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Edgar, Neville
(UFU), digitalizado para fins de preservação por meio do projeto Biblioteca Digital de Peças Teatrais
(BDteatro). Este projeto é financiado pela FAPEMIG (Convênio EDT-1870/02) e pela UFU. Para a
PRIMEIRO ATO
Living-room 1900 - Cortinas, roupas e adornos " modern style". Ao fundo, um quadro, com
uma ninfa verde e amarela, soprando um vilão (N.T. Trata-se dos quadros "estilo decorativo"
do início do século, tirados geralmente de motivos mitológicos.
Entra Adélia, seguida de Julião. Ambos trazem embrulhos. Ela os vai deixando sobre os
móveis. Ele também mas, o maior deles, ele o coloca sobre uma mesinha muito fraca, que há
no centro da sala.
Os homens usam barba crescida, mas aparada e penteiam-se com "topete", estilo início do
século.
ADÉLIA - Não coloque esse embrulho aí em cima, não vê que a mesinha não agüenta?
JULIÃO - Agüentei-o eu e de muito longe!
ADÉLIA - Mas tu não é uma "mesinha de estilo", não é?
JULIÃO - Com isso queres dizer que sou "um burro de carga". Já sei!
ADÉLIA - Burro de carga!
JULIÃO - Claro. Compreendi a tua delicada alusão, "modern style". Realmente, não sei onde
vão, os poetas de hoje, buscar a idéia de que mulheres, são delicadas e líricas. As de hoje, são
voluntariosas e mandonas, isso sim.
ADÉLIA (IRÔNICA) - Os homens, a flor da galanteria!
JULIÃO - Pelo menos, somos honestos.
ADÉLIA - O que queres dizer com isso? Vamos, repita, onde queres chegar?
JULIÃO - Somente a isto! Somos honestos, nada mais.
ADÉLIA - Queres me insultar?
JULIÃO - Que disparate!
ADÉLIA - Tens o atrevimento de insinuar que não sou uma mulher honesta? Tu, melhor que
ninguém, sabes que o sou?
JULIÃO - Não vale a pena te irritares. És honesta, mas frívola.
ADÉLIA - Frívola, eu? Em que, vamos diga.
JULIÃO - Em que? Em que não pensas senão em divertimentos, em passear de carro aberto,
puxado pôr belos cavalos, com um chapéu que chame a atenção de todo o mundo. Em que?
Em que dás mais importância a um ramo de violeta, pregado no teu vestido, do que a um
problema social.
ADÉLIA - Se nós, mulheres, tivermos que nos ocupar também dos problemas sociais,
gostaria de saber com o que, vocês, homens, iriam se divertir! Montando a cavalo, ou jogando
bilhar, naturalmente?
JULIÃO - Nem uma dessas duas coisas podem ser reprováveis.
ADÉLIA - Mas o passear de carro, vestida com elegância, sim, é reprovável!
JULIÃO - Claro - porque é como exibir-se em uma vitrine para que, quem quiser, as veja e
admire e ainda, para poder trocar olhares com quem lhes agrade, deixando-nos em ridículo!
ADÉLIA - Desde quando já me viste trocar olhares com um desconhecido?
JULIÃO - Oxalá fosse "um desconhecido", o pior é que olhas para pessoas - note bem, sou
delicado, disse "pessoas" - que encontramos todos os dias e em toda parte, até nos teatros e
com quem falamos e conversamos...
ADÉLIA - Isso eqüivale dizer que reprovas que eu olhe e cumprimente os amigos?
JULIÃO - Existem diferentes maneiras de olhar.
ADÉLIA ( Resolvida a não levar a sério ) - Pois eu olho assim: (Senta-se uma cadeira e faz
como se visse e cumprimentasse diferentes pessoas) - Boa tarde... Quem é esse...?
JULIÃO - E o idiota do Xavier, que está apaixonado pela domadora de leões, de circo
Sarrasani... cuidado, ela pode soltar um leão em cima...
ADÉLIA (CUMPRIMENTANDO) - E esse?...
JULIÃO - Este não me preocupa.
ADÉLIA - Quem era?
JULIÃO - O general Ucyler
ADÉLIA - Não.
JULIÃO - Sagasta
ADÉLIA - Não.
JULIÃO - Moret.
ADÉLIA - Não
JULIÃO - Então quem é?
ADÉLIA - Pedro
JULIÃO - Que Pedro?
ADÉLIA - Pedro, meu marido.
JULIÃO - Ah! Bem que eu dizia que não me preocupava o teu olhar para êle.
ADÉLIA - Então qual o olhar que te preocupa?
JULIÃO - Outros, o que você envia a um certo tenor.
ADÉLIA - Como é possível que digas isto, Julião?
JULIÃO - Pensas que sou bobo?
ADÉLIA - Lanças olhares a Anselmi?
JULIÃO - Olha como ela sabe quem é?! Na noite passada não lhe tiravas os olhos...
ADÉLIA - Onde?
JULIÃO - No teatro
ADÉLIA - Ó, idiota, para quem querias que eu olhasse, se êle esta estava cantando?
JULIÃO - Geralmente, num teatro, se olha para uns e outros...
ADÉLIA - Claro. Para o lustre do teto, para os porteiros, para tua ilustre pessoa, preocupado
em descoser a poltrona para ver se encontrava um percevejo: para Pedro que havia
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adormecido e havia iniciado um solo de roncos... Olhava para Anselmi, claro, por que
cantava...
JULIÃO - E na Quinta-feira?! No "Ideal Polistilo", ele estava cantando também?
ADÉLIA - Isso já é cinismo.
ENTRA PEDRO
PEDRO - Já sei... Estão brigando, novamente!
ADÉLIA - Como sempre. Não vês que para este senhor, não sou mais do que uma Messalina?
Uma mulher que só gosta de olhar para tenores?
JULIÃO - Isso não é mais do que a verdade. Sim, senhor, ela nos está pondo em ridículo
diante de todo mundo... (A Pedro) - A ti, mais do que a mim, porque afinal, não sou mais do
um amigo da casa. Tu, como marido, é que devias fazer o "barulho".
PEDRO - Para que? Seriam dois barulhos ao em vez de um, e ninguém poderia parar mais em
casa.
ADÉLIA - E seriam duas injustiças ao em vez de uma, o que acabaria por fazer com que,
então, eu olhasse de verdade para todo mundo, ouviram?
JULIÃO - Está vendo? Ainda nos ameaça!
PEDRO - A culpa é tua: o monopólio dos barulhos conjugais e, mais ainda, quando se trate de
ciúmes, corresponde ao marido e nunca a um amigo, por muito íntimo que seja.
JULIÃO - Perdão! Perdão! Eu aqui sou muito mais de que um amigo. Tenho paixão por
Adélia há muito tempo do que tu e, se ela não o engana comigo, notes bem é porque não quer
nem quis! Somente por isso! E pode estar certo, estou disposto a fugir com ela, assim que ela
quiser.
ADÉLIA - E serias capaz de deixar o teu queridíssimo amigo, o teu adorado companheiro de
colégio, o inseparável colega de investigações, sozinho e triste?
PEDRO (RINDO) - Que grandes patifes são vocês!...
JULIÃO - Isso não. Depois de algum tempo nós o convidamos a vir viver conosco (RIEM
MAIS AINDA) - Vocês estão estragando tudo...
ADÉLIA - Tu sim, é que estás estragando tudo com os teus estúpidos ciúmes! (SAI RINDO)
PEDRO - E sem nenhum direito!
JULIÃO - Perdão, com tanto direito quanto você!
PEDRO - Mas eu, sou o marido
JULIÃO - Porque me fez uma "sujeira". Adélia era minha noiva.
PEDRO - Devias ter casado com ela
JULIÃO - Não tinha meios, nem posição para casar com ela, que era o amor de toda a minha
vida. Amava-a desde menina.
PEDRO - E eu, também...
JULIÃO - Mentira ouviu. Você só a conheceu quando já usava calças cumpridas e ela já era
minha noiva.
PEDRO - Não tinhas mais do que casar-te antes que eu o fizesse.
JULIÃO - Claro. Casava-me e tinha que agüentar você como amigo de casa. Logo você,
muito mais alegre do que eu, muito mais cheio de romantismo e poesia... E depois, para me
casar, teria que esperar que morresse minha tia para herdar...
PEDRO - Eu, tampouco podia me casar-me naquela época, e casei.
JULIÃO - Você se aproveitou o eu estar mobilizado nas Filipinas como soldado, para que seu
pai morresse e assim me roubares a noiva.
Adélia que havia saído, volta, tendo trocado o vestido, pôr abundante roupa de interior de
1900, e fica a ouvi-los com sorriso de profunda ternura.
PEDRO - Quem te ouvisses, julgaria que assassinei meu pai.
JULIÃO - Nunca procurei indagar se a morte dele foi natural ou não. O que é certo é que
Adélia justifica qualquer assassinato.
PEDRO - Então, eu sou um assassino!?
JULIÃO - Claro. Um parricida...
PEDRO - E tu um imbecil
JULIÃO - E você um traidor
PEDRO - E tu um... (Estão a ponto de bater-se)
ADÉLIA (INTERROMPENDO) - Já acabaram ou estão começando? (Os dois voltam-se
surpresos)
JULIÃO - O que significa isso?
ADÉLIA - Que ia provar um vestido novo, mas que não queria perder uma discussão tão
romântica e barulhenta!
JULIÃO ( A Pedro pelos trajes de Adélia) - Não achas esse traje indecoroso?
PEDRO - Não. É provocativo, nada mais
JULIÃO - E o que faz você ai parado?
PEDRO - Eu? Nada. Já disse o que pensava. É bastante.
ADÉLIA ( A JULIÃO ) - Escuta, rapazinho; queres dizer-me nestas abundantíssimas roupas
menores, se vê um centímetro mais de pele do que nos vestidos de noite?
JULIÃO - Mas tudo o que há de mais provocativo!
ADÉLIA - Então confessa que te provoca?
JULIÃO - Fico indignado... mas me provoca
ADÉLIA - E daí?
JULIÃO - Nada... Mas essa história de me "provocar", não pega... Isso é o que você queria:
Ter algum poder oculto sobre min, para que assim tivesse alguma coisa que ocultar a este
idiota (por Pedro), para você poder fazer tudo o que quisesse, sem temor das minhas censuras.
Mas enganasse, ouviu? Não adianta provocação porque ficarei sempre de guarda.
PEDRO ( Comicamente ) - Não sabes que fico agradecido ao favor que me fazes.
JULIÃO - Qual?
PEDRO - O de resistir e repreender as provocações de Adélia!'.
PEDRO - Se houvesse eu a teria comprado, mas já sabes que podes considerar esta como tua.
JULIÃO - E você permite que eu a leve para casa pôr um dia?
PEDRO - Claro. Mas não pôr muito tempo. Preciso estudá-la. Quando me passar o capricho,
ficarás com ela um mês, se o quiseres.
JULIÃO - Um mês é muito. Não quero abusar, uns dias, chegam. Dizemos ao Escariaza que
tenho outra igual e, cada vez que ele vá a casa de um, ou de outro, verá a mosca e pensará que
são duas. Vai se morder de raiva!...
PEDRO - Talvez, mais tarde, encontremos outro exemplar
JULIÃO - Você sim, poderá encontrar, porque tem uma sorte... haja visto o caso de Adélia.
PEDRO - Mas quem encontrou Adélia, fostes tu
JULIÃO - É, mas casou com você.
PEDRO - Sabes o que me disseram?
JULIÃO - O que ?
PEDRO - É segredo. Prometes não dizer nada, por que eu poderia ter um desgosto enorme, se
falasses...
JULIÃO - Prometido
PEDRO - Pois, parece que a famosa "barata japonesa", da coleção do Escoriasa
JULIÃO - O que tem?
PEDRO - Segredo, heim... É falsa !
JULIÃO - Não!
PEDRO - Sim. Parece que há, em Marselha, uma quadrilha de falsificadores internacionais de
insetos, que está ficando rica enganando aos naturalistas e aos museus. E o Escariaza comprou
a sua famosa barata em Marselha, e o Ribas me afirmou que é falsa...
JULIÃO - Coitado. Precisamos guardar segredo. Seria cruel...
PEDRO - É uma crueldade inútil porque ele não é mau rapaz...
Aparece Adélia com um maravilhoso vestido de escultura Grega (Clamide)
ADÉLIA - Que tal? (Os dois manifestam grande admiração)
JULIÃO - Divina!
PEDRO - Não se pode pedir mais!...
JULIÃO - Pode. Pode-se pedir que não seja casada com você.
ADÉLIA - Acham que agradarei?
JULIÃO - A quem ?
ADÉLIA - A todos, ninguém se veste assim, só para agradar aos da casa.
PEDRO - Estas divina
JULIÃO - Vem sentar-se aqui entre nós Cleopatra.
PEDRO (Zombando) - Tal qual como no colégio !...
JULIÃO - Então não pode ser Cleopatra ?
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JULIÃO - De camisola ?
PEDRO - De Clamide.
JULIÃO - Muito bem.
ADÉLIA - Claro que muito bem.
JULIÃO - Pois eu não consinto e para prová-lo rompo, agora mesmo a minha amizade com
vocês, e deixo-os para sempre. Vou para minha casa.
PEDRO - Se é a tua vontade...
JULIÃO - Claro que é minha livre e espontânea vontade
ADÉLIA - Idiota
JULIÃO - Não estou disposto a tolerar os seus insultos e suas maneiras ridículas. Se você
tivesse casado comigo, garanto que sua educação seria outra.
ADÉLIA - Mas, como tive a imensa sorte de que fosse assim, peço que não te metas no que
não é da tua conta, ouviste ?
JULIÃO - Está bem. Compreendi. Vou-me embora para sempre.
PEDRO - Não sejas idiota
JULIÃO - Não sou idiota, tenho alguma cousa que não tens : dignidade e pudor
PEDRO - Queres que te dê uma bofetada ?
JULIÃO - Em quem ? em mim ? uma bofetada ?
PEDRO - Perfeitamente e já. (Levanta-se e vai em direção a ele)
ADÉLIA (Interpondo-se) - Vamos acabar com essa tolice? (A Pedro) - senta-te
JULIÃO (Vai até a porta) - Adeus ! (Volta para apanhar a caixinha) - Levo a minha "Manta
Religiosa" e devo dizer que todos os insetos que se vendem no "Rastro", vem de Marselha
PEDRO (Furioso levantando-se) - Mentira ! Ouviste, mentira ! canalha !
JULIÃO - A mosca alpina que você comprou é falsa, vê-se logo. (Pedro vai atacar Julião, mas
Adélia o detêm e Julião sai. Pausa. Pedro vai até a caixa de insetos, tira uma lente da gaveta e
põe-se a observar a sua mosca)
PEDRO - Que infâmia! Dizer que ela é falsa! Vem vê-la!
ADÉLIA - Como poderá alguém pensar em falsificar essa porcaria
PEDRO - Não entendes nada disso. (Coloca a caixa em seu lugar)
ADÉLIA - Bem. Teremos que ir os dois, sozinhos, ao baile...
PEDRO - Claro... Se temos que ir ao baile...
ADÉLIA - Vejo que também não tens vontade de ir, não é ?
PEDRO - Nada disso. Acompanho-te com muito prazer mas, mais tarde. Está bem?
ADÉLIA (Sentando-se) - Como quiseres, e se isso te aborrece, não vamos, ou melhor, se
quiseres vou sozinha, com os Pedreiras.
PEDRO - Tens algum interesse "especial", em ir ?
ADÉLIA - Não. Me diverte. Este vestido é bonito e fará efeito...
mulheres, mas que as admirem todos, não "alguém em particular! E esse alguém é que me
estragaria todo o baile desta noite, se fossemos...
ADÉLIA - Isso quer dizer que não me levas?
PEDRO - Pois, não. E, muito menos eu só contigo.Com Julião, teria sido mais fácil, ele teria
administrado esse ciúme que eu não tenho eu não gosto de demonstrar, ainda que os ciúmes,
mesmo pequenos, fazem falta em um lar.
ADÉLIA - Pedro, tu és um homem de hoje, um homem do mundo, e não podes te sentir
ofendido porque há "alguém" que me admira.
PEDRO - Sou tudo isso, mas apesar dos pesares, o instinto me obrigará a quebrar o nariz
desse "teu" alguém na primeira ocasião.
ADÉLIA - E para isso deixamos que o Julião fosse embora!
PEDRO - Deixamos, não. Ele foi porque quis
ADÉLIA - E tu o permitiste, e de propósito, para depois, também não me querer levar ao
baile. Se estavas de acordo com ele... Deixaste que saísse, zangado, um homem que nos
adora...
PEDRO - A ti principalmente
ADÉLIA - Enganas-te, a ti te quer muito mais e demonstra-o todos os dias e as todas as horas
com o respeito que me tem.
PEDRO - Eu também gosto dele, mas está ficando insuportável, e ainda me vem com aquele
insulto de última hora...
ADÉLIA - Qual? O dessa mosca horrorosa?
PEDRO - O tom que empregou e a calunia que significa. (Vai até a caixinha. Entra Julião.
Traz duas maletas) Que vens fazer aqui?
JULIÃO - Não estás vendo? Venho para ficar. Se pensam que ia deixar o campo livre para
que você tivesse todas as fraquezas e você (Por Adélia) - todas as liberdades, engana-se
redondamente. Trouxe estas duas maletas e a mala grande vem aí atrás
ADÉLIA - Vamos viajar?
JULIÃO - Vou instalar-me no quarto de hóspedes e não os perderei de vista um único
momento; tive que recorrer a este extremo para salvar esta casa
PEDRO - Pensei que havias saído zangado
JULIÃO - E sai...
PEDRO - Então porque voltaste?
JULIÃO - Voltei e muito mais zangado, mas tive que cumprir com meu dever. (Adélia e
Pedro desatam a rir) - Aqui tem a minha "Manta Australiana" e a "Mosca Varejeira do alto
Nilo". Com elas eu pago a minha hospedagem... generosamente...
PEDRO - Não sei se devo assassinar-te ou dar-te uma abraço... Decidirei isso mais tarde
JULIÃO - Sua "mosca alpina", é autêntica. O que eu disse foi para que você ficasse com
raiva.
ADÉLIA - Então vamos os 3 ao baile...
JULIÃO - Não. Pelo menos você não irá. Afinal o que vai ganhar indo ao baile? Que a
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admirem? Pois, coloque-se aqui.... no centro (coloca-a no centro da sala) - E agora, você vem
aqui, comigo (leva Pedro e umas cadeiras onde sentam os dois) ... Nós podemos admirá-la
mais que todo o mundo. Começa você, vamos...
PEDRO - Eu?... (Pausa) O que é que eu digo?
JULIÃO - Coisas agradáveis que signifiquem que jamais viu uma mulher tão bela e tão
atraente...
PEDRO - Isto é verdade. Nunca vi coisa igual
JULIÃO - Ninguém poderá admirá-la sem ficar louco de amor. Eu, por exemplo, sinto uma
angústia no peito, um tremor na garganta e um desejo de abraça-la...
PEDRO - Espera aí. Isso está parecendo a sério.
JULIÃO - Claro que é a sério. Só agora é que você deu por isso? (ela ri)
PEDRO - Ele tem razão. É a mulher mais deliciosa que jamais vi e não compreendo como seu
marido pode perder tanto tempo dessecando insetos, em vez de cobrir de beijos esses olhos e
comer-lhe a ponta do nariz.
JULIÃO - Ei! Espera ai. Isso está parecendo a série!
PEDRO - Claro que é a sério, mas eu tenho o direito.
JULIÃO - Mas tudo foi imaginado por mim, e agora você está aproveitando.
ADÉLIA - Nenhum me tira para dançar? (Os dois levantam, Pedro primeiro e dançam uma
valsa. Julião vai a um velho fonógrafo, dos de corneta grande, e põe um disco
PEDRO - Cada dia a quero mais, deixe de uma vez esse ridículo naturalista que é seu marido,
e venha comigo, viver uma aventura maravilhosa de amor.
ADÉLIA - Eu sou uma senhora e nunca deveria falar-me assim. Engana-se, tomando-me pelo
que não sou... (Pára o fonógrafo)
PEDRO _ O que foi?
JULIÃO - Este número já acabou e você tem que pôr outro disco
PEDRO - Era uma valsa curta demais.
JULIÃO - Vamos, vamos. Agora é a sua vez, maestro (Vai tirar Adélia enquanto Pedro põe o
disco e, de mansinho, sai da cena)
ADÉLIA - Não acha um pouco atrevido de sua parte, tirar uma senhora para dançar, sabendo
que marido está no baile?
JULIÃO - Sei, mas tenho que dançar com a senhora toda a noite, afim que os demais não
possam dançar...
ADÉLIA - Nem meu marido?
JULIÃO - Ele pouco me importa; dos detalhes de sua vida conjugal, o que menos me
preocupa é que dance, os demais é que me irritam
ADÉLIA - E porque supõe que gosto de dançar com o senhor?
JULIÃO - Porque sabe que a adoro e nada é mais valioso para uma mulher do que saber que
um homem morre por ela... sobretudo se morre sem esperanças
ADÉLIA (Espantada) - Ah! Sem esperanças de que?
JULIÃO - Sem esperança de ser o único homem de sua vida, o sonho de seus dias e de suas
noites, o testemunho de suas intimidades, e que tem direito a pagar suas contas
ADÉLIA - nem todos gostam muito disso
JULIÃO - Mas todos dizemos que é o que mais agrada, antes de que isso suceda
ADÉLIA - Então o senhor está enamorado?
JULIÃO - Até o último suspiro
ADÉLIA - E como sabe?
JULIÃO - Porque arrancaria um braço por sua causa, porque adoraria salvá-la de um incêndio
ou de um naufrágio, ou viver com a senhora numa ilha deserta
ADÉLIA - Tudo é catástrofes, nada mais. (Pára a música)
JULIÃO - O que houve?
PEDRO (Que no momento volta com uma champagne e 3 taças) - A música descansa para
que os convidados passem ao Buffet. Abre isso. Enquanto Julião abre a garrafa, Pedro traz a
famosa mesinha e as taças, para o centro da cena. A seguir aproxima uma cadeira a Adélia
que se senta, de frente para o público e ele a seu lado) - Garçom, mais rápido, vamos!
JULIÃO - Perdão, mas eu sou outro convidado. (Senta-se a esquerda e serve o champagne)
ADÉLIA (Olhando a mesa e rindo-se) - Esta sala de jantar deve ser freqüentada por gentinha
ordinária, porque somente um miserável seria capaz de deixar uma ponta de cigarro acessa
sôbre esta mesinha, queimando-a desta maneira...
JULIÃO - Deve ser o dono do restaurante, porque os convidados seriam incapazes de tal
coisa.
PEDRO - Ao contrário, como nesta casa não se escolhem os convidados e algumas vêem a
força, são eles, sem dúvida que queimam as mesas...
JULIÃO - Perdão! Eu não estava fumando nesse momento e tenho especial cuidado com esta
mesinha. Cousa que outros não tem...
PEDRO (Aborrecido) - Que outros?
ADÉLIA - Calma senhores, vamos beber a fim de que esta mesinha não volte a intervir,
jamais, nos trabalhos dos entomólogos... (Bebem os três)
JULIÃO - Pelo meu amor
PEDRO - Pelo meu amor
ADÉLIA - Pelo meu
PEDRO E JULIÃO - Qual é?
ADÉLIA - (coqueteando) - Os senhores não o conhecem. É um senhor de cara toda raspada e
lindo. Vamos dançar? (Julião corre para por um disco. Pedro dança com Adélia)
PEDRO - É uma delícia dançar com a senhora
ADÉLIA - Dentro de muito pouco tempo não poderei mais dançar
PEDRO - Porque? Não compreendo
ADÉLIA - Porque o médico me aconselhou a não o fazer
PEDRO - Que queres dizer?
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ADÉLIA - Logo mesmo... que seria perigoso... poderia ter uma tonteira repentina... (Pedro
para emocionado e a seguir, abraça-a bem forte, beijando-a sem deixar de dançar. Julião,
nervoso e invejoso, une-se a eles)
JULIÃO - Isso não. É abusar. O senhor não é um cavalheiro, não respeita esta senhora e vou
dar-lhe com uma luva na cara...
PEDRO - Terá coragem de fazer isso, a um futuro pai de família?
JULIÃO - Que é que você quer dizer?... (compreendendo) - É verdade, Adélia? (Adélia faz
que sim com a cabeça) - E eu que não sabia nada!
PEDRO - Eu também não
JULIÃO (Repentinamente enfurecido) De quem é que você suspeita? (Pedro lhe dá um
ponta-pé, Adélia ri as gargalhadas.
cai o pano enquanto Pedro persegue Julião, rindo e dando-lhe ponta-pés).
SEGUNDO ATO
Mesmo cenário e a única mudança é de alguns móveis "modern style". Desapareceu o quadro
ninfa e, no seu lugar, há uma pintura moderna cubista. Ficaram as cortinas e os "reps".
Estamos em 1925. Os dois cavalheiros não usam barbas, envelheceram 25 anos e do passado,
só ficou o bigode, o colarinho duro e os alfinetes de gravata; também calçam botinas; não
envelheceram demasiado - amadureceram - e bem. A afeição aos insetos triunfou em casa a
medida que a dona foi envelhecendo, e, há vitrinas com borboletas e bichos espetados nas
paredes, e o salão perdeu muito o seu aspecto, para converter-se em laboratório de trabalho
dos dois investigadores. Algum esqueleto de animal, e algum animal dissecado, aparecem, ao
em vez, em cima de algum móvel. O único móvel antigo que está bem visível, é aquela
mesinha dourada, que tanto preocupava Adélia no 1º ato.
Ao levantar-se o pano há, na mesinha, duas grandes caixas de insetos; na outra mesa, a direita
do ator, acha-se instala o Pedro, com pinças na mão; recompõe um inseto invertebrado em
más condições. Pelo fundo chega Julião, com outra caixa e uma carta que entrega a Pedro,
indo sentar-se, logo a seguir, na mesa da esquerda, pondo-se também a trabalhar a
recomposição, ajudado por pinças e por uma lente.
JULIÃO - Toma, é uma carta da garota. (Pedro abre a carta) ) O que diz ela?
PEDRO - Nada, que está passando bem e que tem muitas amigas.
JULIÃO - É que diz do marido?
PEDRO - Que passa o dia inteiro trabalhando na Embaixada e que só o vê a noite.
JULIÃO - Mau, mau.
PEDRO - Porque?
JULIÃO - Porque sim, porque uma mulher jovem e bonita, não deve andar sozinha e muito
menos num país estrangeiro, tememos - disse me disse - que coisa alguma.
PEDRO - Continuas sempre o mesmo idiota; antes tinhas ciúmes dá mãe; agora é da filha.
JULIÃO - Isso prova a minha limpeza moral.
PEDRO - Deixa essa preocupação para o marido; uma rapariga com 25 anos, casada não vai
ficar fechada dentro de casa todo o dia, esperando que o marido chegue da Embaixada. O que
importa é que se amem.
JULIÃO - Nunca te preocupaste com as tuas mulheres! Nem com a tua filha, nem com tua
esposa!
PEDRO - Nesse sentido não; nunca me deram motivos para isso.
JULIÃO - Razão demais para te preocupares, eu nunca deixei de ficar preocupado com
Adélia... (Levantando-se, levando algo preso, entre pinças, cruza a cena e põe esse algo na
mesa de Pedro) Toma esta assa, deve ser tua. E devo dizer-te que nem agora, sinto-me
tranqüilo a respeito de Adélia; sai todas as tardes. (Volta para sua mesa)
PEDRO - Sabes que não está passando bem; tenho que ir buscar o resultado dos exames e a
radiografia, que fizeram a semana passada.
JULIÃO - A mim me parece que mais uma enfermidade moral que propriamente física.
PEDRO - Todas as mulheres quando passam dos 45, começam a sentir outras coisas.
JULIÃO - Nem todas.
PEDRO - Todas as que foram bonitas, e que agradaram aos homens, tem essa enfermidade
que se chama "caminhar para a velhice", que consiste em descobrir uma ruga a mais cada
semana que passa, e ter que tingir os cabelos, com freqüência, e ver os moços lhe falarem com
respeito e, lhe chamarem, constantemente de "senhora"... Tudo isso enerva e incomoda....
JULIÃO - Então, não acreditas que ela nos engane?
PEDRO - Não, não acredito. Isto é, a ti, sim, ela engana.
JULIÃO - Só a mim?
PEDRO - Sim, somente a ti; e comigo...
JULIÃO - Foges sempre ao assunto; as coisas sérias te assustam.
PEDRO - As coisas sérias só deixam de ser sérias, quando ocorre um fato positivo, neste
caso, ainda não houve nada. Tens os escaravelhos dourados?
JULIÃO - Tenho reais, mas um deles está sem as patas. Pois eu não ponho as mãos no fogo
por ninguém.
PEDRO - Porque não conheces as mulheres o empresta-lhes sentimentos de homem. Podes
colocar-lhes as patas de um escaravelho vulgar, são iguais.
JULIÃO - Mas não são as suas e todo o mundo verá que são falsas. Não entendi bem o que
quisestes dizer, sôbre os sentimentos masculinos.
PEDRO - Pensa e verás. Porque Adélia iria nos enganar?
JULIÃO - Porque depois de tantos anos, aborreceu e gosta de outro. Dá-me uma asa de mosca
azul. Vae até Pedro com a pinça, pega a asa e volta)
PEDRO - Uma mulher decente, não engana o marido por esse motivo.
JULIÃO - Pode se deixar arrebatar no torvelhinho de um capricho. Deixa-me ver outra asa,
está é muito grande. (o mesmo jogo que antes)
PEDRO - Isso é o que chamo sentimento masculino. Um homem cede sempre a um
encantamento, a uma impressão forte, a um capricho, e no dia seguinte, nem se lembra, mas
uma mulher não faz isso, se não estiver muito segura de que há amor dos dois lados. As
mulheres não concebem o amor de um dia, crêem sempre que se entregam para toda vida.
JULIÃO - Por isso são as vezes, tão pesadas.
PEDRO - São melhores do que nós, tem mais pudor e vergonha. Tens pulgas?
JULIÃO - Estão na caixa pequena. Pode ser que tenhas razão, mas o caso é sério que quando
a gente está mais entusiasmado por uma mulher, e quando mais apreciamos suas qualidades,
morais e intelectuais, ela mesma destroe toda a admiração, tudo o que sentimos,
apaixonando-se por um imbecil.
PEDRO - Nem todas, tu ficaste solteiro...
JULIÃO - Engraçadinho!... mas é por pouco tempo.
PEDRO - Ótimo! Quando te casas?
JULIÃO - Muito breve; estava esperando que terminássemos esta coleção e também outro
negócio. Não há pressa.
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Edgar, Neville
ADÉLIA - Naturalmente, eu iria me divertir muito, não há dúvida. Teria que ficar presa e usar
um véu no rosto!
JULIÃO - Não fui eu quem te disse para pôr o véu que tens no rosto.
PEDRO - E diga-se de passagem, ele te vae lindamente; está linda com ele...
ADÉLIA - O véu dissimula a marcha do tempo, e oculta a falta de brilho nos olhos, sobretudo
as rugas, em volta deles...
PEDRO - Tudo isso embeleza-te ainda mais, e quanto a falta de brilho não é o teu caso, teus
olhos nunca brilharam tanto!
ADÉLIA - É que às vezes tenho febre.
JULIÃO - Então, por que não vais logo ao médico?
PEDRO - Agora mesmo. (Vai arrumando as suas coisas) Queres sair esta noite?
ADÉLIA - Há um baile de mascaras, mas já sei que não poso ir, porque não lhes agrada!
JULIÃO - Naturalmente. Recusamos levar-te.
PEDRO - Se fazes muita questão, eu irei contigo, mas na verdade, prefiro um divertimento
que acaba cedo. Queres ir a um teatro de variedades? A Argentinita está no Romea, e Raquel
canta "Milonguita" em espanhol.
ADÉLIA - Nada de tangos, acabo de ouvir a Spavena, e voltei com o coração despedaçado de
ver como a tratam mal as "chinas" dos pampas.
PEDRO - Bom. Faremos o que quiseres, mas, se for possível deitar-nos cedo, prefiro. Até
logo. Dá-lhe um beijo e sae. Adélia levanta o véu e vae sentar-se em uma poltrona)
ADÉLIA - Quem recebeu o correio?
JULIÃO - Eu.
ADÉLIA - E não havia outra carta, sem ser a de minha filha?
JULIÃO - Não sei.
ADÉLIA - Faz um esforcinho de memória...
JULIÃO - Não me lembro.
ADÉLIA - Procura nos bolsos, talvez haja uma carta para mim...
JULIÃO - Tira de má vontade, uma cara e lhe dá, furioso) - Estavas esperando, não? Vês?
Estavas esperando por ela! Por isso a guardei! Diga-me imediatamente de quem é. (Adélia
pega a carta, abre-a; Julião procura ler, sem ser visto, por cima do ombro dela, mas Adélia
percebe o jogo, e não o deixa ler)
ADÉLIA - Volta para os teus bichos.
JULIÃO - É LETRA DE HOMEM! É letra de Homem!
ADÉLIA - é letra de homem, com efeito. (Suspira, guarda a carta e deixa o envelope sôbre
uma mesa. Julião precipita-se para apanha-la, mas antes que o possa fazer, Adélia guarda-a)
Queres fazer o favor de ficar quieto e não meter o nariz nos meus negócios?...
JULIÃO - Deves dizer, nossos negócios. Acreditas que posso permitir que tenhas
correspondência secreta? Que passes todo o tempo na rua? Que não te interesses pelo nosso
trabalho?
ADÉLIA - Achas que estas porcarias que estão fazendo aqui, possam me interessar? Podes
crer que me sinto a vontade nesta casa, e especialmente nesta sala, que vocês converteram em
um laboratório de bichos!...
JULIÃO - Mas todas as vezes que sabemos que vamos ter visitas, ocultamos nossas caixas.
ADÉLIA - Justamente, é quanto há visitas, que um salão torna-se menos agradável, e eu gosto
do meu salão, para estar comodamente sentada, sem ter que manter conversa, nem dar atenção
a ninguém.
JULIÃO - E quem te impede?
ADÉLIA - Tudo isto, estou farta de bichos! Porque não tem outra mania? Porque não
colecionam moedas de ouro ou medalhas antigas? Alguma coisa agradável, bonita como...
nem sei... miniaturas, por exemplo.
JULIÃO - Nós não colecionamos apenas, investigamos; estamos fazendo um estudo
científico, que será publicado para o ano, e que vae fazer uma verdadeira revolução, não se
falará de outra coisa, verás.
ADÉLIA (ri) - Isso tem graça, e vou sentir não estar aqui na ocasião.
JULIÃO - O que estás dizendo?
ADÉLIA - Isso mesmo, que não estarei aqui.
JULIÃO - Diga-me imediatamente o que é que estás insinuando.
ADÉLIA - O que disse: que vou deixá-los, que preciso ir-me, preciso afastar-me daqui.
JULIÃO - Com o que escreveu a carta?
ADÉLIA - Talvez, ou talvez sozinha.
JULIÃO - E porque? O que vaes ganhar fazendo isso?
ADÉLIA - É muito difícil, para ti, compreendê-lo e, muito mais difícil explicá-lo a um
homem, porque os homens só concebem que uma mulher queira deixá-los, para ir com outro
homem; não vêem mais nada além, e não compreendem os motivos possíveis que possa ela
ter para querer ficar só.
JULIÃO - Mas, não tens nenhum motivo...
ADÉLIA - Nem meu marido, nem minha filha precisam de mim, Julião. Tenho mais de 45
anos, dentro em pouco terei 50 e logo 50 e tantos....
JULIÃO - Ninguém o diria. Não aparentas. Eu não te daria mais de 30.
ADÉLIA - Obrigada, mas o caso é que estou vivendo os últimos anos em que me possam
dizer galanteios, como o que acabas de me dizer, sem que seja ridículo ou demasiado cruel.
Estes anos que me restam para dissimular as rugas com um véuzinho e com a maquilagem,
são poucos. Muito breve estarei na idade em que, se não se perde a coqueteria, pelo menos
nos resignamos e nos deixamos ir, mansamente, até final, que algumas mulheres esperam
jogando cartas, outras fazendo obras de caridade, outras fazendo doces... Enfim, entregues a
todas essas ocupações passivas, que costumam dedicar-se as mulheres quando deixam o
serviço ativo.
JULIÃO - Que é o de apaixonar os homens...
ADÉLIA - Ou, pelo menos, de tirar-lhes a tranqüilidade, enamorá-los, interessá-los. O de
fazer com que a olhem, que as sigam, e que se levantem para ganhar cousas que lhes
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 20
Edgar, Neville
PEDRO - (Rindo) - Não, não vais morrer, nem tem coisa alguma; umas dorsinhas sem
importância.
JULIÃO - Não há nenhum perigo?
PEDRO - Nenhum, fiquem tranqüilo!
ADÉLIA - E qual é o regime que tenho que fazer?
PEDRO - Nenhum. Continua tua vida normal, sem preocupações, se feliz...
ADÉLIA - Que boa receita.
PEDRO (RINDO) - Pois são as receitas que dá este homem.
JULIÃO - Mas não receitou nenhum remédio, nenhuma injeção?
PEDRO - Uns analgésico, cada vez que sentir dor, e se necessário então, te dará umas
injeções.
ADÉLIA - O que dizer então, que vou piorar?
PEDRO - Não, de maneira alguma! Mas as dores tardarão algum tempo a desaparecerem;
enquanto isso não deves te aborrecer e levar uma boa vida.
ADÉLIA - Esse é o médico que me convém, é exatamente o que estava me fazendo falta.
(Adélia sai.) Os dois ficam um minuto em silencio, ao cabo de algum tempo Julião chega
perto de Pedro)
JULIÃO - E, o que te disse mais o médico?
PEDRO - (Tira do bolso um envelope azul e outros papéis. Acabrunhado) - Disse-me que está
perdida, e que não há mais remédio. Vê o diagnóstico. Lê.
JULIÃO (perplexidade dolorosa e comovida) - Perdida!
PEDRO - Sem esperanças! Ainda lhe restam 2 ou 3 meses de vida, no máximo! As análises
não deixam dúvidas. E não pode operar. Compreendes, Julião? Está morrendo! E em seguida
nos deixará sozinhos!!! (Pausa dolorosa. Julião abraça-se a Pedro chorando)
JULIÃO - Mas... Não há nenhuma probabilidade?
PEDRO - Deves imaginar como insisti... Consultei todos os especialistas. Este foi o último, e
não há remédio. - Vai deixar-nos! Já imaginaste Julião o que vai ser de nós, quando ficarmos
sós...? (emociona-se e chora também abraçado a Julião, separam-se logo e enxugam os olhos)
JULIÃO - Vamos fazer o impossível para que seja estes últimos meses que lhe restam de
vida, faremos tudo, até o sacrifício, que não tenha um momento de tristeza...! Vou já comprar,
com um pretexto qualquer, uma coisa que ela goste muito! Vamos nos arruinar por ela!
Vamos proporcionar-lhe toda a felicidade de que formos capazes...!
PEDRO - Isso mesmo, vamos dar-lhe tudo! Viveremos somente em razão deste últimos
messe; as últimas semanas que lhe restam, que seja ela a mulher mais feliz do mundo...!
JULIÃO - Vai ser preciso sacrificar-lhe nossa coleção de bichos; ela não gosta dela.
PEDRO - De acordo, vamos jogá-los pela janela, como se já estivéssemos fartos deles!
JULIÃO - Ótimo, ela ficará tão contente! Mas poderemos guardar os mais raros, os que tem
mais valor, a "mosca alpina", minha "manta religiosa", lembra-te? Aquela que achei, fazem
25 anos, os escaravelhos egípcios...
PEDRO - Não, não, não vamos guardar coisa alguma, jogaremos tudo fora, temos que fazer
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 22
Edgar, Neville
este sacrifício. (Pedro repõe a receita do médico no envelope e o guarda numa gaveta de sua
escravaninha e logo começa a pegar as caixas e a esvasiá-las pela janela, Julião ajuda-o nesta
operação. Neste momento Adélia vestida em trajes de viagem)
ADÉLIA - Que estão fazendo?
PEDRO - Pois nos convencemos de que estávamos perdendo nosso tempo com essa mania de
bichos, e que estamos fartos deles...
JULIÃO - Pois é, já não agüentamos mais, estamos jogando tudo fora, olha o que faço com
esta caixa de moscas...
(Faz uma pirueta e atira a caixa pela janela)
ADÉLIA (rindo) - És capaz de matar alguém...
PEDRO - É o pátio do Alhambra, não há ninguém (Adélia ri às gargalhadas) Há muito tempo
que não te ouvia rir assim! Que alegria!
ADÉLIA - Desculpem-me mas é tão cômodo ver que, repentinamente, vocês se deram conta
de que se aborreciam desta bicharada!
Pedro - Vamos, mariposas brancas. leve-as o vento! (comicamente atira-as)
JULIÃO - Quem quer ver voar o besouro de ouro, que os loucos acreditam ser um exemplar
único e belíssimo? (pega a caixa e joga, dá um suspiro e disfarça a cor vendo a caixa cair)
ADÉLIA - Então, não sejam bobos e crianças, não os joguem fora assim, É melhor guardá-los
no armário, porque podem voltar a interessá-los novamente....
PEDRO - Nunca mais.
ADÉLIA - Então, porque não dá-los ao trapeiro que passa por aí todos os dias?
JULIÃO - Isso nunca. Para que êle os vá vender no "Rastro"? Nunca. Vedelo-emos nós
mesmos. (amontoam as caixas sobre a mesa)
PEDRO - O caso é que temos que comemorar esta decisão, com uma grande festa e muitas
outras depois...
JULIÃO - Sem baile a fantasia...
PEDRO - Ou com ele, não importa! Ainda tens a tua famosa Clamide grega?
JULIÃO - Deve estar muito apertada...
ADÉLIA - O que? Se não engordei nem uma grama?!! Olha para minha cintura.
JULIÃO - Com licença da presidência (mede a cintura) Com efeito tem uma cinturinha de
abelha.
PEDRO - Sabes o que decidi? Vou pedir uma licença de 3 meses para que façamos uma
viagem. Iremos primeiro a Roma depois via Paris, com escaladas no Poiret, Paquint e depois
iremos ver a filha em Washington. Que achas?
ADÉLIA - Estupendo. Porém, caríssimo.
PEDRO - Na nossa idade temos que gastar o dinheiro que sobra, guardamos somente o
indispensável para garantir a velhice.
JULIÃO - Muito bem, e eu vou te dar um presente que desejava comprar há muito tempo.
PEDRO - E porque ainda não o fizeste?
JULIÃO (CÔMICO) - É que pensava dá-lo como presente de casamento, se tivesse enviuvado
e casado comigo, mas como tens uma saúde de ferro, que chega a ser insultante, decidi
comprá-lo hoje.
PEDRO - Então vai correndo. E tu, vai te vestir e vê se ficas bem bonita! Eu vou me ocupar
da entrada para o baile (sai correndo)
JULIÃO - Espero que agora, não penses mais em ir embora.
ADÉLIA - Porque?
JULIÃO - Tudo mudou. Pedro só pensa em distrair-se, viste as viagens que preparou,
justamente as que querias fazer...
ADÉLIA - Pelo, que vejo não me compreendeste bem
JULIÃO - ROMA, Paris....
ADÉLIA - Mas só... sozinha... independente, livre, tendo a ilusão de viver outra vida.
JULIÃO - Pois olha, sabes de uma coisa: faz o que bem entenderes, o principal é que sejas
feliz.
ADÉLIA - Aproveita a minha viagem para casar-te com Tereza.
JULIÃO - Me casarei quando tudo estiver acabado.
ADÉLIA - O que queres dizer com isso?
JULIÃO - Quando estiveres tranqüila, feliz, sem idéias de imprevistos.
ADÉLIA - Ora, quando eu me resignar a ser velha, não é? Como essas criancinhas, cujos pais
não lhes querem dar os brinquedos guardados até que fiquem crescidos.
JULIÃO - Pois vou te deixar brincar com um presente que te vou dar, que vais ficar
louquinha. Vai te vestir, porque volto logo com ele. Penso que gostarás do que vi na vitrina
estas últimas semanas e...
ADÉLIA - Julião!... Diga-me já o que é?
JULIÃO - Nunca. Vaes vê-lo. Põe-te bonita e nada de escrever cartas de adeus. Volto já.
(Adélia, fica um momento sem saber o que fazer, passeia de um lado para o outro, meditando
e logo, num arranque, vae até ao escritório, pega uma folha de papel e escreve uma linhas.
Procura um envelope e não encontra. Abre uma gaveta e vê o envelope do médico, como não
tem outro, vai utilizá-lo, mas os exames chamam-lhe a atenção, Tira o diagnóstico e lê. O
golpe faz com que fique rígida, somente sua expressão muda, o corpo todo está inerte. Ouve
um barulho, torna a pôr o envelope na gaveta. Lentamente rasga a carta que havia escrito e vai
a um espelho, olha-se e observa-se longamente, até que chega Pedro)
PEDRO - Podes ir vestir, arranjei as entradas para o baile.
ADÉLIA - Julião não quererá...
PEDRO - Há de querer! Verás que nos vamos divertir...
ADÉLIA - Tu nunca gostastes de bailes.
PEDRO - De fantasia e contigo? Não há nada que me possa agradar tanto. Como irás vestida?
(Abraça-a e leva-a até o sofá, onde se sentam abraçados)
ADÉLIA - Não sei, não tenho roupa, somente aquele traje de grega que fiz quando era moça.
PEDRO - E que nunca chegaste a estrear.
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 24
Edgar, Neville
PEDRO - Certamente, perdemos nossas Colonias por culpa dele; é tão distraído e depois deve
ter passado todo o tempo pensando em ti.
ADÉLIA - E enquanto isso, tu...
PEDRO - Lembraste...? que terá acontecido com aquele tilburezinho "Simon", com o
cocheiro velhinho e tão simpático?
ADÉLIA - Ainda sinto o cheiro do interior do Tilbury, era horrível, mas embriagava-me nos
nossos passeios.
PEDRO - Vou procurar um tilbury igual aquele, para nos levar a passear lentamente, ao
entardecer, pelo Retiro.
ADÉLIA - Pensarão que somos namorados clandestinos.
PEDRO - Isto será muito melhor, se souberem que somos casados e que temos uma filha
casada, não compreenderão nada.
ADÉLIA - Iremos também as festas verbenas. subiremos nos animaiszinhos do carrossel.
PEDRO - Quando eu estava embaixo e tu encima, não nos podíamos falar, lembra-te?
ADÉLIA - Porque teimavas em subir nos porquinhos que eram muito baixos, e depois, havia
sempre tanto barulho!
PEDRO - E o que eu queria dizer-te, dizia-o muito melhor quando voltávamos no portão a tua
casa, na despedida. (beijam-se) - Repetiremos a viajem de núpcias. Paris, aquele hotel em
frente ao Sena. Estávamos embriagados pelo "Bairro Latino"
ADÉLIA - Éramos um pouco pedantes, desprezávamos os boulevares. Íamos aos cafés de
Montparnasse. Tornaremos a ir agora...
PEDRO - E com muito mais certeza de podermos pagar a conta. Lembras-te daquele aperto
que tivemos, porque nosso dinheiro não chegava?
ADÉLIA - E, quando chegou, fomos para Veneza e Florença, o Siena e Roma.
PEDRO - Iremos novamente. Mas agora será uma viagem mais proveitosa; naquela época só
vimos as estações e os hotéis.
ADÉLIA - e os apuros que nos vimos, na volta, para explicarmos o que tínhamos visto?
PEDRO - Eu, pelo menos, não havia deixado de contemplar a coisa mais bonita do mundo,,,,
(Pára um momento em silencio apertando o braço) - Minha filha... teus olhos estão rasos
d'água.
ADÉLIA - E os teus também, somos dois loucos... é a felicidade...
PEDRO - Vamos percorrer novamente todo o caminho desde já.
ADÉLIA - Quanto tempo vai durar a viagem?
PEDRO - Alguns meses.
ADÉLIA - Alguns meses... sim. E voltaremos logo para aqui, afim de descansarmos; vai
coincidir com as férias de Carmem, e assim poderei vê-la antes
PEDRO - Antes de que?
ADÉLIA - Antes que ela se vá novamente...
PEDRO - E que faremos com Julião, durante a viagem? Isso agora é outra coisa; será difícil
TERCEIRO ATO
O mesmo cenário, porém de uma desoladora mudez moderna. Do tempo antigo só ficou o
sofá. a mesita e as duas mesas de trabalho. Bem visível, um grande retrato de Adélia, que
preside vida da casa. Pelas paredes triunfa a coleção de insetos mais ou menos reconstituída.
Eles perderam um pouco de cabelo e os que lhes ficaram, estão brancos.... Não teem mais
bigode. Vestem paletó, meio veston de chambre, sôbre as calças.
JULIÃO - O que diz a garota?
PEDRO - Não gostarias de que não a chamássemos de garota?
JULIÃO - Por que?
PEDRO - Porque se chamamos a mãe da garota, a filha teríamos que chamar de garotinha, e
vão pensar que somos loucos.
JULIÃO - A neta chamamos Adelita, e a mãe, chamaremos, como sempre o fizemos, garota.
PEDRO - Pois acho que devamos chamá-la Carmem, que é o seu nome, e podemos chamar a
garota de Adelita.
JULIÃO (Depois de uma pausa) - E queres dizer-me o que ganhamos com isso?
PEDRO - Ó homem, evitar confusões
JULIÃO - Já te confundiste alguma vez? (pausa)
PEDRO - Nunca.
JULIÃO - Eu gosto, de chamá-la por Adelita; quando volta do colégio e ouço a porta
fechar-se, não posso explicar o que sinto.
PEDRO - Cala-te, às vezes me parece que vou despertar-me de um sonho, e que tudo passou,
foi um pesadelo.
(Pausa)
PEDRO - Nunca
JULIÃO - Mas o que diz a garota?
PEDRO - O mesmo de sempre, festejos, jantamos... o aborrecimento de ter que dirigir
socialmente uma Embaixada, e ter que contar em que consiste uma tourada, e um porção de
estrangeiros que a ignoram, e tem que explicar-lhes também a utilidade das banderilhas, que é
uma coisa que nunca soube explicar bem. (pausa)
JULIÃO - Levem! É depois o estrangeiro não foi feito para moças solteiras, nós a educaremos
melhor do que eles!
PEDRO - Lembra-te que é maior, e que não somos os mais indicados para cuidar de uma
moça, que vai entrar para a sociedade. Adelita já tem os seus amigos, que são de outra
geração e nos consideram velhas carcaças.
JULIÃO - Tu estás mesmo velho
PEDRO (olhando-o) - Em compensação tu estás na flor da idade.
JULIÃO - Não quero que Adelita se vá.
PEDRO (melancólico) - Nem eu, mas que queres, ela também irá, vão-se todas, é nossa sina.
Pelo menos estas, as veremos de vez em quando.
(pausa)
JULIÃO - Mãe e filha não se parecem.
PEDRO - Adelita é o retrato de sua avó. As vezes me assusta.
JULIÃO - Fisicamente sim, o caráter porém não se compara; Adelita não tem o gosto pela
vida que tinha a avó, a sua inquietude, seus desejos de ver coisas, de viajar...
PEDRO - A outra era nossa esposa, e essa é nossa neta.
PEDRO - Pois essa também se irá...
JULIÃO - Lutarei até o fim, terão que passar por elas do teu cadáver...
(pausa)
PEDRO - Que havemos de fazer... (pausa) - Se tivesses casado com Tereza, não estarias tão
só agora.
JULIÃO - Teria sido uma traição, uma deserção e depois...
PEDRO - O que? (levantado-se e pega um inseto) - Olha como fica o cienpies coxo da Índia
JULIÃO - É, está bem, mas tem uma expressão triste.
PEDRO (Voltando a sua mesa) - Como queres que esteja um cienpies, quando está coxo? E
depois o que?
JULIÃO - E depois em companhia de Tereza não poderia recordar a pessoa que tu sabes, todo
o tempo; e não teria suportado a idéia de te saber aqui, sozinho, sem ter com quem falar dela...
Assim, vivendo juntos, temos a impressão que ela não se foi de todo. (pausa)
PEDRO - Para mim a vida teria sido muito difícil. Mas com isso, sacrificaste seu destino.
JULIÃO - Não, sacrifiquei a anedota, o quotidiano, a realidade.... Mas nada pode ser
comprado ao que conversamos; a esta atmosfera que parece estar impregnada de sua
respiração e o eco de suas últimas palavras, a esta lembrança constante que persiste nesta
casa, mesmo quando não falamos nela.
PEDRO - Sobretudo quando nos calamos durante o trabalho (Pausa)
JULIÃO - Não devíamos ter mudado os enfeites desta sala.
PEDRO - Pela garota tínhamos que faze-lo. ela recebe seus amigos, e gosta de ter um salão
melhor de que tínhamos antes.
JULIÃO - Era feio, feio, mas entre aqueles móveis e aqueles insetos fomos felizes (pausa) -
como teria sido ela depois de velha?
PEDRO - Só cedeu no último momento, na hora de se ir embora. Até então, sua presença foi
sempre forte, positiva... (Toca a campainha, os dois velhos se voltam e ficam imóveis,
esperam um milagre. pausa)
JULIÃO - É Adelita.
PEDRO - Espero sempre um milagre!
(entra Adelita vestida de colegial. dá um beijo em cada um)
ADELITA - Alô queridos. Pronto. Já completei!
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 29
Obrigado pelo amor de vocês
JULIÃO - O que?
ADELITA - Seis anos e um dia! Acabou-se o colégio. Fazer-se letras góticas, e ter que saber
que o Tejo passa por toledo!... vou tirar essa roupa e vou dá-la ao primeiro pobre que passar
na rua.
PEDRO - Não lhe darão esmolas se se veste com ela.
JULIÃO - Mas que história é essa de não ter mais colégio?
ADELITA - Fácil de compreender. hoje foi o último dia de cursos, e, ao revelar, a mesa
examinadora, que 5 multiplicado por 6, são 25, e que o Sena passa por Paris, deram-me
liberdade, o que equivale dizer que estou pronto para o casamento.
PEDRO - Pois vem aqui, quero te felicitar. (Abraça-a) - Vamos a ver, e qual é o rio que passa
por Londres?
ADELITA - O Ebro, mas ali o chamam Tamisa.
PEDRO - E por Madrid?
ADELITA - Um riozinho sem importância.
PEDRO - Não ouviste falar no Manzanares?
ADELITA - Sim, mas muito pouco
JULIÃO - O que trazes aí?
ADELITA - Um presente para voces, foi o professor de História Natural quem m'o deu, é um
dos admiradores de vocês...
(Dá um embrulho a Pedro) - Também tem insetos, pelo menos o seu paletó parece estar
sempre cheio de bichos.
JULIÃO - Deixa que eu abro, tu és um desastrado.... (Abrem e ficam bobos)
PEDRO - Olha, velho!
JULIÃO - Sim, parece...! (Pedro dá um beijo em Adelita, Julião dá-lhe outro)
ADELITA - Eu os devolverei ao professor, em nome da ciência! Mas o que se passa?
PEDRO - Se fôr a môsca alpina, acreditas que seja a mesma?
JULIÃO - Nós a jogamos pela janela no pátio, e dentro de sua caixa, logo, é bem possível que
a porteira a tenha encontrado e a tenha vendido.
PEDRO - E, se fosse a mesma...! (Armados de lentes examinam o bicho sem fazer caso de
Adelita)
JULIÃO - Se não é a mesma, pelo menos se parece de maneira assombrosa. chega até a ter
um ar de família. É claro que as moscas se parecem bastante entre sí.
ADELITA - Não chegou nenhuma carta?
PEDRO - Uma de tua mãe, dizendo que vem no fim do mês.
JULIÃO - Para levar-te com ela. Que vaes fazer?
ADELITA - Que queres que eu faça?
PEDRO - Fará o que sua mãe quiser.
ADELITA - Não fala da minha encomenda?
JULIÃO - Já sei que não poderia puxar por um piano de um lado para o outro, mas também os
jovens quando querem fazê-lo, chamam os especialistas em mudanças.
PEDRO - Pois eu me sinto velho.
JULIÃO - Em que o notas?
PEDRO - Em que os insetos já começam a pesar, a fatigar, e que não consigo voltar a
interessar-me como antes, pelas asas de moscas alpinas e, também em que, de vez em quando,
passam pela minha cabeça idéias que me dão vontade de pegar todas as caixas e atirá-las ao
pátio, como da outra vez... (Há um silêncio) - O que achas disso?
JULIÃO - Não falemos dessas coisas, porque comigo se passa o mesmo (Os dois deixam suas
moscas e vão ao centro da cena, sentar-se no sofá)
PEDRO - Já pensastes, Julião, que por esta estúpida paixão pelos insetos, perdemos horas e
horas de estarmos ao lado do que mais queríamos na vida? ... como deve ela rir-se de nós...
(Pausa) - Nada é mais confortador, para nós do que pensarmos que ela nos contempla e nos
espera... Talvez por isso, acarinhamos e festejamos tanto a neta.
JULIÃO - Mas Adelita, não há dúvida é bem diferente dela.
PEDRO - Como queres que seja igual, se é criada em um mundo tão distinto?
JULIÃO - O mundo é melhor do que o de antes, mais cômodo e menos mal intencionado.
PEDRO - É possível. Com menos distinção de classe, mais humanidade entre os seres, talvez
seja ele mais fácil. É bem possível! Lembra-te do entusiasmo de Adélia pelas viagens, pelos
bailes, para ir-se pelo mundo sozinha? Era a reação natural em uma sociedade que achava mal
e degradante que uma mulher se apartasse, três metros que fosse, do seu marido...
JULIÃO - Antes, um baile era um acontecimento, hoje é trivial, o de todos os dias... E a
Ópera?
PEDRO - Lembra-te como eram pesadas?
JULIÃO - Os entreatos eram divertidos!
PEDRO - Mas, o mais divertido era não ir (Pausa)
JULIÃO - Queres que te diga a verdade? O dia em que Adelita nos deixar, aí sim, eu
começarei a me sentir velho de verdade. (PAUSA)
PEDRO - Pois também te digo outra coisa. Estou cansado e aborrecido de tudo e vou
meter-me na cama...
JULIÃO - Eu também, não posso mais. A tua conversação, claro que não é sempre, mas as
vezes, me dá sono (Toca o telefone e antes que chegam os velhos até ele, aparece Adelita,
correndo, em robe de chambre, meia vestida, e atende)
ADELITA - Sim?... Sou eu Adelia...
JULIÃO (Sotto voce) - Adelita!
ADELITA - Que atrocidade!... Sim, estava muito bem esta manhã... E o que diz o médico?
Talvez não seja nada... E não pensas que ficará melhor? ... Paciência, que vamos fazer?... Não
sei, a esta horas! ... Telefonarei a Mercedes... Como? Está fora? ...Então! ...Não. Não tens
culpa... Não faltarão bailes... Bem, bem. Espero que me dês notícias de tua mãe... Nada. Não
te preocupes... Adeus e Obrigada! (desliga) - foi-se o baile! ...Pirô!...
JULIÃO - Bonita palavra, pirô... Escrita nas letras góticas do teu colégio, deve ser deliciosa.
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Obrigado pelo amor de vocês
de outros tempos e, não sei se é o vestido, mas também me sinto de outra época.
PEDRO - Adélia!
ADELITA - Isso. Não me chamem mais de Adelita, porque já não sou mais uma menina.
Chama-me Adélia, gosto muito mais.
JULIÃO - Adélia! Adélia!
ADELITA - Não. Assim, não. Não se ponham tristes. É preciso ir alegres ao baile. Vamos
beber para ficarmos tontos? (Serve o champagnhe nas 3 taças e brindam)
PEDRO - Pelo meu amor!
JULIÃO - Pelo meu amor!
ADELITA - Pelo meu!... (Os dois ficam mudos de assombro)
JULIÃO - (Repentino, como em outros tempos) E quem é?
ADELITA - UM senhor com barbas e outro de cara raspada!... E... obrigada... (Abraça-os)
ELES - Obrigada, porque? (Deixam as taças e dançam enquanto a música se acentua)
ADELITA - Obrigada pelo amor de vocês... obrigada.
PANO