umas coisas estranhas para mim.
ANNA: Ah, é.
29
Pausa.
ANNA: De quem?
KATE: Do Christy.
KATE: Ele é tão gentil, não é? E seu humor. Ele não tem um delicioso senso de
humor? Eu acho ele . . . tão sensível. Por que você não o convida?
Silêncio.
DEELEY: (Para Anna.) Você está pretendendo visitar mais alguém enquanto estiver na
Inglaterra? Conhecidos? Primos? Irmãos?
Pausa.
ANNA: Ah, só um pouquinho, não muito. (Para Kate.) Você continua tímida, não é?
(Kate a encara.)
(Para Deeley.) Mas quando eu a conheci, ela era muito tímida, tão tímida
quanto um cordeirinho, ela realmente era. Quando pessoas se aproximavam
para conversar, ela se encolhia a tal ponto que, embora ainda estivesse ali,
parada, ao seu alcance, ela não estava mais acessível. Ela se encolhia para
fugir das pessoas de tal forma que não se conseguia nem falar nem
estabelecer qualquer tipo de comunicação com ela. Atribuo isso a sua
educação, uma filha de pastor, e, na verdade, havia muito de Brontë nela.
ANNA: Mas quando pensei em Brontë, não pensei que ela fosse Brontë nas
paixões, mas nos silêncios, por ela ser tão obstinadamente reservada.
Pausa ligeira.
ANNA: Tinha pegado umas roupas íntimas dela para ir a uma festa. Naquela
mesma noite, mais tarde, confessei. Foi sujeira minha. Ela ficou estatelada,
perplexa, talvez seja a melhor palavra. Mas eu disse a ela que, de fato, eu já
30
tinha sido punida pelo meu pecado, pois, na festa, um homem ficou olhando
por debaixo da minha saia a noite inteira.
Pausa.
ANNA: Intensamente.
DEELEY: Olhar por debaixo da sua saia para a calcinha dela. Hein.
ANNA: Mas a partir daquela noite, ela insistia, de vez em quando, que eu pegasse
emprestada suas roupas íntimas – ela tinha mais do que eu e muito mais
variedade – e cada vez que propunha isso, ela ficava corada, mas
continuava propondo assim mesmo. E quando eu tinha qualquer coisa para
contar para ela, na minha volta, qualquer coisa interessante para contar para
ela, eu contava.
ANNA: Nunca consegui ver. Eu chegava tarde, a encontrava lendo sob a luz de um
abajur, e começava a contar, mas ela dizia “não”, apagava a luz e eu tinha
que contar no escuro. Ela preferia que eu contasse no escuro. Mas, é claro,
nunca estava totalmente escuro, com a luz da lareira ou com a luz que
entrava pela cortina e conhecendo as preferências dela, o que ela não sabia,
eu escolhia uma posição no quarto de onde eu conseguisse ver o rosto dela,
embora ela não conseguisse ver o meu. Ela só conseguia ouvir a minha voz.
E assim ela me ouvia e eu a observava me ouvindo.
Pausa.
DEELEY: Você disse que ela era Brontë nos silêncios, mas não nas paixões. O que
ela era nas paixões?
DEELEY: Você sente que aí é meu território? Bem, você está redondamente certa. Aí
é meu território. Fico contente quando alguém demonstra, finalmente, um
pouco de bom senso. É claro que é mais do que meu território. Sou o marido
dela.
Pausa.
Gostaria de te fazer uma pergunta. Sou o único que está começando a achar
tudo isso insensato?
ANNA: Mas o que você poderia afinal achar insensato? Vim de Roma para ver a
minha amiga mais antiga, depois de vinte anos, e para conhecer o marido
dela. Tem algum motivo para preocupação?
31
DEELEY: O que me preocupa é pensar no seu marido falando sozinho na sua enorme
casa de campo, ao deus-dará, comendo pão e água e incapaz de pronunciar
uma palavra sequer em inglês.
DEELEY: É, mas você está aqui, com a gente. E ele está lá, sozinho, cambaleando de
um lado para o outro no terraço, esperando por uma lancha, esperando por
uma lancha que traga gente bonita, pelo menos. Belezas do Mediterrâneo.
Esperando por tudo isso, um tipo de elegância a respeito da qual nada
sabemos, uma figura de cintura fina da Côte d’Azur a respeito da qual não
sabemos absolutamente nada, uma lagosta acompanhada de um molho
concebido dentro dos princípios gastronômicos mais requintados dos quais
não sabemos porra nenhuma, as pernas mais longas do mundo, as vozes
mais fenomenalmente suaves. Sou capaz de ouvi-las nesse momento.
Quero dizer, vamos por as cartas na mesa, estou de olho em uma série de
pulsações, pulsações pelo globo inteiro, privações e insultos, por que eu
deveria perder meu valioso espaço, escutando duas –
Pausa.
DEELEY: Você sabe o que eles fariam comigo na China se me encontrasse com um
terno branco. Eles me matariam. Você sabe como eles são por lá.
Pausa ligeira.
ANNA: Você é bem-vindo à Sicília em qualquer época, vocês dois, são meus
convidados.
Silêncio.
ANNA: (Para Deeley, calmamente.) Gostaria que você entendesse que eu não vim
aqui para destruir, mas para celebrar.
Pausa.
Celebrar uma amizade antiga e preciosa, algo que se formou entre nós
muito antes de você saber que nós existíamos.
Pausa.
32
Eu a descobri. Por meu intermédio, ela floresceu e veio a conhecer pessoas
maravilhosas. Eu a levei nos cafés, quase todos reservados, onde artistas e
escritores e às vezes atores se reuniam, e outros com bailarinos,
sentávamos, quase sem fôlego, com nosso café, ouvindo a vida em volta de
nós. Tudo que eu queria para ela era a felicidade. É tudo que eu ainda quero
para ela.
Pausa.
Pausa.
DEELEY: Verdade?
KATE: Ela quis consolá-lo, de um jeito que só uma mulher sabe fazer.
DEELEY: Verdade?
KATE: Claro.
DEELEY: Ela quis confortar minhas feições do jeito que só uma mulher sabe fazer?
33
KATE: Ela se apaixonou por você.
KATE: Você era tão diferente dos outros. Conhecíamos homens que eram
animalescos, grossos.
DEELEY: Mas eu fui grosso, não fui, ao olhar por baixo da saia dela?
ANNA: (Friamente.) Ah, era a minha saia. Era eu. Eu me lembro do seu olhar . . .
muito bem. Eu me lembro bem de você.
Pausa.
Pausa.
Quando eu trouxe ele para o quarto, seu corpo, é claro, tinha desaparecido.
Foi um alívio ter um corpo diferente no meu quarto, um corpo masculino,
34
comportando-se completamente diferente, fazendo tudo que fazem e que
pensam que é legal, como se sentar com uma perna sobre o braço da
poltrona. Tínhamos duas camas para escolher. A sua cama ou a minha
cama. Para deitarmos debaixo ou em cima das cobertas. Para esfregarmos
os narizes, debaixo ou em cima das cobertas. Ele gostou da sua cama e
achou que ficava diferente nela, porque ele era homem. Mas, uma noite eu
disse, deixa eu fazer uma coisa, uma coisinha, um truquezinho. Ele se deitou
na sua cama. Olhou para mim com uma grande expectativa. Estava
encantado. Achou que eu tivesse tirado proveito dos seus ensinamentos.
Achou que eu tivesse sexualmente disponível, que eu tivesse a ponto de
tomar a esperada e promissora iniciativa. Eu remexi a terra do canteirinho da
janela, onde você tinha plantado o nosso lindo amor-perfeito, tirei uma
porção, enchi uma tigela e reboquei o rosto dele com lama. Ele ficou
bestificado, horrorizado, resistiu, resistiu com força. Ele não me deixaria eu
sujar o rosto dele nem manchá-lo, não me deixaria. Em vez disso, me
propôs casamento e mudança de ambiente.
Pausa ligeira.
Pausa.
Uma vez, ele me perguntou, mais ou menos naquela mesma época, quem
tinha dormido naquela cama antes dele. Eu disse que ninguém.
Absolutamente ninguém.
Silêncio longo.
Silêncio.
Silêncio.
(Deeley levanta-se. Dá alguns passos e olha para os dois divãs. Ele vai até o divã de Anna
e olha para ela. Ela está imóvel.)
35
Silêncio.
Silêncio.
(Deeley vira-se. Vai até ao divã de Kate. Senta-se e deita no colo dela.)
Silêncio longo.
Silêncio.
Deeley na poltrona.
36