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de Harold Pinter
PERSONAGENS
DEELEY
KATE
ANNA
Todos com quarenta e poucos anos
CENÁRIO
ATO UM
SILÊNCIO
ANNA É.
DEELEY Às vezes, eu pego seu rosto nas mãos e fico olhando.
ANNA É mesmo?
DEELEY É, fico olhando, com o rosto dela nas mãos. Depois eu solto, retiro as mãos e a cabeça fica
flutuando.
KATE Minha cabeça está bem firme. Grudada no meu corpo.
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DEELEY (PARA ANNA) Ela sai flutuando por aí.
ANNA Ela sempre foi uma sonhadora. (SENTA-SE) Às vezes, caminhando no parque, eu dizia pra ela:
“Você está sonhando, acorda, o que é que você está sonhando?” E ela virava pra mim, ajeitava o
cabelo, e me olhava como se eu fizesse parte do seu sonho.
PAUSA
Um dia, ela virou pra mim e disse: “passei a sexta-feira dormindo”. Não, não passou não, eu disse,
o que é isso? “Passei a sexta feira dormindo” ela dizia. Mas hoje é sexta-feira, eu disse, foi sexta-
feira o dia inteiro, agora é sexta-feira à noite, você não passou a sexta feira dormindo. “Sim,
passei, dormi toda a sexta-feira, hoje é sábado”.
DEELEY Você quer dizer que ela, literalmente, não sabia que dia era?
ANNA Não.
KATE Sabia sim. Era sábado.
PAUSA
DEELEY Em que mês estamos?
KATE Setembro.
PAUSA
DEELEY Estamos forçando-a a pensar. Você deveria vir mais vezes. Você é uma influência saudável.
ANNA Mas sempre foi uma companhia encantadora.
DEELEY Era divertido morar com ela?
ANNA Delicioso.
DEELEY Linda de olhar, deliciosa de conhecer. “Lovely to look at, delightful to know.”
ANNA Ah, essas músicas. Costumávamos ouvir todas, durante horas, tarde da noite, deitadas no chão,
lindas e velhas canções. Às vezes ficava olhando pra ela, ela nem percebia que eu a contemplava.
DEELEY Contemplava?
ANNA O quê?
DEELEY A palavra “contemplar”. Não se ouve muito.
ANNA Pois é, nem percebia. Estava totalmente absorta.
DEELEY Em “lovely to look at, delightful to know”?
KATE (PRA ANNA) Esta música eu não conheço. Nós tínhamos?
DEELEY (CANTANDO PRA KATE) “You´re lovely to look at, delightful to know...”
ANNA Tínhamos sim, claro. Tínhamos todas.
DEELEY (CANTANDO) “Blue moon, I see you standing alone...”
ANNA (CANTANDO) “The way you comb your hair...”
DEELEY (CANTANDO) “Oh, no, they can´t take that away from me...”
ANNA (CANTANDO) “Oh, but you´re lovely, with your smile so warm...”
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DEELEY (CANTANDO) “I´ve got a woman crazy for me. She´s funny that way.”
LEVE PAUSA
ANNA (CANTANDO) “You are the promise kiss of springtime...”
DEELEY (CANTANDO) “And someday I´ll know that moment divine,
When all the things you are, are mine!”
LEVE PAUSA
ANNA (CANTANDO) “I get no kick from champagne,
Mere alcohol doesn´t thrill me at all,
So tell me why should it be true...”
DEELEY (CANTANDO) “That I get a kick out of you?”
PAUSA
ANNA (CANTANDO) “They asked me how I knew
My true love was true,
I of course replied,
Something here inside
Cannot be denied.”
DEELEY (CANTANDO) “When a lovely flame dies...”
ANNA (CANTANDO) “Smoke gets in your eyes”.
PAUSA
DEELEY (CANTANDO) “The sight of midnight trains in empty stations.”
PAUSA
ANNA (CANTANDO) “The park at evening when the bell has sounded...”
PAUSA
DEELEY (CANTANDO) “The smile of Garbo and the scent of roses...”
ANNA (CANTANDO) “The waiters whistling as the last bar closes...”
DEELEY (CANTANDO) “Oh, how the ghost of you clings...”
PAUSA
DEELEY Não fazem mais músicas assim.
SILÊNCIO
Bem, o que aconteceu comigo foi o seguinte. Me enfiei num pulgueiro pra assistir “Odd Man Out”.
Era de tarde, um calor desgraçado e eu não tinha pra onde ir. Me lembro da sensação de já
conhecer aquele bairro e de repente me lembrei que foi justamente por ali que meu pai comprou
meu primeiro triciclo, na verdade o meu único triciclo. Pois então, tinha essa loja de bicicletas e
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um pulgueiro passando “Odd Man Out”, e na sala de espera duas lanterninhas, uma delas alisava
os seios e a outra dizia “sua vagabunda”, e a que alisava os seios murmurava “hm-hm”
sensualmente pra colega, aí eu entrei, o calor era absurdo e eu naquele fim de mundo assisti a
“Odd Man Out”, e achei Robert Newton fantástico. Eu ainda acho Robert Newton fantástico, seria
capaz de cometer um crime por ele ainda hoje. E só havia mais uma outra pessoa no cinema, só
uma única pessoa no cinema inteiro, e aí está ela. Lá estava ela. Lá estava ela, no escuro, imóvel,
mais ou menos diria eu no centro absoluto da platéia. Eu estava na lateral e fiquei. Quando acabou
o filme eu saí e apesar de James Mason já estar morto reparei que aquela lanterninha parecia
exausta, e fiquei por instantes parado ao sol, talvez pensando em alguma coisa quando aquela
garota saiu e, acho, olhou em volta e eu disse: Robert Newton não é mesmo fantástico?, Ela disse
qualquer coisa, sei lá o quê, mas olhou pra mim, e eu pensei: Meu Deus, está no papo, fisguei, que
cantada fácil, e quando nos sentamos num bar ela olhou pro copo, depois pra mim, e disse que
achou Robert Newton perfeito. Portanto, foi Robert Newton que nos uniu, e só Robert Newton
pode nos separar.
PAUSA
ANNA F.J. McCormick também estava ótimo.
DEELEY Eu sei que F.J.McCormick também estava ótimo. Mas não foi ele que nos uniu.
PAUSA
Então você viu o filme?
ANNA Vi.
DEELEY Quando?
ANNA Oh... faz muito tempo.
PAUSA
DEELEY (PRA KATE) Lembra desse filme?
KATE Lembro. Perfeitamente.
PAUSA
DEELEY Acho que não me engano quando digo que, da vez seguinte que nos encontramos, ficamos de mãos
dadas. Eu segurei sua mão fria enquanto ela caminhava ao meu lado, e disse alguma coisa que a
fez rir, e ela olhou pra mim, não foi? Ajeitando o cabelo e foi aí que achei que ela era ainda mais
fantástica que o Robert Newton.
PAUSA
E depois, numa etapa um pouco mais adiante, os nossos corpos nus se juntaram, o dela era frio,
quente, muito agradável, e eu me perguntei o que o Robert Newton acharia disso. O que ele acharia
disso, eu me perguntava, enquanto tocava profundamente todo o corpo dela.
(PRA ANNA) O que você acha que ele teria achado?
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ANNA Eu nunca encontrei o Robert Newton, mas acho que sei o que você quer dizer. Tem coisas que a
gente lembra, mesmo que não tenham acontecido. Eu me lembro de coisas que talvez não tenham
acontecido, mas como eu me recordo delas então elas aconteceram.
DEELEY O quê?
ANNA Um homem chorando no nosso quarto. Uma noite eu cheguei em casa e ele estava chorando, as
mãos cobrindo o rosto, sentado na poltrona, todo encolhido na poltrona e Kate sentada na cama,
com uma xícara de café, e ninguém falava comigo, ninguém falava, ninguém olhava pra mim. Eu
não podia fazer nada. Tirei a roupa, apaguei a luz e me enfiei na cama, as cortinas eram finas, a luz
da rua entrava, Kate parada, sentada na cama, o homem soluçava, as sombras se mexiam na
parede, uma brisa balançava a cortina e mais nada, só soluços, de repente parou. O homem veio até
mim, rápido, olhou pra mim, mas eu não tinha absolutamente nada a ver com ele, nada.
PAUSA
Não, não, está tudo errado... ele não veio rápido... está errado... veio... bem lentamente, estava
escuro, e parou. Ficou parado no meio do quarto. Olhou pra nós duas, pra nossas camas. Depois
virou pra mim. Chegou perto da minha cama. Se curvou sobre mim. Mas eu não tinha nada a ver
com ele, absolutamente nada.
PAUSA
DEELEY Que homem era esse?
ANNA Depois de um tempo eu ouvi ele sair. Ouvi bater a porta da frente, passos na rua, depois o silêncio,
depois passos se afastando, e depois o silêncio.
PAUSA
Mas então, mais tarde, naquela noite, eu acordei, olhei pra cama dela, e vi dois vultos.
DEELEY Ele tinha voltado!
ANNA Ele estava deitado no colo dela, na cama dela.
DEELEY Um homem, no escuro, no colo da minha mulher?
PAUSA
ANNA Mas de manhã cedo... ele já tinha ido embora.
DEELEY Graças a Deus.
ANNA Era como se nunca tivesse vindo.
DEELEY Mas veio. Foi embora duas vezes e voltou uma.
PAUSA
Puxa, que história ótima.
PAUSA
Esse cara como era?
ANNA Nunca cheguei a ver direito seu rosto. Não sei.
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DEELEY Mas ele era - ?
(KATE LEVANTA-SE. VAI ATÉ UMA MESINHA PEGA UM CIGARRO DE UMA CAIXA E ACENDE. OLHA
PARA ANNA)
KATE Vocês falam de mim como se eu estivesse morta.
ANNA Não, não, você não estava morta, você era tão alegre, tão animada, vivia rindo -
DEELEY É sim. Eu mesmo fiz você sorrir, não foi? Quando andávamos de mãos dadas. Você abria um
enorme sorriso.
ANNA É, ela era tão... animada.
DEELEY Animada não é bem a palavra. Quando ela sorria... como posso dizer?
ANNA Seus olhos se iluminavam.
DEELEY Não teria sido capaz de me expressar tão bem.
(DEELEY FICA DE PÉ, VAI ATÉ A CAIXA DE CIGARROS, APANHA-A, PEGA UM, SORRI PRA KATE. KATE
OLHA PRA ELE, OBSERVANDO-O ENQUANTO ELE ACENDE O CIGARRO. TIRA A CAIXA DAS MÃOS
DELE, VAI ATÉ ANNA E OFERECE-LHE UM CIGARRO. ANNA ACEITA)
ANNA Você não estava morta. Jamais. De forma alguma.
KATE Disse que vocês falam de mim como se eu estivesse morta. Agora.
ANNA Como pode falar uma coisa dessas? Como pode falar uma coisa dessas comigo aqui, olhando pra
você, vendo você tão perto, me olhando desse jeito tão tímido -
DEELEY Parem com isso!
PAUSA
(KATE SENTA-SE. DEELEY SERVE UM DRINK).
DEELEY Na época eu ainda estudava, brincava com meu futuro, me perguntava se devia me prender a uma
garota recém-saída das fraldas, cuja única virtude era o silêncio, mas sem nenhum senso de
firmeza, nenhum senso de decisão, fiel apenas aos ventos pelos quais se deixava levar, mas não
eram os ventos e certamente não os meus ventos, ventos que só ela compreendia embora não
tivesse compreensão alguma, pelo menos como eu compreendo. Uma clássica figura feminina, eu
me dizia, ou seria uma clássica postura feminina, dum jeito ou de outro já era uma coisa usada.
PAUSA
Essa era a minha opinião na época. Quero dizer, era a minha mais categórica opinião na época.
Vinte anos atrás.
SILÊNCIO
ANNA Quando ouvi dizer que Katey tinha se casado, vibrei de alegria.
DEELEY Como foi que soube?
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ANNA Um amigo.
PAUSA
Sim, vibrei de alegria. Porque sabia que ela jamais faria uma coisa inconseqüente, descuidada. Tem
gente que joga uma pedra no rio pra ver se a água está fria, outros, poucos, esperam as ondas pra
só depois se atirar no rio.
DEELEY Tem gente que faz o quê? (PRA KATE) O que foi que ela disse?
ANNA E eu sabia que Katey não só esperaria pelo primeiro vestígio de onda, mas até que as ondas se
multiplicassem e tomassem toda a superfície revelando em cada molécula de água a profundidade
do rio, e mesmo assim, mesmo certa do que estivesse acontecendo ainda assim seria capaz de não
se atirar. Só que dessa vez ela se atirou e aí eu tive certeza que tinha se apaixonado e fiquei muito
contente. E deduzi que o mesmo estava acontecendo com você.
DEELEY Quer dizer as ondas?
ANNA Se prefere chamar assim.
DEELEY Não sabia que isso também acontecia com os homens.
ANNA Com alguns acontece. Eu acredito.
DEELEY Entendo.
PAUSA
ANNA Depois quando eu descobri que tipo de homem era você, fiquei ainda mais contente pois sabia do
interesse de Katey pelas artes.
KATE Estive uma vez interessada em artes, só que agora não consigo me lembrar em qual.
ANNA Não vai me dizer que esqueceu dos dias que passávamos nos museus? E como explorávamos
Londres, as igrejas antigas, os velhos prédios sobreviventes aos bombardeios? Oh, meu Deus.
Então. E os jornais de domingo! Impossível arrancar das mãos dela a sessão de crítica. Lia tudo e
depois insistia que fôssemos a tal galeria ou ver tal peça ou a um concerto, mas era sempre tanta
coisa, tanto coisa pra ver e ouvir em Londres naquela época, que às vezes nem dava, ou por falta
de tempo ou de dinheiro. E lembro, por exemplo, um domingo ela se virou com o jornal na mão e
disse, olha aqui, vamos depressa, depressa, vem comigo depressa e foi só o tempo de pegar a
bolsa, tomamos um ônibus e fomos parar num bairro distante e desconhecido e quase sozinhas
assistimos a um excelente filme chamado “Odd Man Out”.
SILÊNCIO
SILÊNCIO
ANNA (CALMAMENTE) Não vamos sair hoje à noite. Não vamos a lugar nenhum hoje à noite. Vamos ficar
em casa. Eu cozinho qualquer coisa, você pode lavar o cabelo, pode relaxar, podemos ouvir uns
discos.
KATE Não sei. A gente podia sair.
ANNA Por que você quer sair?
KATE Podíamos dar uma volta pelo parque.
ANNA O parque é um lugar sujo à noite, uma gente horrível, homens atrás das árvores, mulheres com
vozes terríveis, que gritam quando a gente passa e vultos que saem detrás das arvores e arbustos, e
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sombras por toda parte, e guardas, vai ser um passeio horrível, e o trânsito, o barulho do trânsito,
vai ver os hotéis, e você sabe que odeia portas giratórias, odeia, ver tudo aquilo, todas aquelas
pessoas nas luzes das recepções entrando, saindo, falando... os lustres...
PAUSA
Vai querer voltar pra casa se sair. Vai querer voltar correndo pra casa... pro seu quarto...
PAUSA
KATE O que vamos fazer, então?
ANNA Ficar. Quer que eu leia pra você? O que você acha?
KATE Não sei.
PAUSA
ANNA Está com fome?
KATE Não.
DEELEY Fome? Depois daquele guisado?
PAUSA
KATE Que saia eu ponho amanhã? Não consigo me decidir.
ANNA Põe a verde.
KATE Não tenho blusa pra ela.
ANNA Tem, sim. Põe a blusa turquesa.
KATE Será que combina?
ANNA Combina sim. Claro que combina.
KATE Vou experimentar.
PAUSA
ANNA Você gostaria que eu convidasse alguém?
KATE Quem?
ANNA O Charley... ou o Jake?
KATE Não gosto do Jake.
ANNA Charley, então ... ou...
KATE Quem?
ANNA McCabe.
PAUSA
KATE Vou pensar sobre isso no banho.
ANNA Quer que eu prepare o banho pra você?
KATE (PARADA) Não. Essa noite, eu mesma preparo.
ATO DOIS
O QUARTO.
UMA JANELA COMPRIDA NO CENTRO. PORTA PARA O BANHEIRO À ESQUERDA.
PORTA PARA A SALA À DIREITA.
DOIS DIVÃS. UMA POLTRONA.
OS DIVÃS E A POLTRONA ESTÃO DISPOSTOS EXATAMENTE NA MESMA RELAÇÃO
EM QUE ESTAVAM OS MÓVEIS NO PRIMEIRO ATO, SÓ QUE EM POSIÇÃO INVERSA.
LUZ BAIXA. DISTINGÜE-SE ANNA NO DIVÃ. ENTRA UMA PEQUENA CLARIDADE
PELA PARTE ENVIDRAÇADA DA PORTA DO BANHEIRO.
SILÊNCIO
LUZ SOBE. A OUTRA PORTA ABRE-SE. DEELEY ENTRA COM UMA BANDEJA.
DEELEY COLOCA A BANDEJA SOBRE UMA MESA.
DEELEY Pronto. Gostoso e quente. Gostoso, forte e quente. Você prefere com leite e açúcar, estou errado?
ANNA Por favor.
DEELEY (SERVINDO) Gostoso, forte e quente, com leite e açúcar.
(ENTREGA-LHE A XÍCARA) Gosta desse quarto?
ANNA Gosto sim.
DEELEY É aqui que dormimos. Essas são as camas. O bom dessas camas é que pode-se colocá-las de
qualquer maneira. Podem ficar separadas, como estão agora. Ou podem ficar em ângulo reto, ou
uma pode bisseccionar a outra, a gente pode dormir pé com pé, ou cabeça com cabeça, ou lado a
lado. Tudo por causa das rodinhas.
(SENTA-SE COM A XÍCARA NA MÃO) Sabe, lembro de você perfeitamente, dos Viajantes.
ANNA Dos o quê?
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DEELEY Da Taberna dos Viajantes, na esquina da Brompton Road.
ANNA Quando foi isso?
DEELEY Anos atrás.
ANNA Você deve estar enganado.
DEELEY Que enganado, tenho certeza, era você. Nunca esqueço um rosto. Costumava ficar sentada num
canto, às vezes sozinha, às vezes com alguém. E agora vejo você aqui, sentada na minha casa. A
mesma mulher. Coisa incrível. Tinha um cara chamado Luke que costumava freqüentar o bar
também. Você o conhecia.
ANNA Luke?
DEELEY Um cara alto. Cabelo ruivo. Barba ruiva.
ANNA Acho que você está realmente enganado.
DEELEY Pois era uma turma grande, poetas, dublês, jóqueis, atores, essa gente toda. Você usava um lenço, é
isso, um lenço preto e um suéter preto e uma saia.
ANNA Eu?
DEELEY E meias pretas. Não vai me dizer que esqueceu a Taberna dos Viajantes? Pode ser que não esteja
lembrada do nome, mas do bar. Você era a mais querida do bar.
ANNA Você sabe, eu não era rica. Não tinha dinheiro pra bebidas.
DEELEY Você tinha admiradores. Não precisava pagar. Tinha quem cuidasse de você. Eu mesmo lhe paguei
uns drinques.
ANNA Você?
DEELEY Claro.
ANN Impossível.
DEELEY É a verdade. Eu lembro claramente.
PAUSA
Ann Você?
DEELEY Eu lhe paguei uns drinques.
PAUSA
Faz vinte anos... mais ou menos.
ANN Está querendo dizer que já nos conhecíamos?
DEELEY Claro que já nos conhecíamos.
PAUSA
Já conversamos antes. Naquele bar, por exemplo. Naquele canto. Luke não gostava muito, mas nós
não dávamos bola pra ele. Depois saímos todos e fomos parar numa festa, no apartamento de
alguém pros lados de Westbourne Grove. Você foi sentar num sofazinho baixo, eu na sua frente, e
fiquei olhando por baixo da sua saia. Suas meias pretas, tão pretas, suas coxas tão brancas. Mas
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tudo isso já passou, naturalmente, não é verdade? Não tem o mesmo gosto palpável da época, já
passou. Mas valeu a pena. Aquela noite valeu a pena. Eu sentado com uma cerveja e
contemplando... contemplando as suas coxas. Você não ligava, aceitava perfeitamente a minha
contemplação.
ANNA Eu percebia a sua contemplação?
DEELEY Discutia-se qualquer coisa, qualquer coisa sobre a China, sei lá, sobre a morte, ou sobre a China e
a morte, não me lembro bem, mas ninguém além de mim beijava com o olhar um par de coxas,
ninguém além de você tinha as coxas beijadas. E aqui está você. A mesma mulher. As mesmas
coxas.
PAUSA
É. Então, uma amiga sua veio, uma garota, uma garota “amiga”. Sentou no sofá com você e
ficaram as duas de conversa e de risadinhas e eu escorreguei na minha poltrona pra poder observar
as duas, as coxas das duas, você sabendo, ela não e aí uma multidão de homens se colocou a minha
volta, queriam a minha opinião sobre a morte, ou sobre a China, ou sei lá, só sei que não me
deixavam em paz, se debruçavam sobre mim e era uma mistura de mau-hálito e dentes quebrados e
cabelos no nariz e China e morte e sentaram a bunda no braço da minha poltrona e eu me levantei
e me pus a abrir caminho mas eles me seguiam como se eu fosse o motivo da discussão, eu olhava
através da fumaça, tentei chegar perto da mesa, pegar uma cerveja, olhava através da fumaça e via
duas garotas no sofá, uma delas você, as cabeças coladas, sussurrando uma pra outra, não dava pra
ver mais nada, nada de meias, nada de coxas, você tinha ido embora. Fui até o sofá. Não tinha mais
ninguém. Fiquei contemplando a marca das bundas. Uma delas era sua.
PAUSA
ANNA Nunca ouvi uma história tão triste.
DEELEY É verdade.
ANNA Sinto muito.
DEELEY Tudo bem.
PAUSA
Nunca mais vi você. Você desapareceu. Talvez tenha se mudado.
ANNA Não. Eu não mudei.
DEELEY Nunca mais vi você na Taberna dos Viajantes. Onde você andava?
ANNA Em concertos, talvez ou balés.
SILÊNCIO
SILÊNCIO
DEELEY (PRA ANNA) Está pensando em visitar alguém aqui na Inglaterra? Parentes, primos, irmãos?
ANNA Não. Não conheço mais ninguém. A não ser Kate.
PAUSA
DEELEY Você acha que ela mudou muito?
ANNA Só um pouquinho, não muito. (PRA KATE) Você continua tímida como sempre, não?
(KATE OLHA PRA ELA)
(PRA DEELEY) Mas quando eu a conheci, ela era tão tímida, tão tímida como uma corça, era
mesmo. Quando as pessoas se aproximavam pra falar com ela, ela se dobrava pra fugir delas, então
apesar de ela estar parada ali ao alcance deles, não estava mais acessível. Ela se dobrava pra
dentro, não podiam mais falar com ela, ou tocar nela. Acho que a culpa é da criação, filha de
pastor, ela tinha alguma coisa de Emily Brontë.
DEELEY Era filha de pastor?
ANNA Mas se eu digo Brontë, não digo que ela era Brontë em paixão, mas só em segredo, em ser assim
tão teimosamente fechada.
PEQUENA PAUSA
Me lembro da primeira vez que ela corou.
DEELEY O que? O que foi? Quer dizer, por que foi?
ANNA Uma vez peguei uma calcinha dela pra ir a uma festa. Mais tarde, naquela mesma noite, eu
confessei. Foi maldade minha. Ela ficou me olhando, perplexa, talvez seja essa a palavra. Mas eu
disse a ela que de fato eu tinha sido punida pelo meu pecado, porque, na festa, um homem passou a
noite inteira olhando por baixo da minha saia.
PAUSA
DEELEY Isso a fez corar?
ANNA Profundamente.
DEELEY Olhando por baixo da sua saia, pra calcinha dela. Mmnn.
ANNA Mas a partir daquela noite, ela passou a insistir, de vez em quando, pra que eu usasse as suas
calcinhas – ela tinha mais do que eu e muito mais variedade – e cada vez que ela propunha isso, ela
corava, mas continuava propondo, assim mesmo. E quando eu tinha alguma coisa pra contar a ela,
na volta, alguma coisa interessante pra contar a ela, eu contava.
DEELEY E aí, ela corava?
ANNA Não dava pra ver. Eu chegava tarde, e ela estava lendo junto ao abajur, e eu começava a contar,
mas ela dizia não, apaga a luz, e eu tinha que contar no escuro. Ela preferia que eu contasse no
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escuro. Mas, é claro, nunca era totalmente escuro, com a luz do aquecedor, e a luz que passava
pelas cortinas, e o que ela não sabia é que eu, conhecendo a sua mania, escolhia uma posição no
quarto de onde eu podia enxergar o rosto dela, mas ela não via o meu. Só ouvia a minha voz.
Então, ela ficava ouvindo, e eu observando ela me ouvir.
DEELEY Parece um casamento perfeito.
ANNA Éramos grandes amigas.
PAUSA
DEELEY Você diz que ela era uma Brontë em segredo mas não em paixão. Como ela era em paixão?
ANNA Eu acho que aí é o seu território.
DEELEY Você acha que é o meu território? Ora, você tem toda a razão. É o meu território. Fico muito
satisfeito que finalmente alguém por aqui comece a mostrar sintomas de bom gosto. Lógico que
essa porra é meu território. Eu sou o marido dela.
PAUSA
O que eu queria é fazer uma pergunta. Será que eu sou o único que está começando a achar isso
tudo de mau gosto?
ANNA Mas o que é que você pode estar achando de mau gosto? Eu vim de avião, de Roma, pra rever a
minha velha amiga, depois de vinte anos, e conhecer o marido dela. O que será que está te
incomodando?
DEELEY O que me incomoda é a idéia do seu marido vagando naquela mansão imensa sozinho, a pão e
água e uns ovos fritos, incapaz de falar uma maldita palavra em inglês.
ANNA Eu traduzo, quando é necessário.
DEELEY É, mas você está aqui, conosco. E ele lá, sozinho, andando de um lado pro outro do terraço,
esperando uma lancha, esperando uma lancha que traga gente bonita, pelo menos. Belezas do
mediterrâneo. Esperando tudo aquilo, um tipo de elegância da qual não sabemos nada, uma figura
da Cote d´Azur, de cintura fina, da qual não sabemos absolutamente nada, uma lagosta e a
ideologia do molho da lagosta da qual não sabemos porra nenhuma, as pernas mais longas do
mundo, as vozes doces mais fenomenais. Sou capaz de ouvi-las, nesse momento. Olha aqui, vamos
pôr as cartas na mesa, eu estou de olho numa série de pulsações, pulsações pelo globo inteiro,
privações e insultos, por que eu devo perder meu tempo precioso escutando duas -
KATE (RAPIDAMENTE) Se não está gostando saia.
PAUSA
DEELEY Sair? Pra onde?
KATE Pra China. Ou pra Sicília.
DEELEY Não tenho iate. Nem smoking.
KATE Vá pra China, então.
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DEELEY Sabe o que fariam comigo na China se me vissem de smoking? Certamente me matariam. Sabe
como eles são por lá.
PEQUENA PAUSA
ANNA Vocês são bem vindos na Sicília, quando quiserem, os dois, serão meus hóspedes.
SILÊNCIO
LONGO SILÊNCIO
SILÊNCIO
SILÊNCIO
DEELEY LEVANTA-SE. DÁ ALGUNS PASSOS, OLHA PARA OS DOIS DIVÃS. VAI ATÉ O
DE ANNA, OLHA PRA ELA. ELA CONTINUA IMÓVEL.
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SILÊNCIO
SILÊNCIO
LONGO SILÊNCIO
SILÊNCIO
DEELEY NA POLTRONA.
ANNA DEITADA NO DIVÃ.
KATE SENTADA NO OUTRO DIVÃ.