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VELHOS TEMPOS

Harold Pinter

Tradução e revisão de Luiz Otávio Carvalho e Deisa Chaves em 1997.


Revisão de Luiz Otávio Carvalho em 2020.

Velhos Tempos foi apresentada pela primeira vez pela Royal Shakespeare Company no
Teatro Aldwych, Londres, em 01 de junho de 1971, com o seguinte elenco:

DEELEY Colin Blakely


KATE Dorothy Tutin
ANNA Vivien Merchant
Todos em torno do seus quarenta anos.
Dirigida por Peter Hall

A peça foi produzida para a televisão pela BBC em outubro de 1975, com o seguinte
elenco:

DEELEY Barry Foster


KATE Anna Cropper
ANNA Mary Miller
Dirigida por Christopher Morahan

Foi produzida no Theatre Royal, Haymarket, Londres, em abril de 1985, com o seguinte
elenco:

DEELEY Michael Gambon


KATE Nicola Pagett
ANNA Liv Ullmann
Dirigida por David Jones

Uma casa de fazenda toda reformada.


Uma grande janela no centro ao fundo do palco.
Porta do quarto de dormir à esquerda ao fundo.
Porta de entrada à direita ao fundo.
Mobília sumária e moderna.
Dois sofás. Uma poltrona.
Outono. Noite.

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ATO UM.

(Luz fraca. Distinguem-se três figuras.)


(Deeley, afundado na poltrona, imóvel.)
(Kate, enroscada em um sofá, imóvel.)
(Anna, parada junto à janela, olhando para fora.)

Silêncio.

(Acendem-se as luzes sobre Deeley e Kate. Estão fumando cigarros. Anna permanece
imóvel sob luz fraca junto à janela.)

KATE: (Reflexivamente.) Morena.

Pausa.

DEELEY: Gorda ou magra?

KATE: Mais cheia do que eu. Acho.

Pausa.

DEELEY: Ela era assim?

KATE: Acho que sim.

DEELEY: Pode não ser agora.

Pausa.

Ela era a sua melhor amiga?

KATE: Ah, o que significa isso?

DEELEY: O quê?

KATE: A palavra amiga . . . quando a gente olha pra trás . . . tanto tempo.

DEELEY: Não consegue se lembrar do que sentia?

Pausa.

KATE: Faz muito, muito tempo.

DEELEY: Mas você se lembra dela. Ela se lembra de você. Ou por que ela estaria
vindo aqui hoje à noite?

KATE: Acho que é porque ela se lembra de mim.

Pausa.

DEELEY: Você a considerava sua melhor amiga?

KATE: Ela era a minha única amiga.

DEELEY: Sua melhor e única amiga.

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KATE: Minha amiga e a única.

Pausa.

Se a gente possui uma coisa só, a gente não sabe dizer se é a melhor.

DEELEY: Porque a gente não tem com o que comparar?

KATE: Mmnn.

Pausa.

DEELEY: (Sorrindo.) Ela era incomparável.

KATE: Ah, tenho certeza de que não era.

Pausa.

DEELEY: Não sabia que você tinha tão poucos amigos.

KATE: Não tinha nenhum. Absolutamente nenhum. A não ser ela.

DEELEY: Por que ela?

KATE: Não sei.

Pausa.

Ela era ladra. Costumava roubar coisas.

DEELEY: De quem?

KATE: De mim.

DEELEY: Que coisas?

KATE: Coisinhas. Roupa íntima.

(Deeley dá um risinho.)

DEELEY: Vai lembrá-la disso?

KATE: Ah . . . Acho que não.

Pausa.

DEELEY: Foi isso que te atraiu nela?

KATE: O quê?

DEELEY: Ela roubar.

KATE: Não.

Pausa.

DEELEY: Está ansiosa para encontrar com ela?

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KATE: Não.

DEELEY: Eu estou. Estou realmente muito interessado.

KATE: Em quê?

DEELEY: Em você. Ficarei observando você.

KATE: Eu? Por quê?

DEELEY: Pra ver se ela é a mesma pessoa.

KATE: Acha que descobrirá isso me observando?

DEELEY: Com certeza.

Pausa.

KATE: Mal me lembro dela. Quase que já me esqueci dela completamente.

Pausa.

DEELEY: Tem ideia do que ela bebe?

KATE: Nenhuma.

DEELEY: Ela pode ser vegetariana.

KATE: Pergunte a ela.

DEELEY: Tarde demais. Você já preparou a picanha ao forno.

Pausa.

Por que ela não é casada? Quero dizer, por que ela não vai trazer o marido?

KATE: Pergunte a ela.

DEELEY: Tenho que perguntar tudo a ela?

KATE: Quer que eu pergunte por você?

DEELEY: Não. Muito obrigado.

Pausa.

KATE: É claro que ela é casada.

DEELEY: Como você sabe?

KATE: Todo mundo é casado.

DEELEY: Então por que ela não vai trazer o marido?

KATE: Não vai?

Pausa.

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DEELEY: Ela mencionou algum marido na carta?

KATE: Não.

DEELEY: Como você acha que ele seria? Quer dizer, com que tipo de homem ela teria
se casado? Afinal, ela era a sua melhor – a sua única – amiga. Você deve ter
alguma ideia. Que tipo de homem seria ele?

KATE: Não tenho a menor ideia.

DEELEY: Você não tem nenhuma curiosidade?

KATE: Você está se esquecendo. Eu a conheço.

DEELEY: Você não a vê há vinte anos.

KATE: Você nunca a viu. Essa é a diferença.

Pausa.

DEELEY: Pelo menos a picanha ao forno é suficiente para quatro pessoas.

KATE: Você disse que ela era vegetariana.

Pausa.

DEELEY: E ela, tinha muitos amigos?

KATE: Ah . . . a quantidade normal, acho.

DEELEY: Normal? O que é normal? Você não tinha nenhum.

KATE: Uma.

DEELEY: E isso é normal?

Pausa.

Ela . . . tinha muitos amigos, não é?

KATE: Centenas.

DEELEY: Você os conheceu?

KATE: Nem todos, acho. Mas, afinal de contas, morávamos juntas. Havia visitas de
vez em quando. Eu as conhecia.

DEELEY: Visitas dela?

KATE: O quê?

DEELEY: Visitas dela. Amigos dela. Você não tinha amigos.

KATE: Amigos dela, sim.

DEELEY: Você os conheceu.

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Pausa.

(Abruptamente.) Vocês moravam juntas?

KATE: Hum?

DEELEY: Vocês moravam juntas?

KATE: Claro.

DEELEY: Não sabia disso.

KATE: Não?

DEELEY: Você nunca me disse. Achei que vocês só se conheciam.

KATE: Nós nos conhecíamos.

DEELEY: Mas, na verdade, vocês moravam juntas.

KATE: Claro que morávamos. De que outra maneira ela poderia roubar minhas
roupas íntimas? Na rua?

Pausa.

DEELEY: Eu sabia que você tinha morado com alguém numa certa época . . .

Pausa.

Mas não sabia que tinha sido com ela.

KATE: Claro que foi.

Pausa.

DEELEY: Seja como for, nada disso tem importância.

(Anna afasta-se da janela, falando, e caminha em direção a eles. Na sequência, senta-se


no segundo sofá.)

ANNA: Na fila, a noite toda, a chuva, lembra-se? Nossa! O Albert Hall, o Covent
Garden, o que comíamos? me lembro, metade da noite, fazer o que
adorávamos, naquela época éramos jovens, claro, que energia, e trabalhar
de manhã, e ir a um concerto ou a uma ópera ou a um balé, aquela noite,
você não esqueceu? e depois surfar no ônibus que descia a Kensington
High Street, e os motoristas dos ônibus, e aí, correr atrás de fósforo para o
aquecedor e então, acho, ovos mexidos, ou nós? quem cozinhava? ambas
tagarelando e dando risinhos, ambas juntinhas perto do aquecedor, depois
cama e dormir, e uma grande agitação de manhã, correr para pegar o ônibus
outra vez para trabalhar, almoços no Green Park, colocando em dia nossos
assuntos, cada uma com o seu próprio sanduíche, garotas inocentes,
secretárias inocentes, e então a chegada da noite, e quem sabe, quanta
excitação guardada, quero dizer, a simples expectativa de tudo, pura
antecipação de tudo, e tão pobre, mas ser pobre e jovem, e uma garota, em

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Londres, naquela época . . . e os cafés que encontrávamos, quase
reservados, não eram? onde artistas e escritores e às vezes atores se
reuniam, e outros com bailarinos, sentávamos, quase sem folego, com
nosso café, cabeças curvadas, para não sermos vistas, para não
perturbarmos, para não nos distrairmos, e ouvíamos e ouvíamos todas
aquelas palavras, todos aqueles cafés e todas aquelas pessoas, criativas,
sem dúvida, e será que isso ainda existe? será? quem sabe?

Pausa ligeira.

DEELEY: Raramente vamos a Londres.

(Kate levanta-se, vai até uma mesinha e se serve de café.)

KATE: Sim, eu me lembro.

(Ela coloca leite e açúcar em uma xícara e a leva para Anna. Leva café preto para Deeley
e, depois, senta-se com o seu café.)

DEELEY: (Para Anna.) Bebe um pouco de conhaque?

ANNA: Adoraria um pouco de conhaque.

(Deeley serve conhaque para todos e entrega os copos. Fica de pé com o seu copo na
mão.)

ANNA: Ouçam. Que silêncio. É sempre assim tão silencioso?

DEELEY: É muito silencioso aqui, sim. Normalmente.

Pausa.

Às vezes, pode-se ouvir o mar se a gente escutar com bastante atenção.

ANNA: Como vocês foram espertos em escolher essa parte do mundo, e como são
sensatos e corajosos por ficarem permanentemente em tamanho silêncio.

DEELEY: Viajo frequentemente a trabalho, é claro. Mas Kate fica aqui.

ANNA: Qualquer pessoa que morasse aqui não gostaria de sair para muito longe.
Eu não gostaria de sair para muito longe, ficaria receosa de ir muito longe e
pelando de medo de que quando voltasse a minha casa tivesse
desaparecido.

DEELEY: Pelando de medo?

ANNA: O quê?

DEELEY: A expressão “pelando de medo”. Há muito tempo não ouvia essa expressão.

Pausa.

KATE: Ás vezes, caminho até o mar. Não tem muita gente. É uma praia longa.

Pausa.

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ANNA: Mas, de qualquer forma, sentiria falta de Londres. Mas, claro, fui garota em
Londres. Fomos garotas juntas.

DEELEY: Gostaria de ter conhecido vocês naquela época.

ANNA: Verdade?

DEELEY: É.

(Deeley se serve de mais conhaque.)

ANNA: Sua picanha é maravilhosa.

DEELEY: O quê?

ANNA: Quero dizer, esposa. Desculpe-me. Uma esposa maravilhosa.

DEELEY: Ah.

ANNA: Estava me referindo à picanha ao forno. Estava me referindo à comida de


sua mulher.

DEELEY: Então, você não é vegetariana?

ANNA: Não. Ah, não.

DEELEY: É, aqui a gente precisa de uma boa alimentação, de uma alimentação


nutritiva que mantenha a gente vivo, esse ar puro . . . sabe como é.

Pausa.

KATE: É, gosto muito desse tipo de coisa, de fazer essas coisas.

ANNA: Que tipo de coisas?

KATE: Ah, você sabe, esse tipo de coisa.

Pausa.

DEELEY: Você quer dizer cozinhar?

KATE: Tudo isso.

ANNA: Não éramos muito sofisticadas em termos de culinária, não tínhamos tempo,
mas de vez em quando fazíamos um ensopado incrivelmente enorme,
bebíamos todas, e na maioria das vezes ficávamos metade da noite lendo
Yeats.

Pausa.

(Para si mesma.) Sim. De vez em quando. Na maioria das vezes.

(Anna levanta-se e caminha até à janela.)

E o céu está tão tranquilo.

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Pausa.

Consegue ver aquela pequena faixa de luz? É o mar? É a linha do


horizonte?

DEELEY: Você vive numa região litorânea muito diferente.

ANNA: Ah, muito diferente. Vivo numa ilha vulcânica.

DEELEY: Eu sei.

ANNA: Sabe?

DEELEY: Estive lá.

Pausa.

ANNA: Estou encantada por estar aqui.

DEELEY: É bom, eu sei, assim a Kate te vê. Ela não tem muitos amigos.

ANNA: Ela tem você.

DEELEY: Ela nunca fez muitos amigos, embora tenha tido muitas oportunidades para
isso.

ANNA: Vai ver ela tem tudo que quer.

DEELEY: Falta a ela curiosidade.

ANNA: Vai ver ela é feliz.

Pausa.

KATE: Estão falando de mim?

DEELEY: Estamos

ANNA: Ela sempre foi uma sonhadora.

DEELEY: Ela gosta de fazer longas caminhadas. Coisas assim. Você sabe. Põe a
capa de chuva. Anda pela estrada, com as mãos no bolso. Coisas desse
tipo.

(Anna vira-se para olhar para Kate.)

ANNA: É.

DEELEY: Às vezes, pego o rosto dela em minhas mãos e fico olhando.

ANNA: É mesmo?

DEELEY: É, olho para ele enquanto o seguro em minhas mãos. Aí eu solto, tiro minhas
mãos e deixo ele flutuar.

KATE: Minha cabeça é muito firme. Grudada no meu corpo.

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DEELEY: (Para Anna.) Fica flutuando.

ANNA: Ela sempre foi uma sonhadora.

(Anna senta-se.)

Às vezes, caminhando pelo parque, eu dizia para ela, você está sonhando,
você está sonhando, acorde, com o que você está sonhando? E ela virava-
se para mim, sacudindo seus cabelos, e me olhava como se eu fosse parte
do seu sonho.

Pausa.

Um dia ela me disse, dormi toda a sexta-feira. Não, não dormiu, eu disse, o
quê você quer dizer com isso? Dormi toda a sexta-feira, ela disse. Mas hoje
é sexta-feira, eu disse, todo o dia tem sido sexta-feira, agora é a noite de
sexta-feira, você não dormiu toda a sexta-feira. Sim dormi, ela disse, dormi
toda a sexta-feira, hoje é sábado.

DEELEY: Você quer dizer que literalmente ela não sabia que dia era?

ANNA: Não.

KATE: Eu sabia. Era sábado.

Pausa.

DEELEY: Em que mês estamos?

KATE: Setembro.

Pausa.

DEELEY: Estamos forçando Kate a pensar. Precisamos te ver com mais frequência.
Você é uma influência saudável.

ANNA: Mas ela sempre foi uma companhia charmosa.

DEELEY: Divertido morar com ela?

ANNA: Delicioso.

DEELEY: Linda de se olhar, deliciosa de se conhecer.

(Como na canção: “Lovely to look at, delightful to know”.)

ANNA: Ah, essas canções. Costumávamos tocá-las, todas elas, o tempo todo, tarde
da noite, deitadas no chão, essas deliciosas coisas do passado. Às vezes,
eu olhava para o rosto dela, mas ela ficava completamente alheia ao meu
olhar de contemplação.

DEELEY: Olhar de contemplação?

ANNA: O quê?

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DEELEY: A expressão “olhar de contemplação”. Há muito não ouvia.

ANNA: Sim, ela ficava completamente alheia ao meu olhar. Ficava totalmente
pensativa.

DEELEY: Pensando em “Lovely to look at, delightful to know”.

KATE: (Para Anna.) Não conheço essa música. Nós tínhamos?

DEELEY: (Cantando, para Kate.) You're lovely to look at, delightful to know . . .

(Você é linda de se olhar, deliciosa de se conhecer . . .)1

ANNA: Oh, tínhamos. Claro. Tínhamos todas elas.

DEELEY: (Cantando.) Blue moon, I see you standing alone . . .

(Lua Azul, vejo você parada sozinha . . .)

ANNA: (Cantando.) The way you comb your hair . . .

(O jeito como você penteia seus cabelos . . .)

DEELEY: (Cantando.) Oh no they can't take that away from me . . .

(Oh não, eles não podem tirar isso de mim . . .)

ANNA: (Cantando.) Oh but you're lovely, with your smile so warm . . .

(Oh mas você é tão linda, com seu sorriso tão ardente . . .)

DEELEY: (Cantando.) I've got a woman crazy for me. She's funny that way.

(Tenho uma mulher louca por mim. Ela é divertida assim.)

Pausa ligeira.

ANNA: (Cantando.) You are the promised kiss of springtime . . .

(Você é o beijo prometido da primavera . . .)

DEELEY: (Cantando.) And someday I'll know that moment divine,

When all the things you are, are mine!

(E um dia, eu conhecerei esse momento divino,


Quando tudo que você é, for meu!)

Pausa ligeira.

ANNA: (Cantando.) I get no kick from champagne,

Mere alcohol doesn't thrill me at all,

So tell me why should it be true –

1
A partir desse ponto, nas cenas com músicas, os tradutores optaram por incluir a tradução dos versos das músicas em
forma de rubrica e, portanto, manter, como fala cênica da personagem, o verso da música em inglês. (N. dos T.)

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(Não me embriago com champanha,
Só álcool não me excita de forma nenhuma,
Então me diga por que deveria ser verdade – )

DEELEY: (Cantando.) That I get a kick out of you?

(Que eu me embriague com você?)

Pausa.

ANNA: (Cantando.) They asked me how I knew

My true love was true,

I of course replied,

Something here inside

Cannot be denied.

(Perguntaram-me como eu soube


Que meu verdadeiro amor era verdadeiro
Eu, claro, respondi,
Alguma coisa aqui dentro
Não pode ser negado.)

DEELEY: (Cantando.) When a lovely flame dies . . .

(Quando uma linda chama apaga . . .)

ANNA: (Cantando.) Smoke gets in your eyes.

(A fumaça cobre seus olhos.)

Pausa.

DEELEY: (Cantando.) The sigh of midnight trains in empty stations . . .

(O suspiro dos trens da meia-noite em estações vazias . . .)

Pausa.

ANNA: (Cantando.) The park at evening when the bell has sounded . . .

(O parque à noite, quando a sirene soava . . .)

Pausa.

DEELEY: (Cantando.) The smile of Garbo and the scent of roses . . .

(O sorriso de Garbo e o odor das rosas . . .)

ANNA: (Cantando.) The waiters whistling as the last bar closes . . .

(Os garçons assobiam quando o último bar fecha . . .)

DEELEY: (Cantando.) Oh, how the ghost of you clings . . .

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(Oh, como sua alma está apegada . . .)

Pausa.

Não fazem mais músicas como essas.

Silêncio.

O que aconteceu comigo foi o seguinte. Entrei rapidamente em um pulgueiro


para assistir ao filme O Condenado. Uma tarde de verão péssima e terrível,
caminhando sem direção. Recordo-me de perceber que havia alguma coisa
familiar naquela vizinhança e de repente lembrei-me de que foi exatamente
ali que meu pai comprou meu primeiro triciclo, o único triciclo de fato que eu
tive na vida. Seja como for, havia a loja de bicicletas e o pulgueiro onde
estava passando o filme O Condenado e lá estavam duas moças, as
lanterninhas, em pé no foyer e umas delas estava acariciando seus seios e a
outra dizendo 'cadela sem-vergonha' e a que acariciava os seios dizia
'mmnnn' com um prazer muito sensual e sorria para sua colega de trabalho,
então eu entrei, naquela tarde de verão terrivelmente quente daquele fim de
mundo, e assisti ao filme O Condenado e achei Robert Newton fantástico. E
ainda acho. E eu, até hoje cometeria um assassinato por causa dele. E havia
só mais uma outra pessoa no cinema, outra única pessoa em todo o cinema,
e aí está ela. E lá estava ela, pouco visível, muito quieta, sentada mais ou
menos, ou melhor dizendo, bem no centro da plateia. Eu estava fora do
centro e assim eu fiquei. Aí, eu saí quando o filme acabou, notando, embora
o James Mason tivesse morto, que a primeira lanterninha estava
absolutamente exausta, e eu fiquei por um tempo ao sol, acho que pensando
em alguma coisa quando essa moça saiu e eu acho que olhei em sua
direção, e disse o Robert Newton não estava fantástico?, e então ela disse
uma coisa ou outra, só Deus sabe o quê, mas ela olhava pra mim, e eu
pensei Meu Deus essa está no papo, fisguei, essa é uma prostituta
autêntica, e quando sentamos em um Café, tomando chá, ela olhou bem
para dentro de sua xícara e depois ergueu os olhos e me disse que tinha
achado Robert Newton extraordinário. Assim, foi Robert Newton quem nos
uniu e só o Robert Newton pode nos separar.

Pausa.

ANNA: F. J. McCormick estava ótimo também.

DEELEY: Eu sei que o F. J. McCormick estava ótimo também. Mas ele não nos uniu.

Pausa.

Então você já assistiu ao filme?

ANNA: Já.

DEELEY: Quando?

ANNA: Oh . . . faz muito tempo.

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Pausa.

DEELEY: (Para Kate.) Você se lembra desse filme?

KATE: Ah sim. Muito bem.

Pausa.

DEELEY: Acho que não estou enganado de dizer que na outra vez que nos
encontramos, ficamos de mãos dadas. Segurava sua mão fria, enquanto ela
caminhava ao meu lado, e disse alguma coisa que a fez sorrir, e ela me
olhou, não foi assim mesmo?, sacudindo seus cabelos, e aí achei que ela
estava ainda mais fantástica do que o Robert Newton.

Pausa.

E depois, num estágio um pouco mais avançado, nossos corpos nus se


encontraram, o dela frio, morno, extremamente agradável, aí me perguntei o
que o Robert Newton acharia de tudo isso. O que ele acharia de tudo isso,
eu pensava enquanto tocava intensamente todo o corpo dela.

(Para Anna.) O quê você acha que ele acharia?

ANNA: Não conheci o Robert Newton, mas eu sei, entendo o que você quer dizer.
Tem coisas que a gente se lembra mesmo que elas nunca tenham
acontecido. Tem coisas que eu me lembro sem que elas tenham acontecido,
mas quando lembro delas, elas acontecem.

DEELEY: O quê?

ANNA: Aquele homem que chorava no nosso quarto. Uma noite, eu voltei tarde, e o
encontrei soluçando, cobrindo o rosto com suas mãos, sentado na poltrona,
todo enroscado na poltrona, e Kate sentada na cama com uma caneca de
café e ninguém falava comigo, ninguém falava, nem erguia os olhos. Eu não
podia fazer nada. Tirei a roupa e apaguei a luz e me enfiei na cama, as
cortinas eram finas, entrava luz da rua, Kate imóvel, na sua cama, o homem
soluçava, a luz entrava, piscava na parede, havia uma brisa leve, as cortinas
de vez em quando balançavam, não havia mais nada só o soluço, de
repente ele parou. O homem veio para cima de mim, depressa, olhou para
mim, mas eu não queria absolutamente nada com ele, nada.

Pausa.

Não, não, eu estou completamente equivocada . . . ele não andou depressa .


. . está completamente errado . . . ele andava . . . muito lentamente, a luz
estava fraca, e parou. Ele parou no meio do quarto. Olhou para nós duas,
para nossas camas. Depois se virou em minha direção, se aproximou da
minha cama, se inclinou sobre mim. Mas eu não queria nada com ele,
absolutamente nada.

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Pausa.

DEELEY: Que tipo de homem era ele?

ANNA: Mas depois de um tempo, eu ouvi ele indo embora. Ouvi a porta da frente se
fechar, e passos na rua, depois, o silêncio, depois, passos que se
afastavam, e depois, o silêncio.

Pausa.

Mas depois, naquela noite mais tarde, eu acordei, olhei para cama dela e vi
dois vultos.

DEELEY: Ele voltou!

ANNA: Estava deitado no colo dela, em cima da cama.

DEELEY: Um homem no colo da minha mulher, no escuro?

Pausa.

ANNA: Mas de manhã bem cedo . . . ele já tinha ido embora.

DEELEY: Graças a Deus.

ANNA: Foi como se ele nunca tivesse estado lá.

DEELEY: Claro que esteve. Foi embora duas vezes e depois, voltou.

Pausa.

Puxa, essa foi realmente uma história muito emocionante,

Pausa.

Como ele era, esse cara?

ANNA: Oh, nunca vi direito o rosto dele. Não sei.

DEELEY: Mas ele era - ?

(Kate levanta-se. Vai até à mesinha, apanha um cigarro dentro de uma caixa e o acende.
Olha para Anna.)

KATE: Vocês falam de mim como se eu estivesse morta.

ANNA: Não, não, você não tinha nada de morta, você era tão ativa, tão animada,
costumava sorrir –

DEELEY: Claro que sim. Eu fazia você sorrir, não era? Andando pela rua, de mãos
dadas. Você rolava de rir.

ANNA: Sim, ela conseguia ser tão . . . animada.

DEELEY: Animada não é a palavra certa. Quando ela ria . . . como é que eu posso
dizer?

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ANNA: Os olhos dela se iluminavam.

DEELEY: Eu não conseguiria dizer melhor.

(Deeley levanta-se, vai até à caixa de cigarros, apanha-a, sorri para Kate. Kate olha para
ele, observa-o acender o cigarro, tira a caixa das mãos dele, vai até Anna, oferece-lhe um
cigarro. Anna aceita.)

ANNA: Você não estava morta. Nunca. De jeito nenhum.

KATE: Eu disse que vocês falam de mim como se agora eu estivesse morta.

ANNA: Como você pode dizer uma coisa dessas? Como você pode dizer uma coisa
dessas se estou olhando para você agora, vendo você vir cautelosamente se
equilibrando, olhando para mim -

DEELEY: Parem com isso!

Pausa.

(Kate senta-se. Deeley serve um drinque.)

DEELEY: Eu próprio, naquela época, era um estudante, fazia malabarismo com o meu
futuro, me perguntava por que cargas d’água eu deveria me amarrar à barra
da saia de uma garota, há pouco saída dos cueiros, que de virtude só tinha o
silêncio, sem nenhum senso de firmeza, sem nenhum senso de decisão,
somente conduzida ao sabor dos ventos, com os quais ela ia, mas não os
ventos, e certamente não os meus ventos, tais como eram, mas ventos que,
acho, só ela compreendia, mas, é claro, sem compreensão de espécie
alguma, pelo menos como eu entendo essa palavra, pelo menos é assim
que eu pensava. Uma figura clássica de mulher, dizia para mim mesmo, ou
uma postura clássica de mulher?, tanto uma coisa quanto outra já
ultrapassadas.

Pausa.

Era assim que eu via as coisas. Quer dizer, É assim que eu declaro
categoricamente que via as coisas então. Há vinte anos.

Silêncio.

ANNA: Quando eu soube que Kate tinha se casado, meu coração saltitou de alegria.

DEELEY: Como é que você soube?

ANNA: Através de um amigo.

Pausa.

Sim, ele saltitou de alegria. Porque, você entende, eu sabia que ela nunca
fazia as coisas incorretamente, descuidadamente, impetuosamente. Tem
gente que atira uma pedra no rio, antes de pular, para saber se a água está
fria demais, outros, muito raros, esperam sempre pelos movimentos intensos
antes de pular.

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DEELEY: Algumas pessoas fazem o quê? (Para Kate.) O que foi que ela disse?

ANNA: E eu sabia que Kate sempre esperaria não só pelo primeiro movimento
intenso, mas pelos movimentos intensos para penetrar e penetrar a
superfície, pois, é claro, você sabe, os movimentos intensos na superfície
indicam oscilação nas profundezas dentro de cada partícula de água do leito
do rio, mas até mesmo quando ela sentia isso acontecer, quando tinha
certeza de que estava acontecendo, ela ainda assim não pularia. Mas nesse
caso, ela pulou e eu soube então que ela havia realmente se apaixonado e
estava contente. E eu deduzi que isso também deve ter acontecido com
você.

DEELEY: Você quer dizer os movimentos intensos?

ANNA: Se quiser.

DEELEY: Os homens também fazem movimentos intensos?

ANNA: Alguns, eu diria.

DEELEY: Entendo.

Pausa.

ANNA: Depois que eu soube o tipo de homem que você era, fiquei duplamente feliz,
porque eu sabia que Kate sempre se interessou pelas artes.

KATE: Uma vez eu me interessei pelas artes, mas agora não consigo me lembrar
por quais.

ANNA: Não me diga que você se esqueceu dos dias que passamos na Tate? E
como explorávamos Londres e todas aquelas velhas igrejas e todos aqueles
prédios antigos, quer dizer aqueles que sobraram da guerra, na Cidade e ao
sul do rio, em Lambeth e Greenwich? Oh meu Deus. Ah sim. E os jornais de
domingo! Nunca consegui impedi-la de ficar agarrada nas páginas de críticas
de arte. Ela devorava todas e, depois, insistia para que visitássemos aquela
galeria, ou aquele teatro, ou aquela sala de concertos, mas é claro, havia
muito, muito para se ver e se ouvir na deliciosa Londres de antigamente, que
às vezes perdíamos coisas, ou não tínhamos dinheiro e então perdíamos
coisas. Por exemplo, me lembro de um domingo em que ela me disse,
levantando os olhos do jornal, vem depressa, depressa, vem depressa
comigo, e nós pegamos nossas bolsas e fomos, de ônibus, para um bairro
totalmente sombrio, totalmente desconhecido e, quase sozinhas, assistimos
a um filme maravilhoso chamado O Condenado.

Silêncio.

DEELEY: É, viajo muito no meu trabalho.

ANNA: Você gosta?

DEELEY: Imensamente. Imensamente.

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ANNA: Vai longe?

DEELEY: Viajo o mundo inteiro no meu trabalho.

ANNA: E a pobrezinha da Kate quando você está longe? O que ela faz?

(Anna olha para Kate.)

KATE: Eu continuo.

ANNA: Ele fica fora por muito tempo?

KATE: Acho que sim, às vezes. Não fica?

ANNA: Você deixa sua mulher sozinha por tanto tempo assim? Como é que pode?

DEELEY: Tenho que viajar muito por causa do meu trabalho.

ANNA: (Para Kate.) Acho que tenho que vir para te fazer companhia quando ele
estiver longe.

DEELEY: Seu marido não sentirá falta de você?

ANNA: Claro. Mas ele entenderia.

DEELEY: Ele entende agora?

ANNA: Claro.

DEELEY: Preparamos um prato vegetariano para ele.

ANNA: Ele não é vegetariano. Na verdade, ele é praticamente um gourmet.


Moramos há muitos anos em uma casa no campo muito requintada. Ela fica
no alto, sobre os penhascos.

DEELEY: Come-se bem por lá, não?

ANNA: Eu diria que sim.

DEELEY: É, conheço pouco a Sicília. Muito pouco. Taormina. Você mora em


Taormina?

ANNA: Bem perto.

DEELEY: Bem perto, é. Bem no alto. Talvez eu já tenha visto sua casa.

Pausa.

Fui à Sicília a trabalho. Meu trabalho tem a ver com a vida em geral,
entende, por toda parte do globo. Com gente de todas as partes do globo.
Uso a palavra globo porque a palavra mundo carrega ressonâncias e
pretensões emocionais, políticas, sociológicas e psicológicas com as quais
eu prefiro, por uma questão de escolha, não ter nada a ver, ou, poderia dizer,
evitar, ou, se ainda quiser, rejeitar. Como vai o iate?

ANNA: Ah, muito bem.

18
DEELEY: O capitão segue no rumo certo?

ANNA: Tão certo quanto queremos, quando queremos.

DEELEY: Ao retornar, você não acha a Inglaterra úmida?

ANNA: De forma muito sedutora.

DEELEY: De forma muito sedutora? (Para si mesmo.) Que diabos ela quer dizer com
isso?

Pausa.

Bem, toda vez que seu marido passar por aqui, minha querida esposa ficará
muito contente em colocar a velha panela no velho fogão a gás e servi-lo
alguma coisa suculenta, para não dizer voluptuosa. Sem problema.

Pausa.

Suponho que os negócios dele o impediram de fazer essa viagem. Qual o


nome dele? Gian Carlo ou Per Paulo?

KATE: (Para Anna.) Você tem pisos de mármore?

ANNA: Tenho.

KATE: Você anda descalça neles?

ANNA: Ando. Mas uso sandálias no terraço porque machuca a sola dos pés.

KATE: Quer dizer, o sol? O calor.

ANNA: É.

DEELEY: Tive uma grande equipe na Sicília. Um cameraman maravilhoso. Irving


Shultz. O melhor no ramo. Adotamos um enfoque muito austero das
mulheres de negro. As velhinhas de negro. Eu escrevi e dirigi o filme. Meu
nome é Orson Welles.

KATE: (Para Anna.) Vocês bebem suco de laranja no terraço pela manhã? E jogam
conversa fora no fim da tarde, e observam o mar?

ANNA: Às vezes, sim.

DEELEY: Na verdade, estou no topo da minha profissão, para falar a verdade, tenho
estabelecido, de fato, sociedade com um número significativo de pessoas
articuladas e sensíveis, na sua maioria prostitutas de todo tipo.

KATE: (Para Anna.) Você gosta do povo siciliano?

DEELEY: Já estive lá. Não há mais nada para ver, não há mais nada para se
investigar, nada. Não há mais nada na Sicília para se investigar.

KATE: (Para Anna.) Você gosta do povo siciliano?

19
(Anna olha fixamente para ela.)

Silêncio.

ANNA: (Calmamente.) Não vamos sair hoje à noite, não vamos a lugar nenhum hoje
à noite, vamos ficar em casa. Vou cozinhar alguma coisa, você pode lavar
seus cabelos, pode relaxar, vamos colocar alguns discos.

KATE: Ah, não sei. Podíamos sair.

ANNA: Por que você quer sair?

KATE: Podíamos caminhar pelo parque.

ANNA: O parque é sujo de noite . . . todo tipo de pessoas horríveis, homens se


escondendo atrás das árvores e mulheres com vozes terríveis, gritam
quando você passa, e pessoas saem de repente de trás das árvores e dos
arbustos e há sombras por toda parte e há policiais, e você fará uma
caminhada horrível, e verá todo o tráfego e o barulho do tráfego e verá todos
os hotéis, e sabe, você detesta olhar através de todas aquelas portas
giratórias, você detesta, ver tudo isso, toda essa gente nos saguões
iluminados falando e se mexendo . . . e todos os lustres . . .

Pausa.

Se você sair, tudo quê você vai querer é voltar pra casa. Você vai querer
voltar correndo para casa . . . e para dentro do seu quarto . . .

Pausa.

KATE: O que vamos fazer então?

ANNA: Ficar em casa. Quer que eu leia para você? Você gostaria?

KATE: Não sei.

Pausa.

ANNA: Você está com fome?

KATE: Não.

DEELEY: Fome? Depois da picanha ao forno?

Pausa.

KATE: Que devo usar amanhã? Não consigo me decidir.

ANNA: Use a verde.

KATE: Não tenho top adequado.

ANNA: Tem. Você tem aquela blusa azul turquesa.

KATE: Combina?

20
ANNA: Combina. Claro que combina.

KATE: Vou experimentar

Pausa.

ANNA: Você gostaria que eu convidasse alguém?

KATE: Quem?

ANNA: Charley… ou Jake?

KATE: Não gosto do Jake.

ANNA: Então, Charley . . . ou . . .

KATE: Quem?

ANNA: McCabe.

Pausa.

KATE: Vou pensar nisso no banho.

ANNA: Quer que eu prepare o banho para você?

KATE: (Parada.) Não. Hoje à noite eu mesma vou preparar.

(Kate vai lentamente até à porta do quarto de dormir, entra e fecha a porta.)
(Deeley fica parado, olhando para Anna.)
(Anna vira-se e olha para ele.)
(Eles olham um para o outro.)

A luz cai em resistência.

21
ATO DOIS

(QUARTO DE DORMIR.)
(Uma janela grande no fundo ao centro. Uma porta para o banheiro no fundo à esquerda.
Uma porta para a sala de estar no fundo à direita.)
(Dois divãs. Uma poltrona.)
(Os divãs e a poltrona conservam precisamente a mesma relação entre si que tinha o
mobiliário do primeiro ato, porém em posições inversas.)
(Luz fraca. Distingue-se Anna sentada no divã. Luminosidade fraca na parte de vidro da
porta do banheiro.)

Silêncio.

(As luzes aumentam. A outra porta se abre. Deeley entra com uma bandeja.)
(Deeley entra no quarto, coloca a bandeja em uma mesa.

DEELEY: Pronto. Gostoso e quente. Gostoso e forte e quente, você prefere com leite e
açúcar, não é?

ANNA: Por favor.

DEELEY: (Servindo.) Gostoso e forte e quente com leite e açúcar.

(Ele entrega a xícara para Anna.)

Gosta desse quarto?

ANNA: Gosto.

DEELEY: Dormimos aqui, Essas são as camas. A grande vantagem dessas camas é
que elas permitem uma grande variedade de combinações. Podem ficar
separadas como estão agora. Ou em ângulo reto, ou em forma de T, ou a
gente pode dormir pé contra pé, ou cabeça contra cabeça, ou lado a lado.
São as rodinhas que tornam tudo isso possível.

(Ele se senta segurando o café.)

É, eu me lembro muito bem de você lá dos Viajantes.

ANNA: Dos o quê?

DEELEY: Da Taberna dos Viajantes, logo na saída da Brompton Road.

ANNA: Quando foi isso?

DEELEY: Anos atrás.

ANNA: Acho que não

DEELEY: Ah sim, era você, não há dúvida. Nunca esqueço uma fisionomia. Você se
sentava no canto, com muita frequência, às vezes sozinha, às vezes com
alguém. E você está bem aqui, sentada na minha casa. A mesma mulher.
Incrível. Um sujeito chamado Luke costumava ir lá. Era conhecido seu.

22
ANNA: Luke?

DEELEY: Um cara alto. Cabelo ruivo. Barba ruiva.

ANNA: Honestamente acho que não.

DEELEY: Sim, vários deles, poetas, dublês, humoristas, bufões, esse tipo de gente.
Você costumava usar um cachecol, isso mesmo, um cachecol preto e um
suéter preto e uma saia.

ANNA: Eu?

DEELEY: E meias pretas. Não me diga que você se esqueceu da Taberna dos
Viajantes? Você pode ter esquecido o nome, mas com certeza se lembra do
lugar. Você era a favorita do bar.

ANNA: Eu não era rica, você sabe. Não tinha dinheiro para gastar com bebidas.

DEELEY: Você tinha acompanhantes. Não precisava pagar. Tinha quem cuidasse de
você. Eu próprio paguei uns drinques para você.

ANNA: Você?

DEELEY: Com certeza.

ANNA: Nunca.

DEELEY: É a verdade. Lembro-me muito bem.

Pausa.

ANNA: Você?

DEELEY: Paguei uns drinques para você.

Pausa.

Há vinte anos atrás . . . mais ou menos.

ANNA: Está dizendo que nós já nos conhecíamos?

DEELEY: Claro que já nos conhecíamos.

Pausa.

Já conversamos antes. Naquele bar, por exemplo. No canto. Luke não


gostava muito, mas nós o ignorávamos. Depois, fomos todos para uma
festa. No apartamento de alguém, em algum lugar de Westbourne Grove.
Você se sentou em um sofá muito baixo, eu me sentei em frente e fiquei
olhando por baixo de sua saia. Suas meias pretas eram muito pretas porque
suas coxas eram muito brancas. Agora tudo está acabado, claro, não é?
Não tem mais como recuperar isso, está tudo acabado. Mas valia a pena
naquela época. Valeu a pena naquela noite. Eu, simplesmente, sentado,
tomando a minha cervejinha e olhando . . . olhando fixamente por baixo de

23
sua saia. Você não fez objeções, achava o meu olhar perfeitamente
aceitável.

ANNA: Eu percebi o seu olhar, não percebi?

DEELEY: Havia uma grande discussão sobre a China ou qualquer coisa assim, ou
sobre morte, ou sobre a China e morte, não me lembro, mas ninguém a não
ser eu tinha uma visão do suave toque das coxas, ninguém a não ser você
tinha as coxas que se tocavam. E aqui está você. A mesma mulher. As
mesmas coxas.

Pausa.

É. Aí, uma amiga sua entrou, uma moça, uma amiga. ela se sentou no sofá
com você, vocês duas conversavam e davam risinhos, sentadas juntas, e eu
me assentei mais em baixo para olhar para vocês duas, para as coxas de
vocês duas, ganindo e uivando, você atenta, ela desatenta, mas aí vários
homens me rodearam e perguntaram a minha opinião sobre a morte, ou
sobre a China, ou sobre qualquer outra coisa, e não me deixaram em paz,
dobraram sobre mim, com seus maus-hálitos e dentes quebrados e narizes
cabeludos e a China e a morte e seus traseiros apoiados nos braços da
minha cadeira até que fui forçado a me levantar e sair, seguido ferozmente
por eles, como se eu fosse a causa da discussão deles, olhando para trás no
meio da fumaça, correndo para uma mesa coberta com uma toalha
impermeável para pegar mais uma garrafa cheia de cerveja, olhando para
trás no meio da fumaça, vendo de relance duas moças no sofá, uma delas,
você, as cabeças coladinhas, sussurrando, não conseguia ver mais nada,
não conseguia ver nem meias nem coxas, e aí vocês desapareceram.
Caminhei até o sofá. Não havia ninguém lá. Olhei fixamente para as marcas
de quatro nádegas. Duas delas eram suas.

Pausa.

ANNA: Nunca ouvi uma história tão triste.

DEELEY: Concordo.

ANNA: Sinto muito

DEELEY: Não foi nada.

Pausa.

Nunca mais vi você. Você sumiu da área. Quem sabe, se mudou.

ANNA: Não. Não me mudei.

DEELEY: Nunca vi você na Taberna dos Viajantes de novo. Por onde andava?

ANNA: Ah, nos concertos, acho, ou nos balés.

Silêncio.

24
Kate está demorando muito no banho.

DEELEY: Bem, você sabe como ela é quando entra no banho.

ANNA: Sei.

DEELEY: Se delicia. Demora bastante.

ANNA: É verdade.

DEELEY: Um tempão. Deleita-se. Dá uma boa ensaboada no corpo inteiro.

Pausa.

Ensaboa pra valer o corpo inteiro, depois vai tirando o sabão, bolha por
bolha. Meticulosamente. Ela é, ao mesmo tempo, compenetrada e, é preciso
dizer, sensual. Lava-se em grande escala e, fora outras considerações,
realmente sai do banho novinha em folha. Você não acha?

ANNA: Novinha em folha.

DEELEY: É verdade. Nem uma mancha. Nem uma marquinha. Cintilante como uma
bolha.

ANNA: É, parece que flutua.

DEELEY: O quê?

ANNA: Ela sai flutuando do banho. Como um sonho. Nem repara que tem alguém
com uma toalha, esperando por ela, esperando para enrolar a toalha nela.
Totalmente compenetrada.

Pausa.

Até que a toalha seja colocada nos seus ombros.

Pausa.

DEELEY: Claro, ela é totalmente incompetente para se secar direito, já reparou? Ela
realmente sabe se esfregar muito bem, mas será que ela tem a mesma
eficiência para se secar? Descobri, pela experiência que eu tenho dela, que
realmente esse não é o caso. A gente sempre encontra algumas poucas
atrevidas gotinhas inesperadas e indesejáveis pingando.

ANNA: Porque você mesmo não a seca?

DEELEY: Você recomendaria isso?

ANNA: Você faria isso muito bem.

DEELEY: Com a toalha de banho dela?

ANNA: De que outro jeito?

DEELEY: De que outro jeito?

25
ANNA: De que outro jeito poderia secá-la? Sem a toalha de banho dela?

DEELEY: Não sei.

ANNA: Então, seque-a você mesmo, com a toalha de banho dela.

Pausa.

DEELEY: Porque você não a seca com a toalha de banho dela?

ANNA: Eu?

DEELEY: Você faria isso muito bem.

ANNA: Não, não.

DEELEY: Tem certeza? Quer dizer, você é mulher, você sabe como e onde e com qual
densidade a umidade acumula nos corpos femininos.

ANNA: Não há duas mulheres iguais.

DEELEY: Bem, isso é bem verdade.

Pausa.

Tenho uma ideia brilhante. Por que não usamos talco?

ANNA: Essa é a ideia brilhante?

DEELEY: Não é?

ANNA: É muito comum a gente passar talco depois do banho.

DEELEY: É muito comum a gente passar talco depois do banho, mas não é tão
comum assim passarem talco na gente. Ou será que é? Na minha terra não
é, posso garantir. Mamãe teria um chilique.

Pausa.

Escute. Vou dizer uma coisa para você. Eu faço. Faço o serviço completo. A
toalha e o talco. Afinal, eu sou o marido dela. Mas você supervisiona tudo. E
me dê umas dicas quentes enquanto supervisiona. Assim, matamos dois
coelhos com uma cajadada só.

Pausa.

(Para si mesmo.) Meu Deus.

(Olha para ela lentamente.)

Você deve ter uns 40 anos agora, acho.

Pausa.

Se eu entrasse agora na Taberna dos Viajantes e visse você sentada no


canto, não a reconheceria.

26
(Abre-se a porta do banheiro. Kate entra no quarto. Ela usa um roupão.)
(Ela sorri para Deeley e Anna.)

KATE: (Com prazer.) Aaahh…

(Ela caminha até a janela e olha a noite lá fora. Deeley e Anna a observam.)
(Deeley começa a cantar suavemente.)

DEELEY: (Cantando.) The way you wear your hat . . .

(Seu jeito de usar o chapéu . . .)

ANNA: (Cantando, suavemente.) The way you sip your tea . . .

(Seu jeito de beber o chá . . .)

DEELEY: (Cantando.) The memory of all that . . .

(A lembrança disso tudo . . .)

ANNA: (Cantando.) No, no, they can’t take that away from me . . .

(Não, não, eles não podem tirar isso de mim . . .)

(Kate vira-se, da janela, e olha para eles.)

ANNA: (Cantando.) The way your smile just beams . . .

(Seu jeito de sorrir exultantemente . . .)

DEELEY: (Cantando.) The way you sing off key . . .

(Seu jeito de cantar desafinado . . .)

ANNA: (Cantando.) The way you haunt my dreams . . .

(Seu jeito de assombrar meus sonhos . . .)

DEELEY: (Cantando.) No, no, they can’t take that away from me . . .

(Não, não, eles não podem tirar isso de mim . . .)

(Kate caminha em direção deles e fica parada, sorrindo. Anna e Deeley voltam a cantar,
apanhando as deixas mais rapidamente, e de modo mais descuidado.)

ANNA: (Cantando.) The way you hold your knife . . .

(Seu jeito de segurar a faca . . .)

DEELEY: (Cantando.) The way we danced till three –

(O jeito que dançamos até o amanhecer –)

ANNA: (Cantando.) The way you’ve changed my life –

(O jeito como você mudou a minha vida –)

DEELEY: Não, não, eles não podem tirar isso de mim.

27
(Kate se senta em um divã.)

ANNA: (Para Deeley.) Ela não está linda?

DEELEY: Não é mesmo?

KATE: Obrigada. Me sinto nova. Aqui, a água é muito leve. Muito mais leve do que
em Londres. Sempre achei a água de Londres muito densa. Esse é um dos
motivos porque gosto de morar no campo. Tudo é mais leve. A água, a luz,
as formas, os sons. Aqui as coisas não são ásperas. Viver perto do mar. Não
se pode dizer onde ele começa ou termina. Isso me atrai. Não gosto de
linhas definidas. Detesto esse tipo de necessidade. Gostaria de ir para o
oriente, ou qualquer lugar assim, um lugar bem quente, onde se pode deitar
debaixo de uma rede contra mosquitos e respirar bem lentamente. Sabe . . .
um desses lugares onde se pode olhar pela abertura de uma barraca e ver
areia, esse tipo de coisa. A única coisa boa na cidade grande é que quando
chove fica tudo embaçado, e embaçam os faróis dos carros, não é?, e
embaçam os olhos da gente, e os olhos ficam cheios d'água. Essa é a única
coisa boa na cidade grande.

ANNA: Essa não é a única coisa boa. A gente pode ter um lugar agradável e uma
boa lareira e um robe aconchegante e uma bebidinha quente, tudo
esperando por nós quando chegamos.

Pausa.

KATE: Está chovendo?

ANNA: Não.

KATE: Bem, de qualquer jeito, decidi que vou ficar em casa.

ANNA: Ah, que bom. Fico contente. Agora você pode tomar uma xícara de café bem
forte depois do banho.

(Anna se levanta, vai em direção ao café, serve-se.)

Poderia fazer a bainha no seu vestido preto. Poderia terminá-lo e você


experimentar.

KATE: Humhum.

(Anna oferece seu café a Kate.)

ANNA: Ou poderia ler para você.

DEELEY: Você se secou direitinho, Kate?

KATE: Acho que sim.

DEELEY: Tem certeza? Todinha?

KATE: Acho que sim. Me sinto sequinha.

28
DEELEY: Você tem absoluta certeza? Não quero você sentando e molhando o lugar
todo.

(Kate ri.)

Vê esse sorriso? É o mesmo sorriso que ela deu quando caminhávamos


pela rua, depois de assistir a O Condenado, bem, um tempinho depois.

O que você achou disso?

ANNA: É um sorriso muito bonito.

DEELEY: Sorria outra vez.

KATE: Eu ainda estou sorrindo.

DEELEY: Não está. Não como você estava agorinha mesmo, não como você sorriu
naquele dia.

(Para Anna.) Você sabe de que sorriso eu estou falando?

KATE: Esse café está frio.

Pausa.

ANNA: Ah, desculpe-me. Vou fazer um fresquinho.

KATE: Não, não quero mais, obrigada.

Pausa.

Charley vem?

ANNA: Posso telefonar para ele se você quiser.

KATE: E o McCabe?

ANNA: Você quer realmente ver alguém?

KATE: Acho que não gosto do McCabe.

ANNA: Nem eu.

KATE: Ele é estranho. Ele fala umas coisas estranhas para mim.

ANNA: Que coisas?

KATE: Ah, todo tipo de bobagem.

ANNA: Nunca gostei dele.

KATE: Mas o Duncan é legal, não é?

ANNA: Ah, é.

KATE: Gosto muito da poesia dele.

29
Pausa.

Mas você sabe de quem eu gosto mais?

ANNA: De quem?

KATE: Do Christy.

ANNA: Ele é ótimo.

KATE: Ele é tão gentil, não é? E seu humor. Ele não tem um delicioso senso de
humor? Eu acho ele . . . tão sensível. Por que você não o convida?

DEELEY: Ele não pode. Ele está fora da cidade.

KATE: Ah, que pena.

Silêncio.

DEELEY: (Para Anna.) Você está pretendendo visitar mais alguém enquanto estiver na
Inglaterra? Conhecidos? Primos? Irmãos?

ANNA: Não. Não conheço ninguém. A não ser Kate.

Pausa.

DEELEY: Você acha que ela mudou?

ANNA: Ah, só um pouquinho, não muito. (Para Kate.) Você continua tímida, não é?

(Kate a encara.)

(Para Deeley.) Mas quando eu a conheci, ela era muito tímida, tão tímida
quanto um cordeirinho, ela realmente era. Quando pessoas se aproximavam
para conversar, ela se encolhia a tal ponto que, embora ainda estivesse ali,
parada, ao seu alcance, ela não estava mais acessível. Ela se encolhia para
fugir das pessoas de tal forma que não se conseguia nem falar nem
estabelecer qualquer tipo de comunicação com ela. Atribuo isso a sua
educação, uma filha de pastor, e, na verdade, havia muito de Brontë nela.

DEELEY: Ela era filha de pastor?

ANNA: Mas quando pensei em Brontë, não pensei que ela fosse Brontë nas
paixões, mas nos silêncios, por ela ser tão obstinadamente reservada.

Pausa ligeira.

Lembro-me da primeira vez que ela ficou corada.

DEELEY: O quê? O que foi? Quero dizer, por que foi?

ANNA: Tinha pegado umas roupas íntimas dela para ir a uma festa. Naquela
mesma noite, mais tarde, confessei. Foi sujeira minha. Ela ficou estatelada,
perplexa, talvez seja a melhor palavra. Mas eu disse a ela que, de fato, eu já

30
tinha sido punida pelo meu pecado, pois, na festa, um homem ficou olhando
por debaixo da minha saia a noite inteira.

Pausa.

DEELEY: Ela ficou corada por causa disso?

ANNA: Intensamente.

DEELEY: Olhar por debaixo da sua saia para a calcinha dela. Hein.

ANNA: Mas a partir daquela noite, ela insistia, de vez em quando, que eu pegasse
emprestada suas roupas íntimas – ela tinha mais do que eu e muito mais
variedade – e cada vez que propunha isso, ela ficava corada, mas
continuava propondo assim mesmo. E quando eu tinha qualquer coisa para
contar para ela, na minha volta, qualquer coisa interessante para contar para
ela, eu contava.

DEELEY: Ela ficava corada então?

ANNA: Nunca consegui ver. Eu chegava tarde, a encontrava lendo sob a luz de um
abajur, e começava a contar, mas ela dizia “não”, apagava a luz e eu tinha
que contar no escuro. Ela preferia que eu contasse no escuro. Mas, é claro,
nunca estava totalmente escuro, com a luz da lareira ou com a luz que
entrava pela cortina e conhecendo as preferências dela, o que ela não sabia,
eu escolhia uma posição no quarto de onde eu conseguisse ver o rosto dela,
embora ela não conseguisse ver o meu. Ela só conseguia ouvir a minha voz.
E assim ela me ouvia e eu a observava me ouvindo.

DEELEY: Parece um casamento perfeito.

ANNA: Éramos grandes amigas.

Pausa.

DEELEY: Você disse que ela era Brontë nos silêncios, mas não nas paixões. O que
ela era nas paixões?

ANNA: Sinto que aí é seu território.

DEELEY: Você sente que aí é meu território? Bem, você está redondamente certa. Aí
é meu território. Fico contente quando alguém demonstra, finalmente, um
pouco de bom senso. É claro que é mais do que meu território. Sou o marido
dela.

Pausa.

Gostaria de te fazer uma pergunta. Sou o único que está começando a achar
tudo isso insensato?

ANNA: Mas o que você poderia afinal achar insensato? Vim de Roma para ver a
minha amiga mais antiga, depois de vinte anos, e para conhecer o marido
dela. Tem algum motivo para preocupação?

31
DEELEY: O que me preocupa é pensar no seu marido falando sozinho na sua enorme
casa de campo, ao deus-dará, comendo pão e água e incapaz de pronunciar
uma palavra sequer em inglês.

ANNA: Eu traduzo quando necessário.

DEELEY: É, mas você está aqui, com a gente. E ele está lá, sozinho, cambaleando de
um lado para o outro no terraço, esperando por uma lancha, esperando por
uma lancha que traga gente bonita, pelo menos. Belezas do Mediterrâneo.
Esperando por tudo isso, um tipo de elegância a respeito da qual nada
sabemos, uma figura de cintura fina da Côte d’Azur a respeito da qual não
sabemos absolutamente nada, uma lagosta acompanhada de um molho
concebido dentro dos princípios gastronômicos mais requintados dos quais
não sabemos porra nenhuma, as pernas mais longas do mundo, as vozes
mais fenomenalmente suaves. Sou capaz de ouvi-las nesse momento.
Quero dizer, vamos por as cartas na mesa, estou de olho em uma série de
pulsações, pulsações pelo globo inteiro, privações e insultos, por que eu
deveria perder meu valioso espaço, escutando duas –

KATE: (Rapidamente.) Se não está gostando, vai embora.

Pausa.

DEELEY: Embora? Para onde?

KATE: Para a China. Ou para a Sicília.

DEELEY: Não tenho lancha. Não tenho terno branco.

KATE: Então, China.

DEELEY: Você sabe o que eles fariam comigo na China se me encontrasse com um
terno branco. Eles me matariam. Você sabe como eles são por lá.

Pausa ligeira.

ANNA: Você é bem-vindo à Sicília em qualquer época, vocês dois, são meus
convidados.

Silêncio.

(Kate e Deeley olham fixamente para ela.)

ANNA: (Para Deeley, calmamente.) Gostaria que você entendesse que eu não vim
aqui para destruir, mas para celebrar.

Pausa.

Celebrar uma amizade antiga e preciosa, algo que se formou entre nós
muito antes de você saber que nós existíamos.

Pausa.

32
Eu a descobri. Por meu intermédio, ela floresceu e veio a conhecer pessoas
maravilhosas. Eu a levei nos cafés, quase todos reservados, onde artistas e
escritores e às vezes atores se reuniam, e outros com bailarinos,
sentávamos, quase sem fôlego, com nosso café, ouvindo a vida em volta de
nós. Tudo que eu queria para ela era a felicidade. É tudo que eu ainda quero
para ela.

Pausa.

DEELEY: (Para Kate.) Nós já nos conhecíamos, sabe. Anna e eu.

(Kate olha para ele.)

É. Nós nos encontramos na Taberna dos Viajantes. No canto. Ela gostou de


mim. É claro, eu era esbelto naquela época. Muito elegante. Sinceramente,
um cara bacana. Cabelos encaracolados. Muito. Ficamos juntos. Ela pirou.
Ela estava sem grana, então eu paguei um drinque para ela. Ela olhou para
mim com os olhos arregalados, tímida, e tudo mais. Ela estava fingindo ser
você naquela época. Fez isso muito bem. Estava também usando sua
calcinha naquele momento. Amavelmente permitiu que eu desse uma
olhada. Pura generosidade. Admirável em uma mulher. Fomos para uma
festa. Dada por uns filósofos. De um grupo não muito radical. Da Edgware
Road. Bem legais. Não os via há anos. Velhos amigos. Sempre pensando.
Falavam o que pensavam. Essas são as pessoas de quem tenho saudade.
Estão todas mortas, nunca mais vou vê-las. O grupo do Vale Maida. Grande
Eric e o pequeno Tony. Moravam perto da biblioteca de Paddington. No
caminho para a festa, entramos em um café, paguei uma xícara de café para
ela, cheio de homens barbados. Ela pensava que era você, falava pouco,
muito pouco. Talvez ela fosse você. Talvez, fosse você, tomando café
comigo, falando pouco, muito pouco.

Pausa.

KATE: O que você acha que ela viu em você?

DEELEY: Não sei. O quê?

KATE: Ela achou a sua fisionomia muito sensível, vulnerável.

DEELEY: Verdade?

KATE: Ela quis consolá-lo, de um jeito que só uma mulher sabe fazer.

DEELEY: Verdade?

KATE: Claro.

DEELEY: Ela quis confortar minhas feições do jeito que só uma mulher sabe fazer?

KATE: Ela estava preparada para se entregar a você.

DEELEY: Como disse?

33
KATE: Ela se apaixonou por você.

DEELEY: Por mim?

KATE: Você era tão diferente dos outros. Conhecíamos homens que eram
animalescos, grossos.

DEELEY: Então, existe mesmo esse tipo de homem? Grosso?

KATE: Muito grosso.

DEELEY: Mas eu fui grosso, não fui, ao olhar por baixo da saia dela?

KATE: Isso não é ser grosso.

DEELEY: Se fosse a saia dela. Se fosse ela.

ANNA: (Friamente.) Ah, era a minha saia. Era eu. Eu me lembro do seu olhar . . .
muito bem. Eu me lembro bem de você.

KATE: (Para Anna.) Mas eu me lembro de você. Eu me lembro de você morta.

Pausa.

Eu me lembro de você deitada, morta. Você não sabia que eu estava te


observando. Inclinei-me sobre você. Seu rosto estava sujo. Você deitada,
morta, seu rosto todo desenhado com lama, todo tipo de inscrições, ainda
molhadas, de maneira que elas tinham escorrido, por todo o seu rosto, até a
sua garganta. Seus lençóis estavam imaculados. Fiquei contente. Teria
ficado triste se seu cadáver tivesse sido enrolado em lençóis sujos. Teria
sido deselegante. Quero dizer no que me diz respeito. No que diz respeito
ao meu quarto. Afinal, você estava morta no meu quarto. Quando você
acordou, meus olhos estavam sobre você, olhando fixamente para você.
Você tentou imitar meu cacoete, um dos meus cacoetes de que você se
apropriou, o meu lento sorrisinho, o meu lento sorrisinho tímido, o meu jeito
de inclinar a cabeça, o meu jeito de fechar os olhos pela metade, que nós
conhecíamos muito bem, mas não funcionou, o seu sorriso largo só fez com
que a lama em volta da sua boca se partisse e grudasse. Seu sorriso ficou
congelado. Procurei por lágrimas, mas não consegui ver nenhuma. Suas
pupilas não estavam nos seus olhos. Os ossos atravessavam o seu rosto.
Mas estava tudo tranquilo. Não havia sofrimento. Tudo tinha acontecido em
outro lugar. Não senti que fossem necessários os ritos fúnebres. Ou
qualquer outro tipo de celebração. Senti que a época e o momento eram
adequados e que você tinha agido com decoro ao morrer sozinha e suja.
Estava na hora do meu banho. Tomei um banho bem demorado, saí, andei
pelo quarto, brilhando, puxei uma cadeira, me sentei nua ao seu lado e fiquei
te observando.

Pausa.

Quando eu trouxe ele para o quarto, seu corpo, é claro, tinha desaparecido.
Foi um alívio ter um corpo diferente no meu quarto, um corpo masculino,

34
comportando-se completamente diferente, fazendo tudo que fazem e que
pensam que é legal, como se sentar com uma perna sobre o braço da
poltrona. Tínhamos duas camas para escolher. A sua cama ou a minha
cama. Para deitarmos debaixo ou em cima das cobertas. Para esfregarmos
os narizes, debaixo ou em cima das cobertas. Ele gostou da sua cama e
achou que ficava diferente nela, porque ele era homem. Mas, uma noite eu
disse, deixa eu fazer uma coisa, uma coisinha, um truquezinho. Ele se deitou
na sua cama. Olhou para mim com uma grande expectativa. Estava
encantado. Achou que eu tivesse tirado proveito dos seus ensinamentos.
Achou que eu tivesse sexualmente disponível, que eu tivesse a ponto de
tomar a esperada e promissora iniciativa. Eu remexi a terra do canteirinho da
janela, onde você tinha plantado o nosso lindo amor-perfeito, tirei uma
porção, enchi uma tigela e reboquei o rosto dele com lama. Ele ficou
bestificado, horrorizado, resistiu, resistiu com força. Ele não me deixaria eu
sujar o rosto dele nem manchá-lo, não me deixaria. Em vez disso, me
propôs casamento e mudança de ambiente.

Pausa ligeira.

Nem uma nem outra coisa tinha importância.

Pausa.

Uma vez, ele me perguntou, mais ou menos naquela mesma época, quem
tinha dormido naquela cama antes dele. Eu disse que ninguém.
Absolutamente ninguém.

Silêncio longo.

(Anna levanta-se, caminha para a porta, para de costas para eles.)

Silêncio.

(Deeley começa a soluçar bem calmamente.)


(Anna fica imóvel.)
(Anna vira-se, apaga as luzes, senta-se no seu divã e se deita.)
(O soluço para.)

Silêncio.

(Deeley levanta-se. Dá alguns passos e olha para os dois divãs. Ele vai até o divã de Anna
e olha para ela. Ela está imóvel.)

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Silêncio.

(Deeley dirige-se para a porta, para de costas para elas.)

Silêncio.

(Deeley vira-se. Vai até ao divã de Kate. Senta-se e deita no colo dela.)

Silêncio longo.

(Deeley, vagarosamente, se senta. Sai do divã. Caminha vagarosamente até a poltrona.


Senta-se e afunda.)

Silêncio.

As luzes aumentam muito fortemente.

Claridade máxima branca.

Deeley na poltrona.

Anna deitada no divã.

Kate sentada no divã.

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